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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHO DE SPARTACUS / Simon Scarrow
FILHO DE SPARTACUS / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em sua jornada para vingar o assassinato do pai, centurião aposentado do exército romano, e descobrir o paradeiro de sua mãe sequestrada, Marcus Cornelius Primus é feito escravo, torna-se aprendiz de gladiador e descobre um segredo sobre sua origem e o passado de seu pai que pode por em risco sua própria vida na série Gladiador, uma aventura repleta de referências históricas protagonizada por um jovem que, assim como outros heróis da literatura juvenil, é forçado a deixar de lado sua inocência e por à prova sua coragem e determinação. No terceiro livro da saga, Filho de Spartacus, Marcus está finalmente livre da escravidão, mas novos desafios se impõem em seu caminho. Será ele capaz de mudar o rumo dos acontecimentos e ainda salvar sua mãe?

 

 

 

 

 

 

 

 

1
Os invasores chegaram logo após o anoitecer, emergindo sorrateiramente do meio dos cedros que se espalhavam pelos declives da colina acima da vila. Eram mais de
cinquenta armados com espadas, lanças e clavas. Alguns vestiam armaduras: cotas de malha ou couraças de bronze antigo, com capacetes e escudos de vários formatos
diferentes. A maioria dos homens era magra e esquálida e acostumada a uma vida de trabalho árduo e fome constante. Seus líderes eram diferentes: sujeitos bastante
encorpados que possuíam as cicatrizes da profissão. Em contraste com os outros, suas armaduras eram bem ornamentadas e cuidadas. Antes de escaparem dos donos, tinham
sido gladiadores - os lutadores mais mortais de todas as terras governadas por Roma.
À frente da pequena força, havia um homem de ombros largos e cabelos escuros cacheados e cheios. Ele estava montado em uma égua negra, roubada de uma vila atacada
um mês antes. Sobre sua testa e seu nariz, espalhava-se uma cicatriz pálida de uma ferida causada alguns meses antes por um centurião, o comandante de uma patrulha
vítima de emboscada. A patrulha fazia parte da força enviada por Roma para encontrar e eliminar bandidos e escravos fugidos que se escondiam pelos Montes Apeninos.
Muitos eram sobreviventes da grande rebelião liderada pelo gladiador Spartacus 12 anos antes e ainda carregavam o legado dele em seus corações. A revolta quase destruíra
Roma, e, desde então, os romanos temiam mais um levante sangrento. Devido às guerras que travavam fora de seu território, não tinha sido possível para os romanos
destruir completamente os rebeldes sobreviventes, e, ao longo dos anos, eles se multiplicaram e chegaram aos milhares. Escravos fugidos, juntamente com aqueles que
tinham sido libertados nos ataques dos rebeldes às vilas e fazendas dos homens mais ricos de Roma, compunham agora o enorme exército dos lutadores pela liberdade.
Em breve, pensou o líder com um pequeno sorriso no rosto, eles teriam força suficiente para perpetrar ataques mais ambiciosos aos senhores romanos. Seu plano já
estava pronto. Chegaria a hora em que, mais uma vez, um gladiador lideraria um exército de escravos contra seus opressores. Até lá, o líder estava satisfeito em
comandar ataques menores, como o daquela noite, para irritar os ricos que controlavam Roma e para inspirar os escravos oprimidos que viviam miseravelmente nas casas,
nos campos e nas minas de todo o Império.
Os olhos atentos do líder analisavam as silhuetas escuras das construções e dos muros à sua frente. Ele e seus homens tinham passado dois dias observando a vila,
do meio das sombras das árvores. Era uma típica fazenda de um romano rico. Havia uma grande casa em uma das laterais, construída ao redor de um pátio com caminhos
de cascalho e canteiros de flores que cercavam espelhos d'água e lagos com peixes. Um muro separava a casa das construções baixas e simples onde ficavam escravos,
feitores, guardas e ferramentas agrícolas, assim como os celeiros e armazéns onde os produtos da fazenda eram organizados antes de serem transportados e vendidos.
O lucro resultante seria acrescido à fortuna do dono da propriedade, morador de Roma, indiferente ao trabalho árduo, sofrido e penoso daqueles que o enriqueciam.
Ao redor de todas as construções, havia um muro de três metros de altura para evitar ameaças externas e a saída dos escravos.
Enquanto estavam escondidos, os invasores observaram a rotina da vila e a entrada e saída dos guardas com os escravos acorrentados, que trabalhavam nos campos e
pomares ao redor das construções. A raiva do líder ardeu em suas veias ao ver os feitores agitando os chicotes e usando clavas para bater nos escravos mais lentos.
A vontade dele era de sair do meio das árvores em disparada com seus homens, matar os guardas e libertar os escravos, mas tinha aprendido o valor da paciência. Foi
uma lição que Spartacus o ensinara muitos anos antes.
Antes de tudo, em qualquer luta, deve-se observar o inimigo com atenção e descobrir suas forças e fraquezas. Apenas um imbecil se envolve em um conflito sem ter
essa preparação, insistira Spartacus. Então o líder e seus homens esperaram, reparando nos horários da troca de guarda nos muros e no portão da vila. Eles contaram
os guardas, analisaram suas armas e descobriram onde eles se acomodavam. Também tinham descoberto uma pequena parte rachada do muro que ficava atrás de um abeto;
mal dava para enxergá-la a distância. Os homens de vigia raramente passavam por aquela parte do muro, e seria por lá que o grupo atacaria.
Agora estavam se movendo silenciosamente por um campo que havia sido arado recentemente, aproximando-se de um bosque de oliveiras que ficava perto do muro externo
da vila. Mais à frente, o líder avistava as chamas fortes do braseiro acima da guarita, provendo iluminação para os guardas e também calor para aquela noite fria
de janeiro. Chamas menores cintilavam na escuridão em cima das torres nas extremidades dos muros, e era possível enxergar as silhuetas dos vigias agasalhados com
seus mantos e batendo as botas no chão para se aquecerem, com as lanças apoiadas nos ombros.
- Devagar - murmurou o líder. - Não façam nenhum barulho. Nada de movimentos repentinos.
A ordem dele foi sussurrada de homem a homem enquanto os seguiam sorrateiramente no meio das árvores, aproximando-se da parte danificada do muro. Quando o grupo
chegou ao fim do bosque, o líder estendeu a mão, e seus homens pararam. Em seguida, acenando para seis dos invasores mais próximos, o líder desceu da égua e entregou
as rédeas para um de seus homens. Ele abriu o fecho do manto e o colocou em cima da sela. Não seria prudente começar uma briga com camadas grossas de lã em cima
do corpo. Por baixo do manto, ele vestia uma túnica azul-escuro com um peitoral de couro preto incrustado com a cabeça prateada de um lobo. Havia uma espada curta
pendurada no boldrié em seus ombros, e seus braços estavam protegidos por braceletes de couro batido.
Ele se virou para os outros.
- Prontos?
Eles fizeram sim com a cabeça.
- Sim, Brixus.
- Então, vamos.
Cautelosamente, ele saiu do meio das árvores para o terreno aberto. A dez metros dali o abeto agigantava-se na escuridão. Havia uma pequena torre à mesma distância
ao longo da parede, com a silhueta de um guarda em pé de costas para o brilho do braseiro. Brixus deu um passo para frente e atravessou o gramado na direção do muro.
Ele mancava devido a um ferimento de muitos anos antes no tendão da perna, resultado de sua última luta em uma arena. O pequeno grupo saiu do meio das árvores e
o seguiu, atravessando o terreno, oculto como sombra. Apenas o barulho sutil da grama acompanhava seu progresso, e logo todos estavam debaixo dos galhos perfumados
do abeto, ao lado do muro.
- Taurus, para o muro - sussurrou Brixus, e uma silhueta enorme encostou-se na superfície rebocada, afundando as botas na terra enquanto juntava as mãos para fazer
um apoio. Imediatamente, um de seus companheiros, Pindar, um homem alto e ágil, saltou e, com um gemido, Taurus o ergueu na direção do topo do muro. Com rapidez,
Pindar soltou um tijolo e o entregou para um dos homens que o aguardava embaixo. O tijolo foi levado até o chão cuidadosamente e em seguida o mesmo foi feito com
mais um tijolo. Não demorou para Pindar remover todos os tijolos soltos e, com uma adaga, passar a retirar a argamassa que mantinha os outros juntos. O trabalho
seguiu devagar enquanto o líder mancava a uma pequena distância e se ajoelhava para observar o homem na torre de guarda. O vigia ainda estava lá, com as mãos estendidas
por cima das chamas do braseiro para aquecê-las. Após um tempo, ele pegou sua lança e começou a caminhar lentamente ao longo do muro, aproximando-se dos invasores.
- Fiquem parados - sussurrou Brixus, controlando ao máximo o volume, acomodando-se no gramado e pressionando o corpo no chão enquanto observava o sentinela se aproximar.
Seus camaradas ficaram paralisados, e Pindar achatou o corpo contra o muro. O sentinela continuou se aproximando e, ao chegar a uns cinco metros do buraco, parou
e se virou para o muro, olhando na direção das árvores. Brixus rezou para que seus homens estivessem imóveis, fora da vista do guarda, enquanto esperavam nas sombras.
Não houve sinal algum do sentinela e, após um instante, ele se virou e começou a voltar para perto do braseiro.
- Tudo bem - disse o líder baixinho. - Podem continuar.
Tijolo por tijolo, o buraco foi crescendo até ficar bem perto da cabeça de Taurus.
- Agora já dá. Podem subir. - Brixus gesticulou para o pequeno grupo de homens. Taurus ergueu um de cada vez na direção do buraco, e eles passaram por cima do muro
silenciosamente e entraram na propriedade. À direita, havia o muro da vila que tinha uma pequena guarita, dando acesso à parte da propriedade onde se trabalhava.
Uma guarita isolada e mais chamativa dava acesso à vila a partir de um caminho cercado de árvores, para que visitantes importantes não tivessem que passar pela deplorável
área dos escravos. Nas outras direções, havia o alojamento dos escravos e o dos feitores e guardas. Atrás deles, os celeiros e armazéns.
Brixus deu uma última olhada para o sentinela a fim de garantir que estava tudo bem, então se virou para as árvores e aproximou a mão da boca. Após respirar fundo,
ele imitou o pio de uma coruja três vezes. Um instante depois, avistou o restante do grupo invasor aparecer do meio das árvores e seguir em direção ao gramado, abaixando-se
ao chegar perto do abeto.
Aquele era o momento mais arriscado, pensou Brixus. Se o sentinela estivesse atento, com certeza avistaria os vários homens que emergiam da escuridão. Pindar estava
encarregado dele. Antes que os homens chegassem à metade do terreno aberto, escutou-se o barulho de uma pancada e, ao olhar para o muro, o líder percebeu o desaparecimento
do sentinela. Brixus suspirou aliviado, levantando-se e acenando para que os homens prosseguissem antes de ir mancando até Taurus.
- Minha vez, meu velho amigo. - Ele sorriu na escuridão e viu os dentes brilhantes do enorme homem retribuindo o sorriso. Então, após colocar a bota em cima das
grandes mãos de Taurus, o líder subiu e passou pelo buraco.
No corredor do sentinela, ele olhou para a esquerda e avistou Pindar descendo do muro, deixando o corpo do guarda esparramado mais atrás. No chão, lá embaixo, os
outros homens do grupo na dianteira estavam ajoelhados, formando um arco na superfície, apenas vigiando. Brixus abaixou-se por cima da passarela e desceu o último
meio metro, chegando ao chão. Acima de si, o líder escutou o primeiro homem do segundo grupo atravessar o buraco e se afastou para o lado apressadamente. Um por
um, os invasores desciam para dentro da propriedade e se juntavam aos homens espalhados em arco. Com um grunhido cansado, Taurus ergueu-se e passou pelo buraco para
se juntar aos companheiros.
Brixus sacou a espada e deu uma olhada em seus homens enquanto erguia a arma. Em resposta, eles agarraram as próprias armas e as ergueram, demonstrando que estavam
prontos.
- Para os alojamentos dos guardas - disse ele, apenas alto o suficiente para que todos o escutassem. - Vão com tudo. Nada de misericórdia.
Taurus grunhiu baixinho, assentindo, e os outros murmuraram seus comentários. O líder os guiou pelo caminho ao longo do muro, mantendo-se em sua sombra enquanto
mancava na direção do alojamento a cerca de cem passos de distância. O som abafado de vozes se espalhava pela propriedade - era uma conversa leve, e às vezes se
escutavam gritos de alegria e gemidos de homens que jogavam dados. Não havia nenhum som saindo do alojamento dos escravos. Eles deviam estar cansados demais para
fazer qualquer coisa além de dormir após comerem sua porção noturna de mingau de cevada. Além do mais, pensou Brixus, naquele tipo de propriedade os escravos eram
proibidos de falar para não se animarem a tramar algum complô contra seus donos.
Quando estavam a uns quinze metros da entrada dos alojamentos, uma porta abriu-se repentinamente e uma pequena fresta de luz rosada espalhou-se pela propriedade,
iluminando os homens que corriam ao longo da base do muro. Havia dois guardas na entrada dos alojamentos, eles carregavam duas jarras vazias que encheriam no poço.
De imediato pararam e ficaram encarando os invasores antes de reagir.
- Alerta! - gritou um guarda, virando-se para a porta e repetindo o grito. - Alerta!
Brixus voltou-se para seus homens e estendeu a mão livre na direção de Pindar.
- Leve seus homens e cuide dos sentinelas perto do muro. O restante vem comigo!
Ele apontou a espada para a entrada dos alojamentos e gritou o mais alto possível no ar da noite fria:
- Ataquem!
2
Um grupo liderado por Pindar correu pelos degraus que levavam ao muro, indo na direção dos sentinelas mais próximos. Na propriedade, silhuetas escuras corriam para
as portas dos alojamentos, com um rugido selvagem emergindo da garganta de cada um dos homens que se lançava adiante. Brixus fez o que pôde para acompanhar, mas
seu antigo ferimento fez com que a maioria de seus homens o ultrapassasse rapidamente. Os dois guardas desarmados na entrada recuperaram-se logo da surpresa e, soltando
as jarras, viraram-se e correram de volta para dentro.
Despertado pelo alvoroço, o primeiro defensor já tinha alcançado a porta do alojamento, armado com uma espada curta e uma adaga. O homem estava descalço e era encorpado,
com cabelos grisalhos e feições enrugadas. Pela reação ágil e pela maneira firme com que plantou os pés no chão, dava para perceber nitidamente que já fora um soldado
bastante experiente. Ele olhou para a onda de homens que se aproximava e gritou para trás:
- Peguem as armas! Juntem-se a mim!
Alguns homens conseguiram alcançá-lo antes que os invasores os atacassem. O ex-soldado desviou-se de uma clava e bateu a espada na lateral do corpo do primeiro invasor,
derrubando-o. Ele caiu soltando um gemido e abraçando o próprio corpo. Um de seus camaradas tropeçou nele e caiu na frente do guarda, que o matou com um rápido golpe
entre as omoplatas.
Apesar da coragem e do exemplo do ex-soldado, os guardas que estavam fora do alojamento se encontravam em desvantagem, e, após alguns instantes, os invasores já
tinham matado os dois defensores e obrigado o restante a voltar para a entrada. Por cima dos ombros de seus homens e das lâminas reluzentes, o ex-soldado percebeu
que o restante dos guardas tinha se armado para se juntar aos que estavam perto da porta aberta. Não dava para muitos homens lutarem no espaço estreito, e cada um
que caía morto era substituído rapidamente, sem nenhum dos lados ficar em vantagem.
Lá fora, Brixus soltou um palavrão baixinho. Estava com esperança de surpreender o inimigo e matar os guardas do alojamento antes que eles pudessem se armar e se
enfileirar. Era tarde demais para aquilo e ele precisava mudar de plano antes que perdesse mais homens. Sabia que não podia depender de mais ninguém, apenas de seus
companheiros gladiadores. O restante do grupo era formado por escravos fugidos que tinham se juntado ao seu crescente bando, ansiosos para se vingarem de seus antigos
opressores, mas sem o treinamento e a disciplina de lutadores experientes. Se vissem muitos de seus camaradas sendo derrotados, a coragem deles provavelmente se
enfraqueceria.
Guardando a espada, ele deu a volta nos homens aglomerados ao redor da entrada e segurou a beirada da porta.
- Para trás! - ordenou ele para os que estavam mais perto. - Você e você, me ajudem a fechar a porta.
Com homens dos dois lados, Brixus começou a empurrar. No início não enfrentaram nenhuma resistência, mas, quando os defensores perceberam o que estava acontecendo,
o ex-soldado berrou uma ordem:
- Mantenham a porta aberta!
Enquanto a luta desesperada continuava na entrada estreita, os invasores firmaram as botas no chão e empurraram a superfície áspera de madeira com toda a força que
tinham enquanto os defensores resistiam do outro lado. A pressão na porta diminuiu e parou.
- Taurus! - chamou Brixus entre os dentes cerrados. - Venha aqui! Agora!
O gigante empurrou um dos invasores para o lado e jogou seu peso contra a porta, ao lado do líder. Imediatamente ela começou a se mover de novo, fechando-se aos
poucos até a abertura ficar estreita demais para que alguém pudesse passar. A luz fraca dos candeeiros diminuiu e desapareceu no instante em que a porta se fechou
no caixilho.
- Mantenha-a fechada - ordenou Brixus, gesticulando para que os homens mais próximos ajudassem Taurus. Em seguida, ele se afastou e deu uma olhada na propriedade.
A uma pequena distância, ao lado de um dos celeiros, avistou um pesado carrinho de mão. Convocando vários homens, atravessou a propriedade rapidamente e agarrou
o carrinho. Com dificuldade devido ao peso do veículo, os invasores o empurraram até o alojamento, onde a porta estremecia devido ao impacto de corpos e armas do
lado de dentro. O carrinho foi manobrado ao longo da parede e levado para a frente da porta, travando-a. Só daria para os guardas a abrirem um pouco, o suficiente
para sair uma fresta de luz.
- E agora? - perguntou Taurus.
- Leve seus homens e peguem feno nos estábulos para empilhar ao redor do alojamento. O restante, proteja as janelas. Não deixem nenhum deles sair.
Enquanto o alojamento era cercado e os fardos de feno eram empilhados contra as paredes, alguns guardas perceberam o destino que os invasores haviam reservado para
eles e tentaram escapar pelas pequenas janelas que ficavam mais ao alto. Ao avistá-los, os invasores empurraram as lanças para cima, obrigando-os a voltar para dentro.
Quando Brixus viu que tudo estava preparado, ordenou que derramassem óleo em cima do feno e disse para Pindar acender uma tocha na braseira que ficava acima da guarita.
Ao voltar, Pindar entregou a tocha para Brixus, que foi mancando até o carrinho que bloqueava a porta.
- Vocês aí dentro, prestem atenção! Soltem suas armas e se rendam.
Houve um breve silêncio antes que uma voz respondesse:
- Para que sejamos massacrados como animais? De jeito nenhum. Vou morrer como um homem.
- Então a morte encontrarão! - gritou Brixus. Um sorriso frio apareceu em seus lábios. - Que a morte de vocês inspire todos os romanos e escravos. Pela liberdade!
Ele deu um passo para a frente e encostou a tocha na palha empilhada debaixo do carrinho. O material incendiou-se imediatamente, e o fogo começou a se espalhar,
crepitando. Em seguida, as chamas intensificaram-se e passaram a rugir. Elas cercaram as extremidades do alojamento e a fumaça subiu pelos ares, com as nuvens de
um laranja ardente iluminadas pelo fogo selvagem.
Ouviram-se gritos de dentro do alojamento e berros de pânico enquanto os homens apareciam nas janelas, mas eles terminavam voltando para trás por causa do calor.
Os invasores formaram um círculo ao redor da construção em chamas, com suas silhuetas escuras aparecendo no forte brilho das labaredas e suas sombras esticando-se
atrás deles, no meio da escuridão. Não demorou para que as chamas alcançassem a madeira do teto, fazendo pedaços de telhas caírem lá dentro. Não se ouviu mais nenhum
grito, apenas intensos berros de sofrimento abafados ocasionalmente pelos estrondos da madeira explodindo. Os gritos continuaram por um tempo, mas depois só restou
o rugir do fogo.
Brixus subiu na beirada do poço e deu uma olhada na pequena multidão à sua frente, com os rostos iluminados pelo fogo do alojamento, que morria lentamente. Ao seu
lado, estava o feitor que administrava a propriedade para seu senhor rico, juntamente com sua esposa e dois filhos pré-adolescentes. Eles encaravam o chão, com medo
de olhar nos olhos de seus captores. Brixus voltou a atenção para a multidão. A expressão da maioria dos homens era de medo, mas alguns o olhavam com esperança nos
olhos. Aqueles seriam os mais fáceis de recrutar, refletiu Brixus enquanto pensava e se preparava para falar com os escravos recém-libertos do barracão longo e de
teto baixo onde ficavam presos após trabalharem nos campos e pomares da propriedade. Após a barra de travamento ser removida, as portas foram abertas, e o fedor
familiar de suor e dejetos humanos emanou lá de dentro; Brixus xingou os romanos por tratarem aquelas pessoas praticamente como animais.
Segurando a tocha no alto, Brixus entrou no local, contendo a náusea enquanto os escravos rastejavam para longe dele. A maioria estava acorrentada pelo tornozelo
para prevenir qualquer tentativa de fuga enquanto estivessem nos campos. Apenas alguns poucos - crianças, homens mais velhos e mulheres - estavam sem correntes.
Eles vestiam farrapos sujos e rasgados e tinham a pele suja coberta de feridas e cicatrizes causadas pelas surras que levavam dos feitores.
- Meu nome é Brixus - disse ele. - Sou um tenente de Spartacus. Vim libertar vocês.
Ele se virou para seus seguidores.
- Tirem as correntes deles e os levem para fora daqui. Mantenha o grupo junto para que eu possa falar com eles quando estiverem prontos.
Agora os escravos estavam parados diante de Brixus, ansiosos para saber o que aconteceria com suas vidas.
Brixus respirou fundo e falou em voz alta para ser escutado em meio ao crepitar distante das chamas que ainda consumiam as ruínas do alojamento.
- A vida de trabalho árduo de vocês já era, meus amigos. Não vai ter mais nenhum chicote. Nem corrente. Nada de passar fome, comendo apenas o mingau ralo que os
senhores de vocês davam. Vocês viram o quanto eles viviam bem enquanto vocês enfrentavam todo esse sofrimento, exaustão e fome? - Ele apontou o braço na direção
do feitor e sua família.
Os escravos olharam para o homem que controlava todos os aspectos de suas vidas, e houve um silêncio antes que uma voz murmurasse raivosamente. Outros fizeram o
mesmo, cerrando os punhos no ar.
Brixus ergueu as mãos e os chamou.
- Já basta! Já basta! A vingança de vocês chegará em breve. Mas agora me escutem.
Depois que ficaram em silêncio, Brixus prosseguiu:
- Como estava dizendo. Vocês não são mais escravos, agora são homens livres. Podem fazer o que quiser com a vida de vocês. São senhores dos próprios destinos.
- O que vai acontecer quando a notícia desse ataque se espalhar? - perguntou uma voz. - Eles vão vir pra cá e punir todos os escravos que encontrarem.
- Então venham conosco - respondeu Brixus.
- Para onde? Os romanos vão nos caçar como cachorros.
- Não, não vão. Eu já disse o meu nome para vocês. Eu sou Brixus, leal à causa pela qual Spartacus morreu. Quando a rebelião terminou, eu sobrevivi, assim como muitos
outros. Quando escapei novamente, fui para as colinas, para os Montes Apeninos, e me juntei ao exército de escravos que continuava escondido. Desde então, o nosso
número tem aumentado com os ataques que fazemos às propriedades daqueles que se dizem nossos senhores, e libertamos os escravos deles. Eu lidero apenas um dos grupos
de rebeldes que estão escondidos nas montanhas. Os romanos tentaram nos encontrar, mas nós escapamos. Agora estamos revidando, é a nossa vez de atacá-los, destruir
suas patrulhas e incendiar os postos avançados. Eles estão ficando com medo de nós. Todo soldado romano que matamos, toda vila que destruímos e todo escravo que
libertamos aumentam o medo deles. - Brixus parou para enfatizar as próximas palavras. - Em breve, chegará o dia em que teremos força suficiente para reiniciar a
rebelião que Spartacus liderou, e acontecerá uma nova guerra contra aqueles que nos queriam escravos.
Gritos entusiasmados de aprovação espalharam-se pela massa, e um idoso que estava mais à frente deu um passo.
- Eu também lutei por Spartacus. Mas nós fazíamos parte de um exército. Eram milhares de homens. E ainda assim os romanos nos derrotaram. Você é o líder de um bando
de foragidos e bandidos. Que chance vamos ter se nos juntarmos a você? Que liberdade é essa que está oferecendo? Alguns meses como fugitivos nas colinas, no meio
do inverno, para depois sermos perseguidos, encontrados e castigados. Da última vez, milhares foram crucificados para que nós aprendêssemos uma lição. Não acha que
a raiva deles vai ser bem maior da segunda vez? - O idoso virou-se para seus companheiros e ergueu a mão para chamar a atenção. - Na minha opinião, é melhor ficarmos
aqui. Quando os soldados vierem, nós explicamos que não tivemos nada a ver com o que aconteceu hoje.
- Seu velho tolo! - gritou Brixus. - Acha que eles vão acreditar? Não. Eles vão querer se vingar e fim de história. Eles vão fazer vocês de exemplo de qualquer jeito.
Se ficarem aqui, vão morrer.
- Todos nós vamos morrer - respondeu o idoso. - De um jeito ou de outro.
- Então a única coisa que importa é como vocês vão morrer - respondeu Brixus. - Vocês podem preferir passar o resto da vida nessa imundície, sobrevivendo das sobras
de comida que seus senhores quiserem dar, ou podem escolher se apoderar da liberdade de vocês neste exato instante. Sejam seus próprios senhores. Sintam o gostinho
da liberdade. Claro que terão de pagar um preço por isso, mas é assim com tudo que se vale a pena ter. Para ficarem livres, vocês terão que lutar. É melhor lutar
do que passar a vida se humilhando diante de um romano gordo e nojento. O que significa a morte para vocês hoje senão apenas o fim do sofrimento? O fim de uma vida
sem valor. Juntos, nós podemos acabar com isso. Podemos ter liberdade em vez de escravidão. Mas isso só vai acontecer se tivermos coragem de lutar por essa liberdade.
Quem aqui vai se juntar a mim?
- Eu! - gritou uma voz, acompanhada imediatamente por várias outras. O idoso olhou à sua volta e balançou a cabeça, sem acreditar.
Quando os gritos acabaram, Brixus falou novamente:
- Irmãos e irmãs, a era da escravidão acabará em breve. Os bandos de rebeldes vão se unir, e o sonho de Spartacus vai se tornar realidade.
- Spartacus está morto! - respondeu o idoso, gritando.
- Sim, ele está morto - reconheceu Brixus. - Mas o sonho dele continua vivo. Mais do que o sonho dele. A linhagem de Spartacus continua. Em breve, muito em breve,
os rebeldes vão se unir e lutar juntos por uma única causa e por um único líder, e esse líder é exatamente a pessoa mais adequada para assumir o lugar do grande
Spartacus, pois não é ninguém menos do que o filho dele! Ele vai nos liderar e concretizar o sonho do pai, o mesmo sonho de todos os escravos do Império Romano.
- O filho de Spartacus? - O velho balançou a cabeça. - É impossível. Eu estava lá. Ele não tinha nenhum filho.
- O filho nasceu logo após o fim da rebelião. Ele tem a marca secreta de Spartacus. Eu vi. Eu conheci o garoto.
A multidão ficou em silêncio, escutando as palavras com bastante atenção, e em quase todos os rostos ardia a esperança.
- Onde está ele?! - gritou alguém. - Onde está o garoto?!
- Eu sei onde ele mora - disse Brixus. - Ele está seguindo os passos do pai e já mostrou que vai se tornar um gladiador tão bom quanto Spartacus. Talvez até melhor.
Ele ainda é jovem, mas, quando chegar a hora, não vai conseguir fugir do próprio destino. Ele vai seguir sua vocação e liderar todos nós até conquistarmos nossa
liberdade!
- Liberdade! - gritaram seus seguidores, e logo os escravos recém-libertos também ecoaram o grito. Até o idoso se juntou a eles, com os olhos brilhando de emoção.
Brixus deixou a celebração continuar por um tempo e depois levantou as mãos, pedindo silêncio.
- Ainda precisamos cumprir uma tarefa antes de irmos embora daqui. - Ele se virou e apontou para o feitor e sua família. - Temos que mostrar aos romanos qual destino
espera aqueles que oprimem outros seres humanos. Tragam o menino mais novo até mim.
Um de seus homens aproximou-se da família, agarrou o braço do menino e o puxou para longe. Ele tentou se soltar e estendeu a mão para a mãe, o rosto dela sendo tomado
pela aflição. O feitor a segurou e falou para o filho com um tom firme e desafiador:
- Não demonstre nenhum medo para essa gentalha. Não chore. Lembre-se, você é um romano.
Brixus riu e algumas pessoas na multidão também zombaram dele.
Ao ser colocado na frente de Brixus, o garoto se empertigou o máximo possível e tentou demonstrar calma e coragem.
- Está com medo de mim? - perguntou Brixus.
- Não.
- Devia estar. Qual o seu nome?
- Lucius Pollonius Secundus. Mas pode me chamar de jovem amo.
Brixus sorriu.
- Que arrogante. Você é mesmo um romano. Mas a pergunta é a seguinte: você é um romano inteligente, Lucius? Acha que consegue se lembrar de todos os detalhes do
que aconteceu aqui esta noite?
- Nunca vou me esquecer.
- Verdade. - Brixus assentiu com a cabeça e em seguida se virou para Taurus. - Crucifique os outros. Este aqui deve ser acorrentado na base da cruz do pai. Ele que
vai contar para Roma da nova rebelião que se aproxima e que desta vez o herdeiro de Spartacus nos levará à vitória e à aniquilação de Roma.
3
- Acha que Caesar vai ganhar a votação? - perguntou Marcus enquanto olhava para o interior do Senado pela janela.
Como sempre acontecia numa votação importante, janelas e arcos estavam lotados de espectadores querendo presenciar o debate e torcer por seus heróis ou zombar dos
senadores impopulares. Tinha chovido bastante naquela manhã, e o ar estava frio e úmido. Marcus puxou o manto ao redor do corpo com firmeza. Apesar do tempo, ele
estava com o capuz abaixado para poder acompanhar os acontecimentos barulhentos do Senado com mais clareza. Seu cabelo escuro e cacheado estava precisando ser cortado
com urgência, mas tinha se acostumado a usar uma faixa de couro ao redor da testa para prendê-lo, amarrando-a atrás do pescoço. Apesar de ter completado 12 anos
recentemente, ele era alto e encorpado para sua idade, o que era esperado de um garoto que passara quase dois anos de sua vida treinando para se tornar um gladiador.
Em seu rosto havia uma seriedade incomum para a idade, assim como as cicatrizes que tinha acima do joelho direito.
Sua infância idílica na ilha grega de Lêucade tinha sido interrompida quando ele e sua mãe foram sequestrados pelos homens do agiota Decimus. Logo depois os dois
foram separados; sua mãe foi levada para passar o resto da vida como escrava em uma fazenda na Grécia, e Marcus foi levado para um lanista - o dono de uma escola
de gladiadores - perto de Cápua. Seu treinamento foi brutal e severo até o instante em que foi escolhido para lutar na frente de Julius Caesar. Por sorte, ele salvou
a vida da sobrinha de Caesar, Portia, que caíra na arena durante o combate de Marcus contra dois lobos.
Então, ele foi levado a Roma para trabalhar na casa de Caesar e espiar os inimigos dele. Como recompensa, ele ganhou sua liberdade. Aquilo tinha acontecido meses
antes, e Marcus achava que não tardaria em reencontrar a mãe. No entanto, estava demorando. Apesar de Caesar ter tentado, ele não tinha conseguido descobrir o paradeiro
dela, e Marcus estava ficando inquieto. Sentia uma dor no coração toda vez que pensava na mãe, imaginando-a acorrentada a outros escravos, obrigada a trabalhar nos
campos da vila que pertencia a Decimus. Só descansaria quando ela deixasse de ser escrava. E quando conseguisse se vingar de Decimus por todo o sofrimento causado
a ele, sua mãe e Titus, o homem que criara Marcus como filho. Marcus decidiu que, se não houvesse nenhum progresso até o fim do mês, ele pediria a permissão de Caesar
para procurá-la sozinho.
Mesmo conquistando sua liberdade, logo Marcus percebeu que ela era menor do que pensava. Os escravos libertos tinham que pagar uma dívida ao antigo dono e deviam
honrar quaisquer pedidos de mais serviços. Era tudo parte dos costumes peculiares do povo romano, bem diferentes da vida simples que tinha em Lêucade.
O tempo estava se esgotando para Marcus. Seu antigo dono tinha completado um ano como um dos dois cônsules e em breve deixaria Roma para assumir o comando dos exércitos
e da província da Gália Cisalpina. Se fosse obter mais alguma ajuda de Caesar para encontrar a mãe, seria em breve, antes que ele fosse embora de Roma como general.
No entanto, primeiramente, Caesar teria de sobreviver à tentativa de seus inimigos políticos de o processarem por abusar de seus poderes durante seu ano como cônsul.
Hoje eles votariam para decidir se Caesar deveria ser julgado ou não. Os argumentos a favor e contra o julgamento tinham sido expostos energicamente durante o dia
inteiro, e Caesar levantara-se de seu banco várias vezes para se dirigir aos acusadores. Como sempre, Marcus ficou impressionado com a habilidade de seu antigo senhor
falar em público. Utilizara-se de raciocínio, retórica e humor para desafiar os oponentes e ganhar o apoio dos senadores e da maioria dos espectadores. Mas será
que isso seria suficiente?
O homem grisalho ao lado de Marcus inclinou a cabeça para o lado enquanto pensava na pergunta do garoto. Festus era responsável pela guarda pessoal de Caesar, uma
pequena força composta de veteranos do exército, ex-gladiadores e lutadores de rua que cuidavam da segurança dele ao passar pelas ruas cheias de Roma. Marcus era
o membro mais jovem da força, mas tinha conquistado o respeito dos outros por sua coragem e sua habilidade com as armas.
- É difícil saber. Nosso senhor é popular com o povo. As reformas de terra feitas por ele no ano passado ajudaram muita gente. Mas não cabe ao povo resolver o que
vai acontecer com ele. Somente os senadores vão decidir isso. - Ele parou, e um sorriso apareceu em seu rosto fatigado. - Mas eu me arrisco a dizer que a maioria
deles não vai querer ser alvo da raiva da multidão, que é o que vai acontecer se decidirem a favor do julgamento de Caesar. O único risco é se Cato conseguir mudar
a opinião deles.
Marcus olhou para o senador rabugento sentado no banco na frente de Caesar. Cato estava com sua toga lisa marrom para mostrar que se mantinha fiel às virtudes mais
simples e às tradições dos antepassados do Senado. No ano passado, ele resistira amarguradamente às reformas de Caesar, e os dois continuavam inimigos um do outro.
Um dos novos cônsules, Calpurnius Piso, estava comandando o debate e tinha se levantado para tomar a palavra. Enquanto pigarreava, os outros senadores e os espectadores
ficaram em silêncio em respeito ao cargo dele.
- Meus companheiros senadores. Sei que temos apenas mais duas horas antes que o dia acabe. Escutamos os argumentos a favor e contra a proposta nos últimos três dias
e sugiro que agora nós votemos para decidir se Caesar deve ser julgado ou não.
- Agora vamos descobrir - murmurou Marcus.
- Não tenha tanta certeza disso - disse Festus. - Você está se esquecendo do nosso amigo Clodius.
Marcus assentiu com a cabeça, lembrando-se do jovem violento que organizara as gangues de rua a serviço dos interesses de Caesar no ano anterior.
- Eu proíbo! - disse uma voz alta.
Os olhos de todos se viraram para um dos homens sentados no banco dos tribunos. Estes, eleitos pelo povo, tinham o poder de se opor a qualquer decisão tomada pelo
Senado, mas raramente se recorria a isso. O tribuno Clodius levantou-se e estendeu a mão.
- Eu proíbo a votação.
De maneira abrupta, Cato levantou-se e apontou o dedo acusatoriamente.
- Com base em quê?
Clodius virou-se para o senador e sorriu.
- Não tenho que me justificar para você, meu caro Cato. Eu simplesmente tenho o direito de proibir a votação. É isso.
Cato fulminou-o com o olhar do outro lado do Senado.
- Mas você tem a obrigação moral de explicar sua decisão. Você precisa dizer quais são seus motivos.
- Preciso mesmo? - Clodius virou-se para o cônsul.
Piso suspirou e balançou a cabeça.
- Argh! - disse Cato, furioso. - O tribuno está abusando dos poderes dele. Se não existe nenhuma razão para proibir uma votação, e neste caso não existe, então não
é correto ele proibi-la.
- Talvez não seja correto - respondeu Clodius com o tom de voz neutro. - Mas é meu direito. E você não pode fazer nada a respeito disso.
As palavras dele provocaram uivos raivosos nos defensores de Cato, e Marcus percebeu que muitos dos outros senadores pareciam estar com raiva, até mesmo aqueles
que normalmente apoiariam Caesar. Virou-se para Festus e disse:
- Acho que Caesar está cometendo um erro. Ele não devia confiar em Clodius.
- Talvez, mas por que arriscar perder a votação?
- O nosso senhor está arriscando mais do que a votação. - Marcus apontou para o Senado, que estava sendo tomado pela raiva. A gritaria continuou por um instante
até o escrivão de Piso bater o bastão no chão de mármore. O barulho diminuiu aos poucos, e Piso apontou a cabeça na direção de um sujeito alto sentado entre Cato
e Caesar.
- A palavra é entregue ao senador Cicero.
Marcus inclinou-se para a frente contra o batente da janela. Queria garantir que não perderia nada. Cicero, um dos senadores mais respeitados, ainda não tinha optado
por um lado. O que quer que ele dissesse poderia fazer o Senado apoiar Caesar ou ficar contra ele.
Cicero caminhou com determinação até o espaço aberto na frente do cônsul e virou-se para os senadores, aguardando. Marcus sentiu o clima de ansiedade e de tensão,
mas Cicero, mestre de todos os truques para se falar bem em público, esperou o silêncio total antes de começar a falar:
- Honrados senadores, não vamos abrir feridas antigas. São poucos aqui os que conseguiram esquecer as terríveis e violentas brigas que acompanharam a época de Marius
e Sulla. E nenhum de nós quer voltar para aquela época, em que todo senador temia pela própria vida, em que as ruas da nossa cidade eram tomadas pelo sangue. Portanto,
vamos lidar com a nossa dificuldade atual abrindo-nos para o acordo.
Marcus viu Cato balançar a cabeça e começar a se levantar. Cicero gesticulou para que continuasse sentado e, relutantemente, ele se acomodou. Caesar apenas observava,
com o rosto frio e inexpressivo.
- Poucos podem negar - prosseguiu Cicero - que os dois lados têm motivos para queixas. O período de Caesar como cônsul foi polêmico devido à natureza das leis por
ele introduzidas, e eu mesmo questiono as táticas que ele usou para impor sua vontade. Mas a presente tentativa de fazer com que ele seja julgado me parece ter motivações
políticas. Claro, tenho certeza de que o Senado faria um julgamento justo e de que a decisão final seria tomada com base na razão e na justiça.
Festus zombou dele:
- Quem ele acha que está enganando?
- Shhh! - chiou um homem robusto ao lado dele.
- Entretanto - prosseguiu Cicero -, como o tribuno Clodius exerceu seu direito de veto, nós não podemos votar a respeito do julgamento. O tribuno tem permissão da
lei para não contar os motivos de sua decisão, mas a ele eu digo que isso demonstra o tipo de frivolidade pelo qual ele ficou famoso. Ele está arriscando intensificar
as discórdias que já abalam bastante a unidade do Senado.
Clodius cruzou os braços, recostou-se na cadeira e sorriu.
- Todos sabem que Clodius é um seguidor de Caesar, e isso explica completamente a decisão dele. Mas nada pode ser feito, nem deve ser feito, para forçar o tribuno
a mudar de ideia. No momento em que seguirmos esse rumo, minamos a importância das tradições e leis responsáveis por tornar Roma a grande potência que é. Portanto,
sugiro concordarmos com o seguinte meio-termo. - Ele fez uma pausa. - No ano passado, o senador Cato sugeriu que Caesar passasse a ser responsável pela destruição
do que sobrou do exército de Spartacus. Naquela época não houve votação devido ao tumulto na área externa do Senado. - Ele olhou significativamente para Clodius
antes de prosseguir: - E hoje eu soube de mais um ataque, dessa vez a uma propriedade perto de Tiferno, pertencente a um membro desta casa, o senador Severus. -
Ele gesticulou na direção de um senador grande e careca sentado na fileira da frente.
- Exatamente - disse Severus, franzindo a testa. - A escória incendiou minha vila inteira, massacrou meus empregados e libertou todos os meus escravos. É um absurdo!
- Certamente. - Cicero assentiu com a cabeça. - O número e a intensidade dos ataques têm aumentado. Os bandos de rebeldes agora representam uma grande ameaça à segurança
da fazenda e das vilas dos dois lados dos Apeninos. O líder deles, um bandido chamado Brixus, está tentando unir os escravos para formar um único exército sob seu
controle. Ele alega até que o filho de Spartacus está vivo e que ele será o testa de ferro de uma nova rebelião. Claro que é tudo mentira, mas os tolos que seguem
Brixus estão dispostos a acreditar em qualquer coisa.
Marcus sentiu um arrepio gélido na nuca. Tinha conhecido Brixus na escola de gladiadores onde foi treinado. Marcus descobrira o segredo de Brixus: ele fazia parte
do grupo mais próximo de Spartacus. Já Brixus descobriu um segredo ainda maior: que o garoto era o filho do antigo líder dos escravos, portanto um inimigo de Roma
inteira. Apesar de Marcus ter ido trabalhar na casa de Caesar de propósito, para poder encontrar a mãe, ele passava o tempo inteiro temendo que sua verdadeira identidade
fosse descoberta. Até então ele conseguira mudar de assunto quando alguém via a marca com a cabeça de um lobo na ponta de uma espada, queimada em seu ombro, sinal
de sua ligação com Spartacus. No entanto, a notícia da rebelião de Brixus o deixou transtornado. Ele olhou com cautela para Festus, que encontrou seu olhar e ergueu
a sobrancelha interrogativamente.
- O que foi, Marcus? Parece que viu um fantasma.
- Não é nada. - Marcus obrigou-se a ficar com a expressão calma apesar de seu coração bater acelerado dentro do peito.
Cicero respirou fundo e prosseguiu:
- Precisamos lidar com esses bandidos. Se Caesar concordar em se responsabilizar pela destruição deles, Cato, você concorda em deixar de lado a sua tentativa de
julgá-lo?
Antes que Cato pudesse responder, Caesar levantou-se.
- Protesto! Já tenho outros deveres. Vou assumir o comando do meu exército na primavera. Não tenho tempo para perder indo atrás de alguns poucos escravos exaustos.
Tenho assuntos bem mais importantes para me preocupar.
- Mais importantes do que a segurança do Império? - perguntou Cicero.
- Não... claro que não - respondeu Caesar furiosamente. - Não há nada mais importante do que isso. Mas...
- Então você com certeza aceitará o serviço?
Caesar pressionou os lábios um contra o outro, tentando conter a frustração enquanto Cato se levantava para falar.
- Se Caesar aceitar, eu fico contente em retirar minha proposta de julgá-lo.
Uma onda de aplausos espalhou-se entre os outros senadores, que concordavam com a cabeça. Cato abaixou a cabeça graciosamente antes de estender a mão na direção
de Caesar.
- Eu cedi, Caesar. Você fará o mesmo?
- Ah, o nosso senhor não vai gostar disso - murmurou Festus. - É melhor se preparar para a gritaria que vamos ouvir quando chegarmos em casa.
Marcus estava observando Caesar, esperando que ele recusasse o acordo de Cicero.
Caesar concordou lentamente com a cabeça.
- Muito bem. Eu aceito. Vou assumir o comando de uma força para encontrar e destruir esses rebeldes assim que pudermos. Prometo encontrar esse escravo chamado Brixus
e trazê-lo de volta para o Senado para que possamos decidir como castigá-lo. Vou acabar com o legado de Spartacus de uma vez por todas.
Suas palavras foram recebidas com aplausos pelos senadores, e logo os espectadores nas janelas e portas faziam o mesmo. No entanto, Marcus ficou em silêncio. A última
coisa que queria era que Caesar capturasse Brixus. O que seu antigo senhor faria se descobrisse que Marcus era filho de Spartacus, o maior inimigo já enfrentado
por Roma?
4
Festus tinha razão. No instante em que Caesar e seu grupo entraram na casa, logo após a porta se fechar, ele teve um ataque de raiva. Marcus nunca o vira tão furioso.
- Maldito seja Cicero! Que ele vá para as maiores profundezas do Hades! Agora serei obrigado a me encarregar de uma perseguição inútil quando devia estar com minhas
legiões na Gália.
Clodius deu de ombros e examinou as unhas de sua mão direita.
- Então talvez você devesse ter recusado ou pelo menos acenado com a cabeça para que eu intercedesse com meu veto.
- Não. Esse direito não deve ser excedido. Tivemos que usá-lo para impedir a votação. Usá-lo também contra Cicero seria demais para o Senado. Até a lealdade das
pessoas que me apoiam tem seus limites. - Caesar rangeu os dentes. - Agora Cato conseguiu me deixar onde ele queria: preso aqui quando era para eu começar minha
campanha e conquistar novas terras e glórias para Roma.
- E para você - acrescentou Clodius.
Caesar fulminou-o com o olhar por um instante e suspirou cansado.
- Seja lá o que pense de mim, eu sei que Roma é meu único senhor. Minha vida é dedicada a expandir o poder dela pelo mundo.
- Se está dizendo, Caesar. Mas você continua tendo de lidar com o problema que esse Brixus e seus seguidores representam. Qual é o seu plano a respeito disso?
- É como eu disse. Pretendo encontrá-los, assim como todos os outros bandos de rebeldes e foragidos. Os que não matarmos eu vou poder vender. - Caesar contraiu os
lábios. - Então talvez haja algum benefício nesse maldito plano secundário.
Marcus sentiu o sangue esquentar nas veias. Por mais que tivesse passado a admirar Caesar, o homem não deixava de ser um romano dos pés à cabeça, isso significava
que considerava a escravidão algo normal em seu mundo. Ele não prestava nenhuma atenção ao sofrimento e às humilhações dos escravos à sua volta. Para Marcus, que
nascera livre, a perda da liberdade tinha sido a coisa mais terrível que lhe acontecera. Ela significou perder sua casa, o homem que o criara, a mãe, tudo que lhe
era valioso. Depois disso, ele se tornou apenas mais um objeto possuído por seu dono, Lucius Porcino, o lanista da escola de gladiadores.
Lá, ele foi tratado com brutalidade, teve a marca de Porcino queimada em seu peito e aturou surras e provocações, tanto dos treinadores quanto dos outros escravos.
As lembranças daqueles dias ainda assombravam seus sonhos, fazendo-o acordar assustado às vezes, coberto de suor e tremendo. Um pesadelo recorrente e claustrofóbico
o atormentava em particular: um em que revivia sua última luta como escravo. Quando enfrentou outro garoto da escola, Ferax, um jovem da Gália, líder dos garotos
que infernizavam sua vida.
Marcus terminou vencendo a luta, e Ferax, nocauteado, foi obrigado a admitir a derrota. Mas, quando Marcus virou-se de costas para ele, o garoto se levantou e tentou
matá-lo. Foram os reflexos rápidos de Marcus que o salvaram e mataram Ferax. No entanto, em seus pesadelos, era Ferax quem vencia, enfiando a espada várias e várias
vezes em seu corpo. O inimigo lhe aparecia com as feições contorcidas, rosnando e salivando de modo selvagem.
Marcus torcia para aquela ter sido a última luta de que teve de participar. No entanto, apesar de Caesar ter concedido sua liberdade, seu antigo dono ainda esperava
que Marcus continuasse o treinamento para um dia poder voltar à arena e conquistar fama e fortuna como gladiador profissional. Como patrocinador de seu treinamento,
Caesar ganharia o apoio do povo romano. Até lá, Marcus continuaria servindo na proteção pessoal de seu senhor, sob o comando de Festus. O garoto tinha sido obrigado
a jurar que serviria e protegeria Caesar enquanto fosse seu servo. Para Marcus, assim que os agentes de Caesar localizassem sua mãe e providenciassem a liberdade
dela, suas obrigações em relação ao antigo dono acabariam.
Mas e depois? Ele não tinha muita ideia do que faria com a mãe depois daquilo. Por um tempo chegou a achar que poderiam voltar para a pequena fazenda em Lêucade
e continuar a vida anterior ao dilaceramento do mundo dos dois. Agora, dois anos mais velho e com mais experiência, Marcus sabia que isso nunca aconteceria. A fazenda
tinha sido tomada por Decimus para cobrir as dívidas da família, então Marcus e sua mãe teriam de construir uma nova vida em outro lugar. Seria melhor por vários
motivos. Seria impossível voltar a ter sua vida antiga. A fazenda estaria repleta de lembranças dolorosas, seria uma recordação constante do que tinha sido perdido
- a inocência idílica de uma infância protegida por dois adultos que o amavam. Tudo aquilo já era e nunca mais seria recuperado.
- As quatro legiões designadas para mim estão acampando perto de Rimini - disse Caesar, atraindo a atenção de Marcus de volta para o presente. - Elas ainda estão
se preparando para a próxima campanha, treinando recrutas para fortalecer o grupo ao máximo. Vou usar os veteranos para o trabalho. É mais do que suficiente para
essa plebe escondida nas montanhas. Dez coortes serão suficientes para derrotar Brixus.
- Dez coortes? - Clodius ergueu a sobrancelha. - Apenas cinco mil homens? Tem certeza de que isso é suficiente?
- Claro. - Caesar balançou a mão desdenhosamente, como se estivesse matando um inseto. - Isso tudo vai acabar bem rápido. Os sobreviventes devem ser trazidos para
Roma, assim como Brixus, ou o corpo dele, e eu terei minha recompensa. O povo vai me aclamar, e Cato será obrigado a engolir aquela arrogância inflexível e a se
juntar aos aplausos. Não vejo a hora de ver a cara dele.
- Então vamos torcer para você não ter que relatar uma derrota na sua próxima aparição no Senado.
- Derrota? - Caesar parecia surpreso. - Isso é impensável. Impossível.
- Assim espero. Quando pretende partir para Rimini?
- Imediatamente. Vou pela Via Flamínia. É a rota mais direta até lá.
- É verdade - disse Clodius. - Mas acha sensato? Vai ser difícil fazer o percurso nesta época do ano, e você vai passar justamente pelas montanhas onde os rebeldes
estão se escondendo.
- Suponho que estarão escondidos nas cavernas, aglomerados ao redor das fogueiras. Estarei seguro o suficiente. Além disso, não posso me atrasar. Quanto mais rápido
isso for resolvido, mais rápido vou poder voltar a tratar de vitórias e conquistas bem mais importantes. Vou embora assim que amanhecer. Festus!
O líder de sua guarda pessoal deu um passo para a frente e baixou a cabeça.
- Sim, amo.
- Vou levar você e seis dos meus melhores homens. - O olhar de Caesar foi parar em Marcus. - E você, jovem. Suspeito que vou precisar do seu conhecimento e de suas
habilidades mais uma vez. Afinal, você treinou com gladiadores. Você sabe como eles pensam e como lutam. Sim, tenho certeza de que você será bastante útil. - Ele
se voltou para Festus. - Também vou precisar do meu escriba, Lupus. Providencie isso tudo.
- Sim, amo.
Caesar retornou sua atenção a Clodius.
- Eu queria ter uma ideia melhor do que vou enfrentar. Se esse homem, Brixus, é um gladiador fugido, então ele será um oponente perigoso. Mais perigoso ainda vai
ser se esse rumor sobre o filho de Spartacus se juntar a Brixus for verdadeiro. Se for o caso, o filho precisa ser encontrado o mais rápido possível. Encontrado
e eliminado. Todos os escravos do Império terão que perceber que o descanso de Roma só se dará quando seus inimigos forem totalmente destruídos.
- Sim, Caesar. Vou cuidar disso. - Clodius assentiu com a cabeça.
- Também espero que você cuide dos meus interesses aqui em Roma enquanto eu estiver fora. Vou querer relatos regulares dos acontecimentos do Senado.
- Não se preocupe. Farei isso. Agora é melhor eu ir embora para que você possa se preparar.
- Adeus, meu amigo. - Caesar sorriu ao segurar no braço do jovem.
Clodius retribuiu o sorriso e virou-se para ir embora. Após a porta ser fechada, o sorriso de Caesar desapareceu e ele balançou a cabeça, murmurando:
- Ainda bem que tenho outras pessoas que me apoiam além dele.
Marcus não pôde deixar de concordar com a cabeça, e os olhos de águia de Caesar perceberam o gesto.
- Então você tem a mesma opinião que eu a respeito de Clodius? Isso é bom. Sempre soube que podia confiar no seu bom senso, meu garoto.
- Sim, amo.
- Estamos prestes a entrar em uma nova aventura, Marcus. Você já lutou na arena e nas ruas de Roma, mas essa vai ser sua primeira campanha, talvez até sua primeira
batalha de verdade. Deve estar ansioso, não é?
Marcus obrigou-se a concordar com a cabeça, e Caesar deu um leve murro em seu ombro.
- Foi o que pensei. Você é um guerreiro nato dos pés à cabeça. - A expressão dele ficou séria. - E eu estava falando sério quando disse que precisaria de qualquer
conselho que você tiver... Agora vá arrumar suas coisas e dormir cedo. Temos um caminho longo e exaustivo para enfrentar. Atravessar os Apeninos durante o inverno
não é fácil.
- Vou levar roupas de inverno, amo - disse Marcus.
- Ótimo. E pelo menos uma coisa será boa. Minha sobrinha estará em Rimini com o novo marido dela. Ele está servindo com a décima legião. Tenho certeza de que Portia
ficará contente em revê-lo.
- Espero que sim - respondeu Marcus com sinceridade. Ela era uma das poucas pessoas que ele passara a considerar como amiga desde a chegada a Roma, e ele estava
sentindo sua falta desde que ela foi embora da casa de Caesar para se casar com o sobrinho do general Pompeius, um dos aliados mais próximos de Caesar. Juntamente
com Crassus, eles três eram os homens mais poderosos de Roma. Era uma aliança instável, e Marcus sabia muito bem disso, pois tinha descoberto a conspiração feita
por Crassus contra Caesar. Era um plano envolvendo Decimus e seu capanga, Thermon, o homem que tinha assassinado Titus e sequestrado Marcus e sua mãe. Um dia ele
se vingaria, jurou Marcus. O sangue de Thermon e de Decimus escorreria na lâmina de sua espada.
Ele colocou os pensamentos de vingança de lado e curvou a cabeça para Caesar.
- Posso ir, amo?
- Sim, pode ir. Boa noite, Marcus.
Quando Marcus chegou à pequena cela dividida com Lupus no alojamento dos escravos, o garoto já tinha ouvido falar da viagem. Apesar de Marcus ter recebido sua liberdade,
ele não tinha dinheiro e precisou ficar na casa de Caesar, compartilhando a mesma comida e as condições de vida dos que ainda eram escravos. Por enquanto isso lhe
servia. Afinal, somente importava para Marcus que os contatos de Caesar na Grécia descobrissem o paradeiro de sua mãe. Por isso ele estava satisfeito em ficar perto
de Caesar, dessa forma saberia de qualquer notícia assim que ela chegasse a Roma. Ou a Rimini, pois era para onde iriam agora.
- Rimini. - Lupus sorriu. Ele era um garoto pequeno e magro, quase quatro anos mais velho que Marcus, mas quem não sabia disso diria que eles tinham a mesma idade.
O cabelo escuro dele era curto e ele falava com a humildade típica dos escravos de nascença. - Não vejo a hora de conhecer esse lugar. Ouvi falar que é uma cidade
linda, perto da praia. É lá onde os ricos vão descansar.
- Duvido que vá ser muito agradável no meio do inverno - respondeu Marcus.
- Mas vai ser agradável o suficiente. De qualquer maneira, será uma mudança de ares muito bem-vinda.
Marcus concordou com a cabeça. A capital talvez até fosse o coração do Império, uma enorme cidade com prédios grandiosos, banhos públicos e todas as formas de entretenimento
imagináveis, mas também era um lugar com gente demais e ruas estreitas e fedorentas. Quando o verão chegava, o ar ficava sufocante. O ar fresco da costa com certeza
seria bem-vindo. No entanto, a jornada não seria nada como um período de férias.
- Duvido que a gente vá ter muito tempo para aproveitar as coisas boas de Rimini - disse Marcus. - Caesar quer completar o serviço o mais rápido possível. Imagino
que vamos ficar lá só o tempo necessário para ele reunir as tropas, depois marchamos para as montanhas. É melhor se acostumar com a ideia de morar ao ar livre, com
neve, chuva e vento.
Lupus estremeceu ao pensar nisso.
- E não é só o clima que teremos que enfrentar - acrescentou Marcus. - Teremos lutas. Caesar acha que vai acabar com os rebeldes com facilidade. Eu não tenho tanta
certeza disso. Eles podem não ter recebido nenhum treinamento, mas estarão lutando pelas próprias vidas, pela própria liberdade. E por causa disso serão muito perigosos.
Lupus encarou-o ansiosamente.
- Não estou gostando de ouvir isso. Por que Caesar quer que eu vá? Eu não serviria para nada no meio de uma luta. Não sei nem usar uma espada. Eu provavelmente represento
um risco maior para o nosso lado do que para os inimigos.
- Não é da sua espada que Caesar precisa, é da sua tábula. Ele quer que as explorações dele sejam relatadas. Algo que possa beneficiar a reputação dele depois.
- Ah, que bom então - respondeu Lupus com uma expressão de alívio. - Acho melhor eu arrumar minhas coisas.
Enquanto seu companheiro mexia em seu pequeno baú de material de escrita, Marcus começou os próprios preparativos. Além da espada, facas de arremesso e adaga, ele
tirou sua couraça de gladiador do suporte na parede e a enrolou em um cobertor velho antes de guardá-la em seu saco de lona. Também pegou o broquel de bronze, o
gorro com proteções que Festus fizera para ele no ano anterior, os braceletes de couro e uma túnica acolchoada para usar por baixo da armadura. Após guardar todos
os objetos de batalha, começou a cuidar das roupas.
Enquanto fazia a organização, a mente de Marcus estava distraída. Até então, apenas sua mãe e Brixus sabiam a verdade sobre quem era seu pai. E agora parecia que
Brixus estava espalhando que Spartacus tinha um filho e que este assumiria a causa do pai. Não era surpresa o fato de alguns romanos se recusarem a acreditar naquilo,
eles achavam que Brixus tinha simplesmente inventado a história para ganhar apoio para sua causa. No entanto, havia vários que acreditavam naquilo, tornando o segredo
de Marcus bem mais difícil de guardar. Caesar já tinha visto a marca no ombro de Marcus, sem reconhecê-la. Talvez chegasse o momento em que Caesar fosse associar
ambos, a marca e o boato, percebendo quem Marcus era. Se isso acontecesse, ele seria assassinado.
Marcus estremeceu ao pensar naquilo. Não estava apenas com medo por si mesmo, mas também por causa de sua mãe. Sem ele, que esperança ela teria? Se Caesar a encontrasse
após descobrir a identidade de Marcus, ela também seria morta por uma questão de vingança.
Havia mais um assunto que o perturbava. Ele não queria participar de nenhuma campanha contra escravos rebeldes. Na verdade, preferia lutar ao lado de Brixus, contra
aqueles que transformavam as pessoas em suas propriedades. Era uma causa perdida. Mesmo se Brixus conseguisse unir os bandos de foragidos e bandidos, que chance
eles teriam contra a poderosa Roma? Caesar estava desesperado para acabar com eles o mais rápido possível. Apesar de ele ter dito que só precisaria de cinco mil
homens, o equivalente a uma legião, havia mais três legiões que poderia usar como reforços. A única esperança dos escravos seria encontrar um líder inspirador, que
combinasse as qualidades de um grande guerreiro, um sábio general e uma personalidade formidável. Em suma, um homem como Spartacus. Com um homem assim para liderá-los,
os milhares de escravos escapariam para se unir às tropas da rebelião, e finalmente Roma teria um rival à altura. No entanto, Marcus ainda era um garoto. Se Brixus
planejava que ele seguisse os passos do pai, com certeza terminaria desapontando as expectativas.
Marcus sentiu náusea na base do estômago. Estava encurralado. Marcharia para a batalha ao lado de Caesar, para lutar contra escravos cujo destino era o mesmo que
ele já tivera. E, enquanto isso, conviveria com o medo de Caesar descobrir seu segredo. Se Brixus fosse capturado e levado até o general romano vitorioso, ele com
certeza reconheceria Marcus. Será que ele o trairia abertamente ou apenas sob tortura?
Quanto mais pensava no assunto, mais ansioso ficava. Após terminar a arrumação, apagou o candeeiro e se deitou em seu saco de dormir. Do outro lado do cômodo, Lupus
estava deitado, roncando baixinho. Marcus cruzou os braços por cima da cabeça e ficou encarando a escuridão. Apesar de tudo o que tinha acontecido com ele desde
a perda de sua família e de sua casa, sabia que o maior desafio de todos ainda estava por vir.
5
O pequeno grupo de cavaleiros saiu de Roma pelo portão da via Flamínia assim que amanheceu. Caesar estava na frente do grupo com um manto marrom liso, sem querer
chamar a atenção. Ele tinha escrito uma mensagem sucinta para o Senado, avisando que tinha partido para destruir os rebeldes. Quando fosse lida, os cavaleiros já
estariam a muitos quilômetros de Roma e seria tarde demais para que seus inimigos políticos o convocassem para explicar seus planos. Cato e seus aliados teriam feito
de tudo para atrasar Caesar. Marcus ficava surpreso ao ver quantas vezes os políticos preferiam beneficiar as próprias facções a pensar nos interesses de Roma como
um todo.
Ele lançou um olhar para Caesar, cavalgando à frente da fileira. Ele era ainda mais ambicioso do que os outros; estava louco para acabar logo com a nova rebelião,
a fim de poder conquistar a glória para si na Gália. Apesar dos receios em relação a seu antigo senhor, Marcus sabia que Caesar sempre recompensava aqueles que o
serviam bem. A vitória de Marcus na luta contra Ferax na área externa do Senado beneficiara a reputação de Caesar, permitindo a ele ter novas leis aprovadas, leis
que melhoraram as vidas dos romanos comuns e amenizaram a tensão na cidade que podia ter levado a uma nova guerra civil. O garoto tinha toda a intenção de lembrar
a Caesar sua promessa de ajudar a libertar sua mãe da escravidão como recompensa, e isso significava ficar ao lado dele.
Marcus cavalgava ao lado de Lupus no fim da fileira. Por ter crescido em uma fazenda, aprendera a subir em um cavalo e cavalgar quando era bem novo. Em contraste,
Lupus não era um cavaleiro muito bom. Ele segurava as rédeas com firmeza e se inclinava para a frente, apoiando-se no pito da sela como se fosse cair a qualquer
momento.
- Sente-se direito - aconselhou Marcus. - Os pitos da sela vão impedir que você caia. Se tivermos que trotar ou galopar, faça pressão com as coxas e os calcanhares
e se segure.
Lupus lançou um olhar atravessado para ele.
- É fácil falar.
- Já deve ter cavalgado antes, não?
- Claro. Já dei alguns passeios na mula que pertence ao cozinheiro e em alguns dos cavalos na fazenda do senhor no ano passado. Mas só isso.
- Entendi. - Marcus inspirou para disfarçar o desapontamento. - Bem, tenho certeza de que logo mais você pega o jeito.
- Obrigado pelo incentivo - respondeu Lupus sucintamente enquanto se inclinava mais uma vez e agarrava as rédeas como se sua vida dependesse disso.
A estrada foi se afastando de Roma, e, enquanto se aproximavam do cume de uma colina, Marcus virou-se na sela para olhar para trás. Nuvens acinzentadas se aproximavam
do oeste, e a grande cidade já estava coberta. Os prédios feiosos que a formavam espalhavam-se pelas sete colinas, acima das quais havia uma camada de fumaça de
madeira. Marcus estava contente de respirar o ar fresco do interior com seus agradáveis odores. Não sentiria falta de Roma. Além do desconforto de seus becos sombrios,
do fedor e do barulho constante, havia as perigosas gangues de rua e a sede de sangue do povo, assim como as tramas e conspirações sem fim feitas pelos políticos.
Estalando a língua, ele fez seu cavalo acelerar e alcançou o restante da fileira seguindo para o leste, na direção das encostas nevadas dos Apeninos.
Aquele inverno estava atipicamente frio. O interior encontrava-se abandonado, as árvores sazonais estavam sem folhas, paradas e desoladas, como se fossem rachaduras
no céu cor de chumbo. As chuvas frequentes e uma tempestade que passara tinham deixado os campos inundados, fazendo poças se formarem nos sulcos e depressões da
estrada. Inicialmente, o grupo avistou diversas fazendas e vilas ao longo da rota, com habitantes que viviam bem de suas colheitas, frutas e carnes que eram vendidas
nos mercados de Roma. No entanto, à medida que o dia passou, o número de casas diminuiu, e eles começaram a cavalgar por florestas intocadas, com poucas fazendas
minúsculas e alguns aglomerados de moradias rurais que mal podiam ser chamados de vilas. Os habitantes corados, fora das casas cortando lenha ou levando comida para
os animais, paravam com expressões de curiosidade e às vezes de suspeita ao avistar os cavaleiros passando. Em seguida, eles davam continuidade à rotina rural de
sempre.
Após um breve descanso ao meio-dia, eles seguiram novamente. A estrada entrou pelos sopés das montanhas que compunham a espinha do Império, e as nuvens escureceram
os céus. Logo depois, as primeiras gotas de chuva caíram. Os cavaleiros encurvaram-se dentro de suas capas e colocaram os capuzes em cima das cabeças enquanto a
chuva batia na estrada. Marcus estava torcendo para que fosse apenas uma chuva de passagem, mas ela continuou caindo e engrossou. Apesar da gordura animal colocada
dentro dos mantos para que ficassem à prova d'água, não demorou para os cavaleiros se encharcarem. O ar já estava frio, e a brisa suave o esfriava mais ainda.
Marcus não conseguia deixar de estremecer enquanto segurava as rédeas e cerrava os dentes para se concentrar. Ele lançou um olhar para Lupus e viu que o companheiro
tremia descontroladamente, batendo os dentes.
Lupus encontrou o olhar dele.
- Quan-quando é que nosso senhor vai parar para a gente se a-a-abrigar?
- Se abrigar onde? - Marcus apontou para a paisagem dos dois lados da estrada. Não havia nada além de pedras e pequenas árvores, e mais à frente a estrada entrava
em uma densa floresta de pinheiros. - Talvez ali. - Ele apontou para as árvores.
No entanto, ao entrarem na floresta, Caesar seguiu em frente e, enquanto Lupus xingava baixinho o seu senhor, Marcus resignou-se ao desconforto e sofrimento da jornada.
A estrada continuou no meio das árvores e, à medida que o terreno ficava mais íngreme, a rota começou a ziguezaguear para dentro da névoa acinzentada que bloqueava
a paisagem ao redor.
O anoitecer se apossava daquela área mal iluminada, e os cavaleiros finalmente chegavam aos portões de uma cidadezinha. Caesar mostrou seu anel de senador para os
sentinelas de manto, que os acompanharam pelo portão e os levaram para a rua mais adiante. Havia apenas algumas estalagens para viajantes na cidade e somente uma
grande suficiente para abrigar o grupo inteiro e seus cavalos. Anoiteceu antes que as necessidades da cavalaria fossem atendidas, e depois Marcus, Lupus e os outros
juntaram-se a Caesar e Festus do lado de dentro. Os dois estavam sentados perto da lareira, tomando vinho quente. Já tinham tirado a roupa molhada, e os mantos de
montaria, túnicas e botas secavam perto do fogo.
Enquanto as silhuetas encharcadas aglomeravam-se perto das chamas, o dono da estalagem saiu apressadamente de uma porta estreita atrás do balcão.
- Ah, cavalheiros, vocês devem estar congelando! Tirem essas roupas e se sentem. Minha esposa e minhas filhas vão secá-las. Temos mais varais na cozinha. É só me
entregar e depois que se secarem e trocarem de roupa nós vamos trazer um ensopado quente para vocês.
Marcus e os outros agradecidamente retiraram os casacos molhados e os colocaram em cima do balcão antes de mexerem nos alforjes à procura de roupas secas. O frio
deixara as mãos e pés de Marcus dormentes, e ele esfregou as palmas das mãos na frente do fogo até voltar a sentir os dedos. Lupus ficou parado com uma expressão
distraída ao estender as mãos na direção das chamas.
- Não coloque as mãos perto demais enquanto elas estão dormentes - disse Marcus -, elas podem terminar pegando fogo sem você perceber.
- Só quero ficar aquecido de novo - murmurou o garoto. - Pelos deuses, como queria estar em Roma.
- Bem, você não está em Roma. E é melhor se acostumar com isso. Caesar agora está em campanha, e nós vamos acompanhá-lo aonde quer que ele vá.
- Então espero que ele resolva logo isso com os rebeldes para a gente ir embora daqui.
- Resolva logo? - Marcus não pôde deixar de sorrir. - Isso é apenas o começo. Quando, e se, ele derrotar os rebeldes, Caesar vai querer ganhar fama na Gália. Vão
ser anos de campanha antes que ele fique satisfeito.
Lupus abaixou as mãos e virou-se para Marcus com uma expressão desanimada.
- Anos?
O dono da estalagem voltou, pegou o monte de roupas molhadas e as carregou até a cozinha. Logo apareceu uma mulher grande e atarracada, de pele escura, carregando
a alça de madeira de um pesado caldeirão. Imediatamente, um forte aroma espalhou-se pelo local, e Marcus sentiu a barriga roncar, seu apetite despertando. Atrás
da mulher surgiu uma menina de no máximo 8 anos, pensou Marcus, carregando com dificuldade uma enorme bandeja com tigelas e colheres de madeira.
A mulher colocou o caldeirão no balcão, e sua filha pôs as tigelas ao lado dele. As duas primeiras tigelas foram enchidas com uma concha, e a garota as carregou
até Caesar e Festus. Por ter se acostumado à reverência com que tratavam Caesar em Roma, Marcus não pôde deixar de ficar boquiaberto quando Festus recebeu a primeira
tigela. Em seguida a garota entregou a tigela de Caesar e voltou para servir aos outros. Festus olhou para Caesar nervosamente, mas o grande homem só fez sorrir
e desconsiderou o caso com um aceno de mão. Ele se inclinou para a frente e sentiu o cheiro do ensopado.
- E o que temos aqui?
O dono da estalagem apareceu de dentro da cozinha.
- Senhor?
- O que tem no ensopado?
- Bode. Não falta bode aqui na cidade! - disse o homem alegremente. - Espero que goste.
Caesar provou e fez sim com a cabeça.
- Gostei mesmo. É disso que um homem precisa após o dia na estrada, não é, pessoal?
Os homens concordaram e, servidos, sentaram-se a uma mesa no canto do cômodo para não incomodar o senhor deles. Marcus e Lupus foram os últimos a receberem as tigelas.
Assim que começaram a se aproximar da mesa onde os guardas estavam com suas comidas, Caesar chamou-os.
- Não. Aqui. Junte-se a nós, Marcus. Você também, Lupus.
Eles se viraram e foram até a mesa onde os dois homens estavam sentados.
- O que ele quer com a gente? - sussurrou Lupus.
- Não faço ideia - respondeu Marcus baixinho.
Eles colocaram as tigelas na mesa e cada um puxou um banco, sentando-se nervosamente sob o olhar escuro e penetrante de Caesar. Ele gesticulou na direção das tigelas
e colheres.
- Comam, garotos. Hoje somos um bando de viajantes felizes. Deixamos Roma e toda aquela formalidade social para trás. A vida ficou bem menos complicada, e é assim
que gosto dela. Escapamos de todos aqueles patifes do Senado, e nossa tarefa é simples e direta: encontrar e destruir esse tal de Brixus e sua ralé. Só isso. - Ele
tomou mais uma colherada de ensopado e mastigou rapidamente um pedaço de carne. - Isso que é ensopado gostoso. Temos que nos lembrar de comer bode mais vezes, não
é, Festus?
- Sim, amo. - O líder dos guarda-costas curvou a cabeça.
Marcus devorou a comida, seu ânimo aumentando a cada colherada da saborosa refeição. Até Lupus se acostumou com o fato de estar na mesma mesa que seu senhor e começou
a comer. Passado um tempo, Caesar empurrou a tigela para o lado e se recostou na parede rachada de argamassa atrás do banco. Ele ficou em silêncio por um instante
e depois juntou as mãos.
- Acabei de lembrar uma coisa. Eu já estive aqui nesta cidade antes, muitos anos atrás. Eu era apenas um tribuno na época, foi no meu início como soldado. Eu tinha
acabado de ser designado para uma das legiões do exército de Crassus e estava com um grupo de cavalaria aliada para nos juntarmos a ele. Paramos nesta cidade para
passar a noite. Não fiquei aqui. Um dos magistrados locais me recebeu em sua casa. - Ele parou. - Era um lugar tão ruim quanto é hoje. Enfim, nós fomos embora no
dia seguinte e nunca achei que ficaria aqui novamente.
Festus terminou de comer e limpou a boca com as costas da mão.
- Crassus? Então deve ter sido quando ele estava lutando contra Spartacus, amo.
- Foi sim. Foi por isso que me lembrei. Estava pensando no inimigo que vamos enfrentar agora. Da última vez, eu cheguei a tempo de presenciar apenas a grande batalha
final, quando Crassus acabou com o exército rebelde.
- Crassus? - Marcus não pôde deixar de ficar surpreso. - Me disseram que foi Pompeius que acabou com a rebelião, amo.
- Pompeius? - Caesar ergueu a sobrancelha e riu. - Não, ele chegou ao local logo depois, a tempo de varrer os sobreviventes da batalha principal. Eu tive a sorte
de testemunhar as duas batalhas, se é que dá para chamar o que Pompeius fez de batalha. Foi mais um mero tumulto. Não que ele tenha descrito as coisas assim para
o Senado. Claro que não. Ele enviou um relatório dizendo ter sido ele quem acabara com a rebelião e quem matara Spartacus. Como se Crassus não tivesse feito absolutamente
nada nos dois anos anteriores. Pompeius é assim. Ele tenta obter todo o crédito que pode.
Marcus inclinou-se para a frente e encarou seu senhor atentamente, com um desejo peculiar de saber mais consumindo seu coração.
- O senhor disse que esteve nas duas batalhas, amo?
- Exatamente. Depois da primeira, Crassus me enviou para encontrar Pompeius e pedir que ele bloqueasse a rota de fuga dos sobreviventes. Pelo menos isso ele realmente
fez.
Marcus sentiu o pulso acelerar. Ele raramente escutava Titus, o centurião aposentado que o criara, falar sobre a rebelião. A brutalidade e o sofrimento da campanha
tinham traumatizado Titus pelo resto da vida. Agora Marcus tinha a oportunidade de descobrir mais sobre seu verdadeiro pai.
- Como foi, amo? O que aconteceu? - Marcus engoliu em seco nervosamente. - O senhor viu o próprio Spartacus?
- Quantas perguntas. - Caesar sorriu debilmente. - Bem, não temos nada para fazer aqui a não ser conversar.
Discretamente, Lupus estendeu o braço na direção de sua bolsa e tirou uma tábula. Caesar balançou a cabeça.
- Não precisa. Não estou ansioso para relatar minha participação na revolta dos escravos para a posteridade. Quanto mais cedo tudo aquilo for esquecido, melhor.
- Lupus concordou com a cabeça e guardou os instrumentos de escrita na bolsa enquanto Caesar fechava os olhos por um instante para pensar. E então começou: - Foi
uma guerra diferente de tudo o que eu tinha visto, de tudo o que eu já tinha ouvido falar. Nenhum dos lados fazia prisioneiros, e os escravos não tinham misericórdia
alguma com os vendedores de escravos ou feitores que caíam em suas mãos. Claro que eu soube de boa parte disso pelos homens que lutaram contra Spartacus e seus rebeldes
nos anos iniciais da revolta. Quando me juntei a Crassus, ele já estava perto de cercá-los, estava tentando forçar Spartacus a mudar de plano e atacar o inimigo.
Ele parecia um animal ferido, ficando mais perigoso quando está encurralado e sabe que precisa lutar ou morrer. Então Spartacus e seu exército entraram em formação
em um cume, cruzando nossa linha de marcha.
Caesar ficou encarando a mesa à sua frente e Marcus desejou que ele continuasse. Caesar pigarreou e prosseguiu, com a voz um pouco mais baixa:
- Apesar de sermos mais numerosos, dava para perceber que nossos soldados estavam nervosos com a possibilidade de uma luta. Lembro que não compreendi a reação deles.
Eles eram soldados treinados e estavam bem equipados. Muitos eram veteranos. Quando eu olhava para os rebeldes, dava para ver muitos carregando apenas ferramentas
agrícolas, com pouquíssima ou sem nenhuma armadura. Também havia mulheres no meio e até idosos e meninos. No centro da linha, havia vários milhares bem equipados
e formando uma linha disciplinada. Atrás deles, um grupo de homens a cavalo cercava Spartacus com sua bandeira.
- Você o viu, amo? - perguntou Lupus, com os olhos brilhando de empolgação.
- Sim. Ele estava montado em um cavalo branco, vestindo armadura preta e um capacete com uma crista escura. Era impressionante.
Marcus sentiu uma onda de orgulho ao ouvir a descrição do pai e, ao mesmo tempo, lamentou o fato de nunca tê-lo conhecido.
- Enquanto entrávamos na nossa formação de sempre, escutei um murmúrio vindo das linhas rebeldes. No início não entendi o que era, depois percebi que era o nome
dele. Spartacus... Spartacus... Spartacus! O murmúrio foi ficando cada vez mais alto até se transformar em um cântico ensurdecedor ecoando por todo o campo de batalha.
Em seguida, eles atacaram. Como uma onda. Não me lembro de escutar nenhum sinal. Foi como se todos estivessem compartilhando o mesmo pensamento. O mesmo instinto.
Matar todos os romanos diante deles. Não me incomodo em admitir que fiquei com medo naquele instante. Fiquei surpreso na hora, mas não tenho como negar que vê-los
se aproximando foi algo apavorante.
"Eles colidiram contra as unidades de frente, vindo diretamente para cima de nossos escudos e nossas espadas e morrendo às centenas. Mas eram como animais selvagens,
lutavam com as próprias mãos quando perdiam as armas. Até os feridos lutavam no chão onde tinham caído, usando mãos e dentes. Nossa primeira linha de defesa conseguiu
contê-los por um certo tempo, mas nem os melhores soldados do mundo aguentariam aqueles demônios por muito tempo. A segunda linha de defesa moveu-se para a frente,
juntando-se à luta. Foi então que Crassus deu a ordem que nos deixou em vantagem."
Os olhos de Caesar brilhavam enquanto se lembrava do momento.
- Os rebeldes tinham penetrado à força bem no centro da nossa linha de batalha, então Crassus fez a última linha de defesa se mover para as laterais e marchar rapidamente
ao redor da luta para atacar os rebeldes pelos flancos. Assim que as trombetas soaram, nossos homens rugiram e os cercaram. Os rebeldes aguentaram por um tempo,
depois alguns entraram em pânico e se separaram do grupo. Logo outros se afastaram e depois foi o fim. Nossa cavalaria completou a armadilha, e apenas alguns milhares
conseguiram fugir. O restante foi aniquilado.
- E Spartacus? - interrompeu Marcus. - O que aconteceu com ele?
- Ele e os guarda-costas cobriram a retirada dos sobreviventes até nossos homens ficarem cansados demais para continuarem perseguindo-os. Crassus percebeu que, se
Spartacus fugisse, ele provavelmente iniciaria uma nova rebelião em outro lugar. Então ele me enviou para encontrar Pompeius e, humm, aconselhá-lo a bloquear a rota
de Spartacus.
- Aconselhá-lo? - Festus franziu a testa.
- Não se dá ordens para Pompeius, o Grande. - Caesar sorriu. - Crassus sabia que aquilo era importante demais, não se podia arriscar ofender Pompeius e deixar o
inimigo escapar. Enfim, eu encontrei Pompeius, transmiti a mensagem e fiquei com ele enquanto seus homens marchavam atrás de Spartacus. Tudo acabou muito rapidamente.
Os rebeldes estavam cansados demais e muitos estavam feridos. Ainda assim, continuaram em formação ao redor do líder e lutaram até o fim. Fizemos poucos prisioneiros.
Nenhum deles tinha a descrição que o lanista dele tinha passado para nós.
- O senhor o viu novamente? - perguntou Marcus entusiasmado. - Spartacus?
- Eu o vi perto de seus tenentes mais próximos. Estavam montados nos últimos cavalos que tinham restado. Assim que a luta começou, eles desmontaram e mataram os
animais para mostrar que seguiriam o mesmo destino de seus camaradas. Depois que o último morreu, eu me juntei a Pompeius e seus oficiais, e examinamos o campo de
batalha. Encontramos uma armadura preta e um capacete. Acho que os seguidores de Spartacus arrancaram esses itens do corpo dele quando viram que estava morto. Muitos
dos corpos estavam mutilados demais para serem identificados.
Marcus estremeceu, mas se esforçou bastante para não demonstrar repulsa.
- Talvez Spartacus tenha sobrevivido - sugeriu Lupus.
- Não consigo imaginar como ele teria escapado. Ele deve ter caído e morrido durante a batalha final. Tenho certeza disso.
- Ele teria ficado até o fim e morrido com os outros - disse Marcus imediatamente, e depois olhou para os outros com rapidez. - Pelo menos é o que eu teria feito.
Se eu fosse ele.
Festus riu e deu um tapinha descontraído nas costas de Marcus.
- Algumas lutas no histórico e já está achando que é o próximo Spartacus!
Caesar ficou encarando Marcus.
- Espero sinceramente que não. O primeiro quase destruiu Roma. Não sobreviveríamos a um segundo Spartacus. Além disso, eu passei a gostar de você, Marcus. Ficaria
abalado se nos tornássemos inimigos. Assim eu seria obrigado a destruí-lo.
Suas palavras tinham um tom neutro, mas fizeram Marcus congelar completamente. Não era a primeira vez em que temia a possibilidade de Caesar saber mais do que imaginava.
No entanto, era necessário afastar esses pensamentos, ser forte e ir até o fim. Precisava ter a mesma força do pai. Respirou fundo para se acalmar e respondeu ao
antigo senhor:
- Eu tenho servido ao senhor com lealdade, amo. Não há motivos para achar que vamos nos tornar inimigos.
Caesar olhou para ele e soltou uma leve risada.
- Claro que não. Além disso, tenho adversários bem maiores e mais impressionantes com os quais me preocupar. - Ele bocejou. - O dia foi longo. Estamos bem aquecidos
e de barriga cheia. É melhor dormirmos. Quero que voltemos para a estrada logo ao amanhecer, Festus. Trate de nos acordar a tempo de fazermos isso.
- Sim, amo.
Caesar levantou-se e massageou a lombar fazendo uma careta. Em seguida, acenou com a cabeça para seus companheiros e subiu a escada que ficava nos fundos da estalagem,
levando aos poucos quartos que eram alugados para viajantes. Festus virou-se para os garotos:
- Separei um quarto para vocês dois. O dono da estalagem tem espaço na adega. Ele colocou dois sacos de dormir para vocês, mas disse para tomarem cuidado com os
ratos. Às vezes eles mordem.
- Ratos? - O rosto de Lupus empalideceu.
- Ele devia estar brincando, mas tomem cuidado mesmo assim, tá bom? - Festus levantou-se e foi para perto dos outros homens para dar ordens.
- Ratos - repetiu Lupus. - Odeio ratos.
- Então é só empurrá-los para o canto - brincou Marcus. - Vamos, eu protejo você.
A esposa do dono da estalagem acompanhou-os até a adega com um candeeiro e o deixou na base da escada estreita para que eles enxergassem o suficiente enquanto se
arrumavam para dormir. Lupus olhou para as sombras ao redor receosamente antes de se acomodar, mas, apesar de suas preocupações, não demorou para pegar no sono.
Mais uma vez, Marcus permaneceu um tempo acordado, refletindo.
Ficou pensando em Spartacus. Lentamente, seu coração encheu-se de orgulho pelas conquistas do pai e pelo exemplo que ele dera para seus seguidores, que se preparavam
para lutar e morrer ao lado dele. Algo começou a ferver dentro do garoto. Uma vaga inspiração, e também mais do que isso: a sensação do dever de honrar seu pai.
Para que merecesse ser herdeiro dele e de tudo o que conquistara em sua curta vida. Afinal, o mesmo sangue corria nas veias de Marcus, tinha a mesma habilidade com
armas e o mesmo desejo intenso de liberdade.
6
No dia seguinte, o pequeno grupo de cavaleiros deixou o sopé das encostas para trás, e a estrada começou a entrar pelas montanhas. A chuva parara durante a noite
e havia geada reluzindo no chão quando eles saíram. Antes do meio-dia, eles já tinham passado da linha de neve permanente, e as rochas e árvores dos dois lados estavam
cobertas por uma brilhante camada de branco. No entanto, apesar da neve, dava para enxergar a rota com clareza enquanto eles continuavam colina acima. Os galhos
pesados dos abetos abafavam o som da passagem deles e aumentavam a sensação perturbadora de quietude. A conversa entre os cavaleiros parou, pois eles estavam prestando
bastante atenção aos arredores. Moravam em Roma havia tanto tempo que tinham se acostumado ao barulho constante da grande cidade. Agora o silêncio os deixava inquietos.
Havia apenas o leve barulho dos cascos dos cavalos, o tinir dos apetrechos e, de vez em quando, o bufo dos animais exalando o ar quente e cheio de vapor por suas
largas narinas.
- Não estou gostando disso - murmurou Lupus.
- O que foi? - Marcus tentou demonstrar mais confiança do que sentia. - Ar fresco, paz e silêncio, belas paisagens. Não tem nada de ruim. Somente o frio.
- O frio já é ruim o suficiente, mas não é só isso. - Lupus olhou de um lado para outro. - Não sei, mas estou com a impressão de que estamos sendo observados.
- Por quem? Não passamos por nenhuma residência há horas. A última pessoa que vimos foi aquele pastor alguns quilômetros atrás. - Marcus lembrou-se do homem solitário
segurando um cajado e observando-os do topo de uma pequena colina. - E ele saiu correndo no instante em que nos viu.
- Sim - refletiu Lupus -, estava me perguntando a respeito disso. Por que ele correu?
- Devia estar nervoso. Um grupo de homens a cavalo aparece, ele fica com medo de que sejam bandidos. Foi por causa disso.
- Talvez seja por algum outro motivo.
Marcus olhou para ele.
- O que está querendo dizer?
- Talvez ele não fosse um pastor. Talvez ele estivesse espreitando.
- E quem ele estaria espreitando?
- Pessoas como nós. Viajantes. Presas fáceis para um grupo de bandidos. Ou, pior ainda, para avisar aos rebeldes. E se ele for mesmo um vigia e tiver avisado que
nos viu?
Marcus olhou para a estrada até o ponto em que ela se perdia no meio das árvores. Não havia movimento algum. Ele deu de ombros ao se virar para a frente mais uma
vez.
- Se houvesse algo de estranho a respeito dele, acho que a essa altura nós já saberíamos disso.
Lupus ficou quieto por um instante.
- Espero que tenha razão.
Os garotos retornaram ao silêncio, mas Marcus estava começando a sentir a ansiedade do amigo. Um quilômetro e meio depois, eles saíram do meio das árvores e a estrada
passou a subir na direção de uma passagem estreita entre dois picos rochosos escondidos por nuvens circulares. Marcus suspirou aliviado ao sair do meio da floresta.
Nas laterais da estrada havia pedras e rochas, sem muitos esconderijos para se fazer uma emboscada. Mais adiante, Marcus ficou animado ao ver que os homens tinham
voltado a conversar tranquilamente e fazer piadas. Até Lupus parecia mais relaxado. A estrada começou a ficar mais estreita, e Marcus deixou seu amigo se afastar
um pouco. Precisava de tempo para pensar.
O comentário que Caesar fizera na noite anterior consumia sua mente. Apesar de Caesar dever a Marcus por ter salvado sua sobrinha, sua dívida não significaria nada
se ele decidisse que Marcus representava um perigo para ele ou para Roma. Marcus sentia como se sua vida estivesse no fio de uma faca. Tinha que prestar atenção
em todos os próprios comentários e esconder a marca no ombro. Não podia confiar em ninguém, nem mesmo em Lupus. Uma onda amarga de solidão tomou conta do garoto
e ele sentiu lágrimas quentes nos cantos dos olhos. Marcus ergueu a mão e as enxugou raivosamente. Não podia ser fraco, disse para si mesmo. Precisava ser forte
para sobreviver. E tinha que sobreviver para resgatar a mãe.
Um grão frio caiu em sua bochecha. Ao olhar para cima, viu que tinha começado a nevar de novo e pequenos flocos brancos caíam lentamente do céu nublado. À frente,
a estrada fazia mais uma curva fechada, e Caesar e Festus guiaram seus cavalos para que virassem e liderassem a fileira pelo novo trecho. Quando Marcus chegou à
curva, seu sexto sentido o fez puxar as rédeas de seu cavalo e se virar na sela para olhar na direção da floresta.
Ele os avistou imediatamente. Era mais um grupo de homens a cavalo, cerca de vinte deles, a menos de um quilômetro de distância. Eles estavam trotando lentamente
e não pareciam estar com pressa para alcançá-los. Mesmo assim, Marcus sentiu certa preocupação e bateu os calcanhares no cavalo para acelerar.
- Abra caminho! - alertou ele para Lupus, que olhou para trás surpreso antes de levar o cavalo para a lateral da estrada. Marcus passou por ele trotando, sem dizer
nada, e depois pelos outros cavaleiros até chegar ao lado de Caesar.
- Amo, tem alguém nos seguindo. - Marcus apontou para o declive, mas não dava para ver a parte mais baixa da estrada de onde estavam. Caesar olhou para a estrada
de pedras espalhadas.
- Do que está falando? Não estou vendo ninguém.
- Eles estão lá, amo. O grupo estava bem visível.
- Quantos? - perguntou Festus bruscamente.
- Cerca de vinte.
- Onde?
- Estavam saindo da floresta.
- Bem, não consigo enxergar muito por causa da neve - murmurou Caesar. - Tem certeza disso, Marcus?
- Absoluta, amo.
Caesar alisou o queixo.
- Onde você estava quando os avistou?
- Lá trás, onde a estrada fez a curva.
Caesar suspirou.
- Então é melhor darmos uma olhada.
A comitiva parou, e os três voltaram até a curva, o mais próximo possível da beirada, a fim de olhar o declive. Lá embaixo, a neve caía fortemente e era difícil
avistar qualquer coisa que não fosse o contorno da floresta.
Houve um breve silêncio antes de Festus grunhir:
- Não estou vendo nada.
- Não - acrescentou Caesar baixinho antes de se virar para Marcus. - Tem certeza do que viu? Às vezes a vista cansada engana a pessoa.
Marcus sentiu um breve instante de dúvida que foi logo ignorado.
- Eu vi homens a cavalo, amo. Tenho certeza disso.
- Bem, agora não tem mais nada lá embaixo - disse Festus. - Nada que eu esteja vendo.
- Ainda assim, eu confio no bom senso do garoto - respondeu Caesar com firmeza. - Quero que fique na retaguarda. Mantenha vigilância atrás de nós. Se vir algo, me
avise imediatamente.
Festus curvou a cabeça e Caesar estava prestes a virar o cavalo quando a neve parou, e, como se um véu tivesse sido levantado, eles conseguiram enxergar o chão e
o grupo de cavaleiros trotando pela estrada. Agora estavam mais perto do que quando Marcus os avistou.
- Siga logo com os homens! - exclamou Caesar. - Vamos subir até o estreito, é um obstáculo natural. Podemos ficar esperando lá. Se eles quiserem nos causar mal,
é de lá que vamos nos defender. Vamos.
Festus virou o cavalo, agitando a neve ao galopar até o início da fileira. Caesar estreitou os olhos enquanto analisava os cavaleiros mais abaixo.
- Eles estão armados. Consigo ver lanças, escudos, alguns capacetes. Não são soldados nossos de jeito nenhum. Não há nenhuma bandeira acima deles. Nenhum sinal de
um comandante. Temo que eles signifiquem encrenca, jovem Marcus. - Ele piscou os olhos e se virou para seu antigo escravo. - Boa visão. Mais uma vez, você me serve
bem. Venha, quero que fique ao meu lado.
Eles trotaram até a frente da fileira, e Caesar acenou para que eles seguissem em frente enquanto batia os calcanhares no cavalo. Não precisavam disparar para se
distanciar dos outros homens, e de qualquer maneira a terra debaixo da fina camada de neve estava congelada, representando mais um risco para qualquer cavalo e cavaleiro
que escorregasse e caísse. Eles continuaram subindo, e a cada curva Marcus olhava para baixo e via que os perseguidores aproximavam-se constantemente. Eles faziam
os cavalos acelerarem, sem se importarem com os riscos, e o garoto viu um ou dois caírem na neve. Um caiu da beirada e rolou uns dez metros antes de bater em uma
pedra. O cavaleiro ficou deitado, confuso, e o cavalo se debateu em um monte de neve, tentando se levantar. Em seguida, Marcus os perdeu de vista novamente.
A estrada começou a ficar mais nivelada ao se aproximar da passagem, e Caesar chamou seus homens.
- Estamos quase chegando! Assim que alcançarmos a passagem, vamos parar e descer dos cavalos!
Marcus estava prestes a acelerar o cavalo quando olhou para trás e avistou Lupus se esforçando para ficar em cima da sela, com o rosto pálido tomado pelo medo, e
segurando as rédeas com firmeza. Antes que Marcus pudesse recuar para ajudá-lo, Festus aproximou-se do escriba e animou o garoto a seguir em frente. Ele olhou para
cima, avistou Marcus e acenou com a cabeça, como se quisesse dizer que tomaria conta de Lupus. Marcus inclinou-se para a frente e bateu os calcanhares para alcançar
Caesar. Mais à frente, rochedos erguiam-se dos dois lados da passagem, cobertos de neve e gelo.
Estavam a uns trinta metros da passagem estreita quando um homem alto saltou de trás de uma pedra e caminhou confiantemente até o meio da estrada. Ele parou de frente
para os cavaleiros, com as mãos nos quadris.
- O que é isso? - sibilou Caesar enquanto desacelerava e erguia a mão para que seus homens não esbarrassem nele. A fileira passou a ir mais devagar, e o olhar de
Marcus foi do homem para os rochedos dos dois lados e depois voltou. Ele sentiu o arrepio familiar de apreensão nos pelos da nuca.
- Já estão perto o suficiente! - gritou o homem quando eles chegaram a uns seis metros de distância.
Caesar puxou as rédeas e ficou parado em cima da sela com a postura ereta e imperiosa.
- O que isso significa? - exigiu ele.
Agora que estavam perto do homem, Marcus percebeu que ele era um gigante, tinha mais de 1,80m de altura. Os cabelos loiros e espessos se fundiam com uma barba malcuidada
e olhos azuis que brilhavam debaixo de suas grossas sobrancelhas. Um manto de pele de lobo cobria seus ombros largos e dava para ver o focinho e as orelhas da cabeça
do animal preservada no topo da cabeça dele. Debaixo do manto, ele vestia uma túnica listrada e as calças que os celtas costumavam usar. Dava para ver um machado
no cinto que mantinha sua calça no lugar. Surgiu um sorriso nos lábios do homem enquanto ele dava alguns passos na direção dos cavaleiros. Marcus percebeu que não
havia medo em seu rosto.
- O significado já devia estar claro - disse o homem com uma voz fortíssima. - Essa passagem pertence a mim e, como qualquer proprietário, eu quero saber as intenções
das pessoas que passam pelo meu terreno.
- Entendi. - Caesar fez sim com a cabeça. - E posso perguntar o nome do homem que alega possuir uma estrada que, até agora, eu imaginava ser propriedade de Roma?
- Por favor, perdoe a minha educação do interior - respondeu o homem com tom de voz jocoso. - Sou Mandracus, senhor das terras dos dois lados dessa passagem. É por
isso que tenho que cobrar pedágio daqueles que querem atravessar meu território. E quem é você, senhor? Pelo corte das suas roupas e pelo sotaque arrogante, vejo
que é um romano bem-nascido.
Com o som leve dos cascos, Festus aproximou-se e parou ao lado de seu senhor.
- Quem é esse camponês? Afaste-se antes que a gente mate você.
- Já basta, Festus! - interrompeu Caesar. Ele se virou para Mandracus. - Sou um comandante atravessando as montanhas a serviço do Senado. Impedir a minha passagem
é crime. - Caesar sorriu friamente. - No entanto, respeitando a sua educação do interior, eu não vou puni-lo, basta você se afastar e nos deixar passar.
Mandracus pressionou os lábios e balançou a cabeça.
- Desculpe, senhor, mas não posso fazer isso.
Enquanto os homens conversavam, Marcus observou os dois lados da passagem e avistou movimento naquela área. Um rosto os encarava. À sombra de uma rocha, outro homem
segurava uma lança e um escudo.
- Já basta dessa tolice! - exclamou Caesar. - Saia da frente!
Mandracus continuou firme onde estava e sacou o machado, brandindo-o ao lado do corpo. Com o sinal, mais homens apareceram de trás das pedras e foram para o meio
da estrada. Marcus avistou no mínimo trinta homens. Alguns pareciam tão fortes quanto Mandracus, mas a maioria era magra, com o rosto oprimido pela fome, e tinha
o desespero nos olhos. No entanto, todos estavam armados com lanças, espadas e machados. O líder deles fez um gesto.
- Como estão vendo, somos três vezes mais numerosos que vocês. E seremos cinco vezes mais numerosos quando o restante dos meus homens vier por trás de vocês. Vocês
não têm saída.
A mão de Festus foi até o cabo de sua espada, e Marcus e o resto dos guarda-costas fizeram o mesmo, aguardando a ordem de Caesar. O procônsul olhou para os homens
à sua frente e cruzou os braços.
- E o que é que você quer de nós, Mandracus?
- Há certas normas que devem ser obedecidas. - O bandido sorriu. - Primeiro, tem algum escravo com vocês?
- Escravos? - Caesar apontou para Lupus, que tremia de frio e medo em cima da sela. - Apenas o meu escriba.
- Então vamos ter que tirá-lo de você. No meu território, ninguém é escravo. Segundo, preciso pedir que vocês me entreguem todo o ouro e prata em sua posse, assim
como suas armas e cavalos. Depois disso, vocês estão livres para seguir pela passagem. Ou para voltar por onde vieram. Naquela direção tem um abrigo para se protegerem
da neve.
- E se nos recusarmos a fazer isso?
A expressão de Mandracus ficou mais séria.
- Nós teremos que matar todos vocês, exceto o escravo, e vamos pegar o que queremos de qualquer jeito.
Houve um breve instante de silêncio antes que Caesar falasse baixinho, entre os dentes cerrados, para apenas os ouvidos de Marcus e Festus.
- Quando eu avisar, nós atacamos esse tolo e sua corja. Prontos?
- Sim, Caesar - murmuraram Festus e Marcus.
Caesar respirou fundo e estava prestes a responder quando foi interrompido pelo som de cascos. Marcus virou-se para ver que os homens a cavalo tinham subido a parte
final da estrada e se aproximavam da passagem. Eles se espalharam pelo terreno aberto nos dois lados da estrada e prepararam as armas.
Mandracus deu de ombros.
- Como eu disse, vocês estão encurralados. Se querem viver, vocês não têm escolha, devem fazer como mandei. Agora abaixem as armas e desçam dos cavalos! Obedeçam!
Marcus concentrou-se em Caesar enquanto pressionava as coxas nos flancos do cavalo e os dedos ao redor do cabo da espada. Caesar soltou um suspiro, como se estivesse
se rendendo ao inevitável, e estendeu a mão na direção de sua arma casualmente. No entanto, em vez de tirá-la e jogá-la no chão, ele a agarrou rapidamente e a apontou
para a trilha enquanto gritava o mais alto possível.
- Ataquem!
7
Marcus jogou o manto para trás e puxou a espada da bainha. Ao redor, escutou os tinidos metálicos dos outros guarda-costas fazendo o mesmo. Somente Lupus estava
desarmado, olhando para a frente com uma expressão de pavor. Soltando um palavrão, Marcus passou as rédeas para a mão que segurava a espada e agarrou a adaga que
estava do outro lado do cinto. Ele aproximou o cavalo de Lupus e estendeu a adaga pela lâmina.
- Pegue!
O outro garoto hesitou brevemente antes de segurar no cabo e virar a adaga para cima, erguendo-a acima da cabeça para poder atacar. Marcus não tinha tempo de explicar
ao amigo como empunhar a arma, então disse por entre os dentes cerrados:
- Fique perto de mim, Lupus. Se algum desses homens chegar perto de você, não pare pra pensar, você tem que esfaqueá-lo antes que ele o mate.
Os outros guarda-costas lançaram-se para a frente, levantando a neve enquanto iam atrás de Caesar. Marcus pressionou os calcanhares no cavalo e foi atrás deles,
inclinando-se para a frente na sela e segurando a arma na horizontal ao lado do flanco do cavalo, pronto para atacar.
A ordem de Caesar surpreendera os bandidos. O líder foi obrigado a pular para o lado diante da cavalaria de Caesar que se lançava bem para cima dele. O restante
dos homens reagiu com mais lentidão, e os cavaleiros chegaram entre eles antes que pudessem escapar. O ar foi tomado pelas pancadas e tinidos das lanças e lâminas
colidindo e pelos grunhidos dos homens atacando com todas as forças. Gritos de dor e triunfo ecoavam pelos rochedos dos dois lados da passagem, assim como os relinchos
dos cavalos.
Marcus, com o coração acelerado, fez seu cavalo penetrar o tumulto da luta. Ele avistou Mandracus levantar-se, erguer o machado e atacar um dos guarda-costas. O
homem só percebeu no último instante, tarde demais para qualquer reação, e o machado atingiu sua coxa, cortando carne, músculo e osso. O cavaleiro gemeu de dor e
atacou com a espada, atingindo fracamente o ombro do inimigo. A maior parte do impacto foi absorvida pela pele de lobo e pelas camadas grossas da túnica por baixo,
mas ainda assim Mandracus caiu de joelhos. Rangendo os dentes de dor, o cavaleiro bateu o tornozelo que não estava machucado no cavalo e procurou algum outro inimigo.
Marcus levou o cavalo até um espaço entre dois cavaleiros e se aproximou de um homem que tinha ido para trás de Festus erguendo sua lança, pronto para atacar. Inclinando-se
para a frente na sela, Marcus empurrou a espada contra a base da lança e derrubou-a, a ponta passando por cima do ombro de Festus sem causar nenhum dano. O líder
da guarda pessoal de Caesar percebeu o borrão pelo canto do olho e virou o cavalo imediatamente, fazendo um corte no braço do homem que tentara matá-lo. Mais um
corte no ombro e o bandido estava fora de combate.
Enquanto isso, Caesar tinha sido cercado pelos homens de Mandracus e estava puxando as rédeas com força para o cavalo se erguer e atacar com os cascos, forçando
o recuo dos oponentes. Era impossível manter todos eles a distância, e, enquanto prestava atenção, Marcus avistou um homem enfiar uma forquilha na anca do cavalo.
Um relincho agudo espalhou-se pelo ar, e o animal atacou com as patas traseiras, atingindo o homem e fazendo-o sair voando. Marcus sacudiu as rédeas e aproximou-se
de Caesar, brandindo a espada para que os homens ficassem afastados. Caesar mostrou que tinha percebido a presença do garoto com um rápido aceno de cabeça.
- Temos que sair daqui. Aqueles outros homens vão se juntar à luta a qualquer momento.
Marcus olhou ao redor, para a área atrás dos homens em combate, e viu outros cavaleiros subindo para perto deles. Quando eles chegassem à passagem, seria o fim.
- Festus! - gritou Caesar por cima dos barulhos da luta. - Vocês todos, me sigam! Me sigam! Temos que abrir caminho!
Os guarda-costas aproximaram os cavalos de Caesar e formaram um círculo. Olhando ao redor, Marcus percebeu que estava faltando um dos homens e depois avistou um
grupo de bandidos encurvados na direção do chão ao lado de um cavalo com a sela vazia. Eles estavam golpeando e esfaqueando o homem caído, com sangue pingando das
armas toda vez que elas eram erguidas para atacar mais uma vez. O guarda-costas com a perna ferida balançava-se na sela, gemia entre os dentes cerrados e o sangue
escorria de sua ferida, caindo em cima da neve como flores exóticas. Lupus, que conseguira ficar ao lado de Marcus, estava erguendo a adaga com um grunhido que distorcia
suas feições.
Mandracus tinha conseguido voltar para sua posição no meio da estrada, bloqueando a passagem. Ele gritou para que seus homens entrassem em formação ao lado dele.
Aqueles que puderam obedeceram ofegantes, respirando o ar gélido.
Caesar olhou para seus homens e apontou a espada para frente.
- Não parem por nada! Vamos!
O pequeno grupo de cavaleiros disparou, e, no último instante, a coragem dos bandidos fracassou, e a maioria deles saiu do caminho. Alguns poucos mais corajosos
ficaram parados ao lado do líder, as armas na horizontal enquanto os cavalos iam para cima deles, fazendo-os se ferirem ou serem pisoteados. Apenas Mandracus continuou
em pé, brandindo o machado de um lado para outro, obrigando os cavaleiros nervosos a desviar dele. Mais à frente a estrada estava livre, e, por um breve instante,
Marcus se atreveu a acreditar que eles tinham escapado. Olhou para trás e avistou Lupus com seu manto balançando fortemente enquanto o garoto se encurvava em cima
da sela, ainda segurando a adaga no alto.
- Venha! - gritou Marcus.
Atrás de seu amigo, Marcus avistou Mandracus se virar, erguer o machado e mirar.
- Lupus! Cuidado! - gritou Marcus desesperadamente.
Em seguida, o machado atravessou o ar. Por um instante, Marcus ficou olhando para a expressão de confusão e medo no rosto de Lupus. Logo depois, o cavalo dele caiu
abruptamente na lateral da estrada, lançando o escriba para longe da sela. Sangue subiu no ar, saindo da pata traseira do cavalo, que chutava e se contorcia para
tentar rolar e se erguer. Ao tentar se levantar, a pata ferida cedeu e o cavalo tombou de lado soltando um relincho agudo de dor.
Marcus puxou as rédeas, virando um pouco seu cavalo para que ele ficasse de lado. Então ele avistou Lupus. O garoto estava se levantando e balançou a cabeça. Marcus
estava prestes a voltar a cavalgar quando escutou a voz de Festus:
- Marcus! O que está fazendo? Venha logo, garoto!
- É Lupus! Ele caiu!
Festus soltou um palavrão baixinho e se virou para trás, fazendo seu cavalo parar ao lado de Marcus. Os dois viram Lupus cambaleando para perto deles. Ele tinha
perdido a adaga e estendia a mão, suplicante. Marcus acenou em desespero com a mão livre enquanto guardava a espada.
- Corra!
Mandracus já estava correndo atrás de Lupus, com um sorriso cruel nos lábios. Ele parou ao lado do cavalo para pegar o machado e continuou perseguindo o escriba;
Marcus observava, horrorizado. Em seguida, o feitiço foi quebrado e ele agarrou as rédeas para voltar até o amigo e resgatá-lo.
- Não! - gritou Festus, arrancando as rédeas das mãos de Marcus e fazendo o cavalo dele se erguer e bufar.
- O que está fazendo?! - exclamou Marcus. - Solte!
- É tarde demais! Veja!
Marcus virou-se. Ele viu Mandracus se inclinar para a frente, pegar Lupus pela nuca e o lançar no chão. Em pé ao lado do garoto, ele começou a mover o machado, olhando
para os dois cavaleiros que o observavam a uma pequena distância. Atrás dele, seus companheiros a cavalo se aproximavam, querendo perseguir os romanos.
- Não dá para salvá-lo - disse Festus. - Só podemos salvar a nós mesmos, se formos embora agora. Marcus!
A voz alta fez Marcus despertar, e o garoto lançou um último olhar desesperado para o seu amigo esparramado na neve. No entanto, ele sabia que Festus tinha razão:
era tarde demais. Com a culpa tomando conta de si, Marcus puxou as rédeas e se virou, galopando atrás de Caesar. Os outros já tinham cruzado a passagem e se aproximavam
do terreno aberto mais à frente. Atrás deles, o barulho dos perseguidores ecoava pelos rochedos, e Mandracus gritava uma ordem:
- Acabem com eles! Matem todos!
Sua voz estrondosa pareceu um trovão naquele espaço confinado, e Marcus olhou para trás no instante em que um dos cavaleiros passava pelo líder. Em seguida, escutou
mais um barulho. Um estalo surdo. Algo se moveu em cima da passarela, atraindo o olhar de Marcus. A massa de neve que lá em cima pendeu para a frente aos poucos
e depois se partiu em vários pedaços, causando uma explosão branca que desmoronou em cima da passagem, rugindo e sibilando. Os cavaleiros mal tiveram tempo de olhar
para cima antes que a avalanche os atingisse e a seus cavalos, cobrindo-os e enterrando-os no meio de um turbilhão de pedras e neve. Marcus diminuiu sua velocidade
e virou-se para dar uma boa olhada enquanto o último bloco de neve despencava. Depois disso, tudo ficou calmo.
- Marcus! - chamou Festus. - Temos que ir!
- Sim. - Marcus engoliu em seco e assentiu com a cabeça. - Sim, estou indo.
Festus começou a galopar para longe enquanto Marcus dava uma última olhada. Uma sensação entorpecedora de perda tomou conta dele.
- Lupus...
Em seguida, ele respirou fundo, pegou as rédeas e virou seu cavalo na direção dos outros. Ele o incitou a galopar, levando-o para longe do horror daquela cena.
Quando Lupus acordou, em meio ao breu, era impossível ter qualquer senso de direção. Encolhido, sentia um espaço aberto na sua frente que o permitia respirar. Estava
com frio, e seus braços e suas pernas, dormentes. O ar tinha um cheiro fétido, e o garoto sentiu um formigamento nos pulmões ao começar a sufocar. Por um instante,
ele não conseguiu se lembrar de como tinha ido parar naquele lugar. Talvez, pensou ele, já tivesse passado pelas sombras e aquilo fosse o que acontecia após a morte.
Uma eternidade trancado em um vazio gélido, preto e sufocante. Ao pensar nisso, ficou apavorado e tentou se mover. No entanto, só conseguiu mexer a cabeça de um
lado para outro, tentando agarrar a neve.
- Não - murmurou ele para si mesmo. - Não. NÃO! Eu não estou morto! Não quero morrer! Não!
Seus gritos foram abafados, e, por causa do esforço, ele ficou com dificuldade de respirar, então parou e arfou. Foi então que as escutou. Vozes. No início elas
pareciam distantes, mas aos poucos foram se aproximando e ficando mais nítidas.
- Aqui! - gritou ele. - Aqui dentro!
Demorou um instante para ele as escutasse novamente, daquela vez mais próximas. Depois, ouviu o barulho de alguém raspando algo. Sentiu um movimento ao redor do
corpo e avistou um brilho fraco ao lado. O brilho fortaleceu-se e o barulho ficou mais alto, e depois a luz, o barulho e o ar fresco chegaram todos de uma vez só.
Ele inspirou forte várias vezes enquanto uma mão o agarrava por baixo dos ombros, tirando-o do meio da neve e do gelo.
- Mandracus! Aqui! Achei um deles. Um garoto.
Qualquer alívio que Lupus tivesse sentido desapareceu de imediato no instante em que se sentou e avistou a cena ao redor. A passagem tinha virado um monte caótico
de neve. Havia um homem vestido de peles em pé na sua frente. Outros homens cavavam a neve desesperadamente, procurando seus camaradas. Alguns já tinham sido resgatados,
assim como vários cavalos, e estavam sentados nas proximidades, com os corpos cobertos por uma camada de gelo, tremendo.
Mandracus abriu caminho em meio aos escombros, a expressão séria e raivosa. Ele parou na frente de Lupus e o fulminou com o olhar.
- Eu perdi mais de vinte homens, eles foram assassinados pelo seu senhor e seus amigos ou foram enterrados vivos.
- Por favor, por favor, não me machuque - implorou Lupus enquanto se sentava, tremendo.
- Machucá-lo? - Mandracus franziu a testa. - Não vou machucá-lo, garoto. Vou libertá-lo. Agora você é um de nós. Para o bem ou para o mal. Seus dias de escravo acabaram.
Lupus mal conseguia acreditar no que tinha escutado. Quando a confusão finalmente passou, ele olhou para cima esperançosamente.
- Estou livre?
Mandracus assentiu com a cabeça.
- Claro. Pode fazer o que quiser. Não vou impedi-lo. Afinal, se quiser escapar de mim, você vai simplesmente voltar para a escravidão. Mas tem uma coisa que quero
saber. Quero saber o nome do seu líder. Tenho uma dívida a resolver com ele. Qual o nome dele? - exigiu Mandracus.
- Gaius Julius Caesar.
- O cônsul? - Mandracus não conseguiu disfarçar a surpresa. - Era ele?
- Não mais. O período dele no cargo acabou. Agora ele é um procônsul - explicou Lupus. - Ele vai assumir uma nova tropa.
- Então o que ele está fazendo nas montanhas? Com uma escolta tão pequena? Explique.
- Antes de partir para a Gália, Caesar recebeu a missão de acabar com Brixus e seus rebeldes.
- Ah, é? - Mandracus sorriu. - Me diga uma coisa, você é muito próximo do seu senhor?
Lupus levantou-se com dificuldade e parou orgulhosamente na frente do homem.
- Sou o escriba de Caesar. Eu o sirvo há muitos anos.
- Ótimo. Então tenho certeza de que você vai ter muito o que contar para Brixus quando eu o levar até ele. Ele quer saber tudo o que for possível sobre o inimigo.
Quem mais estava no seu grupo?
- Ninguém importante. Apenas os guarda-costas dele.
- E o outro garoto?
- Marcus? - Lupus deu de ombros. - Não tenho muito a dizer sobre ele. Ele é meu amigo. Marcus estava fazendo treinamento de gladiador quando Caesar o comprou.
Um brilho estranho apareceu nos olhos de Mandracus enquanto ele murmurava para si mesmo.
- Um menino gladiador... onde foi esse treinamento? Em que escola?
- Ele disse que foi na escola de Porcino, em Cápua. - Lupus franziu a testa. - Por que quer saber disso?
- Mais tarde eu conto. Mas primeiro precisamos encontrar Brixus. Ele vai gostar de saber tudo o que você me contou e o que você ainda não contou. - Mandracus olhou
para os sobreviventes ao seu redor. - Talvez tenha valido a pena - refletiu ao voltar a atenção para Lupus. - Talvez Brixus tenha razão. Chegou a hora de erguer
a bandeira da rebelião, e de Spartacus, mais uma vez...
8
Rimini era uma cidadezinha na costa leste do Império, com um porto modesto onde o rio desembocava no mar. Dos dois lados, havia uma praia larga de areia marrom que
se estendia por vários quilômetros. A água era rasa por uma boa distância, e Marcus conseguia entender por que os romanos ricos passavam os meses de verão ali. No
entanto, no inverno, a cidade transformava-se em um lugar isolado e quieto onde barcos ancoravam ocasionalmente. Os pescadores se sentavam na areia, protegidos por
seus barcos secos, e examinavam as redes com cuidado. Um quilômetro e meio ao norte ficava o acampamento do exército que Caesar comandaria.
Os vinte mil homens das quatro legiões ocupavam uma área gigante em comparação à cidade vizinha. O acampamento tinha o formato de um quadrado, com uma legião em
cada quadrante. Um muro baixo e uma trincheira cercavam a cidade composta de tendas, com torres em intervalos regulares e um portão fortificado na metade de cada
lado. Duas vias amplas se cruzavam no centro do acampamento, onde ficavam as tendas maiores. Ao redor delas, havia uma fileira após a outra de tendas feitas de pele
de bode, cada uma ocupada por oito legionários. Fora do acampamento, milhares de homens faziam seus treinamentos e praticavam com as armas.
Era uma visão espetacular, mas Marcus não conseguiu ficar animado. Sentado em sua sela, ao lado dos outros cavaleiros, observava a cena da última elevação da estrada
antes de chegar a Rimini. Três dias tinham se passado desde que por sorte escaparam nas montanhas. O homem que machucara a perna tinha sido deixado em Spello, a
primeira cidade pela qual passaram. Um cirurgião grego dissera que ele se recuperaria, mas ficaria manco pelo resto da vida. Foi a perda de Lupus que mais abalou
Marcus. Desde que se tornara escravo, poucas eram as pessoas de quem se tornara amigo, e perder mais uma delas era uma lembrança cruel do quanto estava só.
Havia a amizade de Brixus, feita no tempo em que passou na escola de gladiadores em Cápua. Brixus descobriu a identidade de Marcus e fugiu da escola para encontrar
seus antigos camaradas da revolta de Spartacus. E agora eles também sabiam que o filho do herói deles estava vivo. Quando Brixus lhe revelou a verdade, o mundo de
Marcus foi totalmente abalado. Titus, o homem que achava ser seu pai, a quem admirava e amava, tinha sido um dos romanos que acabaram com a revolta dos escravos.
A mesma revolta que terminou com a morte de seu verdadeiro pai. No início foi difícil aceitar aquilo, mas, à medida que aprendia mais sobre Spartacus, seu respeito
pelo pai nunca conhecido só aumentava. Respeito, mas não a afeição que sentia por Titus. Como podia ser diferente?
Depois, ao ser levado para Roma, ele ficou amigo de Portia, a sobrinha de Caesar, após salvar sua vida. Ela era alguns anos mais velha do que Marcus e tinha sido
enviada a Roma para ser criada pelo tio enquanto o pai participava de uma campanha na península Ibérica. A carência de Portia e a gratidão que ela sentia por Marcus
tornaram os dois mais próximos do que o normal para a sobrinha de um cônsul e um de seus escravos. Entretanto, Marcus sempre sentiu certo receio na presença dela.
Havia limites para o que um escravo podia dizer em circunstâncias como aquelas. Marcus estava um pouco nervoso com a possibilidade de vê-la novamente em Rimini.
Com certeza ela estaria diferente agora que tinha casado com Quintus, e talvez a jovem não fosse gostar de se lembrar do quanto era próxima de um dos servos de seu
tio, apesar de Marcus ter recebido sua liberdade.
Seus outros amigos foram os dois garotos com quem Marcus compartilhara a cela na casa de Caesar: Corvus e Lupus. O primeiro trabalhava na cozinha e era bastante
amargurado por causa da vida que levava. No entanto, ele era corajoso e terminou morrendo para proteger Portia. E, por último, Lupus, que era uma alma gentil. Amava
seu trabalho e ler livros. Sem Lupus, Marcus sentia-se sozinho mais uma vez e sofria pela perda do amigo.
- Vamos primeiro ao acampamento - avisou Caesar, interrompendo os pensamentos sombrios de Marcus -, antes que eu providencie acomodações em Rimini.
Ele acenou para a frente e começou a galopar de leve para percorrer os últimos quilômetros. Os outros aceleraram os cavalos e o acompanharam pela estrada. A uma
pequena distância do portão da cidade, eles passaram para uma estrada lateral que levava a uma ponte de madeira sobre um rio. As chuvas de outono e inverno nos Apeninos
tinham deixado o rio tão cheio que ele ameaçava transbordar ao correr entre os pilares da ponte.
Enquanto os cavaleiros aproximavam-se do acampamento, passaram pelo primeiro grupo de soldados, que se exercitava perto de um palus, uma estaca de madeira do tamanho
de um homem. Os legionários estavam agachados diante dos alvos e alternavam entre enfiar as espadas nos pilares e esmagar os escudos contra eles. Marcus conhecia
a técnica por causa de sua passagem pela escola de gladiadores. O centurião que comandava os soldados olhou para cima, mas não fez nenhuma saudação. Seu novo comandante
estava com um manto simples e sem nenhum sinal da autoridade que lhe fora concedida em Roma. Caesar cumprimentou-o com a cabeça ao passar cavalgando.
Ao chegarem ao portão do acampamento, no entanto, foi diferente. Havia uma ponte de madeira que se estendia por cima da vala e uma seção de homens fortemente armados
vigiava mais ao canto. Caesar puxou as rédeas e atravessou a ponte lentamente, os cascos produzindo ruídos ocos. O optio em serviço ergueu a mão e obstruiu o caminho.
- Alto! O que quer aqui?
Caesar puxou levemente as rédeas e colocou a mão dentro da sacola pendurada em um dos pitos da sela.
- Aguarde um instante, está aqui... em algum lugar.
O optio encheu as bochechas de ar, impaciente.
- Se são os mercadores de grãos que o quartel-mestre está esperando, então estão atrasados e aviso logo que ele não está muito contente com isso.
- Não, não somos mercadores de grãos - murmurou Caesar enquanto continuava mexendo na sacola. Em seguida, ele sorriu ao levantar a mão segurando um bastão com as
extremidades douradas e enrolado firmemente por um pergaminho, com o grande selo do Senado e do povo de Roma. - Aqui estamos! Sou Gaius Julius Caesar, governador
da província da Gália e general deste exército. Estou aqui para liderar minha tropa sob a autoridade do Senado.
Marcus viu os olhos do optio arregalarem-se e sua mandíbula relaxar. Recuperando-se rapidamente, ele deu um rápido passo para o lado, fez sentido e pôs o punho na
frente do peito, saudando-o.
- Peço desculpas, senhor.
- Descansar. - Caesar riu. - Bem, é a primeira vez que me confundem com um mercador de grãos!
- Não, senhor. Peço desculpas, senhor. - O rosto do optio corou.
- Não precisa pedir desculpas. Nós estamos na estrada há cinco dias. Prossiga seu trabalho, optio.
Caesar incitou seu cavalo adiante e conduziu sua escolta para dentro do acampamento. Ao passar para o outro lado do portão, Marcus respirou fundo subitamente ao
ver as fileiras organizadas de tendas que se espalhavam por todas as direções. Havia fumaça subindo das várias fogueiras do acampamento e das forjas dos armeiros.
O ar estava tomado pelo barulho de vozes e de gritos com ordens. Mais à frente, havia uma avenida longa e larga levando ao centro do acampamento. Alguns soldados
olhavam curiosamente os cavaleiros passarem, mas a maioria simplesmente os ignorava e prosseguia com seus deveres ou descansava fora das tendas, jogando dados ou
organizando pertences pessoais.
Ao chegarem às tendas maiores no centro do acampamento, Caesar foi parado por um centurião da unidade de elite dos soldados responsáveis pela proteção do quartel-general
e dos oficiais mais importantes do exército. Assim que viu o bastão, ele acenou para que os cavaleiros entrassem. Eles desmontaram perto da fileira de cavalos na
parte exterior da tenda maior. As bandeiras com águias das quatro legiões estavam em um pódio na frente da entrada e eram protegidas por oito homens com pele de
urso cobrindo ombros e capacetes.
Algo naquela atmosfera entusiasmava Marcus. Era uma mistura inebriante de cenas e sons, junto com o poder que Roma possuía por intermédio de seus soldados. Aqueles
homens eram os construtores do grande Império, uma vez que derrotavam outros impérios. Por outro lado, eram os mesmos que, exauridos, enfim, destruíram Spartacus
e seus rebeldes, lembrou Marcus, cujo entusiasmo então diminuiu.
Caesar virou-se na entrada da tenda.
- Festus e Marcus, venham comigo. O restante, fique aguardando aqui.
O bastão de Caesar tinha sido avistado por um dos guardas na entrada da tenda, e, quando eles entraram, os oficiais e escrivães dos dois lados da mesa levantaram-se
e imediatamente se colocaram em posição de sentido para os três recém-chegados. No outro lado da tenda, havia uma divisória, e um sujeito apareceu apressadamente,
estendendo a mão e sorrindo.
- Caesar! Que bom vê-lo novamente.
- Labienus, meu velho amigo. - Caesar agarrou o antebraço dele e retribuiu o sorriso.
- Estava achando que o receberia em março. Não fazia ideia de que você chegaria mais cedo, se fizesse teria preparado uma recepção adequada para um procônsul.
- Já tive o bastante de cerimônias. É hora de fazer o trabalho honesto de um soldado e deixar a política para trás. Ou pelo menos é isso que eu queria. Agora Cicero
tramou para que eu caísse nessa terrível armadilha. - Caesar olhou para os outros homens na tenda. - Vamos continuar a conversa em particular.
Depois que as divisórias foram fechadas, Labienus apontou para cadeiras dobráveis de madeira que estavam ao lado de uma grande mesa em uma das laterais da tenda.
Caesar gesticulou na direção de seus companheiros.
- Este é Festus, líder da minha guarda pessoal.
- Aqui você não vai ter muito a fazer - disse Labienus. - Temos uma unidade do exército responsável pela proteção do general.
Caesar assentiu com a cabeça.
- Mesmo assim, Festus e seus homens vão continuar perto de mim. Depois do que aconteceu em Roma no ano passado, preciso ter cautela ao decidir em quem confiar.
Labienus deu de ombros.
- Pode soar estranho, mas acho que você vai se sentir mais seguro em campanha do que nas ruas de Roma. E quem é o garoto?
Caesar virou-se para Marcus e pôs a mão no ombro dele.
- Este é Marcus Cornelius Primus, o gladiador. O favorito de Roma.
Marcus não tinha como negar que era bom ser elogiado por Caesar, um dos três homens mais poderosos do Império Romano, mas percebeu que estava envergonhado. Ele forçou
um sorriso antes de olhar para baixo por um instante.
- Você? - Labienus ergueu as sobrancelhas. - Você é o tal garoto? Achava que você seria maior. Por causa de sua reputação. Dizem que você matou um gigante celta
na luta travada diante do Fórum. Mas você é tão... jovem.
- Não se deixe enganar pelas aparências - disse Caesar. - Marcus tem o coração de um leão, a velocidade de uma víbora e a esperteza de um gato. Com o tempo, ele
se tornará ainda mais famoso. Talvez ele se torne o maior gladiador que já existiu. Não há ninguém como ele. - Caesar hesitou. - Bem, talvez antigamente houvesse.
Mas agora ele está morto. É a maior pena. Eu gostaria de ter visto Spartacus lutar em Roma. Que espetáculo deve ter sido.
- Nunca mais veremos nada daquele tipo - concordou Labienus. - E por isso eu só posso agradecer aos deuses.
Mais uma vez, Marcus percebeu o quanto a sua situação era perigosa e sentiu um fascínio pelo legado do pai. Se aqueles romanos soubessem a verdade...
Labienus prosseguiu:
- Só queria que esses arruaceiros das montanhas percebessem logo isso e terminassem a rebelião. Enfim, quando chegar a hora nós lidaremos com eles. O que foi que
você disse um instante atrás sobre Cicero e uma armadilha?
- É por isso que cheguei antes do esperado. Minha missão é acabar com a revolta de Brixus e eliminar o restante dos seguidores de Spartacus. Tenho que fazer isso
antes de poder começar minhas campanhas na Gália. Não vai ser fácil. Tive uma prévia do confronto na viagem de Roma até aqui. Caímos em uma emboscada no meio das
montanhas, tivemos sorte de escapar. Perdi um dos meus homens, outro ficou ferido, e o meu escriba também morreu. - Ele parou por um instante e se virou para Marcus.
- Você sabe ler e escrever?
Marcus tivera uma boa educação básica e fez sim com a cabeça.
- Sei o suficiente, senhor.
- Então de agora em diante você assumirá o lugar de Lupus. Pode fazer isso e ser membro da minha guarda pessoal, além de ser meu especialista em gladiadores.
- Sim, senhor - respondeu Marcus, com uma onda de orgulho.
- Ótimo. - Caesar bateu de leve nele. - Então vá procurar o que precisa para o trabalho com os funcionários do quartel-general. Se alguém o questionar, diga que
está agindo sob meu comando.
- Quais são seus planos em relação a Brixus? - perguntou Labienus.
- Escolherei seus melhores soldados. Você continua no comando aqui com o restante dos homens, preparando os recrutas para a Gália. Dividirei minha força em duas.
O comandante da nona legião, Balbus, vai marchar com seus homens para o sul até Corfinio e depois para o norte, esvaziando todos os vales à medida que avança. Começarei
na outra extremidade dos Apeninos e vou na direção dele. Acabaremos com eles em nossas rotas. Acho que não vai demorar mais do que um mês.
- Entendi - refletiu Labienus. - Quando pretende começar?
- Em dois dias. Quero duas tropas equipadas e com mantimentos para um mês inteiro. Eles precisarão marchar rapidamente quando entrarmos nas montanhas, então a bagagem
não pode ficar pesada. Só o suficiente para alimentá-los por alguns dias de cada vez. O restante dos mantimentos terá que ser empilhado nas cidades à beira das montanhas.
Você precisará providenciar isso.
- Dois dias? - Labienus encheu as bochechas de ar. - Sim, isso pode ser providenciado.
- Pode ser providenciado? - Caesar franziu a testa. - Labienus, isso será providenciado.
- Sim, senhor.
- Então pode dar as ordens necessárias imediatamente. Ah, mais uma coisa. Você tem um novo tribuno servindo na nona legião que se chama Quintus Pompeius, o sobrinho
de Pompeius.
- Exatamente.
- Presumo que ele esteja aquartelado na cidade?
Labienus assentiu com a cabeça.
- Ele assumiu o controle da casa de um vendedor de escravos e acabou de se casar com uma linda jovem. Uma pombinha.
Marcus ficou com raiva ao ouvir a referência desrespeitosa à Portia.
- Essa garota é minha sobrinha - disse Caesar secamente. - Muito bem então, meus homens e eu vamos ficar na casa dela. Depois que der as ordens, envie um relatório
completo para mim, lá em Rimini. Preciso saber os nomes dos meus oficiais e a força das unidades escolhidas para a missão. Além disso, estou esperando a chegada
de um homem aqui em alguns dias. É o lanista da escola de onde Brixus fugiu. Clodius está o procurando agora. Ele vai enviar o homem para cá assim que o encontrar.
- Sim, Caesar. Eu o envio até você no instante em que ele chegar.
- Ótimo, então nossos assuntos estão resolvidos. - Caesar levantou-se, e Festus e Marcus fizeram o mesmo. - Agora vamos encontrar uma casa de banhos decente na cidade
e nos limpar antes de ir para a casa de Portia e de seu marido.
9
- Tio Gaius! - Portia ficou contente ao vê-lo aparecer no átrio da casa. Ela disparou pelo chão de mármore e o abraçou apertado enquanto Caesar ria. Ele estava vestindo
uma túnica que pegara emprestada de um dos magistrados de Rimini, e um escravo limpara suas botas durante a visita de Caesar e companhia à maior casa de banhos da
cidade. O vapor, a massagem, o esfregar e o mergulho na água fria deixaram Marcus se sentindo limpo e revigorado, e ele e Festus estavam com suas túnicas reserva.
- Calma! Assim vai quebrar minhas costelas.
Marcus e Festus observavam da entrada da casa, e Marcus sentiu certa inveja por não ter mais uma família. Até encontrar e libertar a mãe, ele não teria aqueles simples
prazeres como a cena acolhedora que presenciava.
Caesar segurou os ombros dela e a afastou enquanto a observava, radiante.
- Como está minha sobrinha preferida?
- Sou sua única sobrinha. - Ela deu um leve tapa no peito dele.
- Exatamente. Continua sendo a minha preferida. E está se adaptando à vida de casada? Onde está aquele seu marido, o jovem Quintus?
Marcus viu o sorriso dela diminuir por um brevíssimo instante antes de responder:
- Ah, ele está no clube dos oficiais. Eles estão acomodados em uma estalagem na frente do porto. Estão muito ocupados, como você deve saber. Preparando o exército
para a nova campanha. Imagino que eles mereçam se divertir de vez em quando. Mas estamos felizes. Muito felizes. Mas sei que vou passar um bom tempo sem vê-lo quando
você levar o exército para o norte, para a Gália. - O sorriso dela desapareceu enquanto segurava a mão do tio. - Por favor, demore para dar a ordem.
- Minha querida, impérios não são conquistados por homens que ficam em casa com as esposas.
- E os homens que conquistam impérios não chegam nem a nascer se os pais deles nunca estão perto das mães - respondeu ela.
- Rá! Você é mais esperta do que metade dos homens do Senado e tem uma língua mais afiada do que a outra metade. Mas já basta disso. Tenho uma surpresa para você,
caso esteja com saudades de Roma. - Ele deu um passo para o lado, deixando-a ver seus dois companheiros. - Aqui estão Festus e Marcus.
- Marcus! - Portia sorriu, aproximou-se dele, segurou suas mãos a uma pequena distância, apertou-as e soltou. - Você parece estar bem. Recuperou-se completamente
da luta com aquele terrível marginal do Ferax?
- Sim, ama - respondeu Marcus formalmente, pois era o que se esperava deles quando estavam na frente de outras pessoas. - Estou bem. É bom vê-la novamente.
- Então talvez nós possamos conversar um pouco mais tarde, depois que vocês se alimentarem?
Caesar tossiu.
- Vou comer mais tarde. Preciso cuidar de um assunto primeiro. Onde fica esse clube de oficiais?
- Você já precisa ir embora? - Portia franziu a testa.
- Tenho muito a fazer. Vamos iniciar nossa marcha contra os escravos rebeldes depois de amanhã. Preciso dar uma olhada nos meus oficiais. Ver como eles são e escolher
os que vão me acompanhar. Não vou demorar, prometo. Enquanto isso, pode providenciar a refeição de Festus e Marcus e enchê-los de perguntas sobre os acontecimentos
de Roma desde que você foi embora de lá. Sei que isso foi apenas há alguns meses, mas foram meses bem tumultuados.
- Sim, vou perguntar. Mas me diga uma coisa, como está Lupus? Achei que você ia precisar do seu escriba ao seu lado.
Caesar contraiu os lábios.
- Marcus é meu escriba agora.
- Ah. E por que não Lupus? Achei que ele era bom no que fazia.
- Ele é... era. Nós perdemos Lupus no caminho para cá.
- Perderam?
- Caímos em uma emboscada feita por bandidos. Lupus foi assassinado. - Ele pôs a mão na bochecha dela. - Eles podem lhe contar a história. Tenho que ir.
Caesar beijou-a no topo da cabeça e se virou para sair da casa. O porteiro fechou a porta após ele passar, deixando Portia sozinha com os outros. Ela olhou para
os rostos dos dois.
- Coitado do Lupus... Vamos para o triclínio. Vou pedir que tragam comida e bebida para nós e vocês me contam o que aconteceu.
O triclínio da casa do vendedor de escravos ficava de frente para um jardim comprido com colunas que tinha um pequeno canal d'água correndo no meio, com duas pontes
de vime por cima dele. Tinha anoitecido em Rimini e o ar estava frio. Uma braseira foi acendida no meio dos três sofás sem encosto. Pequenas mesas tinham sido colocadas
na frente de cada um e uma escrava vestindo uma túnica marrom lisa trouxe pequenas travessas com salsicha fatiada, azeitonas, pão adocicado e panelas delicadas com
molho de peixe para colocar na comida, junto com cálices de vidro e uma jarra de vinho diluído.
Por um tempo, eles conversaram tranquilamente sobre os assuntos de Roma e o escândalo mais recente do mundo das corridas de biga - um dos donos do time azul tinha
sido acusado de subornar um menino que trabalhava no estábulo do time verde para ele envenenar a comida dos melhores cavalos. Por causa daquilo, as corridas tinham
sido canceladas por dois meses até que os patrocinadores dos times se acalmassem novamente.
- É um absurdo - murmurou Festus, fã fiel do time azul. - Que coisa típica dos verdes. Eles perdem várias corridas, mas, claro, a culpa é de outra pessoa. Não tem
nada a ver com o fato de que Barmoris não entende nada de guiar uma biga.
- Ah, puxa. - Portia assumiu uma expressão de empatia no rosto. - Você parece ter ficado chateado.
Festus encarou-a.
- Chateado? Isso não é um assunto qualquer, ama. Estamos falando de corrida de bigas.
- Claro, peço desculpas. - Portia pegou uma tigela com azeitonas recheadas e a estendeu como oferta de paz.
- Obrigado, mas já comi o suficiente. - Festus limpou a boca com as costas da mão. - Se não se incomodar, o dia foi longo. Estou cansado. Acho que preciso de uma
boa noite de sono.
Portia assentiu com a cabeça.
- Como desejar.
Após se levantar do sofá, Festus fez uma brusca reverência com a cabeça e foi embora a passos rápidos. Portia não pôde deixar de sorrir, e depois que ele estava
longe ela balançou a cabeça e murmurou:
- Não entendo essa relação dos homens com as corridas de bigas.
Marcus deu de ombros. Apesar de ter morado na capital no ano anterior, ele nunca compreendeu o entusiasmo sentido pelas pessoas ao ver os quatro times correndo ao
redor do Circus Maximus. Ele pegou mais um pedaço de pão, mergulhou-o no molho de peixe e começou a mastigar. Houve um breve silêncio enquanto Portia empurrava uma
fatia de salsicha pela travessa com a ponta da faca. Após um tempo, ela pigarreou e falou sem olhar para cima:
- E então, o que aconteceu com Lupus?
Marcus terminou de mastigar e engoliu.
- Como seu tio disse, ele morreu na emboscada.
- Eu sei o que ele disse - respondeu ela secamente. - Quero saber o que aconteceu.
Marcus fez uma pausa para se lembrar da emboscada antes de responder:
- Nós ficamos encurralados em uma passagem estreita e os inimigos eram bem mais numerosos. Caesar decidiu que nossa única esperança era abrir caminho entre os bandidos.
Então nós os atacamos e escapamos. Lupus estava no final do grupo quando a avalanche começou.
- Avalanche?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Parecia que metade da montanha estava despencando. Ela caiu em cima da passagem e a bloqueou, enterrando todos que estavam lá.
- Não tem nenhuma chance de Lupus ter escapado?
- Não. Eu vi com meus próprios olhos. Eu o vi sendo esmagado e enterrado pela neve.
Portia estremeceu ao imaginar a cena.
- Espero que tenha sido algo rápido e sem dor para ele.
Marcus contraiu os lábios. Ele não tinha como saber e não estava preparado para tentar pensar no lado positivo da tragédia.
- Recebi ordens para assumir o lugar dele. Espero que eu tenha metade da sua habilidade.
Portia olhou para ele e sorriu carinhosamente.
- Você vai se sair bem, Marcus. Sei que vai. Nada está além do seu alcance. Já vi o suficiente da sua coragem, força e determinação para saber disso. Mesmo se suas
habilidades com a escrita não forem iguais às de Lupus, em breve elas serão. Tenho certeza disso.
Marcus sentiu uma onda de orgulho ao escutar as palavras dela.
- Obrigado, ama. Vou fazer meu melhor para servir bem a Caesar.
Ela sorriu, pareceu ficar perdida em seus pensamentos por um instante e depois prosseguiu:
- Só espero que meu marido seja tão zeloso quanto você.
De novo, pensou Marcus. O tom de voz triste. Ele não sabia o que dizer. Os mundos dos dois eram tão diferentes e talvez Portia achasse inaceitável que ele perguntasse
sobre a vida de casada dela. No entanto, eles eram próximos o suficiente para que ele a considerasse uma amiga. Marcus importava-se com Portia e só queria que ela
fosse feliz. Mas tinha ficado claro que ela não estava.
- Ama...
- Quando não tiver mais ninguém presente, eu sou apenas Portia para você.
Marcus assentiu com a cabeça.
- Muito bem... Portia. Você não parece muito feliz.
- Por que eu estaria? Lupus morreu.
- Mas não é o que aconteceu com Lupus que a deixa chateada. É alguma outra coisa.
- Não, não é - protestou ela, fulminando Marcus com o olhar e desafiando-o a questioná-la. - Estou perfeitamente feliz. Perfeitamente.
Ele suspirou e fingiu prestar atenção no que havia sobrado em seu prato. Escolheu um pequeno folhado coberto com uma camada de sal.
- Se está dizendo.
Houve um silêncio e em seguida ele escutou o barulho de choro abafado. Ao olhar para cima, viu Portia com o rosto entre as mãos e os ombros balançando enquanto chorava.
Imediatamente, ele se levantou do sofá e se acomodou ao lado dela. Ele hesitou por um instante, estendeu a mão e fez um afago em seu ombro.
- Desculpe, Portia. Não queria chateá-la.
Ela soluçou mais uma vez e respirou para poder responder:
- Não foi sua culpa. É minha... é culpa minha.
- O que é culpa sua?
- Não sei. - Ela ergueu a cabeça ao endireitar a postura, e Marcus afastou a mão. Assim que Portia o olhou nos olhos, ele a sentiu segurar sua mão. As linhas finas
e escuras de kajal ao redor de seus olhos tinham se manchado e seu lábio inferior tremia. - Eu tento agradar Quintus. Tento ser a esposa que ele merece, mas ele
me ignora. Sou nova demais para ser esposa dele, e ele é novo demais para ser um marido. Eu mal falei com ele no último mês. Ele passa a maior parte do tempo fora
de casa, e às vezes nem vem dormir em casa. Ouvi falar que ele está perdendo toda a fortuna em jogos de dados. Quando o perguntei a respeito disso, ele ficou com
raiva e ameaçou bater em mim.
- Por que não disse nada para seu tio mais cedo?
- Como eu poderia fazer isso? Eu sei quanto esse casamento é importante para tio Gaius. Ele precisa de Pompeius como aliado. Além disso... talvez seja apenas tolice
minha. Talvez casamentos sejam assim. Se eu contasse para meu tio, ele ficaria com raiva de mim e diria para eu parar de reclamar, tenho certeza.
- Se Caesar dissesse isso, ele estaria errado - respondeu Marcus com firmeza. - Você não merece ser tratada assim.
- E como eu devia ser tratada? - respondeu Portia tristemente. - As garotas romanas da minha classe social são criadas para formar alianças entre os homens. Prometidas
entre os homens. No fim das contas, não estamos em uma situação melhor do que a dos escravos.
Marcus não pôde deixar de ficar surpreso. Ele tinha visto como os escravos viviam, como eram espancados, insultados e tratados como se fossem apenas objetos. As
condições de vida deles eram completamente diferentes das regalias das famílias mais ricas de Roma. No entanto, Portia tinha razão. Apesar do luxo ao seu redor,
ela não tinha como escolher sua vida, assim como os escravos que a serviam. Enquanto outras mulheres podiam escolher se casar com alguém que amavam, ela não podia
fazer isso.
De repente, ela colocou os braços ao redor dele e se aproximou de seu ombro, começando a chorar novamente. Ele ergueu a mão e acariciou seu cabelo.
- Vai ficar tudo bem, Portia - murmurou ele, sem saber o que dizer. Que palavras a consolariam? - Com o tempo isso vai melhorar. Você vai ver.
Ela soltou um gemido baixinho.
- Queria poder contar isso para o meu tio. Mas não posso. Tudo o que tenho é você.
Ela se afastou e fitou-o com seus olhos arregalados e vermelhos. Seus lábios tremiam e havia um risco preto em seu rosto por causa do kajal que escorrera. Ela se
inclinou para a frente e o beijou delicadamente nos lábios, fechando os olhos. Marcus quase recuou de susto, mas percebeu gostar da sensação. Uma onda quente de
afeição encheu seu coração e fez sua cabeça flutuar.
Então, tremendo de ansiedade, seus lábios congelaram. O que ele estava fazendo? Que imensa tolice era aquela? Se fossem vistos, ele estaria morto. Portia também
correria perigo. O marido bateria nela, como julgava ser direito dele. Marcus soltou-se e afastou-se apressadamente. Portia olhou para ele com uma expressão de surpresa
que logo se transformou em mágoa.
- Marcus, o que foi?
- Isso é errado, Portia! Errado e perigoso. Não devemos fazer isso.
- Mas tudo o que tenho é você. Você é tudo o que eu tenho de especial agora. A última ligação que tenho com minha vida de antigamente.
- Sei que é difícil. Mas não posso fazer nada a respeito disso. Nem você.
- Marcus.
Ele ergueu a mão.
- Por favor, não! É perigoso demais para nós dois. - Ele se levantou. - Tenho que ir.
- Fique. Por favor.
Marcus sabia que não podia fazer isso. Ele caminhou rapidamente até a porta e parou. Ao olhar para trás, ele viu a mágoa no rosto dela, e o coração dele implorou
para que ele voltasse, mas foi firme e disse:
- Temos que esquecer que isso aconteceu. Pelo bem de nós dois. Até nossa amizade já é algo arriscado. Isso... - Ele balançou a cabeça. - Isso não passa de suicídio,
Portia. Nunca mais pode acontecer.
Marcus virou-se e foi embora, passando pelas colunas que cercavam o jardim para chegar à área dos escravos. Ele cerrou o maxilar, sem querer arriscar olhar para
trás.
10
Enquanto os oficiais sujos de lama começavam a chegar para a reunião da noite, Marcus organizava as tábulas e o estilo de marfim em cima da mesinha que ficava na
lateral da tenda. Uma garoa atingia a pele de bode da tenda, e a distância alguns trovões soavam ocasionalmente. Caesar convocara todos os tribunos e centuriões
que tinha escolhido para a campanha. Os tribunos eram todos jovens com túnicas e mantos bem tecidos, já os centuriões variavam bem mais de idade. Os mais novos estavam
perto dos 30 anos, e os mais velhos tinham rostos enrugados, alguns com cicatrizes dos muitos anos de campanhas pelo Império. Eram a espinha dorsal das legiões,
soldados durões que lideravam os ataques e eram os últimos a bater em retirada.
Homens como Titus, pensou Marcus carinhosamente.
- Eu o conheço, não?
Marcus olhou para trás e viu um jovem musculoso no fim da adolescência o encarando. Ele tinha cabelo claro e curto que já estava ficando mais ralo nas têmporas.
Sua beleza rústica logo seria afetada por sua calvície prematura. Marcus o reconheceu imediatamente, apesar de terem se encontrado apenas uma única vez, meses antes.
Era Quintus Pompeius, marido de Portia. Marcus não fora com a cara dele quando o conheceu, e a sensação ruim a respeito do rapaz se intensificou depois que soube
da infelicidade de Portia.
- É possível. Trabalho na casa de Caesar. Agora estou servindo como o escriba dele.
- Ah, deve ser isso. - O jovem assentiu com a cabeça duvidosamente. - Mas acho que tem alguma outra coisa também, não estou lembrando o que é. A propósito, refira-se
a mim como 'amo' quando falar comigo, escravo.
- Não sou escravo - respondeu Marcus friamente, contendo sua raiva. - Fui libertado por Caesar.
- Foi? - Quintus pareceu desapontado. - Bem, não se engane a respeito da sua posição. Sou um tribuno. Você tem que se referir a mim como 'senhor'. Entendeu, escriba?
- Sim... senhor - respondeu Marcus com a mais sutil reverência de cabeça.
- Aconselho-o a me respeitar daqui para a frente. - Quintus pôs os dedões dentro do cinto e afastou os cotovelos do corpo. - Sabe quem sou?
- Por quê? Você esqueceu? - perguntou Marcus inocentemente.
Quintus franziu a testa, e seus olhos se arregalaram ao perceber a zombaria de Marcus. Ele endireitou a postura, ficando mais alto do que o garoto.
- Sou Quintus Pompeius. Esse nome devia significar algo até para um plebeu tolo como você, escriba. E também sou parente de Caesar por casamento, então eu tomaria
cuidado se fosse você.
Ele fulminou Marcus com o olhar por um breve instante e se afastou para se juntar aos tribunos sentados na fileira da frente dos bancos reservados aos oficiais.
Eles estavam conversando e rindo, ignorando as expressões de reprovação nos rostos dos centuriões e de alguns dos tribunos mais velhos. Marcus tinha certeza de que
Titus também não ficaria muito impressionado com os jovens.
Houve um pequeno atraso depois que o último oficial se sentou, e então um sujeito robusto de cabelo grisalho e encaracolado entrou na tenda e exclamou com sua voz
profunda e alta:
- Oficial comandante presente!
Imediatamente, toda a conversa cessou e todos na tenda levantaram-se com rapidez enquanto Caesar entrava e se aproximava de um mapa em pergaminho pendurado em um
suporte de madeira. Ele parou ao lado e acenou com a cabeça para o veterano que havia anunciado sua chegada.
- Obrigado, chefe do acampamento.
O homem mais velho continuou em pé na entrada da tenda, e Caesar virou-se para analisar seus oficiais e abriu um breve sorriso ao olhar para Marcus.
- Por favor, sentem-se, cavalheiros.
Os bancos rangeram e por um breve instante houve um barulho de movimento enquanto os oficiais se acomodavam. Marcus sentou-se à sua mesa e pegou o estilo, preparando-se
para fazer as anotações. Caesar ficou pensando por um rápido momento antes de respirar fundo e começar a falar com uma voz nítida que chegava até o fundo da tenda,
sobrepondo-se ao barulho da chuva que retumbava no teto.
- Amanhã, ao amanhecer, nós partiremos do acampamento para marchar na direção dos Apeninos. Lá nós caçaremos os escravos rebeldes e destruiremos o exército deles
e mataremos o líder, Brixus. Vocês aqui foram escolhidos a dedo para essa missão. Alguns eu já conheço e lutei ao lado deles no passado, como o centurião Corvus
ali. - Ele apontou para um oficial forte na fileira do meio e eles trocaram um sorriso e um aceno de cabeça antes que Caesar prosseguisse.
Marcus, que já estava tendo dificuldades para acompanhar, sabia da necessidade de ser conciso em suas anotações, registrando apenas os assuntos mais importantes.
- O restante de vocês foi recomendado por Labienus, e espero que mostrem por que ele os escolheu. Qualquer homem que não me servir bem será dispensado do exército
e enviado para casa. Não vou tolerar covardes, tolos nem preguiçosos. Pensem nisso como uma oportunidade para testarem vocês mesmos e os homens que comandam. Não
há preparação melhor para quando eu liderar o exército conjunto contra os gauleses. Sei que alguns acham os rebeldes e bandidos das montanhas apenas um pequeno incômodo.
Pensam neles como reles miseráveis famintos, mal treinados e com armas ruins, e os menos experientes entre vocês pensam que tudo isso vai acabar bem rápido.
Ele fez uma pausa e Marcus o alcançou com rapidez e ficou a postos, com o estilo em cima da superfície encerada de mais uma tábula.
- A verdade é que a luta será árdua. Meus guarda-costas e eu nos deparamos com alguns rebeldes no caminho de Roma para cá, alguns dias atrás. Eles eram espertos
e nos encurralaram antes de nós percebermos. Esperteza não é a única vantagem que eles têm: eles conhecem as montanhas. Conhecem todos os caminhos e vão utilizá-los
para fazer manobras melhores que as nossas. Então o meu plano é simples: precisamos enviar duas tropas. Uma marchará para Corfinio, ao sul... - Ele se virou e apontou
para uma cidade no mapa. - Essa tropa será comandada pelo Legado Balbus, e a maior parte da nona legião irá com ele. Enquanto Balbus vai para o sul, eu vou acompanhar
a força principal para Módena, aqui ao norte. - Ele apontou para a cidade no mapa e virou-se para a os homens, estendendo as mãos para os lados e depois as aproximando
uma da outra. - Das duas extremidades, nós vamos começar a empurrar os rebeldes até chegar a vez deles de ficarem encurralados.
Ele parou para que suas próximas palavras tivessem impacto total.
- Haverá uma batalha final e dessa vez nós precisamos garantir que nenhum deles escape e mantenha a lenda de Spartacus viva. Agora, nós vamos destruir a determinação
de todos os escravos que tiverem pensado alguma vez na vida em se rebelar contra seus senhores. Mas quero deixar claro que a batalha vai ser dura. Os rebeldes vão
lutar por mais do que a própria vida. Eles vão lutar pela única coisa pela qual vale a pena lutar: a liberdade. Apesar de nossos inimigos serem escravos, vocês precisam
tratá-los com respeito. Vocês nunca viram e nunca mais verão pessoas lutando como eles. Os homens nesta tenda que lutaram contra a última revolta de escravos sabem
do que estou falando.
Marcus viu alguns dos centuriões mais antigos concordarem com a cabeça, uma expressão sombria no rosto deles. Apressadamente, ele fez anotações na tábula para alcançar
Caesar. As palavras do procônsul tinham congelado o garoto até os ossos. Seria um extermínio. Matar Brixus e seus aliados não seria suficiente. Caesar queria destruir
justamente o sonho que mantinha viva a esperança de milhares de escravos sofrendo por todo o Império. Pela primeira vez, Marcus entendeu de verdade a razão pela
qual seu pai tinha dado a vida. Ele compreendeu a causa e por que valia a pena pagar o preço que os seguidores de Spartacus tinham quitado com o próprio sangue.
O fato de que Marcus marcharia ao lado do homem determinado a obliterar até a lembrança de seu pai fez o garoto sentir uma náusea repentina, tendo que conter a bile
subindo por sua garganta.
- Cada um de vocês e dos homens de seus comandos terão que marchar e lutar como nunca antes - prosseguiu Caesar. - Quero essa campanha terminada antes da primavera,
cavalheiros. Não vou tolerar que vocês não se esforcem ao máximo. Quem não der seu máximo será dispensado do exército que comandarei para a Gália. - Com calma, ele
passou os olhos por toda a tenda, e a intensidade em seu rosto diminuiu. - Alguma pergunta?
Quintus ergueu a mão e Caesar fixou os olhos escuros no jovem.
- Sim, Quintus?
- O senhor está planejando levar metade do exército para lidar com esses foragidos. Com certeza é possível fazer isso com menos homens, não?
- E menos oficiais também, imagino? - Caesar sorriu fracamente, mas seu olhar continuou tão frio quanto antes. - Prefiro levar homens demais e não precisar deles
do que precisar deles e não tê-los ao meu lado. Além disso, você está se esquecendo de uma coisa. Esses rebeldes são comandados por Brixus, um antigo gladiador.
Haverá outros gladiadores com ele e são esses homens que treinarão os seguidores. Se eles tiverem feito um trabalho decente, nós enfrentaremos alguns dos lutadores
mais valentes do mundo.
- Gladiadores... - murmurou Quintus. - Eles não passam de brutos irracionais, senhor. Só músculos, sem cérebro. Não são páreo para um soldado de verdade.
- Acha mesmo? - Caesar virou-se para Marcus. - Garoto, solte o estilo e venha aqui.
Marcus obedeceu e parou no lugar indicado por Caesar, bem na frente dos tribunos mais novos. Caesar apontou para ele enquanto falava com os oficiais:
- Esse garoto estava treinando para ser gladiador até recentemente. Alguns meses atrás, ele venceu uma luta na frente do Senado. Tenho certeza de que alguns de vocês
estavam presentes.
Houve murmúrios de surpresa - eram homens que presenciaram a luta, mas que não tinham prestado atenção no escriba no canto da tenda, o qual agora reconheciam.
- Esse garoto é o meu conselheiro em relação a gladiadores. Até mais do que isso. Eu confiei a minha vida a ele no passado e faria isso novamente se fosse necessário.
- Ele? - Quintus riu. - Por quê? Ele não passa de um tampinha.
- Acha mesmo? Em uma luta entre vocês dois eu apostaria nele sem nem pensar duas vezes.
Marcus viu o sangue desaparecer do rosto do tribuno ao fulminar seu comandante raivosamente com o olhar.
- Eu acabaria com esse garoto em uma luta, senhor.
- Então testemos. - Caesar sacou a espada e a entregou para Marcus. - Saque sua espada, Quintus. Vamos ver se você é tão bom com ela quanto acha que é. Um pouco
de esgrima. O primeiro a sangrar perde.
Quintus parecia aturdido. Seus camaradas murmuraram palavras de incentivo, e, assentindo com a cabeça, ele se levantou e sacou a espada. Quintus assumiu sua posição
a três metros de Marcus e se virou para ele com um sorriso desdenhoso.
- Como disse, ele não tem cérebro e, pelo jeito, também não tem músculo.
Marcus não disse nada, ficou apenas testando o peso e o equilíbrio da espada de Caesar. O procônsul aproximou-se dele e murmurou baixinho:
- Só quero que ele sirva de exemplo. Vá com calma. Não quero ficar com um tribuno a menos nem enviuvar minha sobrinha. Entendeu?
- Sim, senhor.
- Ótimo. - Caesar afastou-se do espaço que havia entre Quintus e Marcus. - Comecem!
O tribuno olhou para Marcus e estufou as bochechas.
- Tem certeza disso, senhor? Eu odiaria ferir um dos seus servos.
Caesar sorriu.
- Por que não tenta primeiro?
Quintus ergueu a espada e deu um rápido passo para a frente, soltando um berro:
- Rá!
Marcus mal se mexeu e ficou firme, olhando atentamente enquanto passava o peso para o peito do pé, observando o tribuno. O jovem era forte e se movia com velocidade,
mas não se equilibrava muito bem, na verdade era até desajeitado.
Após tentar assustar Marcus e não conseguir, Quintus olhou para os amigos e deu uma risadinha.
- Estão vendo? Burro demais para reagir.
No instante em que os olhos dele se viraram para o lado, Marcus atacou. Lançou-se para a frente, com o braço e a espada estendidos. Seu oponente percebeu o movimento
e brandiu a espada para cima, querendo se defender do golpe. Marcus virou o pulso, deixando o peso da espada diminuir debaixo da espada do tribuno. Enquanto continuava
avançando, Marcus se abaixou e atingiu o pulso do jovem com a parte achatada da lâmina. Quintus soltou um grito abafado, e o choque do impacto o fez perder a empunhadura,
e a espada caiu de seus dedos. Marcus deu sequência com o cabo de bronze da espada, acertando-o na barriga do tribuno com toda a força. Quintus soltou uma arfada
explosiva e cambaleou para trás, ofegante. Marcus deu um passo para a frente calmamente e, erguendo a ponta da espada, fez um pequeno corte na bochecha do oponente.
- Primeiro a sangrar. - Ele abriu um pequeno sorriso e virou-se para devolver a espada a Caesar.
O procônsul riu enquanto guardava a espada e gesticulava para os tribunos surpresos.
- Ajudem Quintus a voltar para o banco.
Depois que o jovem ofegante se sentou, Caesar falou com seus oficiais mais uma vez:
- Se um garoto gladiador consegue fazer isso, então imaginem do que é capaz um homem mais experiente. Acho que todos nós aprendemos a lição. Nunca, nunca subestimem
o oponente. A reunião está encerrada. Preparem seus homens para marcharmos assim que amanhecer.
Ele acenou com a cabeça para o chefe do acampamento, que bateu os pés no chão e gritou:
- Alerta!
Todos os oficiais se levantaram e ficaram com a postura ereta, exceto Quintus, que precisou se curvar para a frente, ainda sem conseguir respirar direito.
- Dispensados!
Os oficiais começaram a sair da tenda, e Quintus afastou furiosamente as mãos de um amigo que tentava ajudá-lo. Ele fulminou Marcus com o olhar enquanto tocava o
sangue do pequeno corte em sua bochecha.
- Cuidado, garoto - grunhiu ele. - Não vou esquecer nem perdoar isso.
Marcus não reagiu, mas sentiu uma sensação calorosa de satisfação enquanto Quintus mancava para fora da tenda. Caesar esperou o último centurião ir embora antes
de dar um tapinha no ombro de Marcus.
- Belo trabalho. Aquele ali estava precisando de uma lição. Mais de uma, talvez - acrescentou ele amargamente. - Ele não dá valor ao que tem. Acho que essa campanha
é exatamente o que ele precisa para amadurecer um pouco e merecer o nome que tem, especialmente agora que ele também representa o meu nome.
Os dois escutaram murmúrios e, ao se virarem, avistaram o chefe do acampamento segurando a aba da tenda.
- Perdão, senhor, mas um homem acabou de chegar. Ele diz que foi enviado por Marcus Licinius Crassus.
- Crassus? - Caesar ergueu a sobrancelha. - Ele disse o que queria?
- Só disse que queria falar com o senhor imediatamente.
Caesar deu de ombros.
- Tudo bem, mande-o entrar. Vou falar com ele rapidamente. Marcus, pegue suas tábulas e volte para Rimini. Peça que o cozinheiro de Portia o alimente bem. Depois
arrume suas coisas e esteja pronto para sair de casa antes do amanhecer.
- Sim, senhor. - Marcus guardou as tábulas na bolsa de ombro e protegeu a cabeça da chuva com o capuz do manto.
Durante essa troca de palavras, o chefe do acampamento colocara a cabeça para fora da tenda e acenara para o homem esperando lá fora. Um instante depois, um homem
alto e magro apareceu. Seu manto estava salpicado de lama e de gotas de chuva, e o que tinha sobrado de seu cabelo estava grudado na cabeça. No entanto, ao vê-lo,
o coração de Marcus bateu mais forte, e o garoto sentiu uma fúria intensa se espalhar pelos braços e pelas pernas. Ele o reconheceu imediatamente. Não tinha como
confundir. Decimus. O homem que havia tentado matar Caesar no ano anterior e o agiota cujos capangas tinham assassinado Titus e levado Marcus e sua mãe para a escravidão.
11
Decimus deu uma olhada na tenda, mal percebendo a presença de Marcus antes de voltar a atenção para Caesar. Ele baixou a cabeça e estendeu um pequeno pergaminho
atado com um selo.
- Uma carta de introdução de Crassus, senhor.
Caesar pegou-a, rasgou o selo e desenrolou a mensagem antes de ver o que ela dizia.
- Publius Decimus?
Marcus observava-o atentamente para ver se Caesar reconhecia o nome, mas a expressão do procônsul não mudou nem por um instante.
- Sim, senhor. - Decimus sorriu. - A seu serviço.
- Aparentemente não. Você está aqui para agir em nome de Crassus.
- Sim, é verdade.
- A carta pede minha permissão para que você acompanhe minhas forças na luta contra os rebeldes. Por diversos motivos comerciais... Isso é um tanto vago. - Caesar
franziu a testa. - Pode explicar?
- Seria um prazer, senhor. Estou aqui para agir em nome de Crassus na compra de quaisquer prisioneiros que seus soldados façam. Estou autorizado a pagar seus homens
diretamente, e, claro, o senhor receberá uma quinta comissão do valor de cada compra. Uma percentagem mais que generosa, apropriada para um grande aliado do meu
patrono.
- Entendi. - Caesar rolou a carta para cima e tamborilou o queixo ao encarar Decimus. No canto da tenda, Marcus continha com dificuldade o ímpeto de se lançar para
cima do causador de todo o seu sofrimento. Ele precisou de todo o autocontrole para ficar parado e decidiu lembrar Caesar de quem era aquele homem.
O procônsul devolveu a carta a Decimus.
- As condições do seu patrono são bem generosas. Eu aceito. Vou providenciar para que você marche com o comboio de bagagem. Presumo que você trouxe uma equipe para
ajudá-lo com os prisioneiros e escoltá-los até um entreposto provisório, sim?
- Sim, senhor. Meus homens estão com as carroças lá fora.
- Então pode se juntar a eles novamente. Peça que um dos meus funcionários o acompanhe até o comboio de bagagens e aguarde suas instruções lá, Decimus. Queria ter
tempo para oferecer mais hospitalidade, mas há muito o que preciso organizar antes da nossa partida do acampamento amanhã.
- Claro, senhor. Eu compreendo. - Decimus curvou a cabeça novamente e se virou para sair da tenda. Quando pareceu a Marcus que ele estava longe demais para escutar
a conversa, o garoto pôs o capuz do manto para trás e correu até Caesar.
- Senhor! Eu conheço aquele homem. Ele...
- Sei exatamente quem ele é - interrompeu Caesar, franzindo a testa. - Eu me lembrei do nome dele imediatamente. A pergunta é: que diabos Crassus está aprontando
dessa vez? Consigo aceitar o fato de que ele enviaria um homem para comprar prisioneiros. O lucro pode ser bem grande quando eles são vendidos no mercado de escravos
de Roma. Crassus acharia isso interessante. Mas por que enviar Decimus? Crassus sabe da minha suspeita de que Decimus está por trás do atentado à minha vida no ano
passado.
- Isso importa, senhor? - perguntou Marcus entusiasmadamente. - Agora ele está nas suas mãos. Prenda-o. Interrogue-o. Você também pode descobrir o que ele sabe sobre
aquela conspiração contra o senhor. - Ele fez uma pausa. - E descobrir onde ele escondeu minha mãe... antes de ele morrer.
- Antes de ele morrer? - Caesar inclinou a cabeça um pouco para o lado. - Não vou matá-lo, Marcus. Primeiramente preciso descobrir por que ele está aqui. Não é só
para comprar escravos.
- E se ele tentar matar o senhor novamente?
Caesar contraiu os lábios.
- É uma possibilidade. No entanto, talvez Crassus esteja apenas querendo transmitir uma mensagem sutil. Que ele ainda tem certo controle sobre mim. Preciso garantir
que Decimus seja bem vigiado.
- Eu faço isso.
- Não. Ele o reconheceria imediatamente. Vou pedir para Festus fazer isso. Fique longe dele por enquanto, entendeu?
- Por quê? - grunhiu Marcus. - Aquele homem arruinou minha vida. Agora ele está nas nossas mãos. O senhor me deu sua palavra de que o perseguiria e de que o obrigaria
a revelar para onde minha mãe foi levada.
- Eu sei. E eu honro minhas promessas, Marcus. Mas não se esqueça da sua posição. - Caesar endireitou a postura e dirigiu o olhar para baixo com uma expressão imperiosa.
- Sou o procônsul de Roma, e você é meu servo. Não vou permitir que fale assim comigo de novo. Não se quiser minha ajuda. Está claro?
Por um instante, Marcus quis desobedecer e gritar com Caesar. Dizer que não se importava com quem Caesar era. Tudo o que importava era salvar sua mãe. Em seguida
controlou os próprios pensamentos, com raiva por ter sido tão tolo. Sua exaustão não era desculpa. Precisava ser forte e dominar seus sentimentos. Caesar tinha o
poder de determinar sua morte e decidir se sua mãe seria encontrada e libertada ou se ficaria acorrentada com os outros escravos até a morte. Marcus não seria capaz
de salvar a mãe sem a ajuda de Caesar. Ele respirou fundo e respondeu amargamente:
- Sim.
- Sim?
- Sim, senhor.
Caesar continuou encarando-o por um instante antes de concordar com a cabeça.
- Agora sim. Você precisa se lembrar do seu lugar neste mundo, Marcus. Sempre vou dever a você pelos serviços que me prestou, mas a minha tolerância com você tem
um limite. Se ultrapassar esse limite novamente, teremos consequências. Entendeu?
- Entendi, senhor... peço desculpas.
- E eu aceito. - Caesar sorriu e deu um tapinha em seu ombro, como se a conversa tensa tivesse sido esquecida imediatamente. - Não se preocupe com Decimus. Quando
chegar a hora, ele vai ser convocado a justificar os crimes que afetaram você e sua família. Enquanto isso, devemos nos considerar homens de sorte por ele ter sido
colocado nas minhas mãos. Queria saber o que exatamente Crassus está aprontando. É possível que ele queira simplesmente colocar mais um espião no meu acampamento.
- Mais um espião? - Marcus ergueu as sobrancelhas. - Quer dizer que existem outros?
- Claro que tem. Sei os nomes da maioria dos homens que trabalham para meus rivais políticos. Faço questão de passar informação suficiente para eles, para que seus
chefes fiquem satisfeitos, mas sem revelar meus verdadeiros planos. Assim como eles descobriram alguns dos meus espiões e tomam cuidado para não revelar muito para
eles. - Caesar fez uma pausa enquanto observava o quanto Marcus estava chocado. Ele riu cordialmente. - Ficou mesmo tão surpreso assim, meu garoto? Mesmo depois
de tantas tramas e conspirações que presenciou em Roma no ano passado?
Marcus corou. Não queria parecer tolo aos olhos daquele homem. Tinha passado a admirar Caesar, apesar da ambição implacável que o suportava como um pilar de mármore.
Ele balançou a cabeça e disse:
- Não estou surpreso, senhor. Só não tinha percebido a gravidade da situação.
Caesar deu de ombros.
- Política é assim. É o maior jogo que existe. E os riscos são os mais altos possíveis. Por enquanto, Pompeius e Crassus estão dispostos a dividir o poder comigo,
mas isso não deve durar para sempre. Vai chegar o momento em que nós três vamos nos tornar dois, e depois um. Esse será o melhor resultado para Roma. Uma cura para
todos os conflitos mesquinhos impedindo a cidade de conquistar mais glória do que já tem. O mais importante é que eu seja o homem que aguentará até o fim. E, quando
esse dia chegar, vou fazer questão de recompensar todos aqueles que me ajudaram a ficar mais poderoso. E você fez muito para merecer minha gratidão, bem mais do
que a maioria das pessoas, Marcus.
- Quantos anos isso vai demorar? - perguntou Marcus ansiosamente. - Minha mãe não vai sobreviver por tanto tempo, senhor. Ela precisa ser resgatada antes disso.
- E será. Assim que eu tiver a oportunidade de fazer isso. Mas tenho uma recompensa maior em mente para você, Marcus. O que todos os homens desejam, independentemente
da idade? Fama e poder. Para mim, essas coisas são conquistadas quando a pessoa reivindica o imperium para si: a autoridade e respeito que os maiores heróis de Roma
recebem. Para você, o caminho até a glória é diferente. Você tem potencial para ser um grande gladiador, talvez um dos maiores de todos os tempos. Enquanto os homens
lutarem na arena, o nome Marcus Cornelius será reverenciado. Não pode me dizer que essa ideia não mexe com seu coração - concluiu Caesar, sorrindo.
Marcus ficou tentado com aquela possibilidade. Sabia que lutava bem e ficava contente com sua habilidade e com o fato de que Titus teria orgulho dele. Perguntou-se
o que Spartacus sentiria. Orgulho, sim, mas também vergonha da possibilidade de Marcus lutar e matar para satisfazer a sede de sangue da multidão romana. Spartacus
e milhares de seus seguidores tinham morrido para acabar com a escravidão, com as lutas de gladiadores e com o risco de que Roma pudesse continuar espalhando seu
poder brutal pelo resto do mundo conhecido. Eles sacrificaram tudo para impedir uma pessoa como Caesar de conquistar seu imperium, um prêmio comprado às custas de
incontáveis outros homens enterrados nos alicerces daquela fama. Marcus percebeu: o mesmo destino o aguardava. Se o garoto realmente chegasse a se tornar um herói
da arena, a popularidade de seu patrono, Caesar, só aumentaria. Sentindo uma certeza arrepiante, ele compreendeu que era apenas com aquilo que o procônsul se importava.
As pessoas eram apenas uma maneira de ele alcançar seu objetivo.
Marcus engoliu em seco e se obrigou a fazer sim com a cabeça.
- Não consigo imaginar uma honra maior, senhor.
- Esse é o espírito! - Uma expressão discreta de alívio surgiu no rosto de Caesar. - Agora vá se preparar. A campanha será difícil, mesmo se acabar rapidamente.
Pode usar minha autoridade para pegar o que precisar nos depósitos do exército. Assegure-se de levar um suprimento suficiente de materiais de escrita. Tenho a impressão
de que algumas coisas interessantes de anotar acontecerão nos próximos dias. É uma pena Lupus não estar aqui para compartilhá-las conosco, mas tenho certeza de que
você vai cumprir bem o dever dele.
- Vou fazer o meu melhor, senhor.
- Claro que vai. Está dispensado, Marcus.
Ele curvou a cabeça e colocou a alça da bolsa por cima dela ao sair da tenda do quartel-general. Havia anoitecido e o acampamento estava sendo iluminado pelas fogueiras
e tochas que continuavam acesas com dificuldade devido à garoa constante. Uma brisa fria soprava do oeste na direção dos Apeninos, e Marcus estremeceu, puxando o
manto para cima do corpo com mais firmeza. Enquanto ia para a tenda do quartel-mestre, Marcus listou mentalmente tudo de que precisaria. Não muito para não sobrecarregar
o cavalo, mas necessitava se manter o mais seco e aquecido possível. Um manto extra com uma camada de gordura e uma boa túnica já seriam o suficiente. Também uma
proteção de couro para suas armas e seus instrumentos de escrita.
Mais uma vez, sua mente voltou a Decimus. Foi um golpe de sorte Crassus ter enviado aquele homem para se juntar ao exército de Caesar. Agora, como não precisavam
mais encontrá-lo, Marcus perguntou-se se haveria alguma maneira de forçar o cruel agiota a revelar a localização de sua mãe. Apesar das palavras de Caesar, Marcus
planejava ficar de olho em Decimus, e, se a oportunidade se apresentasse, ele o confrontaria. Depois, quando obtivesse a informação de que precisava, Marcus se vingaria.
* * *
A chuva parou de repente logo antes do amanhecer, mas o céu manteve-se coberto por uma camada sem fim de nuvens acinzentadas e opacas que faziam sombra sobre a paisagem
plana ao redor de Rimini. Os homens escolhidos por Caesar para sua campanha tinham guardado as tendas nas carroças. O equipamento reserva e o escudo de cada um ficavam
presos às pesadas cangas. Quando se gritava a ordem de entrar em formação no meio das fileiras, os legionários erguiam as cangas e as apoiavam em seus ombros direitos
antes de assumirem seus lugares na tropa. Marcus lançou suas duas bolsas nos chifres de sua sela. Uma delas continha suas roupas e provisões, e a outra, seus instrumentos
de escrita. Sua espada estava ao lado do corpo; a adaga e as facas de arremessar, nas bainhas presas a seu largo cinto de couro. Após subir na sela, Marcus guiou
o cavalo na direção do pequeno grupo de oficiais do quartel-general que acompanharia Caesar.
Quando tudo estava pronto, Caesar deu a ordem para o grupo avançar, e a longa tropa arrastou-se para a frente em duas seções. A primeira era comandada por Caesar,
e a segunda, pelo Legado Balbus. A cavalaria ia na frente das duas forças, seguida pelo comandante e sua equipe, depois a infantaria, e o comboio de bagagens e sua
escolta eram os últimos. Marcus virou-se na sela na esperança de avistar Decimus, mas era impossível distinguir os detalhes no meio das carroças que se aglomeravam
atrás dos legionários.
Uma pequena multidão havia surgido de Rimini ladeando a estrada pela qual o exército passava. Esposas, noivas, crianças entusiasmadas e curiosos ficavam parados,
observando os soldados avançarem pela rota enlameada que ia do acampamento até a estrada que seguia de norte e a sul. Em um dia mais quente, os espectadores estariam
aclamando os soldados, mas naquela manhã fria e triste eles se mantiveram em seus lugares, somente observando, deixando para dar seus gritos de despedida apenas
ao verem um amigo ou um ente querido. Havia uma pequena aglomeração de espectadores mais ricos perto da junção onde a rota se unia à estrada, e Marcus avistou Portia,
sem nada que lhe cobrisse a cabeça, observando a cavalaria passar. Seu rosto alegrou-se ao ver o tio e acenar para ele. Marcus viu Caesar acenar com a cabeça demonstrando
ter percebido a presença dela. Quintus estava ocupado demais brincando com seus amigos para ver sua jovem esposa, e ela ficou olhando tristemente enquanto ele passava.
O sorriso dela só reapareceu quando a garota viu Marcus e se aproximou da lateral do percurso.
- Cuide-se, Marcus.
Ele guiou o cavalo para a lateral do percurso, puxando as rédeas para olhar para ela.
- Vou sim.
- Cuide do meu tio.
- Dele? - Marcus sorriu. - Caesar sabe cuidar de si mesmo, ama. Confie em mim.
Ela riu rapidamente e depois voltou a falar com tom de voz baixo:
- E cuide de Quintus se puder...
Ela se virou e voltou para onde estava, no meio das famílias de outros oficiais. Marcus estalou a língua e balançou as rédeas, guiando seu cavalo para se juntar
rapidamente ao restante da equipe do quartel-general. Mais à frente, a cavalaria da força de Caesar, composta por cerca de quinhentos homens a cavalo, virara para
o norte. O restante da força seguiu-a, acelerando agora que podiam marchar em uma superfície pavimentada. Depois que a última carroça da tropa de Caesar retumbou
atrás deles, Balbus e seus homens viraram para o sul.
Marcus olhou para trás, momentaneamente impressionado com o espetáculo formado pelas duas tropas organizadas marchando para a guerra. O ar enchia-se com o ruído
dos cascos dos cavalos, o barulho de botas ferradas e o troar das pesadas carroças na estrada. Em seguida, ele se lembrou do propósito de tudo aquilo - o plano de
Caesar de destruir os rebeldes e o sonho de Spartacus de uma vez por todas. Marcus ficou encarando as costas do procônsul sentado empertigado em sua sela. Ele olhava
para a frente, certamente pensando em seu objetivo de conquistar mais fama e glória a qualquer preço.
12
Lupus estava quase exausto. Eles tinham marchado por três dias para chegar ao acampamento principal dos rebeldes. Três dias subindo por caminhos íngremes nas montanhas,
perdendo-se frequentemente entre as nuvens baixas que cercavam os picos dos Apeninos. Lupus não tinha mais esperanças de recordar a rota que fizeram. No início até
tentara, caso tivesse a oportunidade de fugir e voltar à estrada para se juntar a Marcus e aos outros com seu senhor. Apesar das nuvens e nevascas ocasionais encobrindo
os caminhos, Mandracus e seus homens nunca pisavam em falso e sempre iam na direção do destino sem hesitar. As passagens eram difíceis demais para seus cavaleiros,
então eles receberam ordens de continuarem a patrulha, saqueando vilas e propriedades para libertar mais escravos e roubar mais comida para alimentar os rebeldes.
Lupus viu poucas pessoas ao longo da rota. Apenas poucos pastores, alguns dos quais aclamavam Mandracus e seu bando e ofereciam comida e abrigo caso precisassem.
Outros simplesmente se viravam e fugiam.
Passaram por uma pequena vila que ficava acima de um riacho. Era pobre demais para que alguém de lá tivesse escravos, e as pessoas ficaram observando cautelosamente
os rebeldes passarem. Não houve tentativa de impedir o progresso do grupo nem de fechar o pequeno portão do muro baixo e rachado que protegia a vila antigamente.
Ao olhar para os lados, Lupus percebeu que as pessoas eram pobres e esfomeadas e que provavelmente tinham uma vida tão dura quanto os escravos que passavam. Ficou
claro que a guerra dos rebeldes era contra os ricos e poderosos. Apesar de os aldeões serem romanos livres, eles tinham mais em comum com os rebeldes do que com
seus governadores.
Finalmente, famintos e exaustos, com os pés doloridos, a pequena tropa de rebeldes chegou às proximidades do acampamento principal. Enquanto as primeiras sombras
do anoitecer cobriam as montanhas, Mandracus parou seus homens e chamou Lupus para que se aproximasse. O garoto parou nervosamente na frente dele, e Mandracus sorriu
ferozmente.
- Agora você vai ver por que os romanos nunca vão nos derrotar. - Ele acenou o braço musculoso para o cenário ao redor. Eles estavam em um vale plano que ficava
logo acima do limite da linha de neve. Declives cobertos de árvores encurvavam-se nas laterais e no fim do vale, onde os lados se encontravam. Não havia sinal de
assentamentos ou de qualquer ser vivo, somente um riacho que aparecia na base de alguns rochedos à esquerda. A água corria por cima das rochas enquanto descia para
o chão do vale. Em certos locais a água estava congelada, deixando formações reluzentes de gelo acima das quais a água escorria, aumentando mais ainda o gelo. O
lugar parecia desolado, e Lupus estremeceu.
No início, ele sentiu saudades dos confortos da casa de Caesar lá em Roma e amaldiçoou o dia em que seu senhor o convocou para escoltá-lo até Rimini. No entanto,
Lupus percebeu que seus captores eram diferentes de como ele havia imaginado. Inicialmente, eles deixaram o garoto apavorado, temendo pela própria vida. Demorou
um tempo para realmente acreditar que os homens não tinham intenção de lhe fazer mal. Todas as noites, Mandracus e seus companheiros sentavam-se ao redor da fogueira
para comer quaisquer provisões que tivessem encontrado recentemente e conversar com tranquilidade antes de se acomodar para dormir. Eles dividiam a comida com Lupus
e o tratavam com uma ternura bruta que o surpreendera.
- Agora você está livre, camarada! - Mandracus sorriu enquanto eles acampavam pela primeira noite. - Não tem mais nenhum senhor para lhe dar ordens. Aqui somos apenas
companheiros. Nada de senhores e escravos. Vivemos do que a terra dá e do que conseguimos pegando daqueles que usam escravos para enriquecer. Em breve você se acostuma.
Imagino que deva estar um pouco nervoso, não é?
Lupus assentiu.
- Bem, não precisa ficar. Ninguém vai devorá-lo. Por falar nisso... - O líder dos rebeldes mexeu em sua sacola e tirou uma pequena fatia de pão e um pedaço de queijo.
- Tome. Coma isso aqui. Você precisa continuar forte.
- Obrigado. - Lupus aproximou-se da fogueira e deixou o calor das chamas penetrar em seus músculos cansados. Ele engoliu um pouco da comida e virou-se para Mandracus.
- Qual vai ser meu destino depois que vocês me levarem até Brixus?
- Isso quem decide é Brixus - respondeu o homem, e depois mordeu um pequeno pedaço de uma tira de carne seca. - Ele vai querer fazer perguntas sobre Caesar e seu
amigo Marcus antes de decidir qual vai ser o próximo passo. Arrisco dizer que ele vai lhe dar a oportunidade de se juntar ao exército rebelde.
- E se eu recusar?
- Não vai recusar. Confie em mim. Depois que você entender por que isso tudo está sendo feito, depois que Brixus lhe explicar seus planos, você vai querer ficar
e lutar conosco e acabar com a escravidão.
- Você parece muito certo disso.
- Digamos que Brixus sabe ser bem persuasivo. E é provavelmente mais sábio não recusar essa oportunidade.
Lupus assentiu com a cabeça e comeu mais um pouco antes de falar novamente:
- Não sei se quero viver fugindo o tempo inteiro. Apesar de eu ter sido escravo, eu era tratado muito bem.
- Que bom - murmurou Mandracus. - Mas a maioria dos escravos não é tão mimada quanto você, Lupus. A maioria trabalha até morrer. Muitos em minas e fazendas. Esses
são os piores lugares. Era onde eu estava antes de Spartacus e seus homens me encontrarem tantos anos atrás. Agora até parece que foi em outra vida. Desde então,
eu sou livre. Sim, eu tenho sido perseguido e muitas vezes me pergunto quanto tempo isso tudo vai durar. Mas eu continuo livre e tenho uma esposa e duas filhas,
e elas sempre saberão o que é a liberdade.
- Deve ser difícil viver aqui nas montanhas.
- A vida é difícil - admitiu Mandracus. - É uma luta. Mas nós nos tratamos com respeito, compartilhamos o que temos e escolhemos nosso próprio destino. Algo que
um escravo nunca será capaz de fazer. Graças a pessoas como seu antigo senhor. E agora parece que ele decidiu acabar com a gente. - Ele ficou encarando as chamas,
e Lupus percebeu o rosto dele ficar mais sério. - Caesar vai perceber. Somos bem mais resistentes do que ele imagina. Você vai poder explicar um pouco sobre os pensamentos
de Caesar para Brixus quando conversar com ele.
- Vou contar o que puder - respondeu Lupus. - Mas acho que não vou ajudar muito. Caesar não costuma confiar nos escravos... talvez somente em alguns. Ele parece
ter Marcus em alta conta.
Mandracus olhou para o lado bruscamente.
- O garoto que estava com você na emboscada?
Lupus fez sim com a cabeça.
- Me conte sobre ele.
- Por quê? Você disse mais cedo que Brixus também ia querer saber mais a respeito dele. O que Marcus tem de tão especial?
- Só estou curioso. Provavelmente não é nada - respondeu Mandracus cuidadosamente. - Brixus mencionou um garoto gladiador que conheceu no passado. Talvez o seu amigo
Marcus saiba alguma coisa sobre ele.
Lupus acabou de comer. Ele estendeu as mãos para perto da fogueira e as esfregou.
- Não tenho muito o que contar sobre ele. O meu senhor... quer dizer, Caesar o comprou de uma escola de gladiadores em Cápua há mais de um ano. A sobrinha de Caesar
caiu na arena da escola enquanto Marcus enfrentava dois lobos. Ele a salvou dos animais, e Caesar percebeu seu potencial e o comprou para se juntar a ele em Roma,
fazendo parte de sua guarda pessoal.
- Entendi. E como é a aparência de Marcus?
- Você o viu na emboscada.
Mandracus concordou com a cabeça.
- É verdade, mas só foi uma olhada rápida, no meio de uma luta. Não consigo me lembrar dos detalhes.
Lupus deu de ombros.
- Ele é alto para a idade e magro. Não, magro não. Atlético é uma palavra melhor. Ele pensa rápido e tem reflexos velozes, e é impossível ser mais corajoso do que
ele. - Ele sorriu com orgulho ao se lembrar do amigo.
O homem também estava sorrindo.
- Parece alguém que eu conhecia antigamente... bem, jovem Lupus. Vá dormir, temos uma longa marcha na nossa frente antes de chegarmos ao acampamento de Brixus.
Agora eles tinham chegado ao acampamento, mas Lupus não estava vendo nenhum movimento, muito menos um exército rebelde que se fortalecia a cada dia de acordo com
Mandracus. O homem riu ao lado dele e deu um forte tapa no ombro do garoto.
- Siga-me.
Mandracus seguiu por um caminho estreito ao lado do riacho, e eles entraram pelo meio das árvores na base dos rochedos. Um pouco mais à frente, surgia uma faixa
estreita de terreno aberto coberto de pedras. Paredões de rocha escura, com um pouco de musgo espalhado por cima, estendiam-se para cima. Uma cachoeira caía dentro
de uma lagoa onde a água agitava-se e ficava clara antes de se juntar ao riacho que corria entre as árvores. Mandracus parou e curvou a mão ao lado da boca para
chamar alguém no topo dos rochedos.
- Chegando ao acampamento!
Lupus virou-se na direção que o homem observava e avistou uma silhueta escura aparecer no topo do rochedo, contra o céu, olhando para eles.
- Quem está aí embaixo?! - gritou a voz.
- Mandracus! Voltando da patrulha!
- Mandracus? Pode passar, amigo!
O rebelde foi até a base da cachoeira, seguido por Lupus e os outros. Lupus avistou o contraforte e percebeu uma abertura estreita no rochedo íngreme, uma passagem,
que se estendia de maneira inclinada até a cachoeira. Só era possível enxergá-la se a pessoa estivesse quase na base da cachoeira. Havia dois homens no início da
passagem, eles estavam armados com lanças, escudos, armaduras e capacetes iguais aos usados pelas legiões romanas. Eles pareceram ficar aliviados ao avistar Mandracus
e se aproximaram para cumprimentá-lo por ter voltado em segurança. Naquele instante, um deles avistou Lupus e parou.
- Quem é ele?
- Ele? - Mandracus riu. - Um recruta novo. E talvez ele tenha informações úteis para o general. Brixus está no acampamento?
Um dos sentinelas fez sim com a cabeça.
- Ele convocou os líderes de todos os bandos das montanhas. Eles começaram a chegar vários dias atrás. Você é o último. O que está acontecendo?
- Mesmo se eu soubesse, eu não lhe contaria, sua besta! Em breve você vai saber. - Mandracus pôs a mão no ombro de Lupus e o virou na direção da passagem. - Enquanto
isso, voltem ao trabalho de vocês.
Os sentinelas deram um passo para o lado e a pequena tropa de lutadores rebeldes entrou na passagem. O ar estava frio e úmido por causa do vapor que subia da cachoeira.
Lupus estremeceu ao seguir em frente. Apesar de o caminho ter sido aberto para que um cavalo pudesse passar, o chão não era nivelado, e a rota fazia uma curva após
a outra. O céu cinza não passava de uma faixa fina presa entre os rochedos, galhos de arbustos e árvores atrofiadas que pouco cresciam nas saliências. Após cerca
de meio quilômetro, os dois rochedos começaram a se afastar e a luz iluminou a passagem. Em seguida, ao fazerem a última curva do caminho, Lupus avistou pela primeira
vez o acampamento rebelde e parou para respirar fundo e assimilar aquela cena impressionante.
Mais à frente, o caminho fazia uma descida suave até chegar a um pequeno vale, aparentemente cercado por rochedos de todos os lados. Um riacho corria mais no canto,
atravessando o vale antes de passar para baixo da terra e seguir na direção da cachoeira. No entanto, aquilo era o menos impressionante de tudo o que seus olhos
viram. Diante dele, havia um enorme acampamento de tendas e abrigos mais permanentes. No meio das tendas, havia cercados para animais e várias construções maiores.
A mais próxima estava com as portas abertas, e o garoto viu um homem distribuindo tigelas com grãos para uma fila de pessoas. No meio do vale ficava uma enorme cabana
redonda, com uma área aberta ao redor, protegida por uma cerca. Cabanas menores espalhavam-se pelo local.
- Deve ter milhares de pessoas morando aqui - disse Lupus. - Milhares!
Mandracus sorriu ao ver a expressão de espanto do garoto.
- Exatamente. Formamos um exército. E estamos esperando o dia em que vamos nos revoltar e terminar o trabalho começado por Spartacus. - Ele apontou para a cabana
maior. - Vamos, é lá que encontraremos Brixus.
Ele guiou seus homens pelo vale. Lupus foi atrás, olhando de um lado para outro enquanto assimilava os detalhes do acampamento secreto dos rebeldes. Ao seu redor,
os paredões do vale pareciam impenetráveis. Pelo jeito não havia outra maneira de entrar, somente a passagem estreita pela qual tinham chegado. Um esconderijo perfeito,
refletiu ele. Não é de surpreender que os escravos conseguiam fugir dos exércitos romanos enviados para persegui-los. Talvez os romanos nem soubessem que um inimigo
tão poderoso estava se fortalecendo, preparando-se para atacar.
Lupus sentiu uma pontada de preocupação por Caesar e Marcus. Eles estavam achando que enfrentariam bandos dispersos de rebeldes maltrapilhos. Não faziam ideia do
que encontrariam quando marchassem montanhas adentro para lutar.
13
Janeiro estava acabando e o inverno cercava as montanhas, fazendo-as gelar. Tempestades cortantes atingiam os contrafortes e frequentemente soltavam granizo, golpeando
os homens de Caesar enquanto eles seguiam para a cidade de Módena, que serviria de base para a tropa. A cavalaria patrulhava mais para dentro das colinas, ao longo
da linha de marcha, tentando descobrir informações sobre a localização e a quantidade dos rebeldes. Ao voltarem, contavam sobre as intensas nevascas uivando pelas
passagens entre as montanhas e sobre a grossa camada de gelo que se formava nas estradas e caminhos através dos montes Apeninos. Mensageiros tinham sido enviados
na frente até as cidades ao longo da estrada, com ordens para que seus habitantes providenciassem comida e abrigo para a tropa de Caesar, enquanto mais mantimentos
eram estocados em Módena.
Marcus, cavalgando com a equipe do quartel-general, nunca tinha passado por condições como aquelas. Ele tivera o cuidado de escolher um manto feito recentemente,
com gordura animal e o mais impermeável possível. Ainda assim, a chuva fria, carregada por um vento gélido, logo penetrava nas roupas por baixo e encharcava sua
pele. Ele também pegara um par de luvas de couro, e estas igualmente não demoraram para sucumbir ao clima ruim enquanto o garoto seguia os outros cavaleiros atrás
do líder.
Caesar sentia o mesmo desconforto que seus homens, mas parecia não se incomodar com o frio. De vez em quando, deixava alguns de seus oficiais se aproximarem e conversava
com eles alegremente. Às vezes falavam sobre os assuntos de Roma, mas discutiam com mais frequência o futuro glorioso à espera deles na Gália depois que acabassem
com os rebeldes. Ele até havia reservado alguns instantes para Marcus, para conversar sobre a carreira dele na arena.
- Decidi que você deve lutar como retiarius - avisou Caesar enquanto cavalgavam em um breve período entre tempestades.
O céu estava límpido e claro e o vento tinha parado. Nuvens novas apareciam por cima das montanhas, esperando o momento de descerem pelos declives e cercar os homens
que marchavam pela estrada. Marcus tirara o capuz e estava aproveitando o calor do sol em sua pele e no cabelo molhado.
- Você tem um porte bom para lutar com rede - prosseguiu Caesar. - É magro e forte e se move com rapidez e graciosidade. Percebi isso quando lutou contra Ferax lá
em Roma. Claro, as coisas podem mudar. Alguns garotos que são magros quando mais novos terminam ganhando músculos depois. Se isso acontecer com você, vou repensar
a sua categoria. Um trácio ou até mesmo um samnita seriam mais adequados para alguém mais pesado. Mas vamos torcer para que você continue assim. Odiaria vê-lo se
arrastando pela arena quando deveria estar fazendo um belo espetáculo para a multidão com sua velocidade.
- Sim, senhor - respondeu Marcus, esforçando-se bastante para controlar o ataque de tremores que tomara conta de seu corpo. Ele estava com muito frio e cansado demais
para ficar chateado com as decisões de seu antigo senhor sobre seu destino. Além disso, sua mente estava focada no fato de que Decimus acompanhava o comboio de bagagens.
Marcus o avistara apenas algumas vezes desde a saída de Rimini e não conseguia deixar para trás a vontade de se vingar. Os longos dias de cavalgada fizeram o garoto
se lembrar de todas as outras coisas pelas quais tinha que se vingar além do sofrimento de sua própria família. Aristides, um escravo que era como um avô para Marcus,
também fora assassinado pelo agiota. Até mesmo Cerberus, o cachorro que Marcus havia resgatado de um vendedor cruel e treinado para ser seu fiel companheiro, tinha
sido golpeado até a morte pelos homens de Decimus durante o ataque à fazenda. Uma morte simples seria bondade demais, decidiu Marcus. Ele tem que sofrer, assim como
suas vítimas sofreram.
- Você não está prestando atenção, está? - perguntou Caesar.
De imediato, Marcus afastou todos os pensamentos a respeito de Decimus e tentou se lembrar das últimas palavras de Caesar. Marcus recordou-se vagamente de um comentário
sobre a fortuna que algum retiarius famoso fizera durante a ditadura de Sulla. O garoto pigarreou.
- Sim, senhor. Seria bom ganhar muito dinheiro.
Caesar lançou-lhe um olhar condescendente.
- Marcus, falei isso um tempo atrás, antes de eu começar a falar sobre seu treinamento. Você não está prestando atenção.
Marcus olhou para baixo.
- Desculpe, senhor. Estou cansado. Minha mente estava distraída.
- Distraída, é? Está pensando em Decimus de novo, não é?
Marcus pensou em negar, mas não queria arriscar ser pego na mentira mais uma vez, então fez sim com a cabeça.
- Não consigo parar de pensar nele. E no que ele fez com minha família e meus amigos. Desculpe, senhor, mas o fato de ele estar tão perto e eu não poder fazer nada
está me corroendo por dentro.
- Tudo tem seu tempo, Marcus. Lembre-se - alertou Caesar - de que você precisa da minha permissão para agir. Por enquanto é bom pra mim ficar com ele por perto,
mas não perto demais, se é que você me entende. Se Crassus o encarregou de me fazer algum mal, então Festus e meus guarda-costas, incluindo você, vão dificultar
a vida dele.
- Dificultar com certeza, senhor - respondeu Marcus. - Mas por que não torná-la impossível? Por que correr esse risco? Por que não simplesmente prender ele e seus
homens?
- Porque eles não representam nenhum risco para mim no presente. Se representassem, eu faria o que está dizendo. Mas por enquanto acho suficiente pedir para Festus
tomar conta deles. Se eles tentarem algo, nós vamos perceber, e eu terei provas da traição de Crassus. Será o suficiente para ter um pouco de poder sobre ele, pois
duvido que o Senado vá ter boa vontade com o conspirador da tentativa de assassinato de um procônsul. - Caesar sorriu sarcasticamente. - De todo modo, ainda não
estou convencido de que o plano dele é esse. Acho que Crassus enviou aquele homem simplesmente para me espionar, enviar relatos e ganhar uma pequena fortuna para
seu senhor no meio do processo. Isso sim seria típico de Crassus!
Marcus não tinha tanta certeza disso.
- Se está dizendo, senhor.
A expressão de Caesar ficou séria mais uma vez.
- Isto talvez complique a situação: se Decimus reconhecer você. Ele já deve saber que você trabalha na minha casa, pois aquele agente dele tentou me envenenar.
- Thermon.
Caesar concordou com a cabeça.
- Até agora Decimus não o viu aqui, então espero que ele presuma que você ainda está em Roma. Se ele descobrir, então ele vai saber que está correndo perigo.
- Perigo, senhor?
- Claro. Você é a única testemunha de quando ele assassinou seu pai e sequestrou você e sua mãe. Se ele for condenado por isso, vai ser exilado ou executado. O que
significa que seria perigoso para você se Decimus descobrir que você está aqui. Pense nisso e fique longe dele e de seus seguidores. É uma ordem.
- Sim, senhor.
Caesar olhou para Marcus astutamente.
- Sei que agora é um homem livre, mas você faz parte do meu exército nesta campanha e por isso está sujeito à disciplina militar. Uma ordem do seu general tem a
mesma força de uma ordem do seu senhor. Está claro?
- Sim, senhor. Perfeitamente.
Caesar balançou a cabeça com satisfação.
- Ótimo. Agora preciso de um tempo para pensar na campanha. - Ele acenou a mão para trás, onde os oficiais cavalgavam a uma pequena distância. Marcus curvou a cabeça
e puxou as rédeas para permitir que o procônsul se distanciasse. No entanto, não podia se preocupar com a advertência dele. Por mais que respeitasse Caesar, Marcus
tinha as próprias ambições, e elas estavam acima do dever de obedecer a um superior.
A tropa chegou a Módena no final do quarto dia após sair de Rimini. Os oficiais e soldados já tinham lugares para ficar na cidade, e os cavalos e mulas foram levados
para currais no mercado de animais e alimentados. Marcus continuou com Caesar até tarde da noite na vila de um magistrado local que tinha sido oferecida para o procônsul
e sua equipe. Quando Caesar chegou, havia vários relatos sobre o número cada vez maior de ataques feitos pelos rebeldes a propriedades e minas por todos os Apeninos.
Mais preocupante era a crescente ousadia e ambição das atividades dos rebeldes. Bandos armados agora atacavam a certa distância, do meio das montanhas, atingindo
alvos considerados seguros. Caesar ditou ordens para Marcus, pedindo que as cidades ao longo das montanhas aumentassem a vigilância e se preparassem para lidar com
ataques repentinos. Era tarde quando ele terminou e permitiu que Marcus voltasse para o lugar onde dormiria. Marcus tinha sido aquartelado em uma casa humilde de
um dos homens libertos do magistrado, não muito distante da vila e na mesma rua.
Ao se aproximar da porta da casa, espremida entre uma padaria e uma loja de vinhos, Marcus parou na rua, refletindo profundamente. Estava exausto. A tropa partiria
para as montanhas assim que amanhecesse. Caesar estava certo em dizer para Marcus descansar. Demoraria um bom tempo antes de ele ter a oportunidade de dormir em
uma cama confortável e seca mais uma vez. No entanto, o garoto não conseguia se livrar da necessidade de descobrir as intenções de Decimus. Caesar ordenara que Marcus
ficasse longe do homem, mas não dissera para evitar Festus. Marcus sorriu para si mesmo. Colocando o capuz na cabeça, passou direto pela porta da casa e foi para
o centro da cidade.
Módena era um centro comercial importante entre os domínios romanos e aqueles dos gauleses e de outras tribos do norte. Agora, com a expansão dos romanos na direção
dos Alpes, a cidade tinha se acalmado e passado a depender mais das fazendas e pequenas indústrias para gerar riqueza. Contudo, não havia como disfarçar o fato de
que o local estava em declínio. Marcus percebeu que algumas das casas pelas quais passava se encontravam malconservadas. A pintura de muitas estátuas públicas havia
sido negligenciada e estava descascando a ponto de deixar à mostra a pedra por baixo. Entretanto, o centro da cidade ainda se encontrava agitado e os sons de festa
enchiam o ar enquanto Marcus chegava ao fórum.
Todas as estalagens estavam cheias de soldados, e aqueles que não podiam entrar ficavam na rua, dividindo jarras de vinho e conversando com tom de voz alto e alegre,
ou se agachavam ao redor dos jogos de dados, apostando seja lá o que tivesse sobrado de seus pagamentos. Marcus imaginou que Decimus não estaria se divertindo na
companhia de soldados comuns. Era muito mais provável que ele estivesse bebendo com os oficiais, com homens que talvez tivesse conhecido socialmente durante visitas
a Roma - homens que um dia lhe poderiam ser úteis à medida que fossem ocupando cargos mais importantes no Senado.
Marcus parou do lado de fora da primeira estalagem pela qual passou e se aproximou de um pequeno grupo de soldados com capas que ainda pareciam quase novas.
- Com licença - disse ele, tirando o capuz da cabeça. - Fui enviado do quartel-general para encontrar um dos oficias de Caesar. Vocês sabem onde eles estão?
Um homem alto e corpulento com uma barba por fazer virou-se e, olhando para baixo, viu Marcus.
- Oficiais? Quem se importa com eles, hein? Bando de vadios convencidos.
- Ei! - exclamou um de seus companheiros. - Pare com isso, Publius. O garoto está apenas fazendo uma pergunta. - Ele afastou o amigo carrancudo para o lado e parou
na frente de Marcus com uma expressão de desculpas. - Ignore-o. Ele é apenas um resmungão.
- Com certeza! - interrompeu seu companheiro. - Por que não estamos descansando nos alojamentos de inverno? Não é certo a gente sair e lutar no meio do inverno.
Não vamos estar em boa forma quando a verdadeira campanha começar na primavera.
- Ah, cale-se! - disse seu camarada com irritação antes de se voltar para Marcus. - Então, o que você quer, garoto?
- Preciso encontrar os oficiais. Vocês os viram?
- Humm. - O soldado coçou o queixo. - É melhor tentar no Javali Contente. Perto do Templo de Júpiter. Supostamente essa é a estalagem mais rica. Acho que lá é mais
provável. - Ele olhou para Marcus mais atentamente. - Eu o conheço? Estou reconhecendo seu rosto.
Marcus balançou a cabeça.
- Acho que nunca nos vimos.
O homem franziu a testa e estalou os dedos.
- Sim! Foi em Roma. Eu estava de licença lá no ano passado. Vi você lutar contra aquele garoto celta. Você é Marcus Cornelius, não é?
Mais uma vez, Marcus balançou a cabeça. Já era possível que os rumores de sua luta com Quintus estivessem se espalhando pela tropa. Marcus estava decidido a fazer
com que Decimus não soubesse de sua presença pelo máximo de tempo possível. Seria melhor negar sua identidade por enquanto...
- Sou apenas um servo de Caesar - respondeu Marcus secamente. O soldado pareceu ficar desapontado e acenou com a mão dispensando-o.
- Pode ir então, garoto!
Marcus virou-se e seguiu na direção do fórum para ir até a estalagem mencionada pelo soldado. O dono do Javali Contente tinha colocado mesas e bancos fora da entrada,
e lá havia centuriões e optios das coortes de Caesar. Abrindo caminho no meio dos soldados, o garoto não pôde deixar de se perguntar em que estado eles se encontrariam
pela manhã, quando chegasse a hora de marchar para as montanhas.
Marcus escutou conversas animadas e aplausos vindos de dentro, e depois houve um breve intervalo antes de o barulho aumentar novamente. Ele se espremeu pela porta
e percebeu imediatamente que a estalagem era bem maior do que parecia de fora; era um único cômodo aberto com uns trinta metros de largura. Havia um balcão na lateral
onde um velho suado entregava jarras e copos para seus servos e anotava o que cada mesa consumia. O centro do cômodo tinha sido esvaziado, e um aglomerado de tribunos,
centuriões e civis cercava um jogo de dados. Marcus sabia que chamaria a atenção se tirasse o capuz da cabeça, então deu a volta no grupo até chegar a uma alcova
e ficou parado na sombra enquanto observava os homens ali.
Ele avistou Quintus rapidamente. O marido de Portia sorria como um tolo ao abrir o porta-moedas. No entanto, seu sorriso desapareceu ao tatear dentro dele e afastar
a mão com apenas algumas moedas de prata. O rapaz hesitou brevemente antes de se encurvar para fazer sua aposta. Então os olhos de Marcus fixaram-se em Festus, que
estava sentado do lado oposto do cômodo, observando os acontecimentos enquanto tomava sua bebida em um cálice de bronze. Marcus acompanhou a vista dele até um grupo
de homens sentado à mesa na frente de Festus. Ele avistou Decimus imediatamente devido ao bordado caro de seu manto. Havia um homem atarracado sentado ao lado dele
e mais três do outro lado da mesa, de costas para Marcus. Dois tinham cabelos curtos; o terceiro tinha a cabeça raspada, mas os pelos escuros de uma barba malcuidada
eriçavam-se nas duas bochechas - de frente, e pareceria um bárbaro.
Agora que estavam sob sua vista, Marcus ficou encarando Decimus por um tempo. Lembrava-se muito bem da expressão cruel no rosto dele quando o agiota contou a Marcus
e sua mãe o destino que teriam enquanto eles estavam na cela temporária do mercado de escravos na Grécia. Marcus foi para o outro lado do cômodo e aproximou-se de
Festus, posicionando-se de costas para Decimus e os outros.
As sobrancelhas de Festus ergueram-se de surpresa. Ele se inclinou por cima da mesa.
- O que está fazendo aqui? - resmungou ele.
- Caesar me dispensou pelo restante da noite. Achei que valia a pena dar uma olhada na cidade.
- Por Pollux! Acha que sou tolo, Marcus? Você veio espiar Decimus.
- Como eu ia saber que ele está aqui?
- Onde mais ele estaria em uma cidade tão precária quanto Módena? É melhor ir embora antes que ele o veja.
- Vou daqui a um instante. Mas primeiro quero que me diga o que ele tem feito. Caesar acha que ele não está aqui só por causa dos escravos.
Festus deu de ombros.
- Se isso for verdade, não aconteceu nenhum sinal suspeito. Ele fica perto dos seus homens ali e eles viajam no comboio. Nenhuma mensagem foi transmitida para eles,
e eles também não transmitiram nenhuma.
- Só isso?
- Foi só isso que vi.
- E nenhum sinal de Thermon?
- Não. Nenhum deles parece o homem que tentou matar Caesar. Veja você mesmo.
Com cautela, Marcus girou o corpo de leve e olhou de lado. De onde estava, conseguia enxergar a mesa lateralmente, e com a luz fraca dos candeeiros da estalagem
dava para ver os perfis dos companheiros de Decimus. Nenhum deles tinha o cabelo bem penteado e as feições bem cuidadas do perigoso capanga do agiota. Enquanto observava,
Marcus escutou mais um grito vindo dos homens jogando dados e olhou para lá. Viu o rosto de Quintus empalidecer; o jovem espremia o porta-moedas vazio com o punho
cerrado e se afastava do círculo de homens ainda assistindo ao jogo.
- É melhor ir embora - disse Festus. - Antes que o vejam.
Marcus assentiu com a cabeça e se levantou da mesa. Ele parou.
- Fique de olho em Decimus. Não dá para confiar nele. E ele é... maligno.
- Maligno? - Festus ergueu a sobrancelha e sorriu debilmente. - Bem, se ele tentar lançar um feitiço contra Caesar, eu com certeza aviso.
Marcus fulminou-o com os olhos, furioso por Festus estar tratando aquele assunto tão casualmente. Em seguida, ele se virou e foi na direção da saída da estalagem
lotada. Parou na porta para lançar um último olhar de ódio na direção de Decimus e congelou imediatamente. Quintus tinha se aproximado da mesa do agiota e estava
se encurvando enquanto se dirigia a Decimus com seriedade. A conversa foi breve, e não dava para confundir a expressão de súplica no rosto do tribuno. Decimus ficou
parado por um instante, como se estivesse pensando, e depois fez sim com a cabeça. Ele estendeu a mão e tirou um pesado porta-moedas debaixo do casaco, colocando-o
na mão de Quintus. O tribuno olhou ao redor nervosamente antes de escondê-lo debaixo do próprio manto. Rapidamente, ele fez sim com a cabeça para agradecer a Decimus
e voltou para o jogo de dados com pressa.
Marcus lembrou-se do comentário de Portia a respeito do vício do marido em jogos. Parecia um problema mais sério do que ela temia, e Marcus sentiu uma pontada de
pena pela amiga. O casamento dela era uma união infeliz. A garota fora obrigada a aceitá-lo por motivos políticos e agora estava condenada a ser esposa de um vagabundo
cujo único talento aparente era a capacidade de perder em jogos de dados. Marcus ficou aflito por um instante. Se Quintus continuasse assim, Portia só ficaria mais
infeliz. Já era ruim o fato de ele não ter sorte, mas o azar se agravava devido à falta de bom senso do rapaz.
Apenas um homem muito desesperado ou tolo pegaria dinheiro emprestado de alguém como Decimus. Marcus tinha aprendido essa lição muito bem. Foi algo que custou a
vida de Titus e tudo o que ele possuía. Agora Decimus havia encontrado uma nova vítima, e era impossível saber onde aquilo ia terminar.
14
Lupus recebera ordens de ficar em uma barraca simples perto da parte central do acampamento rebelde. A cada dia, ele sentia mais medo. Apesar de Mandracus ter tratado
o garoto bem e da promessa de que nunca mais seria um escravo, Lupus achava que estava sendo tratado como prisioneiro. Da porta de seu abrigo, dava para enxergar
a maior cabana do acampamento - a que pertencia a Brixus, descobrira o garoto. Ela havia sido construída com rochas mal lapidadas, usando uma mistura de lama e esterco
entre elas para impermeabilizar a superfície. Havia um telhado de palha sobre as paredes e era tudo bem diferente das elegantes vilas dos aristocratas romanos, mas
naquelas circunstâncias a cabana era considerada grandiosa. Uma dúzia de homens armados com lanças e escudos cuidava da proteção do acampamento, e um deles tinha
recebido ordens para vigiar Lupus.
Certo fim de tarde, ele foi convocado pelo líder rebelde e ficou esperando no exterior da cabana de Brixus até receber permissão para entrar. O brilho rosado do
sol descia por trás do contorno das montanhas, e o vale mergulhava nas sombras enquanto a luz fraca ficava com um tom azulado. Ao redor de Lupus, os rebeldes faziam
suas fogueiras, mas nenhum deles tentava acendê-las. Eles ficavam agachados a espera da luz do sol ir embora.
Lupus começou a tremer e após um instante falou com o homem que o escoltava:
- Por que eles nunca acendem fogueiras durante o dia?
O homem olhou para o céu.
- Por causa da fumaça. Se acendermos uma fogueira, há o risco de que a fumaça seja vista e de que alguém fique curioso e venha ver o que é. Então as fogueiras só
são acesas depois que escurece. São ordens bem rigorosas de Brixus. Quem desobedecer será castigado em público.
- Ah... - Apesar de Mandracus ter tranquilizado o garoto de que ninguém lhe faria mal, Lupus tinha medo das pessoas ao seu redor. O líder do grupo parecia ser um
homem que, apesar de ter proclamado a liberdade das pessoas, mandava em seus seguidores com uma disciplina feroz. O ar frio da montanha penetrava o manto e a túnica
de Lupus, e ele bateu os pés no chão, sentindo as pernas ficarem dormentes. Começou a pensar em Marcus e nos outros e que provavelmente estariam passando a noite
em alguma casa confortável em Rimini. Enquanto pensava no amigo, Lupus sentiu uma pontada de aflição. Marcus não estaria com tanto medo quanto ele, ou pelo menos
não demonstraria. Ele era forte e corajoso, e Lupus sabia que teria lidado com aquela situação bem melhor se Marcus estivesse ao seu lado. Mas ele não estava. Nem
Festus nem Caesar. Lupus estava sozinho e com a certeza de que seu amigo achava que ele estava morto, enterrado debaixo da avalanche. Por um instante, Lupus sentiu
lágrimas nos olhos por estar com pena de si, mas as enxugou rapidamente e ficou com raiva por estar sendo tão fraco. Marcus nunca se permitiria sentir tanto medo
assim, pensou. Ele precisava ser mais como o amigo. Não demonstrar medo e conquistar o respeito dos homens que o tinham capturado.
Após um tempo, com as estrelas aparecendo no céu frio, Mandracus saiu da cabana e deu uma olhada ao redor antes de mover a cabeça para um dos guardas perto do ponto
de uma fogueira.
- Já está escuro o suficiente. Pode acender a fogueira. - Ele olhou rapidamente para Lupus e voltou para dentro.
Imediatamente, o guarda pegou uma caixa com material inflamável na bolsa pendurada em seu ombro e se ajoelhou ao lado dos gravetos agrupados em formato de cone.
Musgo seco e palha preenchiam o pequeno espaço na base da fogueira. O homem se encurvou em cima da caixa, e Lupus escutou o barulho de pedras batendo enquanto pequenas
centelhas caíam no linho chamuscado dentro da caixa. Um pequeno brilho iluminava o rosto do homem, que assoprava delicadamente, protegendo a pequena chama para que
ela se espalhasse pelo linho. Em seguida, ele acrescentou algumas pitadas de musgo seco e colocou o conteúdo da caixa nos gravetos na base do fogo. Logo as chamas
alaranjadas e famintas se espalharam, crepitando. Uma por uma, as outras fogueiras foram acesas, pontilhando a escuridão do vale com brilhos rosados que iluminavam
as pequenas silhuetas próximas ansiosas para se aquecer.
- Posso ir até lá? - Lupus apontou a cabeça para uma fogueira onde havia alguns guardas com lanças nos ombros, estendendo as mãos na direção do fogo.
O guarda lançou um olhar desejoso na direção da fogueira.
- Mandaram eu ficar aqui com você até segunda ordem... mas acho que isso não faria mal. Vamos. Mas não tente fazer nada. Vou ficar de olho em você, garoto.
- Tentar? - Lupus riu amargamente. - E para onde eu fugiria? O vale só tem uma saída, e ela está bastante protegida.
O guarda encarou-o.
- Mesmo assim. Nada de gracinhas. Entendeu?
Lupus assentiu com a cabeça, e o homem apontou a lança para a fogueira. Eles atravessaram o acampamento e se juntaram aos outros guardas. Um deles pegou um odre
de vinho e o passou para os demais. O homem responsável por Lupus tomou um gole e abaixou o odre, suspirando contente.
- Ah! Isso aqueceu o meu coração. Aqui, garoto. Tome um pouco.
Ele estendeu o odre para Lupus. O garoto hesitou por um instante, mas o pegou, acenando com a cabeça para agradecer. Após tirar a tampa, ele cheirou o líquido e
não pôde deixar de enrugar o nariz ao sentir o odor ácido e forte. Os homens riram da reação dele, e Lupus se obrigou a controlar a expressão do rosto. Após se preparar,
ele pôs o gargalo na boca e levantou a pele do odre enquanto inclinava a cabeça para trás. Nada desceu por um instante e depois um jato de vinho escorreu para dentro
de sua boca, com um gosto forte que fez sua língua arder. Ele abaixou o odre e cuspiu, e os guardas ao redor da fogueira riram.
- Forte, não é? - disse o guarda. - Até para aqueles que não estão acostumados com os vinhos dos lares mais ricos de Roma. - Ele apontou para o manto de Lupus, liso,
bem costurado. - Está claro que você nunca teve que trabalhar no campo. Você é um escravo doméstico. Com certeza cresceu comendo as deliciosas sobras da mesa do
seu senhor. Nunca trabalhou de verdade, não é?
Lupus corou raivosamente, mas não se atreveu a responder.
- Foi o que achei. - O guarda fez sim com a cabeça. - Bem, agora você não é melhor do que ninguém. Todos nós somos iguais aqui, garoto. E você vai lutar ao nosso
lado quando chegar a hora.
Lupus engoliu em seco.
- E se eu me recusar a lutar?
- É melhor não fazer isso. - O guarda passou o dedo na frente da garganta dele. - Ou você está do nosso lado ou é nosso inimigo. Qual dos dois vai ser?
Lupus sentiu o pavor perfurar seu coração. Ele viu os outros homens observando-o atentamente, muitos com cicatrizes no rosto, desgastados pelos anos de sofrimento
e lutas.
- E então? - insistiu o homem. - Está do nosso lado?
Lupus hesitou e estava prestes a responder quando um homem surgiu no meio da escuridão e se juntou ao grupo na fogueira.
- O que é isso? Estão provocando o novo recruta? - Mandracus riu enquanto parava ao lado de Lupus e sorria para ele. - Ignore-os, garoto. Eles só estão querendo
se divertir.
Lupus ergueu a sobrancelha.
- Se divertir?
Mandracus pôs a mão no ombro dele e afastou Lupus do fogo.
- Enfim, Brixus quer se encontrar com você. Agora.
Eles foram até a entrada da grande cabana. O batente acima da entrada obrigou Mandracus a se abaixar enquanto afastava a cortina de couro para o lado e acenava para
Lupus passar. O interior tinha cerca de 25 metros de largura, e uma fogueira no centro provia iluminação suficiente para alcançar as paredes e a estrutura de madeira
que sustentava o teto. Uma mulher de túnica velha estava usando uma pequena faca para cortar pedaços de carne da carcaça de um bode, fazendo cubinhos antes de jogá-los
no caldeirão cheio de vapor suspenso em uma estrutura de ferro acima da fogueira. Atrás da fogueira, havia uma enorme mesa com bancos ao redor. Na ponta dela, um
homem sentado em uma grande cadeira de madeira observava o recém-chegado.
- Lupus, não é?
- Sim, amo - respondeu Lupus instintivamente. Apesar da escuridão dentro da cabana, o garoto percebeu a rápida expressão de irritação que surgiu no rosto do homem.
- Aqui não existem amos, Lupus - disse o homem calmamente. - Nem amos nem escravos. Entendeu?
Ele fez sim com a cabeça.
- Então se aproxime. Sente-se à mesa.
Lupus caminhou pela terra batida e se sentou no banco mais próximo, que ficava na extremidade da mesa. Mandracus sentou-se no banco da frente. Depois de se acomodarem,
o outro homem inclinou-se para a frente e encarou Lupus.
- Sou Brixus, general do exército rebelde.
O cabelo de Brixus era escuro e encaracolado. Uma cicatriz esbranquiçada e enrugada estendia-se de sua testa até a bochecha como uma linha. Seus olhos eram fundos,
tinha grossas sobrancelhas e a pele enrugada por causa da idade. No entanto, tinha ombros largos e braços musculosos. Lupus pensou que Brixus devia ter sido um lutador
formidável em sua época. Ele irradiava uma aura de valentia e implacabilidade, até mesmo de crueldade.
- Não precisa ter medo de mim. - Brixus sorriu, deixando à mostra os buracos entre os dentes. - Estamos do mesmo lado. Você vai se juntar à luta para acabar com
a escravidão. Mandracus e seus homens o libertaram de seu senhor, mas você só será verdadeiramente livre quando Roma for humilhada e obrigada a aceitar nossas condições.
Isso você precisa saber. Nós estamos envolvidos em uma luta que vai até a morte. Ou nós venceremos Roma ou seremos destruídos. Entendeu?
Lupus assentiu e analisou a situação, então compreendeu o desafio aparentemente impossível que Brixus e seus seguidores enfrentariam. Sentiu o pulso acelerar ao
se preparar para responder, sem se atrever a antagonizar os dois homens.
- Acha mesmo que é capaz de derrotar Roma?
- Por que não seríamos? - Brixus deu de ombros. - Chegamos perto da última vez, sob a liderança de Spartacus. Mas no momento da vitória estávamos divididos. Alguns
queriam usar a nossa vantagem para escapar e voltar para casa, outros queriam ficar com Spartacus, continuar a guerra e humilhar Roma. Aconteceram discussões amarguradas,
e nosso exército se dividiu em dois. E, divididos, nós não estávamos mais no mesmo nível das legiões e fomos derrotados um de cada vez. - Brixus balançou a cabeça
com tristeza e depois se recostou na cadeira antes de prosseguir: - Não vai ser assim dessa vez. Não vai ter nenhuma divisão. Nenhum debate. Não vou permitir. Juntos,
nós vamos vencer Roma e suas legiões.
Lupus mordeu o lábio antes de responder:
- Como vocês vão vencê-los? Aqui vocês têm um exército de milhares. Mas para cada homem aqui, Roma tem dez ou mais legionários. Vocês são bem menos numerosos.
Brixus gesticulou para a cabana ao redor.
- Acha que é só isso que Roma vai enfrentar? Esse é apenas o maior acampamento dos rebeldes. Existem muitos outros, todos aguardando o sinal para me seguirem e lutarem.
Quando chegar o momento, nós estaremos prontos para as legiões.
- Qual vai ser o sinal? - perguntou Lupus.
Mandracus abriu a boca para responder, mas Brixus pigarreou para ele não falar nada e chamou a mulher que mexia o caldeirão.
- Traga uma tigela para cada um de nós e vá embora.
- Sim, amo - respondeu ela, já pegando tigelas e colheres de prata em um pequeno baú ao lado da lareira. Ela usou um bastão de ferro para erguer o caldeirão e o
colocar no chão. Após servir uma colherada quente de ensopado em cada tigela, ela as carregou apressadamente até eles e as deixou na mesa antes de sair da tenda.
- Achei que aqui não houvesse nenhum escravo - disse Lupus cuidadosamente. - E ela?
Brixus riu.
- Aquela mulher é esposa de um lanista romano, jovem Lupus. Ou era, até nós atacarmos a escola dele. Matamos o homem e seus funcionários para libertar os gladiadores
e escravos trabalhando na casa deles. Pelo que tudo indica, ela tratava seus escravos como animais. E agora está aprendendo uma lição. - Ele sorriu friamente. -
É bom ver os romanos provando o próprio veneno, não é? Agora, você deve estar com frio e com fome, menino. Então coma.
Lupus pegou a colher e a encheu antes de assoprar o ensopado quente. O aroma delicioso subindo da tigela fez o garoto perceber o quanto estava esfomeado, ele tomou
a colherada avidamente, apreciando o sabor forte e quente. Enquanto comia, sua mente não parava de trabalhar. Qual informação ele teria que ajudaria Brixus?
Comeram em silêncio até Brixus terminar e afastar a tigela estalando os lábios, satisfeito. Ele bateu o punho contra o peito, soltou um arroto e sorriu ao se recostar
e olhar para Lupus.
- Mandracus me disse que você pertence... desculpe... pertencia a Julius Caesar.
Lupus terminou de mastigar um pedaço de carne apressadamente e engoliu enquanto abaixava a colher.
- Isso. Eu era escriba dele - disse ele com orgulho.
- Um escriba? - Brixus ergueu as sobrancelhas apreciativamente. - Então você deve ser um garoto bem inteligente. Inteligente o suficiente para que Caesar confiasse
em você, pelo menos um pouco. Ou talvez inteligente o suficiente para escutar coisas por acaso, coisas que não devia escutar.
Lupus sentiu seu orgulho transformar-se rapidamente em nervosismo.
- Eu-eu não sei do que está falando.
- Claro que sabe. Você não é nenhum tolo. Além disso, já sei que Caesar foi enviado pelo Senado para me encontrar e me destruir junto com meus seguidores. Tenho
espiões em Roma. Eles comparecem às reuniões públicas do Senado e enviam relatos com regularidade. Então sei por que o seu antigo senhor estava a caminho de Rimini.
Ele quer usar o exército de lá para acabar conosco antes de focar nos gauleses e tem toda a intenção de escravizar o máximo de pessoas possível, obtendo uma vasta
fortuna como resultado. Preciso saber é do plano dele. Você precisa me contar.
- Mas eu não sei nada dos planos dele - protestou Lupus. - Caesar não passa esse tipo de informação para qualquer um. Tudo o que faço é escrever o que ele pede.
- Mas você está presente quando ele participa de reuniões com seus aliados e defensores.
- Às vezes - admitiu Lupus. - Quando ele quer que anotações sejam feitas.
- E ele nunca discutiu seus planos para lidar com a gente?
- Na minha frente não. - Lupus viu o olhar cruel do homem e não pôde deixar de estremecer. - Juro que estou contando a verdade.
- Há maneiras de descobrir se está contando a verdade...
- Mas estou contando sim. Por que eu mentiria? Você me libertou.
- Sim. Mas alguns escravos ficam mais à vontade sendo propriedade de outros homens do que controlando o próprio destino. É possível que você sinta a mesma coisa
que essas criaturas deploráveis, jovem Lupus.
- Eu quero ser livre. Quero muito.
Brixus encarou-o por um instante e olhou para Mandracus.
- O que acha?
- Ele está dizendo que quer ser livre. Eu acredito nele. Mas ele ainda está se acostumando a essa ideia. - Mandracus fez uma pausa. - Além do mais, Caesar não é
de compartilhar o que pensa. Nós sabemos disso. Então talvez o garoto esteja dizendo a verdade.
Brixus coçou o queixo pensativamente.
- Tudo bem. Então vamos ter que pedir para nossos patrulheiros ficarem de olho em Caesar e seu exército. - Ele parou e entrelaçou os dedos. - Ainda temos outro assunto
para discutir.
Lupus viu Mandracus assentir com a cabeça, e uma nova onda de ansiedade espalhou-se por suas entranhas. Que outro assunto? Então ele se lembrou do comentário feito
por Brixus, a razão de o líder dos rebeldes ter pedido para a esposa do lanista sair da cabana.
- Você mencionou um sinal. Você disse que certo sinal uniria os bandos de rebeldes e faria eles se rebelarem contra Roma.
- Exatamente. - Brixus abriu um pequeno sorriso. - Garoto esperto. Se é para termos alguma chance contra Roma, precisamos de um símbolo. Alguém que inspire os corações
de todos os escravos. Alguém que eles sigam até os confins da terra.
Lupus engoliu em seco nervosamente.
- Você?
Brixus balançou a cabeça.
- Não. Não um gladiador velho e sem graça como eu. Eu talvez até comande aqueles que moram nesse vale e mais alguns outros bandos de rebeldes e bandidos escondidos
pelas montanhas. Mas meu nome e minha reputação não são suficientes. Precisamos de um nome mais famoso. Mais do que um nome, precisamos de uma lenda. Alguém como
Aquiles, ou Hércules, alguém que inspire as pessoas.
- Entendo. - Lupus pressionou os lábios. - Está falando de Spartacus?
Brixus fez sim com a cabeça.
- Então é uma pena ele não estar vivo.
- Mais do que uma pena, Lupus. Foi uma tragédia. Se tivesse conhecido o homem, você entenderia. Ele era um lutador excelente, isso é verdade. Mas ele era mais do
que isso. Bem mais. Ele era amigo de todos que o conheciam. Ele compreendia o sofrimento deles, os desejos deles, e sentia o mesmo ódio pela escravidão que eles
sentiam.
- Você o conheceu? - Lupus inclinou-se para a frente. - Você conhecia Spartacus?
Brixus sorriu e apontou a cabeça para o outro homem.
- Nós dois o conhecemos. Nós lutamos ao lado dele. Fazíamos parte do pequeno bando de companheiros que formou a guarda pessoal dele desde o início da rebelião. Ficamos
com ele quase até o fim.
- Vocês participaram da batalha final?
- Eu estava lá, mas fui ferido e não pude lutar. Fiquei vendo do comboio de bagagens. Foi lá que fui capturado. Mandracus tinha recebido ordens para procurar mantimentos
e não esteve na batalha. Quando ouviu falar que tínhamos sido derrotados, ele levou seus homens para dentro das montanhas, para se esconder, e encontrou esse vale.
- Fiquei no comando até Brixus chegar - acrescentou Mandracus. - Brixus já tinha sido meu líder antes e eu devolvi o comando para ele com alegria. Juntos, temos
construído um novo exército de escravos foragidos, armando-os e treinando-os para podermos recomeçar a rebelião quando chegar o momento certo. E esse momento chegou,
apesar de Caesar ter nos obrigado a fazer isso mais cedo do que queríamos. É por isso que precisamos do símbolo de que falamos. Ele vai ser o sinal. É ele que vai
fazer os escravos lutarem pela bandeira dele.
Brixus e Mandracus trocaram um rápido olhar antes de Brixus prosseguir:
- O filho de Spartacus.
Apesar de Lupus ter ouvido aquele boato em Roma, não achava que alguém faria a tolice de iniciar uma rebelião com base em tal ideia. No entanto, ele tomou cuidado
para não demonstrar seus verdadeiros pensamentos na frente dos dois homens.
- Então onde está ele? - perguntou Lupus. - Quem é? - Ele ainda estava confuso com o próprio papel naquela discussão.
- Antes que eu conte, Lupus, você precisa saber de alguns detalhes. Só assim você vai acreditar quando eu contar o nome dele. Conheci um garoto em uma escola de
gladiadores em Cápua há menos de dois anos. Ele achava que era filho de um oficial aposentado do exército romano e da escrava comprada pelo oficial e libertada para
que os dois se casassem. Mas a mulher havia sido esposa de Spartacus e estava grávida do filho dele quando foi levada pelo oficial. Depois do nascimento, ela assinalou
a criança com a marca secreta de Spartacus, aquela que apenas ele e as pessoas mais próximas dele tinham. Uma marca como esta.
Brixus levantou-se e puxou o manto e a túnica do braço, deixando à mostra o músculo de seu ombro. No topo do ombro havia uma cicatriz, uma marca com o formato de
uma cabeça de lobo perfurada por uma espada de gladiador. Brixus deixou o garoto observá-la por um instante, cobriu-a de volta e se sentou.
- Mandracus tem a mesma marca, e o ferro quente utilizado foi guardado pela esposa de Spartacus. Foi com esse instrumento que ela fez a marca em seu filho.
Lupus fez uma careta ao imaginar uma mãe marcando o próprio bebê.
- Por que ela faria uma coisa dessa?
Brixus contraiu os lábios.
- Imagino que foi porque ela amava Spartacus e tudo o que ele representava, então queria que um dia o filho desse continuidade ao trabalho do pai. A marca a lembraria
disso e provaria a identidade do filho para os seguidores de Spartacus.
Lupus franziu a testa. De repente, percebeu que já tinha visto aquela marca recentemente.
- Eu conheço essa marca! Eu já a vi com meus próprios olhos.
- Se os relatos são verdadeiros, então imagino que deva ter visto sim. - Brixus sorriu. - E agora que já expliquei sobre o garoto que carrega a marca, você saberá
quem ele é.
Lupus ficou um pouco tonto quando a revelação o acertou como um golpe de martelo. Ele soltou um suspiro de espanto e sussurrou:
- Marcus...
- Sim. Marcus. Sei que ele está com Caesar. Precisamos encontrá-lo e trazê-lo até nós para que ele cumpra seu destino. Depois que estivermos com ele, o mundo verá
uma revolta diferente de todas as outras. O sangue romano vai escorrer como um rio, e os escravos serão livres.
Houve uma rajada repentina de vento frio ao entrar um homem alto na cabana, afastando a cortina de couro. Com o brilho inconstante das chamas, dava para ver que
o homem estava com o peito ofegante, e suas botas, calça e manto tinham manchas de lama. Ele atravessou a cabana e curvou a cabeça para cumprimentar Brixus.
- O que foi, Commius? - perguntou Brixus. - Você só devia retornar dos ataques no fim do mês.
- Eu sei, mas tenho notícias de Caesar e seu exército.
Mandracus inclinou-se para a frente com uma expressão animada.
- Desembuche!
Commius assentiu com a cabeça e inspirou profunda e calmamente antes de prosseguir:
- Nós incendiamos uma vila perto de Módena e estávamos seguindo viagem quando vimos uma enorme tropa de soldados se aproximando pela estrada, vindo de Rimini. Nós
os seguimos até a cidade e capturamos um prisioneiro naquela noite, perto dos portões, e o levamos para nosso acampamento. Não demorou para ele contar tudo. Caesar
deixou a maior parte dos homens nos quartéis de inverno. Ele levou no máximo dez mil homens para nos enfrentar.
- Dez mil. - Mandracus chiou entre os dentes. - Ainda assim é gente demais para enfrentarmos.
- Espere - interveio Commius. - Ele dividiu a força em duas. Caesar e mais cinco mil homens estão em Módena. Eles estão marchando para as montanhas agora, nos procurando.
- Cinco mil? - Brixus coçou o queixo pensativamente. - Pelos deuses, que oportunidade é essa que ele nos deu! Arrogância típica desse povo. Ele acha que não passamos
de uma ralé pronta para ser massacrada por uma pequena força de legionários condecorados. Bem, nós vamos castigá-lo por ter cometido esse erro, Mandracus. Está na
hora de colocar o nosso plano em ação. Vamos deixar Caesar marchar para dentro da nossa armadilha. Daqui a alguns dias, teremos Marcus nos liderando e nos levando
para a batalha, e Caesar será destruído e preso. Ou, melhor ainda, será morto.
15
- Eles fizeram um trabalho bem meticuloso - disse Festus baixinho enquanto empurrava o toco enegrecido de um poste de madeira. Ele deu um passo para trás, pôs as
mãos nos quadris e examinou a cena ao redor enquanto Marcus descia do cavalo e prendia as rédeas no aro de ferro que sobrara do portão principal da vila. O garoto
se juntou a Festus. Diante deles havia os resquícios das construções e jardins do que costumava ser uma enorme casa de campo de um romano rico. Agora não havia quase
nada da altura de um homem - apenas pilhas de materiais de alvenaria e telhas e pedaços de madeira chamuscados. Ainda havia fumaça subindo no ar, juntando-se à neblina
que cobria o sol. Soldados abriam caminho no meio dos restos, procurando sinais de sobreviventes ou objetos valiosos que pudessem ser salvos das ruínas. Marcus inspirou
e enrugou o nariz ao sentir o fedor acre de queimado.
- Não estou vendo nenhum corpo - murmurou ele.
- Ainda não. Mas encontraremos alguns - respondeu Festus sombriamente. - Eles devem ter chegado de surpresa, libertado todos os escravos, pegado tudo de valor que
desse para carregar e então incendiaram tudo. O administrador da vila e os guardas devem estar mortos. Os corpos deles vão estar em algum lugar naquela parte. Não
que tenha sobrado muito deles depois do incêndio.
Houve um instante de silêncio antes de Marcus falar novamente:
- Estamos a uns quinze quilômetros de Módena. Os rebeldes que fizeram isso estavam se arriscando bastante ao se distanciar tanto das montanhas.
- Ou então eles estão ficando mais confiantes. Se for mesmo isso, Caesar devia se preocupar. Pelo jeito Brixus e seus homens não estão mais com medo das guarnições
locais. Se o plano de Caesar fracassar, apenas as cidades maiores terão proteção suficiente contra esses ataques.
Marcus olhou para os restos do portão atrás de si. Caesar estava fazendo um relato verbal do ataque para um de seus oficiais antes de enviá-lo para Roma. Ele demoraria
vários dias para chegar à capital, onde um senador seria informado sobre a destruição de sua propriedade. No entanto, haveria também outras consequências. O incêndio
da vila daria aos inimigos de Caesar mais uma desculpa para atacá-lo no Senado. Marcus já conseguia imaginar a cena, com Cato levantando-se para condenar Caesar.
Se Caesar não era capaz de lidar com uma gangue de escravos rebeldes, que chance ele teria de dominar os gauleses na fronteira norte do Império? Era melhor chamar
o general incompetente de volta e enviar um substituto mais adequado, argumentaria Cato. Enquanto isso, Crassus ficaria sentado com seu jeito convencido e desfrutaria
os danos causados à reputação de seu rival.
- O que acha que ele vai fazer agora? - perguntou Marcus. - Pedir para enviarem mais homens?
- Não. Ele vai se ater ao plano. Isso não muda nada. Se ele chamar reforços, vai ser o mesmo que admitir que cometeu um erro. Você sabe como ele é. Ele só vai admitir
um erro se não houver opção.
Ouviu-se o bater de cascos, e Marcus virou-se para avistar o oficial galopando para a junção onde a Via Flamínia se dividia na direção de Roma.
Caesar levou a mão em concha para perto da boca e chamou:
- Atenção, tropa! Nós vamos partir!
Marcus soltou o cavalo e subiu na sela novamente. Ele esperou Festus, e os dois cavalgaram juntos até a estrada que passava pelo portão. Atrás deles, os centuriões
e optios gritavam para que os homens abandonassem a busca e se juntassem à tropa. Imediatamente, todos os homens voltaram para suas posições. Caesar acenou o braço
para a frente, e a cavalaria guiou o grupo pela estrada acima pelos sopés dos Apeninos. Um esquadrão da cavalaria distanciou-se um pouco à frente para inspecionar
e proteger contra emboscadas. Atrás deles estava o general, seus oficiais e guarda-costas, e depois a infantaria, caminhando penosamente de quatro em quatro e carregando
as cangas em cima do tecido acolchoado que cobria seus ombros. Depois da infantaria vinha o pequeno comboio de bagagens, carregando suprimentos de grãos para alguns
dias e as barracas dos soldados, que ofereceriam um pouco mais de proteção contra as temperaturas gélidas das montanhas. Junto deles sacolejava o comboio de Decimus,
ele próprio cavalgando ao lado. No fim da tropa estava a coorte de legionários que servia como retaguarda.
Enquanto a tropa saía dos restos chamuscados da vila, a sensação de mau presságio de Marcus aumentou. Ele começara a duvidar da sensatez do plano de Caesar. Sabendo
pouco a respeito do poder do inimigo, não fazia sentido começar com uma força modesta e depois dividi-la.
A verdade sobre a identidade de seu pai também era outro assunto que o perturbava. Parecia haver uma pequena voz o incentivando o tempo inteiro a aceitar o desafio
de viver de forma a honrar o seu pai, Spartacus. A mesma voz o lembrava constantemente dos males da escravidão e do dever de todos que sabiam dessa injustiça: o
dever de se revoltar e enfrentar os escravizadores. Ou seja, lutar contra o próprio Império Romano e aqueles que o serviam. Especialmente contra homens como Caesar.
No entanto, Marcus sabia que a luta não era tão simples assim. Ele se lembrou das histórias que Titus lhe contava quando era pequeno. Titus lutara contra os gauleses,
párticos e outros bárbaros, e as descrições vívidas das atrocidades que eles cometiam congelavam o sangue de Marcus. Aquilo também o convencera de que havia povos
piores que o romano. Precisava existir um meio-termo entre as tradições de Roma e aqueles que queriam acabar com a escravidão. Seriam apenas esperanças vãs de um
jovem? Mas lá estava ele, cavalgando ao lado de homens marchando para encontrar e matar quem era contra a escravidão. Parte de Marcus achava que ele estava do lado
errado. Que devia se arriscar e fugir para se juntar a Brixus e seus homens. Depois se lembrou de sua mãe. A melhor chance de ela sobreviver dependia de Caesar ajudar
Marcus a encontrá-la e libertá-la. Com uma sensação pesada no coração, Marcus percebeu que estava encurralado. Precisava ficar ao lado de Caesar e servir ao general
romano até sua mãe ficar em segurança. Depois, finalmente decidiria o próprio futuro.
A tropa seguiu na direção das montanhas, e a estrada transformou-se em um caminho estreito com florestas de pinheiros dos dois lados, cercado por névoas e nuvens.
O céu cinza escurecia constantemente, e chovia com frequência. Marcus encurvou-se em sua sela e ficou imaginando que estava sentado na frente de uma lareira na casa
de Portia em Rimini, após a campanha terminar. Lá, com Festus e Caesar, ele contaria para Portia suas experiências e talvez ela lançasse um olhar secreto para ele.
Tão rápido quanto o pensamento surgiu, Marcus o afastou da cabeça. Ele não podia nem se permitir pensar em Portia daquela maneira. Ela nunca poderia ser mais do
que sua amiga, e mesmo assim apenas em segredo, às escondidas daqueles que ficariam horrorizados com a ideia de uma amizade entre os dois.
A chuva deu lugar à neve e ao granizo, e a tropa passou pelos restos de mais algumas outras pequenas vilas atacadas pelos rebeldes. Apenas as ruínas restavam, e
Marcus sentiu sua raiva dos homens ao seu redor crescer. Quando chegasse a hora de lutar, eles não teriam nenhuma misericórdia.
No fim do primeiro dia, a tropa chegou a uma cidadezinha no topo de um despenhadeiro acima de um rio. Enquanto os homens armavam suas barracas no terreno aberto
fora dos muros da cidade, Caesar e seu grupo encontraram acomodações na casa de um criador de mulas abastado. Com um jeito abatido, Publius Flavius contou a seus
hóspedes sobre os constantes ataques às fazendas e vilas na região. Um pastor tinha levado seu rebanho para a cidade no dia anterior, alegando ter visto um grupo
de rebeldes - cerca de cem deles, a pé - indo para uma vila em um vale a menos de quinze quilômetros de distância. Caesar ordenou que Marcus anotasse os detalhes
enquanto o escutava pacientemente. Em seguida, ele assegurou Flavius de que a ameaça logo deixaria de existir.
Na manhã seguinte, a temperatura diminuiu e a neve começou a cair, cobrindo as telhas dos tetos da cidade e espalhando-se pelo caminho que daria mais no interior
das montanhas. Caesar inspecionou a passagem com uma expressão de frustração antes de se virar e dar ordens para seus seguidores mais próximos:
- Vamos seguir em frente com a cavalaria. O restante da tropa pode fazer o máximo que puder para nos acompanhar. Quero alcançar os escravos que o pastor avistou.
Se os capturarmos, eles poderão nos dar informações úteis sobre Brixus. Com um pouco de sorte, eles talvez até saibam onde ele está.
Festus estufou as bochechas e limpou a garganta.
- Acha isso sensato, amo?
- Sensato? - perguntou Caesar com a voz neutra, mas Marcus viu um brilho perigoso em seus olhos, o prelúdio de um de seus ataques de raiva. - Por que não seria sensato,
Festus?
- Amo, isso significaria dividir ainda mais a força.
- Meus homens a cavalo são mais do que o suficiente para enfrentar uma centena de rebeldes. Além disso, a infantaria e os comboios estão impedindo um progresso mais
rápido. Se ficarmos juntos, o inimigo vai escapar. Não vou deixar isso acontecer. Estou decidido. Dê as ordens para os comandantes das coortes. Assim que estiver
pronta, a cavalaria vai partir.
Festus curvou a cabeça.
- Sim, amo.
Enquanto o líder da guarda pessoal de Caesar afastava-se para dar as ordens, Caesar encontrou o olhar de Marcus.
- Começou a perseguição, não é, Marcus?
Marcus fez sim com a cabeça, apesar das dúvidas. Ele concordava com Festus. Caesar estava fazendo algo arriscado. No entanto, ficava claro que ele não mudaria de
ideia.
- Se Fortuna nos beneficiar - prosseguiu Caesar, esfregando as mãos para aquecê-las -, nós descobriremos onde Brixus está se escondendo antes do fim do dia. Pense
nisso. Encontraremos e destruiremos Brixus e sua laia, e isso vai quebrar o moral de seus seguidores. Os escravos vão aprender uma lição: ninguém desafia Roma. Depois
eu vou ficar livre para me concentrar na Gália.
- Sim, amo. E eu poderei procurar minha mãe.
Caesar lançou um olhar irritado para o garoto.
- Claro. Achou que eu tinha esquecido?
Marcus não se atreveu a responder, pois já tinha dado a mensagem que queria. Caesar virou-se e chamou um criado, pedindo que ele trouxesse seu cavalo.
* * *
A neve continuou a cair durante a manhã enquanto os cavaleiros seguiam pela trilha, muitas vezes em fila única para melhor atravessar os desvios no caminho. Dos
dois lados, os galhos dos pinheiros estavam pesados e o barulho dos cascos dos cavalos era abafado por eles. Então, ao meio-dia, logo após a neve parar de cair,
a trilha começou a descer para dentro de um vale, e o grupo escutou um grito de um dos homens inspecionando a área adiante. Marcus e os outros olharam para cima,
esperando ver algo. Um cavaleiro voltava cavalgando pela estrada. Ele puxou as rédeas abruptamente e a neve se espalhou no ar quando ele estendeu o braço.
- Tem um incêndio mais à frente, senhor!
- Um incêndio? - Caesar agarrou suas rédeas com firmeza. - Então talvez nós os encontramos! Vamos!
Ele incitou o cavalo a avançar e o resto da tropa acompanhou-o. Os cavalos retumbaram pela trilha, soltando vapor pelas narinas dilatadas. A mente de Marcus esqueceu-se
completamente do frio, e o garoto forçou o cavalo a acompanhar Caesar e Festus. O restante da guarda pessoal e dos oficiais galopava mais atrás, seguidos da cavalaria.
Mais à frente, os outros soldados aguardavam em uma pequena colina com uma boa vista do vale. À medida que se aproximavam do pico, Marcus percebeu que havia árvores
dos dois lados, com um terreno aberto logo atrás, abrigado entre as montanhas. Cercas velhas indicavam que a terra tinha sido usada como pasto havia muitos anos.
Um riacho serpenteava pelo vale e desembocava em uma lagoa, e, logo depois, ao lado de um moinho, havia várias construções que faziam parte de uma fazenda, cercadas
por uma paliçada de madeira. Chamas elevavam-se das janelas na construção maior e uma fumaça negra subia no meio do ar parado de inverno. Marcus conseguia ver o
movimento de silhuetas contra a neve: eram pessoas carregando os espólios, empilhando-os em vários carrinhos de mão e em uma carroça atrelada a mulas bem perto da
vila.
Marcus galopou colina abaixo em direção à estrada plana e se aproximou da fazenda, a menos de um quilômetro de distância. O vento rugia em seus ouvidos, e seu coração
estava disparado de entusiasmo. Bem na sua frente, os cavalos de Festus e Caesar chutavam a neve, fazendo com que fosse difícil enxergar mais adiante. Ele impulsionou
seu cavalo para a frente, levando-o para o lado, e então avistou pessoas se movimentando a distância ao perceberem o ataque dos cavaleiros.
- Não deixem eles escaparem! - gritou Caesar. - Quero prisioneiros!
Mais à frente, os homens que tinham atacado a vila corriam pelo terreno aberto para se protegerem na segurança da floresta, abandonando o que tinham saqueado. Mesmo
enquanto eles corriam pelos campos cobertos de neve, Marcus percebeu que a maioria escaparia muito antes de a cavalaria romana alcançá-los. Uma vez escondidos nas
profundezas da floresta, onde a neve não tinha penetrado, não haveria nenhuma pegada para se seguir e eles escapariam. Marcus ficou aliviado com aquilo.
O último rebelde já tinha desaparecido quando Caesar puxou as rédeas ferozmente para que o cavalo parasse na parte externa da vila. Atrás dele, o restante de seus
homens o alcançava, e o ar encheu-se com bufadas de cavalos e tinir de freios.
- Decurião! - Caesar apontou na direção do primeiro oficial que chegou. - Leve seu esquadrão e vá atrás deles. A pé, se for necessário.
- Sim, senhor! - O decurião fez uma saudação e gritou para seus homens o seguirem e galopou na direção da floresta que se estendia pela beirada do vale. Caesar virou-se
rapidamente para olhar a vila, desmontou do cavalo e entregou as rédeas para um dos guarda-costas. Festus e Marcus fizeram o mesmo e se juntaram a ele no interior
da propriedade.
O fogo tinha se espalhado pela construção principal, e as chamas já subiam pelos ares entre as telhas do teto. Uma grande parte do telhado cedeu e caiu no fogo,
causando uma explosão de centelhas que subiu bem alto no ar. Uma das construções adjacentes já tinha sido atingida pelo fogo se alastrando.
Caesar ergueu o braço para proteger o rosto do calor.
- Procurem sobreviventes! Vou procurar deste lado da vila. Festus, leve Marcus e procurem do outro lado!
Festus levou Marcus para a lateral da construção, onde havia um barracão cujas portas duplas estavam abertas. Festus lançava-se para a frente e Marcus tentava acompanhá-lo.
Ao chegarem à extremidade do barracão, um homem magro de cabelos grisalhos apareceu. Ele brandia uma clava em um braço e segurava um pequeno baú debaixo do outro.
Com uma velocidade impressionante, ele ergueu a clava e golpeou a cabeça de Festus. O golpe enviesado fez Festus cair na neve aos pés dele, gemendo. Imediatamente,
o homem ergueu a clava mais uma vez, pronto para atingir a cabeça dele.
- Não! - gritou Marcus, lançando-se para a frente. Ele agarrou o punho ossudo do homem e os dois cambalearam para trás, caindo na terra dentro do barracão. O impacto
deixou o homem sem ar, mas Marcus levantou-se e ficou pronto para atacar antes que o homem se erguesse. Marcus chutou um lado do corpo dele e deu um murro na parte
de trás de sua cabeça. Erguendo a mão para se proteger, o homem soltou a clava, Marcus a pegou e logo depois deu um golpe rápido e intenso em seus ombros. Com um
gemido estrondoso, o homem foi derrubado. Marcus parou ao lado dele, segurando firme a clava. Após ter certeza de que o homem não tinha mais forças para lutar, agachou-se
ao lado de Festus e balançou o ombro dele.
- Você está bem?
- Estou vendo tudo em dobro e parece que caiu uma casa em cima da minha cabeça - grunhiu Festus. - Qual a próxima pergunta imbecil?
Marcus sorriu e virou-se para o outro homem. Magro e forte, o rebelde parecia ter no mínimo 50 anos. Marcus olhou para ele desconfiado.
- Fique parado aí no chão.
O rebelde continuou deitado onde tinha caído, ofegante e respirando com dificuldade. Lentamente, Festus levantou-se com dificuldade e se inclinou para a frente,
apoiando as mãos nos joelhos enquanto se recuperava. Marcus virou-se ao escutar o barulho de passos na neve e viu o sorriso sombrio de Caesar, que parecia satisfeito
ao se aproximar do rebelde.
- Você pegou um deles. Muito bem! - Caesar parou ao lado do homem e ficou encarando-o. - Parece que esse aqui está nas últimas. Se isso é o melhor que Brixus tem
para oferecer, então nem precisamos nos preocupar. A batalha, quando acontecer, já está praticamente vencida.
Marcus prestou atenção no manto esfarrapado do rebelde e em suas botas se despedaçando. Sujeira cobria sua pele, e ele respirava com dificuldade enquanto continuava
deitado. Se Festus não tivesse sido pego de surpresa, ele teria acabado com aquele homem em um instante. Por que Brixus ao menos pensaria em mandar um homem naquelas
condições para um ataque? Não fazia sentido.
- E se isso não for o melhor, senhor? - perguntou ele. - Os outros que estavam aqui saíram correndo bem rapidamente.
Caesar acenou desdenhosamente.
- Não importa. Temos esse aqui para interrogar. Festus, leve-o para trás do barracão e o interrogue. Quero saber onde Brixus está se escondendo e quantos homens
ele tem.
Festus endireitou a postura e aproximou-se do rebelde. Ele deu um puxão no homem frágil, fazendo-o se levantar. Em seguida, sacando a adaga, ele o arrastou até dar
a volta no barracão e os dois sumirem. Quando o restante dos oficiais de Caesar chegou, os primeiros gritos de terror e dor espalharam-se pelo ar, sendo apenas um
pouco abafados pelo rugido das chamas que consumiam a construção principal a alguns metros de distância. O tribuno Quintus apontou a cabeça na direção do muro da
vila, atrás da construção em chamas.
- Um dos decuriões encontrou corpos ali, senhor. Pelo jeito eram o dono da vila e sua família e os supervisores da propriedade. Cortaram as gargantas deles.
Marcus viu a expressão abalada no rosto do tribuno enquanto Caesar virava-se para ele.
- É uma pena.
Quintus fez sim com a cabeça e hesitou por um instante antes de falar novamente:
- Devo ordenar um funeral ou um enterro, senhor?
- Não temos tempo para isso. Depois que Festus conseguir as informações de que preciso, nós vamos embora.
- E se o rebelde não disser nada, amo? - perguntou Marcus. - E se ele não souber nada útil?
- Alguma coisa ele vai saber. E confie em mim, ele vai falar. Festus nunca me desapontou com essas coisas.
Antes que Marcus pudesse responder, o grupo escutou um berro lancinante atrás do barracão, e depois outro, seguido por um balbuciar apavorado de súplica antes de
um novo grito provocar um calafrio e atravessar as costas de Marcus.
Enquanto a tortura continuava, Caesar mandou alguns homens procurarem comida e vinho pela propriedade. Ao voltarem com alguns bancos, ele e seus oficiais se sentaram
e devoraram a refeição improvisada. Enquanto Caesar tentava deixar o clima mais leve, falando sobre a campanha na Gália, Marcus ficou parado a uma pequena distância,
com uma sensação de repugnância cada vez maior. Não conseguia ignorar os gritos do rebelde. No fim das contas, terminou se afastando, ficando perto da construção
incendiada cujas chamas eram tão barulhentas que quase abafavam os sons da tortura.
Após um tempo, o rebelde ficou em silêncio, e um instante depois Festus apareceu, limpando o sangue da adaga com um pedaço de pano rasgado do manto do rebelde. Ao
vê-lo, Marcus afastou-se do incêndio para se juntar novamente a Caesar e seus oficiais.
- E então? - instou Caesar. - O que conseguiu arrancar do desgraçado?
- Ele não sabia, ou não queria dizer, onde fica o acampamento de Brixus, senhor. Ele fazia parte de um bando separado que recebeu ordens de Brixus para saquear esta
vila.
- Droga! Somente isso?
- Não, senhor. - Festus guardou a adaga. - Tem mais. Depois desse ataque, Polonius e os outros vão se juntar a Brixus em uma reunião de todos os bandos dele. Eles
vão se juntar para atacar a cidade de Sion, no final do próximo vale. Brixus e dois mil de seus homens atacarão amanhã, ao amanhecer.
Um sorriso frio surgiu nos lábios de Caesar.
- Qual a distância até a cidade?
Um dos tribunos tossiu.
- Não mais que quinze quilômetros, senhor.
Caesar virou-se para o oficial.
- E como você sabe disso?
- Tenho um tio que mora lá, senhor. Já visitei Sion várias vezes.
- Excelente. Como é o terreno ao redor da cidade?
O tribuno pensou.
- Ela fica no fim de um vale, com montanhas em três lados e um rio na frente da cidade. Se Brixus quer atacar ao amanhecer, ele provavelmente vai se esconder nas
árvores ao lado do rio, de frente para a cidade.
- Estão nas nossas mãos! - Caesar esmurrou a palma da mão. - Basta agirmos imediatamente. Não dá para derrotá-los somente com a cavalaria. Precisamos da infantaria.
Eles precisam marchar durante a noite se queremos encurralar Brixus contra o rio. - Ele se virou para Quintus. - Vá a cavalo até a tropa. Deixe uma coorte protegendo
o comboio de bagagens. O restante deve deixar as coisas e marchar para Sion. Vou aguardá-los a alguns quilômetros da cidade. Após a infantaria chegar, nós atacaremos
Brixus e sua laia no acampamento deles. Tudo acabará antes mesmo de o dia começar.
- Está falando em atacar enquanto estiver escuro, senhor? - perguntou Quintus.
- É a melhor maneira de surpreender o inimigo - respondeu Caesar rispidamente. - Está questionando minhas ordens?
- Claro que não, senhor. Mas será que uma coorte é o suficiente para proteger o comboio de bagagens?
- Proteger o comboio do quê? Você escutou Festus. Os rebeldes estão na nossa frente.
- Sim, senhor. - Quintus fez uma pausa. - Mas é que todos os nossos mantimentos, as tendas e a bagagem do resto da tropa estão no comboio de bagagens. Se alguma
coisa acontecer com o comboio, os homens ficarão sem comida e sem abrigo.
- O comboio de bagagens com certeza vai nos alcançar antes do fim do dia - respondeu Caesar. - Já me decidi. Vá dar as ordens.
Uma dúvida incômoda surgiu na mente de Marcus. Havia algo de errado naquilo. Era tudo fácil demais. Ele deu um passo para a frente, no meio dos oficiais, para que
Caesar o visse nitidamente.
- Senhor, o tribuno tem razão. Seria perigoso deixar o comboio de bagagens correndo risco. Além disso, por que Brixus se deixaria cair em uma armadilha?
- Ele não sabe da armadilha - disparou Caesar. - Além disso, ele não passa de um escravo. Um bandido. Ele só quer saber de saque e vingança. Ele ficou confiante
demais. O sucesso o deixou arrogante e agora ele vai pagar o preço por isso.
- Mas, senhor...
- Já basta, Marcus! Você não passa de um garoto. Segure sua língua. Está se atrevendo a desafiar a minha decisão?
- O garoto tem razão, senhor - interrompeu Quintus. - Não podemos arriscar deixar nossos homens sem comida e abrigo caso alguma emergência aconteça com o comboio
de bagagens.
A expressão de Caesar endureceu.
- Já que está tão preocupado com isso, tribuno, você irá assumir o comando das bagagens. Não vai ter lugar para você na batalha amanhã. Não vai compartilhar a nossa
vitória. Não quero homens que temem pela própria segurança ao meu lado em uma luta. - Ele olhou para Marcus. - Nem garotos que partilham do mesmo medo. Vocês dois
vão voltar para a tropa imediatamente. E, após transmitirem as minhas ordens, fiquem lá.
Quintus abriu a boca para protestar, mas desistiu e curvou a cabeça antes de se voltar para os cavalos segurados por um dos cavaleiros. Marcus continuou parado,
consumido pela vergonha de ter sido acusado de covardia por Caesar.
- O que está esperando, garoto? - Caesar acenou. - Saia da minha frente.
Marcus assentiu com a cabeça, pressionando os lábios. Ele olhou de relance para Festus, que deu de ombros sutilmente, e virou-se para atravessar a neve e alcançar
Quintus, seu coração afogado em pressentimentos ruins.
16
Com uma expressão de ansiedade, o tribuno Quintus ficou observando a retaguarda da tropa de infantaria marchando na escuridão. Ao seu redor, os homens da tropa pegavam
as cangas dos camaradas e as colocavam nas carroças e nos carrinhos de suprimentos. Até a carroça de Decimus estava a serviço da tropa, e os homens dele grunhiam
ao ajudar os legionários. Marcus pusera o capuz na cabeça no instante em que se juntou ao comboio de bagagens e fazia o possível para ficar longe de Decimus enquanto
seguia o tribuno.
Quintus era cinco ou seis anos mais velho. As bochechas dele tinham apenas um fraco indício de barba a fazer e era igual aos jovens que se viam nas ruas de Roma.
No entanto, o rapaz estava no comando de quinhentos soldados e dos duzentos arreeiros do comboio de bagagens. Marcus observava Quintus, que roía a unha do dedão.
Outra rajada de neve soprava dos picos das montanhas. Com impressionante rapidez, os flocos rodopiantes cercaram a tropa que partia, enchendo o ar com um gemido
pesaroso e um frágil silvo enquanto o vento perturbava os topos dos abetos do outro lado da trilha.
- Você tinha razão em alertá-lo - disse Marcus baixinho.
Quintus virou-se para ele e franziu a testa.
- Não preciso que um ex-escravo me diga isso.
Marcus controlou sua raiva.
- Peço desculpas se você acha que não cabe a mim falar disso. Só achei que devia saber.
Quintus fulminou-o com o olhar por um instante.
- Quem em Hades você acha que é? Você não passa de um garoto. Sei que treinou como gladiador e até ganhou uma ou duas lutas, mas isso não o torna especialista em
nada. Por que Caesar sempre está com você por perto vai além da minha compreensão.
- Não estou perto dele agora - salientou Marcus.
- Mas ainda assim ele prestou atenção em você, e ele tem estima por você. Assim como a sobrinha dele. Daria até para pensar que você é o irmão mais novo de Portia
pela maneira como ela fala de você - disse ele amargamente.
Marcus franziu a testa. Então ela falava sobre ele. Até mesmo para o homem que se tornou seu marido. Ele sentiu um calor no coração. Um calor e a esperança por algo
impossível. Em seguida, afastou o pensamento da mente.
- Senhor, quanto mais cedo seguirmos a tropa principal, melhor.
- Eu sei! - reclamou Quintus e puxou as rédeas bruscamente ao virar o cavalo, trotando pela trilha para gritar com os homens: - Carreguem as bagagens nas carroças!
Centuriões! Mandem seus homens se apressarem. Quero que os comboios partam o mais rápido possível!
Marcus observou-o por um instante, depois olhou para o céu. Flocos grossos de neve desciam em espiral, caindo das nuvens escuras e acinzentadas. Não havia sinal
de que a neve pararia. A trilha pela qual a tropa marchava já estava coberta com camadas novas, e Marcus percebeu que a probabilidade de eles alcançarem Caesar e
a tropa principal no dia seguinte era pequena.
Assim que os homens entraram em formação, dois centuriões marcharam para a frente das carroças, com mais dois na retaguarda. O restante dos legionários estava ao
lado dos veículos, pronto para limpar a neve da trilha ou para encostar os ombros nas rodas e empurrar carrinhos e carroças para a frente. Quintus estava a cavalo
na frente da formação, com o centurião sênior da coorte ao seu lado. Marcus ficou um pouco atrás para não atrapalhar o tribuno. Não queria contrariar ainda mais
o marido de Portia.
Pela estimativa de Marcus, o comboio de bagagens levou duas horas para chegar à colina de onde a vila tinha sido avistada no dia anterior. Agora a tempestade de
neve bloqueava a vista e era impossível distinguir as construções. A água na beira do lago estava congelada e a neve que cobria o gelo deixava visível apenas o centro
do lago.
À medida que se aproximavam da vila, um brilho fraco atravessou a neve caindo e deixou à mostra algumas das construções que ainda pegavam fogo. Um pouco mais à frente,
Marcus viu a silhueta escura do moinho perto do rio e depois a paliçada de madeira que cercava a vila, com os contornos bem definidos das estacas afiadas contra
as luzes do fogo do lado de dentro.
- Nós devemos parar aqui um instante para os homens e as mulas descansarem - aconselhou o centurião que marchava ao lado de Quintus. - O caminho está difícil, e
eles estão cansados.
- Se pararmos agora, eles não vão querer continuar - refletiu Quintus. - É melhor prosseguirmos.
- Se fizermos isso, senhor, corremos o risco de perder homens e animais no caminho. E quaisquer soldados que deixarmos para trás não vão sobreviver ao frio da noite
sem abrigo.
- Problema deles. Recebi ordens para levar as bagagens até a tropa principal o mais rápido possível.
O centurião soltou um suspiro de frustração e estava prestes a falar novamente quando Marcus escutou um ruído sutil à esquerda, saindo do meio das árvores. Parecia
uma voz. Ele colocou o capuz para trás, a fim de ouvir melhor, e inclinou a cabeça para o lado e se concentrou.
- Vocês escutaram isso? - interrompeu-os Marcus.
- O quê? - Quintus virou-se para ele, com o vento fazendo a crista do seu capacete esvoaçar. - Escutamos o quê?
- Silêncio! - exclamou Marcus. - Escutem! É o barulho de novo.
Eles escutaram mais um grito no meio das árvores, abafado e impossível de se distinguir, mas definitivamente era uma voz.
- Pode ser um animal selvagem - sugeriu o centurião. - Com o vento, é fácil confundir o barulho deles.
Marcus balançou a cabeça.
- Tem alguém lá, tenho certeza.
Quintus riu.
- Está deixando sua imaginação falar mais alto, garoto. Devia ter ficado na casa de Caesar em Roma, lá que é o seu lugar.
Antes que Marcus pudesse responder, o som de uma corneta cortou o gemido do vento. Três soadas distintas, uma pausa e mais soadas. Ao longo da trilha, homens e veículos
pararam bruscamente. Os soldados viraram-se com os rostos ansiosos na direção dos sons.
- O que foi isso? - perguntou Quintus.
A corneta soou uma terceira vez e gritos surgiram no meio da floresta. Marcus ficou encarando as sombras entre as árvores a menos de trezentos metros. Os gritos
foram ficando mais altos, e ele avistou movimento. Uma primeira silhueta apareceu para se lançar pelo campo nevado, aproximando-se da trilha.
- Emboscada! - exclamou o centurião, virando-se para seus homens e colocando a mão encurvada em volta da boca. - Formar uma linha à esquerda!
Quintus fitava boquiaberto os homens que se aproximavam, e então fechou a mandíbula ao sacar a espada. Olhando nos olhos de Marcus, ele acenou com a cabeça sombriamente.
- Pelo jeito nós tínhamos razão quanto ao perigo disso.
- Talvez - respondeu Marcus por entre os dentes cerrados. - Mas não podemos fazer mais nada.
Ele estendeu a mão até o cabo da espada e a tirou da cintura com um ruído áspero.
- Fique por perto! - ordenou Quintus. - Se você é metade do gladiador que dizem, quero você do meu lado.
O tribuno girou o cavalo e o fez retornar a galope pela trilha, passando pelos homens das duas primeiras centúrias, que, com as cangas soltas, conferiam as alças
da armadura apressadamente antes de erguer os escudos para formar uma linha voltada para os agressores. Inclinando-se para a frente na sela, Marcus olhou para a
direita e viu que a vastidão branca na frente da floresta estava cheia de homens. Milhares avançavam com a neve à altura de seus tornozelos.
Quintus puxou as rédeas ao alcançar as carroças, gritando para que os legionários se afastassem e o deixassem passar. Alguns dos arreeiros já tinham desertado de
suas posições e corriam na direção do abrigo da paliçada, enquanto outros disparavam cegamente na direção do rio. A água agitava-se entre as margens, e Marcus sabia
que qualquer um que tentasse atravessar a corrente seria levado. Eles não tinham como escapar da armadilha. Precisavam se juntar e se manter firmes o quanto pudessem.
Quintus assumiu sua posição ao lado da bandeira da coorte, perto da carroça onde Decimus e seus homens aguardavam com as espadas em punho, e Marcus fez seu cavalo
acompanhar o tribuno. Ele ficou encarando a onda de homens que se aproximava rapidamente, com as bocas abertas soltando um rugido triunfante ensurdecedor. A maioria
estava bem preparada, com escudos, capacetes e armas roubadas de fazendas, vilas e pequenas cidades que tinham atacado. Bem diferentes da aparência desgastada de
Polonius, o rebelde torturado por Festus.
Naquele instante, Marcus compreendeu tudo. A armadilha inteligente que Brixus preparara para Caesar aproveitava o desprezo que o romano sentia pelos escravos rebeldes
e seu desejo de acabar logo a campanha. Polonius tinha servido para enganá-los, fora deixado para trás de propósito para ser capturado e dar informações que fizessem
Caesar se separar de seu comboio de bagagens. Isso lhe custou a vida, e Marcus não pôde deixar de ficar impressionado com a coragem do homem que assumiu tal papel,
sacrificando-se para seus camaradas terem uma vitória sobre os romanos. Ele ficou imaginando se alguém do exército de Caesar teria uma coragem tão grande assim.
Em seguida, o tempo para pensar acabou: o inimigo os tinha alcançado.
Na frente do grupo, homens com atiradeiras e arcos pararam para lançar seus projéteis antes de atacar. Marcus virou-se ao escutar um estalo e viu um dos legionários
cair, com o rosto completamente ensanguentado. Ele despencou na neve e se debateu por um momento antes de perder a consciência. Mais flechas e objetos colidiram
com os escudos ovais e pesados erguidos pelos legionários. Mulas soltavam zurros estridentes, caindo vítimas do bombardeio, e parte do grupo que as guiava entrou
em pânico e arrastou os veículos para longe. Marcus viu um grupo desviar-se para o lado, abrindo caminho por entre os legionários. Um homem foi derrubado e teve
as pernas esmagadas quando a carroça passou por cima delas. A equipe com as mulas passou a trotar, correndo pelo campo nevado para perto das fileiras de rebeldes.
- Preparem as lanças! - berrou o centurião sênior.
A distância entre os dois lados tinha diminuído e não passava de cinquenta metros. Enquanto aguardavam a ordem do centurião, os legionários ergueram as lanças e
puxaram os braços para trás. Marcus viu o centurião estreitar os olhos, calculando o melhor momento, com a espada apontada para cima. Reluzindo, a lâmina desceu
e ele berrou com a voz mais alta possível:
- Arremessar!
Os cabos escuros das lanças fizeram um arco, cruzando os flocos de neve antes de atingir os homens que se aproximavam da linha romana. Marcus viu vários caírem,
perfurados pelas pontas agudas de ferro. No entanto, os agressores não cederam e foram para cima do muro de escudos da coorte. Os ouvidos de Marcus encheram-se com
os sons de escudos colidindo e arranhando e de lâminas se chocando, além dos grunhidos de homens em batalha. Aquilo era diferente de todas as lutas que já tinha
visto. Pior do que os tumultos das gangues de rua que testemunhara no Fórum em Roma. E mais assustador do que os confrontos de gladiadores dos quais tinha sido obrigado
a participar. As lutas eram um teste de habilidades, com apenas um oponente com quem se duelava até a morte. O que estava acontecendo agora parecia um caos sangrento
de golpes, cortes e esfaqueamentos ao longo da linha de batalha malfeita.
Ao seu lado, o tribuno Quintus ergueu a espada e gritou palavras de incentivo para os homens sob seu comando:
- Fiquem firmes! Empurrem a ralé de escravos para trás!
Então, bem na frente dos dois cavalos, um rebelde de barba preta e selvagem atravessou a linha romana. Com um machado na mão e um broquel na outra, soltou um rugido.
Ele avistou o tribuno romano e investiu, brandindo o machado por cima da cabeça e mirando a lâmina pesada na direção de Quintus. Instintivamente, Marcus puxou com
força as rédeas para que seu cavalo batesse no rebelde e o derrubasse. O machado desceu, passando bem perto da bota do tribuno antes de cair na neve compactada no
chão. Quintus girou na sela e brandiu a espada para baixo, enfiando-a entre os ombros do rebelde. O homem soltou um berro de dor e caiu de cara no chão enquanto
o sangue se espalhava na neve ao redor.
Quintus olhou para Marcus e acenou com a cabeça para agradecer antes de retornar à luta.
Já dava para perceber que os rebeldes eram mais numerosos. As duas extremidades da linha romana estavam sendo forçadas para trás enquanto os legionários tentavam
não ser flanqueados. No entanto, Marcus percebeu que aquilo era inevitável. Um grito intenso ao seu lado fez o garoto perceber um novo perigo, e, ao virar a cabeça,
viu um homem esguio vestindo uma couraça de gladiador correndo em sua direção com uma lança entre as mãos, mirando a ponta bem no seu peito. Ele teve pouco tempo
para reagir e lançou o peso para trás na sela no mesmo instante em que jogou a espada para a frente, atingindo a lança de madeira um pouco abaixo da ponta de ferro.
Ele não teve força suficiente para impedir o golpe e apenas desviou a ponta para o pescoço de seu cavalo. Ela perfurou a pele e a carne, e a ponta ensanguentada
saiu rapidamente do outro lado. O cavalo relinchou apavorado e empinou, arrancando a lança das mãos do rebelde. Marcus segurou as rédeas na mão esquerda com o máximo
de firmeza possível, mas ele já estava se inclinando para trás e sentiu as pernas deslizarem para longe da sela.
Com um grito, ele caiu e soltou as rédeas antes de atingir o chão, o impacto tirando todo o ar de seus pulmões. Ele não tinha tempo de se recuperar, o cavalo se
inclinava e coiceava, jogando neve no rosto de Marcus. Ele rolou para perto do rio e se levantou, ofegante. Dos dois lados, os legionários estavam sendo empurrados
para trás, passando pela linha de carroças e mulas em pânico.
- Protejam o estandarte! - gritou Quintus. Ele virou o cavalo na direção da coroa dourada com fundo vermelho que estava erguida no centro da linha romana, que se
desintegrava. Naquele instante, o cavalo tropeçou e Quintus jogou a perna por cima da sela desesperadamente, saltando para o chão enquanto o cavalo caía para o lado
com a pata quebrada se agitando.
Marcus correu para o lado dele.
- Você está bem, senhor?
Quintus fez sim com a cabeça.
- Temos que salvar o estandarte. Fique comigo.
Eles se juntaram ao pequeno grupo de legionários cercando o estandarte e perceberam que o centurião sênior estava entre eles, lutando contra os rebeldes e gritando
para seus homens entre os golpes que desferia.
- Entrem em formação embaixo do estandarte! Perto de mim!
Alguns conseguiram obedecer à ordem e se aproximaram dos companheiros. No centro, Quintus analisou a luta:
- Estamos perdendo.
Marcus deu uma olhada para a luta que acontecia atrás do círculo de homens à sua volta e viu que o centro da linha tinha se rompido. Alguns legionários jogaram as
armas para o lado e estavam correndo para longe, perseguidos pelos rebeldes, que não demonstravam misericórdia alguma. Dos dois lados, as centúrias formavam nós
desesperados enquanto lutavam até morrerem. Os homens que protegiam o estandarte foram obrigados a ceder lentamente enquanto eram empurrados para longe da trilha,
na direção do pequeno lago.
O centurião abriu caminho até chegar a Quintus.
- Senhor, não podemos deixar o estandarte cair nas mãos do inimigo.
Quintus ficou olhando para trás, pálido, e Marcus percebeu que seus lábios estavam tremendo.
O oficial veterano respirou fundo e falou com o máximo de calma possível:
- Nós perdemos a luta, senhor, mas podemos salvar nossa honra. Não podemos deixar que o estandarte seja tomado. Se alcançarmos o lago, podemos jogá-lo nas profundezas
da água.
Quintus piscou os olhos e assentiu com a cabeça.
- Sim. É o que devemos fazer.
O veterano virou-se e chamou os homens ao seu redor:
- Vamos recuar na direção do lago. Eu dito o ritmo. Um... Dois...
O pequeno grupo afastou-se dos rebeldes. Marcus não parava de escutar o barulho das armas batendo em seus escudos e também via os homens sendo empurrados para trás
pelas espadas curtas das legiões. De vez em quando, uma arma inimiga abria caminho entre os escudos e um legionário soltava um grito ao ser ferido. Alguns continuavam
lutando, mesmo com o sangue escorrendo e caindo na neve revolvida no chão. Outros cambaleavam para trás e caíam, feridos demais para se manterem em formação, e Marcus
via a expressão nos rostos deles ao puxarem o escudo para perto do corpo e agarrar a espada. Ele admirava a determinação deles de lutar até o fim enquanto os companheiros
eram obrigados a deixá-los para trás e tentar chegar até o lago.
Marcus olhou em volta e viu que havia menos de trinta homens protegendo o estandarte. De repente, escutou-se um grito de algum lugar próximo:
- Deixe a gente passar! Deixe a gente passar!
Ele reconheceu facilmente a voz. Um instante depois, Decimus e alguns de seus homens, ofegantes e com espadas ensanguentadas, cambalearam por entre os escudos e
pararam ao lado de Quintus, Marcus e o porta-estandarte. Atrás deles, os soldados se aproximavam rapidamente enquanto os rebeldes continuavam a atacá-los. Era impossível
passar pela barreira de escudos e pontas mortais das espadas dos legionários, e a maioria dos rebeldes se afastava, procurando uma presa mais fácil.
- Estamos quase na beirada do lago - avisou o centurião, esticando o pescoço para olhar por cima dos capacetes de seus camaradas. - Vamos nos manter firmes o máximo
possível enquanto eu me livro do estandarte.
Decimus virou-se para o oficial.
- E depois? Para onde vamos?
- Para onde vamos? - O centurião sorriu sombriamente. - Direto para o Hades.
- O seu plano é esse? - Decimus riu. - Eu não. Eu vou dar o fora daqui. Vou sair nadando.
- Em que água? Você vai congelar antes de chegar ao outro lado. Sua escolha é entre se afogar como um rato ou morrer como um homem, com uma espada na mão.
Decimus balançou a cabeça e correu o olhar pela pequena formação ao seu redor.
- Você está louco.
Então ele avistou Marcus pela primeira vez e o ficou encarando com uma expressão de confusão antes de arregalar os olhos.
- Eu o conheço! Você... você é o fedelho do filho de Titus.
Por um instante, Marcus se esqueceu da batalha ao seu redor. Esqueceu-se da iminência de sua própria morte nas mãos dos rebeldes. Tudo o que viu foi o rosto do homem
que o atormentara e a sua mãe enquanto estavam no curral de escravos, esperando o momento de serem leiloados. Com um grunhido feroz, ele ergueu a espada e a apontou
descontroladamente na direção de Decimus.
- Cuidado, rapaz! - protestou o centurião, enfiando o escudo entre Marcus e Decimus. A lâmina colidiu de maneira inofensiva contra a beirada da armadura. - Ele é
um dos nossos, seu tolo! - retrucou ele. - Olhe o que faz com essa lâmina!
Marcus soltou um grito de frustração ao ver Decimus se afastando, com dois de seus homens bloqueando o caminho de Marcus.
O centurião empurrou Marcus na direção de Quintus.
- Controle esse menino esquentado aí. Ele é mais perigoso para nós do que para os rebeldes.
No entanto, o momento passou e um desespero doloroso tomou conta do coração de Marcus. Se ele e Decimus morressem ali, tudo estaria perdido. Ele morreria sabendo
que sua mãe estava condenada à escravidão, trabalhando até a morte na fazenda de Decimus na Grécia. Ele também morreria sem ter vingado Titus e os outros que foram
assassinados pelos capangas de Decimus.
Ele escutou um estalo e em seguida um palavrão quando as botas de um dos legionários atravessou o gelo.
- Mantenham suas posições! - ordenou o centurião. - É aqui que vamos ficar.
Enquanto seus homens continuavam virados para fora da barreira, o centurião abaixou o escudo até a neve e estendeu o braço para pegar o estandarte. Rangendo os dentes,
ele golpeou o mastro com a espada, cortando a madeira lisa até que ela ficasse frágil o suficiente para ser quebrada por cima de seu joelho. Ele jogou a parte de
baixo do estandarte para o lado e se aproximou da aglomeração de homens na beirada do lago. Grunhindo, lançou o estandarte na direção da água. A coroa dourada e
o tecido vermelho voaram pelos ares e caíram no gelo coberto de neve, deslizando uma pequena distância e parando perto da beirada da água.
- Droga! - rosnou o centurião. Ele cerrou os punhos de frustração e se virou repentinamente para Marcus. - Você chega até lá! Você é pequeno o suficiente para que
o gelo aguente seu peso. Vá até lá. Empurre o estandarte para dentro d'água.
Marcus lançou um rápido olhar pela extensão de neve intacta. Era impossível saber a espessura do gelo.
- Não temos tempo de pensar! - O centurião o agarrou pelos ombros. - Você precisa ir agora antes que eles matem todos nós. Vá!
Marcus assentiu com a cabeça. Se morresse, seria por um bom motivo. Se não podia salvar a mãe ou honrar o verdadeiro pai, ele faria aquilo em homenagem ao antigo
soldado que sempre amara. Faria aquilo por Titus. Guardou a espada e passou por entre os homens parados na beira do lago, pisando com cuidado no gelo. O estandarte
estava a menos de trinta metros de distância, e Marcus caminhou cautelosamente até ele. Sabia que a luta estava chegando ao seu fim sangrento dos dois lados. As
coortes romanas tinham sido destruídas pelo ataque feroz dos rebeldes e só restavam alguns poucos grupos de homens, espalhados pela margem do lago e lutando até
o fim.
Alguns tinham jogado as armas para o lado e tentado se render, mas os rebeldes massacravam os romanos, estivessem eles em pé ou ajoelhados. Alguns poucos legionários
tentavam escapar pelo gelo, mas a camada cedia debaixo deles, fazendo-os se debater na água gélida até não terem mais forças.
Marcus escutou um rangido abafado debaixo das botas e estacou de imediato. O ruído parou e após um instante deu mais alguns passos. Ele escutou mais um rangido,
daquela vez mais alto, e depois um estalo. Parou de novo, com o coração em disparada, e abaixou-se lentamente até ficar de quatro antes de continuar na direção do
estandarte, fazendo uma careta ao sentir o gelo queimar a pele. Não estava a mais de três metros de distância quando o gelo começou a rachar novamente. Marcus prendeu
a respiração. Abaixou-se até encostar a barriga e se aproximou aos poucos. A mão do garoto tateou o pano vermelho onde o número da coorte tinha sido bordado com
fios de ouro. Enquanto o gelo estalava debaixo de Marcus, ele cerrou os dentes e agarrou o tecido entre os dedos, puxando-o para perto. Segurando-o com as mãos,
ele se virou lentamente para se deitar de costas e respirou fundo. Depois contou até três e o arremessou por cima da cabeça com toda a força que tinha.
O movimento brusco fez o gelo rachar, e a água penetrou seu manto e sua túnica enquanto ele escutava o estandarte bater na água. Com medo de que o gelo fosse quebrar
a qualquer momento, Marcus rastejou em direção à margem do lago e só ficou de pé quando sentiu que a camada de gelo estava grossa o suficiente. Olhou para trás para
se assegurar de que o estandarte tinha desaparecido e então se apressou em encontrar os sobreviventes da coorte que estavam perto do lago. Os rebeldes o cercaram
com os rostos sombrios e em silêncio.
- Muito bem, garoto. - O centurião deu um tapinha em seu ombro. - Foi um ato corajoso. Agora a coorte pode morrer com a honra intacta.
- Morrer? - perguntou Quintus.
- Que opção temos? - O centurião apontou para os rebeldes. - Eles vão atacar a qualquer momento. Logo mais isso tudo vai acabar.
No entanto, não houve mais nenhum ataque, e os dois lados ficaram em suas posições, ofegantes e esperando.
- Por que eles não estão atacando? - perguntou Quintus com a voz trêmula. - Pelos deuses, por que não?
Então houve movimento entre as fileiras dos rebeldes. Um homem alto apareceu e aproximou-se dos romanos, parando a duas espadas de distância dos escudos. Carregava
uma espada pesada na mão, e seu cabelo escuro estava preso para trás com uma tira de couro. Marcus reconheceu-o imediatamente. Era o mesmo homem que encurralara
o grupo de Caesar dias antes. Mandracus fulminou os romanos com o olhar antes de cuspir para o lado e lhes dirigir a palavra:
- A luta acabou. Vocês foram derrotados. Joguem as armas para o lado e vão viver. Se não fizerem isso, vão morrer onde estão.
Houve um rápido silêncio, e Quintus abaixou a espada e aproximou-se da beirada do círculo. O centurião bloqueou o caminho dele.
- O que acha que está fazendo... senhor?
- A luta acabou. Nós fizemos o que podíamos e perdemos. É hora de nos rendermos.
- Não! - grunhiu o centurião. - Acha mesmo que eles vão nos deixar viver? É melhor morrer como um homem do que ser massacrado como um cão. Não vamos nos render.
- Vamos sim. - Quintus empertigou-se. - Eu é que estou no comando aqui, não você. E você vai me obedecer, centurião. Agora se afaste.
Marcus viu a raiva fulminante nos olhos do centurião, que permaneceu imóvel por um instante e depois obedeceu. Quintus aproximou-se da beirada do círculo e jogou
a espada na neve, aos pés do líder dos rebeldes.
- Nós nos rendemos.
O homem ao lado dele fez o mesmo e abaixou o escudo até o chão. Mais outro fez o mesmo e em seguida o restante deles, até todos os legionários sobreviventes não
terem mais como se defender. Exceto Marcus e o centurião.
- Vocês foram muito inteligentes - disse Mandracus. - Agora voltem para a trilha formando uma fila única. Movam-se!
Com Quintus na frente, os homens desarmados começaram a se afastar do lago, passando pelas fileiras de rebeldes que os provocavam e zombavam.
Marcus passou o olhar ao redor, com vários impulsos conflitantes causando um turbilhão em sua mente. Seu treinamento de gladiador o ensinara a nunca ceder, mas se
decidisse lutar e viesse a morrer não teria a oportunidade de salvar a mãe. Enquanto estivesse vivo, a esperança continuaria existindo, por menor que fosse.
- Bom garoto - disse o centurião. - Você tem mais coragem do que aquele tribuno covarde e todos os outros juntos. Vamos morrer lado a lado, como heróis.
Marcus olhou para ele e para o mar de rostos rebeldes que o fulminavam com ódio. Ele abaixou a espada e falou baixinho:
- Desculpe. Não posso fazer isso. Tenho que viver.
O centurião o encarou friamente por um instante, então assentiu com a cabeça.
- Tudo bem. Eu entendo. É melhor você ir logo antes que seja tarde demais.
Marcus afastou-se dele, o braço da espada pendendo ao lado. Ao se aproximar do líder dos rebeldes, ele deixou o cabo deslizar de seus dedos e escutou o baque seco
da arma caindo na neve. Ficou com o coração pesaroso por deixar o centurião entregue à sua sorte, mas, enquanto existisse a possibilidade de sua mãe estar viva,
aquilo guiaria todas as suas decisões. Mandracus espiou o garoto quando ele passou e o empurrou na direção do fim da fila de romanos que estava sendo levada para
o cativeiro.
Atrás dele, Marcus escutou o centurião gritar:
- Por Roma! Por Roma!
Corpos passaram correndo pelos dois lados de Marcus. Ele escutou o barulho de lâminas colidindo e a pancada de uma arma atingindo um escudo. Em seguida, um grito
de triunfo e rugidos guturais dos rebeldes que foram engolidos pela neve rodopiando por todo o pequeno vale.
17
Os legionários sobreviventes e Decimus e seus homens, juntos de alguns arreeiros, estavam parados na trilha sendo vigiados por vários rebeldes. Eles tinham sido
amarrados após Mandracus ordenar seus homens a removerem as armaduras e armas deles. Os romanos feridos tiveram as gargantas cortadas, já os rebeldes feridos foram
colocados cautelosamente nas carroças. Os mortos foram levados até a vila, onde uma pira foi construída usando a sobra material combustível do ataque da manhã.
Já havia anoitecido e a neve parado de cair quando os rebeldes ficaram prontos para ir embora. Um tom azul pálido espalhava-se pelo vale, onde silhuetas escuras
de corpos e poças de sangue repousavam dos dois lados da trilha. As chamas vermelhas e fortes subindo da paliçada faziam a cena ficar mais sombria, e Marcus estremecia
descontroladamente enquanto ele e os outros aguardavam seu futuro em silêncio. Mandracus deu uma última olhada ao redor e gesticulou para a trilha.
- Movam-se!
Marcus esperou até o homem à sua frente se mover e caminhou alguns metros apressadamente para poder avançar um pouco e depois se concentrou em manter o espaço entre
os dois. Ele achava estranho Mandracus estar levando os homens na direção de Caesar. Sentindo uma breve esperança, perguntou-se se Caesar não mandaria uma mensagem
para o comboio de bagagens, permitindo que o cavaleiro os visse e avisasse à tropa principal. Então, após andarem menos de um quilômetro e meio, Mandracus mudou
de caminho, pegando uma rota menor que serpenteava pela floresta e seguia na direção do centro das montanhas.
Eles pararam para dormir em uma vila abandonada, onde os prisioneiros foram deixados em um pequeno curral de ovelhas, sem comida nem água. Ao redor deles, os rebeldes
abrigaram-se no que tinha sobrado das casas e cabanas da vila silenciosa. Nenhuma fogueira foi acesa, mas à medida que a noite caía o céu foi ficando mais limpo
e as estrelas brilhavam como pequenos pedaços de gelo.
Marcus analisou o curral e encontrou um canto protegido do vento que continha restos de uma pilha de palha. Com as mãos amarradas, colocou o máximo que pôde por
cima do corpo e se sentou, encurvando-se por cima dos joelhos e tremendo. Um por um, os outros homens se acomodaram para aguentar a noite gélida da melhor maneira
possível.
Era impossível dormir, e, de todo jeito, Marcus sabia que era perigoso cair no sono. Titus lhe dissera isso uma vez, ao lembrar-se de uma campanha que lutara nas
montanhas da Macedônia. O exército de Pompeius fora obrigado a passar várias noites ao ar livre e alguns homens pegavam no sono e nunca mais acordavam. Quando amanhecia,
seus camaradas os encontravam mortos e congelados. Marcus não permitiria que isso lhe acontecesse. Assim que sentiu as pálpebras pesarem, ele endireitou a postura
e beliscou as próprias bochechas.
Em algum momento durante a noite, ele escutou o barulho de alguém se aproximando no meio da escuridão e depois uma voz grossa:
- Garoto, é você aí no canto?
De início Marcus não reconheceu a voz e continuou parado, prendendo a respiração.
- Sei que está me ouvindo, garoto... Marcus, não é? Titus me contou sobre você uma vez quando veio tratar de negócios comigo.
Marcus sentiu uma raiva familiar inflamar seu coração. Ele respirou lentamente para acalmar o corpo e para que sua voz não saísse trêmula. Não queria que Decimus
achasse que ele estava com medo.
- O que você quer?
- Conversar.
- Por que eu conversaria com você, Decimus? Depois de tudo o que fez comigo e com minha família. Tudo que quero ouvir é você implorando pela própria vida antes de
eu matá-lo.
- Me matar? - Marcus ouviu uma risada baixa, em seguida a voz do homem hesitou com um estremecimento se espalhando por seu corpo. - Você? E por que está achando
que seria capaz de me machucar? Tenho amigos poderosos. Homens que dependem de mim. Você está apenas um nível acima de um escravo comum. Seja realista, Marcus. Você
nunca seria capaz de me fazer mal.
- Não vou precisar fazer isso. Agora não. Só espero que os rebeldes o matem antes de mim.
Decimus ficou em silêncio.
- Tudo bem... mas há uma chance de Caesar nos encontrar antes disso.
Então era aquilo que ele queria perguntar a Marcus. Ele riu baixinho.
- Duvido. Agora que perdeu o comboio de bagagens, Caesar tem os próprios problemas.
- Você o conhece melhor do que eu, Marcus. Acha que ele vai vir nos procurar?
- Talvez. Mas faria mais sentido ele procurar mantimentos e abrigos novos primeiro.
- Mas ele não pode deixar os rebeldes se safarem após nos fazerem de reféns.
- Por que não? Já estamos mortos, Decimus. Aceite esse fato.
- Não. Por que eles nos prenderiam se só quisessem nos matar? Talvez haja uma maneira de escaparmos. Eu tenho dinheiro. Posso oferecê-los uma recompensa para que
eles poupem a minha vida. Mas a sua não, infelizmente.
- E os seus homens? Que vai ser deles?
- Sempre posso contratar novos homens.
Marcus ficou encarando a silhueta escura do homem a uma pequena distância. A insensibilidade de Decimus não tinha limites. Se ao menos estivesse com as mãos livres,
Marcus poderia se lançar para cima do agiota. Sem armas seria difícil vencer um adulto, mas pelo menos o machucaria.
- Não leve isso tão a sério, garoto. A vida é assim e pronto. Esses rebeldes são iguais a todos os outros homens. Eles têm seu preço e eu tenho condições de pagá-lo.
- Ele passou a sussurrar para que apenas Marcus o escutasse. - É uma pena para os outros. Especialmente você. Com mais alguns anos de treinamento, você teria sido
um dos heróis da arena. Mais um benefício para a reputação de Caesar. Ele fez certo em comprá-lo da escola de Porcino. É o homem mais perspicaz que já vestiu uma
toga de senador. Talvez termine sendo um dos maiores romanos da história.
- Então por que tem feito planos para matá-lo? Você também é romano. Se Roma precisa de homens como ele, por que matá-lo?
- Porque acho que Caesar acredita que Roma precisa mais dele do que ele precisa de Roma. E esses homens ficam perigosos quando pensam assim. De todo jeito, minhas
crenças políticas coincidiram por acaso com a oportunidade de fazer negócios com Crassus.
- Negócios?
- Sou um homem de negócios, jovem Marcus. Faço o que faço por dinheiro. É por isso que trabalho para Crassus. Ele me recompensa com contratos de cobrança de impostos.
É assim que um homem enriquece neste mundo. Em troca, eu forneço a Crassus os serviços dos meus empregados, eles têm as habilidades necessárias para remover os obstáculos
no caminho da ambição dele. Ao longo dos anos eu recrutei alguns homens que se mostraram muito úteis.
- Homens como Thermon? - interrompeu Marcus amargamente. - Assassinos.
- Assassinato é uma palavra muito forte. Prefiro pensar que estou fornecendo um serviço especial a um preço alto.
- Então imagino que você e seus homens não se juntaram ao exército de Caesar para comprar escravos, não é?
- Por que não? Assim podemos ganhar uma grana extra.
- Mas vocês foram enviados para matá-lo, não?
- Se a oportunidade surgir. Pensei em chantagear aquele jovem tribuno ali para ele ajudar um dos meus homens a chegar perto de Caesar, mas agora tenho outras preocupações
mais importantes. Preciso negociar com essa gentalha rebelde e comprar minha liberdade.
Uma rajada de vento gemeu por cima do curral. Marcus olhou para o céu e avistou nuvens ao norte. Nevaria mais antes do amanhecer. No entanto, aquilo não o preocupava
muito. Se ia morrer, precisava saber de algo. Um último conforto a que se agarrar.
- Decimus, você precisa me dizer uma coisa.
- Quer saber se sua mãe ainda está viva?
- Sim.
O homem ficou em silêncio por um instante e depois falou novamente:
- O que seria mais piedoso dizer? Se eu disser que ela está viva, você ficaria mais tranquilo até perceber o que estar viva significa para ela. Você sabe que eu
a mandei para uma das minhas propriedades no Peloponeso. Um lugar onde os escravos trabalham até a exaustão ou a doença acabar com eles. Por outro lado, se eu disser
que ela está morta, você descobriria que não tem mais motivos para viver. Então, meu garoto, o que prefere?
- Só quero a verdade - respondeu Marcus com firmeza. - Qualquer que seja ela.
- A verdade... - Decimus ergueu as mãos e assoprou em cima delas. - A verdade é que ela ainda está viva. Ela é bonita demais para que eu a mate, e orgulhosa demais
para que eu não tente fazer com que ela ceda.
Marcus suspirou aliviado ao ouvir que a mãe estava viva. Então, ao assimilar o restante do que foi dito, um arrepio de surpresa fez os pelos de sua nuca se eriçarem.
- Você... você gosta dela?
- Claro. Sou feito de carne e osso, assim como seu pai. Por que eu não sentiria a mesma atração que ele sentiu por ela? Mas ela era esposa dele. Alguns anos atrás,
quando Titus veio me pedir um empréstimo, ele a levou para Stratos. Foi então que a vi pela primeira vez. A segunda vez foi naquela sua patética fazendinha, quando
fui cobrar pessoalmente a primeira parcela do pagamento do empréstimo. Eu já sabia que Titus nunca seria capaz de pagar e que ficaria me devendo. Foi então que fiz
minha oferta para ela. Se ela o abandonasse e viesse comigo, eu anularia a dívida. Se não, ele perderia tudo. A fazenda, Livia e você. Vocês seriam vendidos como
escravos. - Decimus riu secamente. - E sabe o que ela fez? Ela cuspiu no meu rosto e disse que preferia morrer a ser minha. O que acha disso, hein? A sua mãe é corajosa.
Mais corajosa do que aquele tolo do Titus. Sim, acho que você puxou mais a ela do que a ele... Agora ela vai ficar na minha propriedade, trabalhando nos campos até
me implorar perdão.
A surpresa que Marcus sentira transformou-se em repugnância ao escutar aquele homem falando sobre sua mãe. Ao pensar na possibilidade de aquele hipócrita vil e repugnante
a tocar, Marcus sentiu uma náusea se espalhar por todo o estômago. Não podia deixar aquilo acontecer. Tinha que encontrar uma maneira de escapar ou de sobreviver.
E, se Decimus realmente conseguisse comprar a liberdade, Marcus o procuraria assim que também estivesse livre. O garoto fez um juramento silencioso para todos os
deuses: só descansaria depois que Decimus fosse destruído.
O homem moveu-se e levantou-se com dificuldade, assomando sobre Marcus no meio da escuridão.
- Gostei do nosso papo. Mas algo me diz que seria imprudente passar a noite aqui e deixar você se sentir tentado a me ferir. Durma bem, jovem, se conseguir. Não
tente se aproveitar da noite para me atacar. Thermon vai estar de olho em você.
- Thermon? Aqui?
- Sim, claro. Ele sempre está perto de mim. Mas ele teve que mudar de aparência por sua causa.
A mente de Marcus acelerou-se. Thermon passara todo aquele tempo junto com os capangas de Decimus? Ele pensou nos rostos de cada um, mas inicialmente nenhum o lembrou
do homem que tinha visto muito bem em algumas ocasiões. E então percebeu. Claro, o careca de barba. Esperando o momento, aguardando a ordem e a oportunidade para
atacar Caesar.
Decimus afastou-se, deixando Marcus encurvado no canto do curral, com a mente tomada por pensamentos sombrios de ódio e vingança.
18
No dia seguinte, enquanto o sol brilhava fracamente por trás de uma fina camada de névoa, um dos rebeldes acordou os prisioneiros. Dois homens tinham morrido durante
a noite. Eles tinham se livrado da armadura e dos mantos no dia anterior para tentar escapar e as túnicas não bastaram para aquecê-los. Sob a luz pálida do amanhecer,
eles estavam sentados e encurvados onde morreram, seus rostos congelados em uma expressão de paz e descanso.
O rebelde chutou-os para garantir que eles não estavam fingindo e depois os ignorou com um grunhido antes de fazer o restante se levantar com chutes e golpes de
uma grossa clava. Marcus e os outros ergueram-se, seus corpos rígidos e suas juntas frias e doloridas. Após arrastarem-se para fora do curral de ovelhas, eles pararam
em uma faixa estreita para aguardar. Ao redor deles, os rebeldes surgiam de dentro dos abrigos, espreguiçando-se e resmungando. Alguns já tinham começado a comer
e mastigavam pedaços da carne seca e do pão que encontraram em uma das carroças. Marcus olhou para eles, movendo os lábios de tanta fome. Não comia havia um dia
e sua barriga roncou em protesto. No entanto, nenhuma comida ou bebida foi oferecida para os prisioneiros, e logo depois os romanos foram vendados e a tropa começou
a marchar.
Várias horas depois, após serpentearem por trilhas íngremes e desniveladas, a tropa chegou ao acampamento dos rebeldes. Enquanto os prisioneiros eram levados para
o acampamento de Brixus, os habitantes surgiram das cabanas e abrigos para assistir ao espetáculo. Os romanos derrotados estavam amarrados com uma corda que unia
seus braços. O líder deles, o outrora orgulhoso tribuno Quintus, estava com as mãos amarradas atrás das costas e caminhava aos tropeções para acompanhar o rebelde
que os guiava pelo acampamento. Marcus era o segundo na fila, ferido e machucado devido às quedas que sofrera durante a marcha daquele dia.
- Parem os prisioneiros! - ordenou uma voz de algum lugar adiante, e os homens atrás de Marcus pararam. Houve uma pausa antes de ele escutar botas esmagando a neve
por perto, e então sua venda foi removida. A névoa da manhã tinha sumido e a luz do sol estava ofuscante. Marcus apertou os olhos, lacrimosos. Após um instante,
eles se ajustaram à luz e ele olhou ao redor, impressionando-se com o enorme acampamento cercado pelas montanhas circulando o vale.
- Não é de espantar que a gente não tenha encontrado isso aqui - disse Quintus. - Um exército poderia passar um século procurando pelos Apeninos e nunca adivinhar
que isso era aqui dentro.
Marcus olhou para o caminho por onde eles tinham chegado e percebeu que a rota desaparecia para dentro do rochedo a algumas centenas de metros, como se virasse pedra.
Ele se lembrou do frio úmido do último trecho da marcha, do eco dos passos e do tinir dos equipamentos na rocha. Quintus tinha razão. O acampamento dos rebeldes
estava perfeitamente escondido. O único risco seria se um traidor contasse a localização para alguém. O fato de ninguém ter feito aquilo provava a confiança fervorosa
dos escravos que passaram a seguir Brixus na causa pela qual estavam lutando.
Após todas as vendas serem removidas, os prisioneiros foram levados até o centro do acampamento, na direção das maiores cabanas. O caminho estava cercado de pessoas
aclamando os lutadores rebeldes. A aclamação transformou-se em insultos e gritos de raiva quando os prisioneiros foram vistos, e algumas pessoas pegaram terra no
chão e a lançaram em Quintus e nos outros. Por causa de seu tamanho e do manto simples que vestia, Marcus foi poupado da pior parte do ataque. A terra atingiu o
tribuno, seus soldados e Decimus, que chamava a atenção com os mantos ricamente ornamentados. Logo eles saíram do caminho lotado e passaram a andar em um terreno
aberto que ficava na frente de uma enorme cabana. Um cordão de homens armados com lanças continha a multidão, e Marcus suspirou aliviado quando a chuva de projéteis
parou. Ele se obrigou a recompor a própria expressão, endireitou a postura e examinou os arredores. A cabana era a maior construção que vira no vale, e ele presumiu
que era lá a moradia do líder dos rebeldes. Se aquele era o acampamento principal, então talvez o próprio Brixus estivesse lá. Marcus sentiu uma rajada de esperança.
Brixus com certeza o pouparia, mesmo sabendo que Marcus tinha marchado ao lado de Caesar. Ele precisaria explicar que tinha se envolvido na campanha do procônsul
à força, e esperava que isso fosse o suficiente para o perdão de Brixus.
Virando-se para o guarda mais próximo, Marcus limpou a garganta.
- Você aí. Me diga uma coisa, essa é a cabana de Brixus? Preciso falar com ele.
O rebelde aproximou-se rapidamente e estapeou a bochecha de Marcus com as costas da mão.
- Cale a boca, romano! Se não quer perder a língua, você só pode falar quando falarem com você. Está claro?
Cambaleando por causa do golpe, Marcus abriu a boca para responder e depois a fechou imediatamente. Ele fez sim com a cabeça, sem querer arriscar ser punido mais
uma vez.
Mandracus aproximou-se e parou na frente de Quintus, com as mãos no quadril.
- Então, não é tão poderoso agora, hein tribuno. Você e esses outros romanos. Olha só para vocês. É apenas um pouco mais velho do que esse garoto, mal se tornou
um homem, e já tem a arrogância altiva típica dos aristocratas romanos. Logo você vai aprender o que é ser tratado como escravo. - Ele sorriu friamente, virou-se
e se aproximou da entrada da cabana. Ao passar pelo rebelde no comando dos prisioneiros, ele deu suas ordens. - Vou comer. Fique com eles aqui do lado da cabana.
Depois espalhe a notícia pelo acampamento. O entretenimento começa no instante em que for seguro acender as fogueiras.
- Sim, Mandracus. - O rebelde curvou a cabeça em resposta.
Enquanto Mandracus se abaixava atrás da cortina de couro na entrada, Quintus aproximou-se de Marcus e sussurrou:
- Entretenimento? O que acha que eles estão planejando fazer conosco?
Marcus balançou a cabeça.
- Não faço ideia. Mas, seja lá o que for, acho que poucos do nosso grupo vão sobreviver.
Quando o círculo de fogueiras terminou de ser aceso no terreno aberto próximo da cabana redonda, uma enorme multidão já tinha se formado ao redor da área. Com os
rostos iluminados pelas chamas vermelhas, eles observavam os prisioneiros ansiosamente. O burburinho entusiasmado fez Marcus se lembrar do clima que surgia entre
a multidão na Casa do Senado de Roma quando um debate importante estava prestes a começar. Não, era diferente, pensou ele. Era mais como a multidão no Fórum antes
de ele lutar com o garoto celta, Ferax. Ele estremeceu ao pensar no terror que o consumiu antes do começo da luta. Em parte era o terror de enfrentar alguém que
queria matá-lo, mas também era o terror por ver a sede de sangue nos rostos das pessoas em todos os lados.
Com as mãos amarradas, os prisioneiros tinham sido obrigados a se sentarem no chão gélido até escurecer. Eles finalmente receberam água e uma tigela com um ensopado
ralo e gorduroso que foi tomado vorazmente. Depois eles ficaram sentados em silêncio, aguardando o próprio destino e proibidos de fazerem quaisquer sons ou movimentos,
caso contrário seriam surrados.
Um silêncio espalhou-se pela multidão, e, ao se virar, Marcus avistou Mandracus saindo da cabana. Vestido com um manto comprido de pele, ele parou com um cálice
prateado na mão, esperando pelo silêncio total. Em seguida, inspirou e falou com uma voz clara que chegou até o fim da aglomeração:
- Eu acharia melhor esperar Brixus voltar para começar a diversão, mas teremos que começar sem ele. Como vocês todos sabem, tanto Brixus quanto eu já fomos gladiadores.
Fomos arrancados de nossas casas pelas legiões de Roma, nos arrancaram dos seios de nossas famílias e nos escravizaram. Depois fomos vendidos como gado para um lanista,
para sermos treinados na arte de matar outros homens por uma única razão: saciar o apetite romano por entretenimento. Hoje vamos pagar na mesma moeda: esses romanos
aqui serão o nosso entretenimento. - Ele esmurrou o ar com a mão livre, e a multidão soltou um rugido de entusiasmo.
Mandracus deixou a multidão celebrar por um instante enquanto Marcus sentia o sangue congelar nas veias. Então aquele seria o destino deles.
- Silêncio! - rugiu Mandracus, gesticulando para que a multidão se acalmasse. - Hoje vocês terão um banquete de entretenimento - prosseguiu ele. - Uma série de lutas
até a morte. Os vencedores de cada rodada vão enfrentar um ao outro até sobrar apenas um homem. Esse homem, o campeão - disse ele com um tom de voz irônico -, será
poupado. Ele vai se tornar um escravo aqui no acampamento e todos vocês poderão se aproveitar dele o quanto quiserem, até ele morrer.
Marcus viu os rostos mais próximos da multidão acenarem com a cabeça em aprovação. Alguns olharam para os prisioneiros e balançaram os punhos, gritando insultos,
com a amargura dos longos anos de escravidão se manifestando naquela oportunidade de vingança.
- Que comece o entretenimento! - gritou Mandracus, aproximando-se dos romanos. Todas as armaduras e mantos tinham sido removidos, e eles estavam sentados de túnicas
e botas. Mandracus olhou para eles por um momento antes de erguer o dedo e apontar. - Você... e você. Levantem-se!
Os dois legionários demoraram para reagir, e os rebeldes os puxaram para cima, arrastando-os para que ficassem em posição a seis metros de distância um do outro,
no meio do terreno aberto. O laço nas mãos foi cortado e eles esfregaram os punhos. Espadas foram largadas aos pés de cada um, e os rebeldes se afastaram.
- As regras são simples - disse Mandracus para eles. - Vocês vão lutar até a morte. Se caírem, não se deem ao trabalho de pedir misericórdia. É isso. Agora peguem
suas espadas e aguardem a ordem para começar.
Marcus olhou para os homens. O primeiro era um veterano magro com sangue ressecado no braço esquerdo devido a uma ferida da emboscada. O oponente era um jovem inexperiente,
tremendo e encarando a espada.
- Peguem suas armas! - berrou Mandracus.
Imediatamente, o jovem obedeceu e ergueu a espada, com a ponta balançando bastante. O veterano não se mexeu. Ele endireitou a postura e cruzou os braços.
- Eu não recebo ordens de escravos.
Alguns homens na multidão vaiaram, mas Mandracus só deu de ombros e gesticulou para um dos rebeldes na posição de guarda. O homem aproximou-se do veterano por trás
e brandiu uma clava pesada mirando na parte de trás da cabeça dele. O crânio desfez-se com um forte estalo, sangue e cérebro escorrendo entre os fragmentos de osso
e couro cabeludo. A mandíbula do veterano abriu-se e ele ficou em pé por um instante antes de cair com o rosto no chão.
Marcus cobriu os olhos para não ver a terrível cena. Ao olhar para o grupo de prisioneiros, ele se perguntou quem seria seu oponente. Se ao menos pudesse ser Decimus,
ou até mesmo Thermon...
O rebelde pôs a clava debaixo do braço e agarrou a bota do veterano para arrastar o corpo para o lado. Mandracus apontou para outro prisioneiro.
- Você. Vá substituí-lo.
O legionário levantou-se atrapalhadamente e, assim que suas mãos ficaram livres, pegou a espada e abaixou o corpo, agachando-se e preparando-se para lutar pela própria
vida.
- Comecem!
Marcus nunca tinha visto uma luta daquelas durante seu treinamento de gladiador. Não houve tentativa de observar o oponente, de escolher uma tática ou de fazer algumas
fintas para testar o adversário. Os dois legionários lançaram-se um em cima do outro com expressões sombrias e passaram a se golpearem de maneira selvagem, com o
forte tinido das lâminas enchendo o ar enquanto as centelhas da colisão entre metais subiam. Com um grito de dor, o jovem recruta cambaleou para trás e segurou a
coxa com a mão livre, fazendo o sangue escorrer por entre seus dedos. O homem mais velho ficou parado, com o peito ofegante devido ao cansaço. Eles ficaram se encarando
até uma voz gritar para eles continuarem a luta.
Eles obedeceram, e Mandracus deu ordens para um grupo que estava ao lado de uma das fogueiras:
- Usem os ferros quentes.
Um dos homens fez sim com a cabeça e, encurvando-se, pegou uma barra de metal. Uma extremidade estava cercada por tiras de metal; a outra se encontrava bem no meio
do fogo. Ao erguer a barra no ar, ela brilhou fortemente com um tom de amarelo que logo virou um vermelho vivo. O homem aproximou-se por trás do jovem legionário
ferido e o espetou com a ponta aquecida. Ele gritou de dor e inclinou-se para a frente, na direção do oponente. Houve mais uma troca de golpes descontrolados antes
que a perna do jovem cedesse, obrigando-o a ficar de joelhos enquanto tentava desesperadamente se defender dos ataques do antigo camarada. Em seguida, seus dedos
dormentes perderam a força e sua espada caiu no chão a uma pequena distância. O outro homem ergueu a espada e hesitou.
- O que está esperando? - exigiu Mandracus. - Mate-o! Se não, vai morrer junto com ele.
O legionário rangeu os dentes e balançou a cabeça como quem pede desculpas antes de enfiar a lâmina no peito do homem ferido. O jovem grunhiu, lançou a cabeça para
trás e escancarou os braços. Então, quando a espada foi removida, ele se contorceu por um instante no chão antes de parar de vez. A multidão soltou um rugido sedento
de sangue e esmurrou o ar gélido com os punhos. Dois rebeldes aproximaram-se do vencedor. Um deles tirou a espada da mão dele e o outro o levou para o lado da cabana.
Marcus ficou nauseado de preocupação quando Mandracus se aproximou do restante dos prisioneiros e examinou o grupo. Nenhum deles tinha coragem de olhá-lo nos olhos,
pois não queriam correr o risco de serem chamados para a próxima luta.
- Você... Sim, você, e o homem do seu lado. É a vez de vocês. Movam-se!
Houve mais duas lutas, e Marcus contou 14 prisioneiros sobrando no grupo. Então ainda aconteceriam sete lutas, e Decimus ainda estava no meio deles. O garoto teria
a chance de se vingar. Enquanto o quarto corpo era carregado, Mandracus passou o dedo na frente do grupo e sorriu. Então seu dedo parou.
- Você... levante-se!
Decimus ergueu-se com dificuldade, balançando a cabeça para protestar em silêncio. Marcus ergueu-se imediatamente.
- Eu luto contra ele! Me escolha!
Mandracus virou-se.
- O que é isso? Um voluntário? Esse garoto valente quer enfrentar um adulto. Parece que finalmente encontramos um romano que tem coragem de lutar. Então ótimo, garoto,
ele é todo seu.
- Não! - exclamou Decimus. - Você não pode me obrigar a lutar!
- Ah, é? E por que não?
Decimus estendeu as mãos.
- Me liberte e você será um homem rico. Tenho fortuna em Roma. Me deixe viver e eu garanto que todos vocês serão muito bem recompensados. Juro.
- Que interessante - refletiu Marcus. - E estamos falando de que quantia pela sua liberdade?
- Meio milhão de sestertii - implorou Decimus, mas o rebelde não respondeu. - Tudo bem, um milhão! Um milhão de sestertii!
- Hummm, isso é uma fortuna e tanto. - Mandracus ficou pensando por um instante. - Vamos ver o que Brixus tem a dizer. Leve esse aqui lá para dentro da cabana.
- Obrigado - disse Decimus, arrastando-se. - Você não vai se arrepender.
Enquanto ia embora, ele abriu um sorriso convencido para Marcus.
- O que foi que eu disse? Adeus, garoto. Cumprimente Titus por mim quando o encontrar no além. E peça desculpas a Thermon por mim. Diga a ele que nossa relação era
estritamente profissional.
Marcus rangeu os dentes e cuspiu sua resposta:
- Covarde!
Decimus balançou a cabeça.
- Não, sou apenas um sobrevivente.
Então ele foi levado para longe e desapareceu por trás da cortina da cabana. Mandracus aproximou-se de Marcus e olhou para ele com curiosidade.
- É uma pena ver uma coragem como essa chegar ao fim. Mas você vai morrer com esses outros aí. Agora é resolver quem será seu oponente. Vou ser justo para que a
luta seja equilibrada.
O olhar dele percorreu os legionários que sobravam e os servos de Decimus. Todos tinham uma aparência durona, exceto um.
- Você, tribuno. Você é o segundo mais novo, e me arrisco a dizer que você teve uma vida mimada demais para saber lutar bem com uma espada. Acha que consegue derrotar
esse garoto?
Quintus levantou-se lentamente, com os lábios encurvando-se de desprezo.
- Não sou da ralé dos gladiadores como você. Vou mostrar como um nobre romano luta. - No último instante os lábios dele tremeram, revelando o que realmente estava
sentindo, e Mandracus riu.
- Bela tentativa. Assim como todos os aristocratas romanos, você não tem coragem para lutar de verdade. Você deixa que os outros façam isso. Bem, hoje não. Aqui
não. - Ele cortou a corda que prendia as mãos de Quintus e fez o mesmo com Marcus. - Assumam suas posições.
Dois rebeldes arrastaram-nos para o terreno aberto e os viraram um para o outro. Uma espada foi jogada na frente de cada um. Quintus pegou a sua rapidamente, sem
esperar nenhuma instrução. Marcus percebeu que seu oponente parecia mais nervoso do que ele, que não tinha a mínima vontade de lutar contra Quintus ou contra qualquer
outro prisioneiro agora que Decimus estava fora daquela disputa sombria. No entanto, lutaria até o último suspiro. Queria sobreviver, e sua determinação estava mais
forte devido à esperança de Brixus o libertar. Se protestasse, teria o mesmo destino do homem que se recusara a lutar um pouco antes.
Ele se encurvou para pegar a espada, agarrando-a com firmeza e testando o peso e equilíbrio dela instintivamente, como tinha aprendido. Deu um golpe e alguns cortes
no ar antes de se satisfazer com o que tinha aprendido sobre a arma e sobre como ela se sairia em uma luta.
- Comecem! - berrou Mandracus.
Diferente das lutas anteriores, os dois combatentes permaneceram parados. Marcus obrigou todos os seus pensamentos a se concentrarem no que estava à sua frente.
Quintus tinha uma altura mediana e era um pouco encorpado, o que significava potencial para ser veloz e alcance um pouco melhor do que o de Marcus. Assim como muitos
outros jovens, gostava de vinho e diversão. Mesmo após dias na estrada, as reações dele deviam ser lentas comparadas a alguém treinado em uma escola de gladiadores.
Marcus tentou lembrar-se de algum detalhe da breve luta entre os dois em Rimini, algo que pudesse servir de vantagem.
A multidão ficara em silêncio, sentindo que aquela luta seria diferente e mais sutil.
Marcus ergueu a espada e virou-se, ficando de lado para Quintus e limitando o alvo que o tribuno teria para atacar. Em seguida, avançou em um ritmo constante. Quintus
agachou-se e ficou na mesma posição, sem se mover para frente, apenas aguardando Marcus. As pontas das espadas se encontraram, e Marcus aplicou uma leve pressão
enquanto deslizava a ponta um pouco para baixo contra a lâmina do oponente. Quintus abaixou a ponta de sua espada e empurrou a espada de Marcus para o lado. Em seguida,
deu um pequeno pulo para a frente, estendendo o braço. Marcus fingiu defender-se do ataque e previu corretamente que o tribuno daria um golpe para baixo mais uma
vez. Ele a empurrou para o lado, forçando a outra espada para trás com o comprimento da lâmina perto do corpo e aproximando-se de Quintus. O movimento obrigou o
jovem a recuar rapidamente, para Marcus não chegar perto demais, e Quintus brandiu a espada de um lado para outro, bloqueando qualquer ataque ao seu corpo. Marcus
contentou-se em virar a espada para que ela encostasse na carne do antebraço do oponente, abrindo um corte longo e superficial que pareceu pior depois de o sangue
começar a escorrer. Em seguida, Marcus se afastou e ficou encarando Quintus, tentando prever seu próximo movimento.
O tribuno recuou e olhou ansiosamente para o corte enquanto os membros mais experientes da multidão murmuravam em aprovação à interação inicial. Marcus tinha controlado
o centro da arena improvisada e sabia que aquilo diminuiria a confiança do oponente. E, de fato, não dava para confundir o brilho de medo nos olhos de Quintus enquanto
ele se agachava mais uma vez, buscando retomar o controle da iniciativa.
Seu ataque ficou óbvio antes mesmo que ele se movesse, com as pernas se preparando para uma investida explosiva. Marcus deixou que ele se aproximasse e se abaixou
para o lado enquanto a lâmina passava inofensivamente ao lado de sua cabeça. O impulso fez Quintus seguir em frente, e Marcus abaixou a espada para cortar a coxa
do jovem em movimento. Os dois se viraram um para o outro, e agora o tribuno não conseguia mais disfarçar o medo nos olhos. Marcus obrigou-se a continuar com o semblante
igual a uma máscara: frio, implacável e inexpressivo.
Quintus lambeu os lábios e falou baixinho:
- Marcus, você não pode me matar. Pense em Portia... Ela pensa em você como um amigo. Ela confia em você. Será que você trairia a confiança e o afeto dela, matando
seu marido? Eu a amo, Marcus. Se eu morrer, ela ficará sozinha no mundo. - Enquanto falava com tom de voz sincero, ele se inclinou para a frente com a ponta da espada
abaixada.
Marcus tentou afastar a lembrança de Portia da cabeça, mas não conseguiu deixar de pensar nas palavras dela e nos seus lábios macios.
Com um borrão, Quintus atacou, brandindo a espada em um arco desajeitado, mas mortal. Marcus recuou ao se defender do golpe, fazendo centelhas voarem. Quintus continuou
a investida com uma enxurrada feroz de golpes enquanto grunhia:
- Não vou morrer! Vou vencer! Vencer!
Marcus afastou tudo da cabeça, focando-se apenas em reagir a cada ataque, em se desviar ou se defender, poupando sua força e deixando o oponente desperdiçar energia.
Então, quando Quintus brandiu a arma novamente, Marcus contra-atacou antes que o tribuno pudesse recuar do golpe. Lançando a espada com toda a força, Marcus mirou
no tendão acima e atrás do joelho de Quintus. Ele acertou o alvo, mas o frio e o cansaço tinham-no enfraquecido, fazendo a espada atingir a carne e o músculo sem
cortar o tendão.
Quintus soltou um grito de dor e cambaleou para longe, sangrando bastante. Após conquistar a vantagem, Marcus lançou-se para a frente, movendo a espada e estocando
o oponente para obrigá-lo a recuar. A bota de Quintus escorregou no chão congelado. Ele tropeçou e caiu de costas, estendendo os braços. Marcus saltou para a frente
e bateu o pé em cima do pulso do tribuno que segurava a espada, fazendo seus dedos se contorcerem e soltarem-na. Marcus chutou-a para longe, parou ao lado do tribuno
e encostou a ponta da lâmina na garganta de Quintus.
- Não! Eu imploro, poupe minha vida! - implorou Quintus. - Por Portia!
Marcus hesitou. Tinha se concentrado em vencer a luta. Não nas consequências da vitória. Continuou parado, com o braço tremendo um pouco devido ao frio.
- O que está esperando? - perguntou Mandracus. - Mate-o.
Marcus não se moveu, e Quintus fechou os olhos com firmeza, virando a cabeça para o lado.
- Mate-o - ordenou Mandracus. - Ou eu mato você.
Marcus ouviu o barulho da espada e viu o rebelde se aproximar rapidamente. Ele se forçava a atacar e enfiar a lâmina na garganta do tribuno, mas não conseguia se
mover. Mandracus tinha parado ao seu lado e sibilou:
- É a sua última chance...
Marcus não reagiu, e ele ergueu a espada.
- Espere! - exclamou uma voz na multidão. Marcus virou-se e avistou uma comoção perto do caminho que levava à entrada secreta do vale. Ele escutou os cascos de um
cavalo e viu a silhueta de um cavaleiro emergir no meio do brilho rosado das chamas das fogueiras. Atrás dele, apareceram outros homens a pé, alguns mancando e outros
sendo carregados pelos camaradas. Um murmúrio ansioso espalhou-se pela multidão. Mandracus abaixou a espada lentamente e virou-se para o cavaleiro.
- Brixus.
19
- O que está acontecendo aqui? - perguntou Brixus enquanto cavalgava para o terreno aberto ao lado de sua cabana.
O burburinho da multidão transformou-se em um murmúrio nervoso à medida que os homens que seguiam o líder foram aparecendo. Muitos estavam feridos e com manchas
de sangue seco, pedaços de pano mal amarrados funcionavam como curativos. Marcus afastou-se de Quintus e, abaixando a espada, virou-se para observar os recém-chegados.
O tribuno abriu os olhos e ficou encarando o céu, seu peito elevando-se ao arfar no ar frio.
- Esses são os prisioneiros que capturamos depois da emboscada - explicou Mandracus.
- E o que estão fazendo com eles?
- É um pouco de entretenimento, para animar o nosso povo. Mas e vocês? - Mandracus apontou os homens mais atrás que seguiam Brixus. - O que aconteceu?
Brixus puxou as rédeas e inspirou com cansaço.
- Minha emboscada não deu tão certo. Nós alcançamos a retaguarda da tropa de Caesar quando ela estava chegando a Sion. Eles estavam espalhados pela trilha como eu
esperava, mas se viraram e formaram uma linha de batalha antes que pudéssemos nos aproximar mais. Pelos deuses, nunca vi homens tão bem-treinados, nem mesmo durante
a revolta de Spartacus. Foi a batalha mais sangrenta de que já participei. Milhares morreram dos dois lados. Mas a vantagem era nossa. Os dois lados se afastaram
para lamber as feridas e se recuperar. Quando dei a ordem de atacar novamente... meus homens não quiseram obedecer. Para eles já bastava. Não tive escolha, precisei
bater em retirada pela floresta e voltar para cá.
Mandracus escutou o relato do líder em silêncio e olhou para trás dele, na direção da entrada do vale.
- Vocês foram seguidos?
- Está achando que sou tolo? - protestou Brixus. - Claro que não. Caesar mandou a cavalaria dele atrás de nós, mas nós os despistamos no meio das árvores. Passamos
a metade do dia indo para o sul antes de pegarmos o caminho para o acampamento. Estamos em segurança, Mandracus.
- Por enquanto, sim. Quantos homens foram perdidos?
Brixus franziu a testa.
- Vamos conversar na minha cabana. Por enquanto, quero que meus homens se alimentem e descansem e tenham as feridas tratadas. Cuide disso.
Mandracus fez sim com a cabeça e então se lembrou dos prisioneiros.
- O que quer que eu faça com os romanos?
Brixus deu de ombros ao desmontar do cavalo.
- Eles podem servir o acampamento, assim como os outros. - Ele se virou para Marcus. - Desarme aquele ali e... - Suas palavras se perderam, e ele ficou paralisado
encarando o garoto.
Marcus não sabia como reagir e retribuiu o olhar em silêncio.
- Pelos deuses, não pode ser... é você mesmo? - Brixus mancou para perto, seus olhos arregalados de espanto. - Marcus. É você. Pelos deuses...
- Você conhece esse garoto? - Mandracus aproximou-se e pegou a espada da mão de Marcus.
- Se eu o conheço? - Um sorriso de deleite e triunfo espalhou-se pelo rosto de Brixus. - Esse é Marcus. O Marcus. O garoto sobre o qual tanto falei.
- Ele? - Os olhos de Mandracus arregalaram-se de surpresa. - Esse fedelho? Esse é o filho de Spar...
Brixus foi para cima dele raivosamente.
- Quieto, seu tolo! Não vamos falar sobre isso na frente dos outros. Leve os demais prisioneiros para uma das cabanas e os deixe sob vigia. Ninguém deve falar com
eles, está claro?
Mandracus assentiu com a cabeça e se virou para dar as ordens.
- Marcus. - Brixus parou na frente dele e segurou seus ombros, falando com um tom de voz baixo para que suas palavras não fossem escutadas por mais ninguém. - Não
tenho nem palavras para dizer o quanto vê-lo novamente faz bem para o meu coração. Venha, precisamos conversar. Você chegou na hora em que mais estávamos precisando.
Marcus estava ciente dos olhares espantados dos outros prisioneiros. Brixus colocou a mão no ombro de Marcus e o virou na direção da entrada da cabana do líder.
Atrás deles, os homens da tropa recém-chegada acomodavam-se no chão perto das fogueiras e começavam a se aquecerem. Marcus viu o cansaço no rosto deles e escutou
choro quando as notícias das mortes começaram a se espalhar, e gritos agudos de luto perfuravam o céu noturno.
Brixus empurrou a cortina de couro para o lado e gesticulou para que Marcus entrasse. Apesar do tamanho e da temperatura gélida lá fora, a cabana estava aquecida.
Havia uma fogueira grande crepitando no centro, e uma mulher colocava pedaços de lenha nas chamas. Marcus procurou Decimus e o avistou sentado de costas para uma
parede a uma pequena distância da entrada. Ele olhou ao redor nervosamente quando Marcus e Brixus entraram.
- Quem é aquele? - perguntou Brixus, acompanhando a direção do olhar de Marcus. - O que está fazendo aqui?
- Ele é um dos prisioneiros - explicou Marcus. - É o romano que destruiu minha família e me vendeu como escravo junto com minha mãe.
Brixus ficou pensando por um momento e se lembrou dos detalhes de sua última conversa com Marcus mais de um ano antes.
- Decimus?
Marcus fez sim com a cabeça.
- O agiota da Grécia? O que ele está fazendo aqui?
- Ele está trabalhando para Crassus. É responsável por um atentado contra a vida de Caesar no ano passado.
Brixus ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça, surpreso.
- Qual o problema desses nobres romanos metidos? Além de punirem os escravos, ficam atacando um ao outro! Eles não passam de escória. Uma escória nojenta. Não são
melhores do que vira-latas cruéis... O que quer que eu faça com ele, Marcus? Quer que eu o crucifique? Assim como eles crucificaram aqueles que se renderam no fim
da revolta do seu pai? Ou prefere queimá-lo vivo? As pessoas lá fora gostariam de ver isso.
Marcus ficou pensando por um instante. Decimus era culpado. Não apenas de matar Titus, mas também de explorar cruelmente e arruinar a vida de inúmeras pessoas só
para enriquecer. Era uma oferta tentadora.
Decimus escutara todas as palavras e agora estava se arrastando para a frente de joelhos.
- Eu fiz um acordo com Mandracus. Ele prometeu me libertar se eu pagasse uma recompensa. Um milhão de sestertii. Pode ser seu. Tudo seu.
Brixus olhou-o com repugnância e ódio antes de balançar a cabeça.
- Qualquer acordo que tiver feito com meu subordinado não me vincula a nada, romano. Marcus já me contou sobre você. É ele quem decidirá o seu futuro.
Marcus olhou para cima, surpreso.
- Eu?
- Foi a você que ele fez mal. Então você decide.
Marcus franziu a testa. Ainda poderia conseguir algo se fosse esperto. Ele encurvou os lábios desdenhosamente.
- Quero vê-lo morrer nas minhas próprias mãos. Ele já devia ter morrido há muito tempo.
- Não! - protestou Decimus. - Marcus, espere. Eu lhe dou o milhão de sestertii. É o suficiente para o resto da sua vida. Você pode comprar de volta sua fazenda.
Ou comprar uma maior. Ter seus próprios escravos.
Marcus enfiou o dedo no peito de Decimus e gritou:
- Se quer viver, me diga exatamente onde está minha mãe! Para qual propriedade você a enviou? Em que lugar do Peloponeso? Fale agora! Ou juro que vou arrancar o
seu coração do peito!
Decimus encolheu-se de medo ao ver a expressão de fúria do garoto e abriu a boca para responder. Em seguida, seus olhos estreitaram e ele balançou a cabeça.
- Não vou contar nada. Se quer vê-la novamente, vai ter que me libertar. Esse é o único acordo que vou fazer com você. Minha vida pela dela.
Brixus aproximou-se do agiota e agarrou a gola de sua túnica.
- É só pedir, Marcus, que eu mando Mandracus surrá-lo até ele contar a verdade.
- Ele pode tentar fazer isso. - Decimus abriu um pequeno sorriso. - Mas como vocês vão saber que estou dizendo a verdade? Você precisa de mim vivo, Marcus. Vou contar
onde ela está quando estiver longe daqui e em segurança. Só assim.
- E é para ele confiar em você?
- Eu dou minha palavra.
- Hã? Dá sua palavra? - retrucou Brixus. - Prefiro confiar em uma víbora. Marcus, mate-o. Você pode encontrar sua mãe sozinho.
Marcus fulminou o agiota com o olhar, sentindo o coração se encher de desespero e frustração. Decimus estava em uma situação vantajosa, e ele não podia fazer muito
a respeito - a não ser que houvesse alguma maneira de fazer Decimus cumprir o acordo. Ele se virou para Brixus.
- Tem outro homem entre os prisioneiros que eu queria que ficasse em segurança. Um homem alto e magro. Careca, de barba. O nome dele é Thermon.
Ele se virou de volta para Decimus.
- Se não cumprir o acordo, eu entrego Thermon para Caesar. Ele vai ter histórias interessantes para contar sobre os seus interesses de negócios, como você mesmo
diz.
Decimus inspirou profundamente entre os dentes.
- Você aprende rápido, meu garoto. Com o tempo você será um homem de tanto sucesso quanto eu e um rival perigoso. Então temos um acordo e uma maneira de garantir
que ele seja cumprido.
A cortina de couro foi puxada para o lado, e Mandracus entrou na cabana. Ele viu os outros e gesticulou para Decimus, sentindo-se culpado.
- Eu ia lhe contar a respeito dele assim que pudesse.
- Não importa - respondeu Brixus. - Já sei tudo sobre ele. Ordene que seus homens o levem daqui. Ele deve ser mantido longe dos outros. Vigie-o bem de perto. Ele
não pode escapar. E, se ele tentar, deve ser capturado vivo.
- Sim, Brixus. Como quiser. Você aí, vamos! - Mandracus puxou Decimus para cima e o empurrou para fora da cabana.
Brixus virou-se para Marcus, assobiou baixinho e disse:
- Que dia estranho. - Sua expressão ficou séria, e ele colocou a mão no ombro de Marcus. - Tenho más notícias para você. Mandracus capturou um garoto na emboscada
ao grupo de Caesar no início do mês.
Marcus sentiu uma rajada de esperança no peito.
- Lupus!
- Sim, Lupus.
- Onde está ele? Você disse más notícias? - Marcus sentiu uma pontada de ansiedade. - Eu não o vi aqui. Chame Lupus, por favor!
- Não posso. - Brixus contraiu os lábios. - Ele estava comigo quando marchei contra Caesar. A última vez que o vi foi no meio da batalha, logo antes de atacarmos
a linha romana.
Marcus engoliu em seco.
- Capturado?
- Não sei, Marcus.
- Morto?
Brixus suspirou.
- Um escravo capturado recebe pena de morte. Seria melhor se ele já estivesse morto. É melhor do que ser crucificado.
- Crucificado? - Marcus sentiu o estômago congelar. - Não... Lupus não. Caesar não permitiria que isso acontecesse. Lupus é o escriba dele. Ou era.
- Nada disso vai importar se ele tiver sido capturado com uma espada na mão.
Marcus ficou parado em silêncio, pensando no amigo. Em seguida, olhou para Brixus com cautela.
- Nunca achei que Lupus fosse de lutar. Fico surpreso por ele ter se preparado para participar de uma batalha.
- Muitos homens aqui no acampamento que nunca lutaram antes de se juntarem a nós. Mas logo eles descobrem que a liberdade é uma causa pela qual vale a pena lutar,
ou até mesmo morrer se for necessário. Foi isso que seu pai nos ensinou. Muitos se lembram dessa lição e honram o legado dele. - Ele pôs a mão no ombro de Marcus.
- Quando souberem que o novo Spartacus apareceu para liderar a rebelião, os escravos de todo o Império vão se juntar à causa imediatamente. Desta vez, nada vai ficar
entre nós e a liberdade. Nós vamos ter nossa vitória sobre Roma.
Marcus obrigou-se a sorrir. Estava ansioso com o sonho que Brixus tinha descrito. Apesar de ter aceitado que era filho de Spartacus, será que ter o mesmo sangue
bastaria para ter a mesma grandeza do pai?
20
Brixus soltou o ombro de Marcus e sorriu, cansado.
- Sou um péssimo anfitrião. O que eu estava pensando? Você está com frio e com fome, e com certeza exausto. Vamos nos sentar perto da fogueira enquanto eu peço para
buscarem comida e bebida, e assim nós conversamos.
Ele bateu as palmas e exclamou rudemente:
- Servilia!
A mulher agachada perto da fogueira contorceu-se como um cachorro açoitado, levantou-se e atravessou a cabana apressadamente, curvando a cabeça ao parar na frente
dele. Com o brilho da fogueira, Marcus avistou machucados no meio da pele encardida dela, e alguns cachos de seu longo cabelo escuro estavam opacos por causa da
sujeira.
- Quero carne, pão e vinho diluído. E figos secos se ainda tiver.
- Sim, amo.
- Imediatamente. Agora vá.
Ela se virou e foi apressadamente até um arco dando para um alpendre nos fundos da cabana. Enquanto ela desaparecia, Brixus levou Marcus para perto da fogueira,
onde o garoto afundou contente nas peles ao lado do fogo. Era bom sentir o calor das chamas, e Marcus se permitiu curtir aquele conforto por um breve instante, libertando-se
do terror que sentira na frente da multidão. Apesar de não estar mais correndo perigo, demorou um pouco para a tensão de seus músculos diminuir e braços e pernas
pararem de tremer.
Brixus passou a alça da espada por cima da cabeça e deixou a bainha cair no chão, ao lado de outra pilha de peles de animais. Ele desafivelou as alças da couraça
e a colocou ao lado da espada antes de se acomodar, suspirando de satisfação.
- A sua coxeadura melhorou - observou Marcus. - Está bem melhor do que no ludus de Porcino.
- Bem, ela nunca foi tão grave quanto eu fazia parecer. - Brixus sorriu. - Depois que fui ferido, eu jurei que nunca mais lutaria na arena para o prazer dos romanos.
Apesar de saber que o ferimento me atrapalharia, não dava para garantir que Porcino não me faria lutar novamente. Eu fingi para enganar o cirurgião dele e ele disse
que eu não podia mais lutar. Foi assim que passei a trabalhar na cozinha.
- Entendi. - Marcus assentiu com a cabeça. - Mas como veio parar aqui, no comando do acampamento?
- Depois que conversei com você da última vez, quando você estava a caminho de Roma, eu fui para as montanhas do norte. Não demorou para que eu encontrasse um dos
bandos de rebeldes. Eles me trouxeram para cá. Mandracus era o líder deles e tinha lutado por Spartacus na última revolta apesar de ser apenas um garoto na época,
apenas um pouco mais velho do que você. Ele me reconheceu e, quando eu contei que o filho de Spartacus estava vivo e que um dia ele lideraria uma nova revolta contra
Roma, se convenceu a me deixar ficar no comando. Depois disso, nós intensificamos os ataques ao inimigo e recrutamos mais gente. No início eles ficavam nervosos
e demoravam para se juntarem a nós, mas quando as notícias das nossas vitórias se espalharam, e com a promessa de um herdeiro de Spartacus, eles vieram para o nosso
lado aos montes. - Os olhos dele brilharam de entusiasmo. - Marcus, temos mais de dez mil homens a postos em acampamentos como este por todos os montes Apeninos.
Com você como símbolo, esse número vai crescer bem rapidamente. Logo vamos descer das montanhas marchando para enfrentar as legiões romanas no campo de batalha,
e dessa vez a vitória será nossa.
A escrava atravessou a pequena entrada lateral da cabana, equilibrando uma bandeja com carne e pão em uma das mãos e carregando uma jarra e dois cálices na outra.
Ela se aproximou rapidamente da fogueira e colocou a refeição entre Brixus e Marcus. Em seguida, a mulher afastou-se depressa e ficou parada com a cabeça encurvada,
em silêncio. Brixus ignorou-a, empilhou um pouco de carne em uma travessa de madeira e a ofereceu para Marcus.
- Tome. Imagino que deva estar com fome.
Marcus segurou a travessa e começou a comer imediatamente, com rapidez, rasgando a carne de carneiro fria com os dentes e mastigando com força. Brixus observou-o
sorrindo e lhe entregou uma pequena rodela de pão e um cálice com vinho diluído. Marcus acenou com a cabeça para agradecer e continuou comendo até sentir a barriga
confortavelmente satisfeita. Após um tempo, ele afastou a travessa para o lado e suspirou.
Brixus, comendo de uma maneira mais comedida, olhou para cima.
- Quer comer mais ou prefere alguma outra coisa? Fruta? Torta de figo e tâmara?
- Não. Estou bem. Obrigado.
Brixus estalou os dedos para a mulher.
- Coloque mais madeira no fogo. Depois vá embora e nos deixe sozinhos.
- Sim, amo. - Ela tirou algumas toras da pilha perto da fogueira e as colocou nas chamas antes de se aproximar do lado da cabana e desaparecer pela saída lateral.
Enquanto a cortina de couro voltava ao lugar, Marcus a ficou encarando e depois falou:
- Achei que você estava lutando para acabar com a escravidão.
- Hã? - Brixus franziu a testa rapidamente e depois entendeu. - Ah, ela. Não se preocupe com ela, Marcus. Já estava na hora de alguns romanos aprenderem o que os
escravos precisam suportar.
- Não entendo. Ou você é contra a escravidão ou é a favor dela.
- Claro que sou contra. E quando Roma parar de afirmar que é dona da gente, Servilia também será livre. Até lá, ela é minha escrava.
- Mas...
- Já basta, Marcus. Não vou discutir esse assunto. Ela merece ser tratada como tratava os outros até tudo isso acabar. Está claro?
Marcus concordou com a cabeça, surpreso e um pouco intimidado pelo tom cruel das palavras de Brixus. Um silêncio surgiu entre os dois, e Marcus ficou encarando as
chamas e refletindo. Ele estava preocupado com o plano de Brixus. Tirando o fato de que seria o símbolo da nova rebelião, ele não sabia se os rebeldes seriam capazes
de derrotar as legiões romanas. Mesmo se milhares de escravos tivessem escapado de seus donos para se juntarem à rebelião, eles não tinham o treinamento nem a experiência
dos legionários. Apenas uma pequena quantidade dos rebeldes era formada de gladiadores ou tinha experiência com lutas. Marcus vira de perto o quanto era significativa
a vantagem de um lutador treinado em relação a um recruta novo, independentemente do quanto o recruta quisesse lutar.
- Você não vai conseguir vencer, Brixus - disse ele baixinho. - Não dá para derrotar Roma.
O líder dos rebeldes o encarou.
- E por quê?
- Você sabe bem. Olhe só o que aconteceu quando enfrentaram Caesar. Vocês foram derrotados.
- Não fomos derrotados - respondeu Brixus rispidamente. - Lutamos como leões. Meus seguidores têm coragem suficiente para ir até o fim.
- Coragem não basta. Nós dois aprendemos isso no ludus de Porcino. É preciso mais do que coragem. Não dá para vencer sem disciplina e treinamento. É por isso que
seus homens não quiseram atacar os romanos uma segunda vez.
- Com o tempo eles vão ter mais disciplina e treinamento. Mais do que o suficiente para derrotar o inimigo.
- Mas não temos tempo - argumentou Marcus. - Caesar e seus homens estão atrás de vocês. Quanto tempo acha que eles vão demorar para encontrar esse vale?
- Nenhum romano o encontrou ainda.
- Isso porque o vale estava sendo usado apenas por alguns poucos rebeldes antes de você chegar. Agora tem mais gente e muitos foram capturados por Caesar. Com certeza
alguém vai contar sobre o vale. Os romanos vão usar tortura ou oferecer recompensas para obterem o que querem. Então eles vão bloquear a entrada do vale e fazer
você e seus seguidores morrerem de fome.
- Aqueles que me seguem prefeririam morrer a trair a causa.
- Será mesmo?
- Além disso, agora você chegou. O seu nome e o seu legado vão inspirar a devoção de todos à causa da luta pela liberdade. Com você liderando nosso exército, nada
será capaz de nos deter!
- Brixus, eu não sou o homem que meu pai era. - Marcus parou e sorriu debilmente enquanto tocava no próprio peito. - Não sou nem um homem ainda. Como posso liderar
um exército?
- Você não vai liderar de verdade. Esse é o meu dever. Como disse antes, você será o símbolo da nossa causa. Só isso.
Marcus pensou por um instante e balançou a cabeça.
- Não quero ser usado desse jeito. Não vou ser a razão pela qual homens, mulheres e crianças vêm correndo para se juntar a uma causa fútil. Não quero o sangue deles
nas minhas mãos.
- Mas eu preciso de você - insistiu Brixus raivosamente, e depois parou para se acalmar. - Quer dizer, nós precisamos de você. Você trairia todos os escravos que
ainda acreditam no seu pai e na causa pela qual ele lutou?
- Não estou traindo ninguém. Só quero poupá-los de uma morte em vão.
- Não é uma morte em vão, Marcus. Enquanto os homens se preparam para lutar, e morrer, por uma causa na qual acreditam, a causa continua viva e um dia ela poderá
triunfar. Se os homens não fizerem nada, eles simplesmente ficarão condenados a uma vida sofrida e sem sentido.
- Mas eles ainda vão estar vivos - argumentou Marcus. Ele acreditava no que Brixus estava dizendo, mas não conseguia aceitar o sofrimento e o banho de sangue que
aquilo acarretaria. E não suportaria ser responsável por atrair tantas pessoas para a própria morte. Ele balançou a cabeça. - Não. Não posso fazer isso. Com o tempo,
talvez os próprios romanos acabem com a escravidão.
- Bá! Você está vivendo nas nuvens, garoto. Roma nunca, nunca acabará com a escravidão. Ela é a base de todo o poder deles. São os escravos que cultivam os campos,
trabalham nas minas e dão o sangue na arena. Roma não é nada sem nós, e é por isso que a escravidão só acabará se tivermos coragem e determinação para levar a causa
até o seu amargo fim. - Com os olhos brilhando de fervor, Brixus inclinou-se para perto de Marcus e apontou o dedo para ele. - Mesmo se fracassarmos, se todos nós
formos derrotados e crucificados, o nosso exemplo estimulará a chama da rebelião acesa no coração de todos nós que não somos livres. É isso que faz os homens virarem
heróis, Marcus. O seu pai foi um herói. Você tem o dever de seguir os passos dele. Ou vai traí-lo? Será que você é covarde demais para honrar a memória dele?
Com raiva, Marcus rangeu os dentes ao responder:
- Não sou covarde. Eu enfrentaria qualquer perigo, de qualquer tamanho, por algo em que acredito. Eu não acredito que você seja capaz de derrotar Roma. Além disso,
eu nem conheci meu pai. Ele morreu antes que eu respirasse pela primeira vez nesse mundo. Não vou ser escravo do legado de um homem morto. A vida é minha, Brixus.
Minha. Fui criado em uma pequena fazenda de uma ilha grega. O homem que me criou, o homem que amei como um pai, foi assassinado diante dos meus próprios olhos. Minha
mãe e eu fomos vendidos como escravos. Essa é a história da minha vida, e eu só vou descansar quando minha mãe estiver livre. É por isso que quero lutar e até mesmo
morrer se for necessário. Somente isso.
Brixus olhou para ele com uma expressão de compreensão.
- Claro, Marcus. Entendo. Mas quem está dizendo isso é o garoto dentro de você. Sua infância lhe foi roubada e você quer conquistá-la de volta. Poucas pessoas neste
acampamento tiveram a oportunidade de ter o que você tinha e perdeu. E isso é uma injustiça monstruosa. Talvez você seja jovem demais para compreender isso. Mas
um dia você vai compreender. É isso que significa ser homem. Entender que existem assuntos mais importantes no mundo do que você mesmo e seus sonhos.
- Não é um sonho! - disparou Marcus, seus olhos ardendo com o esforço para não chorar. Ele queria poder explicar a dor que dilacerava seu coração a cada pensamento
sobre sua mãe. A culpa terrível que o corroía por não ter conseguido salvá-la. - Vou libertar minha mãe. Ela é a única coisa importante para mim.
- Marcus... todos nós temos mães. Eu perdi a minha quando ela foi vendida pelo meu senhor. Não pude fazer nada. Acha que sou diferente de você? Acha que minha perda
foi menos importante do que a sua?
Marcus sentiu um aperto na garganta e não conseguiu falar. Se tentasse, sabia que sua voz hesitaria e que seria tomado por uma onda de aflição e lágrimas. Felizmente,
Brixus falou novamente com bastante empatia:
- Marcus, junte-se a nós e lutará por sua mãe e todas as outras mães e filhos que sofrem como você, e muito mais. É demais pedir isso? Essa é a única pergunta que
importa agora. - Ele estendeu a mão e apertou delicadamente o braço do garoto. - Você está cansado. É melhor descansar agora que comeu e que está aquecido. Fique
aqui perto da fogueira e durma. Conversaremos de novo de manhã. Tenho certeza de que você vai perceber que estou falando a verdade.
Marcus olhou para ele.
- E se isso não acontecer?
- Vai acontecer. - Brixus endureceu sua expressão. - Só existem dois lados nesse conflito, Marcus. Aqueles que lutam pela liberdade e aqueles que não fazem isso.
- Ele deixou as mãos se afastarem, levantou-se e olhou para baixo. - Pelo bem da nossa amizade, espero que você escolha o lado certo.
21
Encolhido nas peles de animais ao lado da fogueira, Marcus não conseguia dormir apesar da exaustão. Era difícil parar de pensar nas últimas palavras de Brixus. Havia
um tom inconfundível de ameaça nelas. Ou ele concordaria em ser o símbolo da nova rebelião ou se tornaria inimigo de Brixus, o que colocaria sua vida em perigo,
e consequentemente a da sua mãe também. No entanto, se concordasse com o pedido de Brixus, ele não seria nada além de um fantoche a ser controlado na frente de seus
seguidores, atraindo-os para uma morte quase certa.
Marcus sabia que a nova rebelião estava condenada ao fracasso. Mesmo se Brixus conseguisse inspirar um levante popular, a maioria dos lutadores era composta de camponeses
ou escravos domésticos. Eles teriam pouca chance de sobreviver contra as legiões romanas. Seria um banho de sangue. Milhares morreriam, e, depois que a rebelião
fosse contida, os romanos tratariam os escravos com uma crueldade e repulsa ainda maior.
Não era o momento certo para uma rebelião. Roma era muito forte, e os escravos, fracos demais. Seria mais sensato aguardar uma oportunidade melhor, refletiu Marcus.
Aqueles que se opunham à escravidão precisavam esperar o momento certo. Mas e se esse momento nunca chegasse, perguntou uma voz no fundo de sua mente. Por quanto
tempo os escravos devem aguentar antes de aproveitarem a oportunidade e se desfazerem de suas correntes? Dez anos? Vinte? A vida inteira? A voz zombava dele. Era
melhor nem pensar em rebelião.
Marcus sentiu-se dividido entre a vontade de lutar contra a escravidão e a consciência de que a luta de Brixus terminaria em derrota e mortes. No fim das contas,
ele sabia o que tinha de fazer, mesmo se a sua escolha trouxesse desespero em seu coração.
O brilho fraco das brasas iluminava o suficiente para ele enxergar o caminho até a entrada da cabana. Afastando as peles para trás, Marcus agachou-se cautelosamente
e foi tateando até chegar à cortina de couro. Ele parou e ficou prestando atenção, mas não escutou nenhum barulho de movimento vindo do lado de fora. Respirou fundo
e afastou a cortina para espiar pela beirada. O espaço aberto à sua frente parecia vazio exceto pelo sentinela encurvado repondo a lenha de uma pequena fogueira.
O restante tinha ido embora, e os brilhos fracos pelo vale indicavam que a maioria das outras fogueiras tinha parado de ser reabastecidas para evitar que a fumaça
ficasse visível ao amanhecer. O céu estava quase todo coberto por nuvens e havia apenas algumas áreas límpidas e com estrelas. Era provável que fosse nevar novamente,
pensou Marcus. Uma nova camada de neve seria boa para disfarçar suas pegadas.
Ele observou o sentinela agachar-se e estender as mãos para aquecê-las em cima das chamas que tremeluziam devido à lenha nova. O homem pareceu se acomodar, então
Marcus saiu discretamente da cabana e, abaixado, acompanhou a parede até que não fosse mais possível vê-lo. Então parou para lembrar o que havia visto do vale depois
de removerem sua venda. Retraçou a direção de onde Brixus e seus homens vieram quando se juntaram à multidão e avistou um forte declive no rochedo do vale, contrastando
com o céu noturno mais claro. Parecia um local bem provável de encontrar a entrada secreta.
Conferindo se tudo estava quieto, Marcus afastou-se da cabana e atravessou o acampamento com cautela. Ruídos de ronco, tossidos ocasionais e palavras murmuradas
saíam das cabanas e abrigos rudimentares. Além disso, havia os barulhos dos animais se movendo e resfolegando dentro dos currais. O odor quente deles misturava-se
ao cheiro cada vez mais fraco de fumaça. Marcus movia-se sorrateiramente de um esconderijo para o outro, parando para assegurar-se de não ter chamado nenhuma atenção,
mantendo olhos e ouvidos atentos para garantir que não havia nada se mexendo em sua frente antes de arriscar o passo seguinte. Certo momento, foi obrigado a se jogar
no chão quando um homem saiu de uma tenda de pele de bode para urinar. Marcus esperou que ele voltasse para seu abrigo com um grunhindo semiadormecido.
Após um tempo, Marcus chegou a uma trilha na beirada do acampamento que seguia por um declive em direção aos rochedos. Ele percebeu que ali era o leito seco de um
riacho e presumiu que muitos anos antes a água corria pelo espaço entre os rochedos que agora servia como entrada do vale. O riacho devia ter encontrado um novo
curso, ou talvez os primeiros habitantes do vale tivessem feito um desvio para ele.
Após dar a volta por uma enorme rocha, Marcus congelou ao escutar uma conversa baixa na base dos rochedos, a alguns metros de distância.
- Brixus e seus companheiros levaram a maior surra hoje - disse a primeira voz. - Ouvi falar que ele perdeu mais de quinhentos homens.
- Tudo isso? - respondeu outra voz grosseiramente. - Foi um golpe pesado pra gente. E mais pesado ainda para os romanos.
- Por quê?
- Você o escutou. Ele disse que eles caíram bem na armadilha. Eles tiveram sorte de escapar, estavam acabados demais. Depois que a notícia da derrota de Caesar chegar
a Roma, eles vão perceber que nós representamos uma ameaça forte e vão ter que levar a sério as nossas exigências.
- Acha mesmo? Se realmente tivermos vencido, duvido que a gente sobreviva a muitas outras dessas supostas vitórias de Brixus.
- Cuidado. Esse tipo de conversa é perigoso.
- Ficar aqui também é. Isso aqui não está sendo o grande levante que nos prometeram quando nos juntamos à causa. Não sei se minha vida está muito melhor agora em
comparação a quando eu era escravo. Pelo menos como escravo eu recebia comida e abrigo. Agora minha barriga ronca o tempo inteiro e passo tanto frio que não paro
de tremer.
- Silêncio! - chiou seu companheiro. - Quer que todo mundo nos escute? E se Mandracus estiver fazendo sua ronda, hein? Se ele ouvir você falando coisas assim, vai
arrancar sua língua. Agora pare de reclamar e fique vigiando, pois é isso que devemos fazer.
O outro homem grunhiu incoerentemente, e Marcus escutou o barulho de botas em seixos enquanto os dois sentinelas afastavam-se um do outro, prestando atenção na entrada
dos rochedos. Forçando a visão, Marcus conseguiu enxergar a silhueta dos dois homens de mantos, cada um com um escudo em um braço e uma lança apoiada nos ombros.
Mal se atrevendo a respirar, ele se aproximou. Havia um sentinela em cada lado da abertura, que tinha menos de três metros de largura. Mais à frente, a fenda estreita
era engolida por uma escuridão profunda. Ele não tinha como chegar até lá sem que os dois rebeldes o vissem. Marcus pensou no problema. Se não era capaz de passar
pelos homens, precisaria distraí-los de alguma maneira.
Marcus estendeu o braço para baixo e tateou os seixos no leito seco do rio até encontrar um do tamanho de um ovo. Ele o ergueu para ter uma noção melhor de seu formato
e peso e o arremessou para o lado com toda a força que tinha. Houve um breve silêncio antes de o seixo bater em uma rocha na base do rochedo. Os dois homens viraram-se
na direção do barulho imediatamente; o mais próximo abaixou a lança.
- Quem está aí? Apareça!
Como ninguém respondeu, ele olhou para o camarada.
- Ao meu sinal, vamos.
- Vá você. Deve ser só um cachorro ou algo assim. Vou ficar aqui.
Marcus sentiu um aperto no coração e xingou silenciosamente a falta de coragem do homem.
- Não. Você vem comigo! - disse o outro com raiva. - Agora!
Os dois aproximaram-se do barulho com cautela e Marcus ergueu-se um pouco, indo sorrateiramente para perto da abertura. Ele deslizou para o meio das sombras ao ouvir
um dos homens murmurar:
- Está vendo, não tem nada aqui. Vamos voltar para nossos postos.
- Mas nós dois escutamos o barulho.
- Como eu disse, deve ser algum animal.
- Hummm.
Marcus atravessou a abertura com o máximo de velocidade que dava para arriscar, desesperado para se distanciar dos dois sentinelas. Ao seu redor, as laterais da
abertura subiam, deixando à mostra apenas uma faixa fina do céu noturno. Estava escuro como breu, e ele teve que sentir o caminho com as pontas das botas e as mãos
estendidas na frente do corpo, procurando possíveis obstáculos no trajeto. Não havia nada, e debaixo de seus pés o chão era nivelado e feito de cascalho. Apesar
de não ter nenhum vento, estava mais frio do que no vale, e Marcus fez força na mandíbula para seus dentes não baterem. Não podia fazer nada a respeito do resto
do corpo, e pernas e braços tremiam violentamente ao prosseguir no meio da escuridão. Estava morrendo de medo de encontrar rebeldes dentro da abertura, mas só havia
silêncio adiante.
Tremendo de frio, nervosismo e exaustão, Marcus deu a volta em uma curva da abertura e avistou um fragmento de luz estelar a uma pequena distância, deixando à mostra
a saída. Então ele parou. Claro que Brixus teria colocado sentinelas nas duas extremidades da passagem estreita, e era provável que aqueles do lado de fora estivessem
mais atentos. No entanto, eles procurariam ameaças de fora, então deviam estar de costas para Marcus. Mesmo assim, o garoto passou a andar mais devagar e abraçou
a lateral da abertura enquanto tateava até a entrada. Mais à frente havia um pequeno terreno cercado de pinheiros e coberto com a neve marcada pela passagem de muitos
homens e cavalos. Marcus se preparava para sair da abertura e se aproximar dos pinheiros quando percebeu movimento no meio das árvores.
Um pequeno grupo de homens trotava pela trilha na direção da entrada da abertura. Eles estavam no meio do terreno quando vários homens surgiram dos dois lados das
árvores, apontando suas lanças e cercando os recém-chegados.
- Quem está aí?! - exclamou uma voz ameaçadoramente.
Os homens na trilha pararam imediatamente, e o líder deles ergueu sua arma enquanto respondia:
- Trebonius dos batedores. Deixe-nos passar.
- Trebonius? Você só devia voltar daqui a vários dias. É para você ficar de olho em Caesar.
- E é o que fizemos. Ele está marchando para cá. Agora me deixe passar. Tenho que informar Brixus.
- Caesar está vindo...
Marcus sentiu uma mistura de esperança e ansiedade ao ouvir a notícia. Se era para seu plano dar certo, precisava encontrar Caesar o mais rápido possível, enquanto
ainda houvesse chance de impedir o banho de sangue. Os homens no terreno conversavam em tom de voz baixo e apressado, e Marcus não conseguia mais escutá-los. No
entanto, eles estavam concentrados na conversa. Respirando fundo, Marcus agachou-se e moveu-se lentamente até sair da abertura, ficando perto do rochedo enquanto
se aproximava das árvores. Era apenas uma pequena distância, menos de trinta metros, e ele conseguiu chegar ao pinheiro mais próximo enquanto o grupo de batedores
continuava indo em direção ao acampamento. Os sentinelas viraram-se e voltaram aos seus postos. Marcus abaixou-se debaixo de um galho pesado e suspirou aliviado
ao ver que não dava mais para enxergar o terreno. Em seguida, sua túnica ficou presa em um galho quebrado e o ramo inteiro se balançou, causando uma pequena avalanche
de neve.
- Ali! - exclamou uma voz. - Tem alguém ali! Debaixo daquela árvore. Ei, você, pare!
Marcus xingou-se por sua trapalhada, mas logo se pôs em movimento mais uma vez, passando apressadamente por baixo de galhos ao penetrar mais na floresta. Enquanto
empurrava os galhos para trás, escutou gritos e o barulho de gravetos sendo pisados por seus perseguidores.
- Não deixe o espião escapar! - ordenou uma voz. - Matem-no se precisar!
Marcus ficou abaixado e continuou correndo, dando a volta nos troncos de árvores, sem enxergar direito o caminho adiante. Ele não sabia para onde ir, mas continuou
correndo para longe dos sons dos perseguidores. Estava no limite da exaustão. Talvez fosse melhor parar, encostar-se a um tronco de árvore e ficar imóvel, deixar
os homens passarem. Assim poderia escapar por uma direção diferente. Mesmo enquanto aquele pensamento passou por sua cabeça, ele sabia que não podia arriscar ser
encontrado e assassinado nem levado de volta para Brixus. O gladiador veterano não perdoaria sua tentativa de fuga. Apesar de Brixus ter sido muito próximo de Spartacus,
ele era mais fiel ainda ao seu ódio fanático por Roma. Ele não teria misericórdia com quem traísse sua causa, nem mesmo se fosse o filho de Spartacus.
Aquele pensamento fez o garoto ganhar uma nova energia, e Marcus se forçou a seguir em frente, cambaleando pela floresta escura enquanto o chão sob suas botas começava
a se inclinar para baixo sutilmente. Atrás dele, os rebeldes chamavam um ao outro e continuavam a perseguição.
Depois de um quilômetro e meio, a quantidade de árvores começou a diminuir abruptamente, e, de repente, Marcus se encontrou a céu aberto, na beirada de um terreno
irregular. Havia uma área cercada por rocha na base do declive, com mais árvores a alguns metros de distância. Imaginou que devia ser um pasto de verão para bodes
ou ovelhas. Se seguisse pelo declive, seu manto escuro chamaria a atenção devido ao contraste com a neve, e acabaria avistado assim que os rebeldes saíssem da floresta.
Com uma sensação crescente de pânico, ele se virou para retornar ao abrigo das árvores, quando escutou uma voz nas proximidades:
- Aqui! Algumas pegadas... ele veio por aqui!
Uma onda fria de terror percorreu suas costas. Agora só havia uma direção, e Marcus se virou e correu desesperado. Após percorrer cerca de cinquenta metros do campo
nevado, o primeiro perseguidor surgiu em disparada do meio da floresta.
- Lá está ele! É apenas um garoto!
- Pegue-o! - disse outro. - Ele não pode escapar!
Marcus arriscou olhar rapidamente para trás e avistou várias silhuetas escuras se aproximando, levantando neve ao correrem pelo declive. Ele continuou em disparada,
o coração acelerado. O medo apertava tanto seu peito e sua barriga que Marcus ficou ainda mais ofegante. Ao olhar para trás mais uma vez, os homens estavam bem mais
próximos, pois conseguiam dar passadas bem maiores que ele. Quando eles chegaram à metade do campo, Marcus percebeu que seria alcançado antes de se aproximar das
árvores. O garoto sentia a energia se esvaindo das pernas, e não havia nada que pudesse fazer.
Na frente dele estava o muro de pedras do curral, e ele avistou um movimento repentino, uma silhueta escura erguendo-se acima dele. Depois surgiu mais uma, e mais
uma.
- Atenção, rapazes! Temos companhia.
Marcus desacelerou momentaneamente, sem saber se eram outros seguidores de Brixus. No entanto, os gritos mais atrás o fizeram ranger os dentes e continuar correndo.
- Matem-no! - gritou alguém. - Ele não pode nos entregar! Matem-no!
Um vulto escuro passou voando ao lado da cabeça de Marcus e explodiu na neve. Ele avistou o cabo de uma lança enquanto corria e estava preparado para sentir um golpe
doloroso a qualquer momento, quando o próximo projétil perfurasse suas costas e rasgasse seu corpo. A uma pequena distância, um dos homens do outro lado do muro
de pedras levantou-se e jogou o braço para trás.
- Abaixe-se, garoto! - gritou ele de forma áspera. - Abaixe-se!
Sem tempo para pensar, Marcus lançou-se para a frente, em cima da neve gélida, e rolou para perto do muro. Ele não viu o que aconteceu em seguida, apenas escutou
a pancada e um forte grunhido de alguém mais atrás. Após ficar de quatro, ele olhou para trás e viu um dos rebeldes cair no chão com o cabo de uma lança preso em
sua barriga.
- Vamos! - rugiu uma voz de trás do muro de pedras, e silhuetas escuras passaram por cima dela com espadas nas mãos. Alguns carregavam grandes escudos ovais enquanto
corriam para cima dos rebeldes, dando um grito de guerra. Espadas tiniam sem parar ao redor de Marcus. Sem nada com que se proteger, ele se agachou enquanto corria
até o muro e escalou as pedras antes de descer do outro lado.
Ele caiu no chão com força, ficando sem ar nos pulmões, e demorou um instante para assimilar seus arredores. O interior do curral estava repleto de cangas de legionários,
e havia várias lanças encostadas no muro. Alguns homens ainda estavam lá dentro, e era tarde demais para eles participarem do confronto. Marcus levantou-se, arfando,
e deu uma olhada por cima do muro. A luta já tinha acabado. A maioria dos rebeldes tinha se virado para fugir e estava subindo o declive em disparada, querendo se
proteger no meio das árvores distantes. Vários corpos estendiam-se na neve, alguns se contorcendo e gemendo de dor. Os soldados estavam parados, zombando e acenando
punhos e espadas para os rebeldes.
- Certo! - exclamou uma voz por cima dos gritos. - Vocês já se divertiram, rapazes. Levem os feridos para dentro do curral. Agora, onde está aquele garoto? Quero
dar uma palavrinha com ele.
Um homem alto e encorpado passou por cima do muro e olhou para os dois lados antes de avistar o corpo esguio de Marcus e se aproximar. Ele parou com as mãos no quadril
e ficou encarando o garoto.
- Quer me contar o que foi isso que aconteceu?
- Me leve até Caesar - respondeu Marcus, ainda ofegante. - Preciso falar com ele. Imediatamente.
- Quer falar com o general? - perguntou o centurião com tom de voz brincalhão. - Duvido que ele vá gostar muito de ser acordado no meio da noite.
- Acho que vai gostar sim... - Marcus respirou fundo para se acalmar e falar com clareza: - Depois que você contar que Marcus Cornelius escapou e que ele sabe onde
fica o acampamento dos rebeldes.
22
- Marcus! - Caesar sorriu ao levantar o olhar da sua mesa de campanha. - Achava que estava morto. Onde o encontrou, Festus? O garoto parece acabado.
- Uma das patrulhas o encontrou, senhor. Eles queriam juntá-lo aos escravos que capturamos, mas ele disse que tinha informações importantes para o senhor. Então
eles o levaram até a sede. Eu estava lá quando eles chegaram ao amanhecer e reconheci Marcus imediatamente. Eu o trouxe direto para cá.
Caesar gesticulou para Marcus.
- Você está tremendo. Venha, sente-se perto do fogo e se aqueça. Festus, dê a ele o meu manto e peça para trazerem comida, algo quente.
Marcus se sentou em um banco de frente para o braseiro que aquecia e iluminava a barraca, e Festus foi até um baú pegar o manto pesado de lã. Ao pensar em comida,
Marcus sentiu a barriga roncar, e sua necessidade de matar a fome falava mais alto do que a de dormir. Um instante depois, Festus pôs o manto delicadamente por cima
dos ombros do garoto, que começou a se sentir confortável pela primeira vez em muitos dias.
Depois que Festus saiu da barraca, Caesar virou-se para Marcus. Houve um breve silêncio antes que ele falasse novamente:
- Você vai gostar de saber que esta não é a primeira reunião com camaradas antigos. Parece que Lupus sobreviveu à avalanche. Os rebeldes o tiraram do meio da neve.
- Lupus está vivo? - Marcus não pôde deixar de sorrir ao escutar a notícia. - Onde ele está?
- Com o restante dos prisioneiros. Ele foi capturado depois do nosso confronto com os rebeldes. - Caesar balançou a cabeça tristemente. - Eu tinha uma opinião errada
dele. Ele não era o escravo leal que parecia ser. Claro que ele vai ser punido quando chegar a hora certa, antes que eu o ponha para trabalhar acorrentado. O trabalho
duro de uma fazenda ou de uma mina vai fazê-lo aprender o preço da traição.
Inicialmente, Marcus não sabia o que dizer. Ele mal acreditava que Lupus se juntaria à rebelião por vontade própria, no entanto por que ele não faria isso? Por mais
que tivesse conforto como escriba de Caesar, no fim das contas ele não passava de uma propriedade de seu senhor. Talvez Lupus tivesse compreendido aquilo e decidido
que queria sentir um pouco da liberdade que seu senhor desprezava. Marcus estava determinado a salvar o amigo.
- Senhor, Lupus não teve escolha. Ou ele se juntaria aos rebeldes ou seria morto.
- Era o dever dele recusar. Não sinta pena dele, Marcus - prosseguiu Caesar, interpretando a expressão no rosto de Marcus com precisão. - Lupus merece o destino
que vai ter. Você se recusou a se juntar a Brixus e conseguiu escapar. É isso que Lupus devia ter feito.
- Ele não teve o treinamento que tive, senhor.
- Isso não é desculpa - respondeu Caesar desdenhosamente. - Enfim, já basta de Lupus. Quero esquecê-lo. Estou mais interessado na sua história. Então você sobreviveu
ao ataque ao comboio de bagagens. Depois que eles não encontraram seu corpo, fiquei com esperanças de você ter sido levado vivo. Foi um pequeno consolo considerando
as barracas e comidas perdidas. O único abrigo que sobrou foi essa barraca aqui. Era grande demais para ser levada, imagino. Meus homens estão tendo que dormir ao
ar livre, e, se não destruirmos o inimigo nos próximos dias, eu serei obrigado a voltar a Módena para pegar novos mantimentos e começar a campanha novamente... A
não ser, claro, que essa sua informação mude as circunstâncias. E então, Marcus, o que é que você tem para me dizer?
Encarando as chamas, Marcus tentou se livrar do cansaço que embaçava sua mente. Se revelasse o segredo do acampamento de Brixus, Caesar destruiria os rebeldes sem
piedade. Brixus e seus seguidores lutariam até o fim e milhares de pessoas morreriam. Ao pensar em todo o banho de sangue, Marcus ficou horrorizado e decidiu que
precisava fazer tudo o que pudesse para impedir aquilo, mesmo se terminasse se desentendendo seriamente com seu antigo senhor. Ele pigarreou, endireitou a postura
e se virou para falar com Caesar:
- Eu sei onde fica o acampamento principal dos rebeldes. Foi para lá que eles levaram os prisioneiros depois da emboscada.
- Você sabe onde eles estão? - Caesar ergueu as sobrancelhas de surpresa. Ele sorriu friamente. - Excelente... agora eles são nossos. A rebelião está acabada. -
Ele parou e estreitou um pouco os olhos. - Mas arrisco dizer que você não foi o único prisioneiro.
- Tinha mais alguns outros, incluindo o tribuno Quintus, senhor.
- Quintus está vivo? Esperava que ele tivesse agido com honra e morrido em vez de ser levado como prisioneiro. É uma vergonha para ele mesmo e para Portia, portanto,
para minha família. Se ele ainda estiver vivo quando isso acabar, é melhor ele desistir de quaisquer ambições de seguir uma carreira política. Enfim... se outros
também foram levados como prisioneiros, como foi que só você conseguiu fugir? É melhor se explicar.
Marcus pensou rapidamente.
- Eu estava com os outros quando Brixus e seus homens voltaram para o acampamento. Ele me reconheceu e ordenou que seus homens me soltassem.
- Você conhece Brixus? Você o conhece e não me informou disso?
- Achei que o senhor soubesse - respondeu Marcus inocentemente. - Brixus estava no mesmo ludus que eu, mas conseguiu escapar.
- Pelos deuses! - Caesar fechou os olhos com força por um instante, como se estivesse furioso por não ter associado os dois fatos. Ele respirou fundo antes de a
tensão em seu rosto diminuir. - Tudo bem, então vocês se conheciam. O que aconteceu depois que ele o soltou?
- Ele me levou até a cabana dele e nós conversamos.
- Sobre o quê?
- Ele tentou me convencer a fazer parte da rebelião. E me disse que dessa vez ele vai conseguir o que Spartacus não conseguiu. Ele também me perguntou sobre o senhor.
- Sobre mim?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Ele sabia que o senhor tinha me comprado de Porcino e me levado para que eu continuasse meu treinamento em Roma. Ele queria que eu contasse o que sabia sobre sua
personalidade e seus planos para a campanha.
- Entendo. E o que você disse?
- Eu disse que não sabia os detalhes dos seus planos. E que o senhor estava determinado a acabar com a revolta o mais rápido possível, a qualquer preço. Eu disse
que o senhor não é o tipo de homem que deixa um obstáculo bloquear seu caminho.
Caesar inclinou-se sobre a mesa.
- Como ele reagiu a isso? Ele ficou incomodado?
Marcus fez uma breve pausa antes de responder:
- Acho que sim.
- Ótimo, então ele ficou abalado. Homens ansiosos costumam tomar mais decisões precipitadas. E isso deixa aqueles que os seguem nervosos. E o que aconteceu depois?
Como escapou?
- Depois que Brixus terminou de falar, ele me deixou sozinho para eu dormir. Esperei os rebeldes se acomodarem em seus leitos e saí escondido do acampamento. Estava
quase em segurança quando alguns homens de guarda me avistaram. Eles me perseguiram até eu me deparar com a sua patrulha. O restante o senhor já sabe.
Caesar tinha prestado bastante atenção e agora sorria.
- Uma história e tanto, Marcus. Você teve sorte, mas foi esperto e demonstrou muita coragem. Mas não espero nada menos de você. Acho que a essa altura Brixus já
sabe da sua fuga. Ele vai fazer planos para abandonar o acampamento e fugir. Agora é o momento de atacar. Nós vamos marchar e alcançá-los assim que amanhecer e resolver
logo esse assunto. Diga-me, Marcus, onde é que eles estão?
Aquele era o momento temido por Marcus. Ele sentiu braços e pernas tremerem ao se obrigar a falar:
- O que planeja fazer, senhor?
- Ora, capturar aquela ralé antes que eles fujam. Os que não matarmos vão servir de exemplo. Nunca mais os escravos vão duvidar do que os aguarda caso decidam enfrentar
seus senhores.
Marcus fez sim com a cabeça.
- É isso que eu temia que o senhor fosse dizer.
A expressão de triunfo desapareceu do rosto de Caesar, e ele ficou encarando Marcus fixamente.
- No que está pensando, meu garoto? Estamos falando de escravos. Pior ainda, de rebeldes. Eles destruíram centenas de fazendas e vilas e assassinaram milhares de
romanos. Está questionando o direito que tenho de destruí-los?
Marcus já tinha sua resposta pronta.
- Até alguns meses atrás, eu era um escravo. Eu fazia parte dessa ralé que você mencionou.
- E agora está livre.
- Mas isso não bastou para que eu esquecesse a experiência de ser um escravo, senhor.
- Marcus, não é você que escolhe o lado em que está. O destino escolhe por você. Um ano atrás, talvez você tivesse se juntado a Brixus. Mas agora está do meu lado.
Do lado de Roma.
- Talvez eu seja livre, mas eu vivi como um escravo e senti a maneira cruel e brutal como eles são tratados. Eu entendo por que Brixus e os outros se rebelaram.
Eles não tiveram escolha.
- Escolha? - Caesar pareceu surpreso. - O que escolha tem a ver com isso? Os escravos não têm direito de escolher nada. Eles devem simplesmente obedecer ou lidar
com as consequências de não obedecer. E eu vou mostrar a eles e a todos os escravos do Império o preço que se paga quando se esquece do significado de ser um escravo.
Marcus desvencilhou os ombros para deixar que o manto de Caesar caísse no chão.
- Então não posso contar onde fica o acampamento.
- Não pode ou não quer? - repetiu Caesar com um tom de voz gélido. - Está se atrevendo a me desafiar?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Se isso for salvar vidas, sim. Tanto de romanos quanto de escravos. Senhor, eu o servi com lealdade. Sou grato pelo senhor ter me libertado. Eu não o desafiaria
se houvesse outra opção. - Marcus cerrou o punho e o pressionou contra o próprio peito. - Não quero ficar com tantas mortes assim na minha consciência.
Antes que o confronto pudesse prosseguir, eles escutaram o barulho da aba da barraca. Era Festus chegando com um cantil e uma grande tigela. O envolvente aroma de
ensopado encheu as narinas de Marcus. Festus hesitou brevemente ao perceber o clima tenso entre os dois e depois prosseguiu em direção à mesa, deixando o cantil,
a tigela e a colher em cima dela. Em seguida, todos ficaram em silêncio e ninguém falou até Caesar gesticular para a tigela e murmurar secamente:
- Coma.
Apesar da fome, Marcus percebeu que seu apetite tinha sumido e que o nervosismo deixara seu estômago bem apertado. Ele se obrigou a pegar a colher para criar um
ar de normalidade.
Após tomar a primeira colherada, Caesar riu.
- Você perdeu um momento interessante, Festus. Parece que nosso jovem amigo resolveu virar alguma espécie de filósofo moral.
Festus franziu a testa.
- Senhor?
- Marcus está se negando a revelar a localização do acampamento rebelde.
Festus virou-se para Marcus, sem compreender.
- Como assim?
Marcus engoliu a colherada de ensopado e abaixou a colher.
- Eu não disse que não contaria a localização. Só queria fazer um acordo com o senhor, Caesar. Se eu lhe der o que o senhor quer, vou cobrar um preço.
- Um preço? Que absurdo é esse? - Caesar bateu a mão na mesa. - Não vou fazer nenhum acordo. Muito menos com um garoto. Um ex-escravo ainda por cima.
- Então não vou dizer nada - respondeu Marcus com firmeza.
De repente, Festus cercou o pescoço de Marcus com a mão e o balançou com força.
- Como se atreve a falar assim com Caesar? Você tem que falar com ele com o respeito que ele merece, garoto!
Marcus cerrou a mandíbula firmemente e suportou a dor enquanto continuava a encarar Caesar. Após um tempo, o procônsul suspirou fortemente.
- Já basta, Festus. Solte-o.
Festus empurrou a cabeça de Marcus para a frente e o soltou. Ele continuou parado atrás do garoto, pronto para agir de novo caso Caesar desse algum sinal. Caesar
entrelaçou os dedos e retribuiu o olhar de Marcus.
- Que preço é esse que você cobraria para contar a localização dos rebeldes?
Marcus massageou o pescoço delicadamente enquanto organizava seus pensamentos.
- Eu o levo até o acampamento e o senhor pede que eles se rendam. Em troca, o senhor poupa as vidas dos escravos. Eles devem ser devolvidos ilesos para os donos.
- E se eles não se renderem?
- Se o senhor for rápido, eles vão ficar encurralados. Eles vão ter que se render.
- E se eles preferirem resistir?
Marcus pensou por um instante.
- Rezo para que eles sejam sensatos, senhor. Se puder garantir as vidas deles, acho que eles vão preferir viver do que morrer de um golpe de espada ou crucificados.
- Os líderes terão que ser executados, claro.
- Não. Eles também serão poupados.
Caesar balançou a cabeça.
- Roma não vai gostar disso. O Senado e o povo vão pedir as mortes de Brixus e seus companheiros.
- O senhor é o comandante aqui. A decisão é sua, não deles.
Caesar recostou-se na cadeira e tamborilou os dedos da mão direita na mesa.
- E o que me impede de ordenar que Festus o leve e bata em você até a verdade ser dita? Ele é muito habilidoso em afrouxar línguas.
Marcus esforçou-se para não demonstrar nenhum medo no rosto.
- O senhor pode me torturar. Mas eu aguentaria algumas horas, e depois dessas horas Brixus e seus rebeldes já teriam escapado. Sei que o tempo é precioso para o
senhor. A campanha tem que terminar antes que o senhor possa marchar contra a Gália. Essa é a oportunidade de acabar com isso hoje. Caso contrário, isso pode demorar
meses.
Festus tossiu.
- O garoto tem razão, senhor.
- Quieto! - retrucou Caesar. - Se um dia eu quiser sua opinião, eu aviso.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor.
Caesar ignorou o guarda-costas e continuou com a atenção focada no garoto à sua frente. Marcus retribuiu o olhar com firmeza, mas por dentro estava apavorado. Sentia-se
pequeno e sozinho na presença de um enorme perigo, no entanto sabia que havia uma poderosa arma ao seu lado: o tempo. A cada momento que passava, o risco de Brixus
e seus seguidores escaparem ficava maior. Era com aquilo que estava contando. Caso tivesse se equivocado em relação a seu antigo senhor, Marcus com certeza morreria
naquele mesmo dia, e depois milhares de outros também antes do fim da rebelião.
- Muito bem - grunhiu Caesar entre os dentes cerrados. - Temos um acordo.
- Quero que jure. - Marcus engoliu em seco. - Quero que jure bem aqui, na frente de Festus.
- E vai me fazer jurar pelo quê? - perguntou Caesar com tom de zombaria.
- Algo pelo qual eu sei que você vai se comprometer. Quero que jure pela vida da sua sobrinha, Portia.
O sangue desapareceu do rosto de Caesar, e Marcus temeu ter ido longe demais. Logo depois, Caesar lentamente assentiu com a cabeça.
- Eu juro, pela vida da minha sobrinha, que não vou ferir os rebeldes que se renderem.
Marcus sentiu uma onda de alívio tomar conta de seu coração e estava prestes a agradecer quando Caesar estendeu a mão para que o garoto continuasse calado.
- Também juro, pela vida de Portia, que se você estiver me enganando, ou se os rebeldes escaparem, eu vou fazer Festus o pregar em uma cruz no topo da montanha mais
próxima para que todos vejam o que acontece quando alguém desafia Caesar. Ficou claro?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Então não temos tempo a perder. Pode me contar onde estão os rebeldes, e Festus vai ordenar que meus soldados se reúnam.
Marcus limpou a garganta.
- Ainda não disse tudo, senhor. Quero que jure mais duas coisas.
Caesar fulminou-o com o olhar.
- Fale.
- O senhor vai soltar Lupus. Libertá-lo. Quando a rebelião acabar, o senhor vai me dar alguns homens e uma carta de autoridade para que eu possa encontrar e libertar
minha mãe. - Marcus acenou com a cabeça. - Você concordou em fazer isso meses atrás.
- Concordo - disse Caesar secamente. - Pronto. Festus, vá dar a ordem.
- Sim, senhor. - Festus curvou a cabeça e saiu da tenda apressadamente para transmitir a ordem do procônsul. Dentro da tenda, Caesar respirava fundo pelo nariz enquanto
observava o garoto que fora seu escravo e um de seus gladiadores mais promissores.
- Fique esperando na frente da tenda.
Marcus obedeceu e tentou não demonstrar medo ao se afastar. Lá fora, o primeiro raio fraco de luz tentava atravessar a cobertura de névoa das montanhas ao leste.
Alguns flocos de neve rodopiavam na brisa suave que soprava pelos abrigos improvisados dos homens de Caesar. Marcus estremeceu. Não por causa do frio, mas por temer
o que aconteceria naquele dia.
23
Nuvens baixas e cinzentas cobriam o céu quando Festus virou-se para Marcus.
- Está pronto?
Marcus ficou parado por um instante. As fileiras extensas de legionários estavam formadas em suas coortes, o vapor de suas respirações subia entre os cabos escuros
das lanças. Atrás deles, Caesar e seus oficiais estavam a cavalo, esperando. À frente dos romanos, estendia-se o terreno aberto que levava à entrada do acampamento
rebelde. Apesar de saber onde ficava a abertura entre as rochas, Marcus não estava conseguindo enxergá-la ao olhar para o rochedo acima da floresta que se estendia
dos dois lados da entrada.
Nada se movia. Não havia sinal de vida, mas Marcus sentia os olhos dos rebeldes os observando, esperando os romanos agirem primeiro. Então, por um momento apavorante,
Marcus foi tomado por um medo terrível de que Brixus e os outros já tivessem escapado. No entanto, só havia uma maneira de descobrir. Ele acenou com a cabeça.
- Estou pronto.
- Então vamos.
Eles partiram pela neve, acompanhados por dois legionários com cornetas de latão. Após percorrem uma pequena distância, três sopros agudos das cornetas perfuraram
o ar, um a cada trinta metros, para que os rebeldes fossem advertidos da chegada deles. Festus explicou que aquele era o procedimento adotado quando o general de
um exército queria abrir negociações com o oponente. Era importante que os homens enviados para se pronunciarem em nome do general não fossem confundidos com batedores
tentando se infiltrar na área do inimigo. Marcus contorceu-se ao ouvir o primeiro sopro da corneta, mas continuou olhando para o rochedo à sua frente. Não havia
nenhum movimento, e o único barulho além da corneta era o ruído das botas esmagando a neve.
- Onde eles estão? - murmurou Festus. - Eles já deviam ter aparecido a essa altura... Se está tentando enganar Caesar, garoto, você sabe muito bem o que vai acontecer.
Marcus tentou não pensar no destino terrível que Caesar lhe prometera caso o acampamento tivesse sido abandonado. Ele engoliu em seco nervosamente e continuou avançando
pelo terreno aberto em direção ao rochedo.
- Tem certeza de que tem uma abertura no meio da rocha? - perguntou Festus. - Não consigo ver nada.
- Confie em mim, ela está lá.
Feito um borrão, uma flecha foi lançada do meio das pedras e atingiu a neve com um ruído surdo, alguns metros à frente do pequeno grupo que se aproximava. Eles pararam
e olharam para a haste trêmula e escura, contrastando com a neve branca. Em seguida, Festus levou a mão em concha à boca e exclamou:
- Apareçam! Nós viemos falar com Brixus!
Houve uma breve pausa, então Marcus avistou um homem no meio da base do rochedo. Ele o reconheceu imediatamente.
- Mandracus.
- Você o conhece? - disse Festus baixinho.
- Sim, ele é o segundo no comando de Brixus.
- Fiquem onde estão, romanos! - gritou Mandracus. - Se derem mais um passo, será uma chuva de flechas! O que vocês querem?
- Negociar - respondeu Festus. - Vim em nome de Caesar.
Mandracus ficou parado por um instante e depois se virou um pouco para as pedras, como se estivesse conversando com alguém escondido. Em seguida, ele assentiu com
a cabeça e seguiu pelo terreno aberto com cuidado, parando a trinta metros dos homens. Ele olhou-os e fixou a vista em Marcus.
- Então o espiãozinho de Caesar conseguiu mesmo fugir. Você nos traiu.
Marcus sentiu o coração parar. Era loucura estar ali. Mandracus revelaria a verdadeira identidade de seu pai a qualquer momento.
- Eu trouxe os romanos até aqui sim - respondeu Marcus.
Mandracus abriu um pequeno sorriso.
- Então eu tive razão em alertar Brixus a seu respeito. Se ao menos ele tivesse voltado para o acampamento um pouco depois, você estaria morto e o segredo do acampamento
continuaria protegido. Mas agora nada pode ser feito sobre isso. O que você e seus amigos romanos querem negociar?
- Estamos aqui para discutir as condições da rendição de vocês - interveio Festus.
- Foi o que pensei. - Mandracus fez sim com a cabeça. - Tudo bem, nós vamos conversar. Mas não com você. Com ele. - Ele apontou para Marcus. - Somente ele. Você
e os outros ficam aqui.
- Não. Eu que falo em nome de Caesar. O garoto não.
Mandracus deu de ombros.
- Ou ele ou ninguém. E, se tentarem atacar, vocês vão descobrir o quanto o nosso acampamento é impenetrável. Se Caesar quer conversar, nós falamos com o garoto.
São essas as nossas condições.
Nem Caesar nem Festus previram aquilo; o guarda-costas franziu a testa e coçou o queixo com ansiedade. Ele olhou para Marcus e falou baixinho:
- E então? Está preparado para fazer o que ele pediu?
Naquele instante, o que Marcus mais temia era ficar nas mãos de Brixus e seus seguidores. No entanto, se não estivesse preparado para arriscar a própria vida, aquilo
significaria a morte de muitos outros homens. Ele fez sim com a cabeça rapidamente, antes que pudesse mudar de ideia.
- Tudo bem. Mas, se houver algum sinal de perigo, saia correndo. Vou ficar esperando aqui e vou atrás de você no segundo em que avisar.
Marcus abriu um pequeno sorriso.
- Obrigado.
- Muito bem - disse Festus para Mandracus. - O garoto vai com você. Mas aviso que se encostar em um fio de cabelo dele eu o mato com minhas próprias mãos.
Mandracus riu da ameaça.
- Seja bem-vindo para tentar a qualquer hora, romano. Venha, garoto.
Marcus sentiu o coração acelerar enquanto se obrigava a se afastar de Festus e atravessar a neve para alcançar Mandracus. Em seguida, os dois foram em direção ao
rochedo. Ao chegarem mais perto, Marcus viu que a abertura estreita estava repleta de homens armados aguardando em silêncio. Na frente deles, a uns 15 metros de
distância, estava Brixus, pronto para a batalha com suas caneleiras e armadura polidas. O rosto dele, inflexível, parecia o de uma estátua.
- Não sei o que lhe dizer, Marcus - começou ele. - Não tenho palavras para descrever o nível da sua traição. Por que fez isso?
- Eu expliquei na sua cabana. Essa rebelião está fadada ao fracasso. Vocês não têm uma quantidade suficiente de homens treinados. Não é o momento certo. Se eles
estivessem mais preparados e fossem mais numerosos, talvez fosse possível vencer. Mas, do jeito que as coisas estão, isso só vai terminar em derrota e morte.
- É por isso que precisamos de você, Marcus. Com o filho de Spartacus liderando o nosso exército, nós atrairíamos escravos aos montes. Mesmo sem treinamento, a quantidade
deles seria tão grande que terminaríamos derrotando Roma.
- Acho que não - respondeu Marcus simplesmente. - E a sua batalha contra os homens de Caesar no outro dia mostrou que tenho razão. Se eu realmente achasse que vocês
têm chance de derrotar Roma, eu teria me juntado à rebelião.
- Mas em vez disso nos traiu.
Marcus balançou a cabeça.
- Eu queria impedir um banho de sangue inútil.
Brixus suspirou amargamente.
- O seu pai ficaria com vergonha se visse o que está fazendo.
- Meu pai morreu antes de eu nascer. Eu não o conheci. Não sou Spartacus. Sou Marcus e vou viver a minha vida como eu quiser. - Marcus falou com o máximo de orgulho
possível. - Não sou seu para ser comandado, nem de Caesar.
Mandracus deu um passo para a frente, cerrando o punho ao redor da adaga.
- Já ouvi o suficiente. Devo parar a língua dele, Brixus?
- Não... Deixe ele viver. Seria misericórdia demais matá-lo. Deixe que ele carregue o fardo da vergonha e da culpa do dia de hoje. Que essa seja a recompensa dele
por ter nos traído.
Mandracus contraiu os lábios e soltou a adaga relutantemente.
- Como quiser.
Brixus voltou a atenção para Marcus mais uma vez.
- O seu segredo está seguro comigo, pois você desonrou seu pai, um homem que eu amava como um irmão. Pelo jeito você não é filho dele. Talvez com o tempo você mude
de ideia. Espero que viva o suficiente para compreender e aceitar o seu destino. Antes disso... - A voz dele hesitou, e ele fez uma pausa. - O que Caesar quer de
nós?
Marcus obrigou sua mente exausta a lembrar a conversa com Caesar e Festus algumas horas antes.
- Caesar quer que vocês se rendam imediatamente. Em troca, ele jura que quem abaixar as armas será poupado. Todos os escravos serão devolvidos para os donos assim
que possível.
- E por que eu deveria confiar em um aristocrata romano e não cuspir nele?
- Ele jurou solenemente, na frente de testemunhas.
- E acha que ele vai cumprir o juramento?
- Esse juramento, sim - respondeu Marcus confiantemente. - Além disso, ele quer acabar logo com a rebelião e está disposto a fazer qualquer coisa para que isso aconteça.
- Não precisamos ficar aqui escutando isso! - interrompeu Mandracus. - Vamos deixar Caesar fazer o seu pior. Enquanto controlarmos a entrada, os romanos não vão
conseguir entrar no acampamento à força. Podemos nos defender pelo tempo que quisermos.
- É verdade. - Brixus assentiu com a cabeça. - Mas eles simplesmente nos cercariam aqui e nos fariam passar fome e nos render. Não temos como sair do vale. Caesar
não precisa forçar nada.
Marcus não disse nada. Ele sabia que o procônsul precisava que os rebeldes se rendessem imediatamente. Se fosse obrigado a esperar os rebeldes desistirem com base
na fome, ele perderia um tempo valioso. Marcus conhecia Caesar bem o suficiente para acreditar que ele ordenaria um ataque imediato ao acampamento. O ataque custaria
muitas vidas e não daria certo, e Caesar ainda assim seria obrigado a deixar os rebeldes passando fome até saírem lá de dentro. Ele não teria nenhuma misericórdia
com os sobreviventes.
Brixus observava as linhas romanas e o grupo de oficiais esperando mais atrás.
- Essa sua garantia inclui todos nós?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Todos. Inclusive você e Mandracus.
Mandracus bufou de desdém.
- É mentira. Ele vai querer que os líderes da rebelião sirvam de exemplo. Nós teremos o mesmo destino de Spartacus e seus camaradas: vamos ser crucificados do lado
de fora dos portões de Roma. Não seja tolo, Brixus. Desde o início você sabe que só existem dois caminhos para nós: liberdade ou morte. Ou nós nos defendemos enquanto
pudermos, ou nós abrimos caminho entre a tropa romana e escapamos. Podemos encontrar um novo acampamento, criar um novo exército e continuar a nossa luta.
O líder rebelde olhou para a aglomeração silenciosa de homens ocupando a abertura.
- Se defendermos o acampamento, seremos derrotados com o tempo. Para escapar, temos que abandonar todos os outros que moram aqui: os idosos, as mulheres, as crianças.
- É o preço a pagar para mantermos o sonho de Spartacus vivo.
Marcus pigarreou.
- Spartacus, meu pai, sonhava em acabar com o sofrimento dos escravos, não piorá-lo.
Mandracus aproximou-se com raiva.
- Segure a língua, traidor, antes que eu a corte!
- Basta! - repreendeu Brixus. Os olhos dele fulminaram Mandracus até ele recuar um passo. - O garoto tem razão. Estamos encurralados. Vamos morrer se ficarmos aqui,
vamos morrer se fugirmos. Você, eu e muitos outros acharíamos melhor morrer do que sermos escravos, mas não podemos fazer essa escolha por todos no acampamento.
É melhor eles viverem. Após sentirem o gostinho da liberdade, eles nunca vão esquecê-la, e com o tempo talvez surja uma oportunidade melhor para se rebelar. Mas,
se eles forem massacrados agora, essa esperança morrerá para eles e para os corações de todos que ainda são escravos. Precisamos aceitar as condições de Caesar.
Marcus sentiu uma onda de alívio percorrer o corpo.
- Você desistiria sem nem lutar? - perguntou Mandracus.
- Nós lutamos o máximo que podíamos, meu amigo. Agora precisamos aceitar a derrota.
Marcus percebeu a angústia no rosto de Mandracus ao tentar aceitar a decisão do líder.
- Essa é a sua vontade? A sua ordem?
Brixus, lentamente, assentiu com a cabeça.
- É sim.
Os ombros de Mandracus caíram e ele abaixou a cabeça, extremamente desolado. Brixus virou-se para Marcus.
- Volte para o seu... amo. Diga que nos rendemos com a condição de que ninguém seja ferido. Vou enviar meus homens primeiro e depois o restante.
- Obrigado - respondeu Marcus baixinho. Ele queria falar mais, agradecer por todas as vidas que tinham sido poupadas. Explicar que tinha o mesmo sonho dele, e de
Spartacus, e que, caso a situação fosse diferente, ele teria achado uma honra lutar contra Roma ao lado de Brixus. No entanto, ele viu o sofrimento e o desespero
no rosto do gladiador veterano e percebeu que aquelas palavras só o deixariam mais triste, então apenas estendeu a mão. Brixus olhou para baixo e ficou um instante
imóvel. Em seguida, estendeu a mão com calma e eles se seguraram delicadamente pelos antebraços.
- Adeus, Marcus. Duvido que eu o veja novamente.
Marcus sentiu um aperto na garganta enquanto respondia:
- Adeus.
Brixus olhou bem nos olhos dele e falou baixinho:
- Nunca se esqueça de quem você é. Talvez um dia chegue a hora...
- Se a hora chegar, eu estarei pronto.
Brixus fez sim com a cabeça, soltou o garoto e olhou para as linhas romanas.
- É melhor você ir.
Marcus virou-se lentamente e atravessou a neve na direção de Festus e dos outros, seu coração sofrendo por causa da despedida. Sentiu uma lágrima no canto do olho
e piscou para que ela sumisse. O céu estava carregado e bem acinzentado, e Marcus sentiu o peso inteiro do mundo em cima dos jovens ombros.
- E então? - perguntou Festus quando Marcus parou na frente dele.
- Ele aceitou. Está tudo acabado.
Marcus ficou sentado em sua sela ao lado de Festus, e os dois observaram a procissão silenciosa passar entre as fileiras de legionários dos dois lados da entrada
da abertura. A uma pequena distância, Caesar os observava com um jeito arrogante. Uma enorme pilha de espadas, lanças e outras armas e armaduras havia sido feita
de um lado da rota. Os rebeldes as soltavam lá antes de marchar sob os olhares atentos dos legionários. O pequeno grupo de reféns mantido pelos rebeldes fora liberto
e levado em uma carroça para se recuperarem em uma cidade próxima.
Os romanos conversavam pouco, mas os rebeldes estavam em silêncio. Caesar ordenara que Brixus e seus camaradas fossem os últimos a se renderem. Enquanto o final
da fila passava pela abertura, o comandante romano estalou a língua e levou sua escolta mais para a frente.
Marcus viu Mandracus e vários outros esperando, ainda com armas em mãos, observando os romanos se aproximarem.
- Chegou a hora de vocês se juntarem aos outros, cavalheiros - anunciou Caesar com um tom de voz desdenhoso. - Soltem suas armas.
Mandracus deu um passo adiante e fulminou o general romano com um olhar desafiador antes de sacar a espada. Festus tomou fôlego e pôs a mão em sua espada. Caesar,
no entanto, nem se mexeu, e, após uma breve pausa, Mandracus soltou sua arma, desafivelando as armaduras do peito e das costas para que elas caíssem na neve, então
se afastou para o lado. Um por um, seus camaradas fizeram o mesmo. Marcus procurou o líder rebelde, mas não viu sinal dele.
- Quem de vocês é Brixus? - perguntou Caesar.
Não houve resposta.
- Quem de vocês é o patife que se diz líder disso aqui? Dê um passo para a frente, Brixus.
Mandracus cruzou os braços enquanto respondia:
- Brixus preferiu não se render. Ele está lá dentro do acampamento, aguardando você com a espada na mão.
- Mesmo? - Caesar fez sim com a cabeça seriamente. Aproximando o cavalo do rebelde, ergueu o bastão proconsular e acertou a bochecha de Mandracus. - Me chame de
amo de agora em diante, escravo. Eu jurei que vocês seriam poupados e devolvidos para a escravidão. E vou tratá-lo como qualquer outro escravo que não respeita os
senhores! Está entendendo?
Mandracus estava encurvado, surpreso com o golpe, e o sangue pingava do corte em sua bochecha. Marcus assistia à cena, sentindo náusea. Apesar de saber que aquele
resultado era a única maneira de impedir a morte de muitos, a culpa que sentia devido à decisão tomada pesava bastante em seu coração.
Caesar ergueu o bastão novamente.
- Eu perguntei se você está me entendendo, escravo!
Mandracus olhou para cima e fez sim com a cabeça.
- Sim... amo.
- Ótimo. Então, junte-se à fileira.
Enquanto Mandracus era levado para longe, Caesar virou-se para a abertura e segurou as rédeas.
- Pelo jeito precisamos lidar com um último rebelde.
O vale secreto estava calmo e silencioso. Havia cabanas e abrigos abandonados dos dois lados da trilha. Caesar e seu grupo observaram as construções com cuidado,
suspeitando de que uma emboscada se revelaria a qualquer momento. Ao chegarem à pequena colina com vista para o centro do vale, as grandes cabanas do acampamento
de Brixus ficaram à mostra. Imediatamente, Marcus avistou um pequeno rastro de fumaça saindo da cabana maior. Um brilho vermelho surgiu quando uma chama atravessou
o telhado de palha e se espalhou rapidamente.
- Quero ele vivo! - exclamou Caesar ao incitar seu cavalo a seguir em frente, seus homens galopando logo atrás. Quando chegaram às cabanas, o incêndio tinha se alastrado
pelo telhado e o ar estava cheio de brasas vermelhas e pretas flutuando na brisa. O calor das chamas era intenso, e o cavalo de Marcus recuou, relinchando de medo.
Alguns dos oficiais saltaram dos cavalos para se aproximarem da cabana, mas era impossível. Então Marcus se lembrou da entrada que ligava os fundos da cabana a uma
menor e trotou com o cavalo ao redor do incêndio para poder enxergá-la melhor. As chamas ainda não tinham alcançado a estrutura menor, então Marcus desceu da sela
e se aproximou da entrada baixa com o braço erguido para proteger o rosto do calor. A neve que tinha caído recentemente ao redor da cabana já estava se derretendo,
mas Marcus avistou pegadas que iam na direção das montanhas no fim do vale.
Ele se afastou vários passos e olhou ao redor, mas nenhum dos outros homens tinha se juntado a ele na lateral da cabana. Rapidamente, Marcus chutou neve em cima
das pegadas, escondendo qualquer sinal delas, e se virou.
- Marcus! O que está fazendo? - Festus estava dando a volta no incêndio, aproximando-se dele.
- Pensei em tentar os fundos! - respondeu Marcus. - Mas é tarde demais.
Festus balançou a cabeça. Eles ficaram parados lado a lado, encarando o espetáculo incrível do incêndio diante deles, as chamas iluminando o vale e pintando as nuvens
acima de rosa. Após um tempo, Festus meneou a cabeça.
- Então Brixus preferiu morrer a se render... Uma bela morte, considerando as circunstâncias. Mas Caesar vai ficar furioso.
- Sim. - Marcus concordou com a cabeça. - Vai mesmo.
- Pelo menos ele teve sua vitória, de certa forma. A rebelião acabou. Isso vai irritar os inimigos dele no Senado e deixá-lo livre para cuidar da Gália.
Marcus meneou a cabeça distraidamente enquanto olhava para o rochedo ao redor do vale. Então avistou um movimento sutil no meio das rochas. Ele estreitou os olhos
até enxergá-lo novamente, uma última vez. Podia ser um homem, mas era difícil ter certeza a uma distância tão grande.
- Marcus?
Ele se virou de volta para Festus.
- O que foi? - O guarda-costas de Caesar olhou para as montanhas. - Você viu alguma coisa?
- Não, nada. Era apenas um pássaro. Mas ele já saiu voando.
24
LITORAL DA GRÉCIA, TRÊS MESES DEPOIS
- A estibordo fica Lechaeum. - O capitão do navio mercante ergueu o braço e apontou para a costa rochosa. Marcus acompanhou o movimento e avistou várias construções
brancas de telhas vermelhas na lateral da colina, perto do mar. - Com essa brisa, vamos chegar ao porto antes do fim do dia - acrescentou o capitão. Então, olhando
para cima brevemente para garantir que a vela estava se movendo bem, ele voltou para a popa.
Marcus continuou observando a costa do Peloponeso, o navio subindo e descendo com as ondas tranquilas do Golfo do Corinto. Algumas poucas gaivotas acompanhavam a
embarcação, circulando o mastro no céu azul e límpido. Era um bom dia para estar vivo, refletiu ele, enquanto o vento soprava em seus cabelos escuros e o ar fresco
do mar enchia seus pulmões com seu gosto salgado.
Apesar das consequências tensas da rendição dos rebeldes, Caesar tinha mantido sua palavra. Os escravos foram devolvidos para seus donos ilesos e nada aconteceu
com os líderes. O calor intenso do incêndio transformara a cabana de Brixus em cinzas. Os ossos não foram encontrados nos restos, mas o fogo tinha sido tão intenso
que queimara tudo, até mesmo a madeira grossa que sustentava o telhado. Caesar dissera que Brixus incendiara a cabana antes de tirar a própria vida, e ninguém se
atreveu a questionar o veredicto de que o assunto estava encerrado. Já Decimus e seus homens desapareceram imediatamente, e com certeza voltaram para Roma, para
a segurança da casa de Crassus.
Depois, em Rimini, Caesar encontrou Marcus pela última vez e o reuniu com Lupus. Como estava prestes a marchar para a Gália, cercado por um exército com uma guarda
pessoal de quinhentos legionários veteranos, ele não precisava mais de sua proteção pessoal. Festus e dois de seus homens, portanto, receberam ordens de acompanhar
Marcus até a Grécia. Por último, Caesar entregou a Marcus um pergaminho contendo o selo proconsular.
- É uma carta de apresentação. Pedi para que qualquer pessoa que receba isso o ajude a encontrar sua mãe.
Marcus curvou a cabeça.
- Fico grato por isso, Caesar.
- Imagino que sim. Não gosto de ser manipulado por ninguém, muito menos por um garoto de doze anos. Já cumpri minhas obrigações relacionadas a você, jovem Marcus.
Não nos veremos novamente. Se aparecer na porta de alguma das minhas casas, vou jogá-lo nas ruas.
- Compreendo.
E assim eles se separaram, e Marcus deixou o general em seu escritório, completando seus planos para a campanha na Gália. Quando chegou à porta da casa que Caesar
usava como quartel, ele escutou o barulho de passos mais atrás.
- Marcus, espere!
Ele virou-se e viu Portia, ofegante e agitada.
- Ouvi falar que você está indo embora.
- Banido me parece mais certo. - Marcus sorriu. - O seu tio nunca mais quer me ver.
- Ah... - Portia pareceu ficar arrasada. - Então eu nunca mais vou vê-lo.
Marcus balançou a cabeça tristemente.
- Como está o tribuno Quintus? - perguntou ele.
Desapontada com a pergunta, Portia deu de ombros.
- Ele sofreu muito com o frio. Feridas causadas pelo frio, disse o médico. Mas com o tempo ele vai se recuperar e se juntar ao meu tio.
- Que bom. - Marcus meneou a cabeça novamente.
Eles se encararam por um instante, e ela segurou as mãos dele e as apertou delicadamente. Marcus sentiu algo ser pressionado na palma da mão, e ela se virou e saiu
correndo, enxugando o canto do olho.
Marcus ficou parado perto do portão pesado enquanto o porteiro de Caesar o abria. Olhando uma última vez para as costas de Portia, ele saiu da casa. Lá fora, ele
viu um pesado anel de ouro ao abrir a mão. Havia um rubi brilhando fortemente no centro dele, como uma lágrima de sangue.
Agora, parado no convés da embarcação, Marcus lembrou-se daquele momento. Por baixo do tecido de sua túnica, ele sentiu a corrente ao redor do pescoço com o anel
na ponta. Apesar de estar triste porque nunca mais veria Portia, nunca houve dúvida quanto à necessidade de a amizade dos dois ser um segredo muito bem guardado.
Era melhor assim, decidiu ele relutantemente.
- O que foi, Marcus?
Ele se virou e viu Lupus a alguns metros de distância, segurando-se em uma corda para se equilibrar no convés oscilante.
- Nada. - Marcus sorriu discretamente. - Estou apenas pensando.
- Você devia estar contente. Está de volta à Grécia. Logo mais encontraremos sua mãe, você vai ver.
Marcus assentiu com a cabeça. Então os dois garotos viraram-se para a lateral do barco ao escutarem um gemido profundo do outro lado do convés. Festus estava encurvado
por cima da amurada, e seu corpo se agitava enquanto ele tentava vomitar mais uma vez.
Lupus riu.
- Pelo menos um de nós vai ficar contente quando chegarmos ao litoral. Quem diria que o velho Festus se comportaria como um carneirinho no instante em que pisasse
em um barco?
Marcus riu e olhou com carinho para o amigo.
- Você está bem animado hoje.
- E por que não estaria? - Lupus sorriu. - Estou livre. Pela primeira vez na vida. É a primeira coisa que penso todas as manhãs. Não existe nada melhor no mundo.
- Ele ficou mais sério. - E é a você que tenho que agradecer por isso.
Uma sensação agradável tomou conta de Marcus. Apesar de ter impedido um massacre sangrento de acontecer, aqueles que tinha salvado continuavam escravos. Apenas Lupus
foi liberto. Mas era um começo, disse ele para si mesmo. Um pequeno passo no caminho para... para o quê? Um destino melhor? Talvez. Mas por enquanto apenas uma coisa
importava. A única que o fizera aguentar a escola de gladiadores de Porcino, as cruéis ruas de Roma e os perigos gélidos dos montes Apeninos: o seu desejo ardente
de resgatar a mãe. E a hora de fazer aquilo finalmente tinha chegado.
As lutas públicas entre gladiadores eram cuidadosamente planejadas para exibir suas habilidades de combate. Mesmo que eles estivessem lutando até a morte, os espectadores
queriam ver uma bela demonstração antes de o perdedor ser morto. Geralmente, dois gladiadores com estilos diferentes de luta eram emparelhados. Quando os recrutas
de Cápua terminavam o treinamento inicial, os instrutores decidiam em que tipo de combate eles deviam se especializar.
(guerreiro com rede)
Vestia armadura leve porque o estilo de luta dependia de movimentos ágeis e velocidade. Usava uma rede, um tridente e uma adaga para prender e matar os oponentes.
(guerreiro que lutava contra animais)
Lutava contra animais selvagens, como tigres, leopardos e leões. Os bestiarii tinham sua própria escola de treinamento, mas alguns dos escravos de Cápua eram treinados
para lutar com animais, e Marcus confronta lobos em sua primeira luta. O bestiarius vestia armadura leve e elmo com visor, e usava uma lança ou faca, um chicote
e às vezes uma jaula. As lutas contra animais eram extremamente populares com o público. As recompensas para esse tipo de guerreiro eram grandes, e para os habilidosos
os combates podiam ser menos perigosos do que entre gladiadores.
A sobrevivência dos gladiadores dependia não só de vencer os oponentes, mas também de agradar o público. Um gladiador que perdesse uma luta e estivesse prestes a
ser morto podia ser salvo se a plateia considerasse que ele havia lutado bem e lhe desse o sinal positivo com o polegar.
O sinal negativo, contudo, significava que ele estava condenado à morte. Os espectadores apostavam em seus gladiadores favoritos. Marcus aprende que um gladiador
que é o favorito para ganhar certamente irá morrer se for derrotado, porque seus torcedores ficarão furiosos por terem perdido dinheiro.

Em sua jornada para vingar o assassinato do pai, centurião aposentado do exército romano, e descobrir o paradeiro de sua mãe sequestrada, Marcus Cornelius Primus é feito escravo, torna-se aprendiz de gladiador e descobre um segredo sobre sua origem e o passado de seu pai que pode por em risco sua própria vida na série Gladiador, uma aventura repleta de referências históricas protagonizada por um jovem que, assim como outros heróis da literatura juvenil, é forçado a deixar de lado sua inocência e por à prova sua coragem e determinação. No terceiro livro da saga, Filho de Spartacus, Marcus está finalmente livre da escravidão, mas novos desafios se impõem em seu caminho. Será ele capaz de mudar o rumo dos acontecimentos e ainda salvar sua mãe?

 

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1
Os invasores chegaram logo após o anoitecer, emergindo sorrateiramente do meio dos cedros que se espalhavam pelos declives da colina acima da vila. Eram mais de
cinquenta armados com espadas, lanças e clavas. Alguns vestiam armaduras: cotas de malha ou couraças de bronze antigo, com capacetes e escudos de vários formatos
diferentes. A maioria dos homens era magra e esquálida e acostumada a uma vida de trabalho árduo e fome constante. Seus líderes eram diferentes: sujeitos bastante
encorpados que possuíam as cicatrizes da profissão. Em contraste com os outros, suas armaduras eram bem ornamentadas e cuidadas. Antes de escaparem dos donos, tinham
sido gladiadores - os lutadores mais mortais de todas as terras governadas por Roma.
À frente da pequena força, havia um homem de ombros largos e cabelos escuros cacheados e cheios. Ele estava montado em uma égua negra, roubada de uma vila atacada
um mês antes. Sobre sua testa e seu nariz, espalhava-se uma cicatriz pálida de uma ferida causada alguns meses antes por um centurião, o comandante de uma patrulha
vítima de emboscada. A patrulha fazia parte da força enviada por Roma para encontrar e eliminar bandidos e escravos fugidos que se escondiam pelos Montes Apeninos.
Muitos eram sobreviventes da grande rebelião liderada pelo gladiador Spartacus 12 anos antes e ainda carregavam o legado dele em seus corações. A revolta quase destruíra
Roma, e, desde então, os romanos temiam mais um levante sangrento. Devido às guerras que travavam fora de seu território, não tinha sido possível para os romanos
destruir completamente os rebeldes sobreviventes, e, ao longo dos anos, eles se multiplicaram e chegaram aos milhares. Escravos fugidos, juntamente com aqueles que
tinham sido libertados nos ataques dos rebeldes às vilas e fazendas dos homens mais ricos de Roma, compunham agora o enorme exército dos lutadores pela liberdade.
Em breve, pensou o líder com um pequeno sorriso no rosto, eles teriam força suficiente para perpetrar ataques mais ambiciosos aos senhores romanos. Seu plano já
estava pronto. Chegaria a hora em que, mais uma vez, um gladiador lideraria um exército de escravos contra seus opressores. Até lá, o líder estava satisfeito em
comandar ataques menores, como o daquela noite, para irritar os ricos que controlavam Roma e para inspirar os escravos oprimidos que viviam miseravelmente nas casas,
nos campos e nas minas de todo o Império.
Os olhos atentos do líder analisavam as silhuetas escuras das construções e dos muros à sua frente. Ele e seus homens tinham passado dois dias observando a vila,
do meio das sombras das árvores. Era uma típica fazenda de um romano rico. Havia uma grande casa em uma das laterais, construída ao redor de um pátio com caminhos
de cascalho e canteiros de flores que cercavam espelhos d'água e lagos com peixes. Um muro separava a casa das construções baixas e simples onde ficavam escravos,
feitores, guardas e ferramentas agrícolas, assim como os celeiros e armazéns onde os produtos da fazenda eram organizados antes de serem transportados e vendidos.
O lucro resultante seria acrescido à fortuna do dono da propriedade, morador de Roma, indiferente ao trabalho árduo, sofrido e penoso daqueles que o enriqueciam.
Ao redor de todas as construções, havia um muro de três metros de altura para evitar ameaças externas e a saída dos escravos.
Enquanto estavam escondidos, os invasores observaram a rotina da vila e a entrada e saída dos guardas com os escravos acorrentados, que trabalhavam nos campos e
pomares ao redor das construções. A raiva do líder ardeu em suas veias ao ver os feitores agitando os chicotes e usando clavas para bater nos escravos mais lentos.
A vontade dele era de sair do meio das árvores em disparada com seus homens, matar os guardas e libertar os escravos, mas tinha aprendido o valor da paciência. Foi
uma lição que Spartacus o ensinara muitos anos antes.
Antes de tudo, em qualquer luta, deve-se observar o inimigo com atenção e descobrir suas forças e fraquezas. Apenas um imbecil se envolve em um conflito sem ter
essa preparação, insistira Spartacus. Então o líder e seus homens esperaram, reparando nos horários da troca de guarda nos muros e no portão da vila. Eles contaram
os guardas, analisaram suas armas e descobriram onde eles se acomodavam. Também tinham descoberto uma pequena parte rachada do muro que ficava atrás de um abeto;
mal dava para enxergá-la a distância. Os homens de vigia raramente passavam por aquela parte do muro, e seria por lá que o grupo atacaria.
Agora estavam se movendo silenciosamente por um campo que havia sido arado recentemente, aproximando-se de um bosque de oliveiras que ficava perto do muro externo
da vila. Mais à frente, o líder avistava as chamas fortes do braseiro acima da guarita, provendo iluminação para os guardas e também calor para aquela noite fria
de janeiro. Chamas menores cintilavam na escuridão em cima das torres nas extremidades dos muros, e era possível enxergar as silhuetas dos vigias agasalhados com
seus mantos e batendo as botas no chão para se aquecerem, com as lanças apoiadas nos ombros.
- Devagar - murmurou o líder. - Não façam nenhum barulho. Nada de movimentos repentinos.
A ordem dele foi sussurrada de homem a homem enquanto os seguiam sorrateiramente no meio das árvores, aproximando-se da parte danificada do muro. Quando o grupo
chegou ao fim do bosque, o líder estendeu a mão, e seus homens pararam. Em seguida, acenando para seis dos invasores mais próximos, o líder desceu da égua e entregou
as rédeas para um de seus homens. Ele abriu o fecho do manto e o colocou em cima da sela. Não seria prudente começar uma briga com camadas grossas de lã em cima
do corpo. Por baixo do manto, ele vestia uma túnica azul-escuro com um peitoral de couro preto incrustado com a cabeça prateada de um lobo. Havia uma espada curta
pendurada no boldrié em seus ombros, e seus braços estavam protegidos por braceletes de couro batido.
Ele se virou para os outros.
- Prontos?
Eles fizeram sim com a cabeça.
- Sim, Brixus.
- Então, vamos.
Cautelosamente, ele saiu do meio das árvores para o terreno aberto. A dez metros dali o abeto agigantava-se na escuridão. Havia uma pequena torre à mesma distância
ao longo da parede, com a silhueta de um guarda em pé de costas para o brilho do braseiro. Brixus deu um passo para frente e atravessou o gramado na direção do muro.
Ele mancava devido a um ferimento de muitos anos antes no tendão da perna, resultado de sua última luta em uma arena. O pequeno grupo saiu do meio das árvores e
o seguiu, atravessando o terreno, oculto como sombra. Apenas o barulho sutil da grama acompanhava seu progresso, e logo todos estavam debaixo dos galhos perfumados
do abeto, ao lado do muro.
- Taurus, para o muro - sussurrou Brixus, e uma silhueta enorme encostou-se na superfície rebocada, afundando as botas na terra enquanto juntava as mãos para fazer
um apoio. Imediatamente, um de seus companheiros, Pindar, um homem alto e ágil, saltou e, com um gemido, Taurus o ergueu na direção do topo do muro. Com rapidez,
Pindar soltou um tijolo e o entregou para um dos homens que o aguardava embaixo. O tijolo foi levado até o chão cuidadosamente e em seguida o mesmo foi feito com
mais um tijolo. Não demorou para Pindar remover todos os tijolos soltos e, com uma adaga, passar a retirar a argamassa que mantinha os outros juntos. O trabalho
seguiu devagar enquanto o líder mancava a uma pequena distância e se ajoelhava para observar o homem na torre de guarda. O vigia ainda estava lá, com as mãos estendidas
por cima das chamas do braseiro para aquecê-las. Após um tempo, ele pegou sua lança e começou a caminhar lentamente ao longo do muro, aproximando-se dos invasores.
- Fiquem parados - sussurrou Brixus, controlando ao máximo o volume, acomodando-se no gramado e pressionando o corpo no chão enquanto observava o sentinela se aproximar.
Seus camaradas ficaram paralisados, e Pindar achatou o corpo contra o muro. O sentinela continuou se aproximando e, ao chegar a uns cinco metros do buraco, parou
e se virou para o muro, olhando na direção das árvores. Brixus rezou para que seus homens estivessem imóveis, fora da vista do guarda, enquanto esperavam nas sombras.
Não houve sinal algum do sentinela e, após um instante, ele se virou e começou a voltar para perto do braseiro.
- Tudo bem - disse o líder baixinho. - Podem continuar.
Tijolo por tijolo, o buraco foi crescendo até ficar bem perto da cabeça de Taurus.
- Agora já dá. Podem subir. - Brixus gesticulou para o pequeno grupo de homens. Taurus ergueu um de cada vez na direção do buraco, e eles passaram por cima do muro
silenciosamente e entraram na propriedade. À direita, havia o muro da vila que tinha uma pequena guarita, dando acesso à parte da propriedade onde se trabalhava.
Uma guarita isolada e mais chamativa dava acesso à vila a partir de um caminho cercado de árvores, para que visitantes importantes não tivessem que passar pela deplorável
área dos escravos. Nas outras direções, havia o alojamento dos escravos e o dos feitores e guardas. Atrás deles, os celeiros e armazéns.
Brixus deu uma última olhada para o sentinela a fim de garantir que estava tudo bem, então se virou para as árvores e aproximou a mão da boca. Após respirar fundo,
ele imitou o pio de uma coruja três vezes. Um instante depois, avistou o restante do grupo invasor aparecer do meio das árvores e seguir em direção ao gramado, abaixando-se
ao chegar perto do abeto.
Aquele era o momento mais arriscado, pensou Brixus. Se o sentinela estivesse atento, com certeza avistaria os vários homens que emergiam da escuridão. Pindar estava
encarregado dele. Antes que os homens chegassem à metade do terreno aberto, escutou-se o barulho de uma pancada e, ao olhar para o muro, o líder percebeu o desaparecimento
do sentinela. Brixus suspirou aliviado, levantando-se e acenando para que os homens prosseguissem antes de ir mancando até Taurus.
- Minha vez, meu velho amigo. - Ele sorriu na escuridão e viu os dentes brilhantes do enorme homem retribuindo o sorriso. Então, após colocar a bota em cima das
grandes mãos de Taurus, o líder subiu e passou pelo buraco.
No corredor do sentinela, ele olhou para a esquerda e avistou Pindar descendo do muro, deixando o corpo do guarda esparramado mais atrás. No chão, lá embaixo, os
outros homens do grupo na dianteira estavam ajoelhados, formando um arco na superfície, apenas vigiando. Brixus abaixou-se por cima da passarela e desceu o último
meio metro, chegando ao chão. Acima de si, o líder escutou o primeiro homem do segundo grupo atravessar o buraco e se afastou para o lado apressadamente. Um por
um, os invasores desciam para dentro da propriedade e se juntavam aos homens espalhados em arco. Com um grunhido cansado, Taurus ergueu-se e passou pelo buraco para
se juntar aos companheiros.
Brixus sacou a espada e deu uma olhada em seus homens enquanto erguia a arma. Em resposta, eles agarraram as próprias armas e as ergueram, demonstrando que estavam
prontos.
- Para os alojamentos dos guardas - disse ele, apenas alto o suficiente para que todos o escutassem. - Vão com tudo. Nada de misericórdia.
Taurus grunhiu baixinho, assentindo, e os outros murmuraram seus comentários. O líder os guiou pelo caminho ao longo do muro, mantendo-se em sua sombra enquanto
mancava na direção do alojamento a cerca de cem passos de distância. O som abafado de vozes se espalhava pela propriedade - era uma conversa leve, e às vezes se
escutavam gritos de alegria e gemidos de homens que jogavam dados. Não havia nenhum som saindo do alojamento dos escravos. Eles deviam estar cansados demais para
fazer qualquer coisa além de dormir após comerem sua porção noturna de mingau de cevada. Além do mais, pensou Brixus, naquele tipo de propriedade os escravos eram
proibidos de falar para não se animarem a tramar algum complô contra seus donos.
Quando estavam a uns quinze metros da entrada dos alojamentos, uma porta abriu-se repentinamente e uma pequena fresta de luz rosada espalhou-se pela propriedade,
iluminando os homens que corriam ao longo da base do muro. Havia dois guardas na entrada dos alojamentos, eles carregavam duas jarras vazias que encheriam no poço.
De imediato pararam e ficaram encarando os invasores antes de reagir.
- Alerta! - gritou um guarda, virando-se para a porta e repetindo o grito. - Alerta!
Brixus voltou-se para seus homens e estendeu a mão livre na direção de Pindar.
- Leve seus homens e cuide dos sentinelas perto do muro. O restante vem comigo!
Ele apontou a espada para a entrada dos alojamentos e gritou o mais alto possível no ar da noite fria:
- Ataquem!
2
Um grupo liderado por Pindar correu pelos degraus que levavam ao muro, indo na direção dos sentinelas mais próximos. Na propriedade, silhuetas escuras corriam para
as portas dos alojamentos, com um rugido selvagem emergindo da garganta de cada um dos homens que se lançava adiante. Brixus fez o que pôde para acompanhar, mas
seu antigo ferimento fez com que a maioria de seus homens o ultrapassasse rapidamente. Os dois guardas desarmados na entrada recuperaram-se logo da surpresa e, soltando
as jarras, viraram-se e correram de volta para dentro.
Despertado pelo alvoroço, o primeiro defensor já tinha alcançado a porta do alojamento, armado com uma espada curta e uma adaga. O homem estava descalço e era encorpado,
com cabelos grisalhos e feições enrugadas. Pela reação ágil e pela maneira firme com que plantou os pés no chão, dava para perceber nitidamente que já fora um soldado
bastante experiente. Ele olhou para a onda de homens que se aproximava e gritou para trás:
- Peguem as armas! Juntem-se a mim!
Alguns homens conseguiram alcançá-lo antes que os invasores os atacassem. O ex-soldado desviou-se de uma clava e bateu a espada na lateral do corpo do primeiro invasor,
derrubando-o. Ele caiu soltando um gemido e abraçando o próprio corpo. Um de seus camaradas tropeçou nele e caiu na frente do guarda, que o matou com um rápido golpe
entre as omoplatas.
Apesar da coragem e do exemplo do ex-soldado, os guardas que estavam fora do alojamento se encontravam em desvantagem, e, após alguns instantes, os invasores já
tinham matado os dois defensores e obrigado o restante a voltar para a entrada. Por cima dos ombros de seus homens e das lâminas reluzentes, o ex-soldado percebeu
que o restante dos guardas tinha se armado para se juntar aos que estavam perto da porta aberta. Não dava para muitos homens lutarem no espaço estreito, e cada um
que caía morto era substituído rapidamente, sem nenhum dos lados ficar em vantagem.
Lá fora, Brixus soltou um palavrão baixinho. Estava com esperança de surpreender o inimigo e matar os guardas do alojamento antes que eles pudessem se armar e se
enfileirar. Era tarde demais para aquilo e ele precisava mudar de plano antes que perdesse mais homens. Sabia que não podia depender de mais ninguém, apenas de seus
companheiros gladiadores. O restante do grupo era formado por escravos fugidos que tinham se juntado ao seu crescente bando, ansiosos para se vingarem de seus antigos
opressores, mas sem o treinamento e a disciplina de lutadores experientes. Se vissem muitos de seus camaradas sendo derrotados, a coragem deles provavelmente se
enfraqueceria.
Guardando a espada, ele deu a volta nos homens aglomerados ao redor da entrada e segurou a beirada da porta.
- Para trás! - ordenou ele para os que estavam mais perto. - Você e você, me ajudem a fechar a porta.
Com homens dos dois lados, Brixus começou a empurrar. No início não enfrentaram nenhuma resistência, mas, quando os defensores perceberam o que estava acontecendo,
o ex-soldado berrou uma ordem:
- Mantenham a porta aberta!
Enquanto a luta desesperada continuava na entrada estreita, os invasores firmaram as botas no chão e empurraram a superfície áspera de madeira com toda a força que
tinham enquanto os defensores resistiam do outro lado. A pressão na porta diminuiu e parou.
- Taurus! - chamou Brixus entre os dentes cerrados. - Venha aqui! Agora!
O gigante empurrou um dos invasores para o lado e jogou seu peso contra a porta, ao lado do líder. Imediatamente ela começou a se mover de novo, fechando-se aos
poucos até a abertura ficar estreita demais para que alguém pudesse passar. A luz fraca dos candeeiros diminuiu e desapareceu no instante em que a porta se fechou
no caixilho.
- Mantenha-a fechada - ordenou Brixus, gesticulando para que os homens mais próximos ajudassem Taurus. Em seguida, ele se afastou e deu uma olhada na propriedade.
A uma pequena distância, ao lado de um dos celeiros, avistou um pesado carrinho de mão. Convocando vários homens, atravessou a propriedade rapidamente e agarrou
o carrinho. Com dificuldade devido ao peso do veículo, os invasores o empurraram até o alojamento, onde a porta estremecia devido ao impacto de corpos e armas do
lado de dentro. O carrinho foi manobrado ao longo da parede e levado para a frente da porta, travando-a. Só daria para os guardas a abrirem um pouco, o suficiente
para sair uma fresta de luz.
- E agora? - perguntou Taurus.
- Leve seus homens e peguem feno nos estábulos para empilhar ao redor do alojamento. O restante, proteja as janelas. Não deixem nenhum deles sair.
Enquanto o alojamento era cercado e os fardos de feno eram empilhados contra as paredes, alguns guardas perceberam o destino que os invasores haviam reservado para
eles e tentaram escapar pelas pequenas janelas que ficavam mais ao alto. Ao avistá-los, os invasores empurraram as lanças para cima, obrigando-os a voltar para dentro.
Quando Brixus viu que tudo estava preparado, ordenou que derramassem óleo em cima do feno e disse para Pindar acender uma tocha na braseira que ficava acima da guarita.
Ao voltar, Pindar entregou a tocha para Brixus, que foi mancando até o carrinho que bloqueava a porta.
- Vocês aí dentro, prestem atenção! Soltem suas armas e se rendam.
Houve um breve silêncio antes que uma voz respondesse:
- Para que sejamos massacrados como animais? De jeito nenhum. Vou morrer como um homem.
- Então a morte encontrarão! - gritou Brixus. Um sorriso frio apareceu em seus lábios. - Que a morte de vocês inspire todos os romanos e escravos. Pela liberdade!
Ele deu um passo para a frente e encostou a tocha na palha empilhada debaixo do carrinho. O material incendiou-se imediatamente, e o fogo começou a se espalhar,
crepitando. Em seguida, as chamas intensificaram-se e passaram a rugir. Elas cercaram as extremidades do alojamento e a fumaça subiu pelos ares, com as nuvens de
um laranja ardente iluminadas pelo fogo selvagem.
Ouviram-se gritos de dentro do alojamento e berros de pânico enquanto os homens apareciam nas janelas, mas eles terminavam voltando para trás por causa do calor.
Os invasores formaram um círculo ao redor da construção em chamas, com suas silhuetas escuras aparecendo no forte brilho das labaredas e suas sombras esticando-se
atrás deles, no meio da escuridão. Não demorou para que as chamas alcançassem a madeira do teto, fazendo pedaços de telhas caírem lá dentro. Não se ouviu mais nenhum
grito, apenas intensos berros de sofrimento abafados ocasionalmente pelos estrondos da madeira explodindo. Os gritos continuaram por um tempo, mas depois só restou
o rugir do fogo.
Brixus subiu na beirada do poço e deu uma olhada na pequena multidão à sua frente, com os rostos iluminados pelo fogo do alojamento, que morria lentamente. Ao seu
lado, estava o feitor que administrava a propriedade para seu senhor rico, juntamente com sua esposa e dois filhos pré-adolescentes. Eles encaravam o chão, com medo
de olhar nos olhos de seus captores. Brixus voltou a atenção para a multidão. A expressão da maioria dos homens era de medo, mas alguns o olhavam com esperança nos
olhos. Aqueles seriam os mais fáceis de recrutar, refletiu Brixus enquanto pensava e se preparava para falar com os escravos recém-libertos do barracão longo e de
teto baixo onde ficavam presos após trabalharem nos campos e pomares da propriedade. Após a barra de travamento ser removida, as portas foram abertas, e o fedor
familiar de suor e dejetos humanos emanou lá de dentro; Brixus xingou os romanos por tratarem aquelas pessoas praticamente como animais.
Segurando a tocha no alto, Brixus entrou no local, contendo a náusea enquanto os escravos rastejavam para longe dele. A maioria estava acorrentada pelo tornozelo
para prevenir qualquer tentativa de fuga enquanto estivessem nos campos. Apenas alguns poucos - crianças, homens mais velhos e mulheres - estavam sem correntes.
Eles vestiam farrapos sujos e rasgados e tinham a pele suja coberta de feridas e cicatrizes causadas pelas surras que levavam dos feitores.
- Meu nome é Brixus - disse ele. - Sou um tenente de Spartacus. Vim libertar vocês.
Ele se virou para seus seguidores.
- Tirem as correntes deles e os levem para fora daqui. Mantenha o grupo junto para que eu possa falar com eles quando estiverem prontos.
Agora os escravos estavam parados diante de Brixus, ansiosos para saber o que aconteceria com suas vidas.
Brixus respirou fundo e falou em voz alta para ser escutado em meio ao crepitar distante das chamas que ainda consumiam as ruínas do alojamento.
- A vida de trabalho árduo de vocês já era, meus amigos. Não vai ter mais nenhum chicote. Nem corrente. Nada de passar fome, comendo apenas o mingau ralo que os
senhores de vocês davam. Vocês viram o quanto eles viviam bem enquanto vocês enfrentavam todo esse sofrimento, exaustão e fome? - Ele apontou o braço na direção
do feitor e sua família.
Os escravos olharam para o homem que controlava todos os aspectos de suas vidas, e houve um silêncio antes que uma voz murmurasse raivosamente. Outros fizeram o
mesmo, cerrando os punhos no ar.
Brixus ergueu as mãos e os chamou.
- Já basta! Já basta! A vingança de vocês chegará em breve. Mas agora me escutem.
Depois que ficaram em silêncio, Brixus prosseguiu:
- Como estava dizendo. Vocês não são mais escravos, agora são homens livres. Podem fazer o que quiser com a vida de vocês. São senhores dos próprios destinos.
- O que vai acontecer quando a notícia desse ataque se espalhar? - perguntou uma voz. - Eles vão vir pra cá e punir todos os escravos que encontrarem.
- Então venham conosco - respondeu Brixus.
- Para onde? Os romanos vão nos caçar como cachorros.
- Não, não vão. Eu já disse o meu nome para vocês. Eu sou Brixus, leal à causa pela qual Spartacus morreu. Quando a rebelião terminou, eu sobrevivi, assim como muitos
outros. Quando escapei novamente, fui para as colinas, para os Montes Apeninos, e me juntei ao exército de escravos que continuava escondido. Desde então, o nosso
número tem aumentado com os ataques que fazemos às propriedades daqueles que se dizem nossos senhores, e libertamos os escravos deles. Eu lidero apenas um dos grupos
de rebeldes que estão escondidos nas montanhas. Os romanos tentaram nos encontrar, mas nós escapamos. Agora estamos revidando, é a nossa vez de atacá-los, destruir
suas patrulhas e incendiar os postos avançados. Eles estão ficando com medo de nós. Todo soldado romano que matamos, toda vila que destruímos e todo escravo que
libertamos aumentam o medo deles. - Brixus parou para enfatizar as próximas palavras. - Em breve, chegará o dia em que teremos força suficiente para reiniciar a
rebelião que Spartacus liderou, e acontecerá uma nova guerra contra aqueles que nos queriam escravos.
Gritos entusiasmados de aprovação espalharam-se pela massa, e um idoso que estava mais à frente deu um passo.
- Eu também lutei por Spartacus. Mas nós fazíamos parte de um exército. Eram milhares de homens. E ainda assim os romanos nos derrotaram. Você é o líder de um bando
de foragidos e bandidos. Que chance vamos ter se nos juntarmos a você? Que liberdade é essa que está oferecendo? Alguns meses como fugitivos nas colinas, no meio
do inverno, para depois sermos perseguidos, encontrados e castigados. Da última vez, milhares foram crucificados para que nós aprendêssemos uma lição. Não acha que
a raiva deles vai ser bem maior da segunda vez? - O idoso virou-se para seus companheiros e ergueu a mão para chamar a atenção. - Na minha opinião, é melhor ficarmos
aqui. Quando os soldados vierem, nós explicamos que não tivemos nada a ver com o que aconteceu hoje.
- Seu velho tolo! - gritou Brixus. - Acha que eles vão acreditar? Não. Eles vão querer se vingar e fim de história. Eles vão fazer vocês de exemplo de qualquer jeito.
Se ficarem aqui, vão morrer.
- Todos nós vamos morrer - respondeu o idoso. - De um jeito ou de outro.
- Então a única coisa que importa é como vocês vão morrer - respondeu Brixus. - Vocês podem preferir passar o resto da vida nessa imundície, sobrevivendo das sobras
de comida que seus senhores quiserem dar, ou podem escolher se apoderar da liberdade de vocês neste exato instante. Sejam seus próprios senhores. Sintam o gostinho
da liberdade. Claro que terão de pagar um preço por isso, mas é assim com tudo que se vale a pena ter. Para ficarem livres, vocês terão que lutar. É melhor lutar
do que passar a vida se humilhando diante de um romano gordo e nojento. O que significa a morte para vocês hoje senão apenas o fim do sofrimento? O fim de uma vida
sem valor. Juntos, nós podemos acabar com isso. Podemos ter liberdade em vez de escravidão. Mas isso só vai acontecer se tivermos coragem de lutar por essa liberdade.
Quem aqui vai se juntar a mim?
- Eu! - gritou uma voz, acompanhada imediatamente por várias outras. O idoso olhou à sua volta e balançou a cabeça, sem acreditar.
Quando os gritos acabaram, Brixus falou novamente:
- Irmãos e irmãs, a era da escravidão acabará em breve. Os bandos de rebeldes vão se unir, e o sonho de Spartacus vai se tornar realidade.
- Spartacus está morto! - respondeu o idoso, gritando.
- Sim, ele está morto - reconheceu Brixus. - Mas o sonho dele continua vivo. Mais do que o sonho dele. A linhagem de Spartacus continua. Em breve, muito em breve,
os rebeldes vão se unir e lutar juntos por uma única causa e por um único líder, e esse líder é exatamente a pessoa mais adequada para assumir o lugar do grande
Spartacus, pois não é ninguém menos do que o filho dele! Ele vai nos liderar e concretizar o sonho do pai, o mesmo sonho de todos os escravos do Império Romano.
- O filho de Spartacus? - O velho balançou a cabeça. - É impossível. Eu estava lá. Ele não tinha nenhum filho.
- O filho nasceu logo após o fim da rebelião. Ele tem a marca secreta de Spartacus. Eu vi. Eu conheci o garoto.
A multidão ficou em silêncio, escutando as palavras com bastante atenção, e em quase todos os rostos ardia a esperança.
- Onde está ele?! - gritou alguém. - Onde está o garoto?!
- Eu sei onde ele mora - disse Brixus. - Ele está seguindo os passos do pai e já mostrou que vai se tornar um gladiador tão bom quanto Spartacus. Talvez até melhor.
Ele ainda é jovem, mas, quando chegar a hora, não vai conseguir fugir do próprio destino. Ele vai seguir sua vocação e liderar todos nós até conquistarmos nossa
liberdade!
- Liberdade! - gritaram seus seguidores, e logo os escravos recém-libertos também ecoaram o grito. Até o idoso se juntou a eles, com os olhos brilhando de emoção.
Brixus deixou a celebração continuar por um tempo e depois levantou as mãos, pedindo silêncio.
- Ainda precisamos cumprir uma tarefa antes de irmos embora daqui. - Ele se virou e apontou para o feitor e sua família. - Temos que mostrar aos romanos qual destino
espera aqueles que oprimem outros seres humanos. Tragam o menino mais novo até mim.
Um de seus homens aproximou-se da família, agarrou o braço do menino e o puxou para longe. Ele tentou se soltar e estendeu a mão para a mãe, o rosto dela sendo tomado
pela aflição. O feitor a segurou e falou para o filho com um tom firme e desafiador:
- Não demonstre nenhum medo para essa gentalha. Não chore. Lembre-se, você é um romano.
Brixus riu e algumas pessoas na multidão também zombaram dele.
Ao ser colocado na frente de Brixus, o garoto se empertigou o máximo possível e tentou demonstrar calma e coragem.
- Está com medo de mim? - perguntou Brixus.
- Não.
- Devia estar. Qual o seu nome?
- Lucius Pollonius Secundus. Mas pode me chamar de jovem amo.
Brixus sorriu.
- Que arrogante. Você é mesmo um romano. Mas a pergunta é a seguinte: você é um romano inteligente, Lucius? Acha que consegue se lembrar de todos os detalhes do
que aconteceu aqui esta noite?
- Nunca vou me esquecer.
- Verdade. - Brixus assentiu com a cabeça e em seguida se virou para Taurus. - Crucifique os outros. Este aqui deve ser acorrentado na base da cruz do pai. Ele que
vai contar para Roma da nova rebelião que se aproxima e que desta vez o herdeiro de Spartacus nos levará à vitória e à aniquilação de Roma.
3
- Acha que Caesar vai ganhar a votação? - perguntou Marcus enquanto olhava para o interior do Senado pela janela.
Como sempre acontecia numa votação importante, janelas e arcos estavam lotados de espectadores querendo presenciar o debate e torcer por seus heróis ou zombar dos
senadores impopulares. Tinha chovido bastante naquela manhã, e o ar estava frio e úmido. Marcus puxou o manto ao redor do corpo com firmeza. Apesar do tempo, ele
estava com o capuz abaixado para poder acompanhar os acontecimentos barulhentos do Senado com mais clareza. Seu cabelo escuro e cacheado estava precisando ser cortado
com urgência, mas tinha se acostumado a usar uma faixa de couro ao redor da testa para prendê-lo, amarrando-a atrás do pescoço. Apesar de ter completado 12 anos
recentemente, ele era alto e encorpado para sua idade, o que era esperado de um garoto que passara quase dois anos de sua vida treinando para se tornar um gladiador.
Em seu rosto havia uma seriedade incomum para a idade, assim como as cicatrizes que tinha acima do joelho direito.
Sua infância idílica na ilha grega de Lêucade tinha sido interrompida quando ele e sua mãe foram sequestrados pelos homens do agiota Decimus. Logo depois os dois
foram separados; sua mãe foi levada para passar o resto da vida como escrava em uma fazenda na Grécia, e Marcus foi levado para um lanista - o dono de uma escola
de gladiadores - perto de Cápua. Seu treinamento foi brutal e severo até o instante em que foi escolhido para lutar na frente de Julius Caesar. Por sorte, ele salvou
a vida da sobrinha de Caesar, Portia, que caíra na arena durante o combate de Marcus contra dois lobos.
Então, ele foi levado a Roma para trabalhar na casa de Caesar e espiar os inimigos dele. Como recompensa, ele ganhou sua liberdade. Aquilo tinha acontecido meses
antes, e Marcus achava que não tardaria em reencontrar a mãe. No entanto, estava demorando. Apesar de Caesar ter tentado, ele não tinha conseguido descobrir o paradeiro
dela, e Marcus estava ficando inquieto. Sentia uma dor no coração toda vez que pensava na mãe, imaginando-a acorrentada a outros escravos, obrigada a trabalhar nos
campos da vila que pertencia a Decimus. Só descansaria quando ela deixasse de ser escrava. E quando conseguisse se vingar de Decimus por todo o sofrimento causado
a ele, sua mãe e Titus, o homem que criara Marcus como filho. Marcus decidiu que, se não houvesse nenhum progresso até o fim do mês, ele pediria a permissão de Caesar
para procurá-la sozinho.
Mesmo conquistando sua liberdade, logo Marcus percebeu que ela era menor do que pensava. Os escravos libertos tinham que pagar uma dívida ao antigo dono e deviam
honrar quaisquer pedidos de mais serviços. Era tudo parte dos costumes peculiares do povo romano, bem diferentes da vida simples que tinha em Lêucade.
O tempo estava se esgotando para Marcus. Seu antigo dono tinha completado um ano como um dos dois cônsules e em breve deixaria Roma para assumir o comando dos exércitos
e da província da Gália Cisalpina. Se fosse obter mais alguma ajuda de Caesar para encontrar a mãe, seria em breve, antes que ele fosse embora de Roma como general.
No entanto, primeiramente, Caesar teria de sobreviver à tentativa de seus inimigos políticos de o processarem por abusar de seus poderes durante seu ano como cônsul.
Hoje eles votariam para decidir se Caesar deveria ser julgado ou não. Os argumentos a favor e contra o julgamento tinham sido expostos energicamente durante o dia
inteiro, e Caesar levantara-se de seu banco várias vezes para se dirigir aos acusadores. Como sempre, Marcus ficou impressionado com a habilidade de seu antigo senhor
falar em público. Utilizara-se de raciocínio, retórica e humor para desafiar os oponentes e ganhar o apoio dos senadores e da maioria dos espectadores. Mas será
que isso seria suficiente?
O homem grisalho ao lado de Marcus inclinou a cabeça para o lado enquanto pensava na pergunta do garoto. Festus era responsável pela guarda pessoal de Caesar, uma
pequena força composta de veteranos do exército, ex-gladiadores e lutadores de rua que cuidavam da segurança dele ao passar pelas ruas cheias de Roma. Marcus era
o membro mais jovem da força, mas tinha conquistado o respeito dos outros por sua coragem e sua habilidade com as armas.
- É difícil saber. Nosso senhor é popular com o povo. As reformas de terra feitas por ele no ano passado ajudaram muita gente. Mas não cabe ao povo resolver o que
vai acontecer com ele. Somente os senadores vão decidir isso. - Ele parou, e um sorriso apareceu em seu rosto fatigado. - Mas eu me arrisco a dizer que a maioria
deles não vai querer ser alvo da raiva da multidão, que é o que vai acontecer se decidirem a favor do julgamento de Caesar. O único risco é se Cato conseguir mudar
a opinião deles.
Marcus olhou para o senador rabugento sentado no banco na frente de Caesar. Cato estava com sua toga lisa marrom para mostrar que se mantinha fiel às virtudes mais
simples e às tradições dos antepassados do Senado. No ano passado, ele resistira amarguradamente às reformas de Caesar, e os dois continuavam inimigos um do outro.
Um dos novos cônsules, Calpurnius Piso, estava comandando o debate e tinha se levantado para tomar a palavra. Enquanto pigarreava, os outros senadores e os espectadores
ficaram em silêncio em respeito ao cargo dele.
- Meus companheiros senadores. Sei que temos apenas mais duas horas antes que o dia acabe. Escutamos os argumentos a favor e contra a proposta nos últimos três dias
e sugiro que agora nós votemos para decidir se Caesar deve ser julgado ou não.
- Agora vamos descobrir - murmurou Marcus.
- Não tenha tanta certeza disso - disse Festus. - Você está se esquecendo do nosso amigo Clodius.
Marcus assentiu com a cabeça, lembrando-se do jovem violento que organizara as gangues de rua a serviço dos interesses de Caesar no ano anterior.
- Eu proíbo! - disse uma voz alta.
Os olhos de todos se viraram para um dos homens sentados no banco dos tribunos. Estes, eleitos pelo povo, tinham o poder de se opor a qualquer decisão tomada pelo
Senado, mas raramente se recorria a isso. O tribuno Clodius levantou-se e estendeu a mão.
- Eu proíbo a votação.
De maneira abrupta, Cato levantou-se e apontou o dedo acusatoriamente.
- Com base em quê?
Clodius virou-se para o senador e sorriu.
- Não tenho que me justificar para você, meu caro Cato. Eu simplesmente tenho o direito de proibir a votação. É isso.
Cato fulminou-o com o olhar do outro lado do Senado.
- Mas você tem a obrigação moral de explicar sua decisão. Você precisa dizer quais são seus motivos.
- Preciso mesmo? - Clodius virou-se para o cônsul.
Piso suspirou e balançou a cabeça.
- Argh! - disse Cato, furioso. - O tribuno está abusando dos poderes dele. Se não existe nenhuma razão para proibir uma votação, e neste caso não existe, então não
é correto ele proibi-la.
- Talvez não seja correto - respondeu Clodius com o tom de voz neutro. - Mas é meu direito. E você não pode fazer nada a respeito disso.
As palavras dele provocaram uivos raivosos nos defensores de Cato, e Marcus percebeu que muitos dos outros senadores pareciam estar com raiva, até mesmo aqueles
que normalmente apoiariam Caesar. Virou-se para Festus e disse:
- Acho que Caesar está cometendo um erro. Ele não devia confiar em Clodius.
- Talvez, mas por que arriscar perder a votação?
- O nosso senhor está arriscando mais do que a votação. - Marcus apontou para o Senado, que estava sendo tomado pela raiva. A gritaria continuou por um instante
até o escrivão de Piso bater o bastão no chão de mármore. O barulho diminuiu aos poucos, e Piso apontou a cabeça na direção de um sujeito alto sentado entre Cato
e Caesar.
- A palavra é entregue ao senador Cicero.
Marcus inclinou-se para a frente contra o batente da janela. Queria garantir que não perderia nada. Cicero, um dos senadores mais respeitados, ainda não tinha optado
por um lado. O que quer que ele dissesse poderia fazer o Senado apoiar Caesar ou ficar contra ele.
Cicero caminhou com determinação até o espaço aberto na frente do cônsul e virou-se para os senadores, aguardando. Marcus sentiu o clima de ansiedade e de tensão,
mas Cicero, mestre de todos os truques para se falar bem em público, esperou o silêncio total antes de começar a falar:
- Honrados senadores, não vamos abrir feridas antigas. São poucos aqui os que conseguiram esquecer as terríveis e violentas brigas que acompanharam a época de Marius
e Sulla. E nenhum de nós quer voltar para aquela época, em que todo senador temia pela própria vida, em que as ruas da nossa cidade eram tomadas pelo sangue. Portanto,
vamos lidar com a nossa dificuldade atual abrindo-nos para o acordo.
Marcus viu Cato balançar a cabeça e começar a se levantar. Cicero gesticulou para que continuasse sentado e, relutantemente, ele se acomodou. Caesar apenas observava,
com o rosto frio e inexpressivo.
- Poucos podem negar - prosseguiu Cicero - que os dois lados têm motivos para queixas. O período de Caesar como cônsul foi polêmico devido à natureza das leis por
ele introduzidas, e eu mesmo questiono as táticas que ele usou para impor sua vontade. Mas a presente tentativa de fazer com que ele seja julgado me parece ter motivações
políticas. Claro, tenho certeza de que o Senado faria um julgamento justo e de que a decisão final seria tomada com base na razão e na justiça.
Festus zombou dele:
- Quem ele acha que está enganando?
- Shhh! - chiou um homem robusto ao lado dele.
- Entretanto - prosseguiu Cicero -, como o tribuno Clodius exerceu seu direito de veto, nós não podemos votar a respeito do julgamento. O tribuno tem permissão da
lei para não contar os motivos de sua decisão, mas a ele eu digo que isso demonstra o tipo de frivolidade pelo qual ele ficou famoso. Ele está arriscando intensificar
as discórdias que já abalam bastante a unidade do Senado.
Clodius cruzou os braços, recostou-se na cadeira e sorriu.
- Todos sabem que Clodius é um seguidor de Caesar, e isso explica completamente a decisão dele. Mas nada pode ser feito, nem deve ser feito, para forçar o tribuno
a mudar de ideia. No momento em que seguirmos esse rumo, minamos a importância das tradições e leis responsáveis por tornar Roma a grande potência que é. Portanto,
sugiro concordarmos com o seguinte meio-termo. - Ele fez uma pausa. - No ano passado, o senador Cato sugeriu que Caesar passasse a ser responsável pela destruição
do que sobrou do exército de Spartacus. Naquela época não houve votação devido ao tumulto na área externa do Senado. - Ele olhou significativamente para Clodius
antes de prosseguir: - E hoje eu soube de mais um ataque, dessa vez a uma propriedade perto de Tiferno, pertencente a um membro desta casa, o senador Severus. -
Ele gesticulou na direção de um senador grande e careca sentado na fileira da frente.
- Exatamente - disse Severus, franzindo a testa. - A escória incendiou minha vila inteira, massacrou meus empregados e libertou todos os meus escravos. É um absurdo!
- Certamente. - Cicero assentiu com a cabeça. - O número e a intensidade dos ataques têm aumentado. Os bandos de rebeldes agora representam uma grande ameaça à segurança
da fazenda e das vilas dos dois lados dos Apeninos. O líder deles, um bandido chamado Brixus, está tentando unir os escravos para formar um único exército sob seu
controle. Ele alega até que o filho de Spartacus está vivo e que ele será o testa de ferro de uma nova rebelião. Claro que é tudo mentira, mas os tolos que seguem
Brixus estão dispostos a acreditar em qualquer coisa.
Marcus sentiu um arrepio gélido na nuca. Tinha conhecido Brixus na escola de gladiadores onde foi treinado. Marcus descobrira o segredo de Brixus: ele fazia parte
do grupo mais próximo de Spartacus. Já Brixus descobriu um segredo ainda maior: que o garoto era o filho do antigo líder dos escravos, portanto um inimigo de Roma
inteira. Apesar de Marcus ter ido trabalhar na casa de Caesar de propósito, para poder encontrar a mãe, ele passava o tempo inteiro temendo que sua verdadeira identidade
fosse descoberta. Até então ele conseguira mudar de assunto quando alguém via a marca com a cabeça de um lobo na ponta de uma espada, queimada em seu ombro, sinal
de sua ligação com Spartacus. No entanto, a notícia da rebelião de Brixus o deixou transtornado. Ele olhou com cautela para Festus, que encontrou seu olhar e ergueu
a sobrancelha interrogativamente.
- O que foi, Marcus? Parece que viu um fantasma.
- Não é nada. - Marcus obrigou-se a ficar com a expressão calma apesar de seu coração bater acelerado dentro do peito.
Cicero respirou fundo e prosseguiu:
- Precisamos lidar com esses bandidos. Se Caesar concordar em se responsabilizar pela destruição deles, Cato, você concorda em deixar de lado a sua tentativa de
julgá-lo?
Antes que Cato pudesse responder, Caesar levantou-se.
- Protesto! Já tenho outros deveres. Vou assumir o comando do meu exército na primavera. Não tenho tempo para perder indo atrás de alguns poucos escravos exaustos.
Tenho assuntos bem mais importantes para me preocupar.
- Mais importantes do que a segurança do Império? - perguntou Cicero.
- Não... claro que não - respondeu Caesar furiosamente. - Não há nada mais importante do que isso. Mas...
- Então você com certeza aceitará o serviço?
Caesar pressionou os lábios um contra o outro, tentando conter a frustração enquanto Cato se levantava para falar.
- Se Caesar aceitar, eu fico contente em retirar minha proposta de julgá-lo.
Uma onda de aplausos espalhou-se entre os outros senadores, que concordavam com a cabeça. Cato abaixou a cabeça graciosamente antes de estender a mão na direção
de Caesar.
- Eu cedi, Caesar. Você fará o mesmo?
- Ah, o nosso senhor não vai gostar disso - murmurou Festus. - É melhor se preparar para a gritaria que vamos ouvir quando chegarmos em casa.
Marcus estava observando Caesar, esperando que ele recusasse o acordo de Cicero.
Caesar concordou lentamente com a cabeça.
- Muito bem. Eu aceito. Vou assumir o comando de uma força para encontrar e destruir esses rebeldes assim que pudermos. Prometo encontrar esse escravo chamado Brixus
e trazê-lo de volta para o Senado para que possamos decidir como castigá-lo. Vou acabar com o legado de Spartacus de uma vez por todas.
Suas palavras foram recebidas com aplausos pelos senadores, e logo os espectadores nas janelas e portas faziam o mesmo. No entanto, Marcus ficou em silêncio. A última
coisa que queria era que Caesar capturasse Brixus. O que seu antigo senhor faria se descobrisse que Marcus era filho de Spartacus, o maior inimigo já enfrentado
por Roma?
4
Festus tinha razão. No instante em que Caesar e seu grupo entraram na casa, logo após a porta se fechar, ele teve um ataque de raiva. Marcus nunca o vira tão furioso.
- Maldito seja Cicero! Que ele vá para as maiores profundezas do Hades! Agora serei obrigado a me encarregar de uma perseguição inútil quando devia estar com minhas
legiões na Gália.
Clodius deu de ombros e examinou as unhas de sua mão direita.
- Então talvez você devesse ter recusado ou pelo menos acenado com a cabeça para que eu intercedesse com meu veto.
- Não. Esse direito não deve ser excedido. Tivemos que usá-lo para impedir a votação. Usá-lo também contra Cicero seria demais para o Senado. Até a lealdade das
pessoas que me apoiam tem seus limites. - Caesar rangeu os dentes. - Agora Cato conseguiu me deixar onde ele queria: preso aqui quando era para eu começar minha
campanha e conquistar novas terras e glórias para Roma.
- E para você - acrescentou Clodius.
Caesar fulminou-o com o olhar por um instante e suspirou cansado.
- Seja lá o que pense de mim, eu sei que Roma é meu único senhor. Minha vida é dedicada a expandir o poder dela pelo mundo.
- Se está dizendo, Caesar. Mas você continua tendo de lidar com o problema que esse Brixus e seus seguidores representam. Qual é o seu plano a respeito disso?
- É como eu disse. Pretendo encontrá-los, assim como todos os outros bandos de rebeldes e foragidos. Os que não matarmos eu vou poder vender. - Caesar contraiu os
lábios. - Então talvez haja algum benefício nesse maldito plano secundário.
Marcus sentiu o sangue esquentar nas veias. Por mais que tivesse passado a admirar Caesar, o homem não deixava de ser um romano dos pés à cabeça, isso significava
que considerava a escravidão algo normal em seu mundo. Ele não prestava nenhuma atenção ao sofrimento e às humilhações dos escravos à sua volta. Para Marcus, que
nascera livre, a perda da liberdade tinha sido a coisa mais terrível que lhe acontecera. Ela significou perder sua casa, o homem que o criara, a mãe, tudo que lhe
era valioso. Depois disso, ele se tornou apenas mais um objeto possuído por seu dono, Lucius Porcino, o lanista da escola de gladiadores.
Lá, ele foi tratado com brutalidade, teve a marca de Porcino queimada em seu peito e aturou surras e provocações, tanto dos treinadores quanto dos outros escravos.
As lembranças daqueles dias ainda assombravam seus sonhos, fazendo-o acordar assustado às vezes, coberto de suor e tremendo. Um pesadelo recorrente e claustrofóbico
o atormentava em particular: um em que revivia sua última luta como escravo. Quando enfrentou outro garoto da escola, Ferax, um jovem da Gália, líder dos garotos
que infernizavam sua vida.
Marcus terminou vencendo a luta, e Ferax, nocauteado, foi obrigado a admitir a derrota. Mas, quando Marcus virou-se de costas para ele, o garoto se levantou e tentou
matá-lo. Foram os reflexos rápidos de Marcus que o salvaram e mataram Ferax. No entanto, em seus pesadelos, era Ferax quem vencia, enfiando a espada várias e várias
vezes em seu corpo. O inimigo lhe aparecia com as feições contorcidas, rosnando e salivando de modo selvagem.
Marcus torcia para aquela ter sido a última luta de que teve de participar. No entanto, apesar de Caesar ter concedido sua liberdade, seu antigo dono ainda esperava
que Marcus continuasse o treinamento para um dia poder voltar à arena e conquistar fama e fortuna como gladiador profissional. Como patrocinador de seu treinamento,
Caesar ganharia o apoio do povo romano. Até lá, Marcus continuaria servindo na proteção pessoal de seu senhor, sob o comando de Festus. O garoto tinha sido obrigado
a jurar que serviria e protegeria Caesar enquanto fosse seu servo. Para Marcus, assim que os agentes de Caesar localizassem sua mãe e providenciassem a liberdade
dela, suas obrigações em relação ao antigo dono acabariam.
Mas e depois? Ele não tinha muita ideia do que faria com a mãe depois daquilo. Por um tempo chegou a achar que poderiam voltar para a pequena fazenda em Lêucade
e continuar a vida anterior ao dilaceramento do mundo dos dois. Agora, dois anos mais velho e com mais experiência, Marcus sabia que isso nunca aconteceria. A fazenda
tinha sido tomada por Decimus para cobrir as dívidas da família, então Marcus e sua mãe teriam de construir uma nova vida em outro lugar. Seria melhor por vários
motivos. Seria impossível voltar a ter sua vida antiga. A fazenda estaria repleta de lembranças dolorosas, seria uma recordação constante do que tinha sido perdido
- a inocência idílica de uma infância protegida por dois adultos que o amavam. Tudo aquilo já era e nunca mais seria recuperado.
- As quatro legiões designadas para mim estão acampando perto de Rimini - disse Caesar, atraindo a atenção de Marcus de volta para o presente. - Elas ainda estão
se preparando para a próxima campanha, treinando recrutas para fortalecer o grupo ao máximo. Vou usar os veteranos para o trabalho. É mais do que suficiente para
essa plebe escondida nas montanhas. Dez coortes serão suficientes para derrotar Brixus.
- Dez coortes? - Clodius ergueu a sobrancelha. - Apenas cinco mil homens? Tem certeza de que isso é suficiente?
- Claro. - Caesar balançou a mão desdenhosamente, como se estivesse matando um inseto. - Isso tudo vai acabar bem rápido. Os sobreviventes devem ser trazidos para
Roma, assim como Brixus, ou o corpo dele, e eu terei minha recompensa. O povo vai me aclamar, e Cato será obrigado a engolir aquela arrogância inflexível e a se
juntar aos aplausos. Não vejo a hora de ver a cara dele.
- Então vamos torcer para você não ter que relatar uma derrota na sua próxima aparição no Senado.
- Derrota? - Caesar parecia surpreso. - Isso é impensável. Impossível.
- Assim espero. Quando pretende partir para Rimini?
- Imediatamente. Vou pela Via Flamínia. É a rota mais direta até lá.
- É verdade - disse Clodius. - Mas acha sensato? Vai ser difícil fazer o percurso nesta época do ano, e você vai passar justamente pelas montanhas onde os rebeldes
estão se escondendo.
- Suponho que estarão escondidos nas cavernas, aglomerados ao redor das fogueiras. Estarei seguro o suficiente. Além disso, não posso me atrasar. Quanto mais rápido
isso for resolvido, mais rápido vou poder voltar a tratar de vitórias e conquistas bem mais importantes. Vou embora assim que amanhecer. Festus!
O líder de sua guarda pessoal deu um passo para a frente e baixou a cabeça.
- Sim, amo.
- Vou levar você e seis dos meus melhores homens. - O olhar de Caesar foi parar em Marcus. - E você, jovem. Suspeito que vou precisar do seu conhecimento e de suas
habilidades mais uma vez. Afinal, você treinou com gladiadores. Você sabe como eles pensam e como lutam. Sim, tenho certeza de que você será bastante útil. - Ele
se voltou para Festus. - Também vou precisar do meu escriba, Lupus. Providencie isso tudo.
- Sim, amo.
Caesar retornou sua atenção a Clodius.
- Eu queria ter uma ideia melhor do que vou enfrentar. Se esse homem, Brixus, é um gladiador fugido, então ele será um oponente perigoso. Mais perigoso ainda vai
ser se esse rumor sobre o filho de Spartacus se juntar a Brixus for verdadeiro. Se for o caso, o filho precisa ser encontrado o mais rápido possível. Encontrado
e eliminado. Todos os escravos do Império terão que perceber que o descanso de Roma só se dará quando seus inimigos forem totalmente destruídos.
- Sim, Caesar. Vou cuidar disso. - Clodius assentiu com a cabeça.
- Também espero que você cuide dos meus interesses aqui em Roma enquanto eu estiver fora. Vou querer relatos regulares dos acontecimentos do Senado.
- Não se preocupe. Farei isso. Agora é melhor eu ir embora para que você possa se preparar.
- Adeus, meu amigo. - Caesar sorriu ao segurar no braço do jovem.
Clodius retribuiu o sorriso e virou-se para ir embora. Após a porta ser fechada, o sorriso de Caesar desapareceu e ele balançou a cabeça, murmurando:
- Ainda bem que tenho outras pessoas que me apoiam além dele.
Marcus não pôde deixar de concordar com a cabeça, e os olhos de águia de Caesar perceberam o gesto.
- Então você tem a mesma opinião que eu a respeito de Clodius? Isso é bom. Sempre soube que podia confiar no seu bom senso, meu garoto.
- Sim, amo.
- Estamos prestes a entrar em uma nova aventura, Marcus. Você já lutou na arena e nas ruas de Roma, mas essa vai ser sua primeira campanha, talvez até sua primeira
batalha de verdade. Deve estar ansioso, não é?
Marcus obrigou-se a concordar com a cabeça, e Caesar deu um leve murro em seu ombro.
- Foi o que pensei. Você é um guerreiro nato dos pés à cabeça. - A expressão dele ficou séria. - E eu estava falando sério quando disse que precisaria de qualquer
conselho que você tiver... Agora vá arrumar suas coisas e dormir cedo. Temos um caminho longo e exaustivo para enfrentar. Atravessar os Apeninos durante o inverno
não é fácil.
- Vou levar roupas de inverno, amo - disse Marcus.
- Ótimo. E pelo menos uma coisa será boa. Minha sobrinha estará em Rimini com o novo marido dela. Ele está servindo com a décima legião. Tenho certeza de que Portia
ficará contente em revê-lo.
- Espero que sim - respondeu Marcus com sinceridade. Ela era uma das poucas pessoas que ele passara a considerar como amiga desde a chegada a Roma, e ele estava
sentindo sua falta desde que ela foi embora da casa de Caesar para se casar com o sobrinho do general Pompeius, um dos aliados mais próximos de Caesar. Juntamente
com Crassus, eles três eram os homens mais poderosos de Roma. Era uma aliança instável, e Marcus sabia muito bem disso, pois tinha descoberto a conspiração feita
por Crassus contra Caesar. Era um plano envolvendo Decimus e seu capanga, Thermon, o homem que tinha assassinado Titus e sequestrado Marcus e sua mãe. Um dia ele
se vingaria, jurou Marcus. O sangue de Thermon e de Decimus escorreria na lâmina de sua espada.
Ele colocou os pensamentos de vingança de lado e curvou a cabeça para Caesar.
- Posso ir, amo?
- Sim, pode ir. Boa noite, Marcus.
Quando Marcus chegou à pequena cela dividida com Lupus no alojamento dos escravos, o garoto já tinha ouvido falar da viagem. Apesar de Marcus ter recebido sua liberdade,
ele não tinha dinheiro e precisou ficar na casa de Caesar, compartilhando a mesma comida e as condições de vida dos que ainda eram escravos. Por enquanto isso lhe
servia. Afinal, somente importava para Marcus que os contatos de Caesar na Grécia descobrissem o paradeiro de sua mãe. Por isso ele estava satisfeito em ficar perto
de Caesar, dessa forma saberia de qualquer notícia assim que ela chegasse a Roma. Ou a Rimini, pois era para onde iriam agora.
- Rimini. - Lupus sorriu. Ele era um garoto pequeno e magro, quase quatro anos mais velho que Marcus, mas quem não sabia disso diria que eles tinham a mesma idade.
O cabelo escuro dele era curto e ele falava com a humildade típica dos escravos de nascença. - Não vejo a hora de conhecer esse lugar. Ouvi falar que é uma cidade
linda, perto da praia. É lá onde os ricos vão descansar.
- Duvido que vá ser muito agradável no meio do inverno - respondeu Marcus.
- Mas vai ser agradável o suficiente. De qualquer maneira, será uma mudança de ares muito bem-vinda.
Marcus concordou com a cabeça. A capital talvez até fosse o coração do Império, uma enorme cidade com prédios grandiosos, banhos públicos e todas as formas de entretenimento
imagináveis, mas também era um lugar com gente demais e ruas estreitas e fedorentas. Quando o verão chegava, o ar ficava sufocante. O ar fresco da costa com certeza
seria bem-vindo. No entanto, a jornada não seria nada como um período de férias.
- Duvido que a gente vá ter muito tempo para aproveitar as coisas boas de Rimini - disse Marcus. - Caesar quer completar o serviço o mais rápido possível. Imagino
que vamos ficar lá só o tempo necessário para ele reunir as tropas, depois marchamos para as montanhas. É melhor se acostumar com a ideia de morar ao ar livre, com
neve, chuva e vento.
Lupus estremeceu ao pensar nisso.
- E não é só o clima que teremos que enfrentar - acrescentou Marcus. - Teremos lutas. Caesar acha que vai acabar com os rebeldes com facilidade. Eu não tenho tanta
certeza disso. Eles podem não ter recebido nenhum treinamento, mas estarão lutando pelas próprias vidas, pela própria liberdade. E por causa disso serão muito perigosos.
Lupus encarou-o ansiosamente.
- Não estou gostando de ouvir isso. Por que Caesar quer que eu vá? Eu não serviria para nada no meio de uma luta. Não sei nem usar uma espada. Eu provavelmente represento
um risco maior para o nosso lado do que para os inimigos.
- Não é da sua espada que Caesar precisa, é da sua tábula. Ele quer que as explorações dele sejam relatadas. Algo que possa beneficiar a reputação dele depois.
- Ah, que bom então - respondeu Lupus com uma expressão de alívio. - Acho melhor eu arrumar minhas coisas.
Enquanto seu companheiro mexia em seu pequeno baú de material de escrita, Marcus começou os próprios preparativos. Além da espada, facas de arremesso e adaga, ele
tirou sua couraça de gladiador do suporte na parede e a enrolou em um cobertor velho antes de guardá-la em seu saco de lona. Também pegou o broquel de bronze, o
gorro com proteções que Festus fizera para ele no ano anterior, os braceletes de couro e uma túnica acolchoada para usar por baixo da armadura. Após guardar todos
os objetos de batalha, começou a cuidar das roupas.
Enquanto fazia a organização, a mente de Marcus estava distraída. Até então, apenas sua mãe e Brixus sabiam a verdade sobre quem era seu pai. E agora parecia que
Brixus estava espalhando que Spartacus tinha um filho e que este assumiria a causa do pai. Não era surpresa o fato de alguns romanos se recusarem a acreditar naquilo,
eles achavam que Brixus tinha simplesmente inventado a história para ganhar apoio para sua causa. No entanto, havia vários que acreditavam naquilo, tornando o segredo
de Marcus bem mais difícil de guardar. Caesar já tinha visto a marca no ombro de Marcus, sem reconhecê-la. Talvez chegasse o momento em que Caesar fosse associar
ambos, a marca e o boato, percebendo quem Marcus era. Se isso acontecesse, ele seria assassinado.
Marcus estremeceu ao pensar naquilo. Não estava apenas com medo por si mesmo, mas também por causa de sua mãe. Sem ele, que esperança ela teria? Se Caesar a encontrasse
após descobrir a identidade de Marcus, ela também seria morta por uma questão de vingança.
Havia mais um assunto que o perturbava. Ele não queria participar de nenhuma campanha contra escravos rebeldes. Na verdade, preferia lutar ao lado de Brixus, contra
aqueles que transformavam as pessoas em suas propriedades. Era uma causa perdida. Mesmo se Brixus conseguisse unir os bandos de foragidos e bandidos, que chance
eles teriam contra a poderosa Roma? Caesar estava desesperado para acabar com eles o mais rápido possível. Apesar de ele ter dito que só precisaria de cinco mil
homens, o equivalente a uma legião, havia mais três legiões que poderia usar como reforços. A única esperança dos escravos seria encontrar um líder inspirador, que
combinasse as qualidades de um grande guerreiro, um sábio general e uma personalidade formidável. Em suma, um homem como Spartacus. Com um homem assim para liderá-los,
os milhares de escravos escapariam para se unir às tropas da rebelião, e finalmente Roma teria um rival à altura. No entanto, Marcus ainda era um garoto. Se Brixus
planejava que ele seguisse os passos do pai, com certeza terminaria desapontando as expectativas.
Marcus sentiu náusea na base do estômago. Estava encurralado. Marcharia para a batalha ao lado de Caesar, para lutar contra escravos cujo destino era o mesmo que
ele já tivera. E, enquanto isso, conviveria com o medo de Caesar descobrir seu segredo. Se Brixus fosse capturado e levado até o general romano vitorioso, ele com
certeza reconheceria Marcus. Será que ele o trairia abertamente ou apenas sob tortura?
Quanto mais pensava no assunto, mais ansioso ficava. Após terminar a arrumação, apagou o candeeiro e se deitou em seu saco de dormir. Do outro lado do cômodo, Lupus
estava deitado, roncando baixinho. Marcus cruzou os braços por cima da cabeça e ficou encarando a escuridão. Apesar de tudo o que tinha acontecido com ele desde
a perda de sua família e de sua casa, sabia que o maior desafio de todos ainda estava por vir.
5
O pequeno grupo de cavaleiros saiu de Roma pelo portão da via Flamínia assim que amanheceu. Caesar estava na frente do grupo com um manto marrom liso, sem querer
chamar a atenção. Ele tinha escrito uma mensagem sucinta para o Senado, avisando que tinha partido para destruir os rebeldes. Quando fosse lida, os cavaleiros já
estariam a muitos quilômetros de Roma e seria tarde demais para que seus inimigos políticos o convocassem para explicar seus planos. Cato e seus aliados teriam feito
de tudo para atrasar Caesar. Marcus ficava surpreso ao ver quantas vezes os políticos preferiam beneficiar as próprias facções a pensar nos interesses de Roma como
um todo.
Ele lançou um olhar para Caesar, cavalgando à frente da fileira. Ele era ainda mais ambicioso do que os outros; estava louco para acabar logo com a nova rebelião,
a fim de poder conquistar a glória para si na Gália. Apesar dos receios em relação a seu antigo senhor, Marcus sabia que Caesar sempre recompensava aqueles que o
serviam bem. A vitória de Marcus na luta contra Ferax na área externa do Senado beneficiara a reputação de Caesar, permitindo a ele ter novas leis aprovadas, leis
que melhoraram as vidas dos romanos comuns e amenizaram a tensão na cidade que podia ter levado a uma nova guerra civil. O garoto tinha toda a intenção de lembrar
a Caesar sua promessa de ajudar a libertar sua mãe da escravidão como recompensa, e isso significava ficar ao lado dele.
Marcus cavalgava ao lado de Lupus no fim da fileira. Por ter crescido em uma fazenda, aprendera a subir em um cavalo e cavalgar quando era bem novo. Em contraste,
Lupus não era um cavaleiro muito bom. Ele segurava as rédeas com firmeza e se inclinava para a frente, apoiando-se no pito da sela como se fosse cair a qualquer
momento.
- Sente-se direito - aconselhou Marcus. - Os pitos da sela vão impedir que você caia. Se tivermos que trotar ou galopar, faça pressão com as coxas e os calcanhares
e se segure.
Lupus lançou um olhar atravessado para ele.
- É fácil falar.
- Já deve ter cavalgado antes, não?
- Claro. Já dei alguns passeios na mula que pertence ao cozinheiro e em alguns dos cavalos na fazenda do senhor no ano passado. Mas só isso.
- Entendi. - Marcus inspirou para disfarçar o desapontamento. - Bem, tenho certeza de que logo mais você pega o jeito.
- Obrigado pelo incentivo - respondeu Lupus sucintamente enquanto se inclinava mais uma vez e agarrava as rédeas como se sua vida dependesse disso.
A estrada foi se afastando de Roma, e, enquanto se aproximavam do cume de uma colina, Marcus virou-se na sela para olhar para trás. Nuvens acinzentadas se aproximavam
do oeste, e a grande cidade já estava coberta. Os prédios feiosos que a formavam espalhavam-se pelas sete colinas, acima das quais havia uma camada de fumaça de
madeira. Marcus estava contente de respirar o ar fresco do interior com seus agradáveis odores. Não sentiria falta de Roma. Além do desconforto de seus becos sombrios,
do fedor e do barulho constante, havia as perigosas gangues de rua e a sede de sangue do povo, assim como as tramas e conspirações sem fim feitas pelos políticos.
Estalando a língua, ele fez seu cavalo acelerar e alcançou o restante da fileira seguindo para o leste, na direção das encostas nevadas dos Apeninos.
Aquele inverno estava atipicamente frio. O interior encontrava-se abandonado, as árvores sazonais estavam sem folhas, paradas e desoladas, como se fossem rachaduras
no céu cor de chumbo. As chuvas frequentes e uma tempestade que passara tinham deixado os campos inundados, fazendo poças se formarem nos sulcos e depressões da
estrada. Inicialmente, o grupo avistou diversas fazendas e vilas ao longo da rota, com habitantes que viviam bem de suas colheitas, frutas e carnes que eram vendidas
nos mercados de Roma. No entanto, à medida que o dia passou, o número de casas diminuiu, e eles começaram a cavalgar por florestas intocadas, com poucas fazendas
minúsculas e alguns aglomerados de moradias rurais que mal podiam ser chamados de vilas. Os habitantes corados, fora das casas cortando lenha ou levando comida para
os animais, paravam com expressões de curiosidade e às vezes de suspeita ao avistar os cavaleiros passando. Em seguida, eles davam continuidade à rotina rural de
sempre.
Após um breve descanso ao meio-dia, eles seguiram novamente. A estrada entrou pelos sopés das montanhas que compunham a espinha do Império, e as nuvens escureceram
os céus. Logo depois, as primeiras gotas de chuva caíram. Os cavaleiros encurvaram-se dentro de suas capas e colocaram os capuzes em cima das cabeças enquanto a
chuva batia na estrada. Marcus estava torcendo para que fosse apenas uma chuva de passagem, mas ela continuou caindo e engrossou. Apesar da gordura animal colocada
dentro dos mantos para que ficassem à prova d'água, não demorou para os cavaleiros se encharcarem. O ar já estava frio, e a brisa suave o esfriava mais ainda.
Marcus não conseguia deixar de estremecer enquanto segurava as rédeas e cerrava os dentes para se concentrar. Ele lançou um olhar para Lupus e viu que o companheiro
tremia descontroladamente, batendo os dentes.
Lupus encontrou o olhar dele.
- Quan-quando é que nosso senhor vai parar para a gente se a-a-abrigar?
- Se abrigar onde? - Marcus apontou para a paisagem dos dois lados da estrada. Não havia nada além de pedras e pequenas árvores, e mais à frente a estrada entrava
em uma densa floresta de pinheiros. - Talvez ali. - Ele apontou para as árvores.
No entanto, ao entrarem na floresta, Caesar seguiu em frente e, enquanto Lupus xingava baixinho o seu senhor, Marcus resignou-se ao desconforto e sofrimento da jornada.
A estrada continuou no meio das árvores e, à medida que o terreno ficava mais íngreme, a rota começou a ziguezaguear para dentro da névoa acinzentada que bloqueava
a paisagem ao redor.
O anoitecer se apossava daquela área mal iluminada, e os cavaleiros finalmente chegavam aos portões de uma cidadezinha. Caesar mostrou seu anel de senador para os
sentinelas de manto, que os acompanharam pelo portão e os levaram para a rua mais adiante. Havia apenas algumas estalagens para viajantes na cidade e somente uma
grande suficiente para abrigar o grupo inteiro e seus cavalos. Anoiteceu antes que as necessidades da cavalaria fossem atendidas, e depois Marcus, Lupus e os outros
juntaram-se a Caesar e Festus do lado de dentro. Os dois estavam sentados perto da lareira, tomando vinho quente. Já tinham tirado a roupa molhada, e os mantos de
montaria, túnicas e botas secavam perto do fogo.
Enquanto as silhuetas encharcadas aglomeravam-se perto das chamas, o dono da estalagem saiu apressadamente de uma porta estreita atrás do balcão.
- Ah, cavalheiros, vocês devem estar congelando! Tirem essas roupas e se sentem. Minha esposa e minhas filhas vão secá-las. Temos mais varais na cozinha. É só me
entregar e depois que se secarem e trocarem de roupa nós vamos trazer um ensopado quente para vocês.
Marcus e os outros agradecidamente retiraram os casacos molhados e os colocaram em cima do balcão antes de mexerem nos alforjes à procura de roupas secas. O frio
deixara as mãos e pés de Marcus dormentes, e ele esfregou as palmas das mãos na frente do fogo até voltar a sentir os dedos. Lupus ficou parado com uma expressão
distraída ao estender as mãos na direção das chamas.
- Não coloque as mãos perto demais enquanto elas estão dormentes - disse Marcus -, elas podem terminar pegando fogo sem você perceber.
- Só quero ficar aquecido de novo - murmurou o garoto. - Pelos deuses, como queria estar em Roma.
- Bem, você não está em Roma. E é melhor se acostumar com isso. Caesar agora está em campanha, e nós vamos acompanhá-lo aonde quer que ele vá.
- Então espero que ele resolva logo isso com os rebeldes para a gente ir embora daqui.
- Resolva logo? - Marcus não pôde deixar de sorrir. - Isso é apenas o começo. Quando, e se, ele derrotar os rebeldes, Caesar vai querer ganhar fama na Gália. Vão
ser anos de campanha antes que ele fique satisfeito.
Lupus abaixou as mãos e virou-se para Marcus com uma expressão desanimada.
- Anos?
O dono da estalagem voltou, pegou o monte de roupas molhadas e as carregou até a cozinha. Logo apareceu uma mulher grande e atarracada, de pele escura, carregando
a alça de madeira de um pesado caldeirão. Imediatamente, um forte aroma espalhou-se pelo local, e Marcus sentiu a barriga roncar, seu apetite despertando. Atrás
da mulher surgiu uma menina de no máximo 8 anos, pensou Marcus, carregando com dificuldade uma enorme bandeja com tigelas e colheres de madeira.
A mulher colocou o caldeirão no balcão, e sua filha pôs as tigelas ao lado dele. As duas primeiras tigelas foram enchidas com uma concha, e a garota as carregou
até Caesar e Festus. Por ter se acostumado à reverência com que tratavam Caesar em Roma, Marcus não pôde deixar de ficar boquiaberto quando Festus recebeu a primeira
tigela. Em seguida a garota entregou a tigela de Caesar e voltou para servir aos outros. Festus olhou para Caesar nervosamente, mas o grande homem só fez sorrir
e desconsiderou o caso com um aceno de mão. Ele se inclinou para a frente e sentiu o cheiro do ensopado.
- E o que temos aqui?
O dono da estalagem apareceu de dentro da cozinha.
- Senhor?
- O que tem no ensopado?
- Bode. Não falta bode aqui na cidade! - disse o homem alegremente. - Espero que goste.
Caesar provou e fez sim com a cabeça.
- Gostei mesmo. É disso que um homem precisa após o dia na estrada, não é, pessoal?
Os homens concordaram e, servidos, sentaram-se a uma mesa no canto do cômodo para não incomodar o senhor deles. Marcus e Lupus foram os últimos a receberem as tigelas.
Assim que começaram a se aproximar da mesa onde os guardas estavam com suas comidas, Caesar chamou-os.
- Não. Aqui. Junte-se a nós, Marcus. Você também, Lupus.
Eles se viraram e foram até a mesa onde os dois homens estavam sentados.
- O que ele quer com a gente? - sussurrou Lupus.
- Não faço ideia - respondeu Marcus baixinho.
Eles colocaram as tigelas na mesa e cada um puxou um banco, sentando-se nervosamente sob o olhar escuro e penetrante de Caesar. Ele gesticulou na direção das tigelas
e colheres.
- Comam, garotos. Hoje somos um bando de viajantes felizes. Deixamos Roma e toda aquela formalidade social para trás. A vida ficou bem menos complicada, e é assim
que gosto dela. Escapamos de todos aqueles patifes do Senado, e nossa tarefa é simples e direta: encontrar e destruir esse tal de Brixus e sua ralé. Só isso. - Ele
tomou mais uma colherada de ensopado e mastigou rapidamente um pedaço de carne. - Isso que é ensopado gostoso. Temos que nos lembrar de comer bode mais vezes, não
é, Festus?
- Sim, amo. - O líder dos guarda-costas curvou a cabeça.
Marcus devorou a comida, seu ânimo aumentando a cada colherada da saborosa refeição. Até Lupus se acostumou com o fato de estar na mesma mesa que seu senhor e começou
a comer. Passado um tempo, Caesar empurrou a tigela para o lado e se recostou na parede rachada de argamassa atrás do banco. Ele ficou em silêncio por um instante
e depois juntou as mãos.
- Acabei de lembrar uma coisa. Eu já estive aqui nesta cidade antes, muitos anos atrás. Eu era apenas um tribuno na época, foi no meu início como soldado. Eu tinha
acabado de ser designado para uma das legiões do exército de Crassus e estava com um grupo de cavalaria aliada para nos juntarmos a ele. Paramos nesta cidade para
passar a noite. Não fiquei aqui. Um dos magistrados locais me recebeu em sua casa. - Ele parou. - Era um lugar tão ruim quanto é hoje. Enfim, nós fomos embora no
dia seguinte e nunca achei que ficaria aqui novamente.
Festus terminou de comer e limpou a boca com as costas da mão.
- Crassus? Então deve ter sido quando ele estava lutando contra Spartacus, amo.
- Foi sim. Foi por isso que me lembrei. Estava pensando no inimigo que vamos enfrentar agora. Da última vez, eu cheguei a tempo de presenciar apenas a grande batalha
final, quando Crassus acabou com o exército rebelde.
- Crassus? - Marcus não pôde deixar de ficar surpreso. - Me disseram que foi Pompeius que acabou com a rebelião, amo.
- Pompeius? - Caesar ergueu a sobrancelha e riu. - Não, ele chegou ao local logo depois, a tempo de varrer os sobreviventes da batalha principal. Eu tive a sorte
de testemunhar as duas batalhas, se é que dá para chamar o que Pompeius fez de batalha. Foi mais um mero tumulto. Não que ele tenha descrito as coisas assim para
o Senado. Claro que não. Ele enviou um relatório dizendo ter sido ele quem acabara com a rebelião e quem matara Spartacus. Como se Crassus não tivesse feito absolutamente
nada nos dois anos anteriores. Pompeius é assim. Ele tenta obter todo o crédito que pode.
Marcus inclinou-se para a frente e encarou seu senhor atentamente, com um desejo peculiar de saber mais consumindo seu coração.
- O senhor disse que esteve nas duas batalhas, amo?
- Exatamente. Depois da primeira, Crassus me enviou para encontrar Pompeius e pedir que ele bloqueasse a rota de fuga dos sobreviventes. Pelo menos isso ele realmente
fez.
Marcus sentiu o pulso acelerar. Ele raramente escutava Titus, o centurião aposentado que o criara, falar sobre a rebelião. A brutalidade e o sofrimento da campanha
tinham traumatizado Titus pelo resto da vida. Agora Marcus tinha a oportunidade de descobrir mais sobre seu verdadeiro pai.
- Como foi, amo? O que aconteceu? - Marcus engoliu em seco nervosamente. - O senhor viu o próprio Spartacus?
- Quantas perguntas. - Caesar sorriu debilmente. - Bem, não temos nada para fazer aqui a não ser conversar.
Discretamente, Lupus estendeu o braço na direção de sua bolsa e tirou uma tábula. Caesar balançou a cabeça.
- Não precisa. Não estou ansioso para relatar minha participação na revolta dos escravos para a posteridade. Quanto mais cedo tudo aquilo for esquecido, melhor.
- Lupus concordou com a cabeça e guardou os instrumentos de escrita na bolsa enquanto Caesar fechava os olhos por um instante para pensar. E então começou: - Foi
uma guerra diferente de tudo o que eu tinha visto, de tudo o que eu já tinha ouvido falar. Nenhum dos lados fazia prisioneiros, e os escravos não tinham misericórdia
alguma com os vendedores de escravos ou feitores que caíam em suas mãos. Claro que eu soube de boa parte disso pelos homens que lutaram contra Spartacus e seus rebeldes
nos anos iniciais da revolta. Quando me juntei a Crassus, ele já estava perto de cercá-los, estava tentando forçar Spartacus a mudar de plano e atacar o inimigo.
Ele parecia um animal ferido, ficando mais perigoso quando está encurralado e sabe que precisa lutar ou morrer. Então Spartacus e seu exército entraram em formação
em um cume, cruzando nossa linha de marcha.
Caesar ficou encarando a mesa à sua frente e Marcus desejou que ele continuasse. Caesar pigarreou e prosseguiu, com a voz um pouco mais baixa:
- Apesar de sermos mais numerosos, dava para perceber que nossos soldados estavam nervosos com a possibilidade de uma luta. Lembro que não compreendi a reação deles.
Eles eram soldados treinados e estavam bem equipados. Muitos eram veteranos. Quando eu olhava para os rebeldes, dava para ver muitos carregando apenas ferramentas
agrícolas, com pouquíssima ou sem nenhuma armadura. Também havia mulheres no meio e até idosos e meninos. No centro da linha, havia vários milhares bem equipados
e formando uma linha disciplinada. Atrás deles, um grupo de homens a cavalo cercava Spartacus com sua bandeira.
- Você o viu, amo? - perguntou Lupus, com os olhos brilhando de empolgação.
- Sim. Ele estava montado em um cavalo branco, vestindo armadura preta e um capacete com uma crista escura. Era impressionante.
Marcus sentiu uma onda de orgulho ao ouvir a descrição do pai e, ao mesmo tempo, lamentou o fato de nunca tê-lo conhecido.
- Enquanto entrávamos na nossa formação de sempre, escutei um murmúrio vindo das linhas rebeldes. No início não entendi o que era, depois percebi que era o nome
dele. Spartacus... Spartacus... Spartacus! O murmúrio foi ficando cada vez mais alto até se transformar em um cântico ensurdecedor ecoando por todo o campo de batalha.
Em seguida, eles atacaram. Como uma onda. Não me lembro de escutar nenhum sinal. Foi como se todos estivessem compartilhando o mesmo pensamento. O mesmo instinto.
Matar todos os romanos diante deles. Não me incomodo em admitir que fiquei com medo naquele instante. Fiquei surpreso na hora, mas não tenho como negar que vê-los
se aproximando foi algo apavorante.
"Eles colidiram contra as unidades de frente, vindo diretamente para cima de nossos escudos e nossas espadas e morrendo às centenas. Mas eram como animais selvagens,
lutavam com as próprias mãos quando perdiam as armas. Até os feridos lutavam no chão onde tinham caído, usando mãos e dentes. Nossa primeira linha de defesa conseguiu
contê-los por um certo tempo, mas nem os melhores soldados do mundo aguentariam aqueles demônios por muito tempo. A segunda linha de defesa moveu-se para a frente,
juntando-se à luta. Foi então que Crassus deu a ordem que nos deixou em vantagem."
Os olhos de Caesar brilhavam enquanto se lembrava do momento.
- Os rebeldes tinham penetrado à força bem no centro da nossa linha de batalha, então Crassus fez a última linha de defesa se mover para as laterais e marchar rapidamente
ao redor da luta para atacar os rebeldes pelos flancos. Assim que as trombetas soaram, nossos homens rugiram e os cercaram. Os rebeldes aguentaram por um tempo,
depois alguns entraram em pânico e se separaram do grupo. Logo outros se afastaram e depois foi o fim. Nossa cavalaria completou a armadilha, e apenas alguns milhares
conseguiram fugir. O restante foi aniquilado.
- E Spartacus? - interrompeu Marcus. - O que aconteceu com ele?
- Ele e os guarda-costas cobriram a retirada dos sobreviventes até nossos homens ficarem cansados demais para continuarem perseguindo-os. Crassus percebeu que, se
Spartacus fugisse, ele provavelmente iniciaria uma nova rebelião em outro lugar. Então ele me enviou para encontrar Pompeius e, humm, aconselhá-lo a bloquear a rota
de Spartacus.
- Aconselhá-lo? - Festus franziu a testa.
- Não se dá ordens para Pompeius, o Grande. - Caesar sorriu. - Crassus sabia que aquilo era importante demais, não se podia arriscar ofender Pompeius e deixar o
inimigo escapar. Enfim, eu encontrei Pompeius, transmiti a mensagem e fiquei com ele enquanto seus homens marchavam atrás de Spartacus. Tudo acabou muito rapidamente.
Os rebeldes estavam cansados demais e muitos estavam feridos. Ainda assim, continuaram em formação ao redor do líder e lutaram até o fim. Fizemos poucos prisioneiros.
Nenhum deles tinha a descrição que o lanista dele tinha passado para nós.
- O senhor o viu novamente? - perguntou Marcus entusiasmado. - Spartacus?
- Eu o vi perto de seus tenentes mais próximos. Estavam montados nos últimos cavalos que tinham restado. Assim que a luta começou, eles desmontaram e mataram os
animais para mostrar que seguiriam o mesmo destino de seus camaradas. Depois que o último morreu, eu me juntei a Pompeius e seus oficiais, e examinamos o campo de
batalha. Encontramos uma armadura preta e um capacete. Acho que os seguidores de Spartacus arrancaram esses itens do corpo dele quando viram que estava morto. Muitos
dos corpos estavam mutilados demais para serem identificados.
Marcus estremeceu, mas se esforçou bastante para não demonstrar repulsa.
- Talvez Spartacus tenha sobrevivido - sugeriu Lupus.
- Não consigo imaginar como ele teria escapado. Ele deve ter caído e morrido durante a batalha final. Tenho certeza disso.
- Ele teria ficado até o fim e morrido com os outros - disse Marcus imediatamente, e depois olhou para os outros com rapidez. - Pelo menos é o que eu teria feito.
Se eu fosse ele.
Festus riu e deu um tapinha descontraído nas costas de Marcus.
- Algumas lutas no histórico e já está achando que é o próximo Spartacus!
Caesar ficou encarando Marcus.
- Espero sinceramente que não. O primeiro quase destruiu Roma. Não sobreviveríamos a um segundo Spartacus. Além disso, eu passei a gostar de você, Marcus. Ficaria
abalado se nos tornássemos inimigos. Assim eu seria obrigado a destruí-lo.
Suas palavras tinham um tom neutro, mas fizeram Marcus congelar completamente. Não era a primeira vez em que temia a possibilidade de Caesar saber mais do que imaginava.
No entanto, era necessário afastar esses pensamentos, ser forte e ir até o fim. Precisava ter a mesma força do pai. Respirou fundo para se acalmar e respondeu ao
antigo senhor:
- Eu tenho servido ao senhor com lealdade, amo. Não há motivos para achar que vamos nos tornar inimigos.
Caesar olhou para ele e soltou uma leve risada.
- Claro que não. Além disso, tenho adversários bem maiores e mais impressionantes com os quais me preocupar. - Ele bocejou. - O dia foi longo. Estamos bem aquecidos
e de barriga cheia. É melhor dormirmos. Quero que voltemos para a estrada logo ao amanhecer, Festus. Trate de nos acordar a tempo de fazermos isso.
- Sim, amo.
Caesar levantou-se e massageou a lombar fazendo uma careta. Em seguida, acenou com a cabeça para seus companheiros e subiu a escada que ficava nos fundos da estalagem,
levando aos poucos quartos que eram alugados para viajantes. Festus virou-se para os garotos:
- Separei um quarto para vocês dois. O dono da estalagem tem espaço na adega. Ele colocou dois sacos de dormir para vocês, mas disse para tomarem cuidado com os
ratos. Às vezes eles mordem.
- Ratos? - O rosto de Lupus empalideceu.
- Ele devia estar brincando, mas tomem cuidado mesmo assim, tá bom? - Festus levantou-se e foi para perto dos outros homens para dar ordens.
- Ratos - repetiu Lupus. - Odeio ratos.
- Então é só empurrá-los para o canto - brincou Marcus. - Vamos, eu protejo você.
A esposa do dono da estalagem acompanhou-os até a adega com um candeeiro e o deixou na base da escada estreita para que eles enxergassem o suficiente enquanto se
arrumavam para dormir. Lupus olhou para as sombras ao redor receosamente antes de se acomodar, mas, apesar de suas preocupações, não demorou para pegar no sono.
Mais uma vez, Marcus permaneceu um tempo acordado, refletindo.
Ficou pensando em Spartacus. Lentamente, seu coração encheu-se de orgulho pelas conquistas do pai e pelo exemplo que ele dera para seus seguidores, que se preparavam
para lutar e morrer ao lado dele. Algo começou a ferver dentro do garoto. Uma vaga inspiração, e também mais do que isso: a sensação do dever de honrar seu pai.
Para que merecesse ser herdeiro dele e de tudo o que conquistara em sua curta vida. Afinal, o mesmo sangue corria nas veias de Marcus, tinha a mesma habilidade com
armas e o mesmo desejo intenso de liberdade.
6
No dia seguinte, o pequeno grupo de cavaleiros deixou o sopé das encostas para trás, e a estrada começou a entrar pelas montanhas. A chuva parara durante a noite
e havia geada reluzindo no chão quando eles saíram. Antes do meio-dia, eles já tinham passado da linha de neve permanente, e as rochas e árvores dos dois lados estavam
cobertas por uma brilhante camada de branco. No entanto, apesar da neve, dava para enxergar a rota com clareza enquanto eles continuavam colina acima. Os galhos
pesados dos abetos abafavam o som da passagem deles e aumentavam a sensação perturbadora de quietude. A conversa entre os cavaleiros parou, pois eles estavam prestando
bastante atenção aos arredores. Moravam em Roma havia tanto tempo que tinham se acostumado ao barulho constante da grande cidade. Agora o silêncio os deixava inquietos.
Havia apenas o leve barulho dos cascos dos cavalos, o tinir dos apetrechos e, de vez em quando, o bufo dos animais exalando o ar quente e cheio de vapor por suas
largas narinas.
- Não estou gostando disso - murmurou Lupus.
- O que foi? - Marcus tentou demonstrar mais confiança do que sentia. - Ar fresco, paz e silêncio, belas paisagens. Não tem nada de ruim. Somente o frio.
- O frio já é ruim o suficiente, mas não é só isso. - Lupus olhou de um lado para outro. - Não sei, mas estou com a impressão de que estamos sendo observados.
- Por quem? Não passamos por nenhuma residência há horas. A última pessoa que vimos foi aquele pastor alguns quilômetros atrás. - Marcus lembrou-se do homem solitário
segurando um cajado e observando-os do topo de uma pequena colina. - E ele saiu correndo no instante em que nos viu.
- Sim - refletiu Lupus -, estava me perguntando a respeito disso. Por que ele correu?
- Devia estar nervoso. Um grupo de homens a cavalo aparece, ele fica com medo de que sejam bandidos. Foi por causa disso.
- Talvez seja por algum outro motivo.
Marcus olhou para ele.
- O que está querendo dizer?
- Talvez ele não fosse um pastor. Talvez ele estivesse espreitando.
- E quem ele estaria espreitando?
- Pessoas como nós. Viajantes. Presas fáceis para um grupo de bandidos. Ou, pior ainda, para avisar aos rebeldes. E se ele for mesmo um vigia e tiver avisado que
nos viu?
Marcus olhou para a estrada até o ponto em que ela se perdia no meio das árvores. Não havia movimento algum. Ele deu de ombros ao se virar para a frente mais uma
vez.
- Se houvesse algo de estranho a respeito dele, acho que a essa altura nós já saberíamos disso.
Lupus ficou quieto por um instante.
- Espero que tenha razão.
Os garotos retornaram ao silêncio, mas Marcus estava começando a sentir a ansiedade do amigo. Um quilômetro e meio depois, eles saíram do meio das árvores e a estrada
passou a subir na direção de uma passagem estreita entre dois picos rochosos escondidos por nuvens circulares. Marcus suspirou aliviado ao sair do meio da floresta.
Nas laterais da estrada havia pedras e rochas, sem muitos esconderijos para se fazer uma emboscada. Mais adiante, Marcus ficou animado ao ver que os homens tinham
voltado a conversar tranquilamente e fazer piadas. Até Lupus parecia mais relaxado. A estrada começou a ficar mais estreita, e Marcus deixou seu amigo se afastar
um pouco. Precisava de tempo para pensar.
O comentário que Caesar fizera na noite anterior consumia sua mente. Apesar de Caesar dever a Marcus por ter salvado sua sobrinha, sua dívida não significaria nada
se ele decidisse que Marcus representava um perigo para ele ou para Roma. Marcus sentia como se sua vida estivesse no fio de uma faca. Tinha que prestar atenção
em todos os próprios comentários e esconder a marca no ombro. Não podia confiar em ninguém, nem mesmo em Lupus. Uma onda amarga de solidão tomou conta do garoto
e ele sentiu lágrimas quentes nos cantos dos olhos. Marcus ergueu a mão e as enxugou raivosamente. Não podia ser fraco, disse para si mesmo. Precisava ser forte
para sobreviver. E tinha que sobreviver para resgatar a mãe.
Um grão frio caiu em sua bochecha. Ao olhar para cima, viu que tinha começado a nevar de novo e pequenos flocos brancos caíam lentamente do céu nublado. À frente,
a estrada fazia mais uma curva fechada, e Caesar e Festus guiaram seus cavalos para que virassem e liderassem a fileira pelo novo trecho. Quando Marcus chegou à
curva, seu sexto sentido o fez puxar as rédeas de seu cavalo e se virar na sela para olhar na direção da floresta.
Ele os avistou imediatamente. Era mais um grupo de homens a cavalo, cerca de vinte deles, a menos de um quilômetro de distância. Eles estavam trotando lentamente
e não pareciam estar com pressa para alcançá-los. Mesmo assim, Marcus sentiu certa preocupação e bateu os calcanhares no cavalo para acelerar.
- Abra caminho! - alertou ele para Lupus, que olhou para trás surpreso antes de levar o cavalo para a lateral da estrada. Marcus passou por ele trotando, sem dizer
nada, e depois pelos outros cavaleiros até chegar ao lado de Caesar.
- Amo, tem alguém nos seguindo. - Marcus apontou para o declive, mas não dava para ver a parte mais baixa da estrada de onde estavam. Caesar olhou para a estrada
de pedras espalhadas.
- Do que está falando? Não estou vendo ninguém.
- Eles estão lá, amo. O grupo estava bem visível.
- Quantos? - perguntou Festus bruscamente.
- Cerca de vinte.
- Onde?
- Estavam saindo da floresta.
- Bem, não consigo enxergar muito por causa da neve - murmurou Caesar. - Tem certeza disso, Marcus?
- Absoluta, amo.
Caesar alisou o queixo.
- Onde você estava quando os avistou?
- Lá trás, onde a estrada fez a curva.
Caesar suspirou.
- Então é melhor darmos uma olhada.
A comitiva parou, e os três voltaram até a curva, o mais próximo possível da beirada, a fim de olhar o declive. Lá embaixo, a neve caía fortemente e era difícil
avistar qualquer coisa que não fosse o contorno da floresta.
Houve um breve silêncio antes de Festus grunhir:
- Não estou vendo nada.
- Não - acrescentou Caesar baixinho antes de se virar para Marcus. - Tem certeza do que viu? Às vezes a vista cansada engana a pessoa.
Marcus sentiu um breve instante de dúvida que foi logo ignorado.
- Eu vi homens a cavalo, amo. Tenho certeza disso.
- Bem, agora não tem mais nada lá embaixo - disse Festus. - Nada que eu esteja vendo.
- Ainda assim, eu confio no bom senso do garoto - respondeu Caesar com firmeza. - Quero que fique na retaguarda. Mantenha vigilância atrás de nós. Se vir algo, me
avise imediatamente.
Festus curvou a cabeça e Caesar estava prestes a virar o cavalo quando a neve parou, e, como se um véu tivesse sido levantado, eles conseguiram enxergar o chão e
o grupo de cavaleiros trotando pela estrada. Agora estavam mais perto do que quando Marcus os avistou.
- Siga logo com os homens! - exclamou Caesar. - Vamos subir até o estreito, é um obstáculo natural. Podemos ficar esperando lá. Se eles quiserem nos causar mal,
é de lá que vamos nos defender. Vamos.
Festus virou o cavalo, agitando a neve ao galopar até o início da fileira. Caesar estreitou os olhos enquanto analisava os cavaleiros mais abaixo.
- Eles estão armados. Consigo ver lanças, escudos, alguns capacetes. Não são soldados nossos de jeito nenhum. Não há nenhuma bandeira acima deles. Nenhum sinal de
um comandante. Temo que eles signifiquem encrenca, jovem Marcus. - Ele piscou os olhos e se virou para seu antigo escravo. - Boa visão. Mais uma vez, você me serve
bem. Venha, quero que fique ao meu lado.
Eles trotaram até a frente da fileira, e Caesar acenou para que eles seguissem em frente enquanto batia os calcanhares no cavalo. Não precisavam disparar para se
distanciar dos outros homens, e de qualquer maneira a terra debaixo da fina camada de neve estava congelada, representando mais um risco para qualquer cavalo e cavaleiro
que escorregasse e caísse. Eles continuaram subindo, e a cada curva Marcus olhava para baixo e via que os perseguidores aproximavam-se constantemente. Eles faziam
os cavalos acelerarem, sem se importarem com os riscos, e o garoto viu um ou dois caírem na neve. Um caiu da beirada e rolou uns dez metros antes de bater em uma
pedra. O cavaleiro ficou deitado, confuso, e o cavalo se debateu em um monte de neve, tentando se levantar. Em seguida, Marcus os perdeu de vista novamente.
A estrada começou a ficar mais nivelada ao se aproximar da passagem, e Caesar chamou seus homens.
- Estamos quase chegando! Assim que alcançarmos a passagem, vamos parar e descer dos cavalos!
Marcus estava prestes a acelerar o cavalo quando olhou para trás e avistou Lupus se esforçando para ficar em cima da sela, com o rosto pálido tomado pelo medo, e
segurando as rédeas com firmeza. Antes que Marcus pudesse recuar para ajudá-lo, Festus aproximou-se do escriba e animou o garoto a seguir em frente. Ele olhou para
cima, avistou Marcus e acenou com a cabeça, como se quisesse dizer que tomaria conta de Lupus. Marcus inclinou-se para a frente e bateu os calcanhares para alcançar
Caesar. Mais à frente, rochedos erguiam-se dos dois lados da passagem, cobertos de neve e gelo.
Estavam a uns trinta metros da passagem estreita quando um homem alto saltou de trás de uma pedra e caminhou confiantemente até o meio da estrada. Ele parou de frente
para os cavaleiros, com as mãos nos quadris.
- O que é isso? - sibilou Caesar enquanto desacelerava e erguia a mão para que seus homens não esbarrassem nele. A fileira passou a ir mais devagar, e o olhar de
Marcus foi do homem para os rochedos dos dois lados e depois voltou. Ele sentiu o arrepio familiar de apreensão nos pelos da nuca.
- Já estão perto o suficiente! - gritou o homem quando eles chegaram a uns seis metros de distância.
Caesar puxou as rédeas e ficou parado em cima da sela com a postura ereta e imperiosa.
- O que isso significa? - exigiu ele.
Agora que estavam perto do homem, Marcus percebeu que ele era um gigante, tinha mais de 1,80m de altura. Os cabelos loiros e espessos se fundiam com uma barba malcuidada
e olhos azuis que brilhavam debaixo de suas grossas sobrancelhas. Um manto de pele de lobo cobria seus ombros largos e dava para ver o focinho e as orelhas da cabeça
do animal preservada no topo da cabeça dele. Debaixo do manto, ele vestia uma túnica listrada e as calças que os celtas costumavam usar. Dava para ver um machado
no cinto que mantinha sua calça no lugar. Surgiu um sorriso nos lábios do homem enquanto ele dava alguns passos na direção dos cavaleiros. Marcus percebeu que não
havia medo em seu rosto.
- O significado já devia estar claro - disse o homem com uma voz fortíssima. - Essa passagem pertence a mim e, como qualquer proprietário, eu quero saber as intenções
das pessoas que passam pelo meu terreno.
- Entendi. - Caesar fez sim com a cabeça. - E posso perguntar o nome do homem que alega possuir uma estrada que, até agora, eu imaginava ser propriedade de Roma?
- Por favor, perdoe a minha educação do interior - respondeu o homem com tom de voz jocoso. - Sou Mandracus, senhor das terras dos dois lados dessa passagem. É por
isso que tenho que cobrar pedágio daqueles que querem atravessar meu território. E quem é você, senhor? Pelo corte das suas roupas e pelo sotaque arrogante, vejo
que é um romano bem-nascido.
Com o som leve dos cascos, Festus aproximou-se e parou ao lado de seu senhor.
- Quem é esse camponês? Afaste-se antes que a gente mate você.
- Já basta, Festus! - interrompeu Caesar. Ele se virou para Mandracus. - Sou um comandante atravessando as montanhas a serviço do Senado. Impedir a minha passagem
é crime. - Caesar sorriu friamente. - No entanto, respeitando a sua educação do interior, eu não vou puni-lo, basta você se afastar e nos deixar passar.
Mandracus pressionou os lábios e balançou a cabeça.
- Desculpe, senhor, mas não posso fazer isso.
Enquanto os homens conversavam, Marcus observou os dois lados da passagem e avistou movimento naquela área. Um rosto os encarava. À sombra de uma rocha, outro homem
segurava uma lança e um escudo.
- Já basta dessa tolice! - exclamou Caesar. - Saia da frente!
Mandracus continuou firme onde estava e sacou o machado, brandindo-o ao lado do corpo. Com o sinal, mais homens apareceram de trás das pedras e foram para o meio
da estrada. Marcus avistou no mínimo trinta homens. Alguns pareciam tão fortes quanto Mandracus, mas a maioria era magra, com o rosto oprimido pela fome, e tinha
o desespero nos olhos. No entanto, todos estavam armados com lanças, espadas e machados. O líder deles fez um gesto.
- Como estão vendo, somos três vezes mais numerosos que vocês. E seremos cinco vezes mais numerosos quando o restante dos meus homens vier por trás de vocês. Vocês
não têm saída.
A mão de Festus foi até o cabo de sua espada, e Marcus e o resto dos guarda-costas fizeram o mesmo, aguardando a ordem de Caesar. O procônsul olhou para os homens
à sua frente e cruzou os braços.
- E o que é que você quer de nós, Mandracus?
- Há certas normas que devem ser obedecidas. - O bandido sorriu. - Primeiro, tem algum escravo com vocês?
- Escravos? - Caesar apontou para Lupus, que tremia de frio e medo em cima da sela. - Apenas o meu escriba.
- Então vamos ter que tirá-lo de você. No meu território, ninguém é escravo. Segundo, preciso pedir que vocês me entreguem todo o ouro e prata em sua posse, assim
como suas armas e cavalos. Depois disso, vocês estão livres para seguir pela passagem. Ou para voltar por onde vieram. Naquela direção tem um abrigo para se protegerem
da neve.
- E se nos recusarmos a fazer isso?
A expressão de Mandracus ficou mais séria.
- Nós teremos que matar todos vocês, exceto o escravo, e vamos pegar o que queremos de qualquer jeito.
Houve um breve instante de silêncio antes que Caesar falasse baixinho, entre os dentes cerrados, para apenas os ouvidos de Marcus e Festus.
- Quando eu avisar, nós atacamos esse tolo e sua corja. Prontos?
- Sim, Caesar - murmuraram Festus e Marcus.
Caesar respirou fundo e estava prestes a responder quando foi interrompido pelo som de cascos. Marcus virou-se para ver que os homens a cavalo tinham subido a parte
final da estrada e se aproximavam da passagem. Eles se espalharam pelo terreno aberto nos dois lados da estrada e prepararam as armas.
Mandracus deu de ombros.
- Como eu disse, vocês estão encurralados. Se querem viver, vocês não têm escolha, devem fazer como mandei. Agora abaixem as armas e desçam dos cavalos! Obedeçam!
Marcus concentrou-se em Caesar enquanto pressionava as coxas nos flancos do cavalo e os dedos ao redor do cabo da espada. Caesar soltou um suspiro, como se estivesse
se rendendo ao inevitável, e estendeu a mão na direção de sua arma casualmente. No entanto, em vez de tirá-la e jogá-la no chão, ele a agarrou rapidamente e a apontou
para a trilha enquanto gritava o mais alto possível.
- Ataquem!
7
Marcus jogou o manto para trás e puxou a espada da bainha. Ao redor, escutou os tinidos metálicos dos outros guarda-costas fazendo o mesmo. Somente Lupus estava
desarmado, olhando para a frente com uma expressão de pavor. Soltando um palavrão, Marcus passou as rédeas para a mão que segurava a espada e agarrou a adaga que
estava do outro lado do cinto. Ele aproximou o cavalo de Lupus e estendeu a adaga pela lâmina.
- Pegue!
O outro garoto hesitou brevemente antes de segurar no cabo e virar a adaga para cima, erguendo-a acima da cabeça para poder atacar. Marcus não tinha tempo de explicar
ao amigo como empunhar a arma, então disse por entre os dentes cerrados:
- Fique perto de mim, Lupus. Se algum desses homens chegar perto de você, não pare pra pensar, você tem que esfaqueá-lo antes que ele o mate.
Os outros guarda-costas lançaram-se para a frente, levantando a neve enquanto iam atrás de Caesar. Marcus pressionou os calcanhares no cavalo e foi atrás deles,
inclinando-se para a frente na sela e segurando a arma na horizontal ao lado do flanco do cavalo, pronto para atacar.
A ordem de Caesar surpreendera os bandidos. O líder foi obrigado a pular para o lado diante da cavalaria de Caesar que se lançava bem para cima dele. O restante
dos homens reagiu com mais lentidão, e os cavaleiros chegaram entre eles antes que pudessem escapar. O ar foi tomado pelas pancadas e tinidos das lanças e lâminas
colidindo e pelos grunhidos dos homens atacando com todas as forças. Gritos de dor e triunfo ecoavam pelos rochedos dos dois lados da passagem, assim como os relinchos
dos cavalos.
Marcus, com o coração acelerado, fez seu cavalo penetrar o tumulto da luta. Ele avistou Mandracus levantar-se, erguer o machado e atacar um dos guarda-costas. O
homem só percebeu no último instante, tarde demais para qualquer reação, e o machado atingiu sua coxa, cortando carne, músculo e osso. O cavaleiro gemeu de dor e
atacou com a espada, atingindo fracamente o ombro do inimigo. A maior parte do impacto foi absorvida pela pele de lobo e pelas camadas grossas da túnica por baixo,
mas ainda assim Mandracus caiu de joelhos. Rangendo os dentes de dor, o cavaleiro bateu o tornozelo que não estava machucado no cavalo e procurou algum outro inimigo.
Marcus levou o cavalo até um espaço entre dois cavaleiros e se aproximou de um homem que tinha ido para trás de Festus erguendo sua lança, pronto para atacar. Inclinando-se
para a frente na sela, Marcus empurrou a espada contra a base da lança e derrubou-a, a ponta passando por cima do ombro de Festus sem causar nenhum dano. O líder
da guarda pessoal de Caesar percebeu o borrão pelo canto do olho e virou o cavalo imediatamente, fazendo um corte no braço do homem que tentara matá-lo. Mais um
corte no ombro e o bandido estava fora de combate.
Enquanto isso, Caesar tinha sido cercado pelos homens de Mandracus e estava puxando as rédeas com força para o cavalo se erguer e atacar com os cascos, forçando
o recuo dos oponentes. Era impossível manter todos eles a distância, e, enquanto prestava atenção, Marcus avistou um homem enfiar uma forquilha na anca do cavalo.
Um relincho agudo espalhou-se pelo ar, e o animal atacou com as patas traseiras, atingindo o homem e fazendo-o sair voando. Marcus sacudiu as rédeas e aproximou-se
de Caesar, brandindo a espada para que os homens ficassem afastados. Caesar mostrou que tinha percebido a presença do garoto com um rápido aceno de cabeça.
- Temos que sair daqui. Aqueles outros homens vão se juntar à luta a qualquer momento.
Marcus olhou ao redor, para a área atrás dos homens em combate, e viu outros cavaleiros subindo para perto deles. Quando eles chegassem à passagem, seria o fim.
- Festus! - gritou Caesar por cima dos barulhos da luta. - Vocês todos, me sigam! Me sigam! Temos que abrir caminho!
Os guarda-costas aproximaram os cavalos de Caesar e formaram um círculo. Olhando ao redor, Marcus percebeu que estava faltando um dos homens e depois avistou um
grupo de bandidos encurvados na direção do chão ao lado de um cavalo com a sela vazia. Eles estavam golpeando e esfaqueando o homem caído, com sangue pingando das
armas toda vez que elas eram erguidas para atacar mais uma vez. O guarda-costas com a perna ferida balançava-se na sela, gemia entre os dentes cerrados e o sangue
escorria de sua ferida, caindo em cima da neve como flores exóticas. Lupus, que conseguira ficar ao lado de Marcus, estava erguendo a adaga com um grunhido que distorcia
suas feições.
Mandracus tinha conseguido voltar para sua posição no meio da estrada, bloqueando a passagem. Ele gritou para que seus homens entrassem em formação ao lado dele.
Aqueles que puderam obedeceram ofegantes, respirando o ar gélido.
Caesar olhou para seus homens e apontou a espada para frente.
- Não parem por nada! Vamos!
O pequeno grupo de cavaleiros disparou, e, no último instante, a coragem dos bandidos fracassou, e a maioria deles saiu do caminho. Alguns poucos mais corajosos
ficaram parados ao lado do líder, as armas na horizontal enquanto os cavalos iam para cima deles, fazendo-os se ferirem ou serem pisoteados. Apenas Mandracus continuou
em pé, brandindo o machado de um lado para outro, obrigando os cavaleiros nervosos a desviar dele. Mais à frente a estrada estava livre, e, por um breve instante,
Marcus se atreveu a acreditar que eles tinham escapado. Olhou para trás e avistou Lupus com seu manto balançando fortemente enquanto o garoto se encurvava em cima
da sela, ainda segurando a adaga no alto.
- Venha! - gritou Marcus.
Atrás de seu amigo, Marcus avistou Mandracus se virar, erguer o machado e mirar.
- Lupus! Cuidado! - gritou Marcus desesperadamente.
Em seguida, o machado atravessou o ar. Por um instante, Marcus ficou olhando para a expressão de confusão e medo no rosto de Lupus. Logo depois, o cavalo dele caiu
abruptamente na lateral da estrada, lançando o escriba para longe da sela. Sangue subiu no ar, saindo da pata traseira do cavalo, que chutava e se contorcia para
tentar rolar e se erguer. Ao tentar se levantar, a pata ferida cedeu e o cavalo tombou de lado soltando um relincho agudo de dor.
Marcus puxou as rédeas, virando um pouco seu cavalo para que ele ficasse de lado. Então ele avistou Lupus. O garoto estava se levantando e balançou a cabeça. Marcus
estava prestes a voltar a cavalgar quando escutou a voz de Festus:
- Marcus! O que está fazendo? Venha logo, garoto!
- É Lupus! Ele caiu!
Festus soltou um palavrão baixinho e se virou para trás, fazendo seu cavalo parar ao lado de Marcus. Os dois viram Lupus cambaleando para perto deles. Ele tinha
perdido a adaga e estendia a mão, suplicante. Marcus acenou em desespero com a mão livre enquanto guardava a espada.
- Corra!
Mandracus já estava correndo atrás de Lupus, com um sorriso cruel nos lábios. Ele parou ao lado do cavalo para pegar o machado e continuou perseguindo o escriba;
Marcus observava, horrorizado. Em seguida, o feitiço foi quebrado e ele agarrou as rédeas para voltar até o amigo e resgatá-lo.
- Não! - gritou Festus, arrancando as rédeas das mãos de Marcus e fazendo o cavalo dele se erguer e bufar.
- O que está fazendo?! - exclamou Marcus. - Solte!
- É tarde demais! Veja!
Marcus virou-se. Ele viu Mandracus se inclinar para a frente, pegar Lupus pela nuca e o lançar no chão. Em pé ao lado do garoto, ele começou a mover o machado, olhando
para os dois cavaleiros que o observavam a uma pequena distância. Atrás dele, seus companheiros a cavalo se aproximavam, querendo perseguir os romanos.
- Não dá para salvá-lo - disse Festus. - Só podemos salvar a nós mesmos, se formos embora agora. Marcus!
A voz alta fez Marcus despertar, e o garoto lançou um último olhar desesperado para o seu amigo esparramado na neve. No entanto, ele sabia que Festus tinha razão:
era tarde demais. Com a culpa tomando conta de si, Marcus puxou as rédeas e se virou, galopando atrás de Caesar. Os outros já tinham cruzado a passagem e se aproximavam
do terreno aberto mais à frente. Atrás deles, o barulho dos perseguidores ecoava pelos rochedos, e Mandracus gritava uma ordem:
- Acabem com eles! Matem todos!
Sua voz estrondosa pareceu um trovão naquele espaço confinado, e Marcus olhou para trás no instante em que um dos cavaleiros passava pelo líder. Em seguida, escutou
mais um barulho. Um estalo surdo. Algo se moveu em cima da passarela, atraindo o olhar de Marcus. A massa de neve que lá em cima pendeu para a frente aos poucos
e depois se partiu em vários pedaços, causando uma explosão branca que desmoronou em cima da passagem, rugindo e sibilando. Os cavaleiros mal tiveram tempo de olhar
para cima antes que a avalanche os atingisse e a seus cavalos, cobrindo-os e enterrando-os no meio de um turbilhão de pedras e neve. Marcus diminuiu sua velocidade
e virou-se para dar uma boa olhada enquanto o último bloco de neve despencava. Depois disso, tudo ficou calmo.
- Marcus! - chamou Festus. - Temos que ir!
- Sim. - Marcus engoliu em seco e assentiu com a cabeça. - Sim, estou indo.
Festus começou a galopar para longe enquanto Marcus dava uma última olhada. Uma sensação entorpecedora de perda tomou conta dele.
- Lupus...
Em seguida, ele respirou fundo, pegou as rédeas e virou seu cavalo na direção dos outros. Ele o incitou a galopar, levando-o para longe do horror daquela cena.
Quando Lupus acordou, em meio ao breu, era impossível ter qualquer senso de direção. Encolhido, sentia um espaço aberto na sua frente que o permitia respirar. Estava
com frio, e seus braços e suas pernas, dormentes. O ar tinha um cheiro fétido, e o garoto sentiu um formigamento nos pulmões ao começar a sufocar. Por um instante,
ele não conseguiu se lembrar de como tinha ido parar naquele lugar. Talvez, pensou ele, já tivesse passado pelas sombras e aquilo fosse o que acontecia após a morte.
Uma eternidade trancado em um vazio gélido, preto e sufocante. Ao pensar nisso, ficou apavorado e tentou se mover. No entanto, só conseguiu mexer a cabeça de um
lado para outro, tentando agarrar a neve.
- Não - murmurou ele para si mesmo. - Não. NÃO! Eu não estou morto! Não quero morrer! Não!
Seus gritos foram abafados, e, por causa do esforço, ele ficou com dificuldade de respirar, então parou e arfou. Foi então que as escutou. Vozes. No início elas
pareciam distantes, mas aos poucos foram se aproximando e ficando mais nítidas.
- Aqui! - gritou ele. - Aqui dentro!
Demorou um instante para ele as escutasse novamente, daquela vez mais próximas. Depois, ouviu o barulho de alguém raspando algo. Sentiu um movimento ao redor do
corpo e avistou um brilho fraco ao lado. O brilho fortaleceu-se e o barulho ficou mais alto, e depois a luz, o barulho e o ar fresco chegaram todos de uma vez só.
Ele inspirou forte várias vezes enquanto uma mão o agarrava por baixo dos ombros, tirando-o do meio da neve e do gelo.
- Mandracus! Aqui! Achei um deles. Um garoto.
Qualquer alívio que Lupus tivesse sentido desapareceu de imediato no instante em que se sentou e avistou a cena ao redor. A passagem tinha virado um monte caótico
de neve. Havia um homem vestido de peles em pé na sua frente. Outros homens cavavam a neve desesperadamente, procurando seus camaradas. Alguns já tinham sido resgatados,
assim como vários cavalos, e estavam sentados nas proximidades, com os corpos cobertos por uma camada de gelo, tremendo.
Mandracus abriu caminho em meio aos escombros, a expressão séria e raivosa. Ele parou na frente de Lupus e o fulminou com o olhar.
- Eu perdi mais de vinte homens, eles foram assassinados pelo seu senhor e seus amigos ou foram enterrados vivos.
- Por favor, por favor, não me machuque - implorou Lupus enquanto se sentava, tremendo.
- Machucá-lo? - Mandracus franziu a testa. - Não vou machucá-lo, garoto. Vou libertá-lo. Agora você é um de nós. Para o bem ou para o mal. Seus dias de escravo acabaram.
Lupus mal conseguia acreditar no que tinha escutado. Quando a confusão finalmente passou, ele olhou para cima esperançosamente.
- Estou livre?
Mandracus assentiu com a cabeça.
- Claro. Pode fazer o que quiser. Não vou impedi-lo. Afinal, se quiser escapar de mim, você vai simplesmente voltar para a escravidão. Mas tem uma coisa que quero
saber. Quero saber o nome do seu líder. Tenho uma dívida a resolver com ele. Qual o nome dele? - exigiu Mandracus.
- Gaius Julius Caesar.
- O cônsul? - Mandracus não conseguiu disfarçar a surpresa. - Era ele?
- Não mais. O período dele no cargo acabou. Agora ele é um procônsul - explicou Lupus. - Ele vai assumir uma nova tropa.
- Então o que ele está fazendo nas montanhas? Com uma escolta tão pequena? Explique.
- Antes de partir para a Gália, Caesar recebeu a missão de acabar com Brixus e seus rebeldes.
- Ah, é? - Mandracus sorriu. - Me diga uma coisa, você é muito próximo do seu senhor?
Lupus levantou-se com dificuldade e parou orgulhosamente na frente do homem.
- Sou o escriba de Caesar. Eu o sirvo há muitos anos.
- Ótimo. Então tenho certeza de que você vai ter muito o que contar para Brixus quando eu o levar até ele. Ele quer saber tudo o que for possível sobre o inimigo.
Quem mais estava no seu grupo?
- Ninguém importante. Apenas os guarda-costas dele.
- E o outro garoto?
- Marcus? - Lupus deu de ombros. - Não tenho muito a dizer sobre ele. Ele é meu amigo. Marcus estava fazendo treinamento de gladiador quando Caesar o comprou.
Um brilho estranho apareceu nos olhos de Mandracus enquanto ele murmurava para si mesmo.
- Um menino gladiador... onde foi esse treinamento? Em que escola?
- Ele disse que foi na escola de Porcino, em Cápua. - Lupus franziu a testa. - Por que quer saber disso?
- Mais tarde eu conto. Mas primeiro precisamos encontrar Brixus. Ele vai gostar de saber tudo o que você me contou e o que você ainda não contou. - Mandracus olhou
para os sobreviventes ao seu redor. - Talvez tenha valido a pena - refletiu ao voltar a atenção para Lupus. - Talvez Brixus tenha razão. Chegou a hora de erguer
a bandeira da rebelião, e de Spartacus, mais uma vez...
8
Rimini era uma cidadezinha na costa leste do Império, com um porto modesto onde o rio desembocava no mar. Dos dois lados, havia uma praia larga de areia marrom que
se estendia por vários quilômetros. A água era rasa por uma boa distância, e Marcus conseguia entender por que os romanos ricos passavam os meses de verão ali. No
entanto, no inverno, a cidade transformava-se em um lugar isolado e quieto onde barcos ancoravam ocasionalmente. Os pescadores se sentavam na areia, protegidos por
seus barcos secos, e examinavam as redes com cuidado. Um quilômetro e meio ao norte ficava o acampamento do exército que Caesar comandaria.
Os vinte mil homens das quatro legiões ocupavam uma área gigante em comparação à cidade vizinha. O acampamento tinha o formato de um quadrado, com uma legião em
cada quadrante. Um muro baixo e uma trincheira cercavam a cidade composta de tendas, com torres em intervalos regulares e um portão fortificado na metade de cada
lado. Duas vias amplas se cruzavam no centro do acampamento, onde ficavam as tendas maiores. Ao redor delas, havia uma fileira após a outra de tendas feitas de pele
de bode, cada uma ocupada por oito legionários. Fora do acampamento, milhares de homens faziam seus treinamentos e praticavam com as armas.
Era uma visão espetacular, mas Marcus não conseguiu ficar animado. Sentado em sua sela, ao lado dos outros cavaleiros, observava a cena da última elevação da estrada
antes de chegar a Rimini. Três dias tinham se passado desde que por sorte escaparam nas montanhas. O homem que machucara a perna tinha sido deixado em Spello, a
primeira cidade pela qual passaram. Um cirurgião grego dissera que ele se recuperaria, mas ficaria manco pelo resto da vida. Foi a perda de Lupus que mais abalou
Marcus. Desde que se tornara escravo, poucas eram as pessoas de quem se tornara amigo, e perder mais uma delas era uma lembrança cruel do quanto estava só.
Havia a amizade de Brixus, feita no tempo em que passou na escola de gladiadores em Cápua. Brixus descobriu a identidade de Marcus e fugiu da escola para encontrar
seus antigos camaradas da revolta de Spartacus. E agora eles também sabiam que o filho do herói deles estava vivo. Quando Brixus lhe revelou a verdade, o mundo de
Marcus foi totalmente abalado. Titus, o homem que achava ser seu pai, a quem admirava e amava, tinha sido um dos romanos que acabaram com a revolta dos escravos.
A mesma revolta que terminou com a morte de seu verdadeiro pai. No início foi difícil aceitar aquilo, mas, à medida que aprendia mais sobre Spartacus, seu respeito
pelo pai nunca conhecido só aumentava. Respeito, mas não a afeição que sentia por Titus. Como podia ser diferente?
Depois, ao ser levado para Roma, ele ficou amigo de Portia, a sobrinha de Caesar, após salvar sua vida. Ela era alguns anos mais velha do que Marcus e tinha sido
enviada a Roma para ser criada pelo tio enquanto o pai participava de uma campanha na península Ibérica. A carência de Portia e a gratidão que ela sentia por Marcus
tornaram os dois mais próximos do que o normal para a sobrinha de um cônsul e um de seus escravos. Entretanto, Marcus sempre sentiu certo receio na presença dela.
Havia limites para o que um escravo podia dizer em circunstâncias como aquelas. Marcus estava um pouco nervoso com a possibilidade de vê-la novamente em Rimini.
Com certeza ela estaria diferente agora que tinha casado com Quintus, e talvez a jovem não fosse gostar de se lembrar do quanto era próxima de um dos servos de seu
tio, apesar de Marcus ter recebido sua liberdade.
Seus outros amigos foram os dois garotos com quem Marcus compartilhara a cela na casa de Caesar: Corvus e Lupus. O primeiro trabalhava na cozinha e era bastante
amargurado por causa da vida que levava. No entanto, ele era corajoso e terminou morrendo para proteger Portia. E, por último, Lupus, que era uma alma gentil. Amava
seu trabalho e ler livros. Sem Lupus, Marcus sentia-se sozinho mais uma vez e sofria pela perda do amigo.
- Vamos primeiro ao acampamento - avisou Caesar, interrompendo os pensamentos sombrios de Marcus -, antes que eu providencie acomodações em Rimini.
Ele acenou para a frente e começou a galopar de leve para percorrer os últimos quilômetros. Os outros aceleraram os cavalos e o acompanharam pela estrada. A uma
pequena distância do portão da cidade, eles passaram para uma estrada lateral que levava a uma ponte de madeira sobre um rio. As chuvas de outono e inverno nos Apeninos
tinham deixado o rio tão cheio que ele ameaçava transbordar ao correr entre os pilares da ponte.
Enquanto os cavaleiros aproximavam-se do acampamento, passaram pelo primeiro grupo de soldados, que se exercitava perto de um palus, uma estaca de madeira do tamanho
de um homem. Os legionários estavam agachados diante dos alvos e alternavam entre enfiar as espadas nos pilares e esmagar os escudos contra eles. Marcus conhecia
a técnica por causa de sua passagem pela escola de gladiadores. O centurião que comandava os soldados olhou para cima, mas não fez nenhuma saudação. Seu novo comandante
estava com um manto simples e sem nenhum sinal da autoridade que lhe fora concedida em Roma. Caesar cumprimentou-o com a cabeça ao passar cavalgando.
Ao chegarem ao portão do acampamento, no entanto, foi diferente. Havia uma ponte de madeira que se estendia por cima da vala e uma seção de homens fortemente armados
vigiava mais ao canto. Caesar puxou as rédeas e atravessou a ponte lentamente, os cascos produzindo ruídos ocos. O optio em serviço ergueu a mão e obstruiu o caminho.
- Alto! O que quer aqui?
Caesar puxou levemente as rédeas e colocou a mão dentro da sacola pendurada em um dos pitos da sela.
- Aguarde um instante, está aqui... em algum lugar.
O optio encheu as bochechas de ar, impaciente.
- Se são os mercadores de grãos que o quartel-mestre está esperando, então estão atrasados e aviso logo que ele não está muito contente com isso.
- Não, não somos mercadores de grãos - murmurou Caesar enquanto continuava mexendo na sacola. Em seguida, ele sorriu ao levantar a mão segurando um bastão com as
extremidades douradas e enrolado firmemente por um pergaminho, com o grande selo do Senado e do povo de Roma. - Aqui estamos! Sou Gaius Julius Caesar, governador
da província da Gália e general deste exército. Estou aqui para liderar minha tropa sob a autoridade do Senado.
Marcus viu os olhos do optio arregalarem-se e sua mandíbula relaxar. Recuperando-se rapidamente, ele deu um rápido passo para o lado, fez sentido e pôs o punho na
frente do peito, saudando-o.
- Peço desculpas, senhor.
- Descansar. - Caesar riu. - Bem, é a primeira vez que me confundem com um mercador de grãos!
- Não, senhor. Peço desculpas, senhor. - O rosto do optio corou.
- Não precisa pedir desculpas. Nós estamos na estrada há cinco dias. Prossiga seu trabalho, optio.
Caesar incitou seu cavalo adiante e conduziu sua escolta para dentro do acampamento. Ao passar para o outro lado do portão, Marcus respirou fundo subitamente ao
ver as fileiras organizadas de tendas que se espalhavam por todas as direções. Havia fumaça subindo das várias fogueiras do acampamento e das forjas dos armeiros.
O ar estava tomado pelo barulho de vozes e de gritos com ordens. Mais à frente, havia uma avenida longa e larga levando ao centro do acampamento. Alguns soldados
olhavam curiosamente os cavaleiros passarem, mas a maioria simplesmente os ignorava e prosseguia com seus deveres ou descansava fora das tendas, jogando dados ou
organizando pertences pessoais.
Ao chegarem às tendas maiores no centro do acampamento, Caesar foi parado por um centurião da unidade de elite dos soldados responsáveis pela proteção do quartel-general
e dos oficiais mais importantes do exército. Assim que viu o bastão, ele acenou para que os cavaleiros entrassem. Eles desmontaram perto da fileira de cavalos na
parte exterior da tenda maior. As bandeiras com águias das quatro legiões estavam em um pódio na frente da entrada e eram protegidas por oito homens com pele de
urso cobrindo ombros e capacetes.
Algo naquela atmosfera entusiasmava Marcus. Era uma mistura inebriante de cenas e sons, junto com o poder que Roma possuía por intermédio de seus soldados. Aqueles
homens eram os construtores do grande Império, uma vez que derrotavam outros impérios. Por outro lado, eram os mesmos que, exauridos, enfim, destruíram Spartacus
e seus rebeldes, lembrou Marcus, cujo entusiasmo então diminuiu.
Caesar virou-se na entrada da tenda.
- Festus e Marcus, venham comigo. O restante, fique aguardando aqui.
O bastão de Caesar tinha sido avistado por um dos guardas na entrada da tenda, e, quando eles entraram, os oficiais e escrivães dos dois lados da mesa levantaram-se
e imediatamente se colocaram em posição de sentido para os três recém-chegados. No outro lado da tenda, havia uma divisória, e um sujeito apareceu apressadamente,
estendendo a mão e sorrindo.
- Caesar! Que bom vê-lo novamente.
- Labienus, meu velho amigo. - Caesar agarrou o antebraço dele e retribuiu o sorriso.
- Estava achando que o receberia em março. Não fazia ideia de que você chegaria mais cedo, se fizesse teria preparado uma recepção adequada para um procônsul.
- Já tive o bastante de cerimônias. É hora de fazer o trabalho honesto de um soldado e deixar a política para trás. Ou pelo menos é isso que eu queria. Agora Cicero
tramou para que eu caísse nessa terrível armadilha. - Caesar olhou para os outros homens na tenda. - Vamos continuar a conversa em particular.
Depois que as divisórias foram fechadas, Labienus apontou para cadeiras dobráveis de madeira que estavam ao lado de uma grande mesa em uma das laterais da tenda.
Caesar gesticulou na direção de seus companheiros.
- Este é Festus, líder da minha guarda pessoal.
- Aqui você não vai ter muito a fazer - disse Labienus. - Temos uma unidade do exército responsável pela proteção do general.
Caesar assentiu com a cabeça.
- Mesmo assim, Festus e seus homens vão continuar perto de mim. Depois do que aconteceu em Roma no ano passado, preciso ter cautela ao decidir em quem confiar.
Labienus deu de ombros.
- Pode soar estranho, mas acho que você vai se sentir mais seguro em campanha do que nas ruas de Roma. E quem é o garoto?
Caesar virou-se para Marcus e pôs a mão no ombro dele.
- Este é Marcus Cornelius Primus, o gladiador. O favorito de Roma.
Marcus não tinha como negar que era bom ser elogiado por Caesar, um dos três homens mais poderosos do Império Romano, mas percebeu que estava envergonhado. Ele forçou
um sorriso antes de olhar para baixo por um instante.
- Você? - Labienus ergueu as sobrancelhas. - Você é o tal garoto? Achava que você seria maior. Por causa de sua reputação. Dizem que você matou um gigante celta
na luta travada diante do Fórum. Mas você é tão... jovem.
- Não se deixe enganar pelas aparências - disse Caesar. - Marcus tem o coração de um leão, a velocidade de uma víbora e a esperteza de um gato. Com o tempo, ele
se tornará ainda mais famoso. Talvez ele se torne o maior gladiador que já existiu. Não há ninguém como ele. - Caesar hesitou. - Bem, talvez antigamente houvesse.
Mas agora ele está morto. É a maior pena. Eu gostaria de ter visto Spartacus lutar em Roma. Que espetáculo deve ter sido.
- Nunca mais veremos nada daquele tipo - concordou Labienus. - E por isso eu só posso agradecer aos deuses.
Mais uma vez, Marcus percebeu o quanto a sua situação era perigosa e sentiu um fascínio pelo legado do pai. Se aqueles romanos soubessem a verdade...
Labienus prosseguiu:
- Só queria que esses arruaceiros das montanhas percebessem logo isso e terminassem a rebelião. Enfim, quando chegar a hora nós lidaremos com eles. O que foi que
você disse um instante atrás sobre Cicero e uma armadilha?
- É por isso que cheguei antes do esperado. Minha missão é acabar com a revolta de Brixus e eliminar o restante dos seguidores de Spartacus. Tenho que fazer isso
antes de poder começar minhas campanhas na Gália. Não vai ser fácil. Tive uma prévia do confronto na viagem de Roma até aqui. Caímos em uma emboscada no meio das
montanhas, tivemos sorte de escapar. Perdi um dos meus homens, outro ficou ferido, e o meu escriba também morreu. - Ele parou por um instante e se virou para Marcus.
- Você sabe ler e escrever?
Marcus tivera uma boa educação básica e fez sim com a cabeça.
- Sei o suficiente, senhor.
- Então de agora em diante você assumirá o lugar de Lupus. Pode fazer isso e ser membro da minha guarda pessoal, além de ser meu especialista em gladiadores.
- Sim, senhor - respondeu Marcus, com uma onda de orgulho.
- Ótimo. - Caesar bateu de leve nele. - Então vá procurar o que precisa para o trabalho com os funcionários do quartel-general. Se alguém o questionar, diga que
está agindo sob meu comando.
- Quais são seus planos em relação a Brixus? - perguntou Labienus.
- Escolherei seus melhores soldados. Você continua no comando aqui com o restante dos homens, preparando os recrutas para a Gália. Dividirei minha força em duas.
O comandante da nona legião, Balbus, vai marchar com seus homens para o sul até Corfinio e depois para o norte, esvaziando todos os vales à medida que avança. Começarei
na outra extremidade dos Apeninos e vou na direção dele. Acabaremos com eles em nossas rotas. Acho que não vai demorar mais do que um mês.
- Entendi - refletiu Labienus. - Quando pretende começar?
- Em dois dias. Quero duas tropas equipadas e com mantimentos para um mês inteiro. Eles precisarão marchar rapidamente quando entrarmos nas montanhas, então a bagagem
não pode ficar pesada. Só o suficiente para alimentá-los por alguns dias de cada vez. O restante dos mantimentos terá que ser empilhado nas cidades à beira das montanhas.
Você precisará providenciar isso.
- Dois dias? - Labienus encheu as bochechas de ar. - Sim, isso pode ser providenciado.
- Pode ser providenciado? - Caesar franziu a testa. - Labienus, isso será providenciado.
- Sim, senhor.
- Então pode dar as ordens necessárias imediatamente. Ah, mais uma coisa. Você tem um novo tribuno servindo na nona legião que se chama Quintus Pompeius, o sobrinho
de Pompeius.
- Exatamente.
- Presumo que ele esteja aquartelado na cidade?
Labienus assentiu com a cabeça.
- Ele assumiu o controle da casa de um vendedor de escravos e acabou de se casar com uma linda jovem. Uma pombinha.
Marcus ficou com raiva ao ouvir a referência desrespeitosa à Portia.
- Essa garota é minha sobrinha - disse Caesar secamente. - Muito bem então, meus homens e eu vamos ficar na casa dela. Depois que der as ordens, envie um relatório
completo para mim, lá em Rimini. Preciso saber os nomes dos meus oficiais e a força das unidades escolhidas para a missão. Além disso, estou esperando a chegada
de um homem aqui em alguns dias. É o lanista da escola de onde Brixus fugiu. Clodius está o procurando agora. Ele vai enviar o homem para cá assim que o encontrar.
- Sim, Caesar. Eu o envio até você no instante em que ele chegar.
- Ótimo, então nossos assuntos estão resolvidos. - Caesar levantou-se, e Festus e Marcus fizeram o mesmo. - Agora vamos encontrar uma casa de banhos decente na cidade
e nos limpar antes de ir para a casa de Portia e de seu marido.
9
- Tio Gaius! - Portia ficou contente ao vê-lo aparecer no átrio da casa. Ela disparou pelo chão de mármore e o abraçou apertado enquanto Caesar ria. Ele estava vestindo
uma túnica que pegara emprestada de um dos magistrados de Rimini, e um escravo limpara suas botas durante a visita de Caesar e companhia à maior casa de banhos da
cidade. O vapor, a massagem, o esfregar e o mergulho na água fria deixaram Marcus se sentindo limpo e revigorado, e ele e Festus estavam com suas túnicas reserva.
- Calma! Assim vai quebrar minhas costelas.
Marcus e Festus observavam da entrada da casa, e Marcus sentiu certa inveja por não ter mais uma família. Até encontrar e libertar a mãe, ele não teria aqueles simples
prazeres como a cena acolhedora que presenciava.
Caesar segurou os ombros dela e a afastou enquanto a observava, radiante.
- Como está minha sobrinha preferida?
- Sou sua única sobrinha. - Ela deu um leve tapa no peito dele.
- Exatamente. Continua sendo a minha preferida. E está se adaptando à vida de casada? Onde está aquele seu marido, o jovem Quintus?
Marcus viu o sorriso dela diminuir por um brevíssimo instante antes de responder:
- Ah, ele está no clube dos oficiais. Eles estão acomodados em uma estalagem na frente do porto. Estão muito ocupados, como você deve saber. Preparando o exército
para a nova campanha. Imagino que eles mereçam se divertir de vez em quando. Mas estamos felizes. Muito felizes. Mas sei que vou passar um bom tempo sem vê-lo quando
você levar o exército para o norte, para a Gália. - O sorriso dela desapareceu enquanto segurava a mão do tio. - Por favor, demore para dar a ordem.
- Minha querida, impérios não são conquistados por homens que ficam em casa com as esposas.
- E os homens que conquistam impérios não chegam nem a nascer se os pais deles nunca estão perto das mães - respondeu ela.
- Rá! Você é mais esperta do que metade dos homens do Senado e tem uma língua mais afiada do que a outra metade. Mas já basta disso. Tenho uma surpresa para você,
caso esteja com saudades de Roma. - Ele deu um passo para o lado, deixando-a ver seus dois companheiros. - Aqui estão Festus e Marcus.
- Marcus! - Portia sorriu, aproximou-se dele, segurou suas mãos a uma pequena distância, apertou-as e soltou. - Você parece estar bem. Recuperou-se completamente
da luta com aquele terrível marginal do Ferax?
- Sim, ama - respondeu Marcus formalmente, pois era o que se esperava deles quando estavam na frente de outras pessoas. - Estou bem. É bom vê-la novamente.
- Então talvez nós possamos conversar um pouco mais tarde, depois que vocês se alimentarem?
Caesar tossiu.
- Vou comer mais tarde. Preciso cuidar de um assunto primeiro. Onde fica esse clube de oficiais?
- Você já precisa ir embora? - Portia franziu a testa.
- Tenho muito a fazer. Vamos iniciar nossa marcha contra os escravos rebeldes depois de amanhã. Preciso dar uma olhada nos meus oficiais. Ver como eles são e escolher
os que vão me acompanhar. Não vou demorar, prometo. Enquanto isso, pode providenciar a refeição de Festus e Marcus e enchê-los de perguntas sobre os acontecimentos
de Roma desde que você foi embora de lá. Sei que isso foi apenas há alguns meses, mas foram meses bem tumultuados.
- Sim, vou perguntar. Mas me diga uma coisa, como está Lupus? Achei que você ia precisar do seu escriba ao seu lado.
Caesar contraiu os lábios.
- Marcus é meu escriba agora.
- Ah. E por que não Lupus? Achei que ele era bom no que fazia.
- Ele é... era. Nós perdemos Lupus no caminho para cá.
- Perderam?
- Caímos em uma emboscada feita por bandidos. Lupus foi assassinado. - Ele pôs a mão na bochecha dela. - Eles podem lhe contar a história. Tenho que ir.
Caesar beijou-a no topo da cabeça e se virou para sair da casa. O porteiro fechou a porta após ele passar, deixando Portia sozinha com os outros. Ela olhou para
os rostos dos dois.
- Coitado do Lupus... Vamos para o triclínio. Vou pedir que tragam comida e bebida para nós e vocês me contam o que aconteceu.
O triclínio da casa do vendedor de escravos ficava de frente para um jardim comprido com colunas que tinha um pequeno canal d'água correndo no meio, com duas pontes
de vime por cima dele. Tinha anoitecido em Rimini e o ar estava frio. Uma braseira foi acendida no meio dos três sofás sem encosto. Pequenas mesas tinham sido colocadas
na frente de cada um e uma escrava vestindo uma túnica marrom lisa trouxe pequenas travessas com salsicha fatiada, azeitonas, pão adocicado e panelas delicadas com
molho de peixe para colocar na comida, junto com cálices de vidro e uma jarra de vinho diluído.
Por um tempo, eles conversaram tranquilamente sobre os assuntos de Roma e o escândalo mais recente do mundo das corridas de biga - um dos donos do time azul tinha
sido acusado de subornar um menino que trabalhava no estábulo do time verde para ele envenenar a comida dos melhores cavalos. Por causa daquilo, as corridas tinham
sido canceladas por dois meses até que os patrocinadores dos times se acalmassem novamente.
- É um absurdo - murmurou Festus, fã fiel do time azul. - Que coisa típica dos verdes. Eles perdem várias corridas, mas, claro, a culpa é de outra pessoa. Não tem
nada a ver com o fato de que Barmoris não entende nada de guiar uma biga.
- Ah, puxa. - Portia assumiu uma expressão de empatia no rosto. - Você parece ter ficado chateado.
Festus encarou-a.
- Chateado? Isso não é um assunto qualquer, ama. Estamos falando de corrida de bigas.
- Claro, peço desculpas. - Portia pegou uma tigela com azeitonas recheadas e a estendeu como oferta de paz.
- Obrigado, mas já comi o suficiente. - Festus limpou a boca com as costas da mão. - Se não se incomodar, o dia foi longo. Estou cansado. Acho que preciso de uma
boa noite de sono.
Portia assentiu com a cabeça.
- Como desejar.
Após se levantar do sofá, Festus fez uma brusca reverência com a cabeça e foi embora a passos rápidos. Portia não pôde deixar de sorrir, e depois que ele estava
longe ela balançou a cabeça e murmurou:
- Não entendo essa relação dos homens com as corridas de bigas.
Marcus deu de ombros. Apesar de ter morado na capital no ano anterior, ele nunca compreendeu o entusiasmo sentido pelas pessoas ao ver os quatro times correndo ao
redor do Circus Maximus. Ele pegou mais um pedaço de pão, mergulhou-o no molho de peixe e começou a mastigar. Houve um breve silêncio enquanto Portia empurrava uma
fatia de salsicha pela travessa com a ponta da faca. Após um tempo, ela pigarreou e falou sem olhar para cima:
- E então, o que aconteceu com Lupus?
Marcus terminou de mastigar e engoliu.
- Como seu tio disse, ele morreu na emboscada.
- Eu sei o que ele disse - respondeu ela secamente. - Quero saber o que aconteceu.
Marcus fez uma pausa para se lembrar da emboscada antes de responder:
- Nós ficamos encurralados em uma passagem estreita e os inimigos eram bem mais numerosos. Caesar decidiu que nossa única esperança era abrir caminho entre os bandidos.
Então nós os atacamos e escapamos. Lupus estava no final do grupo quando a avalanche começou.
- Avalanche?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Parecia que metade da montanha estava despencando. Ela caiu em cima da passagem e a bloqueou, enterrando todos que estavam lá.
- Não tem nenhuma chance de Lupus ter escapado?
- Não. Eu vi com meus próprios olhos. Eu o vi sendo esmagado e enterrado pela neve.
Portia estremeceu ao imaginar a cena.
- Espero que tenha sido algo rápido e sem dor para ele.
Marcus contraiu os lábios. Ele não tinha como saber e não estava preparado para tentar pensar no lado positivo da tragédia.
- Recebi ordens para assumir o lugar dele. Espero que eu tenha metade da sua habilidade.
Portia olhou para ele e sorriu carinhosamente.
- Você vai se sair bem, Marcus. Sei que vai. Nada está além do seu alcance. Já vi o suficiente da sua coragem, força e determinação para saber disso. Mesmo se suas
habilidades com a escrita não forem iguais às de Lupus, em breve elas serão. Tenho certeza disso.
Marcus sentiu uma onda de orgulho ao escutar as palavras dela.
- Obrigado, ama. Vou fazer meu melhor para servir bem a Caesar.
Ela sorriu, pareceu ficar perdida em seus pensamentos por um instante e depois prosseguiu:
- Só espero que meu marido seja tão zeloso quanto você.
De novo, pensou Marcus. O tom de voz triste. Ele não sabia o que dizer. Os mundos dos dois eram tão diferentes e talvez Portia achasse inaceitável que ele perguntasse
sobre a vida de casada dela. No entanto, eles eram próximos o suficiente para que ele a considerasse uma amiga. Marcus importava-se com Portia e só queria que ela
fosse feliz. Mas tinha ficado claro que ela não estava.
- Ama...
- Quando não tiver mais ninguém presente, eu sou apenas Portia para você.
Marcus assentiu com a cabeça.
- Muito bem... Portia. Você não parece muito feliz.
- Por que eu estaria? Lupus morreu.
- Mas não é o que aconteceu com Lupus que a deixa chateada. É alguma outra coisa.
- Não, não é - protestou ela, fulminando Marcus com o olhar e desafiando-o a questioná-la. - Estou perfeitamente feliz. Perfeitamente.
Ele suspirou e fingiu prestar atenção no que havia sobrado em seu prato. Escolheu um pequeno folhado coberto com uma camada de sal.
- Se está dizendo.
Houve um silêncio e em seguida ele escutou o barulho de choro abafado. Ao olhar para cima, viu Portia com o rosto entre as mãos e os ombros balançando enquanto chorava.
Imediatamente, ele se levantou do sofá e se acomodou ao lado dela. Ele hesitou por um instante, estendeu a mão e fez um afago em seu ombro.
- Desculpe, Portia. Não queria chateá-la.
Ela soluçou mais uma vez e respirou para poder responder:
- Não foi sua culpa. É minha... é culpa minha.
- O que é culpa sua?
- Não sei. - Ela ergueu a cabeça ao endireitar a postura, e Marcus afastou a mão. Assim que Portia o olhou nos olhos, ele a sentiu segurar sua mão. As linhas finas
e escuras de kajal ao redor de seus olhos tinham se manchado e seu lábio inferior tremia. - Eu tento agradar Quintus. Tento ser a esposa que ele merece, mas ele
me ignora. Sou nova demais para ser esposa dele, e ele é novo demais para ser um marido. Eu mal falei com ele no último mês. Ele passa a maior parte do tempo fora
de casa, e às vezes nem vem dormir em casa. Ouvi falar que ele está perdendo toda a fortuna em jogos de dados. Quando o perguntei a respeito disso, ele ficou com
raiva e ameaçou bater em mim.
- Por que não disse nada para seu tio mais cedo?
- Como eu poderia fazer isso? Eu sei quanto esse casamento é importante para tio Gaius. Ele precisa de Pompeius como aliado. Além disso... talvez seja apenas tolice
minha. Talvez casamentos sejam assim. Se eu contasse para meu tio, ele ficaria com raiva de mim e diria para eu parar de reclamar, tenho certeza.
- Se Caesar dissesse isso, ele estaria errado - respondeu Marcus com firmeza. - Você não merece ser tratada assim.
- E como eu devia ser tratada? - respondeu Portia tristemente. - As garotas romanas da minha classe social são criadas para formar alianças entre os homens. Prometidas
entre os homens. No fim das contas, não estamos em uma situação melhor do que a dos escravos.
Marcus não pôde deixar de ficar surpreso. Ele tinha visto como os escravos viviam, como eram espancados, insultados e tratados como se fossem apenas objetos. As
condições de vida deles eram completamente diferentes das regalias das famílias mais ricas de Roma. No entanto, Portia tinha razão. Apesar do luxo ao seu redor,
ela não tinha como escolher sua vida, assim como os escravos que a serviam. Enquanto outras mulheres podiam escolher se casar com alguém que amavam, ela não podia
fazer isso.
De repente, ela colocou os braços ao redor dele e se aproximou de seu ombro, começando a chorar novamente. Ele ergueu a mão e acariciou seu cabelo.
- Vai ficar tudo bem, Portia - murmurou ele, sem saber o que dizer. Que palavras a consolariam? - Com o tempo isso vai melhorar. Você vai ver.
Ela soltou um gemido baixinho.
- Queria poder contar isso para o meu tio. Mas não posso. Tudo o que tenho é você.
Ela se afastou e fitou-o com seus olhos arregalados e vermelhos. Seus lábios tremiam e havia um risco preto em seu rosto por causa do kajal que escorrera. Ela se
inclinou para a frente e o beijou delicadamente nos lábios, fechando os olhos. Marcus quase recuou de susto, mas percebeu gostar da sensação. Uma onda quente de
afeição encheu seu coração e fez sua cabeça flutuar.
Então, tremendo de ansiedade, seus lábios congelaram. O que ele estava fazendo? Que imensa tolice era aquela? Se fossem vistos, ele estaria morto. Portia também
correria perigo. O marido bateria nela, como julgava ser direito dele. Marcus soltou-se e afastou-se apressadamente. Portia olhou para ele com uma expressão de surpresa
que logo se transformou em mágoa.
- Marcus, o que foi?
- Isso é errado, Portia! Errado e perigoso. Não devemos fazer isso.
- Mas tudo o que tenho é você. Você é tudo o que eu tenho de especial agora. A última ligação que tenho com minha vida de antigamente.
- Sei que é difícil. Mas não posso fazer nada a respeito disso. Nem você.
- Marcus.
Ele ergueu a mão.
- Por favor, não! É perigoso demais para nós dois. - Ele se levantou. - Tenho que ir.
- Fique. Por favor.
Marcus sabia que não podia fazer isso. Ele caminhou rapidamente até a porta e parou. Ao olhar para trás, ele viu a mágoa no rosto dela, e o coração dele implorou
para que ele voltasse, mas foi firme e disse:
- Temos que esquecer que isso aconteceu. Pelo bem de nós dois. Até nossa amizade já é algo arriscado. Isso... - Ele balançou a cabeça. - Isso não passa de suicídio,
Portia. Nunca mais pode acontecer.
Marcus virou-se e foi embora, passando pelas colunas que cercavam o jardim para chegar à área dos escravos. Ele cerrou o maxilar, sem querer arriscar olhar para
trás.
10
Enquanto os oficiais sujos de lama começavam a chegar para a reunião da noite, Marcus organizava as tábulas e o estilo de marfim em cima da mesinha que ficava na
lateral da tenda. Uma garoa atingia a pele de bode da tenda, e a distância alguns trovões soavam ocasionalmente. Caesar convocara todos os tribunos e centuriões
que tinha escolhido para a campanha. Os tribunos eram todos jovens com túnicas e mantos bem tecidos, já os centuriões variavam bem mais de idade. Os mais novos estavam
perto dos 30 anos, e os mais velhos tinham rostos enrugados, alguns com cicatrizes dos muitos anos de campanhas pelo Império. Eram a espinha dorsal das legiões,
soldados durões que lideravam os ataques e eram os últimos a bater em retirada.
Homens como Titus, pensou Marcus carinhosamente.
- Eu o conheço, não?
Marcus olhou para trás e viu um jovem musculoso no fim da adolescência o encarando. Ele tinha cabelo claro e curto que já estava ficando mais ralo nas têmporas.
Sua beleza rústica logo seria afetada por sua calvície prematura. Marcus o reconheceu imediatamente, apesar de terem se encontrado apenas uma única vez, meses antes.
Era Quintus Pompeius, marido de Portia. Marcus não fora com a cara dele quando o conheceu, e a sensação ruim a respeito do rapaz se intensificou depois que soube
da infelicidade de Portia.
- É possível. Trabalho na casa de Caesar. Agora estou servindo como o escriba dele.
- Ah, deve ser isso. - O jovem assentiu com a cabeça duvidosamente. - Mas acho que tem alguma outra coisa também, não estou lembrando o que é. A propósito, refira-se
a mim como 'amo' quando falar comigo, escravo.
- Não sou escravo - respondeu Marcus friamente, contendo sua raiva. - Fui libertado por Caesar.
- Foi? - Quintus pareceu desapontado. - Bem, não se engane a respeito da sua posição. Sou um tribuno. Você tem que se referir a mim como 'senhor'. Entendeu, escriba?
- Sim... senhor - respondeu Marcus com a mais sutil reverência de cabeça.
- Aconselho-o a me respeitar daqui para a frente. - Quintus pôs os dedões dentro do cinto e afastou os cotovelos do corpo. - Sabe quem sou?
- Por quê? Você esqueceu? - perguntou Marcus inocentemente.
Quintus franziu a testa, e seus olhos se arregalaram ao perceber a zombaria de Marcus. Ele endireitou a postura, ficando mais alto do que o garoto.
- Sou Quintus Pompeius. Esse nome devia significar algo até para um plebeu tolo como você, escriba. E também sou parente de Caesar por casamento, então eu tomaria
cuidado se fosse você.
Ele fulminou Marcus com o olhar por um breve instante e se afastou para se juntar aos tribunos sentados na fileira da frente dos bancos reservados aos oficiais.
Eles estavam conversando e rindo, ignorando as expressões de reprovação nos rostos dos centuriões e de alguns dos tribunos mais velhos. Marcus tinha certeza de que
Titus também não ficaria muito impressionado com os jovens.
Houve um pequeno atraso depois que o último oficial se sentou, e então um sujeito robusto de cabelo grisalho e encaracolado entrou na tenda e exclamou com sua voz
profunda e alta:
- Oficial comandante presente!
Imediatamente, toda a conversa cessou e todos na tenda levantaram-se com rapidez enquanto Caesar entrava e se aproximava de um mapa em pergaminho pendurado em um
suporte de madeira. Ele parou ao lado e acenou com a cabeça para o veterano que havia anunciado sua chegada.
- Obrigado, chefe do acampamento.
O homem mais velho continuou em pé na entrada da tenda, e Caesar virou-se para analisar seus oficiais e abriu um breve sorriso ao olhar para Marcus.
- Por favor, sentem-se, cavalheiros.
Os bancos rangeram e por um breve instante houve um barulho de movimento enquanto os oficiais se acomodavam. Marcus sentou-se à sua mesa e pegou o estilo, preparando-se
para fazer as anotações. Caesar ficou pensando por um rápido momento antes de respirar fundo e começar a falar com uma voz nítida que chegava até o fundo da tenda,
sobrepondo-se ao barulho da chuva que retumbava no teto.
- Amanhã, ao amanhecer, nós partiremos do acampamento para marchar na direção dos Apeninos. Lá nós caçaremos os escravos rebeldes e destruiremos o exército deles
e mataremos o líder, Brixus. Vocês aqui foram escolhidos a dedo para essa missão. Alguns eu já conheço e lutei ao lado deles no passado, como o centurião Corvus
ali. - Ele apontou para um oficial forte na fileira do meio e eles trocaram um sorriso e um aceno de cabeça antes que Caesar prosseguisse.
Marcus, que já estava tendo dificuldades para acompanhar, sabia da necessidade de ser conciso em suas anotações, registrando apenas os assuntos mais importantes.
- O restante de vocês foi recomendado por Labienus, e espero que mostrem por que ele os escolheu. Qualquer homem que não me servir bem será dispensado do exército
e enviado para casa. Não vou tolerar covardes, tolos nem preguiçosos. Pensem nisso como uma oportunidade para testarem vocês mesmos e os homens que comandam. Não
há preparação melhor para quando eu liderar o exército conjunto contra os gauleses. Sei que alguns acham os rebeldes e bandidos das montanhas apenas um pequeno incômodo.
Pensam neles como reles miseráveis famintos, mal treinados e com armas ruins, e os menos experientes entre vocês pensam que tudo isso vai acabar bem rápido.
Ele fez uma pausa e Marcus o alcançou com rapidez e ficou a postos, com o estilo em cima da superfície encerada de mais uma tábula.
- A verdade é que a luta será árdua. Meus guarda-costas e eu nos deparamos com alguns rebeldes no caminho de Roma para cá, alguns dias atrás. Eles eram espertos
e nos encurralaram antes de nós percebermos. Esperteza não é a única vantagem que eles têm: eles conhecem as montanhas. Conhecem todos os caminhos e vão utilizá-los
para fazer manobras melhores que as nossas. Então o meu plano é simples: precisamos enviar duas tropas. Uma marchará para Corfinio, ao sul... - Ele se virou e apontou
para uma cidade no mapa. - Essa tropa será comandada pelo Legado Balbus, e a maior parte da nona legião irá com ele. Enquanto Balbus vai para o sul, eu vou acompanhar
a força principal para Módena, aqui ao norte. - Ele apontou para a cidade no mapa e virou-se para a os homens, estendendo as mãos para os lados e depois as aproximando
uma da outra. - Das duas extremidades, nós vamos começar a empurrar os rebeldes até chegar a vez deles de ficarem encurralados.
Ele parou para que suas próximas palavras tivessem impacto total.
- Haverá uma batalha final e dessa vez nós precisamos garantir que nenhum deles escape e mantenha a lenda de Spartacus viva. Agora, nós vamos destruir a determinação
de todos os escravos que tiverem pensado alguma vez na vida em se rebelar contra seus senhores. Mas quero deixar claro que a batalha vai ser dura. Os rebeldes vão
lutar por mais do que a própria vida. Eles vão lutar pela única coisa pela qual vale a pena lutar: a liberdade. Apesar de nossos inimigos serem escravos, vocês precisam
tratá-los com respeito. Vocês nunca viram e nunca mais verão pessoas lutando como eles. Os homens nesta tenda que lutaram contra a última revolta de escravos sabem
do que estou falando.
Marcus viu alguns dos centuriões mais antigos concordarem com a cabeça, uma expressão sombria no rosto deles. Apressadamente, ele fez anotações na tábula para alcançar
Caesar. As palavras do procônsul tinham congelado o garoto até os ossos. Seria um extermínio. Matar Brixus e seus aliados não seria suficiente. Caesar queria destruir
justamente o sonho que mantinha viva a esperança de milhares de escravos sofrendo por todo o Império. Pela primeira vez, Marcus entendeu de verdade a razão pela
qual seu pai tinha dado a vida. Ele compreendeu a causa e por que valia a pena pagar o preço que os seguidores de Spartacus tinham quitado com o próprio sangue.
O fato de que Marcus marcharia ao lado do homem determinado a obliterar até a lembrança de seu pai fez o garoto sentir uma náusea repentina, tendo que conter a bile
subindo por sua garganta.
- Cada um de vocês e dos homens de seus comandos terão que marchar e lutar como nunca antes - prosseguiu Caesar. - Quero essa campanha terminada antes da primavera,
cavalheiros. Não vou tolerar que vocês não se esforcem ao máximo. Quem não der seu máximo será dispensado do exército que comandarei para a Gália. - Com calma, ele
passou os olhos por toda a tenda, e a intensidade em seu rosto diminuiu. - Alguma pergunta?
Quintus ergueu a mão e Caesar fixou os olhos escuros no jovem.
- Sim, Quintus?
- O senhor está planejando levar metade do exército para lidar com esses foragidos. Com certeza é possível fazer isso com menos homens, não?
- E menos oficiais também, imagino? - Caesar sorriu fracamente, mas seu olhar continuou tão frio quanto antes. - Prefiro levar homens demais e não precisar deles
do que precisar deles e não tê-los ao meu lado. Além disso, você está se esquecendo de uma coisa. Esses rebeldes são comandados por Brixus, um antigo gladiador.
Haverá outros gladiadores com ele e são esses homens que treinarão os seguidores. Se eles tiverem feito um trabalho decente, nós enfrentaremos alguns dos lutadores
mais valentes do mundo.
- Gladiadores... - murmurou Quintus. - Eles não passam de brutos irracionais, senhor. Só músculos, sem cérebro. Não são páreo para um soldado de verdade.
- Acha mesmo? - Caesar virou-se para Marcus. - Garoto, solte o estilo e venha aqui.
Marcus obedeceu e parou no lugar indicado por Caesar, bem na frente dos tribunos mais novos. Caesar apontou para ele enquanto falava com os oficiais:
- Esse garoto estava treinando para ser gladiador até recentemente. Alguns meses atrás, ele venceu uma luta na frente do Senado. Tenho certeza de que alguns de vocês
estavam presentes.
Houve murmúrios de surpresa - eram homens que presenciaram a luta, mas que não tinham prestado atenção no escriba no canto da tenda, o qual agora reconheciam.
- Esse garoto é o meu conselheiro em relação a gladiadores. Até mais do que isso. Eu confiei a minha vida a ele no passado e faria isso novamente se fosse necessário.
- Ele? - Quintus riu. - Por quê? Ele não passa de um tampinha.
- Acha mesmo? Em uma luta entre vocês dois eu apostaria nele sem nem pensar duas vezes.
Marcus viu o sangue desaparecer do rosto do tribuno ao fulminar seu comandante raivosamente com o olhar.
- Eu acabaria com esse garoto em uma luta, senhor.
- Então testemos. - Caesar sacou a espada e a entregou para Marcus. - Saque sua espada, Quintus. Vamos ver se você é tão bom com ela quanto acha que é. Um pouco
de esgrima. O primeiro a sangrar perde.
Quintus parecia aturdido. Seus camaradas murmuraram palavras de incentivo, e, assentindo com a cabeça, ele se levantou e sacou a espada. Quintus assumiu sua posição
a três metros de Marcus e se virou para ele com um sorriso desdenhoso.
- Como disse, ele não tem cérebro e, pelo jeito, também não tem músculo.
Marcus não disse nada, ficou apenas testando o peso e o equilíbrio da espada de Caesar. O procônsul aproximou-se dele e murmurou baixinho:
- Só quero que ele sirva de exemplo. Vá com calma. Não quero ficar com um tribuno a menos nem enviuvar minha sobrinha. Entendeu?
- Sim, senhor.
- Ótimo. - Caesar afastou-se do espaço que havia entre Quintus e Marcus. - Comecem!
O tribuno olhou para Marcus e estufou as bochechas.
- Tem certeza disso, senhor? Eu odiaria ferir um dos seus servos.
Caesar sorriu.
- Por que não tenta primeiro?
Quintus ergueu a espada e deu um rápido passo para a frente, soltando um berro:
- Rá!
Marcus mal se mexeu e ficou firme, olhando atentamente enquanto passava o peso para o peito do pé, observando o tribuno. O jovem era forte e se movia com velocidade,
mas não se equilibrava muito bem, na verdade era até desajeitado.
Após tentar assustar Marcus e não conseguir, Quintus olhou para os amigos e deu uma risadinha.
- Estão vendo? Burro demais para reagir.
No instante em que os olhos dele se viraram para o lado, Marcus atacou. Lançou-se para a frente, com o braço e a espada estendidos. Seu oponente percebeu o movimento
e brandiu a espada para cima, querendo se defender do golpe. Marcus virou o pulso, deixando o peso da espada diminuir debaixo da espada do tribuno. Enquanto continuava
avançando, Marcus se abaixou e atingiu o pulso do jovem com a parte achatada da lâmina. Quintus soltou um grito abafado, e o choque do impacto o fez perder a empunhadura,
e a espada caiu de seus dedos. Marcus deu sequência com o cabo de bronze da espada, acertando-o na barriga do tribuno com toda a força. Quintus soltou uma arfada
explosiva e cambaleou para trás, ofegante. Marcus deu um passo para a frente calmamente e, erguendo a ponta da espada, fez um pequeno corte na bochecha do oponente.
- Primeiro a sangrar. - Ele abriu um pequeno sorriso e virou-se para devolver a espada a Caesar.
O procônsul riu enquanto guardava a espada e gesticulava para os tribunos surpresos.
- Ajudem Quintus a voltar para o banco.
Depois que o jovem ofegante se sentou, Caesar falou com seus oficiais mais uma vez:
- Se um garoto gladiador consegue fazer isso, então imaginem do que é capaz um homem mais experiente. Acho que todos nós aprendemos a lição. Nunca, nunca subestimem
o oponente. A reunião está encerrada. Preparem seus homens para marcharmos assim que amanhecer.
Ele acenou com a cabeça para o chefe do acampamento, que bateu os pés no chão e gritou:
- Alerta!
Todos os oficiais se levantaram e ficaram com a postura ereta, exceto Quintus, que precisou se curvar para a frente, ainda sem conseguir respirar direito.
- Dispensados!
Os oficiais começaram a sair da tenda, e Quintus afastou furiosamente as mãos de um amigo que tentava ajudá-lo. Ele fulminou Marcus com o olhar enquanto tocava o
sangue do pequeno corte em sua bochecha.
- Cuidado, garoto - grunhiu ele. - Não vou esquecer nem perdoar isso.
Marcus não reagiu, mas sentiu uma sensação calorosa de satisfação enquanto Quintus mancava para fora da tenda. Caesar esperou o último centurião ir embora antes
de dar um tapinha no ombro de Marcus.
- Belo trabalho. Aquele ali estava precisando de uma lição. Mais de uma, talvez - acrescentou ele amargamente. - Ele não dá valor ao que tem. Acho que essa campanha
é exatamente o que ele precisa para amadurecer um pouco e merecer o nome que tem, especialmente agora que ele também representa o meu nome.
Os dois escutaram murmúrios e, ao se virarem, avistaram o chefe do acampamento segurando a aba da tenda.
- Perdão, senhor, mas um homem acabou de chegar. Ele diz que foi enviado por Marcus Licinius Crassus.
- Crassus? - Caesar ergueu a sobrancelha. - Ele disse o que queria?
- Só disse que queria falar com o senhor imediatamente.
Caesar deu de ombros.
- Tudo bem, mande-o entrar. Vou falar com ele rapidamente. Marcus, pegue suas tábulas e volte para Rimini. Peça que o cozinheiro de Portia o alimente bem. Depois
arrume suas coisas e esteja pronto para sair de casa antes do amanhecer.
- Sim, senhor. - Marcus guardou as tábulas na bolsa de ombro e protegeu a cabeça da chuva com o capuz do manto.
Durante essa troca de palavras, o chefe do acampamento colocara a cabeça para fora da tenda e acenara para o homem esperando lá fora. Um instante depois, um homem
alto e magro apareceu. Seu manto estava salpicado de lama e de gotas de chuva, e o que tinha sobrado de seu cabelo estava grudado na cabeça. No entanto, ao vê-lo,
o coração de Marcus bateu mais forte, e o garoto sentiu uma fúria intensa se espalhar pelos braços e pelas pernas. Ele o reconheceu imediatamente. Não tinha como
confundir. Decimus. O homem que havia tentado matar Caesar no ano anterior e o agiota cujos capangas tinham assassinado Titus e levado Marcus e sua mãe para a escravidão.
11
Decimus deu uma olhada na tenda, mal percebendo a presença de Marcus antes de voltar a atenção para Caesar. Ele baixou a cabeça e estendeu um pequeno pergaminho
atado com um selo.
- Uma carta de introdução de Crassus, senhor.
Caesar pegou-a, rasgou o selo e desenrolou a mensagem antes de ver o que ela dizia.
- Publius Decimus?
Marcus observava-o atentamente para ver se Caesar reconhecia o nome, mas a expressão do procônsul não mudou nem por um instante.
- Sim, senhor. - Decimus sorriu. - A seu serviço.
- Aparentemente não. Você está aqui para agir em nome de Crassus.
- Sim, é verdade.
- A carta pede minha permissão para que você acompanhe minhas forças na luta contra os rebeldes. Por diversos motivos comerciais... Isso é um tanto vago. - Caesar
franziu a testa. - Pode explicar?
- Seria um prazer, senhor. Estou aqui para agir em nome de Crassus na compra de quaisquer prisioneiros que seus soldados façam. Estou autorizado a pagar seus homens
diretamente, e, claro, o senhor receberá uma quinta comissão do valor de cada compra. Uma percentagem mais que generosa, apropriada para um grande aliado do meu
patrono.
- Entendi. - Caesar rolou a carta para cima e tamborilou o queixo ao encarar Decimus. No canto da tenda, Marcus continha com dificuldade o ímpeto de se lançar para
cima do causador de todo o seu sofrimento. Ele precisou de todo o autocontrole para ficar parado e decidiu lembrar Caesar de quem era aquele homem.
O procônsul devolveu a carta a Decimus.
- As condições do seu patrono são bem generosas. Eu aceito. Vou providenciar para que você marche com o comboio de bagagem. Presumo que você trouxe uma equipe para
ajudá-lo com os prisioneiros e escoltá-los até um entreposto provisório, sim?
- Sim, senhor. Meus homens estão com as carroças lá fora.
- Então pode se juntar a eles novamente. Peça que um dos meus funcionários o acompanhe até o comboio de bagagens e aguarde suas instruções lá, Decimus. Queria ter
tempo para oferecer mais hospitalidade, mas há muito o que preciso organizar antes da nossa partida do acampamento amanhã.
- Claro, senhor. Eu compreendo. - Decimus curvou a cabeça novamente e se virou para sair da tenda. Quando pareceu a Marcus que ele estava longe demais para escutar
a conversa, o garoto pôs o capuz do manto para trás e correu até Caesar.
- Senhor! Eu conheço aquele homem. Ele...
- Sei exatamente quem ele é - interrompeu Caesar, franzindo a testa. - Eu me lembrei do nome dele imediatamente. A pergunta é: que diabos Crassus está aprontando
dessa vez? Consigo aceitar o fato de que ele enviaria um homem para comprar prisioneiros. O lucro pode ser bem grande quando eles são vendidos no mercado de escravos
de Roma. Crassus acharia isso interessante. Mas por que enviar Decimus? Crassus sabe da minha suspeita de que Decimus está por trás do atentado à minha vida no ano
passado.
- Isso importa, senhor? - perguntou Marcus entusiasmadamente. - Agora ele está nas suas mãos. Prenda-o. Interrogue-o. Você também pode descobrir o que ele sabe sobre
aquela conspiração contra o senhor. - Ele fez uma pausa. - E descobrir onde ele escondeu minha mãe... antes de ele morrer.
- Antes de ele morrer? - Caesar inclinou a cabeça um pouco para o lado. - Não vou matá-lo, Marcus. Primeiramente preciso descobrir por que ele está aqui. Não é só
para comprar escravos.
- E se ele tentar matar o senhor novamente?
Caesar contraiu os lábios.
- É uma possibilidade. No entanto, talvez Crassus esteja apenas querendo transmitir uma mensagem sutil. Que ele ainda tem certo controle sobre mim. Preciso garantir
que Decimus seja bem vigiado.
- Eu faço isso.
- Não. Ele o reconheceria imediatamente. Vou pedir para Festus fazer isso. Fique longe dele por enquanto, entendeu?
- Por quê? - grunhiu Marcus. - Aquele homem arruinou minha vida. Agora ele está nas nossas mãos. O senhor me deu sua palavra de que o perseguiria e de que o obrigaria
a revelar para onde minha mãe foi levada.
- Eu sei. E eu honro minhas promessas, Marcus. Mas não se esqueça da sua posição. - Caesar endireitou a postura e dirigiu o olhar para baixo com uma expressão imperiosa.
- Sou o procônsul de Roma, e você é meu servo. Não vou permitir que fale assim comigo de novo. Não se quiser minha ajuda. Está claro?
Por um instante, Marcus quis desobedecer e gritar com Caesar. Dizer que não se importava com quem Caesar era. Tudo o que importava era salvar sua mãe. Em seguida
controlou os próprios pensamentos, com raiva por ter sido tão tolo. Sua exaustão não era desculpa. Precisava ser forte e dominar seus sentimentos. Caesar tinha o
poder de determinar sua morte e decidir se sua mãe seria encontrada e libertada ou se ficaria acorrentada com os outros escravos até a morte. Marcus não seria capaz
de salvar a mãe sem a ajuda de Caesar. Ele respirou fundo e respondeu amargamente:
- Sim.
- Sim?
- Sim, senhor.
Caesar continuou encarando-o por um instante antes de concordar com a cabeça.
- Agora sim. Você precisa se lembrar do seu lugar neste mundo, Marcus. Sempre vou dever a você pelos serviços que me prestou, mas a minha tolerância com você tem
um limite. Se ultrapassar esse limite novamente, teremos consequências. Entendeu?
- Entendi, senhor... peço desculpas.
- E eu aceito. - Caesar sorriu e deu um tapinha em seu ombro, como se a conversa tensa tivesse sido esquecida imediatamente. - Não se preocupe com Decimus. Quando
chegar a hora, ele vai ser convocado a justificar os crimes que afetaram você e sua família. Enquanto isso, devemos nos considerar homens de sorte por ele ter sido
colocado nas minhas mãos. Queria saber o que exatamente Crassus está aprontando. É possível que ele queira simplesmente colocar mais um espião no meu acampamento.
- Mais um espião? - Marcus ergueu as sobrancelhas. - Quer dizer que existem outros?
- Claro que tem. Sei os nomes da maioria dos homens que trabalham para meus rivais políticos. Faço questão de passar informação suficiente para eles, para que seus
chefes fiquem satisfeitos, mas sem revelar meus verdadeiros planos. Assim como eles descobriram alguns dos meus espiões e tomam cuidado para não revelar muito para
eles. - Caesar fez uma pausa enquanto observava o quanto Marcus estava chocado. Ele riu cordialmente. - Ficou mesmo tão surpreso assim, meu garoto? Mesmo depois
de tantas tramas e conspirações que presenciou em Roma no ano passado?
Marcus corou. Não queria parecer tolo aos olhos daquele homem. Tinha passado a admirar Caesar, apesar da ambição implacável que o suportava como um pilar de mármore.
Ele balançou a cabeça e disse:
- Não estou surpreso, senhor. Só não tinha percebido a gravidade da situação.
Caesar deu de ombros.
- Política é assim. É o maior jogo que existe. E os riscos são os mais altos possíveis. Por enquanto, Pompeius e Crassus estão dispostos a dividir o poder comigo,
mas isso não deve durar para sempre. Vai chegar o momento em que nós três vamos nos tornar dois, e depois um. Esse será o melhor resultado para Roma. Uma cura para
todos os conflitos mesquinhos impedindo a cidade de conquistar mais glória do que já tem. O mais importante é que eu seja o homem que aguentará até o fim. E, quando
esse dia chegar, vou fazer questão de recompensar todos aqueles que me ajudaram a ficar mais poderoso. E você fez muito para merecer minha gratidão, bem mais do
que a maioria das pessoas, Marcus.
- Quantos anos isso vai demorar? - perguntou Marcus ansiosamente. - Minha mãe não vai sobreviver por tanto tempo, senhor. Ela precisa ser resgatada antes disso.
- E será. Assim que eu tiver a oportunidade de fazer isso. Mas tenho uma recompensa maior em mente para você, Marcus. O que todos os homens desejam, independentemente
da idade? Fama e poder. Para mim, essas coisas são conquistadas quando a pessoa reivindica o imperium para si: a autoridade e respeito que os maiores heróis de Roma
recebem. Para você, o caminho até a glória é diferente. Você tem potencial para ser um grande gladiador, talvez um dos maiores de todos os tempos. Enquanto os homens
lutarem na arena, o nome Marcus Cornelius será reverenciado. Não pode me dizer que essa ideia não mexe com seu coração - concluiu Caesar, sorrindo.
Marcus ficou tentado com aquela possibilidade. Sabia que lutava bem e ficava contente com sua habilidade e com o fato de que Titus teria orgulho dele. Perguntou-se
o que Spartacus sentiria. Orgulho, sim, mas também vergonha da possibilidade de Marcus lutar e matar para satisfazer a sede de sangue da multidão romana. Spartacus
e milhares de seus seguidores tinham morrido para acabar com a escravidão, com as lutas de gladiadores e com o risco de que Roma pudesse continuar espalhando seu
poder brutal pelo resto do mundo conhecido. Eles sacrificaram tudo para impedir uma pessoa como Caesar de conquistar seu imperium, um prêmio comprado às custas de
incontáveis outros homens enterrados nos alicerces daquela fama. Marcus percebeu: o mesmo destino o aguardava. Se o garoto realmente chegasse a se tornar um herói
da arena, a popularidade de seu patrono, Caesar, só aumentaria. Sentindo uma certeza arrepiante, ele compreendeu que era apenas com aquilo que o procônsul se importava.
As pessoas eram apenas uma maneira de ele alcançar seu objetivo.
Marcus engoliu em seco e se obrigou a fazer sim com a cabeça.
- Não consigo imaginar uma honra maior, senhor.
- Esse é o espírito! - Uma expressão discreta de alívio surgiu no rosto de Caesar. - Agora vá se preparar. A campanha será difícil, mesmo se acabar rapidamente.
Pode usar minha autoridade para pegar o que precisar nos depósitos do exército. Assegure-se de levar um suprimento suficiente de materiais de escrita. Tenho a impressão
de que algumas coisas interessantes de anotar acontecerão nos próximos dias. É uma pena Lupus não estar aqui para compartilhá-las conosco, mas tenho certeza de que
você vai cumprir bem o dever dele.
- Vou fazer o meu melhor, senhor.
- Claro que vai. Está dispensado, Marcus.
Ele curvou a cabeça e colocou a alça da bolsa por cima dela ao sair da tenda do quartel-general. Havia anoitecido e o acampamento estava sendo iluminado pelas fogueiras
e tochas que continuavam acesas com dificuldade devido à garoa constante. Uma brisa fria soprava do oeste na direção dos Apeninos, e Marcus estremeceu, puxando o
manto para cima do corpo com mais firmeza. Enquanto ia para a tenda do quartel-mestre, Marcus listou mentalmente tudo de que precisaria. Não muito para não sobrecarregar
o cavalo, mas necessitava se manter o mais seco e aquecido possível. Um manto extra com uma camada de gordura e uma boa túnica já seriam o suficiente. Também uma
proteção de couro para suas armas e seus instrumentos de escrita.
Mais uma vez, sua mente voltou a Decimus. Foi um golpe de sorte Crassus ter enviado aquele homem para se juntar ao exército de Caesar. Agora, como não precisavam
mais encontrá-lo, Marcus perguntou-se se haveria alguma maneira de forçar o cruel agiota a revelar a localização de sua mãe. Apesar das palavras de Caesar, Marcus
planejava ficar de olho em Decimus, e, se a oportunidade se apresentasse, ele o confrontaria. Depois, quando obtivesse a informação de que precisava, Marcus se vingaria.
* * *
A chuva parou de repente logo antes do amanhecer, mas o céu manteve-se coberto por uma camada sem fim de nuvens acinzentadas e opacas que faziam sombra sobre a paisagem
plana ao redor de Rimini. Os homens escolhidos por Caesar para sua campanha tinham guardado as tendas nas carroças. O equipamento reserva e o escudo de cada um ficavam
presos às pesadas cangas. Quando se gritava a ordem de entrar em formação no meio das fileiras, os legionários erguiam as cangas e as apoiavam em seus ombros direitos
antes de assumirem seus lugares na tropa. Marcus lançou suas duas bolsas nos chifres de sua sela. Uma delas continha suas roupas e provisões, e a outra, seus instrumentos
de escrita. Sua espada estava ao lado do corpo; a adaga e as facas de arremessar, nas bainhas presas a seu largo cinto de couro. Após subir na sela, Marcus guiou
o cavalo na direção do pequeno grupo de oficiais do quartel-general que acompanharia Caesar.
Quando tudo estava pronto, Caesar deu a ordem para o grupo avançar, e a longa tropa arrastou-se para a frente em duas seções. A primeira era comandada por Caesar,
e a segunda, pelo Legado Balbus. A cavalaria ia na frente das duas forças, seguida pelo comandante e sua equipe, depois a infantaria, e o comboio de bagagens e sua
escolta eram os últimos. Marcus virou-se na sela na esperança de avistar Decimus, mas era impossível distinguir os detalhes no meio das carroças que se aglomeravam
atrás dos legionários.
Uma pequena multidão havia surgido de Rimini ladeando a estrada pela qual o exército passava. Esposas, noivas, crianças entusiasmadas e curiosos ficavam parados,
observando os soldados avançarem pela rota enlameada que ia do acampamento até a estrada que seguia de norte e a sul. Em um dia mais quente, os espectadores estariam
aclamando os soldados, mas naquela manhã fria e triste eles se mantiveram em seus lugares, somente observando, deixando para dar seus gritos de despedida apenas
ao verem um amigo ou um ente querido. Havia uma pequena aglomeração de espectadores mais ricos perto da junção onde a rota se unia à estrada, e Marcus avistou Portia,
sem nada que lhe cobrisse a cabeça, observando a cavalaria passar. Seu rosto alegrou-se ao ver o tio e acenar para ele. Marcus viu Caesar acenar com a cabeça demonstrando
ter percebido a presença dela. Quintus estava ocupado demais brincando com seus amigos para ver sua jovem esposa, e ela ficou olhando tristemente enquanto ele passava.
O sorriso dela só reapareceu quando a garota viu Marcus e se aproximou da lateral do percurso.
- Cuide-se, Marcus.
Ele guiou o cavalo para a lateral do percurso, puxando as rédeas para olhar para ela.
- Vou sim.
- Cuide do meu tio.
- Dele? - Marcus sorriu. - Caesar sabe cuidar de si mesmo, ama. Confie em mim.
Ela riu rapidamente e depois voltou a falar com tom de voz baixo:
- E cuide de Quintus se puder...
Ela se virou e voltou para onde estava, no meio das famílias de outros oficiais. Marcus estalou a língua e balançou as rédeas, guiando seu cavalo para se juntar
rapidamente ao restante da equipe do quartel-general. Mais à frente, a cavalaria da força de Caesar, composta por cerca de quinhentos homens a cavalo, virara para
o norte. O restante da força seguiu-a, acelerando agora que podiam marchar em uma superfície pavimentada. Depois que a última carroça da tropa de Caesar retumbou
atrás deles, Balbus e seus homens viraram para o sul.
Marcus olhou para trás, momentaneamente impressionado com o espetáculo formado pelas duas tropas organizadas marchando para a guerra. O ar enchia-se com o ruído
dos cascos dos cavalos, o barulho de botas ferradas e o troar das pesadas carroças na estrada. Em seguida, ele se lembrou do propósito de tudo aquilo - o plano de
Caesar de destruir os rebeldes e o sonho de Spartacus de uma vez por todas. Marcus ficou encarando as costas do procônsul sentado empertigado em sua sela. Ele olhava
para a frente, certamente pensando em seu objetivo de conquistar mais fama e glória a qualquer preço.
12
Lupus estava quase exausto. Eles tinham marchado por três dias para chegar ao acampamento principal dos rebeldes. Três dias subindo por caminhos íngremes nas montanhas,
perdendo-se frequentemente entre as nuvens baixas que cercavam os picos dos Apeninos. Lupus não tinha mais esperanças de recordar a rota que fizeram. No início até
tentara, caso tivesse a oportunidade de fugir e voltar à estrada para se juntar a Marcus e aos outros com seu senhor. Apesar das nuvens e nevascas ocasionais encobrindo
os caminhos, Mandracus e seus homens nunca pisavam em falso e sempre iam na direção do destino sem hesitar. As passagens eram difíceis demais para seus cavaleiros,
então eles receberam ordens de continuarem a patrulha, saqueando vilas e propriedades para libertar mais escravos e roubar mais comida para alimentar os rebeldes.
Lupus viu poucas pessoas ao longo da rota. Apenas poucos pastores, alguns dos quais aclamavam Mandracus e seu bando e ofereciam comida e abrigo caso precisassem.
Outros simplesmente se viravam e fugiam.
Passaram por uma pequena vila que ficava acima de um riacho. Era pobre demais para que alguém de lá tivesse escravos, e as pessoas ficaram observando cautelosamente
os rebeldes passarem. Não houve tentativa de impedir o progresso do grupo nem de fechar o pequeno portão do muro baixo e rachado que protegia a vila antigamente.
Ao olhar para os lados, Lupus percebeu que as pessoas eram pobres e esfomeadas e que provavelmente tinham uma vida tão dura quanto os escravos que passavam. Ficou
claro que a guerra dos rebeldes era contra os ricos e poderosos. Apesar de os aldeões serem romanos livres, eles tinham mais em comum com os rebeldes do que com
seus governadores.
Finalmente, famintos e exaustos, com os pés doloridos, a pequena tropa de rebeldes chegou às proximidades do acampamento principal. Enquanto as primeiras sombras
do anoitecer cobriam as montanhas, Mandracus parou seus homens e chamou Lupus para que se aproximasse. O garoto parou nervosamente na frente dele, e Mandracus sorriu
ferozmente.
- Agora você vai ver por que os romanos nunca vão nos derrotar. - Ele acenou o braço musculoso para o cenário ao redor. Eles estavam em um vale plano que ficava
logo acima do limite da linha de neve. Declives cobertos de árvores encurvavam-se nas laterais e no fim do vale, onde os lados se encontravam. Não havia sinal de
assentamentos ou de qualquer ser vivo, somente um riacho que aparecia na base de alguns rochedos à esquerda. A água corria por cima das rochas enquanto descia para
o chão do vale. Em certos locais a água estava congelada, deixando formações reluzentes de gelo acima das quais a água escorria, aumentando mais ainda o gelo. O
lugar parecia desolado, e Lupus estremeceu.
No início, ele sentiu saudades dos confortos da casa de Caesar lá em Roma e amaldiçoou o dia em que seu senhor o convocou para escoltá-lo até Rimini. No entanto,
Lupus percebeu que seus captores eram diferentes de como ele havia imaginado. Inicialmente, eles deixaram o garoto apavorado, temendo pela própria vida. Demorou
um tempo para realmente acreditar que os homens não tinham intenção de lhe fazer mal. Todas as noites, Mandracus e seus companheiros sentavam-se ao redor da fogueira
para comer quaisquer provisões que tivessem encontrado recentemente e conversar com tranquilidade antes de se acomodar para dormir. Eles dividiam a comida com Lupus
e o tratavam com uma ternura bruta que o surpreendera.
- Agora você está livre, camarada! - Mandracus sorriu enquanto eles acampavam pela primeira noite. - Não tem mais nenhum senhor para lhe dar ordens. Aqui somos apenas
companheiros. Nada de senhores e escravos. Vivemos do que a terra dá e do que conseguimos pegando daqueles que usam escravos para enriquecer. Em breve você se acostuma.
Imagino que deva estar um pouco nervoso, não é?
Lupus assentiu.
- Bem, não precisa ficar. Ninguém vai devorá-lo. Por falar nisso... - O líder dos rebeldes mexeu em sua sacola e tirou uma pequena fatia de pão e um pedaço de queijo.
- Tome. Coma isso aqui. Você precisa continuar forte.
- Obrigado. - Lupus aproximou-se da fogueira e deixou o calor das chamas penetrar em seus músculos cansados. Ele engoliu um pouco da comida e virou-se para Mandracus.
- Qual vai ser meu destino depois que vocês me levarem até Brixus?
- Isso quem decide é Brixus - respondeu o homem, e depois mordeu um pequeno pedaço de uma tira de carne seca. - Ele vai querer fazer perguntas sobre Caesar e seu
amigo Marcus antes de decidir qual vai ser o próximo passo. Arrisco dizer que ele vai lhe dar a oportunidade de se juntar ao exército rebelde.
- E se eu recusar?
- Não vai recusar. Confie em mim. Depois que você entender por que isso tudo está sendo feito, depois que Brixus lhe explicar seus planos, você vai querer ficar
e lutar conosco e acabar com a escravidão.
- Você parece muito certo disso.
- Digamos que Brixus sabe ser bem persuasivo. E é provavelmente mais sábio não recusar essa oportunidade.
Lupus assentiu com a cabeça e comeu mais um pouco antes de falar novamente:
- Não sei se quero viver fugindo o tempo inteiro. Apesar de eu ter sido escravo, eu era tratado muito bem.
- Que bom - murmurou Mandracus. - Mas a maioria dos escravos não é tão mimada quanto você, Lupus. A maioria trabalha até morrer. Muitos em minas e fazendas. Esses
são os piores lugares. Era onde eu estava antes de Spartacus e seus homens me encontrarem tantos anos atrás. Agora até parece que foi em outra vida. Desde então,
eu sou livre. Sim, eu tenho sido perseguido e muitas vezes me pergunto quanto tempo isso tudo vai durar. Mas eu continuo livre e tenho uma esposa e duas filhas,
e elas sempre saberão o que é a liberdade.
- Deve ser difícil viver aqui nas montanhas.
- A vida é difícil - admitiu Mandracus. - É uma luta. Mas nós nos tratamos com respeito, compartilhamos o que temos e escolhemos nosso próprio destino. Algo que
um escravo nunca será capaz de fazer. Graças a pessoas como seu antigo senhor. E agora parece que ele decidiu acabar com a gente. - Ele ficou encarando as chamas,
e Lupus percebeu o rosto dele ficar mais sério. - Caesar vai perceber. Somos bem mais resistentes do que ele imagina. Você vai poder explicar um pouco sobre os pensamentos
de Caesar para Brixus quando conversar com ele.
- Vou contar o que puder - respondeu Lupus. - Mas acho que não vou ajudar muito. Caesar não costuma confiar nos escravos... talvez somente em alguns. Ele parece
ter Marcus em alta conta.
Mandracus olhou para o lado bruscamente.
- O garoto que estava com você na emboscada?
Lupus fez sim com a cabeça.
- Me conte sobre ele.
- Por quê? Você disse mais cedo que Brixus também ia querer saber mais a respeito dele. O que Marcus tem de tão especial?
- Só estou curioso. Provavelmente não é nada - respondeu Mandracus cuidadosamente. - Brixus mencionou um garoto gladiador que conheceu no passado. Talvez o seu amigo
Marcus saiba alguma coisa sobre ele.
Lupus acabou de comer. Ele estendeu as mãos para perto da fogueira e as esfregou.
- Não tenho muito o que contar sobre ele. O meu senhor... quer dizer, Caesar o comprou de uma escola de gladiadores em Cápua há mais de um ano. A sobrinha de Caesar
caiu na arena da escola enquanto Marcus enfrentava dois lobos. Ele a salvou dos animais, e Caesar percebeu seu potencial e o comprou para se juntar a ele em Roma,
fazendo parte de sua guarda pessoal.
- Entendi. E como é a aparência de Marcus?
- Você o viu na emboscada.
Mandracus concordou com a cabeça.
- É verdade, mas só foi uma olhada rápida, no meio de uma luta. Não consigo me lembrar dos detalhes.
Lupus deu de ombros.
- Ele é alto para a idade e magro. Não, magro não. Atlético é uma palavra melhor. Ele pensa rápido e tem reflexos velozes, e é impossível ser mais corajoso do que
ele. - Ele sorriu com orgulho ao se lembrar do amigo.
O homem também estava sorrindo.
- Parece alguém que eu conhecia antigamente... bem, jovem Lupus. Vá dormir, temos uma longa marcha na nossa frente antes de chegarmos ao acampamento de Brixus.
Agora eles tinham chegado ao acampamento, mas Lupus não estava vendo nenhum movimento, muito menos um exército rebelde que se fortalecia a cada dia de acordo com
Mandracus. O homem riu ao lado dele e deu um forte tapa no ombro do garoto.
- Siga-me.
Mandracus seguiu por um caminho estreito ao lado do riacho, e eles entraram pelo meio das árvores na base dos rochedos. Um pouco mais à frente, surgia uma faixa
estreita de terreno aberto coberto de pedras. Paredões de rocha escura, com um pouco de musgo espalhado por cima, estendiam-se para cima. Uma cachoeira caía dentro
de uma lagoa onde a água agitava-se e ficava clara antes de se juntar ao riacho que corria entre as árvores. Mandracus parou e curvou a mão ao lado da boca para
chamar alguém no topo dos rochedos.
- Chegando ao acampamento!
Lupus virou-se na direção que o homem observava e avistou uma silhueta escura aparecer no topo do rochedo, contra o céu, olhando para eles.
- Quem está aí embaixo?! - gritou a voz.
- Mandracus! Voltando da patrulha!
- Mandracus? Pode passar, amigo!
O rebelde foi até a base da cachoeira, seguido por Lupus e os outros. Lupus avistou o contraforte e percebeu uma abertura estreita no rochedo íngreme, uma passagem,
que se estendia de maneira inclinada até a cachoeira. Só era possível enxergá-la se a pessoa estivesse quase na base da cachoeira. Havia dois homens no início da
passagem, eles estavam armados com lanças, escudos, armaduras e capacetes iguais aos usados pelas legiões romanas. Eles pareceram ficar aliviados ao avistar Mandracus
e se aproximaram para cumprimentá-lo por ter voltado em segurança. Naquele instante, um deles avistou Lupus e parou.
- Quem é ele?
- Ele? - Mandracus riu. - Um recruta novo. E talvez ele tenha informações úteis para o general. Brixus está no acampamento?
Um dos sentinelas fez sim com a cabeça.
- Ele convocou os líderes de todos os bandos das montanhas. Eles começaram a chegar vários dias atrás. Você é o último. O que está acontecendo?
- Mesmo se eu soubesse, eu não lhe contaria, sua besta! Em breve você vai saber. - Mandracus pôs a mão no ombro de Lupus e o virou na direção da passagem. - Enquanto
isso, voltem ao trabalho de vocês.
Os sentinelas deram um passo para o lado e a pequena tropa de lutadores rebeldes entrou na passagem. O ar estava frio e úmido por causa do vapor que subia da cachoeira.
Lupus estremeceu ao seguir em frente. Apesar de o caminho ter sido aberto para que um cavalo pudesse passar, o chão não era nivelado, e a rota fazia uma curva após
a outra. O céu cinza não passava de uma faixa fina presa entre os rochedos, galhos de arbustos e árvores atrofiadas que pouco cresciam nas saliências. Após cerca
de meio quilômetro, os dois rochedos começaram a se afastar e a luz iluminou a passagem. Em seguida, ao fazerem a última curva do caminho, Lupus avistou pela primeira
vez o acampamento rebelde e parou para respirar fundo e assimilar aquela cena impressionante.
Mais à frente, o caminho fazia uma descida suave até chegar a um pequeno vale, aparentemente cercado por rochedos de todos os lados. Um riacho corria mais no canto,
atravessando o vale antes de passar para baixo da terra e seguir na direção da cachoeira. No entanto, aquilo era o menos impressionante de tudo o que seus olhos
viram. Diante dele, havia um enorme acampamento de tendas e abrigos mais permanentes. No meio das tendas, havia cercados para animais e várias construções maiores.
A mais próxima estava com as portas abertas, e o garoto viu um homem distribuindo tigelas com grãos para uma fila de pessoas. No meio do vale ficava uma enorme cabana
redonda, com uma área aberta ao redor, protegida por uma cerca. Cabanas menores espalhavam-se pelo local.
- Deve ter milhares de pessoas morando aqui - disse Lupus. - Milhares!
Mandracus sorriu ao ver a expressão de espanto do garoto.
- Exatamente. Formamos um exército. E estamos esperando o dia em que vamos nos revoltar e terminar o trabalho começado por Spartacus. - Ele apontou para a cabana
maior. - Vamos, é lá que encontraremos Brixus.
Ele guiou seus homens pelo vale. Lupus foi atrás, olhando de um lado para outro enquanto assimilava os detalhes do acampamento secreto dos rebeldes. Ao seu redor,
os paredões do vale pareciam impenetráveis. Pelo jeito não havia outra maneira de entrar, somente a passagem estreita pela qual tinham chegado. Um esconderijo perfeito,
refletiu ele. Não é de surpreender que os escravos conseguiam fugir dos exércitos romanos enviados para persegui-los. Talvez os romanos nem soubessem que um inimigo
tão poderoso estava se fortalecendo, preparando-se para atacar.
Lupus sentiu uma pontada de preocupação por Caesar e Marcus. Eles estavam achando que enfrentariam bandos dispersos de rebeldes maltrapilhos. Não faziam ideia do
que encontrariam quando marchassem montanhas adentro para lutar.
13
Janeiro estava acabando e o inverno cercava as montanhas, fazendo-as gelar. Tempestades cortantes atingiam os contrafortes e frequentemente soltavam granizo, golpeando
os homens de Caesar enquanto eles seguiam para a cidade de Módena, que serviria de base para a tropa. A cavalaria patrulhava mais para dentro das colinas, ao longo
da linha de marcha, tentando descobrir informações sobre a localização e a quantidade dos rebeldes. Ao voltarem, contavam sobre as intensas nevascas uivando pelas
passagens entre as montanhas e sobre a grossa camada de gelo que se formava nas estradas e caminhos através dos montes Apeninos. Mensageiros tinham sido enviados
na frente até as cidades ao longo da estrada, com ordens para que seus habitantes providenciassem comida e abrigo para a tropa de Caesar, enquanto mais mantimentos
eram estocados em Módena.
Marcus, cavalgando com a equipe do quartel-general, nunca tinha passado por condições como aquelas. Ele tivera o cuidado de escolher um manto feito recentemente,
com gordura animal e o mais impermeável possível. Ainda assim, a chuva fria, carregada por um vento gélido, logo penetrava nas roupas por baixo e encharcava sua
pele. Ele também pegara um par de luvas de couro, e estas igualmente não demoraram para sucumbir ao clima ruim enquanto o garoto seguia os outros cavaleiros atrás
do líder.
Caesar sentia o mesmo desconforto que seus homens, mas parecia não se incomodar com o frio. De vez em quando, deixava alguns de seus oficiais se aproximarem e conversava
com eles alegremente. Às vezes falavam sobre os assuntos de Roma, mas discutiam com mais frequência o futuro glorioso à espera deles na Gália depois que acabassem
com os rebeldes. Ele até havia reservado alguns instantes para Marcus, para conversar sobre a carreira dele na arena.
- Decidi que você deve lutar como retiarius - avisou Caesar enquanto cavalgavam em um breve período entre tempestades.
O céu estava límpido e claro e o vento tinha parado. Nuvens novas apareciam por cima das montanhas, esperando o momento de descerem pelos declives e cercar os homens
que marchavam pela estrada. Marcus tirara o capuz e estava aproveitando o calor do sol em sua pele e no cabelo molhado.
- Você tem um porte bom para lutar com rede - prosseguiu Caesar. - É magro e forte e se move com rapidez e graciosidade. Percebi isso quando lutou contra Ferax lá
em Roma. Claro, as coisas podem mudar. Alguns garotos que são magros quando mais novos terminam ganhando músculos depois. Se isso acontecer com você, vou repensar
a sua categoria. Um trácio ou até mesmo um samnita seriam mais adequados para alguém mais pesado. Mas vamos torcer para que você continue assim. Odiaria vê-lo se
arrastando pela arena quando deveria estar fazendo um belo espetáculo para a multidão com sua velocidade.
- Sim, senhor - respondeu Marcus, esforçando-se bastante para controlar o ataque de tremores que tomara conta de seu corpo. Ele estava com muito frio e cansado demais
para ficar chateado com as decisões de seu antigo senhor sobre seu destino. Além disso, sua mente estava focada no fato de que Decimus acompanhava o comboio de bagagens.
Marcus o avistara apenas algumas vezes desde a saída de Rimini e não conseguia deixar para trás a vontade de se vingar. Os longos dias de cavalgada fizeram o garoto
se lembrar de todas as outras coisas pelas quais tinha que se vingar além do sofrimento de sua própria família. Aristides, um escravo que era como um avô para Marcus,
também fora assassinado pelo agiota. Até mesmo Cerberus, o cachorro que Marcus havia resgatado de um vendedor cruel e treinado para ser seu fiel companheiro, tinha
sido golpeado até a morte pelos homens de Decimus durante o ataque à fazenda. Uma morte simples seria bondade demais, decidiu Marcus. Ele tem que sofrer, assim como
suas vítimas sofreram.
- Você não está prestando atenção, está? - perguntou Caesar.
De imediato, Marcus afastou todos os pensamentos a respeito de Decimus e tentou se lembrar das últimas palavras de Caesar. Marcus recordou-se vagamente de um comentário
sobre a fortuna que algum retiarius famoso fizera durante a ditadura de Sulla. O garoto pigarreou.
- Sim, senhor. Seria bom ganhar muito dinheiro.
Caesar lançou-lhe um olhar condescendente.
- Marcus, falei isso um tempo atrás, antes de eu começar a falar sobre seu treinamento. Você não está prestando atenção.
Marcus olhou para baixo.
- Desculpe, senhor. Estou cansado. Minha mente estava distraída.
- Distraída, é? Está pensando em Decimus de novo, não é?
Marcus pensou em negar, mas não queria arriscar ser pego na mentira mais uma vez, então fez sim com a cabeça.
- Não consigo parar de pensar nele. E no que ele fez com minha família e meus amigos. Desculpe, senhor, mas o fato de ele estar tão perto e eu não poder fazer nada
está me corroendo por dentro.
- Tudo tem seu tempo, Marcus. Lembre-se - alertou Caesar - de que você precisa da minha permissão para agir. Por enquanto é bom pra mim ficar com ele por perto,
mas não perto demais, se é que você me entende. Se Crassus o encarregou de me fazer algum mal, então Festus e meus guarda-costas, incluindo você, vão dificultar
a vida dele.
- Dificultar com certeza, senhor - respondeu Marcus. - Mas por que não torná-la impossível? Por que correr esse risco? Por que não simplesmente prender ele e seus
homens?
- Porque eles não representam nenhum risco para mim no presente. Se representassem, eu faria o que está dizendo. Mas por enquanto acho suficiente pedir para Festus
tomar conta deles. Se eles tentarem algo, nós vamos perceber, e eu terei provas da traição de Crassus. Será o suficiente para ter um pouco de poder sobre ele, pois
duvido que o Senado vá ter boa vontade com o conspirador da tentativa de assassinato de um procônsul. - Caesar sorriu sarcasticamente. - De todo modo, ainda não
estou convencido de que o plano dele é esse. Acho que Crassus enviou aquele homem simplesmente para me espionar, enviar relatos e ganhar uma pequena fortuna para
seu senhor no meio do processo. Isso sim seria típico de Crassus!
Marcus não tinha tanta certeza disso.
- Se está dizendo, senhor.
A expressão de Caesar ficou séria mais uma vez.
- Isto talvez complique a situação: se Decimus reconhecer você. Ele já deve saber que você trabalha na minha casa, pois aquele agente dele tentou me envenenar.
- Thermon.
Caesar concordou com a cabeça.
- Até agora Decimus não o viu aqui, então espero que ele presuma que você ainda está em Roma. Se ele descobrir, então ele vai saber que está correndo perigo.
- Perigo, senhor?
- Claro. Você é a única testemunha de quando ele assassinou seu pai e sequestrou você e sua mãe. Se ele for condenado por isso, vai ser exilado ou executado. O que
significa que seria perigoso para você se Decimus descobrir que você está aqui. Pense nisso e fique longe dele e de seus seguidores. É uma ordem.
- Sim, senhor.
Caesar olhou para Marcus astutamente.
- Sei que agora é um homem livre, mas você faz parte do meu exército nesta campanha e por isso está sujeito à disciplina militar. Uma ordem do seu general tem a
mesma força de uma ordem do seu senhor. Está claro?
- Sim, senhor. Perfeitamente.
Caesar balançou a cabeça com satisfação.
- Ótimo. Agora preciso de um tempo para pensar na campanha. - Ele acenou a mão para trás, onde os oficiais cavalgavam a uma pequena distância. Marcus curvou a cabeça
e puxou as rédeas para permitir que o procônsul se distanciasse. No entanto, não podia se preocupar com a advertência dele. Por mais que respeitasse Caesar, Marcus
tinha as próprias ambições, e elas estavam acima do dever de obedecer a um superior.
A tropa chegou a Módena no final do quarto dia após sair de Rimini. Os oficiais e soldados já tinham lugares para ficar na cidade, e os cavalos e mulas foram levados
para currais no mercado de animais e alimentados. Marcus continuou com Caesar até tarde da noite na vila de um magistrado local que tinha sido oferecida para o procônsul
e sua equipe. Quando Caesar chegou, havia vários relatos sobre o número cada vez maior de ataques feitos pelos rebeldes a propriedades e minas por todos os Apeninos.
Mais preocupante era a crescente ousadia e ambição das atividades dos rebeldes. Bandos armados agora atacavam a certa distância, do meio das montanhas, atingindo
alvos considerados seguros. Caesar ditou ordens para Marcus, pedindo que as cidades ao longo das montanhas aumentassem a vigilância e se preparassem para lidar com
ataques repentinos. Era tarde quando ele terminou e permitiu que Marcus voltasse para o lugar onde dormiria. Marcus tinha sido aquartelado em uma casa humilde de
um dos homens libertos do magistrado, não muito distante da vila e na mesma rua.
Ao se aproximar da porta da casa, espremida entre uma padaria e uma loja de vinhos, Marcus parou na rua, refletindo profundamente. Estava exausto. A tropa partiria
para as montanhas assim que amanhecesse. Caesar estava certo em dizer para Marcus descansar. Demoraria um bom tempo antes de ele ter a oportunidade de dormir em
uma cama confortável e seca mais uma vez. No entanto, o garoto não conseguia se livrar da necessidade de descobrir as intenções de Decimus. Caesar ordenara que Marcus
ficasse longe do homem, mas não dissera para evitar Festus. Marcus sorriu para si mesmo. Colocando o capuz na cabeça, passou direto pela porta da casa e foi para
o centro da cidade.
Módena era um centro comercial importante entre os domínios romanos e aqueles dos gauleses e de outras tribos do norte. Agora, com a expansão dos romanos na direção
dos Alpes, a cidade tinha se acalmado e passado a depender mais das fazendas e pequenas indústrias para gerar riqueza. Contudo, não havia como disfarçar o fato de
que o local estava em declínio. Marcus percebeu que algumas das casas pelas quais passava se encontravam malconservadas. A pintura de muitas estátuas públicas havia
sido negligenciada e estava descascando a ponto de deixar à mostra a pedra por baixo. Entretanto, o centro da cidade ainda se encontrava agitado e os sons de festa
enchiam o ar enquanto Marcus chegava ao fórum.
Todas as estalagens estavam cheias de soldados, e aqueles que não podiam entrar ficavam na rua, dividindo jarras de vinho e conversando com tom de voz alto e alegre,
ou se agachavam ao redor dos jogos de dados, apostando seja lá o que tivesse sobrado de seus pagamentos. Marcus imaginou que Decimus não estaria se divertindo na
companhia de soldados comuns. Era muito mais provável que ele estivesse bebendo com os oficiais, com homens que talvez tivesse conhecido socialmente durante visitas
a Roma - homens que um dia lhe poderiam ser úteis à medida que fossem ocupando cargos mais importantes no Senado.
Marcus parou do lado de fora da primeira estalagem pela qual passou e se aproximou de um pequeno grupo de soldados com capas que ainda pareciam quase novas.
- Com licença - disse ele, tirando o capuz da cabeça. - Fui enviado do quartel-general para encontrar um dos oficias de Caesar. Vocês sabem onde eles estão?
Um homem alto e corpulento com uma barba por fazer virou-se e, olhando para baixo, viu Marcus.
- Oficiais? Quem se importa com eles, hein? Bando de vadios convencidos.
- Ei! - exclamou um de seus companheiros. - Pare com isso, Publius. O garoto está apenas fazendo uma pergunta. - Ele afastou o amigo carrancudo para o lado e parou
na frente de Marcus com uma expressão de desculpas. - Ignore-o. Ele é apenas um resmungão.
- Com certeza! - interrompeu seu companheiro. - Por que não estamos descansando nos alojamentos de inverno? Não é certo a gente sair e lutar no meio do inverno.
Não vamos estar em boa forma quando a verdadeira campanha começar na primavera.
- Ah, cale-se! - disse seu camarada com irritação antes de se voltar para Marcus. - Então, o que você quer, garoto?
- Preciso encontrar os oficiais. Vocês os viram?
- Humm. - O soldado coçou o queixo. - É melhor tentar no Javali Contente. Perto do Templo de Júpiter. Supostamente essa é a estalagem mais rica. Acho que lá é mais
provável. - Ele olhou para Marcus mais atentamente. - Eu o conheço? Estou reconhecendo seu rosto.
Marcus balançou a cabeça.
- Acho que nunca nos vimos.
O homem franziu a testa e estalou os dedos.
- Sim! Foi em Roma. Eu estava de licença lá no ano passado. Vi você lutar contra aquele garoto celta. Você é Marcus Cornelius, não é?
Mais uma vez, Marcus balançou a cabeça. Já era possível que os rumores de sua luta com Quintus estivessem se espalhando pela tropa. Marcus estava decidido a fazer
com que Decimus não soubesse de sua presença pelo máximo de tempo possível. Seria melhor negar sua identidade por enquanto...
- Sou apenas um servo de Caesar - respondeu Marcus secamente. O soldado pareceu ficar desapontado e acenou com a mão dispensando-o.
- Pode ir então, garoto!
Marcus virou-se e seguiu na direção do fórum para ir até a estalagem mencionada pelo soldado. O dono do Javali Contente tinha colocado mesas e bancos fora da entrada,
e lá havia centuriões e optios das coortes de Caesar. Abrindo caminho no meio dos soldados, o garoto não pôde deixar de se perguntar em que estado eles se encontrariam
pela manhã, quando chegasse a hora de marchar para as montanhas.
Marcus escutou conversas animadas e aplausos vindos de dentro, e depois houve um breve intervalo antes de o barulho aumentar novamente. Ele se espremeu pela porta
e percebeu imediatamente que a estalagem era bem maior do que parecia de fora; era um único cômodo aberto com uns trinta metros de largura. Havia um balcão na lateral
onde um velho suado entregava jarras e copos para seus servos e anotava o que cada mesa consumia. O centro do cômodo tinha sido esvaziado, e um aglomerado de tribunos,
centuriões e civis cercava um jogo de dados. Marcus sabia que chamaria a atenção se tirasse o capuz da cabeça, então deu a volta no grupo até chegar a uma alcova
e ficou parado na sombra enquanto observava os homens ali.
Ele avistou Quintus rapidamente. O marido de Portia sorria como um tolo ao abrir o porta-moedas. No entanto, seu sorriso desapareceu ao tatear dentro dele e afastar
a mão com apenas algumas moedas de prata. O rapaz hesitou brevemente antes de se encurvar para fazer sua aposta. Então os olhos de Marcus fixaram-se em Festus, que
estava sentado do lado oposto do cômodo, observando os acontecimentos enquanto tomava sua bebida em um cálice de bronze. Marcus acompanhou a vista dele até um grupo
de homens sentado à mesa na frente de Festus. Ele avistou Decimus imediatamente devido ao bordado caro de seu manto. Havia um homem atarracado sentado ao lado dele
e mais três do outro lado da mesa, de costas para Marcus. Dois tinham cabelos curtos; o terceiro tinha a cabeça raspada, mas os pelos escuros de uma barba malcuidada
eriçavam-se nas duas bochechas - de frente, e pareceria um bárbaro.
Agora que estavam sob sua vista, Marcus ficou encarando Decimus por um tempo. Lembrava-se muito bem da expressão cruel no rosto dele quando o agiota contou a Marcus
e sua mãe o destino que teriam enquanto eles estavam na cela temporária do mercado de escravos na Grécia. Marcus foi para o outro lado do cômodo e aproximou-se de
Festus, posicionando-se de costas para Decimus e os outros.
As sobrancelhas de Festus ergueram-se de surpresa. Ele se inclinou por cima da mesa.
- O que está fazendo aqui? - resmungou ele.
- Caesar me dispensou pelo restante da noite. Achei que valia a pena dar uma olhada na cidade.
- Por Pollux! Acha que sou tolo, Marcus? Você veio espiar Decimus.
- Como eu ia saber que ele está aqui?
- Onde mais ele estaria em uma cidade tão precária quanto Módena? É melhor ir embora antes que ele o veja.
- Vou daqui a um instante. Mas primeiro quero que me diga o que ele tem feito. Caesar acha que ele não está aqui só por causa dos escravos.
Festus deu de ombros.
- Se isso for verdade, não aconteceu nenhum sinal suspeito. Ele fica perto dos seus homens ali e eles viajam no comboio. Nenhuma mensagem foi transmitida para eles,
e eles também não transmitiram nenhuma.
- Só isso?
- Foi só isso que vi.
- E nenhum sinal de Thermon?
- Não. Nenhum deles parece o homem que tentou matar Caesar. Veja você mesmo.
Com cautela, Marcus girou o corpo de leve e olhou de lado. De onde estava, conseguia enxergar a mesa lateralmente, e com a luz fraca dos candeeiros da estalagem
dava para ver os perfis dos companheiros de Decimus. Nenhum deles tinha o cabelo bem penteado e as feições bem cuidadas do perigoso capanga do agiota. Enquanto observava,
Marcus escutou mais um grito vindo dos homens jogando dados e olhou para lá. Viu o rosto de Quintus empalidecer; o jovem espremia o porta-moedas vazio com o punho
cerrado e se afastava do círculo de homens ainda assistindo ao jogo.
- É melhor ir embora - disse Festus. - Antes que o vejam.
Marcus assentiu com a cabeça e se levantou da mesa. Ele parou.
- Fique de olho em Decimus. Não dá para confiar nele. E ele é... maligno.
- Maligno? - Festus ergueu a sobrancelha e sorriu debilmente. - Bem, se ele tentar lançar um feitiço contra Caesar, eu com certeza aviso.
Marcus fulminou-o com os olhos, furioso por Festus estar tratando aquele assunto tão casualmente. Em seguida, ele se virou e foi na direção da saída da estalagem
lotada. Parou na porta para lançar um último olhar de ódio na direção de Decimus e congelou imediatamente. Quintus tinha se aproximado da mesa do agiota e estava
se encurvando enquanto se dirigia a Decimus com seriedade. A conversa foi breve, e não dava para confundir a expressão de súplica no rosto do tribuno. Decimus ficou
parado por um instante, como se estivesse pensando, e depois fez sim com a cabeça. Ele estendeu a mão e tirou um pesado porta-moedas debaixo do casaco, colocando-o
na mão de Quintus. O tribuno olhou ao redor nervosamente antes de escondê-lo debaixo do próprio manto. Rapidamente, ele fez sim com a cabeça para agradecer a Decimus
e voltou para o jogo de dados com pressa.
Marcus lembrou-se do comentário de Portia a respeito do vício do marido em jogos. Parecia um problema mais sério do que ela temia, e Marcus sentiu uma pontada de
pena pela amiga. O casamento dela era uma união infeliz. A garota fora obrigada a aceitá-lo por motivos políticos e agora estava condenada a ser esposa de um vagabundo
cujo único talento aparente era a capacidade de perder em jogos de dados. Marcus ficou aflito por um instante. Se Quintus continuasse assim, Portia só ficaria mais
infeliz. Já era ruim o fato de ele não ter sorte, mas o azar se agravava devido à falta de bom senso do rapaz.
Apenas um homem muito desesperado ou tolo pegaria dinheiro emprestado de alguém como Decimus. Marcus tinha aprendido essa lição muito bem. Foi algo que custou a
vida de Titus e tudo o que ele possuía. Agora Decimus havia encontrado uma nova vítima, e era impossível saber onde aquilo ia terminar.
14
Lupus recebera ordens de ficar em uma barraca simples perto da parte central do acampamento rebelde. A cada dia, ele sentia mais medo. Apesar de Mandracus ter tratado
o garoto bem e da promessa de que nunca mais seria um escravo, Lupus achava que estava sendo tratado como prisioneiro. Da porta de seu abrigo, dava para enxergar
a maior cabana do acampamento - a que pertencia a Brixus, descobrira o garoto. Ela havia sido construída com rochas mal lapidadas, usando uma mistura de lama e esterco
entre elas para impermeabilizar a superfície. Havia um telhado de palha sobre as paredes e era tudo bem diferente das elegantes vilas dos aristocratas romanos, mas
naquelas circunstâncias a cabana era considerada grandiosa. Uma dúzia de homens armados com lanças e escudos cuidava da proteção do acampamento, e um deles tinha
recebido ordens para vigiar Lupus.
Certo fim de tarde, ele foi convocado pelo líder rebelde e ficou esperando no exterior da cabana de Brixus até receber permissão para entrar. O brilho rosado do
sol descia por trás do contorno das montanhas, e o vale mergulhava nas sombras enquanto a luz fraca ficava com um tom azulado. Ao redor de Lupus, os rebeldes faziam
suas fogueiras, mas nenhum deles tentava acendê-las. Eles ficavam agachados a espera da luz do sol ir embora.
Lupus começou a tremer e após um instante falou com o homem que o escoltava:
- Por que eles nunca acendem fogueiras durante o dia?
O homem olhou para o céu.
- Por causa da fumaça. Se acendermos uma fogueira, há o risco de que a fumaça seja vista e de que alguém fique curioso e venha ver o que é. Então as fogueiras só
são acesas depois que escurece. São ordens bem rigorosas de Brixus. Quem desobedecer será castigado em público.
- Ah... - Apesar de Mandracus ter tranquilizado o garoto de que ninguém lhe faria mal, Lupus tinha medo das pessoas ao seu redor. O líder do grupo parecia ser um
homem que, apesar de ter proclamado a liberdade das pessoas, mandava em seus seguidores com uma disciplina feroz. O ar frio da montanha penetrava o manto e a túnica
de Lupus, e ele bateu os pés no chão, sentindo as pernas ficarem dormentes. Começou a pensar em Marcus e nos outros e que provavelmente estariam passando a noite
em alguma casa confortável em Rimini. Enquanto pensava no amigo, Lupus sentiu uma pontada de aflição. Marcus não estaria com tanto medo quanto ele, ou pelo menos
não demonstraria. Ele era forte e corajoso, e Lupus sabia que teria lidado com aquela situação bem melhor se Marcus estivesse ao seu lado. Mas ele não estava. Nem
Festus nem Caesar. Lupus estava sozinho e com a certeza de que seu amigo achava que ele estava morto, enterrado debaixo da avalanche. Por um instante, Lupus sentiu
lágrimas nos olhos por estar com pena de si, mas as enxugou rapidamente e ficou com raiva por estar sendo tão fraco. Marcus nunca se permitiria sentir tanto medo
assim, pensou. Ele precisava ser mais como o amigo. Não demonstrar medo e conquistar o respeito dos homens que o tinham capturado.
Após um tempo, com as estrelas aparecendo no céu frio, Mandracus saiu da cabana e deu uma olhada ao redor antes de mover a cabeça para um dos guardas perto do ponto
de uma fogueira.
- Já está escuro o suficiente. Pode acender a fogueira. - Ele olhou rapidamente para Lupus e voltou para dentro.
Imediatamente, o guarda pegou uma caixa com material inflamável na bolsa pendurada em seu ombro e se ajoelhou ao lado dos gravetos agrupados em formato de cone.
Musgo seco e palha preenchiam o pequeno espaço na base da fogueira. O homem se encurvou em cima da caixa, e Lupus escutou o barulho de pedras batendo enquanto pequenas
centelhas caíam no linho chamuscado dentro da caixa. Um pequeno brilho iluminava o rosto do homem, que assoprava delicadamente, protegendo a pequena chama para que
ela se espalhasse pelo linho. Em seguida, ele acrescentou algumas pitadas de musgo seco e colocou o conteúdo da caixa nos gravetos na base do fogo. Logo as chamas
alaranjadas e famintas se espalharam, crepitando. Uma por uma, as outras fogueiras foram acesas, pontilhando a escuridão do vale com brilhos rosados que iluminavam
as pequenas silhuetas próximas ansiosas para se aquecer.
- Posso ir até lá? - Lupus apontou a cabeça para uma fogueira onde havia alguns guardas com lanças nos ombros, estendendo as mãos na direção do fogo.
O guarda lançou um olhar desejoso na direção da fogueira.
- Mandaram eu ficar aqui com você até segunda ordem... mas acho que isso não faria mal. Vamos. Mas não tente fazer nada. Vou ficar de olho em você, garoto.
- Tentar? - Lupus riu amargamente. - E para onde eu fugiria? O vale só tem uma saída, e ela está bastante protegida.
O guarda encarou-o.
- Mesmo assim. Nada de gracinhas. Entendeu?
Lupus assentiu com a cabeça, e o homem apontou a lança para a fogueira. Eles atravessaram o acampamento e se juntaram aos outros guardas. Um deles pegou um odre
de vinho e o passou para os demais. O homem responsável por Lupus tomou um gole e abaixou o odre, suspirando contente.
- Ah! Isso aqueceu o meu coração. Aqui, garoto. Tome um pouco.
Ele estendeu o odre para Lupus. O garoto hesitou por um instante, mas o pegou, acenando com a cabeça para agradecer. Após tirar a tampa, ele cheirou o líquido e
não pôde deixar de enrugar o nariz ao sentir o odor ácido e forte. Os homens riram da reação dele, e Lupus se obrigou a controlar a expressão do rosto. Após se preparar,
ele pôs o gargalo na boca e levantou a pele do odre enquanto inclinava a cabeça para trás. Nada desceu por um instante e depois um jato de vinho escorreu para dentro
de sua boca, com um gosto forte que fez sua língua arder. Ele abaixou o odre e cuspiu, e os guardas ao redor da fogueira riram.
- Forte, não é? - disse o guarda. - Até para aqueles que não estão acostumados com os vinhos dos lares mais ricos de Roma. - Ele apontou para o manto de Lupus, liso,
bem costurado. - Está claro que você nunca teve que trabalhar no campo. Você é um escravo doméstico. Com certeza cresceu comendo as deliciosas sobras da mesa do
seu senhor. Nunca trabalhou de verdade, não é?
Lupus corou raivosamente, mas não se atreveu a responder.
- Foi o que achei. - O guarda fez sim com a cabeça. - Bem, agora você não é melhor do que ninguém. Todos nós somos iguais aqui, garoto. E você vai lutar ao nosso
lado quando chegar a hora.
Lupus engoliu em seco.
- E se eu me recusar a lutar?
- É melhor não fazer isso. - O guarda passou o dedo na frente da garganta dele. - Ou você está do nosso lado ou é nosso inimigo. Qual dos dois vai ser?
Lupus sentiu o pavor perfurar seu coração. Ele viu os outros homens observando-o atentamente, muitos com cicatrizes no rosto, desgastados pelos anos de sofrimento
e lutas.
- E então? - insistiu o homem. - Está do nosso lado?
Lupus hesitou e estava prestes a responder quando um homem surgiu no meio da escuridão e se juntou ao grupo na fogueira.
- O que é isso? Estão provocando o novo recruta? - Mandracus riu enquanto parava ao lado de Lupus e sorria para ele. - Ignore-os, garoto. Eles só estão querendo
se divertir.
Lupus ergueu a sobrancelha.
- Se divertir?
Mandracus pôs a mão no ombro dele e afastou Lupus do fogo.
- Enfim, Brixus quer se encontrar com você. Agora.
Eles foram até a entrada da grande cabana. O batente acima da entrada obrigou Mandracus a se abaixar enquanto afastava a cortina de couro para o lado e acenava para
Lupus passar. O interior tinha cerca de 25 metros de largura, e uma fogueira no centro provia iluminação suficiente para alcançar as paredes e a estrutura de madeira
que sustentava o teto. Uma mulher de túnica velha estava usando uma pequena faca para cortar pedaços de carne da carcaça de um bode, fazendo cubinhos antes de jogá-los
no caldeirão cheio de vapor suspenso em uma estrutura de ferro acima da fogueira. Atrás da fogueira, havia uma enorme mesa com bancos ao redor. Na ponta dela, um
homem sentado em uma grande cadeira de madeira observava o recém-chegado.
- Lupus, não é?
- Sim, amo - respondeu Lupus instintivamente. Apesar da escuridão dentro da cabana, o garoto percebeu a rápida expressão de irritação que surgiu no rosto do homem.
- Aqui não existem amos, Lupus - disse o homem calmamente. - Nem amos nem escravos. Entendeu?
Ele fez sim com a cabeça.
- Então se aproxime. Sente-se à mesa.
Lupus caminhou pela terra batida e se sentou no banco mais próximo, que ficava na extremidade da mesa. Mandracus sentou-se no banco da frente. Depois de se acomodarem,
o outro homem inclinou-se para a frente e encarou Lupus.
- Sou Brixus, general do exército rebelde.
O cabelo de Brixus era escuro e encaracolado. Uma cicatriz esbranquiçada e enrugada estendia-se de sua testa até a bochecha como uma linha. Seus olhos eram fundos,
tinha grossas sobrancelhas e a pele enrugada por causa da idade. No entanto, tinha ombros largos e braços musculosos. Lupus pensou que Brixus devia ter sido um lutador
formidável em sua época. Ele irradiava uma aura de valentia e implacabilidade, até mesmo de crueldade.
- Não precisa ter medo de mim. - Brixus sorriu, deixando à mostra os buracos entre os dentes. - Estamos do mesmo lado. Você vai se juntar à luta para acabar com
a escravidão. Mandracus e seus homens o libertaram de seu senhor, mas você só será verdadeiramente livre quando Roma for humilhada e obrigada a aceitar nossas condições.
Isso você precisa saber. Nós estamos envolvidos em uma luta que vai até a morte. Ou nós venceremos Roma ou seremos destruídos. Entendeu?
Lupus assentiu e analisou a situação, então compreendeu o desafio aparentemente impossível que Brixus e seus seguidores enfrentariam. Sentiu o pulso acelerar ao
se preparar para responder, sem se atrever a antagonizar os dois homens.
- Acha mesmo que é capaz de derrotar Roma?
- Por que não seríamos? - Brixus deu de ombros. - Chegamos perto da última vez, sob a liderança de Spartacus. Mas no momento da vitória estávamos divididos. Alguns
queriam usar a nossa vantagem para escapar e voltar para casa, outros queriam ficar com Spartacus, continuar a guerra e humilhar Roma. Aconteceram discussões amarguradas,
e nosso exército se dividiu em dois. E, divididos, nós não estávamos mais no mesmo nível das legiões e fomos derrotados um de cada vez. - Brixus balançou a cabeça
com tristeza e depois se recostou na cadeira antes de prosseguir: - Não vai ser assim dessa vez. Não vai ter nenhuma divisão. Nenhum debate. Não vou permitir. Juntos,
nós vamos vencer Roma e suas legiões.
Lupus mordeu o lábio antes de responder:
- Como vocês vão vencê-los? Aqui vocês têm um exército de milhares. Mas para cada homem aqui, Roma tem dez ou mais legionários. Vocês são bem menos numerosos.
Brixus gesticulou para a cabana ao redor.
- Acha que é só isso que Roma vai enfrentar? Esse é apenas o maior acampamento dos rebeldes. Existem muitos outros, todos aguardando o sinal para me seguirem e lutarem.
Quando chegar o momento, nós estaremos prontos para as legiões.
- Qual vai ser o sinal? - perguntou Lupus.
Mandracus abriu a boca para responder, mas Brixus pigarreou para ele não falar nada e chamou a mulher que mexia o caldeirão.
- Traga uma tigela para cada um de nós e vá embora.
- Sim, amo - respondeu ela, já pegando tigelas e colheres de prata em um pequeno baú ao lado da lareira. Ela usou um bastão de ferro para erguer o caldeirão e o
colocar no chão. Após servir uma colherada quente de ensopado em cada tigela, ela as carregou apressadamente até eles e as deixou na mesa antes de sair da tenda.
- Achei que aqui não houvesse nenhum escravo - disse Lupus cuidadosamente. - E ela?
Brixus riu.
- Aquela mulher é esposa de um lanista romano, jovem Lupus. Ou era, até nós atacarmos a escola dele. Matamos o homem e seus funcionários para libertar os gladiadores
e escravos trabalhando na casa deles. Pelo que tudo indica, ela tratava seus escravos como animais. E agora está aprendendo uma lição. - Ele sorriu friamente. -
É bom ver os romanos provando o próprio veneno, não é? Agora, você deve estar com frio e com fome, menino. Então coma.
Lupus pegou a colher e a encheu antes de assoprar o ensopado quente. O aroma delicioso subindo da tigela fez o garoto perceber o quanto estava esfomeado, ele tomou
a colherada avidamente, apreciando o sabor forte e quente. Enquanto comia, sua mente não parava de trabalhar. Qual informação ele teria que ajudaria Brixus?
Comeram em silêncio até Brixus terminar e afastar a tigela estalando os lábios, satisfeito. Ele bateu o punho contra o peito, soltou um arroto e sorriu ao se recostar
e olhar para Lupus.
- Mandracus me disse que você pertence... desculpe... pertencia a Julius Caesar.
Lupus terminou de mastigar um pedaço de carne apressadamente e engoliu enquanto abaixava a colher.
- Isso. Eu era escriba dele - disse ele com orgulho.
- Um escriba? - Brixus ergueu as sobrancelhas apreciativamente. - Então você deve ser um garoto bem inteligente. Inteligente o suficiente para que Caesar confiasse
em você, pelo menos um pouco. Ou talvez inteligente o suficiente para escutar coisas por acaso, coisas que não devia escutar.
Lupus sentiu seu orgulho transformar-se rapidamente em nervosismo.
- Eu-eu não sei do que está falando.
- Claro que sabe. Você não é nenhum tolo. Além disso, já sei que Caesar foi enviado pelo Senado para me encontrar e me destruir junto com meus seguidores. Tenho
espiões em Roma. Eles comparecem às reuniões públicas do Senado e enviam relatos com regularidade. Então sei por que o seu antigo senhor estava a caminho de Rimini.
Ele quer usar o exército de lá para acabar conosco antes de focar nos gauleses e tem toda a intenção de escravizar o máximo de pessoas possível, obtendo uma vasta
fortuna como resultado. Preciso saber é do plano dele. Você precisa me contar.
- Mas eu não sei nada dos planos dele - protestou Lupus. - Caesar não passa esse tipo de informação para qualquer um. Tudo o que faço é escrever o que ele pede.
- Mas você está presente quando ele participa de reuniões com seus aliados e defensores.
- Às vezes - admitiu Lupus. - Quando ele quer que anotações sejam feitas.
- E ele nunca discutiu seus planos para lidar com a gente?
- Na minha frente não. - Lupus viu o olhar cruel do homem e não pôde deixar de estremecer. - Juro que estou contando a verdade.
- Há maneiras de descobrir se está contando a verdade...
- Mas estou contando sim. Por que eu mentiria? Você me libertou.
- Sim. Mas alguns escravos ficam mais à vontade sendo propriedade de outros homens do que controlando o próprio destino. É possível que você sinta a mesma coisa
que essas criaturas deploráveis, jovem Lupus.
- Eu quero ser livre. Quero muito.
Brixus encarou-o por um instante e olhou para Mandracus.
- O que acha?
- Ele está dizendo que quer ser livre. Eu acredito nele. Mas ele ainda está se acostumando a essa ideia. - Mandracus fez uma pausa. - Além do mais, Caesar não é
de compartilhar o que pensa. Nós sabemos disso. Então talvez o garoto esteja dizendo a verdade.
Brixus coçou o queixo pensativamente.
- Tudo bem. Então vamos ter que pedir para nossos patrulheiros ficarem de olho em Caesar e seu exército. - Ele parou e entrelaçou os dedos. - Ainda temos outro assunto
para discutir.
Lupus viu Mandracus assentir com a cabeça, e uma nova onda de ansiedade espalhou-se por suas entranhas. Que outro assunto? Então ele se lembrou do comentário feito
por Brixus, a razão de o líder dos rebeldes ter pedido para a esposa do lanista sair da cabana.
- Você mencionou um sinal. Você disse que certo sinal uniria os bandos de rebeldes e faria eles se rebelarem contra Roma.
- Exatamente. - Brixus abriu um pequeno sorriso. - Garoto esperto. Se é para termos alguma chance contra Roma, precisamos de um símbolo. Alguém que inspire os corações
de todos os escravos. Alguém que eles sigam até os confins da terra.
Lupus engoliu em seco nervosamente.
- Você?
Brixus balançou a cabeça.
- Não. Não um gladiador velho e sem graça como eu. Eu talvez até comande aqueles que moram nesse vale e mais alguns outros bandos de rebeldes e bandidos escondidos
pelas montanhas. Mas meu nome e minha reputação não são suficientes. Precisamos de um nome mais famoso. Mais do que um nome, precisamos de uma lenda. Alguém como
Aquiles, ou Hércules, alguém que inspire as pessoas.
- Entendo. - Lupus pressionou os lábios. - Está falando de Spartacus?
Brixus fez sim com a cabeça.
- Então é uma pena ele não estar vivo.
- Mais do que uma pena, Lupus. Foi uma tragédia. Se tivesse conhecido o homem, você entenderia. Ele era um lutador excelente, isso é verdade. Mas ele era mais do
que isso. Bem mais. Ele era amigo de todos que o conheciam. Ele compreendia o sofrimento deles, os desejos deles, e sentia o mesmo ódio pela escravidão que eles
sentiam.
- Você o conheceu? - Lupus inclinou-se para a frente. - Você conhecia Spartacus?
Brixus sorriu e apontou a cabeça para o outro homem.
- Nós dois o conhecemos. Nós lutamos ao lado dele. Fazíamos parte do pequeno bando de companheiros que formou a guarda pessoal dele desde o início da rebelião. Ficamos
com ele quase até o fim.
- Vocês participaram da batalha final?
- Eu estava lá, mas fui ferido e não pude lutar. Fiquei vendo do comboio de bagagens. Foi lá que fui capturado. Mandracus tinha recebido ordens para procurar mantimentos
e não esteve na batalha. Quando ouviu falar que tínhamos sido derrotados, ele levou seus homens para dentro das montanhas, para se esconder, e encontrou esse vale.
- Fiquei no comando até Brixus chegar - acrescentou Mandracus. - Brixus já tinha sido meu líder antes e eu devolvi o comando para ele com alegria. Juntos, temos
construído um novo exército de escravos foragidos, armando-os e treinando-os para podermos recomeçar a rebelião quando chegar o momento certo. E esse momento chegou,
apesar de Caesar ter nos obrigado a fazer isso mais cedo do que queríamos. É por isso que precisamos do símbolo de que falamos. Ele vai ser o sinal. É ele que vai
fazer os escravos lutarem pela bandeira dele.
Brixus e Mandracus trocaram um rápido olhar antes de Brixus prosseguir:
- O filho de Spartacus.
Apesar de Lupus ter ouvido aquele boato em Roma, não achava que alguém faria a tolice de iniciar uma rebelião com base em tal ideia. No entanto, ele tomou cuidado
para não demonstrar seus verdadeiros pensamentos na frente dos dois homens.
- Então onde está ele? - perguntou Lupus. - Quem é? - Ele ainda estava confuso com o próprio papel naquela discussão.
- Antes que eu conte, Lupus, você precisa saber de alguns detalhes. Só assim você vai acreditar quando eu contar o nome dele. Conheci um garoto em uma escola de
gladiadores em Cápua há menos de dois anos. Ele achava que era filho de um oficial aposentado do exército romano e da escrava comprada pelo oficial e libertada para
que os dois se casassem. Mas a mulher havia sido esposa de Spartacus e estava grávida do filho dele quando foi levada pelo oficial. Depois do nascimento, ela assinalou
a criança com a marca secreta de Spartacus, aquela que apenas ele e as pessoas mais próximas dele tinham. Uma marca como esta.
Brixus levantou-se e puxou o manto e a túnica do braço, deixando à mostra o músculo de seu ombro. No topo do ombro havia uma cicatriz, uma marca com o formato de
uma cabeça de lobo perfurada por uma espada de gladiador. Brixus deixou o garoto observá-la por um instante, cobriu-a de volta e se sentou.
- Mandracus tem a mesma marca, e o ferro quente utilizado foi guardado pela esposa de Spartacus. Foi com esse instrumento que ela fez a marca em seu filho.
Lupus fez uma careta ao imaginar uma mãe marcando o próprio bebê.
- Por que ela faria uma coisa dessa?
Brixus contraiu os lábios.
- Imagino que foi porque ela amava Spartacus e tudo o que ele representava, então queria que um dia o filho desse continuidade ao trabalho do pai. A marca a lembraria
disso e provaria a identidade do filho para os seguidores de Spartacus.
Lupus franziu a testa. De repente, percebeu que já tinha visto aquela marca recentemente.
- Eu conheço essa marca! Eu já a vi com meus próprios olhos.
- Se os relatos são verdadeiros, então imagino que deva ter visto sim. - Brixus sorriu. - E agora que já expliquei sobre o garoto que carrega a marca, você saberá
quem ele é.
Lupus ficou um pouco tonto quando a revelação o acertou como um golpe de martelo. Ele soltou um suspiro de espanto e sussurrou:
- Marcus...
- Sim. Marcus. Sei que ele está com Caesar. Precisamos encontrá-lo e trazê-lo até nós para que ele cumpra seu destino. Depois que estivermos com ele, o mundo verá
uma revolta diferente de todas as outras. O sangue romano vai escorrer como um rio, e os escravos serão livres.
Houve uma rajada repentina de vento frio ao entrar um homem alto na cabana, afastando a cortina de couro. Com o brilho inconstante das chamas, dava para ver que
o homem estava com o peito ofegante, e suas botas, calça e manto tinham manchas de lama. Ele atravessou a cabana e curvou a cabeça para cumprimentar Brixus.
- O que foi, Commius? - perguntou Brixus. - Você só devia retornar dos ataques no fim do mês.
- Eu sei, mas tenho notícias de Caesar e seu exército.
Mandracus inclinou-se para a frente com uma expressão animada.
- Desembuche!
Commius assentiu com a cabeça e inspirou profunda e calmamente antes de prosseguir:
- Nós incendiamos uma vila perto de Módena e estávamos seguindo viagem quando vimos uma enorme tropa de soldados se aproximando pela estrada, vindo de Rimini. Nós
os seguimos até a cidade e capturamos um prisioneiro naquela noite, perto dos portões, e o levamos para nosso acampamento. Não demorou para ele contar tudo. Caesar
deixou a maior parte dos homens nos quartéis de inverno. Ele levou no máximo dez mil homens para nos enfrentar.
- Dez mil. - Mandracus chiou entre os dentes. - Ainda assim é gente demais para enfrentarmos.
- Espere - interveio Commius. - Ele dividiu a força em duas. Caesar e mais cinco mil homens estão em Módena. Eles estão marchando para as montanhas agora, nos procurando.
- Cinco mil? - Brixus coçou o queixo pensativamente. - Pelos deuses, que oportunidade é essa que ele nos deu! Arrogância típica desse povo. Ele acha que não passamos
de uma ralé pronta para ser massacrada por uma pequena força de legionários condecorados. Bem, nós vamos castigá-lo por ter cometido esse erro, Mandracus. Está na
hora de colocar o nosso plano em ação. Vamos deixar Caesar marchar para dentro da nossa armadilha. Daqui a alguns dias, teremos Marcus nos liderando e nos levando
para a batalha, e Caesar será destruído e preso. Ou, melhor ainda, será morto.
15
- Eles fizeram um trabalho bem meticuloso - disse Festus baixinho enquanto empurrava o toco enegrecido de um poste de madeira. Ele deu um passo para trás, pôs as
mãos nos quadris e examinou a cena ao redor enquanto Marcus descia do cavalo e prendia as rédeas no aro de ferro que sobrara do portão principal da vila. O garoto
se juntou a Festus. Diante deles havia os resquícios das construções e jardins do que costumava ser uma enorme casa de campo de um romano rico. Agora não havia quase
nada da altura de um homem - apenas pilhas de materiais de alvenaria e telhas e pedaços de madeira chamuscados. Ainda havia fumaça subindo no ar, juntando-se à neblina
que cobria o sol. Soldados abriam caminho no meio dos restos, procurando sinais de sobreviventes ou objetos valiosos que pudessem ser salvos das ruínas. Marcus inspirou
e enrugou o nariz ao sentir o fedor acre de queimado.
- Não estou vendo nenhum corpo - murmurou ele.
- Ainda não. Mas encontraremos alguns - respondeu Festus sombriamente. - Eles devem ter chegado de surpresa, libertado todos os escravos, pegado tudo de valor que
desse para carregar e então incendiaram tudo. O administrador da vila e os guardas devem estar mortos. Os corpos deles vão estar em algum lugar naquela parte. Não
que tenha sobrado muito deles depois do incêndio.
Houve um instante de silêncio antes de Marcus falar novamente:
- Estamos a uns quinze quilômetros de Módena. Os rebeldes que fizeram isso estavam se arriscando bastante ao se distanciar tanto das montanhas.
- Ou então eles estão ficando mais confiantes. Se for mesmo isso, Caesar devia se preocupar. Pelo jeito Brixus e seus homens não estão mais com medo das guarnições
locais. Se o plano de Caesar fracassar, apenas as cidades maiores terão proteção suficiente contra esses ataques.
Marcus olhou para os restos do portão atrás de si. Caesar estava fazendo um relato verbal do ataque para um de seus oficiais antes de enviá-lo para Roma. Ele demoraria
vários dias para chegar à capital, onde um senador seria informado sobre a destruição de sua propriedade. No entanto, haveria também outras consequências. O incêndio
da vila daria aos inimigos de Caesar mais uma desculpa para atacá-lo no Senado. Marcus já conseguia imaginar a cena, com Cato levantando-se para condenar Caesar.
Se Caesar não era capaz de lidar com uma gangue de escravos rebeldes, que chance ele teria de dominar os gauleses na fronteira norte do Império? Era melhor chamar
o general incompetente de volta e enviar um substituto mais adequado, argumentaria Cato. Enquanto isso, Crassus ficaria sentado com seu jeito convencido e desfrutaria
os danos causados à reputação de seu rival.
- O que acha que ele vai fazer agora? - perguntou Marcus. - Pedir para enviarem mais homens?
- Não. Ele vai se ater ao plano. Isso não muda nada. Se ele chamar reforços, vai ser o mesmo que admitir que cometeu um erro. Você sabe como ele é. Ele só vai admitir
um erro se não houver opção.
Ouviu-se o bater de cascos, e Marcus virou-se para avistar o oficial galopando para a junção onde a Via Flamínia se dividia na direção de Roma.
Caesar levou a mão em concha para perto da boca e chamou:
- Atenção, tropa! Nós vamos partir!
Marcus soltou o cavalo e subiu na sela novamente. Ele esperou Festus, e os dois cavalgaram juntos até a estrada que passava pelo portão. Atrás deles, os centuriões
e optios gritavam para que os homens abandonassem a busca e se juntassem à tropa. Imediatamente, todos os homens voltaram para suas posições. Caesar acenou o braço
para a frente, e a cavalaria guiou o grupo pela estrada acima pelos sopés dos Apeninos. Um esquadrão da cavalaria distanciou-se um pouco à frente para inspecionar
e proteger contra emboscadas. Atrás deles estava o general, seus oficiais e guarda-costas, e depois a infantaria, caminhando penosamente de quatro em quatro e carregando
as cangas em cima do tecido acolchoado que cobria seus ombros. Depois da infantaria vinha o pequeno comboio de bagagens, carregando suprimentos de grãos para alguns
dias e as barracas dos soldados, que ofereceriam um pouco mais de proteção contra as temperaturas gélidas das montanhas. Junto deles sacolejava o comboio de Decimus,
ele próprio cavalgando ao lado. No fim da tropa estava a coorte de legionários que servia como retaguarda.
Enquanto a tropa saía dos restos chamuscados da vila, a sensação de mau presságio de Marcus aumentou. Ele começara a duvidar da sensatez do plano de Caesar. Sabendo
pouco a respeito do poder do inimigo, não fazia sentido começar com uma força modesta e depois dividi-la.
A verdade sobre a identidade de seu pai também era outro assunto que o perturbava. Parecia haver uma pequena voz o incentivando o tempo inteiro a aceitar o desafio
de viver de forma a honrar o seu pai, Spartacus. A mesma voz o lembrava constantemente dos males da escravidão e do dever de todos que sabiam dessa injustiça: o
dever de se revoltar e enfrentar os escravizadores. Ou seja, lutar contra o próprio Império Romano e aqueles que o serviam. Especialmente contra homens como Caesar.
No entanto, Marcus sabia que a luta não era tão simples assim. Ele se lembrou das histórias que Titus lhe contava quando era pequeno. Titus lutara contra os gauleses,
párticos e outros bárbaros, e as descrições vívidas das atrocidades que eles cometiam congelavam o sangue de Marcus. Aquilo também o convencera de que havia povos
piores que o romano. Precisava existir um meio-termo entre as tradições de Roma e aqueles que queriam acabar com a escravidão. Seriam apenas esperanças vãs de um
jovem? Mas lá estava ele, cavalgando ao lado de homens marchando para encontrar e matar quem era contra a escravidão. Parte de Marcus achava que ele estava do lado
errado. Que devia se arriscar e fugir para se juntar a Brixus e seus homens. Depois se lembrou de sua mãe. A melhor chance de ela sobreviver dependia de Caesar ajudar
Marcus a encontrá-la e libertá-la. Com uma sensação pesada no coração, Marcus percebeu que estava encurralado. Precisava ficar ao lado de Caesar e servir ao general
romano até sua mãe ficar em segurança. Depois, finalmente decidiria o próprio futuro.
A tropa seguiu na direção das montanhas, e a estrada transformou-se em um caminho estreito com florestas de pinheiros dos dois lados, cercado por névoas e nuvens.
O céu cinza escurecia constantemente, e chovia com frequência. Marcus encurvou-se em sua sela e ficou imaginando que estava sentado na frente de uma lareira na casa
de Portia em Rimini, após a campanha terminar. Lá, com Festus e Caesar, ele contaria para Portia suas experiências e talvez ela lançasse um olhar secreto para ele.
Tão rápido quanto o pensamento surgiu, Marcus o afastou da cabeça. Ele não podia nem se permitir pensar em Portia daquela maneira. Ela nunca poderia ser mais do
que sua amiga, e mesmo assim apenas em segredo, às escondidas daqueles que ficariam horrorizados com a ideia de uma amizade entre os dois.
A chuva deu lugar à neve e ao granizo, e a tropa passou pelos restos de mais algumas outras pequenas vilas atacadas pelos rebeldes. Apenas as ruínas restavam, e
Marcus sentiu sua raiva dos homens ao seu redor crescer. Quando chegasse a hora de lutar, eles não teriam nenhuma misericórdia.
No fim do primeiro dia, a tropa chegou a uma cidadezinha no topo de um despenhadeiro acima de um rio. Enquanto os homens armavam suas barracas no terreno aberto
fora dos muros da cidade, Caesar e seu grupo encontraram acomodações na casa de um criador de mulas abastado. Com um jeito abatido, Publius Flavius contou a seus
hóspedes sobre os constantes ataques às fazendas e vilas na região. Um pastor tinha levado seu rebanho para a cidade no dia anterior, alegando ter visto um grupo
de rebeldes - cerca de cem deles, a pé - indo para uma vila em um vale a menos de quinze quilômetros de distância. Caesar ordenou que Marcus anotasse os detalhes
enquanto o escutava pacientemente. Em seguida, ele assegurou Flavius de que a ameaça logo deixaria de existir.
Na manhã seguinte, a temperatura diminuiu e a neve começou a cair, cobrindo as telhas dos tetos da cidade e espalhando-se pelo caminho que daria mais no interior
das montanhas. Caesar inspecionou a passagem com uma expressão de frustração antes de se virar e dar ordens para seus seguidores mais próximos:
- Vamos seguir em frente com a cavalaria. O restante da tropa pode fazer o máximo que puder para nos acompanhar. Quero alcançar os escravos que o pastor avistou.
Se os capturarmos, eles poderão nos dar informações úteis sobre Brixus. Com um pouco de sorte, eles talvez até saibam onde ele está.
Festus estufou as bochechas e limpou a garganta.
- Acha isso sensato, amo?
- Sensato? - perguntou Caesar com a voz neutra, mas Marcus viu um brilho perigoso em seus olhos, o prelúdio de um de seus ataques de raiva. - Por que não seria sensato,
Festus?
- Amo, isso significaria dividir ainda mais a força.
- Meus homens a cavalo são mais do que o suficiente para enfrentar uma centena de rebeldes. Além disso, a infantaria e os comboios estão impedindo um progresso mais
rápido. Se ficarmos juntos, o inimigo vai escapar. Não vou deixar isso acontecer. Estou decidido. Dê as ordens para os comandantes das coortes. Assim que estiver
pronta, a cavalaria vai partir.
Festus curvou a cabeça.
- Sim, amo.
Enquanto o líder da guarda pessoal de Caesar afastava-se para dar as ordens, Caesar encontrou o olhar de Marcus.
- Começou a perseguição, não é, Marcus?
Marcus fez sim com a cabeça, apesar das dúvidas. Ele concordava com Festus. Caesar estava fazendo algo arriscado. No entanto, ficava claro que ele não mudaria de
ideia.
- Se Fortuna nos beneficiar - prosseguiu Caesar, esfregando as mãos para aquecê-las -, nós descobriremos onde Brixus está se escondendo antes do fim do dia. Pense
nisso. Encontraremos e destruiremos Brixus e sua laia, e isso vai quebrar o moral de seus seguidores. Os escravos vão aprender uma lição: ninguém desafia Roma. Depois
eu vou ficar livre para me concentrar na Gália.
- Sim, amo. E eu poderei procurar minha mãe.
Caesar lançou um olhar irritado para o garoto.
- Claro. Achou que eu tinha esquecido?
Marcus não se atreveu a responder, pois já tinha dado a mensagem que queria. Caesar virou-se e chamou um criado, pedindo que ele trouxesse seu cavalo.
* * *
A neve continuou a cair durante a manhã enquanto os cavaleiros seguiam pela trilha, muitas vezes em fila única para melhor atravessar os desvios no caminho. Dos
dois lados, os galhos dos pinheiros estavam pesados e o barulho dos cascos dos cavalos era abafado por eles. Então, ao meio-dia, logo após a neve parar de cair,
a trilha começou a descer para dentro de um vale, e o grupo escutou um grito de um dos homens inspecionando a área adiante. Marcus e os outros olharam para cima,
esperando ver algo. Um cavaleiro voltava cavalgando pela estrada. Ele puxou as rédeas abruptamente e a neve se espalhou no ar quando ele estendeu o braço.
- Tem um incêndio mais à frente, senhor!
- Um incêndio? - Caesar agarrou suas rédeas com firmeza. - Então talvez nós os encontramos! Vamos!
Ele incitou o cavalo a avançar e o resto da tropa acompanhou-o. Os cavalos retumbaram pela trilha, soltando vapor pelas narinas dilatadas. A mente de Marcus esqueceu-se
completamente do frio, e o garoto forçou o cavalo a acompanhar Caesar e Festus. O restante da guarda pessoal e dos oficiais galopava mais atrás, seguidos da cavalaria.
Mais à frente, os outros soldados aguardavam em uma pequena colina com uma boa vista do vale. À medida que se aproximavam do pico, Marcus percebeu que havia árvores
dos dois lados, com um terreno aberto logo atrás, abrigado entre as montanhas. Cercas velhas indicavam que a terra tinha sido usada como pasto havia muitos anos.
Um riacho serpenteava pelo vale e desembocava em uma lagoa, e, logo depois, ao lado de um moinho, havia várias construções que faziam parte de uma fazenda, cercadas
por uma paliçada de madeira. Chamas elevavam-se das janelas na construção maior e uma fumaça negra subia no meio do ar parado de inverno. Marcus conseguia ver o
movimento de silhuetas contra a neve: eram pessoas carregando os espólios, empilhando-os em vários carrinhos de mão e em uma carroça atrelada a mulas bem perto da
vila.
Marcus galopou colina abaixo em direção à estrada plana e se aproximou da fazenda, a menos de um quilômetro de distância. O vento rugia em seus ouvidos, e seu coração
estava disparado de entusiasmo. Bem na sua frente, os cavalos de Festus e Caesar chutavam a neve, fazendo com que fosse difícil enxergar mais adiante. Ele impulsionou
seu cavalo para a frente, levando-o para o lado, e então avistou pessoas se movimentando a distância ao perceberem o ataque dos cavaleiros.
- Não deixem eles escaparem! - gritou Caesar. - Quero prisioneiros!
Mais à frente, os homens que tinham atacado a vila corriam pelo terreno aberto para se protegerem na segurança da floresta, abandonando o que tinham saqueado. Mesmo
enquanto eles corriam pelos campos cobertos de neve, Marcus percebeu que a maioria escaparia muito antes de a cavalaria romana alcançá-los. Uma vez escondidos nas
profundezas da floresta, onde a neve não tinha penetrado, não haveria nenhuma pegada para se seguir e eles escapariam. Marcus ficou aliviado com aquilo.
O último rebelde já tinha desaparecido quando Caesar puxou as rédeas ferozmente para que o cavalo parasse na parte externa da vila. Atrás dele, o restante de seus
homens o alcançava, e o ar encheu-se com bufadas de cavalos e tinir de freios.
- Decurião! - Caesar apontou na direção do primeiro oficial que chegou. - Leve seu esquadrão e vá atrás deles. A pé, se for necessário.
- Sim, senhor! - O decurião fez uma saudação e gritou para seus homens o seguirem e galopou na direção da floresta que se estendia pela beirada do vale. Caesar virou-se
rapidamente para olhar a vila, desmontou do cavalo e entregou as rédeas para um dos guarda-costas. Festus e Marcus fizeram o mesmo e se juntaram a ele no interior
da propriedade.
O fogo tinha se espalhado pela construção principal, e as chamas já subiam pelos ares entre as telhas do teto. Uma grande parte do telhado cedeu e caiu no fogo,
causando uma explosão de centelhas que subiu bem alto no ar. Uma das construções adjacentes já tinha sido atingida pelo fogo se alastrando.
Caesar ergueu o braço para proteger o rosto do calor.
- Procurem sobreviventes! Vou procurar deste lado da vila. Festus, leve Marcus e procurem do outro lado!
Festus levou Marcus para a lateral da construção, onde havia um barracão cujas portas duplas estavam abertas. Festus lançava-se para a frente e Marcus tentava acompanhá-lo.
Ao chegarem à extremidade do barracão, um homem magro de cabelos grisalhos apareceu. Ele brandia uma clava em um braço e segurava um pequeno baú debaixo do outro.
Com uma velocidade impressionante, ele ergueu a clava e golpeou a cabeça de Festus. O golpe enviesado fez Festus cair na neve aos pés dele, gemendo. Imediatamente,
o homem ergueu a clava mais uma vez, pronto para atingir a cabeça dele.
- Não! - gritou Marcus, lançando-se para a frente. Ele agarrou o punho ossudo do homem e os dois cambalearam para trás, caindo na terra dentro do barracão. O impacto
deixou o homem sem ar, mas Marcus levantou-se e ficou pronto para atacar antes que o homem se erguesse. Marcus chutou um lado do corpo dele e deu um murro na parte
de trás de sua cabeça. Erguendo a mão para se proteger, o homem soltou a clava, Marcus a pegou e logo depois deu um golpe rápido e intenso em seus ombros. Com um
gemido estrondoso, o homem foi derrubado. Marcus parou ao lado dele, segurando firme a clava. Após ter certeza de que o homem não tinha mais forças para lutar, agachou-se
ao lado de Festus e balançou o ombro dele.
- Você está bem?
- Estou vendo tudo em dobro e parece que caiu uma casa em cima da minha cabeça - grunhiu Festus. - Qual a próxima pergunta imbecil?
Marcus sorriu e virou-se para o outro homem. Magro e forte, o rebelde parecia ter no mínimo 50 anos. Marcus olhou para ele desconfiado.
- Fique parado aí no chão.
O rebelde continuou deitado onde tinha caído, ofegante e respirando com dificuldade. Lentamente, Festus levantou-se com dificuldade e se inclinou para a frente,
apoiando as mãos nos joelhos enquanto se recuperava. Marcus virou-se ao escutar o barulho de passos na neve e viu o sorriso sombrio de Caesar, que parecia satisfeito
ao se aproximar do rebelde.
- Você pegou um deles. Muito bem! - Caesar parou ao lado do homem e ficou encarando-o. - Parece que esse aqui está nas últimas. Se isso é o melhor que Brixus tem
para oferecer, então nem precisamos nos preocupar. A batalha, quando acontecer, já está praticamente vencida.
Marcus prestou atenção no manto esfarrapado do rebelde e em suas botas se despedaçando. Sujeira cobria sua pele, e ele respirava com dificuldade enquanto continuava
deitado. Se Festus não tivesse sido pego de surpresa, ele teria acabado com aquele homem em um instante. Por que Brixus ao menos pensaria em mandar um homem naquelas
condições para um ataque? Não fazia sentido.
- E se isso não for o melhor, senhor? - perguntou ele. - Os outros que estavam aqui saíram correndo bem rapidamente.
Caesar acenou desdenhosamente.
- Não importa. Temos esse aqui para interrogar. Festus, leve-o para trás do barracão e o interrogue. Quero saber onde Brixus está se escondendo e quantos homens
ele tem.
Festus endireitou a postura e aproximou-se do rebelde. Ele deu um puxão no homem frágil, fazendo-o se levantar. Em seguida, sacando a adaga, ele o arrastou até dar
a volta no barracão e os dois sumirem. Quando o restante dos oficiais de Caesar chegou, os primeiros gritos de terror e dor espalharam-se pelo ar, sendo apenas um
pouco abafados pelo rugido das chamas que consumiam a construção principal a alguns metros de distância. O tribuno Quintus apontou a cabeça na direção do muro da
vila, atrás da construção em chamas.
- Um dos decuriões encontrou corpos ali, senhor. Pelo jeito eram o dono da vila e sua família e os supervisores da propriedade. Cortaram as gargantas deles.
Marcus viu a expressão abalada no rosto do tribuno enquanto Caesar virava-se para ele.
- É uma pena.
Quintus fez sim com a cabeça e hesitou por um instante antes de falar novamente:
- Devo ordenar um funeral ou um enterro, senhor?
- Não temos tempo para isso. Depois que Festus conseguir as informações de que preciso, nós vamos embora.
- E se o rebelde não disser nada, amo? - perguntou Marcus. - E se ele não souber nada útil?
- Alguma coisa ele vai saber. E confie em mim, ele vai falar. Festus nunca me desapontou com essas coisas.
Antes que Marcus pudesse responder, o grupo escutou um berro lancinante atrás do barracão, e depois outro, seguido por um balbuciar apavorado de súplica antes de
um novo grito provocar um calafrio e atravessar as costas de Marcus.
Enquanto a tortura continuava, Caesar mandou alguns homens procurarem comida e vinho pela propriedade. Ao voltarem com alguns bancos, ele e seus oficiais se sentaram
e devoraram a refeição improvisada. Enquanto Caesar tentava deixar o clima mais leve, falando sobre a campanha na Gália, Marcus ficou parado a uma pequena distância,
com uma sensação de repugnância cada vez maior. Não conseguia ignorar os gritos do rebelde. No fim das contas, terminou se afastando, ficando perto da construção
incendiada cujas chamas eram tão barulhentas que quase abafavam os sons da tortura.
Após um tempo, o rebelde ficou em silêncio, e um instante depois Festus apareceu, limpando o sangue da adaga com um pedaço de pano rasgado do manto do rebelde. Ao
vê-lo, Marcus afastou-se do incêndio para se juntar novamente a Caesar e seus oficiais.
- E então? - instou Caesar. - O que conseguiu arrancar do desgraçado?
- Ele não sabia, ou não queria dizer, onde fica o acampamento de Brixus, senhor. Ele fazia parte de um bando separado que recebeu ordens de Brixus para saquear esta
vila.
- Droga! Somente isso?
- Não, senhor. - Festus guardou a adaga. - Tem mais. Depois desse ataque, Polonius e os outros vão se juntar a Brixus em uma reunião de todos os bandos dele. Eles
vão se juntar para atacar a cidade de Sion, no final do próximo vale. Brixus e dois mil de seus homens atacarão amanhã, ao amanhecer.
Um sorriso frio surgiu nos lábios de Caesar.
- Qual a distância até a cidade?
Um dos tribunos tossiu.
- Não mais que quinze quilômetros, senhor.
Caesar virou-se para o oficial.
- E como você sabe disso?
- Tenho um tio que mora lá, senhor. Já visitei Sion várias vezes.
- Excelente. Como é o terreno ao redor da cidade?
O tribuno pensou.
- Ela fica no fim de um vale, com montanhas em três lados e um rio na frente da cidade. Se Brixus quer atacar ao amanhecer, ele provavelmente vai se esconder nas
árvores ao lado do rio, de frente para a cidade.
- Estão nas nossas mãos! - Caesar esmurrou a palma da mão. - Basta agirmos imediatamente. Não dá para derrotá-los somente com a cavalaria. Precisamos da infantaria.
Eles precisam marchar durante a noite se queremos encurralar Brixus contra o rio. - Ele se virou para Quintus. - Vá a cavalo até a tropa. Deixe uma coorte protegendo
o comboio de bagagens. O restante deve deixar as coisas e marchar para Sion. Vou aguardá-los a alguns quilômetros da cidade. Após a infantaria chegar, nós atacaremos
Brixus e sua laia no acampamento deles. Tudo acabará antes mesmo de o dia começar.
- Está falando em atacar enquanto estiver escuro, senhor? - perguntou Quintus.
- É a melhor maneira de surpreender o inimigo - respondeu Caesar rispidamente. - Está questionando minhas ordens?
- Claro que não, senhor. Mas será que uma coorte é o suficiente para proteger o comboio de bagagens?
- Proteger o comboio do quê? Você escutou Festus. Os rebeldes estão na nossa frente.
- Sim, senhor. - Quintus fez uma pausa. - Mas é que todos os nossos mantimentos, as tendas e a bagagem do resto da tropa estão no comboio de bagagens. Se alguma
coisa acontecer com o comboio, os homens ficarão sem comida e sem abrigo.
- O comboio de bagagens com certeza vai nos alcançar antes do fim do dia - respondeu Caesar. - Já me decidi. Vá dar as ordens.
Uma dúvida incômoda surgiu na mente de Marcus. Havia algo de errado naquilo. Era tudo fácil demais. Ele deu um passo para a frente, no meio dos oficiais, para que
Caesar o visse nitidamente.
- Senhor, o tribuno tem razão. Seria perigoso deixar o comboio de bagagens correndo risco. Além disso, por que Brixus se deixaria cair em uma armadilha?
- Ele não sabe da armadilha - disparou Caesar. - Além disso, ele não passa de um escravo. Um bandido. Ele só quer saber de saque e vingança. Ele ficou confiante
demais. O sucesso o deixou arrogante e agora ele vai pagar o preço por isso.
- Mas, senhor...
- Já basta, Marcus! Você não passa de um garoto. Segure sua língua. Está se atrevendo a desafiar a minha decisão?
- O garoto tem razão, senhor - interrompeu Quintus. - Não podemos arriscar deixar nossos homens sem comida e abrigo caso alguma emergência aconteça com o comboio
de bagagens.
A expressão de Caesar endureceu.
- Já que está tão preocupado com isso, tribuno, você irá assumir o comando das bagagens. Não vai ter lugar para você na batalha amanhã. Não vai compartilhar a nossa
vitória. Não quero homens que temem pela própria segurança ao meu lado em uma luta. - Ele olhou para Marcus. - Nem garotos que partilham do mesmo medo. Vocês dois
vão voltar para a tropa imediatamente. E, após transmitirem as minhas ordens, fiquem lá.
Quintus abriu a boca para protestar, mas desistiu e curvou a cabeça antes de se voltar para os cavalos segurados por um dos cavaleiros. Marcus continuou parado,
consumido pela vergonha de ter sido acusado de covardia por Caesar.
- O que está esperando, garoto? - Caesar acenou. - Saia da minha frente.
Marcus assentiu com a cabeça, pressionando os lábios. Ele olhou de relance para Festus, que deu de ombros sutilmente, e virou-se para atravessar a neve e alcançar
Quintus, seu coração afogado em pressentimentos ruins.
16
Com uma expressão de ansiedade, o tribuno Quintus ficou observando a retaguarda da tropa de infantaria marchando na escuridão. Ao seu redor, os homens da tropa pegavam
as cangas dos camaradas e as colocavam nas carroças e nos carrinhos de suprimentos. Até a carroça de Decimus estava a serviço da tropa, e os homens dele grunhiam
ao ajudar os legionários. Marcus pusera o capuz na cabeça no instante em que se juntou ao comboio de bagagens e fazia o possível para ficar longe de Decimus enquanto
seguia o tribuno.
Quintus era cinco ou seis anos mais velho. As bochechas dele tinham apenas um fraco indício de barba a fazer e era igual aos jovens que se viam nas ruas de Roma.
No entanto, o rapaz estava no comando de quinhentos soldados e dos duzentos arreeiros do comboio de bagagens. Marcus observava Quintus, que roía a unha do dedão.
Outra rajada de neve soprava dos picos das montanhas. Com impressionante rapidez, os flocos rodopiantes cercaram a tropa que partia, enchendo o ar com um gemido
pesaroso e um frágil silvo enquanto o vento perturbava os topos dos abetos do outro lado da trilha.
- Você tinha razão em alertá-lo - disse Marcus baixinho.
Quintus virou-se para ele e franziu a testa.
- Não preciso que um ex-escravo me diga isso.
Marcus controlou sua raiva.
- Peço desculpas se você acha que não cabe a mim falar disso. Só achei que devia saber.
Quintus fulminou-o com o olhar por um instante.
- Quem em Hades você acha que é? Você não passa de um garoto. Sei que treinou como gladiador e até ganhou uma ou duas lutas, mas isso não o torna especialista em
nada. Por que Caesar sempre está com você por perto vai além da minha compreensão.
- Não estou perto dele agora - salientou Marcus.
- Mas ainda assim ele prestou atenção em você, e ele tem estima por você. Assim como a sobrinha dele. Daria até para pensar que você é o irmão mais novo de Portia
pela maneira como ela fala de você - disse ele amargamente.
Marcus franziu a testa. Então ela falava sobre ele. Até mesmo para o homem que se tornou seu marido. Ele sentiu um calor no coração. Um calor e a esperança por algo
impossível. Em seguida, afastou o pensamento da mente.
- Senhor, quanto mais cedo seguirmos a tropa principal, melhor.
- Eu sei! - reclamou Quintus e puxou as rédeas bruscamente ao virar o cavalo, trotando pela trilha para gritar com os homens: - Carreguem as bagagens nas carroças!
Centuriões! Mandem seus homens se apressarem. Quero que os comboios partam o mais rápido possível!
Marcus observou-o por um instante, depois olhou para o céu. Flocos grossos de neve desciam em espiral, caindo das nuvens escuras e acinzentadas. Não havia sinal
de que a neve pararia. A trilha pela qual a tropa marchava já estava coberta com camadas novas, e Marcus percebeu que a probabilidade de eles alcançarem Caesar e
a tropa principal no dia seguinte era pequena.
Assim que os homens entraram em formação, dois centuriões marcharam para a frente das carroças, com mais dois na retaguarda. O restante dos legionários estava ao
lado dos veículos, pronto para limpar a neve da trilha ou para encostar os ombros nas rodas e empurrar carrinhos e carroças para a frente. Quintus estava a cavalo
na frente da formação, com o centurião sênior da coorte ao seu lado. Marcus ficou um pouco atrás para não atrapalhar o tribuno. Não queria contrariar ainda mais
o marido de Portia.
Pela estimativa de Marcus, o comboio de bagagens levou duas horas para chegar à colina de onde a vila tinha sido avistada no dia anterior. Agora a tempestade de
neve bloqueava a vista e era impossível distinguir as construções. A água na beira do lago estava congelada e a neve que cobria o gelo deixava visível apenas o centro
do lago.
À medida que se aproximavam da vila, um brilho fraco atravessou a neve caindo e deixou à mostra algumas das construções que ainda pegavam fogo. Um pouco mais à frente,
Marcus viu a silhueta escura do moinho perto do rio e depois a paliçada de madeira que cercava a vila, com os contornos bem definidos das estacas afiadas contra
as luzes do fogo do lado de dentro.
- Nós devemos parar aqui um instante para os homens e as mulas descansarem - aconselhou o centurião que marchava ao lado de Quintus. - O caminho está difícil, e
eles estão cansados.
- Se pararmos agora, eles não vão querer continuar - refletiu Quintus. - É melhor prosseguirmos.
- Se fizermos isso, senhor, corremos o risco de perder homens e animais no caminho. E quaisquer soldados que deixarmos para trás não vão sobreviver ao frio da noite
sem abrigo.
- Problema deles. Recebi ordens para levar as bagagens até a tropa principal o mais rápido possível.
O centurião soltou um suspiro de frustração e estava prestes a falar novamente quando Marcus escutou um ruído sutil à esquerda, saindo do meio das árvores. Parecia
uma voz. Ele colocou o capuz para trás, a fim de ouvir melhor, e inclinou a cabeça para o lado e se concentrou.
- Vocês escutaram isso? - interrompeu-os Marcus.
- O quê? - Quintus virou-se para ele, com o vento fazendo a crista do seu capacete esvoaçar. - Escutamos o quê?
- Silêncio! - exclamou Marcus. - Escutem! É o barulho de novo.
Eles escutaram mais um grito no meio das árvores, abafado e impossível de se distinguir, mas definitivamente era uma voz.
- Pode ser um animal selvagem - sugeriu o centurião. - Com o vento, é fácil confundir o barulho deles.
Marcus balançou a cabeça.
- Tem alguém lá, tenho certeza.
Quintus riu.
- Está deixando sua imaginação falar mais alto, garoto. Devia ter ficado na casa de Caesar em Roma, lá que é o seu lugar.
Antes que Marcus pudesse responder, o som de uma corneta cortou o gemido do vento. Três soadas distintas, uma pausa e mais soadas. Ao longo da trilha, homens e veículos
pararam bruscamente. Os soldados viraram-se com os rostos ansiosos na direção dos sons.
- O que foi isso? - perguntou Quintus.
A corneta soou uma terceira vez e gritos surgiram no meio da floresta. Marcus ficou encarando as sombras entre as árvores a menos de trezentos metros. Os gritos
foram ficando mais altos, e ele avistou movimento. Uma primeira silhueta apareceu para se lançar pelo campo nevado, aproximando-se da trilha.
- Emboscada! - exclamou o centurião, virando-se para seus homens e colocando a mão encurvada em volta da boca. - Formar uma linha à esquerda!
Quintus fitava boquiaberto os homens que se aproximavam, e então fechou a mandíbula ao sacar a espada. Olhando nos olhos de Marcus, ele acenou com a cabeça sombriamente.
- Pelo jeito nós tínhamos razão quanto ao perigo disso.
- Talvez - respondeu Marcus por entre os dentes cerrados. - Mas não podemos fazer mais nada.
Ele estendeu a mão até o cabo da espada e a tirou da cintura com um ruído áspero.
- Fique por perto! - ordenou Quintus. - Se você é metade do gladiador que dizem, quero você do meu lado.
O tribuno girou o cavalo e o fez retornar a galope pela trilha, passando pelos homens das duas primeiras centúrias, que, com as cangas soltas, conferiam as alças
da armadura apressadamente antes de erguer os escudos para formar uma linha voltada para os agressores. Inclinando-se para a frente na sela, Marcus olhou para a
direita e viu que a vastidão branca na frente da floresta estava cheia de homens. Milhares avançavam com a neve à altura de seus tornozelos.
Quintus puxou as rédeas ao alcançar as carroças, gritando para que os legionários se afastassem e o deixassem passar. Alguns dos arreeiros já tinham desertado de
suas posições e corriam na direção do abrigo da paliçada, enquanto outros disparavam cegamente na direção do rio. A água agitava-se entre as margens, e Marcus sabia
que qualquer um que tentasse atravessar a corrente seria levado. Eles não tinham como escapar da armadilha. Precisavam se juntar e se manter firmes o quanto pudessem.
Quintus assumiu sua posição ao lado da bandeira da coorte, perto da carroça onde Decimus e seus homens aguardavam com as espadas em punho, e Marcus fez seu cavalo
acompanhar o tribuno. Ele ficou encarando a onda de homens que se aproximava rapidamente, com as bocas abertas soltando um rugido triunfante ensurdecedor. A maioria
estava bem preparada, com escudos, capacetes e armas roubadas de fazendas, vilas e pequenas cidades que tinham atacado. Bem diferentes da aparência desgastada de
Polonius, o rebelde torturado por Festus.
Naquele instante, Marcus compreendeu tudo. A armadilha inteligente que Brixus preparara para Caesar aproveitava o desprezo que o romano sentia pelos escravos rebeldes
e seu desejo de acabar logo a campanha. Polonius tinha servido para enganá-los, fora deixado para trás de propósito para ser capturado e dar informações que fizessem
Caesar se separar de seu comboio de bagagens. Isso lhe custou a vida, e Marcus não pôde deixar de ficar impressionado com a coragem do homem que assumiu tal papel,
sacrificando-se para seus camaradas terem uma vitória sobre os romanos. Ele ficou imaginando se alguém do exército de Caesar teria uma coragem tão grande assim.
Em seguida, o tempo para pensar acabou: o inimigo os tinha alcançado.
Na frente do grupo, homens com atiradeiras e arcos pararam para lançar seus projéteis antes de atacar. Marcus virou-se ao escutar um estalo e viu um dos legionários
cair, com o rosto completamente ensanguentado. Ele despencou na neve e se debateu por um momento antes de perder a consciência. Mais flechas e objetos colidiram
com os escudos ovais e pesados erguidos pelos legionários. Mulas soltavam zurros estridentes, caindo vítimas do bombardeio, e parte do grupo que as guiava entrou
em pânico e arrastou os veículos para longe. Marcus viu um grupo desviar-se para o lado, abrindo caminho por entre os legionários. Um homem foi derrubado e teve
as pernas esmagadas quando a carroça passou por cima delas. A equipe com as mulas passou a trotar, correndo pelo campo nevado para perto das fileiras de rebeldes.
- Preparem as lanças! - berrou o centurião sênior.
A distância entre os dois lados tinha diminuído e não passava de cinquenta metros. Enquanto aguardavam a ordem do centurião, os legionários ergueram as lanças e
puxaram os braços para trás. Marcus viu o centurião estreitar os olhos, calculando o melhor momento, com a espada apontada para cima. Reluzindo, a lâmina desceu
e ele berrou com a voz mais alta possível:
- Arremessar!
Os cabos escuros das lanças fizeram um arco, cruzando os flocos de neve antes de atingir os homens que se aproximavam da linha romana. Marcus viu vários caírem,
perfurados pelas pontas agudas de ferro. No entanto, os agressores não cederam e foram para cima do muro de escudos da coorte. Os ouvidos de Marcus encheram-se com
os sons de escudos colidindo e arranhando e de lâminas se chocando, além dos grunhidos de homens em batalha. Aquilo era diferente de todas as lutas que já tinha
visto. Pior do que os tumultos das gangues de rua que testemunhara no Fórum em Roma. E mais assustador do que os confrontos de gladiadores dos quais tinha sido obrigado
a participar. As lutas eram um teste de habilidades, com apenas um oponente com quem se duelava até a morte. O que estava acontecendo agora parecia um caos sangrento
de golpes, cortes e esfaqueamentos ao longo da linha de batalha malfeita.
Ao seu lado, o tribuno Quintus ergueu a espada e gritou palavras de incentivo para os homens sob seu comando:
- Fiquem firmes! Empurrem a ralé de escravos para trás!
Então, bem na frente dos dois cavalos, um rebelde de barba preta e selvagem atravessou a linha romana. Com um machado na mão e um broquel na outra, soltou um rugido.
Ele avistou o tribuno romano e investiu, brandindo o machado por cima da cabeça e mirando a lâmina pesada na direção de Quintus. Instintivamente, Marcus puxou com
força as rédeas para que seu cavalo batesse no rebelde e o derrubasse. O machado desceu, passando bem perto da bota do tribuno antes de cair na neve compactada no
chão. Quintus girou na sela e brandiu a espada para baixo, enfiando-a entre os ombros do rebelde. O homem soltou um berro de dor e caiu de cara no chão enquanto
o sangue se espalhava na neve ao redor.
Quintus olhou para Marcus e acenou com a cabeça para agradecer antes de retornar à luta.
Já dava para perceber que os rebeldes eram mais numerosos. As duas extremidades da linha romana estavam sendo forçadas para trás enquanto os legionários tentavam
não ser flanqueados. No entanto, Marcus percebeu que aquilo era inevitável. Um grito intenso ao seu lado fez o garoto perceber um novo perigo, e, ao virar a cabeça,
viu um homem esguio vestindo uma couraça de gladiador correndo em sua direção com uma lança entre as mãos, mirando a ponta bem no seu peito. Ele teve pouco tempo
para reagir e lançou o peso para trás na sela no mesmo instante em que jogou a espada para a frente, atingindo a lança de madeira um pouco abaixo da ponta de ferro.
Ele não teve força suficiente para impedir o golpe e apenas desviou a ponta para o pescoço de seu cavalo. Ela perfurou a pele e a carne, e a ponta ensanguentada
saiu rapidamente do outro lado. O cavalo relinchou apavorado e empinou, arrancando a lança das mãos do rebelde. Marcus segurou as rédeas na mão esquerda com o máximo
de firmeza possível, mas ele já estava se inclinando para trás e sentiu as pernas deslizarem para longe da sela.
Com um grito, ele caiu e soltou as rédeas antes de atingir o chão, o impacto tirando todo o ar de seus pulmões. Ele não tinha tempo de se recuperar, o cavalo se
inclinava e coiceava, jogando neve no rosto de Marcus. Ele rolou para perto do rio e se levantou, ofegante. Dos dois lados, os legionários estavam sendo empurrados
para trás, passando pela linha de carroças e mulas em pânico.
- Protejam o estandarte! - gritou Quintus. Ele virou o cavalo na direção da coroa dourada com fundo vermelho que estava erguida no centro da linha romana, que se
desintegrava. Naquele instante, o cavalo tropeçou e Quintus jogou a perna por cima da sela desesperadamente, saltando para o chão enquanto o cavalo caía para o lado
com a pata quebrada se agitando.
Marcus correu para o lado dele.
- Você está bem, senhor?
Quintus fez sim com a cabeça.
- Temos que salvar o estandarte. Fique comigo.
Eles se juntaram ao pequeno grupo de legionários cercando o estandarte e perceberam que o centurião sênior estava entre eles, lutando contra os rebeldes e gritando
para seus homens entre os golpes que desferia.
- Entrem em formação embaixo do estandarte! Perto de mim!
Alguns conseguiram obedecer à ordem e se aproximaram dos companheiros. No centro, Quintus analisou a luta:
- Estamos perdendo.
Marcus deu uma olhada para a luta que acontecia atrás do círculo de homens à sua volta e viu que o centro da linha tinha se rompido. Alguns legionários jogaram as
armas para o lado e estavam correndo para longe, perseguidos pelos rebeldes, que não demonstravam misericórdia alguma. Dos dois lados, as centúrias formavam nós
desesperados enquanto lutavam até morrerem. Os homens que protegiam o estandarte foram obrigados a ceder lentamente enquanto eram empurrados para longe da trilha,
na direção do pequeno lago.
O centurião abriu caminho até chegar a Quintus.
- Senhor, não podemos deixar o estandarte cair nas mãos do inimigo.
Quintus ficou olhando para trás, pálido, e Marcus percebeu que seus lábios estavam tremendo.
O oficial veterano respirou fundo e falou com o máximo de calma possível:
- Nós perdemos a luta, senhor, mas podemos salvar nossa honra. Não podemos deixar que o estandarte seja tomado. Se alcançarmos o lago, podemos jogá-lo nas profundezas
da água.
Quintus piscou os olhos e assentiu com a cabeça.
- Sim. É o que devemos fazer.
O veterano virou-se e chamou os homens ao seu redor:
- Vamos recuar na direção do lago. Eu dito o ritmo. Um... Dois...
O pequeno grupo afastou-se dos rebeldes. Marcus não parava de escutar o barulho das armas batendo em seus escudos e também via os homens sendo empurrados para trás
pelas espadas curtas das legiões. De vez em quando, uma arma inimiga abria caminho entre os escudos e um legionário soltava um grito ao ser ferido. Alguns continuavam
lutando, mesmo com o sangue escorrendo e caindo na neve revolvida no chão. Outros cambaleavam para trás e caíam, feridos demais para se manterem em formação, e Marcus
via a expressão nos rostos deles ao puxarem o escudo para perto do corpo e agarrar a espada. Ele admirava a determinação deles de lutar até o fim enquanto os companheiros
eram obrigados a deixá-los para trás e tentar chegar até o lago.
Marcus olhou em volta e viu que havia menos de trinta homens protegendo o estandarte. De repente, escutou-se um grito de algum lugar próximo:
- Deixe a gente passar! Deixe a gente passar!
Ele reconheceu facilmente a voz. Um instante depois, Decimus e alguns de seus homens, ofegantes e com espadas ensanguentadas, cambalearam por entre os escudos e
pararam ao lado de Quintus, Marcus e o porta-estandarte. Atrás deles, os soldados se aproximavam rapidamente enquanto os rebeldes continuavam a atacá-los. Era impossível
passar pela barreira de escudos e pontas mortais das espadas dos legionários, e a maioria dos rebeldes se afastava, procurando uma presa mais fácil.
- Estamos quase na beirada do lago - avisou o centurião, esticando o pescoço para olhar por cima dos capacetes de seus camaradas. - Vamos nos manter firmes o máximo
possível enquanto eu me livro do estandarte.
Decimus virou-se para o oficial.
- E depois? Para onde vamos?
- Para onde vamos? - O centurião sorriu sombriamente. - Direto para o Hades.
- O seu plano é esse? - Decimus riu. - Eu não. Eu vou dar o fora daqui. Vou sair nadando.
- Em que água? Você vai congelar antes de chegar ao outro lado. Sua escolha é entre se afogar como um rato ou morrer como um homem, com uma espada na mão.
Decimus balançou a cabeça e correu o olhar pela pequena formação ao seu redor.
- Você está louco.
Então ele avistou Marcus pela primeira vez e o ficou encarando com uma expressão de confusão antes de arregalar os olhos.
- Eu o conheço! Você... você é o fedelho do filho de Titus.
Por um instante, Marcus se esqueceu da batalha ao seu redor. Esqueceu-se da iminência de sua própria morte nas mãos dos rebeldes. Tudo o que viu foi o rosto do homem
que o atormentara e a sua mãe enquanto estavam no curral de escravos, esperando o momento de serem leiloados. Com um grunhido feroz, ele ergueu a espada e a apontou
descontroladamente na direção de Decimus.
- Cuidado, rapaz! - protestou o centurião, enfiando o escudo entre Marcus e Decimus. A lâmina colidiu de maneira inofensiva contra a beirada da armadura. - Ele é
um dos nossos, seu tolo! - retrucou ele. - Olhe o que faz com essa lâmina!
Marcus soltou um grito de frustração ao ver Decimus se afastando, com dois de seus homens bloqueando o caminho de Marcus.
O centurião empurrou Marcus na direção de Quintus.
- Controle esse menino esquentado aí. Ele é mais perigoso para nós do que para os rebeldes.
No entanto, o momento passou e um desespero doloroso tomou conta do coração de Marcus. Se ele e Decimus morressem ali, tudo estaria perdido. Ele morreria sabendo
que sua mãe estava condenada à escravidão, trabalhando até a morte na fazenda de Decimus na Grécia. Ele também morreria sem ter vingado Titus e os outros que foram
assassinados pelos capangas de Decimus.
Ele escutou um estalo e em seguida um palavrão quando as botas de um dos legionários atravessou o gelo.
- Mantenham suas posições! - ordenou o centurião. - É aqui que vamos ficar.
Enquanto seus homens continuavam virados para fora da barreira, o centurião abaixou o escudo até a neve e estendeu o braço para pegar o estandarte. Rangendo os dentes,
ele golpeou o mastro com a espada, cortando a madeira lisa até que ela ficasse frágil o suficiente para ser quebrada por cima de seu joelho. Ele jogou a parte de
baixo do estandarte para o lado e se aproximou da aglomeração de homens na beirada do lago. Grunhindo, lançou o estandarte na direção da água. A coroa dourada e
o tecido vermelho voaram pelos ares e caíram no gelo coberto de neve, deslizando uma pequena distância e parando perto da beirada da água.
- Droga! - rosnou o centurião. Ele cerrou os punhos de frustração e se virou repentinamente para Marcus. - Você chega até lá! Você é pequeno o suficiente para que
o gelo aguente seu peso. Vá até lá. Empurre o estandarte para dentro d'água.
Marcus lançou um rápido olhar pela extensão de neve intacta. Era impossível saber a espessura do gelo.
- Não temos tempo de pensar! - O centurião o agarrou pelos ombros. - Você precisa ir agora antes que eles matem todos nós. Vá!
Marcus assentiu com a cabeça. Se morresse, seria por um bom motivo. Se não podia salvar a mãe ou honrar o verdadeiro pai, ele faria aquilo em homenagem ao antigo
soldado que sempre amara. Faria aquilo por Titus. Guardou a espada e passou por entre os homens parados na beira do lago, pisando com cuidado no gelo. O estandarte
estava a menos de trinta metros de distância, e Marcus caminhou cautelosamente até ele. Sabia que a luta estava chegando ao seu fim sangrento dos dois lados. As
coortes romanas tinham sido destruídas pelo ataque feroz dos rebeldes e só restavam alguns poucos grupos de homens, espalhados pela margem do lago e lutando até
o fim.
Alguns tinham jogado as armas para o lado e tentado se render, mas os rebeldes massacravam os romanos, estivessem eles em pé ou ajoelhados. Alguns poucos legionários
tentavam escapar pelo gelo, mas a camada cedia debaixo deles, fazendo-os se debater na água gélida até não terem mais forças.
Marcus escutou um rangido abafado debaixo das botas e estacou de imediato. O ruído parou e após um instante deu mais alguns passos. Ele escutou mais um rangido,
daquela vez mais alto, e depois um estalo. Parou de novo, com o coração em disparada, e abaixou-se lentamente até ficar de quatro antes de continuar na direção do
estandarte, fazendo uma careta ao sentir o gelo queimar a pele. Não estava a mais de três metros de distância quando o gelo começou a rachar novamente. Marcus prendeu
a respiração. Abaixou-se até encostar a barriga e se aproximou aos poucos. A mão do garoto tateou o pano vermelho onde o número da coorte tinha sido bordado com
fios de ouro. Enquanto o gelo estalava debaixo de Marcus, ele cerrou os dentes e agarrou o tecido entre os dedos, puxando-o para perto. Segurando-o com as mãos,
ele se virou lentamente para se deitar de costas e respirou fundo. Depois contou até três e o arremessou por cima da cabeça com toda a força que tinha.
O movimento brusco fez o gelo rachar, e a água penetrou seu manto e sua túnica enquanto ele escutava o estandarte bater na água. Com medo de que o gelo fosse quebrar
a qualquer momento, Marcus rastejou em direção à margem do lago e só ficou de pé quando sentiu que a camada de gelo estava grossa o suficiente. Olhou para trás para
se assegurar de que o estandarte tinha desaparecido e então se apressou em encontrar os sobreviventes da coorte que estavam perto do lago. Os rebeldes o cercaram
com os rostos sombrios e em silêncio.
- Muito bem, garoto. - O centurião deu um tapinha em seu ombro. - Foi um ato corajoso. Agora a coorte pode morrer com a honra intacta.
- Morrer? - perguntou Quintus.
- Que opção temos? - O centurião apontou para os rebeldes. - Eles vão atacar a qualquer momento. Logo mais isso tudo vai acabar.
No entanto, não houve mais nenhum ataque, e os dois lados ficaram em suas posições, ofegantes e esperando.
- Por que eles não estão atacando? - perguntou Quintus com a voz trêmula. - Pelos deuses, por que não?
Então houve movimento entre as fileiras dos rebeldes. Um homem alto apareceu e aproximou-se dos romanos, parando a duas espadas de distância dos escudos. Carregava
uma espada pesada na mão, e seu cabelo escuro estava preso para trás com uma tira de couro. Marcus reconheceu-o imediatamente. Era o mesmo homem que encurralara
o grupo de Caesar dias antes. Mandracus fulminou os romanos com o olhar antes de cuspir para o lado e lhes dirigir a palavra:
- A luta acabou. Vocês foram derrotados. Joguem as armas para o lado e vão viver. Se não fizerem isso, vão morrer onde estão.
Houve um rápido silêncio, e Quintus abaixou a espada e aproximou-se da beirada do círculo. O centurião bloqueou o caminho dele.
- O que acha que está fazendo... senhor?
- A luta acabou. Nós fizemos o que podíamos e perdemos. É hora de nos rendermos.
- Não! - grunhiu o centurião. - Acha mesmo que eles vão nos deixar viver? É melhor morrer como um homem do que ser massacrado como um cão. Não vamos nos render.
- Vamos sim. - Quintus empertigou-se. - Eu é que estou no comando aqui, não você. E você vai me obedecer, centurião. Agora se afaste.
Marcus viu a raiva fulminante nos olhos do centurião, que permaneceu imóvel por um instante e depois obedeceu. Quintus aproximou-se da beirada do círculo e jogou
a espada na neve, aos pés do líder dos rebeldes.
- Nós nos rendemos.
O homem ao lado dele fez o mesmo e abaixou o escudo até o chão. Mais outro fez o mesmo e em seguida o restante deles, até todos os legionários sobreviventes não
terem mais como se defender. Exceto Marcus e o centurião.
- Vocês foram muito inteligentes - disse Mandracus. - Agora voltem para a trilha formando uma fila única. Movam-se!
Com Quintus na frente, os homens desarmados começaram a se afastar do lago, passando pelas fileiras de rebeldes que os provocavam e zombavam.
Marcus passou o olhar ao redor, com vários impulsos conflitantes causando um turbilhão em sua mente. Seu treinamento de gladiador o ensinara a nunca ceder, mas se
decidisse lutar e viesse a morrer não teria a oportunidade de salvar a mãe. Enquanto estivesse vivo, a esperança continuaria existindo, por menor que fosse.
- Bom garoto - disse o centurião. - Você tem mais coragem do que aquele tribuno covarde e todos os outros juntos. Vamos morrer lado a lado, como heróis.
Marcus olhou para ele e para o mar de rostos rebeldes que o fulminavam com ódio. Ele abaixou a espada e falou baixinho:
- Desculpe. Não posso fazer isso. Tenho que viver.
O centurião o encarou friamente por um instante, então assentiu com a cabeça.
- Tudo bem. Eu entendo. É melhor você ir logo antes que seja tarde demais.
Marcus afastou-se dele, o braço da espada pendendo ao lado. Ao se aproximar do líder dos rebeldes, ele deixou o cabo deslizar de seus dedos e escutou o baque seco
da arma caindo na neve. Ficou com o coração pesaroso por deixar o centurião entregue à sua sorte, mas, enquanto existisse a possibilidade de sua mãe estar viva,
aquilo guiaria todas as suas decisões. Mandracus espiou o garoto quando ele passou e o empurrou na direção do fim da fila de romanos que estava sendo levada para
o cativeiro.
Atrás dele, Marcus escutou o centurião gritar:
- Por Roma! Por Roma!
Corpos passaram correndo pelos dois lados de Marcus. Ele escutou o barulho de lâminas colidindo e a pancada de uma arma atingindo um escudo. Em seguida, um grito
de triunfo e rugidos guturais dos rebeldes que foram engolidos pela neve rodopiando por todo o pequeno vale.
17
Os legionários sobreviventes e Decimus e seus homens, juntos de alguns arreeiros, estavam parados na trilha sendo vigiados por vários rebeldes. Eles tinham sido
amarrados após Mandracus ordenar seus homens a removerem as armaduras e armas deles. Os romanos feridos tiveram as gargantas cortadas, já os rebeldes feridos foram
colocados cautelosamente nas carroças. Os mortos foram levados até a vila, onde uma pira foi construída usando a sobra material combustível do ataque da manhã.
Já havia anoitecido e a neve parado de cair quando os rebeldes ficaram prontos para ir embora. Um tom azul pálido espalhava-se pelo vale, onde silhuetas escuras
de corpos e poças de sangue repousavam dos dois lados da trilha. As chamas vermelhas e fortes subindo da paliçada faziam a cena ficar mais sombria, e Marcus estremecia
descontroladamente enquanto ele e os outros aguardavam seu futuro em silêncio. Mandracus deu uma última olhada ao redor e gesticulou para a trilha.
- Movam-se!
Marcus esperou até o homem à sua frente se mover e caminhou alguns metros apressadamente para poder avançar um pouco e depois se concentrou em manter o espaço entre
os dois. Ele achava estranho Mandracus estar levando os homens na direção de Caesar. Sentindo uma breve esperança, perguntou-se se Caesar não mandaria uma mensagem
para o comboio de bagagens, permitindo que o cavaleiro os visse e avisasse à tropa principal. Então, após andarem menos de um quilômetro e meio, Mandracus mudou
de caminho, pegando uma rota menor que serpenteava pela floresta e seguia na direção do centro das montanhas.
Eles pararam para dormir em uma vila abandonada, onde os prisioneiros foram deixados em um pequeno curral de ovelhas, sem comida nem água. Ao redor deles, os rebeldes
abrigaram-se no que tinha sobrado das casas e cabanas da vila silenciosa. Nenhuma fogueira foi acesa, mas à medida que a noite caía o céu foi ficando mais limpo
e as estrelas brilhavam como pequenos pedaços de gelo.
Marcus analisou o curral e encontrou um canto protegido do vento que continha restos de uma pilha de palha. Com as mãos amarradas, colocou o máximo que pôde por
cima do corpo e se sentou, encurvando-se por cima dos joelhos e tremendo. Um por um, os outros homens se acomodaram para aguentar a noite gélida da melhor maneira
possível.
Era impossível dormir, e, de todo jeito, Marcus sabia que era perigoso cair no sono. Titus lhe dissera isso uma vez, ao lembrar-se de uma campanha que lutara nas
montanhas da Macedônia. O exército de Pompeius fora obrigado a passar várias noites ao ar livre e alguns homens pegavam no sono e nunca mais acordavam. Quando amanhecia,
seus camaradas os encontravam mortos e congelados. Marcus não permitiria que isso lhe acontecesse. Assim que sentiu as pálpebras pesarem, ele endireitou a postura
e beliscou as próprias bochechas.
Em algum momento durante a noite, ele escutou o barulho de alguém se aproximando no meio da escuridão e depois uma voz grossa:
- Garoto, é você aí no canto?
De início Marcus não reconheceu a voz e continuou parado, prendendo a respiração.
- Sei que está me ouvindo, garoto... Marcus, não é? Titus me contou sobre você uma vez quando veio tratar de negócios comigo.
Marcus sentiu uma raiva familiar inflamar seu coração. Ele respirou lentamente para acalmar o corpo e para que sua voz não saísse trêmula. Não queria que Decimus
achasse que ele estava com medo.
- O que você quer?
- Conversar.
- Por que eu conversaria com você, Decimus? Depois de tudo o que fez comigo e com minha família. Tudo que quero ouvir é você implorando pela própria vida antes de
eu matá-lo.
- Me matar? - Marcus ouviu uma risada baixa, em seguida a voz do homem hesitou com um estremecimento se espalhando por seu corpo. - Você? E por que está achando
que seria capaz de me machucar? Tenho amigos poderosos. Homens que dependem de mim. Você está apenas um nível acima de um escravo comum. Seja realista, Marcus. Você
nunca seria capaz de me fazer mal.
- Não vou precisar fazer isso. Agora não. Só espero que os rebeldes o matem antes de mim.
Decimus ficou em silêncio.
- Tudo bem... mas há uma chance de Caesar nos encontrar antes disso.
Então era aquilo que ele queria perguntar a Marcus. Ele riu baixinho.
- Duvido. Agora que perdeu o comboio de bagagens, Caesar tem os próprios problemas.
- Você o conhece melhor do que eu, Marcus. Acha que ele vai vir nos procurar?
- Talvez. Mas faria mais sentido ele procurar mantimentos e abrigos novos primeiro.
- Mas ele não pode deixar os rebeldes se safarem após nos fazerem de reféns.
- Por que não? Já estamos mortos, Decimus. Aceite esse fato.
- Não. Por que eles nos prenderiam se só quisessem nos matar? Talvez haja uma maneira de escaparmos. Eu tenho dinheiro. Posso oferecê-los uma recompensa para que
eles poupem a minha vida. Mas a sua não, infelizmente.
- E os seus homens? Que vai ser deles?
- Sempre posso contratar novos homens.
Marcus ficou encarando a silhueta escura do homem a uma pequena distância. A insensibilidade de Decimus não tinha limites. Se ao menos estivesse com as mãos livres,
Marcus poderia se lançar para cima do agiota. Sem armas seria difícil vencer um adulto, mas pelo menos o machucaria.
- Não leve isso tão a sério, garoto. A vida é assim e pronto. Esses rebeldes são iguais a todos os outros homens. Eles têm seu preço e eu tenho condições de pagá-lo.
- Ele passou a sussurrar para que apenas Marcus o escutasse. - É uma pena para os outros. Especialmente você. Com mais alguns anos de treinamento, você teria sido
um dos heróis da arena. Mais um benefício para a reputação de Caesar. Ele fez certo em comprá-lo da escola de Porcino. É o homem mais perspicaz que já vestiu uma
toga de senador. Talvez termine sendo um dos maiores romanos da história.
- Então por que tem feito planos para matá-lo? Você também é romano. Se Roma precisa de homens como ele, por que matá-lo?
- Porque acho que Caesar acredita que Roma precisa mais dele do que ele precisa de Roma. E esses homens ficam perigosos quando pensam assim. De todo jeito, minhas
crenças políticas coincidiram por acaso com a oportunidade de fazer negócios com Crassus.
- Negócios?
- Sou um homem de negócios, jovem Marcus. Faço o que faço por dinheiro. É por isso que trabalho para Crassus. Ele me recompensa com contratos de cobrança de impostos.
É assim que um homem enriquece neste mundo. Em troca, eu forneço a Crassus os serviços dos meus empregados, eles têm as habilidades necessárias para remover os obstáculos
no caminho da ambição dele. Ao longo dos anos eu recrutei alguns homens que se mostraram muito úteis.
- Homens como Thermon? - interrompeu Marcus amargamente. - Assassinos.
- Assassinato é uma palavra muito forte. Prefiro pensar que estou fornecendo um serviço especial a um preço alto.
- Então imagino que você e seus homens não se juntaram ao exército de Caesar para comprar escravos, não é?
- Por que não? Assim podemos ganhar uma grana extra.
- Mas vocês foram enviados para matá-lo, não?
- Se a oportunidade surgir. Pensei em chantagear aquele jovem tribuno ali para ele ajudar um dos meus homens a chegar perto de Caesar, mas agora tenho outras preocupações
mais importantes. Preciso negociar com essa gentalha rebelde e comprar minha liberdade.
Uma rajada de vento gemeu por cima do curral. Marcus olhou para o céu e avistou nuvens ao norte. Nevaria mais antes do amanhecer. No entanto, aquilo não o preocupava
muito. Se ia morrer, precisava saber de algo. Um último conforto a que se agarrar.
- Decimus, você precisa me dizer uma coisa.
- Quer saber se sua mãe ainda está viva?
- Sim.
O homem ficou em silêncio por um instante e depois falou novamente:
- O que seria mais piedoso dizer? Se eu disser que ela está viva, você ficaria mais tranquilo até perceber o que estar viva significa para ela. Você sabe que eu
a mandei para uma das minhas propriedades no Peloponeso. Um lugar onde os escravos trabalham até a exaustão ou a doença acabar com eles. Por outro lado, se eu disser
que ela está morta, você descobriria que não tem mais motivos para viver. Então, meu garoto, o que prefere?
- Só quero a verdade - respondeu Marcus com firmeza. - Qualquer que seja ela.
- A verdade... - Decimus ergueu as mãos e assoprou em cima delas. - A verdade é que ela ainda está viva. Ela é bonita demais para que eu a mate, e orgulhosa demais
para que eu não tente fazer com que ela ceda.
Marcus suspirou aliviado ao ouvir que a mãe estava viva. Então, ao assimilar o restante do que foi dito, um arrepio de surpresa fez os pelos de sua nuca se eriçarem.
- Você... você gosta dela?
- Claro. Sou feito de carne e osso, assim como seu pai. Por que eu não sentiria a mesma atração que ele sentiu por ela? Mas ela era esposa dele. Alguns anos atrás,
quando Titus veio me pedir um empréstimo, ele a levou para Stratos. Foi então que a vi pela primeira vez. A segunda vez foi naquela sua patética fazendinha, quando
fui cobrar pessoalmente a primeira parcela do pagamento do empréstimo. Eu já sabia que Titus nunca seria capaz de pagar e que ficaria me devendo. Foi então que fiz
minha oferta para ela. Se ela o abandonasse e viesse comigo, eu anularia a dívida. Se não, ele perderia tudo. A fazenda, Livia e você. Vocês seriam vendidos como
escravos. - Decimus riu secamente. - E sabe o que ela fez? Ela cuspiu no meu rosto e disse que preferia morrer a ser minha. O que acha disso, hein? A sua mãe é corajosa.
Mais corajosa do que aquele tolo do Titus. Sim, acho que você puxou mais a ela do que a ele... Agora ela vai ficar na minha propriedade, trabalhando nos campos até
me implorar perdão.
A surpresa que Marcus sentira transformou-se em repugnância ao escutar aquele homem falando sobre sua mãe. Ao pensar na possibilidade de aquele hipócrita vil e repugnante
a tocar, Marcus sentiu uma náusea se espalhar por todo o estômago. Não podia deixar aquilo acontecer. Tinha que encontrar uma maneira de escapar ou de sobreviver.
E, se Decimus realmente conseguisse comprar a liberdade, Marcus o procuraria assim que também estivesse livre. O garoto fez um juramento silencioso para todos os
deuses: só descansaria depois que Decimus fosse destruído.
O homem moveu-se e levantou-se com dificuldade, assomando sobre Marcus no meio da escuridão.
- Gostei do nosso papo. Mas algo me diz que seria imprudente passar a noite aqui e deixar você se sentir tentado a me ferir. Durma bem, jovem, se conseguir. Não
tente se aproveitar da noite para me atacar. Thermon vai estar de olho em você.
- Thermon? Aqui?
- Sim, claro. Ele sempre está perto de mim. Mas ele teve que mudar de aparência por sua causa.
A mente de Marcus acelerou-se. Thermon passara todo aquele tempo junto com os capangas de Decimus? Ele pensou nos rostos de cada um, mas inicialmente nenhum o lembrou
do homem que tinha visto muito bem em algumas ocasiões. E então percebeu. Claro, o careca de barba. Esperando o momento, aguardando a ordem e a oportunidade para
atacar Caesar.
Decimus afastou-se, deixando Marcus encurvado no canto do curral, com a mente tomada por pensamentos sombrios de ódio e vingança.
18
No dia seguinte, enquanto o sol brilhava fracamente por trás de uma fina camada de névoa, um dos rebeldes acordou os prisioneiros. Dois homens tinham morrido durante
a noite. Eles tinham se livrado da armadura e dos mantos no dia anterior para tentar escapar e as túnicas não bastaram para aquecê-los. Sob a luz pálida do amanhecer,
eles estavam sentados e encurvados onde morreram, seus rostos congelados em uma expressão de paz e descanso.
O rebelde chutou-os para garantir que eles não estavam fingindo e depois os ignorou com um grunhido antes de fazer o restante se levantar com chutes e golpes de
uma grossa clava. Marcus e os outros ergueram-se, seus corpos rígidos e suas juntas frias e doloridas. Após arrastarem-se para fora do curral de ovelhas, eles pararam
em uma faixa estreita para aguardar. Ao redor deles, os rebeldes surgiam de dentro dos abrigos, espreguiçando-se e resmungando. Alguns já tinham começado a comer
e mastigavam pedaços da carne seca e do pão que encontraram em uma das carroças. Marcus olhou para eles, movendo os lábios de tanta fome. Não comia havia um dia
e sua barriga roncou em protesto. No entanto, nenhuma comida ou bebida foi oferecida para os prisioneiros, e logo depois os romanos foram vendados e a tropa começou
a marchar.
Várias horas depois, após serpentearem por trilhas íngremes e desniveladas, a tropa chegou ao acampamento dos rebeldes. Enquanto os prisioneiros eram levados para
o acampamento de Brixus, os habitantes surgiram das cabanas e abrigos para assistir ao espetáculo. Os romanos derrotados estavam amarrados com uma corda que unia
seus braços. O líder deles, o outrora orgulhoso tribuno Quintus, estava com as mãos amarradas atrás das costas e caminhava aos tropeções para acompanhar o rebelde
que os guiava pelo acampamento. Marcus era o segundo na fila, ferido e machucado devido às quedas que sofrera durante a marcha daquele dia.
- Parem os prisioneiros! - ordenou uma voz de algum lugar adiante, e os homens atrás de Marcus pararam. Houve uma pausa antes de ele escutar botas esmagando a neve
por perto, e então sua venda foi removida. A névoa da manhã tinha sumido e a luz do sol estava ofuscante. Marcus apertou os olhos, lacrimosos. Após um instante,
eles se ajustaram à luz e ele olhou ao redor, impressionando-se com o enorme acampamento cercado pelas montanhas circulando o vale.
- Não é de espantar que a gente não tenha encontrado isso aqui - disse Quintus. - Um exército poderia passar um século procurando pelos Apeninos e nunca adivinhar
que isso era aqui dentro.
Marcus olhou para o caminho por onde eles tinham chegado e percebeu que a rota desaparecia para dentro do rochedo a algumas centenas de metros, como se virasse pedra.
Ele se lembrou do frio úmido do último trecho da marcha, do eco dos passos e do tinir dos equipamentos na rocha. Quintus tinha razão. O acampamento dos rebeldes
estava perfeitamente escondido. O único risco seria se um traidor contasse a localização para alguém. O fato de ninguém ter feito aquilo provava a confiança fervorosa
dos escravos que passaram a seguir Brixus na causa pela qual estavam lutando.
Após todas as vendas serem removidas, os prisioneiros foram levados até o centro do acampamento, na direção das maiores cabanas. O caminho estava cercado de pessoas
aclamando os lutadores rebeldes. A aclamação transformou-se em insultos e gritos de raiva quando os prisioneiros foram vistos, e algumas pessoas pegaram terra no
chão e a lançaram em Quintus e nos outros. Por causa de seu tamanho e do manto simples que vestia, Marcus foi poupado da pior parte do ataque. A terra atingiu o
tribuno, seus soldados e Decimus, que chamava a atenção com os mantos ricamente ornamentados. Logo eles saíram do caminho lotado e passaram a andar em um terreno
aberto que ficava na frente de uma enorme cabana. Um cordão de homens armados com lanças continha a multidão, e Marcus suspirou aliviado quando a chuva de projéteis
parou. Ele se obrigou a recompor a própria expressão, endireitou a postura e examinou os arredores. A cabana era a maior construção que vira no vale, e ele presumiu
que era lá a moradia do líder dos rebeldes. Se aquele era o acampamento principal, então talvez o próprio Brixus estivesse lá. Marcus sentiu uma rajada de esperança.
Brixus com certeza o pouparia, mesmo sabendo que Marcus tinha marchado ao lado de Caesar. Ele precisaria explicar que tinha se envolvido na campanha do procônsul
à força, e esperava que isso fosse o suficiente para o perdão de Brixus.
Virando-se para o guarda mais próximo, Marcus limpou a garganta.
- Você aí. Me diga uma coisa, essa é a cabana de Brixus? Preciso falar com ele.
O rebelde aproximou-se rapidamente e estapeou a bochecha de Marcus com as costas da mão.
- Cale a boca, romano! Se não quer perder a língua, você só pode falar quando falarem com você. Está claro?
Cambaleando por causa do golpe, Marcus abriu a boca para responder e depois a fechou imediatamente. Ele fez sim com a cabeça, sem querer arriscar ser punido mais
uma vez.
Mandracus aproximou-se e parou na frente de Quintus, com as mãos no quadril.
- Então, não é tão poderoso agora, hein tribuno. Você e esses outros romanos. Olha só para vocês. É apenas um pouco mais velho do que esse garoto, mal se tornou
um homem, e já tem a arrogância altiva típica dos aristocratas romanos. Logo você vai aprender o que é ser tratado como escravo. - Ele sorriu friamente, virou-se
e se aproximou da entrada da cabana. Ao passar pelo rebelde no comando dos prisioneiros, ele deu suas ordens. - Vou comer. Fique com eles aqui do lado da cabana.
Depois espalhe a notícia pelo acampamento. O entretenimento começa no instante em que for seguro acender as fogueiras.
- Sim, Mandracus. - O rebelde curvou a cabeça em resposta.
Enquanto Mandracus se abaixava atrás da cortina de couro na entrada, Quintus aproximou-se de Marcus e sussurrou:
- Entretenimento? O que acha que eles estão planejando fazer conosco?
Marcus balançou a cabeça.
- Não faço ideia. Mas, seja lá o que for, acho que poucos do nosso grupo vão sobreviver.
Quando o círculo de fogueiras terminou de ser aceso no terreno aberto próximo da cabana redonda, uma enorme multidão já tinha se formado ao redor da área. Com os
rostos iluminados pelas chamas vermelhas, eles observavam os prisioneiros ansiosamente. O burburinho entusiasmado fez Marcus se lembrar do clima que surgia entre
a multidão na Casa do Senado de Roma quando um debate importante estava prestes a começar. Não, era diferente, pensou ele. Era mais como a multidão no Fórum antes
de ele lutar com o garoto celta, Ferax. Ele estremeceu ao pensar no terror que o consumiu antes do começo da luta. Em parte era o terror de enfrentar alguém que
queria matá-lo, mas também era o terror por ver a sede de sangue nos rostos das pessoas em todos os lados.
Com as mãos amarradas, os prisioneiros tinham sido obrigados a se sentarem no chão gélido até escurecer. Eles finalmente receberam água e uma tigela com um ensopado
ralo e gorduroso que foi tomado vorazmente. Depois eles ficaram sentados em silêncio, aguardando o próprio destino e proibidos de fazerem quaisquer sons ou movimentos,
caso contrário seriam surrados.
Um silêncio espalhou-se pela multidão, e, ao se virar, Marcus avistou Mandracus saindo da cabana. Vestido com um manto comprido de pele, ele parou com um cálice
prateado na mão, esperando pelo silêncio total. Em seguida, inspirou e falou com uma voz clara que chegou até o fim da aglomeração:
- Eu acharia melhor esperar Brixus voltar para começar a diversão, mas teremos que começar sem ele. Como vocês todos sabem, tanto Brixus quanto eu já fomos gladiadores.
Fomos arrancados de nossas casas pelas legiões de Roma, nos arrancaram dos seios de nossas famílias e nos escravizaram. Depois fomos vendidos como gado para um lanista,
para sermos treinados na arte de matar outros homens por uma única razão: saciar o apetite romano por entretenimento. Hoje vamos pagar na mesma moeda: esses romanos
aqui serão o nosso entretenimento. - Ele esmurrou o ar com a mão livre, e a multidão soltou um rugido de entusiasmo.
Mandracus deixou a multidão celebrar por um instante enquanto Marcus sentia o sangue congelar nas veias. Então aquele seria o destino deles.
- Silêncio! - rugiu Mandracus, gesticulando para que a multidão se acalmasse. - Hoje vocês terão um banquete de entretenimento - prosseguiu ele. - Uma série de lutas
até a morte. Os vencedores de cada rodada vão enfrentar um ao outro até sobrar apenas um homem. Esse homem, o campeão - disse ele com um tom de voz irônico -, será
poupado. Ele vai se tornar um escravo aqui no acampamento e todos vocês poderão se aproveitar dele o quanto quiserem, até ele morrer.
Marcus viu os rostos mais próximos da multidão acenarem com a cabeça em aprovação. Alguns olharam para os prisioneiros e balançaram os punhos, gritando insultos,
com a amargura dos longos anos de escravidão se manifestando naquela oportunidade de vingança.
- Que comece o entretenimento! - gritou Mandracus, aproximando-se dos romanos. Todas as armaduras e mantos tinham sido removidos, e eles estavam sentados de túnicas
e botas. Mandracus olhou para eles por um momento antes de erguer o dedo e apontar. - Você... e você. Levantem-se!
Os dois legionários demoraram para reagir, e os rebeldes os puxaram para cima, arrastando-os para que ficassem em posição a seis metros de distância um do outro,
no meio do terreno aberto. O laço nas mãos foi cortado e eles esfregaram os punhos. Espadas foram largadas aos pés de cada um, e os rebeldes se afastaram.
- As regras são simples - disse Mandracus para eles. - Vocês vão lutar até a morte. Se caírem, não se deem ao trabalho de pedir misericórdia. É isso. Agora peguem
suas espadas e aguardem a ordem para começar.
Marcus olhou para os homens. O primeiro era um veterano magro com sangue ressecado no braço esquerdo devido a uma ferida da emboscada. O oponente era um jovem inexperiente,
tremendo e encarando a espada.
- Peguem suas armas! - berrou Mandracus.
Imediatamente, o jovem obedeceu e ergueu a espada, com a ponta balançando bastante. O veterano não se mexeu. Ele endireitou a postura e cruzou os braços.
- Eu não recebo ordens de escravos.
Alguns homens na multidão vaiaram, mas Mandracus só deu de ombros e gesticulou para um dos rebeldes na posição de guarda. O homem aproximou-se do veterano por trás
e brandiu uma clava pesada mirando na parte de trás da cabeça dele. O crânio desfez-se com um forte estalo, sangue e cérebro escorrendo entre os fragmentos de osso
e couro cabeludo. A mandíbula do veterano abriu-se e ele ficou em pé por um instante antes de cair com o rosto no chão.
Marcus cobriu os olhos para não ver a terrível cena. Ao olhar para o grupo de prisioneiros, ele se perguntou quem seria seu oponente. Se ao menos pudesse ser Decimus,
ou até mesmo Thermon...
O rebelde pôs a clava debaixo do braço e agarrou a bota do veterano para arrastar o corpo para o lado. Mandracus apontou para outro prisioneiro.
- Você. Vá substituí-lo.
O legionário levantou-se atrapalhadamente e, assim que suas mãos ficaram livres, pegou a espada e abaixou o corpo, agachando-se e preparando-se para lutar pela própria
vida.
- Comecem!
Marcus nunca tinha visto uma luta daquelas durante seu treinamento de gladiador. Não houve tentativa de observar o oponente, de escolher uma tática ou de fazer algumas
fintas para testar o adversário. Os dois legionários lançaram-se um em cima do outro com expressões sombrias e passaram a se golpearem de maneira selvagem, com o
forte tinido das lâminas enchendo o ar enquanto as centelhas da colisão entre metais subiam. Com um grito de dor, o jovem recruta cambaleou para trás e segurou a
coxa com a mão livre, fazendo o sangue escorrer por entre seus dedos. O homem mais velho ficou parado, com o peito ofegante devido ao cansaço. Eles ficaram se encarando
até uma voz gritar para eles continuarem a luta.
Eles obedeceram, e Mandracus deu ordens para um grupo que estava ao lado de uma das fogueiras:
- Usem os ferros quentes.
Um dos homens fez sim com a cabeça e, encurvando-se, pegou uma barra de metal. Uma extremidade estava cercada por tiras de metal; a outra se encontrava bem no meio
do fogo. Ao erguer a barra no ar, ela brilhou fortemente com um tom de amarelo que logo virou um vermelho vivo. O homem aproximou-se por trás do jovem legionário
ferido e o espetou com a ponta aquecida. Ele gritou de dor e inclinou-se para a frente, na direção do oponente. Houve mais uma troca de golpes descontrolados antes
que a perna do jovem cedesse, obrigando-o a ficar de joelhos enquanto tentava desesperadamente se defender dos ataques do antigo camarada. Em seguida, seus dedos
dormentes perderam a força e sua espada caiu no chão a uma pequena distância. O outro homem ergueu a espada e hesitou.
- O que está esperando? - exigiu Mandracus. - Mate-o! Se não, vai morrer junto com ele.
O legionário rangeu os dentes e balançou a cabeça como quem pede desculpas antes de enfiar a lâmina no peito do homem ferido. O jovem grunhiu, lançou a cabeça para
trás e escancarou os braços. Então, quando a espada foi removida, ele se contorceu por um instante no chão antes de parar de vez. A multidão soltou um rugido sedento
de sangue e esmurrou o ar gélido com os punhos. Dois rebeldes aproximaram-se do vencedor. Um deles tirou a espada da mão dele e o outro o levou para o lado da cabana.
Marcus ficou nauseado de preocupação quando Mandracus se aproximou do restante dos prisioneiros e examinou o grupo. Nenhum deles tinha coragem de olhá-lo nos olhos,
pois não queriam correr o risco de serem chamados para a próxima luta.
- Você... Sim, você, e o homem do seu lado. É a vez de vocês. Movam-se!
Houve mais duas lutas, e Marcus contou 14 prisioneiros sobrando no grupo. Então ainda aconteceriam sete lutas, e Decimus ainda estava no meio deles. O garoto teria
a chance de se vingar. Enquanto o quarto corpo era carregado, Mandracus passou o dedo na frente do grupo e sorriu. Então seu dedo parou.
- Você... levante-se!
Decimus ergueu-se com dificuldade, balançando a cabeça para protestar em silêncio. Marcus ergueu-se imediatamente.
- Eu luto contra ele! Me escolha!
Mandracus virou-se.
- O que é isso? Um voluntário? Esse garoto valente quer enfrentar um adulto. Parece que finalmente encontramos um romano que tem coragem de lutar. Então ótimo, garoto,
ele é todo seu.
- Não! - exclamou Decimus. - Você não pode me obrigar a lutar!
- Ah, é? E por que não?
Decimus estendeu as mãos.
- Me liberte e você será um homem rico. Tenho fortuna em Roma. Me deixe viver e eu garanto que todos vocês serão muito bem recompensados. Juro.
- Que interessante - refletiu Marcus. - E estamos falando de que quantia pela sua liberdade?
- Meio milhão de sestertii - implorou Decimus, mas o rebelde não respondeu. - Tudo bem, um milhão! Um milhão de sestertii!
- Hummm, isso é uma fortuna e tanto. - Mandracus ficou pensando por um instante. - Vamos ver o que Brixus tem a dizer. Leve esse aqui lá para dentro da cabana.
- Obrigado - disse Decimus, arrastando-se. - Você não vai se arrepender.
Enquanto ia embora, ele abriu um sorriso convencido para Marcus.
- O que foi que eu disse? Adeus, garoto. Cumprimente Titus por mim quando o encontrar no além. E peça desculpas a Thermon por mim. Diga a ele que nossa relação era
estritamente profissional.
Marcus rangeu os dentes e cuspiu sua resposta:
- Covarde!
Decimus balançou a cabeça.
- Não, sou apenas um sobrevivente.
Então ele foi levado para longe e desapareceu por trás da cortina da cabana. Mandracus aproximou-se de Marcus e olhou para ele com curiosidade.
- É uma pena ver uma coragem como essa chegar ao fim. Mas você vai morrer com esses outros aí. Agora é resolver quem será seu oponente. Vou ser justo para que a
luta seja equilibrada.
O olhar dele percorreu os legionários que sobravam e os servos de Decimus. Todos tinham uma aparência durona, exceto um.
- Você, tribuno. Você é o segundo mais novo, e me arrisco a dizer que você teve uma vida mimada demais para saber lutar bem com uma espada. Acha que consegue derrotar
esse garoto?
Quintus levantou-se lentamente, com os lábios encurvando-se de desprezo.
- Não sou da ralé dos gladiadores como você. Vou mostrar como um nobre romano luta. - No último instante os lábios dele tremeram, revelando o que realmente estava
sentindo, e Mandracus riu.
- Bela tentativa. Assim como todos os aristocratas romanos, você não tem coragem para lutar de verdade. Você deixa que os outros façam isso. Bem, hoje não. Aqui
não. - Ele cortou a corda que prendia as mãos de Quintus e fez o mesmo com Marcus. - Assumam suas posições.
Dois rebeldes arrastaram-nos para o terreno aberto e os viraram um para o outro. Uma espada foi jogada na frente de cada um. Quintus pegou a sua rapidamente, sem
esperar nenhuma instrução. Marcus percebeu que seu oponente parecia mais nervoso do que ele, que não tinha a mínima vontade de lutar contra Quintus ou contra qualquer
outro prisioneiro agora que Decimus estava fora daquela disputa sombria. No entanto, lutaria até o último suspiro. Queria sobreviver, e sua determinação estava mais
forte devido à esperança de Brixus o libertar. Se protestasse, teria o mesmo destino do homem que se recusara a lutar um pouco antes.
Ele se encurvou para pegar a espada, agarrando-a com firmeza e testando o peso e equilíbrio dela instintivamente, como tinha aprendido. Deu um golpe e alguns cortes
no ar antes de se satisfazer com o que tinha aprendido sobre a arma e sobre como ela se sairia em uma luta.
- Comecem! - berrou Mandracus.
Diferente das lutas anteriores, os dois combatentes permaneceram parados. Marcus obrigou todos os seus pensamentos a se concentrarem no que estava à sua frente.
Quintus tinha uma altura mediana e era um pouco encorpado, o que significava potencial para ser veloz e alcance um pouco melhor do que o de Marcus. Assim como muitos
outros jovens, gostava de vinho e diversão. Mesmo após dias na estrada, as reações dele deviam ser lentas comparadas a alguém treinado em uma escola de gladiadores.
Marcus tentou lembrar-se de algum detalhe da breve luta entre os dois em Rimini, algo que pudesse servir de vantagem.
A multidão ficara em silêncio, sentindo que aquela luta seria diferente e mais sutil.
Marcus ergueu a espada e virou-se, ficando de lado para Quintus e limitando o alvo que o tribuno teria para atacar. Em seguida, avançou em um ritmo constante. Quintus
agachou-se e ficou na mesma posição, sem se mover para frente, apenas aguardando Marcus. As pontas das espadas se encontraram, e Marcus aplicou uma leve pressão
enquanto deslizava a ponta um pouco para baixo contra a lâmina do oponente. Quintus abaixou a ponta de sua espada e empurrou a espada de Marcus para o lado. Em seguida,
deu um pequeno pulo para a frente, estendendo o braço. Marcus fingiu defender-se do ataque e previu corretamente que o tribuno daria um golpe para baixo mais uma
vez. Ele a empurrou para o lado, forçando a outra espada para trás com o comprimento da lâmina perto do corpo e aproximando-se de Quintus. O movimento obrigou o
jovem a recuar rapidamente, para Marcus não chegar perto demais, e Quintus brandiu a espada de um lado para outro, bloqueando qualquer ataque ao seu corpo. Marcus
contentou-se em virar a espada para que ela encostasse na carne do antebraço do oponente, abrindo um corte longo e superficial que pareceu pior depois de o sangue
começar a escorrer. Em seguida, Marcus se afastou e ficou encarando Quintus, tentando prever seu próximo movimento.
O tribuno recuou e olhou ansiosamente para o corte enquanto os membros mais experientes da multidão murmuravam em aprovação à interação inicial. Marcus tinha controlado
o centro da arena improvisada e sabia que aquilo diminuiria a confiança do oponente. E, de fato, não dava para confundir o brilho de medo nos olhos de Quintus enquanto
ele se agachava mais uma vez, buscando retomar o controle da iniciativa.
Seu ataque ficou óbvio antes mesmo que ele se movesse, com as pernas se preparando para uma investida explosiva. Marcus deixou que ele se aproximasse e se abaixou
para o lado enquanto a lâmina passava inofensivamente ao lado de sua cabeça. O impulso fez Quintus seguir em frente, e Marcus abaixou a espada para cortar a coxa
do jovem em movimento. Os dois se viraram um para o outro, e agora o tribuno não conseguia mais disfarçar o medo nos olhos. Marcus obrigou-se a continuar com o semblante
igual a uma máscara: frio, implacável e inexpressivo.
Quintus lambeu os lábios e falou baixinho:
- Marcus, você não pode me matar. Pense em Portia... Ela pensa em você como um amigo. Ela confia em você. Será que você trairia a confiança e o afeto dela, matando
seu marido? Eu a amo, Marcus. Se eu morrer, ela ficará sozinha no mundo. - Enquanto falava com tom de voz sincero, ele se inclinou para a frente com a ponta da espada
abaixada.
Marcus tentou afastar a lembrança de Portia da cabeça, mas não conseguiu deixar de pensar nas palavras dela e nos seus lábios macios.
Com um borrão, Quintus atacou, brandindo a espada em um arco desajeitado, mas mortal. Marcus recuou ao se defender do golpe, fazendo centelhas voarem. Quintus continuou
a investida com uma enxurrada feroz de golpes enquanto grunhia:
- Não vou morrer! Vou vencer! Vencer!
Marcus afastou tudo da cabeça, focando-se apenas em reagir a cada ataque, em se desviar ou se defender, poupando sua força e deixando o oponente desperdiçar energia.
Então, quando Quintus brandiu a arma novamente, Marcus contra-atacou antes que o tribuno pudesse recuar do golpe. Lançando a espada com toda a força, Marcus mirou
no tendão acima e atrás do joelho de Quintus. Ele acertou o alvo, mas o frio e o cansaço tinham-no enfraquecido, fazendo a espada atingir a carne e o músculo sem
cortar o tendão.
Quintus soltou um grito de dor e cambaleou para longe, sangrando bastante. Após conquistar a vantagem, Marcus lançou-se para a frente, movendo a espada e estocando
o oponente para obrigá-lo a recuar. A bota de Quintus escorregou no chão congelado. Ele tropeçou e caiu de costas, estendendo os braços. Marcus saltou para a frente
e bateu o pé em cima do pulso do tribuno que segurava a espada, fazendo seus dedos se contorcerem e soltarem-na. Marcus chutou-a para longe, parou ao lado do tribuno
e encostou a ponta da lâmina na garganta de Quintus.
- Não! Eu imploro, poupe minha vida! - implorou Quintus. - Por Portia!
Marcus hesitou. Tinha se concentrado em vencer a luta. Não nas consequências da vitória. Continuou parado, com o braço tremendo um pouco devido ao frio.
- O que está esperando? - perguntou Mandracus. - Mate-o.
Marcus não se moveu, e Quintus fechou os olhos com firmeza, virando a cabeça para o lado.
- Mate-o - ordenou Mandracus. - Ou eu mato você.
Marcus ouviu o barulho da espada e viu o rebelde se aproximar rapidamente. Ele se forçava a atacar e enfiar a lâmina na garganta do tribuno, mas não conseguia se
mover. Mandracus tinha parado ao seu lado e sibilou:
- É a sua última chance...
Marcus não reagiu, e ele ergueu a espada.
- Espere! - exclamou uma voz na multidão. Marcus virou-se e avistou uma comoção perto do caminho que levava à entrada secreta do vale. Ele escutou os cascos de um
cavalo e viu a silhueta de um cavaleiro emergir no meio do brilho rosado das chamas das fogueiras. Atrás dele, apareceram outros homens a pé, alguns mancando e outros
sendo carregados pelos camaradas. Um murmúrio ansioso espalhou-se pela multidão. Mandracus abaixou a espada lentamente e virou-se para o cavaleiro.
- Brixus.
19
- O que está acontecendo aqui? - perguntou Brixus enquanto cavalgava para o terreno aberto ao lado de sua cabana.
O burburinho da multidão transformou-se em um murmúrio nervoso à medida que os homens que seguiam o líder foram aparecendo. Muitos estavam feridos e com manchas
de sangue seco, pedaços de pano mal amarrados funcionavam como curativos. Marcus afastou-se de Quintus e, abaixando a espada, virou-se para observar os recém-chegados.
O tribuno abriu os olhos e ficou encarando o céu, seu peito elevando-se ao arfar no ar frio.
- Esses são os prisioneiros que capturamos depois da emboscada - explicou Mandracus.
- E o que estão fazendo com eles?
- É um pouco de entretenimento, para animar o nosso povo. Mas e vocês? - Mandracus apontou os homens mais atrás que seguiam Brixus. - O que aconteceu?
Brixus puxou as rédeas e inspirou com cansaço.
- Minha emboscada não deu tão certo. Nós alcançamos a retaguarda da tropa de Caesar quando ela estava chegando a Sion. Eles estavam espalhados pela trilha como eu
esperava, mas se viraram e formaram uma linha de batalha antes que pudéssemos nos aproximar mais. Pelos deuses, nunca vi homens tão bem-treinados, nem mesmo durante
a revolta de Spartacus. Foi a batalha mais sangrenta de que já participei. Milhares morreram dos dois lados. Mas a vantagem era nossa. Os dois lados se afastaram
para lamber as feridas e se recuperar. Quando dei a ordem de atacar novamente... meus homens não quiseram obedecer. Para eles já bastava. Não tive escolha, precisei
bater em retirada pela floresta e voltar para cá.
Mandracus escutou o relato do líder em silêncio e olhou para trás dele, na direção da entrada do vale.
- Vocês foram seguidos?
- Está achando que sou tolo? - protestou Brixus. - Claro que não. Caesar mandou a cavalaria dele atrás de nós, mas nós os despistamos no meio das árvores. Passamos
a metade do dia indo para o sul antes de pegarmos o caminho para o acampamento. Estamos em segurança, Mandracus.
- Por enquanto, sim. Quantos homens foram perdidos?
Brixus franziu a testa.
- Vamos conversar na minha cabana. Por enquanto, quero que meus homens se alimentem e descansem e tenham as feridas tratadas. Cuide disso.
Mandracus fez sim com a cabeça e então se lembrou dos prisioneiros.
- O que quer que eu faça com os romanos?
Brixus deu de ombros ao desmontar do cavalo.
- Eles podem servir o acampamento, assim como os outros. - Ele se virou para Marcus. - Desarme aquele ali e... - Suas palavras se perderam, e ele ficou paralisado
encarando o garoto.
Marcus não sabia como reagir e retribuiu o olhar em silêncio.
- Pelos deuses, não pode ser... é você mesmo? - Brixus mancou para perto, seus olhos arregalados de espanto. - Marcus. É você. Pelos deuses...
- Você conhece esse garoto? - Mandracus aproximou-se e pegou a espada da mão de Marcus.
- Se eu o conheço? - Um sorriso de deleite e triunfo espalhou-se pelo rosto de Brixus. - Esse é Marcus. O Marcus. O garoto sobre o qual tanto falei.
- Ele? - Os olhos de Mandracus arregalaram-se de surpresa. - Esse fedelho? Esse é o filho de Spar...
Brixus foi para cima dele raivosamente.
- Quieto, seu tolo! Não vamos falar sobre isso na frente dos outros. Leve os demais prisioneiros para uma das cabanas e os deixe sob vigia. Ninguém deve falar com
eles, está claro?
Mandracus assentiu com a cabeça e se virou para dar as ordens.
- Marcus. - Brixus parou na frente dele e segurou seus ombros, falando com um tom de voz baixo para que suas palavras não fossem escutadas por mais ninguém. - Não
tenho nem palavras para dizer o quanto vê-lo novamente faz bem para o meu coração. Venha, precisamos conversar. Você chegou na hora em que mais estávamos precisando.
Marcus estava ciente dos olhares espantados dos outros prisioneiros. Brixus colocou a mão no ombro de Marcus e o virou na direção da entrada da cabana do líder.
Atrás deles, os homens da tropa recém-chegada acomodavam-se no chão perto das fogueiras e começavam a se aquecerem. Marcus viu o cansaço no rosto deles e escutou
choro quando as notícias das mortes começaram a se espalhar, e gritos agudos de luto perfuravam o céu noturno.
Brixus empurrou a cortina de couro para o lado e gesticulou para que Marcus entrasse. Apesar do tamanho e da temperatura gélida lá fora, a cabana estava aquecida.
Havia uma fogueira grande crepitando no centro, e uma mulher colocava pedaços de lenha nas chamas. Marcus procurou Decimus e o avistou sentado de costas para uma
parede a uma pequena distância da entrada. Ele olhou ao redor nervosamente quando Marcus e Brixus entraram.
- Quem é aquele? - perguntou Brixus, acompanhando a direção do olhar de Marcus. - O que está fazendo aqui?
- Ele é um dos prisioneiros - explicou Marcus. - É o romano que destruiu minha família e me vendeu como escravo junto com minha mãe.
Brixus ficou pensando por um momento e se lembrou dos detalhes de sua última conversa com Marcus mais de um ano antes.
- Decimus?
Marcus fez sim com a cabeça.
- O agiota da Grécia? O que ele está fazendo aqui?
- Ele está trabalhando para Crassus. É responsável por um atentado contra a vida de Caesar no ano passado.
Brixus ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça, surpreso.
- Qual o problema desses nobres romanos metidos? Além de punirem os escravos, ficam atacando um ao outro! Eles não passam de escória. Uma escória nojenta. Não são
melhores do que vira-latas cruéis... O que quer que eu faça com ele, Marcus? Quer que eu o crucifique? Assim como eles crucificaram aqueles que se renderam no fim
da revolta do seu pai? Ou prefere queimá-lo vivo? As pessoas lá fora gostariam de ver isso.
Marcus ficou pensando por um instante. Decimus era culpado. Não apenas de matar Titus, mas também de explorar cruelmente e arruinar a vida de inúmeras pessoas só
para enriquecer. Era uma oferta tentadora.
Decimus escutara todas as palavras e agora estava se arrastando para a frente de joelhos.
- Eu fiz um acordo com Mandracus. Ele prometeu me libertar se eu pagasse uma recompensa. Um milhão de sestertii. Pode ser seu. Tudo seu.
Brixus olhou-o com repugnância e ódio antes de balançar a cabeça.
- Qualquer acordo que tiver feito com meu subordinado não me vincula a nada, romano. Marcus já me contou sobre você. É ele quem decidirá o seu futuro.
Marcus olhou para cima, surpreso.
- Eu?
- Foi a você que ele fez mal. Então você decide.
Marcus franziu a testa. Ainda poderia conseguir algo se fosse esperto. Ele encurvou os lábios desdenhosamente.
- Quero vê-lo morrer nas minhas próprias mãos. Ele já devia ter morrido há muito tempo.
- Não! - protestou Decimus. - Marcus, espere. Eu lhe dou o milhão de sestertii. É o suficiente para o resto da sua vida. Você pode comprar de volta sua fazenda.
Ou comprar uma maior. Ter seus próprios escravos.
Marcus enfiou o dedo no peito de Decimus e gritou:
- Se quer viver, me diga exatamente onde está minha mãe! Para qual propriedade você a enviou? Em que lugar do Peloponeso? Fale agora! Ou juro que vou arrancar o
seu coração do peito!
Decimus encolheu-se de medo ao ver a expressão de fúria do garoto e abriu a boca para responder. Em seguida, seus olhos estreitaram e ele balançou a cabeça.
- Não vou contar nada. Se quer vê-la novamente, vai ter que me libertar. Esse é o único acordo que vou fazer com você. Minha vida pela dela.
Brixus aproximou-se do agiota e agarrou a gola de sua túnica.
- É só pedir, Marcus, que eu mando Mandracus surrá-lo até ele contar a verdade.
- Ele pode tentar fazer isso. - Decimus abriu um pequeno sorriso. - Mas como vocês vão saber que estou dizendo a verdade? Você precisa de mim vivo, Marcus. Vou contar
onde ela está quando estiver longe daqui e em segurança. Só assim.
- E é para ele confiar em você?
- Eu dou minha palavra.
- Hã? Dá sua palavra? - retrucou Brixus. - Prefiro confiar em uma víbora. Marcus, mate-o. Você pode encontrar sua mãe sozinho.
Marcus fulminou o agiota com o olhar, sentindo o coração se encher de desespero e frustração. Decimus estava em uma situação vantajosa, e ele não podia fazer muito
a respeito - a não ser que houvesse alguma maneira de fazer Decimus cumprir o acordo. Ele se virou para Brixus.
- Tem outro homem entre os prisioneiros que eu queria que ficasse em segurança. Um homem alto e magro. Careca, de barba. O nome dele é Thermon.
Ele se virou de volta para Decimus.
- Se não cumprir o acordo, eu entrego Thermon para Caesar. Ele vai ter histórias interessantes para contar sobre os seus interesses de negócios, como você mesmo
diz.
Decimus inspirou profundamente entre os dentes.
- Você aprende rápido, meu garoto. Com o tempo você será um homem de tanto sucesso quanto eu e um rival perigoso. Então temos um acordo e uma maneira de garantir
que ele seja cumprido.
A cortina de couro foi puxada para o lado, e Mandracus entrou na cabana. Ele viu os outros e gesticulou para Decimus, sentindo-se culpado.
- Eu ia lhe contar a respeito dele assim que pudesse.
- Não importa - respondeu Brixus. - Já sei tudo sobre ele. Ordene que seus homens o levem daqui. Ele deve ser mantido longe dos outros. Vigie-o bem de perto. Ele
não pode escapar. E, se ele tentar, deve ser capturado vivo.
- Sim, Brixus. Como quiser. Você aí, vamos! - Mandracus puxou Decimus para cima e o empurrou para fora da cabana.
Brixus virou-se para Marcus, assobiou baixinho e disse:
- Que dia estranho. - Sua expressão ficou séria, e ele colocou a mão no ombro de Marcus. - Tenho más notícias para você. Mandracus capturou um garoto na emboscada
ao grupo de Caesar no início do mês.
Marcus sentiu uma rajada de esperança no peito.
- Lupus!
- Sim, Lupus.
- Onde está ele? Você disse más notícias? - Marcus sentiu uma pontada de ansiedade. - Eu não o vi aqui. Chame Lupus, por favor!
- Não posso. - Brixus contraiu os lábios. - Ele estava comigo quando marchei contra Caesar. A última vez que o vi foi no meio da batalha, logo antes de atacarmos
a linha romana.
Marcus engoliu em seco.
- Capturado?
- Não sei, Marcus.
- Morto?
Brixus suspirou.
- Um escravo capturado recebe pena de morte. Seria melhor se ele já estivesse morto. É melhor do que ser crucificado.
- Crucificado? - Marcus sentiu o estômago congelar. - Não... Lupus não. Caesar não permitiria que isso acontecesse. Lupus é o escriba dele. Ou era.
- Nada disso vai importar se ele tiver sido capturado com uma espada na mão.
Marcus ficou parado em silêncio, pensando no amigo. Em seguida, olhou para Brixus com cautela.
- Nunca achei que Lupus fosse de lutar. Fico surpreso por ele ter se preparado para participar de uma batalha.
- Muitos homens aqui no acampamento que nunca lutaram antes de se juntarem a nós. Mas logo eles descobrem que a liberdade é uma causa pela qual vale a pena lutar,
ou até mesmo morrer se for necessário. Foi isso que seu pai nos ensinou. Muitos se lembram dessa lição e honram o legado dele. - Ele pôs a mão no ombro de Marcus.
- Quando souberem que o novo Spartacus apareceu para liderar a rebelião, os escravos de todo o Império vão se juntar à causa imediatamente. Desta vez, nada vai ficar
entre nós e a liberdade. Nós vamos ter nossa vitória sobre Roma.
Marcus obrigou-se a sorrir. Estava ansioso com o sonho que Brixus tinha descrito. Apesar de ter aceitado que era filho de Spartacus, será que ter o mesmo sangue
bastaria para ter a mesma grandeza do pai?
20
Brixus soltou o ombro de Marcus e sorriu, cansado.
- Sou um péssimo anfitrião. O que eu estava pensando? Você está com frio e com fome, e com certeza exausto. Vamos nos sentar perto da fogueira enquanto eu peço para
buscarem comida e bebida, e assim nós conversamos.
Ele bateu as palmas e exclamou rudemente:
- Servilia!
A mulher agachada perto da fogueira contorceu-se como um cachorro açoitado, levantou-se e atravessou a cabana apressadamente, curvando a cabeça ao parar na frente
dele. Com o brilho da fogueira, Marcus avistou machucados no meio da pele encardida dela, e alguns cachos de seu longo cabelo escuro estavam opacos por causa da
sujeira.
- Quero carne, pão e vinho diluído. E figos secos se ainda tiver.
- Sim, amo.
- Imediatamente. Agora vá.
Ela se virou e foi apressadamente até um arco dando para um alpendre nos fundos da cabana. Enquanto ela desaparecia, Brixus levou Marcus para perto da fogueira,
onde o garoto afundou contente nas peles ao lado do fogo. Era bom sentir o calor das chamas, e Marcus se permitiu curtir aquele conforto por um breve instante, libertando-se
do terror que sentira na frente da multidão. Apesar de não estar mais correndo perigo, demorou um pouco para a tensão de seus músculos diminuir e braços e pernas
pararem de tremer.
Brixus passou a alça da espada por cima da cabeça e deixou a bainha cair no chão, ao lado de outra pilha de peles de animais. Ele desafivelou as alças da couraça
e a colocou ao lado da espada antes de se acomodar, suspirando de satisfação.
- A sua coxeadura melhorou - observou Marcus. - Está bem melhor do que no ludus de Porcino.
- Bem, ela nunca foi tão grave quanto eu fazia parecer. - Brixus sorriu. - Depois que fui ferido, eu jurei que nunca mais lutaria na arena para o prazer dos romanos.
Apesar de saber que o ferimento me atrapalharia, não dava para garantir que Porcino não me faria lutar novamente. Eu fingi para enganar o cirurgião dele e ele disse
que eu não podia mais lutar. Foi assim que passei a trabalhar na cozinha.
- Entendi. - Marcus assentiu com a cabeça. - Mas como veio parar aqui, no comando do acampamento?
- Depois que conversei com você da última vez, quando você estava a caminho de Roma, eu fui para as montanhas do norte. Não demorou para que eu encontrasse um dos
bandos de rebeldes. Eles me trouxeram para cá. Mandracus era o líder deles e tinha lutado por Spartacus na última revolta apesar de ser apenas um garoto na época,
apenas um pouco mais velho do que você. Ele me reconheceu e, quando eu contei que o filho de Spartacus estava vivo e que um dia ele lideraria uma nova revolta contra
Roma, se convenceu a me deixar ficar no comando. Depois disso, nós intensificamos os ataques ao inimigo e recrutamos mais gente. No início eles ficavam nervosos
e demoravam para se juntarem a nós, mas quando as notícias das nossas vitórias se espalharam, e com a promessa de um herdeiro de Spartacus, eles vieram para o nosso
lado aos montes. - Os olhos dele brilharam de entusiasmo. - Marcus, temos mais de dez mil homens a postos em acampamentos como este por todos os montes Apeninos.
Com você como símbolo, esse número vai crescer bem rapidamente. Logo vamos descer das montanhas marchando para enfrentar as legiões romanas no campo de batalha,
e dessa vez a vitória será nossa.
A escrava atravessou a pequena entrada lateral da cabana, equilibrando uma bandeja com carne e pão em uma das mãos e carregando uma jarra e dois cálices na outra.
Ela se aproximou rapidamente da fogueira e colocou a refeição entre Brixus e Marcus. Em seguida, a mulher afastou-se depressa e ficou parada com a cabeça encurvada,
em silêncio. Brixus ignorou-a, empilhou um pouco de carne em uma travessa de madeira e a ofereceu para Marcus.
- Tome. Imagino que deva estar com fome.
Marcus segurou a travessa e começou a comer imediatamente, com rapidez, rasgando a carne de carneiro fria com os dentes e mastigando com força. Brixus observou-o
sorrindo e lhe entregou uma pequena rodela de pão e um cálice com vinho diluído. Marcus acenou com a cabeça para agradecer e continuou comendo até sentir a barriga
confortavelmente satisfeita. Após um tempo, ele afastou a travessa para o lado e suspirou.
Brixus, comendo de uma maneira mais comedida, olhou para cima.
- Quer comer mais ou prefere alguma outra coisa? Fruta? Torta de figo e tâmara?
- Não. Estou bem. Obrigado.
Brixus estalou os dedos para a mulher.
- Coloque mais madeira no fogo. Depois vá embora e nos deixe sozinhos.
- Sim, amo. - Ela tirou algumas toras da pilha perto da fogueira e as colocou nas chamas antes de se aproximar do lado da cabana e desaparecer pela saída lateral.
Enquanto a cortina de couro voltava ao lugar, Marcus a ficou encarando e depois falou:
- Achei que você estava lutando para acabar com a escravidão.
- Hã? - Brixus franziu a testa rapidamente e depois entendeu. - Ah, ela. Não se preocupe com ela, Marcus. Já estava na hora de alguns romanos aprenderem o que os
escravos precisam suportar.
- Não entendo. Ou você é contra a escravidão ou é a favor dela.
- Claro que sou contra. E quando Roma parar de afirmar que é dona da gente, Servilia também será livre. Até lá, ela é minha escrava.
- Mas...
- Já basta, Marcus. Não vou discutir esse assunto. Ela merece ser tratada como tratava os outros até tudo isso acabar. Está claro?
Marcus concordou com a cabeça, surpreso e um pouco intimidado pelo tom cruel das palavras de Brixus. Um silêncio surgiu entre os dois, e Marcus ficou encarando as
chamas e refletindo. Ele estava preocupado com o plano de Brixus. Tirando o fato de que seria o símbolo da nova rebelião, ele não sabia se os rebeldes seriam capazes
de derrotar as legiões romanas. Mesmo se milhares de escravos tivessem escapado de seus donos para se juntarem à rebelião, eles não tinham o treinamento nem a experiência
dos legionários. Apenas uma pequena quantidade dos rebeldes era formada de gladiadores ou tinha experiência com lutas. Marcus vira de perto o quanto era significativa
a vantagem de um lutador treinado em relação a um recruta novo, independentemente do quanto o recruta quisesse lutar.
- Você não vai conseguir vencer, Brixus - disse ele baixinho. - Não dá para derrotar Roma.
O líder dos rebeldes o encarou.
- E por quê?
- Você sabe bem. Olhe só o que aconteceu quando enfrentaram Caesar. Vocês foram derrotados.
- Não fomos derrotados - respondeu Brixus rispidamente. - Lutamos como leões. Meus seguidores têm coragem suficiente para ir até o fim.
- Coragem não basta. Nós dois aprendemos isso no ludus de Porcino. É preciso mais do que coragem. Não dá para vencer sem disciplina e treinamento. É por isso que
seus homens não quiseram atacar os romanos uma segunda vez.
- Com o tempo eles vão ter mais disciplina e treinamento. Mais do que o suficiente para derrotar o inimigo.
- Mas não temos tempo - argumentou Marcus. - Caesar e seus homens estão atrás de vocês. Quanto tempo acha que eles vão demorar para encontrar esse vale?
- Nenhum romano o encontrou ainda.
- Isso porque o vale estava sendo usado apenas por alguns poucos rebeldes antes de você chegar. Agora tem mais gente e muitos foram capturados por Caesar. Com certeza
alguém vai contar sobre o vale. Os romanos vão usar tortura ou oferecer recompensas para obterem o que querem. Então eles vão bloquear a entrada do vale e fazer
você e seus seguidores morrerem de fome.
- Aqueles que me seguem prefeririam morrer a trair a causa.
- Será mesmo?
- Além disso, agora você chegou. O seu nome e o seu legado vão inspirar a devoção de todos à causa da luta pela liberdade. Com você liderando nosso exército, nada
será capaz de nos deter!
- Brixus, eu não sou o homem que meu pai era. - Marcus parou e sorriu debilmente enquanto tocava no próprio peito. - Não sou nem um homem ainda. Como posso liderar
um exército?
- Você não vai liderar de verdade. Esse é o meu dever. Como disse antes, você será o símbolo da nossa causa. Só isso.
Marcus pensou por um instante e balançou a cabeça.
- Não quero ser usado desse jeito. Não vou ser a razão pela qual homens, mulheres e crianças vêm correndo para se juntar a uma causa fútil. Não quero o sangue deles
nas minhas mãos.
- Mas eu preciso de você - insistiu Brixus raivosamente, e depois parou para se acalmar. - Quer dizer, nós precisamos de você. Você trairia todos os escravos que
ainda acreditam no seu pai e na causa pela qual ele lutou?
- Não estou traindo ninguém. Só quero poupá-los de uma morte em vão.
- Não é uma morte em vão, Marcus. Enquanto os homens se preparam para lutar, e morrer, por uma causa na qual acreditam, a causa continua viva e um dia ela poderá
triunfar. Se os homens não fizerem nada, eles simplesmente ficarão condenados a uma vida sofrida e sem sentido.
- Mas eles ainda vão estar vivos - argumentou Marcus. Ele acreditava no que Brixus estava dizendo, mas não conseguia aceitar o sofrimento e o banho de sangue que
aquilo acarretaria. E não suportaria ser responsável por atrair tantas pessoas para a própria morte. Ele balançou a cabeça. - Não. Não posso fazer isso. Com o tempo,
talvez os próprios romanos acabem com a escravidão.
- Bá! Você está vivendo nas nuvens, garoto. Roma nunca, nunca acabará com a escravidão. Ela é a base de todo o poder deles. São os escravos que cultivam os campos,
trabalham nas minas e dão o sangue na arena. Roma não é nada sem nós, e é por isso que a escravidão só acabará se tivermos coragem e determinação para levar a causa
até o seu amargo fim. - Com os olhos brilhando de fervor, Brixus inclinou-se para perto de Marcus e apontou o dedo para ele. - Mesmo se fracassarmos, se todos nós
formos derrotados e crucificados, o nosso exemplo estimulará a chama da rebelião acesa no coração de todos nós que não somos livres. É isso que faz os homens virarem
heróis, Marcus. O seu pai foi um herói. Você tem o dever de seguir os passos dele. Ou vai traí-lo? Será que você é covarde demais para honrar a memória dele?
Com raiva, Marcus rangeu os dentes ao responder:
- Não sou covarde. Eu enfrentaria qualquer perigo, de qualquer tamanho, por algo em que acredito. Eu não acredito que você seja capaz de derrotar Roma. Além disso,
eu nem conheci meu pai. Ele morreu antes que eu respirasse pela primeira vez nesse mundo. Não vou ser escravo do legado de um homem morto. A vida é minha, Brixus.
Minha. Fui criado em uma pequena fazenda de uma ilha grega. O homem que me criou, o homem que amei como um pai, foi assassinado diante dos meus próprios olhos. Minha
mãe e eu fomos vendidos como escravos. Essa é a história da minha vida, e eu só vou descansar quando minha mãe estiver livre. É por isso que quero lutar e até mesmo
morrer se for necessário. Somente isso.
Brixus olhou para ele com uma expressão de compreensão.
- Claro, Marcus. Entendo. Mas quem está dizendo isso é o garoto dentro de você. Sua infância lhe foi roubada e você quer conquistá-la de volta. Poucas pessoas neste
acampamento tiveram a oportunidade de ter o que você tinha e perdeu. E isso é uma injustiça monstruosa. Talvez você seja jovem demais para compreender isso. Mas
um dia você vai compreender. É isso que significa ser homem. Entender que existem assuntos mais importantes no mundo do que você mesmo e seus sonhos.
- Não é um sonho! - disparou Marcus, seus olhos ardendo com o esforço para não chorar. Ele queria poder explicar a dor que dilacerava seu coração a cada pensamento
sobre sua mãe. A culpa terrível que o corroía por não ter conseguido salvá-la. - Vou libertar minha mãe. Ela é a única coisa importante para mim.
- Marcus... todos nós temos mães. Eu perdi a minha quando ela foi vendida pelo meu senhor. Não pude fazer nada. Acha que sou diferente de você? Acha que minha perda
foi menos importante do que a sua?
Marcus sentiu um aperto na garganta e não conseguiu falar. Se tentasse, sabia que sua voz hesitaria e que seria tomado por uma onda de aflição e lágrimas. Felizmente,
Brixus falou novamente com bastante empatia:
- Marcus, junte-se a nós e lutará por sua mãe e todas as outras mães e filhos que sofrem como você, e muito mais. É demais pedir isso? Essa é a única pergunta que
importa agora. - Ele estendeu a mão e apertou delicadamente o braço do garoto. - Você está cansado. É melhor descansar agora que comeu e que está aquecido. Fique
aqui perto da fogueira e durma. Conversaremos de novo de manhã. Tenho certeza de que você vai perceber que estou falando a verdade.
Marcus olhou para ele.
- E se isso não acontecer?
- Vai acontecer. - Brixus endureceu sua expressão. - Só existem dois lados nesse conflito, Marcus. Aqueles que lutam pela liberdade e aqueles que não fazem isso.
- Ele deixou as mãos se afastarem, levantou-se e olhou para baixo. - Pelo bem da nossa amizade, espero que você escolha o lado certo.
21
Encolhido nas peles de animais ao lado da fogueira, Marcus não conseguia dormir apesar da exaustão. Era difícil parar de pensar nas últimas palavras de Brixus. Havia
um tom inconfundível de ameaça nelas. Ou ele concordaria em ser o símbolo da nova rebelião ou se tornaria inimigo de Brixus, o que colocaria sua vida em perigo,
e consequentemente a da sua mãe também. No entanto, se concordasse com o pedido de Brixus, ele não seria nada além de um fantoche a ser controlado na frente de seus
seguidores, atraindo-os para uma morte quase certa.
Marcus sabia que a nova rebelião estava condenada ao fracasso. Mesmo se Brixus conseguisse inspirar um levante popular, a maioria dos lutadores era composta de camponeses
ou escravos domésticos. Eles teriam pouca chance de sobreviver contra as legiões romanas. Seria um banho de sangue. Milhares morreriam, e, depois que a rebelião
fosse contida, os romanos tratariam os escravos com uma crueldade e repulsa ainda maior.
Não era o momento certo para uma rebelião. Roma era muito forte, e os escravos, fracos demais. Seria mais sensato aguardar uma oportunidade melhor, refletiu Marcus.
Aqueles que se opunham à escravidão precisavam esperar o momento certo. Mas e se esse momento nunca chegasse, perguntou uma voz no fundo de sua mente. Por quanto
tempo os escravos devem aguentar antes de aproveitarem a oportunidade e se desfazerem de suas correntes? Dez anos? Vinte? A vida inteira? A voz zombava dele. Era
melhor nem pensar em rebelião.
Marcus sentiu-se dividido entre a vontade de lutar contra a escravidão e a consciência de que a luta de Brixus terminaria em derrota e mortes. No fim das contas,
ele sabia o que tinha de fazer, mesmo se a sua escolha trouxesse desespero em seu coração.
O brilho fraco das brasas iluminava o suficiente para ele enxergar o caminho até a entrada da cabana. Afastando as peles para trás, Marcus agachou-se cautelosamente
e foi tateando até chegar à cortina de couro. Ele parou e ficou prestando atenção, mas não escutou nenhum barulho de movimento vindo do lado de fora. Respirou fundo
e afastou a cortina para espiar pela beirada. O espaço aberto à sua frente parecia vazio exceto pelo sentinela encurvado repondo a lenha de uma pequena fogueira.
O restante tinha ido embora, e os brilhos fracos pelo vale indicavam que a maioria das outras fogueiras tinha parado de ser reabastecidas para evitar que a fumaça
ficasse visível ao amanhecer. O céu estava quase todo coberto por nuvens e havia apenas algumas áreas límpidas e com estrelas. Era provável que fosse nevar novamente,
pensou Marcus. Uma nova camada de neve seria boa para disfarçar suas pegadas.
Ele observou o sentinela agachar-se e estender as mãos para aquecê-las em cima das chamas que tremeluziam devido à lenha nova. O homem pareceu se acomodar, então
Marcus saiu discretamente da cabana e, abaixado, acompanhou a parede até que não fosse mais possível vê-lo. Então parou para lembrar o que havia visto do vale depois
de removerem sua venda. Retraçou a direção de onde Brixus e seus homens vieram quando se juntaram à multidão e avistou um forte declive no rochedo do vale, contrastando
com o céu noturno mais claro. Parecia um local bem provável de encontrar a entrada secreta.
Conferindo se tudo estava quieto, Marcus afastou-se da cabana e atravessou o acampamento com cautela. Ruídos de ronco, tossidos ocasionais e palavras murmuradas
saíam das cabanas e abrigos rudimentares. Além disso, havia os barulhos dos animais se movendo e resfolegando dentro dos currais. O odor quente deles misturava-se
ao cheiro cada vez mais fraco de fumaça. Marcus movia-se sorrateiramente de um esconderijo para o outro, parando para assegurar-se de não ter chamado nenhuma atenção,
mantendo olhos e ouvidos atentos para garantir que não havia nada se mexendo em sua frente antes de arriscar o passo seguinte. Certo momento, foi obrigado a se jogar
no chão quando um homem saiu de uma tenda de pele de bode para urinar. Marcus esperou que ele voltasse para seu abrigo com um grunhindo semiadormecido.
Após um tempo, Marcus chegou a uma trilha na beirada do acampamento que seguia por um declive em direção aos rochedos. Ele percebeu que ali era o leito seco de um
riacho e presumiu que muitos anos antes a água corria pelo espaço entre os rochedos que agora servia como entrada do vale. O riacho devia ter encontrado um novo
curso, ou talvez os primeiros habitantes do vale tivessem feito um desvio para ele.
Após dar a volta por uma enorme rocha, Marcus congelou ao escutar uma conversa baixa na base dos rochedos, a alguns metros de distância.
- Brixus e seus companheiros levaram a maior surra hoje - disse a primeira voz. - Ouvi falar que ele perdeu mais de quinhentos homens.
- Tudo isso? - respondeu outra voz grosseiramente. - Foi um golpe pesado pra gente. E mais pesado ainda para os romanos.
- Por quê?
- Você o escutou. Ele disse que eles caíram bem na armadilha. Eles tiveram sorte de escapar, estavam acabados demais. Depois que a notícia da derrota de Caesar chegar
a Roma, eles vão perceber que nós representamos uma ameaça forte e vão ter que levar a sério as nossas exigências.
- Acha mesmo? Se realmente tivermos vencido, duvido que a gente sobreviva a muitas outras dessas supostas vitórias de Brixus.
- Cuidado. Esse tipo de conversa é perigoso.
- Ficar aqui também é. Isso aqui não está sendo o grande levante que nos prometeram quando nos juntamos à causa. Não sei se minha vida está muito melhor agora em
comparação a quando eu era escravo. Pelo menos como escravo eu recebia comida e abrigo. Agora minha barriga ronca o tempo inteiro e passo tanto frio que não paro
de tremer.
- Silêncio! - chiou seu companheiro. - Quer que todo mundo nos escute? E se Mandracus estiver fazendo sua ronda, hein? Se ele ouvir você falando coisas assim, vai
arrancar sua língua. Agora pare de reclamar e fique vigiando, pois é isso que devemos fazer.
O outro homem grunhiu incoerentemente, e Marcus escutou o barulho de botas em seixos enquanto os dois sentinelas afastavam-se um do outro, prestando atenção na entrada
dos rochedos. Forçando a visão, Marcus conseguiu enxergar a silhueta dos dois homens de mantos, cada um com um escudo em um braço e uma lança apoiada nos ombros.
Mal se atrevendo a respirar, ele se aproximou. Havia um sentinela em cada lado da abertura, que tinha menos de três metros de largura. Mais à frente, a fenda estreita
era engolida por uma escuridão profunda. Ele não tinha como chegar até lá sem que os dois rebeldes o vissem. Marcus pensou no problema. Se não era capaz de passar
pelos homens, precisaria distraí-los de alguma maneira.
Marcus estendeu o braço para baixo e tateou os seixos no leito seco do rio até encontrar um do tamanho de um ovo. Ele o ergueu para ter uma noção melhor de seu formato
e peso e o arremessou para o lado com toda a força que tinha. Houve um breve silêncio antes de o seixo bater em uma rocha na base do rochedo. Os dois homens viraram-se
na direção do barulho imediatamente; o mais próximo abaixou a lança.
- Quem está aí? Apareça!
Como ninguém respondeu, ele olhou para o camarada.
- Ao meu sinal, vamos.
- Vá você. Deve ser só um cachorro ou algo assim. Vou ficar aqui.
Marcus sentiu um aperto no coração e xingou silenciosamente a falta de coragem do homem.
- Não. Você vem comigo! - disse o outro com raiva. - Agora!
Os dois aproximaram-se do barulho com cautela e Marcus ergueu-se um pouco, indo sorrateiramente para perto da abertura. Ele deslizou para o meio das sombras ao ouvir
um dos homens murmurar:
- Está vendo, não tem nada aqui. Vamos voltar para nossos postos.
- Mas nós dois escutamos o barulho.
- Como eu disse, deve ser algum animal.
- Hummm.
Marcus atravessou a abertura com o máximo de velocidade que dava para arriscar, desesperado para se distanciar dos dois sentinelas. Ao seu redor, as laterais da
abertura subiam, deixando à mostra apenas uma faixa fina do céu noturno. Estava escuro como breu, e ele teve que sentir o caminho com as pontas das botas e as mãos
estendidas na frente do corpo, procurando possíveis obstáculos no trajeto. Não havia nada, e debaixo de seus pés o chão era nivelado e feito de cascalho. Apesar
de não ter nenhum vento, estava mais frio do que no vale, e Marcus fez força na mandíbula para seus dentes não baterem. Não podia fazer nada a respeito do resto
do corpo, e pernas e braços tremiam violentamente ao prosseguir no meio da escuridão. Estava morrendo de medo de encontrar rebeldes dentro da abertura, mas só havia
silêncio adiante.
Tremendo de frio, nervosismo e exaustão, Marcus deu a volta em uma curva da abertura e avistou um fragmento de luz estelar a uma pequena distância, deixando à mostra
a saída. Então ele parou. Claro que Brixus teria colocado sentinelas nas duas extremidades da passagem estreita, e era provável que aqueles do lado de fora estivessem
mais atentos. No entanto, eles procurariam ameaças de fora, então deviam estar de costas para Marcus. Mesmo assim, o garoto passou a andar mais devagar e abraçou
a lateral da abertura enquanto tateava até a entrada. Mais à frente havia um pequeno terreno cercado de pinheiros e coberto com a neve marcada pela passagem de muitos
homens e cavalos. Marcus se preparava para sair da abertura e se aproximar dos pinheiros quando percebeu movimento no meio das árvores.
Um pequeno grupo de homens trotava pela trilha na direção da entrada da abertura. Eles estavam no meio do terreno quando vários homens surgiram dos dois lados das
árvores, apontando suas lanças e cercando os recém-chegados.
- Quem está aí?! - exclamou uma voz ameaçadoramente.
Os homens na trilha pararam imediatamente, e o líder deles ergueu sua arma enquanto respondia:
- Trebonius dos batedores. Deixe-nos passar.
- Trebonius? Você só devia voltar daqui a vários dias. É para você ficar de olho em Caesar.
- E é o que fizemos. Ele está marchando para cá. Agora me deixe passar. Tenho que informar Brixus.
- Caesar está vindo...
Marcus sentiu uma mistura de esperança e ansiedade ao ouvir a notícia. Se era para seu plano dar certo, precisava encontrar Caesar o mais rápido possível, enquanto
ainda houvesse chance de impedir o banho de sangue. Os homens no terreno conversavam em tom de voz baixo e apressado, e Marcus não conseguia mais escutá-los. No
entanto, eles estavam concentrados na conversa. Respirando fundo, Marcus agachou-se e moveu-se lentamente até sair da abertura, ficando perto do rochedo enquanto
se aproximava das árvores. Era apenas uma pequena distância, menos de trinta metros, e ele conseguiu chegar ao pinheiro mais próximo enquanto o grupo de batedores
continuava indo em direção ao acampamento. Os sentinelas viraram-se e voltaram aos seus postos. Marcus abaixou-se debaixo de um galho pesado e suspirou aliviado
ao ver que não dava mais para enxergar o terreno. Em seguida, sua túnica ficou presa em um galho quebrado e o ramo inteiro se balançou, causando uma pequena avalanche
de neve.
- Ali! - exclamou uma voz. - Tem alguém ali! Debaixo daquela árvore. Ei, você, pare!
Marcus xingou-se por sua trapalhada, mas logo se pôs em movimento mais uma vez, passando apressadamente por baixo de galhos ao penetrar mais na floresta. Enquanto
empurrava os galhos para trás, escutou gritos e o barulho de gravetos sendo pisados por seus perseguidores.
- Não deixe o espião escapar! - ordenou uma voz. - Matem-no se precisar!
Marcus ficou abaixado e continuou correndo, dando a volta nos troncos de árvores, sem enxergar direito o caminho adiante. Ele não sabia para onde ir, mas continuou
correndo para longe dos sons dos perseguidores. Estava no limite da exaustão. Talvez fosse melhor parar, encostar-se a um tronco de árvore e ficar imóvel, deixar
os homens passarem. Assim poderia escapar por uma direção diferente. Mesmo enquanto aquele pensamento passou por sua cabeça, ele sabia que não podia arriscar ser
encontrado e assassinado nem levado de volta para Brixus. O gladiador veterano não perdoaria sua tentativa de fuga. Apesar de Brixus ter sido muito próximo de Spartacus,
ele era mais fiel ainda ao seu ódio fanático por Roma. Ele não teria misericórdia com quem traísse sua causa, nem mesmo se fosse o filho de Spartacus.
Aquele pensamento fez o garoto ganhar uma nova energia, e Marcus se forçou a seguir em frente, cambaleando pela floresta escura enquanto o chão sob suas botas começava
a se inclinar para baixo sutilmente. Atrás dele, os rebeldes chamavam um ao outro e continuavam a perseguição.
Depois de um quilômetro e meio, a quantidade de árvores começou a diminuir abruptamente, e, de repente, Marcus se encontrou a céu aberto, na beirada de um terreno
irregular. Havia uma área cercada por rocha na base do declive, com mais árvores a alguns metros de distância. Imaginou que devia ser um pasto de verão para bodes
ou ovelhas. Se seguisse pelo declive, seu manto escuro chamaria a atenção devido ao contraste com a neve, e acabaria avistado assim que os rebeldes saíssem da floresta.
Com uma sensação crescente de pânico, ele se virou para retornar ao abrigo das árvores, quando escutou uma voz nas proximidades:
- Aqui! Algumas pegadas... ele veio por aqui!
Uma onda fria de terror percorreu suas costas. Agora só havia uma direção, e Marcus se virou e correu desesperado. Após percorrer cerca de cinquenta metros do campo
nevado, o primeiro perseguidor surgiu em disparada do meio da floresta.
- Lá está ele! É apenas um garoto!
- Pegue-o! - disse outro. - Ele não pode escapar!
Marcus arriscou olhar rapidamente para trás e avistou várias silhuetas escuras se aproximando, levantando neve ao correrem pelo declive. Ele continuou em disparada,
o coração acelerado. O medo apertava tanto seu peito e sua barriga que Marcus ficou ainda mais ofegante. Ao olhar para trás mais uma vez, os homens estavam bem mais
próximos, pois conseguiam dar passadas bem maiores que ele. Quando eles chegaram à metade do campo, Marcus percebeu que seria alcançado antes de se aproximar das
árvores. O garoto sentia a energia se esvaindo das pernas, e não havia nada que pudesse fazer.
Na frente dele estava o muro de pedras do curral, e ele avistou um movimento repentino, uma silhueta escura erguendo-se acima dele. Depois surgiu mais uma, e mais
uma.
- Atenção, rapazes! Temos companhia.
Marcus desacelerou momentaneamente, sem saber se eram outros seguidores de Brixus. No entanto, os gritos mais atrás o fizeram ranger os dentes e continuar correndo.
- Matem-no! - gritou alguém. - Ele não pode nos entregar! Matem-no!
Um vulto escuro passou voando ao lado da cabeça de Marcus e explodiu na neve. Ele avistou o cabo de uma lança enquanto corria e estava preparado para sentir um golpe
doloroso a qualquer momento, quando o próximo projétil perfurasse suas costas e rasgasse seu corpo. A uma pequena distância, um dos homens do outro lado do muro
de pedras levantou-se e jogou o braço para trás.
- Abaixe-se, garoto! - gritou ele de forma áspera. - Abaixe-se!
Sem tempo para pensar, Marcus lançou-se para a frente, em cima da neve gélida, e rolou para perto do muro. Ele não viu o que aconteceu em seguida, apenas escutou
a pancada e um forte grunhido de alguém mais atrás. Após ficar de quatro, ele olhou para trás e viu um dos rebeldes cair no chão com o cabo de uma lança preso em
sua barriga.
- Vamos! - rugiu uma voz de trás do muro de pedras, e silhuetas escuras passaram por cima dela com espadas nas mãos. Alguns carregavam grandes escudos ovais enquanto
corriam para cima dos rebeldes, dando um grito de guerra. Espadas tiniam sem parar ao redor de Marcus. Sem nada com que se proteger, ele se agachou enquanto corria
até o muro e escalou as pedras antes de descer do outro lado.
Ele caiu no chão com força, ficando sem ar nos pulmões, e demorou um instante para assimilar seus arredores. O interior do curral estava repleto de cangas de legionários,
e havia várias lanças encostadas no muro. Alguns homens ainda estavam lá dentro, e era tarde demais para eles participarem do confronto. Marcus levantou-se, arfando,
e deu uma olhada por cima do muro. A luta já tinha acabado. A maioria dos rebeldes tinha se virado para fugir e estava subindo o declive em disparada, querendo se
proteger no meio das árvores distantes. Vários corpos estendiam-se na neve, alguns se contorcendo e gemendo de dor. Os soldados estavam parados, zombando e acenando
punhos e espadas para os rebeldes.
- Certo! - exclamou uma voz por cima dos gritos. - Vocês já se divertiram, rapazes. Levem os feridos para dentro do curral. Agora, onde está aquele garoto? Quero
dar uma palavrinha com ele.
Um homem alto e encorpado passou por cima do muro e olhou para os dois lados antes de avistar o corpo esguio de Marcus e se aproximar. Ele parou com as mãos no quadril
e ficou encarando o garoto.
- Quer me contar o que foi isso que aconteceu?
- Me leve até Caesar - respondeu Marcus, ainda ofegante. - Preciso falar com ele. Imediatamente.
- Quer falar com o general? - perguntou o centurião com tom de voz brincalhão. - Duvido que ele vá gostar muito de ser acordado no meio da noite.
- Acho que vai gostar sim... - Marcus respirou fundo para se acalmar e falar com clareza: - Depois que você contar que Marcus Cornelius escapou e que ele sabe onde
fica o acampamento dos rebeldes.
22
- Marcus! - Caesar sorriu ao levantar o olhar da sua mesa de campanha. - Achava que estava morto. Onde o encontrou, Festus? O garoto parece acabado.
- Uma das patrulhas o encontrou, senhor. Eles queriam juntá-lo aos escravos que capturamos, mas ele disse que tinha informações importantes para o senhor. Então
eles o levaram até a sede. Eu estava lá quando eles chegaram ao amanhecer e reconheci Marcus imediatamente. Eu o trouxe direto para cá.
Caesar gesticulou para Marcus.
- Você está tremendo. Venha, sente-se perto do fogo e se aqueça. Festus, dê a ele o meu manto e peça para trazerem comida, algo quente.
Marcus se sentou em um banco de frente para o braseiro que aquecia e iluminava a barraca, e Festus foi até um baú pegar o manto pesado de lã. Ao pensar em comida,
Marcus sentiu a barriga roncar, e sua necessidade de matar a fome falava mais alto do que a de dormir. Um instante depois, Festus pôs o manto delicadamente por cima
dos ombros do garoto, que começou a se sentir confortável pela primeira vez em muitos dias.
Depois que Festus saiu da barraca, Caesar virou-se para Marcus. Houve um breve silêncio antes que ele falasse novamente:
- Você vai gostar de saber que esta não é a primeira reunião com camaradas antigos. Parece que Lupus sobreviveu à avalanche. Os rebeldes o tiraram do meio da neve.
- Lupus está vivo? - Marcus não pôde deixar de sorrir ao escutar a notícia. - Onde ele está?
- Com o restante dos prisioneiros. Ele foi capturado depois do nosso confronto com os rebeldes. - Caesar balançou a cabeça tristemente. - Eu tinha uma opinião errada
dele. Ele não era o escravo leal que parecia ser. Claro que ele vai ser punido quando chegar a hora certa, antes que eu o ponha para trabalhar acorrentado. O trabalho
duro de uma fazenda ou de uma mina vai fazê-lo aprender o preço da traição.
Inicialmente, Marcus não sabia o que dizer. Ele mal acreditava que Lupus se juntaria à rebelião por vontade própria, no entanto por que ele não faria isso? Por mais
que tivesse conforto como escriba de Caesar, no fim das contas ele não passava de uma propriedade de seu senhor. Talvez Lupus tivesse compreendido aquilo e decidido
que queria sentir um pouco da liberdade que seu senhor desprezava. Marcus estava determinado a salvar o amigo.
- Senhor, Lupus não teve escolha. Ou ele se juntaria aos rebeldes ou seria morto.
- Era o dever dele recusar. Não sinta pena dele, Marcus - prosseguiu Caesar, interpretando a expressão no rosto de Marcus com precisão. - Lupus merece o destino
que vai ter. Você se recusou a se juntar a Brixus e conseguiu escapar. É isso que Lupus devia ter feito.
- Ele não teve o treinamento que tive, senhor.
- Isso não é desculpa - respondeu Caesar desdenhosamente. - Enfim, já basta de Lupus. Quero esquecê-lo. Estou mais interessado na sua história. Então você sobreviveu
ao ataque ao comboio de bagagens. Depois que eles não encontraram seu corpo, fiquei com esperanças de você ter sido levado vivo. Foi um pequeno consolo considerando
as barracas e comidas perdidas. O único abrigo que sobrou foi essa barraca aqui. Era grande demais para ser levada, imagino. Meus homens estão tendo que dormir ao
ar livre, e, se não destruirmos o inimigo nos próximos dias, eu serei obrigado a voltar a Módena para pegar novos mantimentos e começar a campanha novamente... A
não ser, claro, que essa sua informação mude as circunstâncias. E então, Marcus, o que é que você tem para me dizer?
Encarando as chamas, Marcus tentou se livrar do cansaço que embaçava sua mente. Se revelasse o segredo do acampamento de Brixus, Caesar destruiria os rebeldes sem
piedade. Brixus e seus seguidores lutariam até o fim e milhares de pessoas morreriam. Ao pensar em todo o banho de sangue, Marcus ficou horrorizado e decidiu que
precisava fazer tudo o que pudesse para impedir aquilo, mesmo se terminasse se desentendendo seriamente com seu antigo senhor. Ele pigarreou, endireitou a postura
e se virou para falar com Caesar:
- Eu sei onde fica o acampamento principal dos rebeldes. Foi para lá que eles levaram os prisioneiros depois da emboscada.
- Você sabe onde eles estão? - Caesar ergueu as sobrancelhas de surpresa. Ele sorriu friamente. - Excelente... agora eles são nossos. A rebelião está acabada. -
Ele parou e estreitou um pouco os olhos. - Mas arrisco dizer que você não foi o único prisioneiro.
- Tinha mais alguns outros, incluindo o tribuno Quintus, senhor.
- Quintus está vivo? Esperava que ele tivesse agido com honra e morrido em vez de ser levado como prisioneiro. É uma vergonha para ele mesmo e para Portia, portanto,
para minha família. Se ele ainda estiver vivo quando isso acabar, é melhor ele desistir de quaisquer ambições de seguir uma carreira política. Enfim... se outros
também foram levados como prisioneiros, como foi que só você conseguiu fugir? É melhor se explicar.
Marcus pensou rapidamente.
- Eu estava com os outros quando Brixus e seus homens voltaram para o acampamento. Ele me reconheceu e ordenou que seus homens me soltassem.
- Você conhece Brixus? Você o conhece e não me informou disso?
- Achei que o senhor soubesse - respondeu Marcus inocentemente. - Brixus estava no mesmo ludus que eu, mas conseguiu escapar.
- Pelos deuses! - Caesar fechou os olhos com força por um instante, como se estivesse furioso por não ter associado os dois fatos. Ele respirou fundo antes de a
tensão em seu rosto diminuir. - Tudo bem, então vocês se conheciam. O que aconteceu depois que ele o soltou?
- Ele me levou até a cabana dele e nós conversamos.
- Sobre o quê?
- Ele tentou me convencer a fazer parte da rebelião. E me disse que dessa vez ele vai conseguir o que Spartacus não conseguiu. Ele também me perguntou sobre o senhor.
- Sobre mim?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Ele sabia que o senhor tinha me comprado de Porcino e me levado para que eu continuasse meu treinamento em Roma. Ele queria que eu contasse o que sabia sobre sua
personalidade e seus planos para a campanha.
- Entendo. E o que você disse?
- Eu disse que não sabia os detalhes dos seus planos. E que o senhor estava determinado a acabar com a revolta o mais rápido possível, a qualquer preço. Eu disse
que o senhor não é o tipo de homem que deixa um obstáculo bloquear seu caminho.
Caesar inclinou-se sobre a mesa.
- Como ele reagiu a isso? Ele ficou incomodado?
Marcus fez uma breve pausa antes de responder:
- Acho que sim.
- Ótimo, então ele ficou abalado. Homens ansiosos costumam tomar mais decisões precipitadas. E isso deixa aqueles que os seguem nervosos. E o que aconteceu depois?
Como escapou?
- Depois que Brixus terminou de falar, ele me deixou sozinho para eu dormir. Esperei os rebeldes se acomodarem em seus leitos e saí escondido do acampamento. Estava
quase em segurança quando alguns homens de guarda me avistaram. Eles me perseguiram até eu me deparar com a sua patrulha. O restante o senhor já sabe.
Caesar tinha prestado bastante atenção e agora sorria.
- Uma história e tanto, Marcus. Você teve sorte, mas foi esperto e demonstrou muita coragem. Mas não espero nada menos de você. Acho que a essa altura Brixus já
sabe da sua fuga. Ele vai fazer planos para abandonar o acampamento e fugir. Agora é o momento de atacar. Nós vamos marchar e alcançá-los assim que amanhecer e resolver
logo esse assunto. Diga-me, Marcus, onde é que eles estão?
Aquele era o momento temido por Marcus. Ele sentiu braços e pernas tremerem ao se obrigar a falar:
- O que planeja fazer, senhor?
- Ora, capturar aquela ralé antes que eles fujam. Os que não matarmos vão servir de exemplo. Nunca mais os escravos vão duvidar do que os aguarda caso decidam enfrentar
seus senhores.
Marcus fez sim com a cabeça.
- É isso que eu temia que o senhor fosse dizer.
A expressão de triunfo desapareceu do rosto de Caesar, e ele ficou encarando Marcus fixamente.
- No que está pensando, meu garoto? Estamos falando de escravos. Pior ainda, de rebeldes. Eles destruíram centenas de fazendas e vilas e assassinaram milhares de
romanos. Está questionando o direito que tenho de destruí-los?
Marcus já tinha sua resposta pronta.
- Até alguns meses atrás, eu era um escravo. Eu fazia parte dessa ralé que você mencionou.
- E agora está livre.
- Mas isso não bastou para que eu esquecesse a experiência de ser um escravo, senhor.
- Marcus, não é você que escolhe o lado em que está. O destino escolhe por você. Um ano atrás, talvez você tivesse se juntado a Brixus. Mas agora está do meu lado.
Do lado de Roma.
- Talvez eu seja livre, mas eu vivi como um escravo e senti a maneira cruel e brutal como eles são tratados. Eu entendo por que Brixus e os outros se rebelaram.
Eles não tiveram escolha.
- Escolha? - Caesar pareceu surpreso. - O que escolha tem a ver com isso? Os escravos não têm direito de escolher nada. Eles devem simplesmente obedecer ou lidar
com as consequências de não obedecer. E eu vou mostrar a eles e a todos os escravos do Império o preço que se paga quando se esquece do significado de ser um escravo.
Marcus desvencilhou os ombros para deixar que o manto de Caesar caísse no chão.
- Então não posso contar onde fica o acampamento.
- Não pode ou não quer? - repetiu Caesar com um tom de voz gélido. - Está se atrevendo a me desafiar?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Se isso for salvar vidas, sim. Tanto de romanos quanto de escravos. Senhor, eu o servi com lealdade. Sou grato pelo senhor ter me libertado. Eu não o desafiaria
se houvesse outra opção. - Marcus cerrou o punho e o pressionou contra o próprio peito. - Não quero ficar com tantas mortes assim na minha consciência.
Antes que o confronto pudesse prosseguir, eles escutaram o barulho da aba da barraca. Era Festus chegando com um cantil e uma grande tigela. O envolvente aroma de
ensopado encheu as narinas de Marcus. Festus hesitou brevemente ao perceber o clima tenso entre os dois e depois prosseguiu em direção à mesa, deixando o cantil,
a tigela e a colher em cima dela. Em seguida, todos ficaram em silêncio e ninguém falou até Caesar gesticular para a tigela e murmurar secamente:
- Coma.
Apesar da fome, Marcus percebeu que seu apetite tinha sumido e que o nervosismo deixara seu estômago bem apertado. Ele se obrigou a pegar a colher para criar um
ar de normalidade.
Após tomar a primeira colherada, Caesar riu.
- Você perdeu um momento interessante, Festus. Parece que nosso jovem amigo resolveu virar alguma espécie de filósofo moral.
Festus franziu a testa.
- Senhor?
- Marcus está se negando a revelar a localização do acampamento rebelde.
Festus virou-se para Marcus, sem compreender.
- Como assim?
Marcus engoliu a colherada de ensopado e abaixou a colher.
- Eu não disse que não contaria a localização. Só queria fazer um acordo com o senhor, Caesar. Se eu lhe der o que o senhor quer, vou cobrar um preço.
- Um preço? Que absurdo é esse? - Caesar bateu a mão na mesa. - Não vou fazer nenhum acordo. Muito menos com um garoto. Um ex-escravo ainda por cima.
- Então não vou dizer nada - respondeu Marcus com firmeza.
De repente, Festus cercou o pescoço de Marcus com a mão e o balançou com força.
- Como se atreve a falar assim com Caesar? Você tem que falar com ele com o respeito que ele merece, garoto!
Marcus cerrou a mandíbula firmemente e suportou a dor enquanto continuava a encarar Caesar. Após um tempo, o procônsul suspirou fortemente.
- Já basta, Festus. Solte-o.
Festus empurrou a cabeça de Marcus para a frente e o soltou. Ele continuou parado atrás do garoto, pronto para agir de novo caso Caesar desse algum sinal. Caesar
entrelaçou os dedos e retribuiu o olhar de Marcus.
- Que preço é esse que você cobraria para contar a localização dos rebeldes?
Marcus massageou o pescoço delicadamente enquanto organizava seus pensamentos.
- Eu o levo até o acampamento e o senhor pede que eles se rendam. Em troca, o senhor poupa as vidas dos escravos. Eles devem ser devolvidos ilesos para os donos.
- E se eles não se renderem?
- Se o senhor for rápido, eles vão ficar encurralados. Eles vão ter que se render.
- E se eles preferirem resistir?
Marcus pensou por um instante.
- Rezo para que eles sejam sensatos, senhor. Se puder garantir as vidas deles, acho que eles vão preferir viver do que morrer de um golpe de espada ou crucificados.
- Os líderes terão que ser executados, claro.
- Não. Eles também serão poupados.
Caesar balançou a cabeça.
- Roma não vai gostar disso. O Senado e o povo vão pedir as mortes de Brixus e seus companheiros.
- O senhor é o comandante aqui. A decisão é sua, não deles.
Caesar recostou-se na cadeira e tamborilou os dedos da mão direita na mesa.
- E o que me impede de ordenar que Festus o leve e bata em você até a verdade ser dita? Ele é muito habilidoso em afrouxar línguas.
Marcus esforçou-se para não demonstrar nenhum medo no rosto.
- O senhor pode me torturar. Mas eu aguentaria algumas horas, e depois dessas horas Brixus e seus rebeldes já teriam escapado. Sei que o tempo é precioso para o
senhor. A campanha tem que terminar antes que o senhor possa marchar contra a Gália. Essa é a oportunidade de acabar com isso hoje. Caso contrário, isso pode demorar
meses.
Festus tossiu.
- O garoto tem razão, senhor.
- Quieto! - retrucou Caesar. - Se um dia eu quiser sua opinião, eu aviso.
- Sim, senhor. Desculpe, senhor.
Caesar ignorou o guarda-costas e continuou com a atenção focada no garoto à sua frente. Marcus retribuiu o olhar com firmeza, mas por dentro estava apavorado. Sentia-se
pequeno e sozinho na presença de um enorme perigo, no entanto sabia que havia uma poderosa arma ao seu lado: o tempo. A cada momento que passava, o risco de Brixus
e seus seguidores escaparem ficava maior. Era com aquilo que estava contando. Caso tivesse se equivocado em relação a seu antigo senhor, Marcus com certeza morreria
naquele mesmo dia, e depois milhares de outros também antes do fim da rebelião.
- Muito bem - grunhiu Caesar entre os dentes cerrados. - Temos um acordo.
- Quero que jure. - Marcus engoliu em seco. - Quero que jure bem aqui, na frente de Festus.
- E vai me fazer jurar pelo quê? - perguntou Caesar com tom de zombaria.
- Algo pelo qual eu sei que você vai se comprometer. Quero que jure pela vida da sua sobrinha, Portia.
O sangue desapareceu do rosto de Caesar, e Marcus temeu ter ido longe demais. Logo depois, Caesar lentamente assentiu com a cabeça.
- Eu juro, pela vida da minha sobrinha, que não vou ferir os rebeldes que se renderem.
Marcus sentiu uma onda de alívio tomar conta de seu coração e estava prestes a agradecer quando Caesar estendeu a mão para que o garoto continuasse calado.
- Também juro, pela vida de Portia, que se você estiver me enganando, ou se os rebeldes escaparem, eu vou fazer Festus o pregar em uma cruz no topo da montanha mais
próxima para que todos vejam o que acontece quando alguém desafia Caesar. Ficou claro?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Então não temos tempo a perder. Pode me contar onde estão os rebeldes, e Festus vai ordenar que meus soldados se reúnam.
Marcus limpou a garganta.
- Ainda não disse tudo, senhor. Quero que jure mais duas coisas.
Caesar fulminou-o com o olhar.
- Fale.
- O senhor vai soltar Lupus. Libertá-lo. Quando a rebelião acabar, o senhor vai me dar alguns homens e uma carta de autoridade para que eu possa encontrar e libertar
minha mãe. - Marcus acenou com a cabeça. - Você concordou em fazer isso meses atrás.
- Concordo - disse Caesar secamente. - Pronto. Festus, vá dar a ordem.
- Sim, senhor. - Festus curvou a cabeça e saiu da tenda apressadamente para transmitir a ordem do procônsul. Dentro da tenda, Caesar respirava fundo pelo nariz enquanto
observava o garoto que fora seu escravo e um de seus gladiadores mais promissores.
- Fique esperando na frente da tenda.
Marcus obedeceu e tentou não demonstrar medo ao se afastar. Lá fora, o primeiro raio fraco de luz tentava atravessar a cobertura de névoa das montanhas ao leste.
Alguns flocos de neve rodopiavam na brisa suave que soprava pelos abrigos improvisados dos homens de Caesar. Marcus estremeceu. Não por causa do frio, mas por temer
o que aconteceria naquele dia.
23
Nuvens baixas e cinzentas cobriam o céu quando Festus virou-se para Marcus.
- Está pronto?
Marcus ficou parado por um instante. As fileiras extensas de legionários estavam formadas em suas coortes, o vapor de suas respirações subia entre os cabos escuros
das lanças. Atrás deles, Caesar e seus oficiais estavam a cavalo, esperando. À frente dos romanos, estendia-se o terreno aberto que levava à entrada do acampamento
rebelde. Apesar de saber onde ficava a abertura entre as rochas, Marcus não estava conseguindo enxergá-la ao olhar para o rochedo acima da floresta que se estendia
dos dois lados da entrada.
Nada se movia. Não havia sinal de vida, mas Marcus sentia os olhos dos rebeldes os observando, esperando os romanos agirem primeiro. Então, por um momento apavorante,
Marcus foi tomado por um medo terrível de que Brixus e os outros já tivessem escapado. No entanto, só havia uma maneira de descobrir. Ele acenou com a cabeça.
- Estou pronto.
- Então vamos.
Eles partiram pela neve, acompanhados por dois legionários com cornetas de latão. Após percorrem uma pequena distância, três sopros agudos das cornetas perfuraram
o ar, um a cada trinta metros, para que os rebeldes fossem advertidos da chegada deles. Festus explicou que aquele era o procedimento adotado quando o general de
um exército queria abrir negociações com o oponente. Era importante que os homens enviados para se pronunciarem em nome do general não fossem confundidos com batedores
tentando se infiltrar na área do inimigo. Marcus contorceu-se ao ouvir o primeiro sopro da corneta, mas continuou olhando para o rochedo à sua frente. Não havia
nenhum movimento, e o único barulho além da corneta era o ruído das botas esmagando a neve.
- Onde eles estão? - murmurou Festus. - Eles já deviam ter aparecido a essa altura... Se está tentando enganar Caesar, garoto, você sabe muito bem o que vai acontecer.
Marcus tentou não pensar no destino terrível que Caesar lhe prometera caso o acampamento tivesse sido abandonado. Ele engoliu em seco nervosamente e continuou avançando
pelo terreno aberto em direção ao rochedo.
- Tem certeza de que tem uma abertura no meio da rocha? - perguntou Festus. - Não consigo ver nada.
- Confie em mim, ela está lá.
Feito um borrão, uma flecha foi lançada do meio das pedras e atingiu a neve com um ruído surdo, alguns metros à frente do pequeno grupo que se aproximava. Eles pararam
e olharam para a haste trêmula e escura, contrastando com a neve branca. Em seguida, Festus levou a mão em concha à boca e exclamou:
- Apareçam! Nós viemos falar com Brixus!
Houve uma breve pausa, então Marcus avistou um homem no meio da base do rochedo. Ele o reconheceu imediatamente.
- Mandracus.
- Você o conhece? - disse Festus baixinho.
- Sim, ele é o segundo no comando de Brixus.
- Fiquem onde estão, romanos! - gritou Mandracus. - Se derem mais um passo, será uma chuva de flechas! O que vocês querem?
- Negociar - respondeu Festus. - Vim em nome de Caesar.
Mandracus ficou parado por um instante e depois se virou um pouco para as pedras, como se estivesse conversando com alguém escondido. Em seguida, ele assentiu com
a cabeça e seguiu pelo terreno aberto com cuidado, parando a trinta metros dos homens. Ele olhou-os e fixou a vista em Marcus.
- Então o espiãozinho de Caesar conseguiu mesmo fugir. Você nos traiu.
Marcus sentiu o coração parar. Era loucura estar ali. Mandracus revelaria a verdadeira identidade de seu pai a qualquer momento.
- Eu trouxe os romanos até aqui sim - respondeu Marcus.
Mandracus abriu um pequeno sorriso.
- Então eu tive razão em alertar Brixus a seu respeito. Se ao menos ele tivesse voltado para o acampamento um pouco depois, você estaria morto e o segredo do acampamento
continuaria protegido. Mas agora nada pode ser feito sobre isso. O que você e seus amigos romanos querem negociar?
- Estamos aqui para discutir as condições da rendição de vocês - interveio Festus.
- Foi o que pensei. - Mandracus fez sim com a cabeça. - Tudo bem, nós vamos conversar. Mas não com você. Com ele. - Ele apontou para Marcus. - Somente ele. Você
e os outros ficam aqui.
- Não. Eu que falo em nome de Caesar. O garoto não.
Mandracus deu de ombros.
- Ou ele ou ninguém. E, se tentarem atacar, vocês vão descobrir o quanto o nosso acampamento é impenetrável. Se Caesar quer conversar, nós falamos com o garoto.
São essas as nossas condições.
Nem Caesar nem Festus previram aquilo; o guarda-costas franziu a testa e coçou o queixo com ansiedade. Ele olhou para Marcus e falou baixinho:
- E então? Está preparado para fazer o que ele pediu?
Naquele instante, o que Marcus mais temia era ficar nas mãos de Brixus e seus seguidores. No entanto, se não estivesse preparado para arriscar a própria vida, aquilo
significaria a morte de muitos outros homens. Ele fez sim com a cabeça rapidamente, antes que pudesse mudar de ideia.
- Tudo bem. Mas, se houver algum sinal de perigo, saia correndo. Vou ficar esperando aqui e vou atrás de você no segundo em que avisar.
Marcus abriu um pequeno sorriso.
- Obrigado.
- Muito bem - disse Festus para Mandracus. - O garoto vai com você. Mas aviso que se encostar em um fio de cabelo dele eu o mato com minhas próprias mãos.
Mandracus riu da ameaça.
- Seja bem-vindo para tentar a qualquer hora, romano. Venha, garoto.
Marcus sentiu o coração acelerar enquanto se obrigava a se afastar de Festus e atravessar a neve para alcançar Mandracus. Em seguida, os dois foram em direção ao
rochedo. Ao chegarem mais perto, Marcus viu que a abertura estreita estava repleta de homens armados aguardando em silêncio. Na frente deles, a uns 15 metros de
distância, estava Brixus, pronto para a batalha com suas caneleiras e armadura polidas. O rosto dele, inflexível, parecia o de uma estátua.
- Não sei o que lhe dizer, Marcus - começou ele. - Não tenho palavras para descrever o nível da sua traição. Por que fez isso?
- Eu expliquei na sua cabana. Essa rebelião está fadada ao fracasso. Vocês não têm uma quantidade suficiente de homens treinados. Não é o momento certo. Se eles
estivessem mais preparados e fossem mais numerosos, talvez fosse possível vencer. Mas, do jeito que as coisas estão, isso só vai terminar em derrota e morte.
- É por isso que precisamos de você, Marcus. Com o filho de Spartacus liderando o nosso exército, nós atrairíamos escravos aos montes. Mesmo sem treinamento, a quantidade
deles seria tão grande que terminaríamos derrotando Roma.
- Acho que não - respondeu Marcus simplesmente. - E a sua batalha contra os homens de Caesar no outro dia mostrou que tenho razão. Se eu realmente achasse que vocês
têm chance de derrotar Roma, eu teria me juntado à rebelião.
- Mas em vez disso nos traiu.
Marcus balançou a cabeça.
- Eu queria impedir um banho de sangue inútil.
Brixus suspirou amargamente.
- O seu pai ficaria com vergonha se visse o que está fazendo.
- Meu pai morreu antes de eu nascer. Eu não o conheci. Não sou Spartacus. Sou Marcus e vou viver a minha vida como eu quiser. - Marcus falou com o máximo de orgulho
possível. - Não sou seu para ser comandado, nem de Caesar.
Mandracus deu um passo para a frente, cerrando o punho ao redor da adaga.
- Já ouvi o suficiente. Devo parar a língua dele, Brixus?
- Não... Deixe ele viver. Seria misericórdia demais matá-lo. Deixe que ele carregue o fardo da vergonha e da culpa do dia de hoje. Que essa seja a recompensa dele
por ter nos traído.
Mandracus contraiu os lábios e soltou a adaga relutantemente.
- Como quiser.
Brixus voltou a atenção para Marcus mais uma vez.
- O seu segredo está seguro comigo, pois você desonrou seu pai, um homem que eu amava como um irmão. Pelo jeito você não é filho dele. Talvez com o tempo você mude
de ideia. Espero que viva o suficiente para compreender e aceitar o seu destino. Antes disso... - A voz dele hesitou, e ele fez uma pausa. - O que Caesar quer de
nós?
Marcus obrigou sua mente exausta a lembrar a conversa com Caesar e Festus algumas horas antes.
- Caesar quer que vocês se rendam imediatamente. Em troca, ele jura que quem abaixar as armas será poupado. Todos os escravos serão devolvidos para os donos assim
que possível.
- E por que eu deveria confiar em um aristocrata romano e não cuspir nele?
- Ele jurou solenemente, na frente de testemunhas.
- E acha que ele vai cumprir o juramento?
- Esse juramento, sim - respondeu Marcus confiantemente. - Além disso, ele quer acabar logo com a rebelião e está disposto a fazer qualquer coisa para que isso aconteça.
- Não precisamos ficar aqui escutando isso! - interrompeu Mandracus. - Vamos deixar Caesar fazer o seu pior. Enquanto controlarmos a entrada, os romanos não vão
conseguir entrar no acampamento à força. Podemos nos defender pelo tempo que quisermos.
- É verdade. - Brixus assentiu com a cabeça. - Mas eles simplesmente nos cercariam aqui e nos fariam passar fome e nos render. Não temos como sair do vale. Caesar
não precisa forçar nada.
Marcus não disse nada. Ele sabia que o procônsul precisava que os rebeldes se rendessem imediatamente. Se fosse obrigado a esperar os rebeldes desistirem com base
na fome, ele perderia um tempo valioso. Marcus conhecia Caesar bem o suficiente para acreditar que ele ordenaria um ataque imediato ao acampamento. O ataque custaria
muitas vidas e não daria certo, e Caesar ainda assim seria obrigado a deixar os rebeldes passando fome até saírem lá de dentro. Ele não teria nenhuma misericórdia
com os sobreviventes.
Brixus observava as linhas romanas e o grupo de oficiais esperando mais atrás.
- Essa sua garantia inclui todos nós?
Marcus fez sim com a cabeça.
- Todos. Inclusive você e Mandracus.
Mandracus bufou de desdém.
- É mentira. Ele vai querer que os líderes da rebelião sirvam de exemplo. Nós teremos o mesmo destino de Spartacus e seus camaradas: vamos ser crucificados do lado
de fora dos portões de Roma. Não seja tolo, Brixus. Desde o início você sabe que só existem dois caminhos para nós: liberdade ou morte. Ou nós nos defendemos enquanto
pudermos, ou nós abrimos caminho entre a tropa romana e escapamos. Podemos encontrar um novo acampamento, criar um novo exército e continuar a nossa luta.
O líder rebelde olhou para a aglomeração silenciosa de homens ocupando a abertura.
- Se defendermos o acampamento, seremos derrotados com o tempo. Para escapar, temos que abandonar todos os outros que moram aqui: os idosos, as mulheres, as crianças.
- É o preço a pagar para mantermos o sonho de Spartacus vivo.
Marcus pigarreou.
- Spartacus, meu pai, sonhava em acabar com o sofrimento dos escravos, não piorá-lo.
Mandracus aproximou-se com raiva.
- Segure a língua, traidor, antes que eu a corte!
- Basta! - repreendeu Brixus. Os olhos dele fulminaram Mandracus até ele recuar um passo. - O garoto tem razão. Estamos encurralados. Vamos morrer se ficarmos aqui,
vamos morrer se fugirmos. Você, eu e muitos outros acharíamos melhor morrer do que sermos escravos, mas não podemos fazer essa escolha por todos no acampamento.
É melhor eles viverem. Após sentirem o gostinho da liberdade, eles nunca vão esquecê-la, e com o tempo talvez surja uma oportunidade melhor para se rebelar. Mas,
se eles forem massacrados agora, essa esperança morrerá para eles e para os corações de todos que ainda são escravos. Precisamos aceitar as condições de Caesar.
Marcus sentiu uma onda de alívio percorrer o corpo.
- Você desistiria sem nem lutar? - perguntou Mandracus.
- Nós lutamos o máximo que podíamos, meu amigo. Agora precisamos aceitar a derrota.
Marcus percebeu a angústia no rosto de Mandracus ao tentar aceitar a decisão do líder.
- Essa é a sua vontade? A sua ordem?
Brixus, lentamente, assentiu com a cabeça.
- É sim.
Os ombros de Mandracus caíram e ele abaixou a cabeça, extremamente desolado. Brixus virou-se para Marcus.
- Volte para o seu... amo. Diga que nos rendemos com a condição de que ninguém seja ferido. Vou enviar meus homens primeiro e depois o restante.
- Obrigado - respondeu Marcus baixinho. Ele queria falar mais, agradecer por todas as vidas que tinham sido poupadas. Explicar que tinha o mesmo sonho dele, e de
Spartacus, e que, caso a situação fosse diferente, ele teria achado uma honra lutar contra Roma ao lado de Brixus. No entanto, ele viu o sofrimento e o desespero
no rosto do gladiador veterano e percebeu que aquelas palavras só o deixariam mais triste, então apenas estendeu a mão. Brixus olhou para baixo e ficou um instante
imóvel. Em seguida, estendeu a mão com calma e eles se seguraram delicadamente pelos antebraços.
- Adeus, Marcus. Duvido que eu o veja novamente.
Marcus sentiu um aperto na garganta enquanto respondia:
- Adeus.
Brixus olhou bem nos olhos dele e falou baixinho:
- Nunca se esqueça de quem você é. Talvez um dia chegue a hora...
- Se a hora chegar, eu estarei pronto.
Brixus fez sim com a cabeça, soltou o garoto e olhou para as linhas romanas.
- É melhor você ir.
Marcus virou-se lentamente e atravessou a neve na direção de Festus e dos outros, seu coração sofrendo por causa da despedida. Sentiu uma lágrima no canto do olho
e piscou para que ela sumisse. O céu estava carregado e bem acinzentado, e Marcus sentiu o peso inteiro do mundo em cima dos jovens ombros.
- E então? - perguntou Festus quando Marcus parou na frente dele.
- Ele aceitou. Está tudo acabado.
Marcus ficou sentado em sua sela ao lado de Festus, e os dois observaram a procissão silenciosa passar entre as fileiras de legionários dos dois lados da entrada
da abertura. A uma pequena distância, Caesar os observava com um jeito arrogante. Uma enorme pilha de espadas, lanças e outras armas e armaduras havia sido feita
de um lado da rota. Os rebeldes as soltavam lá antes de marchar sob os olhares atentos dos legionários. O pequeno grupo de reféns mantido pelos rebeldes fora liberto
e levado em uma carroça para se recuperarem em uma cidade próxima.
Os romanos conversavam pouco, mas os rebeldes estavam em silêncio. Caesar ordenara que Brixus e seus camaradas fossem os últimos a se renderem. Enquanto o final
da fila passava pela abertura, o comandante romano estalou a língua e levou sua escolta mais para a frente.
Marcus viu Mandracus e vários outros esperando, ainda com armas em mãos, observando os romanos se aproximarem.
- Chegou a hora de vocês se juntarem aos outros, cavalheiros - anunciou Caesar com um tom de voz desdenhoso. - Soltem suas armas.
Mandracus deu um passo adiante e fulminou o general romano com um olhar desafiador antes de sacar a espada. Festus tomou fôlego e pôs a mão em sua espada. Caesar,
no entanto, nem se mexeu, e, após uma breve pausa, Mandracus soltou sua arma, desafivelando as armaduras do peito e das costas para que elas caíssem na neve, então
se afastou para o lado. Um por um, seus camaradas fizeram o mesmo. Marcus procurou o líder rebelde, mas não viu sinal dele.
- Quem de vocês é Brixus? - perguntou Caesar.
Não houve resposta.
- Quem de vocês é o patife que se diz líder disso aqui? Dê um passo para a frente, Brixus.
Mandracus cruzou os braços enquanto respondia:
- Brixus preferiu não se render. Ele está lá dentro do acampamento, aguardando você com a espada na mão.
- Mesmo? - Caesar fez sim com a cabeça seriamente. Aproximando o cavalo do rebelde, ergueu o bastão proconsular e acertou a bochecha de Mandracus. - Me chame de
amo de agora em diante, escravo. Eu jurei que vocês seriam poupados e devolvidos para a escravidão. E vou tratá-lo como qualquer outro escravo que não respeita os
senhores! Está entendendo?
Mandracus estava encurvado, surpreso com o golpe, e o sangue pingava do corte em sua bochecha. Marcus assistia à cena, sentindo náusea. Apesar de saber que aquele
resultado era a única maneira de impedir a morte de muitos, a culpa que sentia devido à decisão tomada pesava bastante em seu coração.
Caesar ergueu o bastão novamente.
- Eu perguntei se você está me entendendo, escravo!
Mandracus olhou para cima e fez sim com a cabeça.
- Sim... amo.
- Ótimo. Então, junte-se à fileira.
Enquanto Mandracus era levado para longe, Caesar virou-se para a abertura e segurou as rédeas.
- Pelo jeito precisamos lidar com um último rebelde.
O vale secreto estava calmo e silencioso. Havia cabanas e abrigos abandonados dos dois lados da trilha. Caesar e seu grupo observaram as construções com cuidado,
suspeitando de que uma emboscada se revelaria a qualquer momento. Ao chegarem à pequena colina com vista para o centro do vale, as grandes cabanas do acampamento
de Brixus ficaram à mostra. Imediatamente, Marcus avistou um pequeno rastro de fumaça saindo da cabana maior. Um brilho vermelho surgiu quando uma chama atravessou
o telhado de palha e se espalhou rapidamente.
- Quero ele vivo! - exclamou Caesar ao incitar seu cavalo a seguir em frente, seus homens galopando logo atrás. Quando chegaram às cabanas, o incêndio tinha se alastrado
pelo telhado e o ar estava cheio de brasas vermelhas e pretas flutuando na brisa. O calor das chamas era intenso, e o cavalo de Marcus recuou, relinchando de medo.
Alguns dos oficiais saltaram dos cavalos para se aproximarem da cabana, mas era impossível. Então Marcus se lembrou da entrada que ligava os fundos da cabana a uma
menor e trotou com o cavalo ao redor do incêndio para poder enxergá-la melhor. As chamas ainda não tinham alcançado a estrutura menor, então Marcus desceu da sela
e se aproximou da entrada baixa com o braço erguido para proteger o rosto do calor. A neve que tinha caído recentemente ao redor da cabana já estava se derretendo,
mas Marcus avistou pegadas que iam na direção das montanhas no fim do vale.
Ele se afastou vários passos e olhou ao redor, mas nenhum dos outros homens tinha se juntado a ele na lateral da cabana. Rapidamente, Marcus chutou neve em cima
das pegadas, escondendo qualquer sinal delas, e se virou.
- Marcus! O que está fazendo? - Festus estava dando a volta no incêndio, aproximando-se dele.
- Pensei em tentar os fundos! - respondeu Marcus. - Mas é tarde demais.
Festus balançou a cabeça. Eles ficaram parados lado a lado, encarando o espetáculo incrível do incêndio diante deles, as chamas iluminando o vale e pintando as nuvens
acima de rosa. Após um tempo, Festus meneou a cabeça.
- Então Brixus preferiu morrer a se render... Uma bela morte, considerando as circunstâncias. Mas Caesar vai ficar furioso.
- Sim. - Marcus concordou com a cabeça. - Vai mesmo.
- Pelo menos ele teve sua vitória, de certa forma. A rebelião acabou. Isso vai irritar os inimigos dele no Senado e deixá-lo livre para cuidar da Gália.
Marcus meneou a cabeça distraidamente enquanto olhava para o rochedo ao redor do vale. Então avistou um movimento sutil no meio das rochas. Ele estreitou os olhos
até enxergá-lo novamente, uma última vez. Podia ser um homem, mas era difícil ter certeza a uma distância tão grande.
- Marcus?
Ele se virou de volta para Festus.
- O que foi? - O guarda-costas de Caesar olhou para as montanhas. - Você viu alguma coisa?
- Não, nada. Era apenas um pássaro. Mas ele já saiu voando.
24
LITORAL DA GRÉCIA, TRÊS MESES DEPOIS
- A estibordo fica Lechaeum. - O capitão do navio mercante ergueu o braço e apontou para a costa rochosa. Marcus acompanhou o movimento e avistou várias construções
brancas de telhas vermelhas na lateral da colina, perto do mar. - Com essa brisa, vamos chegar ao porto antes do fim do dia - acrescentou o capitão. Então, olhando
para cima brevemente para garantir que a vela estava se movendo bem, ele voltou para a popa.
Marcus continuou observando a costa do Peloponeso, o navio subindo e descendo com as ondas tranquilas do Golfo do Corinto. Algumas poucas gaivotas acompanhavam a
embarcação, circulando o mastro no céu azul e límpido. Era um bom dia para estar vivo, refletiu ele, enquanto o vento soprava em seus cabelos escuros e o ar fresco
do mar enchia seus pulmões com seu gosto salgado.
Apesar das consequências tensas da rendição dos rebeldes, Caesar tinha mantido sua palavra. Os escravos foram devolvidos para seus donos ilesos e nada aconteceu
com os líderes. O calor intenso do incêndio transformara a cabana de Brixus em cinzas. Os ossos não foram encontrados nos restos, mas o fogo tinha sido tão intenso
que queimara tudo, até mesmo a madeira grossa que sustentava o telhado. Caesar dissera que Brixus incendiara a cabana antes de tirar a própria vida, e ninguém se
atreveu a questionar o veredicto de que o assunto estava encerrado. Já Decimus e seus homens desapareceram imediatamente, e com certeza voltaram para Roma, para
a segurança da casa de Crassus.
Depois, em Rimini, Caesar encontrou Marcus pela última vez e o reuniu com Lupus. Como estava prestes a marchar para a Gália, cercado por um exército com uma guarda
pessoal de quinhentos legionários veteranos, ele não precisava mais de sua proteção pessoal. Festus e dois de seus homens, portanto, receberam ordens de acompanhar
Marcus até a Grécia. Por último, Caesar entregou a Marcus um pergaminho contendo o selo proconsular.
- É uma carta de apresentação. Pedi para que qualquer pessoa que receba isso o ajude a encontrar sua mãe.
Marcus curvou a cabeça.
- Fico grato por isso, Caesar.
- Imagino que sim. Não gosto de ser manipulado por ninguém, muito menos por um garoto de doze anos. Já cumpri minhas obrigações relacionadas a você, jovem Marcus.
Não nos veremos novamente. Se aparecer na porta de alguma das minhas casas, vou jogá-lo nas ruas.
- Compreendo.
E assim eles se separaram, e Marcus deixou o general em seu escritório, completando seus planos para a campanha na Gália. Quando chegou à porta da casa que Caesar
usava como quartel, ele escutou o barulho de passos mais atrás.
- Marcus, espere!
Ele virou-se e viu Portia, ofegante e agitada.
- Ouvi falar que você está indo embora.
- Banido me parece mais certo. - Marcus sorriu. - O seu tio nunca mais quer me ver.
- Ah... - Portia pareceu ficar arrasada. - Então eu nunca mais vou vê-lo.
Marcus balançou a cabeça tristemente.
- Como está o tribuno Quintus? - perguntou ele.
Desapontada com a pergunta, Portia deu de ombros.
- Ele sofreu muito com o frio. Feridas causadas pelo frio, disse o médico. Mas com o tempo ele vai se recuperar e se juntar ao meu tio.
- Que bom. - Marcus meneou a cabeça novamente.
Eles se encararam por um instante, e ela segurou as mãos dele e as apertou delicadamente. Marcus sentiu algo ser pressionado na palma da mão, e ela se virou e saiu
correndo, enxugando o canto do olho.
Marcus ficou parado perto do portão pesado enquanto o porteiro de Caesar o abria. Olhando uma última vez para as costas de Portia, ele saiu da casa. Lá fora, ele
viu um pesado anel de ouro ao abrir a mão. Havia um rubi brilhando fortemente no centro dele, como uma lágrima de sangue.
Agora, parado no convés da embarcação, Marcus lembrou-se daquele momento. Por baixo do tecido de sua túnica, ele sentiu a corrente ao redor do pescoço com o anel
na ponta. Apesar de estar triste porque nunca mais veria Portia, nunca houve dúvida quanto à necessidade de a amizade dos dois ser um segredo muito bem guardado.
Era melhor assim, decidiu ele relutantemente.
- O que foi, Marcus?
Ele se virou e viu Lupus a alguns metros de distância, segurando-se em uma corda para se equilibrar no convés oscilante.
- Nada. - Marcus sorriu discretamente. - Estou apenas pensando.
- Você devia estar contente. Está de volta à Grécia. Logo mais encontraremos sua mãe, você vai ver.
Marcus assentiu com a cabeça. Então os dois garotos viraram-se para a lateral do barco ao escutarem um gemido profundo do outro lado do convés. Festus estava encurvado
por cima da amurada, e seu corpo se agitava enquanto ele tentava vomitar mais uma vez.
Lupus riu.
- Pelo menos um de nós vai ficar contente quando chegarmos ao litoral. Quem diria que o velho Festus se comportaria como um carneirinho no instante em que pisasse
em um barco?
Marcus riu e olhou com carinho para o amigo.
- Você está bem animado hoje.
- E por que não estaria? - Lupus sorriu. - Estou livre. Pela primeira vez na vida. É a primeira coisa que penso todas as manhãs. Não existe nada melhor no mundo.
- Ele ficou mais sério. - E é a você que tenho que agradecer por isso.
Uma sensação agradável tomou conta de Marcus. Apesar de ter impedido um massacre sangrento de acontecer, aqueles que tinha salvado continuavam escravos. Apenas Lupus
foi liberto. Mas era um começo, disse ele para si mesmo. Um pequeno passo no caminho para... para o quê? Um destino melhor? Talvez. Mas por enquanto apenas uma coisa
importava. A única que o fizera aguentar a escola de gladiadores de Porcino, as cruéis ruas de Roma e os perigos gélidos dos montes Apeninos: o seu desejo ardente
de resgatar a mãe. E a hora de fazer aquilo finalmente tinha chegado.
As lutas públicas entre gladiadores eram cuidadosamente planejadas para exibir suas habilidades de combate. Mesmo que eles estivessem lutando até a morte, os espectadores
queriam ver uma bela demonstração antes de o perdedor ser morto. Geralmente, dois gladiadores com estilos diferentes de luta eram emparelhados. Quando os recrutas
de Cápua terminavam o treinamento inicial, os instrutores decidiam em que tipo de combate eles deviam se especializar.
(guerreiro com rede)
Vestia armadura leve porque o estilo de luta dependia de movimentos ágeis e velocidade. Usava uma rede, um tridente e uma adaga para prender e matar os oponentes.
(guerreiro que lutava contra animais)
Lutava contra animais selvagens, como tigres, leopardos e leões. Os bestiarii tinham sua própria escola de treinamento, mas alguns dos escravos de Cápua eram treinados
para lutar com animais, e Marcus confronta lobos em sua primeira luta. O bestiarius vestia armadura leve e elmo com visor, e usava uma lança ou faca, um chicote
e às vezes uma jaula. As lutas contra animais eram extremamente populares com o público. As recompensas para esse tipo de guerreiro eram grandes, e para os habilidosos
os combates podiam ser menos perigosos do que entre gladiadores.
A sobrevivência dos gladiadores dependia não só de vencer os oponentes, mas também de agradar o público. Um gladiador que perdesse uma luta e estivesse prestes a
ser morto podia ser salvo se a plateia considerasse que ele havia lutado bem e lhe desse o sinal positivo com o polegar.
O sinal negativo, contudo, significava que ele estava condenado à morte. Os espectadores apostavam em seus gladiadores favoritos. Marcus aprende que um gladiador
que é o favorito para ganhar certamente irá morrer se for derrotado, porque seus torcedores ficarão furiosos por terem perdido dinheiro.

 

 

                                                                  Simon Scarrow

 

 

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