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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHO DOURADO / Pierce Brown
FILHO DOURADO / Pierce Brown

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Certa vez, um homem veio do céu e matou minha mulher. Caminho ao lado dele, agora, numa montanha que flutua sobre o mundo. A neve cai. Ameias de pedra branca e vidro tremeluzente se escancaram da rocha.
Ao nosso redor gira um caos de ganância. Todos os grandes Ouros de Marte descem sobre o Instituto para reivindicar os melhores e mais brilhantes do nosso ano. Suas naves infestam o céu matinal, cortando um mundo de neve e castelos fumegantes em direção ao Olimpo, que eu invadi poucas horas atrás.
— Dê uma última olhada — ele me diz enquanto nos aproximamos da sua nave. — Tudo que veio antes não passou de um sussurro do nosso mundo. Quando você sair desta montanha, todos os laços estarão rompidos, todas as promessas terão virado pó. Você não está preparado. Ninguém jamais está.
No meio da multidão, vejo Cassius, seu pai e os irmãos se dirigirem à nave deles. Seus olhos nos encaram com fúria por sobre a brancura, e me lembro do som do coração de seu irmão ao dar sua última batida. Uma mão áspera com dedos ossudos aperta meu ombro e o agarra de modo possessivo.
Augustus mira seus inimigos.
— Os Bellona não perdoam nem se esquecem. Eles são muitos. Mas não podem te fazer nenhum mal. — Seus olhos frios se cravam em mim, seu prêmio recém-conquistado. — Porque você pertence a mim, Darrow, e eu protejo o que é meu.
Assim como eu protejo.
Há setecentos anos meu povo é escravizado e desprovido de voz e de esperança. Agora sou a espada deles. E eu não perdoo. Não esqueço. Portanto, deixe que ele me conduza à sua nave. Deixe que ele pense que me possui. Deixe que ele me receba de braços abertos na sua casa para que eu possa destruí-la.
Mas então a filha dele segura minha mão e eu sinto todas as mentiras caírem com força sobre meus ombros. Dizem que um reino dividido não pode se manter de pé. Mas quem diz isso não faz nenhuma referência ao coração.

 


 


Senhores da guerra

Meu silêncio é estrondoso. Estou parado na ponte da minha espaçonave, com o braço quebrado e segurando uma gel-atadura, as queimaduras de íon ainda visíveis no meu pescoço. Estou cansado pra cacete. Minha lâmina está enrolada no meu braço bom como se fosse uma cobra de metal frio. Diante de mim, o espaço se abre, vasto e terrível. Pequenos fragmentos de luz penetram a escuridão e sombras primordiais se movem para bloquear aquelas estrelas periféricas à minha visão. Asteroides. Eles flutuam lentos ao redor da minha belonave, Quietus, à medida que vasculho a escuridão atrás da minha vítima.

— Vença — disse-me meu mestre. — Vença como meus filhos não conseguem vencer, e você trará honra ao nome Augustus. Vença na Academia e você conquistará pra si mesmo uma frota. — Ele gosta de repetições dramáticas. Elas se encaixam bem na maioria dos estadistas.

Augustus queria que eu vencesse por ele, mas eu venceria pela garota Vermelha com um sonho maior do que o que ela jamais conseguiria ser. Eu venceria para que ele morresse e a mensagem dela pudesse se manter acesa ao longo das eras. Pedido irrisório.

Tenho vinte anos. Alto e forte. Meu uniforme, zibelina da cabeça aos pés, agora está amarrotado. Cabelos compridos e olhos dourados, vermelhos de cansaço. Mustang uma vez disse que eu tinha um rosto bem delineado, com as bochechas e o nariz aparentemente entalhados em mármore irado. Evito espelhos. É melhor esquecer a máscara que uso, a máscara que sustenta a cicatriz angulosa dos Ouros que governam os mundos de Mercúrio a Plutão. Sou um Inigualável Maculado. Os mais cruéis e inteligentes de toda a espécie humana. Mas sinto saudade da mais gentil dentre todas as dessa espécie. Aquela que me pediu para ficar enquanto eu me despedia dela e de Marte na sua sacada quase um ano atrás. Mustang. Dei-lhe um anel de ouro com um cavalo no topo como presente de despedida, e ela me deu uma lâmina. Adequado.

O sabor das lágrimas dela fica rançoso nas minhas lembranças. Não tenho notícias de Mustang desde que parti de Marte. Pior, não tenho notícias dos Filhos de Ares desde que venci no Instituto Marte há mais de dois anos. Dancer disse que entraria em contato comigo assim que eu me formasse, mas fui lançado à deriva em meio a um oceano de rostos Dourados.

Isso está muito distante do futuro que imaginei para mim quando era criança. Muito distante do futuro que eu queria dar para o meu povo quando deixei os Filhos de Ares me entalharem. Pensei que mudaria os mundos. Que jovem tolo não pensa isso? Ao contrário, fui engolido pela máquina desse vasto império que avança com estrépito e persistência.

No Instituto, eles nos treinaram para sobreviver e conquistar. Aqui na Academia, eles nos ensinaram a guerrear. Agora estão testando nossa fluência. Lidero uma frota de naves de guerra contra outros Ouros. Combatemos com munições falsas e empreendemos ataques de nave a nave à maneira dos combates astrais Dourados. Não há nenhum motivo para detonar uma nave que custa o equivalente ao orçamento anual de vinte cidades quando você pode enviar navesVentosas cheias de Obsidianos, Ouros e Cinzas para que tomem posse dos órgãos vitais da embarcação e façam dela seu prêmio.

Em meio a lições de combate astral, nossos professores martelavam as máximas da sua raça. Apenas os fortes sobrevivem. Só os brilhantes governam. E então eles saíam e deixavam que nos defendêssemos sozinhos, saltando de asteroide em asteroide em busca de suprimentos, bases, caçando nossos companheiros alunos até que restassem apenas duas frotas.

Ainda estou participando de jogos. Esse é o mais mortífero até agora.

— É uma armadilha — diz Roque, colado ao meu cotovelo.

Seus cabelos são compridos, como os meus, e seu rosto é suave como o de uma mulher e plácido como o de um filósofo. Matar no espaço é diferente de matar em terra. Roque é um prodígio nesse aspecto. Existe poesia nisso, diz ele. Poesia no movimento das esferas e nas naves que navegam entre elas. Seu rosto se encaixa bem com os Azuis que tripulam essas embarcações: homens e mulheres etéreos que vagam pelos corredores de metal como se fossem espíritos instáveis, só lógica e ordem estrita.

— Mas não é uma armadilha tão elegante quanto Karnus talvez esteja imaginando — continua. — Ele sabe que estamos ansiosos pra acabar com esse jogo, então vai esperar do outro lado. Vai nos forçar a entrar num ponto de estrangulamento e depois vai lançar os mísseis. Uma estratégia testada e aprovada desde a aurora dos tempos.

Roque aponta com cautela o espaço entre dois imensos asteroides, um estreito corredor que devemos percorrer se desejamos continuar seguindo a avariada nave de Karnus.

— Tudo é uma droga de armadilha — diz o esguio e descuidado Tactus au Rath, bocejando. Ele encosta sua perigosa estrutura física no porto de observação à frente da espaçonave e aspira um estimulante do anel que leva no dedo. Ele joga o cartucho usado no chão. — Karnus sabe que está perdido. Ele está apenas nos torturando e nos levando a uma perseguiçãozinha divertida só pra gente não poder dormir. Babaca egoísta.

— Você é um Pixie de merda mesmo, sempre ganindo e choramingando — diz Victra au Julii com desdém do lugar em que se encontra, encostada no porto de observação. Seus cabelos pontudos pendem logo abaixo das orelhas furadas com jade. Impetuosa e cruel, mas não em demasia, ela despreza a maquiagem em favor das cicatrizes que conquistou ao longo dos seus vinte e sete anos. Há muitas delas.

Seus olhos são pesados, profundos. Sua boca sensual é ampla, com lábios desenhados para ronronar insultos. Ela se parece mais com sua famosa mãe do que com sua meia-irmã mais nova, Antonia; mas sua capacidade de criar danos generalizados supera em muito a de ambas.

— Armadilhas não significam coisa nenhuma — declara ela. — A frota de Karnus foi arrasada. Agora ele só tem uma nave. Nós temos sete. Que tal se a gente apenas acabasse com ele?

— Quem tem sete naves é Darrow — Roque lembra a ela.

— Perdão? — pergunta ela, irritada com a correção.

— Restam sete das naves de Darrow. Você chamou as naves de nossas. Elas não são nossas. Ele é o Primus.

— O poeta pedante ataca outra vez. A questão não muda em nada, meu bom-homem.

— O fato de sermos ousados em vez de prudentes? — pergunta Roque.

— O fato de que são sete naves contra uma. Seria constrangedor deixar que isso se arrastasse por mais tempo. Portanto, vamos esmagar o Bellona valentão com nossas botas grandes como se ele fosse uma barata, voar de volta à base, receber nossas merecidas recompensas do velho Augustus e sair pra nos divertir. — Ela gira o calcanhar para enfatizar as palavras.

— Aí, aí — concorda Tactus. — Meu reino por um grama de pó-do-demônio.

— Essa é sua quinta inalação de estimulante hoje, Tactus? — pergunta Roque.

— É sim! Obrigado por ter reparado, mãezinha querida! Mas estou ficando cansado dessa chatice militar. Acho que estou querendo clubes Pérola e quantidades copiosas de drogas respeitáveis.

— Você vai se acabar.

Tactus dá um tapa na coxa.

— Prefiro viver dez anos a mil do que mil anos a dez. Enquanto você mais parece um velhinho enrugado, vou ser uma gloriosa lembrança de tempos mais agradáveis e de dias decadentes.

Roque balança a cabeça.

— Um dia, meu amigo caprichoso, você vai encontrar alguém que ama e que vai te fazer rir da pessoa boba que você já foi um dia. Você vai ter filhos. Você vai ter uma propriedade. E, de uma forma ou de outra, você vai aprender que existem coisas mais importantes do que drogas e Rosas.

— Por Zeus. — Tactus olha fixo para ele, todo horrorizado. — Isso me parece algo resolutamente terrível.

Dou uma espiada no painel tático, ignorando a gozação.

A vítima que estamos caçando é Karnus au Bellona, o irmão mais velho do meu ex-amigo Cassius au Bellona e do menino que matei na Passagem, Julian au Bellona. Dessa família de cabelos encaracolados, Cassius é o filho favorito. Julian era o mais gentil. E Karnus? Meu braço quebrado aparece como testemunho — Karnus é o monstro que eles deixaram sair do porão para matar tudo e todos.

Desde o Instituto, minha fama cresceu. Portanto, quando a notícia de que o ArquiGovernador estava me enviando para a Academia para que eu desse prosseguimento aos meus estudos alcançou o circuito Violeta de fofocas, Karnus au Bellona e uns poucos primos escolhidos a dedo foram despachados pela mãe de Cassius para “estudar” também. A família quer meu coração numa bandeja. De modo bastante literal. Apenas o distintivo de Augustus os detém. Atacar-me é atacá-lo.

No fim das contas, não estou nem aí para a vendeta deles ou para a disputa familiar do meu mestre com a casa deles. Quero a frota para que eu possa usá-la para os Filhos de Ares. Que tremenda bagunça eu poderia fazer. Fiz um estudo de linhas de suprimentos, estações de sensores, grupos de batalha, conglomerados de dados — todos os pontos de pressão que poderiam vir a fazer com que a Sociedade cambaleasse.

— Darrow... — Roque se aproxima de mim. — Guarde sua presunção. Lembre-se de Pax. O orgulho mata.

— Quero que isso seja uma armadilha — digo a Roque. — Deixe Karnus se virar e nos encarar.

Ele balança a cabeça.

— Você montou sua própria armadilha pra ele.

— E por que você diz isso?

— Você podia muito bem ter contado isso pra gente. Eu poderia ter...

— Karnus cai hoje, irmão. Essa é a questão pura e simples.

— É claro. Só quero ajudar. Você sabe disso.

— Eu sei. — Reprimo um bocejo e deixo meus olhos varrerem os fossos da ponte atrás e abaixo de mim. Azuis de vários tons labutam aqui, trabalhando nos sistemas que percorrem minha nave. Eles falam mais devagar do que qualquer outra Cor, salvo a Obsidiana, privilegiando a comunicação digital. Eles são mais velhos do que eu, todos graduandos da Escola da Meia-Noite. Depois deles, perto dos fundos da ponte, marinheiros Cinzas e diversos Obsidianos estão de sentinela. Dou um tapinha no ombro de Roque. — Está na hora.

— Marujos — chamo os Azuis no fosso. — Afiem sua argúcia. Esse é o último prego no caixão dos Bellona. Vamos pôr esse filho da puta no éter e prometo a vocês o maior presente que tenho em meu poder pra lhes dar: uma semana de sono sólido. De acordo?

Alguns dos Cinzas perto dos fundos da ponte riem. Os Azuis apenas batem as juntas nos seus instrumentos. Eu daria metade da minha substancial conta bancária, regalia do ArquiGovernador, para ver um desses pálidos cabeças de vento dar um sorriso.

— Chega de espera — anuncio. — Atiradores, posicionem-se. Roque, reúna os destróieres. Victra, cuide dos alvos. Tactus, ponha as defesas em formação de combate. Vamos acabar com isso agora. — Dou uma olhada no meu delicado timãoAzul. Ele está de pé na parte central do fosso abaixo da minha plataforma de comando em meio a cinquenta outros. As serpeantes digiTatuagens que marcam as cabeças calvas e as mãos compridas e finas dos Azuis brilham em sutis tons cerúleos e prateados assim que sincronizam com os computadores da espaçonave. Seus olhos ficam distantes à medida que os nervos óticos revertem ao mundo digital. Eles só falam em cortesia a nós. — Timoneiro, motores a 60%.

— Pois não, dominus. — Ele olha de relance para o painel tático, um holo globular flutuando acima da sua cabeça, a voz semelhante à de uma máquina. — Tenha em mente que a concentração de metal nos asteroides representa uma dificuldade pra avaliação das leituras espectrais. Estamos um pouco cegos. Uma frota poderia se esconder do outro lado dos asteroides.

— Ele não tem uma frota. Pro interior da fenda — digo. Os motores da nave roncam. Balanço a cabeça para Roque e completo: — Hic sunt leones. — As palavras do nosso mestre Nero au Augustus, ArquiGovernador de Marte, décimo terceiro do seu nome. Meus senhores da guerra ecoam a frase.

Aqui sejam leões.


2

A fenda

De acordo com a leitura tática dos computadores, os seis lépidos destróieres se movem ao redor da minha belonave restante. Um silêncio fantasmagórico emana da tripulação Azul enquanto as funções de guerra são acionadas. No plano através do qual suas mentes agora vagam, palavras são mais lentas do que icebergs. Meus tenentes monitoram minha frota. Em qualquer outra situação, eles estariam nos seus destróieres pessoais ou liderando homens em navesVentosas mas, no momento da vitória, quero meus companheiros por perto. No entanto, mesmo quando meus tenentes estão aqui junto a mim, sinto essa separação, esse enorme buraco entre o mundo deles e o meu.

— Assinaturas de míssil — diz o comAzul. A ponte não entra em ação. Nenhuma luz de alerta deixa a tripulação em pânico. Nenhum grito irrompe da imobilidade. Azuis são espécimes frios, criados desde o nascimento em Seitas comunais que os ensinam a abraçar a lógica e a encenar suas funções com fria eficiência. Diz-se com frequência que eles são mais computadores do que homens.

O espaço escuro além do meu porto de observação exibe agora com nitidez um véu denso de microexplosões. Nosso fogo antiaéreo explode numa grande tela de opacas nuvens brancas. Os mísseis a caminho explodem à medida que o fogo antiaéreo detona antes da hora suas matrizes de choque. Um deles ultrapassa o bloqueio e um destróier na nossa ala distante sacode em decorrência da explosão nuclear simulada. Homens escapariam aos montes da nave. Gases vazariam da estrutura. Explosões poderiam muito bem produzir rupturas e buracos no casco de metal e fazer com que oxigênio incandescente irrompesse como sangue de uma baleia apenas para ser engolido num piscar de olhos pela pretidão. Mas isso é um jogo de guerra, e eles não nos dão artefatos nucleares de verdade. As armas mais letais aqui são os alunos.

Uma outra nave é vitimada à medida que salvas, oriundas dos canhões da amurada, destroçam o fogo antiaéreo.

— Darrow... — Victra está preocupada.

Permaneço imóvel, batendo despreocupado o polegar no dedo que o anel de Eo adornava tempos atrás.

Victra se vira para mim.

2

A fenda

— Darrow... Ele está nos despedaçando, se você não reparou.

— A moça aqui fez uma boa observação, Ceifeiro — ecoa Tactus, o rosto refulgindo em tons azuis em decorrência do painel tático. — Seja lá o que você tenha em mente, não se intimide.

— Coms, mandem os esquadrões Serra e Garra atacarem o inimigo.

Observo o painel tático à medida que os esquadrões que enviei meia hora atrás rodopiam ao redor de ambos os lados dos asteroides e descem sobre o flanco de Karnus. Dessa distância, é impossível vê-los a olho nu, mas eles pulsam em tons dourados no painel.

— Congratulações, meu amigo — sussurra Roque antes mesmo de a ação se realizar. Há uma estranha reverência na sua voz, qualquer frustração anterior agora está ausente. — Desse jeito tudo vai mudar de figura. — Ele toca meu ombro. — Tudo.

Vejo minha armadilha se fechar, sentindo a iminente vitória drenar a tensão dos meus ombros. Os Cinzas da minha ponte dão um passo à frente. Até os Obsidianos se curvam para acompanhar nos painéis a nave de Karnus receber as assinaturas dos meus esquadrões. Ele tenta fugir, impulsionando seus motores para escapar do que está para acontecer. Mas os ângulos conspiram contra ele. Meus esquadrões liberam mísseis antes que Karnus possa dispor em formação de combate uma tela de fogo antiaéreo ou fazer com que seus próprios mísseis sustentem o ataque. Trinta explosões nucleares simuladas arrebentam sua última nave. Não há nenhum sentido em capturar sua nave a essa altura do jogo, portanto os pilotos de guerra Azuis saboreiam um pequeno excesso bélico.

E, dessa maneira, eu venci.

Minha ponte irrompe em gritos de Cinzas e dos técnicos Laranjas. Os Azuis entrelaçam suas juntas com força. Os Obsidianos, desconfortáveis com esse mundo high-tech, não emitem nenhum som. Minha valete pessoal, Theodora, sorri para os seus comandados mais jovens na estação de valetes da ponte. É uma ex-cortesã Rosa bastante além da idade ideal, que já ouviu muitos e muitos segredos na vida e serve muito bem como minha conselheira social.

Em toda a nave, dos motores à cozinha, a vitória é transmitida através das holotelas. Essa não é uma vitória apenas minha. Cada homem e cada mulher a compartilha do seu próprio modo. Esse é o esquema da Sociedade. Para que você prospere, seu superior precisa prosperar. Da mesma forma que encontrei um patrono em Augustus, os baixaCores encontram o seu em mim. Isso gera uma lealdade necessária para com os Ouros que o sistema de Cor em si não consegue criar por um mero ato ditatorial.

Agora minha estrela vai ascender, e todos a bordo ascenderão com ela.

Poder e promessa são celebridades nessa cultura. Não muito tempo atrás, quando o ArquiGovernador anunciou que patrocinaria meus estudos na Academia, os canais de hc se inflamaram de especulação. Alguém tão jovem, alguém oriundo de uma família tão lastimável, poderia vencer? Olhe só o que fiz no Instituto. Quebrei o jogo. Conquistei os Inspetores, matei um deles e amarrei os outros como se fossem crianças. Mas será que isso foi apenas um mero lampejo na noite? Agora aqueles falastrões filhos da puta têm a resposta de que precisavam.

— Timoneiro, ponha-nos a caminho da Academia. Temos láureas a reivindicar — anuncio em meio aos gritos entusiasmados. Láurea. A palavra em si ecoa através do meu passado, deixando minha boca amarga. Apesar do meu sorriso, não sinto nenhuma grandiosa alegria diante dessa vitória. Apenas uma sinistra satisfação.

Mais um passo, Eo. Mais um passo adiante.

— Pretor Darrow au Andromedus. — Tactus brinca com o título. — Os Bellona vão cagar nas calças. Você acha que vou poder usar isso como alavanca pra me tornar comandante ou será que devo me juntar à sua frota? Impossível saber. Essa maldita burocracia é tão entediante. Cobres pra graxa. Ouros pro lobby. Meus irmãos vão querer dar uma festa, com certeza. — Ele me cutuca. — Numa festa dos irmãos Rath até você talvez fosse pra cama com alguém.

— Como se ele fosse tocar em alguma das suas amigas. — Victra aperta minha mão, os dedos se demorando como se ela estivesse usando um vestido em vez de uma armadura. — Por mais que eu odeie dizer isso, Antonia estava certa em relação a você.

Sinto Roque estremecer, e lembro o som de Antonia cortando a garganta de Lea enquanto tentava fazer com que eu saísse do meu esconderijo no Instituto. Eu estava nas sombras nessa ocasião, escutando meu pequeno amigo cair e se molhar todo no chão musgoso. Roque amava Lea a seu próprio modo acelerado.

— Eu disse pra você não mencionar o nome da sua irmã na nossa presença — digo a Victra, e seu rosto exibe um tom amargo diante do abrupto repúdio.

Eu me viro para Roque.

— Como Pretor, acredito ter de fato autoridade pra equipar minha frota com pessoas da minha escolha. Talvez devêssemos trazer pra cá algumas caras antigas. Sevro de Plutão, os Uivadores de seja lá que buraco infernal pra onde eles tenham sido enviados e, quem sabe... Quinn de Ganimedes?

Roque fica com as bochechas rubras diante da menção do nome de Quinn.

Pessoalmente, eu gostaria sobretudo da presença de Sevro. Nenhum de nós é muito aplicado em manter contato um com o outro através da holoRede, principalmente eu, porque não tive acesso a isso antes de entrar na Academia. De qualquer modo, tudo o que ele gosta de mandar são hologramas de unicórnios singularmente pervertidos e videoclipes que o mostram lendo jogos de palavras. Plutão, na melhor das hipóteses, deixou-o mais estranho. E talvez mais solitário.

— Dominus. — A voz do timãoAzul me atrai ao painel.

— O que há de errado? — pergunto.

Seus olhos estão vidrados. Distantes, fixos nos sensores da nave, vendo as informações cruas do painel que estou encarando.

— Não está claro, dominus. Distorção de sensores. Borrões.

No grande painel central, os asteroides estão lá em azul. Nós somos ouros. Inimigos, vermelhos. Não deveria ter restado nenhum. Contudo, um pontinho vermelho lateja aqui e ali. Roque e Victra andam na direção dele. Roque mexe a mão e as informações se transferem para o seu datapad. Um hologlobo menor flutua à sua frente. Ele amplia a imagem e faz círculos através de filtros analíticos.

— Radiação? — pergunta Victra, tentando adivinhar. — Destroços?

— O centro do asteroide poderia causar uma refração especular a partir do nosso sinal — diz Roque. — Não poderia ser software... Sumiu.

O pontinho vermelho tremeluz para longe, mas a tensão se espalhou pela ponte. Todos miram o painel. Nada. Não há mais ninguém lá fora exceto minhas naves e a nave capitânia derrotada de Karnus. A menos que...

Roque se volta para mim, o rosto crispado, aterrorizado.

— Vamos fugir — ele consegue dizer no exato instante em que o sinal vermelho volta a brilhar de modo intenso.

— Motores a toda potência — rosno. — Trinta graus a mais na nossa linha média.

— Lancem os mísseis restantes na superfície do asteroide — comanda Tactus.

Tarde demais.

Victra arqueja, e vejo com meus próprios olhos o que nossos instrumentos lutaram para detectar: um destróier nas sombras emerge de um espaço oco no asteroide. Uma nave que eu pensei que havíamos destruído três dias atrás. Seus motores estavam parados enquanto ela se mantinha na espera. Sua metade frontal está arrebentada e preta devido às avarias. Agora seu motor está a todo vapor. E sua trajetória a leva direto à minha nave.

Ela vai nos esmagar.

— Trajes e bases de evacuação! — ordeno. Alguém está gritando para que nos preparemos para o impacto. Corro para a lateral da ponte onde minha base de escape reservada aos comandantes está montada na parede. Ela se abre ao meu comando. Tactus, Roque e Victra disparam na direção dos seus postos de confinamento. Eu recuo, gritando para que os Azuis se apressem e se desconectem. Apesar de toda a lógica que lhes é peculiar, eles morrerão pelas suas naves.

Percorro a extensão da ponte, berrando para que eles ativem suas escotilhas de escape. O timãoAzul obedece, apertando um botão que faz com que um buraco se dilate no chão do fosso. Um a um, eles se desconectam e são sugados para baixo pelo tubo gravitacional na direção das suas bases de escape.

— Theodora! — grito, vendo-a olhar fixo para um jovem Azul que ainda está grudado ao painel de operações com um semblante aterrorizado. — Entre nessa maldita base! — Ela não escuta. E nem o Azul se solta do painel. Vou na direção deles no exato momento em que o sensor de proximidade libera um último alerta altissonante.

Tudo fica mais lento.

As luzes da ponte latejam em vermelho.

Pulo na direção de Theodora, abraçando-a.

E o destróier atinge minha belonave na parte central.

Prendendo Theodora de encontro ao peito, sou lançado a uma distância de trinta metros na minha ponte, batendo numa parede de metal. Uma dor aguda se espalha pelo meu braço esquerdo ao longo dos pontos da fratura anterior. A escuridão toma conta de mim. Luzes dançam ali, primeiro como estrelas, depois como linhas sinuosas de areia perturbadas pelo vento.

Uma luz vermelha atravessa minhas pálpebras. Uma mão delicada puxa minha roupa.

Abro os olhos. Sou envelopado ao redor de uma coluna elétrica dentada à medida que a nave estremece, gemendo como uma fera ancestral e moribunda afundando nas profundezas. A coluna treme com violência de encontro ao meu estômago à medida que o destróier termina de despedaçar o miolo da minha nave. Eviscerando-nos com lenta crueldade.

Alguém está gritando meu nome. O som retorna aos poucos.

Luzes banham a ponte, sombras alternantes de um vermelho mortífero. Sirenes de alerta. A canção do cisne da nave. As velhas mãos delicadas de Theodora me puxam, como um pássaro puxa uma estátua caída. Estou sangrando na testa. Meu nariz está quebrado. Enxugo o sangue pungente dos meus olhos e rolo o corpo para ficar deitado de costas. Um painel quebrado lampeja ao meu lado. Há sangue nele. Será que caiu em cima de mim? Uma barra está ao lado dele, e meus olhos vagam na direção de Theodora. Ela remove a barra. Mas ela é tão pequena. Suas mãos acariciam meu rosto.

— Levante-se. Dominus, se quiser continuar vivo, você precisa se levantar. — As mãos da mulher idosa tremem de medo. — Por favor, levante-se.

Grunhindo, eu me ponho de pé. Minha base de escape desapareceu. Na colisão, ela deve ter disparado sozinha. Ou isso ou eles me deixaram para trás. Então, também a base de escape do Azul foi lançada longe. O assustado Azul virou uma mancha em cima de um anteparo. Theodora não consegue tirar os olhos da visão que tem diante de si.

— Há uma outra base nos meus aposentos — murmuro. Então vejo o motivo pelo qual Theodora está tremendo. Não devido ao medo, mas sim à dor. Sua perna está despedaçada, espalhada para o lado como se fosse um pedaço de giz molhado e rachado. Eles não fazem Rosas para sobreviver a coisas como essa.

— Não vou conseguir, dominus. Vá, agora.

Eu me ajoelho e a ponho no ombro do meu braço bom. Theodora gane de modo horrível quando sua perna muda de posição embaixo dela. Sinto seus dentes cerrados. E corro. Corro ao longo da ponte quebrada na direção da ferida que está matando minha nave, através dos corredores no nível da ponte em direção a uma cena caótica. Pessoas aglomeradas nos corredores principais, abandonando seus postos e funções enquanto correm para alcançar as bases de escape e os transportadores de tropa no hangar à frente. Pessoas que lutaram para mim — eletricistas, zeladores, soldados, cozinheiros, valetes. Eles jamais alcançarão a segurança. Muitos mudam de percurso quando me veem. Eles tropeçam, curvando-se de encontro a mim, em pânico e enlouquecidos em sua maníaca tentativa de alcançar a segurança. Eles me puxam, berrando, implorando. Eu os empurro para longe de mim, perdendo uma pequena parte do meu coração à medida que cada um deles cai para trás. Não tenho como salvá-los. Não tenho como. Um Laranja agarra a perna boa de Theodora e uma sargento Cinza o atinge na testa até ele cair no chão como se fosse uma pedra.

— Abram caminho — berra a corpulenta Cinza. Ela tira seu abrasador do coldre tático com um movimento rápido e dispara no ar. Um outro Cinza, lembrando-se de si mesmo, ou quem sabe pensando que eu fosse seu passaporte de saída daquela ratoeira, junta-se a ela na contenção do caos. Logo, logo, dois outros abrem uma trilha com as armas empunhadas.

Com a ajuda deles, consigo chegar à minha suíte. A porta sibila ao toque do meu dna e passamos. Os Cinzas protegem nossa retaguarda, apontando seus abrasadores para as trinta almas desesperadas que se aglomeram na entrada. A porta sibila como se fosse bater, mas uma Obsidiana abre caminho em meio à multidão e se enfia de qualquer maneira na moldura da porta, impedindo-a de se fechar. Um Laranja se junta a ela. Em seguida um Azul de baixa patente. Sem hesitação, a sargento Cinza atira na cabeça da Obsidiana. Seus companheiros abatem o Azul e o Laranja e os tiram da moldura da porta para que ela possa se fechar. Afasto meus olhos do sangue no chão para depositar Theodora num dos meus sofás.

— Dominus, quantas pessoas cabem na base de escape? — pergunta-me a sargento Cinza enquanto me encaminho para a fechadura localizada na entrada da base. Seus cabelos estão cortados bem rentes, à moda militar. Uma tatuagem no seu pescoço bronzeado espreita abaixo do colarinho. Minhas mãos voam sobre o prisma de controle, inserindo a senha com uma série de movimentos de mão.

— Quatro assentos. Vocês têm direito a dois. Decidam-se entre vocês.

Há seis pessoas ali.

— Dois? — pergunta com frieza a sargento.

— Mas a Rosa é uma escrava! — sibila um dos Cinzas.

— Não vale merda nenhuma — diz um outro.

— Ela é minha escrava — rosno. — Faça o que estou ordenando.

— Que se dane isso. — Então sinto o silêncio tanto quanto o ouço, e sei que um deles está apontando a arma para mim. Eu me viro devagar. O velho e corpulento Cinza não é nenhum idiota. Ele saiu do meu alcance. Não tenho armadura, apenas minha lâmina. Eu poderia muito bem matá-lo sem grandes esforços. Os outros perguntam que diabo ele pensa que está fazendo.

— Sou um homem livre, dominus. Eu deveria ter direito a ir — diz o Cinza, a voz trêmula. — Tenho uma família. É meu direito ir. — Ele olha para os seus companheiros, banhados no desagradável tom vermelho das luzes de emergência. — Ela não passa de uma puta. Uma puta que se acha o máximo.

— Marcel, abaixe essa arma — diz um cabo de tez escura. Seus olhos estão pesados pelo seu amigo. — Lembre-se do seu juramento. Vamos acabar induzindo os outros a esse tipo de postura.

— Isso não é justo! Ela nem pode ter filhos!

— E o que seus filhos iriam pensar de você agora? — pergunto.

Os olhos de Marcel se enchem de lágrimas. O abrasador treme na sua mão grossa. Em seguida um tiro. Seu corpo enrijece e desaba sem vida no deque enquanto a bala do abrasador da sargento atravessa sua cabeça e bate no anteparo de metal atrás dele.

— Fazemos isso por patente — diz a sargento, recolocando a arma no coldre.

Se eu ainda fosse o homem que Eo conheceu, teria ficado paralisado de horror. Mas aquele homem se foi. Pranteio sua passagem todos os dias. Esquecendo mais e mais quem eu era, que sonhos eu tinha, que coisas eu amava. A tristeza agora está dormente. E sigo em frente, apesar da sombra que ela lança sobre mim.

A base de escape se abre e a fechadura magnética faz um barulho. A porta sibila ao subir. Pego Theodora no sofá e a prendo no assento com o cinto de segurança. As correias do cinto são quase grandes demais, feitas para Ouros. Então algo profundo e horrível ruge no ventre da minha nave. Meio quilômetro distante de onde estávamos, nosso estoque de torpedos detona.

A gravidade artificial não existe mais. As paredes estáveis não existem mais. É uma sensação insidiosa. Tudo gira. Dou um soco no piso da base de escape. No teto? Não sei. O ar sob pressão escapa da nave. Alguém vomita. Sinto o cheiro muito mais do que ouço. Grito para os Cinzas entrarem na base. Agora apenas um é obrigado a ficar para trás, o rosto abatido e quieto à medida que a sargento e o cabo entram na base de escape. Eles apertam os cintos de segurança em frente a mim. Aciono a função lançamento e saúdo o Cinza que ficou para trás. Ele retribui a saudação, orgulhoso e leal apesar da sua quietude ao encarar o último momento de vida, os olhos distantes e pensando em algum jovem amor, algum caminho não percorrido, talvez imaginando por que não nascera Ouro.

Então as portas se fecham, e ele some do meu mundo.

Sou jogado de repente para trás no meu assento à medida que a base de escape é lançada da nave moribunda. Arrebentando os destroços. Então estamos de novo sem peso e vagando para longe dos problemas à medida que os amortecedores inerciais entram em ação. Do nosso porto de observação, vejo minha nave capitânia arrotando fumaça azul e chamas vermelhas. O hélio-3 processado, que fornece a potência de ambas as naves, entra em combustão perto dos motores da minha belonave, causando uma explosão em cadeia que faz com que a espaçonave se parta ao meio. De súbito, percebo que não eram destroços que eu havia sentido batendo na minha base de escape quando abandonei a nave: tratava-se de pessoas. Minha tripulação. Centenas de baixaCores cuspidos no espaço.

Os Cinzas estão sentados diante de mim.

— Ele tinha três meninas — diz o cabo de pele escura, tremendo à medida que a adrenalina abandona seu corpo. — Mais dois anos e ele teria direito a sair com uma pensão. E você deu um tiro na cabeça dele.

— Depois do meu relatório, aquele covarde não vai conseguir nem uma pensão por morte — debocha a sargento.

O cabo pisca para ela.

— Sua piranha gélida.

As palavras deles se perdem aos poucos, sobrepujadas pelo latejar do sangue nos meus ouvidos. Isso é culpa minha. Desobedeci às regras do Instituto. Mudei o paradigma e pensei que eles não iriam se adaptar. Que eles não mudariam sua estratégia por mim.

E agora perdi tantas vidas que pode ser que jamais venha a saber a quantidade exata.

Mais pessoas simplesmente morreram num piscar de olhos do que durante um ano inteiro do Instituto, e suas mortes abrem um buraco negro no meu estômago.

Roque e Victra me saúdam pelos comunicadores. Eles devem ter rastreado meu datapad e sabem que estou em segurança. Mal os ouço. A raiva, densa e maligna, rodopia dentro de mim, fazendo com que minhas mãos fiquem trêmulas e meu coração bata com força.

De algum modo, a nave de Karnus continua no espaço depois de seccionar meu comando, avariada mas não destruída. Eu me levanto na base, soltando-me das amarras do cinto de segurança. Nos fundos da base de escape há um cospeTubo com uma couraçaEstelar abastecida com armamentos — um traje mecanizado cujo objetivo é transformar um homem num torpedo humano. Ele é projetado para lançar Ouros em asteroides ou planetas, porque a base não sobreviveria à reentrada atmosférica. Mas vou usá-lo para uma vingança. Vou me lançar na direção da maldita ponte daquele Bellona filho da puta.

Theodora ainda não acordou. Fico contente.

Falo para o cabo me ajudar a entrar no traje. Dois minutos depois, estou dentro da carapaça de metal. São necessários mais dois para discutir com o computador acerca dos cálculos necessários para que minha trajetória cruze com a de Karnus, de modo que eu possa espatifar as janelas da ponte e aterrissar na sua nave. Nunca ouvi falar de ninguém que já tenha feito isso. Nunca vi algo assim nem mesmo ser tentado. Trata-se de uma loucura. Mas Karnus vai pagar.

Começo minha própria contagem regressiva.

Três... A nave do inimigo passa com altivez a cem quilômetros de distância. É semelhante a uma cobra escura com um rabo azul, uma ponte no lugar dos olhos. Entre nós, uma centena de bases de escape cintilam, tantos rubis lançados ao sol. Dois... Rezo para que eu consiga encontrar o Vale se não sobreviver a isso. Um. Meus controles morrem e luzes vermelhas piscam ao redor do meu capacete. Os Inspetores dominam meu computador e congelam meus controles.

— não! — rosno, observando a nave de Karnus desaparecer na pretidão.


3

Sangue e mijo

Oitocentos e trinta e três homens e mulheres. Oitocentos e trinta e três pessoas mortas por causa de um jogo. Gostaria muito de nunca ter tido conhecimento desse número. Repito a quantia sem parar enquanto estou sentado no assento do passageiro da nave de resgate enviada para me transportar de volta à Academia. Meus tenentes estão sentados, temerosos de trocar olhares comigo. Até mesmo Roque me deixa quieto no meu canto.

Os instrutores desabilitaram minha espaçonave antes que eu pudesse acionar o lançamento. Eles dizem que fizeram isso para me poupar o equívoco de um tolo. O estratagema era áspero, estúpido e inadequado a um Pretor Ouro. Eu os mirei de modo inexpressivo enquanto eles me inquiriam via holo.

Alcançamos a Academia nas últimas horas do dia do ciclo de tempo da minha nave. O lugar é um grandioso porto metálico em forma de domo nas bordas de um campo de asteroides, contornado por docas para destróieres e belonaves. A maioria deles está cheia. Lar da Academia e do comando do setor médio, o local é uma das colmeias dos contingentes militares da Sociedade para os mundos médios de Marte, Júpiter e Netuno, embora sirva a outras forças planetárias quando suas órbitas os pegam nas proximidades. Meus colegas devem ter assistido a tudo aqui nos seus dormitórios. Da mesma maneira, muitos oficiais de Frota e Inigualáveis — que se reúnem aqui para as últimas semanas do jogo com o objetivo de participar de festas e acompanhar os embates — também devem ter assistido.

Nenhum mencionará o custo das vidas perdidas exigido pela vitória de Karnus. Mas a derrota vai atrapalhar minha missão. Os Filhos de Ares têm espiões. Eles têm hackers e cortesãs para roubar segredos. O que eles não tinham era uma frota. Nem terão agora.

Ninguém cumprimenta meus tenentes ou a mim na doca.

Vermelhos e Marrons se movimentam para cumprir as ordens de dois Violetas e um Cobre que fazem preparativos para a Vitória de Karnus na grandiosa antecâmara. O azul e prata da Casa Bellona enfeita os cavernosos corredores metálicos. A crista da águia da sua família cobre as paredes. Elas têm pétalas de rosas brancas para ele. Pétalas de rosas vermelhas são reservadas para os Triunfos, vitórias verdadeiras onde sangue Ouro é derramado. O sangue de oitocentos e trinta e três baixaCores não conta. Isso é um assunto clerical.

Meus tenentes dormiram enquanto viajávamos de volta à Lata. Eu não. Tactus e Victra agora tropeçam à minha frente, caminhando silenciosos, como se ainda envoltos em sonolência. Apesar do peso nos ombros, não anseio por sono. O arrependimento está instalado atrás dos meus olhos vermelhos. Se eu dormir, sei que verei os rostos daqueles que deixei morrer nos corredores da nave. Sei que verei Eo. Não posso encará-la hoje.

A Academia tem cheiro de antisséptico e flores. As pétalas de rosa estão em cestas ao lado. Os dutos do teto reciclam nossas respirações e purificam o ar, produzindo um constante zumbido. Pálidas luzes fluorescentes cor de mijo iluminam o local a partir do teto, como se para nos lembrar que este não é um lugar para crianças ou para fantasias. A luz, como os homens e as mulheres aqui, é dura e fria.

Roque permanece ao meu lado enquanto andamos, embora exiba um aspecto de quem está prestes a morrer. Digo a ele para dormir um pouco. Ele fez por merecer.

— E o que você mereceu? — pergunta ele. — Não um dia de aborrecimento. Não um dia de autoflagelação. De todos os lanceiros, você é o segundo. Segundo! Irmão, por que não se orgulhar disso?

— Agora não, Roque.

— Qual é — continua ele. — Não é a vitória que faz o homem. É a derrota. Você pensa que nossos ancestrais nunca perderam? Você não precisa reclamar tanto disso e fazer de si mesmo um daqueles clichês gregos. Deixe essa presunção pra lá. Aquilo foi só um jogo.

— Você acha que eu dou a mínima pro jogo? — digo, virando-me para ele. — Pessoas morreram.

— Elas escolheram ter vidas a serviço da frota. Elas sabiam do perigo e morreram por uma causa.

— Que causa?

— Pra manter nossa Sociedade forte.

Eu o encaro. Seria possível que meu amigo, meu amigo dileto, pudesse ser tão cego? Que escolha essas pessoas tinham? Elas foram recrutadas. Balanço a cabeça.

— Você não entende nada, não é?

— É claro que não entendo. Você nunca fala nada pra ninguém. Não fala comigo. Não fala com Sevro. Olhe só como você tratou Mustang. Você afasta os amigos como se eles fossem inimigos.

Se ao menos ele soubesse.

Encontro o jardim abandonado. Ele fica no topo da Lata, um grande vestíbulo de vidro, terra e plantas projetado para ser um retiro para soldados cansados da fluorescência. Árvores mirradas balançam numa brisa simulada. Tiro os sapatos, arranco as meias e suspiro à medida que a grama se enfia entre meus dedos.

Luminárias acima das árvores produzem um sol falso. Eu me deito abaixo delas até que, com um grunhido, me levanto e vou na direção de uma pequena fonte de água quente que se encontra no centro da clareira. Machucados, a maioria deles já sumida, deixam marcas no meu corpo semelhantes a pequenas poças azuis e púrpuras contornadas por areia amarelada. A água sossega minhas dores. Estou mais magro do que deveria, mas rígido e tenso como uma corda de piano. Se meu braço não estivesse quebrado, eu diria que me sinto mais saudável do que na época do Instituto. Lutar comendo bacon e ovos disponíveis na Academia dá de dez a zero naquela merda de carne de cabra quase crua que eu comia naquele lugar.

Encontro a flor de haemanthus ao lado da piscina. Ela se mantém viva onde nenhuma água existe. Ela é nativa de Marte, como eu, de modo que não a colho. Enterrei Eo num lugar como esse. Enterrei-a na floresta falsa acima da mina Lykos, onde fiz amor com ela pela última vez. Éramos coisinhas esqueléticas e inocentes naquela época. Como é possível que uma menina tão frágil pudesse ter um espírito como aquele, um sonho de liberdade daquele tamanho, quando tantas almas fortes labutavam e mantinham a cabeça baixa por medo de olhar para cima?

Gritei para Roque afirmando que não ligava a mínima para a derrota. Contudo, eu ligo, e há uma culpa em ligar para isso quando tantas vidas deveriam exigir toda a minha tristeza. Mas, antes do dia de hoje, a vitória me deixava cheio, porque a cada vitória eu me aproximava mais de poder realizar o sonho de Eo. Agora a derrota roubou isso de mim. Fracassei com ela hoje.

Como se estivesse ciente dos meus pensamentos, o datapad vibra no meu braço. Augustus está ligando. Tiro a tampa da grossura de um fio de cabelo do dispositivo e fecho os olhos.

Suas palavras ecoam na minha memória. “Mesmo que você perca, mesmo que você não consiga a vitória pra si mesmo, não permita que um Bellona triunfe. Uma outra frota sob o controle deles pode mudar o equilíbrio do poder.”

Pouco importa. Flutuo na água, dormindo e acordando até meus dedos ficarem enrugados e eu ficar entediado. Não fui feito para esses momentos de tranquilidade. Eu me levanto para sair da água e me vestir. Não posso deixar Augustus esperando muito tempo. É hora de encarar o velho leão. Depois dormir, quem sabe. Terei de assistir à droga da vitória de Karnus, mas depois disso vou sair deste lugar horroroso e voltar para Marte, e talvez para Mustang.

Mas, quando me viro para sair da piscina, percebo que minhas roupas sumiram, bem como minha lâmina.

Então sinto a presença deles.

Ouço suas botas militares atrás de mim. Suas respirações altissonantes e excitadas. Quatro deles, imagino. Pego uma pedra no chão. Não. Eu me viro e encontro sete bloqueando a entrada do jardim. Todos são Ouros da Casa Bellona. Todos, meus inimigos de sangue.

Karnus vem com os Bellona, recém-saído da sua nave. Seu rosto está tão abatido quanto o meu, seus ombros quem sabe também quase tão largos quanto os meus. Ele assoma sobre mim — um Obsidiano em todas as formas, exceto pelo seu nascimento e sua mente. Aquela boca ridente exibe um risinho de inteligência incomum. Ele esfrega a mão no queixo com uma covinha, e os musculosos antebraços dão a impressão de ser entalhados a partir de madeira de rio lisa. Há algo aterrorizante em estar na presença de alguém tão grande que você pode sentir as vibrações da voz dele nos seus ossos.

— Parece que pegamos o leão de Augustus distante do seu orgulho. Olá, Ceifeiro.

— Golias — murmuro, usando seu nome de guerra.

Golias, o quebrador. Golias, o matador de filhos. Golias, o selvagem. Mustang diz que ele uma vez quebrou a coluna de um Ouro bonitinho nascido-em-Luna com uma joelhada depois que o moleque teve a ideia de derramar uma bebida no rosto dele num clube Pérola. A mãe de Karnus então subornou o Judiciário para que ele fosse solto com o pagamento de uma multa.

A lista de multas que ele pagou por assassinatos é mais comprida do que a extensão do meu braço. Cinzas, Rosas, inclusive um Violeta. Mas a verdadeira reputação dele é em função de ter matado Claudius au Augustus, filho favorito e herdeiro do ArquiGovernador. Irmão de Mustang.

Os primos de Karnus orbitam em torno dele. Todos Bellona. Todos nascidos sob o sinete azul e prata da águia conquistadora. Irmãos, irmãs, primos e primas de Cassius. Seus cabelos são ondulados e fartos; os rostos, todos belos. A influência deles se estende a toda a Sociedade. Assim como a reputação de suas armas.

Um deles é bem mais velho e mais baixo do que eu, porém com uma constituição física mais poderosa do que a minha, semelhante ao tronco de uma árvore com limo louro cobrindo sua cabeça. Ele é um homem na casa dos trinta. Kellan, agora me lembro. Um Legado completo, um cavaleiro da Sociedade. E ele veio aqui com seus irmãos e primos por minha causa. A arrogância respinga desse aí. Ele finge um bocejo enquanto faz brincadeiras de pátio de escola.

O medo troveja no meu peito.

Tenho dificuldade para respirar. Contudo, sorrio, os dedos espremendo as funções do datapad atrás de mim.

— Sete Bellonas — digo, rindo. — Por que você precisa de sete, Karnus?

— Você tinha sete naves contra mim — diz Karnus. — Vim aqui continuar o jogo. — Ele empina a cabeça. — Você achou que o jogo terminava com o fim da sua nave?

— O jogo acabou — digo. — Você venceu.

— Eu venci, Ceifeiro? — pergunta Karnus.

— Ao custo de oitocentos e trinta e três pessoas.

— Choramingando por causa da derrota? — pergunta Cagney. Ela é a menor dos seus primos, uma lançadora do pai de Karnus com vinte e poucos anos de idade. É ela quem está segurando minha lâmina, a que Mustang me deu. Ela a brande no ar. — Acho que vou ficar com isso aqui. Acho que nem ouvi falar de você usando essa coisa. Não que eu esteja julgando. Lâminas são traiçoeiras. Os perigos de uma criação desprovida de educação, imagino.

— Enfie o punho no rabo da sua prima — digo, escarnecendo. — Esse deve ser o motivo pelo qual todos vocês merdinhas de cabelos ondulados se parecem.

— Precisamos mesmo ficar ouvindo o cara latir desse jeito, Karnus? — resmunga Cagney.

— Eu ensinei Julian a pescar, Ceifeiro — diz de repente Kellan, o Legado. — Quando ele era criança, não gostava disso, pois achava que machucava demais o peixe, que era uma coisa cruel. Esse é o menino que seu mestre mandou você matar. Essa é a medida da crueldade dele. E então, você se sente muito grandioso com isso? Você se considera muito corajoso tendo feito isso?

— Eu não queria matá-lo.

— Oh, mas nós queremos matar você — ribomba Karnus. Ele faz um movimento de cabeça na direção dos primos. Dois dos Bellona quebram galhos de árvore e os jogam para os seus parentes. Eles têm lâminas mas, ao que parece, querem gastar o tempo.

— Se vocês me matarem, haverá consequências — digo. — Isso aqui não é um duelo sancionado, e eu sou um Inigualável. Sou protegido pelo Pacto. Isso será um assassinato. Os Cavaleiros Olímpicos vão caçar vocês. Vão julgá-los. Vão executá-los.

— Quem disse alguma coisa sobre assassinato? — pergunta Karnus.

— Você pertence a Cassius — diz Cagney, e seu rosto vulpino se abre num sorriso.

— Hoje você é protegido por Augustus — diz Karnus. — O garoto escolhido por ele. Matá-lo significaria guerra. Mas ninguém vai à guerra por causa de uma pequena surra.

Cagney protege sua perna esquerda. Contusão no joelho. Um primo dela se apoia nos calcanhares. Com medo de mim. O grandalhão, Karnus, me confronta, significando que não dá a mínima para seja lá que espécie de dano eu possa vir a causar em alguém. Kellan sorri e permanece relaxado. Odeio esse tipo de homem. Difícil de julgar. Calculo minhas chances. Então me lembro do braço quebrado, das costelas machucadas e da contusão no olho: corto pela metade essas chances.

Estou assustado. Eles não podem me matar, eu não posso matá-los. Não aqui. Não agora. Todos aqui sabem como essa dança vai acabar. Mas vamos dançar.

Karnus estala os dedos e eles correm de imediato na minha direção. Jogo a pedra na cara de Cagney. Ela cai. Corro para Karnus, uivando como um lobo ensandecido, deslizando por ele para evitar seu primeiro golpe e desferindo uma torrente de ataques nos seus centros nervosos, acertando-lhe o bíceps direito com meu cotovelo, rompendo o tecido. Ele cambaleia para trás e eu voo em cima dele, usando seu corpanzil para me proteger dos outros e dos seus bastões. Arranco um bastão de uma das primas Bellona, dando-lhe uma cotovelada nas têmporas. Em seguida me viro, girando o bastão para acertar o rosto de Karnus. Mas o golpe é bloqueado. Alguma coisa atinge minha nuca. Madeira se despedaça. Farpas penetram no meu couro cabeludo. Eu não tombo. Não até Karnus me atingir com tanta força no rosto com seu cotovelo que um dente é arrancado.

Eles não se revezam para me atacar cada um de uma vez: me cercam e me castigam com a eficiência da sua arte mortífera, Kravat. Miram os nervos, os órgãos. Consigo me levantar, atingindo alguns dos meus agressores. Mas não fico muito tempo de pé. Alguém enfia o bastão na minha pele, impactando o nervo subcostal. Desabo no chão como cera derretida, e Karnus me dá um chute na cabeça.

Mordo a metade da língua.

Uma quentura enche minha boca.

O chão é a coisa mais macia que sinto.

Engasgando com sal.

Sangue e ar espirram da minha boca quando Karnus enfia o pé no meu estômago e em seguida no meu pescoço. Ele ri.

— Nas palavras de Lorn au Arcos, se você deseja apenas machucar um homem, é melhor matar seu orgulho.

Gorgolejo em busca de ar.

Cagney substitui Karnus, sentando-se sobre meu peito e os joelhos prendendo meus braços. Aspiro ar. Ela sorri na minha cara e olha para os meus cabelos, os lábios entreabertos com o entusiasmo de poder dominar outra pessoa. Ela torce meus cabelos no seu aperto. Seu hálito quente tem cheiro de hortelã.

— O que temos aqui? — pergunta ela, puxando meu datapad do braço. — Caramba. Ele ligou pros Augustinos. Seria melhor não lutar com esses putos dos Julii sem minha armadura.

— Então não perca mais tempo — rosna Karnus. — Faça logo isso.

— Shhh — sussurra ela enquanto tento falar, passando a faca pelos meus lábios, enfiando-a na minha boca até que o metal frágil encosta nos meus dentes. — Este aqui é um putinho dos bons.

Com aspereza, ela corta meus cabelos.

— Fique quietinho aí. Bom Ceifeiro. Bom.

O sangue faz meus olhos arderem quando Karnus tira Cagney de cima do meu peito com um empurrão, me agarra e me levanta do chão com a mão esquerda. Ele flexiona o braço direito, xingando por causa do seu bíceps arruinado. Ele não consegue levá-lo para trás para desferir um soco, de modo que, em vez disso, dá um risinho para mim com os dentes à mostra e me atinge o tórax com um golpe de cabeça, exatamente na altura do esterno. Meu mundo oscila. Há um estalo. O som de galhos crepitando no fogo. Respiro com dificuldade, balbuciando sons inumanos. Karnus me acerta de novo o tórax com a cabeça e joga meu corpo dolorido no chão.

Sinto uma quentura se derramar por todo o meu corpo e o cheiro de mijo agride minhas narinas. Eles riem e Karnus respira no meu ouvido.

— Mamãe me mandou te dizer: um mendigo nunca pode ser príncipe. Sempre que você se olhar no espelho, lembre-se do que fizemos com você. Lembre-se de que você só está respirando porque nós permitimos isso. Lembre-se de que seu coração estará um dia em cima da nossa mesa. Quem muito se ufana cai de cara na lama.


4

Caído

Estou parado diante do meu mestre, mas ele não dá a mínima.

As paredes do escritório são revestidas de madeira e sobre o chão repousa um antigo tapete que seu ancestral de ferro trouxe de um palácio da Terra depois da queda do Império Indiano, uma das últimas grandes nações a confrontar os Ouros. Que pavor aqueles humanos nascidos naturalmente devem ter sentido ao ver os Conquistadores caindo do céu. Homens aperfeiçoados, mas trazendo grilhões em vez de esperança.

Estou parado em frente à escrivaninha de Augustus, uma coisa nua de madeira e ferro, bem diante da mancha de sangue de setecentos anos onde o último imperador indiano teve sua cabeça separada do corpo por um esguio matador Ouro.

Com indolência, Nero au Augustus acaricia o leão que se encontra ao lado da escrivaninha. Os dois parecem estátuas gêmeas. Atrás deles o que existe é o espaço. Um porto de observação com vista para o negrume, onde as naves da Armada Cetro estão paradas como se fossem gigantescos golens num sono terrível. Passamos por elas na última etapa da nossa viagem de três semanas vindo de Marte.

Augustus mira sua escrivaninha à medida que uma torrente de dados percorre a superfície de madeira.

Parece fazer muito tempo que ele me levou para um tour em Marte com o intuito de me mostrar nossos domínios — dos latifúndios onde altoVermelhos labutam em colheitas às grandiosas extensões polares onde Obsidianos vivem num isolamento medieval. Ele tinha predileção por mim nessa época, trazendo-me para perto de si, ensinando-me as coisas que seu pai havia lhe ensinado. Eu era seu favorito, atrás apenas de Leto. Agora ele é um estranho; e eu, um embaraço.

Faz dois meses que Karnus me surrou na Academia. Embora meus cabelos tenham crescido de novo e meus ossos quebrados tenham sido consertados, o mesmo não aconteceu com minha reputação. E, em decorrência disso, a possibilidade de eu permanecer como empregado do ArquiGovernador Augustus é tênue, na melhor das hipóteses. Minha quantidade de inimigos cresce dia após dia. Mas esses novos preferem as intrigas às lâminas.

Cada vez mais acredito que os Filhos de Ares escolheram o homem errado. Não fui feito para a guerra fria da política. Não fui feito para sutilezas. Que inferno, eu esconderia um menino nas tripas de um cavalo a qualquer momento, mas não saberia como subornar alguém de maneira correta se minha vida dependesse disso.

Uma voz cálida e delicada feita para meias verdades vaga pelo escritório do ArquiGovernador.

— Três refinarias. Duas casas noturnas. E dois postos de comando Cinzas. Tudo isso bombardeado desde que saímos de Marte. Sete ataques, meu suserano. Cinquenta e nove vítimas fatais Douradas.

Pliny. Delgado como uma salamandra, com uma pele tão lisa quanto a de um Rosa. O político não é um Inigualável Maculado, nem mesmo frequentou o Instituto. Seus olhos cintilantes espiam sob cílios que deixariam as plumas de um pavão com vergonha. Um batom opaco cobre seus lábios finos. Os cabelos são espiralados e aromatizados. Seu corpo é magro mas musculoso de um modo agradável, porém absolutamente superficial sob uma túnica de seda bordada bem justa. Uma criança poderia aterrorizar ao extremo esse belo filhote de gato em forma humana. Contudo, ele já acabou com famílias inteiras com um boato aqui, uma piada ali. Seu poder é de uma estirpe diferente. Onde sou energia cinética, ele é potencial.

Ouvi falar que ele também é responsável por ter arruinado minha reputação. Tactus inclusive insinuou que Pliny poderia talvez ter incentivado a violência de Karnus no jardim ou, no mínimo, arranjado um holoCam para registrar meu orgulhoso momento.

Ao lado de Pliny está o quarto homem na sala, Leto. Ele é um brilhante lanceiro dez anos mais velho do que eu com cabelos trançados e um risinho em forma de meia-lua. Ele também é um poeta com a lâmina, um Lorn au Arcos mais jovem, de acordo com alguns. É muito provável que ele herde a propriedade de Augustus no lugar dos herdeiros de sangue do ArquiGovernador: Mustang e Chacal. Verdade seja dita, eu gosto bastante do homem.

— Os Filhos de Ares estão ficando muito ousados — murmura Augustus.

— Sim, meu suserano — diz Pliny, estreitando os olhos. — São de fato eles os responsáveis por perpetrar tais atos.

— Que outra formiga nos morde?

— Nenhuma, que eu saiba. Mas há aranhas, carrapatos, ratos nos mundos. As explosões de bombas são atos brutos demais pros padrões de Ares, indiscriminados, de uma violência pouco característica. Desprovidos de contiguidade com o padrão de sabotagem e propaganda tecnológica contidas no perfil dele. Ares não é extravagante, de modo que eu custo a acreditar que esses atos tenham se originado nele.

Augustus franze o cenho.

— Então o que você sugere?

— Talvez haja algum outro grupo terrorista, meu suserano. Com dezoito bilhões de almas no censo, é difícil imaginar que um homem pudesse ter o monopólio das ações terroristas. Quem sabe até mesmo uma associação criminosa. Estou criando um banco de dados que posso compartilhar...

Pliny está certo. Os ataques terroristas que assolaram Marte e outros planetas fazem pouco sentido. Dancer falava de justiça, não de vingança. Esses ataques são simplórios e medonhos — bombas em acampamentos militares, bazares, cafés altaCor e restaurantes. Ares jamais toleraria isso. Esse tipo de ato atrai muitos olhos por pouquíssimos resultados, incentivando os Ouros a agir de maneira ousada, a esmagar os Filhos.

Enviei mensagens a Dancer via holoCaixa. Nada. Apenas silêncio. Será que ele está morto? Ou Ares me abandonou pela sua nova estratégia de ataques com bombas?

Pliny boceja.

— Talvez Ares tenha mudado sua tática. Ele é um homem endiabrado.

— Se Ares for um homem — diz Leto.

— Interessante. — Augustus gira de súbito o corpo na cadeira. — O que te faz pensar que ele não é um homem?

— Por que assumimos que Ares é um homem? Ele pode ser uma mulher. Pode ser um grupo de indivíduos, até onde sabemos, o que ajudaria muito a explicar a natureza discordante desses novos ataques. — Leto se volta para mim, inclusive os olhos. — Darrow, o que você acha?

— Não confunda Darrow com questões complexas! — tripudia Pliny, na defensiva. — Coloque a questão apenas em termos de sim e não pra que ele possa entender. — Pliny lança na minha direção o sorriso mais digno de pena que se possa conceber e aperta meu ombro em solidariedade. — Por trás dos seus sorrisos lépidos, ele é uma fera honesta e simples. Você devia estar ciente disso.

Fico lá parado recebendo na cara as palavras.

Ele se vira para o outro lado.

— De qualquer modo, Leto, você está esquecendo que projetamos a cultura Vermelha pra ser altamente patriarcal. A identidade deles como povo se centra em torno da coleção de recursos pra propagar a terratransformação embriônica de Marte. Tarefas físicas extenuantes e estafantes desempenhadas por homens. Tarefas que não deixamos as mulheres desempenharem, mesmo que sejam capazes, em conformidade com o Protocolo de Estratificação. Portanto, entenda bem, essa pessoa não pode ser uma mulher, porque nenhum Enferrujado tosco seguiria um homem ou uma mulher que jamais operou uma Perfuratriz-Garra.

Leto sorri com astúcia.

— Se Ares for um Vermelho.

Pliny e Augustus riem.

— De repente ele é um Violeta perturbado que levou sua capacidade interpretativa a um novo tipo de palco — sugere Pliny.

— Ou um cambista Cobre assediado por arquivar devoluções de impostos de áreas provincianas — acrescenta Leto.

— Não! Um Obsidiano que, eu ousaria dizer, enfim superou seu horror à tecnologia e desenvolveu as habilidades pra usar um holoCam? — diz Pliny, dando um tapa na perna. — Eu daria uma das minhas Rosas só pra ver...

— Meus bons-homens. Já chega. — Augustus o corta, batendo com o dedo na escrivaninha. Pliny e Leto compartilham um risinho e se viram para Augustus. — Qual é sua recomendação, Pliny?

— É claro — ele responde, limpando a garganta. — Ao contrário da propaganda deles e dos ataques cibernéticos, a brutalidade é bastante simples de ser confrontada. Ares ou não, divulgue uma resposta. Nossas equipes de matadores estão preparadas pra ataques táticos em diversos campos de treinamento de terroristas sob a superfície de Marte. Deveríamos atacar agora mesmo. Se esperarmos, temo que os Pretorianos da Soberana cuidarão do problema do modo deles. Os nascidos-em-Luna não entendem Marte. Eles vão estragar tudo.

— Um tolo puxa as folhas. Um selvagem corta o tronco. Um sábio desenterra as raízes. — Augustus faz uma pausa. — Algo que Lorn au Arcos uma vez disse ao meu pai. Está entalhado no Hall das Lâminas em New Thebes. Atacar campos de treinamento não fará coisa alguma além de preencher a holoRede de explosões bacaninhas. Estou cansado de brincadeiras políticas. Nossa estratégia precisa mudar. A cada bomba que explode, a Soberana fica mais farta da minha administração.

— Você governa Marte — diz Leto. — Não Vênus ou a Terra. Nosso planeta não é plácido. O que ela espera?

— Resultados.

— O que tem em mente, meu suserano? — pergunta Pliny.

— Pretendo envenenar as raízes dos Filhos de Ares. Quero homens-bomba suicidas, não Cinzas. Ache os mais horríveis, os mais desagradáveis Vermelhos em Marte, tome suas famílias como reféns e ameace matar seus filhos e filhas se os pais não obedecerem à nossa ordem. Concentre os homens-bomba nas áreas de superfície com alta densidade de jovens, bem como em duas minas da nossa escolha. Nada de suicidas do sexo feminino. Quero divisão social. Mulheres contra a violência.

Como a vida tem pouco valor aqui. Apenas palavras no ar.

— Áreas urbanas também — continua ele. — Não apenas mineiros Marrons e Vermelhos e agricultores. Quero crianças Azuis e Verdes mortas em escolas ou em arcadas próximas a glifos dos Filhos de Ares. Depois vamos ver se outras Cores ainda vão cantar a maldita canção daquela garota.

Meu coração dá um salto. A canção de Eo se espalhou além do que ela sonhara, alcançando a holoRede e devastando o Sistema Solar, compartilhada mais de um bilhão de vezes graças a grupos de hackers anarquistas. Frequentemente, sou acometido do temor de ser identificado. Talvez algum Ouro vasculhe os registros e descubra que o nome do marido de Eo também era Darrow. Mas nem mesmo eu consigo reconhecer aquele rapaz pálido e esquelético. E quanto aos nomes? Não há registros verdadeiros para nomes baixoVermelhos. Eu tinha uma designação numérica dada a mim por um administrador Cobre de alguma repartição burocrática. L17L6363. E L17L6363 foi enforcado até morrer. Depois disso, seu corpo foi roubado por um perpetrador desconhecido e quase com certeza enterrado nas minas profundas.

— Você planeja alienar os Vermelhos das outras Cores, e em seguida alienar os Filhos de Ares dos Vermelhos — diz Pliny, sorrindo. — Meu suserano, às vezes imagino por que você ainda necessita de mim.

— Não me bajule, Pliny. Isso está abaixo de nós dois.

Pliny baixa a cabeça.

— Com certeza. Peço desculpas, meu suserano.

Augustus olha para Leto.

— Você está se contorcendo como um cachorrinho.

— Temo que essa atitude torne as coisas ainda piores. — Leto franze o cenho para si mesmo. — Hoje em dia, os Filhos de Ares são uma inconveniência, com certeza. Mas é difícil que sejam nosso principal problema. Se fizermos isso, poderemos dar mais combustível às chamas. E, o que é pior, seríamos tão culpados quanto os próprios Filhos de Ares. Terroristas.

— Não há culpa aqui. — Pliny olha com languidez para a torrente de dados no seu datapad. — Não quando você é o juiz.

Leto não fica satisfeito:

— Meu suserano, nosso imperativo pra governar existe apenas porque nos adaptamos pra guiar melhor a humanidade. Somos os reis filósofos de Platão. Nossa causa é a ordem. Fornecemos estabilidade. Os Filhos de Ares são anarquistas. A causa deles é o caos. Deveríamos usar isso como nossa arma. Não Cinzas no meio da noite. Não homens-bomba em meio a crianças.

— Deveríamos aspirar a um propósito maior? — pergunta Pliny.

— Sim! Talvez lançar uma campanha midiática contra os Filhos. Darrow, você não concorda com isso?

Mais uma vez, não respondo. Não até que o ArquiGovernador reconheça minha presença. Ele só dá valor à insolência e à impropriedade quando estão em benefício dele.

— Idealismo — diz Pliny, suspirando. — Admirável nos jovens, apesar de ser fruto da falta de orientação.

— Cuidado ao falar comigo, Político — rosna Leto, vasculhando o rosto afetado de Pliny em busca da ausente mácula dos Inigualáveis. — Seu plano deveria ser menos brutal, ArquiGovernador. Essa é minha opinião.

— Brutalidade. — Augustus deixa a palavra pairar no ar. — Não é nem bom nem ruim. É apenas um adjetivo de alguma coisa, uma ação nesse caso. O que você precisa analisar é a natureza da ação. Trata-se de um ato nefasto ou benfazejo deter terroristas que jogam bombas em inocentes?

— Benfazejo, suponho.

— Então, o que importam nossos métodos contanto que causemos menos males a inocentes do que eles causariam se continuarmos a permitir que eles existam? — Augustus dobra as mãos de dedos longos. — Mas, no fundo, isso não é um assunto filosófico. Isso é um assunto político. Os Filhos de Ares não são a ameaça. Nem um pouco. Eles são, isso sim, uma arma pros nossos inimigos políticos, em especial os Bellona, usarem como desculpa pra afirmar que eu não tenho condições de controlar Marte. Os cabelos encaracolados já estão procurando tirar o Governo de mim. Como vocês sabem, a Soberana é a única que tem poder pra me tirar da posição, mesmo sem um voto do Senado. Se ela desejar, pode dar Marte a uma outra casa: aos Bellona, aos nossos aliados Julii, até mesmo a uma casa não marciana. Nenhuma dessas entidades administraria Marte com a mesma eficiência que eu. E quando Marte é administrada com eficiência, todos se beneficiam, os de baixo e os de cima. Não sou um déspota. Mas um pai deve cortar as orelhas dos filhos se eles fizerem uma tentativa de pôr fogo na casa dele; se for necessário que mate alguns milhares pro bem maior, pra que o hélio-3 flua e pra que os cidadãos desse planeta continuem a viver num mundo que não seja devastado pela guerra, então farei isso. O que nos leva a Darrow au Andromedus. — Agora seus olhos frios se voltam para mim, restaurados por ele haver acabado de ordenar a morte de milhares de inocentes, e não consigo evitar um estremecimento à medida que um ódio escuro cresce dentro de mim. Baixo a cabeça em polida deferência.

— Meu suserano. Estou sendo convocado?

— Está. E o propósito da sua presença aqui será breve. Você era uma carta na manga quando o tirei do Instituto e o empreguei. Você está ciente disso?

— Estou.

— Imaginei que você tinha mérito suficiente e achei sua rivalidade com Cassius au Bellona divertida, num contexto de escola. Mas o conflito de sangue declarado entre vocês dois se tornou — diz ele, olhando de relance para Pliny — um fardo muito grande pros meus interesses, não só econômica como também politicamente. Lucros substanciais foram perdidos devido a aumentos de tarifa no Cerne, onde os apoiadores dos Bellona se encontram. As Casas titubeiam nos seus compromissos de honrar acordos feitos anos atrás na mesa de negociações. Portanto, como um ato de reconciliação a essas partes melindradas, tomei a decisão de vender seu contrato a uma outra casa.

Estremeço por dentro.

— Meu suserano... — tento interpor. Isso não pode acontecer. Se ele me tirar do meu lugar, quase três anos de trabalho terão sido jogados fora. — Se eu puder...

— Você não pode. — Ele abre uma gaveta e preguiçosamente joga um pedaço de carne para o seu leão. O animal espera que Augustus estale o dedo antes de comer. — A decisão foi tomada um mês atrás. Não há necessidade de trocar palavras comigo. Não sou Quicksilver negociando o preço do lítio no mercado futuro. Pliny...

— As particularidades são bastante simples, Darrow. Portanto, elas devem ser fáceis de ser compreendidas. — Pliny não tirou em momento nenhum os olhos de mim. — O ArquiGovernador foi muito gentil em lhe dar o aviso-prévio em caso de encerramento de vínculo empregatício, de acordo com o estipulado no seu contrato.

— Meu contrato diz que tenho direito a receber o aviso-prévio seis meses antes.

— Se você relembrar a seção oito, subseção C, cláusula quatro, você tem o direito de receber seis meses de aviso-prévio, se não fracassar em agir de modo adequado a um lanceiro da estimada Casa Augustus.

— Isso é uma piada? — Olho para Leto e Augustus.

— Você está vendo algum de nós rindo? — pergunta Pliny com afetação. — Não? Nem mesmo uma chacota ou uma risadinha?

— De todos os lanceiros, fiquei em segundo lugar na Academia! Você não conseguiria nem passar no Instituto.

— Oh, não é isso! Você foi muito bem... bem o bastante.

— E aí?

— É sua presença constante nos talk shows do hc.

— Nunca estive no hc! Nem assisto a isso!

— Oh, por favor. Você saboreia sua própria celebridade. Muito embora eles te ridicularizem, você se banha na notoriedade e cobre essa casa de vergonha. Sabemos que seu datapad procura histórias. Vemos que você se envaidece no hc como se ele fosse seu espelho particular. As histórias correm soltas sobre você e a filha do ArquiGovernador...

— Mustang está na corte em Luna!

— Fato muito provavelmente estimulado por você. Você pediu a ela que se juntasse à corte da Soberana? Isso por acaso é parte do seu plano pra separar a filha do pai?

— Você está espalhando bosta de cavalo, Pliny.

— E você está criando um nome de quinta categoria pra Augustus. Você briga com os Bellona em banhos cuja função é o refresco e a contemplação. Não podemos aceitar isso.

Nem sei o que dizer. Ele está inventando tudo isso. Há coisas suficientes na realidade para que se produza um dossiê contra mim, mas ele está mentindo apenas para cuspir nos meus olhos, apenas para mostrar que estou submetido ao poder dele.

Pliny prossegue:

— O encerramento do contrato ocorrerá em três dias.

— Três dias — repito.

— Até essa data, você nos acompanhará à superfície de Luna e permanecerá na residência fornecida pela Casa Augustus para o Encontro de Cúpula embora, já no presente momento, você não faça mais parte do grupo de lanceiros desta casa. Você não representa o ArquiGovernador e não pode usar o nome dele pra obter acesso a facilidades nem pra receber favores de jovens de ambos os sexos, seja na forma de jactância, promessa ou ameaça. Seu datapad doméstico será confiscado. Suas senhas de lanceiro já foram desativadas e você abdicará de participar de todos os projetos aos quais estava designado.

— Só fui designado pra projetos de construção.

Os lábios de Pliny exibem um sorriso reptiliano.

— Então essa será uma transição fácil.

— A quem estou sendo vendido? — consigo perguntar. Augustus não me olha nos olhos enquanto me abandona. Ele acaricia seu leão. É como se eu nem estivesse naquela sala. Leto olha para o chão. Envergonhado. Ele é mais nobre do que essa encenação, mas Augustus queria que ele estivesse aqui para assistir, para aprender a amputar um membro podre.

— Você não está sendo vendido, Darrow. Apesar do seu nascimento, eu teria esperado que você compreendesse qual é seu lugar. Não somos Rosas ou Obsidianos pra sermos vendidos como escravos. Seus serviços estão sendo comercializados num leilão — diz Pliny.

— É a mesma maldita coisa — sibilo. — Vocês estão me abandonando. Quem quer que compre meus serviços não vai poder me proteger dos Bellona. Aqueles filhos da puta de cabelos encaracolados vão me caçar e me matar. Eles só não fizeram isso dois meses atrás porque...

— Porque você era um representante Augustino? — pergunta Pliny. — Mas o ArquiGovernador não deve nada a você, Darrow. Essa é a incapacidade de compreender que o acomete? Na verdade, você deve a ele! Protegê-lo nos custa dinheiro. Custa-nos oportunidades, contratos, vendas. E esse custo se provou ser inestimável demais. Precisamos ser vistos como incentivadores da paz com os Bellona. A Soberana quer paz. E você? Você é uma fonte de atrito, uma pedra no nosso sapato e um instrumento de guerra. Portanto, agora estamos derretendo nossa espada e transformando-a num arado.

— Mas não antes de vocês a usarem pra arrancar minha cabeça.

— Darrow, não implore — suspira Pliny. — Mostre alguma determinação, jovem. Seu tempo aqui expirou, sim, mas você tem garra. Você tem o vigor de um jovem. Agora, estique esse seu corpo e saia com a dignidade de um Ouro que sabe que se esforçou ao máximo. — Seus olhos riem para mim. — Isso significa deixar este escritório. Agora, meu bom-homem, antes que Leto seja obrigado a expulsá-lo daqui dando um chute na sua bunda ridiculamente musculosa.

Encaro o ArquiGovernador.

— É assim que você me vê? Como uma criança ranhenta a ser empurrada pra um canto?

— Darrow, seria melhor se... — começa Leto.

— Foi você que nos empurrou pra um canto — responde Pliny, pondo a mão no meu ombro. — Se você está preocupado com a possibilidade de não receber um pagamento referente à exoneração, fique tranquilo que você receberá. Dinheiro suficiente pra...

— A última vez que um dos lacaios do ArquiGovernador tocou em mim, enfiei uma faca no cerebelo dele. Seis vezes. — Olho para a mão de Pliny enquanto ele rapidamente a retira. Ajeito os ombros. — Não respondo a um cachorrinho Pixie desprovido de cicatriz. Sou um Inigualável Maculado. ArquiPrimus da turma quingentésima quadragésima segunda do Instituto de Marte. Respondo apenas ao ArquiGovernador.

Dou um passo na direção de Augustus, fazendo com que Leto assuma um ângulo protetor. A extensão do meu temperamento é bem lembrada.

— Você pôs Julian au Bellona na Passagem comigo, meu suserano. — Olho para ele com fúria. — Eu o matei por você. Lutei contra Karnus por você. Mantive minha boca, a boca dos meus homens, lacradas depois que você tentou comprar a vitória do seu filho no Instituto. — Leto estremece ao ouvir isso. — Alterei os registros. Provei que era melhor do que seus herdeiros de sangue. Agora, meu suserano, você me diz que sou um risco.

— Você é um Inigualável Maculado — concorda o ArquiGovernador, examinando dados na sua escrivaninha. — Mas você tem pouca substância. Sua família está morta. Eles o deixaram sem terras, sem posses de recursos ou empresas, sem nenhuma posição no governo. Tudo foi arrebanhado à medida que as dívidas deles foram sendo liquidadas, incluindo a honra deles. Seja lá que migalhas você recebeu daqueles que lhe são superiores, valorize-as. Seja lá que favores obteve, lembre-se deles.

— Eu pensava que você favorecesse feitos e não títulos. Meu suserano, Mustang o abandonou. Não cometa o erro de cortar meus laços contigo da mesma maneira.

Por fim, ele ergue a cabeça para olhar para mim. Olhos pertencentes a alguma criatura além de humana — um cálculo distante, insensível, alimentado por um orgulho monstruoso, inumano. Um orgulho que vai além dele e se estende para trás aos primeiros passos frágeis do homem no espaço preto. É o orgulho de uma dúzia de gerações de pais e avós e irmãs e irmãos, todos agora destilados num vaso único, brilhante e perfeito que não exibe nenhuma falha, permanece sem defeitos.

— Meus inimigos o constrangeram. Portanto, eles me constrangeram, Darrow. Você me disse que venceria. Mas você perdeu. E isso muda tudo.


5

Abandonado

Vou morrer logo.

Esse é o pensamento que carrego comigo enquanto nosso ônibus espacial se afasta da nave capitânia de Augustus e alça voo sobre a Armada Cetro. Estou sentado entre os lanceiros, mas não sou um deles. Eles sabem disso. De modo apropriado, eles não falam comigo. Seja lá que laços eles poderiam criar comigo, não tem importância. Não tenho nenhum capital político. Ouço alguém apostando com Tactus quanto tempo vou durar fora da proteção de Augustus. Um lanceiro diz três dias. Tactus nega esse número com veemência, exibindo a verdadeira extensão da lealdade que mereci dele no Instituto.

— Dez dias — declara ele. — Pelo menos dez dias.

Foi ele quem lançou a base de escape sem mim. Sempre soube que sua amizade era condicional. Contudo, a ferida ainda me incomoda, imprimindo em mim uma solidão que não consigo expressar. Uma solidão que sempre senti entre esses Ouros, mas que eu criava artimanhas para esquecer. Não sou um deles. Portanto, fico ali sentado em silêncio, olhando pela janela enquanto passamos pela frota reunida e esperamos que Luna apareça.

Meu contrato termina na última noite do Encontro de Cúpula, onde todas as famílias governantes se reúnem em Luna para lidar com questões prementes e frívolas. Essa é a janela de três dias que tenho para aprimorar meu capital pessoal, para fazer os outros pensarem que fui subvalorizado pelo ArquiGovernador e que estou maduro para ser recrutado. Mas, independente do meu valor, estou chamuscado. Alguém me tinha e depois me dispensou. Quem poderia querer uma coisa assim usada?

Esse é meu destino. Apesar do meu rosto Dourado e dos meus talentos, sou uma mercadoria. Isso faz com que eu sinta vontade de arrancar as porras dos meus Sinetes. Se é para ser um escravo, pelo menos eu deveria ter a aparência de um escravo.

Para piorar ainda mais as coisas, há um preço pela minha cabeça. De forma não oficial, é claro. Isso é ilegal, porque não sou um inimigo do Estado. No entanto, meu inimigo é bem pior. Bem mais cruel do que o governo. Meu inimigo é a mulher que enviou Karnus e Cagney à Academia.

Dizem que desde que roubei a vida de Julian na Passagem, sua mãe, Julia au Bellona, todas as noites senta-se à longa mesa no hall superior da morada da sua família sobre as colinas do Monte Olimpo e levanta a tampa semicircular da bandeja de prata trazida a ela pelos serviçais Rosas. Todas as noites, a bandeja permanece vazia. E todas as noites ela suspira de tristeza, olhando para a sua grande família à mesa apenas para repetir as mesmas palavras vingativas: “Está claro que não sou amada. Se eu fosse amada, haveria um coração aqui pra saciar minha fome de vingança. Se eu fosse amada, o assassino do meu menino não estaria mais respirando. Se eu fosse amada, minha família honraria o irmão perdido. Mas eu não sou amada. Ele não é vingado. Eles não fazem nada. O que foi que eu fiz pra merecer uma família tão odiosa?”. Em seguida, a grande família Bellona acompanha sua matriarca se espiralar para fora da cadeira, seu corpo murchando de fome — em vez de comida, ela se alimenta de ódio e de vingança —, e eles permanecem em silêncio enquanto ela sai da sala, mais um espectro do que uma mulher.

O que tem mantido meu coração longe da travessa dela são as armas, o dinheiro e o nome do ArquiGovernador. A política, a coisa que mais odeio, tem me mantido respirando. Mas daqui a três dias, essa égide será uma sombra de lembrança, e tudo o que me protegerá serão as lições que meus professores me deram.

— Vai ser um duelo — diz um dos lanceiros. Então, com a voz mais alta: — Não vai dar pra ele recusar a oferta e manter a honra por muito tempo. Não se o próprio Cassius fizer a oferta.

— O velho Ceifeiro tem algumas cartas na manga — diz Tactus. — Vocês podem não ter estado lá pra ver, mas ele não matou Apolo com seu sorriso.

— Usou uma lâmina, não foi, Darrow? — pergunta um outro lanceiro em tom de escárnio. — Não tenho te visto nos campos de esgrima.

— Você nunca o viu lá — diz um outro. — O Pixie evita participar de coisas em que não é bom, certo?

Roque se agita com irritação ao meu lado. Ponho a mão no seu antebraço e me viro lentamente para olhar o lançador que está me ofendendo. Victra está sentada ao lado dele, observando a cena com indolência.

— Eu não faço esgrima — digo.

— Não faz? Ou não consegue fazer? — pergunta alguém com um riso.

— Deixe-o pra lá. Mestres-de-lâminas custam caro — nota Tactus com um risinho malicioso.

— Então é assim, Tactus? — pergunto.

Ele faz uma cara.

— Ah, qual é ! Só estou implicando um pouco com você. Maldição, você é sério demais. Precisa ser mais brincalhão.

Roque diz algo que produz uma carranca no rosto de Tactus e se vira para o outro lado, mas não ouço as palavras. Estou afundado nas lembranças de quando esse jogo Dourado uma vez me pareceu tão fácil. O que mudou? Mustang.

“Você é mais do que isso”, ela sussurrou quando a deixei para ingressar na Academia. As lágrimas encharcavam seus olhos, embora sua voz não oscilasse. “Você não precisa ser um matador. Você não precisa cortejar a guerra.”

“Que outra escolha eu tenho?”, perguntei.

“Eu. Eu sou a outra escolha. Fique comigo. Fique pelo que possa vir a ser. No Instituto, você transformou meninos e meninas que jamais conheceram a lealdade em seguidores. Se você for pra Academia, vai abandonar isso pra ser o senhor da guerra do meu pai. Não é isso o que você é. Não é esse o homem que eu...” Ela não se virou, mas seu rosto mudou à medida que a sentença lhe escapava da boca, os lábios produzindo uma linha de dureza.

Amor? Será que foi isso o que construímos no ano seguinte ao Instituto?

Se foi, a palavra está engasgada na minha garganta, porque ela sabia, como eu sabia, que eu não lhe dera todo o meu ser. Eu não compartilhara tudo o que sou. Ganancioso, mantive segredos. E como poderia alguém como ela, alguém tão pouco egoísta, se desnudar e lançar seu coração para um homem que dava tão pouco em troca? Portanto, ela fechou seus olhos dourados, empurrou a lâmina nas minhas mãos e me disse para partir.

Eu não a culpo. Ela escolheu a política, a governança — paz, que é o que ela imagina que as pessoas necessitam. Escolhi a lâmina, porque é o que meu povo necessita. Eu me sinto preenchido por um estranho vazio ao saber que fui o suficiente para ela quando jamais fui suficiente para Eo. Roque estava certo. Eu a empurrei para longe de mim.

Não empurrei Sevro para longe de mim. Pedi que ele ficasse postado ao meu lado. Mas então, de súbito, ele foi convocado de novo a trabalhar em Plutão como muitos dos Uivadores. Relegado a proteger operações de construção distantes dos ataques de piratas de quinta categoria. Agora desconfio que Pliny tenha tido participação nisso.

Nunca tive a sensação de que meu caminho fosse tão solitário quanto agora.

— Você não vai ser abandonado — diz Roque, aproximando-se. — Outras famílias vão te querer pra elas. Não deixe Tactus entrar na sua mente. Os Bellona não vão fazer nada contra você.

— É claro que eles não vão fazer — minto. Ele ainda consegue sentir meu medo.

— A violência não é permitida na Cidadela, Darrow. Sobretudo disputas de sangue. Até mesmo duelos são considerados fora da lei, a menos que um consentimento seja dado pela própria Soberana. Apenas fique em algum terreno da Cidadela até conseguir uma nova casa e tudo ficará tranquilo. Gaste seu tempo, faça o que tem a fazer e, daqui a um ano, o ArquiGovernador vai se sentir como um idiota quando você ascender de novo sob a tutela de outra família. Há mais de uma trilha em direção ao topo. Sempre se lembre disso, irmão.

Ele segura com firmeza meu ombro.

— Você sabe que eu pediria à minha mãe e ao meu pai que te contratassem... Mas eles não vão se opor a Augustus.

— Eu sei. — Eles podiam gastar milhões no contrato e nem mesmo notar a perda, mas a mãe de Roque não tem um assento no Senado há vinte anos por fazer caridade. Seu quinhão é garantido com o contingente de Augustus no Senado. O que ele deseja, ela apoia.

— Vou ficar bem. Você tem razão — digo quando Luna aparece na janela, apressando os assistentes e me enchendo de pavor. A lua-cidade da Terra. Satélites em órbita e instalações a circulam como o halo de um anjo de aço envolto numa bola de âmbar estendida ao sol. — Vou ficar bem.


6

Icarus

Pousamos na Cidadela. Um vento pegajoso, poluído, curva as imensas árvores próximas à nossa plataforma de aterrissagem. A perspiração rapidamente produz gotas ao longo do meu colarinho alto. Já não estou gostando desse lugar horroroso. Apesar do fato de estarmos pousando aqui num território da Cidadela, que fica bem distante das cidades mais próximas e cercado por florestas e lagos, o ar de Luna é grudento e pegajoso nos pulmões.

No horizonte, logo depois dos espigões do campus ocidental da Cidadela, paira a Terra, inchada e azul, lembrando-me de que estou muito distante de casa. A gravidade aqui é menor do que em Marte, apenas um sexto da encontrada na Terra, e faz com que eu me sinta desconfortável e desajeitado. Tenho a impressão de flutuar quando caminho. E, embora a coordenação volte rápido, meu corpo sofre sua própria leveza com estranhas sensações de claustrofobia.

Uma outra embarcação aterrissa ao norte.

— Parece a prata dos Bellona — diz Roque baixinho, estreitando os olhos para o pôr do sol.

Dou uma risada.

Ele olha para mim de relance.

— O que é?

— Só estou imaginando como seria ter um pulsoFoguete agorinha mesmo.

— Bom, isso é simplesmente... encantador da sua parte. — Ele anda um pouco. Eu o sigo, com os olhos ainda fixos na nave. — Amo de verdade a hora do pôr do sol em Luna. É como se a gente estivesse no mundo de Homero. O céu exibe uma tonalidade quente de uma peça de bronze recém-saída da forja.

Acima, o céu alienígena se mistura à noite com o longo tempo que o sol leva para baixar. Por duas semanas, a luz do sol desaparecerá dessa parte da Lua. Duas semanas de noite. Luxuosos iates cruzam o espaço em meio a esse estranho final de dia, enquanto ágeis rasgAsas pilotadas por Azuis adejam acima de nós na sua patrulha como se fossem vários morcegos colados uns aos outros no ébano estilhaçado.

A gravidade em um sexto permite que esses nascidos-em-Luna construam de acordo com o desejo dos seus corações. E construir é o que eles fazem. Além do território correspondente à Cidadela, o horizonte é cercado de torres e de edifícios. AcessoTrilhas podem ser vistas em todos os lados, de modo que os cidadãos alçam voo com facilidade. A rede de acessos percorre os espaços em meio às altas torres como se fosse hera, unindo os céus aos infernos dos baixoDistritos. Ao longo das trilhas, milhares de homens e mulheres rastejam como formigas em trepadeiras enquanto esquifes de patrulha Cinzas zumbem ao redor das vias públicas.

A casa de Augustus tem direito a uma villa aninhada no interior de trinta acres de pinheiros em território da Cidadela. Trata-se de uma coisinha bonitinha em meio a outras coisinhas bonitinhas nesse lugar imponente. Há jardins, trilhas, fontes com detalhes de menininhos alados entalhados em pedra. Todo esse tipo de frivolidade.

— Está a fim de uma sessão de Kravat? — pergunto a Roque, mexendo a cabeça na direção do espaço de treinamento ao lado da villa. — Minha mente está fugindo de mim mesmo.

— Não posso. — Roque recua, saindo do caminho dos nossos companheiros lanceiros e seus atendentes que entram na villa. — Tenho que assistir à conferência sobre Capitalismo na Era Governada.

— Se o que você queria era tirar uma soneca, tenho certeza de que eles têm camas na villa.

— Isso é alguma piada? Regulus ag Sun vai dar as diretrizes.

Eu assobio:

— Quicksilver em pessoa. Quer dizer então que você vai aprender a fazer diamantes a partir de cascalho? Você ouviu os boatos a respeito de que ele é dono dos contratos de dois Cavaleiros Olímpicos?

— Isso não é boato. Pelo menos de acordo com minha mãe. Isso me lembra o que Augustus disse à Soberana na coroação dela. “Um homem nunca é jovem demais pra matar, nunca é sábio demais, nunca é forte demais, mas ele pode ser rico demais.”

— Foi Arcos quem disse isso.

— Não, tenho certeza de que foi Augustus.

Balanço a cabeça:

— Verifique seus dados, irmão. Foi Lorn au Arcos quem disse isso, e a Soberana respondeu: “Você se esquece, Cavaleiro Raivoso, de que eu sou uma mulher”.

Arcos é, na mesma proporção, homem e mito, pelo menos para a minha geração. Recluso agora, ele foi o Espada de Marte e o Cavaleiro Raivoso por mais de sessenta anos. Cavaleiros Inigualáveis em todas as camadas da Sociedade já lhe ofereceram direitos de posse a luas se ele os monitorasse ao menos por uma semana no estudo da sua forma de Kravat, o Estilo do Salgueiro. Foi ele quem me mandou a facAnel que matou Apolo e depois me ofereceu um lugar na sua casa. Na ocasião rejeitei a oferta, escolhendo Augustus em vez do velho.

— “Você se esquece de que eu sou uma mulher” — repete Roque, que saboreia essas histórias do império deles da mesma maneira que saboreio as histórias do Ceifeiro e do Vale. — Quando eu voltar, vamos conversar sério. Não aqueles bate-papos de brincadeira que a gente sempre tem.

— Você está querendo dizer que não vai ficar se lamuriando sobre alguma paixonite de infância, não vai se entupir de vinho e não vai recitar poesias sobre o formato do sorriso de Quinn e sobre a beleza dos sítios arqueológicos etruscos antes de cair no sono? — pergunto.

O rosto de Roque enrubesce, mas ele põe a mão em cima do coração.

— Juro pela minha honra.

— Então traga uma garrafa de algum vinho ridiculamente caro, e a gente vai ter uma conversa séria.

— Vou trazer três.

Eu o observo partir, com os olhos mais frios que meu sorriso.

Vários dos outros lanceiros assistem à conferência com Roque. O resto se acomoda de maneira confortável no lugar à medida que as equipes de segurança Cinzas de Augustus dão uma varredura no terreno. Guarda-costas Obsidianos seguem Ouros como se fossem sombras. Rosas gingam graciosas na direção da villa numa torrente constante, solicitadas ao Jardim da Cidadela por membros do staff da casa do ArquiGovernador que se encontram entediados devido à viagem e estão em busca de um pequeno divertimento.

Um atendente Rosa da Cidadela me guia até meu quarto. Eu rio quando chego.

— Talvez esteja havendo algum equívoco — digo, olhando ao redor do pequeno cômodo com seu banheiro e closet adjacentes. — Não sou uma vassoura.

— Eu não estou ent...

— Ele não é uma vassoura, portanto não vai caber neste closet — diz Theodora, parada no umbral atrás de nós. — Este aposento está abaixo da patente dele. — Ela olha ao redor, o nariz insolente farejando com desdém. — Isso aqui não serviria nem como closet pra guardar minhas roupas em Marte.

— Isso aqui é a Cidadela. Não Marte. — Os olhos rosa do atendente avaliam as rugas no rosto envelhecido de Theodora. — Há menos espaço pra coisas inúteis.

Theodora sorri com doçura e faz um gesto para a árvore de quartzo rosa pregada no peito do homem.

— Eu que o diga! Isso aí é o álamo-preto do Jardim Dryope?

— É sua primeira visita, ao que parece — diz ele com altivez antes de se virar para mim. — Não sei como eles educaram seus Rosas nos Jardins em Marte, dominus, mas em Luna sua escrava deveria se esforçar ao máximo para parecer menos afetada.

— É claro. Que grosseria da minha parte — desculpa-se Theodora. — Apenas pensei que você pudesse conhecer a Matrona Carena.

O atendente faz uma pausa.

— Matrona Carena...

— Nós duas passamos a infância juntas nos Jardins. Diga a ela que Theodora mandou lembranças e que, caso encontre tempo, ligará pra ela.

— Você é uma Flor Rosada. — O rosto dele fica branco como uma folha de papel.

— Fui. Todas as pétalas murcham. Oh, mas me diga seu nome. Eu gostaria muito de recomendá-lo à Matrona pela sua hospitalidade.

Ele murmura alguma coisa bastante inaudível e parte, baixando a cabeça com mais intensidade para Theodora do que para mim.

— Isso foi divertido? — pergunto.

— É sempre legal flexionar um musculozinho aqui e ali. Mesmo que tudo o mais esteja começando a desabar.

— Parece que minha carreira está acabando justo quando a sua está começando. — Dou uma risada mórbida e ando na direção do holoDisplay que está perto da cama.

— Eu não faria isso — diz ela.

Mordo o lábio inferior: este é nosso sinal para dispositivos de espionagem.

— Bom, isso é claro. Mas a holoRede não é bem o lugar onde você vai querer estar neste exato momento — completa.

— O que estão dizendo a meu respeito?

— Estão imaginando onde você vai ser enterrado.

Não tenho tempo para responder antes que algumas juntas batam de encontro à moldura do umbral do meu quarto.

— Dominus, Lady Julii solicita sua presença.

Sigo o Rosa de Victra até o terraço privado do seu quarto. A banheira dela sozinha é maior do que minha cama.

— Não é justo — diz uma voz atrás do tronco branco como marfim de uma árvore de lavanda. Eu me viro para ver Victra brincando com os espinhos de um arbusto. — Você sendo afastado assim como se fosse um mercenário Cinza.

— Desde quando você se preocupa com o que é justo, Victra?

— Você sempre tem que me confrontar? — pergunta ela. — Sente-se. — Mesmo com as cicatrizes que a distinguem da sua irmã, sua forma longa e seu rosto luminoso não exibem nenhuma verdadeira falha. Ela está sentada fumando algum queimador de grife que tem cheiro de pôr do sol sobre uma floresta de toras. Ela tem ossos mais pesados do que os de Antonia, é mais alta e parece ter sido forjada, como a ponta de uma lança resfriando até adquirir um formato angular. Seus olhos brilham de irritação. — Ninguém poderia ser mais distante de um inimigo seu do que eu, Darrow.

— Então o que você é? Uma amiga?

— Um homem na sua posição precisa de amigos, não?

— Eu preferiria me cercar de uma dúzia de guarda-costas Manchados.

— Quem tem dinheiro pra isso? — diz ela, rindo.

Ergo uma sobrancelha.

— Você.

— Bom, eles não poderiam te proteger de você mesmo.

— Eu me preocupo um pouquinho mais com as lâminas dos Bellona.

— Preocupação? Foi isso o que vi no seu rosto enquanto você descia? — Ela deixa que um suspiro de alegria escape dos seus lábios. — Curioso. Veja bem, pensei que fosse pavor. Terror. Todas as coisas verdadeiramente desconcertantes. Porque você sabe que esta lua vai ser seu túmulo.

— Pensei que a gente não fosse mais esgrimir — digo.

— Você tem razão. É que estou te achando bem esquisito. Ou pelo menos estou achando sua escolha de amigos esquisita. — Ela está sentada à minha frente na borda da fonte. Seus calcanhares raspam a pedra envelhecida. — Você sempre me manteve afastada enquanto mantinha Tactus e Roque perto de si. Entendo Roque, mesmo que ele seja molenga como um pedaço de manteiga. Mas Tactus? É como mexer com uma víbora e esperar não ser picado. Você o considera amigo só porque ele foi seu parceiro no Instituto?

— Amigo? — Rio da ideia. — Depois que Tactus me contou como o irmão quebrou seu violino favorito quando ele era criança, mandei Theodora gastar metade da minha conta bancária num violino Stradivarius adquirido na casa de leilões de Quicksilver. Tactus não me agradeceu. Foi como se eu tivesse lhe entregado uma pedra. Ele me perguntou pra que servia aquilo. Eu disse: “Pra você tocar”. Ele me perguntou por quê. “Porque somos amigos.” Ele olhou de novo pra peça e foi embora. Duas semanas mais tarde, descobri que ele pegou o instrumento e o vendeu. Depois usou o dinheiro em Rosas e drogas. Ele não é meu amigo.

— Tactus é o que os irmãos dele o obrigaram a ser — nota ela, hesitando como se estivesse relutante em compartilhar informações comigo. — Por acaso você imagina que ele alguma vez recebeu alguma coisa sem que a pessoa que deu quisesse algo em troca? Você o deixou desconfortável.

— Por que você acha que sou cauteloso com você? — Eu me curvo para me aproximar dela. — É porque você sempre quer alguma coisa, Victra. Da mesma forma que sua irmã.

— Ah. Bem que imaginei que pudesse ter algo a ver com Antonia. Ela está sempre arruinando as coisas. Desde o momento em que aquela loba escapou do útero da minha mãe a dentadas e roubou roupas humanas. Foi bom eu ter nascido antes, do contrário ela talvez tivesse me estrangulado ainda no berço. E olhe que ela é apenas minha meia-irmã. Pais diferentes. Mamãe nunca teve a monogamia em alta conta. Pirralha perversa. E sou obrigada a carregar o peso da bagagem moral dela. Ridículo.

Victra brinca com os muitos anéis de jade nos seus dedos. Eu os acho esquisitos, contrastando com a severidade espartana do seu rosto maculado. Mas Victra sempre foi uma mulher de contrastes.

— Por que você está conversando comigo, Victra? Não tenho nenhuma utilidade pra você. Não tenho posição. Não tenho comando. Não tenho dinheiro. Não tenho reputação. Todas as coisas que você valoriza.

— Oh... Eu valorizo outras coisas também, querido. Mas você tem uma reputação, com certeza tem. Pliny garantiu que você tivesse uma.

— Então ele desempenhou mesmo um papel nessa fofoca. Pensei que Tactus estivesse apenas falando da boca pra fora.

— Um papel? Darrow, ele está em guerra com você desde o momento em que você se ajoelhou pra Augustus. — Ela ri. — Até mesmo antes disso. Ele aconselhou Augustus a te matar em algumas oportunidades, ou pelo menos te levar a ser condenado pelo assassinato de Apolo. Você não sabia disso? — Ela balança a cabeça para o meu olhar inexpressivo. — O fato de que você está se dando conta disso agora mostra bem o quanto está mal equipado pra jogar esse jogo. E por causa disso, você vai ser morto. É por isso que estamos conversando. Pra mim seria bem melhor que você encontrasse uma alternativa em vez de ficar amuado nos seus aposentos bestiais. Do contrário, Cassius au Bellona vai aparecer, pegar uma faca e enfiá-la bem aqui... — Ela acaricia meu peito com um dedo de unhas longas, desenhando o contorno do meu coração. — E dar à mãe dele a primeira refeição de verdade que ela vai comer em anos.

— Então qual é sua sugestão?

— Pare de agir como um putinho. — Ela sorri para mim e me estende uma dataCapa. Carrancudo, agarro a borda da fina capa de metal, mas ela continua segurando a peça, puxando-me para a borda da fonte, entre suas pernas. Seus lábios se abrem, sua língua brinca contornando o lábio superior enquanto seus olhos percorrem meu rosto, subindo cada vez mais até atingirem meus olhos, onde eles tentam atear fogo. Mas não há o que acender ali; com um suspiro felino, ela deixa a dataCapa escapar das mãos. Leio as informações no meu datapad pessoal e um anúncio de uma taverna aparece no meu visor.

— Isso não fica na Cidadela — digo.

— E daí?

— E daí que, se eu sair daqui, está aberta a temporada de caça à minha cabeça.

— Então não divulgue sua saída.

Dou um passo para trás.

— Quanto eles estão te pagando?

— Você acha que isso é uma armação!

— E é?

— Não.

— Como vou saber que você está dizendo a verdade?

— A maioria das pessoas não pode se dar ao luxo de dizer a verdade. Eu posso.

— Ah, é mesmo. Eu me esqueci. Você nunca mente.

— Sou do gene Julii. — Ela se levanta devagar, a raiva se desenroscando como se fosse uma lâmina. — Minha família comercializa mercadorias o bastante pra comprar continentes. Quem poderia se dar ao luxo de comprar minha honra? Se... um dia eu me tornar sua inimiga, vou te contar. E vou te dizer o motivo.

— Todo mundo é honesto até ser pego numa mentira.

O riso dela é rouco e faz com que eu me sinta pequeno e infantil, lembrando-me de que ela é sete anos mais velha do que eu.

— Então fique, Ceifeiro. Confie no acaso. Confie nos amigos. Esconda-se aqui até que alguém compre seu contrato, e reze pra que eles não façam isso apenas pra te servir aos Bellona como um leitãozinho.

Avalio os prós e os contras e estendo a mão para ajudá-la a se levantar.

— Bom, já que você coloca a coisa dessa maneira...

— Coronel Valentin? — pergunta Victra ao mais baixo de dois Cinzas que esperam por nós na rampa de acesso ao ônibus espacial. É uma lata de merda. Um dos voadores mais feiosos que eu já vi na vida. Semelhante à metade central de um tubarão-martelo. Olho com cautela o mais alto dos Cinzas.

— Sim, domina — diz Valentin, balançando a cabeça que mais parece um bloco de concreto de cinzas com a precisão rígida de um homem que ascendeu de patente de degrau em degrau. — Tem certeza de que vocês não foram seguidos?

— Certeza absoluta — diz Victra.

— Então é melhor partirmos de imediato.

Sigo Victra ao interior do ônibus espacial, escaneando o território atrás de mim. Vestimos fantasMantos assim que partimos da villa de Augustus. Uma dúzia de corredores escondidos e seis velhos gravElevadores depois, chegamos a uma seção empoeirada e poucas vezes utilizada das plataformas de lançamento da Cidadela. Theodora nos deixou lá. Ela queria ir conosco, mas não vou levá-la para onde estamos indo.

Um Cinza escaneia Victra e a mim em busca de dispositivos enquanto subimos a bordo da nave.

A rampa da nave desliza para se fechar atrás de nós. Doze Cinzas com feições marcantes preenchem o pequeno espaço para passageiros do ônibus espacial. Eles não são do tipo vistoso. Apenas artífices de um arranjo sombrio.

Embora exista um padrão médio, as Cores são diversas em composição devido à genética humana e aos diferentes ecossistemas em meio à Sociedade. Os Cinzas de Vênus quase sempre são mais escuros e mais compactos do que os de Marte, mas famílias se movem e se misturam e se reproduzem. Os níveis de talentos em cada Cor são ainda mais variáveis do que a aparência. A maioria dos Cinzas não é destinada a nada além de patrulhar shopping centers e ruas de cidades. Alguns ingressam no exército. Alguns vão trabalhar nas minas. Mas também há os Cinzas que nasceram numa leva genética especial formada por espécimes malévolos e inteligentes e que foram treinados durante toda a vida para caçar os inimigos Ouros dos seus mestres Ouros. Como esses aqui conosco no ônibus espacial. Eles são chamados de mestiços — em homenagem aos cães vira-latas da Terra reproduzidos para possuir uma velocidade, uma astúcia e uma capacidade incomum de se ocultar, todas essas características com um único propósito: matar coisas maiores do que eles próprios.

— Estamos a caminho da Cidade Perdida e só há doze de vocês? — pergunto.

Sei que esse número é suficiente. É que não gosto de Cinzas. Portanto, implico com eles.

Eles olham para mim com a quieta reserva de uma família que conhece um estranho na estrada. Valentin é o pai. Ele tem uma constituição física semelhante a um bloco achatado de gelo sujo entalhado por uma lâmina enferrujada, e seu rosto açoitado pelo sol é escuro e rígido, com olhos rápidos. Sua tenente, Sun-hwa, curva-se na nossa direção, dura e retorcida como o tronco de uma oliveira.

Ambos são nascidos-na-Terra pela aparência das suas feições continentalmente étnicas. Esses Cinzas não usam nenhum distintivo triangular da Legião da Sociedade nas roupas civis. Significa que eles já serviram os vinte anos obrigatórios.

— Nossa tarefa é sua proteção, dominus — diz Valentin enquanto Sun-hwa carrega uma exótica arma circular no interior do punho esquerdo. Parece ter base de plasma. — Minha equipe preparou uma rota segura. Tempo estimado da viagem: vinte e quatro minutos.

— Se Pliny descobrir pra onde estou indo, ou se algum Bellona souber que me ausentei da Cidadela...

— Os mestiços estão a par da situação — diz Victra.

— Não estou vendo nenhum distintivo Ouro. Mercenários?

— Isso significa que somos bons o bastante pra viver esse tempo todo, dominus — diz Valentin, enfático. — Nós nos preparamos pra toda e qualquer eventualidade. Planos de contingência e apoio foram organizados.

— Que tamanho tem esse apoio?

— Tamanho suficiente. Somos apenas os transportadores, dominus. — Sua boca se contorce para produzir um sorriso e levo suas palavras a sério. — Problema maior do que os Bellona são as terceiras partes pensando que uma oportunidade acabou de cair do céu na frente delas. Aonde estamos indo haverá muitas e muitas terceiras partes, dominus. Merdas como essa complicam nosso retorno de investimento. Sun-hwa?

— Vista isso. — Sun-hwa joga para mim um saco contendo roupas comuns. A voz dela é parecida com um balbucio monótono. — Você é alto, não dá pra fazer merda nenhuma em relação a isso, mas a gente vai fazer um trabalhinho rápido pra tingir isso aqui e isso aqui. — Ela joga um outro saco para Victra. — Pra você. O chefe pensou que você de repente usasse roupa cheia de frescura.

Victra ri ao ouvir isso.

— Fechem a matraca, pessoal — late Valentin à medida que a nave treme e ascende ao ar. — Estamos no ar.

Motores e turbinas acionados por mãos experientes. Som destacado de ferro batendo em ferro. Como juntas de metal estalando à medida que esferas magnéticas entram nas câmaras. Os mestiços escondem armas em coldres ocultos sobre apertadas armaduras pelEscaravelho. Três deles usam armas de punho ilegais. Olho o contrabando enquanto deslizo para dentro da minha pelEscaravelho. Ela absorve a luz, um estranho preto semelhante a uma pupila. Mais a ausência de cor do que qualquer outra coisa. Melhor do que a duroArmadura que tínhamos no Instituto, ela vai deter algumas lâminas e uma ou outra arma ocasional como um abrasador comum.

A nave trepida à medida que seu motor principal alcança os impulsionadores verticais.

— Garra e Minotauro, estejam de sobreaviso. Icarus está a caminho — diz Valentin com sua voz áspera direcionada ao comunicador. — Repito. Icarus está a caminho.


7

O pós-nascimento

Em Luna não há escuridão. Nenhuma escuridão real, pelo menos. Luzes de um milhão de matizes nadam juntas, refulgindo sobre a pele de aço rugosa e fissurada que reveste o panorama urbano da Lua. Serpeantes trens públicos e vias públicas aéreas, brilhantes centros de comunicação, movimentados restaurantes e austeras delegacias de polícia se entrelaçam no interior da derme metálica da cidade como se fossem capilaridades sanguíneas, terminações nervosas, glândulas sudoríparas e folículos capilares.

Nós nos afastamos dos distritos Dourados, abandonando os altos nichos da cidade onde imponentes ônibus espaciais e gravBotas transportam Ouros a casas de ópera no topo de torres de quilômetros de altura. Mergulhamos pelos ricos distritos Prata e Cobre, seguindo caminho através de acessoTrilhas e de trens aéreos, passando pelos médioDistritos onde Amarelos, Verdes, Azuis e Violetas residem, e pelos baixoDistritos onde Cinzas e Laranjas têm seus lares.

Descendo cada vez mais, dirigimo-nos às sarjetas da cidade onde as raízes dessa colossal selva de aço estão enfurnadas no solo. Miríades de baixaCores viajam em transportes públicos das fábricas para seus apartamentos desprovidos de janelas, alguns não maiores do que um metro por três. Com espaço apenas para uma cama. Carros expelem gases em bulevares entupidos iluminados por faróis. Quanto mais fundo descemos, menos luzes encontramos, mais sujos os edifícios, mais estranhos os animais, porém mais brilhantes os grafites. Vislumbro policiais Cinzas assomando sobre vândalos Marrons presos que cobriram um complexo de apartamentos com a imagem de uma garota enforcada. Minha mulher. Dez andares de altura, cabelos flamejantes, representada em tinta digital. Meu peito se contrai enquanto passamos, quebrando os muros que construí ao redor das lembranças dela. Eu a vi enforcada milhares de vezes agora que seu martírio se espalha pelos mundos, de cidade em cidade. Contudo, sempre que isso acontece, a sensação que tenho é a de receber um golpe físico, as terminações nervosas tremendo no peito, o coração batendo com rapidez, o pescoço rígido sob meu queixo. Como é cruel uma vida em que a visão da minha mulher morta significa esperança.

Independente da nossa reputação, nenhum inimigo jamais nos procuraria aqui. Não há ouvidos a escutar. Não há olhos a enxergar. Este é um lugar de assassinatos promovidos por gangues, roubos, batalhas por território, tráfico de drogas. O fato de minha nova amiga desejar tamanha privacidade humana, uma privacidade que nem mesmo um embaralhÁrea consegue de fato oferecer na Cidadela e na Cidade Alta, significa muito. Isso me preocupa. Significa que as regras são vazias. Mas Victra estava certa e Roque, não. Ter paciência não fará nada por mim. Preciso assumir um risco.

A equipe de mestiços tomou posse de uma garagem abandonada. Eles fornecem segurança para o ônibus espacial enquanto a equipe de Valentin me escolta da garagem para a rua movimentada e suja do exterior. Refugos e água transformam os becos em lodaçais. O ar úmido é espesso com o doce aroma almiscarado da podridão e da fuligem carbonizada do lixo queimando. Vendedores ambulantes gritam suas ofertas das calçadas rachadas, entupidas de Vermelhos, Marrons, Cinzas e Laranjas de todas as espécies — rapazolas, inválidos, trabalhadores, capatazes, viciados, mães, pais, mendigos, aleijados, crianças. Os perdidos.

Eo diria que isso aqui é o inferno sobre o qual eles construíram seu paraíso. E estaria certa. Olhando para cima, vejo mais de meio quilômetro de edifícios antes que a névoa poluída forme um teto para a selva humana. Varais e fios de eletricidade se entrecruzam acima da nossa cabeça como se fossem trepadeiras. Essa visão é desesperançada. O que há para mudar aqui a não ser tudo?

Devemos nos encontrar na Lost Wee Den. Trata-se de uma taverna grande e alta com um tremeluzente letreiro vermelho coberto por vigorosos grafites. Quinze níveis, todos abertos e com vista para um hall central para consumo de bebidas com mesas e cabines preenchidas por uns duzentos clientes. Posso sentir o cheiro de mijo nas cabines de metal, que estão cedendo devido ao uso. Garrafas e copos retinam e tilintam à medida que a zurrapa é consumida. Luzes índigo e rosa tremeluzem no décimo quinto andar, onde há dançarinas e salas privadas para os clientes. Passo com Valentin por dois leões de chácara com mãos biomod — um Obsidiano com a pele tão clara quanto mármore descolorido e braços mais grossos do que os meus, e um Cinza de tez escura com a ponta de um abrasador instalada no braço.

O resto dos meus Cinzas vai surgindo atrás de mim em intervalos cambaleantes. Alguns vestindo lentes de contato, fingindo ser de outras Cores. Um deles inclusive usando uma máscaraCarne para parecer bonitinho como um Rosa. Não dá nem para dizer que é digital até que você ponha um magneto perto dele. Eles dão a impressão de estar à vontade no ambiente. Duvido muito que eu esteja, apesar do trabalho de transformação Obsidiana realizado em mim ao tingirem meus cabelos.

Os Sinetes nas minhas mãos estão cobertos por próteses Obsidianas. Meus cabelos estão brancos; meus olhos, pretos. A pele tornada mais clara com cosméticos. Victra e eu somos grandes demais para passarmos por qualquer outra Cor. Por sorte, Obsidianos, embora mais raros do que as outras baixaCores, não se sentem inadequados nesse lugar. Sigo Valentin até a mesa numa alcova próxima aos fundos do hall onde um jovem está sentado atrás de um bando de mercenários e um único Obsidiano. Um silêncio profundo me preenche à medida que observo o Obsidiano se levantar e sair da mesa para sentar-se numa outra adjacente. Outros olhos também o observam antes de se lembrar de si mesmos e voltar a atenção para a sua bebida — como fazem os pássaros aquáticos quando um crocodilo passa por eles. O Obsidiano é trinta centímetros mais alto do que eu. E todo o rosto dele está tatuado com um esqueleto. Manchado.

Perfil discreto pouco é bobagem.

— Melhor reinar no inferno do que servir no céu? — pergunto ao homem com o corpo reclinado.

— Ceifeiro! Até Milton sabia que Lúcifer era um filho da puta de quinta categoria. — Ele sorri de modo enigmático e acena para uma cadeira à sua frente. — Pare de me oprimir com esse tamanho todo.

Ele não está usando nem mesmo um disfarce. Olho na direção de Victra.

— Pensei que se tratasse de um novo amigo.

— Bom, vocês dois nunca foram amigos. Essa seria a novidade. Agora vão poder se divertir juntos.

— Você não vai ficar? — pergunto.

— Eu te mostrei a porta. Você precisa passar por ela. — Ela aperta minha bunda de modo brincalhão e sai gingando o corpo. O Chacal a observa sair, curvando-se de leve para obter uma visão melhor.

— Não imaginava que você se interessasse por mulheres.

— Mesmo morto eu ainda a apreciaria. Mas não preciso te dizer isso. Sozinho no espaço por meses sem fim. A nave toda pra você. O que havia pra fazer lá?

Sento-me à sua frente. Ele me oferece uma garrafa de um destilado esverdeado.

Balanço a cabeça.

— Eu bebo pra esquecer de homens como você — digo.

— Ah! Um insulto arcosiano, se não estou enganado. Um dos melhores de Lorn. Embora haja uma quantidade suficiente deles a ser escolhida. — Ele se curva para trás. Enigmático na sua obtusidade. Rosto inexpressivo. Olhos como moedas lisas e gastas. Cabelos da cor de areia do deserto. Mão solitária rodopiando um estilete de ouro com a rapidez de um inseto rastejando sobre solo esburacado, de rachadura em rachadura. — O Chacal de Augustus e o Ceifeiro de Marte, juntos outra vez, por fim. Como decaímos.

— Você escolheu o palco — digo enquanto ele põe o estilete atrás da orelha e tira uma coxa de frango de uma travessa em cima da mesa. Ele extrai a pele com os dentes.

— Isso te perturba?

— Por que perturbaria? Nós dois sabemos o quanto você gosta da escuridão.

Ele ri de súbito, um latido choroso e agudo, como um cachorro sendo esfaqueado.

— Tanto orgulho pra você, Darrow au Andromedus. A família toda morta. Coisinhas desgraçadas e sem um tostão furado. Tão mediano que seus pais nem mesmo tentaram apresentá-lo à Sociedade. Nenhum amigo restante. Ninguém que o conhecesse antes de você deslizar pra dentro do Instituto de maneira tão despretensiosa. Mas como você ascendeu quando lhe foi dada uma chance.

— Bom, pelo menos você ainda gosta de falar — murmuro.

— E você ainda gosta de arrumar inimigos.

— Todos têm um hobby. — Examino o cotoco onde sua mão direita deveria estar. — Desesperado por atenção? Você é o único Ouro vivo que não se importa em arranjar uma nova mão.

— Fico pensando por que você me provoca quando sua reputação está despedaçada. Suas contas bancárias estão esvaziadas. — Eu me mexo na cadeira. — Ah, sim. Você não sabia? Pliny é meticuloso quando aleija alguém. Ele esvaziou todos os seus fundos. Então, de fato sobra pouca coisa sua. Mas aqui está você, na parte inferior da Lua. Sozinho. Comigo. Com os meus. E despejando insultos.

— Esses aqui são seus? — pergunto, olhando de relance para os baixaCores ao redor de nós. — Pensei que eles te dessem nojo.

— Quem disse que você é obrigado a gostar dos seus filhos? — pergunta o Chacal, saboreando as próprias palavras. — Eles são produtos das nossas virilhas Douradas. — Ele mastiga a coxa de galinha, partindo o osso com o dente antes de descartá-lo. — Você sabe o que tenho feito com meu tempo?

— Tem batido punheta no mato?

— Infelizmente, não. Minha derrota pra você foi um duro golpe pra mim. Não tenho medo de dizer isso. Você causou danos a mim e aos meus planos. Minha irmã também me feriu. Me amordaçando? Me amarrando nu e me lançando aos seus pés? Isso doeu, sobretudo quando todos os grandes senhores e senhoras da nossa fina casta Inigualável riram às minhas custas.

— Nós dois sabemos que você não sente dor, Adrius.

— Ah, pode me chamar de Chacal. Ouvir “Adrius” dos seus lábios é como ouvir um gato latir. — Ele estremece, mas curva o corpo com volúpia para a frente quando uma mulher Marrom com braços grossos e tatuagens percorrendo sua pele clara e com marcas de feridas desliza da cozinha carregando três tigelas fumegantes. Ela as deposita diante de nós. — Obrigado! — diz ele, pegando duas para si mesmo.

Olho com desconfiança para a tigela.

— Não enveneno ninguém — diz ele. — Poderia envenenar meu pai a hora que eu quisesse, mas não faço isso. Sabe por quê?

— Porque você não recebeu o que precisa receber dele.

— E o que seria isso?

— Sua aprovação.

O Chacal me observa através da fumaça da sua tigela.

— Correto. Recebi diversas ofertas de aprendizado. Eles fazem essas ofertas pro nome do meu pai, não pra mim. Eles me desprezam porque comi alunos. Mas isso é uma tremeda hipocrisia. O que mais eu poderia fazer? Eles nos dizem que temos que vencer, e fui lá e me esforcei ao máximo. E aí eles vão lá e me criticam. Agem com nobreza, como se eles próprios não cometessem assassinatos. Loucura. — Ele sacode a cabeça com um pequeno suspiro. — Sim, eu poderia ter ido estudar guerra na Academia, assim como você. Poderia ter estudado política na Escola de Política em Luna. Poderia muito bem ter me transformado num Judiciário decente se pudesse engolir Vênus. Mas vou ascender sem a hipocrisia deles. Sem as escolas deles.

— Ouvi os boatos. Algum deles é verdadeiro?

— A maior parte. — Ele puxa mais macarrão da tigela, espalhando molho de pimenta vermelha sobre a massa. — Agora sou um homem de negócios, Darrow. Compro coisas. Sou dono de coisas. Crio. É claro que sou visto como um Prata fuçador de dinheiro por aqueles Inigualáveis pretensiosos e babacas. Mas não sou um dos lordes decadentes da Europa do século xx. Entendo que existe poder em ser prático, em possuir coisas. Pessoas. Ideias. Infraestrutura. Tão mais importante do que dinheiro. Tão mais insidioso do que... — Ele faz um movimento engraçado com a cabeça. — ... espaçonaves e lâminas. Diga-me, por acaso uma nave tem importância se você não consegue suprir e transportar a comida pra alimentar sua tripulação? Eu, acima de todos, sei a importância da comida.

— Você é o dono deste lugar, não é? — pergunto.

— Num certo sentido. — Ele sorri exibindo dentes em excesso. — Sinto que preciso ser franco com você. Tínhamos quase dezoito anos quando saímos do Instituto. Agora temos vinte. Estive dois anos no exílio, e agora gostaria muito de voltar pra casa.

— Pra socializar com os babacas Inigualáveis? — digo, rindo. — Se você tem prestado atenção a tudo, deve saber que seu pai não me ouve mais.

— Prestado atenção... — Ele compartilha com Victra um olhar de relance e inclina o corpo para a frente. — Ceifeiro. Eu sou a atenção. Você faz ideia do quanto eu adquiri das indústrias de comunicação?

— Não.

— Isso é bom. Significa que estou fazendo a coisa de maneira adequada. Mais de 20%. Com meu sócio comanditário, possuo quase 30%. Você está se perguntando por quê? Com certeza, famílias como a de Victra não se consideram sujas pelos negócios. Afinal de contas, os Julii mexem com comércio há séculos. Mas a mídia é diferente pra nós. Escorregadia. Deixe isso pra Quicksilver e sua classe. Então por que alguém com minha linhagem sujaria as mãos em algo assim? Bom, quero que você imagine a mídia como se fosse um aqueduto pra uma cidade situada no deserto. — Ele balança as mãos para indicar o local ao redor deles. — Nosso metafórico deserto. Posso fornecer apenas 30% do conteúdo do que quer que saia desse aqueduto, mas posso afetar 100% dele. Minha água contamina todo o resto. Essa é a natureza da mídia. Quero que essa cidade no deserto fique alucinada? Quero que seus habitantes se contorçam de dor? Quero que eles façam uma revolução? — Ele baixa os pauzinhos. — Tudo começa com o que eu quero.

— E o que você quer?

— Sua cabeça — diz ele.

Nossos olhos se encontram como duas hastes de ferro colidindo, enviando reverberações ardentes pelo corpo. Estar próximo dele já é um desconforto palpável, quanto mais encontrar aquelas esferas douradas mortas. Ele é muito jovem. Tem minha idade, mas há uma infantilidade nele, uma curiosidade apesar da mirada ancestral dos seus olhos, que faz com que ele transmita uma sensação de perversidade. Não que eu sinta crueldade e maldade irradiando dele. É a sensação que percorreu meu corpo como um calafrio quando Mustang me contou como, na infância, ele matou um leãozinho porque queria ver suas vísceras para entender como o corpo do bicho funcionava.

— Você tem um senso de humor estranho.

— Eu sei. Mas fico muito contente pelo fato de você entender minhas piadas. Há tantos Inigualáveis irritadiços hoje em dia. Duelos! Honra! Sangue! Tudo porque eles estão entediados. Não há mais ninguém com quem lutar. Só existe um maldito tédio.

— Acredito que você estava fazendo uma observação.

— Ah, sim. — Ele passa a mão pelos cabelos penteados para trás da mesma forma que vi seu pai fazer. — Trouxe você aqui porque Pliny é meu inimigo. Ele tornou minha vida muito difícil. Inclusive penetrou meu harém. Você sabe quantos espiões dele fui obrigado a matar? Tive que trocar muitos serviçais. Não estou tentando fazer você ter pena de mim — diz ele rapidamente.

— Eu estava quase sentindo.

— Compreender meu apuro, entretanto, é a maneira pela qual você me ajudará mais. Hoje em dia, Pliny controla os favores do meu pai. Como uma cobra sibilando no seu ouvido. Leto é projeto dele, você sabia disso? — Eu não sabia. — Pliny encontrou o queridinho e soube que Leto ganharia o coração frio do meu pai, porque faria com que Augustus se lembrasse do meu irmão morto, Claudius. Então, Pliny o cultivou, treinou-o e convenceu meu pai a adotá-lo como pupilo com o objetivo de fazer dele o herdeiro. Aí você aparece valsando na nossa vida e atrapalha o plano de Pliny. Foram necessários dois anos pra despachar você mas, com paciência, ele conseguiu. Da mesma forma como fez comigo. Agora Leto será o herdeiro do meu pai, e Pliny será o mestre de Leto.

Isso me atinge com dureza. Eu sabia que Pliny era perigoso. Talvez simplesmente jamais tivesse sabido de fato o quanto ele era perigoso.

— Então qual é seu plano? — Olho de relance ao redor do recinto. — Vai recuperar os favores do seu pai com plebeus e forcados?

— Como qualquer Ouro com uma educação decente saberia, existe um certo grupo criminoso que administra uma série de coisas na Cidade Perdida. Uma vasta organização criminosa que, se você fizer o traçado dela toda até o topo, está sob a influência do escritório da Soberana da nossa pequena Sociedade. Octavia au Lune pode parecer o modelo da virtude Ouro. Mas ela tem um fetiche por coisas sujas — assassinatos, organização de greves de trabalhadores nos domínios dos ArquiGovernadores dela própria, aparelhamentos de todo tipo. A maneira como ela manuseia a Cidade Perdida não é nem um pouco diferente. Ela e suas Fúrias escolheram a dedo a liderança da família criminosa: esses três indivíduos são as criaturas dela. Mas aí vai a cereja do bolo da perversão. Encontrei determinados membros dessa mesma organização que estão... inquietos.

Franzo as sobrancelhas.

— Eles não gostam de Lune?

— Ela é uma piranha opressiva. Uma piranha que cuspiu no olho do meu pai e foi se chegando aos Bellona. Mas não. Meus campeões não pensam nesse plano. Eles são baixaCores, Darrow. Estão inquietos pra chegar ao topo dessa pilha de merda.

— Por que a Cidade Perdida? — pergunto. — O que isso importa?

— Ela é apenas uma peça no quebra-cabeça. Vou ajudar esses ambiciosos baixaCores a subir degraus, por um preço. Quando eles estiverem no poder, vão destruir a ameaça que assola a Sociedade: Ares e seus Filhos.


8

Cetro & espada

Congelo por dentro.

— Os Filhos de Ares? Não sabia que eles eram uma ameaça assim tão séria.

— Eles ainda não são, mas serão — responde ele. — A Soberana sabe disso. Assim como meu pai, mesmo que não esteja em voga dizer isso em voz alta. A Sociedade já enfrentou células terroristas antes. Jogue em cima deles uma quantidade suficiente de pelotões de mestiços, e eles são despachados em tempo hábil. Mas com os Filhos a coisa é diferente. Eles não são uma ratazana mordendo nossos calcanhares, mas uma colônia de cupins mastigando devagar nossas fundações o mais silenciosamente possível até terem feito um trabalho tão bom que nossa casa vai desabar ao redor. Meu pai deu a Pliny a tarefa de eliminar os Filhos. Mas Pliny tem fracassado nisso. Ele vai continuar fracassando, porque os Filhos de Ares são espertos e minha mídia adora lhes dar atenção. Mas quando eles se tornarem uma coisa tão pavorosa à Sociedade, à Soberana e ao meu pai a ponto de a própria máquina governamental começar a ficar emperrada, vou dar um passo à frente e dizer: “Vou curar essa doença em três semanas”. E então vou fazer isso, com minha mídia, com as organizações matando todos os Filhos e com você gloriosamente decapitando Ares em pessoa.

— Você quer uma pessoa de destaque.

— Eu não sou glamoroso. Não inspiro. Você é como um dos Antigos Conquistadores. Carismático e virtuoso. Quando eles olham pra você, não veem nada da suave decadência da nossa época pobre, nada do veneno político que está saturando Luna desde qua a família Lune ascendeu ao poder. Eles vão olhar pra você e ver uma faca saneadora, um novo amanhecer pra uma Segunda Era Dourada.

Tal pai, tal filho. Ambos tendo como alvo os Filhos de Ares de modos similares. É arrepiante pensar na guerra que ocorrerá entre os cortadores de garganta das organizações criminosas e os agentes de Ares. Isso destruirá os Filhos.

— Os Filhos de Ares são apenas o começo. Uma alavanca. Você quer o poder.

— Que outra ambição pode haver?

— Mas não apenas Marte...

— O fato de eu ser pequeno não significa que meus sonhos tenham que sê-lo. Quero tudo. E pra conseguir isso, estou disposto a fazer o que for preciso. Até mesmo compartilhar coisas.

— Talvez você esteja ciente do que aconteceu dois meses atrás — digo. — Pare um Ouro em qualquer lugar e lhe pergunte. Qualquer um deles vai te contar o que a família Bellona fez com o Ceifeiro de Marte. Não tenho mais nenhuma reputação. A única coisa que inspiro é riso.

— Cassius foi envergonhado — diz o Chacal, irritado. — Mijaram em cima dele. Ele foi surrado no Instituto. Foi constrangido. Agora ele é o mais mortífero duelista de Luna. Ele lutou contra todos que contestassem seu valor. E agora é o novo bichinho de estimação favorito da Soberana. Você sabia que aquela harpia velha está fazendo dele um Cavaleiro Olímpico? Lorn au Arcos e Venetia au Rein se aposentaram este ano. Isso significa que os postos de Cavaleiro Raivoso e Cavaleiro Matinal estão vagos.

— Ela faria dele um dos doze?

— Cassius é uma peça no tabuleiro dela. — O Chacal se curva para a frente. — Mas já estou ficando cansado de fazer o papel de peão pros meus velhos.

— Assim como eu. Isso faz com que eu me sinta um Rosa — digo.

— Então vamos ascender juntos, nós dois. Eu o cetro e você a espada.

— Você não vai compartilhar coisa alguma. Isso não faz parte da sua natureza.

— Faço o que for necessário fazer. Nem mais nem menos. E preciso de um senhor da guerra. Eu serei Ulisses e você será Aquiles.

— Aquiles morre no final.

— Então aprenda com os erros dele.

— É uma boa ideia. — Faço uma pausa diante do amplo sorriso que ele exibe. — Mas há um único problema. Você é um sociopata, Adrius. Você não faz apenas o que precisa fazer. Você faz seja lá que cara precisa fazer, seja lá que emoção você deseja, como se vestisse uma máscara. Como eu poderia confiar em alguém como você? Você matou Pax. — Deixo as palavras pairarem no ar. — Você matou meu amigo, o protetor da sua irmã.

— Pax e eu jamais havíamos nos encontrado. Tudo o que vi foi um obstáculo no meu caminho. É claro que eu sabia dos Telemanus, mas depois que Claudius teve o cérebro espalhado por todos os lados, papai me separou de Mustang pra nos proteger. Deixou-me num isolamento ainda maior do que o dela. Eu era o herdeiro dele. Eu não tinha amigos, apenas tutores. Ele arruinou minha juventude. E então me descartou como descartou você, porque nós perdemos. Você e eu somos o reflexo um do outro.

Uma briga tem início no nível acima do nosso. Um abrasador dispara. Leões de chácara correm para lá segurando suas próprias armas. A maioria dos clientes permanece sentada e sem demonstrar nenhuma perturbação.

— E sua irmã? — pergunto hesitante, sabendo no fundo, no fundo, que não me resta mais nenhuma opção além dessa.

— Você quer saber como ela está se virando? — pergunta ele, enfático. — Quem divide a cama com ela? Posso dar qualquer resposta que você quiser. Meus olhos estão em toda parte.

— Não quero isso. — Balanço a cabeça, tentando banir a ideia sombria de alguém dividindo a cama com ela. De Mustang estar encontrando alegria na companhia de algum outro, mesmo que ela mereça isso. Ainda mais estranho é pensar que o Chacal sabe essas coisas. — Ela está envolvida nisso?

— Não — diz o Chacal com um riso pesado. — Você sabe que ela agora está com Lune. O que de fato é hilário. Quem teria imaginado que, entre nós dois, ela seria a gêmea pródiga? Bom, a gêmea mais pródiga.

— Nada de mau pode acontecer com ela — digo. — Se acontecer, vou cortar sua cabeça.

— Isso é agressivo. Mas o acordo está selado. Então você está comigo, certo?

— Estou com você desde que entrei naquele ônibus espacial. Você sabe que não tenho mais nenhuma opção. E não conheço nenhuma outra pessoa que me convocaria a vir aqui. As variáveis só poderiam levar a esse fim. — E por que elas não deveriam levar?

Eu tirei a mão dele, ele me tirou um amigo. Tudo o que ele fez foi morder e dilacerar pela sua própria sobrevivência. Observando-o agora, tão pequeno e comum num mundo de deuses, é quase como se ele fosse o herói lutando com nobreza contra um pai que o rejeitou, contra uma Sociedade que ri do seu tamanho, da sua fraqueza e que o despreza como um canibal, muito embora tenham sido eles os responsáveis por lhe dizer que ele deveria fazer qualquer coisa para vencer. De um jeito estranho, ele é como eu. Ele poderia ter tido a mão reparada, mas optou por não fazer isso, usando-a como um distintivo de honra em vez de vergonha.

Portanto, decido participar disso. Então, no fim, quem sabe eu o mate. Por Pax.

O rosto dele se abre num grandioso sorriso.

— Fico muitíssimo satisfeito, Darrow. Muitíssimo. E, pra ser honesto, um pouquinho aliviado.

— Mas o que vem em seguida? — pergunto. — Você deve estar precisando de alguma ajuda minha agora.

— Um Ouro de nome Fencor au Drusilla descobriu acerca dos meus... tratos com as organizações criminosas. Ele está tentando me chantagear. Preciso que você o mate.

É claro.

— Quando?

— Daqui a mais ou menos uma semana. O verdadeiro propósito de matá-lo é obter favores junto a uma pessoa aparentada da Soberana que estava sendo menosprezada por Fencor. Com a morte de Fencor, você cairá nas... graças dessa pessoa.

Reprimo uma risada.

— Você quer que eu desempenhe o papel de um Pixie galante que fica zanzando pela corte e se deitando com as mais diversas mulheres? — Mustang vai pensar que estou fazendo isso para me vingar dela.

Os olhos do Chacal resplandecem de malícia.

— Quem disse alguma coisa sobre mulheres?

— Oh — digo, percebendo o que ele quer dizer. — Oh, isso vai ser... complicado. Tactus pode ser melhor nisso...

O Chacal ri da minha surpresa.

— Oh, você vai servir muito bem. Mas essas são preocupações pra um outro dia. Por enquanto, relaxe. Vou adquirir seu contrato através de uma segunda parte assim que ele entrar em leilão.

— Os Bellona vão tentar comprá-lo.

— Vou ter alguém pra me ajudar a bancar a transação. Ofereceremos mais do que eles.

— Victra?

— Não. Ela vai funcionar mais como corretora nessa história. O que você precisa entender sobre Victra é que ela não é... como eu diria... partidária de nenhum dos lados. Ela apenas gosta de ver o circo pegar fogo. Você conhecerá a pessoa que vai me ajudar a bancar a compra logo, logo.

— Isso não vai funcionar — digo. — Quero me encontrar com ele agora mesmo. Não sou um fantoche seu. Compartilho tudo o que sei, você compartilha tudo o que sabe.

— Mas eu sei muito mais. Tudo bem. — Ele curva o corpo para a frente. — Você vai conhecê-lo hoje à noite. Não é que eu não confie em você. Só acho que é mais apropriado ele mesmo se apresentar.

— Por mim está ótimo. Quero trazer os Uivadores de volta. E Sevro.

— Feito. Você também vai precisar selecionar o mestre-de-lâminas, alguém que possa te orientar no uso das facas. Vamos precisar que você mate algumas pessoas em público no futuro.

— Sei usar facas — digo.

— Não foi o que ouvi falar. Ah, qual é, não é preciso se envergonhar disso. Tenho alguns nomes em mente. É uma pena Arcos não estar trabalhando como tutor. Hoje eu poderia até, na verdade, ter os fundos necessários pra me dar ao luxo de contratar os serviços do Lado-de-pedra e seu Estilo do Salgueiro...

As palavras dele somem e seus olhos se afastam de mim, atraídos para a forma furtiva de uma mulher que irrompe em meio à fumaça e à monotonia da taverna como uma brasa escorregando pela neblina. Posso sentir o cheiro de amêndoas na sua pele, o sabor cítrico dos seus lábios à medida que ela se aproxima da nossa mesa, graciosa e arrebatadora como o ar da Costa de Verão de Vênus. Ossos frágeis, avicular. Ela usa uma camisa preta que lhe cobre a pele, deixando à mostra apenas seus ombros nus.

Então capto seu olhar e quase caio da cadeira. É um tiro no meu coração. Minha pulsação acelera. É ela. A garota com asas que jamais podia voar. Mas agora... ela fugiu de Mickey, ao que parece. Ela não tem mais as asas e seu corpo agora está maduro, o corpo de uma mulher. Mas por que Evey está aqui? Será que os Filhos a enviaram? Mal consigo manter minha compostura. Ela não me reconheceu.

— Eu não sabia que Rosas podiam vicejar tanto em meio a ervas daninhas — diz-lhe o Chacal.

O riso dela vaga pelo ar como o bater de asas de uma borboleta. Ela passa a mão pela borda inferior da mesa gasta e dá de ombros por um instante.

— Homens comuns não podem se dar ao luxo de ter coisas incomuns. Mas minha ama ouviu que homens incomuns estavam na Cidade Perdida e me mandou aqui na condição de... embaixadora.

— Ah... — O Chacal se recosta na cadeira, aquilatando-a. — Você é uma garota das organizações criminosas. De Vebonna? — Depois de ela assentir com a cabeça, o Chacal olha para mim e confunde minha expressão de surpresa com uma de desejo. — Leve-a lá pra cima, Darrow. Por minha conta. Um presente de boas-vindas. Depois me diga se você deseja comprá-la. Amanhã podemos conversar sobre negócios.

Ao ouvir a palavra “Darrow”, a compostura de Evey estremece por uma fração de segundo. Ela dá um passo para trás e ouço sua respiração mudar de ritmo. E quando os olhos dela se encontram com os meus, sei que ela está enxergando além do disfarce Obsidiano e vislumbra o Vermelho que se encontra por baixo de todas essas mentiras. Entretanto, a surpresa demonstrada significa que Evey não está ali por minha causa. Ela está ali por causa do Chacal, mas por quê? Será que ela está com os Filhos? Ou será que Mickey por fim vendeu seu prêmio a essa gângster Vebonna?

— Não tenho relações com escravos — diz Evey ao Chacal, apontando para os meus sinetes Obsidianos.

— Você descobrirá que há mais coisas nesse aí do que indicam as aparências.

— Dominus, eu...

Ele agarra a mão dela, torcendo de modo horrível seu dedo mindinho.

— Cale essa boca e faça o que estou mandando, menina. Senão vamos tomar à força o que você não quer dar. — Ele exibe um largo sorriso e a solta. Ela segura a mão, tremendo. Não é muito difícil machucar um Rosa.

Eu me levanto.

— Acho que eu assumo daqui em diante, meu amigo.

— Tenho certeza de que sim!

Aceno para os guarda-costas que me acompanham, dispensando-os.

Sigo Evey pelos degraus que levam ao quarto andar, recebendo vaias de alguns dos clientes. Meus olhos captam um dos holoCams acima do bar. Imagens de uma explosão ondulam em três dimensões. Parece ter sido num café. Um café Ouro. Meus olhos ficam arregalados à medida que a extensão da devastação é mostrada. Terá sido obra dos Filhos?

Imagens de uma outra explosão lampejam numa tela diferente. E outra. E outra, até que dezenas de explosões inundam as telas ao redor da taverna. Todas as cabeças se viram para assistir, o silêncio se escancarando através da vasta taverna. A mão de Evey aperta a minha com força, e eu sei que os Filhos foram os responsáveis pelas explosões. Eles a enviaram. Mas por que Luna? Por que o Chacal? Por que eles não entraram em contato comigo?

— Rápido — diz ela quando alcançamos o décimo quinto andar, puxando-me através das luzes rosa, passando por dançarinas e por clientes famintos em direção à última porta no fim de um estreito corredor. Eu a sigo até o interior de uma sala escura e de imediato sinto o cheiro acre de óleo de abrasador. O ar se agita atrás de mim quando um homem num fantasManto avança sorrateiro. É necessário um considerável esforço da minha parte para resistir ao impulso de matá-lo.

— Ele é um dos nossos — retruca Evey. Ela acende a luz. Seis Vermelhos usando pesados trajes militares de alta tecnologia. Eles usam demonElmos com aparato ótico de alta gradação. — Chame o deslizador.

— Ele não é Adrius au Augustus — rosna um deles.

— Ele é uma porra de um Obsidiano.

— Mas de aparência estranha. — Um dos Vermelhos com o aparato ótico dá um pulo para trás, apontando o abrasador. — A densidade óssea é Ouro!

— Pare! — grita Evey. — Ele é amigo. Harmony está procurando por ele há algum tempo.

Não Ares ou Dancer?

— Vocês não estavam aqui por minha causa — digo, olhando as armas deles. — Vocês estavam caçando.

Ela se vira para mim.

— Mais tarde eu explico, agora precisamos ir.

— O que você fez? — pergunto quando um dos Vermelhos saca uma plasmaTocha e faz um buraco na parede, abrindo o recinto para o fedor da cidade. A maior parte do ar entra e luzes inundam a sala à medida que uma pequena nave de descarga desce, abrindo suas escotilhas laterais em paralelo à porta improvisada.

— Darrow, não há tempo.

Eu a agarro.

— Evey, por que você está aqui?

Seus olhos brilham de triunfo.

— Adrius au Augustus assassinou quinze dos nossos irmãos e irmãs. Fui enviada pra capturá-lo ou matá-lo. Escolhi a segunda opção. Em vinte segundos ele vai virar cinza.

Arranco um datapad do braço de um dos Vermelhos e aciono minhas gravBotas escondidas. Evey grita para mim. As botas gemem lamentosas ao me erguerem no ar. Abro caminho por onde viemos, arrebentando a porta em vez de abri-la, voando pelo corredor como um morcego saído do inferno. Passo de qualquer maneira pela dançarina, curvo o corpo para adejar sobre dois clientes Laranjas e dou uma guinada bem à direita sobre a balaustrada na direção da mesa do Chacal enquanto ele termina de tomar sua bebida. Seu Manchado repara minha presença, assim como os Cinzas. Lento demais.

Nas telas, por sobre as explosões, a estática estala e um capacete vermelho-sangue queima.

— Ceife o que plantar — rosna a voz de Ares a partir de uma dezena de alto-falantes.

A mesa derrete sob a mão do Chacal. Consumida pela bomba que Evey plantou. O Manchado joga o Chacal para longe da mesa como se fosse uma boneca e enrosca seu corpo titânico ao redor da energia no formato de um cogumelo. Sua boca se move num sussurro de morte:

— Skirnir al fal njir.


9

A escuridão

A energia brota para fora do Manchado, líquida ao olho, evaporando seu corpo e se espalhando pelo chão como mercúrio derramado antes de escurecer, deslizando de volta à origem, sugando homens e cadeiras e garrafas na direção dela como um buraco negro antes de detonar com um rugido profundo e digno dos piores pesadelos. Agarro o Chacal pela jaqueta e voo pela parede, batendo primeiro com o ombro enquanto, atrás de nós, vidro, madeira, metal, tímpanos e homens são despedaçados.

Minhas botas falham. Voamos pela rua e batemos com força no edifício oposto àquele em que nos encontrávamos, estalando concreto e caindo no chão enquanto o Lost Wee Den encolhe para dentro de si como se fosse uma uva virando uma passa virando poeira. A construção exala um barulho mortífero de fogo e cinzas antes de desabar para a sua ruína.

Embaixo de mim, o Chacal está inconsciente, suas pernas com queimaduras muito feias. Vomito ao tentar me levantar, e meu esqueleto range como o tronco de uma árvore jovem depois de seu primeiro vento de inverno forte. Tropeço apenas para cair para trás no chão, esvaziando meu estômago uma segunda vez. Dor no crânio. Nariz espirrando sangue. Ouvidos coçando com sangue dentro. Globos oculares latejando devido à explosão. Ombro deslocado. Eu me ponho de joelhos, encosto o ombro na parede e rolo a junta de volta ao seu lugar, tremendo de dor à medida que o osso estala. A sensação de agulhas formiga nos meus dedos. Enxugo o vômito das mãos e por fim cambaleio até me pôr de pé. Levanto o Chacal e estreito os olhos no meio da fumaça.

Não ouço nada além das lamúrias da stereocilia. Semelhantes a papagaios na parte interna do meu ouvido, latejando. Sacudo o rosto para me livrar das luzes que dançam na minha vista. A fumaça me engole. Pessoas passam voando, desdobrando-se ao redor de uma rocha, correndo para ajudar aqueles presos nas armadilhas. Elas encontrarão apenas morte, apenas cinzas. Estrondos sônicos penetram a noite. As equipes de apoio do Chacal rugem da cidade acima. E, assim que pousam para tirá-lo desse inferno, os papagaios nos meus ouvidos desaparecem, devorados pelo crepitar das chamas e pelo choro dos feridos.

Estou parado em frente a uma fábrica abandonada, a quatrocentos quilômetros da Cidadela, bem no fundo do Velho Distrito Industrial. Fábricas mais novas foram construídas em cima desta aqui, enterrando-a debaixo de uma camada nova de indústria como um cravo profundo. A fuligem serve de pele ao lugar. Musgo carnívoro. Água repleta de ferrugem. Eu imaginaria este lugar como um beco sem saída se não conhecesse tão bem minha pedreira.

O datapad que tirei do Vermelho sobreviveu à explosão. Deixei o Chacal na companhia das suas equipes de apoio e deslizei ainda mais para o fim da rua, onde roubei um veículo de polícia Cinza. Depois de apagar o dispositivo de rastreamento do datapad, invadi os dados referentes ao seu histórico de coordenadas.

Bato com força na porta trancada que dava acesso ao nível principal da fábrica. Nada. Eles devem estar cagando nas calças. Então me ajoelho no chão, as mãos atrás da cabeça, e espero. Depois de alguns minutos, a porta range e se abre. O interior está escuro. Então, diversas figuras avançam devagar. Elas amarram minhas mãos, cobrem minha cabeça com um saco e me empurram para dentro da fábrica.

Depois de me conduzirem para um andar inferior através de um velho elevador hidráulico, eles me guiam num ritmo constante em direção ao som de uma música. O “Concerto no 2” para piano e orquestra de Brahms. Zumbido de computadores. Tochas manuais brilham o bastante para que a luz atravesse o tecido do saco.

— Aqui, tirem as mãos dele, seus selvagens — retruca uma voz familiar.

— Cuidado, palhaço — troveja algum Vermelho.

— Pode gritar comigo o quanto quiser, seu babuíno enferrujado, ele vale mais do que dez mil como você, seu grosseirão inato...

— Dalo, saia — diz Evey com suavidade. — Agora.

Botas pisam com força no chão, afastando-se.

— Agora posso parar de fingir? — pergunto.

— Com certeza — diz Mickey.

Destravo as algemas que eles usaram para prender meus punhos nas costas e retiro o saco que cobre minha cabeça. O laboratório de concreto e metal é limpo e silencioso, salvo pela música tranquilizante. Uma tênue névoa flutua no ar em decorrência da bomba de água de Mickey no canto da sala. Assomo sobre ele e Evey. Ela não consegue se conter.

Não mais a sedutora Rosa da taverna, ela se lança em cima de mim como uma garotinha cumprimentando um tio há muito perdido. Suas mãos permanecem um tempo na minha cintura quando ela por fim recua e mira meus olhos Dourados com seus próprios olhos cor-de-rosa. Apesar do seu risinho, ela é toda sensualidade e beleza, com braços esguios e um lento e íntimo sorriso que não ecoa nada da tristeza que o fato de ter matado quase duzentas pessoas deveria estar estampado nela. A garota alada se tornou um pássaro carniceiro e não parece ter reparado nisso. Imagino se ela sorriria tão amplamente se tivesse de matar todas aquelas pessoas com uma faca. É incrível como perpetramos assassinatos em massa com facilidade.

— Poderia te reconhecer em qualquer lugar — diz ela. — Quando te vi à mesa... meu coração ficou descompassado. Sobretudo com aquela ridícula maquiagem Obsidiana. Darrow, qual é o problema?

Ela dá um ganido quando eu a levanto pela parte da frente da jaqueta e a empurro de encontro à parede.

— Você acabou de matar duzentas pessoas. — Balanço a cabeça, doída e pesada devido ao que aconteceu. — Como é que você pôde fazer isso, Evey? — Eu a sacudo, olhando de novo a tripulação da minha nave sendo ejetada em direção ao espaço. Vendo todos os mortos que deixei no meu rastro. Sentindo a pulsação de Julian diminuir até sumir.

— Darrow, querido... — tenta Mickey.

— Cale essa boca, Mickey.

— Certo. Tudo bem.

— Vermelhos. Rosas. BaixaCores. Seu próprio povo. Como se eles não fossem nada. — Minhas mãos estão trêmulas.

— Eu estava seguindo ordens, Darrow — diz ela. — Adrius tem nos investigado. Ele precisava ser eliminado.

Então, mesmo com todos os esquemas do Chacal, ele havia sido notado. Lágrimas escorrem dos olhos de Evey. Elas não me fazem recuar. Quem dá a mínima para o que ela sente depois do que acabou de fazer? Mas eu a solto, deixando-a deslizar pateticamente pela parede, na esperança de que ela talvez possa exibir algum brilho de arrependimento que me fizesse pensar que aquelas lágrimas são pelas pessoas que ela matou e não por ela própria, não porque tem medo de mim.

— Não era assim que eu queria que fosse — diz ela, enxugando os olhos. — Quando você me visse de novo.

Olho para ela, confuso.

— O que aconteceu com você?

— Ela teve um professor diferente do seu — diz Mickey. — Tirei as asas dela e Harmony lhe deu garras.

Eu me viro para Mickey.

— O que diabos está acontecendo?

— Demoraria um ano pra explicar. — Ele cruza os braços e me examina. — Mas em primeiro lugar, vamos dizer que sentimos sua falta, meu querido príncipe. Em segundo lugar, por favor não ligue minha moralidade à dessa alma perdida aí. Eu concordo. Evey é um monstrinho. — Ele olha com raiva para Evey enquanto ela se levanta. — De repente agora você vai se ver como de fato é. — O escárnio dele desaparece, seus olhos rápidos me escaneiam dos pés à cabeça. — Em terceiro lugar, você está com uma aparência divina, meu rapaz. Absolutamente divina.

Seus olhos dançam sobre meu rosto. Sua boca se abre e se fecha, embaralhando-se pelo tanto que tem a dizer. Bem definido de rosto, com os cabelos oleosos, ele desliza para a frente como uma lâmina sobre gelo. Todo ângulos. Pele envolta em ossos delgados. Mickey era assim tão magro quando o vi pela última vez? Ou será que ele não está com seus cosméticos? Não. As piscadelas dele estão lentas. Lânguidas. Ele está cansado. Mais velho. E aparentemente arrasado. Um extravagante ar de vulnerabilidade no modo como seus ombros estão curvados e seus olhos disparam ao redor do recinto, como se ele estivesse na expectativa de ser atingido a qualquer momento.

— Eu te fiz uma pergunta, Mickey — digo.

— Não consigo pensar na floresta! Ainda estou examinando a árvore! É assombroso como seu corpo vicejou. Simplesmente assombroso, meu querido. Você ficou bem maior. Como estão seus receptores de dor? Os folículos capilares ficaram irritados como eu me preocupei que ficassem? E quanto à contração muscular, você a considera acima da média dos seus pares? Dilatação da pupila rápida o bastante? Tudo o que escutei por meses e meses foram notícias suas no hc. Eles não podiam mostrar o Instituto, é claro. Mas havia vídeos vazados na holoRede. E que vídeos... você matando um Inigualável Maculado. Invadindo uma estranha fortaleza no céu como se fosse um daquelas campeões de épocas antigas!

Até eles engolem os mitos dos Conquistadores, os nobres campeões de épocas antigas. Ele agarra meu ombro, desesperado, sua mão mais fraca do que era nas minhas lembranças.

— Conte-me sobre sua vida. Como é a Academia. Conte-me tudo. Você ainda é amante daquela deleitável Virginia au Augustus? — Ele franze o cenho de repente. — Ah, é claro que não. Ela está com...

— Mickey — digo, segurando-o —, acalme-se.

Ele ri com tanta intensidade que tem um acesso de tosse, dando-me as costas para enxugar os olhos.

— É bom encontrar um rosto amigável, só isso. Eles não me permitem ter acesso a boas companhias nos últimos tempos. Nenhuma mesmo. É uma coisa realmente monstruosa.

— Cale essa boca, Mickey — rebate Evey.

Os olhos dele escorregam para Evey, que agora está bem longe do seu alcance, dedilhando o queimador preso no seu quadril como se isso a protegesse de mim.

— Por que você está em Luna? O que está acontecendo? — pergunto. — Você se juntou aos Filhos?

— Muita coisa aconteceu — murmura Mickey. — Não estou aqui por...

— Ele trabalha pra nós agora, Darrow — interrompe Evey com frieza. — Gostando disso ou não. A gente tomou aquele seu pequeno covil de pele. Usamos os fundos que ele angariava vendendo carne pra pagar o transporte até aqui e pra equipar um exército. A gente está contra-atacando, Darrow. Finalmente.

— Uma terrorista Rosa e um punhado de Vermelhos brincando de usar armas — digo sem olhar para ela. — Esse é seu exército?

— A gente tirou sangue de Ouros hoje, Darrow. Se você não me respeita, pelo menos respeite isso. Matei o filho do ArquiGovernador de Marte. O que foi que você fez pra pensar que pode chegar aqui e cuspir no que a gente fez?

— Você não o matou — digo.

Ela olha para mim de modo interrogativo.

— Não seja ridículo.

Retribuo o olhar, enraivecido.

— Mas como... A bomba... — diz ela. — Você está mentindo.

— Eu o tirei de lá a tempo.

— Por quê?

— Porque minha missão é complicada. Preciso dele. Onde está Dancer? Quem está no comando aqui? Mickey...

— Eu estou — diz uma outra voz do meu passado, uma voz com um sotaque semelhante ao da minha mulher, exceto pelo fato de que essa voz está envenenada e amargurada pela raiva. Eu me viro para ver Harmony na porta. Metade do rosto dela ainda detonado por aquela terrível cicatriz. A outra metade é fria e cruel, mais velha do que minhas lembranças dela.

— Harmony — digo com suavidade. Os anos não fizeram nada para nos aproximar um do outro. — É bom te ver. Preciso fazer um relatório. Há muitas coisas a dizer. — Nem consigo imaginar por onde começar. Então reparo o olhar de relance que ela dá na direção de Evey. — Harmony, onde está Dancer?

— Dancer está morto, Darrow.

Mais tarde, Harmony senta-se comigo em frente à escrivaninha de Mickey num escritório com móveis baratos e angulosos e vasos cheios de órgãos híbridos flutuando em gás preservativo. Mickey está sentado atrás da escrivaninha, remexendo seu velho cubo de quebra-cabeça platônico. Ele vê que estou olhando para o objeto e dá uma piscadela. Ele está melhor. Evey está encostada num barril de produtos químicos. Eu me sento, absolutamente perdido. Dancer tinha um plano para mim. Ele tinha um plano para tudo isso. Ele não deveria estar morto. Ele não pode estar.

— Foi o último desejo de Dancer que Mickey entalhasse pra gente um novo exército. Um exército que rivalizasse com os Ouros em velocidade e força. Pegamos nossos melhores homens e mulheres e os levamos pra ser entalhados. Eles não conseguem sobreviver a um procedimento Ouro como o que você suportou, mas alguns conseguem ser corajosos o bastante pra enfrentar esse novo programa. — Ela acena para o vidro onde uma centena de tubos em formato de caixão se encontram espalhados pelo chão. Dentro de cada um deles, Vermelhos de uma nova linhagem. — Logo teremos cem soldados que poderão destruir Ouros com mais intensidade do que qualquer um deles jamais conseguiu.

Como se cem fosse o bastante para combater a máquina bélica dos Ouros. Meus Uivadores e eu poderíamos muito provavelmente despedaçar qualquer unidade que esses terroristas reunissem. E nem somos os mais mortíferos dos Ouros.

Ela faz um gesto com um novo braço, tendo perdido o original de carne e osso para um Obsidiano num ataque a um arsenal para se apoderar de armas. Trata-se agora de um membro de metal. Fluido e forte, com soquetes para armas adquiridos de forma ilegal no mercado negro. Bom trabalho artesanal, mas nada comparado aos entalhes de Mickey. É claro que Harmony jamais permitiria que ele trabalhasse nela.

— Quer dizer então que Mickey é um prisioneiro? — pergunto.

— Escravo, melhor dizendo — grunhe Mickey com um sorrisinho. — Eles nem me dão vinho.

— Cale a boca! — rebate Evey.

— Evey. — Harmony fixa um olhar tolerante na jovem antes de olhar para Mickey. — Lembre-se do que a gente conversou, hein? Cuidado com as palavras.

Mickey estremece e seus olhos disparam na direção da mão esquerda dela. Há um coldre vazio no seu cinto. Alguma coisa da qual ele tem medo. Harmony está se comportando por minha causa.

— Você está com medo de que Mickey me fale que vocês batem nele?

Ela dá de ombros, desdenhando meu julgamento.

— Mickey vendia meninas e meninos. Não dá pra escravizar um dono de escravos. Até onde entendo, ele tem uma sorte da porra de não estar com uma bala na cabeça. Eu podia ter contratado um entalhador pra lhe pôr uns chifres, umas asas e um rabo só pra ele se parecer com o monstro que realmente é. Mas não fiz isso. Fiz, Mickey?

— Não.

— Não?

— Não, domina.

A palavra faz com que eu tenha uma sensação de repugnância.

— Dancer sempre o respeitou — digo. — Eu o respeito, apesar de todas as... excentricidades dele.

— Ele comprava pessoas. Vendia pessoas — diz Evey.

— Todos nós já cometemos nossos pecados — digo. — Sobretudo vocês, agora.

— Eu te disse que ele ia vir com essa porra de discurso ético. Como se ele não fizesse concessões à moralidade todo dia. Fica aí encontrando desculpas pra filhos da puta do mal como esse Mickey aqui. — Harmony sorri afetadamente para Evey, compartilhando alguma piada particular delas. — Esse tipo de atitude é muito bem-visto lá em cima, Darrow. Mas você vai aprender que a gente não faz mais concessões aqui. Isso é parte do passado.

— Então Dancer está mesmo morto.

— Dancer era um homem bom. — Ela fica em silêncio por um momento curto demais para que pudesse ser visto como algo respeitoso. — Mas homens bons tendem a morrer antes. Meio ano atrás ele contratou uma equipe de mercenários Cinza com o intuito de atacar um centro de comunicações pra que a gente pudesse roubar dados. Eu disse que a gente iria matar os caras assim que o serviço tivesse sido feito. Aí Dancer disse... o que foi mesmo que ele disse? Ele disse: “Não somos demônios”. Mas depois que o capitão Cinza recolheu o pagamento, foi lá vazar toda a informação pro quartel-general local da Polícia da Sociedade e deu a eles a localização de Dancer. A porra do esquadrão de mestiços pôs Dancer e mais duzentos Filhos na merda em dois minutos. Nunca mais. Se eles matam um dos nossos, nós matamos cem deles. E a gente não confia em Cinzas. A gente não paga Violetas. Eles têm vivido da nossa labuta há séculos. A gente só confia em Vermelhos.

Evey se mexe desconfortavelmente.

— Havia um outro Vermelho no Instituto — digo depois de um momento. — Titus. Ele era um dos seus? — Olho de relance na direção de Mickey.

— Não olhe pra mim — diz Mickey.

— Como é que você soube que Titus era Vermelho? — pergunta Harmony depressa. — Ele te contou?

— Ele... deixou isso escapar. Pequenos maneirismos. Ninguém mais notou.

— Então vocês dois se encontraram? — pergunta ela, sem sorrir, mas suspirando para liberar um peso que carregava consigo havia um bom tempo. — Ele era um bom rapaz. Tenho certeza de que vocês se tornaram amigos, não é?

— Ele nunca me descobriu. Você o entalhou, Mickey?

Com a permissão de Harmony, ele responde.

— Não, querido. Você foi meu primeiro. Meu único. — Ele dá uma piscadela. — Fiz uma consultoria no entalhe dele. Mas um sócio meu realizou o procedimento baseado nos êxitos em que você e eu fomos pioneiros.

— Dancer encontrou você — diz Harmony. — Eu encontrei Titus. Embora o nome dele fosse Arlus quando o tiramos das minas de Thebos. Ele não teve interesse em mantê-lo.

É apropriado Harmony ter encontrado Titus. Unha e carne.

— O que aconteceu com ele? — pergunta ela. — Sabemos que ele morreu.

O que aconteceu com ele? Deixei um Ouro derrubá-lo, porra.

Lanço um olhar de pedra para os três ali presentes, grato pelo fato de que eles não possam ler meus pensamentos. Eles não sabem nada. Mal consigo conceber o que eles devem estar pensando de mim. Eles têm uma perspectiva tão pequena acerca do que fiz, acerca do que me tornei. Eu imaginava que houvesse um plano, uma razão longa e grande para toda a minha labuta. Mas não havia coisa alguma. Agora sei disso. Até mesmo Dancer estava apenas esperando para ver o que aconteceria. Na esperança.

Eu esperava ser recebido de braços abertos. Ansiava por um exército me aguardando. Um plano grandioso. Que Ares tirasse seu capacete infame e me deslumbrasse com seu brilho e comprovasse que toda a minha fé estaria assegurada. Que inferno, tudo o que eu queria era encontrá-los de novo para não me sentir solitário. Mas estou me sentindo mais solitário do que nunca, sentado aqui numa sala de concreto com essas três pessoas pálidas em cadeiras de plástico pouco confortáveis.

— Um Ouro chamado Cassius au Bellona o matou — digo.

— E foi uma boa morte?

— A essa altura do campeonato você já devia estar sabendo que esse tipo de coisa não existe.

— Cassius. O mesmo rapaz com quem você tem uma disputa de sangue. O motivo é esse? — pergunta Evey, ansiosa. — É por isso que os Bellona querem te matar?

Passo a mão pelos cabelos.

— Não. Matei o irmão de Cassius. É um dos motivos pelos quais eles me odeiam.

— Sangue por sangue — murmura Evey, como se soubesse do que diabos está falando.

— Nós os atingimos com força hoje, Darrow. Doze explosões em Luna e Marte. Dancer e Titus foram vingados — diz Harmony. — E vamos atingi-los ainda com mais força nos próximos dias. Essa célula é apenas uma dentre muitas.

Ela balança a mão na escrivaninha e cenas ganham vida no holoDisplay. Âncoras de noticiário Violetas relatam a carnificina com vozes monótonas.

— Isso é pra me deixar impressionado? — pergunto. — Vocês são tão maus quanto eles. Vocês sabem disso, não sabem? Pouco importa a estratégia embutida nisso. Pouco importa vocês estarem provocando um dragão adormecido. Evey em pessoa matou mais de cem baixaCores poucas horas atrás.

— Não havia Vermelhos — diz Harmony. Então acrescenta, numa incrivelmente insincera reflexão tardia: — ou Rosas.

— Havia, sim!

— Então o sacrifício deles será lembrado — diz Harmony, solene.

— Vox clamantis in deserto — exclamo.

Mickey está sentado em silêncio, mas permite a si mesmo um sorrisinho.

— Tentando impressionar a gente com sua fala Dourada afrescalhada? — pergunta Harmony.

— Ele se sente como uma voz gritando no deserto. Berrando em vão — explica Mickey. — É latim simples.

— Então você sabe o que é o quê — diz Harmony. — Virou um Ouro e de repente tem todas as respostas.

— Não era por isso que eu devia me transformar num Ouro? Pra que a gente pudesse ver como eles pensam?

— Não. Era pra te posicionar pra atacar a jugular deles. — Ela cerra o punho e bate na palma da mão de metal para enfatizar suas palavras. — Não se comporte como se você tivesse nascido em condições melhores do que eu. Lembre-se, sei o que você é por dentro. Apenas um moleque assustado que tentou se matar quando era fraco demais pra salvar a mulher da forca.

Fico sentado onde estou, mudo.

— Harmony, ele está apenas tentando ajudar — diz Evey com delicadeza. — Sei que deve ser duro, Darrow. Você passou anos com eles. Mas precisamos feri-los. Escute, isso é tudo o que eles entendem. Dor. Dor é a maneira pela qual eles nos controlam.

Ela continua devagar.

— O primeiro dia que servi um Ouro, senti o maior prazer de toda a minha vida. Nem consigo te explicar isso. Foi como conhecer um deus em pessoa. Agora sei que o que senti naquele dia não foi prazer. Foi a ausência de dor. É assim que eles treinam os Rosas pra viver uma vida de escravidão, Darrow. Eles criam a gente nos Jardins com implantes no nosso corpo que enchem nossa vida de dor. Eles chamam esse dispositivo de Beijo do Cupido, a queimadura ao longo da coluna, a dor na cabeça. Nunca para. Nem mesmo quando você fecha os olhos. Nem quando você chora. Só para quando você obedece. Eles tiram o Beijo de você com o tempo. Quando você completa doze anos. Mas... você não tem como saber como é isso, o medo de que a coisa volte, Darrow.

Evey brinca com as unhas.

— Os Ouros precisam sentir dor. Eles precisam temer isso. E eles precisam aprender que não podem nos ferir sem que haja consequências. É isso o que Harmony está querendo dizer.

E eu pensava que os Ouros estivessem quebrados. Nós todos somos apenas almas feridas tropeçando na escuridão, tentando desesperadamente recompor nossa integridade física, na esperança de preencher os buracos que eles fizeram em nós. Eo impediu que eu tivesse esse fim. Sem ela, eu estaria como eles. Perdidos.

— Não se trata de feri-los, Evey — digo. — Trata-se de bater neles. Eo me ensinou isso, Dancer também. Estamos pulando pra tentar pegar as maçãs quando deveríamos estar cavando as raízes. O que adiantará jogar bombas neles? O que nos trará de bom os sucessivos assassinatos? Precisamos minar a Sociedade deles como um todo, erodir o estilo de vida deles, não isso.

— Você perdeu o foco da sua missão, Darrow — diz Harmony.

— Você me diz isso? — pergunto. — Como você poderia entender as coisas que eu vi?

— Exato. As coisas que você viu. Jantar com os mestres e esquecer dos escravos. Você pode se dar ao luxo de viver uma vida de teorias. E as coisas que eu vi? Nós estamos na merda. Estamos morrendo. E o que você está fazendo? Filosofando. Levando uma vida de ricaço. Transando com Rosas. Tive que ouvir a morte de Dancer. Tive que ouvir as porras dos berros vindo dos comunicadores enquanto os mestiços chegavam pra matar todo mundo. E não pude fazer nada pra salvá-los. Se você tivesse vivido essa experiência, saberia que fogo só pode ser combatido com fogo.

Sei aonde essas palavras nos levarão. Elas me abriram um buraco no estômago. Vão me deixar chorando na lama, Cassius em pé em cima de mim. É assim que isso vai terminar.

— Você pode ter perdido todo o seu amor, Harmony. Sinto muito por isso. Mas minha família ainda está numa mina. Eles não vão sofrer porque você está com raiva. O sonho da minha mulher dizia respeito a um mundo melhor. Não a um mundo sangrento. — Eu me levanto. — Agora quero falar com Ares.

O silêncio paira pesadamente sobre a sala.

— Dê um momentinho pra gente. — Harmony olha para Mickey e Evey. Ela observa Mickey se levantar com relutância. Ele para, como se para dizer algo para mim mas, sentindo os olhos de Harmony sobre si, reconsidera a ideia.

— Boa sorte, meu querido — diz ele apenas, dando um tapinha no meu ombro.

— Deixe-me ficar — diz Evey, aproximando-se de Harmony. — Posso ajudar com ele.

Harmony toca o lábio dela.

— Ares não permitiria.

— Depois do que fiz hoje... você não confia em mim? Não sou como o resto.

— Confio em você tanto quanto confio em qualquer Vermelho. Mas isso aqui é algo que não posso compartilhar com você. — Ela beija Evey suavemente nos lábios. — Vá.

Evey faz uma pausa na porta, olhando para mim.

— Não somos seus inimigos, Darrow. Você precisa saber disso.

A porta se fecha atrás dela e somos deixados sozinhos na sala de Mickey.

— Ela sabe? — pergunto.

— Sabe o quê?

— Que você a enviou numa missão suicida.

— Não. Ela não é como a gente. Ela confia.

— E você a sacrificaria?

— Eu sacrificaria qualquer um de nós pra matar um Inigualável Maculado. Tudo o que pegamos são Pixies e Bronzeados sem nenhum valor. Quero os verdadeiros tiranos.

— Você a está usando de um jeito pior do que Mickey a usava.

— Ela tem uma escolha — murmura Harmony.

— Tem mesmo?

— Chega. — Harmony se senta e faz um gesto para que eu faça o mesmo. — Dancer pode estar morto, mas Ares tem um plano pra você.

— Não. Não. Já estou cheio de ouvir os planos dele através de outras pessoas. Sacrifiquei três anos da minha vida por ele. Quero ver a cara de Ares.

— Impossível.

— Então pra mim chega.

— Como assim, pra você chega? Você está preso numa armadilha. Você não tem como sair da porra da sua casa em Lykos, tem? Só existe uma saída. Empenhe-se com bravura e se mantenha no curso.

As palavras dela me atingem com dureza. Não posso voltar. Minha solidão é inexprimível. Onde está meu lar? Para onde irei mesmo que tudo isso termine com os Ouros sendo reduzidos a pó?

— Você não vai se encontrar com Ares. Nem eu vi o rosto dele até hoje, Mergulhador-do-Inferno.

— Não viu? Você trabalhou pra ele quase tanto tempo quanto Dancer. Anos e anos. Como você, justo você, pode confiar nele?

— Confio nele porque Ares foi o primeiro a pôr uma arma na minha mão. Ele estava usando o capacete e empurrou um abrasador marca iv com um clipe de íon carregado na palma da minha mão.

— Ares é um homem? — pergunto.

— Quem se importa? — Ela puxa para cima um holoDisplay. Os elétrons rodopiam no ar, coalescendo para se transformar numa série de mapas. Reconheço a topografia. Marte. Vênus. Luna, acho. Dezenas de pontinhos vermelhos piscam ao longo de diagramas representando cidades, docas e uma dúzia de outros órgãos vitais. Bombas, eu me dou conta. Harmony olha para o mapa com ares de cansaço.

— Isso aqui é o plano de Ares. Quatrocentas explosões de bombas. Seiscentos ataques a depósitos de armas, instalações do governo, companhias elétricas e redes de comunicação. É o resumo dos Filhos de Ares. Anos de planejamento. Anos e anos levantando recursos.

Eu não fazia a menor ideia de que podíamos levar a cabo uma missão como aquela. Olho para o mapa, pasmo.

— As explosões de hoje tiveram a intenção de provocar uma reação. Deixar todos eles irritados e chateados. Queremos que se mobilizem. Se eles se mobilizarem, eles se condensam. É mais fácil queimar víboras-das-cavidades quando elas estão compactadas.

— Quando é que isso vai acontecer?

— Daqui a três noites.

— Três noites — repito. — Durante a conclusão do Encontro de Cúpula. Ele não vai querer que eu...

— Ele vai querer, sim. Daqui a três noites o Encontro de Cúpula terminará bem bonitinho com um baile de gala. Vinho, Rosas, sedas, todas essas merdas que vocês Testas-douradas adoram. Aquelas porras todas de Governadores, Senadores, Pretores, Imperadores, Judiciários de todos os cantos da Sociedade vão estar reunidos lá. Um sistema solar de monstros levados pelo poder da Soberana a um único lugar. Vai demorar dez anos até que algo assim volte a acontecer. Não há como os Filhos terem acesso à festa, mas você pode entrar onde não podemos. Você pode desferir o golpe que não podemos.

Sinto as palavras como um trem percorrendo um túnel.

— Quando todos eles estiverem bem juntinhos na festa. Quando a Soberana se levantar pra fazer seu discurso, você vai matar os filhos da puta daqueles Testas-douradas com uma bomba de rádio que vamos esconder em você. Mickey e uma equipe de seres robotizados construíram o aparato. Assim que a gente confirmar que a bomba foi detonada através do dadoGravador que plantaremos em você, vamos tocar o terror em todo o sistema. Vamos detonar todo mundo.

Esse é o resumo de tudo o que fiz?

— Deve haver uma outra maneira.

— Sempre houve dois planos, Mergulhador-do-Inferno. Esse e você. Ares e Dancer diziam que você era nossa esperança, nossa chance em outra trilha. Eles se gabavam como se fossem meninos de que você podia destruir os Ouros a partir de dentro. Mas você fracassou, como eu disse que fracassaria. Você vai dizer que há sangue nas mãos de Evey. Bom, há sangue nas suas também.

— Você nem sabe o sangue que tenho nas mãos, Harmony. Não sou nenhuma porra de santo, não. Mas o ataque de Evey foi criminoso.

— O único crime é perdermos.

Eu me sinto despedaçado.

— Há mais coisas em jogo aqui do que você pode entender. Não podemos encarar os Ouros. Independente do golpe que a gente conseguir desferir, eles vão erradicar a gente assim! — Estalo os dedos.

— Então você não vai fazer a coisa.

— Não, eu não vou fazer a coisa, Harmony.

— Então a guerra vai começar sem sua ajuda — diz ela. — A gente tinha dois Filhos prontos pra tentar entrar no baile de gala. Eles não são Ouros, então pode apostar que vão ser pegos e retalhados até virarem tiras de carne numa cela de tortura Pretoriana antes de completar a missão. O que significa que a líder dos Ouros vai continuar viva e nossas chances diminutas de vencer essa tempestade de merda vão encolher de forma considerável. Tudo isso porque você não confia em Ares.

— Que se dane. Ares devia ter me dito isso em pessoa se quisesse minha ajuda!

— Como? Ele está em Marte preparando a revolução. Não há meios de ele se comunicar. Eles monitoram tudo. Como ele poderia entrar em contato com você sem te expor? — Ela curva o corpo para a frente, os dentes inferiores expostos como os de uma fera. — Diga-me uma coisa, Darrow. Você ao menos faz ideia do quanto eles roubaram de você?

Há algo no tom de voz dela.

— O que você quer dizer com isso?

— O que eu quero dizer com isso está bem aqui. — Ela aciona uma série de ordens no holoCubo e aparece uma imagem das minas de Lykos. Meu sangue congela. — A gravação da morte de Eo, aquela que pirateamos e transmitimos...

Meu coração retumba na garganta.

— Ela não estava completa. — Harmony aperta play e a sala ao nosso redor se torna a mina. Somos parte de um holo tridimensional. Trata-se de um copião, não o troço que se assiste nos noticiários, não o troço que vi centenas de vezes. Ela mostra o enforcamento sem uma trilha sonora.

Ouço meus próprios gritos à medida que os Cinzas espancam o garoto que eu era no passado. Chorando na multidão. O silêncio bizarro da filmagem não editada. A cabeça da minha mãe pende e tio Narol cospe na poeira. Kieran, meu irmão, cobre os olhos dos filhos. Pés se mexem. Dio, a irmã de Eo, sobe aos tropeções no cadafalso de metal. Sapatos raspam a ferrugem. Soluços. Então Dio se curva na direção da minha mulher. Eo está tão pequena, tão pálida e magra, pouco mais do que a fumaça oriunda da garota flamejante de quem me lembro. Seus lábios se movem. Mais uma vez, não ouço isso, assim como não ouvi naquele dia. De súbito, Dio soluça descontroladamente e se gruda em Eo. O que foi dito ali?

— Use o equipamento. É pra isso que ele está aí, certo?

Imaginei milhares de vezes, mas nunca tive acesso a essa filmagem. Nunca soube como poderia encontrá-la sem levantar suspeitas. E a ideia me apavorava, da mesma maneira que me apavora agora — que palavras eram aquelas que eu não era forte o suficiente para ouvir? O que Dio pôde suportar que eu não poderia?

Nas tomadas dos noticiários que foram pirateadas eles nem mostram Dio. Mas aqui, com o copião, posso rebobinar. Faço isso. Posso amplificar o som. Faço isso. Assisto àquilo acontecer de novo: a cabeça da minha mãe pende. Narol cospe. Kieran cobre os olhos dos filhos. Pés se mexem. Dio sobe no cadafalso. Todo o som é aumentado. Separo os ruídos com os controles e escuto o que minha mulher disse a Dio.

— No nosso quarto há um bercinho que fiz. Esconda-o antes que Darrow volte.

— Um bercinho... — murmura Dio.

— Ele não pode saber nunca. Isso o deixaria destroçado.

— Não diga isso, Eo. Não diga.

— Estou esperando um filho.


10

Destroçado

Fico destroçado.

Sentado num vácuo. Mirando minhas mãos. As mãos que não puderam salvar minha mulher, meu filho. Ela estava certa. Eu não era forte o suficiente para suportar a verdade do segundo sacrifício dela. Eo poderia ter continuado viva. Eo poderia ter nos dado o filho que sempre desejamos. Mas ela imaginava que o futuro não era digno do seu silêncio. Eu não era digno do seu silêncio...

Sinto algo bem no fundo do peito, uma dor oca e fria. Como se uma escuridão tivesse se aberto no fosso da minha alma mesmo enquanto meu corpo enrijece e encolhe em meio ao pesar. Peso um milhão de quilos. Meus ombros despencam. O peito se comprime. Meus dedos se agarram uns aos outros. Engraçado pensar que estas mãos têm estado comigo durante todo esse tempo. Elas tocaram os lábios de Eo. Ajudaram a puxar os tornozelos dela. Elas a enterraram naquele solo. Mas elas não enterraram apenas Eo, não é mesmo?

Não. Elas enterraram uma outra vida. Uma vida não nascida, morta antes de viver. E nem mesmo fiquei sabendo da sua existência. Meu pranto desconheceu a maior das injustiças. Fracassei com ambos. O vídeo amplificado é exibido mais uma vez.

— Estou esperando um filho — diz ela a Dio no cadafalso. — Estou esperando um filho.

Repasso a cena dezenas de vezes, sentindo-me murchar até me transformar numa avenida de pesar.

Os Ouros não mataram apenas Eo. Mataram o que sempre desejei ser — um marido e um pai. Se ao menos eu a tivesse impedido. Se ao menos não tivesse ficado emburrado como uma criança quando perdemos a Láurea, ela não teria pensado em me levar para o jardim. Se ao menos eu tivesse tido a força para fingir que perder a Láurea não me incomodava.

Toda a família que eu poderia ter tido. Uma esposa. Filhos. Filhas. Netos e netas. Eles foram chacinados antes mesmo de existir. Eo jamais segurará nossa filha. Ela nunca beijará nosso filho para que ele durma e sorrirá para mim enquanto as mãozinhas do bebê agarram meu dedo. Sou tudo o que resta daquela família que poderia ter existido. Uma sombra escura do homem que eu deveria ter sido.

A raiva aumenta. Tínhamos uma chance e ela não existe mais. Tudo o que eu queria desapareceu, por minha causa e por causa deles. Das leis deles. Da injustiça deles. Da crueldade deles. Eles obrigaram uma mulher a escolher a morte para ela e para o seu filho não nascido em vez de uma vida na escravidão. Tudo isso pelo poder. Tudo isso para que eles pudessem manter seu mundinho perfeito.

— Nessa época você não era forte o bastante — diz Harmony. — Agora você é, Mergulhador-do-Inferno? — Olho para ela, as lágrimas embaçam minha visão. Seus olhos duros ficam suaves por minha causa. — Eu tive filhos, no passado. A radiação comeu meus filhos por dentro, e eles nem deram remédios pra lhes aliviar a dor. Nem mesmo consertaram o vazamento. Disseram que não havia recursos suficientes. Meu marido apenas ficou lá sentado, acompanhando a morte deles. No fim, a mesma coisa o levou. Ele era um homem bom. Mas os bons morrem. Pra que eles sejam libertados, pra que sejam protegidos, precisamos ser selvagens. Então, pode me mandar a maldade, pode me mandar a escuridão. Pode fazer de mim a porra do demônio que for pra conseguirmos ao menos o mais tênue raio de luz que seja.

Eu me levanto e a abraço enquanto me lembro dos verdadeiros horrores que nossa espécie enfrenta. Será que eu havia esquecido de fato? Sou um filho do inferno, e passei tempo demais no céu deles.

— O que Ares quiser que eu faça, eu farei.

— Pliny mandou a piranha — sibila o Chacal enquanto os médicos Amarelos retiram com cuidado a pele queimada do seu braço e reaplicam novas culturas de crescimento. — Não foram os Filhos de Ares. Eles não iriam matar tantos baixaCores. Isso é contra o perfil deles. Talvez tenha sido Pliny. Ou os Pretorianos da Soberana usando disfarces.

As luzes das naves cruzando o céu refulgem através do vidro. Ele xinga e grita com seus serviçais para que coloquem o blackout nas janelas. Cinzas me trouxeram para o seu arranha-céu particular em vez de me levarem para a Cidadela, como eu havia solicitado. O lugar está recheado de mercenários. Ele prefere Cinzas a Obsidianos, exceto aquele Manchado, ao que parece. Sou o único Ouro além dele, o que demonstra a extensão da confiança do Chacal. Seu nome decerto traria parasitas suficientes para encher uma cidade, mas ele se sente confortável no seu isolamento. Como eu.

— Não poderia ter sido Victra? — pergunto. — Ela não ficou lá...

— Ela já provou sua lealdade. Victra não iria usar uma bomba. E ela está apaixonada por você. Não foi ela.

— Apaixonada por mim? — pergunto, sobressaltado.

— Você é cego como um Azul. — Ele bufa, mas não fala mais nada sobre isso. — Nossa aliança deve permanecer secreta até que a gente tenha saído desta maldita lua, o que significa que você não esteve naquela taverna. Se Pliny estivesse a par da extensão dos seus planos, teria sido mais contundente. Acho que ele tinha apenas a mim como alvo. Portanto, você vai voltar à Cidadela. Finja que nada aconteceu. Vou continuar meu plano com os chefes das organizações e depois vou comprar seu contrato no fim do Encontro de Cúpula.

Momento este em que o mundo deles conhecerá uma mudança.

Eu me viro para deixá-lo, mas sua voz me segura na porta.

— Você salvou minha vida. Apenas uma outra pessoa fez isso até hoje. Obrigado, Darrow.

— Diga pra sua nova pele crescer com mais rapidez. Você não vai querer perder o baile de gala no fim do encontro.

Os três dias seguintes passam numa bruma, minha mente em Eo e no que perdemos. Não consigo escapar da tristeza. Ela me assola como uma praga mesmo enquanto quase morro de tanto me exercitar no ginásio da propriedade. Não perco tempo com conversa fiada. Eu me afasto dos meus amigos. Nada disso tem importância. Não para mim. A vida perde a cor na presença da dor. Theodora repara e tenta dar o melhor de si para aliviar minha amargura, inclusive sugerindo que eu me distraia com Rosas do Jardim da Cidadela.

— Melhor você, dominus, do que algum selvagem das Gigantes Gasosas — diz ela.

Notícias das explosões varrem a Cidadela de ponta a ponta, dominando o noticiário. A Sociedade explora bem sua parte — transmitindo o alívio das pessoas com a chegada do auxílio. Enviando instruções sobre como lidar com uma crise potencial. Psicólogos Amarelos analisam Ares na tela, concluem que um trauma sexual latente na sua juventude faz com que ele seja agressivo com o intuito de reconquistar o controle do seu mundo. Atores e comediantes Violetas fazem campanha para angariar recursos para as famílias que perderam entes queridos. Quicksilver em pessoa se oferece como voluntário para doar 3% da sua fortuna pessoal para os esforços de alívio. Comandos Obsidianos e Cinzas atacam bases em asteroides onde Filhos de Ares “treinam”. Agentes antiterroristas Cinzas participam de entrevistas coletivas dizendo que apreenderam os responsáveis, decerto alguns Vermelhos que eles tiraram de uma das minas ou das favelas de Luna.

É uma farsa, e os Ouros a exploram muito bem. Eles se escondem das câmaras e fazem com que a coisa pareça uma luta de todas as Cores contra terroristas Vermelhos. Isso não é uma luta dos Ouros. É uma luta que pertence a toda a Sociedade. Além do mais, a Sociedade está vencendo porque nosso sacrifício e obediência permitem que as pessoas de bem prosperem. Conversa pra boi dormir do cacete.

No entanto, a culpa precisa ser atribuída a alguém. Por isso, o ArquiGovernador é chamado a dar satisfações concernentes ao que está sendo feito para lidar com a situação. Como os Filhos se espalharam de Marte a Luna?, eles perguntam. Os ninhos de vespa Dourados foram remexidos, como eu disse que seriam, mas ainda assim o baile de gala está confirmado. Observo Ouros jogar seus joguinhos de intriga e diplomacia, surgindo de súbito em bailes de gala e conferências e encontros de cúpula, sem se comprometer a participar de jogos sujos com terroristas. Eles são protegidos, escudados do horror.

Isso me perturbaria, mas agora eles são sombras para mim. Como se já tivessem caído em algum canto remoto da minha memória.

Encosto a bomba no peito, lamentando-me. É da lavra de Mickey. Uma cópia do Pégaso que usei no Instituto, que continha os cabelos de Eo e agora está guardado em algum lugar seguro junto com meus outros pertences pessoais. Tudo o que tenho a fazer é torcer sua cabeça e o objeto se transforma numa bomba. O anel que eles me deram vai ativá-la.

Eu me afasto dos meus amigos, de Victra. Ela perguntou a Roque o que está acontecendo comigo. Sei que ele responderá que sou como o vento, uma criatura de esquisitices e estados de espírito. Ou algo assim. Ele se aproxima de mim, visitando meus aposentos quando estou dormindo, tentando lutar comigo no ginásio. Mas não consigo sorrir com ele ou escutar sua voz suave lendo poemas ou discutindo filosofia ou mesmo contando piadas. Não posso permitir a mim mesmo sentir algo por Roque, pois sei que ele logo, logo estará morto. Tento matá-lo no coração antes de matá-lo em carne e osso.

Posso adicioná-lo à lista daqueles que já enviei para o túmulo?

Por fim, encontro minha resposta na noite do baile de gala, quando Theodora traz minha roupa passada da lavanderia. Ela não diz nada que me faça lembrar de Roque. Não oferece nenhuma sabedoria energética. Ao contrário, Theodora faz algo que jamais a vi fazendo: ela comete um erro. Enquanto ajeita meu uniforme numa cadeira, ela esbarra numa taça de vinho que está sobre uma mesa próxima. O vinho cai na manga do meu uniforme branco. O que vejo lampejando nos olhos dela me dá um calafrio: terror. Terror do tipo que talvez um cervo sentisse ao mirar a chegada de um aerocarro. Ela extravasa uma torrente de desculpas como se eu fosse espancá-la se ela não o fizesse. É necessário um momento para que ela se recomponha, para que o lampejo de pânico se dissipe. Quando isso acontece, ela se senta no chão, passando um paninho no uniforme em silêncio.

Não sei o que fazer. Fico lá parado por um momento com uma sensação das mais estranhas antes de pôr a mão no ombro dela e lhe dizer que está tudo bem. É nesse momento que ela começa a chorar em grandes soluços arquejantes que fazem tremer seus pequenos ombros. Ela recua ao sentir meu toque e se recompõe, dizendo-me que terei de usar preto em vez de branco. Ela pode não saber o que está prestes a acontecer, mas consegue sentir isso em mim, no ar.

Enquanto os outros lanceiros brincam uns com os outros, tomam banhos de microabrasão e se consultam com estilistas para se prepararem para o baile de gala, amarro os cadarços das minhas grossas botas militares com dedos trêmulos. Nunca fui bom em salvar meus amigos. Parece que sempre os arrasto para os caminhos do perigo. Sevro, acredito, ainda está vivo apenas por causa da distância que nos separa. Fitchner sempre temeu que eu pudesse matar seu filho. Dizia que o fio da minha vida era tão forte que desgastava todos aqueles ao redor dela. Agora, vendo Theodora desse jeito... isso me faz lembrar o quanto somos frágeis e complicados. Não sei por que ela chorou. Algum trauma do passado? Alguma sensação do que está por vir? Não saber faz com que eu me lembre do abismo em que me encontro em relação às pessoas ao meu redor. Sou calado, frio, mas Roque é afável... ele saberia o que dizer.

Bato na porta dele diversas vezes antes que o séquito de Augustus esteja pronto para partir da villa para o baile de gala. Não há resposta. Abro a porta e encontro meu amigo sentado na cama, segurando com delicadeza um livro antigo pela lombada. Suas feições lisas se ondulam num sorriso quando ele vê que sou eu.

— Pensei que fosse Tactus vindo me implorar algumas doses de estimulante antes do baile de gala. Ele sempre acha que, só porque estou lendo, não estou fazendo coisa alguma. Não existe praga maior pra uma pessoa introvertida do que as pessoas extrovertidas. Sobretudo aquela besta. Qualquer dia desses, ele vai dar de cara no chão.

Forço uma risada.

— Pelo menos Tactus é sincero a respeito dos vícios dele.

— Você já esteve com os irmãos dele? — pergunta Roque. Balanço a cabeça em negativa. — Eles fazem Tactus parecer um cordeirinho.

— Maldição dos infernos! — praguejo. Encosto na moldura da porta. — Tão ruins assim?

— Os irmãos Rath? Eles são terríveis. Terrivelmente ricos. Terrivelmente talentosos. E sua principal virtude é a habilidade que todos eles têm pra pecar. São verdadeiros prodígios nisso. — Roque dá um risinho conspiratório. — Se você acredita em boatos, e eu adoro boatos, diga-se de passagem, eles me fazem lembrar de Byron e Wilde. Os irmãos Rath abriram um bordel em Agea quando tinham catorze anos. Negócio classudo até eles começarem a arranjar experiências mais... customizadas.

— Aí aconteceu o quê?

— Filhos e filhas arruinados. Insultos. Duelos. Herdeiros mortos. Dívidas. Veneno. — Ele dá de ombros. — É a família Rath. O que você esperaria daqueles patifes? É por isso que todo mundo ficou tão surpreso quando Tactus se aproximou de um Ouro de Ferro como você — esclarece Roque. — Você sabe que os irmãos dele ficam tirando sarro por Tactus ficar na sua sombra. É por isso que ele é sempre tão sarcástico. Quer ser como você, só que não consegue. Aí, ele lança mão das suas defesas costumeiras. — Ele franze o cenho. — Às vezes, sinto que você nos entende melhor do que nós próprios nos entendemos. Aí, outras vezes é como se você não desse a mínima. — Roque curva a cabeça na minha direção quando percebe que não digo nada. — O que é?

— Nada.

— Você não é de dar um nada como resposta. — Ele põe o livro no peito e dá um tapinha na beirada da cama, atraindo-me para o quarto. — Sente-se, por favor.

— Vim aqui porque queria pedir desculpas — digo muito devagar, sentando na beirada da cama. — Tenho estado distante nesses últimos meses, em especial nesses últimos dias. Acho que não fui justo com você. Afinal, você sempre foi meu amigo mais leal. Bem, você e Sevro, mas ele não para de me enviar fotos estranhas pela rede.

— Mais unicórnios?

Eu rio.

— Acho que ele tem algum problema.

Roque dá um tapinha na minha mão.

— Obrigado. Mas você está parecendo um cachorro pedindo desculpas por balançar o rabo. Você é sempre distante, Darrow. Não precisa se desculpar por ser como é, pelo menos não comigo.

— Mais distante, quem sabe?

— Quem sabe — concorda ele, consentindo com a afirmação. — Todos nós temos nossas marés interiores. Elas sobem, descem. — Ele dá de ombros. — Não dá muito pra gente ter controle. As coisas, as pessoas que nos orbitam fazem isso pelo menos mais vezes do que gostaríamos de admitir. — Depois de me observar por um momento, ele franze a testa, contemplativo. — Isso tem a ver com Mustang? Sei que foi difícil abandoná-la, independentemente do que você disse na época. Você devia ir atrás dela enquanto a gente está aqui. Sei que você sente falta dela. Admita isso.

— Não sinto.

— Mentira, mentira!

— Eu já te disse mais de cem vezes, não vamos falar sobre ela.

— Certo, certo. Então você está preocupado, não está? É com o leilão? — Ele faz uma pausa, sorrindo e me observando. — Você não deveria estar. Já acertei essa questão. Vou fazer um lance por você.

— Roque, você não tem o dinheiro necessário.

— Você sabe quanto um Pixie pagaria pra conseguir um Inigualável com meu pedigree e contatos que se endividasse com eles? Milhões. Eu podia ir até Quicksilver se precisasse. Ele empresta a Ouros o tempo todo. A questão é a seguinte: vou ter o dinheiro, mesmo que meus pais não me ajudem. Portanto, não se preocupe, irmão. — Ele me cutuca com o pé. — A Casa Marte tem que significar alguma coisa, não é?

— Obrigado — digo, engasgando com as palavras, incapaz de realmente captar o que ele fez por mim. E por quê? Isso põe a cabeça dele a prêmio. Isso o deixa em perigo e irrita seus pais. — É a primeira vez que alguém ao menos menciona o leilão na minha frente.

— Eles têm medo de que sua má sorte seja contagiosa. Você sabe como são as coisas. — Ele faz uma pausa, esperando, porque me conhece muito bem. — Tem alguma outra coisa. Não tem?

Balanço a cabeça.

— Você já... — As palavras somem da minha boca. — Você já se sentiu perdido alguma vez? — A pergunta paira no ar entre nós dois, íntima, estranha apenas para mim. Ele não escarnece como Tactus e Fitchner fariam, ou coça o saco como Sevro, ou dá uma risada como Cassius talvez desse, ou ronrona como Victra faria. Não tenho certeza do que Mustang poderia fazer. Mas Roque, apesar da sua Cor e de todas as coisas que o tornam diferente, desliza sem pressa um marcador para dentro do livro e o deposita em cima da mesinha de cabeceira ao lado da cama com dossel, ganhando tempo e permitindo que uma resposta aflore entre nós. Movimentos pensativos e orgânicos, como eram os de Dancer antes de morrer. Há uma imobilidade nele, vasta e majestosa, a mesma imobilidade de que me lembro no meu pai.

— Quinn uma vez me contou uma história. — Ele espera que eu dê um gemido de queixa diante da menção de uma história e, quando se dá conta de que não faço isso, seu tom de voz adquire uma gravidade ainda mais profunda. — Uma vez, nos dias da Velha Terra, havia dois pombos que estavam muito apaixonados um pelo outro. Naqueles tempos, criavam tais animais pra levar mensagens através de grandes distâncias. Esses dois nasceram na mesma gaiola, criados pelo mesmo homem, mas foram vendidos no mesmo dia a homens diferentes, nas vésperas de uma grande guerra. Os pombos sofreram ao ser afastados um do outro, cada um incompleto sem seu amante. Seus mestres os levavam pra todos os lugares, e os pombos temeram jamais voltar a se ver, pois começaram a perceber como o mundo era vasto e como eram terríveis as coisas nele. Por meses e meses eles carregaram mensagens pros seus mestres, voando sobre linhas de batalha, através do ar por sobre homens que se matavam uns aos outros por terra. Quando a guerra acabou, os pombos foram libertados pelos seus mestres. Mas nenhum dos dois sabia pra onde ir, nenhum dos dois sabia o que fazer, então cada um deles voou pra casa. E lá eles se reencontraram, já que sempre foram destinados a regressar às suas casas e encontrar, em vez do passado, seu futuro.

Ele cruza as mãos com delicadeza, como um professor que alcançou seu ponto.

— Então eu me sinto perdido? Sempre. Quando Lea morreu no Instituto... — Seus lábios se viram delicadamente para baixo. — Quando Lea morreu eu estava numa floresta escura, cego e perdido como estava Dante diante de Virgílio. Mas Quinn me ajudou. A voz dela me chamou pra me tirar da miséria. Ela se tornou meu lar. Como ela mesma diz: “O lar não é o local de onde você vem, é o local onde você encontra a luz quando tudo fica escuro”. — Ele segura a ponta dos meus dedos. — Encontre seu lar, Darrow. Ele pode não estar no passado. Mas encontre-o, e você nunca mais vai ficar perdido.

Sempre pensei em Lykos como meu lar. Em Eo como meu lar. Talvez seja para lá que eu esteja indo agora. Para vê-la. Para morrer e encontrar meu lar outra vez no Vale com minha mulher. Mas, se isso for verdade, por que não estou cheio? Por que o vazio cresce dentro de mim quanto mais eu me aproximo de Eo?

— Está na hora de ir — digo, levantando da cama.

— Com a mesma certeza que sou seu amigo — diz Roque, também começando a se levantar —, você vai se recuperar disso. Não somos nossa estação na vida. Nós somos nós, a soma do que fizemos, do que queremos fazer e das pessoas que mantemos perto de nós. Você é meu amigo querido, Darrow. Lembre-se disso. Independente do que aconteça, vou te proteger como tenho certeza de que você me protegeria se eu viesse a precisar.

Eu o surpreendo ao segurar sua mão e mantê-la apertada por um momento.

— Você é um bom homem, Roque. Bom demais pra sua Cor.

— Obrigado. — Roque estreita os olhos para mim, enquanto solto sua mão e ele desamarrota o uniforme. — Mas o que é que você quer dizer com isso?

— Acho que nós dois poderíamos ser irmãos — digo. — Se essa fosse uma vida diferente.

— Por que a gente precisa de uma outra vida? — Então ele vê a seringa automática na minha mão esquerda. Suas mãos são lentas demais para me deter, mas seus olhos são rápidos o bastante para ficar arregalados de um medo confiante, como o de um cão leal ao ser posto para dormir no colo do seu dono. Ele não entende, mas sabe que há um motivo, mesmo que o medo ainda surja, a traição que parte meu coração em milhares de pedaços.

A seringa penetra o pescoço de Roque e ele afunda devagar na cama, os olhos em devaneio, fechando-se. Quando ele acordar, todos com quem trabalhou durante esses últimos dois anos estarão mortos. Ele lembrará o que fiz com ele depois que me disse que eu era seu amigo mais próximo. Ele saberá que eu sabia o que aconteceria no baile de gala. E, mesmo que eu não morra esta noite, mesmo que eles não descubram que fui o responsável pela detonação da bomba por outros méritos, salvar a vida de Roque significa que serei descoberto. Não há como voltar atrás.


11

Vermelho

Esta noite, vou matar dois mil representantes do que há de maior na humanidade. Contudo, caminho ao lado deles agora, sem me comover com decadência ou com condescendência como jamais deixei de me comover antes. A arrogância de Pliny não desperta ninguém do meu sangue. O imodesto vestido de Victra não me desconcerta, nem mesmo quando ela desliza seu braço no meu depois que Tactus oferece o seu. Ela sussurra no meu ouvido o quanto é boba por haver se esquecido de vestir sua roupa de baixo. Eu rio como se fosse uma piada engraçada, tentando mascarar a frieza que tomou conta de mim.

Isso é estática.

— Tenho a impressão de que Darrow merece um pouco de consolo antes de partir — diz Tactus com um suspiro. — Você viu Roque, meu bom-homem?

— Disse que não estava se sentindo bem.

— Isso é bem a cara do Roque. Talvez abraçado a algum livro. Eu devia ir pegá-lo.

— Se ele quisesse vir, teria vindo — digo.

— Eu quero que ele venha — responde Tactus. Ele dá de ombros para os outros lanceiros que se posicionam perto do nosso mestre.

— Se você precisa tanto assim dele, vá lá pegá-lo — digo, taticamente.

Ele recua.

— Eu não preciso de ninguém no meu braço. Mas, se eu não te conhecesse bem, diria que você ainda está chateado com toda aquela história da base de escape.

— Você está se referindo ao momento em que lançou a base de escape sem ele? — pergunta Victra. — Por que isso poderia deixá-lo chateado? — Mesmo agora aquele ato de traição me incomoda.

— Pensei que ele estivesse morto! Foi pura e simplesmente um cálculo. — Ele me dá um tapa no ombro com seu punho e balança a cabeça na direção de Victra. — Você entende. Eu tinha que cuidar da mocinha aqui.

— Ela é uma florzinha delicada — digo, puxando-a para longe dele.

— Pesar pro solitário deus do mar — cantarola Tactus. — Seus amigos, como os meus, o deixaram pra lá!

Victra ajusta a espaldadeira de ouro no ombro, que descai pelo seu braço numa série de punhos dourados.

— Aquela gracinha de menino é tão vaidoso que podia dar um jeito de fazer com que uma tempestade tivesse a ver com ele. — Ela repara minha falta de interesse. — O leilão só vai começar depois do baile de gala. — Ela faz um aceno de cabeça na direção de um aerocarro que está aterrissando. — Bem, eu estava imaginando quando ele apareceria.

O Chacal sai do veículo, a pele um pouco rosada apenas em algumas partes. Seus Amarelos trabalharam bem nele. Ele faz uma mesura ligeira ao seu pai, ignorando os murmúrios dos assistentes.

— Papai — diz ele —, pensei que seria adequado a família Augustus chegar ao baile de gala com pelo menos um dos seus filhos. Precisamos apresentar uma frente unida, afinal de contas.

— Adrius. — Augustus examina o filho em busca de alguma coisa a criticar. — Eu não estava ciente do fato de que você desfrutava de banquetes nos últimos tempos. Não tenho certeza se o que será servido é do seu gosto.

O Chacal ri de maneira teatral.

— Talvez seja por isso que meu convite nunca foi entregue! Ou será que tem a ver com o furor em torno dos ataques terroristas? Pouco importa. Estou aqui agora, e cada vez mais ansioso pra participar de tudo ao seu lado. — O Chacal entra na fila, sorrindo muito para todos, ciente de que seu pai jamais daria início a rusgas familiares em público. Ele me oferece um risinho afetado particularmente sinistro, um risinho que os outros testemunham e do qual se afastam. Tudo encenação. — Vamos?

Redobro a atenção e falo pouco enquanto sigo na companhia de Victra no fim da longa procissão que serpenteia ao longo dos labirínticos corredores de mármore até os Jardins da Cidadela a uns dois quilômetros de distância da nossa villa. A torre da Soberana se projeta do chão desse jardim, uma grandiosa espada de dois quilômetros de altura penetrando um bem cuidado jardim com roseiras e fontes.

A água corre pelo jardim através de mil trilhas tortuosas. Riachos borbulhantes com peixes coloridos levam a tranquilas lagoas onde sereias Rosas entalhadas nadam debaixo de árvores floridas repletas de gatos-macacos. Esguios tigres-linces repousam sob os galhos. Violetas perambulam por esses vívidos bosques, adejando aqui e ali como se fossem mariposas de verão, e seus violinos ecoam num fantasmagórico concerto. Trata-se de um retrato dos jardins de Baco sem a obscena sexualidade que os gregos consideravam tão hilariante — Pixies achariam graça dessa história depravada, mas Inigualáveis não. Pelo menos não em público.

Avistamos outras procissões através das árvores. Vemos seus estandartes, grandes coisas brilhantes dotadas de tecido e metal. Nossa crista vermelha e dourada de um leão ruge em silencioso desafio. Um corvo num campo de prata marca a passagem da família Falthe sobre uma ponte de paralelepípedos. Olhamos o senhor deles e seus lanceiros com cautela. Por uma questão de princípio, todos carregam lâminas, mas outros aparatos de tecnologia são proibidos — nada de datapads, nada de gravBotas, nada de armaduras. Isso aqui é um assunto clássico.

A torre se escancara acima de nós. Musgos púrpura, vermelhos e verdes sobem pela grande estrutura com trepadeiras de milhares de tons, envolvendo o vidro e a pedra como os dedos de ávidos solteiros em torno do pulso de uma rica viúva. Seis grandiosos elevadores levam famílias para o topo da torre.

Belos serviçais Rosas e lacaios Marrons trabalham nos elevadores, todos de branco. Triângulos dourados da Sociedade decoram suas fardas de libré.

O elevador é quadrado e de mármore, e equipado com gravImpulsionadores. Ele se encontra no meio de uma clareira onde a grama verde voa ao vento. Diversos Cobres avançam às pressas para falar com Pliny que, na condição de político, fala pelo ArquiGovernador. Parece que há alguma confusão. A família Falthe entra no elevador antes de nós.

— Isso aqui é uma armadilha social — murmura Augustus ao seu pupilo favorito. Leto se aproxima. — Esses tolos. Vejam só como eles fingem se tratar de um acidente. Logo, logo eles vão nos dizer que devemos usar o elevador com os Falthe, quando na verdade eles deveriam rastejar pra que entrássemos antes deles.

— Será que não poderia se tratar de um acidente mesmo? — pergunta Leto.

— Não em Luna — diz Augustus, cruzando os braços. — Tudo aqui é política.

— Os ventos mudam de direção.

— Eles estão mudando já faz algum tempo — murmura Augustus. Seu rosto bem definido avalia seus assistentes, como se fazendo a contabilidade das lâminas que eles carregam consigo. Alguns deles as levam enroscadas na lateral do corpo. Outros as usam ao redor dos antebraços como faço com minha lâmina emprestada. Tactus e Victra as usam como cinturões.

— Quero três lanceiros atendendo o ArquiGovernador o tempo todo — anuncia Leto, tranquilo. Fazemos que sim com a cabeça e o grupo se compacta. — Nada de bebida.

Tactus geme um protesto.

Inexpressivamente, o Chacal observa Leto dando ordens.

Pliny regressa da sua conversa com o staff da Cidadela. Não há a menor dúvida de que teremos de compartilhar o elevador com os Falthe. Mas algo mais ameaçador preenche o ar. Nossos Obsidianos e Cinzas são deixados para trás.

— Todas as famílias devem proceder ao baile de gala sem assistentes — diz ele. — Nada de guarda-costas.

Murmúrios são ouvidos em meio às nossas fileiras.

— Então a gente não vai — diz o Chacal.

— Não seja bobo — responde Augustus.

— Seu filho está certo — diz Leto. — Nero, o perigo...

— Alguns convites são mais perigosos quando são recusados do que quando são aceitos. Alfrún, Jopho. — Augustus faz um movimento indicando um corte para os seus Manchados. Os dois homens acenam em silêncio com a cabeça e se juntam aos outros ao lado do grupo. Genuína emoção (preocupação) enche seus olhos sinistros à medida que eles se juntam aos Falthe no elevador e ascendem. O chefe da casa Falthe sorri. Seu posto na hierarquia melhora.

O baile de gala na cobertura da torre da Soberana tem como modelo uma terra encantada invernal. A neve cai de nuvens invisíveis. Ela cobre os pinheiros semelhantes a lanças de florestas feitas pelo homem e congela meus cabelos com flocos que têm sabor de canela e laranja. Pequenos halos oriundos da minha respiração dançam à minha frente.

A aparição do ArquiGovernador é notada com toques de trombetas. Tactus e alguns dos jovens lanceiros se dispõem à frente dos Falthe, obstruindo-lhes a passagem, de modo que Augustus possa entrar no baile em primeiro lugar. Um corpo em tons pálidos de ouro e vermelho-sangue, nós nos movemos para o interior de uma grandiosa paisagem de sempre-verdes. O orgulho da cultura Áurea nos espera. Um terrível mar de rostos que já viram coisas com que os primeiros homens jamais puderam nem mesmo sonhar. É possível ver vislumbres do nosso passado compartilhado no Instituto. Os encantadores de Apolo. Os matadores de Marte. As beldades de Vênus.

Abaixo do espigão, a Cidadela se espalha, e além daqueles campos cintilam as cidades com todos os seus milhões de luzes. Ninguém jamais adivinharia que por baixo daquele mar de joias resplandecentes pudesse se encontrar à espreita uma segunda cidade de sujeira e pobreza. Mundos dentro de mundos.

— Tente não perder a cabeça — sussurra para mim Victra, passando uma mão em forma de garra pelos meus cabelos antes de ir falar com amigos da Terra.

Caminho na direção da mesa. Grandes candelabros pairam acima de nós em pequenos gravImpulsionadores. Luzes cintilam. Vestidos se movem como líquido ao redor de perfeitas formas humanas. Os Rosas servem iguarias e destilados finos em travessas e em taças de gelo e vidro.

Centenas de mesas longas se espalham concentricamente ao redor de um lago congelado ao centro da terra invernal. Os Rosas usam patins para servir aqui. Debaixo do gelo, formas se movem. Não perversidades sexualizadas como as que seriam vistas entretendo Pixies e baixaCores. Mas criaturas místicas com longos rabos e escamas que cintilam como estrelas. Numa outra vida, seria o sonho de Mickey ter uma criatura sua escalada para participar desse festim. Sorrio para mim mesmo. Imagino eu que, de certa forma, ele já conseguiu isso.

As mesas não têm nomes ou números. Em vez disso, encontramos nossos lugares ao vermos um grandioso leão sentado sobre o centro da nossa mesa, quase imóvel. A mesa de cada uma das famílias é, portanto, identificada a partir do seu sinete. Há grifos e águias, punhos de gelo e imensas espadas de ferro. O leão ronrona de satisfação quando Tactus rouba de um Rosa uma bandeja de aperitivos e a deposita entre as gigantescas patas da fera.

— Coma, fera! Coma! — grita ele.

Pliny me encontra. Seus cabelos estão presos numa trança apertada e complicada. Seus trajes, dessa vez, são tão severos quanto seu nariz pontudo, como se ele quisesse impressionar os Inigualáveis a respeito de si com suas feições de falcão e esparsos acessórios.

— Vou te apresentar a inúmeros grupos interessados mais tarde. Quando eu fizer um sinal pra você, espero que se junte a mim. — Ele olha ao redor distraído, em busca de pessoas importantes para os seus próprios objetivos. — Até esse momento, não arranje problemas e preste atenção aos seus modos.

— Sem problemas. — Tiro meu pingente Pégaso. — Juro pela honra da minha família.

— Certo — diz ele, sem olhar. — E que família nobre é essa sua.

Olho ao redor do baile da festa. Centenas já estão zanzando pelo local, com muitas mais chegando minuto a minuto. Quanto tempo devo esperar? É difícil conter a raiva que fez com que eu abraçasse essa decisão. Eles mataram minha mulher. Eles mataram meu filho. Mas, por maior que seja a raiva que evoco ao lembrar a mim mesmo desses fatos, não consigo me livrar do temor de estar empurrando a rebelião penhasco abaixo.

Isso não será feito pelo sonho de Eo. Será feito para a satisfação daqueles que estão vivos. Para saciar seu desejo de vingança muito mais do que para honrar aqueles que já sacrificaram tudo. E será irreversível. Mas a trajetória que foi montada também é irreversível.

Tantas dúvidas. Estou sendo um covarde? Racionalizando a inação?

Estou pensando demais. Isso faz de mim um mau soldado. E é isso o que sou. Um soldado de Ares. Ele me deu este corpo. Eu deveria confiar nele agora. Portanto, agarro o Pégaso e o ponho com força na lateral inferior da mesa de Augustus, bem perto da extremidade da mesa.

— Um brinde? — diz alguém. Eu me viro e me encontro cara a cara com Antonia. Não a via desde o Instituto, quando Sevro a tirou da cruz na qual ela havia sido pregada pelo Chacal. Recuo, minha mente revivendo em flashes a noite em que ela cortou a garganta de Lea, tudo isso para me tirar da escuridão.

— Pensei que você estivesse em Vênus estudando política — digo.

— Nós nos formamos — responde ela. — Gostei mesmo do seu batismo. Assisti diversas vezes com meus amigos. Aroma odioso o de urina. — Ela me fareja. — Difícil de sair.

A natureza foi cruel demais ao fazê-la tão terrivelmente bela. Lábios grossos, pernas quase tão compridas quanto as minhas, pele lisa como pedra de rio e cabelos como os fios dourados daquele livro de histórias sobre a princesa das cinzas. Tudo isso é uma máscara para a hedionda criatura que se encontra por trás dela.

— Dá pra ver que você sentiu muito minha falta enquanto eu estava longe. — Ela me entrega uma taça de vinho. — Então, vamos brindar a uma boa reunião.

Faz pouco sentido para mim o fato de vivermos num mundo onde ela pode estar aqui tecendo suas teias malévolas quando minha mulher está morta, quando Ouros gentis como Lea e Pax foram moídos até virarem cinzas e atirados ao sol.

— Fitchner certa vez me disse uma coisa, Antonia. Agora, isso que ele disse me parece bem apropriado. — Levanto a taça num brinde educado.

— Oh, Fitchner — suspira ela, os seios se elevando agressivos do seu vestido dourado apertadíssimo. — Aquele roedor bronze está ficando famoso por aqui. O que foi que ele disse?

— Um homem nunca pode deixar de ter clamídia. — Derramo o vinho na frente dela e a empurro para passar. Antonia me agarra o braço e me puxa de volta para ela, trazendo-me perto o bastante de si para que eu possa sentir o calor do seu hálito.

— Eles estão vindo pra cá — diz ela. — Os Bellona estão vindo atrás de você. É melhor você fugir agora. — Ela olha para a minha lâmina. — A não ser que você se considere bom o bastante com isso a ponto de vencer Cassius num duelo. — Ela me solta. — Boa sorte, Darrow. Vou sentir falta de um macaco no baile. Mais falta do que Mustang, pelo menos.

Não presto atenção às palavras dela e sigo adiante, desejando que mais casas preencham o baile de modo que eu possa terminar logo com isso. Uma hoste de Pretores, Questores, Judiciários, Governadores, Senadores, chefes de famílias, líderes de casas, comerciantes, dois Cavaleiros Olímpicos e mil outros aparecem para saudar meu mestre. Esses homens mais velhos falam de ataques de Batedores em Urano e Ariel, um tolo boato de um novo Cavaleiro Raivoso já ganhando sua armadura, misteriosas bases dos Filhos de Ares em Triton e uma ressurgente variedade de praga num dos continentes escuros da Terra. Coisas leves.

Muitos outros falam com meu mestre à parte, como se uma centena de olhos não acompanhassem cada passo seu e, como vozes semelhantes a xarope, contam a ele acerca de sussurros na noite, de ventos e de ondas perigosas. As metáforas se misturam. O ponto é o mesmo. Augustus deixou de estar nas graças da Soberana da mesma maneira que perdi meu prestígio com ele.

As naves adejando acima no céu noturno estão tão distantes da conversa quanto eu. Minha atenção recaiu sobre a Soberana em pessoa. Que coisa mais estranha é ver a mulher logo ali depois da pista de dança, no pódio elevado, falando com outros senhores de casas e com homens que governam as vidas de bilhões. Tão próxima, tão humana e frágil.

Octavia au Lune está na sua roda de mulheres, as três Fúrias — irmãs nas quais ela confia acima de todas as outras pessoas. A Soberana em si é mais bem-apessoada do que bonita, o rosto insensível como a face de uma montanha. Seu silêncio é seu poder. Vejo que seu discurso é raro, mas ela escuta; sempre, ela escuta palavras como a montanha escuta os sussurros e os gemidos do vento através dos penhascos, em torno dos picos.

Vejo um homem sozinho perto de uma árvore. Ele é quase tão largo quanto a grossura do tronco. A mão faz da sua taça uma coisinha ínfima, e ele está usando a marca de uma espada com asas, um Pretor com uma frota. Eu me aproximo dele. Ele me vê chegando e sorri.

— Darrow au Andromedus — rosna Karnus.

Estalo os dedos à passagem de um Rosa. Pego duas taças de vinho da sua bandeja de gelo e entrego uma a Karnus.

— Pensei que, antes de você vir me matar, talvez pudéssemos beber alguma coisa juntos.

— Aí está um homem com espírito esportivo. — Ele bebe seu próprio drinque e pega o que eu lhe ofereço. Ele olha para mim por sobre o copo. — Você não é envenenador, é?

— Não sou tão sutil.

— Somos dois, então. Todas essas cobras por aí... — Ele dá um risinho como um crocodilo, escuros olhos de Ouro percorrendo os homens e as mulheres. O vinho acaba num instante. — Esta noite está estranhamente decadente.

— Ouvi falar que foi Quicksilver quem preparou as festividades — digo.

— Só em Luna eles deixariam um Prata fingir que é Ouro — grunhe Karnus. — Odeio esta lua. — Ele tira um acepipe de uma bandeja que passa. — A comida é pesada demais. E todo o resto é bastante leve. Embora eu tenha ouvido falar que o sexto prato será algo de se comer de joelhos.

Reparo seu estranho tom e cruzo os braços, observando a festa se desenrolar. É um estranho conforto estar ao lado desse homem odioso. Nenhum dos dois precisa fingir que gosta do outro. Não há máscaras aqui, pelo menos não tanto quanto o que se vê de costume.

Ele ri profundamente.

— Julian iria gostar dessa festinha afrescalhada. Ele era uma criança afetada e maldosa.

Eu me viro para examinar o matador.

— Cassius só disse coisas boas a respeito dele.

— Cassius. — Ele bufa algo semelhante a um riso. — Cassius uma vez feriu um pássaro com um estilingue. Veio chorando falar comigo, porque ele sabia que tinha que matar o bicho pra tirá-lo da sua agonia, só que ele não conseguia. Joguei uma pedra no pássaro pra ele. Da mesma forma como você fez. — Ele ri com afetação. — Eu devia te agradecer por ter dado fim ao refugo genético.

— Julian era seu irmão, cara.

— Ele mijava na cama quando era criança. Mijava na cama. Sempre tentando esconder os lençóis dando-os pessoalmente pra lavadeira. Como se a gente não fosse dono da lavadeira. Ele era um garoto que não merecia os favores da mãe ou o nome do pai. — Ele pega mais uma taça de vinho da bandeja de um Rosa. — Eles tentam fazer disso uma tragédia, mas não é. Isso é a lei natural.

— Julian era mais homem do que você, Karnus.

Karnus ri, deliciado.

— Ah, explique isso aí.

— Num mundo de matadores, é mais difícil ser gentil do que ser cruel. Mas homens como você e eu estamos apenas deixando o tempo passar antes que a morte bata à nossa porta.

— O que acontecerá logo, logo pra você. — Ele balança a cabeça indicando minha lâmina. — É uma pena você não ter sido criado na nossa casa. Aprendemos a usar a lâmina antes de aprendermos a ler. Meu pai mandava a gente usar nossas lâminas, mandava a gente lhes dar nomes e dormir ao lado delas. Talvez você tivesse uma chance, se houvesse sido criado com a gente.

— Imagino o que você teria sido se ele tivesse te ensinado alguma outra coisa.

— Eu sou o que sou — diz Karnus, tomando mais um drinque. — E eles me mandaram atrás de você, eu dentre todos os filhos e filhas, porque sou o melhor no que sou.

Eu o observo por um momento.

— Por quê?

— Por que o quê?

— Você tem tudo, Karnus. Riqueza. Poder. Sete irmãos e irmãs. Quantos primos? Sobrinhos? Sobrinhas? Um pai e uma mãe que te amam. No entanto... você está aqui, bebendo sozinho, matando meus amigos. Estabelecendo minha morte como o propósito da sua vida. Por quê?

— Porque você ofendeu minha família. Ninguém ofende os Bellona e continua vivo.

— Quer dizer então que é orgulho.

— Sempre é orgulho.

— Orgulho é apenas um grito ao vento.

Ele balança a cabeça e sua voz adquire um tom mais profundo.

— Eu vou morrer. Você vai morrer. Nós todos vamos morrer e o universo vai continuar no seu curso sem se importar com nada disso. Tudo o que temos é esse grito ao vento, a maneira como vivemos. Como vamos. E como nos postamos antes de cair. — Ele inclina o corpo para a frente. — Portanto, entenda bem, o orgulho é a única coisa. — Os olhos deixam os meus e olham ao redor da sala. — Orgulho e mulheres.

Sigo os olhos dele e então a vejo.

Ela está usando preto em meio a um mar de ouro, branco e vermelho. Como um espectro escuro, ela desliza para fora do elevador perto da extremidade da floresta falsa. Ela enrola seus olhos brilhantes, contorce a boca que exibe um risinho afetado para as cabeças que se viram na direção dela com o objetivo de mirar sua bata funérea. Preto. Uma cor para mostrar desdém por todos os alegres Ouros ao redor. Preto como a cor do uniforme militar que agora estou usando. Volta-me à mente o calor da carne dela, a malícia na sua voz, o cheiro na sua nuca, a delicadeza do seu coração. Olho tão fixamente que quase deixo de ver seu acompanhante.

Eu gostaria muito de ter deixado de vê-lo.

É Cassius.

Ele, o das porras dos cachinhos dourados, está com a garota que cuidou de mim até que eu sarasse no inverno, que me ajudou a lembrar do sonho de Eo. A mão dele na cintura dela. Seus lábios sussurrando no ouvido dela. Com a mesma certeza que Cassius au Bellona pôs uma espada no meu estômago, ele agora enfia uma adaga no meu coração.

Seus cabelos fartos e lustrosos. Seu queixo dividido, as mãos firmes. Ombros poderosos, feitos para a guerra. Rosto feito para os corações da corte. E ele está usando o sol nascente do Cavaleiro da Manhã. Os boatos são verdade. E a verdade invade a festa como a detonação de uma bomba. A Soberana fez dele um dos doze. Apesar do fato de eu ter vencido no Instituto, ele ascendeu a um patamar mais alto, passando na marra pelo Circuito Duelista em Luna como se fosse um ancestral possuído. Eu o vi no hc, observei-o ficar à espreita em torno do Lugar do Sangramento enquanto um outro Ouro está agonizando próximo da morte.

Mas aqui, agora, ele está deslumbrante, encantador. O rosto se abre num sorriso branco. No seu corpo Dourado, ele tem tudo o que tenho e ainda mais. Ele é mais rápido com os pés do que eu. Tão alto quanto. Mais bem-apessoado. Mais rico. Ele tem um riso melhor do que o meu e as pessoas o consideram mais gentil. Contudo, ele não tem nenhum dos meus fardos. Por que também ele merece essa garota, que faz com que todas as outras, com exceção de Eo, empalideçam em comparação? Será que ela sabe o quanto ele é mesquinho? O quanto o coração dele pode ser cruel?

Não posso ir até ela, nem mesmo quando me aproximo o bastante para ouvir seu riso. Se ela me visse, tenho a impressão de que meu corpo se despedaçaria. Haveria culpa nos olhos dela? Estranheza? Será que sou uma sombra que paira sobre a felicidade dela? Será que ao menos ela se importará com o fato de que eu a estou vendo com ele? Ou será que ela me achará ridículo por me aproximar dela?

Isso dói, não porque eu suspeite que Mustang esteja sendo mesquinha em procurar meu inimigo, mas porque sei que ela não é mesquinha. Se ela está com Cassius, é porque gosta dele. Isso dói muito mais do que eu imaginava.

— E então você está vendo que... — A mão de Karnus cai pesadamente no meu ombro — ... sua falta não será sentida.

Um aperto se espalha pelo meu peito enquanto meus ombros escavam uma trilha para fora do salão de baile. Pego um elevador menor para descer e me afastar daquelas pessoas que sabem apenas como ferir. Para me afastar em direção à floresta onde encontro uma ponte sobre um córrego que flui veloz. Encosto no parapeito lustroso, arquejando em busca de ar, cada inspiração uma sentença.

Não preciso de Mustang.

Não preciso de nenhuma daquelas criaturas gananciosas.

Estou farto dos joguinhos de poder deles.

Farto de tentar jogar do meu jeito.

Não fui bom o suficiente para ser um marido.

Não fui bom o suficiente para que minha mulher me permitisse ser pai.

Não fui bom o suficiente para ser um Ouro.

Agora não sou bom o suficiente para Mustang.

Fracassei em fazer o que era meu objetivo.

Fracassei em me levantar contra a situação.

Mas não fracassarei agora. Não agora.

Pego o anel que os filhos me deram. A mão trêmula. Os nervos à flor da pele. Quero vomitar, há muitas coisas erradas dentro de mim. Levo o anel frio aos lábios. Diga as palavras e os corruptos perecem. Diga “Rompa as correntes” e Victra desaparece. Cassius evapora. Augustus derrete. Karnus dissolve. Mustang morre. Em todo o sistema solar, bombas explodem e os Vermelhos ascendem a um futuro incerto. Confie em Ares. Apenas confie no fato de que ele sabe o que está fazendo.

Rompa as correntes.

Tento dizer as palavras. As últimas de Eo antes de ser enforcada. Mas elas não vêm. A força está esgotada. Droga. Faça minha boca agir. Mas ela se recusa a agir. Ela não pode, porque dentro de mim sei que isso é errado. Não se trata de violência. Não se trata de compaixão pelas pessoas que eu iria matar. Trata-se de raiva.

Matá-las não prova nada. Não resolve nada.

Como esse poderia ser o plano de Ares?

Eo dizia que, se eu me levantasse, os outros me seguiriam. Mas ainda não me levantei. Ainda não fiz o que ela me pediu para fazer. Não sou um exemplo. Sou um assassino. Não tenho uma desculpa para desistir. Para entregar a outros o sonho dela. Ares nunca conheceu Eo. Ele nunca viu a centelha que existia nela. Eu vi. Antes de dar meu último suspiro, tenho de construir o mundo no qual ela queria que nosso filho fosse criado. Esse era o sonho dela. Esse foi o motivo pelo qual ela se sacrificou, para que os outros não tivessem de se sacrificar. E não vou deixar que outros decidam meu destino. Não agora. Não confio em Ares se isso significa que eu deva rejeitar Eo.

Não se isso significa que eu deva sacrificar minha confiança em mim mesmo.

Enxugo as lágrimas do rosto, a raiva substituída pelo propósito. Deve haver uma outra maneira. Uma maneira melhor. Vi as rachaduras na Sociedade deles e sei o que devo fazer. Sei o que os Ouros mais temem. E isso não tem nada a ver com o levante dos Vermelhos. Isso não tem nada a ver com bombas ou conspirações ou revolução. O que aterroriza os Ouros é uma coisa simples, cruel e tão velha quanto a própria humanidade.

Guerra civil.


Parte II

Ruptura

Se você é uma raposa, faça o papel de lebre.

Se você é uma lebre, faça o papel de raposa.

Lorn au Arcos


12

Sangue por sangue

Volto sorrateiro ao baile de gala.

Os Ouros sentaram-se nas suas cadeiras e as formalidades começaram a sério. Não sou sutil ao me abaixar sob a mesa para vasculhar o chão em busca do meu pingente de Pégaso. Eu o enfio no bolso. Endireito o paletó. Ignoro os olhares questionadores e me afasto ousadamente da mesa de Augustus na direção do objeto do meu interesse. Pliny sibila meu nome. Passo por ele. Ele não sabe nada do que se passa na minha cabeça.

Serpenteio em meio às mesas onde estão sentadas as famílias nobres, reunindo olhares como uma pedra rolando montanha abaixo reúne neve. Eu os sinto aumentando minha velocidade. Meu modo de andar é descuidado, minhas mãos enroladas com perigo, como os músculos de uma víbora-das-cavidades. Milhares me observam. Os sussurros formam um manto atrás de mim à medida que eles percebem qual é meu alvo; ele está sentado na sua longa mesa cercado pelos seus familiares — um perfeito Dourado escutando atento sua Soberana falar. Ela prega a unidade. Ordem e tradição acima de tudo. Ninguém se levanta ainda para me desafiar. Talvez eles não estejam entendendo. Ou talvez sintam a força em mim e não ousem se levantar.

Os Bellona reparam nos sussurros agora, e se viram, quase em uníssono, uma família de cinquenta membros ou mais, para me ver — um homem marcial, todo vestido de preto. Jovem, não testado na guerra. Seu sangue não derramado além dos corredores do Instituto e dos asteroides da Academia. Alguns me consideraram louco. Alguns me chamaram de corajoso. Essa noite, sou as duas coisas. O peso agora inexiste. Toda a pressão que eu deixava me esmagar enquanto me preocupava com as expectativas, enquanto pisava com delicadeza no chão tomando uma decisão. Todo velocidade, digo a mim mesmo. Não fique paralisado. Não pare. Nunca pare.

A voz da Soberana agora titubeia.

Tarde demais para voltar. Eu mergulho.

Sorriso.

E o baile de gala fica num silêncio mortal enquanto avanço nove metros em baixa gravidade e aterrisso com dureza na mesa dos Bellona. Pratos se espatifam. Bandejas se espalham. Alguns Bellona caem para trás. Alguns gritam comigo. Alguns nem se mexem enquanto seu vinho derrama. A Soberana observa, tomada de curiosidade, suas Fúrias se agitando ao lado dela. Pliny parece prestes a morrer. Ele está segurando os joelhos com força, em pânico. Ao lado dele, o Chacal está tão estranho e indecifrável quanto uma solitária criatura do deserto.

Não estou usando sapatos formais esta noite. Minhas botas são grossas e pesadas. Elas quebram as porcelanas enquanto caminho sobre a mesa dos Bellona, despedaçando pratos de chouriço e esmagando bifes macios. Meu sangue bombeia através de mim. Inebriante. Levanto a voz.

— Sua atenção, por favor — digo, esmagando uma travessa de ervilhas. — Vocês talvez me conheçam. — Há um riso nervoso. É claro que eles me conhecem. Eles conhecem todos os valorosos, embora meu valor seja mais boato do que substância. Vejo as Fúrias sussurrando com a Soberana. Vejo Tactus quase tendo um ataque de riso. Karnus se curva para a frente, ansioso. Victra está sorrindo para o Chacal. Vejo inclusive Antonia cutucando um Ouro alto e sereno. Evito olhar para Mustang. Pliny balbucia qualquer coisa no ouvido de Augustus, que levanta a mão para que o outro se cale. — Sua atenção, por favor — peço.

Sim. Tenho a atenção deles.

— Rapaz, sente-se! — grita alguém.

— Obrigue-o a se sentar — responde Tactus, embriagado. — Não dá? Foi o que imaginei!

— Para os que não sabem, sou lanceiro da Casa de Augustus ainda por uma hora ou pouco mais do que isso. — Eles riem. — Sou aquele chamado de Ceifeiro de Marte, aquele que derrotou um Cavaleiro Inigualável, que invadiu o Olimpo e transformou em escravos meus Inspetores. Meu nome é Darrow au Andromedus, e fui ofendido. Nós, Inigualáveis Maculados, descendemos de ancestrais Dourados. De conquistadores com cervicais de ferro. Homens honrados, mulheres honradas. Mas diante de vocês hoje, vejo uma família desprovida de honra. Uma família com cervicais de giz. Uma família corrupta e fraudulenta de mentirosos e covardes que conspira pra roubar de forma ilegal a Governadoria do meu mestre.

Esmago uma bandeja com minhas botas. Quem sabe se eles estão ou não conspirando para fazer isso? Parece uma boa ideia. Parece que eles estão conspirando. E é essa a máscara que eu quero que eles vistam. Karnus reage lindamente sacando sua lâmina com um volteio e avançando na minha direção. Seu pai, o Imperador, acena para que ele recue. O Pretor Kellan parece prestes a segurar meus pés e me puxar para baixo, onde Cagney sem dúvida nenhuma cortaria meu pescoço com minha própria lâmina. As meninas mais novas da família deles imaginam que sou um demônio. Um demônio que matou o primo delas, o irmão delas. Elas não fazem ideia do que sou de fato. Mas talvez Lady Bellona saiba. Cadavérica no seu pesar, ela está cercada pelos seus parentes como se fosse uma leoa decadente. Eles olham para ela tanto quanto olham para o seu marido. A última coisa que noto é o tremor na sua comprida mão direita, como se ela estivesse ansiosa por segurar uma faca com a qual pudesse me cortar.

— Por duas vezes fui ofendido por essa família. Uma vez na lama do Instituto. De novo na Academia por aquele ali... e esse aí... e aquele ali. — Aponto para todos aqueles que me espancaram nos jardins. Vejo Cassius agora perto da cabeceira da mesa, bem ao lado do pai e da mãe. Mustang está sentada ao seu lado. O rosto dela é uma máscara. Decepcionada? Chateada? Entediada? Quando ela mexe uma sobrancelha sutilmente para mim, encontro seu olhar, ando na direção dela e ponho o pé na beirada do decanter de vinho que está na frente de Cassius. Todos os olhos estão fixos em mim, como luz entrando num buraco negro. Parando o tempo, o espaço. Curvando todos para a frente. Arquejos generalizados. — Todas as cortes de leis Douradas permitem que um homem defenda sua honra contra qualquer força que o profane injustamente. Das antigas civilizações da Terra aos intestinos gelados de Plutão. O direito de desafiar existe pra qualquer homem e pra qualquer mulher. Meu nome, gentis senhores e senhoras, é Darrow au Andromedus. Mijaram em cima da minha honra. E eu exijo satisfação.

Derrubo o vinho no colo de Cassius.

Ele se levanta, explodindo na minha direção. Ouros em todas as partes se levantam em disparada dos seus assentos num grande bramido. Tactus sai correndo da nossa mesa, juntando-se a Leto, Victra, todos os assistentes e carregadores de bandeiras dos vassalos do meu ArquiGovernador — os Corvos, os Julii, os Voloxes, os imensos Telemanus, os familiares de Pax. Lâminas são sacadas. Xingamentos furam o ar invernal. Aja, a maior e mais escura das Fúrias, afasta-se da mesa da Soberana e berra:

— Parem com essa insanidade!

Mas isso é apenas o início.

Minhas mãos tremem como costumavam tremer na mina. Agora, como naquela época, serpentes me cercam.

Era impossível ouvi-las, as víboras-das-cavidades. Vê-las era algo quase raro. Pretas como pupilas, elas deslizam nas sombras até atacarem. Mas há um temor que chega quando elas se aproximam. Um temor diferente do rugido da perfuratriz. Diferente do latejante e nauseante calor que cresce no seu saco à medida que você escava em meio a milhões de toneladas de rocha e toda a fricção se irradia, produzindo uma poça de mijo e suor no interior do seu traje. É como temer a chegada da morte. Como se uma sombra atravessasse sua alma.

Esse temor me preenche agora enquanto esses Inigualáveis me cercam, uma massa de ouro serpeante. Sussurrante. Sibilante. Mortífera como o pecado.

A neve no chão é esmagada sob minhas pesadas botas. Eu me curvo para baixo enquanto a Soberana fala. Ela fala de honra e tradição. De como os duelos marciais marcam a grandeza da nossa raça, de modo que ela abre uma exceção para este dia. Nosso duelo vai poder ultrapassar a mera diversão. Essa disputa de sangue deve ser encerrada aqui, agora, na frente do augusto da nossa raça. Tão confiante está ela no seu mais novo Cavaleiro Olímpico. Mas por que não estaria? Ele já me matou antes.

— Ao contrário dos covardes de outrora, estabelecemos carne contra carne. Osso contra osso. Sangue contra sangue. Vendetas morrem no Lugar do Sangramento virtute et armis — recita a Soberana.

Com coragem e armas. Sem dúvida nenhuma ela já falou com seus conselheiros. Eles devem ter dito que sou aquém do meu adversário, que Cassius é o melhor espadachim. Isso jamais teria chegado a esse ponto se ela não tivesse certeza de um resultado que a beneficiasse.

— Como se dava com nossos ancestrais, agora é novamente até a morte — declara ela. — Existe alguma controvérsia?

Eu esperava por isso.

Nem Cassius nem eu dizemos coisa alguma. Mustang dá um passo à frente para fazer uma objeção, mas a Fúria, Aja, balança a cabeça, detendo-a.

— Então hoje teremos res, non verba. — Ações, não palavras.

Falo com meu mestre antes de pisar no centro do círculo que agora se forma enquanto Marrons tiram as mesas da planície nevada. Pliny paira ao lado de Augustus. Assim como Leto, Tactus, Victra e os grandes Pretores de Marte. Tantos rostos famosos, tantos guerreiros e políticos. O Chacal está bem distante, mais baixo do que o resto, indiferente, sem falar com ninguém. Imagino o que ele me diria se ali houvesse menos ouvidos. Ele não parece estar com raiva. Talvez tenha aprendido a confiar nos meus planos. Ele balança a cabeça, como se estivesse lendo meus pensamentos. Ainda somos aliados.

— Esse espetáculo é por minha causa? Por vaidade? Por amor? — pergunta Augustus quando me posto diante dele. Seus olhos se fixam profundamente nos meus, tentando encontrar algum significado. Não consigo evitar um olhar de relance na direção de Mustang. Mesmo agora, ela tenta me afastar da minha tarefa.

— Você é tão jovem — ele quase sussurra. — O que eles contam pra vocês nos livros de história está errado; o amor não sobrevive a coisas como essa. Não o amor da minha filha, pelo menos. — Ele faz uma pausa, refletindo. — A alma de Virginia é como a da mãe dela.

— Não estou fazendo isso por amor, meu suserano.

— Não?

— Não. — Faço uma mesura para ele e me lembro do altoIdioma de Matteo. — A tarefa do filho é a glória do pai. Não é? — Fico de joelhos.

— Você não é meu filho.

— Não. Os Bellona o mataram, roubaram-no de você. Seu filho primogênito, Claudius, era tudo o que um homem podia esperar, um filho melhor e mais sábio do que seu pai. Portanto, deixe-me lhe dar um presente na condição da cabeça do filho favorito deles. Chega de evasivas. Chega da política deles. Sangue por sangue.

— Meu suserano, Julian era uma coisa. Mas Cassius... — tenta Pliny.

Augustus o ignora.

— Choro pela sua bênção — digo, pressionando meu mestre. — Por quanto tempo você ainda manterá os favores da Soberana? Um mês? Um ano? Dois? Logo ela o substituirá pelos Bellona. Olhe só como ela privilegia Cassius. Olhe só como ela rouba sua filha. Olhe só como o outro segue o caminho de um Prata. Seus herdeiros estão esgotados. Seu tempo como ArquiGovernador acabará. Deixe que se acabe. Pois você não é um homem talhado pra ser ArquiGovernador de Marte. Você é um homem talhado pra ser rei de Marte.

Seus olhos brilham.

— Nós não temos reis.

— Porque ninguém jamais ousou elaborar uma coroa pra si mesmo — digo. — Permita que esse seja o primeiro passo. Cuspa no olho da Soberana. Faça de mim a espada da sua família.

Saco uma faca da minha bota e faço um corte rápido abaixo do olho. O sangue cai como gotas de lágrima. Essa é uma antiga bênção, dos ancestrais de ferro, os Conquistadores. E dará calafrios naqueles que a virem — uma relíquia de uma época passada, uma época de mais dureza. É uma bênção de Marte. Uma bênção de ferro e sangue. Das naves enfurecidas que queimaram a famosa Armada Britânica acima do Polo Norte e expulsaram os matadores-rápidos da terra do Sol Nascente em meio ao cinturão de asteroides. Os olhos do meu senhor se acendem como brasas dormentes ao receber um sopro de ar, devagar, e então de uma vez só.

Eu o ganhei.

— Dou minha bênção livremente. O que você fizer, faça na minha honra. — Ele se curva na minha direção. — Levante-se, nascido-em-ouro. Levante-se, nascido-em-ferro. — Augustus encosta o dedo no sangue e, em seguida, pressiona a marca abaixo do seu próprio olho. — Levante-se, Homem de Marte, e leve consigo minha ira.

Eu me levanto em meio a sussurros. Agora não se trata mais de uma simples altercação entre garotos. Trata-se da batalha entre casas. Campeão contra campeão.

— Hic sunt leones — diz ele, inclinando a cabeça, em parte desafio, em parte bênção. Que porco vaidoso é esse homem. Ele sabe do meu desespero para permanecer nas suas boas graças. Ele sabe que está brincando de acender fósforos em cima de um barril de pólvora. Contudo, seus olhos brilham com volúpia, ávidos por sangue e pela promessa de poder enquanto estou ávido por ar.

— Hic sunt leones — ecoo.

Volto ao centro do círculo, acenando com a cabeça para Tactus e Victra. Eles tocam os cabos das suas lâminas, como fazem os outros assistentes. Nossa mentalidade de grupo é aguda.

— Ótima sorte — diz Tactus.

Bem acima, naves nadam silenciosas através da longa noite. Árvores oscilam à brisa. Cidades resplandecem ao longe. A Terra paira como uma lua inchada enquanto desenrolo minha lâmina do antebraço.

Mustang vem ao meu encontro enquanto a mãe de Cassius beija a testa do filho.

— Então agora você é um peão? — pergunta ela, apressada.

— E você é um troféu?

Ela estremece antes de os seus lábios formarem um ligeiro sorriso afetado.

— Você diz isso pra mim? Eu nem te reconheço.

— Nem eu a você, Virginia. Servindo à Soberana agora?

Mas eu a reconheço, apesar do terrível hiato que agora faz com que eu a sinta mais como uma estranha do que como uma amiga. O aperto no meu peito é produzido por ela. E também a tensão esquisita nas minhas mãos ansiosas para tocá-la, ansiosas para segurá-la e para dizer a ela que tudo isso é um disfarce falso. Não sou um peão do pai dela. Sou mais do que isso. Tudo isso aqui é para o bem. Só que não é para o bem deles.

— Virginia. — Ela empina a cabeça para mim, sorrindo com tristeza enquanto olha de relance para os dois mil Inigualáveis à espera. — Sabe, uma coisa tem passado pela minha cabeça nesses últimos anos... tenho a impressão de que ela devia ter passado pela minha cabeça desde o início, mas você é um personagem tão raro que eu acabava ficando distraída. Mas vou aproveitar pra perguntar agora. — Os olhos vívidos dela me penetram, vasculhando-me, julgando-me. — Por acaso você é louco?

Olho na direção de Cassius.

— E você é?

— Ciúme? Isso é propício. — Ela se aproxima de mim com um sussurro áspero. — É uma pena você não me respeitar o bastante a ponto de conseguir imaginar que eu possa ter meu próprio plano. Você acha que estou aqui porque meu lombo me empurra pros braços dos Bellona. Por favor. Não sou nenhuma cadela no cio. Protejo minha família por quaisquer meios necessários. Quem você protege a não ser a si próprio?

— Você trai sua família estando com ele. — Não disponho de nenhuma resposta falsa que possa fazer um paralelo com a verdade. Devo sofrer sendo um vilão aos olhos dela. No entanto, não consigo olhar para eles. — Cassius é um homem maligno.

— Faça o favor de crescer, Darrow. — Ela dá a impressão de que vai dizer algo mais profundo, mas apenas balança a cabeça e, virando-se, diz: — Ele vai te matar. Vou tentar convencer Octavia a acabar a coisa o quanto antes. — Suas palavras lhe escapam de início. — Gostaria muito que você não tivesse vindo pra esta lua.

Ela me abandona, dando a Cassius um aperto de mão antes de se juntar ao séquito da Soberana no tablado elevado.

— Enfim sós, meu velho amigo — diz Cassius, retalhando-me com um sorriso.

No passado, fomos como irmãos. Compartilhamos comida e corremos juntos naquele primeiro dia no Instituto. Invadimos a Casa Minerva juntos. Como ele riu quando roubei o cozinheiro deles e Sevro, o estandarte deles. Galopamos pelas planícies naquela noite sob a luz das luas gêmeas. Eu me lembro da tristeza nos seus olhos quando eles capturaram Quinn. Quando meu aparentado, Titus, bateu nele e mijou em cima dele. Como senti as lágrimas encharcando meus olhos naquela ocasião, quando éramos como irmãos, antes de tudo se desfazer.

A neve com sabor de canela e laranja ainda está caindo. Ela se acumula nos cabelos cacheados de Cassius. Nos seus ombros largos. Foi na neve que ele lutou comigo pela última vez. Enterrou o aço enferrujado no meu baixo-ventre e me deixou morrendo na minha própria imundície. Não me esqueci como ele torceu aquela lâmina para se certificar de que a ferida não pudesse ser fechada.

A lâmina dele agora é de ébano.

Ela ondula na minha frente, mais de um metro de espada estreita quando sólida. Mais de dois metros de um chicote com lâmina afiada quando solta com o pino no cabo, que envia um impulso químico através da estrutura molecular da lâmina. Marcas douradas se encontram na lateral da lâmina, contando a linhagem da sua família. Suas conquistas. Os Triunfos lançados em sua honra. Velhos, arrogantes, poderosos. Minha lâmina é nua, desprovida de embelezamentos.

— Então tomei o que é seu — diz ele, aproximando-se mais e fazendo um aceno de cabeça na direção de Mustang.

Eu rio.

— Ela nunca foi minha. E com certeza não é sua.

Os Brancos chegam agitadamente nas suas batas. Cabeças calvas. Costas curvadas.

— Mas eu a tive de um jeito que você não teve. — A voz dele fica mais baixa de modo que apenas nós possamos ouvi-la. — Fico imaginando, você se deita sozinho à noite, pensando no prazer que dou a ela? Você se perturbaria se eu te disser que sei como ela beija? Se eu te disser como ela suspira quando toco o pescoço dela?

Não respondo.

— Que ela geme meu nome em vez do seu? — Ele não ri. Ele pode estar odiando o que diz, mas diria qualquer coisa para me ofender. No geral, ele não é um homem mau. É apenas o meu homem mau. — Na realidade, ela gemeu quando a penetrei hoje de manhã.

— O que Julian diria se pudesse te ver agora? — pergunto.

— Ele daria eco à minha mãe e imploraria pra que eu te matasse.

— Ou será que ele choraria diante do demônio que você se tornou?

Ele desenrola a lâmina e acende sua égide. Minha própria égide zumbe enquanto eu a ativo — um escudo transparente de energia íon-azulada que se curva um pouco para fora da minha luva esquerda. Trinta centímetros de comprimento por sessenta centímetros de largura. A neve derrete quando deslizo rapidamente a égide perto do chão. Uma coroa de névoa se forma ao redor da luz azul.

— Nós todos somos demônios. — Seu riso súbito flutua para cima como uma fita de seda levada para longe com a brisa. — Esse sempre foi seu problema, Darrow. Você tem uma visão inflada de si mesmo. Você acha que tem alguma espécie de moralidade escondida em algum lugar. Você acha que é melhor do que nós quando, na realidade, você é pior. Eternamente jogando jogos que não consegue dominar contra pessoas de quem você não está à altura.

— Estive muito à altura de Julian.

— Filho da puta. — Seu rosto se contorce e ele avança enfurecido, berrando palavras indiscerníveis, empurrando-me para trás antes que os Brancos pudessem dar a bênção. Eles suplicam que paremos, mas as lâminas gritam, os berros somem aos poucos e todos os olhos ficam arregalados à medida que metais mata-homem gemem em meio à neve que cai com lentidão. Ele usa os princípios do Kravat. Quatro segundos de violência precisa e cinética, recuo. Avaliação. Engajamento.

Somos o único som neste estranho lugar. O lamento inusitado e altissonante de um chicote arqueando. O arranhar da lâmina sólida. O estalar à medida que as égides nos braços esquerdos lançam fagulhas brancas quando as lâminas se chocam contra elas. A neve sendo esmagada e o couro rangendo.

Apesar da raiva, Cassius é perfeito na sua forma. Seus pés se mexem, nunca se cruzando; seus quadris giram à medida que ele ataca em compactas salvas. Sua respiração é medida, ritmada. Ele chicoteia à frente com um golpe forte e em seguida endurece a lâmina e a balança para cima, mirando minha virilha. Seus movimentos tremeluzem com rapidez. Movimentos treinados. Afiados por mestres e espadas da Sociedade. É fácil ver por que ele devasta seus oponentes desde a infância, por que ele me furou a barriga no Instituto. Seus inimigos lutam como ele, porém mais devagar. Eu não luto como Cassius. Aprendi essa lição.

Agora Cassius vai aprender a dele.

— Você tem praticado. Consegue sustentar seis movimentos por set — diz ele, afastando-se. Ele avança, fintando no alto e golpeando embaixo para tentar acertar meus tornozelos. — Mas você ainda é um noviço. — Ele manda uma torrente de sete golpes em cima de mim, quase me perfurando o ombro direito. Reconheço o padrão de engajamento, mas ainda tenho uma fração da velocidade que ele imprime. Mal consigo escapar, lançando-me para fora da trajetória de um golpe no último instante. Mais dois sets de sete chegam numa rápida sucessão. Quase não escapo do último, caindo de joelhos, arfando, olhando ao redor para os convidados reunidos.

— Está ouvindo isso? — pergunta ele. Não estou ouvindo nada além do vento e do meu coração latejando. — Esse é o som de quem morre sozinho. Ninguém pra chorar. Ninguém pra se importar.

— Arcos vai se importar — sussurro.

Ele enrijece.

— O que foi que você disse?

— Lorn au Arcos vai se importar se o último aluno dele morrer — digo, diminuindo a intensidade da minha respiração falsamente entrecortada, esticando o corpo orgulhosamente. Cassius olha para mim como se estivesse vendo um fantasma. Ele hesita. Também hesitam aqueles que ouvem o que digo. — Enquanto você comia, eu treinava. Enquanto você bebia, eu treinava. Enquanto você ia atrás de prazeres, eu treinei das semanas que se seguiram ao Instituto aos dias que antecederam a Academia.

— Lorn au Arcos não aceita alunos — sibila Cassius. — Não aceita alunos há trinta anos.

— Ele abriu uma exceção.

— Mentiroso.

— É mesmo? — digo, rindo. — Você acha que eu vim aqui pra ser morto? Você acha que tem direito à minha vida? Não, Cassius. Vim aqui pra te cortar diante dos seus pais.

Ele dá um passo para trás, os olhos dançando em direção ao seu pai, a Karnus. Empino a cabeça para ele.

— Vamos lá, irmão. Você não quer ver como consigo lutar bem mesmo?

Ele faz uma pausa e eu o ataco como se fosse algum carnívoro noturno, os ombros curvados com uma economia primeva, silencioso como a própria escuridão.

As palavras de Lorn voltam a mim. “Um tolo puxa as folhas. Um selvagem corta o tronco. Um sábio desenterra as raízes.” E então separo as pernas dele, mandando set após set em cima dele. Não pelos quatro segundos que os Ouros ensinam. Mas por sete. Então seis, alternando, rompendo o padrão. Doze movimentos por set.

A defesa dele é precisa. E se eu lutasse como Cassius me ensinou a lutar, morreria nas mãos dele. Mas quem me ensinou a me movimentar foi meu tio, e quem me ensinou a matar foi uma lenda. Ataco e giro o corpo, deixando meus pés e golpeando embaixo, batendo nele como um grande furacão açoitando e arrebentando e martelando até ele recuar. E quando ele ataca, eu me inclino para o lado e assim permaneço até poder quebrá-lo, como Lorn au Arcos me treinou para fazer. Mova-se em círculos. Nunca recue. Nenhum ataque se abre quando um homem permite a si mesmo ser empurrado para trás. Use a força do oponente para criar novos ângulos. Flua ao redor dele. O Estilo do Salgueiro. Bonito, fluido, semelhante a uma canção primaveril na defesa, e então dilacerante e horrível como os galhos de um salgueiro no meio do inverno quando os ventos glaciais gritam das montanhas.

Dentro de mim, Vermelho encontra Ouro.

Minha lâmina brilha entre chicote e curviLâmina. Choca-se contra a espada dele, e a égide na sua lateral esquerda estala por conta da força dos meus golpes. Cassius titubeia. Ele é um lutador de boxe profissional sendo esmurrado por um brigão de beco.

Estou rindo. Rindo tresloucadamente, e a multidão ao meu redor está dando vivas em estado de choque, alguns gritando quando atinjo a égide de Cassius com tanta força que ela sofre uma sobrecarga. Fagulhas sibilam da unidade no seu braço. Abro uma ferida ali, uma no cotovelo, no joelho, no tornozelo. Levanto a lâmina com rapidez e faço um talho no seu rosto. Paro e recuo fluidamente, levantando o chicote enquanto ele se transforma numa curviLâmina. Aqueles que estão assistindo a isso jamais se esquecerão.

Mulheres estão gritando por Cassius. Amantes que ele teve na juventude, que agora observam o homem com quem cresceram, o homem que as levou para a cama, que as deixou com falsas promessas e as fez pensar que elas haviam acabado de perder o mais forte de uma geração. Elas assistem a um outro homem transformá-lo numa latejante confusão de sangue.

Eu o constranjo. Mas tudo isso é por um propósito. Tudo isso para fazer com que aquele ódio borbulhante entre os Bellona e os Augustus ferva até se transformar em guerra.

Ando em círculo como um leão enjaulado até me postar em frente ao Imperador Bellona.

— Seu filho vai morrer — digo de maneira selvagem, a trinta centímetros de distância do seu rosto.

Ele é corpulento. Queixo quadrado, benévolo, com uma barba pontuda. Seus olhos cintilam com a promessa de lágrimas. Ele não diz nada. É um homem nobre e seguirá a honrosa trilha, mesmo que isso signifique assistir ao seu filho favorito morrer.

Mesmo em meio à minha raiva, sinto vergonha. Sinto o horror de ser o homem que chega da escuridão para barbarizar uma família.

— Você vai assistir? — grito para Bellona. A esposa do Imperador Bellona não é tão nobre. Ela está fervilhando de raiva, olhando de relance para a Soberana de maneira acusatória. Vejo o que ela deseja.

Volto a Cassius. Eles terão de assistir e não fazer nada, como assisti à morte de Eo.

— Lady Bellona, você é nobre o suficiente pra assistir à morte do seu Cassius? Assistir seu desaparecimento deste mundo? — Os lábios dela ficam franzidos. Ela sussurra algo a Karnus, a Cagney. — Essa é a força da Casa Bellona? Vocês assistem como cordeirinhos o lobo entrando no curral?

Faço uma grande exibição para os de sangue quente. Cassius tenta lutar. Ele tropeça quando corto seu joelho, caindo na neve antes de cambalear desesperadamente até conseguir se levantar. Seu sangue produz uma sombra na neve. Foi com essa lentidão que ele matou Titus. Ele está em pânico, olhando de relance para a sua família, ciente de que será a última vez que os verá. Eles não têm Vale. Esta vida é o paraíso deles. Apesar de tudo, é uma visão triste e sinto pena dele.

Cagney, instada por Lady Bellona, já deu um passo à frente, seu rosto bem-feito e bonito marcado pela raiva. Só preciso ferir o forte primo dela mais um pouquinho. Mas o Imperador Bellona a puxa para trás com uma mão firme. Ele olha de modo sombrio para Augustus e em seguida dá uma espiada ao redor da assembleia.

— Nenhum Bellona deve interferir. Na minha honra.

Contudo, sua esposa não concorda. Ela aponta mais uma vez seu olhar para a Soberana, e esta ergue a mão.

— Pare! — fala ela. — Pare, Andromedus!

Fico aturdido com a interrupção.

Todos olham para o tablado onde se encontra a Soberana. Cassius arqueja em busca de ar. Ela não pode ser tão estúpida assim. Pode? A interrupção confirma os boatos para mim, para todos. A Soberana revela seu favoritismo. Ela escolheu a família Bellona. Eles suplantarão os Augustus em Marte. Cassius teria sido importante para esse plano. Agora, por causa dos cálculos errôneos da Soberana, ele está prestes a morrer e o plano dela irá por água abaixo. Mesmo assim, eu não fazia a menor ideia de que ela faria o que está prestes a fazer. É estúpido demais. Extremamente míope da parte dela. Seu orgulho fez dela uma tola.

— Foi feito um adendo às regras. Como os Brancos foram incapazes de dar a costumeira bênção, a contenda será até a morte ou arrego — declara ela, olhando de relance para a mãe de Cassius. — Esses são os limites do duelo. Tantos dos nossos prezados filhos e filhas são perdidos nas nossas escolas. Não há necessidade de desperdiçar esses dois homens valorosos por causa de brincadeiras da hora do recreio.

— Minha Soberana — fala Augustus, ávido pelo seu prêmio sangrento —, a lei é clara. Uma vez que a contenda é declarada, as regras não podem ser alteradas por homem ou mulher.

— Você cita leis. Isso é uma agradável ironia, vindo de você, Nero.

Há risinhos na multidão, o que indica que os boatos acerca do envolvimento dele com a manipulação do Instituto em prol do Chacal estão bastante em voga.

— Minha Soberana, estamos com Augustus nessa questão — ribomba uma voz. Daxo au Telemanus dá um passo à frente. O irmão mais velho de Pax, tão alto quanto era meu amigo, mas menos bestial. Mais um pinheiro do que um grande rochedo de homem. Como seu pai, Kavax, sua cabeça é calva, mas com entalhes de anjos Dourados. Uma fagulha maliciosa dança em olhos sonolentos aninhados sob grandes sobrancelhas rodopiantes.

— Não chega a ser nenhuma surpresa — rosna a mãe de Cassius.

— Perfídia! — ruge Kavax, o pai de Daxo. Ele acaricia ora sua pontuda barba ruiva, ora a grande raposa de estimação que está encaixada no seu braço esquerdo. — Isso fede a perfídia e favoritismo. Meu temperamento é lento. Mas me sinto ofendido. Ofendido!

— Cuidado, Kavax — diz Octavia com frieza. — Certas coisas não podem ser desditas.

— Por que outro motivo ele diria essas palavras? — pergunta Daxo, olhando de relance para as famílias das Gigantes Gasosas, onde sabe que encontrará aliados nesse debate. — Mas acredito que ele possa lhe dar um conselho agora, minha Soberana: nem mesmo suas palavras podem mudar a lei. Seu pai descobriu isso pelas suas mãos, não é?

As Fúrias da Soberana dão um passo à frente de maneira ameaçadora. De sua parte, a Soberana permite a si mesma apenas o mais estrito dos sorrisos.

— Mas, jovem Telemanus, você deixa de se lembrar que minha palavra é lei.

Isso é algo que não se faz. Um Ouro pode governar outros Ouros. Mas declare seu poder por sua própria conta e risco. A Soberana está há tanto tempo no Trono da Manhã que se esqueceu disso. As palavras dela não são lei. Elas agora se tornaram um desafio.

Um desafio que eu aceito de braços abertos.

Ela sabe que as palavras que pronunciou são um equívoco quando nossos olhos se encontram e ambos percebemos naquele momento que existe um passo que eu posso dar ao qual ela não pode se opor.

— Você não vai roubar o que é meu — rosno.

Giro o corpo para Cassius. Ele levanta a lâmina. Ele nunca me deixou pedir arrego na lama do Instituto. Ele sabe que não vou permitir que ele peça arrego agora. Seu rosto fica pálido à medida que avanço. Ele está pensando em tudo que está prestes a perder. O quanto sua vida é preciosa. Um Ouro até o fim. Os outros gritam para que eu pare, berrando que isso é uma coisa injusta.

Essa é a definição de justiça.

Eles teriam me deixado morrer.

Ele avança no meu pescoço. É uma finta. Ele chicoteia sua lâmina para baixo com o intuito de enrolá-la na minha perna. Ele espera que eu recue. Eu o ataco diretamente, dentro do arco do seu golpe, salto sobre sua cabeça em baixa gravidade e em seguida golpeio com meu chicote sem olhar. O chicote se enrosca no seu braço direito estendido. Aperto o botão que faz com que a lâmina se contraia e, com o som do galho de uma árvore congelada se partindo no inverno, tomo posse do braço que segura a espada de Cassius au Bellona.

Silêncio e gritos dividem o ambiente em partes iguais. Eu não me viro, não por um momento muito longo. Quando o faço, encontro Cassius ainda de pé, oscilando, pouco tempo lhe restando neste mundo. Ninguém mais se mexe enquanto Cassius cai. Seu pai olha para o chão, mudo.

— Eu disse pra parar! — grita a Soberana. Duas Fúrias saltam do tablado e aterrissam, com suas lâminas dançando nas mãos.

— Acabe com isso — ordena Augustus.

Avanço na direção de Cassius. Ele cospe em mim, os lábios trêmulos. Demonstrando desprezo inclusive agora. Ergo a lâmina. Então uma mão segura meu punho. Não um aperto férreo. Um aperto suave. Cálido de encontro à minha pele. Delicado.

— Você venceu, Darrow — diz Mustang baixinho, dando a volta para se postar à minha frente de modo que seus olhos possam se encontrar com os meus. As Fúrias param do lado de fora do círculo. — Não se perca com isso.

Eu não conseguia imaginar Eo me observando do Vale. Nesse inferno, perdi minha fé. Mustang a traz de volta majestosamente. Eo pode me observar, ou não. Apenas uma coisa é certa. Mustang agora me observa, e o que vejo nos seus olhos é o bastante para fazer com que minha mão caia para o lado do corpo. É então que ela sorri, como se estivesse me vendo pela primeira vez depois de anos.

— Aí está você.

— Mate-o! — berra a mãe de Cassius. — Mate-o agora!

— Não! — rosna o Imperador Bellona. Tarde demais.

Os olhos de Mustang se arregalam.

Eu me viro para ver o círculo se dissolver, desfazendo-se internamente como se fosse feito de areia. Não por completo, mas aos poucos. Um Bellona dispara na minha direção em silêncio, abaixado, mortífero. Um outro o segue. Então Tactus surge do grupo de Augustus. Então um outro lanceiro. Ouço o uivo de guerra dos meus amigos. Um segundo uivo ecoa. Há mais do que apenas um Ouro presente que fez parte do meu exército.

Cagney au Bellona é a primeira a chegar em mim. Minha lâmina roubada raspa meu pescoço. Eu me abaixo, mas teria perdido a cabeça se Mustang não tivesse jogado sua própria lâmina para interceptar o golpe. Fagulhas afligem meu rosto e Tactus atinge a lateral de Cagney, cortando-a em dois com um golpe certeiro.

Gritos.

O Lugar do Sangramento desaba por inteiro. Ouros de Bellona e Augustus disparam para proteger seus companheiros. Outros fogem. Karnus avança sobre Tactus — é muito para meu amigo. Corro para ajudá-lo, salvando-o até Victra e alguns outros se postarem entre Karnus e nós. Mustang está perdida na briga. Procuro por ela freneticamente. Uma lâmina brilha na minha cabeça.

Gritos ribombam quando a Soberana pede paz. Mas isso está além dos seus poderes. Uma mulher grita diante do corpo arruinado de Cagney. Dezenas de homens e mulheres, todos com lâminas, avançam uns sobre os outros. Tactus joga para mim a lâmina roubada por Cagney. Então uma lâmina lhe acerta o ombro quando ele mais uma vez me defendia. Giro o corpo para ajudar meu amigo e decepo o braço do agressor Bellona enquanto este tira a lâmina do ombro de Tactus. Puxo meu amigo para mim. Abro caminho a golpes de lâmina. Uma lâmina acerta de raspão meu antebraço. Vislumbro Mustang no meio do caos, cobrindo o corpo ferido de Cassius. Não sei se os Bellona a matarão. Eles a deixam sentar-se à mesa. Mesmo assim, não sei. Corro na direção dela, jogando meu peso sobre os corpos que se encontram entre nós. Tactus ajuda.

Dou um encontrão numa mulher. Antonia. Seus olhos se iluminam enquanto ela leva uma faca ao meu estômago, mas Victra, a irmã dela, soca-lhe a cara e Tactus começa a chutá-la na cabeça enquanto ela cai. Victra me oferece um sorriso até que Karnus a joga no chão, puxando-a pelos cabelos. Sua ação é contida quando Leto entra na contenda, afastando o ataque com os golpes precisos da sua lâmina arco-íris. Os Telemanus se juntam a ele, pai e filho dizimando os Ouros que aparecem diante deles com lâminas com a metade do tamanho do meu corpo.

— Tactus, comigo! — grito.

Tactus está sangrando, mas está de pé e uivando loucamente como se ainda estivesse lutando ao lado de Sevro. Juntos, saltamos bem alto nesta gravidade fácil. Ele sabe que estou indo atrás de Mustang. Mas os Bellona são fortes demais. Lâminas mortíferas demais.

— Mustang! — grito, detendo o ataque de dois Bellona. Corto o rosto de um deles e dou um soco no pescoço do outro com minha égide. Mais um se junta a eles. E mais outro, até que há um espesso baluarte dos Bellona bloqueando minha passagem.

— Proteja o ArquiGovernador! — grita para mim Mustang, a voz mais composta do que a minha própria, fazendo com que eu me sinta um idiota obcecado pelo cavalheirismo. É claro que ela não precisa que eu a salve. — Proteja meu pai! — E, embora eu não consiga enxergá-la em meio à turba, obedeço.

Deixo Tactus me puxar pelo colarinho na direção da nossa linha de retirada, que está sendo assaltada pelo lado. Uma outra pessoa rosna para que protejamos Augustus. Outros berram para que defendam o Imperador Bellona e Cassius. Muitos chefes de família foram levados para longe por oficiais armados de membros familiares que se afastam do caos com suas lâminas de prontidão. Eles fogem do espigão, usando os elevadores para tirá-los do lugar, já que gravBotas foram proibidas. O local está quase deserto. Os Pretorianos da Soberana — Obsidianos e Ouros vestidos de púrpura e preto — aglomeram-se ao redor e levam-na pelo ar para longe do baile de gala arruinado. Lâminas e pulsoLâminas preenchem mãos calosas. Cinzas aparecem liderados por Ouros em púrpura Pretoriana para nos dispersar. Eles usam equipamento antitumulto e seus abrasadores atiram balas-de-dor e ondas-de-dispersão nas famílias em luta, espalhando os Ouros como moscas de verão.

— augustus! — berra o imenso Karnus enquanto dispara das fileiras dos Bellona através das ondas-de-dispersão como um homem ensandecido. Ele nocauteia alguém com o ombro, despedaça o rosto de um lanceiro com sua égide e se joga de ponta-cabeça em Augustus na esperança de matar o rival da sua família com um rodopio no ar. — augustus!

Leto, nosso melhor espadachim e pupilo de Augustus, o intercepta na frente do ArquiGovernador.

— Hic sunt leones! — fala ele ao céu.

Leto se move como o mar, fluido e terrível na sua graciosidade. Ele empurra Karnus para trás com uma força descomunal e está prestes a abrir uma fenda na sua barriga quando se detém de repente. Paralisado no meio do golpe. Karnus tropeça para trás e então se ajeita, talvez confuso por perceber que ainda está vivo. Ele inclina a cabeça para Leto, que leva a mão à coxa como se tivesse sido picado.

Leto cai devagar de joelhos, os braços apáticos. Seus longos cabelos tombam sobre o rosto, então ele parece estar paralisado no lugar, subitamente imóvel no centro do caos. Olhos tristes refulgem com o penacho do motor de uma nave que passa ao costear pacificamente no horizonte. Ele está belo nesse momento antes de Karnus lhe decepar a cabeça.

— Leto! — ruge Augustus.

Seus olhos se arregalam e ele se debate contra os Telemanus que o levam para longe. Vislumbro o Chacal engatando seu estilete prateado na manga, o que ele girava nos dedos enquanto propunha nossa aliança secreta.

Nossos olhares se cruzam.

Ele dá um risinho cheio de dentes.

E sei que fiz um acordo com o diabo.


13

Cães loucos

Nós fugimos do topo do espigão. Tive de deixar Mustang para trás. Ela sabe o que está fazendo. De certa forma, eu tinha conseguido esquecer isso. Ela sempre sabe que porra está fazendo.

— Eles não vão feri-la — me diz Augustus, e eu acredito que essa seja a primeira vez que vejo emoção no seu rosto. Não. A segunda vez. Quando ele gritou por Leto, foi como se ele tivesse perdido um filho. Augustus parece estar desse jeito agora, o rosto flácido e vinte anos mais velho. Ele perdeu seu filho mais velho. Ele perdeu sua segunda esposa, a mãe dos seus filhos. Agora perde o homem que adotou para substituir aquele filho, e teme pela mulher que o faz lembrar daquela esposa.

Se eles a ferirem, o acerto de contas será comigo.

Dei início a todo o processo. Pela primeira vez na vida, o desdobramento não poderia ter sido melhor. O sangue pinga das minhas mãos, formando camadas entre os dedos, formando poças ao redor das cutículas num desenho semelhante ao de uma ferradura. As juntas se flexionam em branco onde não há sangue, o que me enoja, mas é para isso que minhas mãos foram feitas.

Fugimos do lugar de inverno e árvores, que ficou encharcado de vermelho. Muitos levam nossos feridos, quase uma dúzia deles. Sete mortos. Pouco menos de vinte ilesos em todo o séquito. Os outros estão desaparecidos. O incomparável Leto está morto, o assistente de Pliny foi cortado ao meio e uma das nossas Pretoras levou um golpe de lâmina no pescoço desferido por Kellan au Bellona.

Carrego a Pretora nos braços e tento estancar o sangramento enquanto pegamos o elevador para descer do espigão. Poucas chances. Victra pressiona um pedaço do seu vestido na ferida.

Eu daria tudo por um par de gravBotas. Nós nos aglomeramos ao redor do nosso chefe. As lâminas nas mãos. O sangue encharca meu braço até o cotovelo. O suor escorre pelo meu rosto e costelas. Gotas vermelhas espirram dos pés dos nossos oficiais em direção ao piso do elevador, pingam de mãos, feridas, lâminas. Contudo, há sorrisos brancos vergastando os rostos ao meu redor.

Está quente no meu uniforme, de modo que desabotoo os botões superiores. Tactus está sangrando ao meu lado. Seu ferimento vai até o ombro esquerdo. Estocada limpa.

— É só sangue — diz ele a Victra, que demonstra preocupação com seu estado.

— Tem um buraco em você.

— Não chega a ser uma coisa estranha. — Ele sorri, mirando a região da cintura dela. — Ah, merda, você tem um buraco no seu corpo e não está me vendo reclamar dele. Arghhhhh! — Ele gane enquanto ela gruda um curativo feito com um pedaço de seu vestido no ferimento dele. Ele ri na sua dor uma segunda vez, então olha para mim e sacode a cabeça, olhos tresloucados e felizes. — Treinando com Lorn au Arcos, cara. Você é um rufião enganador.

Ele me salvou de Cagney. Aceno com a cabeça e bato em punhos ensanguentados numa saudação; desfeitas e apostas contra minha vida existentes no passado temporariamente esquecidas.

Muitos dos outros Ouros, os Pretores, os cavaleiros, os homens e as mulheres marciais em particular — e temos mais em proporção aos nossos políticos e economistas do que a maioria das casas — esfregam a testa, deixando manchas avermelhadas. Esses são o tipo de Ouros que diriam que o problema em ser Ouro é que todos já foram conquistados. Significa que não há mais ninguém digno de ser combatido. Ninguém contra quem usar todo aquele treinamento e todo aquele poder. Bem, acabei de lhes dar um sabor renovado de batalha. E muito embora o pupilo do Governador deles esteja morto, muito embora a principal Pretora deles esteja sangrando no meu ombro, além do fato de Mustang estar em mãos inimigas, eles querem jogar. E fazer cadáveres é o jogo do dia.

Velhos e jovens olham para mim com avidez. Esperando ser alimentados.

Isso é o que significa ser o alfa, o Primus. Os outros olham para você em busca de orientação. Eles conseguem sentir o odor picante do sangue em você antes mesmo de ele existir. A idade não importa. A experiência não importa. Tudo o que importa é minha capacidade de fornecer a esses filhos da puta pervertidos matanças novinhas em folha.

Crianças choram em torno de nós, sobressaltando-me. Coisinhas tão frágeis numa noite como essa. Os filhos e filhas da irmã mais nova de Augustus. O pai deles lhes acaricia os cabelos para acalmá-los. Bufando, sua mulher se curva e dá um tapa na cara de cada um deles até que parem de choramingar.

— Sejam corajosos.

Nossos Obsidianos e Cinzas não estão esperando por nós no chão. Foram levados para algum lugar. Tampouco os Obsidianos ou os Ouros da Soberana estão chegando pelo ar. O que significa que ela ainda não decidiu o que fazer. Exatamente como eu havia imaginado. Ela não pode nos chacinar. Uma casa exterminar outra é uma coisa, mas a grande líder fazer isso com o poder e os fundos que lhe foram confiados pelo Senado? Isso já aconteceu antes, e aquele Soberano foi decapitado pela filha dele. A filha que agora está sentada no trono.

Oh, ela deve estar me odiando por isso.

Abaixo do elevador, luzes brilham ao longo das trilhas de paralelepípedos que cortam a imensa floresta de árvores floridas. Os músicos não estão mais tocando. Ao contrário, ouvimos gritos e berros e longos períodos de um aterrorizante silêncio. Há Ouros correndo, fugindo para os corredores de pedra além da floresta, onde podem ingressar nas suas naves e voar para casa. Só que alguns deles não estão fugindo. Estão caçando.

Algo que eu não esperava aconteceu. Outras rixas familiares encontram satisfação essa noite. Houve a mesma coisa no Instituto quando os outros alunos perceberam que aquilo não era um jogo. Que não havia regras. Uma sensação apavorante, uma noção de que demônios rondam os campos em vez de homens. Quem sabe o que alguém fará agora que as regras se tornaram inexistentes?

Há quatro caçadores ao longe. Um bando de três homens e uma jovem avançam em silêncio através da floresta. Eles saltam sobre um córrego. Correndo com todo o vigor dos famintos. Toda a ambição dos jovens. Da Casa Falthe, ao que parece. Reconheço Lilath dos olhos de passas, a garota que o Chacal enviou para entregar a Cassius o holo com as imagens em que apareço matando Julian. Com ela está Cipio, o jovem parrudo que no passado auxiliava Antonia a entrar e sair do quarto.

Nós os observamos em silêncio à medida que nosso elevador desce. Carregando a morte, o bando esguio dispara em meio às árvores rumo a uma reunião de membros da família Thorne ali estacionados sem a menor desconfiança, todos usando vestidos e ternos em cores vermelhas e brancas; tarde demais, eles se encaminham em frenesi para os corredores de pedra. O estandarte deles é a rosa. Ele cai à medida que os matadores saem com estrépito do meio das árvores. Uma família morre. É assustador como a ação com as lâminas é silenciosa e rápida. Diferente do meu duelo. Levei um tempo. Eles não. Vejo um menino de dez anos cortado ao meio. Não há misericórdia pelas crianças Douradas. Elas não são vistas como inocentes. São sementes inimigas. Destrua-as ou lute com elas anos depois. Uma mulher num vestido de baile contra-ataca e consegue matar um dos Falthe antes de ser retalhada. Duas crianças saem correndo. Uma é pega. A outra escapa. Ela é a única.

Então os lanceiros dos Falthe dançam. Dando pisadas largas e exageradas. Eles se viram em direções diferentes, batendo com força seus pés no chão escuro. Só que eles não estão dançando.

— Maldição dos infernos — pragueja Tactus, e esfrega o rosto.

— As crianças... — sussurra Victra.

Augustus não diz nada, o rosto resoluto como pedra.

— Os Thorne têm quinze filhos. — Lágrimas se formam nos olhos de Victra, surpreendendo-me.

— Monstros — sussurra o Chacal, produzindo calafrios na minha coluna cervical, porque a encenação dele é bem-feita pra cacete. Ele não daria a mínima para algo assim.

Crianças. Será que Eo teria cantado se soubesse que esse era o refrão? Nós todos carregamos fardos. E à medida que os matadores deslizam para longe da família assassinada, sei que meu fardo me esmagará sob o peso dele algum dia. Só não será hoje.

— Embaralhador de dados instalado — diz Daxo au Telemanus. Ele me mostra o datapad no seu pulso. — Os datapads estão desativados. Eles não querem que a gente entre em contato com nossas naves em órbita.

Augustus olha para o seu datapad vazio e diz que logo as outras famílias convocarão seus assistentes Obsidianos, Ouros e Cinzas. Precisamos estar fora do planeta e de volta a uma posição de força antes que a maré se volte contra nós.

— Você produziu esse caos, Darrow. Agora me tire dele. — Ele se curva na minha direção e sente a pulsação da Pretora que estou carregando. — Livre-se dela. Vai estar morta daqui a um minuto. — Ele esfrega as mãos. — As crianças já representam um sobrepeso suficiente pra nós.

A Pretora murmura alguma coisa para mim enquanto a deposito no chão do elevador. Não sei o que ela diz. Quando eu morrer, não direi nada porque sei que o Vale está à espera do outro lado. O que está à espera dessa guerreira? Apenas a escuridão. Nem entendi as últimas palavras ditas por ela; nós a descartamos como se fosse uma espada quebrada. Fecho os olhos dela com meus dedos ensanguentados, deixando marcas compridas e evanescentes. Victra aperta meu ombro, notando o respeito que dedico à mulher.

De pé, dou minhas ordens aos lanceiros e aos outros homens de guerra. Há quinze que eu consideraria bons matadores. Alguns da minha idade, outros já bem mais velhos. Contudo, ninguém me contradiz. Nem mesmo Pliny. Os Telemanus em particular parecem ansiosos para me seguir. Cada um deles me olha mais fixamente do que o necessário, balançando a cabeça em concordância com mais profundidade do que ocorreria se o gesto dissesse respeito apenas a uma mera formalidade.

— Espero que ninguém esteja entediado. — Eles riem. — Teremos companhia se alguma outra família decidir que pode obter favores junto aos Bellona ou à Soberana cortando a cabeça do ArquiGovernador — digo. — Precisamos matar aquele grupo e abrir caminho à força até os hangares. Telemanus, você e seu filho são agora as sombras do ArquiGovernador. Não cuidem de mais nada além disso. Estão entendendo? — Eles balançam as gigantescas cabeças em concordância. — Hic sunt leones.

— Hic sunt leones.

Quando o elevador alcança o solo, quarenta homens e mulheres estão à nossa espera. A família Norvo de Triton e a família Codovan das luas de Júpiter.

— Obstáculos desagradáveis — suspira Tactus.

— Codovan e Norvo estão conosco — responde Augustus. — Comprados e bem pagos por isso.

— Malandrão! Codovan, seu malandrão! — troveja Kavax. — Pensei que você estivesse com os Bellona!

— Eles também pensavam! — Augustus esperava algo assim.

Assumo o comando dos novos Ouros. Mais uma vez, pensei que alguém se oporia. Eles apenas ficam parados me observando, esperando minhas ordens. Todos esses Pretores, todos esses políticos e homens e mulheres vigorosos de guerra. Reprimo uma gargalhada. É incrível o poder que você tem quando está com sangue até as mangas da camisa e nenhuma gota dele é sua.

Escoltamos o ArquiGovernador até a saída da floresta. Três vezes somos atacados, mas mandei Tactus vestir o manto de Augustus e levar alguns dos agressores a uma perseguição inútil. Pétalas de rosa de milhares de tons caem das árvores à medida que Ouros lutam sob elas. No fim, todos eles estão vermelhos.

A gangue de três da Casa Falthe tenta emboscar Tactus quando ele volta ao grupo principal. Ele gira sobre eles e com pouca ajuda derruba todos, com exceção de Lilath. Ela foge precipitada enquanto Tactus mata Cipio e pisa em cima do homem morto.

— Matadores de criança — diz ele, cuspindo várias vezes até que Victra o puxa.

Observo o Chacal. A cada momento espero um dardo nas costas, morrer como Leto morreu. Mas o Chacal apenas segue, como faz seu pai. Ninguém viu o que ele fez com Leto. Ou, se viram, seus temores os silenciam.

Quando alcançamos os corredores de pedra além da floresta, por fim atravessando a ponte de calcário, as regras da Sociedade parecem retornar. BaixaCores saem às pressas do caminho à medida que nós, agora setenta pessoas fortes, invadimos os corredores em direção aos hangares com o objetivo de deixar esta lua. Mas quando alcançamos nosso hangar, descobrimos que nossa nave desapareceu. Disparamos para as plataformas de aterrissagem ladeadas por árvores e grama. Todas as naves das famílias sumiram. RasgAsas da Sociedade patrulham o céu.

Questionamos um Laranja trêmulo. Tactus o levanta pelo colarinho. Ele estremece ao olhar para nós, setenta almas ensanguentadas. Ele nunca falou com um Ouro antes, muito menos com Ouros como nós. Victra afasta a mão de Tactus com um tapa e fala calmamente com o Laranja.

— Ele está dizendo que as naves foram solicitadas a regressar pra casa duas horas atrás.

— Primeiro eles não deixam os Obsidianos entrarem no baile de gala e agora isso — murmura Tactus.

— Significa que a Soberana planejou algo — diz o Chacal. — Algo que jamais teve permissão pra florescer. Ela retirou nossos Obsidianos, nossas naves, pra afastar as casas das suas fontes de poder — explica ele, olhando com cautela para os Telemanus. — Ela nos deixou desamparados. Que carta você imagina que a Soberana tem debaixo das manguinhas dela, papai?

Augustus ignora o filho, olhando para o céu.

— Mãe de misericórdia — pragueja Victra.

— Juntem-se! — berra Kavax aos seus guerreiros.

— Mijem no meu rosto! — Tactus empalidece ao meu lado.

Olho para cima e vejo o juízo final a caminho.

— Pretorianos!

Setenta lâminas são sacadas, e nos separamos para a eventualidade de eles terem armas de energia.

— Darrow. Você está comigo — diz Augustus.

O inimigo é pouco mais do que pontinhos pretos no céu noturno. Mas nossos olhos são aguçados. Os filhos da puta escuros avançam das nuvens noturnas e impactam o chão como se fossem demônios caídos, sempre em grupos de três.

Tumptumptump. Tumptumptump. Tumptumptump.

Eles aterrissam entre as árvores sobre a grama, bloqueando nosso caminho de volta à Cidadela. Pretorianos Obsidianos e capitães-cavaleiros Ouros. Os Obsidianos Pretorianos são titânicos, semelhantes a golens extraídos da rocha de alguma montanha. Muito mais cruéis do que aqueles que usávamos na Academia. Não existe armadura como a deles em nenhum mundo. Púrpura escura incrustada em preto, como coral revestindo seus corpos titânicos. Eles se postam numa formação de esquadrão fechada. Leais e atados uns aos outros, assim como são à sua fé.

Tumptumptump até que há noventa e nove deles. Tump. O comandante Dourado aterrissa por último. Ele se levanta, capacete alto, um crânio de lobo sorridente. Sua capa de ouro, brasonada com a pirâmide da Sociedade, bate ao vento. Um Cavaleiro Olímpico. Há doze deles no sistema solar, todos os quais juraram proteger o Pacto da Sociedade contra aqueles que o desafiem. Esse é o Cavaleiro Raivoso, o posto que Lorn exerceu por sessenta anos até partir para Europa. Eles representam o que os Ouros entendem ser os temas dominantes do homem, a mesma coisa que nossas casas escolares. Um homem mais leve do que eu mesmo veste a armadura. Portanto, a Soberana já preencheu o antigo posto de Lorn.

— Declare-se, cavaleiro! — grito.

O cavaleiro permite que seu capacete se retraia para dentro da armadura. Seus cabelos cor de linho caem sobre um rosto feioso, fino e comprido. Molhado de suor, com rugas de idade e estresse. Dou uma gargalhada quando ele sorri com aquela cara malfeita. Atraio olhares. Agora eles pensarão apenas que estou mais louco ainda. O Cavaleiro Raivoso cai do céu e eu rio na cara dele.

Ele dá uma gargalhada.

— Você não está me reconhecendo, seu comedor de merda?

— Fitchner, você está ainda mais feio do que consigo me lembrar!

— Fitchner? — bufa Tactus. — Que coisa mais nostálgica.

— Oi, garotão — diz Fitchner, rindo ao ver Tactus com o manto do ArquiGovernador. — Capinha bacana, mas você não é o ArquiGovernador Augustus. — Fitchner estala a língua e põe as mãos na cintura. — ArquiGovernador! ArquiGovernador! Querido, onde é que você está, caramba?

O ArquiGovernador revira os olhos e passa por mim:

— Inspetor Marte.

— Aí está o queridinho! E esse é um título antigo, vocês não sabiam?

— Estou vendo que você está de capacete novo.

— É bonitinho, não é? As mulheres adoram. Não me lembro de nenhuma outra época em que dividi a cama com tantas Douradas da melhor estirpe. — Fitchner mexe os quadris de maneira sugestiva. — Foi um incômodo e tanto conseguir isso aqui. Pensei que os duelos e os testes jamais teriam fim! Fizemos isso na frente da Soberana, garotão. Cada homem, cada mulher fazendo sua argumentação. Todo mundo imaginava que tinha direito ao posto. Sempre a mesma coisa. Mas a sorte favorece os grosseiros!

— Como... — Imagino, mas digo em voz alta. — Como foi que você derrotou todo mundo?

— Isso dificilmente aconteceu — diz meu ArquiGovernador, escarnecendo. — Esse feito é pra grandes guerreiros. — Ele metralha Fitchner com os olhos. — Algo que você não é, Fitchner. O que foi que você prometeu à Soberana em troca do seu novo capacete? Tenho certeza de que o preço foi alto.

— Oh, peguei carona na estrela de Darrow quando ele derrotou seu rapazinho. Oi, Chacal, seu diabinho! Então houve um maldito concurso e, bom, você pode perguntar ao irmão mais velho de Tactus e ao Inspetor Júpiter sobre as especificidades... — Ele faz uma pose. — Sou mais do que aparento ser, hein?

— Quer dizer então que você não tem um novo mestre com o novo capacete? — pergunta Augustus.

— Mestre? Ha! — Fitchner infla o peito de modo cômico. — Cavaleiros Olímpicos têm um único mestre, nossa consciência. Defendemos o Pacto da Sociedade, somos subservientes apenas à nossa tarefa.

— No passado. Agora vocês são serviçais da Soberana — declara Daxos.

— Como, de resto, somos todos nós, meu caro Telemanus — responde Fitchner. — Sou grande admirador do seu irmão e da sua família, a propósito. Maravilhoso martelo de guerra aquele que você levava no torneio em Thebos. Linhagenzinha assustadora maldita! Sempre quis perguntar, qual dos ancestrais de vocês trepou com um rinoceronte?

Daxo ergue as sobrancelhas num delicado sinal de ofensa. Kavax resmunga como talvez Pax resmungasse.

— Desculpe. Foi com um urso pardo? — Fitchner dá outra gargalhada. — Uma piadinha. Mordaz? Mas todos somos serviçais, certo? Malditos escravos daquela que segura o cetro.

— Nesse caso, imagino que sua lealdade a Marte já não exista mais e não possa ser... lembrada? — pergunta Augustus. — Já que você é um serviçal.

Fitchner bate palmas com as mãos enluvadas.

— Marte? Marte? O que é Marte a não ser um maldito naco de rocha? Nunca fez nada por mim.

— Marte é nosso lar, Fitchner. — Augustus acena a todos que estão ao nosso redor. — A Soberana mandou você nos encontrar. Bom, aqui estamos, parentes do seu próprio planeta. Você vai mostrar sua lealdade a nós? Ou desistirá de nós?

— Oh, você é um piadista, Augustus! Um piadista de primeira. Minhas lealdades são voltadas pro Pacto e pra mim mesmo, assim como a sua é voltada pra você mesmo, meu suserano. Não pra uma rocha. Não pra falsos parentes. Portanto, não desperdice seu oxigênio. Agora, recebi a incumbência de deixar você e seus parentes em reclusão domiciliar. Você se recorda que separamos uma villa pro seu prazer? Seria muito elegante da sua parte se você e seu grupo pudessem voltar rápido pra lá. Desfrute da nossa hospitalidade. Sua Soberana insiste.

— Você esquece a si mesmo — sibila Augustus.

— Eu esqueço muitas coisas. Onde coloquei as calças. Quem beijei. Quem matei. — Fitchner toca o braço, a barriga, o rosto. — Mas esquecer a mim mesmo? Jamais! — Ele aponta para os Obsidianos ao redor dele. — E com certeza não esqueci meus cães.

— E onde estão os meus? Onde está Alfrún?

— Matei seus Manchados vira-latas. Os dois. — Fitchner sorri. — Eles estavam latindo, Augustus. Latindo muito alto.

A raiva queima no rosto de Augustus.

— Espero que eles não tenham sido muito caros, garotão — diz Fitchner com um sorriso.

— Você fala como se fôssemos familiares, seu Bronzeadinho.

— Nós somos familiares.

— Como se fôssemos iguais. Não somos iguais. Sou descendente dos Conquistadores, dos Ouros de Ferro! Sou o senhor de um planeta. E você o que é? Um...

— Sou um homem com um punhoAtordoante. — Ele atira no peito de Augustus, que desaba para trás enquanto seus Pretores arquejam. — Isso vai ensiná-lo a nunca mais levar a armadura pra bailes de gala. Agora... — Fitchner sorri. — Com quem posso ter uma conversa racional?

— Comigo. — O Chacal dá um passo à frente. — Sou o herdeiro desta casa.

— Hum... Você não serve! Você é nojento.

Ele atira no peito do Chacal com o punhoAtordoante.

— Tolices! Chega de tolices. — Kavax dá um passo à frente, empurrando seu filho para trás. — Fale comigo ou com Darrow. Suas intenções estão bastante claras.

— De fato. Darrow. Você vem comigo.

— Nem a pau — diz Victra, um risinho afetado, dando um passo para se postar à minha frente.

Fitchner revira os olhos.

— Telemanus, você e seu filho podem levar o ArquiGovernador de volta pra villa dele e depois regressar pra sua própria villa. Precisamos separar as questões. — Fitchner olha em silêncio para o calvo Ouro. Suas palavras agora têm um som áspero como o de ferro raspando em ardósia. — Isso não é um pedido, Telemanus.

Telemanus olha para mim:

— Meu rapaz confiou nesse aqui. Portanto também confiarei.

— Preciso de garantias de que meus amigos não serão feridos — digo a Fitchner.

Ele olha para Victra.

— Eles não serão.

— Convença-me.

Ele suspira, entediado.

— A Soberana não pode executar uma maldita casa inteira a não ser em caso de um julgamento por traição. Pode? Isso viola o Pacto. E você sabe o que nós, Cavaleiros Olímpicos, sentiríamos a respeito de algo assim, sem falar nas outras casas. Lembre-se de como o pai dela encontrou seu fim. Mas, se você resistir, bom, nesse caso a questão passa a ser completamente diferente. — Fitchner enfia um chiclete na boca. — Você vai resistir?

— Hoje, não — digo.


14

A Soberana

— Era uma vez uma família com uma força de vontade férrea — diz ela, a voz baixa e medida como um pêndulo. — Eles não se amavam uns aos outros. Mas juntos administravam uma fazenda. E nessa fazenda havia cães e cadelas, e vacas leiteiras, e galinhas e galos, e ovelhas e mulas e cavalos. A família mantinha as bestas na linha. E as bestas os mantinham ricos, gordos e felizes. Agora, as bestas obedeciam porque sabiam que a família era forte, e desobedecer seria sofrer a ira unida deles. Mas um dia, quando um dos irmãos acertou um golpe no olho de um outro irmão, um galo disse para uma galinha: “Querida galinha matronal, o que realmente aconteceria se você parasse de botar ovos pra eles?”.

Os olhos dela miram os meus de modo fulminante. Nenhum de nós desvia o olhar. O silêncio reina na esparsa suíte, exceto pelo som da chuva nas janelas do arranha-céu dela. Estamos em meio às nuvens. Naves passam na bruma do lado de fora como tubarões silenciosos e resplandecentes. O couro range quando ela se curva para a frente e junta os dedos cujas unhas estão pintadas de vermelho, um solitário espirro de cor. Então seus lábios franzem em condescendência, acentuando cada sílaba como se eu fosse um menino de rua de Agea tendo aprendido apenas recentemente a falar a língua dela.

— Em muitas maneiras você me lembra meu pai.

O que ela decapitou.

É nesse momento que ela olha fixo para mim, exibindo o mais enigmático sorriso que eu jamais tenha visto. A malícia dança nos seus olhos, atenuada e quieta por baixo dos frios adornos do poder. Em algum lugar dentro dela existe a menina de nove anos que iniciou de maneira infame um tumulto jogando diamantes de um aerocarro.

Estou em pé diante da Soberana. Ela está sentada num sofá ao lado de uma lareira. Tudo é espartano. Duro. Frio. Uma mulher Ouro de ferro e pedra. Toda essa monotonia como que para dizer que ela não precisa de luxo ou de riqueza, apenas de poder.

O rosto dela é enrugado, mas não desgastado pelo tempo. Cem anos, ou pelo menos foi o que eu ouvi falar, sem marcas ou fissuras devido às pressões do ofício. Se tanto, a pressão fez com que ela ficasse parecida com os tais diamantes que espalhou pelo ar. Inquebrável. Imutável. E continuará imutável ainda por mais tempo se os Entalhadores continuarem fazendo sua terapia de rejuvenescimento celular.

Esse é o problema. Ela ficará no poder por tempo demais. Um rei reina e depois morre. É assim que funciona. É assim que os jovens justificam a obediência aos mais velhos — sabendo que um dia será a vez deles. Mas e quando os mais velhos não saem? Quando ela governa por quarenta anos e pode vir ainda a governar por cem anos ou mais? E aí?

Ela é a resposta a essa pergunta. Essa não é uma mulher que herdou o Trono da Manhã. É uma mulher que o tirou de um governante que não teve a cortesia de morrer em tempo hábil. Por quarenta anos outras pessoas tentaram tomá-lo dela. No entanto, aqui está ela sentada no trono. Tão eterna quanto aqueles fabulosos diamantes.

— Por que você me desobedeceu? — pergunta ela.

— Porque eu podia desobedecer.

— Explique.

— O nepotismo murcha sob a luz do sol. Quando você mudou de ideia pra proteger Cassius, a multidão rejeitou sua autoridade moral e legal. Sem falar que você se contradisse. Isso já é uma fraqueza. Portanto, explorei essa fraqueza, ciente de que podia obter o que eu queria sem que houvesse consequências.

Aja, a matadora favorita da Soberana, está sentada numa cadeira próxima à janela com ar de quem está meditando — uma poderosa pantera em forma de mulher com a pele mais escura do que a das suas irmãs e olhos com pupilas fendidas. Ela é uma das Cavaleiras Olímpicas, a Cavaleira Multiforme, tecnicamente falando. Ela foi a última aluna de Lorn antes de mim. Embora ele não tenha ensinado tudo a ela. Sua armadura tem uma tonalidade dourada e azul-escura e se retorce com serpentes marinhas.

Um menino vindo de outra sala entra em silêncio e se senta ao lado de Aja. Eu o reconheço na hora. O único neto da Soberana, Lysander. Não mais do que oito anos de idade, mas muito sereno. Nobre na sua quietude, magro como um cachecol. Mas seus olhos. Seus olhos são além do ouro. Quase um cristal amarelo, tão vívidos que seria possível dizer que quase brilham. Aja me observa cumprimentar o menino. Ela o pega no colo, protetora, e mostra os dentes, a brancura deles ferozmente vívida em contraste com sua tez escura. Como um grande felino brincando ao dar um oi. E, pela primeira vez que eu me lembre, desvio o olhar de uma possível ameaça. A vergonha queima intensa e subitamente dentro de mim. Eu poderia muito bem ter me ajoelhado diante dela.

— Mas sempre há consequências — diz a Soberana. — Estou curiosa. O que você queria conseguir com aquele duelo?

— A mesma coisa que Cassius au Bellona: o coração do meu inimigo.

— Você o odeia tanto assim?

— Não. Mas meu instinto de sobrevivência é... entusiasmado. Cassius, até onde sei, é um rapaz idiota aleijado pela criação que teve. Seu estoque é limitado. Ele fala de honra, mas se curva a coisas ignóbeis.

— Então não foi por Virginia? — pergunta ela. — Não foi pra reivindicar a mão dela ou saciar sua raiva ciumenta?

— Eu tenho raiva, mas não sou reles — rebato. — Além do mais, Virginia não é o tipo de mulher que apoiaria coisas assim. Se eu tivesse feito isso por ela, com certeza a teria perdido.

— Você a perdeu — rosna Aja.

— Sim. Estou ciente de que ela tem um novo lar, Aja. É fácil de ver.

— Você está sendo grosseiro comigo, meu bom-homem? — Aja toca sua lâmina.

— Minha boa-moça, estou sendo tudo menos grosseiro. — Sorrio devagar para ela.

— Ela vai te eviscerar como um porco, garotão — diz Fitchner rapidamente. — Não dou a mínima se Lorn te ensinou a limpar a bunda. Pense duas vezes antes de decidir quem você vai insultar aqui. As verdadeiras lâminas da Sociedade não duelam por esporte. Portanto, cuide dessa sua maldita língua.

Toco minha lâmina.

Ele bufa.

— Se você fosse alguma ameaça, você acha que eles te deixariam ficar com isso aí?

Balanço a cabeça na direção de Aja.

— Outra hora, quem sabe. — Eu me viro de novo para a Soberana, esticando o corpo. — Talvez pudéssemos discutir o motivo pelo qual você está mantendo minha casa sob guarda militar. Por acaso estamos presos? Eu estou?

— Você está vendo alguma algema?

Olho para Aja.

— Estou, sim.

A Soberana ri.

— Você está aqui porque eu quero que você esteja aqui.

Uma ideia me ocorre. Tento não sorrir.

— Minha senhora, eu gostaria de me desculpar — digo em voz alta. Eles esperam que eu continue. — Meus modos sempre foram... provincianos. E, portanto, acho que a maneira como conduzo minhas ações quase sempre está em contradição com os propósitos delas. O fato básico é que Cassius merecia tratamento pior do que o que forneci a ele. Minha desobediência para com a senhora não foi feita como um insulto nem da minha parte nem da parte do ArquiGovernador. Se ele não estivesse inconsciente por conta do seu cão — olho de relance para Fitchner —, aposto que faria o que fosse necessário ser feito pra reparar os danos cometidos.

— Reparar — repete ela. — Que danos cometidos?

— O distúrbio.

Ela olha para Aja.

— O distúrbio, diz ele. Deixar um prato cair é um distúrbio, Andromedus. Apossar-se da mulher de outro homem é um distúrbio. Matar meus convidados e cortar o braço de um Cavaleiro Olímpico não é um distúrbio. Você sabe o que é isso?

— Diversão, minha senhora?

Ela curva o corpo para a frente.

— Isso é traição.

— E você sabe como lidamos com traição — diz Aja. — Meu pai ensinou isso a mim e às minhas irmãs. — O pai dela é Lorde Ash. Queimador de Rhea. Lorn o despreza.

— Um pedido de desculpas da sua parte é insuficiente — diz a Soberana.

— Um pedido de desculpas? — pergunto.

A Soberana é pega de surpresa com meu tom.

— Eu disse que gostaria de me desculpar. Mas o problema é que não posso, porque a senhora é que deveria se desculpar comigo.

Silêncio.

— Seu rapazinho malcriado — diz Aja, levantando-se sem pressa.

A Soberana a detém, suas palavras cortantes nítidas e frias.

— Não pedi desculpas ao meu pai quando arranquei a cabeça dele do corpo. Não pedi desculpas ao meu neto quando a nave da mãe dele foi destruída por Batedores. Não pedi desculpas quando queimei uma lua. Então por que eu pediria desculpas a você?

— Porque a senhora desrespeitou a lei — digo.

— Talvez você não tenha escutado. Eu sou a lei.

— Não. A senhora não é.

— Então você é mesmo aluno de Lorn, afinal de contas. Lorn te disse por que abandonou o posto? A tarefa dele? — Ela olha para Lysander. — Por que abandonou o neto?

Eu não sabia que o menino era neto de Lorn. A aposentadoria do meu professor de repente faz todo sentido. Ele sempre falou da glória evanescente da Sociedade. Sobre como os homens haviam se esquecido de que eram mortais.

— Porque ele viu o que a senhora se tornou, Soberana. A senhora não é uma Imperatriz Máxima. Isso aqui não é um império, apesar do que a senhora possa pensar. Nós somos a Sociedade. Somos regidos por leis, pela hierarquia. Ninguém está acima da pirâmide. — Olho para os matadores dela. — Fitchner, Aja, vocês protegem a Sociedade. Vocês garantem a paz. Vocês navegam pros mais distantes confins do Sistema pra exterminar as sementes do caos. Mas, acima de tudo, qual é o propósito dos doze Cavaleiros Olímpicos?

— Vá lá — diz Aja a Fitchner. — Vá participar da palhaçada dele. Eu não vou.

Fitchner fala devagar:

— Preservar o Pacto.

— Preservar o Pacto — digo. — E o Pacto afirma: “Um duelo, uma vez começado, não pode alcançar sua resolução até que seus termos sejam adequadamente preenchidos”. Os termos eram a morte. Mas Cassius não está morto. Seu braço não basta. Eu honro os ancestrais de ferro e meus direitos permanecem invioláveis. Portanto, me dê o que é meu. Me dê a maldita cabeça de Cassius au Bellona. Ou rejeite o legado do nosso povo.

— Não.

— Então não temos mais nada a discutir. A senhora pode me encontrar em Marte.

Giro os calcanhares e caminho na direção da porta.

— O leão está enfraquecendo — fala a Soberana. — Encontre um novo lar. Aqui.

Eu paro de andar. Essas pessoas são muito previsíveis, porra. Elas todas querem o que não podem ter.

— Por quê? — pergunto, sem me virar.

— Porque eu posso te dar os recursos que Augustus não pode. Porque Virginia já viu como isso é verdade. Você quer estar com ela, não quer?

— Por que a senhora iria querer um homem que comercializa tão fácil sua fidelidade? — Eu me viro e olho com mordacidade para Fitchner. — Um homem assim é pouco mais do que uma reles puta.

— Augustus te abandonou antes de você abandoná-lo — diz a Soberana. — A filha dele viu isso, mesmo que você não tenha visto. Eu não te abandonarei. Pergunte às minhas Fúrias. Pergunte ao pai delas. Pergunte a Fitchner. Eu dou uma chance àqueles que não se envolvem. Junte-se a mim. Lidere minhas legiões e farei de você um Cavaleiro Olímpico.

— Eu sou um Áurico. — Cuspo no chão. — Não sou nenhum troféu.

Eu me ponho a caminho da saída.

— Se eu não posso tê-lo, ninguém poderá.

Então eles chegam. Três Manchados passam pela porta. Cada um deles trinta centímetros mais alto do que eu. Cada um deles trajando púrpura e preto e carregando pulsoEixos e pulsoLâminas. Seus rostos se escondem por trás de máscaras em feitio de osso. Olhos de matadores criados nos polos árticos da Terra e de Marte olham para mim. Preto cintilante, como óleo. Saco minha lâmina e assumo uma postura de batalha. O canto de guerra gutural deles ribomba sob suas máscaras como o canto fúnebre para algum deus morto.

— É isso aí. Cantem pros deuses de vocês. — Giro minha lâmina no ar. — Vou lhes mandar ao encontro deles.

— Ceifeiro, por favor, pare — fala Lysander em alto e bom som. Eu me viro e o encontro caminhando na minha direção, as mãos abertas num gesto lamentoso. Seu casaco é simples e preto. Ele tem a metade da minha altura.

A voz dele flutua. Treme como a de um pássaro delicado.

— Eu assisti a todos os seus vídeos, Ceifeiro. Seis, talvez sete vezes. Até os da Academia. Meus tutores acreditam que você é o que existe de mais próximo dos Ouros de Ferro desde Lorn au Arcos. O Lado-de-pedra.

É então que percebo o motivo pelo qual ele parece estar tão nervoso. Eu quase rio. Sou o herói de infância desse putinho.

— Não precisamos te ver morrer esta noite. Será que não dá pra você encontrar um lar aqui como encontrou com Sevro? Com Roque e Tactus, e Pax, com os Uivadores e todos aqueles grandes guerreiros? Também temos guerreiros aqui. Guerreiros nobres. Você podia liderá-los. Mas... — Ele dá um passo para trás. — Se você lutar, aí você vai morrer, porque estará cometendo o erro de acreditar que defender as leis e os princípios te coloca acima do poder da minha avó.

— E coloca — digo.

— Ceifeiro, não existe nenhum lugar acima do poder dela.

É assim que acontece. Eles lhes dão heróis. Eles os criam com mentiras e violência, e depois deixam que cresçam e se transformem em monstros. O que ele seria sem a mão que o guia?

— Ele queria te ver — diz a Soberana. — Eu disse a ele que a lenda nunca combina com o fato. É melhor não conhecer seus heróis.

— E o que você acha? — pergunto ao pequeno Lysander.

— Tudo depende da sua escolha seguinte — diz ele com delicadeza.

— Junte-se a nós, Darrow — diz Fitchner com sua fala arrastada. — Este é o lugar pra você agora. Augustus já era.

Sorrindo por dentro, relaxo a pegada na lâmina. Lysander cerra o punho. Feliz. Ando com ele de volta à sua avó, fazendo uma encenação, mas ainda não proclamo meu compromisso de fidelidade.

— Você está sempre dizendo pra eu me curvar — digo a Fitchner enquanto passo.

Ele dá de ombros.

— Porque não quero que seu corpo se parta, garotão.

— Lysander, pegue minha caixa — diz a Soberana. Feliz, o menino sai correndo da sala enquanto me sento no lado oposto à avó dele. — Temo que o Instituto tenha te ensinado as lições erradas: que você pode superar qualquer coisa tentando. Isso é incorreto. No mundo real, você precisa seguir ao lado dos outros. Você precisa cooperar e se comprometer. Você não pode entortar os mundos de acordo com seus princípios morais.

— A senhora teria reparado em mim se eu não tivesse tentado fazer isso?

Ela sorri com suavidade.

— Provavelmente, não.

Lysander volta momentos mais tarde, carregando uma caixinha de madeira. Ele a entrega à avó e espera paciente ao lado dela, comendo uma torta que Aja lhe dá. A Soberana deposita a caixa em cima da mesa.

— Você valoriza a confiança. Assim como eu. Vamos jogar um jogo sem armas, sem armaduras. Nada de Pretorianos. Nada de mentiras. Nada de falsidade. Apenas nós e nossas verdades nuas.

— Por quê?

— Se você vencer, pode pedir o que quiser de mim. Se eu vencer, obtenho a mesma coisa.

— Se eu pedir a cabeça de Cassius?

— Eu mesma a serrarei. Agora abra a caixa.

Eu me curvo para a frente. A cadeira range. A chuva bate nas janelas. Lysander sorri. Aja observa minhas mãos. E Fitchner, como eu, não faz ideia do que se encontra dentro dessa porra de caixa.

Eu a abro.


15

Verdade

É necessário me concentrar em tudo o que eu sou para não fugir. O que vem sibilando da caixa é tirado de um pesadelo, tirado tão perfeitamente das profundezas do meu subconsciente que quase penso que a Soberana sabe de onde venho. De onde venho de verdade.

— Trata-se de um jogo de perguntas — diz ela. — Lysander, por favor, faça as honras. — Ela entrega ao neto uma faca. O menino corta a manga do meu uniforme até o cotovelo, enrolando-a para cima para expor meu antebraço. Suas mãos são delicadas. Ele sorri para mim como quem se desculpa.

— Não tenha medo — diz ele. — Não vai acontecer nada de ruim, contanto que você não minta.

As criaturas entalhadas dentro da caixa — duas delas — olham fixo para mim com três olhos cegos cada uma. Parte escorpião. Parte víbora-das-cavidades. Parte centopeia. Elas se movem como vidro líquido, órgãos, esqueleto, visíveis através da pele, bocas de quitinos balbuciando e sibilando ao mesmo tempo à medida que uma delas desliza para cima da mesa.

— Nada de mentiras — digo, forçando um riso. — Essa é uma ordem divertida quando se é uma criança.

— Ele nunca mente — diz Aja, orgulhosa. — Nenhum de nós mente. Mentiras são ferrugem em ferro. Uma mancha no poder.

Poder do qual eles são tão inebriados que nem conseguem se lembrar da quantidade de mentiras na qual se sustentam. Diga ao meu povo que você não mente, sua piranha animalesca, e veja o que eles fazem com você.

— Eu chamo essas coisas aqui de Oráculos — diz a Soberana. Um dos anéis produz ondas líquidas, formando uma concha sobre o dedo, transformando-o numa garra, uma agulha crescendo pouco a pouco na extremidade. Com essa agulha, ela pica meu pulso e diz as palavras: “Confiança acima de tudo”.

Um Oráculo desliza para a frente, deslocando-se para cima do meu braço, enroscando-se ao redor do meu pulso. Sua estranha boca procura o sangue, grudando-se como se fosse um sanguessuga. Seu rabo de escorpião faz um arco de dez centímetros para cima, mexendo-se como uma tábua ao vento de verão. A Soberana pica seu próprio punho, repete o juramento, e o segundo Oráculo desliza da caixa.

— Zanzibar, o Entalhador, projetou isso especialmente pra mim nos seus laboratórios do Himalaia — diz ela. — O veneno não vai te matar. Mas tenho celas cheias de homens que jogaram este jogo e perderam. Se existir um inferno, o que há nessa picada é tão próximo dele quanto a ciência permitiu que nos aproximássemos.

Minha pulsação acelera à medida que observo o rabo balançar.

— Sessenta e cinco — diz Aja acerca da minha pulsação. — Ele estava em repouso em vinte e nove batidas por minuto.

A Soberana levanta a cabeça ao ouvir isso.

— Vinte e nove? Assim tão baixo?

— Quando é que meus ouvidos se equivocam?

— Acalme-se, Andromedus — diz a Soberana. — O Oráculo é projetado pra medir a verdade. Ela se encontra nas flutuações de temperatura, na química do sangue, na pulsação cardíaca.

— Você não precisa jogar se não quiser, Darrow — ronrona Aja. — Você pode seguir pelo caminho mais fácil com os Pretorianos. A morte não é tão ruim assim.

Olho com raiva para a Soberana.

— Vamos jogar.

— Você me assassinaria esta noite se pudesse?

— Não.

Nós todos observamos o Oráculo. Inclusive eu. Depois de um momento, nada acontece. Engulo em seco de alívio. A Soberana sorri.

— Este jogo não tem um fim — murmuro. — Como é possível eu ao menos vencê-lo?

— Fazendo com que eu minta.

— Quantas vezes você já jogou este jogo? — pergunto.

— Setenta e uma. No fim, confiei apenas numa outra pessoa. Onde Augustus esconde suas armas eletromagnéticas não registradas?

— Depósitos nos asteroides, arsenais escondidos espalhados por cidades de Marte. — Listo os detalhes. — E no tablado da sala de recepção dele. — Isso os surpreende. — Onde estão as suas?

A Soberana lista sessenta localizações em ordem rápida. Ela conta tudo, porque nunca está perdida. Nunca teve de se importar com informações saindo pela porta. Quanta confiança.

— O que aquele pingente Pégaso significa pra você? — pergunta ela. — É do seu pai?

Baixo os olhos. O Pégaso transborda da minha camisa.

— Significa esperança. Parte do legado do meu pai. Você ajudou Karnus na Academia?

— Ajudei. Dei-lhe aquela nave com a qual ele te arrebentou. Você pretendia mesmo se lançar na ponte dele?

— Sim. Por que você trouxe Virginia pro seu círculo pessoal?

— Pelo mesmo motivo que você se apaixonou por ela.

Minha pulsação acelera. Aja sorri, ouvindo-a.

— Virginia é especial. E nós duas tivemos pais que... deixaram muito a desejar. Quando eu era menina, teria dado tudo pra pertencer a uma família diferente. Mas eu era filha do Soberano. Dei a ela um presente que ninguém poderia ter me dado. Entenda, coleciono pessoas de quem gosto, Andromedus. Gosto até do Fitchner aí. Muitos talvez o vejam como alguém repugnante. Talvez pensem que sua herança seja inconveniente mas, como você, ele é muito talentoso. Quando lhe pedi que jogasse este jogo antes de se tornar um dos meus Cavaleiros Olímpicos, sabe o que ele disse?

— Posso imaginar.

— Fitchner...

Ele dá de ombros:

— Falei pra você enfiar a caixa na xereca. Não sou nenhum idiota.

— Acho até que você disse algo ainda mais grosseiro do que isso — resmunga Aja.

— Minha vez. — A Soberana examina seu Cavaleiro Raivoso. — Fitchner violou o juramento dele como Inspetor e roubou no Instituto Marte como os boatos me fariam crer?

— Sim — digo, observando o Oráculo em vez do meu velho Inspetor. — Ele roubou como os outros roubaram. — Sei que Fitchner não teria ganho esse posto se a Soberana não tivesse certeza da sua lealdade a ela e não a Augustus, o que significa que Fitchner deve ter limpado sua barra e lhe fornecido detalhes das transações nefastas de Augustus. Olho de relance para ele. — Embora eu não saiba se ele foi pago como os outros.

— Ele não foi. Erro deles — diz a Soberana. — Ele nos deu evidências em vídeo. Em áudio. Extratos de contas bancárias. Alavancas úteis contra cada Inspetor.

Sevro deve ter dado ao pai as tomadas em vídeo quando lhe pedi que fizesse os ajustes. Filho da puta cheio de recursos aquele. Ele gosta mesmo do pai, afinal de contas. Augustus mataria os dois se soubesse a respeito da duplicidade.

Quero interrogar a Soberana acerca de postos militares. Linhas de suprimento. Imperativos operacionais e medidas de segurança. Mas sei que isso pareceria estranho. Faria com que ela própria fizesse perguntas estranhas. O Oráculo fica um pouco apertado no meu braço, sugando apenas algumas gotinhas de sangue por vez. Não sei o quanto essa coisa é eficiente em sentir inverdades. Mas o que faço se ela me perguntar onde eu nasci? Quem é meu pai? Por que esfrego terra nos meus dedos antes de lutar? Merda. Ela poderia simplesmente me perguntar se sou Vermelho. Mas como ela poderia pensar em fazer isso a menos que eu lhe desse a sensação de que houvesse algo... inadequado a meu respeito?

— Alguém no meu círculo é seu espião? — pergunto.

— Muito astuto. Não. Aonde você foi com Victra au Julii três dias atrás? E o que vocês fizeram? — pergunta a Soberana.

— À Cidade Perdida. — De alguma maneira, o Oráculo sente que estou me contendo. Seu ferrão treme de excitação. — Pra me encontrar com o Chacal, o filho de Augustus. — O aperto se intensifica. — Pra estabelecer uma aliança. — Gotas de suor no meu colarinho e o Oráculo relaxa com a resposta suficiente. — Por que Lorn é chamado de Lado-de-pedra?

— Ele não te contou? Não é porque é duro como pedra, como lhe diriam hoje. É porque, em campanha na Rebelião Lunar, ele ficou famoso por comer qualquer coisa. E um dia um Cinza apostou com ele que Lorn não conseguiria comer pedra. Ele não recua nunca. Quando Lorn te dava aulas?

— Todas as manhãs antes da primeira luz, entre minha graduação no Instituto e a admissão na Academia.

— Incrível ninguém ter descoberto.

— Quantos Inigualáveis Maculados existem? — pergunto. — As informações do censo são muito difíceis de ser acessadas. — O Comitê de Controle de Qualidade é monstruoso quando resolve esconder seu material de alta qualidade.

— Existem 132.689, pra quase quarenta milhões de Ouros. Por que Lorn te aceitou como aluno?

— Porque ele acha que somos o mesmo tipo de homem. Quais são seus dois maiores temores?

— Octavia... — alerta Aja.

— Cale-se, Aja. Está tudo bem. — Ela olha para Lysander e sorri. — Meu maior temor é que meu neto cresça e se transforme em alguém parecido com meu pai. O segundo temor é a inevitabilidade do envelhecimento. Por que você chorou quando matou Julian au Bellona?

— Porque ele era mais gentil do que aquilo que o mundo lhe permitia ser. Você estava por trás do namoro de Virginia e Cassius?

— Não. Foi ideia dela.

Eu cultivara a esperança de que o namoro havia sido algo arranjado, algo que ela teria de fazer.

— Por que você cantou a balada Vermelha pra Virginia no Instituto?

— Porque ela esqueceu a letra, e considero essa canção a mais triste que já ouvi até hoje. — Faço uma pausa antes da pergunta seguinte.

— Você quer fazer outra pergunta sobre Virginia, não quer? — Os cantos dos seus lábios se contorcem de prazer à medida que ela toca na minha ferida. — Você quer saber se eu a darei a você caso se junte a mim? É possível.

— Ela não é uma coisa que possa ser dada — digo.

Ela ri, divertindo-se com minha inocência.

— Se você acha isso.

— Onde estão os três Centros de Comando do Espaço Profundo? — pergunto, imprudente.

Ela me dá as coordenadas sem pestanejar.

— Como você conhecia a letra da Canção do Ceifeiro?

— Ouvi a música quando era criança. E esqueço poucas coisas.

— Onde?

— Não é sua vez de perguntar — lembro a ela. — Por que você está me fazendo essas perguntas?

— Porque uma das minhas Fúrias me levou a desconfiar de que talvez os Filhos de Ares sejam algo diferente do que aquilo que imaginávamos. Algo mais perigoso. Quem é Ares?

Meu coração troveja.

— Não sei. — Observo o rabo do Oráculo. Não se mexe. — Quem você imagina que ele é?

— Seu mestre.

— Trinta e nove, quarenta e dois, cinquenta e seis... — diz Aja.

A Soberana balança um dedo longo.

— Estranho. Seu coração está te entregando.

Limpo a mente. Deixo tudo evanescer. Imagino as minas. Lembro o vento batendo nelas. Lembro as mãos dela nas minhas enquanto caminhávamos descalços através da terra fria até o local onde nos deitamos juntos pela primeira vez no espaço vazio de um distrito abandonado. Os sussurros dela. Como ela cantava a cantiga de ninar que minha mãe cantava para os meus irmãos e para mim.

— Cinquenta e cinco, quarenta e dois, trinta e nove — diz Aja.

— Augustus é Ares? — pergunta ela.

Uma sensação de alívio me inunda o corpo.

— Não. Ele não é Ares.

A porta bate com força atrás de mim. Nós nos viramos para ver Mustang, que avança para dentro da sala vestindo o uniforme ouro e branco da Casa Lune, com o símbolo da lua crescente da família e tudo. Um datapad refulge no seu pulso. Ela faz uma mesura para a Soberana.

— Minha suserana.

— Virginia, você ainda está em pandarecos — fala Aja, a voz arrastada.

— Pode pôr a culpa nesse filho da puta aqui — diz Mustang, balançando a cabeça na minha direção. — Setenta e três mortos. Duas famílias nascidas-na-Terra apagadas do mapa, nenhuma das quais tinha nada a ver com Bellona ou Augustus. Mais de duzentos feridos. — Ela balança a cabeça. — Abati todas as naves como você pediu, Octavia. O comando Pretoriano iniciou uma zona de bloqueio aéreo em órbita. Todos os cruzadores de propriedade familiar tiveram suas garantias revogadas e estão sendo empurrados para além dos Faróis do Rubicão até darmos um novo aviso. E Cassius ainda está vivo. Ele está com os Amarelos. Entalhadores da Cidadela estão preparando planos pra substituir o braço.

A Soberana agradece e pede que ela se sente.

— Darrow e eu estamos nos conhecendo. Existe alguma pergunta que você acha que deveríamos fazer a ele?

Mustang senta-se ao lado da Soberana.

— Meu conselho, minha suserana? Não tente solucionar Darrow. Ele é um quebra-cabeça com peças ausentes.

— Isso é bastante ofensivo — digo de modo brincalhão. Mas as palavras dela magoam.

— Então você acha que deveríamos mantê-lo?

— Cassius e a mãe dele irão... — começa Mustang.

— Irão o quê? — interrompe a Soberana. — Fiz de Cassius um Cavaleiro Olímpico. Ele será grato, e estudará sua lâmina de modo que isso não volte a acontecer. — Seu rosto adquire feições mais suaves e ela toca o joelho de Mustang. — Você está bem, querida?

— Estou bem. Parece que interrompi o jogo de vocês.

Não tenho como dizer qual das mulheres está jogando com a outra. Mas com as palavras de Karnus no baile de gala, e o conhecimento de que as naves foram abatidas antes mesmo de eu ter começado a escaramuça, sei que a Soberana tinha planos. E agora acho que consigo esmiuçar exatamente quais são eles.

— Uma última pergunta. Eu a estava guardando pro final.

— Faça a pergunta, rapaz. Não temos segredos aqui. Mas ela precisa ser a última. Agrippina au Julii já está esperando há muito tempo. — Aja abre a caixa de modo que os Oráculos possam voltar para dentro dela.

— Esta noite, no baile de gala, durante o sexto prato do jantar, você estava planejando permitir que os Bellona assassinassem o ArquiGovernador Augustus e todos aqueles que estavam sentados na mesa dele?

Aja congela. Mustang se vira devagar e olha para a Soberana, cujo rosto não exibe nenhum sinal de desonestidade. A mulher respira facilmente e, com um suave sorriso, mente através dos dentes.

— Não — diz ela. — Eu não estava planejando fazer isso.

O rabo farpado do Oráculo ataca a carne dela.


16

O jogo

A lâmina de Fitchner zumbe, e ele decepa o rabo com uma rapidez maior do que a desprendida por uma abelha ao bater as asas. Ele cai no chão, o ferrão transparente sibilando veneno. No braço da Soberana, a criatura ferida grita. Choramingando e se contorcendo como um gato moribundo. A Soberana a arranca de cima do braço e a lança na parede. Minha criatura se solta de mim sem pressa, como se conectada à outra. Miando pateticamente, ela volta à caixa para se esconder na escuridão. Enxugo a tênue faixa de sangue que ela deixou no meu antebraço esquerdo.

— Então você de fato mente — digo com um risinho malévolo.

A Soberana exala um longo suspiro.

Mustang levanta-se, enraivecida.

— Você prometeu que jamais faria mal a eles. Você mentiu.

— Sim. — Octavia esfrega as têmporas. — Uma questão de necessidade.

— Você disse que não havia mentiras aqui — sibila Mustang. — Isso era uma precondição pra minha lealdade a você. A única coisa que eu pedi, e você planejou fazer isso enquanto eu assistia a tudo?

— Sente-se. — A Soberana levanta-se, ficando nariz a nariz com Mustang. — Sente-se.

Mustang senta-se, respirando fundo. Ela se recusa a olhar para mim ou para a Soberana. Está cercada de traição. A Soberana nota isso, tecendo uma nova estratégia enquanto Mustang tira um anel de ouro do bolso e o rola compulsivamente entre os dedos.

— Você sabe por que preciso acabar com sua família? — pergunta Octavia a Mustang. Ela não responde. — Eu te fiz uma pergunta, Virginia. Ponha de lado essa petulância e responda.

— Ele é uma ameaça à paz — responde Mustang, enfática, deslizando o anel para o dedo. — Ele desrespeita suas ordens. Ele não obedece às diretrizes financeiras. Ele cria obstáculos aos especialistas em hélio-3 pra obter ganhos políticos.

— Se eu tentasse retirá-lo do poder, o que aconteceria?

Mustang levanta os olhos para ela.

— Ele se rebelaria.

— Então o que devo fazer? Se ele se rebela enquanto está em Marte, o planeta se torna sua fortaleza. A quantia que me custaria pra arrancá-lo de lá, pra encontrá-lo, pra matá-lo, pra reinstaurar a ordem está... além da compreensão. Naves. Homens. Comida. Munições. Comércio. Escassez de hélio-3. A Sociedade levaria anos e anos pra se recuperar. Não podemos nos dar ao luxo de ter um inimigo como ele. Mas também não podemos nos dar ao luxo de ter um aliado que nos afronta de maneira tão escancaradamente pública. E se os Governadores das Gigantes Gasosas pensassem que eram imunes às minhas ordens porque somos lenientes com seu pai? Porque o deixamos manipular os preços do hélio-3 ou ignorar as diretrizes da Soberana? Quarenta anos atrás, no meu primeiro ano de reinado, as Luas de Saturno se rebelaram. A guerra só terminou quando destruí a lua, Rhea, por completo. Cinquenta milhões de mortos. Esse é o tamanho da teimosia da nossa raça. Eles sabem o quanto é difícil pra mim flexionar a mão a bilhões de quilômetros do Cerne. Mas mesmo assim eles têm medo. Grande parte do poder de um soberano é fantasia criada pela imaginação das pessoas. Meu poder não são as naves. Não são os Pretorianos. Meu poder é o medo deles. Mas eles precisam ter lembranças frescas do medo.

— Portanto, minha família precisa funcionar como essa lembrança.

— Exato. Diga-me que isso não faz sentido.

Mustang permanece quieta por um longo momento.

— Esse é o movimento político mais lógico. Mas ele é meu pai...

— Esse é o motivo pelo qual não te contei nada. Avalie isso.

Ela balança a mão e um holo é acionado no chão, erguendo-se para preencher metade da sala. É de uma manifestação. Edifícios em chamas. Cinzas agredindo mulheres e homens com armas de pulsação. Ela muda a imagem. Uma dúzia de outras imagens dançam ao redor do recinto. Uma mulher cai na minha frente, morta. Um buraco no crânio. Ainda esfumaçando.

Baixo os olhos, subitamente horrorizado.

— Isso aí é Marte? — pergunto, temendo pela minha família.

— Você diria que sim, não diria? — A Soberana passa o dedo pelo cano de um pulsoRifle enquanto a arma atira. — É Vênus.

— Vênus? — sussurra Mustang. — Não há Filhos de Ares em Vênus.

— Nem haverá depois desta noite. A chama se espalha, chegando inclusive ao Cerne. Duas horas atrás, múltiplas explosões de bombas devastaram essa Sociedade. Meus políticos e Pretores e vários funcionários de alto nível ao redor do império deram início à Ordem Zero. Nenhuma mídia reportará isso. Onde quer que haja chamas, faremos quarentena. Nós os extinguiremos. Algo que seu pai não fez, Virginia. Na realidade, ele permitiu que os Filhos prosperassem. Que se espalhassem até aqui.

Eu avisei Harmony. Só espero que os Filhos não estejam todos mortos.

A Soberana se agacha em frente a Mustang.

— Seu pai precisa morrer. Ele enforcou a própria mulher que os Filhos usaram pra dar início a tudo isso. O rosto de Augustus queima em chamas em meio à propaganda política deles. Se ele se for, se nós os atacarmos, então eles desaparecerão. Mataremos dois coelhos com uma cajadada só. Façamos a transferência de poder pros Bellona e Marte pela primeira vez terá paz no meu reino. Ao custo total de cinquenta vidas apenas. Sei que ele é seu pai, mas você veio pro meu rebanho por um motivo.

Olhando para Mustang, agora compreendo esse motivo, e ele me parte o coração.

Ela se levanta sem pressa, caminhando até a janela como se estivesse fugindo da decisão. Ela mira uma nave passando na neblina distante.

— Quando mamãe estava viva, ele passeava comigo pela floresta. Parávamos nessa clareira cheia de flores silvestres e nos deitávamos nas flores vermelhas, os braços estendidos, fingindo que éramos anjos. Aquele homem está morto. Faça com o novo o que você bem entender.


17

O que a tempestade traz

Os Obsidianos me escoltam aos meus novos aposentos, e Fitchner segue logo atrás com uma passada jovial no piso de mármore. Quando alcançamos a porta, ele toma minha mão.

— Jogou bem, garotão. Boa leitura da Soberana, sabendo que ela quer o que não pode ter. Maldita astúcia da sua parte, hein? Meu coração se enche de orgulho ao perceber que por fim você está jogando o jogo e vencendo, seu babaquinha. — Ele me aperta o ombro. — Amanhã vamos ao mercado comprar uns serviçais pra você. Rosas. Azuis. Obsidianos. Todos seus. Por enquanto... deixei um presente aqui pra você. — Ele faz um gesto para o interior do meu quarto, onde uma delicada Rosa está deitada na cama. — Desfrute.

— Você não me conhece nem um pouco, hein?

Ele suspira e se curva para a frente.

— Essas são as cartas que a vida te deu. Não são nem um pouco ruins. Imagine as coisas que você pode fazer como emissário pessoal da Soberana. Ela faz seu Governador parecer um líder de favela de uma cidade pequena. Você tem sua garota. Você tem uma oportunidade. Abrace sua nova vida.

A porta é batida.

Uma nova vida, mas ela vale o custo? Não sei o que está acontecendo com os Filhos. Isso é algo que não tenho como deduzir. Mas ele espera que eu deixe Roque morrer? Que eu deixe Tactus e Victra e Theodora perecerem para os esquadrões da morte Pretorianos?

Ando pela minha suíte, ignorando a Rosa. As nuvens noturnas de Luna se espalham até onde a vista alcança, além da imensa bancada de janelas que compõem a parede norte da suíte. Edifícios perfuram as nuvens como lanças cintilantes.

Estou numa armadilha de opulência.

A chuva continua a cair. As tempestades de Luna são criaturas enigmáticas. Para um homem de Marte, trata-se de uma chuva lenta. Letárgica. Como se as gotas se cansassem da sua própria queda nessa baixa gravidade. Mas os ventos que chegam são ventanias. Não há rachaduras nas janelas da Cidadela através das quais o vento possa assobiar. Sinto falta dos gemidos do meu antigo castelo em Marte. Sinto falta dos lamentos das minas profundas. Aqueles momentos nos quais a perfuratriz ficava fresca e eu ficava lá sentado tocando minha faixa matrimonial por cima do meu traje-forno, pensando que demoraria pouco até que os lábios dela estivessem grudados nos meus, que as mãos dela estivessem na minha cintura, que o corpo dela vagasse na sua leveza semelhante a poeira para cima do meu.

Mas não consigo pensar apenas na garota Vermelha. Quando vejo a lua, penso no sol: Mustang é uma brasa viva nos meus pensamentos. Se Eo tinha cheiro de ferrugem e de terra, então a garota Dourada é fogo e folhas mortas.

Parte de mim gostaria muito que eu me lembrasse apenas de Eo. Que minha mente pertencesse a ela apenas, de modo que eu pudesse ser como um daqueles cavaleiros lendários. Um homem tão apaixonado por alguém que não existe mais a ponto de fechar o coração a todas as outras pessoas. Mas não sou uma lenda. De tantas maneiras, ainda sou um menino, perdido e com medo, em busca de aconchego e amor. Quando me sinto sujo, honro Eo. E quando vejo fogo, lembro-me do calor e do tremeluzir das chamas ao longo da pele de Mustang quando estávamos deitados na nossa câmara de gelo e neve.

Examino o cômodo vazio, que não recende nem a folhas nem a terra, mas a cardamomo. O cômodo é vasto demais para o meu gosto. Rico demais. Há marfim nas paredes. Uma sauna. Uma sala de massagem adjacente a uma Câmara de prazer. Há uma comuCadeira, uma cama, uma pequena piscina. Esses são meus aposentos agora. Eu vejo num datArquivo que recebi um estipêndio de cinquenta milhões de créditos para escolher meus atendentes. Eles me deixaram um adicional de dez milhões para povoar meu harém. Esse é o preço que eles me pagam por eu trair meus amigos. Não é suficiente.

Meus olhos caem agora sobre a Rosa que está deitada na minha cama. Nua, envolta apenas por um cobertor. Joguei o cobertor sobre ela para mascarar sua forma, pensando na pobre Evey quando a vi pela primeira vez. Porém, quanto mais me demoro olhando para essa nova garota, mais difícil é lembrar de Evey, lembrar de Eo ou de Mustang. É para isso que servem os Rosas, para ajudá-lo a esquecer. Tão eficientes que inclusive fazem com que você esqueça as tristes agruras deles próprios. Quando ela envelhecer, será vendida pelo staff da Cidadela a algum bordel de alta classe. E mais algumas rugas irão se formar e ela será vendida escada abaixo e escada abaixo até não ter nada mais a oferecer. Isso acontece com homens. Isso acontece com mulheres. E, começo a perceber, isso acontece com Ouros.

A Rosa pede que eu me junte a ela. Que eu a deixe apascentar o que está me afligindo. Eu me sento na beirada da janela, minhas mãos massageando as coxas, esperando. Não estou com minha lâmina. Obsidianos guardam o corredor do lado de fora. A janela de vidro não se quebrará por meio algum que eu tenha à minha disposição, mas não me preocupo. Fico lá sentado acompanhando a tempestade, sentindo uma outra brisa dentro de mim mesmo.

Com um sibilo, a porta se abre. Eu me viro, um sorriso já irrompendo no meu rosto.

— Mustang, eu...

Pela porta desliza um circunspecto Rosa do sexo masculino com cabelos brancos e olhos que partiriam milhares de corações em Lykos. Eles partem o meu agora. Eu estava errado.

— Quem é você? — pergunto.

Ele deposita uma caixinha de ônix em cima da minha cama em frente à outra Rosa.

— Quem mandou isso? — exijo saber.

— Você verá, dominus — diz ele. Com delicadeza, ele estende uma das mãos para a outra Rosa que, confusa, a segura e o segue quarto afora. A porta se fecha. Estou tão confuso quanto a Rosa. Corro para a caixa, abrindo-a, e encontro um pequeno holoCubo. Eu o ativo.

O rosto de Mustang aparece, refulgindo.

— Proteja-se — diz ela.

A energia acaba e a porta é trancada automaticamente. O recinto mergulha na escuridão. Relâmpagos explodem em meio às nuvens do lado de fora; trovões ribombam. E ouço algo. Um uivo. Não é o vento.

Um outro lampejo de relâmpago e ele aparece, flutuando na amarga tempestade como o mais horrendo dos anjos expelidos do paraíso. Uma pele de lobo pende dos seus ombros, chicoteia ao vento. Seu capacete preto de metal é o de uma cabeça de lobo, e ele está armado até os dentes, cacete.

Sevro veio e trouxe amigos.

Relâmpagos. Trovões de novo, e dessa vez eles iluminam o sorriso que lhe atravessa o rosto e os oito matadores flutuando atrás dele. Nove Uivadores ao todo. Demoninhos cruéis esperando na escuridão silhuetados pelo estalar produzido pela eletricidade da tempestade. Quinn das pernas compridas também está lá.

Entro na sauna enquanto Sevro toca o vidro com um pulsoPunho depois de ativar uma embaralhÁrea para absorver o som. O vidro se rompe para dentro. O som distorcido da tempestade os segue enquanto eles caem no piso de mármore acarpetado com um pequeno baque. O vento chicoteia minhas cobertas e tapeçarias. Um a um eles se ajoelham: a rechonchuda Pedrinha, a cruel Harpia, o magricela e franco Palhaço e todos os outros.

— Amigos. Levantem-se! — berro. — Vocês já são baixinhos o bastante.

Eles riem e se levantam. Pedrinha e Palhaço avançam e soldam minha porta de metal com tochas de plasma.

A água respinga do nariz aquilino de Sevro enquanto ele acena com a cabeça para mim, seu capacete sendo absorvido pela armadura. Cabelos esvoaçantes no formato de dragões. Quieto, e tão cheio de escárnio, ele ergue uma imensa e pesada bolsa com a outra mão. E quando anda, ele se move desdenhando dessa baixa gravidade. Como se fosse uma coisa para fracotes e tolos.

— Lorde Ceifeiro. Você está parecendo um Pixie nesse covil de mocinhas. — Sevro faz uma mesura teatral depois de depositar a bolsa aos meus pés. — Talvez seja por isso que Mustang imaginava que você estivesse extremamente necessitado do seu maldito pacote.

— Ela trouxe você de volta da Borda?

— Todos nós — diz Quinn. — Estamos aqui há várias semanas na espera. Ela precisava de pessoas que pudesse ter certeza de que não seriam leais à Soberana.

Uma política de garantias. Não consigo acreditar que tenha duvidado dela.

Em mundo algum Mustang teria ajudado a matar seu pai. Percebi durante minha conversa com a Soberana que só poderia ter sido esse o motivo pelo qual ela estava aqui, para começo de conversa — para se infiltrar na família da Soberana como me infiltrei nos Ouros. Assim que ela entrou na suíte da Soberana, lembrei-me de como antes do duelo ela mencionou ter seu próprio plano. Agora ele afinal faz sentido. Ambas estavam jogando seus próprios jogos, mas eu ajudei a revelar as cartas que a Soberana dispunha.

A Soberana não estava preocupada com o fato de que eu pudesse saber de algo. Do contrário, por que jogar o jogo? Contudo, assim que Mustang entrou na sala, o paradigma se alterou. Ela deveria ter concluído o jogo ali mesmo. Mas seu orgulho falou mais alto.

Quanto a Mustang, eu soube que ela estava comigo assim que tirou do bolso o anel com o cavalo dourado que eu lhe dei e o deslizou para o dedo. Meu coração deu um salto naquele momento, e eu soube que ela encontraria uma maneira de nos tirar daquela situação.

— Sevro. — Sorrio e aperto a mão dele. — Nosso ArquiGovernador está...

— Eu sei. Mustang nos informou.

— Venha cá, seu demônio gigante. — Quinn passa pelos outros e desliza o braço magro pela minha cintura e beija meu rosto. Ela cheira a lar. Senti falta dessas pessoas. O vento uiva ao passar pela nossa embaralhÁrea. O olho biônico de Sevro cintila de um modo não natural. Quinn trouxe para mim gravBotas cor de ébano. Eu as calço.

— Mustang pode ter nos trazido da Borda. Mas a gente não veio pra cá por ela. A gente não veio por Augustus. A gente veio por você, Ceifeiro — rosna Sevro. Quinn franze o cenho quando ele cospe no tapete bonitinho. — A gente viu o que você fez com Cassius. E a gente quer o que você está tentando fazer.

— E o que é isso mesmo? — pergunto, mais do que um pouco confuso.

— O que os pobres matadores sempre querem. Guerra — grunhe ele. — E todos os despojos dela.

— E seu pai? Ele agora está num lugar bem alto.

— Fitchner é um comedor de merda — diz ele, escarnecendo. — Ele fez sua cama. Agora deixe que ele durma nela enquanto a gente toca fogo na casa.

— Bom, se vocês querem guerra, se vocês querem despojos, é melhor a gente se mexer. Quem tem um exército é o ArquiGovernador.

Quinn balança a cabeça em concordância.

— E Roque está lá. E Tactus.

— Tactus — murmura Sevro, embora eu saiba que o escárnio no seu rosto é para Roque. Ele observa Quinn, com os olhos tristes por um instante antes de ajustar a armadura.

— Então qual é o plano? — pergunto, e pego a lâmina que Pedrinha me oferece.

Sevro e Quinn olham um para o outro e riem.

— Mustang está arrumando uma nave. Ela disse que você entenderia o resto — diz Quinn.

Só então a porta atrás de mim estremece e brilha com uma pupila dilatante e vermelha de metal quente e eu noto algo. A bolsa que Sevro jogou no chão. Ela está se mexendo.

Sevro sorri para mim. Conheço esse sorriso.

— Sevro?

— Ceifeiro.

— O que você fez?

— Mustang trouxe um pacote pra gente. Digamos que... — Quinn dá um risinho por cima do meu ombro — ... não se trata do cozinheiro deles.

Abro a bolsa e fico boquiaberto.

— Você ficou maluco? — pergunto a ele.

Ele apenas uiva.


18

Manchas de sangue

Papai uma vez me disse que um Mergulhador-do-Inferno nunca pode parar. Você para e a perfuratriz pode escangalhar. O combustível queima rápido demais. A cota pode vir a ser perdida. Você nunca para, apenas troca as perfuratrizes se a fricção ficar quente demais. A cautela vem em segundo lugar. Use sua inércia, seu impulso. É por isso que dançamos. Transferimos movimento para mais movimento. Tio Narol sempre me disse para parar. Ele estava errado. Perdi muitos pedaços de minério na perfuratriz por causa dele.

Mas também, Narol viveu mais tempo do que papai, portanto é provável que ele tenha alguma razão.

Meus Uivadores saltam comigo pela janela e não paramos quando mergulhamos em direção ao interior da tempestade preta. Descemos em queda livre, furando as nuvens sem o uso das nossas gravBotas. Como chuva preta gritando na direção do chão. Sou o primeiro. Eu os sinto atrás de mim. Meus Uivadores. O oxigênio é rarefeito a princípio. Prendo a respiração. Meus globos oculares quase congelam. Lágrimas escorrem. Meu corpo estremece à medida que o vento frio me açoita.

Usamos nossas gravBotas agora para cruzar a Cidadela. Para passar no meio das nuvens sem sermos vistos. Villas abaixo. Edifícios, jardins e parques. Quartéis e praças com estátuas. Uma rasgAsa corta o céu. Deslizamos atrás de um espigão e nos grudamos lá como aranhas até que nossos rastreadores dizem que ele passou. Eu tremo em meio aos meus amigos vestidos nas suas armaduras. Em seguida flutuamos de novo para baixo. Um quilômetro distante da villa. Erva carrega o presente de Sevro agora. Preso nas suas costas, o peso faz com que ele fique um pouco curvado.

Aterrisso no muro que cerca a villa e a separa das outras construções onde várias famílias notáveis estão agachadas com medo do que a noite pode proporcionar.

Agora que estamos mais baixo no chão, a temperatura está mais quente. Os Uivadores aterrissam ao meu redor, parecendo gárgulas no muro. A escuridão toma conta do terreno da villa.

— Chegamos cedo demais? — pergunto. Nenhum sinal de combate. Mas as luzes estão apagadas.

— Ou tarde demais — diz Sevro —, se eles foram assassinados na cama.

— A coisa toda precisa parecer um massacre dos Bellona. A Soberana não vai querer ter participação em nada. — Mas o que isso ao menos significa? Os Bellona viriam com os Cinzas, Obsidianos, Ouros e, apesar de toda a honra que alardeiam, eles destruiriam todos, até a última criança e mulher, com quaisquer meios de que dispusessem. Você não deixa o pé no pescoço de um inimigo e continua poderoso, como aconteceu com eles, por centenas de anos.

Entretanto, a matança será silenciosa. A Soberana pode controlar a Cidadela, mas o caos traria olhos que não seriam bem-vindos, variáveis que não seriam bem-vindas, e faria com que ela parecesse fraca. É melhor realizar a ação. É melhor dizer que os Bellona fizeram isso e que se dane o que alguém pensar a respeito. Com os Augustinos mortos, que sentido poderia haver em pranteá-los? É assim que os Ouros pensam. Mas se eles estão vivos tendo escapado dos assassínios... Bem, então essa é uma situação completamente diferente.

— Quinn. — Eu me aproximo para poder ouvir o sussurro dela.

— O visual está muito claro. Se eles têm instrumentos óticos, vão nos avistar aqui em cima do muro. — Ela aponta para o telhado. — A gente pode fazer uma incursão até lá. Fazer uma varredura andar por andar. — Sinto a preocupação na sua voz.

— A gente vai pegar Roque — digo. — Eu prometo. — Dou um tapinha no braço dela. — Sevro, quanto tempo até a gente conseguir o ônibus espacial?

— Mustang está a dez daqui.

Estalo o pescoço e enxugo a chuva entre os dedos.

— Per aspera ad astra.

— Através dos espinhos até as estrelas — diz Sevro, dando um risinho. — Seu putinho pedante. Omnis vir lupus. — Todos são lobos. Os Uivadores exibem sorrisos uns aos outros e saltamos do muro.

Aterrissamos no telhado. Silencioso e escuro. Erva permanece no alto do muro com o presente de Mustang se contorcendo na bolsa. Predadores, nós nos esgueiramos sobre telhas, passamos por uma janela e entramos no sétimo andar da villa, dois por vez. O lugar é um complexo. Dúzias de salas. Sete andares. Fontes passando por todas as partes. Banheiras. Porão. Saunas. Então o infravermelho deles não funciona. Muita água quente pelos dutos. Aqui é silencioso como uma cripta.

Nós nos esgueiramos adiante, verificando os quartos, fluindo como água um ao redor do outro como fazíamos no Instituto. Sevro e Cardo à frente como fantasmas, fazendo o reconhecimento do terreno. GravBotas desativadas para que o zumbido não possa ser ouvido. Não há vivalma. Todos os cômodos vazios, camas desfeitas, incluindo a do ArquiGovernador. Os Augustinos não estão aqui. Nesse caso, onde estão?

Eles não dispõem de nenhum armamento militar além de algumas armaduras e lâminas e uns poucos pulsoPunhos. Os guarda-costas foram exterminados antes mesmo de eles terem regressado à villa. Augustus e seu séquito não poderiam ter escalado as paredes. Quem sabe eles fugiram usando gravBotas? Mas teriam sido avistados. Abatidos. Só conseguimos entrar porque não estamos sendo esperados.

— Capturados? — pergunta Sevro.

Não. Para os Pretorianos esta noite, os únicos bons Augustinos são os Augustinos mortos.

Pop.

Nós todos olhamos uns para os outros. Uma embaralhÁrea acaba de surgir. Uma grande. Estamos dentro dela. É provável que todo o complexo da villa esteja dentro dela. Algo está prestes a acontecer. Olho de relance pela janela e vejo uma sombra se movendo do outro lado do gramado. Três sombras na chuva. Eu me abaixo e sinalizo para Sevro. Pretorianos. FantasMantos. Meu coração sacode minhas costelas.

Ele se move na direção da janela, prestes a saltar para tentar matá-los. Eu o puxo de volta.

— O que você está fazendo, cacete? — sussurro.

Ele faz cara feia.

— Quero matar alguém.

— Ainda não, droga. Não somos um exército.

Não há ninguém no sétimo andar. Descemos por uma escada circular de mármore. As armaduras lubrificadas deles rangem de leve, ecoando pela escada cavernosa. Podemos ver o mármore do primeiro andar mais de trezentos metros abaixo, mas nenhum movimento. O primeiro sangue é encontrado no sexto andar, vazando da sauna. Puxo a porta aberta, com o coração latejando no pescoço, pronto para ver Ouros mutilados. É uma visão mais triste ainda.

Mais de vinte Rosas, Marrons e Violetas pensaram em se esconder nesse cômodo. Os Bellona e os Pretorianos os encontraram. Mataram-nos. É uma visão bizarra. Cada morte limpa demais. Ferimentos de golpes até no crânio. Apenas mostra como esses pobres serviçais tiveram poucas chances. Os Ouros os derrubaram como a um castelo. Dou uma busca em meio aos corpos freneticamente, na esperança de não encontrá-la. Rezando. Ela não está aqui — Theodora deve estar com os que restaram.

Uma raiva fria me preenche. Eu a sinto transbordar para os Uivadores.

Encontramos o primeiro Ouro morto na escada que leva ao quinto andar. Um antigo cavaleiro da minha casa. Sua morte não foi bonita. Encontramos um outro homem adiante perto de um gravElevador. Ele caiu como se estivesse defendendo o elevador enquanto os outros desciam.

Pela janela, avisto a lanceira Augustina que debochou das minhas habilidades com a lâmina não faz mais de um dia. Ela corre da casa em direção aos jardins. Uma forma se funde em meio à escuridão. Um Pretoriano Ouro com franjas púrpuras na armadura preta está no encalço dela. Dois Obsidianos Bellona a impedem de passar, forçando-a a se virar e a encarar seu perseguidor. Ele a mata com um golpe. Não há nada a ser feito. Sua morte é rápida demais. Num momento ela está arfando, temendo, correndo. No momento seguinte, ambas as partes dela caem no chão.

— Esses Pretorianos não brincam em serviço — murmura Sevro. Quinn olha para mim, e seus olhos traçam a ausência de armadura ou de um capacete. Ela oferece o dela. Eu a ignoro.

— Darrow, não percorremos todo esse caminho pra ver você morrendo por causa de um golpe na cabeça.

— Pare com isso — digo a ela. — Roque vai escrever mil malditos poemas se seu capacete voltar com um amassadinho que seja.

— Fique com o capacete, Q. — implora Sevro. — Ao menos porque eu odeio poemas.

Deslizo minha lâmina emprestada para a palma da mão e perambulo pelo andar. Na porta de cada cômodo, meu sangue fervilha. Espero encontrar o cadáver de Roque. Espero ver o corpo estraçalhado de Victra.

Sevro levanta a mão indicando a escada do quarto andar e faz um gesto para que eu avance. Deslizo na direção dele com Quinn e dou uma espiada abaixo. A poeira sobe pela escada circular. Além dela, no andar de baixo, sombras se movem. Mas não há barulho. Sevro se curva e põe um pedaço dos destroços na beira de uma balaustrada, fazendo um gesto para que eu observe. Os Uivadores se aglomeram ao redor, mirando, e eu enrijeço. Embora não haja som, o pedaço de detrito balança um pouco.

Vibrações no edifício.

Antes que Sevro e os outros possam me impedir, salto sobre a balaustrada e arrebento o centro da escadaria espiralada com dez vezes a velocidade que a gravidade desta lua permitiria. Pop. Entro no domínio de uma segunda embaralhÁrea e sons de guerra sacodem meu corpo. Explosões de concussão, gritarias, abrasadores sibilando ao disparar balas, armas de pulsão trinando como fantasmas dementes. Um instante antes de aterrissar, dou um puxão nas minhas gravBotas, fazendo com que meu corpo se contorça numa poderosa parada. Bato no mármore e faço um violento movimento com minha lâmina ao redor da cabeça. Quatro Cinzas Pretorianos morrem. Oito atingem o chão com um sonoro baque. Seus fantasMantos se desintegram como gelo fino numa janela submetido a um hálito quente.

Corpos espalhados pelos corredores. Detritos. Fogo. Cinzas e Obsidianos no encalço de Ouros Augustinos. Seis Cinzas dominam dois Ouros com trilhoRifles, munição magnética berrando em égides até ficarem sobrecarregados e entortarem para trás, consumindo os braços esquerdos dos Ouros. Cartuchos batem nos pulsoEscudos que cobrem os corpos deles, sobrecarregando o circuito energético. Os Cinzas deslizam para a frente com precisão ensaiada e atiram nos Ouros à queima-roupa, nas suas cabeças munidas de capacetes. A melhor armadura no sistema solar fica amassada e o homem e a mulher não existem mais. Os Cinzas se viram na minha direção, fazem mira com seus rifles e meus Uivadores fazem uma cascata ao meu redor. Suas égides pretas latejam de encontro aos braçais que cobrem seus antebraços esquerdos. Eles bloqueiam os tiros que vêm em sua direção. Sevro se afasta sorrateiramente da formação. Quinn o segue. Como fantasmas, eles tremeluzem, aparecendo e desaparecendo, movendo-se como fios gêmeos de fumaça. De alguma maneira, eles estão entre os Cinzas e em seguida de volta ao meu lado antes de os Cinzas despencarem ao chão.

Um novo tiroteio atinge nossa formação, quase arrancando minha cabeça desprotegida. Eu me abaixo atrás dos meus companheiros munidos de armadura. O terror lateja dentro de mim. Um Cinza aparece no corredor e nos alveja com um microTiro. Trinta diminutas bombas se espalham como um enxame de marimbondos. Cardo e Costas-Podres disparam no enxame com seus pulsoPunhos, desfazendo-o. Um lençol de fogo azulado forma ondas através do corredor. Um segundo enxame de bombas uiva depois do primeiro. Quinn desvia a energia para o seu gravPunho e atira no enxame de bombas pouco antes de elas acertarem o alvo. As bombas revertem sua trajetória, voltando pelo mesmo caminho de onde vieram, atingindo o esquadrão Cinza e explodindo em cima deles.

Não vamos durar muito tempo aqui. Nada vai durar, percebo, quando três Obsidianos Bellona surgem à nossa frente, Karnus au Bellona na trilha deles. Alguns dos meus amigos morrerão neste andar se lutarmos contra todos que tentam nos atingir. Há uma maneira melhor. Uma maneira mais astuta.

— Sevro, faça um buraco! — grito, apontando para um local sete andares acima de nós, no intervalo central da escadaria. Ele dispara seu pulsoPunho para cima e pedaços de pedra chovem ao nosso redor, mantidos em suspensão pelo gravPunho de Quinn. Sevro dispara de novo e a água chove através do buraco, rodopiando na bolha de gravidade criada por Quinn. Eu me levanto e berro: — Comigo!

Ascendemos para fora do caos antes que os Pretorianos caiam em cima de nós. Paro duzentos metros acima da villa. O vento açoita. Eu não tinha nenhum plano quando mergulhei até o primeiro andar. Pensei apenas nos meus amigos. Agora sei que os Uivadores e eu seremos mortos se lutarmos. Deixo a lâmina se enroscar placidamente em volta do meu braço. Instruo os Uivadores a fazerem o mesmo e rosno para a escuridão.

— aja! — Os Uivadores se fecham em torno de mim, nervosos enquanto flutuamos expostos acima da villa. A tempestade manda lençóis de chuva sobre nós. — aja!

Uma horda de Pretorianos se solta dos seus fantasMantos perto das fontes quentes e da lagoa, onde o infravermelho é lançado ao caos pelo calor da água. Dois Pretorianos ascendem em disparada do jardim, cortando em meio aos pinheiros, um deles um Manchado. Ele voa mais próximo, nivelando seu íonPunho com minha cabeça.

— Tire essa coisa do meu maldito rosto, seu cão Manchado. Você não reconhece aqueles que são melhores do que você? — Uma Ouro Pretoriana se junta a ele. Não a reconheço. Seu capacete serpenteante se enrosca na sua armadura púrpura e preta, mais lisa do que as armaduras dos Obsidianos. O rosto gracioso e implacável como um machado.

— Varga, calcanhar — retruca ela. O Manchado baixa a arma. Seu capacete desliza e entra na sua própria armadura Pretoriana, e descubro que Varga é uma mulher. Uma Obsidiana uma cabeça mais baixa do que eu, com uma tatuagem tribal consumindo seu rosto branco. Cabelos brancos batem ao vento atrás dela. Há mais cicatrizes no seu rosto do que o que eu tenho em todo o meu corpo.

— Cadela de ébano — retruca Sevro. — Vou lhe dar um tiro se ela rosnar de novo.

— Vocês faziam parte do esquadrão na escadaria? — A Ouro nos olha de relance, sem saber ao certo que conclusão tirar de mim e dos meus Uivadores. — Vocês mataram meus Cinzas.

— Não chore por Cinzas — digo. — Eles levantaram as mãos contra nós.

— Por que você está aqui? — Ela enxuga a chuva do rosto. — A Soberana o deixou confinado aos seus aposentos durante a noite. Você é responsável pela queda da energia?

— Meus negócios são os negócios da Soberana. — Ela não pode se dar ao luxo de não acreditar em mim.

A Pretoriana faz uma pausa por um átimo e percebo que ela dispõe de óptica nos olhos. Ela verifica seu banco de dados.

— Mentiroso.

A arma da Manchada sobe de novo.

— Você sabe quem eu sou, Pretoriana — digo com toda a autoridade que consigo reunir. — Você também sabe que não estou na sua lista de pessoas a serem mortas. Tenho imunidade.

— Revogada.

— Então me leve até Aja.

— Aja não está aqui.

— Não minta pra mim.

Sua óptica tremeluz na íris enquanto ela recebe um comando digital.

— Sigam-me.

Pousamos em pedras brancas e seguimos a Pretoriana através das árvores na direção da lagoa onde as fontes quentes desembocam.

— O que você está fazendo? — sussurra Sevro no meu ouvido, olhando para Varga. Ele faz figa para a mulher, com o dedo médio enrolado no indicador.

— Estou usando seu poder.

Aja está no jardim, flanqueada por alguns Bellona — dois Ouros, o resto Obsidianos. Apenas uma Manchada, Varga. A lagoa exala gavinhas de vapor ao redor dos ombros da Cavaleira Multiforme. Ela observa a água com indiferença, como uma criança observando a fogueira de um acampamento, esperando que uma tora seja queimada.

— Darrow? — ronrona Aja sem olhar para mim. — Você não está no seu quarto. — Ela olha de alto a baixo os Uivadores. Reconhece-os. — E vocês mataram meus homens. Fitchner estava errado em relação a você.

— Tenho algo que você vai querer — digo, enfático. — Mas recolha seus cães.

— Eles tentaram escapar antes de chegarmos, mesmo com suas gravBotas confiscadas. Tentativa tola. Tentaram entrar em contato com os Julii, mas eles foram comprados.

— Victra? — pergunto. Ela nos traiu.

— Viva. Com o resto. Ela será poupada graças à cooperação da mãe dela. Duas naves Augustinas fizeram um esforço pra ultrapassar nosso bloqueio em órbita. Nós as abatemos. Os Augustinos mais parecem texugos encurralados.

— Leões — lembro a ela.

Ela sacode sangue da sua lâmina.

— Nem tanto.

— Algum deles ainda está vivo? — Impeço que o pânico sobressaia na minha voz e olho de relance para a villa.

— Os prêmios estão.

Suspiro de alívio.

Ela deixa a lâmina escorregar para a mão. A arma se torna rígida e ela se vira na minha direção. Pupilas estreitas sorvem a luz.

— Seus amigos estão na lagoa. Eles se esconderam lá porque nosso infravermelho está cego devido ao calor da piscina. Uma última tentativa desesperada. Os sistemas de filtragem de ar nos capacetes deles já devem estar em curto-circuito por causa da Pulsação Eletromagnética. Portanto, tudo o que eles terão é o ar dentro dos seus capacetes. E pouco ar, por sinal. Não durarão quinze minutos. Aqueles que não têm capacetes... quem sabe seis minutos. Logo, logo eles vão vir à tona, como maçãs. — Ela sorri com prazer. — Eu os estou guardando pra Karnus; ele está lá dentro finalizando as distrações. Ele é uma delícia de se ver, não é?

A chuva quente tilinta nas nossas armaduras. O único som.

— Por que você está aqui, Andromedus, e não no seu quarto? — Aja brinca com sua lâmina, cortando ao meio gotas de chuva. — A Soberana foi muito clara.

— Tenho algo que você vai querer — repito.

— O que eu quero é que Octavia seja obedecida. Voe de volta ao seu quarto, rapaz, e tome uma boa chuveirada e acaricie a Rosa que deixamos na sua cama. Despeje sua raiva, ou seja lá o que isso for, dentro dela. E deixe seu juramento intacto. Não levante um dedo sequer contra mim. Você matou Cinzas apenas. Isso é fácil de se esquecer, certo? Volte, e ela vai considerar esse ato apenas um comportamento juvenil da sua parte. Fique, e ela adicionará seu cadáver e aqueles dos seus amigos Bronzeadinhos à pilha.

Os Uivadores ficam eriçados atrás de mim.

— Do mesmo jeito que você matou os serviçais? — pergunto acaloradamente. — Como se fossem ovelhas num abatedouro?

Aja se volta para a piscina.

— Já está na hora de você partir, Ceifeiro.

— Você é repulsiva. — Eu me aproximo dela. — Todo esse poder, e é dessa maneira que você o utiliza? Matando famílias no meio da maldita noite. O fato básico é o seguinte, você é uma desgraça. Espero que você se lembre da dor que proporcionou aos outros quando eu estiver em pé em cima do seu cadáver.

Ela se vira para mim com toda a sua fúria. A lâmina empunhada. Os olhos cintilando. Mas ela não pode tocar em mim. Não agora. Não esta noite.

— Darrow — fala Sevro com um súbito tom estranhamente agradável na voz.

— Pois não, Sevro.

— Toda essa conversa de lembrar disso e daquilo. Você não está se esquecendo de alguma coisa neste exato momento?

— Eu acho que ele está, sim — concorda Quinn. — Nosso sábio...

— ... porém esquecido Ceifeiro — termina Palhaço de um jeito bastante frívolo.

— Hummm. Mil perdões, Aja. Esqueci o que vim aqui te dizer. — Fico lá parado com a aparência atarantada.

Quinn suspira.

— A bolsa.

— Ah, sim! Obrigado por me lembrar, Sevro! — grito de maneira teatral. Aja não sabe o que diabo concluir a respeito dessa súbita brincadeira. — Diga pro Erva descer aqui.

Sevro fala no seu comunicador e um momento depois Erva se livra do seu fantasManto e voa do muro um quilômetro distante de onde estamos. Nós o observamos se aproximar. Pedrinha assobia uma canção alegre, recebendo em troca uma carranca da parte de Harpia e uma gargalhada de Sevro, que também se põe a assobiar. Os Pretorianos pensam que somos dementes. Há peles de lobo pendendo das nossas costas. Armadura preta feita sob medida. Capacetes de lobo. E ninguém com mais de dois metros de altura com exceção de Quinn e de mim mesmo. É como se fôssemos uma trupe circense de Violetas.

— Que joguinho é esse, afinal de contas? — exige saber Aja.

— Ninguém nunca fez uma brincadeira com você? — pergunto, surpreso. — Mais uma coisa a se lamentar.

Erva aterrissa à minha frente e me entrega a bolsa que Sevro me deu de presente. Aja pergunta o que há dentro dela.

— Mande seus homens na villa pararem a matança, e eu te digo.

— Não negocio com meninos — diz Aja.

Cutuco de leve a bolsa com minha bota, mostrando a Aja que o que quer que esteja dentro dela está vivo. Ela franze o cenho e talvez esteja começando a entender o que há lá dentro. Ela fala no comunicador para os seus homens baixarem as armas.

— O que tem dentro dessa maldita bolsa?

Eu a abro e tiro de dentro dela o herdeiro do Trono da Manhã como se fosse um coelho recém-caçado. As mãos e os pés de Lysander estão atados delicadamente, e um cachecol de seda foi amarrado em sua boca para impedi-lo de emitir algum ruído. Eu desamarro o cachecol.

— Oi, Aja — diz ele.

Aja avança na direção dele. Eu o puxo para trás.

— Ah! Ah! — Encosto minha lâmina no pescoço do menino, deixando-a se enroscar nele, do mesmo modo que o afetuoso Oráculo se enroscou no meu punho.

Aja congela. Seus Pretorianos observam quietos — capacetes pretos e capas púrpuras tornando-os sombras. Os poucos Bellona dão passos à frente. Aja faz um gesto para que eles recuem.

— A primeira pessoa que avançar será abatida por mim. Como eles te pegaram, Lysander? Seus guardas...

— Foi Mustang — diz ele. — Ela apareceu pra dar um alô. Abriu minha janela e me entregou aos Uivadores.

— Eles te machucaram?

— Sua vez de falar acabou, Aja — interrompo. — Você vai deixar os membros da minha Casa saírem da piscina. Você vai deixar que eles subam a bordo do ônibus espacial que disponibilizei pra eles. Você mandará as rasgAsas e os combatentes no céu e no espaço acima de Luna nos deixar passar. Ou então vou mandar meus Uivadores matar o garoto.

— Você prometeu proteger a Soberana — sussurra Aja. — E você faz... isso? Ele é um menino. Ele é indefeso.

— Isso faz parte do jogo — diz Lysander, muito sério. — Você está jogando, Aja. Todos nós estamos no tabuleiro.

— Entenda bem, ele é menos indefeso do que os serviçais que você chacinou esta noite — responde Quinn. — Menos indefeso do que aqueles que seu pai queimou em Rhea. Mas ele é um dos seus. Então, é claro que você se importa com ele.

— Você mataria uma família pra garantir a segurança da sua Soberana — digo com frieza. — Eu mataria uma criança pra garantir a segurança dos meus amigos. Se você falar mais alguma coisa, vou cortar a mão esquerda dele.

Ela sabe que eu mataria o menino.

Eu sei que eu não mataria. Não sou Karnus. Nem Evey ou Harmony, apesar do que eu gostaria que esses Ouros pensassem. Portanto, mesmo que eles desafiassem meu blefe, eu não mataria. De qualquer maneira, assim que eu o matasse, eles matariam todos os meus conhecidos. O assassinato seria em vão.

E é exatamente por isso que construo minha reputação como matador, para ter vantagem em situações como essa. Se eles conhecessem meu coração, matariam meus amigos um a um. Isso é uma aposta com alto grau de especulação.

Aposto no orgulho de dois tipos. O primeiro tipo de orgulho é o fato de que a Soberana não vai permitir que eu mate seu único neto, a quem ela treinou desde a infância para assumir seu lugar quando chegar o momento. O segundo tipo de orgulho é que, bem no fundo, ela não vai acreditar que seja uma grande perda o fato de Augustus e sua família escaparem hoje. Ela tem a vontade e os meios para nos caçar até os confins do sistema solar. Por que desafiar meu blefe e arriscar ter seu neto morto? Sei disso por causa da maneira pela qual ela matou o pai — não de primeira, mas apenas quando obteve o apoio de todos os antigos seguidores dele, só quando eles lhe pediram que se levantasse contra o tirano alto e governasse no lugar dele.

Uma mulher como ela tem paciência. Se a Soberana me falasse para fazer o pior, se ela gritasse para eu matar o menino e sofrer as consequências, isso seria uma atitude estúpida. Uma demonstração tosca e brutal de poder, como se dissesse: “Leve meu neto, você não tem como me atingir”. Não, em vez disso, ela fingirá fraqueza e me deixará ter essa vitória, e então proporcionará a eterna ruína para mim e para os meus. Muito justo. Jogaremos esse jogo numa outra oportunidade.

Uma nave ronca acima. Uma cegonha — construída para dispor tropas em couraçasEstelares para determinados objetivos, porém mais lenta do que rochas deslizando colina acima. As portas da baia se abrem duzentos metros para cima, como instruí. Contanto que o menino esteja conosco, a velocidade da nave não tem a mínima importância. É claro que Mustang planejou isso.

— Vamos pegar nosso povo agora, Aja. Diga aos seus homens que eles não devem fazer nada pra nos impedir.

Aja apenas olha fixo para mim, observando como uma pantera insultada num zoológico, olhos silenciosos, horríveis, como se estivesse desejando que as barras entre nós desaparecessem.

— Sevro, Cardo, verifiquem a villa. Vejam se alguém conseguiu sobreviver. — Eles saem em disparada. — Quinn, vigie o menino. O resto de vocês, tirem o ArquiGovernador e seu séquito da piscina.

— Você vai querer cancelar a ação das rasgAsas — digo a Aja. Eles estão piscando na escuridão quilômetros acima. — Tem barulho demais e essa coisa toda vai se transformar num pesadelo pra todos nós. A Soberana massacrando uma casa... mas a casa escapa! Que testamento mais pusilânime à avidez dela, à impotência dela. Que ruína isso pode vir a causar. — Sorrio afetadamente para ela. — Olhe, temo que algumas casas possam vir a fazer uma manifestação ao redor da casa aviltada. Algumas podem temer que também elas serão extintas como velas na noite. O que aconteceria à pobre Pax Solaris nesse caso?

Quinn fica comigo, com os dedos ansiosos na direção das suas armas enquanto Aja obedece aos meus comandos. Mantenho a mão no menino enquanto os outros Uivadores mergulham na água e emergem com membros da Casa Augustus grudados a eles, ensopados e arfando em busca de ar — alguns em roupas formais, outros usando armaduras, a maioria sem capacetes. Eles estavam compartilhando oxigênio, ao que parece.

Augustus segura-se nas costas de Harpia. O Chacal se agarra ao braço de Palhaço. Pliny se mantém nos próprios pés. Onde estão meus amigos?

Os Uivadores depositam os sobreviventes na baia da cegonha adejante bem no alto e voltam para pegar o resto. Victra é a próxima a ser trazida. Ela está sem capacete e ferida no pescoço. Mas se mantém grudada à sua lâmina como se a arma fosse a coisa que a estivesse levando para o ar. Seus olhos metralham iradamente os Pretorianos reunidos, e quando me encontram, soltam fagulhas contra os meus como pedaços de pedras de fogo. Sua raiva arrefece por um momento e vejo um sorriso de alegria que logo desaparece, e então ela grita:

— Vou lembrar de todos vocês com uma imensa alegria! — Ela ri tresloucadamente. — A começar por você, Aja au Grimmus. Vou fazer um casaco com sua pele.

Ela desaparece no ventre da embarcação acima. Roque é o próximo a entrar a bordo. Theodora está com ele. Rezo baixinho em agradecimento. Quinn toca meu ombro e acena para ele. O rosto magro de Roque explode num sorriso ao vê-la. Ele nem repara em mim. Em seguida também ele some, aterrissando nos fundos da nave. Cardo logo se junta a nós de regresso da propriedade, ajudando diversos sobreviventes, incluindo os Telemanus e Tactus, que está sangrando por uma dúzia de buracos na sua armadura dourada. Ele suportou uma luta feroz.

— Darrow? — grita ele. — Seu malucão filho da puta! — Ele vê o filho da Soberana e dá uma sonora gargalhada. — Mandou bem. Mandou muito bem! Eu te devo um drinque, meu bom-homem... — A voz de Tactus desaparece assim que ele desliza para o céu, embora ele consiga fazer uma figa com os dedos e apontá-la para Aja.

— Tactus — sussurra Lysander. — Ele é mais alto do que nos holos.

— Esse é o último deles — me diz Sevro.

— Diga pra sua mestra que nós de Marte não nos curvamos assim tão fácil — digo a Aja.

A chuva bate entre nós dois. Gotejando sobre o rosto escuro dela de modo que seus fantasmagóricos olhos flamejam na noite. Aja rompe o silêncio que eu havia imposto a ela:

— Foi isso que o Governador de Rhea disse quando meu Lorde Ash chegou pra acabar com a rebelião dele. — Sua voz não soa como a dela própria. É como se alguém estivesse falando através de Aja. — Ele olhou para o homem magro que enviei com a armada e riu, e perguntou por que ele deveria se curvar pra mim, a piranha patricida responsável pela morte de um tirano.

A Soberana está falando no ouvido de Aja, através do comunicador dela, com Aja repetindo as palavras. Meu sangue congela.

— O Governador de Rhea sentou-se no seu Trono de Gelo e seu lendário Palácio de Vidro e perguntou a um dos meus serviçais: “Quem é você pra exalar medo num homem como eu? Eu que descendo da família que entalhou o céu de um lugar onde no passado não havia nada além de um inferno de gelo e pedra. Quem é você pra me obrigar a me curvar?”. Então ele acertou Lorde Ash aqui sob o olho com seu cetro. “Volte pra casa, volte pra Luna. Volte pro Cerne, que é seu lar. A Região Externa é pra criaturas com corpos mais rígidos.” O Governador de Rhea não se curvou. Agora a lua dele não passa de cinzas. Sua família não passa de cinzas. Ele não passa de cinzas. Portanto, corra, Darrow au Andromedus. Corra de volta a Marte, pois minhas legiões o seguirão até os confins deste universo.

— Eu espero que sim — digo.

— Você tem uma única ficha a barganhar — lembra-me a Soberana através de Aja. — Meu neto é seu salvo-conduto. Se ele morrer, tiro sua nave do mapa. Use-o com sabedoria.

Por que ela está me dizendo algo que já sei?

— Está na hora de ir, Darrow. — Quinn encosta no meu ombro. Ela deposita a mão nas minhas costas, como se para me lembrar que eu não estou sozinho. Eu aceno para ela com a cabeça. Ela cobre minha retirada enquanto subo ao céu com o menino, a lâmina deslizando pelo seu pescoço.

Quinn olha os Pretorianos com cautela e ascende atrás de mim. Tenho uma única ficha a barganhar.

O que a Soberana quis dizer com isso? Será que ela estava me lembrando que eu poderia usá-la apenas uma vez? Só matar Lysander se estiver encurralado? Então percebo o porquê assim que Aja olha para Quinn ascendendo do chão, como um gato olha para um camundongo.

— Aja, não! — berra Lysander.

— Quinn! — grito.

Num átimo, Aja avança, mais rápida do que qualquer gato que já existiu. Ela agarra os cabelos de Quinn. Freneticamente, Quinn gira a lâmina para se desviar da investida da gigantesca mulher. Mas ela é lenta demais. Aja bate a cabeça de Quinn de encontro ao chão com a mão esquerda. Soca sua têmpora. Punho com armadura sobre osso. Quatro vezes antes de eu poder ao menos piscar um olho. As pernas de Quinn se debatem e se contorcem e seu corpo se curva para dentro como o de uma aranha moribunda depois de sofrer um ataque. Aja se afasta, olhando para mim com um sorriso no rosto.


19

Cegonha

Eles sabem que sou ousado. Quinn é a isca. Aja é o anzol. Eles vão levar Lysander se eu morder e atacar Aja. Eles vão usar a fração de segundo em que minha lâmina estiver distante dele para me atordoar ou me matar. Ouço as armas apontadas para mim, de modo que mantenho a lâmina encostada no pescoço do menininho. As lágrimas distorcem minha visão enquanto flutuo ali, impotente. Balanço a cabeça à medida que a agonia se avoluma. Não posso abandoná-la. Revertendo minhas botas, volto para pegá-la no chão. Mas antes que eu possa alcançá-la, um outro Ouro passa por mim como uma faísca, descendo de cima, esse aí sem armadura, para tirá-la do chão e sustentá-la no ar.

O Chacal.

Disparo para cima e para longe, através da chuva e pelas portas da baia, e aterrisso no interior da minha cegonha. Minhas botas tilintam no deque de metal e eu me ajoelho, empurrando Lysander para dentro da baia na direção de Sevro. O menino cai de joelhos. Várias dúzias de Augustinos gotejantes estão com os olhos fixos em mim. Eles se voltam para o menino. O Chacal surge em seguida, segurando Quinn desajeitadamente com um braço.

Nossa nave ascende e as portas sibilam atrás de nós. Roque abre caminho em meio aos outros para me ver, então seus olhos vão para o Chacal, para Quinn, a força escapando dele a cada segundo. O Chacal deposita Quinn com delicadeza no chão e desliga as incômodas gravBotas que pegou emprestado com um dos Uivadores.

A boca de Roque trabalha. Nenhum som sai dela.

— Ela está... — enfim ele murmura.

— Tem algum Amarelo a bordo? — pergunta-me o Chacal. Eu olho para Harpia.

Faço um gesto para ela apontando na direção das cabines principais.

— Encontre Mustang. Pergunte a ela.

Harpia sai em disparada.

— O medkit — retruca o Chacal, sentindo o pulso de Quinn. Ele verifica as pupilas dela. Ninguém se mexe. — Agora! — Roque se levanta de qualquer maneira para encontrar o kit. Pedrinha arrebenta uma parte da parede e joga para ele o kit. Roque o leva para o Chacal. Com a mente transformada em estática, olho para Quinn enquanto um outro ataque sacode o corpo dela e um som inumano escapa do seu nariz e boca. O rosto de Roque fica lívido ao meu lado. Suas mãos vão desamparadamente ao encontro da garota que ele ama, como se apenas sua vontade pudesse consertar o que foi quebrado; mas por dentro ele sabe que está desprovido de poder. Roque cai de joelhos.

O Chacal abre o medkit e remexe o conteúdo.

Sua única mão se move cheia de confiança pelos dispositivos no interior do kit até encontrar uma barrinha de prata não maior do que meu dedo indicador. Ele a agarra e ativa o dispositivo. O objeto zumbe suavemente, emitindo uma tênue luz azul.

— Preciso do datapad de alguém. O meu fritou na Pulsação Eletromagnética. — Ninguém se mexe. — A garota vai morrer. Um maldito datapad. Agora.

Entrego o meu a ele. O Chacal não olha para mim, embora faça uma pausa de um segundo quando vê minhas mãos distintas.

— Obrigado pelo resgate, Ceifeiro — diz ele apressadamente.

— Agradeça à sua irmã.

Lysander se levanta e se posta ao meu lado. Ele observa em silêncio, nenhuma lágrima nos olhos. Pedrinha e Palhaço sentam-se de cócoras. Ninguém toca em Roque, embora olhem de relance para ele, as mãos segurando com firmeza joelhos ou lâminas, sussurrando seja lá que orações à sorte os Ouros costumam sussurrar.

O Chacal passa o aparelho de ressonância magnética prateado pela cabeça de Quinn, observando o holograma no meu datapad. Ele xinga.

— O que é? — pergunta Roque.

O Chacal hesita.

— O cérebro dela está inchando. Se a gente não conseguir controlar a pressão, vai ser um problema. — Ele remexe o equipamento médico e desenrola uma máquina com um fio transparente. — Essa pressão vai impedir que o cérebro receba sangue em quantidade suficiente. Ele vai ficar à míngua quando as veias ficarem apertadas debaixo do inchaço.

— Ela vai morrer? — pergunto.

— Não por causa do inchaço — diz o Chacal. — Não se eu conseguir drenar o fluido e liberar a pressão enquanto ela estiver aumentando. Mas a gente vai precisar deixar a cabeça dela inclinada pra que o sangue possa fluir através das veias do pescoço. Vamos precisar também manter a pressão sanguínea dela estável. E arranjar um suprimento de oxigênio. — Ele olha para cima, tão magro e molhado que eu o consideraria um Vermelho ao invés de um Ouro não fossem os cabelos loiros. — Pedrinha, certo? Vá atrás de oxigênio. Uma máscara de respiração vai dar, contanto que não cubra o rosto dela até a testa.

Pedrinha desliza para longe.

Um novo ataque contorce o corpo de Quinn. Olho desamparadamente e deposito a mão no ombro de Roque. Ele estremece ao contato.

Harpia volta ao recinto.

— Nenhuma droga de Amarelo.

— Merda — xinga Palhaço. — Merda. Merda. Merda. Merda. — Ele chuta a parede.

O Chacal faz uma pausa, olhando de relance para Roque, e em seguida age. Ele aponta para Palhaço, Harpia e diversos membros da Casa.

— Preciso de uma pessoa pra cada um dos braços dela e pra cabeça. Ela vai continuar tendo esses ataques e, por algum motivo, desconfio que esse vai ser um deslocamento bem acidentado. A gente vai tirá-la desta droga de baia e mantê-la deitada pra cirurgia. — O Chacal puxa os cabelos dela, faz um rabo de cavalo, me pede para segurá-lo e puxa um pequeno ionizador de dentro do medkit. Ele aperta o objeto com os dentes sobre a mão, estremecendo à medida que destrói bactérias e folículos cutâneos secos. — Palhaço, pegue os cabelos dela, todos eles.

O Chacal se levanta e joga o ionizador para Palhaço, que se curva e está prestes a passá-lo pelos cabelos dourados de Quinn quando Roque pega o objeto da mão dele. Ele paira sobre Quinn, incapaz de se mexer.

— Qual é o nome dela? — pergunta-lhe o Chacal.

— Quinn.

— Converse com ela. Conte uma história pra ela.

Tremendo um pouco, Roque choraminga e fala em voz baixa com Quinn.

— Era uma vez, nos dias da Velha Terra, dois pombos que eram muito apaixonados... — Ele põe o pino no ionizador e mexe a mão. É uma ação íntima. Como se ele estivesse dando um banho nela. Só eles dois em algum lugar remoto. Muito antes de ela contar histórias ao redor da fogueira dos acampamentos do Instituto. Muito antes do horror.

Sinto cheiro de cabelo queimado quando o Chacal se levanta e vem até onde estou.

— O que aconteceu lá embaixo? — pergunta ele. — Foi um pulsoPunho?

Olho para ele, surpreso.

— Você não viu? Aja usou as mãos.

— Maldição. — A mandíbula dele enrijece, seus olhos baços absorvendo a cena. — Como a gente chegou a esse ponto?

— Octavia estava seguindo esse objetivo o tempo todo — digo baixinho. — Antes mesmo de a gente vir pra Marte, ela já tinha a intenção de dar aos Bellona o ArquiGoverno. O baile de gala foi uma armadilha.

— Quando você descobriu isso? Antes ou depois do duelo?

— Antes — minto.

— Bem jogado. Faz a gente parecer a vítima. Entendo que Mustang fracassou na tarefa dela.

— Seu pai a enviou pra que ela se infiltrasse na corte de Octavia?

— Não. Imagino se isso não foi ideia dela própria. Aproximar-se do dragão...

— Os Julii também estão contra nós.

Ele balança a cabeça, pensativo.

— Faz sentido. Alguns políticos tentaram tirar Victra de nós antes de Karnus e Aja chegarem.

— Você não parece preocupado.

— Victra é a filha favorita da mãe dela. — Ele balança a cabeça, lembrando-se de algo. — Mas ela trouxe três Obsidianos pra mim. Três. Ela está com a gente, de corpo e alma.

Observo Roque terminar de remover os cabelos de Quinn.

— Ela vai viver? — pergunto em voz baixa.

— Ela está com fragmentos de osso no tecido cerebral. Mesmo que a gente consiga parar o inchamento, ela está com uma hemorragia. Uma hemorragia grave.

Olhamos para Quinn, sua cabeça agora calva. O rosto tranquilo. Apenas pequenas contusões na lateral do crânio. Ninguém jamais adivinharia que ela estivesse morrendo por dentro. Roque acaricia a testa dela com muita delicadeza, sussurrando coisas suaves.

— Você consegue salvá-la? — Eu me viro para o Chacal. — Existe alguma chance?

— Não aqui. Se você levar a gente pra uma medBaia, aí sim, existe uma chance muito boa.

Roque canta uma canção suave para Quinn à medida que eles erguem seu corpo para levá-lo a uma outra sala. A canção foi feita por ele ao redor de uma fogueira de acampamento enquanto meu exército comia nas terras altas. Quinn estava com Cassius nessa ocasião, como parece que acontece com todas as mulheres num momento ou outro. Mas, mesmo então, reparei que os olhos dela buscavam os olhos de Roque. Eles são os pombos mensageiros da história dele, cruzando diversas vezes o céu. Como ele estava entusiasmado por se reunir com ela.

Eu racho por dentro. Ainda posso salvá-la. Posso consertar isso.

A Soberana estava certa. Não entendi direito meu próprio poder de barganha. O que eu iria fazer? Matar o neto dela se Aja matasse Quinn? E se ela matasse Sevro, Mustang, Roque? Sorte minha ela não ter machucado mais pessoas.

Eu me viro para Sevro.

Ele está parado em silêncio na sua armadura, observando-nos, observando Roque segurar a garota que Sevro ama sem jamais ter contado a ninguém, a garota que ele jamais poderia ter. A dor é crua e profundamente entalhada nas linhas do seu rosto aquilino. Impenetrável Sevro, imune à dor, à tristeza, a ter seu olho arrancado por Lilath, a tenente do Chacal; tudo isso cai sobre ele agora. Quinn nunca chamou Sevro de Duende como o resto de nós. Victra pousa a mão no ombro dele, notando a dor mesmo não entendendo por que ela está lá. Ele empurra a mão dela para longe de si.

— Eu não te conheço — rosna ele.

Victra recua.

— Desculpe.

— O que você está esperando, Ceifa? — pergunta ele. — A gente ainda não saiu desta rocha. — Ele balança a cabeça. Eu sigo, pedindo a Victra que traga o neto da Soberana.

Sevro e eu subimos uma escada e encontramos Tactus no estreito corredor que leva ao compartimento de passageiros e à cabine de voo.

— Oi, bom-homem — fala Tactus, protegendo seu ombro contundido. Cabelos molhados pendem sobre olhos ridentes. Sua voz é alta, despreocupada com a situação de Quinn. — Da próxima vez que planejar alguma coisa dramática, diga pra gente que você vai chegar, assim a gente não sai por aí mijando nas calças.

Eu o empurro para o lado para poder passar.

— Agora não, Tactus.

— O chatão de sempre. — Ele olha para Sevro. — Olha só, olha só. Duende. Se isso é possível, você encolheu ainda mais, meu bom-homem.

Sevro não sorri.

Entramos no compartimento de passageiros, onde os Augustinos e os Uivadores estão apertando os cintos de segurança nos assentos de costas curvas em preparação para a ruptura da atmosfera. Tactus segue atrás de nós.

— Oi, psicopatas — fala Tactus, dirigindo-se aos Uivadores. — É um prazer ver suas formas diminutas mais uma vez. Sobretudo você, Pedrinha.

— Vá comer merda — diz Pedrinha, levantando os olhos do cinto que está ajudando a apertar enquanto ajusta um dos sobrinhos de Augustus no seu assento.

Tactus se aproxima de mim depois de passarmos pelo compartimento de passageiros.

— Bons amigos que chegam e te resgatam. Pensei que eles estivessem espalhados pela Borda.

— Estávamos — diz Sevro.

— O que foi que fez vocês voltarem? — pergunta Tactus. — O clima?

Sevro não diz nada.

Tactus ri, apesar dos numerosos buracos na sua armadura.

— Exatamente como você gosta deles, hein, Darrow? Amigos que arriscam a vida e os membros pra ficarem sempre na sua sombra. — Ele me cutuca, de maneira um pouco brincalhona demais, deixando ligeiras manchas do seu sangue em mim. Chegamos à porta fechada da cabine de voo. Tactus estremece ao bater com o ombro num anteparo. Sevro segue atrás de nós.

— Como está o ombro? — pergunto.

— Melhor do que a cabeça daquela garota. Quinn, certo? A velocista da Casa Marte. Aja a detonou. Pena. Eu poderia tê-la levado pra dar uma...

Sevro dá um chute no saco de Tactus por trás, o pé indo entre as pernas com dureza o bastante para perfurar metal. Ele lhe dá uma cotovelada na lateral da cabeça, faz um jogo de pernas num rápido estilo Kravat. Três outros golpes nos ouvidos antes de Tactus atingir o chão. Sevro põe um joelho na ferida do ombro de Tactus, um antebraço no pescoço de Tactus, o outro joelho na virilha de Tactus e a mão livre segura uma faca na altura do globo ocular de Tactus.

— Se você falar de novo na Quinn, vou cortar seu saco e enfiá-lo nas suas cavidades oculares.

— Meu irmão sempre disse... fique de olho... no saco — gagueja Tactus.

A porta de metal da cabine sibila ao ser aberta. Augustus preenche a moldura. Ele olha para a cena no exato momento em que Victra traz Lysander da popa da nave.

— Eles estão quase prontos, meu suserano — digo. Passo por cima de Tactus e Sevro se junta ao ArquiGovernador na cabine. Victra faz o mesmo, exceto pelo fato de que pisa em Tactus, raspando os saltos.

— Trabalho de primeira — diz ela a Sevro.

— Não fode, sua vaca.

— Quem é o pequenino? — pergunta ela enquanto deslizamos para dentro da cabine e fechamos a porta.

Digo a ela.

— O filho do Cavaleiro Raivoso? Homenzinho safado. Acho que ele não gosta de mim.

— Não leve isso pelo lado pessoal.

O cockpit é maior do que meu quarto na villa da Cidadela. Uma coleção de luzes se encontra ao redor das cadeiras do piloto e do copiloto. Mustang está sentada à esquerda, uma piloto Azul à direita. A Azul está atada à nave. Uma luz azul refulge sob a derme da sua têmpora esquerda. Mustang voa, a mão direita num prisma de controle holográfico, falando rápido com a Azul. Pelo porto de observação, a Terra paira. Augustus, Pliny e o comicamente agachado Kavax au Telemanus discutem nossas opções atrás de Mustang.

Tudo quieto.

— Bem-feito, Darrow — diz Augustus sem olhar para mim. — Embora você pudesse ter escolhido uma nave melhor...

Mustang interrompe.

— O que está acontecendo lá atrás? Disseram que há alguém ferido.

— Quinn está morrendo — digo. — Precisamos levá-la a uma medBaia agora.

— Mesmo quando estivermos em órbita, estaremos trinta minutos distante da nossa frota — diz Mustang.

— Voe mais rápido.

A nave treme enquanto Mustang e a Azul pisam firme no acelerador.

— Foi um bom plano — diz Kavax, olhando radiante para Mustang. — Foi um bom plano, Virginia, infiltrar-se no domicílio da Soberana. Da mesma forma que você fazia quando era uma menininha. Na época em que você e Pax se escondiam nos arbustos pra escutar os conselhos do seu pai. Exceto pelo fato de que Pax era maior do que o arbusto! — Ele ribomba uma gargalhada que sobressalta a quieta Azul.

Mustang se vira para apertar o antebraço dele, a mão menor do que o cotovelo do homem. Ele fica envaidecido como um perdigueiro com um faisão nos dentes, olhando ao redor para ver se todos repararam o cumprimento que ela lhe oferecera. Ela tem muito jeito com homens maiores do que ursos.

O amor estampado no rosto do homem torna o desinteresse de Augustus monstruoso. E, ainda pior, pensar no Chacal matando o filho desse homem me deixa enjoado.

Mustang lança na minha direção o mais ligeiro dos olhares, os cabelos presos atrás da cabeça, a lembrança de um sorriso ainda vincando os cantos dos seus lábios, e é como se eu tivesse levado um soco no coração. Não há sorrisos para mim. E o anel de cavalo não adorna mais seu dedo.

Há silêncio por um longo momento. Augustus se vira para olhar para mim.

— Imagino que Octavia tenha tentado te arrebanhar também, estou certo?

— Ela tentou.

— Dane-se ela. Aposto que você disse pra ela se danar, hein, rapaz? — ribomba Kavax. Ele me dá um tapa no ombro, jogando-me de encontro a Victra. — Perdão. — Ele está curvado como uma árvore numa estufa que cresceu demais para as raízes que possui. A água pinga da sua barba pontuda. — Perdão — repete ele a Victra.

— Pra falar a verdade, Lorde Telemanus, achei a oferta dela tentadora. Ela consegue tratar seus lanceiros com respeito. Ao contrário de outros.

Augustus não desperdiça tempo com gozações.

— Daremos um jeito nisso. Tenho uma dívida com você, Darrow. Contanto que cheguemos à minha frota.

— Você tem uma dívida com Mustang e com os Uivadores tanto quanto comigo — digo.

— O que é um Uivador? — pergunta ele.

— Meus amigos de armadura preta. Sevro é o líder.

— Sevro. Aquela coisinha insignificante que estava em cima do meu lanceiro, certo? — O ArquiGovernador ergue uma sobrancelha. — Pensei tê-lo reconhecido. O garoto do Fitchner. — Seu tom de voz cai muito mal nos meus ouvidos. — O que matou aquele moleque Priam na Passagem.

— Ele está conosco, meu suserano. Leal como minhas próprias mãos.

A porta sibila ao ser aberta e Sevro e Tactus entram. Nós todos nos viramos para olhar. Sevro recua ligeiramente.

— O que é? — desafia ele.

Tactus dá uma corridinha para o lado para se afastar de Sevro.

— Sua lealdade está ancorada em mim ou no seu pai, Sevro? — pergunta Augustus.

— Que pai? Sou o bastardo de um bastardo. — Sevro olha de alto a baixo o ArquiGovernador de maneira cética. — E, com todo o respeito, meu suserano, você, da mesma forma, vale tanto pra mim quanto um balde de mijo congelado. Sua filha me trouxe da Borda. Minha lealdade está ancorada nela. Mas acima de tudo no Ceifeiro. É isso.

— Comporte-se, seu cãozinho — rosna Kavax.

— Você deve ser o pai do Pax. Sinto muito pela partida dele. Pax era um homem por quem eu talvez tivesse morrido. Mas estou vendo que a beleza dele só pode ter vindo da mãe.

Kavax não tem certeza se foi insultado ou não.

Augustus observa isso.

— Darrow, devo um pedido de desculpas a você. Você estava certo. Lealdade, ao que parece, pode se estender além do Instituto. Agora... Lysander. — Augustus olha de relance para fora através do porto de observação da nave. Estamos subindo em velocidade constante. Ele se ajoelha para falar com o menino. — Ouvi falar que você é um rapaz excepcional.

— Eu sou, meu suserano — diz Lysander com o máximo de firmeza que consegue impor à voz. — Eles me testam sempre e pratico todas as espécies de estudos. Quase nunca perco no xadrez. E quando perco, eu aprendo, como deveria.

— Lysander, você sabia que eu já tive um filho como você? Mas tenho certeza de que você sabia disso.

— Adrius au Augustus — diz Lysander, conhecendo a linhagem.

— Não. — Augustus sacode a cabeça. — Não. Meu filho mais novo não é nem um pouco parecido com você.

O menino franze o cenho.

— Então é o mais velho. Claudius au Augustus?

Mustang olha de relance.

— Exato — diz Augustus, balançando a cabeça em concordância. — Um menino gentil e especial com o coração de um leão. Melhor do que eu. Mais gentil. Um governante. — Ele lança um olhar estranho e significativo na minha direção. — Vocês teriam sido amigos.

Lysander tenta sustentar um ar digno.

— O que aconteceu com ele?

— Eles deixaram essa parte de fora, certo? Bem, um jovem grande da Casa Bellona que atende pelo nome de Karnus se deu a algumas liberdades com uma determinada jovem que meu filho estava cortejando. Meu filho se ofendeu com isso e desafiou Karnus pra um duelo. No fim, quando meu garoto estava destroçado e sangrando, Karnus se ajoelhou e segurou a cabeça do meu filho. — Ele põe uma das mãos ao redor da cabeça de Lysander. — Então Karnus bateu a cabeça dele nos paralelepípedos até que ela se partisse e tudo o que ele tinha de especial ficasse espalhado pelo chão. — Ele dá um tapinha na bochecha do menino. — Vamos esperar que você jamais tenha que ser obrigado a ver uma coisa como essa.

— Esse é seu plano pra mim, meu suserano? — pergunta Lysander, corajoso.

— Sou um monstro apenas quando se trata de uma questão prática — diz Augustus, sorrindo. — Não acho que dessa vez terei que exercer esse papel. Entenda bem, estamos tentando apenas chegar em casa. Contanto que sua avó nos permita passar, você estará a salvo.

— Vovó diz que você é um mentiroso.

— Irônico. Você vai dizer a ela que nós o tratamos bem, espero.

— Se eu for bem tratado.

— Muito justo. — Augustus toca o ombro do menino e se levanta. — Victra. Leve-o pro compartimento de passageiros.

Victra olha para ele com raiva. É claro que Augustus escolhe a única mulher presente com exceção de Mustang. Tactus nota a reação dela e dá um passo à frente.

— Eu poderia, meu suserano? Não vejo meus irmãos há um bom tempo. Não me importaria de bater um papo com o rapazinho aí. — Augustus faz que sim com a cabeça como se dissesse que não se importa. Victra agradece a Tactus, surpresa com seu gesto. Ele pisca para ela, dá um soco no meu ombro e dá um tapinha com um certo excesso de força na cabeça de Lysander, quase o derrubando. Eu odiaria conhecer os irmãos dele.

— Vamos lá, pequenino. Diga pra mim, você já esteve num clube Pérola? — pergunta ele, seguindo na frente. — As garotas e os garotos são espetaculares nesses lugares...

A pomposa cegonha sobe mais e mais. Em dois minutos, atingiremos a atmosfera.

— Tentaram me matar enquanto eu estava dormindo — murmura Augustus. — Ela sabe que não vou perdoar isso.

— Ela vai vir pra Marte — digo.

— Não existe nenhuma chance de reparos? — pergunta Pliny.

— Reparos? — rosna Mustang. — Fazer reparos com a mulher que queimou uma lua, Pliny? Por acaso você é algum idiota?

— A paz preservará sua posição, meu suserano. Muito mais do que a guerra. Ponha-se contra a Soberana e que esperança poderemos ter? — Pliny não é nenhum tolo em retórica. — As frotas dela são vastas. Os recursos financeiros dela são intermináveis. Seu nome, sua honra, independente do quanto sejam grandes, não podem suportar o peso da Sociedade. Meu suserano, você me educou pra que eu ficasse ao seu lado por causa do meu valor. Porque você confiava nos meus conselhos. Sem você, não sou nada. Seu apreço é tudo o que prezo. Portanto, siga meu conselho agora, se você ainda tem consideração por eles, e não permita que essa ferida contra a Soberana vire uma gangrena. Não permita que uma guerra advenha disso. Lembre-se de Rhea, sim, e de como ela foi queimada. Preserve sua honrosa família com a paz, por quaisquer meios necessários.

Augustus eleva a voz:

— Quando a Soberana se voltou contra mim, eu me curvei como um Ouro deveria se curvar, com graça, com dignidade. Mas agora ela me ataca e, por baixo da graça, por baixo do aprumo, a faca dela vai acertar o ferro. Nós vamos pra Marte, e pra guerra.

— Estamos atingindo a baixa atmosfera — diz Mustang. — Segurem-se.

— O que é aquela luz? — pergunta Sevro. — Aquela luz piscando sobre o altímetro?

A Azul responde de pronto:

— A porta da baia de carga está se abrindo, dominus.

— A baia de carga... — digo, franzindo o cenho. — Dá pra você anular esse comando?

— Não, dominus. Estou impossibilitada.

Por que a porta da baia de carga seria...?

— Ele se ofereceu como voluntário — diz Mustang, a voz em pânico. — Tactus se ofereceu como voluntário.

— Não — rosno, sobressaltando a todos, exceto Mustang. Percebemos a coisa ao mesmo tempo. — Sevro, Victra, comigo! — Giro o corpo e disparo para fora da cabine, a cabeça abaixada ao me mover tão rápido quanto posso na direção dos fundos da nave.

— Preparem-se pra uma ação evasiva — ouço Mustang dizer na cabine.

— O que está acontecendo? — gane Pliny.

— tactus! — berro. Victra e Sevro correm atrás de mim. Os outros Uivadores e membros da Casa me chamam, confusos enquanto disparo pela baia de passageiros.

Cara Ferrada desafivela seu cinto de emergência.

— Ele passou por aqui com o menino.

— Pra baixo! — digo, empurrando-o de volta ao assento. — Todo mundo sentado!

Tactus não faria isso. Ele não poderia fazer isso. Mas por que diabos não? Por que eu imaginaria que Tactus não fizesse o que seria melhor para ele? Está na sua natureza.

Deslizamos pela balaustrada em direção ao andar de estocagem, passamos pela sala onde o Chacal está operando Quinn. Abro a porta do compartimento de carga com um empurrão e sou saudado pelo vento uivante. A escotilha está aberta para mostrar a escuridão ferida por luzes urbanas bem abaixo. Palhaço e um lanceiro Augustino estão deitados no chão, inconscientes, sangrando. Eles deslizam devagar na direção da porta aberta da baia. Quanto a Tactus, ele não é nada além de um pontinho distante na escuridão. Não consigo vê-lo com clareza, mas sei o que ele levou consigo: Lysander.

— Sevro. — Aperto o ombro do meu amigo. — Pare! — Ele está espumando de raiva. Parece estar disposto a saltar pelos fundos da nave e seguir Tactus pelo ar. Ele não pode. Tarde demais. Em vez disso, pegamos os dois Ouros inconscientes antes que deslizem pela rampa aberta. Victra a tranca no painel de controle. A porta sibila ao ser fechada.

— Ele não tem nenhum equipamento de comunicação — diz Victra, sem fôlego. — Não depois da Pulsação Eletromagnética.

— Ele não precisa do maldito equipamento. — Sevro aponta para os pés descalços de Palhaço. — O filho da puta está com gravBotas. Assim que Tactus alcançar os rastreadores das rasgAsas, vai ser pego.

Faço as contas.

— Temos dois minutos até eles mandarem pelotões de abordagem.


20

Mergulhador-do-Inferno

Eu deveria saber o que Tactus faria. Ele matou sua primeira Primus, Tamara, no Instituto. Ele sempre seguiu apenas a força. Sempre procurou apenas a vitória. Eu sabia que Tactus era uma fera, mas imaginava que ele fosse minha fera. Imaginava poder confiar nele. Não, eu imaginava que poderia mudá-lo. Xingo a mim mesmo. Tolo arrogante. Volto em disparada para o cockpit, onde Augustus está se dirigindo à piloto Azul.

— Piloto, você terá condições de nos livrar disso?

— Não, dominus. Os modelos de geomet não mostram uma probabilidade de fuga. — A reação dela é adequada a uma Azul: emocionalmente distante, eficiente e assertiva. Seu corpo é magro, um pouco avicular. Como se ela fosse toda feita de gravetos, pescoço comprido, cabeça calva um pouco menor. Olhos grandes e tão estranhamente azuis quanto as tatuagens digitais do seu crânio. Quando ela se move, é como se estivesse submersa em água. Nascida num asteroide, a se julgar pelo sotaque monótono.

— Qual é o cenário mais provável?

— Eles destruirão nossos motores com disparos oriundos de rasgAsas. Precipitando uma rachadura no casco que matará todos a bordo. Ou então precipitando um assalto de navesVentosas. Capturando todos a bordo.

— Ou apenas vão explodir a nave, mandando todo mundo aqui pros quintos dos infernos — acrescenta Sevro.

— Azul, se me levar até minha nave em segurança, você receberá o comando de uma fragata — oferece Augustus.

— Eu preferiria um cruzador.

— Um cruzador, então.

— Muito bem. — A Azul ajusta diversos botões. — Voarei bem, mas o paradigma deve ser alterado antes que eles abordem nossa embarcação se quisermos sobreviver.

A cegonha ascende até o limite da atmosfera de Luna. Essa nave é uma fera de ventre grande. Gorda com todas as salas de estocagem, porque tudo o que elas têm a fazer é dar à luz soldados a partir dos tubos nas suas entranhas. Homens como eu despedaçariam esse tipo de nave nas nossas rasgAsas. Usávamos naves como essa na Academia para lançar homens em couraçasEstelares nas bases de asteroides inimigas.

Fogo de fricção produz uma espiral de fumaça na nave.

— Se o casco for rachado, prendam a respiração, dominii — instrui a piloto. — Não temos a bordo capacetes de sobrevivência em número suficiente.

Victra franze o cenho.

— Nossos pulmões vão explodir se fizermos isso.

— Então exale — responde a Azul. — E tenha trinta segundos de vida enquanto os tímpanos explodem e os vasos sanguíneos incham como balões infláveis. Prenderei minha respiração.

Sevro se volta para mim, os olhos arregalados.

— Eu odeio espaço.

— Você odeia tudo.

Nós nos afastamos da atmosfera de Luna. O fogo some e deslizamos para dentro do espaço aberto, onde as naves principais da armada pairam como beemontes dos mares profundos de Europa. Torres de tiro pontilham seu couro como cracas, e baias de hangares fatiam a parte inferior das suas laterais como grandes guelras. Naves comerciais flutuam lentamente ao longo das faixas navegáveis. RasgAsas e vespas fazem suas patrulhas. Nenhum deles presta atenção à nossa presença, exceto aqueles que nos escoltam de Luna. A Soberana não transmitiria isso em cadeia. O tempo urge.

Não há para onde fugir. Pensamos em simplesmente passar sob os canhões da Armada Cetro quando estávamos de posse de Lysander. Mas agora teremos de seguir pelo corredor polonês.

Nossa piloto é calma como metal.

Ela disse que o paradigma deve mudar.

O que posso fazer? Pense. Pense.

— Vamos estabelecer comunicações com uma das naves — diz Augustus. — Vamos suborná-los pra que nos forneçam guarida. Todo homem tem um preço.

— Estamos sem sinal. Não dá nem pra fazer transmissões — lembra a ele Mustang.

Vamos morrer. Todos nós sabemos disso. Augustus não entra em pânico ou abdica da sua resolução. Não sei como imaginei que ele lidaria com a morte. Quem sabe eu tivesse a esperança de que ele choramingasse pelos cantos e empalidecesse. Mas, apesar de todos os defeitos, o homem é resoluto. Depois de um momento, ele deposita uma mão ossuda no ombro de Mustang. Ela estremece, surpresa.

— Seja por mísseis ou por abordagem de alguma nave, morreremos como Ouros — diz Augustus solenemente a nós. Não porque ele deseje que pensemos que ele é forte nos seus últimos momentos, mas porque ele acredita no que é: um ser superior, um mestre que controla suas fragilidades humanas. Para ele, a morte é apenas a última fragilidade. Humanos choramingam quando morrem. Eles lutam pela vida mesmo se não há mais esperança. Ele não fará isso. A morte não é maior do que seu orgulho.

Ouros, em muitos aspectos, são muito parecidos com Vermelhos. Mergulhadores-do-Inferno vão para a morte pela sua família, pelo orgulho do seu clã. Eles não choramingam quando as minas desabam ao redor deles ou quando as víboras-das-cavidades surgem das sombras. Eles caem e seus amigos choram e jogam seus corpos para o lado. Mas nós temos o Vale a que procurar; o que os Ouros têm? Quando eles perecem, suas carnes definham e seus nomes e feitos permanecem até que o tempo os varre para longe. E isso é tudo. Se alguém deveria lutar pela vida agora, esse alguém deveria ser o Áurico.

Luto pela vida porque carrego a tocha de algo que não deve morrer, que não deve se apagar. É por isso que agarro o ombro de Sevro e, com uma gargalhada horrível e fantasmagórica, digo à piloto que nos aproxime da nave mais mortífera em órbita, uma nave que agora se posicionou para nos interceptar.

— Aproxime-nos do Vanguard — repito para a Azul.

— Isso faria com que nossas chances de sobrevivência decrescessem em...

— Não me diga quais são as probabilidades, apenas faça isso — ordeno.

Todos se viram e olham para mim. Não porque eu disse algo estranho, mas porque eles estavam esperando para se virar e olhar para mim. Eles estavam todos rezando em silêncio para que eu conduzisse um plano. Inclusive Augustus.

Eo dizia que as pessoas olhariam para mim. Ela acreditava que eu tinha alguma espécie de qualidade, alguma essência que dava esperança. Pouquíssimas vezes sinto isso em mim mesmo. Não há nada disso em mim agora. Apenas pavor. Por dentro me sinto apenas um menino — raivoso, petulante, egoísta, culpado, triste, sozinho — e, no entanto, eles estão olhando para mim. Quase me desfaço sob seus olhares fixos, quase murcho e peço a alguma outra pessoa que tome as rédeas. Não posso fazer isso. Sou pequeno. Sou apenas um mentiroso num corpo entalhado. Mas esse sonho não pode ser extinto.

Portanto, eu ajo e eles observam.

— Você por acaso foi acometido de uma loucura espacial? — pergunta Victra. — Quando eles perceberem que o menino não está mais aqui...

— Dê uma guinada na direção da ponte do Vanguard — diz Mustang à Azul.

Augustus balança brevemente a cabeça em concordância, adivinhando o que eu planejo.

— Hic sunt leones.

— Hic sunt leones — ecoo, guardando meu último olhar para Mustang, não para o homem que enforcou minha mulher. Ela não repara. Saio da ponte com Sevro numa disparada ensandecida. Algo atinge nossa nave. O casco estremece. Eles sabem que não estamos com Lysander.

— Uivadores! Levantem-se! — grito.

Harpia levanta as mãos.

— Pensei que você tinha dito...

— de pé! — rosno.

Luzes vermelhas secundárias banham a baia de lançamento em tons sangrentos enquanto Sevro e eu nos encaixamos nas frias couraçasEstelares. Cada um precisa de dois Uivadores para nos ajudar a deslizar os corpos para dentro das robóticas carapaças. Eu me deito na armadura enquanto Harpia afivela meus pés nos estribos e fecha as pernas com armaduras sobre minha carne e meus ossos. Os Uivadores são rápidos nos seus movimentos mesmo enquanto a nave avança com um outro quase ataque de míssil. Uma sirene soa, relatando uma rachadura no casco. Tento respirar mais lentamente enquanto Victra encaixa minha cabeça no capacete da couraçaEstelar.

— Boa sorte. — Ela aproxima o rosto de mim. Antes que eu consiga impedi-la, ela encosta os lábios nos meus. Não recuo, não tão próximo da morte. Deixo os lábios dela se separarem e grudarem de uma maneira cálida e reconfortante nos meus. Então o movimento humano está encerrado e ela se afasta, baixando o maciço visor do meu capacete. Meus Uivadores uivam e piam diante da visão. Não consigo deixar de desejar que tivesse sido Mustang a me selar naquela lata e me dar o beijo de despedida; mas então o display digital passa a ser o dono da minha visão e desapareço dos meus amigos adentrando o tubo metálico de lançamento. Estou sozinho. E apavorado.

Foco.

Estou num casulo, barriga para baixo, no cospeTubo. É aqui que a maioria mija nas calças, separados dos seus amigos, do calor da vida. Não há gravidade no tubo. Ele não é pressurizado. Odeio a falta de peso dele.

Não posso olhar para cima senão meu pescoço irá se quebrar quando eles me lançarem. Não consigo me mexer. Minha couraçaEstelar é engatada a milhares de ganchos magnéticos semelhantes a dentes. Eles se ajustam nos seus lugares como diminutos insetos, vibrando.

Em instantes eles vão me atirar no espaço. Minha respiração fica entrecortada. Meu coração sacode de encontro às costelas. Absorvo o terror do meu corpo e sorrio. Eles disseram que isso era suicídio na Academia quando quis lançar a mim mesmo. Talvez tivessem razão.

Mas é para isso que fui feito. Para mergulhar no inferno.

Sou um besouro em forma de homem numa carapaça de metal, armas e motores que custam mais do que a maioria das naves. Tenho no meu braço direito um pulsoCanhão. Quando eu precisar, ele florescerá como uma flor de haemanthus.

Penso na época em que Eo pôs um haemanthus diante da minha porta, a época em que arranquei uma dessas flores do muro na noite em que eu deveria ter vencido a Láurea. Como aqueles dias cálidos parecem estar tão distantes deste lugar frio em que me encontro, onde pétalas são metais em vez de macias como seda.

— Estamos sendo imprensados. Tropas de abordagem iminentes. — A voz de Mustang vem pelo comunicador. — Aprimorando seu lançamento. — A nave geme à medida que um outro míssil quase nos acerta. Nossos escudos são alvejados. Apenas o casco desmazelado nos mantém inteiros.

— Capriche no alvo — digo.

— Sempre, Darrow... — O silêncio dela diz mil coisas.

— Sinto muito — digo a ela.

— Boa sorte.

— Isso aqui não é diversão — grunhe Sevro.

O sistema hidráulico da nave sibila e os dentes de metal me impulsionam para a frente no tubo, enfiando-me na câmara. Centímetros à frente da minha cabeça, a corrente magnética da armatrilho zune com estrépito, desafiando-me a olhar na direção dela.

Dizem que muitos Ouros não conseguem suportar isso, que mesmo Inigualáveis podem entrar em pânico e gritar e chorar no cospeTubo. Acredito nisso. Um Pixie teria um ataque cardíaco nesse exato momento. Alguns nem conseguem viajar numa espaçonave por medo de lugares exíguos e da vastidão do espaço. Tolos de barriga mole. Nasci numa casa menor do que a baia de carga desta nave. Fiz minha vida na extremidade de uma Perfuratriz-Garra que faz este tubo parecer um brinquedo de criança, enquanto suava e mijava minha alma para longe num traje-forno feito com trapos remendados.

Ainda assim há o terror.

“Observe como uma víbora-das-cavidades ataca, meu filho.” Papai uma vez me agarrou pelo punho e me obrigou a jogar esse jogo. “Observe-a serpentear pra cima e pra cima até alcançar a crista. Não se mexa na frente dela. Não a ataque com sua curviLâmina. Se você fizer isso, ela vai te pegar. Ela vai te matar. Mova-se apenas quando ela estiver vindo pra baixo. Faça isso com o terror em vida. Não aja até estar com o máximo de medo possível, então...” Ele estalou os dedos.

Estou naquele ponto em que a música das máquinas tomam conta de mim. Os cliques e os claques, os sibilos e os zumbidos reverberam através do casco. Uma contagem regressiva tem início.

— Pronto aí, Duende? — pergunto a Sevro pelo comunicador.

— Cacatne ursus in silvis?

Um urso caga na floresta? A nave dá uma guinada e estremece. Mais sirenes soam.

— Latim agora?

— Audentes fortuna juvat — diz Sevro, rindo.

— A sorte favorece o ousado? Você merece morrer se isso for realmente a última coisa que você tem a dizer nessa vida.

— É mesmo? Bom, você pode chupar meu...

Meu coração se cola à sua batida declinante.

Os dentes de metal me impulsionam para o interior da corrente magnética do tubo. E a coisa acontece. Mesmo através do meu traje, forças gravitacionais me atingem como um tapa do deus-trovão dos Obsidianos. Minha visão pisca em preto. O estômago sobe até a garganta. Os pulmões se contraem. O sangue flui mais lento nas minhas veias. Avanço num estalo. Luzes tremeluzem nos meus olhos. Não vejo as paredes do tubo através do qual estou sendo atirado. Não vejo nem mesmo a nave que me trouxe até aqui. Vejo o rosto de Eo na escuridão. Desmaio. Corpos não conseguem suportar isso. Rápido demais.

Escuridão.

Em seguida a escuridão tem buracos.

Estrelas.

Não há intervalo de tempo. Num segundo estou na nave, no segundo seguinte estou penetrando o espaço profundo numa velocidade dez vezes maior do que o som.

Muitos cagam nos seus trajes nesse momento. Não se trata de medo. Trata-se de biologia e de física. O corpo humano está no seu limite aqui. Mickey, o Entalhador, garantiu que o meu poderia aguentar um pouco mais. Espero que o de Sevro também possa.

Penetro no espaço numa total ausência de som. Na confiança de Sevro estar perto de mim. Não consigo vê-lo, nem mesmo nos sensores. Tudo muito rápido. Na direção da maior nave na Armada Cetro — a que deveríamos evitar. Tudo isso acontece em seis segundos. Mísseis de emergência passam a mil por nós. Os atiradores agora nos avistam. Sabem o que está acontecendo. Mas não estamos usando impulsionadores, de modo que os mísseis não conseguem engatar. Bombas não podem explodir com um detonador tão curto. Os cartuchos não utilizados passam por nós, quase me atingindo. Nossa piloto deu um tiro perfeito.

Armastrilhos não nos acertam. Projéteis passam por nós num lampejo. Sevro está uivando no comunicador. Os escudos deles estão baixos. Eles não podem levantá-los com rapidez suficiente. Isso leva tempo. Um azul iridescente tremeluz sobre os cascos deles à medida que os pulsoEscudos são acionados. Tarde demais, seus filhos da puta.

Tarde demais, porra.

Não consigo pensar. Estou berrando por dentro. Rindo como as chamas de um fogo-fátuo. Rindo porque sei que é contra minha insanidade que esses guerreiros lógicos não conseguem lutar.

A ponte está próxima. Dou uma olhada para cima. Vejo Ouros dentro da nave rugindo uns para os outros. Correndo para os seus trajes-de-evacuação ou para as suas bases de fuga. Mirando nossa aproximação como Mustang fez quando meus cavalos da Casa Marte os esmagaram, ela e Pax, num campo enlameado. Nossa raiva é algo singular. Algo que esses nascidos-em-Luna não compreendem.

O azul se espalha. Obsidianos sacam suas armas. Dois Ouros vestem máscaras de respiração e desembainham suas lâminas, preparando-se para a matança. No segundo antes de atingirmos, atiro meu pulsoCanhão. Ele bate com força no vidro espesso. Atiro de novo, de novo e de novo. Então me encolho como uma bola e bato de frente no espesso vidro da ponte com a velocidade total do meu lançamento assim como a de uma explosão de último segundo das minhas botas de impulsão.

De dentro de mim rosna o grito de um homem louco.


21

Manchas

Explodo na parede como uma bola de chumbo atirada no interior de uma loja onde se vende porcelana e cristal. Arrebento displays e mesas de estratégia antes de bater de encontro ao metal reforçado das paredes da ponte, ao aço dos corredores até que, por fim, atinjo de corpo inteiro um anteparo cem metros depois e passo pela ponte. Atordoado. Não consigo encontrar Sevro. Eu o chamo através do comunicador. Ele geme alguma coisa sobre sua bunda. De repente ele cagou mesmo nas calças.

Não conseguimos ouvir por causa do capacete, mas a nave é preenchida por uivos à medida que o vácuo do espaço suga membros da tripulação para a morte. Na verdade, eles não são sugados para fora pelas janelas despedaçadas, mas sim pela pressão interna da nave propriamente dita. De uma maneira ou de outra, Azuis e Laranjas e Ouros voam para o espaço aos berros. Os Obsidianos vão em silêncio. Não que isso tenha alguma importância. O espaço torna todos silenciosos, no fim.

Meu braço esquerdo cospe fagulhas. Meu pulsoCanhão está triturado. Dentro do traje, meu braço dói como o diabo. Estou com uma concussão. Vomito dentro do meu capacete. Encho-o com um fedor amargo que agride as narinas. Mas me mantenho de pé, e meu braço direito está funcionando suficientemente bem. O visorescudo está rachado. Tropeço ao ser também sugado na direção da ponte.

Rastejo de volta através dos buracos que fiz nas paredes. Consigo alcançar a ponte para encontrar o lugar num completo caos. Membros da tripulação se seguram no que quer que seja para não serem sugados eles próprios na direção da fria escuridão. Uma garota Ouro passa por mim num salto e voa do anteparo. Por fim, luzes vermelhas piscam. Anteparos de emergência são fechados ao longo de toda essa parte da nave para cortar o vazamento de pressão. Um deles começa a ser fechado atrás de mim, reforçando uma parede que arrebentei ao entrar. Eu a seguro no alto quando vejo que Sevro está vindo. O metal geme de encontro ao braço robótico da minha couraçaEstelar. Sevro mergulha através da abertura no momento exato e a porta se fecha. A ponte é trancada conosco dentro. Perfeito.

O vento ocasionado pela pressão morre atrás de nós à medida que ripas de duroaço deslizam por sobre os portos de observação demolidos. Os oficiais e os tripulantes da nave se levantam do chão, arfando em busca de ar, mas isso é algo que não existe. Oxigênio e pressão ainda estão sendo bombeados de volta ao recinto. Portanto, aqueles com máscaras de oxigênio — os Ouros, Obsidianos e Azuis — observam placidamente os poucos valetes Rosas e técnicos Laranjas na ponte pularem como peixes, arfando em busca de ar que não está disponível. Um Rosa vomita sangue, seus pulmões explodindo no peito porque tentou prender a respiração. Os Azuis observam as mortes horrorizados. Eles jamais viram alguém morrer. Estão acostumados a ver pontos nos rastreadores desaparecendo. Talvez uma nave distante explodindo ou em chamas ao ser abordada por Obsidianos e Cinzas. A compreensão que eles têm do turbilhão mortal está sendo ajustada.

Os Obsidianos e os Ouros não reagem à cena. Alguns dos Cinzas tentam administrar ajuda, mas é tarde demais. Quando a pressão e os níveis de oxigênio são normalizados, os baixaCores já estão mortos. Jamais esquecerei aqueles rostos. Eu proporcionei isso a eles. Quantas famílias vão chorar por causa da minha ação aqui?

Com raiva, piso com firmeza minha bota de metal no deque de aço. Três vezes. E aqueles que não fizeram nada enquanto seus aliados morriam se viram para ver Sevro e a mim com nossos trajes de matador.

Oh, como aqueles rostos Ouros e Obsidianos enfim se emocionam.

Um Obsidiano investe contra nós com uma lançaForça. Sevro o atinge uma vez, esmagando o imenso homem com um punho de metal. Os outros quatro se juntam e nos atacam, entoando um dos seus hediondos cânticos de guerra. Sevro os encontra, deliciado por finalmente ser o maior na sala. Ataco um esquadrão de Cinzas que tentam apanhar suas armas.

É assim que a coisa segue. Somos homens de metal lutando contra desorganizados homens de carne. Como punhos de aço socando a parte interna de uma melancia. Nunca matei pessoas fazendo tão pouco caso delas. E me assusta como encontro com facilidade esse tipo de atitude na guerra. Não existe ambiguidade aqui, nenhuma violação de credos morais. Essas pessoas são guerraCores. Eles me matam ou eu os mato. É mais simples do que na Passagem. Mais simples porque eu não os conheço, porque não conheço seus irmãos e irmãs, porque uso metal em vez da minha própria carne para conduzi-los pela porta escura da morte.

Sou bom nisso, infinitamente melhor do que Sevro, e isso me aterroriza acima de qualquer outra coisa.

Sou o Ceifeiro. Seja lá que dúvidas eu tinha dentro de mim, elas desaparecem e sinto a mancha espreitando na minha alma.

Nós nos esforçamos ao máximo para salvar os Azuis. A ponte é grande, mas não há muitos Obsidianos ou Cinzas com projéteis ou armas de energia. Não há razão para elas aqui; ninguém jamais arrebentou o porto de observação. Duas Ouros com lâminas são as verdadeiras ameaças. Uma delas é alta e larga. A outra tem um rosto rápido que está marcado pelo desespero à medida que investe sobre nós. Com suas lâminas, elas poderiam inclusive cortar nossos trajes em dois, de modo que Sevro dispara sobre elas à distância com seu pulsoCanhão, sobrecarregando suas égides e espirrando a energia para dentro da armadura onde ela sobrecarrega os pulsoEscudos e destrói a armadura, derretendo as Ouros. É por isso que eles controlam a tecnologia. Humanos, independente da Cor, são frágeis como pombas no moedor de carne da guerra.

Meus inimigos mortos, eu me dirijo agora aos Azuis nos fossos:

— Há algum capitão? — pergunto.

No meu traje, sou quase um metro mais alto do que eles. Eles ainda estão observando a bagunça que fizemos dos outros. Devo ser um pesadelo ambulante. O braço cuspindo fagulhas. O traje parcialmente arruinado. Segurando uma lâmina terrível.

— Não tenho o dia inteiro pra ameaçar e invadir. Vocês são homens e mulheres eruditos. Esta nave não é de vocês. Vocês apenas a ocupam pros Ouros que a comandam. Agora quem a comanda sou eu. Portanto. Há algum capitão por aí?

O capitão sobreviveu. Ele é um homem plácido de olhar inocente, mais membros do que torso, com um rasgão recente no rosto que o faz sofrer terrivelmente. Ele treme e choraminga, segurando a ferida como se o rosto fosse se desfazer se suas mãos o soltassem. Mamãe teria dito que ele é um mariquinhas comedor de merda. Eo teria feito uma interpretação diferente, de modo que me jogo sobre ele e falo em tom baixo:

— Você está em segurança — digo. — Não tente fazer nada imprudente.

Tiro o capacete. O vômito escorre. Digo-lhe que ele tem de ir para o canto e arrancar seu distintivo com a estrela correspondente à patente. Tremendo, ele nem tem uma chance de obedecer. Sevro avança, tira o distintivo, levanta-o e o leva como uma boneca.

Uma mulher de rosto longo e ombros orgulhosos com pele bem morena bufa diante do rebaixamento. Seu olhar é peculiarmente perspicaz para uma Azul. Calva, como o resto, com tatuagens digitais azuis rodopiando não apenas ao longo da coroa e das têmporas, mas também sobre as mãos e o pescoço.

Sevro salta de volta a mim.

— Sevro, pare de zonear.

— Gosto de ser grande.

— Sou ainda maior.

Ele tenta fazer a figa, mas os dedos mecânicos no traje não são tão ágeis.

Dou ordens aos Azuis nos fossos de tecnologia no sentido de que nossos amigos na cegonha devem ter acesso a uma das baias-hangares. Depois de se recolocarem nas suas estações, eles obedecem. Todos aqui são leais, porque os tenho sob meu poder. Mas ao longo da nave, quem pode saber? Eles podem ser leais à Soberana. Ou podem ser apenas leais ao homem que governa a nave. Seria tolice imaginar que todos eles operam sob o mesmo credo. Terei de obrigá-los a isso.

Observo no display a cegonha atracar numa baia-hangar. As cavilhas mal conseguem mantê-la unida. Duas navesVentosas a flanqueiam. Meus Uivadores terão de lutar contra os esquadrões de matadores contidos nelas. Eles talvez consigam, mas se os Obsidianos e Cinzas do Vanguard os sitiarem no hangar, então tudo estará perdido.

Sons chegam agora do anteparo que conecta a ponte ao resto da nave. Um sibilo profundo. A porta refulge em vermelho devido ao calor, uma pequena pupila no centro do espesso duroaço cinza. Fuzileiros Obsidianos ou Cinzas, sem dúvida nenhuma liderados por algum Ouro, pretendem reivindicar a nave. Eles devem levar algum tempo nisso.

— Tem algum holoCam no corredor? — pergunto aos Azuis.

Eles hesitam.

— Espaçopreto, seus sacos de ar dementes — xinga a Azul que eu tinha notado antes. Ela empurra um outro Azul para o lado e sincroniza suas tatuagens com o console. Um holo aparece numa das telas, confirmando meu temor. Ouros lideram a tropa que está tentando chegar na ponte.

— Mostre-me a sala de motores, os nexos de suporte vital e a baia-hangar — exijo. Ela o faz. De novo, Ouros lideram tropas de fuzileiros Cinzas e cavaleiros-escravos Obsidianos na tentativa de tomar posse dos sistemas vitais da nave. Eles vão tentar arrancar de mim os controles da nave. Pior, eles vão tentar subir a bordo ou destruir a cegonha para matar ou capturar Mustang e meus amigos.

— Quem quer esta nave? — pergunto, em tom sério. Percorro em silêncio o pódio de comando elevado, chutando para o lado um cadáver que estava no meu caminho, e olho para baixo na direção das Azuis responsáveis pela comunicação sentadas no seu fosso. Elas evitam meu olhar, duas mulheres não mais velhas do que eu. Rostos pálidos e jovens, como a neve matinal, agora manchados com rastros de lágrimas e fuligem. Arregalados olhos cerúleos, exaustos e injetados de sangue. Eles viram amigos morrer hoje, e aqui estou eu exibindo uma raiva egoísta, agindo como se isso fosse meu triunfo. É muito fácil eu me perder.

Nunca esqueça o que você é, lembro a mim mesmo. Nunca esqueça.

Estamos sendo saudados por uma dúzia de naves e pelo comando em terra da Cidadela. O que aconteceu?, eles querem saber. NavesChamas e destróieres costeiam com cautela na nossa direção. Abro um canal de comunicação em circuito fechado para me dirigir a toda a nave.

— Atenção, tripulação da embarcação anteriormente conhecida como Vanguard, daqui em diante conhecida como Pax. — Faço uma pausa dramática, ciente de que qualquer boa canção, qualquer boa dança, é um jogo de tensão que leva a um clímax de som e movimento.

Sevro não consegue parar de exibir um risinho ameninado para mim. Ele parece um diabrete no traje enorme, a cabeça pequena demais sem o capacete. Ele faz um gesto grande com as mãos para tentar me fazer rir. Sacudo a cabeça para ele. Agora não é o momento.

— Meu nome é Darrow au Andromedus, lanceiro da Casa Marciana Augustus, e tomei posse desta embarcação como despojo de guerra. Ela é minha. Isso significa, pelas regras de guerra naval da Sociedade, que suas vidas pertencem a mim. Sinto muito por isso, já que significa que é quase certo que todos vocês morram. Suas vidas foram dedicadas a uma ou outra vocação, eletrônica, navegação astral, artilharia, serviços de portaria, iluminação e reparos, combates marciais etc. Minha vocação é a conquista. Eles nos ensinam isso nas escolas. E na escola, eles me instruíram acerca da metodologia adequada pra invadir, conquistar e tomar posse de um navio de guerra inimigo. Depois de se capturar a ponte de uma embarcação de posse do inimigo, o procedimento que nos é ensinado é simples: desafogue a nave.

Sevro ativa o console que está escondido na parte traseira de um display de navegação, um console que apenas Ouros podem acessar. Os Azuis recuam, surpresos. É como entrar na cozinha de uma pessoa e mostrar a ela uma bomba nuclear escondida debaixo da pia. O console escaneia o Sinete de ouro de Sevro e pisca em tom dourado. Tudo o que ele precisa é entrar com um código e a nave inteira irá se abrir para o espaço. Vinte mil homens e mulheres morrerão.

— Fizemos essas naves de modo que pudéssemos esvaziá-las. Por quê? Não porque não confiamos na lealdade de vocês, na verdade confiamos nisso, mas porque existem ainda — olho para a lista que um dos Azuis me dá — sessenta e um Ouros a bordo. Eles são leais à Soberana. Eu sou inimigo dela. Eles não me obedecerão. Eles sabotarão a nave, tentarão tomar a ponte; eles enfrentarão vocês, abusarão da sua lealdade e levarão vocês à morte certa. Por causa deles e do ódio deles por mim, vocês jamais voltarão a ver seus entes queridos. Existe ainda uma outra complicação. Distante deste casco, a Soberana imagina o que aconteceu aqui. Logo ela vai perceber que o orgulho da sua armada não mais lhe pertence. Ele agora é meu. As naves dos seus Pretores vão vomitar esquadrões de navesVentosas carregando legiões de fuzileiros Obsidianos e Cinzas. Eles vão ser liderados por cavaleiros Ouros que querem minha cabeça, totalmente preparados pra matar a todos no seu caminho. Se eu soltar vocês no espaço, não haverá ninguém que possa impedi-los de me matar. Portanto, entendam bem, vocês são minha salvação, e eu a de vocês. Não sacrificarei vinte mil vidas suas pra matar sessenta e um dos meus inimigos. Escolhi esta embarcação acima de todas as outras por causa da sua tripulação. A melhor que a Sociedade pode oferecer. Pra mim vocês não são descartáveis. Então, o que eu lhes peço é isto: escolham a mim como seu comandante e dominem esses Ouros que pensam que vocês são descartáveis. Vocês têm minha permissão, minha garantia e o distintivo do ArquiGovernador de Marte, Nero au Augustus, pra capturar ou matar seus comandantes Ouros pra mim. Peguem essas armas e os subjuguem. Em seguida, apressem-se em voltar a nave contra os invasores que chegam pra nos destruir. Façam isso agora. Se esperarem, eles matarão vocês! Saberei quem são os primeiros homens e mulheres que se apresentarão. Na condição do seu novo mestre, eu os recompensarei. O ArquiGovernador os recompensará. Façam isso agora! Pois eu acabei de abrir todos os arsenais da nave. Peguem armas e neutralizem os tiranos.

Um pesado silêncio à medida que as primeiras fagulhas de revolução são acesas.

Sevro se aproxima:

— Isso foi atraente.

— Demokrático demais? — sussurro.

— Acho que demokracia autocrática não conta. — Sevro torce o nariz. — Você ameaçou desovar os caras no espaço.

— Ameacei? Pensei que eu tivesse insinuado de modo bem suave.

— Suave como cascalho, seu merdão. — Sevro gargalha com um excesso de entusiasmo e dá um tapa em sua perna com a mão mecânica, amassando o metal. Ele estremece e em seguida olha para mim um pouco constrangido. — Não fode.

A porta atrás de nós começa a sibilar. Eu me viro para olhar para o anteparo refulgindo. Meus inimigos trouxeram uma perfuratriz para me atacar. Minhas mãos tremem com a adrenalina. Sinto o peso de dezenas de olhos azuis. O vermelho da porta se aprofunda, espalhando-se. Não temos muito tempo.

Minha lâmina se ondula adquirindo uma forma matadora, comprida e terrível.

— Logo, logo teremos companhia — digo. Olho de relance para Sevro, que foi distraído por uma das telas de holo. Ordeno que os Azuis se abriguem.

— Eles estão fazendo isso — murmura Sevro. — Maldição dos infernos. Darrow, olhe só isso.

Ele circula em meio a imagens vivas de Laranjas e Azuis saqueando os arsenais. Alguns Cinzas os ajudam. Outros ficam à margem, sem saber ao certo suas prerrogativas mesmo enquanto outros atiram na maré dos seus companheiros de nave. Mas nenhuma bala pode deter essa maré. Eles pegam armas, correm desleixados pelos corredores, inchando seus pelotões. Os mais durões lideram — não Azuis, mas trabalhadores do hangar e mecânicos Laranjas, junto com Cinzas... Reconheço um deles. O cabo de meia-idade na minha nave na Academia, o que escapou comigo. Ele dirige um punhado de homens e mulheres ao interior do camarote de um Ouro. Eles o subjugam com respeito. Esse acordo pacífico não ocorre com assiduidade.

Três poderosos esquadrões de Ouros, liderando Obsidianos e Cinzas, enfileiram-se nas salas de suporte vital, nos motores cinco quilômetros atrás na popa da nave e do lado de fora da porta da ponte. Aqueles do lado de fora da ponte equivalem a quatro Ouros e seis Obsidianos. Dez Cinzas põem munição em armas atrás deles.

— Nós ainda teremos companhia — digo.

Eles vão passar pela porta a qualquer momento. Fagulhas são cuspidas do interior do anteparo à medida que a perfuratriz de calor deles vence a batalha contra a porta. Metal goteja para dentro, borbulhando em direção ao chão. Os Azuis estremecem de terror, e Sevro e eu aceitamos o desafio que temos pela frente e enfiamos nossos capacetes, preparando-nos para uma nova investida. Mais uma vez o fedor de vômito preenche minhas narinas. Digo aos Azuis para se esconderem na baia de comunicações. Eles estarão seguros lá.

A luz de um comunicador pisca de repente num console perto de mim. Instintivamente, atendo. Uma voz semelhante a um trovão estremece meus ossos. Não há imagem.

— Consegue me ouvir? — pergunta a voz.

— Consigo. — Olho de relance para Sevro. Quem quer que esteja ligando está usando um amplificador de voz que soa como o irromper de um trovão. Sevro dá de ombros como se não fizesse a menor ideia de quem poderia ser. — Quem fala?

— Você é um deus?

Um deus? Uma quietude fantasmagórica toma conta de mim. Isso não é um amplificador de voz. Eu devia ter percebido pelo sotaque frio e arrastado. Escolho minhas palavras com cuidado, lembrando-me dos meus conhecimentos:

— Sou Darrow au Andromedus, dos nascidos-no-Sol.

— Você tomou a embarcação e ainda não é Pretor? Como?

— Entrei pela ponte voando.

— Sozinho do Abismo?

— Com um companheiro.

— Vou me encontrar com você e seu companheiro, filho de deus.

Os Azuis se olham uns aos outros, aterrorizados. Eles balbuciam algo. Manchado. O peso do medo encontra um pouso nos meus ombros. Sevro e eu espiamos ao redor da ponte, como se a fera estivesse escondida em algum lugar nas sombras. Mais partes da porta se desfazem, gotejando para dentro como alguma fruta podre brilhante e vermelha.

Então um dos Azuis arqueja e olhamos de relance para o monitor de hc para ver as câmeras nos corredores do lado de fora da ponte transmitindo uma cena de horror. A coisa — ele — corre na direção das pessoas por trás enquanto elas se preparam para entrar na ponte — um Obsidiano, porém maior do que qualquer um que eu já tenha visto até hoje. Mas não é apenas o tamanho dele. É a maneira como ele se move. Uma criatura apavorante costurada de sombra e músculo e armadura. Fluindo, não correndo. Perversa. É como olhar para uma lâmina ou para uma arma transformada em carne e osso. Isso é uma criatura da qual os cães fugiriam. Para a qual os gatos sibilariam. Uma criatura que jamais deveria existir em qualquer nível acima da primeira fileira do inferno.

Ele investe de forma implacável contra a retaguarda do esquadrão matador com duas íonLâminas brancas e pulsantes que se estendem da sua armadura a mais ou menos um metro da sua mão. Ele apenas passa por cima dos Cinzas, esmagando-os nas paredes com seus ombros, triturando seus ossos. Em seguida ele começa a verdadeira matança. É tão selvagem que sou obrigado a desviar o olhar.

A perfuratriz de calor continua derretendo a porta espontaneamente. E no seu centro se forma um buraco. Através dele consigo ver homens e mulheres morrendo. O sangue borbulha sobre o metal hiperaquecido.

Quando termina seu serviço, o Manchado está sangrando de uma dúzia de ferimentos, e resta apenas uma única Ouro. Ela o esfaqueia com uma lâmina, penetrando sua armadura escura na altura do peitoral. Ele gira o corpo, prendendo a lâmina, e em seguida agarrando-a quando a mulher deixa a arma relaxar e voltar à forma de chicote. Então ele a segura pelo capacete, a armadura dourada dela cintilando sob as luzes do corredor. Ela tenta escapar, tenta fugir dali aos tropeções mas, como um leão com uma hiena na sua mandíbula, ele precisa apenas esmagá-la. Quando ela morre, ele a deposita com delicadeza no chão, carinhoso agora que lhe proporcionou uma boa morte. Sevro sem querer se afasta da porta.

— Mãe de misericórdia...

O Manchado está do outro lado, a porta entre nós lentamente derretendo no centro. Quando o buraco na porta é do tamanho de um torso, ele retira o capacete. Um rosto pálido e desprovido de cabelos olha fixo para mim. Olhos pretos. Bochechas maltratadas pelo vento protegidas por calos em forma de armadura semelhantes à pele de um rinoceronte. Cabeça calva, exceto por um emaranhado de cabelo branco de um metro de comprimento que pende nas suas costas.

Nós nos encaramos e ele se dirige a mim:

— Filho-de-deus Andromedus, sou Ragnar Volarus, o Manchado primogênito da minha mãe, Alia Snowsparrow, dos Espigões das Valquírias ao norte da Espinha do Dragão, ao sul da Cidade Caída, onde voa o Horror Alado, irmão de Selfi, o Quieto, que derrotou Tanos, que no passado se encontrava perto da água, e eu ofereço a você algumas manchas.

Ele abre suas gigantescas mãos manchadas de sangue e então enfia a mão direita pela porta. Suas íonLâminas se retraem na armadura. A lâmina ainda se encontra protuberante na altura das costelas.

Estou mijando na porra do meu traje.

— Bom, que eu fique cego depois disso — murmura Sevro. — Faça logo a coisa, Darrow. Antes que ele mude de ideia.

Tiro o capacete e dou um passo à frente. Eu quero esse Obsidiano.

— Ragnar Volarus. É um prazer. Vejo que você não traz um distintivo. Você tem um mestre?

— Levo comigo a marca de Lorde Ash, e seria apresentado como um presente junto com essa grande embarcação à família Julii. Mas você tomou a embarcação e portanto tomou a mim.

Os Julii? Um presente pela traição deles a Augustus, sem dúvida nenhuma.

E ele por acaso acabou de usar uma brecha burocrática para justificar ter matado os homens do seu mestre? Se há ironia na sua voz, não consigo identificá-la. Mas por que ele faria isso? Será que aqueles olhos pretos me conhecem? Manchados não podem usar nenhuma tecnologia que não seja artefato militar. Ele jamais poderia ter me visto. Contudo, suas mãos permanecem ali esticadas, à espera do meu aperto.

— Por que você está fazendo isso? — pergunto. — Isso é coisa dos Julii?

— Eles comercializam minha espécie. — Eu tinha me esquecido. São naves Julii que carregam escravos Obsidianos pelo abismo. Eles sabem que devem temer o sol em forma de lança do timbre da família de Victra.

Ele não tem muita prática em esconder seu ódio. Ele é frio como o gelo no qual nasceu.

— Você aceitará essas manchas, filho de deus? — pergunta ele, curvando-se para a frente, a voz de súplica, uma estranha preocupação formando rugas nos cantos da sua boca. Os Ouros fizeram isso depois da Revolta Escura, o único levante que alguma vez ameaçou seu reinado. Nós tiramos a história deles, tiramos a tecnologia deles, apagamos do mapa uma geração e demos à raça deles os polos dos planetas, a religião dos Nórdicos, e lhes dissemos que éramos seus deuses. Alguns séculos depois, estou olhando para um dos seus filhos mais aterradores, e me pergunto como ele consegue me imaginar como um deus.

— Aceito essas manchas no meu nome, Ragnar Volarus. — Aterrorizado, dou um passo à frente e, com o metal hiperaquecido cercando nossos braços, aperto a mão dele, quase do mesmo tamanho que as minhas, embora as minhas estejam embainhadas em metal. Recebo o sangue que a mão dele espalha nas minhas e o esfrego pela minha testa exposta. — Aceito o fardo delas e o peso delas.

— Obrigado, nascido-no-Sol. Obrigado. Servirei pela honra da minha mãe e da mãe dela antes dela.

— Há amigos meus a bordo da cegonha na baia-hangar três. Salve-os, Ragnar, e eu terei uma dívida com você.

Dentes amarelos são revelados quando ele sorri, e dele ondula um cântico de guerra mais profundo do que o oceano durante uma tempestade. Ele enche os corredores de pavor. Ele me enche de alegria e de temor e de uma curiosidade primal. O que foi que acabei de ganhar?


22

Fogo brotando

Meu corpo está tremendo depois da partida do gigante. Equilibrando-me, eu me viro para os Azuis, que estão petrificados, sem saber ao certo se olham para mim, para os displays de hc ou para os scanners que mostram as belonaves da Soberana fazendo círculos em torno de nós.

— Vocês não têm nada a temer — digo. — O capitão desta nave foi rebaixado porque deixou seus portos de observação abertos. Leviano. Patente não serve como desculpa pra erros. Desejo um novo capitão. Não temos muito tempo. Portanto, vou decidir em sessenta segundos.

A Azul de ombros orgulhosos dá um passo à frente dos seus companheiros. A princípio, eu tinha imaginado que as tatuagens nas mãos dela eram representações de linhas florais, então noto uma onda de notações matemáticas: a fórmula Larmor. As equações de Maxwell no espaço-tempo curvo. A teoria da absorção de Wheeler-Feynman. E uma centena de outras que nem eu consigo reconhecer.

— Me dê o distintivo e eu cavo pra você um buraco de volta à Marte, rapaz. — A voz dela não possui nenhuma inflexão. É nivelada. Precisa e preguiçosa ao mesmo tempo. A emoção sangrou dela até que apenas as letras e os sons das palavras permanecem como equações no ar. — Juro pela minha vida.

— “Rapaz”? — pergunto.

— Você tem metade da minha idade. Devo chamá-lo de “lorde rapaz”? Ou você ficará ofendido?

Sevro ergue uma sobrancelha, bestificado com a audácia da Azul.

— Perdoe-a, dominus — diz um outro Azul com suavidade. — Ela é uma alferes com...

Levanto a mão.

— Qual é seu nome, Azul?

— Orion Xe Aquarii.

— Isso é nome de homem — diz Sevro.

— É mesmo? Eu não tinha notado. — Azuis podem ser sarcásticos? — Minha Seita pretendia que eu fosse um homem. Eu os surpreendi.

— Que Seita? — pergunta Sevro.

— Ela não tem nenhuma Seita. Ela foi apropriada pela Seita Copernicana, mas dispensada pouco tempo depois, por motivos óbvios — interrompe de novo aquele Azul intrometido. — Ela é uma Doqueira.

Orion estremece. Ela gira o corpo para encarar o outro Azul. Sua voz não se eleva.

— E o que é você senão um peido pedante, Pelus? Hein?

— Você viu — explica Pelus placidamente. — Ela é uma Doqueira. Metrificação emocional ingovernável. Mas não é culpa dela. Orion é um produto do seu ambiente oleoso.

— Besteirada tudo isso — diz ela, dando um passo ligeiro à frente.

Orion dá um soco na cara de Pelus. Ele choraminga, caindo para trás como se jamais houvesse sido atingido antes. Talvez porque não tenha sido mesmo. Por que um Azul acertaria outro Azul? Eles são afeitos a testes, conhecedores de matemática, mapeadores de estrelas. Não lutadores.

— Eu gosto da grosseirona — diz Sevro.

— Espere, dominus! Eu desejo a nave! — Um outro Azul desliza para a frente, mirando Pelus no chão. — Eu... mereço a nave. Orion não passa de uma... uma... ociosa. O domínio que ela tem de astrofísica deixa muito a desejar, isso pra não falar que ela não entende muito bem a massa cinética extraplanetária. Ela nem frequentou o Observatório.

Um outro Azul avança.

— Esqueça Arnus! Ele é um vacilão em astrofísica e as suposições dele em cálculo teórico são imprudentes, na melhor das hipóteses! Fui o segundo em comando desta nave por seis meses sob Lorde Ash. Servi aqui enquanto a nave estava no atracadouro. A lógica sustenta a manobra pela qual você deve me apontar como seu capitão, dominus.

As naves da armada continuam a nos saudar pelos comunicadores. Belonaves se aproximam devagar. Dentro dos seus ventres, corajosos homens e mulheres estarão vestindo trajes com armadura; eles subirão a bordo de navesVentosas e serão lançados ao espaço para pousar no meu casco, penetrar no seu interior, rezando para poderem voltar para casa e comer uma boa refeição feita pelas suas mães, pelas suas esposas. Tudo isso enquanto meus Azuis trocam tapas para saber quem vai liderar a nave, uivando insultos uns aos outros acerca das habilidades matemáticas e da integridade acadêmica de cada um.

— Não ouça nenhum desses aí, dominus! — grita uma mulher naquele sotaque lento. Ela cai de joelhos. — Meu nome é Virga xe Sedierta. Estudei física de derivação astral na Escola da Meia-Noite, bem superior ao Observatório. Detenho, entre outras coisas, um doutorado em matéria escura e lentes gravitacionais. Deixe-me guiar sua embarcação, dominus. Decidir em favor de um outro seria algo capcioso e, pior ainda: ilógico!

Esses Azuis deveriam ter usado sua lógica e visto que estou olhando apenas para a mulher que não se ajoelha como o resto. Orion, a primeira a falar, ainda está de pé, os ombros retos, o longo pescoço sem se curvar. Seu dialeto é baixo-nascimento, mais acentuado e mais mundano do que o linguajar sonhador desses acadêmicos. Provavelmente da cidade-doca de Phobos ou da Cadeia de Docas próximas à Lata da Academia. Se Orion for mesmo uma Doqueira que não frequentou o Observatório ou a Escola da Meia-Noite, imagino como seria a história de como ela chegou à ponte, para começo de conversa.

— Que tal esse barulho todo? — pergunto a Orion, fazendo um gesto na direção dos Azuis.

— Eles têm muita merda de morcego na cabeça, dominus. — Ela dá um tapinha com o dedo fino na têmpora. — Eu não tenho muita merda de morcego. — Ela sorri e acena para os displays onde as outras navesChamas se aproximam. — E seu tempo está se esgotando. — Olho de relance para as estações de scanners onde alertas sinalizam o lançamento sigiloso de duas navesVentosas oriundas das belonaves e cruzadores da Soberana que estão nas proximidades. — Sei que posso fazer isso, do contrário não teria me apresentado. Me dê uma chance.

Aceno para Sevro e ele joga para ela a estrela alada de capitão.

— Leve a gente pra nossa frota.

— Regras de enfrentamento? — pergunta-me ela.

— O mínimo de vítimas possível — digo. — Nós somos bons. A Soberana é que é a tirana. É assim que a coisa deve se desenrolar.

— Pois não, dominus.

Observo Sevro enquanto Orion assume o comando da minha nave e estabelece as ordens para o encontro com as naves de Augustus além dos Faróis do Rubicão. A questão se encerra assim que aponto Orion. Eles sabem que sua chance passou, de modo que deslizam para as suas confortáveis funções como se desejassem jamais haver se afastado delas. Seus Sinetes Azuis parecem tridentes em contraste com seus antebraços nessa luz tênue.

Há um distanciamento curioso nos Azuis. Um povo isolado no abismo do espaço, eles foram projetados para sobreviver às grandes jornadas de Luna sem motins. Portanto, eles compartilham. Eles compartilham o mesmo oxigênio, a mesma comida, os mesmos beliches, as mesmas rotinas, os mesmos fossos, os mesmos comandantes, os mesmos amantes, as mesmas Seitas, as mesmas ambições — para realizar seu trabalho com precisão e subir bem alto através do mérito para poderem honrar suas Seitas.

Abro um canal comunicador com o restante da frota e os satélites de Luna. Eles não podem impedir o sinal. Não desta nave. Nossas tropas são tão sofisticadas quanto a de qualquer nave na frota da Soberana.

— Filhos e filhas da Sociedade. Aqui é Darrow au Andromedus da Casa Augustus. Trago notícias terríveis. Esta noite, sua Soberana rompeu o Pacto da nossa Sociedade. Como meu mestre, o ArquiGovernador Nero au Augustus, dormiu sob a proteção dela, a Soberana atentou contra a vida dele, a dos seus familiares e a dos Pretores e assistentes que servem a ele. Junto com os Bellona, ela tentou assassinar ilegal e imoralmente mais de trinta Inigualáveis Maculados. Ela fracassou — digo. — Em retaliação, tomei uma das suas naus capitânias. E agora estou sitiado, com minha vida, bem como as vidas do meu mestre e dos seus familiares em risco. Se não revidarmos o ataque, morreremos. Se nos rendermos, morreremos. Não desafoguei a nave. Aqueles a bordo viram o mérito da minha causa e se aliaram a uma família que está disposta a resistir à tirana ávida por poder chamada Octavia au Lune.

Bem perto da verdade.

— Horas atrás, nossa Soberana me disse pra trair minha casa. Pra trair meus juramentos. Como o pai da Soberana, antes dela, Octavia au Lune está embriagada pelo poder e agora acredita que é ela própria uma Imperatriz Máxima. Ela nos disse pra nos curvar, testemunhem agora nossa resposta.

Desligo o comunicador.

— Sr. Pelus, como queira — declara Orion. — Que esses filhos da puta recebam o que merecem quando chegarem. — Ela ativa suas próprias tatuagens e mergulha numa conversa digital com o resto da tripulação.

A ponte está silenciosa. Um segundo se passa, depois outro. No hc, assisto a três Cinzas atirarem na cabeça de um Ouro. Nos hangares, Laranjas se amontoam nos flancos enquanto Ouros lideram guerraCores contra a cegonha abatida. Então, Ragnar chega ao hangar e os Laranjas se posicionam em torno dele, como fazem os Vermelhos armados que o seguiram desde os corredores. Muitos morrem. Alguma coisa furiosa agarra os membros dessas Cores. E, embora eles morram, sinto uma fagulha de rebelião ao lhes dar permissão para fazer o que eles queriam fazer durante toda a vida. Está lá, mesmo que você nunca veja até o fim — aquela centelha de individualidade, de liberdade. A porta da cegonha se abre num estalo e Mustang avança com meus Uivadores para ajudar os baixaCores e Ragnar, embora até mesmo os Telemanus mantenham distância do monstruoso homem.

Num ponto além da minha embarcação, as naves inimigas por fim mostram sua ameaça. Os scanners incham em tom vermelho. Inimigos, navesVentosas recém-cuspidas dos ventres da armada que nos cerca, vasculham o espaço em busca do nosso casco. Elas têm como objetivo nos tomar de assalto.

Orion abre os costados da nave.

— É tão lindo — murmura Sevro. Fico parado em silêncio. Matrizes de choque de armastrilhos batem de encontro a navesVentosas, despedaçando metal e homens, apenas para prosseguir e se espatifar contra os cascos e escudos das mesmas belonaves que lançaram as navesVentosas.

Minha recentemente empossada capitã anda de um lado para o outro na prancha de comando, os braços cruzados. Minha embarcação de guerra de cinco quilômetros de extensão começa a rolar, circulando através das suas fileiras de armastrilhos lançando morte no rosto da frota da Soberana. Orion se vira um pouco para me encarar, com um risinho afetado estampado no rosto para que todos possam ver.

— Agora, em relação a escavar aquela trilha, dominus.

Ela ordena que os motores espanquem matéria escura. Avançamos em disparada através do que resta de duas belonaves.

Minha ponte está silenciosa, exceto pelo zumbido de ordens técnicas. Mísseis piscam em concerto além do nosso casco. Dispomos nossas telas de fogo antiaéreo, já que o inimigo dispôs as dele, tornando os mísseis inúteis. Uma aura de luz nos cerca como uma terra de ninguém. Artilharias de armastrilho arrebentam de encontro ao casco, embora não sintamos as reverberações aqui em cima da ponte. Nosso equipamento não pega fogo. A fiação não cai dos compartimentos superiores. Essa nave é o pináculo de setecentos anos de design.

Sevro me cutuca.

— Acho que a gente pode muito bem conseguir vencer esta maldita batalha.

A armada ao nosso redor é gigantesca. Mais do que gigantesca. Ela foi trazida para cá para fazer com que os Lordes reunidos e todas as suas frotas além dos Faróis do Rubicão tremam, e ainda assim ela não é nem metade da frota combinada. Mas agora essa mesma armada treme por dentro como um portentoso corpo que tivesse algum alienígena mastigando suas entranhas para escapar do seu hospedeiro.

Fazemos nossa fuga da armada em alta velocidade.

Eles não nos perseguem além dos Faróis do Rubicão, onde recebemos a companhia da nossa pequena frota bem como as dos Codovan, dos Telemanus, dos Norvo. Espero que outras se juntem às nossas fileiras depois da surpresa de hoje.

Examino o rastro que deixamos para trás — os detritos navais. Corpos de homens e mulheres flutuam atrás da minha embarcação. Eles saíram de naves rachadas e perfuradas. Alguns ainda estão vivos mas logo ficarão congelados ou sufocados. Mais mortos no meu rastro. Quantos serão necessários?

Deixo a ponte a Orion. Sevro e eu nos dirigimos à baia de engenharia, onde mandamos Laranjas nos tirar dos nossos trajes imprestáveis. Corremos de lá em direção ao hangar, um vasto depósito de metal repleto de naves, equipamentos e agora homens destroçados. Amarelos disparam de um lado a outro ajudando os feridos e os levando em macas para a medBaia, Cinzas e Laranjas ajudando-os a fazer o transporte.

Erva está com diversos Ouros desarmados sob a ponta da sua lâmina. Pedrinha e Harpia ajudam os Amarelos. Meus olhos vasculham freneticamente o local em busca de Mustang. Eu a encontro sob uma das asas arrebentadas da cegonha, falando com seu pai. Uma comprida laceração está visível no seu braço esquerdo. Não me atenho a isso. Eles foram abordados por uma naveVentosa e conseguiram estraçalhar a oponente ao entrar no hangar.

— Deixamos a volumosa frota da Soberana pra trás — digo a Augustus.

— Onde está Quinn? — pergunta Sevro, ríspido. — Já a levaram pra medBaia?

Mustang não responde. Em vez disso, ela olha para a rampa da cegonha, onde Roque desce carregando Quinn nos braços. Ela está pálida. Comprida. E sem vida. Sevro não se mexe. Não fala nada. Suas narinas se abrem à medida que o oxigênio alcança seu peito, um penoso soluço bem preso no rapaz que nunca chora. Ele está anestesiado. Fantasmagórico. E eu me aproximo dele, porém Sevro se afasta não com raiva, mas confuso, como se lhe tivessem contado o futuro uma vez e essa realidade não fosse o que lhe havia sido prometido. Ele cambaleia para trás, para longe do corpo dela, olhando ao redor, antes de se virar e fugir do hangar.

Roque passa por mim com Quinn. Seu rosto está molenga e cansado. Ele quer dizer alguma coisa amarga, mas morde a língua e apenas balança a cabeça para mim. Ele ainda não sabe por que eu o ataquei no seu quarto antes do baile de gala. E agora isso. Jamais o vi tão alquebrado.

— Olhe só pra ela — diz ele. — Darrow, olhe pra sua amiga.

Olho para Quinn e sinto tudo ficar quieto. Aqui está ela, pacífica na morte. Por que não podemos lhe devolver o alento da vida? Por que não podemos apenas recomeçar o dia? Fazer tudo certo. Salvar aqueles que amamos.

Roque se afasta com Quinn na direção do campo pulsante transparente do hangar que se abre ao espaço. Ele está curvado e alquebrado enquanto caminha para as estrelas com o objetivo de empurrar sua garota morta para o encontro delas.

Agarro o Chacal quando o vejo sair da cegonha, exigindo saber o que aconteceu. Ela morreu, diz ele. Apenas isso e nada mais. Ele está cansado como o resto de nós. Ele baixa as mangas do seu traje.

— Não vou pedir desculpas. Eu me esforcei ao máximo.

— É claro que se esforçou — digo, trêmulo. — É claro.

Ele me pergunta onde está a câmera do meu capacete. Olho fixamente para ele.

— A filmagem — diz ele. — Você consegue ao menos entender o que acabou de fazer? — Ele acena ao redor. — Dois homens tomaram uma das maiores embarcações construídas até hoje. Ouros vão vir aos montes pro nosso lado. Tudo o que a gente precisa é da mídia e da sua história.

Assinto, distraído, quase esquecendo do dadoGravador que os Filhos de Ares puseram no meu dente para registrar a explosão da bomba. Ele é ativado com um aperto nos molares. Eu os apertei assim que me sentei no escritório da Soberana. Enfio o dedo na boca e delicadamente o solto da gengiva. Ele é menor do que um fio de cabelo. Os olhos do Chacal se iluminam.

— Onde foi que você conseguiu isso? — pergunta ele.

— Mercado negro — digo. — A Soberana se ferrou. Use a gravação. Faça dessa guerra uma luta justa.

Afasto-me do Chacal e estou prestes a deixar a limpeza para os outros quando reparo os Laranjas e os baixaCores me observando. Não posso simplesmente liderar com violência. Portanto me junto a Pedrinha e Harpia e empresto meu auxílio na ajuda aos que levam os feridos à medBaia. O resto dos Uivadores também ajuda. E Mustang, e por fim até Victra se junta ao grupo de ajuda.

Depois que o último Cinza é posto numa maca, fico parado no hangar vazio. Augustus foi para a ponte. O Chacal evita os Telemanus que o acompanham e, em vez de seguir com eles, dirige-se à central de comunicações. Fico sozinho. Roque foi embora. Não sei o que fazer, para onde ir.

Sangue e marcas de queimaduras mancham o deque. Olho para as minhas mãos. Essas são as consequências das minhas ações, e me sinto extremamente solitário. Encosto a cabeça na fria parede de metal.

Ela vem por trás. Acho que não pronuncia meu nome. Não tenho certeza. Apenas sinto o cheiro dos seus cabelos molhados quando ela me abraça. Quando ela me aperta com firmeza.

— Sei que você está cansado — diz Mustang em voz baixa. — Mas Sevro precisa de você.

— E Roque? — pergunto, virando-me para encará-la. Tantas coisas continuam ainda não ditas entre nós dois. Tantas perguntas sem respostas. Tantos crimes que não foram perdoados. Tanta raiva e quem sabe ainda o tênue tremeluzir de algo mais. Sinto isso quando ela envolve meu pescoço com a mão, e deixa a força nos dedos se emprestarem a mim.

— Agora não — diz ela. Roque está me culpando. E ele deveria me culpar mesmo. Todos eles deveriam me culpar. E as coisas só vão piorar.


23

Confiança

Eu o encontro num banheiro comunal. Ele recebeu um dos camarotes que os outros estão reivindicando para a viagem de regresso a Marte, mas não é assim que ele pensa. Esse ainda é o garoto que se escondeu no cavalo. Não, acho eu. Não mais o garoto.

— Ela gostava de você, Sevro.

Seus braços estão cruzados na frente dele, sardento e magro. Uma toalha enrolada na cintura, uma outra pendurada nos ombros. Ouros não ligam para nudez, mas Sevro sempre ligou. Ele ganhou uma tatuagem desde a última vez em que estive com ele. Um enorme lobo cinza e preto ao longo das costas. Os Uivadores são tudo para ele. No passado eles eram apenas uma ferramenta para mim; agora eu os considero algo mais. Mas o que isso significa, já que eu os uso da mesma maneira? Ele olha fixamente para a água escorrendo em direção ao ralo do chuveiro. Descendo e descendo em espirais.

— Acho que vou acabar curtindo a guerra — diz ele. — Preciso endurecer um pouco minha coluna. Calejar as mãos. Esses filhos da puta ficam dizendo pra gente que tudo são rosas e glória. — Ele levanta os olhos. — Você não sente o cheiro das rosas, Ceifeiro?

Eu me sento ao lado dele no banquinho.

— Você ouviu o que eu disse?

— Claro que ouvi as malditas palavras que você disse. O que me falta é um olho, não um ouvido. — Ele dá um tapinha no olho biônico com um dedo ossudo. — Claro que sei que ela gostava. Mas nunca do jeito que eu queria. Ela merecia viver. Se algum de nós comedores de merda horrorosos merecia viver era ela. Não havia um único osso cruel no corpo dela. Um único sequer. Mas isso não adiantou nada. Não adianta nada a gente ser bom ou a gente ser mau. Tudo tem a ver com o acaso.

— Foi o acaso que fez você conhecê-la — digo. — O acaso que a trouxe pra Casa Marte.

— Não. Foi meu pai — diz Sevro. — Ele a recrutou, trocou com Juno um outro escolhido pra ficar com ela. — Ele balança a cabeça. — Tudo porque ele pensou que ela nos abrandaria, administraria nossa raiva. Se ele não a tivesse escolhido, não a teríamos conhecido e ela ainda estaria viva.

— Pode ser — digo, pensando em Eo. — Mas ela escolheu vir pra cá. Ela escolheu me seguir. Te seguir.

— Da mesma forma que Pax.

Balanço a cabeça em concordância, tocando meu Pégaso.

— É tudo mijo e merda. Não é? — diz Sevro. — Pouco importa a roupa bonitinha que eles inventam. Ainda estamos no jogo. Sempre vamos estar numa droga de jogo. Eu cuspo no império deles. Eu cuspo nesse mijo e nessa merda. Vim pra cá por você porque ele me disse o que você é.

Eu o encaro, incapaz de compreender.

— Como assim? — pergunto com um riso nervoso.

— Ligue — diz ele. — Sei que você trouxe um. Você é meticuloso, Ceifeiro. Sempre meticuloso.

— Você está agindo de um jeito tão...

— Cale essa boca e ligue.

Faço que sim com a cabeça e ativo o dispositivo no meu bolso. Uma embaralhÁrea se forma. Não sou tão cheio de orgulho como a Soberana para acreditar que ninguém poderia escutar. Sevro olha fixo para mim até eu começar a me mexer desconfortavelmente.

— E aí, o que é que eu sou? — pergunto.

— Até agora? — pergunta ele, balançando a cabeça. — Você é renitente mesmo. Diga o nome da pessoa que me mandou pra cá.

— Mustang te mandou. Você me disse que ela te trouxe da Borda. A mesma coisa com todos os Uivadores.

— É isso aí. Ela fez isso mesmo. Levou seis meses pra vir de Plutão até aqui. Mas adivinhe quem foi me procurar durante minha estada em Triton. Vamos lá, Ceifeiro. Adivinhe.

— Lorn? — Os lábios dele se curvam num risinho sarcástico. — Fitchner?

Sevro cospe no meu rosto, bem abaixo do meu olho.

— Errou de novo e eu vou te deixar assim. — Ele estala os dedos. — Não vou voltar. Não vou te ajudar. Não vou dar meu sangue por você. Não vou sacrificar meus amigos por um homem que não dá a mínima pra mim, não põe a cabeça pra fora uma única vez. A confiança tem dois lados, Darrow. Dessa vez você vai ter que dar um salto.

Ele não está blefando. E sei o que quero dizer. Mas como isso é possível? Sevro é um Ouro. Uma porra de um Ouro. Ele me ouviu dizer “porra” para Apolo. Ele me deu cobertura. Não deu? Ou será que isso foi um erro? Será que ele está me metendo numa armadilha? Não. Não, se isso for verdade, então o jogo já acabou. O sonho de Eo fracassou. Quem é mais próximo de mim do que ele? Quem me ama mais do que esse pária estranho e desagradável? Ninguém.

Então eu olho bem para os baços olhos dourados dele.

— Foi Ares quem te mandou.

Silêncio entre nós.

Um terrível intervalo de cinco segundos. Seis. Sete. Ele se levanta e tranca a porta antes de tirar do bolso das suas calças amassadas um pequeno cristal preto.

— Isso é só pra você.

— Uma gemaSussurro...

Eu a pego com carinho, ciente de quanto ela custa, e sopro na sua superfície. Meu hálito a faz oscilar e então se despedaçar. Pequenos grãos de poeira preta se espalham como pirilampos ascendem da grama quando anoitece no auge do verão. Eles coalescem. Flutuando e formando um tosco holo que paira entre mim e Sevro. O capacete pontudo de Ares.

“Meu filho”, gorjeia ele. “Sinto muito. Harmony me traiu e iniciou uma campanha contra nossos princípios. Descobri tarde demais a intenção que ela tinha de usá-lo. Mas você foi sábio. É por isso que eu o escolhi. Passos estão sendo dados no sentido de brecar os esforços dela. Continue com os seus próprios. Ponha Augustus contra Bellona e frature a Pax Solaris.”

Tento fazer uma pergunta ao dispositivo, mas trata-se de uma gravação. Feita em algum momento depois do baile de gala.

“Percebo que isso deve ser difícil. Já te pedi muito. Mas é preciso que você prossiga. Semeie o caos. Enfraqueça-os. Você tem muitas razões para duvidar de mim. Não entramos em contato até agora porque você estava sendo observado por Pliny, pelo Chacal e pelos espiões da Soberana. Pessoas problemáticas despertam interesse. Mas eu também observei você, e estou bastante orgulhoso. Sei que Eo também ficaria. Caso você tenha dúvidas acerca da veracidade dessa mensagem, um amigo gostaria de mandar um alô.”

O capacete de Ares evanesce e Dancer sorri para mim.

“Darrow, quero que você saiba que nós estamos com você. Sua família está viva e bem. O fim está próximo. Logo você estará conosco. Até lá, confie no homem que Ares enviou; eu mesmo o recrutei. Rompa as correntes.”

A imagem erode, uma luz preta se desfazendo no ar. E eu fico lá mirando o chão do chuveiro.

— Você está com uma aparência muito boa pra alguém que fez uma cirurgia como aquela — diz Sevro. Seu sorriso não é menos desagradável do que o habitual. — Ares mandou aquele aleijado vir falar comigo. O que te mandou pro Instituto. Dancer.

Ele não pode dizer mais nada porque eu o estou abraçando e chorando. Soluço e o aperto com força, trêmulo, assustando-o. Ele não se mexe, exceto para me dar um tapinha na cabeça. Todo o peso cai dos meus ombros. Alguém sabe. Ele sabe e ele está aqui. Ele sabe e ele veio para me ajudar. Para me ajudar. Não consigo parar de tremer e dizer obrigado. Eo estava certa. Eu estava certo.

— Você é meu amigo — digo, tremendo como uma criança. Ele quase chora me vendo nessa situação.

Um verdadeiro amigo.

— É claro — diz ele, detendo-se. — Mas só se você parar com essa choradeira, cara. Ainda somos Ouros.

Eu me afasto dele, constrangido, enxugando o rosto na manga do traje. Tenho a impressão de murmurar um pedido de desculpas. Minha visão está turva. Eu choramingo. Ele me entrega uma toalha, na qual assoo o nariz. Ele faz uma careta.

— O que é?

— Isso era pro seu rosto.

Nós rimos juntos e em seguida nos sentamos num silêncio esquisito. Depois de um determinado tempo, pergunto a Sevro há quanto tempo ele sabe. Ele desconfiava de alguma coisa desde o Instituto, diz ele, onde me ouviu dizer “porra” para Apolo. Minha voz ficou toda grossa, toda enferrujada. Então Dancer mostrou a ele o vídeo do meu entalhe.

— De algum modo eles sabiam que você podia confiar em mim, mesmo que você não soubesse, seu cabeça de merda. Sempre foi assim. Sempre será assim.

— Isso não te... incomoda? — pergunto a ele. — O que eu sou?

— Incomodar. Essa é uma palavrinha bunda pra uma maldita de uma coisa grande. — Ele coça a cabeça raspada. — Uma coceira na virilha me incomoda. Peixe estragado me incomoda. Pessoas desprezíveis cheias de autoridade me incomodam. Isso aí... — Ele dá de ombros. — Que se dane. Você gosta do meu jeito mais do que qualquer outro cabeça de mijo dos mundos. Acho que eu retribuiria o favor mesmo eu sendo realmente maior do que esse seu rabo enferrujado.

Eu rio disso. Ele seria um gigante em relação ao meu eu Vermelho.

— Você deve saber o que vim fazer aqui. Não se trata apenas de uma infiltração. O objetivo maior é o fim da Sociedade.

— Quem muito se ufana cai de cara na lama.

— É isso mesmo? — pergunto, incrédulo. — Você está a bordo?

Ele bufa.

— Passei seis meses numa naveChama pra chegar até você. Três meses de Triton depois que Dancer me mostrou a verdade. Será que eu estava confuso? Até a medula. Mas mesmo assim subi a bordo da nave e tive três meses pra reconsiderar a decisão. E ainda assim aqui estou eu. Portanto, acho que o momento pra duvidar do meu compromisso já passou. De qualquer modo, meus “confrades” Ouros têm tentado me matar desde que nasci. — Ele dá uma olhada ao redor, desconfortável mesmo depois de tudo o que acabamos de compartilhar um com o outro, apesar da embaralhÁrea. — As únicas pessoas que até hoje me trataram com decência foram aquelas que não tinham nenhum motivo pra fazer isso. BaixaCores. Você. Acho que chegou a hora de retribuir o favor.

— E quanto aos outros? — pergunto com intensidade. — Pedrinha, Palhaço?

— Não é um segredo que eu tenha a compartilhar. Quinn teria compreendido — diz ele devagar, resistindo a alguma coisa. — O resto talvez seguisse com a gente. Cardo não. Roque não. Nem num milhão de anos. Apaixonado demais pela sua própria espécie. Não posso afirmar nada sobre aquela grandalhona arrogante.

— Victra. E Mustang? — pergunto.

— Não dou conselhos amorosos, seu cabeça de merda. — Ele se levanta. — É o seguinte, o fato de ser um revolucionário não significa que eu não possa receber uma massagem de alguma Rosa, certo? Isso seria uma aporrinhação.

— Não sei, não — digo, rindo. — Ainda estou tentando entender, pra ser sincero.

— Que se dane. Eu vou querer. Minhas costas estão doendo pra cacete. — Os dentes tortos de Sevro ficam à mostra quando ele ri. — Mas a sensação é boa. É assim que sei que as coisas estão no rumo certo, Ceifa. Apesar de toda essa merda. A sensação é boa aqui. — Ele dá um tapa no peito magro. — A sensação é... como é mesmo que vocês falam... a sensação é muito boa, porra.

Victra me encontra depois que me despeço de Sevro.

— Augustus mandou eu dizer pra você que o camarote do Lorde Ash é seu.

— Augustus vai me dar o quarto maior?

— Sua nave, seus despojos, disse ele. Você sabe como Augustus é específico em relação a ordens.

— Espero que você saiba o caminho. Eu já estou perdido.

Ela faz um gesto para que eu siga em frente. Caminhamos em silêncio através dos corredores. Estou fatigado, mas feliz o bastante por saber que Sevro está comigo, que Ares ainda acredita em mim e que Dancer ainda está vivo por aí. É um bálsamo depois da morte de Quinn.

— Imagino que você saiba que minha família traiu o ArquiGovernador — diz ela.

— Ouvi falar. Mas você ainda está conosco.

— Como eu disse. Faço o que eu quero. Mamãe não me controla, nem controla minhas contas como controla as de Antonia. — Ela dá um risinho, observando-me. — Gosto quando você está desse jeito.

— Desse jeito? — Não consigo evitar o riso. — Como assim?

— Sei lá. Você parece estar calmo. Tranquilo. Apesar de tudo o que aconteceu.

— E você parece estar particularmente gentil — digo.

— Gentil? Uma ficção exótica. Nós dois sabemos que sou tudo menos gentil.

Caminhamos em silêncio até alcançarmos a porta do meu camarote. Olho de relance para trás e vejo Ragnar percorrendo os corredores. Se não fosse pelos curativos no seu corpo, eu nem o teria visto. Faço um gesto dispensando-o.

Na porta, procuro os olhos altivos de Victra.

— Você podia ter mandado um baixaCor me avisar que eu devia vir pro camarote.

— Mas aí eu não veria você.

— Esse é o único motivo? — pergunto.

Ela sorri com malícia.

— Acho que vou guardar meus segredos. — Depois de um instante, ela levanta os olhos para mim. — Mas estou mesmo preocupada com você.

— Comigo? — Reviro os olhos. — Qual é seu joguinho agora, Victra?

— Nada — diz ela, ofendida. — Você é um hipócrita e tanto, Darrow.

— Eu?

— Lembra quando Tactus descartou seu violino porque estava desconfiado que você queria alguma coisa? Agora você me trata da mesma maneira. A mesma coisa quando te procurei nos jardins em Luna. Por acaso é demais acreditar que sou sua amiga e gosto de você? — Ela torce o nariz. — Você está me deixando emocionada, e odeio isso.

— Sinto muito — digo. — É que você é... — Tento encontrar as palavras certas para aquela mulher alta. Não existe nenhuma. Então dou de ombros. — É difícil, sabendo que você é irmã de Antonia. Não há mais nada além disso.

— Mas não sou Antonia.

— Percebo a...

— Percebe mesmo? — Ela se aproxima e toca meu rosto. Seus lábios se abrem, como se em busca de algo. Eu me lembro da sensação de tê-los junto aos meus antes de me lançar no cospeTubo. Deixei-a me beijar naquela ocasião. Mesmo sendo ela uma mulher fria, há algo no seu coração para mim. Diferente de Eo. Diferente de Mustang. Eu me afasto delicadamente da mão dela e balanço a cabeça em negativa.

— Você é um homem estranho — diz Victra com um suave suspiro, toda a vulnerabilidade que havia nela agora inexistente. Suas garras aparecem de novo. Ela encosta na parede oposta a mim, curvando um joelho e pondo uma bota em cima da parede, rindo de mim com os olhos. Aqui está a Victra que eu conheço.

— Você ama as mulheres, só que não desfruta de nós. — Linhas de sorriso vincam seu rosto quando os lábios se abrem de leve. Meus olhos não conseguem evitar percorrer os delgados contornos do seu pescoço, a força nos seus ombros finos e a elevação dos seus seios. Seus olhos flamejantes se fixam em mim. — Há tanta coisa a se desfrutar. Você ao menos imagina como minha pele é macia?

Eu rio, quase tossindo.

— Você está debochando de mim.

— Como sempre.

Victra é uma maquinadora. É o jeito dela. Mas, por um momento, ela ficou vulnerável. E ver isso... ver isso fez toda a diferença. Mato a tensão sexual da melhor maneira que conheço.

— Boa noite, irmã — digo, e lhe dou um beijo na testa.

— Irmã? Irmã? — Victra ri, dispensando-me, enquanto saio. Ela demora um instante, mas me chama.

— É porque você me considera maldosa?

Eu me viro de volta para ela.

— Maldosa?

— É por isso que você nunca me quis? — Ela faz uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — Por isso que você olha pra mim com desprezo?

— Por que você acharia isso? — pergunto com delicadeza.

Ela dá de ombros e olha ao redor do corredor, estranhamente hesitante.

— Eu não... — Ela torce as mãos, tentando extrair as palavras corretas. Ela faz um gesto na direção de si mesma. — É assim que sobrevivo, você entende? É assim que minha mãe me ensinou. É o que funciona.

— O que você me diz de a gente tentar algo novo? — sugiro, andando de volta a ela. Estendo a mão.

— Darrow. Ao contrário dos boatos populares, não como vidro. Adoro música, adoro dançar e gosto muito de fruta recém-colhida, sobretudo morangos.

Ela ri, quase bufando.

— Que coisa idiota. A gente está se reapresentando um ao outro?

— Sem armaduras. Apenas duas pessoas. E estou esperando — digo de modo brincalhão.

Revirando os olhos, Victra dá um passo à frente, olhando para os dois lados do corredor. Ela levanta a mão, tentando conter um sorriso infantiloide.

— Victra. Gosto do cheiro das pedras antes de a chuva cair. — Ela faz uma careta, as bochechas enrubescendo. — E... não ria. Na verdade odeio a cor dourada. Verde combina melhor com minha tez.

Não consigo dormir. Os corpos daqueles que deixei para trás flutuam na escuridão comigo. Acordo dezenas de vezes: lampejos de bombas, espadas dilacerantes invadem meus sonhos. Fiz por merecer essas noites insones. Sei disso, e é o que as torna ainda mais difíceis.

Eu me levanto e ando de um lado para o outro nos meus novos aposentos, vagando pela sua extensão. Seis cômodos. Um pequeno ginásio. Uma grande banheira. Um estúdio. Tudo pertencente ao homem que queimou uma lua. O pai das Fúrias. Como eu poderia dormir num quarto como este? Tiro do bolso meu pingente de Pégaso, quase esquecendo de que se trata de uma bomba de rádio.

Perambulando pelos corredores da nave, à semelhança de um fantasma, olho atrás de mim, imaginando se Ragnar está me seguindo. Eu lhe disse para dormir, mas conheço pouco os humores dele, como pensa, o que faz à noite. Há muito o que aprender.

Passo por corredores parcamente iluminados, por técnicos Laranjas e operadores de sistema Azuis, que se aquietam e se curvam enquanto passo por corredores metálicos através dos intestinos da nave, onde Ouros jamais circulam. Os tetos são baixos, feitos para os trabalhadores Vermelhos e para os zeladores Marrons. Esta nave é uma cidade, uma ilha. Todas as Cores estão aqui. Eu me lembro da lista. Milhares de empregos. Milhões de partes que se movem. Examino o painel de manutenção. E se o Laranja que trabalha nele sobrecarregasse o painel? O que aconteceria? Não sei. Aposto que poucos Ouros de fato sabem. Anoto isso tudo na mente.

Sigo em frente, e a fome me atrai para o refeitório. A comida poderia facilmente ser entregue nos meus aposentos, mas meus valetes ainda não foram organizados. De qualquer modo, odeio que esperem por mim. No refeitório, encontro alguém tão insone quanto eu sentada na longa mesa de metal.

Mustang.


24

Bacon e ovos

Deslizo para me postar em frente a ela.

— Não está conseguindo dormir? — pergunto.

Ela envolve os nós dos dedos de encontro à cabeça.

— Muito barulho por aqui. — Ela acena com a cabeça para o clangor das panelas nas cozinhas. — O cozinheiro entrou numas — diz ela. — Ele está pensando que preciso de um banquete. Falei que queria apenas bacon e ovos. Tenho certeza absoluta de que ele desconsiderou tudo o que eu disse. Murmurou qualquer coisa a respeito de faisão. Ele tem aquele sotaque dos nascidos-na-Terra. Difícil de entender.

Momentos depois, um cozinheiro Marrom sai da cozinha aos tropeções carregando uma bandeja contendo não apenas bacon e ovos mas também waffles de abóbora, presunto curado, queijos, salsichas, frutas e uma dúzia de outros pratos. Mas nenhum faisão. Seus olhos ficam do tamanho dos waffles quando ele me vê. Desculpando-se por alguma coisa, ele deposita a bandeja na mesa e desaparece, apenas para reaparecer um minuto mais tarde ainda com mais comida.

— Que quantidade de comida você imagina que a gente consegue ingerir? — pergunto a ele.

Ele apenas olha para mim.

— Obrigada — diz Mustang. Ele murmura qualquer coisa inaudível e se afasta, fazendo uma mesura.

— Acho que Lorde Ash era um pouquinho diferente de nós — digo. — Mustang empurra as frutas na minha direção. — Pensei que você não gostava de bacon — observo.

Ela dá de ombros.

— Eu comia isso todo dia em Luna. — Ela espalha manteiga com delicadeza nos seus waffles. — Fazia com que eu me lembrasse de você. — Ela evita meus olhos. — Por que você não consegue dormir?

— Não sou muito bom nisso.

— Você nunca foi. Exceto quando tinha um buraco no estômago. Aí você dormia como um bebê.

Eu rio.

— Acho que estado de coma não conta.

Conversamos sobre qualquer coisa menos sobre aquilo que deveria ser discutido. Inocentes e quietos, como duas mariposas dançando ao redor da mesma chama.

— É impressionante como as camas são grandes, mesmo pra uma nave estelar — diz Mustang. — A minha é monstruosa. Grande demais mesmo.

— Até que enfim! Uma outra pessoa concorda comigo. Metade do tempo durmo no chão.

— Você também? — Ela sacode a cabeça. — Às vezes ouço ruídos e durmo no closet, pensando que se alguém estiver vindo atrás de mim não vai procurar lá dentro.

— Já fiz isso. Ajuda mesmo.

— Exceto quando o closet é grande o bastante pra caber uma família de Obsidianos. Aí a coisa é tão ruim quanto. — Ela franze o cenho de repente. — Fico imaginando se os Obsidianos fazem carinho uns nos outros.

— Eles não fazem isso.

As sobrancelhas dela se levantam.

— Você fez alguma pesquisa sobre isso?

Termino de comer um punhado de morangos, dando de ombros quando Mustang franze o cenho para os meus modos.

— Obsidianos acreditam em três tipos de toque. O Toque da Primavera. O Toque do Verão. O Toque do Inverno. Depois da Revolta Escura, quando os Obsidianos pegaram em armas contra os ancestrais de ferro, o Comitê de Controle de Qualidade debateu a possibilidade de destruir todos os membros da Cor. Você sabe como eles lhes deram a religião, como roubaram a tecnologia deles. Mas o que mais desejavam matar era a incrível noção de parentesco que os Obsidianos possuíam naquela época. Então instruíram os xamãs das tribos, comprados e pagos pra mentir, pra alertar contra o toque, dizendo que isso enfraquecia o espírito. Então agora os Obsidianos tocam uns aos outros no sexo. Eles tocam uns aos outros pra impedir a morte. E eles tocam uns aos outros pra matar. Nada de carinho. — Reparo que ela está me observando com um leve sorriso afetado. — Mas é claro que você sabia tudo isso.

— Eu sabia. — Ela sorri. — Mas às vezes é legal lembrar tudo o que acontece dentro de você.

— Oh. — Olho para o outro lado quando ela tenta fixar os olhos em mim.

— Esqueci que você fica vermelho! — Ela me observa por um momento. — É provável que você não saiba disso, mas uma das minhas dissertações em Luna se concentrava nos erros existentes nos teoremas de manipulação sociológica usados pelo Comitê de Controle de Qualidade. — Ela corta uma salsicha com delicadeza. — Eu considerava as avaliações míopes. A esterilização química sexual do gene Rosa, por exemplo, levou a uma taxa de suicídio tragicamente elevada na área dos Jardins.

Tragicamente. A maioria teria dito “ineficiente”.

— A rigidez das leis que mantêm a hierarquia é tão estrita que um dia elas vão ser rompidas. Daqui a cinquenta anos? Cem anos? Quem sabe? Teve um caso que estudamos em que uma Ouro se apaixonou por um Obsidiano. Eles mandaram um Entalhador clandestino alterar os órgãos reprodutores deles pra que o sêmen dele ficasse compatível com os óvulos dela. Eles foram descobertos e ambos foram executados, e os Entalhadores foram mortos. Mas coisas como essa já aconteceram centenas de vezes. Milhares. Elas são simplesmente apagadas dos registros.

— É terrível — digo.

— E belo.

— Belo? — pergunto, enojado.

— Ninguém sabe nada dessas pessoas — diz ela. — Ninguém além de um punhado de Ouros com acesso. O espírito humano tenta se libertar das amarras, tenta e tenta sem parar, não com ódio como na Revolta Escura. Mas por amor. Eles não imitam uns aos outros. Eles não são inspirados por outros que vieram antes deles. Cada qual está disposto a dar o salto, pensando que são os primeiros. Isso é coragem. E isso significa que essa coisa faz parte de quem nós somos como povo.

Coragem. Será que ela diria isso se conhecesse uma daquelas pessoas, que está sentada em frente a ela? Será que ela vive no mundo de teorias sobre o qual falava Harmony? Ou será que ela poderia de fato entender...

— Então quanto tempo, fico imaginando — continua ela —, até que um grupo como esses Filhos de Ares encontre esses registros e os transmita? Eles fizeram isso com Perséfone. A garota que cantava. É só uma questão de tempo. — Ela faz uma pausa, estreitando os olhos para mim quando eu reajo involuntariamente à menção de Eo. — Qual é o problema?

Não posso dizer a ela o que estou pensando, de modo que minto.

— Dissertações. Sociologia. Você e eu somos especializados em coisas bem diferentes. Sempre imaginei como era a sua vida em Luna.

Mustang olha para mim de modo brincalhão.

— Oh? Quer dizer então que você pensava em mim?

— Talvez.

— Dia e noite? O que Mustang está vestindo? Com o que ela está sonhando? Que garoto ela está beij...?

Ela recua nessa última parte.

— Darrow, quero explicar uma coisa.

— Você não precisa — digo, fazendo um gesto como quem dispensa um comentário.

— Com o Cassius foi...

— Mustang, você não me deve nada. Você não era minha. Você não é minha. Você pode fazer o que quiser quando quiser e com quem quiser. — Eu paro. — Apesar de ele ser um maldito de um babaca.

Ela ri, bufando. O humor desaparece com a mesma rapidez que surgiu. Há dor nos seus olhos. Na sua boca meio aberta. A faca e o garfo ociosos pairam sobre o prato esquecido dela. Mustang baixa os olhos e sacode a cabeça.

— Eu queria que fosse diferente — murmura ela. — Você sabe disso.

— Mustang... — Pouso a mão no punho dela. Apesar da sua força, seu punho é frágil nas minhas mãos duras. Frágil como era o da outra garota quando eu a abraçava nas minas profundas. Não pude ajudar aquela garota. E agora sinto que não posso ajudar essa mulher. Gostaria muito que minhas mãos tivessem sido feitas para construir. Eu saberia o que dizer. O que fazer. Quem sabe numa outra vida eu tivesse sido esse homem. Nesta aqui, minhas palavras, como minhas mãos, são desajeitadas. Tudo o que elas conseguem fazer é cortar. Tudo o que elas conseguem fazer é quebrar. — Acho que sei como você está se sentindo...

Mustang se afasta bruscamente de mim.

— Como é que estou me sentindo?

— Não tive a intenção de... — Faço uma pausa, escutando um barulho.

Damos uma olhada ao redor e o cozinheiro está lá desastradamente parado com uma outra bandeja. Ele avança na pontinha dos pés e a deposita na mesa; então sai do recinto, afastando-se às pressas.

— Darrow. Cale essa boca e me escute. — Ela olha fixo para mim através dos fios de cabelo que caíram na frente do seu rosto. — Você quer saber como estou me sentindo? Vou te contar tudo. Durante toda a minha vida fui ensinada a ter consideração pela minha família acima de tudo. O que aconteceu com meu irmão no Instituto... quando eu o entreguei a você, aquilo me colocou contra tudo que sempre me ensinaram a fazer. Mas pensei que você... — Ela respira fundo e no fim solta o ar com uma certa hesitação. — ... fosse uma pessoa que merecia minha lealdade. E pensei que seria bem mais importante que eu a desse a você naquele momento e não a Adrius, que jamais levantou um dedo sequer em meu nome. Eu sabia que essa era a coisa certa a fazer, mas era também um repúdio ao meu pai, a tudo o que ele me ensinou. Você consegue ao menos imaginar o que isso significa? Ele quebrou famílias inteiras com a mesma facilidade que outros homens quebram pedaços de pau. Ele detém um poder inimaginável. Mais do que isso, ele é o homem que me ensinou a cavalgar, a ler poesia e não apenas as histórias militares. O homem que sempre ficou ao meu lado, permitindo que eu me levantasse por conta própria quando eu caía. O homem que não conseguiu olhar pra mim por três anos depois que minha mãe morreu. Esse é o homem que rejeitei por você. Não — ela se corrige —, não por você, mas pra viver de uma maneira diferente, pra viver por mais. Por mais do que orgulho. No Instituto, você e eu decidimos romper as regras, ser decentes num lugar onde prevalece o horror. Aí fizemos um exército formado por amigos leais em vez de escravos. Escolhemos os melhores. Aí você foi lá e cuspiu na cara disso tudo indo embora pra se tornar um dos matadores do meu pai. — Ela balança um dedo no ar. — Não. Não fale. Ainda não é sua vez só porque fiz uma pausa.

Ela leva algum tempo reunindo seus pensamentos, empurrando o prato.

— Agora, tenho certeza de que você entende como eu me senti perdida. Uma porque eu pensava que havia encontrado alguém especial em você. Outra porque senti que você estava abandonando a ideia que nos deu a habilidade pra conquistar o Olimpo. Considere o fato de que fiquei vulnerável. Solitária. E que talvez eu tenha ido pra cama de Cassius porque estivesse magoada e necessitasse de um bálsamo pra minha mágoa. Você pode imaginar isso? Agora você pode responder.

Eu me contorço na almofada.

— Acho que sim.

— Bom. Agora enfie essa ideia no rabo. — Os lábios formam uma linha dura. — Não sou uma vagabunda cheia de frescura. Sou um gênio. Digo isso porque é um fato. Sou mais inteligente do que qualquer pessoa que você já tenha conhecido, com exceção talvez do meu irmão gêmeo. Meu coração não torna meu cérebro um bobalhão. Procurei ter um relacionamento com Cassius pelo mesmo motivo que me levou a permitir que a Soberana pensasse que estava me jogando contra meu pai: proteger minha família.

Ela olha para a comida.

— Sempre fui capaz de manipular as pessoas. Homens, mulheres, pouco importa. Cassius era uma ferida ambulante, Darrow, crua e sangrenta apesar do fato de que faz dois anos que você matou Julian. Vi isso nele num segundo, e soube na hora como eu poderia fazê-lo me amar. Dei a ele uma pessoa que estava disposta a ouvir, uma pessoa que preencheria o vazio dele.

A seriedade na voz de Mustang desaparece. Ela olha ao redor como se pudesse escapar da conversa que havia começado. Se ela parasse, eu ficaria mais feliz por isso.

— Fiz Cassius pensar que não poderia viver sem mim. Sabia que essa era a única coisa que poderia manter o resto da minha casa em segurança. Sabia que essa era a melhor arma que eu poderia usar nesse jogo. Contudo... eu me sentia tão fria. Tão horrível. Como se eu fosse a feiticeira cruel prendendo Ulisses, fazendo com que ele se apaixonasse, mantendo-o em função dos meus próprios objetivos egoístas. Parecia lógico demais. E quando ele me abraçava, eu tinha a sensação de que estava me afogando. Como se eu estivesse perdida, sufocando sob o peso de tudo o que eu havia feito, sufocando ao saber que havia uma vida diante de mim com alguém que eu não amava. No entanto, aquilo era pela família. Era pelas pessoas que eu amo mesmo que elas não merecessem isso. Muitos já sacrificaram mais coisas. Eu poderia sacrificar isso. — Ela balança a cabeça, as lágrimas que brotam nos seus olhos espelhando aquelas que inundam os meus próprios. Elas caem quando ela diz: — Aí você apareceu naquele baile de gala e... e foi como se o chão tivesse sido aberto pra me engolir. Eu me senti como uma fraude. Uma garota má que havia maquinado um motivo pra fazer uma coisa estúpida. — Ela tenta enxugar os olhos. — Você não consegue ver por que eu fiz isso? Eu não queria que você morresse. Não quero que você morra. Não como meu irmão Claudius. Não como Pax. Eu teria feito qualquer coisa pra impedir isso.

— Posso impedir isso.

— Você não é invencível, Darrow. Sei que você pensa que é. Mas um dia você vai descobrir que não é tão forte quanto pensa que é, e eu vou ficar sozinha.

Mustang fica em silêncio enquanto tudo que estava represado dentro dela escapa. Ela não soluça. Mas as lágrimas chegam. Ela é o tipo de mulher que fica constrangida por elas.

Fico arrasado vendo isso.

— Você não é má — digo, enquanto pego a mão dela. — Você não é cruel. — Ela sacode a cabeça, tentando se afastar de mim. Seguro seu queixo entre os dedos da mão direita e curvo sua cabeça até que os olhos dela encontram um lar nos meus. — E o que você faz pelas pessoas que ama não pode ser julgado. Está entendendo? — Aprofundo a voz. — Está entendendo?

Ela faz que sim com a cabeça.

Não deveria ser assim. Os Ouros têm tudo, no entanto exigem sacrifícios até mesmo deles próprios. Esse lugar é doente. Esse império ruiu. Ele come seus reis, suas rainhas, com a mesma voracidade que come os miseráveis que trabalham na sua terra. Mas ele não pode ter essa mulher como teve a garota que eu enterrei. Não vou deixar que ele a devore. Não vou deixar que ele devore minha família em Lykos. Vou destruí-lo, mesmo que ele me vença no final.

Enxugo as lágrimas do rosto dela com o polegar. Ela é diferente do seu povo. E quando tenta se comportar como eles, seu coração fica rachado até o cerne. Olhando para ela, sei que eu estava errado. Ela não é uma distração. Ela não compromete minha missão. Ela é o motivo de tudo isso. Contudo, não posso beijá-la. Não agora quando preciso partir seu coração para rachar ao meio esse império. Não seria justo. Eu me apaixonei por ela, mas ela se apaixonou pelas minhas mentiras.

— Você não pode confiar nele — diz Mustang em voz baixa.

— Em quem? — pergunto, sobressaltado pelas súbitas palavras dela.

— Meu irmão gêmeo — sussurra ela como se ele estivesse sentado no canto da sala. — Ele não é um homem como você. Ele é alguma outra coisa. Quando ele olha pra nós, quando ele olha pras pessoas, vê sacos de osso e carne. Não existimos de fato pra ele. — Franzo o cenho enquanto ela segura com força minha mão. — Darrow, escute o que estou dizendo. Ele é o monstro sobre o qual ninguém sabe como escrever histórias. Você não pode confiar nele.

A maneira como ela diz isso faz com que eu saiba que ela compreende nosso pacto.

— Não confio nele — digo. — Mas preciso dele.

— A gente pode ganhar essa guerra sem ele — diz ela.

— Pensei que você tivesse dito que eu não era forte o bastante.

— Você não é — diz ela com um sorriso. — Não sozinho. — Ela exibe aquele risinho torto dela. — Você precisa de mim.

Se ao menos fosse assim tão simples.

Deixo Mustang e vou para os meus aposentos em seguida. Os corredores estão quietos, e sinto uma sombra vagando através de algum domínio metálico. Não sei como aceitar a ajuda dela. Ou como deveria lidar com ela. Vê-la com Cassius me magoou mais do que eu jamais seria capaz de revelar a ela, e parte de mim sabe que nem tudo relacionado a isso poderia ser uma manipulação. Ele nunca foi um monstro; e se algum dia ele vir a se tornar um, sei que será por minha causa.

A porta da minha suíte se abre com um sibilo. Uma mão surge no meu ombro. Eu me viro para ver o tórax de Ragnar. Nem o escutei.

— Alguém está respirando aí dentro.

— Theodora, provavelmente. Ela é minha assistente Rosa. Você vai gostar dela.

— Respiração Ouro.

Aceno com a cabeça, sem perguntar como ele sabe, e puxo a lâmina do meu braço. Ela sussurra ao se transformar numa espada à medida que piso no interior do recinto. As luzes estão acesas, silenciosas. Vasculho os cômodos da suíte com Ragnar para encontrar o Chacal sentado no sofá com um xerez. Ele dá uma risada para as nossas armas.

— Devo admitir que sou bem ameaçador.

Ele está vestindo um roupão de banho e chinelos.

Desculpo Ragnar. Com seus ferimentos, ele deveria estar descansando. Com relutância, ele se afasta com sua pisada forte.

— Parece que ninguém dorme nesta nave — digo, enquanto me junto ao Chacal no sofá. — Estou achando que a gente vai ter que reestruturar nosso arranjo um pouquinho.

— Curte um subterfúgio, hein? — Ele dá um gole na bebida e suspira. — Pensei que eu fosse morrer afogado na droga daquela lagoa. Sempre achei que minha morte seria algo grandioso. Lançado ao interior do sol. Decapitado por um rival político. Aí quando ela veio... — Ele estremece, parecendo bastante frágil e ameninado. — Era apenas uma frieza indiferente. Como as rochas do Instituto caindo mais uma vez ao meu redor naquela mina.

Ele está certo, não há calidez na morte. Chorei como uma criança quando pensei que estava morrendo depois que Cassius me esfaqueou.

— É óbvio que isso muda nossa estratégia, mas não acredito que deva mudar nossa aliança.

— Nem eu — concordo. — Vamos precisar dos seus espiões mais do que nunca. Pliny não vai encarar com leveza minha ascensão. E você está preso aqui na corte do seu pai. O político vai tentar retirar nós dois daqui. — Não faço menção aos Filhos de Ares. Como eu adivinhei, eles foram esquecidos por todos assim que eu derramei aquele vinho no colo de Cassius.

— Pliny vai ter que ir embora. Mas você e eu devemos manter uma distância social até isso acontecer, pra que ele não saiba que a ameaça contra ele é uma coisa unificada. É melhor que ele não entenda nossos recursos individuais.

— E pra que os Telemanus continuem falando comigo — digo.

— Verdade. Eles querem me ver morto.

— Como deveriam querer.

— Não tenho má vontade com eles. Só que é uma coisa muito inconveniente. — Ele me entrega um holoCam tirado do bolso. — Elas estão sincronizadas. Vou chamar minhas naves pra se encontrar com a gente, e imagino que você vá ficar aqui com nosso novo prêmio. Não faz sentido as naves irem e virem.

Quero perguntar a ele sobre Leto. Por que ele o matou. Mas por que mostrar para um demônio que você conhece a força dele? Isso apenas faz de mim uma ameaça para ele. E já vi como o Chacal lida com ameaças. É melhor bancar o ignorante e me certificar de que sou sempre útil.

— A guerra nos apresenta mais oportunidades — digo. — Dependendo de até onde a gente tenha intenção de se espalhar...

— Tenho a impressão de que sei o que você quer dizer com isso.

— Todos os outros vão tentar apagar as chamas, preservar o que possuem. Sobretudo Pliny, e sua irmã.

— Bom, então a gente precisa ser mais inteligente.

— Ela fica incólume. Essa parte do nosso acordo é imutável.

— Se alguma coisa de ruim acontecer com ela, tenho a impressão de que vai ser causada por você, não por mim. — Talvez ele esteja certo. — Mas estou do seu lado: atice as chamas. Espalhe a guerra. Vença. Tome os despojos.

— Acho que sei exatamente como fazer isso. O que sua rede de informações pode me dizer sobre os estaleiros de Ganimedes?


Parte III

Conquistar

Quando cair a Chuva de Ferro, sejam corajosos. Sejam corajosos.

Lorn au Arcos


25

Pretores

— Estamos destruídos, foi isso o que o ArquiGovernador de Calisto disse. — O ArquiGovernador Nero au Augustus espia ao redor da mesa para ver se entendemos a gravidade das suas palavras. Os ângulos aquilinos do seu rosto captam as luzes da sala de guerra da nave, afundando suas bochechas e dando a ele a aparência de um falcão olhando para o seu próprio bico. — E por que ele não diria uma coisa dessas? O Cerne nos enfrenta. Netuno está em órbitaDistante — As naves de Vespasian levarão seis meses até chegar aqui pra nos dar um reforço. Tudo isso enquanto meus próprios correligionários se escondem atrás dos seus escudos nas suas cidades em Marte, enviando apenas seus filhos e netos pra nos ajudar. — Ele olha para os dois membros mais distantes na mesa. — A debilidade deles nos aleija. E agora estou aqui sentado em conselho com meus Pretores, meus comandantes, e que grandes esquemas eles por acaso têm a me oferecer?

Fuja. É isso o que eles dizem. Fugimos de Luna um mês atrás. E não paramos mais de fugir desde então, porque a Soberana foi astuta e suas forças nos derrotaram até sermos obrigados a regressar a Marte.

Não foi assim que imaginei que tudo aconteceria. Mas também, nada disso é culpa minha, droga. Uns tolos cautelosos da porra cercam o ArquiGovernador. Ouros assustados demais com a possibilidade de perder todos os favores e todo o poder que arrebanharam no passado a ponto de arriscar qualquer coisa agora. Pior, eles querem me tirar do páreo. Alianças se formam contra mim. É visível nos olhos deles, nos ombros deles. Meu ganho é a perda deles. Mesmo aqueles que foram liderados por mim em Luna. Mesmo aqueles que salvei da morte certa. Eles fazem o mesmo com o Chacal, e consideram uma vitória o fato de ele não estar aqui nesta sala brigando com eles. Erro deles.

Estou sentado a dez cadeiras de distância do meu mestre na maciça mesa de carvalho na sala de guerra da sua belonave, o couraçado de seis quilômetros de extensão chamado Invictus. O teto está quarenta metros acima de nós. A sala absolutamente grandiosa e imponente. Um relevo entalhado representando um leão olha com raiva do centro da mesa. Mais de quarenta lugares estão vazios. Conselheiros de confiança ausentes, tendo abandonado Augustus como ratos fugindo de um navio que afunda. Aqueles conosco são Pliny, o Pretor Kavax, seu filho Daxo e meia centena dos mais poderosos Pretores, Legados e correligionários de Augustus. Eles não olham com raiva para mim. Nada assim tão infantiloide. Esses Ouros presidem mais de um bilhão de almas. Portanto, eles simplesmente me ignoram e geram dúvidas em Augustus a respeito das minhas ideias.

— Estamos de acordo, então, com o ArquiGovernador de Calisto? Fomos destruídos? — exige saber Augustus.

Antes que qualquer um possa responder, a grandiosa porta sibila, escamoteando-se para o interior das paredes marmorizadas. Mustang entra, jogando uma maçã de uma mão para a outra.

— Peço perdão pelo meu atraso! — Ela olha radiante para o pai, aproxima-se dele e dá um beijo muito gracioso no seu anel com uma cabeça de leão.

— Fiz a convocação há mais de uma hora — diz Augustus.

— Oh? — Mustang olha rapidamente para Pliny. — Devo ter perdido. Só soube que vocês estavam aqui porque fui procurar meu irmão pra disputar uma partida de xadrez. — Ela ri da piada. Apenas os Telemanus entendem. Suspirando, ela se dirige à extremidade da mesa, apertando os ombros de Daxo e Kavax enquanto passa. Kavax a cumprimenta com ribombantes e cálidas palavras. Ela se senta e põe as botas militares em cima da mesa. — Perdi alguma coisa? É claro que não. Perturbações como sempre?

A bochecha do seu pai treme.

— Isso aqui não é um estábulo. — Ele olha para as botas dela. Suspirando, ela as baixa e lustra a maçã na manga preta do seu traje.

Ela é uma das pouquíssimas mulheres na sala. Agrippina au Julii deveria estar aqui, mas foi sua traição que exauriu a frota de Augustus do número de naves que ele necessitava para capturar Marte com rapidez. E foi sua traição que fez com que Augustus pusesse homens para vigiar Victra e se certificar de que a lealdade dela para com ele era verdadeira. Foi necessária quase toda a minha influência com o homem para tirá-la da prisão da nave.

Fomos caçados dos mundos do Cerne até aqui, muito além da trilha orbital de Marte. Nossas operações de mineração de asteroide foram capturadas. Os recursos de Augustus estão congelados. E suas cidades, aquelas que já não se renderam à Soberana, estão sitiadas. Sem mencionar que há recompensas pelas nossas cabeças. Os velhos não gostam do fato de que a recompensa pela minha cabeça é a segunda mais alta, perdendo apenas para Augustus.

— Antes da interrupção — continua Augustus —, acredito que alguém estava justificando as pos... — Snap. A voz dele some quando Mustang dá uma mordida sonora na maçã. Ela olha ao redor para os rostos perturbados. Reprimo um riso.

— Meu suserano — diz Pliny, curvando o corpo para a frente. — Temo não haver alternativa além de continuarmos nossa retirada tática. Se as coisas continuarem dessa maneira, nós perderemos. E você, meu suserano, será julgado por... — Snap. Ele estremece antes de terminar — ... traição. — Ele olha ao redor da mesa para os seus aliados comprados-e-muito-bem-pagos. — Só existe um único caminho disponível pra nós.

— Continuar fugindo com nossa frota até que os reforços de Vespasian cheguem de Netuno — murmura Augustus. — Daqui a seis meses.

O político balança a cabeça em assentimento.

— Ou nos rendermos.

— Gostaria muito que você tivesse matado Octavia quando teve a chance, rapaz — diz Kavax.

— Se eu tivesse feito isso, todos aqui estariam mortos — respondo.

Daxo faz que sim com a cabeça.

— Ele não teve nenhuma intenção de ofender. Foi apenas a expressão de um desejo.

— Por que você não matou Octavia? — pergunta Pliny, estreitando ceticamente os olhos para mim.

— Eu não teria como. Eu estava na sala com Aja au Grimmus. Talvez se você estivesse lá, poderia fazer melhor do que eu, mas sou um homem mortal.

Os Pretores que conhecem suas áreas de atuação riem.

— Nem Lorn au Arcos teria ousado fazer isso — murmura Augustus. — E uma vez eu o vi matar Manchados sem uma lâmina. Darrow fez o que podia fazer. — Ele volta sua atenção para mim. — Você também acha que devemos fugir agora?

— Isso faz com que você pareça um fraco.

— Nós estamos fracos — responde Pliny. — Mas isso faz com que ele pareça um sábio.

— Homens sábios leem livros sobre história, Pliny. Homens fortes os escrevem.

— Pare de citar Lorn au Arcos — rebate Pliny.

— Pensei que você fosse aberto a toda espécie de conhecimento.

— Seus muitos anos de vida sem dúvida nenhuma fazem de você uma autoridade em inúmeras coisas — diz Pliny melodicamente. — Recicle mais máximas de velhos guerreiros pra que possamos aprender sobre a vida e a sabedoria.

— Isso não tem a ver comigo, caro Pliny. Portanto, pare com o ad hominems. — Faço um gesto para o ArquiGovernador. — Isso tem a ver com nosso suserano. Isso tem a ver com o destino dele.

— Quanta consideração da sua parte em reparar isso, Darrow. — Augustus esfrega os olhos, cansado das nossas rusgas.

— Os jovens não têm outra opção além de ser ansiosos — continua Pliny. — Mas devemos lembrar, não existe desonra na prudência, meu suserano. Um atraso de seis meses é um pequeno preço a pagar pela vitória. — Ele estica as mãos de dedos longos. — Na realidade, o tempo é nosso amigo. Octavia não pode se dar ao luxo de vasculhar o sistema solar atrás de nós. Não com o Senado tão dividido em casa. As garras dela serão como ferro. Elas rasgarão as costas dos outros ArquiGovernadores, e não demorará muito até que aqueles que a seguem comecem a se irritar com as ordens dela. Eles aprenderão o motivo pelo qual lutamos contra ela; isto é, que ela não é nossa representante, mas uma Imperatriz Máxima. Isso nos dará tempo. O que nos dará poder. O que nos dará a habilidade pra demandar uma paz rentável.

O Pretor Kavax bate o punho na mesa.

— Eu mijo em cima disso!

Um homem titânico, ele é mais entalhado em pedra do que em carne. Seu pescoço é tão espesso que eu não conseguiria nem envolvê-lo com as mãos. Ao contrário da maioria dos Ouros, ele raspou a cabeça e permitiu que sua barba crescesse. Ela é grossa e está tingida de vermelho-sangue. Quando a iluminação diminui, ela refulge como um tição na noite. Apenas três dedos permanecem na sua mão esquerda. Dizem que seu filho, Daxo, arrancou os demais a dentadas quando era criança. Embora Daxo sempre sorria e, com voz suave, sugira que isso tenha sido feito pelo seu irmão mais jovem, Pax. Os Telemanus são os únicos Pretores nesta sala não sujeitados, de uma maneira ou de outra, a Pliny. Eu gosto de Kavax.

— Isso me torra o saco. Essa conversinha Pixie me torra o saco! — escarnece Kavax. — Não deveríamos estar nessa posição. Deixe-me sair, meu suserano, e mandarei mil soldados da minha guarda lidar com os covardes que não atendem às suas convocações. Perdão, meu querido — sussurra ele para a sua raposa favorita, Sophocles, uma coisa de pelagem vermelho-ouro e orelhas afiadas que estremece ao som altissonante da voz do seu mestre. Sophocles come pequenos confeitos da mão gigantesca de Kavax.

Esperamos que a atenção de Kavax volte às suas palavras.

— O que você estava dizendo mesmo, Kavax? — implica Augustus com um rápido sorriso que reserva para os seus favoritos.

— Pai — diz Daxo, cutucando o homem maior.

Kavax levanta os olhos, sobressaltado.

— Oh. E quando o saco deles for arrancado e pendurado nas suas orelhas, os outros vão se lembrar que você é o governante de Marte e implorarão pra ajudá-lo, Nero.

Satisfeito, ele volta a alimentar Sophocles com os pequenos confeitos.

— E eles saberão que nossa pequena quantidade de Lordes aqui fomos considerados leais — acrescenta rapidamente Daxo, acenando para os Ouros ao redor da mesa, que balançam a cabeça em concordância. Daxo suga um palito de canela. Ele sorri ainda mais do que Pax, embora o sorriso dele tenha a metade do tamanho e seja duas vezes mais malicioso. A única carranca que vi até hoje no seu rosto foi quando ele viu o Chacal no baile de gala.

Esse rancor não desaparecerá. Nem deveria. O Chacal tirou Pax deles. Em resposta, a família Telemanus exigiu sua cabeça. Por sua vez, Augustus baniu o Chacal de Marte. Mas agora a guerra traz novas complicações, novas necessidades. E o Chacal parece ter sido perdoado aos olhos do pai, senão aos olhos dos Telemanus. Eu os observo com cautela. Eles não são estúpidos, apesar dos disfarces que gostam de usar. Espero apenas que eles permaneçam ignorantes a respeito da minha aliança com o matador de Pax.

— Todos deveriam se lembrar que fidelidade não é algo que se abandona tão fácil — finaliza Daxo, sua voz espantosamente cordial. — Uma visita do meu pai e das minhas irmãs lembraria outros correligionários dos seus deveres a você em tempos de guerra. — Ele inclina a cabeça de maneira brincalhona, permitindo-nos admirar o belo trabalho artístico que são os anjos dourados entalhados no seu couro cabeludo. — Está na natureza dos Telemanus deixar uma impressão. Talvez isso infle nossas fileiras.

— Meus Lordes trovejantes. — Augustus sorri. — Sempre ávidos por violência. — Ele passa o dedo pelas costas da sua comprida mão esquerda. — Mas não. Essa lembrança deve esperar. Castigos só podem ser administrados na vitória. Pareceria uma coisa reles, o triste flagelo de um homem que se afoga, considerando que minha frota está espalhada e minhas legiões, presas atrás dos escudos das minhas cidades.

Ele olha para Pliny e pergunta como o resto dos nossos aliados comerciais estão indo. Roubo um olhar de relance para Mustang. Ela repara e ergue uma sobrancelha para mim, imaginando quando devemos começar.

— Todos os nossos políticos foram recebidos — diz Pliny devagar. Hoje ele está usando uma camada muito séria de batom preto. — Como vocês sabem, meus políticos e eu fizemos uma conferência depois que fugimos de Luna. E desenvolvemos uma análise teórica bastante avançada acerca de potenciais mudanças no nosso quadro de aliados...

— Com computadores? — pergunta Kavax com um riso ribombante.

— Com computadores — continua Pliny, irritado. — Simulações foram empreendidas pelos meus analistas Verdes. Das Luas Galileanas: Io, Calisto, Ganimedes e Europa, nenhuma delas vai nos apoiar. Nem em simulação nem em realidade.

— Nem um pouco surpreendente — murmura o Pretor aquilino. — Tivemos os mesmos resultados com as luas de Saturno.

Pliny continua:

— É claro que eles temem as repercussões da escolha do lado errado. Os Governadores de Saturno são uma causa perdida por enquanto. Eles veem o cadáver de Rhea no seu céu todos os dias. No setor galileano, a presença de Lorn au Arcos em Europa é um problema. Suas... tendências políticas isolacionistas têm se provado infecciosas aos ArquiGovernadores das luas de Júpiter, sobretudo tendo em vista que seu exército particular é duas vezes maior do que qualquer um dos exércitos dos ArquiGovernadores.

— Isolamento? É mais uma aposentadoria — diz Augustus, suspirando. — Talvez ele tenha esse direito.

— Você enlouqueceria, papai — diz Mustang da extremidade da mesa. — Nenhum esquema, nenhum complô ou estratagema. Apenas família e tempo pra gastar com Adrius e comigo.

O sorriso dele é contido e indecifrável.

— Como minha filha me conhece bem.

— O que mais me preocupa — diz Pliny — é que os galileanos, de acordo com suas próprias palavras, duvidam da validade da nossa causa.

— Isso porque não temos uma causa — digo com um gemido, lembrando meu papel. — Pelo menos não uma causa que interesse a alguém.

— Explique — exige o ArquiGovernador.

— Ele vai chegar lá, papai — diz Mustang. — Darrow gosta de um drama.

Olho ao redor da sala como se estivesse numa apresentação teatral.

— É seguro dizer que os gentis Ouros nesta sala compreendem a natureza humana. Certo? Mesmo que não compreendêssemos, o que é que nos motiva? Uma causa? Não. Nenhum de nós tem uma causa. Liberdade? Independência? Justiça? — Reviro os olhos. — Dificilmente. O que nos importa se a Soberana age como uma Imperatriz Máxima? O que nos importam o Pacto e as liberdades que ele estende aos Ouros? Nada. Isso aqui tem a ver com poder. Sempre tem a ver com poder. Lutamos contra ela porque nos ligamos a uma estrela, o ArquiGovernador. Mas a estrela está caindo, perdendo o brilho...

Kavax se levanta parcialmente do assento.

— Não insulte seu Lorde como se...

— Como se ele fosse o quê? Um tolo? Ele não é um tolo, então paremos por aqui. Os Bellona tomam Marte. Eles conseguirão os contratos, as posições governamentais. Nós seremos empurrados às margens, mortos e irrelevantes. — Minha voz brinca com a audiência. — O poder é a única coisa de valor neste mundo. Pensem em Tactus au Valii-Rath, um leal aliado meu há três anos. Mas assim que minha estrela começou a cair, ele me roubou e partiu pela porta dos fundos. Um gatuno na noite. Quantos assentos vazios que estão aqui não estavam preenchidos antes de Luna? Tantos homens e mulheres que teriam dado seu sangue a Augustus. Tantos homens e mulheres que teriam dado seus olhos pelo ArquiGovernador quando ele estava sentado no seu tablado em Agea. Agora...

Esfrego as mãos.

— Nós estamos perdendo. Fugir é definhar e morrer. Se queremos ascender de novo, atraiam os galileanos à nossa causa, tragam os Governadores de Saturno às nossas fileiras. Então mostraremos a eles que não somos desprovidos de poder. Mostraremos a eles que estamos transbordando de poder. Nós somos árbitros da vida e da morte. Nós, não os Bellona, somos a Casa de Marte.

Pliny começa a dizer alguma coisa, mas Augustus faz um gesto para que ele fique quieto.

— O que você proporia?

— As famílias galileanas olham com bons olhos pra Luna por uma razão. Comércio. Ganimedes tem seus estaleiros. Calisto é pouco mais do que uma fábrica de Cinzas e Obsidianos destinados aos exércitos da Sociedade. Europa é um oceano de bancos e mineração em águas profundas e casas de veraneio. Io é a cesta de pão pra qualquer mundo ao longo da trilha orbital de Júpiter. Eles dependem demais do comércio com o Cerne pra correr pro nosso lado. E até a criança mais ignorante sabe o que aconteceu quando Lorde Ash desceu sobre Rhea. — Os Pretores todos balançam a cabeça ao mesmo tempo. — Portanto, precisamos impressioná-los. Precisamos aterrorizá-los pra que eles saibam que nosso poder pode tocá-los a qualquer momento e eles não podem correr o risco de se alienar de nós.

— Como? — pergunta Augustus. Estão todos fisgados agora.

Deposito minha lâmina na mesa para que eles saibam que espécie de negócio estou propondo.

— Nós tomamos as naves deles. Nós tomamos os filhos deles. Nós os tomamos como aliados da mesma maneira que os espartanos tomaram as esposas deles. Pela força, à noite.

Um silêncio se forma ao meu redor. Então surge o tumulto. Pliny deixa seus Pretores arrebentarem a ideia. Ele gasta sua energia sussurrando no ouvido de Augustus. Olho de relance para Mustang, mas ela está observando os outros, avaliando-os.

— Conversa mole. — O ArquiGovernador aquieta a sala e se dirige mais uma vez a mim. — Não ouvi um plano.

— Um plano. Duas partes.

Toco um datapad e o holo que os agentes do Chacal me deram se expande sobre a mesa para mostrar Ganimedes. A lua brilha intensamente em tons azuis e verdes devido aos seus oceanos e florestas, cintilante em contraste com o branco marmóreo e alaranjado da vaporosa superfície de Júpiter. Estaleiros cinzentos estão alinhados ao longo da lua. Faço um zoom de modo que eles possam se espalhar ao longo e acima da mesa. Listo as naves registradas, salientando uma em particular.

— Ganimedes possui um quebraLua.

Assobios ao redor da mesa.

— Um quebraLua? — sussurra alguém.

— Essa informação é confiável? — pergunta Augustus.

Balanço a cabeça afirmativamente.

— Bem confiável. — Meus dedos coçam, girando a imagem das docas. Na sombra de uma doca orbital flutua uma nave semelhante à minha Pax, porém mais nova, maior. Preta como a noite e com oito quilômetros de extensão. — A Soberana em pessoa a encomendou pra presentear seu neto.

Kavax quase baba diante da visão da monstruosa nave.

— Que linda, que coisa adorável.

— Supondo que isso não seja uma maquinação — diz Pliny, inspecionando o holo —, como foi que você teve acesso a essa informação?

— Passarinhos também sussurraram nos meus ouvidos.

— Não seja esquivo. Isso é importante.

— Minhas fontes são minhas, da mesma maneira que as suas são suas, Pliny.

— Então você quer roubar o quebraLua de Ganimedes? — pergunta Pliny. — Isso é um ato de guerra.

Dou uma gargalhada.

— Não. Você não entendeu. Quero roubar todas as naves.


26

Mestre dos fantoches

Pliny olha de relance para Augustus, com a expressão preocupada.

— Faça isso e essa guerra não acaba até que um lado se transforme em cinzas.

— Ela já está assim... — começa Kavax.

— Isso aqui é diferente — exulta Pliny. — Isso aqui expande o escopo.

— Meu pai tem razão — declara Daxo. — Já estamos numa rebelião ampla.

Pliny bate a mão na mesa.

— Isso aqui é diferente. Isso aqui declara guerra à Sociedade, não aos Bellona, não à Soberana como pessoa. Ganimedes não nos fez nenhum mal. Esse plano vai fraturar tudo.

Augustus está sentado em silêncio, seus olhos frios mirando o quebraLua no holo. Sem olhar para mim, ele pergunta:

— Você disse que havia duas partes no plano. Qual é a segunda?

Mudo o holo. A Academia substitui os estaleiros. Naves estão alinhadas ao longo da sua opaca superfície acinzentada. Asteroides fazem rotações ao fundo.

— Aquelas naves são antigas — diz um Pretor calvo chamado Licenus antes que eu possa começar. — Inúteis em combate. Seu plano é roubá-las também?

— Não, Pretor Licenus. Meu plano é roubar os alunos. — Acrescento uma nova imagem. O Instituto de Marte se junta à Academia. Em seguida um outro Instituto, o de Vênus. Então dois Institutos da Terra. Então os Institutos galileanos e o de Saturno. Então outros, até que quase uma dúzia de imagens flutuam no ar. — Quero roubar todos os alunos. Não pra lutar. Mas pra obter um resgate por eles.

— Maldição dos infernos — Mustang cai na gargalhada. — Você está maluco, Darrow?

Augustus franze o cenho.

— Virginia, controle-se.

— Estou sob controle, papai. Seu cão de ataque é que não está.

— Você está se esquecendo qual é seu lugar.

— E você está esquecendo como era a aparência de Claudius, morto no chão. De Leto também. Você quer isso pro resto de nós? — Ela lamenta as palavras proferidas assim que escapam dos seus lábios.

— Cale essa boca, menina. — Augustus estremece de ira. Seus dedos ossudos agarram a beirada da mesa até ela ranger. — Você está desarticulada desde que permitiu o rapaz Bellona no meio das suas pernas. Entrar aqui como se fosse uma Pixie desfilando. Comer aquela maçã como uma criança. Pare de se comportar como uma puta de espetáculos de quinta categoria e honre seu nome.

— Como o filho que lhe resta? — pergunta ela.

Ele respira longa e calmamente.

— Você vai ficar quieta ou vai embora daqui.

Mustang cerra os dentes, mas fica surpreendentemente em silêncio. Os lábios de Pliny ficam franzidos num sorriso bastante satisfeito.

— Não a culpe, meu bom-homem, se ela já está cansada dessa guerra — diz Pliny, enfiando com suavidade uma faca num inimigo ferido. — Depois de tantos encontros de cúpula noturnos passados num engajamento diplomático horizontal com os Bellona, o vigor dela já não é mais o que costumava ser.

Kavax avança sobre Pliny. Daxo o puxa de volta no instante exato. Mas é Mustang a primeira a falar em meio ao tumulto instaurado.

— Eu mesma posso defender minha honra, meu bom-homem. Mas, de Pliny, tais insultos devem ser esperados. Afinal de contas, eu também seria amarga se minha mulher se curvasse pra trás pra se certificar de que tantos dos seus jovens mercenários aprenderam a embainhar suas espadas de modo correto.

Pliny olha com raiva para Mustang enquanto ela se levanta, prosseguindo seu discurso:

— Saí de Marte pra ir atrás de conhecimento na corte da Soberana. Não abandonei minha família, como tantos de vocês sugeriram. E não me arrependo nem um pouco de ter saído e deixado de participar de conversas como esta. Já que vocês, bons-homens, parecem ser bons apenas numa coisa, e essa coisa é brigar. Contudo, vocês chegam rapidamente a um acordo em relação a eu ser um motivo de zombaria. Curioso. Será que é porque vocês me veem como uma ameaça ao seu poder? Ou será que é apenas porque eu sou mulher? — Ela olha fixamente para as poucas e esparsas mulheres sentadas à mesa. — Se for esse o caso, vocês esquecem de si próprias. Essa Sociedade foi fundada por homens e mulheres com base no mérito. O caro Político Pliny, entretanto, tem razão: eu teria evitado essa guerra. Na realidade, tentei evitá-la. Por que outro motivo vocês imaginam que permiti que Cassius au Bellona me cortejasse? Mas a guerra está aqui. E vou proteger minha família contra todas as ameaças, tanto as vindas de fora quanto as vindas de dentro.

Augustus deixa escapar o mais singelo e mais tênue dos sorrisos, um duplo do primeiro. Seu amor é o mais condicional que já vi até hoje. Com que rapidez ele consegue chamar a filha de puta e em seguida sorrir quando Mustang reivindica seja lá que poder ela perdeu na sala. De súbito, ela passa a ter importância.

— Então o que você acha do meu plano? — pergunto.

— Eu o considero perigoso. Ele espalha a guerra sem garantir nossos benefícios. Ele é imoral e estabelece um precedente perigoso. Mas também, a guerra é algo inerentemente imoral. Nesse sentido, devemos apenas decidir até onde queremos ir.

— Você conhece Octavia melhor do que eu — digo. — Até onde ela irá?

Mustang fica em silêncio por um momento.

— Se obtivermos uma vitória e apelarmos à paz, seja a partir de uma posição de força ou de fraqueza, ela aceitará a oferta inicial...

— Viram? — Pliny fica radiante.

Mustang ainda não terminou.

— Ela vai sugerir uma localização neutra. E nesse dia em que aparecermos pra formalizar a paz, ela vai fazer tudo a seu alcance pra nos matar a todos.

Pliny olha para mim e em seguida para ela, percebendo como foi envolvido com facilidade.

— Então não existe volta? É vencer ou morrer? — pergunto, enfático.

— Com certeza, Darrow — diz ela com um sorriso. — Vencer ou morrer.

— Parece que sua estratégia foi superada, Pliny. Vamos avançar de acordo com o plano de Darrow. — Augustus se levanta. — Amanhã, o Pretor Licenus assumirá o comando dessa embarcação e da sua frota e liderará a caçada à frota da Soberana, enquanto conduzo um pequeno grupamento de ataque formado por corvetas e fragatas até as Gigantes Gasosas. Com elas, vou atacar os estaleiros de Ganimedes.

— Vou com você, meu suserano! — ribomba Kavax. — A raposa pula do seu colo em função do barulho para tremer debaixo da mesa.

— Não.

O rosto de Kavax despenca.

— Não? Mas Nero... as defesas de lá, as estações de batalha, os destróieres, as navesChamas, elas vão triturar qualquer força de corvetas que você levar. — Suas grandes mãos acenam de maneira suplicante. — Deixe-nos fazer isso por você.

— Você esquece quem eu sou, meu amigo.

— Perdão, não tive intenção de...

Augustus dispensa o pedido de desculpas e se vira para Mustang.

— Filha, você levará quaisquer elementos da frota de que necessite pra executar a segunda porção do plano de Darrow.

Observar Pliny agora é como ver uma criança tentar reter nas mãos um punhado de areia. Ele não entende o curso que as coisas tomaram. Mas não é tolo o suficiente para movimentar suas peças agora. Ele vai esperar na grama como a cobra que é.

O ArquiGovernador se vira para mim.

— Darrow, o que foi mesmo que você me disse antes de derramar o sangue de Cassius?

— Eu disse que você deveria ser o Rei de Marte.

— Meus amigos. — Augustus deposita as mãos magras sobre a mesa, os dedos rígidos. — Darrow demonstrou poderes que nenhum de vocês possui. Ele prediz o que eu quero. Eu quero ser rei. Façam-me rei. Dispensados.

A sala fica vazia. Eu espero com Augustus. Ele quer ter uma conversa particular comigo.

Mustang roça o corpo no meu ao passar, piscando de modo brincalhão.

— Discurso legal — murmuro.

— Plano legal.

Ela aperta minha mão com força e em seguida vai embora.

— Outra vez aliados — observa Augustus. Ele faz um gesto para que eu feche a porta. Eu me sento perto dele. As rugas duras do seu rosto se aprofundam quando ele olha fixamente nos meus olhos. De longe, as rugas são invisíveis. Mas, de perto, elas são as coisas que compõem o rosto dele. Perdas dão a um homem rugas assim, lembrando a mim que esse é o homem de quem você não tem raiva. O homem a quem você não deve nada.

— Podemos nos livrar da indignação que você tem direito a ter antes que ela encontre um lugar na sua língua. — Ele dispõe os dedos em forma de torre, examinando as cutículas bem cuidadas. — A pergunta é simples e você a responderá: você é um demokrata?

Eu não tinha esperado por isso. Tento não olhar ao redor nervosamente.

— Não, meu suserano. Não sou um demokrata.

— Nem um Reformista? Não é alguém que quer alterar nosso Pacto pra criar uma sociedade mais justa e mais decente?

— O ser humano está adequadamente organizado hoje — digo, fazendo uma pausa —, tirando umas poucas e notáveis exceções.

— Pliny?

— Pliny.

— Vocês dois possuem suas dádivas. E você faria muito bem em não questionar meu julgamento de mantê-lo próximo.

— Sim, meu suserano. Mas eu não sou muito mais um demokrata do que você é um Lune.

Ele não sorri como eu pretendia. Em vez disso, aperta um botão e o discurso que usei para conquistar Pax surge nas caixas acústicas. Um hc exibe os rostos de diferentes Cores.

— Observe as expressões deles. — Ele observa a minha enquanto circula através de uma série de videoclipes de diferentes partes da nave à medida que a tripulação escuta o discurso que proferi antes de se levantarem contra seus comandantes Ouros. — Está vendo aquilo? Aquilo ali. A fagulha? Está vendo?

— Sim.

— Aquilo se chama esperança. — O homem que matou minha mulher espera que meu rosto entregue meu disfarce. Boa sorte para ele. — Esperança.

— Você está dizendo que cometi um erro? — pergunto.

Ele rememora antigas palavras.

— Tão odioso pra mim quanto os portões do Hades é o homem que esconde uma coisa no seu coração e fala uma outra.

— Meu coração sempre esteve escancarado.

— É o que você diz. — Seus lábios se abrem ligeiramente, sibilando as palavras. — Mas enquanto terroristas espalham mentiras na rede, enquanto bombas devastam nossas cidades, enquanto os baixaCores rugem de insatisfação, enquanto começamos uma guerra apesar dos cupins na nossa fundação, você diz isso.

— Qualquer caos é...

— Cale essa boca. Você sabe o que aconteceria se os outros Governadores pensassem que somos Reformistas? Se as outras casas olhassem pra minha como um bastião de igualdade e demokracia? — Ele aponta para um copo. — Nossos aliados potenciais. — Ele joga o copo para fora da mesa, deixando-o se espatifar. Aponta para um outro. — Nossas vidas. — Ele cai e se espatifa da mesma forma. — Já é ruim o bastante minha filha ter dado ouvidos ao bloco Reformista em Luna. Você não pode parecer um político. Permaneça um guerreiro. Permaneça uma pessoa simples. Está entendendo?

E se os baixaCores vierem para o nosso lado? Eu queria fazer essa pergunta, mas ele mandaria seus Obsidianos me matarem ali mesmo.

— Estou entendendo.

— Bom. — Augustus olha para as mãos, torcendo o anel. A hesitação toma conta dele. — Posso confiar em você?

— De que maneira?

Um riso debochado irrompe da sua boca.

— A maioria diria sim sem pensar.

— A maioria dos homens é mentirosa.

— Posso confiar a você um poder que seja autônomo ao meu próprio? — Ele coça o queixo preguiçosamente. — É nesse momento que muitos abandonam seus Lordes. É nesse momento que a avidez lhes enche os olhos. Os romanos aprenderam isso em diversas oportunidades. É por isso que eles não deixavam os generais atravessarem o Rubicão com seus exércitos sem a permissão do Senado. Homens com exércitos logo começam a perceber o quanto são fortes. E eles sempre sabem que a força particular deles não é eterna. Ela deve ser usada apressadamente, antes que seu exército os abandone. Mas decisões apressadas podem levar impérios à ruína. Meu filho, por exemplo, jamais deve ter direito a um poder como esse.

— Adrius tem os assuntos dele.

— Esse é um poder lento. Criado por ele com inteligência, apesar de inadequado ao meu nome. Poder lento pode triturar qualquer inimigo que esteja estagnado. Mas um poder rápido, um poder que pode viajar pra onde você for, fazer o que você deseja com a mesma eficiência de um martelo pregando um prego, esse é o poder que corta cabeças e rouba coroas. Posso confiar a você um poder como esse?

— Você deve. Sou o único homem que pode ir a Lorn.

A surpresa lampeja nos seus olhos; Augustus não está acostumado a ter suas maquinações adivinhadas. Ele enterra a surpresa rapidamente, indisposto a dar crédito onde o crédito é devido.

— Você já sabia.

— Você deseja que eu me aproxime de Lorn, peça sua ajuda, porque ele me ensinou a usar a lâmina.

— E porque ele te ama.

Eu pisco, em silêncio.

— Não tenho certeza se essa é a palavra.

— Lorn teve quatro filhos. Três morreram na frente dele. O último foi o pai de Lysander, num acidente, como você sabe. Acredito que você o faz lembrar deles, embora seja de fato mais capaz e menos moral, o que é uma vantagem pra você. Mas ele te ama tanto quanto me odeia.

— Ele odeia Octavia ainda mais, meu suserano.

— Mesmo assim não será fácil convencê-lo a se juntar a nós.

— Então não darei nenhuma escolha a ele.


27

Confeitos

Os Telemanus esperam por mim no corredor. Kavax me dá um abraço que estala minhas costas. Daxo balança a cabeça para me cumprimentar. Fico com uma sensação de tontura no meio dos dois. É a primeira vez que falo com qualquer um deles sem que haja alguma ação violenta por perto. Verdade seja dita, eu os tenho evitado pela vergonha que sinto por ter deixado acontecer aquilo com Pax.

— Meu menino só perdeu uma vez na vida, e foi pra você — diz Kavax. — Meu pequeno Pax. Se ele teve mesmo que ficar de joelhos, não há vergonha nenhuma nisso, já que foi por amizade. Queria apenas que ele pudesse ter tomado o Olimpo com você. Isso teria sido um alento e tanto.

— Eu teria gostado muito de tê-lo visto tomar a armadura do Inspetor Júpiter.

Daxo dá um risinho.

— Também fui da Casa Júpiter. Primus até perder pra Karnus au Bellona.

— Então acredito que nós dois tenhamos um inimigo em comum.

— Além daquele filho da puta ardiloso que matou meu irmãozinho? — pergunta Daxo com suavidade. — Temos muitos inimigos em comum, Andromedus.

Kavax levanta a raposa. Ela lambe seu pescoço e olha de maneira penetrante para mim antes de esfregar o focinho na espessa barba ruiva dele. Ela tem o peito branco, pernas pretas e uma escura pelagem castanho-avermelhada cobrindo-lhe o resto do corpo. Mais encorpada e mais dura do que uma raposa normal, e pesando quase trinta e cinco quilos, o animal tem de fato um tamanho mais parecido com o de um lobo.

— Raposas são belas criaturas — diz Kavax, acariciando o bicho.

Daxo balança a cabeça em concordância.

— Maliciosas. Onívoras. Resistentes à caça ilegal. Monogâmicas. Muito especiais e capazes de expandir seus territórios de caçadas, invadindo até mesmo as áreas dos lobos. — Ele olha para mim de maneira sombria. — Mas por causa da peculiaridade da natureza, as raposas têm um desempenho fraco contra os chacais. Pedimos a Augustus que banisse Adrius. Por um tempo, ele esteve banido; contudo, agora está de volta à frota.

— Um crime — digo.

Eles balançam a cabeça em concordância.

Daxo põe a mão no meu ombro.

— As meninas, refiro-me às minhas irmãs e à minha mãe, queriam que você soubesse que não o consideramos responsável pela morte de Pax. Amávamos aquele rapazinho, e sabemos que você só tem elogios a ele. Sabemos que você batizou sua nave em homenagem a ele. E não vamos esquecer isso. Uma vez amigos, sempre amigos. É assim na nossa família.

Kavax balança a cabeça para cada palavra que seu filho restante profere, concordando com tudo. Ele joga para a raposa um punhado de confeitos.

— De modo que, se você precisar de nós — sugere Daxo, acenando com a cabeça para a sala de guerra —, basta pedir e a Casa Telemanus vai se afiliar à sua causa.

— Vocês estão falando sério? — pergunto.

— Isso deixaria meu Pax contente — ribomba o velho Kavax.

Aperto a mão dele e faço um teste com minha sorte.

— Por favor, perdoem meus modos, mas preciso de vocês agora.

Grandes sobrancelhas se arqueiam enquanto os dois beemontes trocam olhares de surpresa.

— Investigue, Sophocles! Investigue! — diz Kavax com entusiasmo. A grande raposa nas suas pernas desliza com cautela para me investigar, farejando meus joelhos, espiando meus sapatos e minhas mãos. Ela serpenteia pelas minhas pernas na sua busca. Então em mim, pondo as patas dianteiras nos meus quadris e enterrando o focinho no meu bolso. Sophocles volta à superfície com dois confeitos, mastigando-os com satisfação.

— Mágica! — troveja Kavax, dando-me um tapa no ombro. — Sophocles descobriu um sinal propício de aprovação por pura mágica! Que bom presságio! Daxo, meu filho. Convoque suas irmãs e sua mãe. O Ceifeiro nos chama. A Casa Telemanus precisa atendê-lo!

— As meninas estavam visitando Netuno, papai. Elas vão demorar alguns meses.

— Bom, nesse caso, nós precisamos atendê-lo.

— De pleno acordo, papai.

— Mandarei as instruções pra vocês dentro de uma hora — digo.

— Grandes expectativas! — diz Kavax, afastando-se com sua pisada forte. — Nós as esperamos com grandes expectativas. — Ele ruge cumprimentos a Laranjas que passam por ele, aterrorizando-os com sua bocarra aberta exibindo os dentes em contente aprovação. Daxo e eu observamos.

— Ele acredita mesmo em mágica? — pergunto.

— Ele diz que gnomos roubam cera do ouvido dele à noite. Mamãe acha que ele recebeu muitas pancadas na cabeça. — Daxo se afasta, seguindo seu pai. Mas não consegue esconder seu astuto sorriso enquanto joga um confeito na boca, e vejo de onde vieram aqueles que estão no meu bolso. — Acho que ele simplesmente vive num mundo mais divertido do que o nosso. Não demore a nos chamar, Ceifeiro. Papai é ansioso.

Depois de uma reunião através de um holo com o Chacal para que ele acelere meu plano e ajuste-o de acordo com algumas das suas recomendações, mando Orion estabelecer nosso curso com destino a Europa. A viagem levará duas semanas. Roque se junta a mim na ponte, observando a tripulação esquelética de Azuis. Ele não fala. Contudo, é a primeira vez que me procura desde que saímos de Luna. Trata-se de um peso sobre minha cabeça.

— Eu sint... — começo.

— Não quero falar sobre Quinn — diz ele em voz baixa. — Sei que você queria essa guerra. Projetou-a em vez de confiar em mim pra que comprasse seu contrato e te protegesse. O que não sei é por que você me drogou.

— Eu queria te proteger. Porque eu sabia que precisaria de você depois do baile de gala, e não podia pôr em risco sua segurança.

— E minhas necessidades? — pergunta ele. — Você não tem o direito de fazer escolhas por mim porque tem medo de que isso possa interromper seus planos. Amigos não fazem esse tipo de coisa.

— Você tem razão. Foi errado da minha parte. — Baixo a cabeça devagar, expressando sinceridade.

— Foi errado enfiar uma agulha no meu pescoço?

— Muito mais do que errado. Mas saiba que a intenção era boa, mesmo que a ideia e a execução tenham sido estúpidas como foram mesmo. Se eu tiver que me ajoelhar...

— Há uma imagem. — Sei que ele está brincando, mas seu rosto não está rindo ou sorrindo quando ele se vira e vai embora.


28

Os filhos da tempestade

— Você vem ao meu encontro no auge de uma tempestade — diz meu amigo, com a barba grisalha soprando ao vento enquanto ele olha para as ondas muito além. — Você sabia que existem meninos aqui neste mundo oceânico que saem com esquifes em ventanias ainda piores do que essa? Rapazes da escória dos Cinzas, Vermelhos, inclusive Marrons. A coragem deles é de um tipo louco, insano mesmo. — Ele aponta da sacada com um dedo pesado para a agitada água preta, onde ondas atingem dez metros de altura. — Eles são chamados de filhos da tempestade.

A gravidade aqui é enlouquecedora. Tudo flutua. A 0,136 da gravidade da Terra, cada passo que dou precisa ser medido, controlado, do contrário dou um salto de cinco metros para cima e tenho de esperar para adejar de volta ao chão. Uma luta aqui seria como um balé subaquático. Uso gravBotas apenas para me mover de maneira mais confortável.

O velho observa o mundo oceânico ao redor da sua ilha. Ele é como sempre me disse para ser: uma pedra em meio a ondas; molhada, ainda que indiferente a tudo que rodopia ao seu redor. A água salgada espirra gotas da sua barba. Lustrosos olhos dourados piscam contra o vento amargo da tempestade.

— Quando você está no sal, sente como se cada ventania fosse o fim do mundo. Como se cada onda fosse a maior que você viu na vida. Esses meninos domam as ventanias em êxtase diante das suas próprias glórias. Mas, de vez em quando, surge uma verdadeira tempestade. Ela despedaça os mastros e arranca o cabelo da cabeça deles. Eles não duram muito até que o mar os engula por inteiro. Mas suas mães já choraram suas mortes muito antes, como eu chorei a sua no primeiro dia em que o vi.

Ele olha fixo para mim, a boca contraída atrás da espessa barba.

— Nunca te contei, mas não fui criado num palácio ou numa cidade como muitos dos Inigualáveis que você conhece. Meu pai pensava que havia duas coisas malignas no mundo. Tecnologia e cultura. Ele era um homem duro. Um matador, como o resto deles. Contudo, sua dureza não era encontrada no que ele podia fazer, mas no que ele não faria, nas suas restrições. Nos prazeres que ele negava a si mesmo e aos seus filhos. Ele viveu até cento e sessenta e três anos sem a ajuda de rejuvenescimento celular. De algum modo, ele passou na sua vida por oito Chuvas de Ferro. Mas, ainda assim, ele nunca valorizou a vida, porque a tirava com frequência. Não era um homem talhado pra ser feliz.

Observo o ex-Cavaleiro Raivoso, Lorn au Arcos, se curvar sobre a sacada do seu castelo. É uma fortaleza de pedra calcária montada em meio a um mar com noventa quilômetros de profundidade. Linhas modernas dão forma ao lugar. Não é em estilo medieval mas é, isso sim, uma mescla de passado e presente — vidro e aço formando ângulos duros com a ilha de pedra —, de maneira muito semelhante ao homem que eu respeito acima de todos os outros Ouros da sua geração.

Como ele, esse castelo é um lugar áspero, um lugar onde as tempestades têm início. Mas quando as tempestades desaparecem, a luz do sol vai banhar esse lugar, brilhando através das suas paredes de vidro, cintilando ao refletir nos suportes de aço. Crianças vão correr sua extensão de dez quilômetros, através dos seus jardins, ao longo dos seus muros, em direção ao porto. O vento vai fazer cócegas nos seus cabelos, e tudo o que Lorn vai ouvir da sua biblioteca é o grito das gaivotas, o bater do mar e o riso dos seus netos e das mães deles, a quem ele protege no lugar dos seus filhos mortos. O único ausente é o pequeno Lysander.

Se todos os Ouros fossem como ele, os Vermelhos continuariam labutando debaixo da Terra, mas ele faria com que eles soubessem qual é o propósito da sua vida. Isso não faz dele um homem bom, mas sim um homem verdadeiro.

Lorn é corpulento e largo e mais baixo do que eu. Ele solta o copo de uísque e permite que o vento o faça rodopiar para os lados. O copo cai e o mar o engole por inteiro.

— Dizem que você consegue ouvir os filhos da tempestade mortos bradando no vento — murmura ele. — Eu digo que é o choro das suas mães.

— Tempestades da corte têm uma maneira de atrair as pessoas de volta — digo.

Ele dá um riso zombeteiro, um riso que debocha da ideia de que eu pudesse saber qualquer coisa acerca das tempestades da corte, qualquer coisa acerca dos ventos que sopram.

Vim até ele em segredo, voando numa única nave, meu destróier Pax de cinco quilômetros de extensão. Eu disse para o meu mestre que ele não nos ajudaria. Mas ative-me à esperança de que ele iria querer me ajudar. Contudo, agora que vejo Lorn au Arcos mais uma vez na sua carne nodosa, sou lembrado da natureza do homem, e me preocupo. Ele sabe que meus capitães e tenentes estão escutando através do comunicador no meu ouvido. Eu o cumprimentei com respeito e lhe mostrei o dispositivo para que ele não imaginasse que nossa conversa fosse particular.

— Depois de mais de um século de vida, meu corpo ainda não me trai. — Alguém talvez pensasse que sua idade estivesse na casa dos sessenta, numa primeira olhada. Apenas suas cicatrizes verdadeiramente o envelhecem. Aquela no seu pescoço, como um sorriso, foi dada a ele quatro décadas atrás por um Manchado na Rebelião dos Reis Lunares, quando os Governadores das luas de Júpiter pensaram em fazer seus próprios reinos depois que Octavia destituiu seu pai como Soberano. A que toma parte do seu rosto veio de Lorde Ash, quando ambos duelaram na juventude. — Você já ouviu a expressão “A tarefa do filho é a glória do pai”?

— Eu mesmo disse isso.

Ele rosna.

— Eu vivi isso. Perdi muitos pela minha própria glória. Lancei meu barco na tempestade de propósito. Sempre com mulheres e crianças a tiracolo. — Ele deixa as ondas falarem por um momento. Elas arrebentam de encontro às rochas e em seguida recuam, gorgolejando no caminho, atraindo coisas para o mar que eles chamam Discórdia. — Não é certo viver tanto tempo, acho eu. Minha bisneta nasceu ontem à noite. Ainda estou com o cheiro do sangue nos meus dedos. — Ele os estende: semelhantes a raízes de árvores, retorcidos e calosos por terem segurado muitas armas. Eles tremem um pouco. — Estes dedos aqui a tiraram da escuridão pra luz, do calor pro frio, e eles próprios cortaram o cordão umbilical. Viveríamos num mundo bom se essa fosse a última carne que eles tivessem cortado.

Ele relaxa as mãos e as deposita sobre a pedra fria. Imagino o que Mustang diria a esse homem. Vê-los cara a cara seria como observar o fogo tentando incendiar uma pedra. Ela refugou meu plano em público, mas também essa era nossa ideia original. Planos dentro de planos dentro de planos.

— Pensar no que as mãos sentem — murmura Lorn. — Essas sentiram o sangue vital dos meus filhos ao ser bombeado pra fora do corpo pelo coração. Elas sentiram o frio do cabo de uma lâmina ao lhes roubar os sonhos da juventude. Elas levaram consigo o amor de uma menina e de uma mulher e em seguida sentiram esses batimentos cardíacos sumirem aos poucos até o mais completo silêncio. Tudo pela minha glória. Tudo porque escolhi navegar. Tudo porque não morro tão fácil quanto os outros. — Ele franze o cenho. — Mãos, eu penso, não foram feitas pra sentir tanto.

— As minhas sentiram mais do que eu teria desejado — digo. Sinto passar por elas o mesmo estalo que senti durante o enforcamento de Eo. A textura do cabelo dela. Eu me lembro do calor do sangue de Pax. O calafrio no rosto pálido de Lea na fria manhã depois de Antonia tê-la abatido. A granulosa mancha vermelha de florações de haemanthus. Os quadris nus de Mustang enquanto estávamos deitados ao lado da fogueira.

— Você ainda é jovem. Quando estiver de cabelos brancos, terá sentido ainda mais.

— Alguns homens não envelhecem. — Nenhum Mergulhador-do-Inferno envelhece.

— Não. Alguns não. — Ele cutuca o distintivo de Augustus com a figura do leão no meu uniforme escuro. — E leões não vivem tanto tempo quanto grifos. Nós podemos voar pra longe das coisas, entende? — Ele brande seu próprio anel de família e sacode os braços tolamente, arrancando um sorriso de mim. Ele o usa junto com seu anel da Casa Marte. — Você já foi um Pégaso, não foi?

— Era o símbolo... é o símbolo de Andromedus. — Minha falsa família Ouro. Mas o símbolo me faz lembrar de Eo. Ela apontou para mim a galáxia de Andrômeda antes de morrer. Isso significa tantas coisas e tão poucas coisas ao mesmo tempo.

— Há honra em continuar sendo o que você era — diz ele.

— Às vezes temos que mudar. Nem todos nascem ricos como você.

— Vamos encontrar Icarus na floresta. — Ele sempre o mencionava em Marte, mas jamais vi o bichinho de estimação favorito de Lorn. — Carolina conspirou com Vincent pra fazer um novo brinquedo pra ele. Acho que você vai gostar.

— Onde estão suas crianças? Eu adoraria vê-las de novo.

— Na ala leste até você partir.

— Sou tão perigoso assim?

Ele não responde.

Sigo meu amigo para fora da sacada no mesmo instante em que uma das nuvens de Europa cospe raios azuis no céu escuro. Seus oceanos se agitam à medida que grandes ondas lambem os muros brancos, como se o oceano conspirasse para engolir a ilha feita pelo ser humano. Apesar de tudo isso, o castelo e a tempestade inclemente ainda parecem muito pequenos quando vejo como Júpiter consome o céu da noite atrás das nuvens — uma urdida gigante gasosa olhando para nós como se fosse a cabeça de algum gigantesco deus de mármore.

Enquanto caminhamos pela villa de pedra, Lorn cumprimenta com felicidade estampada no rosto cada um dos serviçais que passam por nós. Ele vê pessoas, não Cores. A maioria está com ele há anos. Eu devia ter estudado com ele. Mas, se isso tivesse acontecido, eu teria terminado aqui, um homem melhor porém incapaz de mudar coisa alguma a tantos meses de viagem do Cerne.

Brinquedos infantis se aglomeram nos corredores. Sua família está aqui — dezenas de pessoas amadas que ele reuniu depois de abandonar a vida pública. A maioria vive espalhada nos arquipélagos ao sul nas águas mais quentes próximas ao equador. Furacões os forçaram a partir para o norte esse mês para se refugiar com o vovô Lorn. Parece que a tempestade os seguiu.

Ele empurra um grandioso portão de vidro, conduzindo-me ao centro da sua cidadela. Aqui, ele mantém para si uma floresta, uma floresta de vários hectares de extensão e a céu aberto. Os muros se estendem ao redor da floresta, protegendo-a das perversas ondas. Os estandartes de Lorn se agitam bem no alto — um rosnante grifo púrpura num branco campo de neve. A chuva cai sobre as árvores, sibilando nas suas agulhas até que ele ativa uma pulsoBolha. Então a chuva crepita nas copas e se desdobra em espessas nuvens de vapor. Ele anda à minha frente e eu fico onde estou, tirando pequenos cravos pretos não mais compridos do que as unhas da minha mão de um saco oculto na manga do meu traje. Eu os espalho pelo musgo perto da porta.

— Você veio me procurar numa embarcação de guerra roubada pra me pedir minhas naves e meus homens. Por quê? — pergunta Lorn, olhando para trás com curiosidade. Acelero minha passada e solto mais uns poucos cravos quando ele se vira de novo. Estou esperando que ele mencione Lysander.

— Porque metade de Marte ainda está sendo subjugada pelas forças leais aos Bellona e à Soberana. Pra libertar Marte deles, precisamos das suas naves e dos seus homens. Uma vez de posse deles, os Lordes da Lua e o ArquiGovernador da Borda virão em nosso auxílio contra o Cerne.

— Então você precisa que eu te ajude na sua traição?

— Por acaso é traição um cachorro morder a mão do dono quando o dono tenta matá-lo? — pergunto.

— Terrível metáfora. — Ele para, espia ao redor da floresta, procurando algo. — Ah. — Voltamos a andar.

— A questão é a seguinte: preciso da sua ajuda.

Ele cospe no chão musgoso e faz um gesto para que eu o siga na subida a uma colina. Minhas botas quebram uma tora encharcada de água.

— Por que eu deveria me importar com isso?

— Porque você me treinou.

— Também treinei Aja au Grimmus.

— Por algum motivo, acho que você gosta mais de mim do que dela.

— E por que você acha isso?

— Tenho senso de humor.

Ele ri.

— Aja também pode ser engraçada.

— Você só pode estar brincando.

— Você é apresentado a um homem, você o conhece. Você é apresentado a uma mulher, ela o conhece. — Ele ri para si mesmo a respeito de alguma lembrança. — Talvez seja mais fácil achar que ela é alguma espécie de terror na noite. Mas Aja é de carne e osso. Ela tem amigos. Ela tem uma família. E ela pensa que você é uma ameaça a essas pessoas.

— No entanto, foi ela que matou minha amiga.

— Sim. Fiquei sabendo. Você estava com o menino. Tática sagaz. — Ele estreita os olhos para a lâmina enroscada no meu braço. — Todo mundo usa a lâmina como um tolo agora?

— É a moda.

— Ela foi feita pra ficar enrolada nos quadris. Você vai cortar seu braço por acidente. — Ele suspira. — Sua geração... Tão arrogante. Mudando coisas por motivo algum. Fico imaginando, rapaz arrogante, se você achou que, vindo até aqui com sua nave roubada, eu, um homem de um século de idade, o seguiria numa batalha? Que eu poria em perigo todos os meus serviçais, todos os meus familiares, tudo o que eu amo, por você? Um homem que me rejeitou quando pedi a ele que se juntasse à minha casa?

Ignoro a amargura dele.

— Você deixou a Sociedade por uma razão, Lorn. Você consegue se lembrar qual foi?

— Pra evitar tolos bradando por aí.

— Acho que você deixou a Sociedade porque achava que ela estava doente. Porque não valia mais a pena se sacrificar por ela.

— Pare de latir pra mim, filhotinho.

— Então estou certo.

— Não. Você não está certo. — Ele gira o corpo com irritação. — Deixei a Sociedade não porque ela está doente, mas porque ela está morta. A Sociedade foi criada pra instilar a ordem. Homens foram obrigados a se sacrificar pra que a humanidade pudesse perdurar. Foram-lhes dadas Cores, vidas limitadas e ordenadas pra que pudéssemos destruir o eterno ciclo da nossa raça: da prosperidade à ganância e à guerra. Ouros deveriam conduzir todas as outras Cores, não devorá-las. Agora estamos presos de novo nesse ciclo, a mesmíssima coisa que lutamos pra evitar. E a Sociedade, então? A bela soma de todo o empreendimento humano? Ela está morta e apodrecida há centenas de anos, e aqueles que lutam por ela não passam de abutres e vermes.

— Então não foi a morte de Brutus. — Falo do filho mais jovem dele que era casado com a falecida filha de Octavia au Lune.

— Aquilo foi um acidente.

— Um acidente oportuno — digo. — Há boatos que dizem que a filha de Octavia estava organizando um golpe contra a mãe.

— Não dou ouvidos a boatos — diz ele de modo soturno.

— Se você me ajudar, posso lhe devolver seu neto.

— Lysander é criado há tanto tempo com veneno nos ouvidos que agora o veneno está no seu sangue. Ele não é da minha família.

— Você não é assim tão frio. Lorn, estive com o menino. Ele é mais parecido com você do que com ela. Não é uma má pessoa. Lute por ele.

Lorn mira em silêncio a chuva caindo de encontro ao pulsoEscudo.

— Você combate um tirano pra substituí-lo por outro tirano — diz ele, o ar fatigado. — Esse é o mesmo jogo que vi uma centena de vezes. Você ao menos sabe a quem serve?

— Tenho uma sensação de que você está prestes a me contar.

— Não vou deixar de ser seu professor apenas porque você parou de ouvir. Sente-se. Não quero que Icarus se aborreça com essa droga de história. — Ele se senta numa pedra grande e me instrui a tomar o lugar oposto a ele. Eu o faço. Ele se curva para a frente e brinca com o grosso anel da Casa Marte no seu dedo.

— A Casa Augustus sempre foi forte, tenho certeza de que você sabe disso. Mesmo quando Marte era pouco mais do que uma mina de hélio-3. Eles subornavam ou matavam pra adquirir a maior parte dos contratos governamentais. E à medida que os bolsos deles iam inchando, sua influência também aumentava. Eles se tornaram, ao lado de diversas outras famílias, incluindo os Bellona e a minha própria, os senhores de Marte. Entretanto, havia uma família cujo poder superava o de todas as outras: a família Cylus. Eles controlavam o ArquiGoverno e eram favorecidos pelo Senado e pelo Soberano que estava no poder. Quando seu mestre, à época simplesmente chamado de Nero, tinha sete anos, o pai dele se encontrava em disputa com Julius au Bellona, o avô de Cassius. O pai de Nero tentou mandar os Marrons que serviam os Bellona envenenarem a ceia da família. O plano fracassou. Uma guerra entre as famílias teve início. O pai de Nero convocou seus correligionários e liderou-os contra os Bellona e o ArquiGovernador Cylus, que havia declarado apoio a Julius au Bellona. O Soberano no trono à época não interveio e, em vez disso, permitiu que as duas famílias entrassem em guerra. Por fim, o pai de Nero se encontrou sitiado em Agea quando sua frota foi destruída e capturada em torno de Phobos. Cylus chacinou todos na Casa Augustus, poupando apenas o jovem Nero do castigo. Ele teve permissão de continuar vivo pra que uma antiga família que havia tido participação na Conquista não desaparecesse da história. Diz-se que o ArquiGovernador Cylus inclusive deu ao jovem Nero uvas pra que ele saciasse sua sede porque não havia água disponível, já que a cidade estava em chamas ao redor deles. Depois disso, ele o criou na sua própria corte. Vinte anos mais tarde, Nero, que sempre foi considerado um homem honrado e honesto, muito diferente do seu maligno pai, pediu a mão de Iona au Bellona em casamento. Ela era a filha mais jovem e a favorita do velho Julius.

Ele levanta os olhos para as gotas de água que caem das agulhas das sempre-vivas suspensas.

— Eu a conhecia bem. Meus filhos brincavam com ela. Eu também conhecia Nero. Gostava dele, mesmo que fosse um pouco frio quando criança. Com esperanças de curar as feridas ainda existentes de gerações passadas e de tornar Marte forte e unificada, o ArquiGovernador Cylus concordou. Bellona se casou com Augustus. Foi uma bela cerimônia de casamento. Eu estive na festa, representando o Soberano como o Cavaleiro Raivoso. E me diverti bastante. Jamais havia visto Iona tão feliz quanto estava nos braços daquele rígido jovem. Mas naquela noite, quando a família Bellona regressou à propriedade, um pacote chegou. Dentro dele, o velho Julius encontrou a cabeça da sua filha. Uvas estavam enfiadas na boca de Iona, junto com duas alianças. Ele convocou suas filhas e filhos, incluindo o pai de Cassius, e voou pra Cidadela com o intuito de pedir justiça ao ArquiGovernador Cylus, como havia feito vinte anos antes quando os Augustus haviam se levantado contra eles pela primeira vez. Mas, em vez do seu velho amigo, ele encontrou o jovem Nero no trono do ArquiGovernador, apoiado por Pretorianos e por dois Cavaleiros Olímpicos. Eu estava entre eles, tendo sido avisado pelo meu Soberano que Cylus era uma ameaça à Sociedade. Fiz como me ordenaram fazer. A Casa Cylus foi devastada e apagada de todos os registros. Mais tarde, descobri que Nero firmara um acordo com a filha do Soberano à época. Você a conhece como Octavia au Lune. Mais jovem naquele tempo, ela convenceu seu pai a dar a Nero o trono de Marte e sua vingança; em contrapartida, ela recebeu o apoio de Nero quando liderou a facção que destronou e matou seu pai cinco anos mais tarde. Esse é o homem por quem você iniciou uma guerra.

— Eu não sabia disso — digo em tom baixo.

— A história é escrita pelos vitoriosos.

Lorn olha para mim e as rugas no seu rosto parecem se aprofundar.

— Não quero ir pra guerra, Darrow. Na minha época, vi uma lua queimar porque um homem se recusou a curvar-se. Liderei milhões de guerreiros lançados de naves de guerra pra invadir um planeta. Você não tem nem como começar a entender o horror de tudo isso. Você pensa apenas em como tudo vai ser bonito. Mas eles são homens. Eles são mulheres. Eles possuem famílias. E eles morrem aos milhares. E você não conseguirá proteger nem os melhores dos seus amigos. Ah! — Ele aponta para o alto da colina. — Lá está Icarus.

A chuva goteja dos pinheiros enquanto avançamos em meio aos galhos mais baixos das árvores para encontrarmos Icarus, o grifo de estimação de Lorn, dormindo num grande leito de musgo num alto promontório dentro de uma pequena floresta. As patas de Icarus estão enroscadas no interior do seu corpo. As asas estão curvadas ao seu redor enquanto ele dorme — iridescente e cintilante com gotículas de água. Sua grande cabeça aquilina é maior do que a minha, um dos seus olhos tem quase a metade do tamanho do meu crânio. Os Entalhadores o fizeram muito bem.

— Ele parece pacífico quando está dormindo — diz Lorn.

— Ele é maior do que qualquer outro que eu já tenha visto — digo, incapaz de esconder o espanto na voz.

— Então você não esteve no polo de Marte.

— Não. Onde você o comprou?

— Entalhadores marcianos o fizeram pra minha família. Dane-se aquele tolo Zanzibar na moda hoje em dia. Icarus tem o mesmo gene que as feras das altas altitudes do polo norte de Marte. Os que eles usam pra aterrorizar Obsidianos ao fazê-los acreditar que a mágica existe mesmo. — Ele acaricia o gigante adormecido. — Você ainda está apaixonado pela filha do ArquiGovernador? — Ele olha de relance para mim, todo esperançoso. — É por isso que você está engajado nessa história? Ouvi falar dela com o Bellona.

— Não tem nada a ver com o que aconteceu entre ela e Cassius.

— Não? — Ele suspira. — Pelo menos isso eu teria entendido. Você foi desleixado naquilo, você sabe disso. Os Desatinados Irenicus teriam acabado com ele em três movimentos.

— Não fui desleixado. Estava fazendo uma exibição.

— Desleixado. Exibicionistas são os Violetas. Por acaso eu te treinei pra ser exibicionista?

Passo por ele para acariciar Icarus.

— Então você se preocupa comigo.

Ele não me responde, e é então que sei que o momento que eu mais abominava está quase sobre nós.

— Numa outra vida, você teria sido um dos meus filhos, Darrow. Eu o teria encontrado mais cedo, antes do que quer que tenha acontecido com você o tivesse enchido de raiva. Eu não o criaria pra ser um grande homem. Não há paz pra grandes homens. Eu o orientaria a ser um homem decente. Teria dado a você a força silenciosa pra crescer com a mulher que você amasse. Agora tudo o que posso dar a você é uma chance. Icarus — ribomba ele.

O grifo se agita ao lado dele, seu olho âmbar exibindo meu reflexo. O chão estremece quando a criatura se mexe, arrancando a raiz de uma árvore com a mesma facilidade com que eu puxaria um fio de cabelo.

Eu me afasto da fera, sem saber ao certo quais são as intenções de Lorn.

— O que está acontecendo? — pergunto a Lorn.

— Olhe sua nave. — Ele aponta para cima na direção da noite. Através de uma fenda nas nuvens, podemos ver minha comprida nave cintilando em órbita. Ela não está mais sozinha. Dez navesChamas se aproximam dela agora, deslizando ao redor da cobertura do equador de Europa para capturar Pax.

— Um pelotão de fuzilamento Pretoriano está à sua espera dentro da minha casa, Darrow. Aja au Grimmus lidera os soldados. Eles vão levá-lo, algemá-lo e colocá-lo diante da Soberana.

— Você me traiu? — pergunto.

— Não. Eles chegaram dias atrás. Fizeram ameaças. O que eu podia fazer? Kellan au Bellona lidera a frota. Ela destruirá ou capturará sua nave. Não tenho como impedir isso. Mas não quero que você morra. Portanto, Icarus o levará pra uma ilha onde deixei escondida uma nave pra você. Use-a pra escapar.

— Eles vão fazer algum mal à sua família se eu escapar?

— Eles podem tentar fazer — grunhe ele. — Essa é a consequência da sua decisão e da minha.

Ele se posiciona de costas para o mar.

— Quero desaparecer em paz. Portanto, Darrow, parta agora e não volte jamais.

Ele faz um gesto para Icarus e vejo uma fina sela sobre a fera — o novo brinquedo sobre o qual ele falou. Mas não preciso fugir. Balanço a cabeça em negativa para o que está prestes a acontecer.

— Sinto muito, meu amigo. Mas não posso permitir que isso aconteça.

— Permitir? — pergunta ele, virando-se.

— Você vai se juntar a nós nessa guerra. — Minha lâmina se desenrosca. — Gostando ou não dessa ideia. — Falo no meu comunicador, dizendo aos Uivadores que se preparem para ascender e aos Titãs que apresentem suas naves.

O sangue some do rosto de Lorn e ele olha para o brasão com a fera na minha túnica.

— Um leão, afinal de contas.


29

Ira de um velho

Preparei a armadilha antes mesmo de sair da frota. Todos os segredos acabam sendo sussurrados nos ouvidos de Pliny e ele não desejaria nada além da minha oportuna derrota, sobretudo depois que o provoquei na reunião do ArquiGovernador. Portanto, Pliny fez seu trabalho. Ele tramou, conspirou e encontrou para si um aliado contra o grande e mau Darrow au Andromedus na Soberana em pessoa, um fato que ficarei contente em compartilhar com Augustus assim que for possível.

As naves da Soberana se esconderam entre as ruínas de uma estação espacial abandonada que no passado era usada como base de operações de terratransformação. Kellan au Bellona foi esperto, porém previsível. Minha força secundária maior — um destacamento das naves de Telemanus —, que escondi atrás de uma outra massa menor de lua, vai emboscar a força Bellona em sessenta segundos, alçando-se ao redor do outro lado da lua usando sua própria gravidade para ganhar velocidade. Com Roque no comando, terei dez naves Bellona a acrescentar à minha armada pessoal ao fim do dia.

— Você sabia — acusa-me Lorn em voz baixa, sua grossa mão agarrando meu uniforme na altura do pescoço e me sacudindo. — Você sabia. — E ele sabe o que isso significa para ele. Não é apenas minha vitória. É a derrota dele. De uma forma ou de outra, ele precisa se aliar. E tornei fácil para ele escolher um lado.

— “Se você é uma raposa, faça o papel de lebre”, não foi isso o que você me ensinou? Mas vai parecer que você sabia que montei uma armadilha pra ela. Que você passou informações da armadilha da Soberana pra mim. — Toco o ombro de Lorn quando ele me solta. — Sinto muito, meu amigo. Sinto muito de verdade. Mas você faz parte dessa guerra.

O queixo dele se mexe, mas ele não diz nada.

— A Soberana vai mandar os Pretorianos dela novamente pra Europa assim que eu for embora — digo. — Só que dessa vez eles vão vir atrás de você e dos seus. As naves pretas e púrpura deles vão arrancar vocês de órbita com sucessivas explosões até que suas ilhas e suas cidades nos arquipélagos e em terra firme e as montanhas altas no sul tiverem virado vidro e forem engolidas pelos mares. As águas vão se derramar sobre suas torres despedaçadas e, da sua casa, não restará nada além de criptas no fundo do mar. A menos que sejamos os vitoriosos.

Os olhos dele procuram em mim algo que possa lhe dar tempo. Mas, em vez disso, ele encontra apenas o que o fez me tomar como seu pupilo desde o início: ele próprio. A maioria dos homens daria qualquer coisa para ver isso, mas, aqui e agora, ele deseja ver uma outra coisa.

— Pus minha família em risco pra te ajudar a escapar. Eu o acolhi, eu o ensinei. E você me trai como os outros. Como Aja.

— Você está atrás de pena? Você me deixou vir até aqui, Lorn. Você teria mandado meus amigos lá em cima serem torturados e mortos enquanto me fornecia uma trilha de fuga. Mas meus homens não serão prisioneiros.

Aponto para cima na direção dos talhos ardentes no céu quando minha força secundária começa a bombardear Europa.

— Você pode me odiar, mas lute ao meu lado — digo a Arcos. — Só assim sua família sobreviverá. — Estendo a mão para o meu ex-professor. Ele saca sua lâmina.

— Eu devia te matar.

— Posso descer aí e dar um tiro no velhote? — pergunta-me Sevro através do comunicador.

— Espere — digo a ele.

— Você se esquece — diz Lorn, enquanto tira seu próprio datapad do bolso — que eu poderia mandar minha frota destruir a sua, rapaz.

— Não antes de a minha tomar a da Soberana.

— Mas nesse caso ela saberia qual é a posição da Casa Arcos. Ela saberia que você me traiu. Que minha casa não faz parte disso.

— Então faça isso — digo a Lorn. — Lance suas naves se você acha que minha causa é maligna. Nocauteie-me se você me considera um monstro. — Dou um passo à frente, aproximando-me dele. — Mas você sabe o coração que bate aí dentro. Escolha-me. Ou escolha a escuridão. — Aceno para baixo na colina do jardim arborizado, na direção do local onde entramos no palácio. Doze Pretorianos Obsidianos avançam pela mesma porta de vidro que usamos. Homens e mulheres imensos em armaduras de tom preto e púrpura, capacetes cranianos. Apenas um Manchado — este mais magro do que os demais, como uma áspide de inverno de pé sobre sua cauda. Sua armadura é branca e salpicada de cores semelhantes a sangue.

Eles estão a menos de cinquenta metros de distância. Com eles, mais baixa do que o resto porém mais gloriosa, encontra-se a Cavaleira Multiforme no seu equipamento dourado. Sua lâmina tremeluz com as cores de uma nebulosa, e sua armadura se agita como as ondas que batem nos muros brancos da ilha de Lorn. Aja espia o céu noturno, onde enxerga minha emboscada se desenrolando. Ela deixa o capacete retrátil se recolher dentro da armadura.

— E então os traidores eram dois — fala ela. — A Casa Arcos também abraçou a traição. Lorn. Você está com os leões?

— A Casa Arcos está à parte — retruca Lorn.

— À parte? — A matadora de Quinn franze as sobrancelhas e inclina a cabeça para que eu possa ver as cicatrizes oriundas de duelos na lateral direita do seu pescoço. Seus olhos de gato varrem a floresta em busca de sinais de uma armadilha. — Tal coisa não existe.

— Fui tão enganado quanto você, Aja! — fala Lorn. — Darrow sabia que vocês estavam aqui. Não sei como. Mas não sou inimigo de vocês. Quero apenas ser deixado em paz.

— Isso jamais foi uma opção! — fala Aja. — Você sabe disso melhor do que qualquer outra pessoa. Você está conosco ou está contra nós, Lorn.

— Aja. Não. Eu não faço parte disso. Não faço nem um pouco!

— Os fortes sempre fazem parte de alguma coisa — murmuro.

— Não serei obrigado a fazer nada. — Ele me interrompe com um olhar iracundo. — Não lutarei com nenhum de vocês. Agora sou um homem de paz.

— Então por que você sacou a lâmina? — diz Aja, com um sorriso estampado no rosto. — Faça o que você sabe fazer. Desça e fale, professor. Não deveríamos estar gritando! Não é isso o que você dizia quando eu costumava elevar minha voz com raiva? — Ela olha o grifo que agora rosna ao nosso lado. Ele é maior do que quatro cavalos. Imagino o que aquelas garras não fariam com as armaduras deles.

— As naves dela estão perdidas — sussurro para Lorn. — O que Octavia a mandaria fazer?

— Nos matar. Por puro ódio.

Baixo a voz.

— Então você não tem escolha.

— É o que está parecendo.

Aja me observa ajoelhar e juntar um pouco de terra na mão. Ela me estudou. Ela sabe o que isso deve significar. E deve estar imaginando que plano eu tenho. Por que vim sozinho. Se realmente armei uma emboscada no céu, não armaria uma também em terra? Estou prestes a gritar algo a ela quando uma outra figura passa pelo portão para se juntar a Aja. Ele é esbelto. Pele mais escura do que a minha. Um sorriso afetado no rosto entediado e patrício. Tactus. Todo vestido numa armadura Pretoriana. Ele desliza o corpo para a frente, uma sombra de preto e púrpura, olhando o céu apreensivamente antes de exibir para mim um radiante sorriso com o rosto torto.

— E por falar em traidores — grito. — Oi, Tactus. Armadura bonitinha.

— Ceifeiro, meu bom-homem! — berra Tactus, e levanta os dedos em figa. — Onde está Sevro? — Ele se aproxima de Aja para lhe dizer algo. Ela estica o corpo e olha ao redor mais uma vez, na direção das árvores. Seus homens se condensam em formação defensiva. Tactus os alerta para os meus truques. Eles sabem que há algo esquisito. Seus escudos de égide são ativados, cintilando sobre os braços.

Lorn fecha os olhos e levanta a mão esquerda, sentindo o açoite proporcionado pelo vento da tempestade.

— Deixe Aja comigo. Você terá uma melhor sorte contra o Manchado.

— Não. Eles são todos meus. Sevro, apareça.

Os Uivadores emergem do mar além do castelo. A água pinga dos seus corpos enquanto eles voam em silêncio por sobre os muros de cem metros de altura, armaduras resplandecentes como cascas pretas de besouros. Um leão dourado foi pintado em cada um dos peitorais. O ouro pisca como lampejos de raios. Eles aterrissam em silêncio ao nosso redor.

— Meus filhos da tempestade — digo para Lorn. Vinte novos recrutas vieram das famílias dos Uivadores e das fileiras dos Telemanus. Sevro realizou testes. Ouvi falar que a coisa foi uma tremenda diversão. Cobras, álcool e cogumelos fizeram parte. Isso é tudo o que eles me deixaram saber.

— Duende! Por que você está sempre se escondendo? — fala Tactus. Sua voz é uma galhofa só, mas ele olha de novo para o céu com uma aparência ansiosa. — Pelo menos é melhor do que a barriga de um cavalo dessa vez.

Sevro saca sua faca de esfolar, a que ele costumava usar para escalpelar anos atrás na companhia de Harpia. Trata-se de um objeto curvo. Ele bate com ela na virilha e aponta para Tactus. Seus olhos piscam para Aja.

— Você matou uma Uivadora, Aja — diz ele. — Passo em falso.

Como eu esperava, a aparição dos Uivadores reanima Aja e Tactus. Isso faz sentido para eles: eu tinha soldados escondidos. Agora não tenho mais. Uma batalha até a morte. Honra. Orgulho. Uma força contra a outra. Os Pretores Obsidianos começam a entoar sua terrível canção gutural. Tudo o que aqueles homens querem é o glorioso fim. Juntar-se a seus parentes nos ridentes corredores do Valhalla com suas lâminas empunhadas. Eles avançam sob o comando de Aja. Os homens e mulheres mais mortíferos do sistema solar, um Manchado entre eles.

E eu tiro uma página do livro de Evey.

Garantindo que Aja está visível, detono as minas terrestres em forma de cravos que soltei no chão quando Lorn e eu estávamos passeando pela floresta. Apenas Tactus é rápido o bastante. Ele agarra Aja pelos ombros e a puxa para trás com força, com tanta força na baixaGravidade que ambos tombam porta adentro no exato instante em que a primeira explosão irrompe do ar salgado.

As explosões são enfileiradas. Primeiro vem uma concussão que incapacita pulsoEscudos e joga os Pretorianos pelos ares. Em seguida vem um gravFosso, que os puxa de volta na direção da fonte da explosão como um aspirador de pó recolhendo moscas; e então vem a terceira — cinética pura — para destruir armaduras e carne e osso, explodindo os guerreiros, jogando-os pelos ares, espalhando seus pedaços na baixa gravidade como o sopro espalha as sementes de um dente-de-leão. Membros flutuam delicadamente em direção ao solo. Sangue goteja e espirra no chão. A explosão quebra o telhado de bolha acima e mais uma vez a chuva cai no jardim para apagar as chamas e afinar o sangue que vaza para o interior das duas dúzias de crateras formadas pelas detonações. Apenas três Pretorianos sobrevivem. Eles estão em estado deplorável.

— Não deixem que ela escape. — A voz de Roque queima meus ouvidos. Ele observa a holoinformação acerca das naves acima.

Meus Uivadores ainda não se mexeram.

Lorn está furioso comigo, dizendo algo a respeito de honra.

— O que é? — digo com sarcasmo. — Está achando que eu luto com hombridade?

— Darrow... — sibila Sevro enquanto eu espero. — Darrow...

— Espere.

— Ela está escapando! — A voz de Roque me deixa assustado. Ela está respingando com um ódio que eu não sabia que ele possuía. — Darrow!

Rosno para ele prestar atenção na sua parte da batalha.

— Darrow... — implora Sevro. — Já está mais do que na hora.

Lorn observa, talvez começando a entender.

Estalo os dedos.

— Caçar.

Os Uivadores atacam como lobos à solta para finalizar o que as explosões começaram. Eles despacham os Pretorianos que sobraram. Sevro grita o nome de Tactus em meio aos uivos enquanto eles invadem o castelo procurando por ele e por Aja.

— Darrow, qual é sua brincadeira agora? — pergunta-me Roque através do comunicador. Deixo o holo com o rosto dele aparecer no canto superior do display do meu capacete. Os músculos da mandíbula dele tremem. — Se a assassina de Quinn escapar...

— Intercepte aquilo — digo a Roque assim que vejo os relatórios indicando que uma das nossas navesChamas está sofrendo um estrago de grandes proporções. Ele está distraído. — Há homens morrendo aí em cima. Concentre-se no seu próprio trabalho. — Corto a transmissão.

A imagem de Harpia aparece no meu display.

— Cavalo-marinho está lá embaixo.

— Bom. E Tactus?

— Nenhum sinal.

— Copiei. — Encerro a conexão.

— Aja sumiu no mar. Mas nenhum sinal de Tactus — diz Sevro vários minutos mais tarde quando os Uivadores vasculham o interior do castelo, indo de sala em sala. — Ele está escondido. A menos que tenha se teletransportado. — Ele cospe para essa pequena porção de ficção científica. — Pergunte ao velhote onde ele está.

Uma sombria preocupação rasteja para dentro do meu cérebro. Eu me viro para Lorn.

— O que Lune os mandaria fazer se eles não pudessem nos matar? Se ela considerasse alguém descartável, o que ela os mandaria fazer?

Ele fica lá parado por um momento na chuva. Então seu rosto fica pálido.

— As crianças... — Arcos me empurra para o lado e sai correndo em meio à carnificina proporcionada pelas bombas em direção à porta de vidro estilhaçada. — Eles vão matar meus netos! — grita ele para mim.

— Onde estão as crianças? — pergunto a Sevro.

— Que crianças? A gente não encontrou nenhuma.

Xingando, vou no encalço de Arcos.

— Eu as escondi — diz ele para mim por sobre o ombro enquanto dispara pelo corredor do castelo. Ele é veloz para um homem idoso, mas a gravidade nos torna mais lentos até começarmos a usar nossas mãos nas paredes e no teto, utilizando gravBotas para percorrer os longos corredores. Contornamos esquina atrás de esquina. E quando ele toca a cabeça de um grifo de pedra e uma parede de aço despenca para revelar uma passagem secreta, sinto cheiro de sangue. Dois cadáveres se encontram do outro lado da passagem. Um Cinza, um Obsidiano. Passo por Arcos e voo à frente, impulsionando-me por uma série de escadas via corrimões no teto até me encontrar diante de duas portas. Abro uma delas. Apenas um depósito. Abro a outra e deixo minha lâmina deslizar para a mão.

— Tactus — digo lentamente.

Ele está de costas para mim. Três corpos de Obsidianos se encontram ao redor dele, o sangue formando uma poça ao lado dos seus sapatos. A lâmina de Tactus está enroscada na sua mão, endurecendo enquanto ele fica lá parado com a cabeça baixa num recinto que abriga crianças e mulheres. O sangue escorre pela lâmina mercurial.

Quando cheguei, Arcos escondeu as crianças de mim aqui — algumas Ouros, algumas Pratas, algumas Rosas e Marrons. Tactus poderia matar metade delas com um preguiçoso movimento da sua lâmina antes que pudéssemos alcançá-las.

— Tactus, lembre-se dos seus irmãos — digo a ele, olhando para as crianças.

— Meus irmãos são uns merdas. — Ele ri asperamente, a voz soando estranha. — Disseram que eu devia sair da sua sombra. Mamãe me chama de Poderoso Serviçal. Você sabia disso?

As crianças soluçam no canto. Uma delas enterra o rosto no colo da mãe. As mulheres não estão armadas. Elas não são guerreiras como Victra e Mustang. Uma babá Marrom cobre os olhos de uma criança Ouro. Ouço Arcos no túnel atrás de mim.

— As ordens de Lune são um equívoco — digo a Tactus.

— Ela me perguntou se eu conseguiria ocupar seu lugar, Ceifeiro — diz Tactus em voz baixa. — Disse que achava que eu não conseguiria. Disse que eu estava há tanto tempo na sua sombra que ela não sabia se eu algum dia seria algo mais do que seu eco. Eu disse a ela que conseguiria fazer qualquer coisa que você fizesse.

— Tactus, ela é maligna.

— É mesmo? — Ele cospe sangue no chão, ainda sem me encarar. — Eles dizem a mesma coisa de você. Eles imaginam quem você pensa que é pra fazer o que você faz. Pra desafiar os homens e mulheres que você desafia. Eles imaginam que direito você tem de fazer isso.

— Todos nós temos o direito de desafiar. Essa é a questão.

— A questão. Por acaso havia uma questão? — pergunta ele. — Nunca me disseram. Você não me levava a sério. Nunca me contava nada. — Da mesma forma que estou fazendo com Roque. — Sempre sussurrando com outras pessoas. Me dispensando como se eu fosse um bobalhão. Você é exatamente como ela...

— Como sua mãe?

Ele não diz nada. Arcos se posiciona ao meu lado. Estico a mão para detê-lo.

— Você os mataria se Augustus te dissesse pra fazer isso? — pergunta-me Tactus, virando-se.

— Não — digo. — Eu preferiria morrer.

— Eu achava que não. Ela estava certa. Sou o Poderoso Serviçal.

Abro as mãos para ele.

— Não sei o que fazer agora, Tactus.

— Isso sim é algo inédito. — Ele ri com amargor, a voz ligeiramente arrastada.

— Nem um pouco. Eu não sabia o que fazer quando te chicoteei — digo. — No Instituto. Não queria deixar de tê-lo no meu exército por causa dos seus talentos. Mas eu não podia deixar de te castigar.

— Talentos. Talentos. Talentos. Então essa é a diferença entre nós. — A voz de Tactus fica ainda mais grossa. — Porque se fosse meu exército eu teria acabado com esse seu rabo arrogante. — Ele se vira mais e eu vejo os indícios da ruína que a bomba fez no rosto dele.

— Você sabe o que acontece se você matar algum desses aí?

Ele balança a cabeça para mim afirmativamente e em seguida para o Cavaleiro Raivoso, como se estivesse dizendo que um ou outro acabaria com ele. — Não estou arrependido por ter levado Lysander, sabia?

— Acho que você nunca se arrependeu por muita coisa.

— Não estou arrependido. — Ele dá uma risada e mergulha um dedo do pé no sangue empoçado ao redor dele. — Mas acho que não deveria ter feito isso. Eu estava te testando no Instituto. Mas... eu queria ver o que você faria. Se valia a pena te seguir.

— E valeu?

— Você sabe a resposta.

— E ainda vale?

Ele balança a cabeça em concordância.

— Sempre — diz ele, mas de uma maneira tão patética que a sensação que tenho é de que meu coração se alojou na garganta. Ele é um traidor, um mentiroso, um enganador. No entanto, vejo diante de mim um amigo. Quero consertá-lo e deixá-lo inteiro. O que estou fazendo? Preciso abatê-lo. Mas já fiz isso antes com Titus. Aquele ciclo nos erode. Morte provoca morte que provoca morte, e cada vez mais.

— E se eu deixar que você continue vivo? — pergunto de repente, atraindo um confuso e frenético olhar de Tactus. É claro que ele não entende o perdão. — E se eu te deixar voltar?

— O quê?

— Eu se eu te perdoasse?

— Você está mentindo. — Ele se vira mais ainda e eu vejo a extensão total do que a bomba fez com ele. Seu nariz está torto, quebrado. O resto parece uma cereja sem casca. Meu amigo...

— Não estou mentindo. — Não botei fé em Tactus uma vez, e o perdi. Agora botarei. Darei o mesmo salto que estou pedindo que ele dê. Dou um passo à frente. — Sei que há bondade em você. Vi seu rosto quando aquelas crianças foram mortas no baile de gala. Você não é um monstro. Volte pra mim. Você seria de novo um dos meus tenentes, Tactus. Eu lhe daria uma legião pra liderar quando tomássemos Marte. Você carregará um dos meus estandartes. Mas você não pode usar essa armadura horrorosa.

— Ela é desconfortável — diz ele, ofegante, um ligeiro sorriso no rosto. — Mas Sevro, Roque, Victra...

— Eles sentem sua falta — minto. — Solte essa lâmina e volte pro meu exército. Prometo que você estará em segurança. — A lâmina respinga na sua mão. Uma das crianças consegue exibir um sorriso para os seus irmãos mais novos, um sorriso de esperança. — Deixe essas crianças em paz e tudo será perdoado.

Estou falando sério. Do fundo do meu coração, estou falando sério.

— Todos nós cometemos erros — diz ele.

— Todos nós cometemos erros. Volte e pronto. Não vou te fazer mal. — Solto minha lâmina. — Nem Arcos. — Olho fixamente para Arcos até que ele balance sua desgastada cabeça em sinal de cumplicidade.

— Quero ir pra casa — murmura Tactus baixinho, com dor na voz. — Quero ir pra casa.

— Então volte pra casa.

A lâmina de Tactus bate no chão e ele cai de joelhos à minha frente. Ele está arfando de dor. O alívio inunda o recinto. As crianças começam a chorar de novo em função da tortuosa mudança de morte a vida. As cuidadoras abraçam seus pupilos, lágrimas se formam nos seus rostos. Vou até Tactus e faço um gesto para que ele se ponha de pé e segure meu braço. Ele me envolve num abraço frenético e soluça para mim. Seu corpo está trêmulo, feições ensanguentadas pintam minha armadura.

— Sinto muito — diz ele uma dezena de vezes. Ele está chorando copiosamente no meu ombro, apertando com força. Seu rosto está arruinado. E eu o abraço. A exaustão preenche meu corpo. A tristeza dele é como um peso que quase me traz lágrimas aos olhos. Contudo, eu me sinto animado pelas estranhas sensações de tê-lo de volta, de pé na minha frente, agarrando-me. É uma coisa humilhante saber que alguém não pode viver sem você, saber que, embora a pessoa o tenha traído, ela não deseja nada além de absolvição. E à medida que ele me aperta as costas, envolvo sua armadura com meus braços e tento eu mesmo não chorar. Até os cruéis sentem dor. E até os cruéis podem mudar. Espero que isso o faça mudar. Ele poderia fazer tantas coisas, se ao menos se mostrasse disposto a aprender.

Em tantas maneiras, ele é a corporificação da sua raça. Portanto, se Tactus pode mudar, os Ouros podem mudar. Eles precisam ser quebrados, mas depois disso, precisam ter uma chance. Acho que é isso o que Eo queria que ocorresse no final.

Quando por fim seus soluços acabam e nos separamos, ele se posiciona ao meu lado, leal como um cachorrinho, olhando de súbito para mim em busca de sinais de afeição. Suas mãos tremem por causa da dor nos ferimentos, mas ele observa em silêncio com Arcos e comigo as crianças, altas e baixas, saírem do bunker escondido com suas cuidadoras. Pedrinha desce para nos dizer estouvadamente que Roque está concluindo a ação bélica no espaço. Ao ver os ferimentos de Tactus, ela empalidece. Digo-lhe que vá atrás de um Amarelo.

Logo Lorn, Tactus e eu estamos sozinhos no porão.

Lorn olha para nós.

— Agora que as crianças saíram daqui, as consequências. — Suas mãos são mais rápidas do que as asas de um rouxinol. Uma íonAdaga aparece, investe quatro vezes na axila de Tactus, onde a armadura é menos resistente. Corro para deter Lorn, mas já está feito. Ele gira a arma como se estivesse torcendo uma toalha, cortando a artéria, um velho matando um jovem. O rosto arruinado de Tactus se contorce de dor; e ele arqueja, como se soubesse que a justiça por fim o encontraria.

Lorn vai embora. E eu seguro meu amigo moribundo, seus olhos desaparecendo para algum lugar distante onde talvez ele encontre aquela paz que Roque sempre desejou para ele.


30

Tempestade se formando

— Quanto tempo até alcançarmos o ponto de encontro? — pergunto a Orion no deque de comando. Exceto por quatro atendentes, estamos sozinhos em frente aos portos de observação do Pax, vendo minhas naves cruzarem o espaço. As mais novas adições à nossa armada de novatos estão pintadas de branco e carregam o grifo púrpura de cara zangada de Lorn. Com eles voam as naves de guerra pretas, azuis e pratas capturadas de Kellan au Bellona acima de Europa. Laranjas e Vermelhos rastejam sobre o espaço exterior dos monstros de metal, remendando os buracos feitos por navesVentosas e preparando-as para o sítio de Marte.

— Três dias até a Estação Hildas. As outras naves terão nos batido lá, dominus.

Kavax e Daxo se aproximam por trás. Eu me viro para eles e faço um gesto na direção das janelas consertadas, indicando as dez naves de Kellan au Bellona.

— Obrigado pelos presentes — digo.

— Seu plano, seus despojos — declara Kavax.

— E nós com nossa porcentagem, é claro — acrescenta Daxo, sereno como sempre, erguendo as rodopiantes sobrancelhas douradas. — Queremos 50% por ter feito a descoberta. — Olho para ele de relance, divertindo-me com a situação. — Bom, 30% porque Pax gostava de você.

— Ou 10%! — troveja Kavax.

Empino a cabeça.

— Você é um mau negociante, Pretor.

Ele dá de ombros amigavelmente e aponta entusiasmado para alguns confeitos no chão. Kavax solta Sophocles, estimulando-o a tomar posse de todos eles.

— Vinte. — Daxo estica as mãos, os movimentos sempre parecendo pertencer a um homem mais magro e mais afeito à leitura. — Assim está justo, não? Perdemos cento e sessenta Cinzas de casa e treze Obsidianos.

— Então 30% pra compensá-los. Pela amizade.

— Três naves! Que pechincha! — proclama Kavax. — Que pechincha. Às vezes um homem precisa de uma boa pechincha. — Ele me dá um tapinha nas costas, fazendo as juntas estalarem de novo. — Se ao menos tivéssemos pego Aja. Isso sim seria um despojo a ser repartido!

— Ela fugiu pra dentro do mar, infelizmente. — Faço um gesto para Ragnar, que está parado na beirada da ponte. — Ouvi falar que ele trabalhou bem. — Pálido e alto, ele continua olhando para mim por trás da barba e das tatuagens rúnicas, parecendo tão desprovido de emoções quanto Kavax e Daxo são cheios dela.

— O líder do pelotão de abordagem dele foi morto. Bem como os tenentes. Várias cabeças esmagadas. Eles deram de cara com alguns amigos de Kellan — diz Kavax com amargura enquanto remexe os bolsos para satisfazer a impaciente raposa que encosta as patas na sua perna em busca de mais confeitos. — Não tenho mais, meu principezinho. — Ele sorri para mim com esperança. — Você tem um pouco de confeito?

— Não. Sinto muito.

— O Ragnar ali assumiu o comando. Foi muito bem, aliás — diz Daxo.

— Assumiu o comando? — pergunto.

Kavax explica.

— Havia um esquadrão de matadores formado por Inigualáveis. Meia dúzia de Bellonas dançarinos de lâmina, rapazes nobres de verdade, acabaram com todos os nossos Ouros e com a maior parte dos Obsidianos. O Manchado ali recolheu os Cinzas sobreviventes e alguns Obsidianos e conseguiu tomar posse da nave.

— Algum desses dançarinos de lâmina sobreviveu?

— Não.

Ragnar olha para o chão mais uma vez, como se estivesse esperando uma reprimenda.

— Bom trabalho, meu bom-homem — digo, em vez de repreendê-lo.

Não só Kavax como também Daxo estreitam os olhos para a familiaridade contida nas minhas palavras.

Valeu a pena ter visto Ragnar me surpreender com um sorriso. Um risinho amplo e recheado de dentes amarelados.

— Você acha que ele poderia fazer mais? — pergunto.

Daxo hesita.

— Como assim?

— Será que ele poderia liderar na ausência de um Ouro?

Daxo e Kavax trocam olhares de preocupação.

— Que benefício isso traria? — pergunta Daxo.

— Eu poderia enviá-lo a lugares aos quais não poderia enviar Ouros.

— Não existe esse tipo de lugar. — Kavax cruza os braços. Estou indo longe demais.

Sorrio para aplacá-los.

— É claro. É apenas uma teoria. A mente vagueia de tempos em tempos. — Dou um tapinha no ombro de Kavax e eles partem juntos para a sua própria nave.

— Você se excedeu — diz Orion.

— Perdão?

— Você tem ouvidos.

Olho para baixo, procurando as pálidas tatuagens azuis na pele escura dela como se a matemática ali exposta contivesse a chave para a compreensão da sua mente.

— Você é bem observadora pra uma Azul.

— Porque sei como o mundo funciona do lado de fora do meu sincronismo digital? Adquiri isso trabalhando nas docas, dominus. Quando você está bem abaixo, precisa reparar em tudo.

— Que docas? — pergunto.

— Phobos. Papai era Doqueiro, nascido fora das Seitas. Morreu quando eu era pequena. Uma menina precisa ficar alerta se quiser crescer nas cidades portuárias de Hive. É a única maneira de derrotar os monstros.

— Não é a única — digo.

— Não? — pergunta ela, surpresa.

— Você também tem a opção de virar você mesma o monstro.

Orion se vira do porto de observação para olhar para mim. Uma feroz inteligência queima atrás dos seus olhos árticos.

— E há também a beleza do espaço. Um bilhão de trilhas a escolher.

Sou poupado de responder quando o comAzul chama do fosso.

— Dominus, temos uma nave de assalto atracando. É Virginia au Augustus.


31

Golpe

— Papai foi capturado — ela me diz ao descer feito um foguete pela rampa vinda da sua nave fumarenta. Está flanqueada por diversos guarda-costas Obsidianos em armaduras com cicatrizes de batalha. Uma dúzia de Cinzas sai da nave atrás deles. Sun-hwa, de Luna, à frente do grupo. São todos mercenários mestiços, sem rodeios e perigosos. Os caçadores do Chacal. Sevro olha para eles com cautela.

À nossa volta, centenas de rasgAsas e uma dúzia de cegonhas se encontram estacionadas na baia — um lugar grande o bastante para engolir todos os Comunitários de Lykos e seus distritos. Laranjas fazem alarde a respeito da embarcação, preparando verificações de manutenção antes da eventual invasão de Marte.

Cumprimento Mustang com meu próprio círculo seleto — Lorn, Sevro, os Uivadores, Victra e Ragnar. Roque não atendeu às convocações. Quero correr para dar um abraço em Mustang, mas ela está enraivecida. A saliva voa da sua boca. Há círculos escuros em volta dos seus olhos raivosos. A exaustão toma conta do seu rosto.

— Pliny começou um golpe. Ele prendeu meu irmão. Minha tia está morta, e os filhos dela foram assassinados junto com seis dos nossos Pretores. Mais de vinte correligionários do meu pai fizeram novos juramentos de lealdade. E perdemos o controle da frota.

Pergunto a Mustang se ela está ferida.

— Ferida? — Ela debocha da palavra. — Como se isso pudesse ter alguma importância. Eles mataram meus homens. Chegamos na Academia sigilosamente, e assim que lancei minha naveVentosa na direção da estação espacial e das naves em treinamento, a frota dos Bellona emergiu de trás de um asteroide e destruiu cada uma das minhas navesVentosas. Dez mil homens. Mortos. Eles não precisavam fazer isso. Eles tinham armas apontadas pra nós em número suficiente pra que não tivéssemos nenhuma outra opção a não ser a rendição. Foi uma crueldade só.

— Parece coisa do Karnus — digo, adivinhando.

Ela faz que sim com a cabeça.

— E Pliny. Eles não conduziram os Bellona a uma caçada infrutífera. Eles os conduziram diretamente à minha operação.

— Por que Pliny não matou você? — pergunta Sevro.

— Um homem como Pliny anseia por legitimidade — diz Lorn, postado ao meu lado, balançando a cabeça em cumprimento a Mustang. Se ela acha a presença dele aqui estranha, não deixou transparecer. — É a natureza dele. Pliny te procurou de antemão, certo?

Mustang compartilha um olhar de desagrado com meu mentor.

— O Pixie mandou me prenderem nos meus próprios aposentos enquanto levava minha frota capturada pra Hildas. Durante a viagem, ele me procurou e me mostrou o holo com a filmagem do ataque frustrado do meu pai a Ganimedes. — Ela treme de raiva. — E ele disse que, embora minha casa tivesse ficado arruinada, ele não veria o fim da minha linhagem. A Soberana e ele haviam chegado a um acordo. Se ele pudesse lhe fornecer a paz, então ela lhe forneceria posição, legitimidade e um prêmio à escolha dele. Aí Pliny bateu seus cílios lindinhos pra mim enquanto as naves do meu pai pegavam fogo no holo e disse que se divorciaria da sua mulher e me daria a honra de aceitar a mão dele em casamento.

Não digo nada. Os Uivadores rugem, descontentes.

— E sua resposta? — pergunta Victra.

Mustang a ignora.

— Ele disse que sempre teve um olho pra mim. — Ela mete a mão no bolso, tira algo e deixa cair no chão. — Aí eu fui lá e arranquei um dele.

Sevro dá uma gargalhada junto com Harpia. Lorn emite um som de desaprovação. Como se ele tivesse condições de arbitrar qualquer coisa a respeito de questões envolvendo crueldade.

— É bom te ver de novo, Cavaleiro Raivoso — diz Mustang. — Sinto muito que você tenha sido atraído a tudo isso. Mas a gente precisa de você agora mais do que nunca.

— Estou começando a me dar conta disso.

— Onde está seu irmão? — pergunto a Mustang, levantando a vista do olho.

— Capturado. Há mais coisas que deveriam ser ditas. — Ela olha de relance para os Laranjas e os Cinzas no hangar. — Em particular.

— É claro. Vamos continuar na sala de guerra... — Começo a falar.

— ... no seu devido tempo, Darrow. — Uma preocupação típica de avô se espalha pelo rosto de Lorn quando ele se vira para Mustang. — Minha senhora, você passou por atribulações. Talvez seja melhor descansar um pouco e em seguida poderemos...

Os Uivadores e eu nos afastamos de Lorn.

— Descansar? — Mustang eleva o tom de voz. — Por que eu precisaria descansar?

— Erro meu — diz Lorn, educado.

— Theodora — chamo. Ela desliza o corpo para se aproximar de mim. — Café, estimulantes e comida na sala de guerra. O bastante pra dez. — Eu me lembro dos dois Telemanus. — Quer dizer, pra vinte.

Ela ri acidentalmente.

— Pois não, dominus. — Theodora dá um passo para o lado e se dirige à sua equipe.

Mustang inclina a cabeça na direção da sua nave.

— Você vai deixá-la parada lá e pronto?

— Chefe! — Chamo o Laranja encarregado do deque do hangar. Sua barba está manchada de graxa. Ele sobe saltitando, esfregando as mãos enormes no lubrificador laranja. — Coloque aquela nave na câmara de compressão.

— Ela pode ser salva — diz o Laranja.

Olho para Mustang.

— Você escapou ou eles te deixaram escapar?

— Não sei. Meu irmão foi quem me salvou. A nave dele foi pega ajudando a minha a escapar.

O Chacal é cheio de surpresas.

— E se houver uma bomba dentro dela? — pergunta Sevro, mirando a nave desconfortavelmente.

— Não seria uma bomba — digo.

— Pliny quer que eu fique quieta, e quer Darrow pra Soberana. Porém, mais do que isso, ele quer sua frota, Darrow. Quando ela não apareceu em Hildas, ele deve ter percebido que você havia sido avisado ou que estava esperando por uma confirmação em código de que ele não sabia.

— E ele entendeu que, se alguém sabia onde eu estava, esse alguém era você.

— Então, rastrear-me é a maneira que ele tem de encontrar essa frota — diz Mustang.

Lorn olha ora para um, ora para outro.

— Quando foi que vocês conversaram sobre isso?

— Agora mesmo — diz Mustang, confusa com a pergunta.

Sevro dá um tapinha no ombro de Lorn.

— Não se preocupe. Você não está senil. Eles são esquisitões mesmo.

Lorn olha fixo para a mão suja de Sevro. A luva sem dedos está coberta de purê de batata e de molho marrom. O amplo sorriso de Sevro some e ele retira a mão, encabulado.

Eu me viro para o Laranja.

— Coloque a nave na câmara de compressão. E rápido. — Ele parece estar hesitante. Continua mexendo os pés. — A menos que você tenha uma ideia melhor.

Ele coça a cabeça, parecendo estar preocupado com todos os rostos Dourados mirando-o. Os taifeiros observam a troca de olhares furtivamente.

— Vamos logo com isso — exaspera-se Sevro.

— Certo. Bom, eu podia enfiar ela na câmara de compressão, dominus. Ou, enfim, eu podia encontrar os scanners e o material disseminado, se eles seguiram esse caminho. Temos alguns componentes funcionando muito bem aqui. Eu podia encontrá-los, e eu podia pôr todos numa exploração de longo alcance, sem problema nenhum. De repente seria uma boa deixar os cães de Pliny latindo na direção errada, não é não?

— Qual é seu nome e qual é seu mundo? — pergunto.

— Dominus... hum. — Ele pisca pesadamente. — Cyther é meu nome. Luna. Três meninas. Minha mulher trabalha no Centro de Desenvolvimento Automotivo, então a gente tem...

Eu o corto.

— Faça isso direitinho e vamos levá-las pra Marte e designá-las ao staff da Cidadela, Cyther. Você tem dez minutos.

— Sim, senhor! — Ele sai correndo entusiasmado na direção dos seus homens.

Conduzo Mustang e meu grupo aos elevadores.

— Pliny disse que te matou — sussurra ela enquanto andamos.

— Aja e uma frota dos Bellona estavam esperando por nós, como imaginávamos que eles fariam. — Dou um risinho para ela, de soslaio, e em seguida puxo meu datapad. — Orion, assuma o comando da frota. Quero a gente longe deste setor antes que mais pessoas apareçam. Sevro, convoque os Telemanus. Quero que eles... Sevro? — Olho ao redor em busca dele. O Duende está flanando ao redor do olho de Pliny uns vinte metros atrás de onde estamos. Nós nos viramos para olhá-lo e ele mexe os pés, desajeitado.

— Será que posso... — Ele faz um gesto para o olho.

— O quê? — pergunta Mustang.

— Será que posso ficar com ele?

Mustang estreita os olhos para Sevro.

— É todo seu.

Ele recolhe o olho e o enfia no bolso, rindo alegremente. Então corre para nos alcançar.

— Vou tentar completar a coleção, se tiver sorte.


32

Morrer jovem

Mustang insistiu que gostaria de ver Tactus antes da reunião. Theodora nos guia. Encontramos Roque sentado ao lado do corpo dele na medBaia da nave. Pela maneira como ele está sentado com as mãos juntas, poder-se-ia pensar que Tactus ainda tem alguma chance de vida. Talvez em algum outro mundo onde homens como Lorn não existam.

— Ele está aqui desde Europa — diz Theodora em voz baixa.

— Você não me disse que ele estava aqui — digo.

— Ele me pediu pra não dizer.

— Você é minha serviçal, Theodora.

— E ele é seu amigo, dominus.

Mustang me cutuca.

— Deixe de ser chato, não dá pra ver que ela está tão exausta quanto ele?

Olho para Theodora. Mustang tem razão.

— É melhor você dormir um pouco, Theodora.

— Uma ótima ideia, eu acho, dominus. É sempre um prazer vê-la, domina — diz Theodora a Mustang antes de me fuzilar com os olhos. — O mestre tem estado bem ranzinza na sua ausência.

Mustang observa Theodora sumir de vista.

— Você teve muita sorte com ela. — Mustang toca o ombro de Roque com delicadeza. Os olhos dele se abrem.

— Virginia.

Eles ficaram próximos um do outro no ano que nós todos passamos juntos na Cidadela. Nenhum dos dois jamais conseguiu fazer com que eu me juntasse a eles na ópera. Não que eu não estivesse interessado na música. Lorn simplesmente demandava tempo.

Ela aperta a mão dele.

— Como é que você está?

— Melhor do que Tactus. — Ele olha para mim de relance. Aposto que ele diria mais se eu não estivesse aqui. Roque vê o estado desmazelado de Mustang e sua testa franze de preocupação. — O que houve?

Assim que lhe contamos, ele passa a mão nos cabelos ondulados com delicadeza.

— Bom, isso é muito ruim. Nunca pensei que Pliny pudesse agir de um modo tão absolutamente ousado.

— Vamos nos reunir daqui a dez minutos pra discutir planos — digo.

Roque me ignora.

— Sinto muito pelo seu pai e pelo seu irmão, Virginia.

— Eles ainda estão vivos, espero. — Mustang olha para Tactus e o rosto dela se aquieta. — Sinto muito por Tactus.

— Ele partiu do jeito que viveu — diz Roque. — Eu só gostaria que ele tivesse podido viver mais tempo.

— Você acha que ele teria mudado? — pergunta Mustang.

— Ele sempre foi nosso amigo — diz Roque. — Era nossa responsabilidade ajudá-lo a tentar. Mesmo que isso fosse como abraçar fogo. — Ele olha para mim por um momento.

— Você sabe que eu não queria que ele morresse — digo. — Eu queria que ele voltasse pra nós.

— Da mesma maneira que você queria pegar Aja? — diz Roque, bufando para a minha expressão.

— Eu te disse por que fiz isso.

— É claro. Ela mata nossa amiga. Aja mata Quinn, mas a gente deixa que ela escape pelo esquema maior. Tudo custa alguma coisa, Darrow. Talvez você logo se canse de obrigar seus amigos a pagarem esse custo.

— Isso não é justo — diz rapidamente Mustang. — Você sabe que não é.

— O que eu sei é que a gente está ficando sem amigos — responde Roque. — Nem todos nós somos tão durões quanto o Ceifeiro. Nem todos nós queremos ser guerreiros.

É claro que Roque acha que essa vida é uma escolha minha. Sua própria infância foi repleta de prazer e de leituras, foi uma infância na qual ele passava indo e vindo da propriedade da sua família em New Thebes às terras altas de Marte. Seus pais não acreditavam em uploads de aprendizado aperfeiçoado, de modo que contrataram Violetas e Brancos para ensiná-lo pedagogicamente — caminhadas e conversas em tranquilas pastagens e ao lado de lagos com água parada.

— Tactus não vendeu o violino — diz Roque depois de um momento.

— O que Darrow deu a ele?

— Isso. O Stradivarius. Ele vendeu, mas depois se sentiu tão culpado que não permitiu que a venda fosse finalizada na casa de leilões. Obrigou-os a cancelar o pedido. Ele estava praticando em segredo, tirando um pouco da ferrugem. Ele dizia que queria fazer uma surpresa pra você com uma sonata, Darrow.

O peso em mim se aprofunda. Tactus sempre foi meu amigo. Ele apenas se perdeu tentando ser o homem que sua família queria que ele fosse, quando o tempo todo seus amigos amavam o homem que ele já era. Mustang põe a mão nas minhas costas, sabendo o que estou pensando. Roque se curva agora para beijar Tactus uma vez no rosto e lhe dar a bênção.

— É melhor entrar naquele outro mundo na glória total de alguma paixão do que evanescer e definhar com a idade. Viver com rapidez. Morrer jovem, meu amigo instável.

Roque se afasta, deixando Mustang e eu sozinhos com Tactus.

— Você vai ter que consertar isso — diz ela a respeito de Roque. — Conserte isso antes que você o perca.

— Eu sei — digo. — Assim que eu consertar cem outras coisas.

Estamos sentados na sala de guerra ao redor de uma grande mesa de madeira em total arranjo de conselho. Xícaras de café e bandejas com comida se encontram sobre a mesa. Mustang está sentada ao meu lado, as botas sobre a mesa, como sempre, enquanto explica o que aconteceu de errado com a missão do seu pai. Kavax se curva para a frente no assento, aterrorizado com a ideia de Augustus sofrer uma derrota. Ele torce as mãos nervosamente, tão perturbado que Daxo tira Sophocles do seu colo e o entrega a uma desconfortável Victra. A voz de Mustang preenche o recinto e o holo que Pliny lhe deu ganha vida em cima da mesa. Uma brigada de corvetas dispara em silêncio através do espaço na direção dos famosos estaleiros de Ganimedes que formam um anel salpicado de tons verdes, azuis e brancos ao redor da lua industrial.

— Ele despachou um esquadrão de mestiços formado por Cinzas escondidos no ventre de duas naves-tanques. Eles desabilitaram três dos reatores nucleares da plataforma defensiva. Aí meu pai veio com força com suas rasgAsas e corvetas, como é o estilo dele, queimando motores e soltando munições antes de contornar. Foi como achar um tesouro, uns dezessete destróieres e quatro couraçados estacionados no deque, a maioria quase pronta ou pronta. Supondo que as naves estavam sendo pilotadas por tripulações reduzidas, ele as abordou simultaneamente. Inclusive comandou a naveVentosa que abordou o quebraLua com seus dois Manchados. Mas as naves não estavam sendo pilotadas por tripulações reduzidas. Não havia nenhuma tripulação. Ao contrário, as naves estavam cheias de Pretorianos e esquadrões de mestiços Cinzas. E Cavaleiros Olímpicos.

— E ele... se rendeu? — pergunta Kavax, em pânico.

Mustang ri.

— Meu pai? Ele quase conseguiu escapar. Matou o Cavaleiro Fornalha e aí deu de cara com alguns dos nossos velhos amigos.

O holo mostra Augustus fluindo através de doze Cinzas como um homem abrindo caminho no mato. Sua lâmina canta e chia, cintilando de encontro às paredes, deslizando por homens e armaduras até encontrar um outro homem numa armadura cor de chama. O Cavaleiro Fornalha. Há uma confusão de ataques e investidas pesadas e então uma névoa vermelha. Uma cabeça desaba no chão. Depois disso dois homens aparecem. Um deles num capacete com um sol timbrado. O outro, Fitchner, no seu capacete cabeça de lobo. Juntos, os homens matam o Manchado e deixam Augustus sangrando no chão.

Lorn olha para mim.

— Senhora... Mustang, quem era o homem na armadura com o sol timbrado?

Ela fica em silêncio.

— Essa é a armadura do Cavaleiro da Manhã — respondo. — Cassius. Eles devem ter consertado o braço dele. Ou lhe dado um novo.

Mustang continua.

— Naves Julii também estavam lá. — Ela olha para Victra. — Elas arrasaram a frota do meu pai.

Sevro olha com raiva para Victra, tirando Sophocles das suas mãos como se ela não fosse confiável nem mesmo para segurar uma raposa.

— Você está com uma sensação esquisita? Deveria.

— Já discutimos isso — diz Victra, dando a impressão de estar bastante entediada com as acusações. — Minha mãe foi ameaçada pela Soberana. Ela não é política. Ela só liga pra dinheiro e poucas coisas mais.

— Então ela não liga pra lealdade? — pergunta Mustang. — Interessante.

— Ah, Agrippina é uma piranha sem-vergonha — resmunga Kavax. — Sempre foi.

— Cuidado, grandalhão — avisa Victra. — Ela ainda é minha mãe.

Kavax cruza os braços.

— Peço perdão. Por ela ser sua mãe.

— E como podemos saber que você não está em conluio com eles, Victra? — pergunta Daxo com suavidade. — Talvez você esteja espionando. Talvez você esteja esperando. Como você testa a lealdade dela, Darrow? Ela poderia muito bem ter enviado uma mensagem...

Mustang olha para mim.

— Eu mesma estava imaginando essa possibilidade.

— Por que confio em você, Daxo, ou em você, Kavax? — pergunto. — Vocês dois estariam em ótima forma, receberiam perdões, receberiam mais territórios e dinheiro se entregassem minha cabeça à Soberana.

— E seu coração à mãe de Cassius — lembra-me Sevro.

— Obrigado, Sevro.

— Estou aqui pra ajudar! — Ele pega uma coxinha da bandeja e a oferece a Sophocles. Mas volta atrás e ele mesmo dá uma mordida, dizendo algo baixinho para a raposa.

— Confio em Victra pela mesma razão que confio em qualquer um de vocês: amizade — digo, conseguindo desviar os olhos de Sevro.

— Amizade. Ha! — Mustang deposita a xícara de café na mesa com um barulho. — Vou ser grossa. Não confio nem um pouco nos Julii.

— Isso é porque você se sente intimidada por mim, pequenina.

Mustang retesa o corpo na cadeira.

— Pequenina?

— Tenho uma década a mais do que você. Um dia você vai se lembrar de como é hoje e vai rir. Será que fui assim tão tola, tão simplória? Além disso, você não é muito alta. Portanto vou te chamar de pequenina.

— Eu não luto com mulheres — diz Mustang com frieza. — Não confio em você porque não te conheço. Tudo o que sei é que a reputação da sua mãe não é política. Ela é uma maquinadora. Ela suborna os outros. Meu pai sabia disso. Eu sei disso. Você sabe disso.

— Sim, até certo ponto minha mãe é uma maquinadora. E eu também sou e você também é, mas se existe uma coisa que eu não sou é mentirosa. Nunca disse uma mentira, e nunca direi. Ao contrário de outras pessoas. — O arco formado pelas sobrancelhas torna bastante nítido o que ela quer dizer.

— Maçãs ruins geram sementes ruins, Darrow — alerta Daxo. — Ponha seus sentimentos de lado nessa questão. Ela foi criada por uma mulher perigosa. Não há necessidade de lhe fazer mal, mas não podemos tê-la neste conselho. Eu sugeriria que você a deixasse nos aposentos dela até que tudo isso acabe.

— Sim. — Kavax bate na mesa com os nós dos dedos. — De acordo. Semente ruim.

— Não posso acreditar que você tenha me atraído a isso, Darrow — murmura Lorn. Ele parece deslocado aqui. Velho demais, grisalho demais para fazer parte de brigas desse gênero. — Você nem consegue confiar no seu próprio conselho.

— Mal-humorado. Baixa taxa de açúcar no sangue, de repente? — Sevro joga para ele a coxinha comida pela metade. Lorn a deixa cair na mesa, pouco impressionado com a exibição.

— Poderíamos ouvir sua sabedoria, Arcos — diz Kavax, respeitoso.

— Eu ouviria seus conselheiros, Darrow. — Lorn estala os dedos nodosos. — Tenho cicatrizes mais velhas do que eles, mas eles não são completamente ingênuos. Seguro morreu de velho. Confine Victra nos aposentos dela.

— Você nem me conhece, Arcos! — protesta Victra, por fim levantando da cadeira. Vê-se a guerreira nela agora, flamejando por baixo da calma culta. — Isso é uma afronta a mim. Eu estava lutando com Darrow quando você ainda estava se encolhendo no seu castelo flutuante fingindo que estamos em 1200 d.C.

— O tempo não prova a lealdade de ninguém — escarnece Lorn, e passa um dedo por uma cicatriz no antebraço. — Cicatrizes sim.

— Você conseguiu essas aí lutando pela Soberana. Você era a espada dela. Quanto sangue você derramou por ela? Quantos homens você viu queimando ao lado de Lorde Ash?

— Não fale de Rhea comigo, menina.

Os dentes de Victra cintilam num cruel sorriso.

— Então existe realmente um Cavaleiro Raivoso por baixo das rugas e dos trapos mordido pelas traças.

Lorn a avalia, vendo nela a típica ira da juventude, e olha para mim, como se para imaginar que espécie de homem traz Ouros como Tactus e Victra para o seu lado. Será que ele ao menos me conhece?, indagam seus olhos. Não, ele começa a perceber. É claro que não.

— Honra no princípio. Honra no fim. Essas são as palavras da minha família. Ao passo que você... mocinha, bem, o nome Julii não eleva exatamente ninguém a propósitos mais nobres, eleva? Vocês são apenas comerciantes.

— Meu nome não tem nada a ver com quem eu sou.

— Cobras geram cobras — responde Lorn, nem mesmo olhando para ela agora. — Sua mãe era uma cobra. Ela gerou você. Portanto, você é uma cobra. E o que cobras fazem, minha cara? Elas rastejam. Elas esperam, com sangue-frio, cruéis na grama, e então mordem.

— Podíamos pedir um resgate por ela — diz Sevro. — Ameaçar matá-la a menos que Agrippina se junte a nós ou pelo menos pare de mijar em cima dos nossos planos.

— Você é um merdinha sinistro, não é mesmo? — pergunta Victra.

— Eu sou Ouro, piranha. O que você esperava? Leite morno e biscoitinhos só porque sou baixinho?

Roque pigarreia, atraindo olhos.

— Parece que estamos sendo injustos, inclusive hipócritas — observa ele. — Todos aqui sabem que minha família é cheia de políticos. Alguns de vocês podem até pensar que venho de sangue nobre e de sementes nobres. Mas nós Fabii somos uma raça desonesta. Mamãe é uma Senadora que enche os bolsos com fundos agrícolas e subsídios médicos baixaCores pra poder viver em mais lares do que a mãe dela viveu. Meu avô paterno envenenou seu próprio sobrinho por causa de uma famosa atriz Violeta um quarto de século atrás, que acabou esfaqueando-o e cegando a si própria quando descobriu que ele tinha matado o sobrinho, amante dela. Mas isso não é nada perto do meu tio-bisavô, que oferecia seus serviçais às lampreias porque lera que o imperador Tibério havia sido o pioneiro nessa estranha paixão. Contudo, aqui estou eu, gerado em meio a todo esse pecado, e aposto que ninguém nesta sala questiona minha lealdade — continua Roque. — Por que então duvidamos de Victra? Ela permanece inabalável ao lado de Darrow desde os tempos da Academia. Nenhum de vocês estava lá. Nenhum de vocês sabe nada a respeito disso, portanto insisto que vocês se calem. Mesmo quando a mãe de Victra exigiu que ela abandonasse Darrow e Augustus, ela ficou ao lado dele. Mesmo quando os Pretorianos vieram nos matar em Luna, ela ficou ao lado dele. Agora ela está aqui, quando somos pouca coisa além de uma coalizão de bandidos da pior espécie, e vocês a questionam. Vocês me dão nojo. Fico triste de estar entre vocês, seus intrigantes. Portanto, se algum outro homem ou mulher questionar a lealdade dela, vou perder a fé no nosso companheirismo. E vou embora.

O sorriso de Victra para ele é como o nascer do sol, furtivo, lento e então cegantemente brilhante. Ele desaparece com mais lentidão do que pensei que pudesse desaparecer. A calidez nela surpreende Roque também, e suas bochechas claras enrubescem rapidamente.

— Eu não sou minha mãe — anuncia Victra. — Nem minha irmã. Minhas naves pertencem a mim. Meus homens pertencem a mim. — Seus olhos arregalados são frios, quase sonolentos, mas brilham quando ela se curva para a frente. — Confiem em mim e vocês terão uma recompensa. Mas tudo o que importa é o que Darrow pensa.

Todos os olhos se voltam para mim e meu silêncio. Na verdade, eu não estava pensando em Victra, mas em Tactus, e imaginando como ele poderia facilmente dizer que eu o mantive ao alcance do meu braço. Quando no início lhe mostrei amor e ele rejeitou meu violino, fiquei constrangido e magoado. Então me afastei. Melhor seria se eu tivesse sido verdadeiro a respeito de como me senti e mantido o curso. Os muros dele teriam se quebrado. Ele jamais teria ido embora. Ainda poderia estar aqui. Não vou cometer o mesmo erro outra vez, muito menos com Victra. Eu me aproximei dela no corredor e o farei agora na presença desse grupo.

— O acaso nos fez Ouros. Poderíamos ter nascido em qualquer Cor. O acaso nos designou às nossas famílias. Mas escolhemos nossos amigos. Victra me escolheu. Eu a escolhi, como escolhi todos vocês. E se não pudermos confiar nos nossos amigos — digo, olhando para Roque num gesto de súplica, em busca de absolvição nos seus olhos —, qual será então o motivo pra continuarmos respirando?

Encaro Victra. Seus olhos dizem mil coisas, e me lembro das palavras que o Chacal pronunciou deitado no leito, queimado devido à explosão da bomba. Victra me ama. Será que isso poderia ser assim tão simples? Ela faz todas essas coisas não pela maneira Julii de obter ganhos e lucros, mas por essa simples emoção humana. Será que algum dia terei condições de amá-la? Não. Não, num outro mundo, Mustang jamais seria uma guerreira, jamais seria cruel. Em qualquer outro mundo, Victra seria sempre isso que ela é. Sempre uma guerreira, como Eo, na realidade. Sempre selvagem demais e cheia de fogo para encontrar paz em qualquer outra coisa.

Mustang nota que algo se passa entre mim e Victra.

— Então, está acertado — diz Mustang. — Vamos voltar ao assunto em pauta. Pliny está à espera com a frota principal. Lá ele levou todos os correligionários do meu pai a redigirem um documento de rendição formal à Soberana e uma reestruturação de Marte. O acordo, até onde compreendo, fará dele o chefe da sua própria casa. Ele, os Julii e os Bellona serão os poderes de Marte. Uma vez que a paz seja acordada, ela será selada com a execução do meu pai no pátio da nossa Cidadela em Agea. — Mustang olha ao redor da mesa, deixando a gravidade crescer por trás das suas palavras. — Se não resgatarmos meu pai, essa guerra está acabada. Os Lordes da Lua não virão em nosso auxílio. Na realidade, eles enviarão naves contra nós. As forças de Vespasian vindas de Netuno darão meia-volta. Ficaremos sozinhos contra toda a Sociedade. E morreremos.

— Bom. Isso torna as coisas simples — digo. — Pegamos de volta nossa frota e depois pegamos de volta Marte. Alguma ideia?


33

Uma dança

Durmo com um sonho do passado. Minha mão enroscada nos cachos dos cabelos dela. Ao nosso redor, o vale está quieto, adormecido. Nem as crianças se mexem. Os pássaros pousados nos galhos nodosos dos pinheiros próximos, e não ouço nada além da sua respiração e o crepitar de um fogo velho. A cama tem o cheiro dela. Nenhum cheiro de flores ou de perfume. Apenas o almíscar terroso da sua pele, dos óleos nos cabelos ao redor das minhas mãos, do seu hálito quente aquecendo meu rosto. Os cabelos dela eram do nosso planeta. Eram rebeldes como os meus, sujos como os meus, vermelhos como os meus. Um pássaro lá fora cantarola com estrépito. Incessantemente. Cada vez mais alto. Cada vez mais alto.

E acordo ouvindo alguém na minha porta.

Chuto para o lado as cobertas suadas e me sento na beirada do colchão.

— Visual. — Um holo aparece exibindo Mustang no corredor. Eu me levanto de imediato para deixá-la entrar, mas quando alcanço a porta, paro. Temos nosso plano. Não restou nada a ser discutido a uma hora dessas. Nada que possa trazer qualquer coisa de bom.

Eu a observo no holo. Concentrando o peso ora num pé, ora no outro, com algo nas mãos. Se eu a deixar entrar... isso irá nos custar, no final. Já magoei Roque. Já matei Quinn e Tactus e Pax. Trazê-la para perto agora seria um gesto egoísta. Na melhor das hipóteses, ela sobrevive a essa guerra e descobre a verdade a meu respeito. Eu me afasto da porta.

— Darrow, pare com essa chatice e me deixe entrar.

Minha mão faz a escolha para mim.

Os cabelos dela estão soltos e molhados, seu uniforme foi substituído por um quimono preto. Como ela parece frágil perto de Ragnar, que está à espreita no corredor.

— Eu te falei — diz ela a Ragnar. A mim Mustang diz: — Sabia que você estaria acordado. O Ragnar aqui estava sendo teimoso. Disse que você precisava dormir. E se recusava a aceitar a comida que eu trouxe pra ele.

— Você precisa de alguma coisa? — pergunto, com mais frieza do que pretendia de início.

Os pés dela se mexem sem parar, fazendo uma exibição de nervosismo.

— Eu... tenho medo de escuro. — Ela me empurra para o lado para abrir passagem. Ragnar observa isso, olhos atentos a tudo.

— Eu disse pra você ir dormir, Ragnar.

Ele não se mexe.

— Ragnar, se eu não estiver em segurança aqui, não estou em segurança em lugar nenhum. Vá dormir.

— Eu durmo com os olhos abertos, dominus.

— É mesmo?

— É.

— Bom, então faça isso no seu beliche, Manchado. Isso é uma ordem — digo, odiando as palavras de mestre assim que elas saem da minha boca.

Com relutância, ele faz um aceno de cabeça e desliza em silêncio corredor afora. Eu o observo partir à medida que a porta se fecha com um chiado. Eu me viro para encontrar Mustang inspecionando minha suíte. É mais madeira e pedra do que metal, as paredes entalhadas e trabalhadas com cenas de floresta. Estranhos os esforços que essas pessoas fazem para se sentir como uma parte integrante da história e não como um pedaço do futuro.

— Sevro deve estar puto por não ser mais o único a ficar à espreita atrás de você.

— Sevro cresceu um pouquinho desde a última vez que você o viu. Ele até já dorme em camas.

Ela ri disso.

— Bom, Ragnar estava tão irredutível, querendo que eu fosse embora, que cheguei a pensar que você talvez estivesse acompanhado.

— Você sabe que não uso Rosas.

— É grande — diz ela a respeito da suíte. — Seis cômodos pro velhinho aí. Você não vai me oferecer nada pra beber?

— Você gostaria de...

— Não, obrigada. — Ela diz para os controles da sala tocarem música. Mozart. — Mas você não gosta realmente de música, gosta?

— Não desse tipo. É... enfadonho.

— Enfadonho? Mozart era um rebelde, um bandoleiro de uma genialidade monolítica! Um destruidor de tudo que era enfadonho.

Dou de ombros.

— Pode ser. Mas então as pessoas enfadonhas tomaram posse dele.

— Você às vezes é tão caipira. Pensei que Theodora pudesse ter conseguido incutir em você alguma cultura. Então o que você gostaria de ouvir? — Ela passa as mãos pelo entalhe de um alce liderando sua manada. — Não aquela loucura eletrônica com a qual os Uivadores batem a cabeça, espero. Faz sentido os Verdes terem inventado esse troço... é como escutar um robô tendo uma convulsão.

— Você tem muita experiência com robôs? — pergunto enquanto ela se move ao redor da Armadura da Vitória numa sala adjacente ao hall de entrada. A Soberana deu-a de presente a Lorde Ash quando ele queimou Rhea. Os dedos de Mustang brincam sobre o metal em tom fosco.

— Os Laranjas e Verdes do papai tinham alguns robôs nos seus laboratórios de engenharia. Umas coisas antigas e enferrujadas que papai tinha mandado restaurar para enviar a museus. — Ela ri para si mesma. — Ele costumava me levar lá quando eu usava vestido e mamãe ainda estava viva. Eu detestava aquelas coisas. Eu me lembro de mamãe rindo da paranoia dele, sobretudo quando Adrius tentou religar um dos modelos de combate da Eurásia. Papai estava convencido de que os robôs teriam sobrepujado os homens e estariam agora governando o sistema solar se os impérios da Terra jamais tivessem sido destruídos.

Eu rio, quase bufando.

— O que é? — pergunta ela.

— Estou apenas... — Reprimo uma risada. — Estou tentando imaginar o grande ArquiGovernador Augustus tendo pesadelos com robôs. — Um acesso de riso mais altissonante me acomete. — Será que ele imagina que eles poderiam querer mais óleo? Mais tempo de férias?

Mustang me observa, divertindo-se.

— Você está bem?

— Estou bem. — Minha gargalhada some. Seguro a barriga. — Estou bem. — Não consigo me livrar do risinho. — Ele também tem medo de alienígenas?

— Nunca perguntei a ele. — Ela dá um tapinha na armadura. — Mas eles estão por aí, você sabe.

Olho fixo para ela.

— Isso não está nos arquivos.

— Oh, não, não está. Quero dizer que a gente nunca encontrou nenhum. Mas a equação de Drake-Roddenberry sugere que a probabilidade matemática é N = R* × fp × ne × fl × fi × fc × L. Onde R* é a taxa média de formação estelar na nossa galáxia, e fp é a fração dessas estrelas que têm planetas... Você não está mais ouvindo.

— O que você imagina que eles achariam de nós? — pergunto. — Do ser humano?

— Imagino que eles nos achariam bonitos, estranhos e inexplicavelmente horríveis uns com os outros. — Ela aponta para um corredor. — Aquela é a sala de treinamento? — Ela tira os chinelos e percorre um corredor de mármore, olhando para mim por cima do ombro. Eu a sigo. As luzes se acendem sem ruído algum à medida que passamos. Ela desliza à frente num ritmo mais rápido do que a cautela me permitiria imprimir. Eu a encontro momentos depois no centro da sala de treinamento circular. O tatame branco é macio sob meus pés. Entalhes se encontram ao longo das paredes de madeira. — A Casa de Grimmus é bem antiga — diz ela, apontando para uma frisa representando um homem numa armadura. — Você pode ver o primeiro ancestral do Lorde Ash aqui. Seneca au Grimmus, o primeiro Ouro a tocar terra firme na Chuva de Ferro que levou os americanos para o litoral leste depois que um dos ancestrais de Cassius, esqueci o nome dele agora, investiu contra a Frota Atlântica. Depois há Vitalia au Grimmus, a Grande Feiticeira, bem aqui. — Ela se volta para mim. — Você ao menos conhece a história das coisas que está tentando destruir?

— Foi Scipio au Bellona que derrotou a Frota Atlântica.

— Foi? — pergunta ela.

— Estudei história — digo. — Tão bem quanto você.

— Mas você se coloca à parte dela, certo? — Ela anda ao meu redor. — Você sempre se colocou. Como se fosse um forasteiro olhando pra dentro. Foi o fato de ter crescido longe de tudo isso, nas minas do asteroide dos seus pais, que proporcionou isso, não foi? É por isso que você consegue fazer uma pergunta do tipo: “O que os alienígenas pensam de nós?”.

— Você é tão forasteira quanto eu. Li suas dissertações.

— Leu? — Ela está surpresa.

— Acredite ou não, também sei ler. — Balanço a cabeça. — É como se todo mundo esquecesse que só errei uma pergunta nos testes de gíriAstúcia do Instituto.

— Epa. Você errou uma pergunta? — Ela franze o nariz enquanto pega uma lâmina de treinamento num banquinho. — Tenho a impressão de que é por isso que você não estava na Minerva.

— Como Pax conseguiu ser escolhido pela Casa Minerva, a propósito? Sempre me fiz essa pergunta... ele não era exatamente um erudito.

— Como foi que Roque acabou na Marte? — responde ela com um dar de ombros. — Cada um de nós tem profundezas escondidas. Agora, Pax não era tão inteligente quanto Daxo é, mas sabedoria se encontra no coração, não na cabeça. Pax me ensinou isso. — Ela sorri, com o pensamento distante. — A única graça que meu pai me deu depois que minha mãe morreu foi me deixar visitar a propriedade dos Telemanus. Ele nos mantinha, Adrius e eu, separados pra tornar mais difícil o assassinato dos seus dois herdeiros. Tive sorte de poder ficar próxima deles. Embora, se eu não tivesse ficado, talvez Pax não tivesse sido tão leal. Talvez não tivesse pedido pra ficar na Minerva. Talvez ainda estivesse vivo. Desculpe... — Sacudindo a cabeça para se livrar da tristeza, ela olha para mim com um sorriso rígido. — O que você achou das minhas dissertações?

— Qual delas?

— Me faça uma surpresa.

— Os Insetos da Especialização. — Snap. Uma lâmina de treinamento bate no meu braço, agredindo a carne. Dou um ganido de surpresa. — Que é isso?

Mustang está lá parada com a aparência inocente, brandindo a lâmina de treinamento de um lado para o outro.

— Quis me certificar de que você estava prestando atenção.

— Prestando atenção? Eu estava respondendo à sua pergunta!

Ela dá de ombros.

— Tudo bem. Talvez eu apenas tenha sentido vontade de te acertar. — Ela me chicoteia de novo.

Eu me desvio do golpe.

— Por quê?

— Nenhum motivo especial. — Ela ataca. Eu me desvio. — Mas dizem que mesmo um idiota aprende algo quando esta coisa o atinge.

— Não cite — ela ataca, eu me contorço para o lado — Homero... pra mim.

— Por que essa é sua dissertação favorita? — pergunta ela calmamente, investindo contra mim outra vez. A lâmina de treinamento não tem fio, mas é tão dura quanto uma bengala de madeira. Dou um salto, girando o corpo para o lado e saindo do caminho como se fosse um saltador de Lykos.

— Porque... — Eu me desvio de mais um golpe.

— Quando você está com o peso nos calcanhares, você é um mentiroso. Com o peso nos dedos você cospe verdades. Agora cuspa. — Ela atinge meu joelho. Rolo para longe, tentando alcançar as outras lâminas de treinamento, mas Mustang me impede de chegar nelas com uma saraivada de golpes. — Cuspa!

— Gostei dessa — digo, saltando para trás — porque você disse que a “especialização nos torna insetos simples e limitados; um fato... ao... qual os Ouros não são imunes”.

Ela para de atacar e olha de forma acusatória, e percebo que caí numa armadilha.

— Se você concorda com isso, então por que insiste em fazer de si mesmo apenas um guerreiro?

— É o que eu sou.

— É o que você é? — diz ela, rindo. — Você, que confia em Victra. Uma Julii. Você, que confiou em Tactus. Você, que deixou um Laranja fazer recomendações táticas. Você, que dá o comando da sua nave a uma Doqueira e mantém um séquito de bronzeados? — Ela balança um dedo para mim. — Não seja hipócrita agora, Darrow au Andromedus. Se você vai dizer pra todo mundo que eles podem escolher seu futuro, então é melhor você agir da mesma maneira, droga.

Ela é inteligente demais para acreditar em alguma mentira. É por isso que fico tão inquieto quando ela me faz perguntas, quando perscruta coisas que não posso explicar. Não existe nenhuma motivação explicável para muitas das minhas ações se eu sou realmente um Andromedus que cresceu na colônia de mineração do asteroide dos meus pais Ouros. Minha história é oca para ela. Meu ímpeto confuso... se eu nasci Ouro. Tudo isso deve parecer ambição, deve parecer avidez por sangue. E sem Eo, seria mesmo.

— Esse olhar — diz Mustang, dando um passo para se afastar de mim. — Aonde você vai quando olha pra mim desse jeito? — A cor se esvai do rosto, recuando para dentro dela à medida que seu sorriso se solta. — É Victra?

— Victra? — Quase rio. — Não.

— Então é ela. A garota que você perdeu.

Não digo nada.

Ela nunca se meteu. Ela nunca perguntou por Eo, nem quando passávamos tempo juntos depois do Instituto quando eu era um lanceiro em ascensão, nem quando cavalgávamos juntos na propriedade da família dela ou caminhávamos pelos jardins ou mergulhávamos nos recifes de coral. Pensei que ela tivesse esquecido que eu sussurrara o nome de uma outra garota quando estava deitado com ela sob a neve do Instituto. Que estupidez da minha parte. Como ela poderia esquecer? Como isso poderia não ter permanecido dentro dela, forçando-a a imaginar, enquanto ela estava deitada com a cabeça no meu peito escutando meu coração bater, se ele não pertencia a uma outra garota, a uma garota morta?

— O silêncio não é a resposta neste exato momento, Darrow. — Depois de um instante, ela me deixa sozinho na sala. O som dos seus pés desvanece. O Mozart desaparece.

Saio atrás de Mustang, alcançando-a antes que ela encontre a porta para o corredor. Eu a seguro pelo punho. Ela me repele.

— Pare com isso!

Recuo, sobressaltado.

— Por que você faz isso? — pergunta ela. — Por que você me puxa de volta se vai me empurrar pra longe daqui a pouco? — Ela está de punhos cerrados como se quisesse me atacar. — Isso não é justo. Você consegue entender isso? Não sou como você... Não consigo simplesmente... Não consigo me distanciar do mundo como você faz.

— Não me distancio do mundo.

— Você me distanciou. Depois daquele discurso sobre Victra... sobre a importância dos amigos... — Ela estala os dedos na frente do meu rosto. — Você ainda pode me cortar assim, ó! Você gosta e depois não gosta. De repente é por isso que ele gosta tanto de você.

— Ele?

— Meu pai.

— Ele não gosta de mim.

— Como ele poderia não gostar? Você é ele.

Eu me afasto dela e encontro repouso na beirada da cama.

— Não sou como seu pai.

— Eu sei — diz ela, soltando um pouco da sua raiva. — Isso não é justo com você. Mas você vai se transformar nele se seguir esse caminho sozinho. — Ela põe a mão nos controles da porta. — Então, me peça pra ficar.

Como posso deixar que ela fique? Se ela me der seu coração, eu a magoarei. Minha mentira é grande demais para permitir que um amor seja construído sobre ela. Quando ela descobrir o que sou, irá me rejeitar. Mesmo que ela conseguisse sobreviver a isso, eu não conseguiria. Olho para as minhas mãos como se a resposta estivesse ali.

— Darrow. Me peça pra ficar.

Quando levanto os olhos, ela se foi.


34

Irmãos de sangue

As tropas de assalto de Lorn capturam a embarcação camelo quando esta traz alimentos para a frota de Pliny reunida ao redor da Estação Hildas, um eixo de comércio e comunicações em forma de estrela nas franjas do cinturão de asteroides situado entre as órbitas de Marte e Júpiter. Por quinze horas, eu me escondo com Roque, Victra, Sevro, os Uivadores, os Telemanus, Lorn, Mustang e Ragnar em meio a caixas e engradados contendo refeições de protofibra embaladas a vácuo. Ragnar esmagou a primeira caixa na qual se sentou, espalhando comida por toda parte, antes de sair da úmida baia de carga para se acomodar na unidade freezer com uma temperatura abaixo de zero.

Sevro abre com uma faca meia dúzia de embalagens de comida e fica beliscando durante a viagem, dividindo com os Telemanus e seus Uivadores, enquanto Roque fica sentado num canto conversando com Victra. Mustang está encostada em Daxo, compartilhando histórias de Pax com Kavax. Ela evita meu olhar.

Tentei me desculpar antes de subirmos a bordo da nave, mas ela me cortou rápido.

— Não há nenhum motivo pra se desculpar. Somos adultos. Vamos parar de nos aborrecer e de brigar como se fôssemos crianças. Há coisas a serem feitas.

As palavras vão esfriando à medida que eu as repasso na mente.

Lorn me cutuca com a bota.

— Tente ser menos óbvio, rapaz. Você não tira os olhos dela.

— É complicado.

— Amor e guerra. Mesma moeda. Lados diferentes. Já tenho rugas demais no rosto pra qualquer uma das duas.

— Talvez a guerra sopre um pouco de vida nos seus ossos velhos.

— Bom, tentei o amor no mês passado. — Ele se aproxima. — Não funcionou como costumava funcionar no passado.

— Quanta honestidade, Lorn. — Não consigo evitar uma risada.

Ele resmunga e se ajusta sobre as caixas, rosnando alto quando alguma coisa estala nas suas costas.

— Quer dizer então que esse é o motivo pra tudo isso. Ajudar o velho Lorn a ter sua dose de guerra. — A raiva dele ainda não se dissipou, nem eu espero por isso. — Deixe-me retribuir o favor. O segredo hoje será usar de tato. Os Pretores, Legados e correligionários que você está tentando seduzir não são tolos. E não estão dispostos a lidar com pessoas tolas. Pliny lhes deu um argumento válido. Alinhou os interesses deles aos dele. Você precisa se opor a isso com argumentos semelhantes.

— Pliny é um sanguessuga — digo. — Um mentiroso tanto quanto você é um homem honesto.

— E isso o torna perigoso. Mentirosos fazem as melhores promessas. — Lorn brinca com o anel de grifo, sem dúvida nenhuma pensando na fera e nos netos na sua nave na frota. Ele trouxe toda a sua casa de Europa, três milhões de homens e mulheres de todas as Cores. “Eu não podia deixá-los lá”, disse-me ele quando notei o tamanho da frota dele ao partirmos daquela lua aquosa. “Octavia queimaria a casa enquanto estivéssemos ausentes.” Então eles deixaram suas cidades flutuantes e se puseram a caminho das estrelas. Os civis irão se separar da minha frota em breve, escondendo-se no infinito espaço preto entre os planetas. Suas três noras sobreviventes os guiarão.

— E Pliny tem o poder da Soberana por trás dele — continua Lorn. — Vai ser difícil dissuadi-los. Por falar na Soberana... Reparei que você tem algo que pertence a ela.

— A Pax?

— Não. Algo menor. Apesar de não tão menor assim. O Manchado que estava aqui.

— Ragnar?

— Se esse for o nome da coisa — diz Lorn.

— Esse é o nome dele — digo. — Ragnar seria um presente aos Julii por terem traído Augustus.

— Vi a coisa uma vez na arena da Cidadela. Assustador como algumas das criaturas que se escondem nos mares de Europa.

— Ele pode ser um Obsidiano, mas ainda assim é um homem.

— Biologicamente, quem sabe. Mas ele foi criado pra uma única coisa. Não se esqueça disso.

— Você trata seus próprios serviçais com delicadeza. Espero que você trate os meus da mesma maneira.

— Trato pessoas com delicadeza. Rosas, Marrons, Vermelhos são pessoas. Seu Ragnar é uma arma.

— Ele me escolheu. Ferramentas não escolhem.

— Faça do jeito que achar melhor, mas saiba as consequências. — Lorn dá de ombros e murmura mais alguma coisa baixinho.

— Diga o que você deseja dizer.

— Você encontrará a ruína porque acredita que exceções à regra produzem novas regras. Que um homem mau pode se livrar dos adornos da maldade só porque você quer que ele o faça. Homens não mudam. É por isso que matei o rapaz Rath. Aprenda essa lição agora pra que não seja obrigado a aprendê-la mais tarde com uma faca nas costas. As Cores existem por um motivo. Reputações existem por um motivo.

Pela primeira vez, ele parece pequeno e velho aos meus olhos. Não são suas rugas. É o que ele diz. Ele é uma relíquia. Ideias como as dele pertencem à era que estou tentando destruir. Ele não tem como evitar acreditar no que acredita. Ele não viu o que eu vi. Ele não vem de onde eu venho. Ele não teve nenhuma Eo para empurrá-lo, nenhum Dancer para guiá-lo, nenhuma Mustang para lhe dar esperança. Ele cresceu numa Sociedade onde o amor e a confiança são tão escassos quanto a grama nos dejetos de Helion. Mas sempre quis ambos. Ele é como um homem plantando sementes, observando-as crescer e se transformar em árvores apenas para os seus vizinhos cortá-las. Dessa vez será diferente. E, se tudo der certo, devolverei a ele um neto.

— Você já me ensinou no passado, Lorn. Sou um homem melhor por conta disso. Mas agora é minha vez de te ensinar. Homens podem mudar. Às vezes eles têm que fracassar. Às vezes eles têm que saltar. — Dou um tapinha no joelho dele e me levanto. — Antes de você morrer, vai perceber que foi um erro ter matado Tactus, porque você nunca lhe deu a chance de acreditar que era um bom homem.

Encontro Ragnar deitado no chão na unidade freezer, em casa na amarga friagem. Ele está sem camisa, de modo que posso ver os assustadores ângulos do seu corpo tatuado. Runas por toda parte. Proteção nas costas. Malícia nas mãos. Mãe ao longo do pescoço. Pai nos pés. Irmã atrás das orelhas. As misteriosas marcas cranianas de um Manchado sobre o rosto.

— Ragnar — digo, sentando-me. — Não está muito a fim de companhia, está?

Ele sacode a cabeça, o rabo de cavalo branco se enrolando no chão. Olhos como manchas de piche me miram, medindo-me. Segundos olhos, tatuagens na parte de trás das pálpebras, são estranhos, pupilas como aquelas de um dragão ou de uma cobra, de modo que, quando ele pisca, sua alma animal enxerga o mundo ao redor.

Fico sentado, observando-o, imaginando como dizer o que quero dizer. Obsidianos são as mais alienadas das Cores.

— Ao me oferecer manchas, você está atado a mim. O que isso significa pra você?

— Significa que obedeço.

— De forma incondicional? — Ele não responde. — Se eu te pedisse pra matar sua irmã ou seu irmão?

— Você está me pedindo isso?

— É uma ideia hipotética. — Ele não entende a noção quando explico a ele.

— Por que plano? — pergunta ele. — Você faz o plano. Você decide. Eu faço ou não faço, não existe plano. — Ele avalia com cuidado as palavras que usará em seguida. — Mortais que fazem planos morrem mil vezes. Nós que obedecemos morremos apenas uma vez.

— O que você quer? — pergunto. Ele não se mexe. — Estou falando com você, Manchado.

— Querer. — Ele dá uma risada. — O que é querer? — O escárnio na sua voz vem de um lugar mais profundo do que nosso domínio desprovido de deus. Ele é um alienígena aqui porque criamos seres da espécie dele em mundos de gelo e monstros e antigos deuses. Recebemos aquilo pelo qual pagamos. — Você nomeou isso, então pensa que conheço isso. Querer.

— Não faça joguinhos comigo e eu não vou fazer joguinhos com você, Ragnar. — Espero um longo momento. — Devo me repetir?

— Ouros fazem planos. Ouros querem — ribomba ele devagar. Um tempo entre cada uma das sentenças. — Querer é seu batimento cardíaco. Nós da Todamãe não queremos. Nós obedecemos.

— De joelhos? — Ele não diz nada em resposta, de modo que continuo. — Você no passado foi acorrentado, Ragnar. Agora as correntes não pesam em você. Portanto... O que você quer? — Ele não responde. Será isso petulância? — Com certeza você quer alguma coisa.

— Você arrancou as correntes de outros e procura me prender com as correntes iguais às suas. Seus quereres. Seus sonhos. Eu não quero. — Ele diz isso mais uma vez. — Eu não sonho. Eu sou Manchado. Destinado pela Todamãe Morte a cumprir sua promessa. — Seu rosto não me mostra nada, mas sinto petulância no homem. — Você não sabia?

Eu o examino com cautela.

— Você dá a entender que é mais idiota do que é na verdade.

— Bom. — Ele estica o corpo com destreza, antes mesmo de eu ter tempo de me afastar. Que porra, ele é ágil. Ele saca uma faca e muito rapidamente corta a palma da mão. — Quando ofereci manchas, fiquei atado a você. Pra sempre. Até o nada.

Eu sei que esse é o jeito deles. E sei os horrores pelos quais ele passou para ganhar o título de Manchado. Ele não é um homem de juramentos parciais ou de medidas parciais. Ser um Obsidiano é conhecer a miséria. Ser um Manchado é ser a miséria. E é se dispor de um jeito na vida — servir seus deuses Ouros, como eu próprio, se tiverem sorte o bastante. Pegamos os fortes deles. Deixamos os fracos. Mandamos Violetas com tecnologia para realizar shows com raios nos altos das colinas. Semeamos a fome, depois descemos com comida. Mandamos pragas, depois os abençoamos com Amarelos para curar seus doentes e curar seus cegos. Mandamos Entalhadores criar monstros nos seus oceanos e grifos e dragões nas suas montanhas. E quando estamos insatisfeitos, destruímos suas cidades com bombardeios a partir da órbita. Fazemos de nós mesmos seus deuses. E então os trazemos para o nosso mundo para servir às nossas metas gananciosas. Nós queremos. Eles obedecem. Como Ragnar poderia algum dia ser o que eu necessito que ele seja?

— E se eu quisesse que você fosse livre?

Ele recua, os olhos expressando um profundo temor.

— Liberdade afoga.

— Então aprenda a nadar. — Ponho a mão no seu enorme ombro. Músculos como rochas por baixo da pele. — De irmão pra irmão.

— Não somos irmãos, nascido-no-Sol — diz ele, com a voz oscilante. — Você é mestre. Você não compreende? Eu obedeço. Você ordena.

Eu lhe digo que ele me escolheu para ser seu mestre. Eu não o peguei, como ele pensa. E foi ele, não eu, que comandou o pelotão de assalto que tomou a nave de Kellan au Bellona. Ele fez isso. Não havia nenhum Ouro a guiá-lo. Nenhum Ouro a fazer dele um líder. Mas isso apenas não é suficiente. O que Eo diria a ele? O que Dancer diria?

— Nossa Cor é a mesma — digo a ele. Ele não entende, de modo que corto meu dedo. O sangue vermelho escorre e o esfrego nos Sinetes pretos que marcam a cor dele nas suas mãos. Em seguida tiro o sangue dele e o esfrego sobre o ouro nas costas da minha mão.

— Irmãos. Tudo água. Tudo carne. Tudo feito da sujeira e destinado à sujeira.

— Não compreendo — diz ele de maneira temerosa, na verdade se afastando de mim até que o mantenho encurralado como uma criancinha. — Não somos a mesma coisa. Você é do sol.

— Eu não sou, não. Nasci a seis polegadas da sujeira. Ragnar Volarus, eu te libero do meu serviço, queira você ou não. Não permitirei que você seja acorrentado. Não permitirei que você seja conduzido. Você vai ficar nessa caixa de gelo até virar homem o bastante para decidir o que quer. Você pode dar um tiro na própria cabeça. Você pode congelar até a morte. Vá em frente. Mas, o que quer que você faça, será porque você escolheu fazê-lo. Talvez você escolha me seguir. Talvez você escolha me matar. O que quer que você decida, você precisa decidir por si mesmo.

Ele olha fixo para mim, com os olhos arregalados de terror.

— Por quê? — troveja ele. — Por que você me envergonha? Em todos os mundos, nenhum homem rejeitaria um Manchado. Eu escolhi me oferecer e você cospe em mim. O que eu fiz?

— Quando você se oferece, você também oferece seus irmãos e irmãs e outras pessoas à escravidão.

— Você não sabe — diz Ragnar, inflamado. — Nós vivemos pra servir. Se não servimos, os Ouros acabam conosco. Deixaremos de existir. Eu vi fogo chovendo do céu.

Séculos atrás, na Revolta Escura, os Ouros mataram mais de 90% da Cor dele. Exterminaram-nos como se estivessem eliminando uma população de predadores. Essa é a única história que eles conhecem. A história que damos a eles. Medo.

— A história dos homens não é divulgada a vocês, Ragnar. Os Ouros lhes ensinam que vocês sempre foram escravos. Que os Obsidianos existem pra servir, pra matar. Mas houve uma época antes dos Ouros em que os homens eram livres.

— Todos os homens? — pergunta ele.

— Todos os homens. Todas as mulheres. Você não nasceu pra servir os Ouros.

— Não — ribomba ele. — Você está me tentando. Você está jogando uma isca na minha frente. Já vi isso antes. Já vi falsas palavras que tinham a intenção de enganar. As verdadeiras palavras me são conhecidas, nos são conhecidas. Nossas mães as ensinam. “Tema e sirva os homens de Ouro. Ou eles virão com ferro do céu. Os Ouros o tratarão com ferro dos nascidos-no-Sol. Pois eles não são ligados pelo amor. Não são ligados pelo medo. Não são ligados à terra, mas ao céu e ao sol. Tema e sirva os homens de Ouro.”

— Eu não sirvo a eles.

— Porque você é um deles.

— E se eu te dissesse que não sou?

Ele olha fixamente para mim. Nenhuma resposta. Nenhum movimento. Nada. Apenas confusão. E então digo a ele. Digo a Ragnar naquele freezer o que Dancer me disse naquela cobertura. Nós fomos enganados.

— Eu tinha uma mulher — digo. — Eles a tiraram de mim. Eles a enforcaram. Eles me mandaram puxar seus pés pra que o pescoço dela se quebrasse e ela não sofresse. Eu me matei depois disso, depois de enterrá-la, deixando-os vencerem. Deixando-os me enforcarem. Eu me afoguei na tristeza. — Eu digo a ele como os Filhos vieram até mim. — E Ares me deu uma segunda chance, a mesma chance que você tem agora pra se erguer.

“Por setecentos anos temos sido escravizados, Ragnar. Seu povo. Meu povo. Temos definhado na escuridão. Mas virá um dia em que caminharemos na luz. Esse dia não virá em função da misericórdia deles. Não virá por destino. Virá quando corações corajosos se erguerem e escolherem romper as correntes pra viverem por mais. Você precisa escolher por si só. Você vai escolher o caminho espinhoso? Você vai escolher ser meu amigo? Você vai se erguer comigo? Ou vai seguir seu caminho como todos os que vieram antes de você sem jamais saber como tudo poderia ter sido?”

Eu parto depois disso. Eu não o obrigo a silenciar. Não exijo uma resposta. Dancer não exigiu nada de mim. Tive de fazer minha escolha. Se eu não tivesse feito, se tivesse sido forçado a fazer meu serviço, teria desistido mil vezes. Escravos não têm a bravura de homens livres. É por isso que Ouros mentem para baixoVermelhos e os fazem pensar que eles são bravos. É por isso que eles mentem para Obsidianos e os fazem pensar que é uma honra servir a deuses. Mais fácil do que a verdade. Contudo, basta apenas a verdade para fazer com que um reino de mentiras desabe.

Ragnar precisa se juntar a mim porque Vermelhos apenas não serão suficientes.


35

Hora do chá

Nosso disfarce na nave camelo se mantém enquanto nos aproximamos da frota ao redor da Estação Hildas, mirando o que era antes a nave capitânia de Augustus, mas que agora está em posse de Pliny. Invictus. RasgAsas voam em silêncio por nós requisitando códigos de autorização. Nossa piloto envia os códigos e somos escoltados para nos juntarmos a uma procissão de naves de suprimentos que se afunilam para entrar no hangar da Invictus como comerciantes em caravanas fazendo uma fila do lado de fora dos grandes portões de alguma cidadela no deserto. Canhões nos acompanham à medida que taxiamos.

Aterrissamos com um baque. A piloto abre as portas de popa da baia e eu e os meus saltamos da nave em direção ao piso do hangar. Em vez de saudar rebocadores Marrons como ela talvez esperasse saudar, a Doqueira Laranja levanta os olhos do seu datapad para ver um pelotão de guerra com armaduras completas. Armados até os dentes. Sem hesitação, ela se senta, não demonstrando nenhuma vontade em fazer parte disso.

Sevro ri e lhe dá um tapinha na cabeça.

— Mais sábia do que os Ouros.

Um circo de naves preenche a baia. Luzes refulgem dos altos tetos. Laranjas e Vermelhos perambulam pelo local. Tochas de soldadura crepitam de encontro aos cascos. Homens e mulheres gritam uns com os outros. Meus companheiros me seguem, caminhando pelo hangar na direção dos elevadores onde poderemos acessar o resto da nave.

À medida que andamos, o silêncio se espalha como fogo-fátuo. Tochas de soldadura param de crepitar. Os homens não se dirigem mais uns aos outros. Eles apenas se encaram. Avanço na dianteira com Lorn. Mustang e Kavax au Telemanus nos flanqueiam. Roque segue com Sevro e Daxo. Victra vem em seguida com os Uivadores. E então, atrás de todos eles, como uma espécie de gigantesco pastor branco, vem Ragnar.

Ele escolheu se juntar a nós e sair do freezer. Trocamos olhares e, num único menear de cabeça, sei que tenho um novo general para a rebelião. Eu inflo de confiança.

Nem uma alma protesta acerca dos nossos movimentos, embora saibam, em função da nossa vestimenta, que não viemos para conversas pacíficas. Minha armadura é preta. Entalhada com leões rosnantes. Um fino pulsoEscudo tremeluz sobre ela. No meu braço esquerdo, minha égide é ativada, sua opaca superfície azul sorvendo a luz. Minha lâmina branca desliza no braço. Nossas botas emitem o som de granizo batendo nos deques de metal. Despacho Pedrinha para que ela mande seu esquadrão de Verdes esmagarem o sistema de comunicação da nave.

Um Cobre nos vê e faz um gesto no sentido de digitar algo no seu datapad. Ragnar se aproxima dele, toca no seu ombro com força suficiente para empurrar o homem e deixá-lo de joelhos.

— Não.

Entramos no elevador e nas entranhas da nave sem que um tiro seja desferido. Vamos de elevador até o deque um acima do nível de comando. As portas do elevador se abrem, deixando-nos cara a cara com um esquadrão de fuzileiros Cinzas.

— Capitão, você deve acompanhar Virginia au Augustus até a baia de engenharia — digo ao Cinza. Seus olhos apreciam a gravidade da situação; depois de uma reles hesitação, ele faz uma saudação. Seus homens confusos caem atrás de Mustang e dos Telemanus enquanto estes avançam num trote.

O alarme da nave começa a soar.

Os Uivadores se dirigem aos motores e aos sistemas de suporte vital enquanto minhas próprias forças continuam a subir mais três deques, encaminhando-se não ao deque de comando, onde Pliny está recebendo seus novos aliados, mas à prisão. Roque, Victra, Lorn, Sevro e Ragnar deslizam pelas portas, subjugando os guardas antes mesmo de eu entrar.

Os prisioneiros, uns quarenta Inigualáveis Legalistas de Augustus, estão confinados em pequenas celas de durovidro. Sevro passa por cada uma delas, libertando os homens e as mulheres com uma datachave à medida que segue em frente.

— Agradeça ao Ceifeiro — diz ele a cada um dos presos, repetindo a frase quatro vezes para uma gigantesca Inigualável idosa até que ela por fim percebe que só será libertada se participar do joguinho proposto por ele. Cada um deles revira os olhos e diz obrigado.

— Que Inigualável boa, bizarramente alta e decrépita você é. Excelente — diz Sevro, e deixa a mulher sair. — Lorn! Encontrei uma possível parceira de cama. — Ele faz uma pausa enquanto se aproxima da jaula de vidro do Chacal.

— O que é isso que estou espionando com meu olhinho? — tripudia alegremente Sevro. — Espere um pouco! Estou de novo com dois!

— Deixe-me sair — responde o Chacal, enfático. — Não vou participar do seu joguinho, Duende.

— Agradeça ao Ceifeiro. E meu nome é Sevro. Você sabe disso.

O Chacal revira os olhos.

— Obrigado, Ceifeiro.

— Curve-se como um bom serviçal.

— Não.

— Deixe-o sair e pronto — resmunga Lorn.

— Ele precisa participar da minha brincadeira! — diz Sevro. — O cabeça de merda só vai sair depois de brincar bonitinho. Vou dar uma charada pra ele, então. O que é que eu tenho aqui no meu bolso?

Fico cansado do jogo, então, por trás dele, aponto para o meu olho.

— Um olho — diz o Chacal.

— Maldição, quem te falou?

Roque pega a chave da mão de Sevro e a passa sobre o console da cela. O Chacal se junta a nós.

— Vê se cresce, Sevro — murmura Roque.

— Qual é a droga do seu problema, afinal de contas? — pergunta Sevro. — De qualquer maneira, a gente precisa gastar tempo. Não posso me divertir um pouco?

Gastamos nosso tempo para que Pliny possa temer nossas ações. Ele precisa desconfiar da lealdade da maioria dos membros da tripulação. Mas, sem dúvida nenhuma, ele possui um contingente de soldados comprados e pagos a bordo. Mercenários, muito provavelmente. Pliny vai se esconder atrás deles como se fossem um escudo.

— Onde está seu pai? — pergunto ao Chacal.

— Não sei — diz ele. — Não acredito que ele esteja na nave. Minha irmã chegou em segurança até vocês?

— Ela nos encontrou.

— Que bom — diz ele, virando-se rapidamente para cumprimentar Lorn. — É um prazer, Arcos. Meu pai me proibia de ler suas explorações quando eu era criança. Mesmo assim eu conseguia. As Histórias do Velho Lado-de-pedra me mantinham acordado até tarde da noite.

— Assim como seu desempenho no Instituto — responde Lorn com um sorrisinho para mim. — Eu tinha medo de fechar os olhos depois de ver sua campanha.

O Chacal dá uma gargalhada.

— Parece que sua missão em Europa foi um sucesso, Darrow.

— Eles caíram na armadilha como esperávamos. E Aja escapou.

— Então vamos consertar esse problema e seguir com nossa guerra.

Roque olha ora para mim, ora para ele, talvez notando a familiaridade com a qual conversamos. Mais uma coisa que nunca contei a ele. O hiato se amplia.

Nós nos encontramos com Mustang na cozinha dos baixaCores durante a hora do almoço. Centenas de taifeiros e eletricistas Laranjas se misturam com trabalhadores fabris Vermelhos e zeladores Marrons. O zumbido da conversa e o barulho das bandejas de plástico nas mesas de metal cessam assim que Ragnar entra na cozinha. Um silêncio mortal, exceto pelo zelador Marrom que grita a plenos pulmões. Seus camaradas tapam-lhe a boca na mesma hora.

Ragnar anda até o centro do recinto e mexe uma das mesas sem esperar que os baixaCores se levantem. Soltando-a das suas dobradiças, ele a arrasta ao longo do piso de metal com um ruído estridente, baixaCores ainda sentados nos banquinhos atados às mesas. Eles permanecem imóveis, olhos imensos e aterrorizados e absolutamente confusos diante da visão do meu pelotão de cinquenta Ouros.

Os Telemanus seguem Ragnar, carregando entre pai e filho um dispositivo circular de metal com um metro de espessura por dois de diâmetro — o propósito da sua incursão à baia de engenharia. Seus braços estão cobertos pela armadura, mas as veias do pescoço estão inchadas sob o peso. Mustang os guia, olhando para o seu datapad.

— Aqui — diz ela. Eles soltam o objeto onde ela indica. Os Cinzas os seguem, carregando uma enorme unidade de bateria que depositam em cima de uma mesa próxima.

— Uivadores, façam barulho — digo no meu comunicador.

— Perdoe-me. Com licença. Desculpe — diz Pedrinha, balançando as mãos gorduchas. Ela pega um cabo na unidade de bateria e o liga ao disco.

Há um barulho de estalo quando os alto-falantes da nave são ativados.

— Pliny — chama uma voz com suavidade. Olho ao redor em busca de Sevro e o vejo num terminal com dois dos Verdes.

— Sevro! — gritamos Mustang e eu.

Ele levanta um dedo para que esperemos.

— Ele está no comunicador — matraqueia um dos Verdes com sinceridade. — Só um segundinho.

— Caro Pliny — canta Sevro no comunicador.

Se seu coração está acelerado

E sua calça molhada

É por ter o Ceifeiro chegado

Pra receber sua dívida não paga.

Ele canta isso três vezes até que Ragnar joga uma mesa no console. Fagulhas voam por todos os lados. Sevro levanta sem pressa os olhos para a mesa que pende sobre sua cabeça. Ela não o acertou por uma questão de centímetros. Ele gira o corpo.

— Que maldita merda é essa que você fez, seu troll montanhoso e exagerado?

— Rima... Urghhhh! — Ragnar emite um rosnado desconfortável.

— Nós o encontramos — murmura Mustang quando nossos olhares se cruzam.

— Qual deles? — pergunto enquanto Sevro xinga o Manchado de todas as formas possíveis e imagináveis. Acrescentando o dedo médio para garantir.

— Você grita como uma... como uma galinha — diz Ragnar em resposta.

— Ele não pode me insultar desse jeito — diz Sevro, estupefato. Ele olha para mim. — Controle esse cara.

Lavo minhas mãos para isso.

— Se eu puder sugerir que continuemos — diz Lorn.

— Certo. Rostos sérios, todo mundo. — Capacetes deslizam de armaduras para cobrir nossos crânios. Vejo leituras térmicas, níveis de força no display digital. — Ótimo — digo a Mustang.

Ela ativa a perfuratriz térmica da naveVentosa. Sua função é cavar um buraco através do casco externo de uma nave e criar uma fenda grande o suficiente para que um pelotão de abordagem penetre. Portanto, escavar o chão de uma nave não é nada. E estamos apenas um deque acima das salas de comando. Subo em cima da perfuratriz.

Impulso é tudo para um Mergulhador-do-Inferno, para empreendimentos militares, para a vida. Continue se movendo e que alguém ouse entrar no seu caminho.

— Sabe aquilo que eu disse antes? — pergunta-me Lorn.

— Sobre usar o tato? — pergunto.

Ele ri maldosamente por trás da barba.

— Dane-se o tato. Toque o terror neles.

Olho para Mustang.

— Queime.

Ela aperta um botão. A perfuratriz refulge em vermelho. O calor irradia em mim. Espalha-se ao longo do chão. BaixaCores se dissipam, abandonando suas refeições, fugindo do recinto à medida que o chão cede e se dissolve como areia escorrendo por uma ampulheta. A perfuratriz cai pelo deque gotejante, indo na direção da sala de comando abaixo comigo sentado em cima dela. De novo um Mergulhador-do-Inferno, mesmo que apenas por um momento.

Ela bate de encontro ao meio da grande mesa de madeira de Augustus, enfeixando e impactando o piso de mármore como se fosse um meteoro, ainda derretendo. Corto o cabo de força com minha lâmina e me levanto em meio à fumaça e ao vapor e às chamas saltitantes enquanto a mesa pega fogo.

Uma centena de Ouros da Sociedade levanta os olhos para mim. Pretores, Legados, Judiciários e cavaleiros de poderosas casas se levantam com suas lâminas empunhadas. Todos leais a Augustus, no passado. Todos agora sob as asas de Pliny. Seguindo o vento, como eles dizem.

E lá está ele, na cabeceira da longa mesa; seu rosto empalidece rápido. O belo e inteligente Pliny. Um olho lhe resta, o outro exibe um temporário substituto biônico. À sua direita está sentada uma das Fúrias da Soberana, a política Moira. Comparada a Aja, ela é uma mulher gorducha e massuda. Mas seu sorriso doce é também tão sinistro quanto a lâmina da sua irmã. Ao lado dela se encontra um Cavaleiro Olímpico, o Cavaleiro da Tempestade, das Ilhas Japonesas da Terra.

— Meus bons-homens! — berro através do amplificador de voz no meu capacete. — Vim atrás de Pliny. — Salto da perfuratriz, o capacete se retraindo para o interior da armadura de modo que eles possam ver meu rosto. Ando na direção dele. Meus amigos me seguem buraco adentro. Arcos primeiro. Depois Mustang e Sevro.

— Você disse que ele estava morto! — rosna alguém à minha esquerda, com a lâmina parcialmente empunhada.

— Lorn au Arcos? — murmura um outro. Seu nome explode no meio do recinto enquanto Sevro e Roque guarnecem as portas que levam à sala.

— E kavax au telemanus! — ribomba Kavax tresloucadamente enquanto aterrissa. Imagino que Pax tinha de ter aprendido isso em algum lugar.

— O Ceifeiro não está morto — diz Mustang, saltando da perfuratriz. — Nem eu. Nem meu irmão. E estamos aqui pra reivindicar o que pertence ao nosso pai.

Esses Inigualáveis não sabem o que fazer.

— Mentirosos! — grita Pliny. — Vocês traíram o ArquiGovernador. Agarrem os traidores!

Lorn faz um simples pronunciamento.

— Se alguém ultrapassar a marca de dois metros de distância em relação a Darrow, vou matar todos nesta sala.

Eles não parecem ansiosos para testar se ele está blefando ou não. Os homens por entre os quais eu ando saltam para trás. A reputação de Lorn entalha um buraco para mim que me leva direto a Pliny. Não diminuo minha passada.

— Pliny — digo. — Precisamos ter uma conversa.

— Matem-no! — berra Pliny. — Matem o Ceifeiro.

Um jovem avança e morre quando seu vizinho o apunhala nas costas. O vizinho olha para Lorn com temor.

— Dois vírgula três metros — diz Lorn. — Perto.

— Matem-no! — grita Pliny inutilmente. — Ele não passa de um garoto!

Falo em voz baixa, mas todos conseguem ouvir.

— Pliny au Velocitor, você é um traidor do ArquiGovernador Nero au Augustus, você conspirou pra destruir a casa dele, pra se casar à força com a filha dele, pra matar o filho dele e pra traí-lo à Soberana que se pôs contra ele. Seu mestre o criou e você tentou destroçá-lo. Você traiu a confiança dele pra obtenção de nada além do que ganhos pessoais. Pior de tudo, você fracassou.

— Detenham-no! — berra agora Pliny, gesticulando ensandecido para mim. — Moira!

Moira sussurra com o Cavaleiro da Tempestade e ambos dão passos para o lado.

— Você deveria estar morto — murmura Pliny. — Aja disse que te mataria em Europa.

— E quem você conhece que pode me matar? — digo, aquela ridícula raiva dos Ouros crescendo de intensidade na minha voz para poder impressionar todas aquelas centenas de almas. — O Chacal fracassou. Antonia au Severus-Julii fracassou. Os Inspetores Apolo e Júpiter fracassaram. Cassius au Bellona fracassou. Karnus fracassou. Cagney fracassou. Aja au Grimmus e seus Pretorianos fracassaram. — O carrasco fracassou. As minas e as víboras-das-cavidades fracassaram. — E agora você está fracassando.

É quando deslizo para a frente, com mais velocidade do que uma víbora-das-cavidades desferindo um ataque, e lhe dou um tapa na cara. Ele é arremessado para fora do seu assento como uma folha açoitada pelo vento, tombando em cima de uma Ouro que se encontrava a seu lado. Ela cospe nele e se move na minha direção.

— Você é um verme que se achava uma serpente só porque rasteja. Mas seu poder não era de verdade, Pliny. Era tudo um sonho. Chegou a hora de acordar.

Pliny se levanta desajeitadamente, afastando-se de mim. Seus cabelos bem penteados estão uma confusão, e uma vermelhidão incha na sua bochecha direita. Giro ao redor dele e o esbofeteio mais uma vez, agora com mais força. Ele está sobressaltado. Não sabe o que fazer. Ele não foi tirado da cama durante o primeiro dia no Instituto e espancado por Obsidianos. Ele não percorreu as praias cobertas de neve à frente de uma coluna armada. Ele não passou fome. Então, agora, tudo o que ele consegue fazer é bracejar e chorar.

Eu o seguro com minhas mãos, levanto-o bem alto no ar. Mas não o machuco mais. Não vou degradar o momento usando de crueldade como Karnus ou Titus fariam. Minha condescendência é minha arma. Recoloco Pliny na cadeira do ArquiGovernador. Passo o dedo no seu broche de libélula como que para poli-lo. Endireito-lhe os cabelos como se fosse uma mãe carinhosa. Dou-lhe um tapinha na bochecha molhada de lágrimas e lhe estendo a mão, que contém meu anel da Casa Marte.

Ele o beija sem que eu lhe peça para fazê-lo.

— Adeus, Pliny. Deixo você com seus amigos.

Eu me afasto, os olhos de todos esses Inigualáveis me seguindo, abandonando Pliny. Ouço um som gorgolejante e não me viro, porque sei qual é o som que as lâminas fazem ao matar. Eles nem esperam. Pliny está esquecido.

Esses Inigualáveis batem no peito em saudação a mim. Os monstros. Eles vão com o vento, caçando o poder. Mas não se dão conta de que o poder não muda de mãos. O poder é resoluto. É a montanha, não o vento. Mudá-lo tão fácil é perder confiança. E confiança é o que tem me mantido vivo. Confiança nos meus amigos, e a confiança que eles têm em mim.

A Soberana sabe disso. É por isso que ela mantém suas Fúrias por perto. Elas morreriam por Octavia, como meus amigos morreriam por mim. Porque, no fim, o que importa todo o poder em todos os mundos se seus amigos mais próximos podem te trair? O pai da Soberana aprendeu isso quando sua filha lhe cortou a cabeça. Pliny aprendeu ao preço da sua vida. Eu me esqueci disso, distanciei-me dos meus amigos e quase perdi tudo quando Tactus sentiu-se ofuscado e alienado de mim como se sentiu em relação aos seus irmãos. Esse é o motivo pelo qual retrocedi com Victra, pelo qual contei a verdade a Ragnar, pelo qual devo me retratar com Lorn e com Roque.

Confiança é o motivo pelo qual os Vermelhos terão uma chance. Somos um povo afeito a canções e danças, a famílias e a parentes. Essas pessoas são aliadas apenas porque pensam que devem ser.

Olho para elas agora e sei que são tão duras e rígidas que se quebrarão e se despedaçarão umas contra as outras, não por minha causa, mas pelo que são.

Flutuo nas minhas gravBotas, fazendo uma pausa para dizer:

— Digam a todos que possam escutar que o Ceifeiro navega pra Marte. E ele conclama uma Chuva de Ferro.


36

Senhor da guerra

— Poder é a coroa que come a cabeça — disse o Chacal para mim enquanto planejávamos a invasão. Ele falou em referência a Octavia. Mas a verdade vai mais fundo do que isso. Esses Ouros têm poder há muito tempo. Olhe como eles agem. Olhe o que eles querem. Eles dão saltos de alegria diante da possibilidade de uma guerra. Eles chegam de perto, de longe, naves a toda a velocidade para se juntar à minha armada quando descobrem que conclamei uma Chuva de Ferro, a primeira em vinte anos. Usei o Chacal para espalhar a notícia, junto com tomadas da queda de Pliny. Muitos deles são segundos filhos e filhas que não herdarão as propriedades dos pais. Fomentadores de guerra, duelistas, ávidos por glória. E cada qual traz seus atendentes Cinzas e Obsidianos. Os mundos da Sociedade esperam resfolegantes para ver o que acontecerá hoje. Se perdermos, a Soberana segue no poder. Se vencermos, uma guerra civil completa. Nenhum mundo pode se apartar.

Legiões marcham no interior da nave enquanto minha armada se reúne ao redor da lua-doca de Phobos. Carrego comigo minha lâmina recurvada como uma curviLâmina; torta e cruel, ela é o cetro. O anel de ferro da Casa Marte aperta meu dedo quando flexiono a mão e miro os portos de observação. O Pégaso balança encostado no meu peito.

Não consigo ver meu inimigo — os Bellona e boa parte das frotas locais da Soberana —, mas eles se encontram entre mim e meu planeta. O antigo Lorde Ash da Soberana está velozmente a caminho, vindo do Cerne para ajudar com sua Armada Cetro, mas ainda está a uma semana de distância. Ele não pode ajudar os Bellona hoje.

Meus Azuis observam a mim e aos meus generais da frota pessoal de Victra au Julii — que abandonou as forças da mãe —, da Casa Arcos, da Casa Telemanus e os correligionários de Augustus.

Marte está verde e azul e com pontinhos marcando as cidades protegidas por escudos. Coberturas brancas assinalam seus polos. Oceanos azuis se estendem ao longo do seu equador. Campos gramados junto com densas florestas cobrem sua superfície. Nuvens rodopiam em torno dele, um tecido de algodão para esconder suas resplandecentes cidades protegidas por escudos. E há canhões. Grandes estações nos desertos, ao redor das cidades, onde armastrilhos destruidoras de naves apontam para o céu.

Meus pensamentos mergulham bem abaixo da superfície do planeta. Imagino o que minha mãe estaria fazendo agora. Será que está preparando o café da manhã? Será que eles sabem o que está a caminho? Será que ao menos sentirão quando chegarmos?

Meus dedos não tremem nem mesmo com a proximidade da batalha. Minha respiração está equilibrada. Nasci numa família de Mergulhadores-do-Inferno. Nasci numa linhagem de poeira e labuta, nasci para servir os Ouros. Nasci para essa velocidade.

Contudo, estou aterrorizado. Mickey me entalhou para ser um deus da guerra. Mas por que me sinto como um menino nesta armadura boba? Por que quero ter mais uma vez cinco anos de idade, num período anterior à morte do meu pai, compartilhando a cama com Kieran, escutando-o falar enquanto dorme?

Eu me viro para ver os rostos dourados.

Essa raça — que bela monstruosidade. Eles carregam todas as forças da humanidade com exceção de uma. Empatia. Eles podem mudar. Sei disso. Talvez não agora, talvez não daqui a quatro gerações. Mas começa hoje o fim da Era Dourada. Despedace os Bellona, enfraqueça os Ouros. Leve a guerra civil para a própria Luna e destrua a Soberana. Então Ares ascenderá.

Não quero estar aqui. Quero estar em casa, com ela, com meu filho que jamais existiu.

Mas isso não é possível. Sinto a onda dentro de mim ir embora, expondo velhas feridas. Isso é para você, digo a ela. Para o mundo no qual você deveria ter vivido.

E então faço minha retribuição alimentando esses lobos.

— Nos últimos dias do outono — digo, a voz mais alta e mais ousada —, os Vermelhos que trabalham nas minas de Marte usam máscaras de demônios felizes para comemorar os mortos reivindicados pelo solo vermelho, para honrar suas memórias e subjugar seus espíritos. Nós Áuricos pegamos essas máscaras e fizemos delas nossas próprias máscaras. Demos a elas os rostos de lendas e mitos para nos lembrarmos de que não existe nenhuma malignidade, nenhuma bondade. Nenhum deus. Nenhum demônio. Existe apenas o homem. Existe apenas este mundo. A morte vem para todos. Mas como gritaremos ao vento? Como seremos lembrados? — Tiro uma das luvas e corto a palma da mão muito de leve. Cerro o punho até que o sangue cubra minha pele, e então pressiono a mão no rosto. — Torne seu sangue orgulhoso muito tempo depois de a morte levá-lo.

Uma pisada de pés. Apenas uma.

— Luna é a nova Terra. Ela nos governa e nos faz curvar e fazer mesuras. Nosso sacrifício significa o ganho dela. De novo, os fracos contêm os fortes. Depois de hoje, quando tomarmos as Mil Cidades de Marte, nossas fileiras incharão. Os Lordes Galileanos jurarão por nós. Os Governadores de Saturno curvar-se-ão pra nós. Netuno virá com naves e nos livraremos desse sanguessuga que é Octavia au Lune.

E faremos um rei tirano. Isso faz tanto sentido para eles. Não sei como. Um tirano por um tirano. Como eles acham inspiração nisso? Os homens sempre acharam.

Mais uma pisada.

— Cada momento hoje será captado pelos holoCams que demos a vocês. — Como se estivéssemos no Instituto e no momento em que tomei a Pax. Ideia do Chacal. — Cada momento será lembrado. Se vocês alcançarem a glória, ela será espalhada por todos os hcs em todos os mundos. Se vocês trouxerem vergonha pra si mesmos ou pra suas famílias, ela não desvanecerá com sua morte. — Olho para Ragnar, como se ele fosse meu carrasco. Lorn revira os olhos para o acento dramático. — Nós lembraremos.

Pisada.

— As cidades devem ser tomadas. Os Ouros que não se curvarem, mortos. Os baixaCores, protegidos. Não desabaremos as minas. Não estupraremos as cidades nem poluiremos os campos verdejantes. Estamos aqui pra capturar o butim de Marte. Não queremos tomar o cadáver de Marte. Ele é o lar de muitos de vocês, portanto façam mal apenas à praga que destrói o planeta por dentro. E quando a glória do dia estiver encerrada — quando vocês limparem o sangue das suas espadas e derem o uniforme pros seus filhos e filhas pra que eles se lembrem de que vocês fizeram parte de uma das maiores batalhas desde a Queda da Terra... lembrem-se, vocês fizeram seu próprio destino. Ele não foi dado a vocês pela Soberana. Ele não foi dado a vocês por um governante. Vocês os tomaram como nossos ancestrais tomaram os mundos. Nós somos os Segundos Conquistadores.

Agora há um rugido. Odeio como meu corpo treme diante da ideia de glória. Há algo profundo no homem que anseia por isso. Mas considero fraqueza, não força, abandonar a decência por esse estranho espírito mais sombrio.

Olho para o Chacal postado na lateral da ponte. Ele tem pouca importância neste dia. Ele fez seu trabalho trazendo todos esses homens e mulheres para cá. Ele sabotou as comunicações e semeou falsas informações, levando uma boa parte da ajuda da Soberana aos Bellona a se espalhar na caça a falsos boatos de elementos da minha frota que estariam se esgueirando para atacar Luna. Apenas uma artimanha. Minhas forças estão todas aqui.

— Você desempenha muito bem o papel de mestre dos fantoches — sussurra para mim o Chacal enquanto esperamos que os Brancos entrem na ponte atrás dos Ouros que se encontram à espera. Sevro dá uma corridinha para ficar mais perto de mim, como se para lembrar o Chacal qual é o lugar dele.

— A maior parte das cordas do fantoche foi feita por você. Nunca te agradeci — digo a ele em voz baixa.

Seu rosto liso forma rugas de irritação.

— A gente vai precisar ficar sentimental agora?

— Você ajudou Mustang a escapar. É por isso que Pliny te pegou. — Ele jamais mencionou isso, jamais se gabou ou usou isso como alavanca. Foi o simples ato de um irmão ajudando uma irmã. Dou de ombros. — E você tentou se esforçar ao máximo pra salvar Quinn. De repente você é um homem mais bem-intencionado do que imagina ser.

Ele dá aquela gargalhada que mais parece um latido.

— Duvido muito. Mas amanhã um traidor vai ser rei e uma Imperatriz Máxima vai ser traidora, então pode ser que homens perversos passem a ser virtuosos.

Olho para o porto de observação.

— Seus satélites estão prontos?

— Pro vírus? — Ele faz que sim com a cabeça. — Meus Verdes vão cortar todas as comunicações assim que você der a ordem. Por quinze minutos, tudo vai ficar quieto como a morte, pra todo mundo. As unidades de defesa regionais e globais deles não vão estar munidas de vigilância e de sensores. Tempo suficiente pra despedaçar grande parte das posições estáticas. — Ele olha para os seus pés, como se tivesse ficado envergonhado de repente. — Se puder, salve meu pai.

Sevro se mexe, perturbado com nossos sussurros.

— Eu salvarei.

Eu preferiria que Augustus apodrecesse para sempre num buraco no chão. Mas preciso dele assim que Marte for tomada. Apesar do que eu possa fazer, não sou Governador ou rei. Preciso da legitimidade dele, como Theodora me lembrou ontem à noite. Sem ela, não passo de um braço com uma lâmina.

— E você tem certeza sobre Agea? — pergunta ele. — Sobre o prêmio? Do contrário vai ser uma imprudência.

— Cem por cento — respondo.

— Bom. Bom. Nesse caso, desejo uma ótima sorte, Ceifeiro. — Ele se afasta.

— Já está me substituindo? — bufa Sevro, observando-o partir.

— Ele tem uma mão. Você tem um olho. Eu tenho um dedo.

As cerimônias prosseguem. Duzentos Ouros se postam de joelhos à medida que os Brancos caminham através das suas fileiras. Tento achar isso uma coisa estúpida e solene, todos esses homens e mulheres com seu pomposo silêncio e sua atenção à tradição. Mas é a história da humanidade no seu desenrolar. E há uma nobreza no momento.

Armaduras cintilam contra a luz artificial. Brancos etéreos vagam através das fileiras, donzelas virgens descalças em vestidos imaculadamente brancos, com adagas de ferro e láureas de ouro. Crianças Brancas carregam os estandartes dourados triangulares — um cetro, uma espada e um pergaminho coroados com uma láurea. Sinto mãos nos meus ombros.

Sinto o peso delas.

Dizem que essa era a maneira de os Velhos Conquistadores irem à guerra, com virgens de Branco ferindo-os com ferro. Elas tocam nossa testa com a láurea e cortam a palma da nossa mão esquerda com o ferro enquanto sussurram com suavidade no nosso ouvido:

— Meu filho, minha filha, agora que sangra, você não experimentará o medo, a derrota, apenas a vitória. Sua covardia escorre de você. Sua raiva queima intensamente. Levante-se, guerreiro e guerreira de Ouro, e leve com você o poder da sua Cor.

Então cada guerreiro e cada guerreira passa no rosto e no topo do seu capacete com rosto de demônio o sangue da palma da mão. Um a um nos levantamos em silêncio. Cada Ouro representa dez legiões. Essa é a tempestade que cairá sobre Marte numa torrente de metal. Milhões de Ouros, Cinzas e Obsidianos.

— Não estamos lutando contra um planeta. Estamos lutando contra homens e mulheres. Cortem as cabeças deles e seus exércitos desmoronam — Lorn lembra a todos.

A assembleia de guerreiros se levanta, com os rostos agora manchados de sangue, e juntos recitamos os nomes dos nossos principais inimigos.

— Karnus au Bellona, Aja au Grimmus, Imperador Tiberius au Bellona, Scipia au Talthe, Octavia au Lune, Agrippina au Julii e Cassius au Bellona. Esses nós queremos vivos.

Nos corredores dos meus inimigos, eles recitarão meu nome e os nomes dos meus amigos. Aquele que matar o Ceifeiro terá recompensa e fama. Caçadores individuais e grupos de matadores vasculharão os sinais dos nossos comunicadores atrás de mim. E em bandos eles descerão, alguns para batalhas individuais. Outros para matar sorrateiramente com uma bala de atirador de elite. Alguns nem mesmo participarão da batalha por Marte. Esses são mercenários Cinzas. Obsidianos libertos caçadores de recompensa. Cavaleiros de Vênus e de Mercúrio aqui apenas pela minha cabeça, usando os recursos e os soldados das suas famílias para ajudá-los a ir em segredo no meu encalço com o intuito de obterem a glória para si. O Chacal interceptou um comunicado indicando que três dos Cavaleiros Olímpicos estão aqui. Eles todos terão me observado, estudado minhas gravações, minhas vitórias, minhas derrotas. E eles conhecerão minha natureza, a natureza dos meus Uivadores. Mas eu não os conhecerei.

Que eles façam suas apresentações.

Estou mais interessado em me encontrar com Cassius. Pelo menos foi isso o que eu disse a Lorn. Mas ele sabe que isso não é verdade. Uma vergonha profunda queima em mim por ter gritado como um monstro para a família dele. Eu o derrotei com lisura, mas não podia ter gostado tanto disso como gostei. Às vezes imagino, caso ele tivesse sido criado como um Vermelho e eu como um Ouro, se ele não teria se tornado um homem melhor do que o homem que sou agora, e eu um homem pior do que o homem que ele jamais poderia vir a se tornar.

Por algum motivo, penso que poderia ter sido capaz de cometer as maiores vilezas. Talvez essa seja a culpa. Talvez esse seja o temor de uma vida em que eu jamais tivesse conhecido Eo. Não sei. Ou então seja o temor de saber o quão facilmente caio vítima do orgulho.

Meus guerreiros se dispersam de volta às embarcações das suas próprias famílias. Vigio o porto de observação à medida que meia centena de naves passam voando em direção à grande armada que reunimos. Embora saibam que estamos aqui agora, nossos inimigos não esperavam que chegássemos a Marte tão rápido.

Volto minha atenção aos comandantes que continuam ao meu lado. Orion conduzirá a Pax e Roque conduzirá a frota em conjunção com Victra. Aprovo o plano deles. O resto do meu círculo pessoal permanece comigo, com exceção de Mustang, que se dirige aos hangares.

Eu me aproximo para dar um tapinha nos ombros dos Telemanus.

— Pax brilharia intensamente hoje. — Sophocles se enrosca nos tornozelos de Kavax.

— Meu irmão sempre brilhou intensamente — diz Daxo com candura. — Bobalhão, barulhento, tentando se parecer com papai. Mas sempre brilhando intensamente. Vamos matar Tiberius au Bellona, não se preocupe.

— Pareço estar preocupado?

Ambos os titãs meneiam as gigantescas cabeças. Kavax entrou nessa batalha quieto. Ele não consegue falar, exceto para murmurar alguma coisa, de modo que Daxo continua a falar por ele.

— Cuide-se, Ceifeiro. — Ele olha de relance para o Chacal. — Sabemos que se trata de um casamento de conveniência, mas não confie nele.

— Você sabe que não confio.

— Não confie nele — repete Daxo.

— Confio apenas nos amigos. — Nós nos despedimos.

A testa de Orion está vincada, imersa que está em pensamentos. Pergunto-lhe qual é o problema quando ela se curva sobre o display do scanner. Ela está avaliando a disposição do inimigo no sincronizador.

— Eles notaram nossa entrada em órbita uma hora atrás. Ficamos vulneráveis enquanto nos posicionávamos, mas mesmo assim eles permaneceram em formação defensiva sobre Agea.

— Esquisito — concorda Roque. — Eles cedem grande parte do planeta sem luta. Talvez fosse melhor orientar sua descida mais pro sul...

— Quero Agea — digo com frieza.

— Vamos te lançar no meio da confusão, meu irmão. A capital pode esperar. Tome as outras cidades e podemos tomá-la sem um ataque. Por que essa pressa ensandecida?

— Se tomarmos a capital, as outras cidades caem.

— E muitos homens morrem.

— Isso é guerra, Roque. Confie em mim nesta aqui.

— É sua guerra — diz Roque, com uma saudação. Depois de receber um olhar zangado de Victra, ele me puxa para perto de si. — Que a sorte esteja convosco, Primus. — Ele me beija ambas as bochechas, surpreendendo-me.

— Foi uma longa estrada até agora — digo com cautela.

— E temos muitos quilômetros ainda pela frente até podermos dormir.

— Meu irmão. — Seguro sua nuca e trago sua testa para junto da minha. — Eu sinto muito. Sinto muitíssimo. — Sacudo a cabeça. — Por Quinn. Pelo baile de gala. Por mil vacilos que dei com você. Você tem sido um grande amigo meu. — Afastando-me, evito os olhos dele. — Eu deveria ter dito isso antes. Mas tinha medo.

— Em que mundo você teria medo de mim? — pergunta ele.

Balanço a cabeça.

— Perdoe-me por tudo.

— Mais tarde vamos acertar isso. — Ele me dá um tapinha no ombro. — Boa sorte.

Eu o deixo. Lorn e eu vamos para a parte externa da ponte, onde nossos caminhos divergem para corredores diferentes. Ele está barbeado para a guerra e usa sua velha armadura de Cavaleiro Raivoso. Está com uma aparência brilhante mas com um cheiro terrível. Esses cavaleiros velhos são como os Uivadores. Supersticiosos e avessos a lavar seu equipamento por temer que qualquer que seja a sorte que os tenha mantido vivos até hoje escorra para o ralo junto com a água.

— Recebi comunicados de muitos velhos amigos — diz Lorn. — Eles estão do lado dos Bellona.

— Todos homens e mulheres velhos?

— Os velhos já suportaram muitos anos dos jovens. — Há um brilho nos seus olhos. — Mas eles me fazem perguntas a seu respeito. Eles me perguntam se o jovem líder guerreiro tem mesmo quatro metros de altura. Ele é mesmo seguido por um bando de lobos? Ele é um destruidor de mundos?

— E o que você diz a eles?

— Eu disse que você tinha cinco metros de altura, que você é seguido por um anão e um gigante e que come vidro com ovos. — Nós dois rimos. — Não gosto de você ter me trazido pra cá. Não acredito que você esteja sendo o homem que deseja ser. Se você sobreviver a isso e eu não, seja melhor do que o homem que enganou o amigo dele.

Uma dor obtusa cresce atrás dos meus olhos. O que ele está fazendo é uma súplica. Não para que eu me sinta culpado, mas porque ele realmente se importa comigo. Eu deveria ser melhor. Quero ser. Serei melhor no fim. Mas com os meios para alcançar esse fim... será que sou apenas como todas as outras almas perdidas? Será que sou apenas uma nova Harmony? Um novo Titus?

— Eu prometo — digo, sendo sincero mesmo enquanto sei que vou continuar ferindo-o cada vez mais.

— Bom. Bom. — Ele estala o pescoço rijo. — Então, depois de Agea, você vai tomar o hemisfério norte. Eu vou tomar o sul. E vamos nos encontrar aqui depois pra tomar um uísque. Certo, meu bom-homem?

Balanço a cabeça, aquiescendo, mas mesmo assim ele não se separa de mim.

Ele olha fixamente para mim por um momento e em seguida baixa os olhos, incapaz de me encarar. A emoção adensa a voz dele.

— Sempre que eu voltava pra minha mulher, dizia-lhe que os meninos dela tinham morrido bem. — Ele mexe o anel no dedo. — Isso simplesmente não existe.

— Aquiles morreu bem.

— Não. Aquiles deixou seu orgulho e sua raiva consumi-lo e, no fim, uma flecha atirada por um Pixie acertou-o no pé. Há muito pra se viver além disso. Esperemos que você envelheça o suficiente para perceber que Aquiles era um maldito imbecil. E somos ainda mais imbecis por não percebermos que ele não era o herói de Homero. Ele estava fazendo um alerta. Eu me sinto como os homens que no passado sabiam disso. — Ele dedilha a lâmina. — É um ciclo. A morte gera a morte que gera a morte que gera a morte. Essa tem sido minha vida. Eu... eu acho que não devia ter matado o rapaz. Aquele seu amigo.

— Por que você está dizendo isso?

— Porque vejo a maneira como o resto deles olha pra você. Acho que fariam qualquer coisa por você, porque você acredita neles.

Eu me mexo subitamente, curvando-me para beijá-lo na bochecha desgastada pelo tempo, da maneira que os Vermelhos beijam pais e tios.

— Tactus não o teria culpado. Nem eu. Você tem um outro neto pra criar. Talvez possa ensinar a ele a paz que não conseguiu ensinar a mim. Então, faça um favor a nós dois, não morra, meu velho.

— Ha! — O velho lorde grisalho ri, falseando a princípio. Em seguida com mais vigor enquanto gira no calcanhar. — Ha! Ainda não nasceu o homem que vai matar o velho Lado-de-pedra! — Seus velhos cavaleiros, homens e mulheres ásperos, flanqueiam-no, nenhum deles com menos de setenta anos, mas reconheço todos os rostos deles das histórias da Rebelião da Lua e outras grandes guerras. Os amigos e ex-camaradas destes esperam por nós em Marte.

Parto em direção aos hangares, dizendo um rápido adeus a Victra. Ela me chama. Sinto Roque nos observando. Ela parece estar prestes a dizer alguma coisa. O sol vermelho da sua armadura preta chora sangue. Uma pintura de guerra preta lhe cobre o rosto em listras diagonais. Seus olhos queimam nele, apesar de vulneráveis e gentis ao procurarem os meus em busca de um reflexo do que ela está sentindo.

— Depois de hoje, o nome Julii vai significar mais do que dinheiro — digo. O plano dela vai mudar a maré da batalha espacial.

— Não ligo pra isso. — Seus dedos tocam meu peitoral e vejo seus lábios deslizarem agudamente, formando aquele sorriso maldoso. — Se você morrer, quero que seu último pensamento seja que enorme erro foi ter passado todas aquelas noites sozinho no seu camarote na Academia. — Ela dá uma batidinha na minha armadura, emitindo um leve zunido. — Que bagunça linda poderíamos ter feito um com o outro.

Theodora espera por mim no corredor, olhando-me daquele jeito.

— Ah, cale essa boca.

— Ela o comeria e depois o cuspiria, dominus.

— Por que você não está no camarote, onde é seguro?

— Não é seguro em lugar algum. — Theodora faz um gesto para que eu curve a cabeça. Ela põe um clipe de uma pequena flor vermelha, do tipo que uma jovem usaria, nos meus cabelos. — Todos os cavaleiros precisam de símbolos — diz ela, lacrimejando. — Não seja herói em excesso. Você é inteligente demais pra morrer numa batalha estúpida.

Ela vai embora, apertando o braço de Ragnar ao passar. Eu não sabia que eles eram íntimos. Ragnar me segue, mantendo-se atrás como uma hesitante sombra enquanto Sevro e eu conversamos a caminho dos hangares.

— E então, fez? — pergunto a Sevro.

Ele dá de ombros.

— Mandei a coisa.

— Você falou com ele?

— Um dropCache de holoRede — diz ele. — Mando uma mensagem. Eles recebem. Se tivermos sorte.

— Você quer dizer que não sabe se eles receberam a coisa?

— Como eu poderia saber? Eu disse que mandei. Segui o protocolo.

Xingo baixinho. Ele assobia aquela droga de canção que cantou para Pliny. Eu lhe dou um tapa. Viramos uma esquina e passamos por seis dúzias de tropas de operações especiais Cinzas se encaminhando aos tubos em ritmo de corrida. Seis Obsidianos seguem atrás deles, abrindo a palma das mãos para Ragnar e para mim em sinal de respeito.

— Viu o que eles estavam usando? CurviLâminas nas armaduras. — Sevro ri para mim. — A coisa se espalha.

— Você já pensou no que vai acontecer se seu pai estiver lá? — pergunto.

— Não — diz ele, perdendo o sorriso. — Não pensei, não.


37

Guerra

A baia de hangar dianteira é gigantesca. Uma imensa caverna no ventre da minha nave repleta de homens e mulheres de todas as Cores. Seiscentos metros de comprimento. Ao longo da sua lateral esquerda se encontram centenas de cospeTubos. Cada fileira é acessada por uma rede de gigantescos caminhos elevados por onde homens em couraçasEstelares podem caminhar. Milhares estão prontos para a dispersão, agrupados de acordo com sua legião.

O alarme para estações de batalha soa ao longo da nave. A voz de Orion é irritante no intercomunicador. Do outro lado do casco, caberá a Roque, agora o mais jovem Imperador em cem anos, dividir nossa armada em frotas para enfrentar os Bellona sobre Marte. Esquadrões de rasgAsas e vespas avançam aos montes. Azuis voando em direção à morte. Líderes de esquadrões Ouros no centro. Todos com a função de cavar um buraco grande o suficiente para que a naveVentosa infeste os cascos inimigos. Alguns Pretores chamam seus soldados para combater ondas inimigas que conseguem subir a bordo das suas naves. Outros lançam ataques completos. Trata-se de uma aposta arriscada de ambos os lados. Não dá nem para pensar nisso. Victra, Roque e Orion têm essa responsabilidade. Eu tenho a minha.

Faço uma pausa, olhando para o hangar.

— E se Ares não existir mesmo? — pergunto a Sevro em voz baixa.

— Que história é essa, cacete? — pergunta Sevro.

— E se isso não passar de um truque dos Ouros? Alguém mexendo os pauzinhos pra fazer a Sociedade seguir pelo caminho que eles precisam que ela siga. E se tudo isso for uma mentira?

Sevro olha para mim por um longo tempo, então salta sobre uma balaustrada e uiva a plenos pulmões na direção da baia de hangar abaixo.

A baia uiva de volta.

O som vem dos Cinzas. Vem dos Obsidianos, dos Laranjas. Vem dos Vermelhos trabalhando nos tubos. E vem dos Ouros que requisitaram transferência para a minha nave.

— Isso não é mentira nenhuma.

E é então que vejo os estandartes das legiões caírem e serem substituídos por algo novo. Não são mais vistas as pirâmides da Sociedade. Não são mais vistos a láurea e o cetro e a espada e o pergaminho. Não é mais visto o leão de Augustus. Em vez disso tudo, os altos estandartes dourados que as legiões carregam para a batalha possuem no cimo lobos e curviLâminas.

Essas legiões são minhas.

Sinto alguma coisa zumbindo naqueles que estão ao meu redor. Uma espécie de fanatismo físico. Não zumbia nos Ouros dessa maneira, em hipótese alguma. Os Ouros me amam por causa da vitória e da glória que eu lhes trago. Essas outras Cores me amam por algo bastante diferente, algo muito mais potente. Qualquer outro Ouro conquistador teria desovado no espaço a população desta nave, mas não fiz isso porque eles me escolheram em vez de terem escolhido os Ouros que no passado foram seus mestres. Dei-lhes essa escolha.

Sevro me agarra o braço.

— Você entende que precisa lutar de modo diferente hoje?

— Saquei isso, Sevro. — Tento soltar minha mão.

— Você não sacou isso. — Ele me puxa para que eu olhe para ele e deixa Ragnar para trás. — Todo movimento que você fizer hoje vai ser registrado e transmitido a todas as partes do sistema solar. Essa batalha é pra fazer dessa frota sua frota. — A voz dele se transforma num sussurro áspero. — Os Filhos vão espalhar isso. O Chacal vai espalhar isso. A Casa Augustus vai espalhar isso. Aja como um deus, seja seguido como um deus. Registrou?

— Vencendo ou perdendo, esta ainda é a frota de Augustus — digo.

— Não se ele estiver morto.

Encarreguei Sevro de se infiltrar na Cidadela em Agea onde o ArquiGovernador está sendo mantido em cativeiro. Mas não lhe disse para matar Augustus.

— Você não vai matá-lo — digo com autoridade. — Proíbo isso. Isso é uma coisa...

— Necessária. Você não precisa da legitimidade dele. Você ainda não entendeu a gente? Aqui você tem o que tomar, independente do direito de ter. — Ele cospe no chão. — Você tem vinte anos de idade. Se você vencer Marte, Darrow, se torna um deus vivo. E aí, quando você revelar quem é de verdade... vai transcender as Cores. Estou sendo claro?

Sevro ficou mais inteligente desde nosso primeiro encontro. Não tenho dúvida quanto a isso. Mas temo que ele me superestime. Apolo pensava que era um deus. Augustus pensa que é. Um deus não é o que eu deveria ser. Um deus é uma coisa a que se serve, uma coisa que se adora. Eu nunca quis isso. Eo nunca quis isso. Sevro terá de aprender. Isso aqui tem a ver com liberdade. Contudo, parece que todo mundo apenas quer seguir alguém.

Mustang supervisiona as operações da tropa hoje. Ela flutua através do ar com Milia, a Ouro com cara de cavalo que adotamos no Instituto. Perto de mim caminha um Ouro impiedoso com um rosto familiar. Eu rio e o aponto para Sevro, que xinga pungentemente.

— Inspetor Júpiter? — chamo o homem. — Meu caro, será você mesmo?

— Quem mais poderia ser, seu pirralho petulante? — Júpiter se posta diante de mim. Ele é alto. Descuidado nos olhos. Cabelos bem amarrados. Quinze centímetros mais alto do que eu, o homem é uma besta hedonista com um rastro de arrogância com um quilômetro de extensão, e está claro que ele e Ragnar estão a um desentendimento de distância de eviscerarem um ao outro. Ele olha a lâmina enrolada no meu antebraço, e vejo que a dele está disposta na mesma moda atual.

— Ouvi falar que você é o responsável por esse novo estilo. — Ele levanta um braço.

— Eu aprovo. Ousado como uma pica enfiada num formigueiro.

— Ainda mancando? — pergunta Sevro.

— Cale essa boca, Duende — escarnece Júpiter.

— Meu papai querido teve um pequeno duelo com o Inspetor Júpiter aqui pra conquistar o posto de Cavaleiro Raivoso — diz Sevro, rindo. — O velho arrebentou esse aí no mesmo lugar que eu. Bem no rabo.

— Aquele sacana escorregadio do Fitchner é... cheio de truques. — reconhece Júpiter, balançando a cabeça de má vontade. — Cheio, cheio de truques. Tenho dado uma ajudinha à moça — ribomba Júpiter, fazendo um gesto para Mustang.

— Como assim? — pergunto.

— A maior parte das cidades de Augustus está sofrendo uma interdição nas comunicações. Não entra nem sai palavra alguma delas. Sou o emissário daquelas ainda leais. Levo e trago informações sorrateiramente. Tenho feito isso já faz semanas e mandando informações pra dropCaches remotos e pras outras cidades leais. Toda uma guerra está sendo travada aqui com os agentes dela e com os do irmão dela enquanto você estava fora costurando sua frota. A coisa tem sido difícil, meu bom-homem.

— Então, o que você tem a me dizer? — pergunto.

— Bom, o papai Bellona está comandando a frota da casa contra seus amigos. Cassius e Karnus foram alocados a operações terrestres dentro de Agea. Vou te ajudar a encontrá-los e matá-los. — Júpiter ergue as bastas sobrancelhas, como se estivesse me dizendo o quanto ele acha a tarefa entediante. — A questão é esta: mate os membros da família Bellona e todos os aliados deles vão imaginar o motivo pelo qual estão lutando, não é mesmo? — Ele pisca para Sevro. — A melhor coisa a fazer além de socar a cabeça daquela Soberana nascida-em-Luna.

— Tem certeza de que todos os Bellona estão em Agea?

Júpiter balança a cabeça de má vontade.

— A última vez que vi, eles estavam, sim. Mas isso foi há dois dias atrás, depois que eles trouxeram Augustus acorrentado. — Ele levanta um dedo com elegância. — E houve também uma série peculiar de naves pesadas aterrissando ontem à noite.

Balanço a mão, ignorando a menção às naves. Ele estreita os olhos para mim, mas digo-lhe que se cale e fique atrás de mim enquanto me encontro com Mustang e seu grupo.

— Está tudo preparado — diz ela. — Estamos esperando as ordens de lançamento. — Ela enruga o nariz como se estivesse sentindo um cheiro nauseabundo. — Sevro, vigie Júpiter. Ele tende a cagar onde come.

Júpiter boceja.

— É um prazer pra mim também trabalhar com você.

— Milia, é adorável ver que você se lavou — digo.

— Ceifeiro. — Ela faz uma mesura e sorri, uma coisa horrível no seu rosto. — Ainda brincando com foices? Aquece o coração.

— Você tem coração? — diz Sevro, dando uma gargalhada.

Ela examina a estatura dele.

— Um de tamanho natural. — Ela faz uma pausa. — Ontem mesmo vi Pollux, no outro lado, entretanto. Tem se esgueirado pra dentro e pra fora com nosso Júpiter aqui. Você preparou uma reuniãozinha pra todos nós. Fiquei sabendo da morte de Tactus. Ele era um filho da puta.

Não deixa de ser verdade. Olho de relance para o meu datapad. Estaremos nas coordenadas de lançamento daqui a cinco minutos. Minha equipe se dispersa. Mustang fica, o rosto pensativo.

— O que é? — pergunto. — Já preocupada comigo?

— Um pouquinho — confessa ela, aproximando-se o suficiente para que eu possa sentir seu aroma. — Mas é meu pai. E se eles o matarem antes mesmo de nós tocarmos em terra?

— Eles não o matarão. Vão precisar dele como moeda de troca. Ou, se eles perderem, vão poupá-lo e esperar que a gente faça a mesma coisa com todos os membros da família Bellona. Não se mata homens com a importância dele.

Tento segurar sua mão para confortá-la, mas ela me repele, dando-me as costas.

— Temos um planeta a invadir.

Eu a observo partir, gritando ordens para os seus homens.


38

A Chuva de Ferro

Tudo o que vejo é metal. Sou um entre mil no favo dos cospeTubos. Para além do tubo de metal, uma batalha encarniçada tem lugar. Não sinto nada. Não sinto o estremecer da Pax. Não sinto os mísseis voando pelo espaço para levar uma morte silenciosa. Apenas o latejar no meu coração. Mickey me disse que meu coração era o mais forte que ele já vira num Vermelho, cortesia do veneno das víboras-das-cavidades que percorria minhas veias quando eu era jovem. Ele faz minhas mãos tremerem agora enquanto galopa no meu peito. O medo viaja comigo. Medo de tantas coisas. Medo de deixar meus amigos na mão, de perder meus amigos. De contar aos meus amigos a verdade sobre quem sou. Medo de ser incapaz em relação à tarefa que tenho diante de mim. Medo causado pela dúvida — em mim mesmo, nos meus planos para a rebelião. Medo da morte. Medo de ficar perdido na escuridão do espaço que se encontra além do casco. Medo de falhar com Eo, com meu povo, comigo mesmo. Mas, sobretudo, medo do metal quente.

Sons inarticulados surgem nos comunicadores. Perfunctórios. O plano está em curso, e agora não sou nada além de uma peça na engrenagem. A batalha é grande demais para que eu possa tomar parte nela toda. Eu queria liderar a Pax da sua ponte para que pudesse observar as naves do inimigo ser derrotadas pela minha frota. Mas Orion e Roque são melhores do que eu no espaço.

Eu queria estar na naveVentosa que está carregando os pelotões de abordagem através da brecha que leva aos cascos do inimigo; queria invadir pontes, repelir invasores da minha nave, saltar de destróier a couraçado, fazendo-os meus. Mas não vou capturar o Imperador Bellona. Os Titãs farão isso. No fim, meus inimigos ditam para onde devo ir. Estou no encalço do grande prêmio.

Um prêmio que é minha meta desde que deixei Luna.

Meu verdadeiro pingente de Pégaso está frio encostado no meu peito. Os cabelos de Eo se encontram dentro dele. Concentre-se nisso. Na maneira como os cabelos dela se mexiam. Vagando pelos ventos de minas profundas. Concentre-se ali. Pensando nela, sou tomado de culpa. Gosto dessa vida. Independente da minha relutância em desempenhar o papel de Ouro, independente das desculpas cheias de tristeza que dou, parte de mim é como eles. Talvez eu tenha nascido para ser de duas Cores.

Dane-se isso. O homem não nasceu para ser de Cor alguma. Nossos governantes decidiram nos relegar a Cores. E eles estavam errados.

— Audentes fortuna juvat, meus caros — diz Sevro através de uma linha de comunicação privada. Caio na gargalhada diante do latim.

— Não seria mais uma merda do tipo: “A sorte favorece o ousado”? Por que não dizer apenas carpe diem?

— Porque é tradição dizer...

— A rapaziada aí sempre flerta desse jeito antes das batalhas? É adorável — acrescenta Victra.

— Você devia ter visto esse pessoal no Instituto, amor ao primeiro uivo — diz Mustang, rindo.

— Eu vi os vídeos! Que casal mais lindinho.

Ouço o sorriso na voz de Mustang.

— Eles até usavam uniformes combinando. Estilosos, não eram não, Roque? E fedorentos.

— Com certeza não reparei em nada disso.

— Por que não?

— Sevro me fazia mijar de medo. Eu nunca olhava pro que ele estava vestindo — responde Roque, arrancando risadas. — Eu pensava que ele tinha sido mordido por um esquilo e tivesse contraído raiva de algum modo.

— Roque? — chama Sevro com doçura.

— Sevro.

— Oi.

— Oi?

— Da próxima vez que eu te ver, vou te dar uma mordida.

— Preciso ir nessa. — O riso leve de Roque desvanece. — Estamos enfrentando o principal elemento do inimigo.

— O que é que você vai fazer, entediá-los até a morte com uma leve leitura de poemas? — Sevro mais uma vez.

— Você é um lambedor de pica — declara Roque de modo brincalhão. — Que as Fúrias guiem suas espadas e as Parcas os tragam pra casa. Até lá, meu amor estará com todos vocês.

O juramento de amor sobressalta os Ouros. O comunicador de Roque dá um clique ao ser desligado e podemos ouvi-lo na frequência principal dando ordens para atacar um destróier inimigo.

— Que Pixie! — murmura Sevro, mas mesmo uma criança poderia captar o tremor na sua voz. Ele está com medo.

— Hic sunt leones — digo para meus amigos. — Sejam corajosos. Sejam corajosos e vejo vocês do outro lado.

— Hic sunt leones — ecoam eles, não por Augustus, mas porque gostaríamos muito de ser corajosos como leões.

Um a um, nós nos despedimos. Antes que eu possa me conter, mando uma saudação para a frequência privada de Mustang. Ela leva vinte minutos para responder.

— O que é? — A hesitação assombra a voz dela.

— Fique viva — digo.

Uma pausa. Emoção? Irritação?

— Você também.

Ela encerra o link do comunicador. Logo os equipamentos começarão a chiar e estalar quando eu for instalado no mecanismo de tiro do tubo.

Agi esse tempo todo como se soubesse o que estava para vir. Como se soubesse o que é a Chuva de Ferro. Mas ela assoma diante de mim como uma espécie de fera escura e escravizadora. Um mistério, embora eu tenha visto a cara dela. Vi as experiências de realidade virtual e os vídeos de hc. Sei o que ela é do mesmo jeito que uma criança sabe o que é voar a partir da observação de pássaros.

— Coordenadas de formação de combate alcançadas. — A voz de Roque preenche os ouvidos de cada Ouro na frota. — Que a Chuva caia!

O ruído da carga magnética no tubo me preenche. Deslizo em direção à câmara, preparando-me, olhando para baixo de modo a não dar um mau jeito no pescoço. Então o dispositivo é detonado e sou chamado pela velocidade e pela batalha à medida que meu estômago enche minha garganta de bile. Sou alçado através da torrente magnética para fora do tubo da nave em direção à infestação caótica.

Fogo e relâmpagos dominam o espaço. Beemontes de metal arrotam mísseis para todos os lados, acertando uns aos outros silenciosamente com todas as armas que o ser humano tem à disposição. O silêncio reinante, tão fantasmagórico, tão estranho. Grandes véus de fogo antiaéreo explodem ao redor das naves, cobrindo-as de fúria, quase como algodão cru jogado ao vento. RasgAsas e vespas zunem umas para as outras, mijando torrentes de tiros. Elas despedaçam e dilaceram carapaças de metal, lutando numa nuvem densa e gigantesca. Em pequenos agrupamentos, elas deslizam dos seus caóticos combates, espiralando-se em silêncio na direção de ajuntamentos de navesVentosas à medida que os destróieres e os porta-naves lançam seus transportes de tropa no espaço em ondulantes ondas. É um jogo de grupos de abordagem. Por cima, por baixo e através das cortinas de fogo antiaéreo seguem as ventosas, em busca de um casco para trepar de modo a bombear seu mortífero carregamento em direção ao interior dos ventres das naves cruciais, como moscas soltando larvas em feridas abertas. Todas pilotadas por Azuis criados apenas para realizar essa única tarefa. Embarcações dos Bellona passam pelas de Augustus, ondas se sobrepondo uma à outra, partindo uma à outra.

Tudo em silêncio.

Mísseis saltam na direção das ventosas, rachando cascos com detonações. Nenhuma chama, salvo onde as naves são furadas, vazando chamas de oxigênio como baleias arpoadas da Velha Terra espirrariam sangue. Descargas de armastrilhos irrompem pelo espaço, despedaçando múltiplas ventosas e naves menores ao mesmo tempo, produzindo rombos nas suas fileiras. Naves arrebentam homens e mulheres à medida que ambos os lados têm como alvo os motores, na esperança de aleijar e capturar ao invés de destruir. Em meio à frota azul e prata do inimigo, a maciça Warchild despedaça corvetas e navesChamas como ciclopes andando no meio de ovelhas — porrete oscilante e lento num movimento pendular.

Prendo a respiração quando o destróier de Victra, escudado por dois outros, avança na direção da Warchild. Ela é bombardeada por armastrilhos, e belonaves a coroam de mísseis. Os Bellona precisam garantir que ela esteja próxima demais para ser capturada porque abrem fogo mais uma vez sobre seu ventre macio. Contudo, em meio ao bombardeio que ela está sofrendo, a corveta lança mão de uma desesperada investida de quarenta navesVentosas. Quase dez vezes o complemento normal dela. Escavamos o oco dela para encaixar os carregadores de tropas adicionais. Esse é o agrupamento bélico dos Telemanus.

A nave de Victra se afasta bruscamente da Warchild, mergulhando imprudente na formação dos Bellona, onde a flotilha de naves da sua mãe exibindo a insígnia do sol ensanguentado sustenta as águias dos Bellona. Victra dá à luz sua segunda surpresa.

A mãe dela troca de lado, traindo os Bellona como Victra prometeu ao Chacal e a mim. As naves de Agrippina descarregam mais de duzentas navesVentosas em meio ao cerne da frota dos Bellona. É o caos.

Meus Titãs aterrissam no casco da nave capitânia do inimigo, e logo a Warchild está engrinaldada de ventosas. Boa sorte, Titãs.

NavesVentosas simpáticas aos Bellona são redirecionadas à Warchild para emprestar ajuda à batalha que entupirá seus corredores de fumaça e sangue. RasgAsas passam zunindo, atirando nas ventosas que pousam, tentando arrebentá-las antes que elas despejem seus homens no corpo da Warchild. É uma elegante dança de ação e reação e reação e reação.

Sigo na minha trajetória, incapaz de alterá-la. À minha esquerda e à minha direita passam voando milhares de Ouros e Obsidianos em couraçasEstelares, Cinzas em casulos-colmeia comportando doze homens em cada um. Uma chuva de homens e metal. Em meio à nossa corrente voam grandes cegonhas abarrotadas de mais Obsidianos e Cinzas. Assim que pousarmos em terra e assegurarmos as cabeças de ponte, as legiões compactadas deslizarão para fora dos couraçados e porta-naves em veículos de aterrissagem e irão se espalhar atrás de nós.

Apesar do que os Bellona e seus aliados estejam pensando, eles não podem nos impedir de fazer com que nossos homens pousem — a órbita ao redor do planeta é grande demais. É por isso que manter as cidades é de suma importância. Elas são fortalezas isoladas. A única maneira realista de tomá-las é aterrissar em terra e deslizar para baixo do hiato de duzentos metros que existe entre seus escudos em formato de disco e o chão. Isso requer homens na superfície. Milhões de homens num assalto coordenado.

Estabeleceremos uma centena de cabeças de ponte, e então nossa batalha começará seriamente. No caos, mísseis passam voando na direção das nossas couraçasEstelares. Cruzadores simpáticos à nossa causa distribuem telas de fogo antiaéreo atrás de nós e vespas cobrem nossos flancos. Vespas inimigas conseguem rodopiar pelas laterais, bombardeando-nos. Dezenas na chuva morrem ao meu redor, suas armaduras se dobram para trás como se fosse papel queimado. Odeio isso. Quero gritar. Alguns o fazem e somos obrigados a cortar o sinal dos seus comunicadores.

Não há nada que eu possa fazer. Rezar para não morrer. Rezar para que meus amigos não morram. Mas dirigir as rezas a quem? Os Ouros não têm nenhum deus. Nós Vermelhos temos um Velho no Vale. Mas ele não nos ajuda nessa vida. Ele apenas espera para nos pastorear e nos guardar na vida seguinte.

Meu coração chacoalha no peito. Batimentos cardíacos acelerados. Quero romper minha própria pele. Eu me sinto um menino. Quero o conforto de casa. A sopa da mamãe, o toque da sua mão severa, o amor que florescia em mim sempre que eu conseguia fazê-la sorrir. Qualquer coisa que me faça sentir a alegria de perceber que Eo me amava. Anseio as noites frias e quietas antes do amor quando tudo não passava de desejo e avidez, onde nos beijávamos em segredo, os corações palpitando, como dois passarinhos percebendo que podiam vir a construir um ninho juntos, afinal de contas. Era assim que deveria ser a vida. Família. Primeiros amores. Não cair pela atmosfera onde matadores não ligam para coisa alguma além de encher seu corpo de metal quente antes de seguir em frente para matar seus amigos.

Minha mente foge, mesmo enquanto meu corpo age.

O planeta cresce e cresce até se tornar um colosso inchado que consome minha visão. Não sei quem está morto, quem está vivo. Meu display está ocupado demais. Atingimos a atmosfera e o som ruge mais uma vez. Halos de cor funcionam como casulos ao redor da minha forma trêmula. À minha esquerda e à minha direita, os soldados cadentes parecem vaga-lumes enfurecidos arrancados à força de uma fantasia criada por algum Entalhador. Admiro um à minha esquerda, o sol de bronze está às suas costas enquanto ele cai, silhuetando-o, imortalizando-o naquele momento singular — um momento que jamais esquecerei —, de modo a fazê-lo se parecer com um anjo miltoniano caindo cheio de ira e glória. Seu exoesqueleto expele a armadura de fricção, como Lúcifer talvez expelisse os grilhões do céu, as penas flamejantes soltando-se do seu corpo, adejando atrás dele. Então um míssil irrompe pelo céu e explosivos de alta gradação mais uma vez o batizam como um mortal.

No momento em que saímos da atmosfera, o tiroteio da superfície berra sobre nós, cavando buracos no nosso enxame cadente. Como uma colmeia atingida, ativamos nossas gravBotas e nos fraturamos em milhares de diferentes esquadrões, cada qual tentando seguir suas próprias coordenadas. RasgAsas inimigas nos seguiram até a atmosfera, mas aqui temos mais espaço de manobra e matamos os maiores combatentes com tranquilidade. Rodopio sobre um desses por trás com os Uivadores quentes na minha retaguarda, e arrebento-o com minha lâmina. Voo para longe enquanto ele cai em espirais através das nuvens na direção do oceano abaixo.

Detonações de baterias antiaéreas berram na nossa direção através das nuvens e matam o Ouro à minha direita — um Uivador, embora eu não saiba qual até olhar meu datapad. Daria, a Harpia, está morta. Simples assim. Nenhum sacrifício para salvar um outro. Nenhum uivo de raiva no fim. Nenhum nobre gesto. Nenhuma emoção. A garota leal que usava cintos de escalpos no Instituto, que deixava Costas-Podres e Cara Ferrada admirados com seus estranhos equipamentos, foi-se.

Uma punhalada de pânico me atravessa o corpo e mergulho em meio às nuvens com o resto da vanguarda da minha legião. Voamos baixo por sobre o oceano, onde duas naves aquáticas cospem fogo. Sevro manda dois mísseis pelo ar; eles detonam, transformando-se numa dúzias de micromísseis que, por sua vez, se transformam em outra dúzia de mísseis. Eles detonam como milho no fogo.

Guerra é caos. Sempre foi. Mas a tecnologia a torna ainda pior. Ela muda o medo. No Instituto, eu temia os homens. Eu temia o que Titus e o Chacal poderiam fazer comigo. Você vê a morte chegando e pode pelo menos lutar contra ela. Aqui você não tem um luxo como esse. A guerra moderna se resume a temer o ar, as sombras, temer o silêncio. A morte virá e eu nem mesmo a verei.

Pouso com um estrondo numa montanha coberta de neve. Nuvens de vapor ascendem quando derreto um buraco no branco devido ao calor do meu traje vermelho-brasa. O resto do meu esquadrão aterrissa ao redor, encontrando um porto seguro no chão. Rugindo em direção ao chão, homens-meteoro vindos de monstros de metal. Tump. Tump. Tump. E a neblina de guerra ascende.

— Terra firme — rosno.

Sevro se apoia sobre um dos joelhos, abre seu capacete e vomita na neve. Outros se juntam a ele. O feioso Cara Ferrada arqueja cheio de tristeza. Costas-Podres segura-lhe o ombro. Palhaço os vigia, seu penteado estilo moicano em tom vermelho na cabeça. Harpia não existe mais. Eu não sabia que seria assim. Eu pensava que conhecia o horror. Não conhecia. Mais homens morreram no último minuto do que eu jamais teria condições de conceber. O temor de Lorn em relação à guerra chacoalha dentro de mim.

Isso é guerra. Caos. Acaso. Morte.

Sevro acena para mim com a cabeça, limpando o vômito da boca. Júpiter o ajuda a se levantar. Estranhamente, Sevro permite que ele o faça. Procuro a assinatura de Mustang no datapad do meu capacete. Ela está viva com o principal elemento da minha força, mas nós nos separamos. Estou com uma dúzia de Ouros e quarenta Obsidianos treinados em tecnologia militar high-tech.

— Tirem as exos — rosno para os Obsidianos. — Omega, guarde o perímetro.

Expelimos nossas desconfortáveis exoarmaduras térmicas para revelar as couraçasEstelares mais ágeis por baixo. Ordeno que todos ponham os capacetes. Demônios de metal e rostos animais substituem os rostos dos amigos.

Mas há uma beleza nesse momento. Nos meios segundos onde os Ouros e os Obsidianos acenam uns para os outros para transmitirem conforto antes de partirem para realizar suas tarefas, encontrando alívio no casulo do trabalho, no companheirismo, como eu fazia nas minas.

Trago Sevro para junto de mim, junto com os Uivadores. Ragnar, separado da sua legião, fica parado na sombra. Aterrissamos no lado diurno do planeta. Quando a segunda onda de couraçasEstelares penetra a atmosfera é como se fosse uma chuva de meteoros, deixando rastros de fumaça preta ao longo do céu azul chamuscado de fogo. Centenas de canhões de terra ainda atiram no enxame que se espalha de horizonte a horizonte mas, lentas, essas torrentes de tiros de canhão arrefecem à medida que estes são alvejados do espaço ou eliminados por esquadrões semelhantes ao nosso em solo. Meu esquadrão está a trezentos quilômetros de onde precisávamos estar. Como isso aconteceu?

Ligo para Mustang pelos comunicadores. Ela está cinquenta quilômetros mais próxima da zona de descida designada em alguma outra montanha. Sua força tem mais ou menos quatrocentos soldados.

— Parece que somos os idiotas — diz Sevro.

Descemos a encosta da montanha. Não voamos. Em vez disso, saltamos. Na Academia eles nos ensinaram a pensar nisso como se fosse o ato de saltar uma rocha sobre a superfície da água. Poderíamos voar nas nossas gravBotas, mas voar o torna um alvo de mísseis e de baterias antiaéreas, sem mencionar pelotões de caçadas inimigos. Portanto, saltamos cinquenta metros em direção ao ar e em seguida usamos nossas gravBotas para nos puxar de volta ao chão.

Mísseis são disparados de um pico próximo. Sevro e seu esquadrão lidam com eles, saltando sobre ravinas de mais de mil metros, raspando a lateral de íngremes paredões rochosos enquanto Ragnar e eu avançamos em alta velocidade. Um barulho quase inaudível de algo caindo ecoa sobre a cadeia de montanha quando eles nos livram da saraivada de mísseis. Os Uivadores se juntam a nós na extremidade da cadeia de montanha. Nós nos empoleiramos sobre a lateral do penhasco, onde nuvens baixas se aglomeram. À esquerda, mais ou menos a vinte quilômetros, ascendem as torres da distante e alva Thessalonica, empoleirada na escarpada linha costeira do límpido Mar Térmico. O lar de Tactus. Sinto uma pontada de tristeza.

Avançamos para o norte. Observo as torres desaparecerem, até que elas não são nada além de cintilante metal tendo como pano de fundo o litoral daquelas águas estranhamente calmas. Explosões ribombam ao longe. Sinto o peso de uma mão cair no meu ombro coberto pela armadura.

— Igualzinho àquela vez que a gente tomou o Olimpo — diz Sevro, um risinho no rosto, olhando para nós de um novo pico na montanha para a terra que se abre diante de nós.

— Exceto pelo fato de que aqui a gente está com gravBotas. — Verifico nossas coordenadas no display localizado na parte superior do meu capacete. A invasão continua acima de nós. Naves torpedeiras, agora mais raras, riscam o céu. Uma delas nos alveja. Ela ruge através de uma nuvem e mastiga o chão com canhões-em-cadeia. Buscamos abrigo numa ravina. A neve se acumula ao nosso redor. Então um míssil desliza e faz com que uma rocha desabe sobre minhas pernas na explosão, prendendo-me no chão. Pedrinha e Palhaço se jogam sobre meu corpo, escudando-me.

— Ragnar! — grito. — Acabe com ele!

Não vejo o que ele faz, mas o som é tremendo quando a nave torpedeira pega fogo e rodopia no ar, balançando em direção ao chão, e então desaparece numa nuvem de destroços.

— Suas pernas? — pergunta Sevro num frenesi.

Eles tiram a rocha de cima de mim. O equipamento rosna e componentes eletrônicos chiam.

— Ainda estão funcionando.

Descemos a nevada cadeia de montanha em direção a uma acidentada planície marciana. Uma massa de infantaria pesada como a nossa se move à nossa esquerda. Os transponders deles os rotulam como nossos aliados. Mas bem à direita, a mais ou menos trinta quilômetros de nós, onde o solo incha formando terras altas subtropicais, uma coluna de Bellona avança — talvez trezentos soldados em pelotões separados.

— Decifraram um dos nossos sinais de comunicação — transmite um diretor de comunicações Verde no espaço através de um novo sinal. — Eles estão te caçando, Icarus. — Meu sinal de chamada secundário.

— É aqui que descobrimos quem está vencendo nos céus — digo. Sevro direciona um laser rastreador para o esquadrão inimigo no exato momento em que eles direcionam um para nós. O deles saltita no chão à nossa frente como se fosse uma mosca em pânico. Nós nos espalhamos, Sevro e eu voando para longe juntos, e então uma chuva de tiros desce sobre nosso inimigo a partir de duas trajetórias. No mesmo momento, Sevro identifica um drone soltando um feixe de mísseis sobre nós. Ele o segue, e uma armatrilho de Thessalonica, localizada nas proximidades, atira um projétil que deixa uma listra de fogo azulada no horizonte. O drone desaparece numa florescência vermelha. Essa é a multi-insanidade da guerra high-tech.

Nós nos encaminhamos para as coordenadas de Mustang, sensores e olhos a postos para a morte que se esconde nas montanhas. Ela está à espreita na planície. Ela própria se esconde na floresta de gigantescas deusÁrvores e nas águas de mares incipientes.

Um grande lago se estende bem à esquerda, enquanto um vulcão adormecido, tão gradual na sua inclinação que parece pouco mais do que uma colina coberta de neve, estende-se à nossa direita. Pairo bem alto ao longo do espinhaço da cadeia montanhosa que atravessamos para obter uma posição vantajosa sobre as cercanias. Informações topográficas periódicas tremeluzem no meu datapad à medida que drones as transmitem do céu para logo em seguida ser substituídas.

É bem silencioso dentro do meu traje. Não consigo escutar o vento que assobia ao meu redor nessa altitude elevada. Uma nuvem tempestuosa, um dos mais dramáticos cúmulos de trovoada de Marte, rola no céu proveniente de um lago distante. Quando ela atinge a floresta abaixo da montanha, as chuvas chegam e relâmpagos arrebentam no céu. Sobre o pico escarpado, a neve faz piruetas no ar, derretendo em contato com meu traje.

Capto movimento num pico próximo. Desisto de descarregar minha arma quando vejo que não se trata de um Bellona, mas de uma fera entalhada. Amplio minha visão e vejo o grifo grudado à borda de um imenso ninho disposto num estreito desfiladeiro de pedra sobre o pico, observando maravilhado os homens voarem por seu vale abaixo. Que mundo esses Ouros construíram.

Meus homens se reúnem mais uma vez comigo no pico seguinte, fazendo uma pausa para verificar as baterias nas nossas couraçasEstelares. Elas não vão durar o dia inteiro. O grupo de Mustang bate de encontro ao chão ao nosso redor, fazendo com que a neve se espalhe quando quatrocentos matadores munidos de couraçasEstelares adicionam sua força à nossa. Batemos nossos punhos.

— Icarus? — estala uma voz no meu ouvido. — Icarus, está me ouvindo?

— Roque, estou ouvindo. O que é?

— Icarus... urgente... está me ouvindo? — O sinal dele é interrompido enquanto relâmpagos dilaceram acima. Dispositivos de embaralhamento de ambos os lados já estão molestando as ondas de rádio. — Dar... me... vindo... em Agea.

— Roque? Roque? — Conheço o plano de batalha acima, mas o tom da voz dele me preocupa. — Os comunicadores estão todos espalhados — digo a Mustang.

— As frequências locais estão ótimas. São os embaralhadores e a tempestade. — A chuva bate com força na armadura dela.

Sevro aponta para cima.

— Você vai ter que pôr sua bunda acima daquilo pra poder ouvir. — Lá no alto, uma nave é atingida por um raio. Seus sistemas falham e ela despenca antes de ser reativada, apenas para colidir com uma rasgAsa de passagem.

— Oh, maldição. — Dou a Ragnar e Júpiter ordens para avançar na cadeia de montanhas e garantir o vale norte para a nossa força principal de legiões Cinzas. Enquanto sitiamos outras cidades para desviar a atenção dos Bellona, para mim Agea é tudo o que importa. Um milhão de homens estará nos seus muros. O Manchado abre a mão para mim em saudação e então salta do pico da montanha com Júpiter e uma centena de guerreiros Obsidianos.

Mustang e Sevro esperam embaixo enquanto subo, abrindo caminho na marra em meio às nuvens repletas de raios com diversos dos meus guarda-costas. Depois das nuvens, flutuo em relativa paz, chamando Roque.

— Icarus! — grita ele no comunicador. — Ela está aqui. Ela não está em Luna ou com a principal frota Societária! Acabamos de descobrir isso. Os homens de Kavax encontraram Pretorianos a bordo da Warchild... Ela está aqui! Ela veio em segredo sem a frota dela. Nós a pegamos.

— Roque. Devagar, devagar. O que você está dizendo?

— Darrow, a Soberana está em Marte. A nave dela está presa atrás dos escudos em Agea. Ela está presa numa armadilha.

— Roque. Eu já sei. Ela é o motivo pelo qual eu quero Agea.


39

No muro

Ele não pergunta como eu sabia. Mais tarde vou contar a ele que deixei Aja escapar de Europa para que pudéssemos rastreá-la de volta à Soberana por meio da assinatura de radiação da minha bomba. Ela é a matadora pessoal de Octavia. É claro que voltaria para o lado dela. Não contei isso a ninguém, exceto a Mustang, ao Chacal e a Sevro. Eu não podia correr o risco de a notícia se espalhar, sobretudo tendo em vista a maneira como Roque tem agido.

Ele desliga o comunicador sem dizer mais nenhuma palavra, com evidente amargura.

A vanguarda da minha força, os homens de Ragnar, fizeram uma aterrissagem no vale à frente. Vejo as naves gordas descendo e em seguida desaparecendo no chão onde o Valles Marineris se estende por quilômetros e quilômetros debaixo da terra. Mandamos nossos Azuis no espaço jogarem bombas na própria Agea. O dilúvio aquece o escudo, fazendo com que ele pulse com opacidade. Chegaremos nela no nível do chão ao longo do fundo do cânion de cem quilômetros de extensão de norte a sul, passando simplesmente pela hiato de duzentos metros que os escudos dela precisam manter acima do solo para evitar a criação de distúrbios sísmicos.

Salto do pico da montanha à frente do meu guarda-costas. Sevro e Mustang me acompanham enquanto saltamos em direção a outro pico para em seguida pular através dos sopés mais baixos atirando sem parar.

A Soberana é a chave dessa guerra, a chave para a fratura da Sociedade de modo que os Filhos de Ares possam ascender. Com ela capturada, a Sociedade em si vai imaginar, imersa em confusão, se ela ao menos existe sem Octavia no seu trono. Senadores e governadores tentarão tomar o poder. Haverá dezenas de conflitos locais, fraturando efetivos militares e coesão.

Abaixo de mim, um mundo de recompensas repousa ao longo do fundo do vasto cânion — lagos e fontes, matagais que chegam à cintura, árvores floridas e pinheiros espartanos crescendo em ângulos esquisitos das paredes do cânion com quilômetros de altura apesar da declividade íngreme. Acima de tudo isso, a grande montanha flutuante, Olimpo, reina. Vislumbro os quietos castelos e vejo cervos correndo no vale de Marte. Mas não vejo nenhuma criança ao longo dos grandes rios, nenhum menino ou menina em armaduras. Apenas lembranças e terra enlameada. Os alunos já foram recolhidos. Como isso deve ter sido estranho — lutar pelas suas vidas com armas medievais apenas para ser recolhidos por naves-de-descarga enquanto invasores chegavam do espaço.

Nós nos encontramos com Júpiter e Ragnar num dos espigões brancos do Flutuante Olimpo. Há homens mortos nos corredores, nos declives.

— Eles usavam isso como uma base — diz Júpiter, esfuziante. — Seu Manchado discordou da presunção deles. Eu gosto da fera! — Nossos homens asseguram a seção do Valles Marineris reservada ao Instituto, bem no extremo leste de Agea no braço superior do grande cânion. Vigio a janela enquanto centenas de naves-de-descarga amigas descem no piso de andaimes, depositando mais de trezentos mil homens em trinta minutos. Um Ouro corre de cada uma das rampas baixas, sempre os primeiros em solo inimigo.

— Nenhuma resistência — digo em voz baixa, o capacete da minha couraçaEstelar levantado. Olho para Mustang com inquietude.

Ela afasta os cabelos louros dos olhos.

— Quanto mais fundo estivermos, mais difícil vai ser nos tirar de lá. Por que eles estão esperando?

— Ele deve estar querendo juntar todos nós como se fôssemos um cacho de uvas antes de atacar — adivinha Sevro. — Algum artefato atômico?

— Crianças tolas. — Júpiter vasculha os bolsos de um dos homens mortos. — É pra isso que temos Cinzas. Deixe-os receberem o ataque. Eles vão lubrificar nossa passagem.

— Nada atômico — diz Mustang. — Os sensores teriam detectado a centenas de cliques de distância. — Ela olha a terra em volta. — Eles estão esperando porque não têm homens suficientes pra contestar nossa passagem através do vale. Ou nós os pegamos desprevenidos, o que eu duvido muito. Ou eles dispuseram homens em excesso pra deter o avanço de Lorn. Ou criaram pontos de estrangulamento no vale. Ou estão dispondo os homens ao redor da Cidadela. Ou então há uma armadilha à frente.

A mente dela é uma máquina.

— Há uma armadilha — diz ela depois de um momento. — Mas eles estão depositando um excesso de confiança no fato de que isso vai nos deter enquanto realocam homens e equipamentos. — Ela bufa de desprezo. — Defesas estáticas sem apoio móvel maciço não são relevantes desde a Linha Maginot.

— Mas eles sabem que a gente não quer desperdiçar a cidade ou o populacho — digo.

— Eles sabem disso. — Mustang ajusta seu datapad, examinando o mapa. — O que diminui nossa flexibilidade na questão tática.

— Guerra total era mais fácil — resmunga Júpiter. — Vamos usar os Cinzas pra lubrificar nossa passagem e depois jogamos bombas nos muros embaixo dos escudos. Entrada ganha.

— Leva-se um dia pra quebrar uma cidade e depois cinquenta anos pra reconstruí-la — rebate Mustang. — Você quer se candidatar a supervisionar a reconstrução?

— Tenho cara de construtor? — pergunta Júpiter.

— A passagem pra Agea tem oitenta quilômetros de largura em média, muros de sete quilômetros de altura de ambos os lados, tudo fazendas e agricultura pra cidade. Os Bellona devem ter enchido o lugar de minas. Se tiveram tempo. Nós não avisamos a eles que estávamos vindo. — Será que eles tiveram tempo?

Mustang faz um gesto indicando que gostaria de ter uma conversa reservada comigo.

Caminho com ela para longe do resto da equipe de comando, que reviram os olhos uns para os outros. Os airosos corredores do palácio me fazem lembrar da minha vitória passada, mas tudo o que sinto é uma profunda melancolia por estar aqui. Tantas lembranças. Tantos amigos perdidos, penso quando vejo Cinzas pousando perto do castelo de Minerva onde Pax e eu uma vez duelamos.

— São oitenta quilômetros até os muros daqui — diz ela. — Poderíamos efetuar a investida como o planejado. O simples fato de que eles não contestaram nossa aterrissagem não significa que haja algo nefasto em marcha. — Ela vê a hesitação nos meus olhos. — Estamos aqui pelo meu pai tanto quanto pela Soberana. Precisamos andar com rapidez.

— Você está com medo de Lorn matá-lo se derrubar os muros da cidade sulista antes de nós — digo, tentando adivinhar. — Não está?

— Você conhece a história deles.

— Conheço.

— E você acha que dá pra acreditar que Lorn não vai querer finalizar uma antiga desavença?

— Lorn não é um assassino.

— Não. Ele fere homens que mereçam ser feridos, como Tactus. Meu pai merece isso tanto quanto qualquer homem. Portanto, é melhor a gente se apressar. E você precisa contar pro resto do pessoal sobre a Soberana.

— Roque descobriu. Pretorianos na Warchild.

Voltamos e eu me dirijo ao meu pequeno conselho.

— Vocês sabem que viemos pra cá por Augustus, mas há um segundo motivo pra que avancemos sobre Agea. A Soberana está aqui.

— Não sacaneie — murmura Palhaço.

Costas-Podres coça a cabeça.

— Maldição.

— Na Cidadela? — pergunta Pedrinha, cutucando com entusiasmo o ansioso Erva com o joelho.

— Todas as probabilidades. Rastreamos Aja até aqui. Radiação residual da bomba com a qual atingimos Aja em Europa. Os outros ataques têm o intuito de afastar efetivos de Agea pra que possamos ter uma chance de passar pelos muros da cidade e capturar Octavia antes que Lorde Ash chegue com a força total da armada dela. — E se os Filhos fizeram a parte deles como Ares prometeu, devemos ser capazes de entrar na cidade sem ter de enfrentar cem mil homens e mulheres munidos de armaduras.

— Cassius está na cidade? — pergunta Sevro.

Mustang balança a cabeça em concordância.

— Achamos que sim.

Sevro sorri.

— Se você der de cara com Cassius, não o enfrente — digo. — Nem Karnus nem Aja.

— Você prefere que a gente fuja deles? — pergunta Palhaço, indignado.

— Prefiro que vocês continuem vivos — digo. — O prêmio é a Soberana. Não se distraiam com vingança ou orgulho. Se nós a capturarmos, seremos o novo poder no sistema solar, meus amigos.

Os Uivadores trocam risinhos lupinos. Sevro ajusta os ombros.

— Então, vamos parar de ficar chutando as bundas uns dos outros.

— Eu mesmo não teria dito isso de uma maneira melhor.

RasgAsas amigas rugem no céu para liquidar forças inimigas ao longo da nossa trilha.

Com todas as nossas forças enfileiradas, avançamos através do cânion verde. Nenhuma coluna se esgueira ao nosso redor. Seguimos com rapidez. Velocicletas conseguem impor um ritmo mais acelerado do que couraçasEstelares. Aqueles Cinzas e os que estão sobre aranhas avançam em alta velocidade atrás das rasgAsas e das naves-de-descarga pesadamente protegidas por armaduras que depositarão homens em posições ainda mais próximas ao muro. Lampejos à frente indicam que eles detonaram minas ou os matadores das minas fizeram seu trabalho. Não há como dizer. O cânion aqui está estreitando. Os paredões verdejantes do cânion assomam gigantescos ao longe, de ambos os lados, colossais e irreais, como se fosse o terreno de uma raça mais grandiosa, maior do que o homem. Não consigo ver toda a minha força num lugar tão vasto, apenas a pontinha da lança. Seguimos atrás dos velozes Cinzas, uma coluna que se move aos saltos formada por pavorosos cavaleiros em couraçasEstelares pretas. O dilúvio cai ainda com mais intensidade. Atrás de nós, tanques rolantes e as colunas da infantaria nos seus esquifes flutuantes, veículos com armaduras leves que podem carregar uma centena de homens num leito chato. Eles os depositarão a um quilômetro de distância dos muros. O ataque de Lorn a partir do sul será bastante similar.

— Drones! — grita Sevro pelo comunicador. Uma nuvem de metal sobe na nossa direção a partir de um pequeno posto na parede do cânion a leste. Os Uivadores correm depois da ameaça, e suas armas formam buracos ondulados no ar. Mesmo assim, os tiros do drone despedaçam um esquadrão de Obsidianos voadores. Eles despencam no chão, corpos irreconhecíveis. Saltamos sobre edifícios agora. Pequenas cidades. Resorts. Propriedades. Celeiros. Nós nos encontramos sobre um lago. Vemos nossa sombra à medida que os raios brilham acima de nós, silhuetando-nos.

Vejo agora um muro defensivo. Ele cai sobre o horizonte como uma cortina de ferro. Noventa quilômetros de extensão, nesse estágio do cânion, e quase duzentos metros de altura, e encosta na beirada inferior do escudo. Lagos e rios não encontram seu limite aqui mas, em vez disso, correm abaixo do muro através de uma espessa rede de barras de duroaço que são tão fortes quanto o casco de uma nave. Seriam necessários cem homens perfurando durante dez horas para abrir caminho em meio a essa barras.

A maioria das cidades não possui muros tão enormes. Eles custam muito. Agea e Corinth não têm pares na qualidade das suas fortificações. Poderíamos ter vindo pelos túneis que percorrem o ventre de Marte e que conectam todas as cidades a suas minas, mas eu não quis fazer isso. Há táticas que preciso resguardar. E há um exemplo que preciso estabelecer.

Assaltos como esse não são coisas prolongadas. Eu vi as histórias. Eles são selvagens e maníacos. Tecnologia contra objetos estáticos sempre vence, contanto que a resolução do sitiante jamais se esgote. No passado, castelos eram quase impossíveis de ser tomados através de um assalto direto a uma guarnição capaz sem o preço de uma vitória pírrica. Portanto, exércitos de campo montavam seus cercos e matavam de fome os defensores até a submissão. Agora, ninguém mais tem essa paciência.

Agea é uma cidade de vinte milhões de almas, mas quantas dessas almas darão a mínima para quem vencer hoje? Não há nenhuma diferença entre o domínio de um Bellona e o domínio de um Augustus. Cobres e Pratas ligarão. Mas os Vermelhos, os Marrons, os Rosas apenas acompanharão mais um mestre assumir as algemas.

Agora eles verão naves preencherem o céu. Bombas furarem o ar. E vão se aglomerar nas suas habitações públicas e temer os saqueadores anônimos. Desde a aurora do homem, tomar uma cidade tem reverberado os gritos de estupro, os roubos e os horrores perpetrados por pessoas embriagadas. Inigualáveis Maculados não participam dessas selvagerias. Não é rentável nem se encaixa no seu gosto. Mas se alguém toma uma cidade pela força, creem os Ouros que a cidade e todos aqueles que lá residem passam a ser propriedade do conquistador. Se você é forte o bastante, merece os despojos. Alguns poupam os despojos. Alguns os dão aos lobos, ofertando cidades como se fossem alimento aos seus exércitos Obsidianos e Cinzas como recompensa pelo sangue derramado.

Se eu puder proteger essa cidade de Agea, se eu puder mostrar a eles que existe uma raça melhor de homem, então pode ser que eu conquiste o coração de Agea. Que eu a capture. Que eu a proteja. Que eu seja amado por aqueles que nela vivem como sou amado pelo meu exército. Mas primeiro preciso abrir um rombo para penetrar nela.

Ao longo de todo o vasto muro defensivo, tiros ondulam sobre aço. Como diminutas flores em rápida florescência por sobre o muro cinza e fino de noventa quilômetros de largura. Dois falsos assaltos são conduzidos à minha esquerda e à minha direita. As rasgAsas de lá disparam armastrilho, deslizando de lado enquanto descarregam sua munição sobre o muro. O tiroteio em retribuição que vem dos torreões sobre o muro faz meus tímpanos estremecerem e zumbirem. Quero agarrar a mão de Mustang. Um aceno de cabeça da parte dela aquieta a sensação de terror que me habita. Mas só um pouco.

Cinzas em armadura de combate avançam como um aglomerado de formigas. Equipes de bombardeio se posicionam e logo mandam a morte para os defensores. É muita coisa para absorver, como a batalha espacial acima, camada sobre camada de atividade e contra-atividade. Exceto pelo fato de que esta aqui tem som.

Minas cavam buracos na minha força. Esquadrões de matadores dos Bellona deslizam para fora do muro cem metros acima, voando em glória — bandeiras balançam ao vento, o ouro cintila. Seus escudos tremeluzem quando eles são lancetados pelo armamento inimigo. Vejo a bandeira de uma águia em meio aos Bellona e me preparo para investir contra ele, pensando que deve se tratar de Cassius, quando Mustang agarra meu braço.

— O plano! — lembra-me Mustang, apontando para o rio. — Nós todos vamos morrer encostados naquele muro. O plano.

Difícil de lembrar. Difícil de lembrar que todo esse caos é uma distração. O que importa é o rio e o trabalho feito na noite pelos Filhos. Se é que eles fizeram. O rio desliza sob o muro. Cem metros de largura, e mais profundo do que isso, ele já carrega cadáveres na direção da cidade.

Eu mergulho na água. Sinto a tensão quando a correnteza arrefece para então acelerar minha trajetória. Peixes se espalham ao nosso redor. Esquisito não sentir o calafrio, os Uivadores se movem como torpedos ao meu lado. Então Ragnar está conosco junto com seu grupo de Obsidianos. Júpiter também, todos se debatendo debaixo d’água. Mustang está mais próxima de mim. Dou uma varredura no rio à frente em meio à lama que chutamos para cima e encontro o presente de Ares.

Ali. A cem metros de profundidade, eu o vejo. Se há uma coisa que os Vermelhos sabem fazer é perfurar. E os Filhos passaram a noite se preparando para nos dar passagem para a cidade. Meus homens pensarão que algum esquadrão de elite formado por mestiços foi enviado para cá antes da armada. Eles não questionarão a maneira como as imensas grades foram cortadas, ou como os sensores cuja função é detectar estragos na grade foram iludidos.

— Mais uma vez em direção à brecha — murmuro, como se Roque, Victra ou Tactus pudessem me ouvir. Aciono minhas gravBotas e avanço.

A passagem é estreita, serpenteando abaixo do muro perto do fundo do leito do rio. Viajamos de dois em dois, ombro a ombro. Então levo comigo o melhor combatente, Ragnar, enquanto nos movemos antes dos outros através da passagem subaquática. Meu comunicador estala com notícias da batalha travada acima. Estamos perdendo o muro.

Ragnar e eu ultrapassamos o túnel juntos. Eu esperava uma emboscada Bellona, mas nada nesse sentido acontece. Os Filhos fizeram muito bem seu trabalho. Esperamos no lado oposto do muro, ainda submersos, cem metros abaixo, no fundo do leito do rio. O resto do meu grupo se junta a Ragnar e a mim — Mustang, Sevro e os Uivadores restantes. Outros cinquenta Ouros e três vezes essa quantidade de Obsidianos e Cinzas.

Falo no meu comunicador quando estamos todos reunidos no fundo do rio.

— Vocês conhecem suas ordens.

Sevro bate os punhos sob a armadura nos meus punhos. Mustang faz o mesmo. Ragnar saúda com o punho cerrado encostado ao coração. Júpiter boceja no comunicador. Palhaço, Pedrinha e Erva deixam os Uivadores todos turvos agitando o limo do fundo do rio. Os segundos passam. Minha lâmina está enrolada no braço. PulsoPunho na mão esquerda. Sinto as batidas fortes do meu coração e o calafrio proporcionado pelo pendente no meu peito. Ouço o barulho do caos externo. Cerro meus punhos de Mergulhador-do-Inferno. Meus olhos se fecham. Sevro manda uma sonda para averiguar se a margem do rio está segura.

Tenho de encontrar a Soberana.

Ragnar tem de abrir os portões.

Mustang tem de baixar o escudo para que Roque possa enviar reforços e possamos tomar a cidade num único golpe. Não quero que ela saia de perto de mim, mas não posso confiar essa tarefa a mais ninguém.

Confiança. Eu preciso ter confiança que ela ficará viva, confiança que seus Obsidianos a protegerão, e que ela protegerá a si mesma. Há um peso pressionando meu coração, um temor de que ela não volte. A sensação que eu tenho é a de que ela já está caindo na escuridão. Se Mustang morrer, morrerá acreditando numa mentira. Prometo a mim mesmo que lhe contarei tudo se ela sobreviver a isso. Ela merece isso.

Fiquem vivos. Fiquem vivos. Todos vocês, fiquem vivos.

Mustang parte, movendo-se rio abaixo, seguindo-o por quilômetros e quilômetros até alcançar o parque próximo aos geradores. Eu a observo ir e me atrapalho em busca de algo a que possa me ater, alguém a quem possa rezar. Meu pai está comigo, e também Eo. Eu os sinto na batida do meu coração.

Fecho os olhos.

Sevro recolhe a sonda que enviou para a superfície e me diz que está tudo limpo, apenas uma menina brincando na lama acima de nós.

— Lutem uns pelos outros — digo através do comunicador àqueles ao meu lado no leito do rio. — Ou por mim. — Ativamos nossas gravBotas e adejamos através da água, irrompendo na superfície do rio como monstros escuros, nossas couraçasEstelares pretas gotejando à medida que voamos por sobre a margem do rio, enlameados devido à chuva que caiu antes que os escudos fossem levantados para proteger a cidade. Abaixo de nós, encontra-se uma única menina Marrom desprovida de armadura, o tornozelo bem fundo na lama. Olho fixamente para ela por trás do meu terrível capacete preto. Ela deveria estar se escondendo com sua família, não brincando fora de casa numa cidade sitiada. Alguma coisa está errada.

Quando nos vê, ela puxa de uma cesta um pequeno dispositivo em forma de globo. Raios dilaceram o céu. O melhor vestido dela está com lama acumulada na barra, tornando sua tonalidade ainda mais marrom.

— Atire nela! — rosna Sevro.

Bato na mão dele. Entretanto, uma árvore explode. E, quando olho bem acima, sobre o muro, bem fora do alcance da sonda enviada por Sevro, e bem além dos limites do globo de Pulsação Eletromagnética que a garota leva consigo, encontram-se empoleirados cavaleiros Bellona e seu séquito de Obsidianos. À espera.

A menina aperta um botão no globo.

E é então que começamos a morrer.


Parte IV

Ruína

Quem muito se ufana cai de cara na lama.

Karnus au Bellona


40

Lama

O dispositivo de Pulsação Eletromagnética é detonado. Parece uma criança gigantesca arfando ao ser picada por uma agulha. Nosso aparato eletrônico morre. Nossas gravBotas enguiçam. As sinapses das couraçasEstelares falham, fazendo com que os maciços trajes de metal sejam agarrados pela gravidade. Caio na água. Afundo. Afundo. Meus ouvidos estouram. Desço e desço até me alojar dentro da lama do fundo do rio. Atinjo o leito com força. Minhas pernas envergam sob o peso da couraçaEstelar. Caio de costas. Não consigo ver meus homens. Vi apenas formas se movendo sobre a superfície da água enquanto caía. Agora estou muito no fundo para poder enxergar qualquer coisa, exceto a maneira como o rio escurece de sangue. Lampejos ocasionais de relâmpagos formam as silhuetas de corpos que afundam rápido.

Não consigo me mexer. Minha couraçaEstelar é pesada demais. Eu me deito como uma tartaruga, metade do corpo atolado na lama existente no fundo do rio. Confuso. O medo toma conta de mim. Aconteceu rápido demais. Não consigo nem olhar para a minha esquerda ou para a minha direita para ver quem está comigo. Meu comunicador está morto. Se não estivesse, eu provavelmente ouviria gritos, xingamentos.

Essa couraçaEstelar me trouxe do espaço para a terra. Uma balsa salva-vida, um castelo pessoal no meio da guerra. Agora ela é meu caixão.

Meu coração palpita. Quero gritar.

Batimentos cardíacos acelerados. Uma sensação de terror se prende ao meu peito, retesando-me, fazendo com que eu engula o ar, ingerindo-o como se ele fosse me dar poder para me mover. Calma. Calma. Pense. Pense. Dois corpos afundam perto de mim. Pesados nas armaduras, eles caem com rapidez para se juntar aos outros no fundo do rio. Não há nenhuma graciosidade na morte, eles derramam sangue ao partir. Quando acabarem com aqueles atolados na lama da margem do rio, os matadores virão atrás de nós aqui embaixo. Mas eles não precisam fazer isso. Diminuo minha respiração. Uma quantidade limitada de oxigênio resta no traje. Reciclador off-line.

Cassius conhecia meu plano. Só pode ter sido ele. Ou será que fui traído?

Não contei a ninguém além dos Filhos e Sevro e Mustang. Nenhum deles poderia ter mudado de lado. Ele simplesmente sabia. Aquele porra daquele filho da puta. Se eu pudesse me render, faria isso. Salvaria as vidas daqueles que estão comigo. Mas não tenho um comunicador aqui comigo.

Giro o corpo, tentando me soltar. Mas estou muito atolado na lama e meu traje tem mais de uma tonelada de metal. Não consigo expelir o peso. Não consigo arrancar a couraçaEstelar. Para isso, preciso do meu aparato eletrônico. Faço uma flexão com os braços. Nada. A lama me engole. Mustang escapou. Eu acho. Eu espero. Será que ela sabe que estamos aqui embaixo?

Procuro Sevro, Ragnar, meus Uivadores. Vejo formas escuras ao meu redor. Estou tonto. Diminua a intensidade da porra da respiração. Diminua. Pense. Eles nem vão se importar em vir me matar. Vou morrer no fundo do rio, mirando a superfície à medida que, um a um, meus amigos forem caindo para se juntar a mim. Tão sozinho. Sevro. Ragnar. Pedrinha. Erva. Palhaço. Eles estão mortos. Morrendo. Assistindo às mesmas coisas que eu. Ou quem sabe estão na margem do rio enquanto os Bellona caminham em meio aos paralisados trajes de armadura, matando à vontade. Quero gritar pela minha impotência.

Pare. Faça algo. Mexa-se.

— Quem muito se ufana cai de cara na lama. — As palavras ecoam na minha memória.

Essa é a terceira vez que eles me deixam na sujeira e no lodo para morrer. Cerro os dentes até sentir o esmalte se soltar enquanto ponho toda a minha força na ação de mover o braço direito. Lentamente, muito lentamente, ele efetua um êxodo da pressão sugadora da lama. Mas isso é tudo que se liberta. Não conseguirei soltar as costas. Estou afundado demais na lama. Pesado demais na couraça. Então eu vejo. Quando foi detonado, o globo de Pulsação Eletromagnética ocasionou uma pane nas sinapses elétricas, o que significa que o traje congelou, mas a lâmina ainda está funcionando, e lá está ela como uma sucuri branca enrolada no meu braço.

Ela salvará sua vida pelo preço de um membro. Essas são as palavras que me disseram ao pôr a curviLâmina na minha mão quando eu era criança. Salvação é um sacrifício. O impulso da lâmina é químico. O interruptor dela responderá a mim. Ela ficará esticada. Mas ao redor do meu braço... Tenho de ser rápido.

Respirando fundo, fecho os olhos, sentindo o pino encostado no polegar do meu traje. Preciso ser mais rápido do que uma chama. Mais rápido do que uma víbora-das-cavidades. Ligo o interruptor.

A lâmina enrijece à medida que estica, dilacerando o metal como uma faca dilacera um pudim.

Desligo o interruptor. Ela para ao morder os músculos, mas não os ossos. Dou um ganido diante da terrível dor no meu antebraço. A água avança pelo braço dilacerado para resfriar a ferida quente.

Então fico aterrorizado. Água. Acabei de abrir meu traje para a água. Idiota. Logo ele estará cheio. Já posso senti-la subindo até meu pescoço na parte interna. Em questão de minutos, dois ou três, eu me afogarei. Solto meu braço ensanguentado da carapaça de metal despedaçada e deslizo a lâmina molenga para o lado de modo que ela flutua como um tentáculo. Então aciono de novo. Ela adquire a forma de um mortífero ponto de interrogação e eu a posiciono na direção da outra luva.

Meu traje agora está cheio de água até o torso. O ar está rarefeito. Cada aspiração de ar proporciona o aparecimento de mais estrelas atrás dos meus olhos. Uma sensação de leveza à medida que o sangue vaza dos ferimentos no meu braço. Posso sobreviver um longo tempo prendendo a respiração. Mas estou respirando rápido e agora estou aspirando dióxido de carbono. Mas então minha outra mão está livre da luva do traje. Nua e pálida nessa estranha luz escura. Delicadas nuvens de sangue escapam dela.

Se eu não tivesse nascido para ser um Mergulhador-do-Inferno, morreria neste leito de rio. Mas, sendo um, arranco minha couraçaEstelar e armadura por baixo com golpes da lâmina. É minha habilidade que me salva. Não consigo mexer a cabeça por causa do peso do capacete. Não consigo ver onde estou cortando. Minha pele e a dor que ela registra fazem a função dos meus olhos. Centímetro a centímetro, removo a mim mesmo da couraçaEstelar. Centímetro a centímetro, arrasto a mortífera lâmina pelo corpo. Lançando meu sangue e a couraça na água. Partindo o exoesqueleto. Sou como um gafanhoto deslizando para fora da sua casca morta. Com muita delicadeza, removo o capacete, cortando-o na altura do pescoço. Prendo a respiração e apenas encosto de leve na garganta.

Um arranhão. Perto demais da jugular.

Minhas pernas são a última parte do corpo que liberto. Eu me sento, os pedaços quebrados do traje coçando minha pele, e puxo a perna direita para tirá-la do metal rachado. Estou vivo e ferido no rio frio e escuro. Sem capacete. Prendendo a respiração enquanto pontinhos pretos pipocam na minha vista. Agora sou capaz de enxergar o campo cheio de homens ao meu redor no fundo do leito do rio. Nado sobre o maior deles e vejo os olhos fechados de Ragnar por trás da placa plana da sua couraçaEstelar. Lágrimas pingam deles. Seus pulmões são grandes, mas não pode haver muito oxigênio de sobra naquele traje. Ele consegue se mover melhor do que eu conseguia por causa da sua grande força. Mas nenhum homem munido de armadura poderia nadar nessa água.

Eu não achava que ele pudesse chorar. Contudo, agora ele chora, em silêncio. Não lágrimas grandiosas e dramáticas. Elas são diferentes, calmas. E quando ele abre os olhos, vejo algo mais nele. Alguma parte adormecida da sua alma se acende. Ele estava morto, cedera ao seu destino. Contudo, aqui estou eu flutuando em tecido tático preto totalmente despedaçado, ensanguentado, a aparência desmazelada, mas livre da minha couraça. Sou a sombria esperança dele. Começo a cortar, muito embora meus próprios pulmões estejam berrando. Preciso dele. Não consigo procurar Sevro. Não há tempo. E não posso subir à superfície apenas para ser morto assim que for avistado.

Trabalho nele como se fosse um Entalhador habilitado até que ele solta a si mesmo do seu exoesqueleto. Os outros viram o que estamos fazendo. Mas ainda não temos condições de ajudá-los. Eles precisam aguentar.

Ragnar e eu batemos braços e pernas através da forte correnteza em direção à superfície. Pulmões sedentos. O corpo pálido e tatuado de Ragnar se move através da água com uma desenvoltura que eu não consigo igualar. Eu não tinha percebido que Obsidianos eram nadadores tão bons. Faz sentido para alguém nascido perto das banquisas de gelo.

Estamos próximos da superfície quando minha mente perde para o meu corpo. A três metros da superfície, começo a inalar água.

Escuridão.

Sinto lama entre meus dedos. Alguma coisa se move através do meu peito. Água. Eu a vomito, expelindo-a em cima de uma mão áspera agarrada à minha boca, aquietando-me. Continuo vomitando através dos dedos. Então sinto uma explosão de prazer quando enfim consigo arquejar em busca de ar. Lindo ar. A mão ainda cobre minha boca. E, por um momento, não há nada. Apenas o puro orgasmo da vida entrando nos meus pulmões. Oxigênio preenchendo completamente órgãos vazios e doloridos. E, de repente, o som de armamentos ao longe se eleva. E os gemidos de homens. Estamos num campo de cadáveres. As torres do muro bem no alto. O rio corre em alta velocidade aos nossos pés. Faz alguns minutos desde a detonação da Pulsação Eletromagnética, mas parece que o dia passou e nos deixou para trás.

Ragnar me arrastou para a lama entre dois Obsidianos Mortos. Dois Ouros Bellona, seis Obsidianos e seis Cinzas caminham ao longo da escura margem do rio, acabando com os que estão deitados, indefesos. Temos sorte que o restante deles abandonou a chacina para voltar ao combate no muro. Cassius os terá levado para lá, com certeza. Isso significa que ele não sabe que era eu que me encontrava aqui, mas estava bastante ciente do buraco feito pelos Filhos, pelo menos. Por minha causa ele teria ficado. Sorte minha eu não estar carregando a bandeira que Palhaço e Erva fizeram para mim. Sorte dupla minha eu não ter deixado que eles usassem seus mantos lupinos.

Essa lama é um cemitério. Meus soldados estão parcialmente enterrados aqui. Alguns tentam se levantar na pesada e morta armadura, apenas para escorregar de volta à lama ou ser chutados ao chão pelos Ouros e implacavelmente massacrados. A maioria permanece deitada e quieta. Um campo de besouros munidos de armadura vazando vermelho.

Os Cinzas fazem piadas uns com os outros enquanto realizam metodicamente sua tarefa, gastando o tempo num Obsidiano preso de costas, usando lançasForça para furar a espessa couraçaEstelar e prendê-lo no chão como se fossem meninos torturando um caranguejo encalhado. Por fim acabam com ele com balas para perfurar armaduras, chamadas escavadoras, atiradas dos seus rifles.

Ragnar faz um gesto na direção da lama. Parcialmente nus, ele e eu nos cobrimos com o troço pesado e escuro. A lama refresca as lacerações traçadas no meu corpo e cobre as tatuagens no dele. Faço um gesto para um dos capacetes Ouro e uma mímica indicando que o oxigênio dos nossos sobreviventes está se esgotando. Ragnar faz que sim com a cabeça. Saco uma lâmina do corpo de um Ouro morto. Não consigo identificá-lo. E a entrego a Ragnar. Ela só viu mãos de Ouro até hoje. Nenhum Pretoriano, nenhum Obsidiano, nem mesmo um daqueles com distintivos da própria Soberana tocou essa arma desde a Revolta Escura. Tocá-la significa morrer de fome. Nenhuma possibilidade de alcançar o Valhalla. Apenas fome e frio e o fim. Mas nossos inimigos terão consigo pulsoEscudos. Nenhuma outra arma servirá.

Ragnar a solta como se o objeto fosse feito de fogo. Eu o empurro de volta para as suas mãos trêmulas.

— Eles não são deuses.

Como sombras tiradas do Estige, nós nos esgueiramos pelo cemitério. Nossos inimigos não estão nos grupos de combate. Alvos fáceis. Rastejo adiante como uma horrível aranha, quase sem levantar o corpo do chão, para matar dois Obsidianos antes mesmo de eles se virarem. Ragnar quebra o pescoço de um deles e parte um outro em dois, a placaRecuo escapando. Levantando-me, disparo na direção do mais alto dos Obsidianos, pulo e enterro a lâmina no seu corpo. Aterrisso sem jeito sobre o braço ferido. Nem sinto a dor. Excesso de adrenalina. Vejo o esquadrão de Cinzas se virando e então caio com o corpo do Obsidiano e rolo na lama, deitando-me na sombra e na sujeira entre os outros cadáveres. Seus riflesRetráteis e armas pulsantes me fatiariam em segundos se não fossem meu escudo e minha armadura. Ragnar também desapareceu. Não sei para onde.

O tempo passa. Quanto oxigênio eles poderiam ter deixado? Os Cinzas no nosso encalço gritam alguma coisa sobre fantasMantos. Os Obsidianos restantes se agrupam com os dois Ouros. Os Cinzas passam pelos corpos, acabando com o que resta dos meus homens para revelar minha presença e a de Ragnar aos Ouros e ao Obsidiano. Lea morreu desse jeito, na lama. Eu não morrerei assim. Não outra vez.

Eu me levanto, não com um grito, não com um uivo. Em silêncio. Que os Cinzas tentem me ver chegando. Sou rápido. E estou quase em cima deles quando eles abrem fogo. Invisto contra eles, esquivando-me dos tiros, serpenteando, como se fosse um balão à solta. Nenhuma beleza nesse movimento. Apenas terror frenético. Não consigo enxergar as balas. Sinto apenas a proximidade delas. Sinto seu calor passando por mim. Sinto o golpe quando sou atingido no bíceps. O choque perpassa meu corpo. A pele é dilacerada quando a bala penetra na carne, nos tendões, nos músculos e em seguida sai pelo outro lado, triturando o osso. Dou um grunhido. E em seguida estou em cima deles, e eles não fazem barulho algum.

Eles perderam suas janelas.

Doze inimigos caem em função das lições de Kravat dadas por Lorn. Doze homens e mulheres.

Os Ouros e o Obsidiano vêm na minha direção agora. Os Ouros usam suas gravBotas. Ragnar se levanta da lama e arremessa sua lâmina pelo ar como se fosse uma lança. O imenso Obsidiano cai na lama enquanto Ragnar investe contra os dois Ouros, pegando uma outra lâmina no chão.

Fico maravilhado com o poder dele. Ele agarra um dos Ouros pelo pé quando eles voam pelo ar. O pulsoEscudo o eletrocuta, fazendo com que uma dor pungente lhe atravesse o corpo. Mas ele apenas rosna, aguentando e, com um grito vindo não da garganta mas da alma, ele joga o Ouro no chão com um soco como se estivesse cortando lenha. De alguma maneira, ele consegue arrancar a bota. O esguio Ouro rola para longe, gritando “Manchado!” para o seu amigo, que volta em seu auxílio para que ambos possam encarar Ragnar juntos.

Corro para ajudar Ragnar.

— Ceifeiro! — Um dos Ouros retrai o capacete para o interior da armadura, revelando o rosto altivo de um Inigualável. Confiante na sua patente. Na sua herança. No seu lugar. Seu rosto é todo alegria. Então o rosto se contorce quando ele vê a lâmina de Ragnar.

— Você dá a lâmina dos seus ancestrais a uma besta? — Ele olha com raiva para Ragnar. Em seguida para a lâmina, furioso, confuso. — Você não tem honra?

Escolho não responder.

— Saiba quem você está encarando, Andromedus — diz o Ouro mais velho, a voz cheia de ira. — Sou Gaius au Carthus, do gene Carthii. Construímos as Colunas de Vênus. Fomos os primeiros a navegar no hiato entre as Bordas Internas e Externas e extraímos minério do Aglomerado Helsa.

— Isso aqui não é a Ilíada. Ragnar, mate esse idiota. A gente precisa das gravBotas dele.

O Ouro cospe.

— Você manda um cão combater por você?

— Eu sou um homem! — rosna Ragnar, com mais intensidade do que o rugir dos motores de uma nave que passa. Saliva voando, o rosto áspero de raiva. As veias incham no seu pescoço. Ele uiva, disparando antes que eu possa ao menos erguer minha lâmina. Ele levanta o cadáver do Obsidiano caído e o utiliza para se desviar das lâminas deles. Ele dá um soco em Gaius. Nenhuma arma. Apenas o punho dele. Ragnar o atinge com tanta força no pulsoEscudo que o homem cai para trás. Então ele mata o outro, investindo contra as defesas dele com uma fúria insana até cortá-lo em dois. Ele chuta para o lado o cadáver e derruba Gaius, que afunda na lama escura enquanto Ragnar avança e, músculos tremendo por haver tocado o pulsoEscudo, encosta a lâmina no pescoço do Ouro.

— Renda-se a mim e viva — ribomba Ragnar.

Gaius cospe, postando-se de joelhos.

— Renda-se a mim como um homem se rende a outro homem.

— Nunca. — Os lábios de Gaius franzem acidamente. Ele pronuncia suas últimas palavras em alto e bom som, com ódio e coragem. Tudo o que é bom e tudo o que é mau nesse povo extraordinário. — Sou o Inigualável Legado Gaius au Carthus. Sou o sumo da humanidade. Portanto, não irei me render. Pois um homem não pode se render a um cão.

— Então vire terra. — Ragnar empurra a lâmina.

Rebocamos nossos homens do fundo do rio. O mais rápido que podemos, usando gravBotas roubadas, mas não rápido o suficiente. Sevro não está morto, mas quase. Eu o encontro enterrado de cabeça na margem do rio. Ele está xingando e cuspindo quando o puxo com a ajuda de Palhaço e Pedrinha.

— Os mortos? — pergunta ele em voz baixa. — Meus Uivadores?

— Muitos — diz Palhaço tenuemente.

— Mustang conseguiu passar?

Todos eles olham para mim.

— Acho que sim — digo. — Mas não consigo entrar em contato com ela em nenhum comunicador. Precisamos correr de um jeito ou de outro. Se ela estiver viva e conseguir explodir os geradores pra que nossos reforços possam pousar, o escudo vai cair e a Soberana vai ter uma janela ampla de fuga. Nesse exato momento, ela está sem capacidade de movimento.

Sevro balança a cabeça em concordância. A pequena Pedrinha lhe dá uma mão para que ele se levante. A pequena Cardo, mal atingindo o plexo solar de Ragnar, o vê com uma lâmina na mão enquanto liberta um outro Obsidiano de uma couraçaEstelar morta.

— Solte isso — dispara ela.

Ragnar solta a arma e olha para mim num estranho pânico. Faço um gesto para que ele espere.

Depois de passarmos pelos trajes daqueles que caíram na margem do rio, sabemos o número total, e é tão devastador que Sevro se afasta. Erva está morto. Costas-Podres está morto. Harpia morreu antes de atingirmos o chão. E muitos dos novos recrutas estão mortos. Só restaram Cardo, Palhaço, Cara Ferrada e Pedrinha. Onze dos cinquenta Obsidianos que existiam originalmente permanecem vivos.

Pedrinha e Palhaço tocam o rosto de Erva, seus penteados estilo moicano achatados na cabeça enquanto a chuva nos encharca a todos. Pedrinha bate com força no peito dele, suas mãozinhas acertando o coração do companheiro como se isso o trouxesse de volta. Cardo vai puxá-la de cima dele enquanto Palhaço usa lama para alisar os cabelos moicano de Erva, idênticos aos seus, na morte. Sevro não consegue assistir a isso. Vou me posicionar ao lado dele.

— Eu estava errado a respeito da guerra — diz ele.

— Não posso fazer isso sem você. — Depois de um momento desesperado: — Você está comigo? Sevro?

Ele se afasta e assoa o nariz, enlameando o rosto. As lágrimas fazem linhas na lama enquanto ele levanta os olhos para mim, a voz falhando como a de uma criança.

— Sempre, Darrow. Sempre.


41

Aquiles

Não há tempo para prantos. Minha força está dizimada, precisamos nos dividir ainda mais. Meu exército do lado de fora da cidade escala muros impenetráveis, esperando ajuda do lado de dentro. Eles não receberam nenhuma. Meus Legados comunicarão meu sinal, imaginando que eu morri. Um boato como esse poderia nos fazer perder a batalha.

Envio Ragnar com o que resta de Obsidianos para que abram um dos portões do muro para os meus Legados que estão esperando por nós com milhares de Cinzas e Obsidianos de reserva.

— Eu não vou te dar Ouro nenhum — digo a Ragnar. — Você entende o que isso significa?

— Entendo.

— Isso pode ser um começo — digo em voz baixa. Eu me curvo, pegando uma lâmina descartada na lama sugadora. — É tarefa de um homem escolher seu próprio destino. Escolha o seu. — Entrego a lâmina a ele.

Ragnar olha de volta para os Obsidianos. Suas armaduras estão amassadas por terem sido destrinçadas dos trajes. E eles estão empapados de lama. Menores do que ele. Alguns delicados e quietos. Outros imensos e mexendo os pés com ansiedade. Todos com aqueles olhos pretos e cabelos brancos. Eles se munem com as armas tiradas dos Cinzas e dos Obsidianos que matei. Dificilmente suficientes para circular pela área de combate, e serão de pouca utilidade se derem de cara com Ouros.

Ragnar escolhe. Ele estende a mão. Os Uivadores se preparam atrás de mim, Cardo ainda olhando para ele de maneira maligna.

— Escolho te seguir — diz ele. — E escolho liderá-los.

Ponho uma lâmina na mão de Ragnar.

— Darrow! — diz Cardo, arfando. — O que você está fazendo?

— Cale essa boca — rebate Sevro.

— Ele não pode fazer isso! — Cardo avança e tenta arrancar a lâmina da mão de Ragnar. Ele não solta a arma. — Desista disso. Escravo. Me dê essa lâmina. — Ela saca sua própria lâmina. — Me dê essa lâmina ou vou cortar a mão que a segura.

— Então vou cortar a sua, Cardo — diz Sevro com sarcasmo.

— Sevro? — Cardo se volta para ele, com os olhos arregalados. Ela olha para mim, para os outros Uivadores que se mantêm quietos, sem saber ao certo o que acaba de acontecer. — Você enlouqueceu? Ele não tem esse direito. Esse direito é nosso. Ele não...

— Merece a lâmina? — pergunta Sevro. — Quem é você pra decidir isso?

— Sou uma Ouro! — diz ela com um grito agudo. — Palhaço, Pedrinha...

Pedrinha permanece em silêncio. Palhaço inclina a cabeça.

— Darrow, o que é isso?

— Isso é meu exército — digo. — Você se lembra do Instituto. Você se lembra de como derramo meu sangue pra todos aqueles que me seguem. De como não exijo obediência de escravos. Por que você agora está surpresa por isso? Por que é de verdade?

— É um declive escorregadio, só isso. — Palhaço olha para a guerra ao nosso redor. — Mesmo aqui.

— Você tem razão. É escorregadio mesmo. — Eu me curvo e encontro uma outra lâmina lançada à lama. Jogo essa para um outro Obsidiano, uma mulher de aparência desagradável com metade do meu tamanho. Ela a segura como se fosse uma cobra, olhando de relance para mim com medo. Eles foram criados acreditando que somos deuses. Receber o martelo de Thor... Como eu o seguraria? Sevro caminha em meio aos cadáveres e encontra diversas outras lâminas. Ele as joga para os Obsidianos.

— Não se cortem — diz ele.

— Estou contando com vocês. Vão — digo-lhes. Eles desaparecem, disparando na escuridão inchada em direção à parte traseira do colossal muro. Eu me viro para os Uivadores. — Algum problema? — Eles todos balançam as cabeças rapidamente, exceto Cardo.

— Cardo? — pergunta Sevro.

Palhaço a cutuca. E, de má vontade, ela balança a cabeça.

— Sem problema.

Existe um problema, contudo. Ela não vai me seguir depois disso. Já sinto meus amigos me dando as costas. E eles não sabem nem uma fração da verdade. Esse é um problema para um outro dia.

Precisamos nos mover com rapidez. Mas temos apenas um par de gravBotas funcionando entre nós. Eu as dou a Sevro. Tentamos ver se ele consegue nos levantar como levantei os Uivadores no Olimpo mas, à medida que subimos nas botas, elas começam a roncar e soltar fagulhas. Capazes apenas de carregar o peso dele. Estragadas, de alguma maneira, durante o combate e o resgate. Porra.

Então será a pé. E não podemos diminuir nossa velocidade.

Aponto para a placaRecuo daqueles sortudos o bastante para continuar com uma depois das amputações de couraçasEstelares.

— Tirem as armaduras.

— O quê? — diz Cardo, indignada.

— Tirem as armaduras. Exceto as pelEscaravelhos.

— Sem armadura contra Pretorianos? — uiva Cardo. — Você quer que todo mundo morra?

— Precisamos andar com rapidez. Se o escudo for baixado antes de chegarmos à Cidadela, a Soberana vai conseguir escapar. Se não a capturarmos, ela vai ter uma chance de se reagrupar. Ela vai se juntar a Lorde Ash. Ela vai convocar toda a Sociedade, e eles vão vir aqui com um número de homens dez vezes maior pra nos esmagar. Vamos vencer a batalha e perder a guerra.

— Mas se a gente pegá-la... — rosna Sevro, vindo para o meu lado.

— Estamos falando da Soberana — diz Palhaço. — Ela vai ter do lado dela Cavaleiros Olímpicos Pretorianos...

— E? — pergunta Sevro. — A gente tem a gente.

— Seis de nós. — Palhaço dá de ombros timidamente quando eu o encaro. — Só achei que alguém tinha que observar isso.

— Temos quinze quilômetros pra cobrir a pé — digo. Eles balançam a cabeça em concordância. — No meu ritmo. — Então eles trocam olhares preocupados e começam a tirar as armaduras. — Se vocês ficarem pra trás, achem um lugar pra se esconder. — Um terço da gravidade da Terra. Corpos em ótima forma. Mesmo assim isso vai ser difícil. Sobretudo com meu braço barbaramente mutilado pela minha própria lâmina.

Sevro se apoia em mim enquanto os Uivadores tiram suas armaduras. Consigo ouvir o terror deles no clangor das armas e da armadura sendo tirada por mãos trêmulas, consigo vê-lo na maneira frenética com a qual eles, depois disso, esfregam a lama no rosto para escurecer seus aspectos.

— Eles estão com você desde o início, Darrow. — Sevro olha ao redor do parque devastado pela guerra, para a distante Cidadela e para as naves passando em chamas. — Já somos metade do número que tirou você de Luna. Você pode muito bem ter substituído Pax por Ragnar, mas não pode substituir esses aqui. Ou a mim.

— Pensei que você estivesse comigo.

— Sou sua consciência. Sigo seu rabo em todos os lugares. Então pare de ser esse cabeça de merda.

— Registrado. Comigo! — grito.

Armaduras tiradas, partimos em silêncio. Apenas nossas lâminas e pelEscaravelhos conosco. Usando subsapatos com sola de borracha em vez de gravBotas. Seguimos ao longo do rio, deixando o muro para trás. Disparando através de hectares e hectares de parques gramados e florestas que separam o muro da cidade à medida que a guerra mecanizada explode ao longe. Naves passam rosnando, fazendo com que os galhos das árvores estremeçam e as folhas caiam. Trens de solo tremeluzem bem longe à nossa direita, transportando soldados à frente de batalha. Explosões produzem fumaça ao longe. Nuvens consomem o céu além do grande escudo que recobre a cidade. Explosões lampejam dentro das nuvens.

Mustang estará se aproximando dos geradores do escudo agora, se estiver viva.

É um ritmo acidentado, cobrindo quinze quilômetros em disparada. Meu flanco sofre pontadas de dor. Os músculos anseiam por oxigênio. E meu braço direito dói devido à sangrenta ferida de bala no bíceps e às lacerações que sangram ao longo do antebraço e do punho. Tomei metade de um pacote de estimulantes para ter condições de usar o braço. A dor não é cega. Ela é focada. Ela me impede de pensar nos mortos.

Quando alcançamos o limite da floresta, não paramos para descansar, mas disparamos para as ruas pavimentadas do distrito comercial, avançando em meio aos prédios que assomam um quilômetro de altura em direção ao céu. Corremos através de baixoDistritos desertos, o bazar onde corredores sinuosos nos levam por ruas ásperas e muros cheios de grafites. Um ou outro Marrom ou Rosa ou Vermelho rasteja para longe do nosso caminho ou dá uma espiada em nós pelas janelas, dos becos. Mesmo aqui, no centro do reino deles, vejo os grafites a respeito da morte de Eo. Os cabelos dela estão em chamas como os combatentes feridos que deixam rastros no céu além dos transparentes escudos de Agea. Alguém vomita atrás de mim. Eles não param. O fedor de bile viaja conosco.

Sevro voa de volta a nós e aterrissa ao meu lado.

— Pelotão de Cinzas à frente. Sigam na direção sul por um quarteirão e depois voltem, pra evitar contato com eles. — Em seguida ele parte de novo. Seguimos suas instruções.

De súbito, há movimento no céu e diminuímos o ritmo para uma corridinha com o objetivo de observar. Pedrinha aproveita a oportunidade para desabar na calçada, o peito subindo e descendo. Bem no alto, mas ainda abaixo do escudo, uma horda de ônibus espaciais transporta soldados do engajamento menor no muro ao sul, onde Lorn está lutando, para o muro ao norte para onde Ragnar e seus Obsidianos se dirigiram. Dezenas de ônibus espaciais cheios de reservistas partem das docas nos hangares e portos que enchem os paredões rochosos de sete quilômetros de altura do Valles Marineris a leste e a oeste. A maioria dos quartéis está ali, assim como as fábricas onde altoVermelhos trabalham com escravos fazendo armamentos e bens de consumo comerciais. Nós nos escondemos da embarcação. Alguma coisa aconteceu no muro ao norte. Partimos mais uma vez. Pedrinha geme. Cardo a levanta e a mantém operante.

Sevro se junta a nós minutos mais tarde, seu braço esquerdo pendendo mole ao lado do corpo. Olho para o braço. Ele ignora minha preocupação.

— Ragnar abriu os malditos portões. — O rosto dele se abre num sorriso. — Doze deles na face do muro. Nossos rapazes estão entrando aos borbotões. E... — Ele fica lá parado, dando um risinho.

— E o quê?

— E Ragnar matou o Cavaleiro do Vento e quase acabou com Cassius.

— Um Olímpico? — Palhaço arqueja.

— Cortou o Cavaleiro na frente do exército inteiro. Os Obsidianos no exército estão ficando absolutamente maníacos.

Então Sevro vai embora e seguimos caminho. Um esquadrão de policiais Cinzas nos ataca. Nós nos protegemos enquanto o tiroteio deles enche as calçadas de pontinhos pretos, e então nos desviamos em direção a um beco para evitá-los.

Quatro quilômetros até alcançarmos nosso destino.

Tossindo e arfando, cambaleamos em direção à parte externa do território da Cidadela. Nós nos escondemos nas árvores de lá como um bando maltrapilho de demônios proscritos. Através do fino bosque de árvores e depois de um muro alto encontra-se a Cidadela, uma rede de espigões. Não dourados, mas brancos com faixas vermelhas e ainda decorados com as estátuas leoninas de Augustus, embora bandeiras azul e prata dos Bellona batam à brisa sobre um cata-vento em formato de leão. A águia de prata deles parece muito orgulhosa até Sevro acenar para nós do cata-vento e cortar uma das bandeiras. Eles não esperavam que alguém pudesse penetrar tão fundo nos seus domínios.

À parte sua beleza, a Cidadela é também uma fortaleza. Uma fortaleza na qual não quero me emaranhar. Iríamos de sala em sala e, supondo que ela não estivesse completamente esvaziada de soldados, seríamos dominados, pregados nos seus caros muros de carvalho vermelho e mortos nos seus pisos de mármore. A Cidadela não é protegida por um escudo, mas uma rede de bunkers se encontra bem abaixo dela. Eu estava preocupado imaginando que fosse esse o local onde a Soberana seria mantida. Se ela fosse colocada lá, a operação iria se transformar num sítio. Seriam dias e dias até que conseguíssemos desenterrá-la de lá, se é que conseguiríamos mesmo. Então deixo a ela uma trilha de fuga. Tudo recai sobre os ombros de Mustang: o escudo precisa ser baixado no momento adequado, para tirá-la do esconderijo.

Um muro decorativo, um muro que normalmente não seria nada mais do que um pulinho numa gravBota, nos impede de ter acesso ao silencioso território da Cidadela. Ao nosso redor existem apenas parques. Árvores. Fontes. Praças brancas onde Ouros e Pratas tomariam seu chá da tarde agora estão vazias. Muito silencioso aqui no olho do furacão. Sevro desce para se juntar a mim.

— Você consegue nos levar pro outro lado do muro? — pergunto.

— Estou quase sem combustível por aqui — resmunga ele. — Vamos tentar. — Nós nos abraçamos e ele me levanta no ar, estremecendo e protegendo o braço esquerdo. As botas chiam e tremem, lançando fagulhas. Duas vezes descemos. Em seguida subimos no topo do muro. Desço e Sevro volta para o outro lado para pegar o Uivador seguinte. Momentos mais tarde, sua cabeça aparece no topo do muro por um instante e então desaparece à medida que as gravBotas lançam fagulhas no ar e chiam. Com um último estalo mecânico, as botas enguiçam e Sevro e o Uivador caem no chão de uma altura de dez metros.

Um grande estrondo é ouvido do outro lado da cidade. Fumaça sobe ao longe.

Mustang conseguiu.

Acima de nós, o translúcido escudo que separava este mundo do mundo das naves cai. Ele balança e, distorcendo os incêndios na cidade e os relâmpagos acima como um espelho corrompido, se despedaça numa névoa prismática. Ou melhor, um oitavo dele se despedaça; uma torrente de água confinada cai naquela seção da cidade em grandes lençóis cinzas.

— Não funcionou! — grita Pedrinha do outro lado do muro.

Mas funcionou, sim. Um a um, os nexos que formam o escudo ficam sobrecarregados. É uma reação em cadeia quando enormes lençóis de água oriundos da tempestade afinal caem em Agea. Roque, se estiver vencendo, lançará os reforços. A cidade está mais tomada do que nunca. E agora mesmo a Soberana será extraída dos bunkers pelos seus guarda-costas para escapar do planeta perdido. Mas as plataformas de lançamento de ônibus espaciais ainda estão a dois quilômetros de distância, no outro lado do território da Cidadela. Tudo foi planejado para que ocorresse de modo diferente. Eu deveria estar na minha armadura, uma centena de Obsidianos atrás de mim, uma dúzia dos meus melhores Ouros. Em vez disso, lidero um bando formado pelos meus amigos em direção a um moedor de carne. Preciso mudar o paradigma, mas não vou pô-los em risco. Olho abaixo do muro para Sevro, que de pronto reconhece o que meu olhar descreve.

— Não, Darrow — diz ele. — Pense na sua missão! — Ele está me implorando, pulando e dando socos no muro enquanto lhe dou as costas. — Não faça isso, Darrow. Espere! Eles vão te matar!

Salto no outro lado do muro em direção aos jardins da Cidadela.

Alguns homens possuem fios de vida tão fortes que brigam e lutam com os que estão ao redor deles. Uma quantidade suficiente de amigos pagou pela minha guerra. Essa aqui é por minha conta.

— darrow! — berra ele de modo horrível, desesperado. — pare!

Corro numa rapidez que jamais imprimi em toda a minha vida. A Soberana não vai fugir de mim. Fiz tudo isso para capturá-la. Pegá-la significa quebrar a Sociedade. Pegá-la significa que o palco está montado. Nós nos levantaremos. Nós podemos vencer. Pulo por cima de fileiras de arbustos, disparo ao redor de fontes, despedaçando roseiras. O sangue escorre pelo meu braço. Não sinto meu corpo. Voo sobre a terra. CurviLâmina na mão.

Ali.

Viro numa esquina da Cidadela. Depois de um jardim de rosas há um pátio branco transformado em preto pelos motores dos iates particulares. Quatro solitárias naves estão numa zona de aterrissagem que pode comportar uma centena delas. Todos os ônibus espaciais são pretos com um gigantesco crescente dourado nos seus amplos chassis, mas o mais largo deles, um modelo com motores maiores e um casco reforçado, pertence à Soberana. Os outros são iscas, quase tão largos, quase tão revestidos de armaduras. No ar, eles são indistinguíveis.

Fui visto nos sensores, não há dúvida quanto a isso. Pelotões de mestiços Cinzas estão vindo no meu encalço. Guarda-costas Obsidianos foram liberados de algum quartel escondido para me matar. Eles só me pegarão se eu parar. E mesmo enquanto examino a plataforma de lançamento, o ritmo da minha corrida não diminui. Laranjas perambulam ao redor das naves pretas, preparando-as para o lançamento. Não estou muito atrasado. Mas a porta da Cidadela está bem mais perto da nave do que eu.

Eles vêm em disparada. Eu não a vejo. Apenas capas púrpuras rodopiando na chuva e no vento. Eles abaixam as cabeças para se proteger da ventania, olham para o céu onde rastros deixados pela invasão da Chuva de Ferro refulgem atrás da tempestade, fazendo com que as nuvens escuras pareçam aço aquecendo lentamente na forja. Meus Titãs estão chegando.

Os Pretorianos correm, subindo em alta velocidade a longa rampa que dá acesso ao ventre da nave da Soberana. Consigo ver o rosto de Octavia quando ela se abaixa para entrar no ventre da nave. Vejo Aja entre seu séquito. E Karnus. E Fitchner, aquele filho da puta repugnante e traidor. Corro com mais rapidez. Pernas dormentes de exaustão. Pernas doendo. Tudo o que sou, imprimo nesse momento. Minha vida nas minas, as horas sofrendo com Harmony, os horrores no Instituto. Todo o amor que recebi e perdi e pelo qual ainda desejo viver, deixo queimar dentro de mim.

Metade do séquito espera na calçada, deixado para trás com o objetivo de observar a nave enquanto suas luzes brilham e seus motores são ligados. As iscas imitam seus movimentos. Um Ouro Bellona se vira quando me aproximo. Seus olhos brilham, arregalados, e eu o corto na corrida enquanto ele deixa escapar um quase grito. Os outros se viram — mulheres, homens, guerreiros, políticos, Ouros e Pratas que reconheço dos meus dias ao lado de Augustus.

A percepção que eles têm da minha presença chega em ondas. O inimigo deve estar nos portões, não entre eles, de modo que todos estremecem ao me ver. E quando por fim o que veem pela frente faz sentido, já passei pelas suas mãos protegidas pelas armaduras. Eu me desvio da mão esticada de um Cinza e arranco um saquinho de munição da sua cintura. Dou um golpe para trás, atingindo sua carne com minha lâmina.

Gritos. Mãos remexendo os trajes em busca de lâminas. Balas, pulsorajadas, passam pela minha cabeça zunindo nos meus ouvidos. A rampa se retrai à medida que a nave começa a levantar voo. Dou um grito e salto com toda a força que jamais tive. A mão do meu braço direito contundido agarra a borda da rampa. Meus olhos quase se soltam da cabeça com o esforço e a dor nos meus dedos. A nave continua a subir. O rugido dos motores me preenche, chacoalhando meu coração de encontro às costelas. A rampa continua a se fechar. Rosno em desespero e impulsiono meu corpo para cima de uma maneira esquisita no ângulo estranho em que me encontro, mas um movimento possível na baixa gravidade. Rolo para a frente em direção à baia, posicionando-me de joelhos e arfando, curviLâmina encostada no chão. O som dos motores some aos poucos à medida que a porta se fecha e a aeronave é pressurizada. Tudo o que ouço é minha respiração entrecortada e o rugido da mortífera nave no seu voo de fuga.

Olho para cima.


42

Morte de um Ouro

Seis Pretorianos com armaduras completas me vigiam. Karnus está com eles. E Aja. E o atarracado Fitchner, seus olhos se arregalando ao me ver. A Soberana se encontra em frente aos seus Pretorianos, alta mas dificilmente chegando aos ombros deles.

Porra. Não pensei que eles todos ainda estariam aqui na baia.

— Darrow? — Fitchner está quase gemendo.

— O quê? — diz Karnus, rindo, olhando ao redor para ver se os outros notam como um presente tão ridículo acabou de cair no seu colo. — O quê?... Andromedus, de onde você vem? Parece que Zeus em pessoa acabou de cagar você.

Fico de joelhos, arfando, pingando sangue e chuva e suor e lama.

— Podemos utilizá-lo como refém — diz Fitchner rapidamente enquanto a nave ascende ao céu.

— Não — responde a Soberana. — Uma recompensa jamais teria sido paga por Aquiles, já que, ao ser capturado, ele perde o que faz dele Aquiles. — Ela olha para mim por um frio momento. Cuspo catarro no chão. — Aja, corte a cabeça dele.

Aja anda rápido na minha direção.

— Rapaz estúpido. Sem amigos. Sem exército. Sem esperança.

Eu rio sombriamente.

— Quem precisa de esperança quando se tem uma pulsoGranada?

Levanto as munições que roubei do cinto do Cinza. Eles recuam.

— O que você quer, Andromedus? — pergunta devagar a Soberana.

— Provar que você não é invencível. Pousar esta nave.

Octavia sorri e fala no seu comunicador.

— Piloto. Volte.

O piloto faz uma volta ao longo do eixo longitudinal. Sem gravBotas eu me solto do chão, batendo de encontro ao teto e em seguida de volta ao deque, soltando a granada. Meus inimigos permaneceram enraizados nos seus lugares. Aja chuta a pulsoGranada para fora pela escotilha aberta. Ela explode bem abaixo da nave.

Olho para a noite, onde meu plano simplesmente desapareceu.

— Orgulho — diz Octavia, sorrindo. — Tenho a impressão de que isso faz de todos nós tolos.

Levo um tempo olhando para ela, percebendo o quanto fui estúpido ao pensar que poderia controlar todas as variáveis. E agora dei uma escorregadela.

— Você não vai escapar — digo.

— Você sabe que vou. Por que outro motivo você se arriscaria saltando na minha nave? — Ela faz um aceno de cabeça para um dos Cavaleiros Olímpicos e um trinado estranho, agudíssimo, ondula pelo ar duas vezes antes de arrefecer. Um fantasManto. Impossivelmente caro para uma nave inteira. Meus amigos não virão me resgatar.

Octavia au Lune se vira para Fitchner.

— Cavaleiro Raivoso, você tem consigo uma nanoCam? — Ele faz que sim com a cabeça e pega um anel. — Registre Aja matando o Ceifeiro.

Fitchner empalidece.

— Deixe-me matá-lo — implora Karnus. — Minha Soberana, deixe-me matá-lo pela minha família. É direito meu.

— Direito seu? — pergunta ela, surpresa. — Sua família me fez perder Marte. Você não tem nenhum direito.

— Ele ficaria melhor na condição de prisioneiro. — Fitchner dá um passo na direção da Soberana. — Deixe-me falar com ele. Ele é meu aluno. Você quis que ele lhe servisse uma vez no passado, Octavia. Deixe que ele se retrate e faça isso de novo. Isso mostrará a grandeza do seu poder, mostrará que você é capaz de perdoar até mesmo um bebedorzinho de mijo como esse.

A Soberana se vira sem pressa para olhar para Fitchner, examinando-o. E ele percebe que cometeu um erro.

— Aja, espere. — Ela sorri. — Quero que Fitchner o mate.

O homem feioso fica boquiaberto. É uma das primeiras vezes que o vejo mudo.

— Mate seu aluno — diz a Soberana. — Ou você não é leal?

— É claro que sou leal. Já provei isso.

— Então prove mais uma vez. Traga-me a cabeça dele.

— Deve haver uma outra maneira.

— Ele pôs seu filho contra você — diz Octavia. — E você sabe que não mantenho ao meu lado coisas em que não posso confiar. Portanto, mate-o.

— Sim, minha Soberana. — O rosto de Fitchner está crispado em concentração. Há um estranho torvelinho de tristeza nos seus olhos brônzeos. Será que é assim tão terrível ver seu estimado aluno morrer? Ou será pelo fato de que sou amigo de Sevro? Ou será que é preocupação com Sevro?

— Sevro está vivo — digo-lhe. — Ele sobreviveu à Chuva.

Ele acena com a cabeça em agradecimento e toca a lâmina. Em seguida tomba para o lado, empurrado por Karnus. O imenso Bellona vem no meu encalço. A boca curvada de ódio, enormes ombros protegidos pela armadura mostrando a grandeza da sua família. Ele berra meu nome.

Ele faz uma finta no alto, curva a lâmina diagonalmente na minha direção, rápido como uma cobra. Dou um salto para a frente, a lateral do corpo voltada para ele, na direção de onde se encontra a maior parte do movimento, e atravesso seu estômago com minha lâmina. Solto a arma e contorno seu corpo à medida que ele desaba de joelhos no chão.

— Quem muito se ufana cai de cara na lama — sussurro, enquanto puxo minha lâmina das costas dele pela extremidade afiada e corto sua cabeça.

Um Pretoriano corre na minha direção. Lanço minha lâmina nele. Ela o acerta no peito e ele cai no chão. Tiro minha lâmina do peito dele e cambaleio para trás, afastando-me dos olhares vigilantes dos Pretorianos.

— Idiotas — murmura a Soberana.

— Continuo registrando isso? — pergunta Fitchner, coçando a cabeça.

A nave sacode outra vez e se inclina bastante até voltar à posição normal. Minha visão tremula e eu caio sobre um joelho. A mão no deque. Reequilibro-me. Sinto o novo calor me escorrendo pelas costas e pela barriga. Não vou me ajoelhar. Não para ela. Não para uma tirana. Eu me levanto desequilibradamente. Karnus errou grande parte do golpe. Mas não todo. O sangue se esvai da área entre meu pescoço e o ombro esquerdo onde a lâmina dele me acertou. Ela me penetrou a clavícula. Meu corpo amolece.

— Que coisa. — Os olhos frios de Octavia au Lune avaliam a ferida no meu pescoço. — Imagine esse rapaz formado na minha casa, Aja. — Ela sacode a cabeça e olha fixamente para mim com a mais completa falta de compreensão. Ela repara meus outros ferimentos. Meu sangue. Minha exaustão. Minha juventude. Contudo, fiz tudo isso. Dois corpos aos meus pés. Uma cidade devastada atrás de mim. Outras mais tomadas por todo o planeta Marte. Minha frota despedaçando a dos Bellona. A Sociedade pronta para rachar. Ela não compreende e jamais compreenderá. Mas Fitchner parece compreender. Olhos vítreos. Mãos cerradas.

— Você não teria como me formar — resmungo. Só os Vermelhos teriam. Só a família, só o amor, me deram essa força. Mas a força agora está desvanecendo. É então que Aja avança. Trocamos três movimentos antes de ela jogar minha lâmina para o lado e me socar com tanta força no peito com seu punho que penso estar morto. Ela me joga com toda a força de encontro ao teto como se eu fosse uma boneca de pano. E quando termina, ela se junta à Soberana e eu gemo e afundo em dor.

— Traga-me a cabeça dele, Fitchner — ordena a Soberana.

Fitchner olha para mim desamparadamente e estende a mão, quase tocando-a.

— Devíamos filmar a execução dele pro hc. Propaganda. Enforcamento total. Uma morte de estado.

— Fitchner... — As sobrancelhas da Soberana se levantam até que Fitchner retira a mão. — Já chega. — Os músculos da mandíbula dela trabalham enquanto ela pensa. — Quero o rapaz morto. Sem outras variáveis. Agora. Guarde a cabeça para uma estaca. Nós filmaremos isso.

Os olhos lacrimosos de Fitchner incham de tristeza. Nascido nos extratos inferiores dos Ouros, ele ascendeu ao topo apenas por mérito próprio. Que homem. E pensar que já o considerei fraco.

Aqui, no fim de tudo, sei que venceremos Marte. Augustus será libertado. A guerra continuará. Os Ouros ficarão enfraquecidos. E os Vermelhos irão se rebelar. Talvez, apenas talvez, eles ascendam e encontrem a liberdade. Fiz o que Ares me pediu. Criei o caos. O resto irá para outros homens, outras mulheres. Eo ficaria satisfeita.

Sorrio com suavidade e sinto a fraqueza nas pernas. Estou cansado. Estou de joelhos. Quando foi mesmo que fiquei assim? Não me importo. Como será agradável descansar no Vale enquanto outros levarão a cabo o sonho de Eo. Eu gostaria apenas de poder ter visto Mustang antes do fim. Poder dizer a ela o que eu sou, para que ela por fim compreendesse.

— Seu rapaz queimou intensamente. E muito rápido — diz Aja a Fitchner das sombras da minha visão. — Fique com a cabeça. Mas você vai poder depositar o corpo no solo à maneira marciana.

Aja abre de novo a rampa de descida. O metal range. Sinto o vento do Vale no meu rosto. Sinto o calafrio da bruma. O aroma da chuva. Vou dormir. Logo acordarei ao lado de Eo. Acordarei na nossa cama aquecida, minha mão emaranhada nos seus cabelos. Vou acordar para amar e para saber que, no mundo anterior, eu me esforcei ao máximo.

Mas vou sentir sua falta, Mustang. Mais do que admiti até agora.

Névoa e sombras são minha visão. Por um momento, o cheiro de ferrugem me faz pensar que estou na mina. Estou adormecido? Ouço botas de metal. Um homem caminhando em meio à névoa. Não consigo ver seu rosto. Mas algo se agita em mim. Papai? Não, não papai. Estreito os olhos.

— Tio Narol.

— Não. É o Fitchner, meninão.

A voz dele me puxa com violência de volta à nave. Como um anzol rasgando seda numa direção que ele não deseja seguir.

— Oh. Fico feliz por ser você — digo baixinho, encontrando força suficiente para erguer minha pesada cabeça um pouquinho mais para olhá-lo nos olhos. Eles estão cheios de lágrimas. Ele tosse um riso. O vento assobia atrás de mim. Não o vale. Apenas Marte. Nada de bruma. Apenas as nuvens. A rampa está baixada para que eles possam empurrar meu corpo para fora. Eu disse a Arcos que não havia sido feito para ter cabelos grisalhos.

Minha cabeça afunda. Cuspo um pouco de sangue na boca. Estou enjoado e desaparecendo aos poucos.

— Diga a Mustang... Eo... Eu amo as duas — bocejo muito profundamente.

— Seu maldito tolo — diz ele num sussurro quase inaudível, sacudindo a cabeça. — Eu estava com tudo sob controle.

— Eu não... — Pisco em meio à neblina. — O quê?

— Sou eu — diz ele. — Sempre fui eu esse tempo todo, meninão.

A neblina desaparece. Levanto os olhos para ele. Levanto os olhos para Ares enquanto ele tira seu capacete de Cavaleiro Raivoso e atira nos Pretorianos com seu pulsoPunho, fazendo com que eles se espalhem. Ele joga para trás uma granada sônica.

— Fitchner! — rosna a Soberana. — traidor!

Uma explosão. Alguma coisa me atinge o peito e estou caindo. Tombando. Voando? Sensação de frio. Um vento áspero me açoitando. Estômago na garganta. Girando. Então um braço rígido sob o meu. Subindo. O vento passa pelas minhas orelhas com a força de um chicote. Mas há um outro som antes que a escuridão me engula. Fitchner — Ares —, lorde terrorista do submundo, uiva como um lobo enquanto me carrega para um porto seguro.


43

O mar

Acordo com os cheiros do mar. Água salgada, alga-marinha, levados por um forte vento de outono. Gaivotas berram. Uma delas pousa e fica empoleirada no peitoril de pedra branca da janela aberta. O bicho empina a cabeça para mim e voa na direção do sol matinal. Nuvens se movem ao longe no horizonte, prometendo chuva, muito embora gotas de orvalho estejam porejando no luminoso céu azul.

Ela se mexe ao meu lado. Seu corpo delgado sobre os lençóis, enroscado ao redor da minha própria forma estragada. Ela está vestida. Eu estou sem camisa. Enxertos de pele recente marcam meu corpo. Coisas reluzentes, rosas e macias ao toque. Mustang se mexe mais um pouco, seu movimento me trazendo para meu próprio corpo. Fazendo com que eu sinta as dores e as feridas e o conforto que a proximidade dela me proporciona. Deixo minhas pálpebras se fecharem aos poucos e dou um grande suspiro, permitindo a mim mesmo afundar nos macios prazeres do ser humano. A respiração dela no meu pescoço. As batidas de um outro coração de encontro às minhas costelas. Seus cabelos dourados fazem cócegas no meu nariz quando o vento fresco sopra alguns fios no meu rosto. O ar matinal é jovem, vital.

Respiro fundo, deslizando de volta ao sono.

Lembranças de metal despedaçam a paz.

Berros ecoam na pretura. Amigos morrem.

Meus olhos se abrem bruscamente para a luz, desesperados para me lembrar onde estou. Dizendo-me que estou seguro. Estou aquecido. Não há metal aqui. Apenas lençóis de algodão. Uma cama. Uma garota acolhedora. No entanto, as lembranças estão próximas demais. Como sobrevivi?

Caí do céu com Fitchner.

Ares — a verdade que sempre foi, mas parece tão nova que nem consigo compreendê-la. Acordei com as ferramentas de um Amarelo dentro do meu peito, ressuscitando meu coração. Em seguida acordei de novo com o bisturi de um Entalhador encostado na minha pele. Agonia e náusea, minhas companheiras de cama. Ondas de visão fluindo e refluindo. Visitantes indo e vindo. Prefiro acordar a continuar com isso.

Estou com medo de fechar os olhos. Com medo do que verei, do que encontrarei ao acordar. Quando eu era uma criança Vermelha, dividia meu pequeno catre com Kieran. Todas as manhãs, eu acordava antes dele e ficava lá deitado, quietinho, deixando as vozes abafadas dos meus pais vazarem por sob a frágil porta enquanto eles começavam seu dia. Eu ouvia os pés de papai se mexendo sem parar. O som que ele fazia ao limpar a garganta todos os dias enquanto lavava o rosto para se livrar do sono. Mamãe fazia café para ele, moendo os cubos que ela havia trocado com os Cinzas por ovos de víboras-das-cavidades ou carretéis de seda roubados do Tear.

Eu gostaria muito que esse fosse o som que me acordasse na mesma hora todas as manhãs. A moagem, o cheiro. Eu gostaria muito de poder dizer que era assim que meu corpo sabia que deveria voltar a dormir. Mas não era o cheiro do café ou do chá de mamãe. Não era o suspiro matinal de água correndo através dos dutos ou o artrítico ranger de escadas de corda enquanto homens e mulheres do turno da noite do Distrito de Lykos faziam seu caminho de volta das minas e do Tear até sua casa. Não era o cansado murmúrio daqueles do turno do dia fazendo seu caminho de casa ao trabalho.

O que me acordava era o pavor de uma porta fechada.

Cada manhã terminava da mesma maneira. Primeiro, os pratos de barro faziam um ruído na pia de metal. Depois a cadeira de plástico de papai raspava o piso de pedra. Eles se postavam juntos diante da porta, sussurrando. Um silêncio. Sempre imaginei que esse era o momento em que eles compartilhavam um longo beijo. Então, por fim, seria a despedida. A porta da frente se abria, rangendo nas dobradiças enferrujadas. E por fim, apesar de todas as minhas preces, ela se fechava.

Eu me encosto em Mustang e beijo-lhe a testa. Com mais intensidade do que era minha intenção original. Ela acorda delicadamente, como um gato se esticando para sair de um cochilo de verão. Seus olhos não se abrem, mas ela encosta o rosto em mim.

— Você está acordado — murmura ela. Seus cílios se mexem e ela fica em posição ereta, afastando-se de mim. — Desculpe. Devo ter caído no sono. — Ela olha para a cadeira na qual estivera sentada. — Na cama.

— Tudo bem. Fique. Por favor. — Eu tinha esquecido que tínhamos de agir com frieza um com o outro. — Quanto tempo faz?

— Desde o assalto? Uma semana. — Ela afasta dos olhos fios soltos de cabelo. — Fico feliz por você ter voltado pra nós.

— Quem nós perdemos? — pergunto com cautela.

— Perdemos? — As mãos de Mustang se mexem desajeitadamente enquanto ela faz uma lista das vítimas. Um momento de silêncio se estende por um longo tempo. Os números me esmagam na cama. Eu me lembro de respirar.

— A Soberana?

— Escapou. Mas não sem um desagradável ferimento, cortesia de Fitchner.

— Seu pai? — pergunto.

— Você não sabe? — Ela sorri incomodamente e suspira de modo um pouquinho casual demais, tentando soltar sua própria tensão. Ela se aproxima um pouco mais da cama, ainda tomando cuidado para não me tocar. — Vai ser entediante atualizar você.

— Tenho certeza de que você vai conseguir.

— Papai está vivo. Quando os escudos caíram, diversos Ouros já dentro da Cidadela lideraram um esquadrão de mestiços pra resgatá-lo. Acontece que meu irmão tem uma influência muito grande. Aí quando os Cavaleiros Olímpicos chegaram pra levá-lo junto com Octavia, saíram de lá com as mãos vazias. Os canais de hc estão chamando Roque de “Reencarnação de Nelson”. Ele capturou mais de 80% da frota dos Bellona. — A voz dela adquire um tom sombrio. — O que significa que, como líder do combate, ele pode reivindicar pelo menos 30% das naves, o restante indo pra Casa Augustus.

— O que significa que ele tem mais naves do que eu, tecnicamente.

— Os eruditos estão imaginando quanto tempo a lealdade dele vai durar agora que...

— O Chacal está jogando os joguinhos dele — interrompo com uma risada.

— Ele não para nunca.

— Não acho que Roque vá se voltar contra mim — digo. — Você acha?

Ela dá de ombros.

— O poder cria oportunidades. Eu te disse pra consertar as coisas com ele.

— Roque é nosso aliado. Ele sempre será. Você sabe disso.

— Ele tem aparecido por aqui tanto quanto Sevro. — Ela sorri lentamente. — Caiu no sono aqui na noite passada. Eu o expulsei mais cedo. Mas eu não estaria fazendo meu trabalho se fingisse que ele não é uma ameaça potencial a nós.

A nós, eu noto.

— Seu trabalho? — pergunto. — Que é o quê, mesmo?

— Designei a mim mesma sua principal política.

— Você fez isso?

— Fiz, sim. O jogo da corte pode ser um negócio desagradável e mal-intencionado. Você é sério demais pra isso. Como uma ovelha pensando que é uma honra ser convidada pra um banquete dado em homenagem a ela por lobos.

— E se for de você que eu precisar me proteger?

— Bom. — Ela arqueia a sobrancelha esquerda. — Nesse caso tenho a impressão de que você já perdeu.

Eu rio e pergunto por Sevro.

Ela finge olhar ao redor.

— Ele não está adormecido ao pé da cama? Acho que está com o pai dele. Só voltei da minha visita a Kavax em órbita ontem à noite, mas Theodora disse que ele partiu logo depois de jantar com Fitchner. Pensei que ele odiasse o cara.

— Ele odeia.

— O que foi que mudou?

Dou de ombros e imagino há quanto tempo Sevro está ciente da verdadeira identidade do pai. Parece impossível que ele tenha estado tão cego quanto eu. Será que havia mais alguém mentindo para mim, só para variar?

— E Lorn? — pergunto.

— Ele está com aquela harpia, a Victra.

— Qual é o problema com Victra?

— Além do fato de que ela paquera qualquer coisa que se mexa? Nenhum problema.

— Espere um pouco. Ela está te paquerando? Fale mais sobre isso.

— Cale essa boca. — Mustang me dá um tapa. Mas seu sorriso some com a mesma rapidez que ela tira a mão. — Lorn tomou Victra sob suas asas. Parece que ele está confortável aliando sua família com os Julii. A mãe de Victra concordou com o pacto. Três das mais poderosas casas de Marte se uniram em torno da minha família. Um triunvirato contra a Soberana. Os Governadores das Gigantes Gasosas estão a caminho de Agea pra um encontro de cúpula. Logo os Reformistas também chegarão. Você estava certo. Nós tomamos Marte, temos uma chance contra Octavia. Isso não é mais apenas uma batalha. Isso é uma guerra civil. E, ao que parece, não é uma guerra civil despropositada. Papai tem falado em dar aos Reformistas uma chance à mesa. Isso... isso significa alguma coisa.

Eu me lembro da minha conversa com o homem.

— E você acredita nele?

— Acredito, Darrow. — Ela sorri com esperança. — Pela primeira vez num bom tempo, eu realmente acredito.

Eu não estou tão certo.

— E quanto ao...

— Cassius? — adivinha ela. — O pai dele foi morto pelos Telemanus, e ele lutou com Ragnar no muro. Todos os irmãos e irmãs dele são tidos como mortos. Mas ele e a mãe estão desaparecidos.

Noto que ela está quieta.

— Você está preocupada com a possibilidade de ele estar morto?

— Ele é nosso inimigo — diz ela, enfática. — O bem-estar dele não me concerne. — Mustang examina meus olhos com atenção. — Você está preocupado?

— Não sei. — Avalio a situação.

— Maldição. Você às vezes é tão mole. Por acaso você também se arrepende de ter cortado o braço dele?

— Eu me arrependo de ter matado Julian.

— Nós todos somos manchados pelo passado — avalia Mustang. — Você se esquece de que eu também tive de matar alguém na Passagem. Todo Inigualável Maculado que você já conheceu na vida, Lorn, Sevro, Pedrinha, Tactus, Octavia, Daxo, todos nós começamos lá. Sempre penso que devíamos nos arrepender de muitas coisas mesmo.

Ela está falando de nós? Sou um motivo de arrependimento para ela?

— Eu quero odiar Cassius — digo devagar. — Quero mesmo. Só de pensar nele já me dá vontade de esmagar alguma coisa. De quebrar uma janela. Ou, de preferência, aquela cara feia e presunçosa dele.

— Feia? — pergunta ela com ceticismo.

— Ele é tão bonitinho que chega a ser feio.

Mustang ri disso.

— Mas é difícil manter o ódio, não é? — pergunta ela.

Balanço a cabeça em concordância. Ódio é o que fez a família de Cassius se lançar contra a de Augustus. Olhe o que isso ocasionou a eles.

— Eu sinto pena dele. Onde quer que ele esteja.

— Eu te disse pra não confiar no meu irmão — diz Mustang, redirecionando a conversa. — Eu estava falando sério. Sei que você continuou sua aliança com Adrius. As companhias dele estão fazendo você parecer um deus. Mas isso precisa acabar. Você não deve nada a ele. Seja cordial. Seja educado. Não o desrespeite em público. Mas chega de reuniões. Chega de promessas. Corte os laços com ele. Você não precisa mais dele. Você tem a mim.

Essa garota. Gostaria muito de poder apresentá-la à minha mãe, a Kieran e a Leanna. Eles achariam interessante o fogo que existe nela. Minha garganta se contrai aos poucos. Eo também iria gostar dela.

— Eu não tenho você — digo.

— Darrow...

Alguma coisa estranha se contorce dentro de mim. Como se uma onda contida de emoção estivesse tendo enfim permissão para se libertar.

— Quando eu estava no fundo daquele rio... tive plena convicção de que nunca mais voltaria a te ver.

Ela hesita, querendo se aproximar de mim, mas resistindo por causa de tudo aquilo que dissemos antes.

— Você sabe que não tem minha permissão pra morrer — diz ela, brincando. — De qualquer maneira, Sevro e os Uivadores jamais te perdoariam se você tentasse uma coisa dessas. Nenhum deles perdoaria. Você tem tantos amigos, Darrow. Tantas pessoas que andariam em brasas por sua causa.

Tantos que se queimaram. Estremecendo, respiro bem fundo e fecho os olhos, tentando não deixar a culpa me engolir. As lágrimas chegam silenciosas, escorrendo pelos cantos dos meus olhos.

— Darrow. Não chore — sussurra Mustang, agora se aproximando de mim. Ela me puxa para si, segurando-me. — Está tudo bem. Está tudo acabado. Estamos em segurança.

Os soluços chegam, sacudindo meu peito.

Ela está errada. Não está tudo acabado. Tudo o que vejo por trás das pálpebras é um mundo em guerra. Não há outro futuro para mim, para nós. Contudo, quantas vezes já não fui remendado? Quanto tempo ainda todos esses pontos podem durar? No fim, será que ao menos algum pedaço de mim ainda restará? Não consigo parar de chorar. Não consigo nem respirar direito. Meu coração retumba. Minhas mãos tremem. Tudo está saindo de mim. Mustang, quase metade do meu peso, me segura nos braços delicados até que eu fico exausto e não consigo fazer mais nada além de afundar de volta na cama. Com o tempo, meu coração volta a se estabilizar, encontrando um ritmo que combine com o dela.

Ficamos sentados pelo que me parece ser uma hora. Por fim, ela me beija o ombro, o pescoço, os lábios, fazendo uma pausa ao longo da jugular que pulsa incessantemente. Ajusto minhas mãos para afastá-la de mim, mas ela as empurra para o lado e me acaricia o rosto.

— Deixe-me entrar aí.

Deixo as mãos caírem na cama. A boca dela percorre com destreza uma cálida trilha em direção à minha. Lá compartilhamos o sabor das minhas lágrimas enquanto o lábio superior dela desliza entre o meu e sua língua aquece o interior da minha boca. Sua mão sobe para o meu pescoço, as unhas arranhando minha pele até ela encontrar meus cabelos, puxando de leve o emaranhado. Tremores afligem meu corpo.

Não resta mais nenhum sinal de resistência. Toda a culpa que me impedia de trair Eo com Mustang é varrida para longe no caos que se instala dentro de mim. Toda a culpa que tenho por saber que ela é uma Ouro e eu um Vermelho desaparece. Sou um homem e ela é a mulher que eu quero.

Minhas mãos encontram Mustang, puxando seu corpo para junto do meu, obscurecendo a extensão das suas pernas em direção à elevação da sua cintura. Uma fome há muito contida desperta em mim. Preenchendo-me de calor, doendo por ela. Por toda ela. Esqueça minha restrição. Esqueça minha tristeza. Isso é tudo o que eu preciso. Não vou fugir. Não dessa vez. Não quando sei o quanto estou próximo de jamais voltar a vê-la.

Arranco as roupas de Mustang com uma força lenta. Sob minhas mãos, o tecido é como papel molhado. Sua pele é macia, mármore quente aquecido ao sol. Músculos se retesam por baixo à medida que ela arqueia as costas. O corpo dela é feito para o movimento, desafiando, enroscando-se ao redor do meu. Passo os dedos ao longo da curva da sua lombar. Ela se gruda em mim com força, pulsando com a respiração, os quadris me prensando em cima da cama.

Para ela podem ter sido semanas, mas para mim foram minutos, segundos atrás que me ajoelhei de encontro ao aço frio aquecido pelo meu próprio sangue, esperando que homens cortassem minha cabeça. Esse é um momento que eu pensei jamais voltar a ter enquanto enterrava Eo com minhas próprias mãos trêmulas. Um momento com uma mulher que desejo e amo. E qual é a porra do sentido de sobreviver neste mundo frio se eu fujo do único calor que ele tem a oferecer?


44

O poeta

Caminho sem pressa pelo corredor de pedra com Mustang. Do lado de fora das janelas, guardas patrulham a propriedade. Eles estão aqui para nos manter tanto quanto para nos proteger. A chuva cai levemente. Risos escapam de uma porta aberta com os aromas de café e bacon.

— Como assim, não consigo ser engraçado? — pergunta Roque, ofendido.

— É isso mesmo — diz Daxo com leveza. — Tenho certeza de que tentar você tenta, mas você é... escolástico demais.

— Tudo bem então, quem foi o primeiro carpinteiro?

— Isso é uma piada? — pergunta Daxo.

— Tem a intenção de ser.

— Jesus de Nazaré...? — tenta adivinhar Daxo. — É uma piada sobre história, certo?

— Noé? — tenta Pedrinha. Mustang e eu fazemos uma pausa do lado de fora, sorrindo um para o outro.

— Jesus de Nazaré? — pergunta Roque, rindo. — Você pode ser melhor do que isso.

— Se eu soubesse que seria ridicularizado por tentar, não teria tentado.

— Pax dizia que você era o esperto — diz Cardo. — Decepcionante, Daxo. Decepcionante.

— Bom, em comparação, ele talvez... — começa Palhaço antes que Pedrinha lhe dê um tapa na cabeça. — Ai!

— Não fale merda sobre Pax — rebate Pedrinha. — O grandalhão era uma doçura.

— Alguém tem interesse em saber a resposta? — pergunta Roque melodicamente. — Legal. Legal. Eu entendo. Todos vocês me acham um saco.

— A gente está morrendo de vontade de saber — fala Cardo. — Diga aí.

— Quem foi o primeiro carpinteiro do mundo? — pergunta Roque mais uma vez.

— Você não precisa começar tudo de novo! — geme Pedrinha.

— Bom, assim funciona melhor. — Roque suspira. — Eva.

— Eva? — pergunta Daxo.

— Porque... — prossegue Roque. — Ela armou a barraca do Adão.

Um gemido coletivo.

— Isso é constrangedor demais — diz Pedrinha com um suspiro. — Nunca imaginei que sentiria falta de Tactus.

Então uma gargalhada aguda escapa de Daxo. Exatamente como Pax.

— Eva! Eva! Armou a barraca. Haha! — É como se os gigantes tivessem pequenos elfos ridículos dentro deles apenas esperando para se soltar e dar uma risada. Basta uma pequena provocação.

— Acho que ele quebrou o Daxo. — Pedrinha ri.

— Tem alguém sentindo um cheiro? — pergunta Palhaço.

— Estou sentindo cheiro de bacon — tenta Daxo. Ouve-se um ruído quando ele dá uma mordida em algum pedaço de comida.

— Não — diz Palhaço. — É um cheiro parecido com o de um suicida insano que ressuscitou recentemente depois de ter conquistado um planeta e abandonado seus amigos pra ele próprio ser cortado em malditas fatias como um bobalhão do cacete.

Daxo fareja.

— Esse é um aroma bem específico.

— Oh, Darrow, meu caro — chama Palhaço. — Você está aí à espreita atrás da porta?

Mustang me empurra desajeitadamente.

— Seu Pixie bisbilhoteiro! — Daxo se levanta e me dá um abraço surpreendentemente delicado. Os anjos dourados na sua cabeça calva cintilam à luz da manhã. — Fico muito feliz em te ver, meu amigo.

Todos eles me cumprimentam cada um a seu tempo. Mais abraços do que o que já recebi de Ouros. Roque me abraça mecanicamente. Um gesto perfunctório. Ainda há reparos a serem feitos.

Eu me farto do café da manhã enquanto meus amigos se divertem. Passamos o dia na propriedade, deixando o tempo passar em conversas e jogos. Faz tanto tempo desde a última vez que fiz ambas as coisas que quase me esqueci de como é não fazer nada. Mustang precisa me beijar o ouvido e me dizer para relaxar três vezes antes de a ideia se firmar na minha mente. Estamos na biblioteca escutando música quando ela vê Roque pela janela no gramado. Ela me cutuca.

— Vá lá.

Encontro Roque observando um par de cervos comendo numa manjedoura sob um velho olmo. Ele não se vira para olhar para mim quando me aproximo. O aroma é de grama recém-cortada. O mar em algum ponto por sobre a colina.

— Faz sentido este aqui ser o lugar onde Mustang cresceu — digo. — É ao mesmo tempo selvagem e tranquilo.

— Meu lar deveria ser na cidade — diz Roque. — Embora eu fugisse pro campo com meus tutores sempre que mamãe estava ausente. O que ocorria com frequência. Ela parecia pensar que não havia nada que valesse a pena aqui. Que o negócio envolvendo as cidades era mais importante do que isso aqui. Mas é por isso aqui que a gente luta, não é?

— Por terra? — pergunto.

— Por paz, seja lá de que maneira a gente encontre. — Ele se vira para mim. — Não é por isso que você luta?

— Alguns de nós não nasceram com paz — digo, fazendo um gesto para o cervo e para a terra. — E não tive isso aqui enquanto crescia. Qualquer coisa que tenho agora ou venha a ter no futuro, preciso fazer por merecer pra conquistar. Mas você tem razão. É por isso que luto, pra poder ter isso pra mim e pras pessoas que prezo.

Seus olhos esquadrinham meu rosto.

— Muito justo.

— Quero te pedir desculpas, Roque.

— Mais uma vez?

— Desde a Academia, tenho te mantido à distância. Não tenho tido consideração com você. Eu não deveria ter agido assim. Sobretudo porque você sempre se mostrou muito gentil comigo. — Ele não me olha nos olhos.

— Eu não me importava com o fato de que tudo tinha sempre a ver com você, Darrow. Foi isso o que queimou Tactus, mas não a mim. Não sou apaixonado por você como a Mustang é. Não te idolatro como Sevro ou os Uivadores te idolatram. Eu era um amigo verdadeiro. Eu era alguém que via sua luz e sua escuridão e aceitava ambas sem julgamento, sem compromisso. E o que foi que você fez comigo? Você me usou como um homem usa um cavalo. Sou melhor do que isso. Quinn era melhor do que isso.

— Você é melhor do que essa amizade? — pergunto, com medo da resposta.

— Acho que sou melhor do que você — diz ele. Dou um passo para trás, magoado. Roque observa o cervo mastigando os grãos na manjedoura. — Sentei ao lado da cama de três amigos este ano. Quinn, Tactus e você. Em cada uma dessas vezes posso dizer que trocaria de lugar com qualquer um de vocês com alegria nos olhos. Você desejaria a mesma coisa?

— Eu daria minha vida pra trazê-los de volta — digo, ciente de que se trata de uma mentira. Por mais que eu ame esses Ouros, tenho responsabilidades maiores. Até isso ter acabado, esta vida não me pertence para que eu possa dá-la.

Ele dá as costas ao cervo para me observar, os olhos cálidos e tristes e levando consigo muito mais peso do que deveriam. Ele é diferente de mim, de Cassius. Nós o chamávamos de irmão, e ele era um irmão melhor do que nós dois merecíamos.

— Você já imaginou por que eles me puseram na Casa Marte? Não sou o tipo de recruta típico. A maioria teria muito provavelmente me deixado em Apolo ou em Juno.

— Quinn sempre teve aquela competitividade no sangue, mas você... É verdade, e já imaginei isso, sim.

— Darrow. — Eu me viro para ver Sevro parado atrás de nós vestindo um uniforme. — É urgente.

— Agora não, Sevro.

— Ceifa, não estou de sacanagem com você — diz ele.

Olho para Roque.

— Vá — diz ele, e anda na direção do cervo, tirando amoras do bolso.

— Roque — eu o chamo, o tom de voz choroso.

— Amizades levam minutos pra se fazer, instantes pra se desfazer, anos pra se reparar — diz ele, virando-se para olhar de relance sobre o ombro. — Logo, logo nós vamos voltar a conversar.

Eu o observo partir, sentindo um tiquinho de esperança me aquecer. Eu me volto para Sevro e bato nas costas dele.

— Bom te ver. Desculpe eu não...

— Pare com essa babaquice. Não sou um viadinho chorão como o poeta. É sobre Ares. Seus amigos, os Vermelhos, os Rosas e os Violetas, foram capturados.

— Por quem?

— Quem você imagina? Pelo Chacal.


45

Presentes

Minha nave aterrissa na neve do início da manhã de Attica, uma cidade montanhosa ao sul encravada em sete picos. Desnivelados edifícios de aço e vidro batizam os picos como coroas de espinho cobertas de gelo, agora cheios de poeira recente. O vermelho sol matinal nasce sobre a cadeia de montanhas a leste. Pontes ligam os sete picos, e os distritos menos afluentes da cidade se espalham ao redor das raízes das montanhas. Meu ônibus espacial voa sobre eles. Limpa-neves derretem trilhas em meio à neve acumulada com lâminas pulsantes laranjas. Logo, carros-de-terra de médioCores fluirão ao longo das avenidas. E ônibus espaciais de altaCores transportarão Pratas e Ouros aos seus escritórios nos picos montanhosos. Remota e famosa pelos seus bancos, Attica é um assento de primeira grandeza no que diz respeito ao poder. Ela agora pertence ao Chacal.

Sob pesada vigilância de rasgAsas, pouso sobre uma plataforma cercada de sempre-vivas. Diversos pelotões de mestiços estão à espera no local com seu equipamento tático branco. Um solitário Ouro está comigo. Victra me dá um abraço, um casaco de pele branca enrolado nos ombros. Brincos de jade tilintam na brisa enquanto os Cinzas inspecionam o exterior da minha nave.

— Victra — digo, afastando-a um pouco para poder olhar para ela. Ela dá um risinho demoníaco e me beija o rosto, agarrando minha bunda ao fazê-lo. Dou um pulo de surpresa. Ela ri de pura alegria.

— Só pra ter certeza de que os pedaços estão nos seus devidos lugares. Você nos deixou preocupados, querido. Roque me mantinha informada enquanto eu estava com Lorn.

— Intermediando uma outra aliança, pelo que ouvi falar.

— Quem diria isso, hein? Victra au Julii, promotora da paz.

Os Cinzas me notificam de que têm ordens para dar uma busca na minha nave.

— Ragnar — chamo. Ele sai dos confins da nave, quase duas vezes o tamanho do maior dos Cinzas. — Deixe os ratos darem uma busca na nave. Eles estão procurando...

O Cinza olha de relance para Ragnar e engole em seco.

— Bombas, dominus.

Victra me escolta até o novo lar do Chacal — uma cidadela em formato de fortaleza no topo do mais alto pico de Attica. A cidade se estende bem abaixo de nós. Árvores margeiam o caminho da plataforma de aterrissagem à Cidadela.

— Adrius tomou o lugar assim que a última nave dos Bellona se retirou. Chegou com uma tropa de mil mestiços e expulsou os aliados dos Bellona que eram donos do lugar. Tomou tudo o que eles tinham. Esvaziou as contas bancárias de todos eles. Um roubo total. Mas isso é guerra. — Ela acena para o oeste. — Esplêndidas ravinas pertinho daqui. Vamos tirar uns dias de folga por lá quando tudo isso se assentar. Você traz Virginia e eu vou arranjar um homem pra mim. — Quase da minha altura, ela me olha de esguelha. — Você esquia, certo?

Eu bufo uma risada.

— Nunca tive tempo pra isso.

Encontramos o Chacal na sua sala de estar. As paredes e o piso são de vidro. O fogo rodopia sob o chão, lambendo em colunas próximas à janela. Diversas cadeiras minimalistas de aço e couro estão dispostas sobre quatro tapetes. O Chacal está debruçado sobre um holoDisplay, falando rapidamente com alguém. Ele faz um gesto para que nos sentemos. Avisto Harmony numa sala escura, cercada de Cinzas. Um deles está debruçado sobre ela, fazendo algo com algum dispositivo que não consigo ver com clareza.

Nós nos sentamos ao lado das chamas, mas o calafrio que me percorre o corpo não pode ser dispersado por nenhum fogo.

O Chacal termina a ligação, dando uma dataFolha a Sun-hwa antes que ela parta. Ele se junta a nós, esfregando a nuca.

— Tantas partes em movimento. — Ele pisca. — Que inferno, só pra organizar as encomendas de comida são necessários cem Cobres. E aqueles merdinhas odiosos passam o dia inteiro discutindo se uma nave deveria ou não ter granola ou musli na cozinha. Ambos é uma opção. Ambos! Qual é a dificuldade disso, alguém me diga! É como se eles gostassem de planilhas e de trabalho complicado. É de enlouquecer mesmo.

— Eu não paro de falar que ele deveria delegar com mais eficiência — diz Victra. Então os dois também andam conversando. Estou por fora.

— Odeio delegar — responde o Chacal. Ele coça a cabeça. — Pelo menos com números e coisas particulares. Vocês dois podem tomar todos os malditos planetas que estiverem a fim. Mas não se metam na minha burocracia, por favor.

— Muito gentil da sua parte — digo, rindo. — Mas me mantenha afastado de encomendas de comida. — Eu me curvo para a frente. — Ouvi falar que a frota vai estar pronta pra partir pro Cerne em duas semanas. A propósito, que nova casa maravilhosa esta sua.

— Eu gosto dela — suspira ele. — Papai ficou furioso quando soube que eu a peguei pra mim, é claro. Ele queria dá-la de presente a um dos Governadores das Gigantes Gasosas.

— Acho que você a mereceu — digo. — Isso e mais alguma coisa.

— Com certeza. — O Chacal faz um gesto cansado com a mão única. — Eu vinha aqui quando era pequeno pra esquiar com minha mãe. Sempre olhei pra isso aqui e disse que um dia a casa seria minha. Papai dizia que não se pode ter tudo o que se quer.

— E você perguntava: “Por que não?” — diz Victra. Ela já ouviu a história.

— Por que não? — O Chacal repete as palavras com carinho. — Então, se papai quer a casa de volta, ele vai ter que fazer as encomendas da sua própria comida.

Nós todos sabemos que não são encomendas de comida que ocupam a mente dele nesse momento. Não apenas isso.

Aceito uma xícara de chá de um Rosa. Um pequeno café da manhã é disposto diante de mim. Estou sete horas atrasado em relação a esse fuso horário, mas não posso tornar visível o quanto estou nervoso.

O Chacal me observa espetar um pedaço de melão com o garfo. Quem sabe o que ele está pensando por trás daqueles sujos olhos dourados?

— E então, Darrow, curado e remendado a tempo pra grande batalha.

— Sendo remendado — digo. — Não graças à sua mídia. Todos os programas do hc dizem que me tornei imortal desde que Karnus me abriu de cima a baixo.

— Tudo isso é parte de um jogo, meu bom-homem. Percepção, engano, mídia! — Ele bate a mão na coxa, embora seus olhos não compartilhem do júbilo. — Me dê a palavra e posso ir a público com sua vitalidade melhorada. Vamos marcar uma entrevista coletiva. Vamos te enfiar na sua armadura. Meus Violetas estão construindo um traje adequado. Eles têm conspirado com Verdes pra te dar um espetáculo de forma e tecnologia.

— Você sabe que odeio câmeras.

— Ah, pare de choramingar. É por causa delas que temos metade dos nossos aliados. E é também por causa delas que a Soberana está bracejando como uma aranha no gelo. A coalizão dela está... estressada.

— Então vamos fazer isso hoje — digo. Olho pela janela, lembrando-me das palavras de Roque. — Eu queria um momento de paz, mas... — Eles se juntam a mim para olhar a neve que cai e a distante cidade abaixo. — Tenho a impressão de que ainda temos que merecer isso. O que me traz ao motivo pelo qual convoquei essa reunião.

— Eu admito que estava curioso — diz o Chacal.

— Ele está morrendo de vontade de saber do que se trata — corrige Victra.

Aceno para Ragnar, que seguiu Victra e a mim até o interior da sala. Ele avança com duas caixas trazidas da nave.

— Eu queria dar a vocês dois esses presentes. A nossa aliança teve um... começo interessante. Mas quero que vocês dois saibam o quanto estou comprometido não apenas com ela, mas também com vocês dois. Espero que encarem isso como um sinal da minha confiança.

— Sempre confie num Manchado trazendo presentes — diz Victra, dando uma risada e levantando os olhos para Ragnar. — Maldição, vá pra lá. Você parece uma árvore bloqueando a luz, Ragnar.

— Ragnar, espere lá fora — digo.

O Chacal nem olha para Ragnar. Poder físico o deixa entediado.

Estalando os dedos para que eu volte minha atenção para ela, Victra desembrulha sua caixa para encontrar uma garrafinha de cristal que mandei Theodora encomendar aos Entalhadores na Pax antes do sítio a Marte.

— Petricor — digo quando ela abre a garrafa. A sala fica impregnada com o cheiro de pedra antes da chuva. Ela me agradece com uma mão cicatrizada no meu antebraço, segurando a garrafa próxima ao peito.

— Ninguém se lembra desse tipo de coisa. Obrigada, Darrow. — Ela fica sentada lá por um momento antes de se levantar e me dar um beijo nos lábios. Eu teria preferido no rosto.

— Minha vez. — O Chacal desembrulha sua caixa com a única mão que possui. Rasgando o papel com um risinho no rosto. Ele abre a caixa de couro por baixo e fica em silêncio por um instante. — Darrow, você não deveria...

Ele é interrompido quando um alarme altissonante berra pelas paredes.

Uma Cinza de um pelotão de mestiços irrompe na sala com uma arma na mão. Quatro outros a acompanham.

— Dominus, temos uma violação de segurança no andar inferior. Temos que escoltá-lo a uma sala mais segura.

— Quem? — pergunta o Chacal, a voz áspera. Victra e eu sacamos nossas lâminas. A Cinza está prestes a responder quando os alarmes são interrompidos e substituídos por uma crescente gargalhada desprovida de humor nos alto-falantes. Ela ecoa através da sala mesmo enquanto a iluminação do recinto deixa de funcionar. Corremos para a porta. Uma pequena aranha de metal está grudada à janela. O vidro derrete. Minha visão e audição desaparecem. Substituídas por um penetrante lamento agudo. Eu tombo, entontecido por uma granada de luz.

Formas escuras voam para dentro da sala. Piscando, vislumbro máscaras demoníacas. Olhos refulgindo em tom vermelho a partir das terríveis feições. Os Filhos vieram. Eles atiram nos Cinzas e nos chutam para o chão. Ragnar irrompe do corredor e recebe três rajadas de punhoAtordoante no peito. Ele desaba como uma árvore abatida. Um intruso mascarado se curva sobre o Chacal. À medida que minha audição volta, percebo que ele está gritando pelo código que dá acesso à estrutura principal da instalação. Ele empurra o cano do seu abrasador na boca do Chacal até que ele desista.

— Que Ouro — diz uma voz áspera e distorcida.

Por trás da máscara, sei que tudo que Sevro queria é puxar o gatilho e, por um momento, penso que ele fará exatamente isso. Mas ele espera por mim como deve esperar. E, de acordo com o combinado, eu me levanto com indolência, sacudindo do corpo os resultados da granada de luz, e agarro uma das armas do intruso, tomando-a para mim. Atiro neles. Eles atiram em mim. Cada um de nós errando de propósito. Em seguida eles somem pela janela. Os Cinzas estão deitados no chão, mortos. Victra está sangrando devido a um ferimento superficial na cabeça, mas consegue se levantar. O Chacal tenta se levantar, com o sangue pingando do nariz.

Sem dizer uma palavra, tentamos abrir as portas que dão acesso à sala. Estão trancadas. Os Filhos detêm o controle da estrutura principal agora. O Chacal encosta a cabeça na porta. Então recua e bate várias vezes a cabeça no metal até que o sangue começa a escorrer pelo seu rosto. Tenho de puxá-lo antes que ele parta o crânio. Ele ri sombriamente por um momento antes de se sacudir.

— Duas vezes — diz ele com um riso sarcástico. — Duas vezes eles me violaram. — Um tremor animalesco lhe atravessa o corpo. — Eu estava quebrando os caras. Mais um dia. Quem sabe dois dias e eles teriam rachado.

— Quem? — pergunta Victra.

Ele não responde. Eu insisto com a pergunta.

— Quem, Adrius? Quem eram essas pessoas, cacete?

— Terroristas. Vieram atrás dos Filhos capturados — diz ele com impaciência. — Um deles era aquela piranha Rosa que tentou nos matar em Luna, Darrow. Não era Pliny, afinal de contas. Eram os Filhos. Uma outra era um dos braços direitos de Ares. Eles a chamam de Harmony. Havia um Violeta com elas. Fazendo um exército de soldados entalhados.

— Você mantinha aqui Filhos de Ares capturados? Quando você ia contar isso pra nós? — rosna Victra, levantando-se depois de verificar a pulsação de um Cinza morto.

— Eu não ia. Não até saber quem era Ares.

— O que mais você está escondendo de nós? — digo. — Isso aqui é uma parceria. — Chuto uma mesa. — Maldição, por que diabos você tem a mim se não é pra te proteger de coisas como essa?

— Falha minha — diz ele. — Falha minha. — Ele engole o sangue na boca e anda na direção do peitoril vazio da janela, agarrando meu ombro ao passar. O vento uiva. — Você me protegeu, sim. Mais uma vez. Obrigado.

Faço uma carranca e fico mal-humorado com uma desenvoltura puramente teatral.

— Eles não podiam ser Vermelhos — digo com um tom amargurado. — Não podiam ser Filhos. Os Filhos jamais teriam, jamais poderiam, fazer algo assim. Não comigo. Não com Ragnar. — Ajudo o Manchado a se levantar do chão. — Eles eram bem organizados. Eles estavam com gravBotas.

— Você os subestima, meu amigo — diz o Chacal. — Eles também sabem puxar gatilhos. E eles teriam puxado os gatilhos com o cano da arma encostado na nossa cabeça se você não os tivesse impedido.

— Como eles conseguiram passar pelo seu maldito esquema de segurança? — pergunta Victra. — Havia dispositivos de rastreamento? Embaralhadores de sinal? Assinaturas de gravBotas?

— Não sei — diz o Chacal.

Porque os Filhos se grudaram no meu casco usando fantasMantos, como se fossem pequenas cracas.

— Quem mais entrou e saiu? — pergunto.

O Chacal olha ao redor como eu esperava que ele fizesse. Ele chama seus homens num comunicador em cima da escrivaninha. Depois de um momento, levanta os olhos para nós.

— Sun-hwa — sussurra ele. — Os homens dela estão mortos e ela sumiu como o vento. Ela também sobreviveu ao último ataque. — Em seguida ele ri. — Ela me traiu. — E quando ele vir o dinheiro transferido para as contas de Sun-hwa, ele encontrará todas as provas corroborantes de que necessita para pôr a culpa na sua chefe de segurança. O único problema é que Sun-hwa é leal como um cão e está morta como um parafuso de porta no compartimento de carga da nave que agora se afasta em disparada da cidadela de inverno do Chacal carregando Fitchner, Sevro e meus amigos anteriormente capturados.

Eu me posiciono ao lado do Chacal enquanto Victra tenta abrir a porta de novo. Juntos, observamos a nave desaparecer além das montanhas. E digo numa voz baixa e ameaçadora:

— Vamos matar esses ratos, juntos. Eu prometo. Vamos matar todos eles.

— Depois da Soberana — diz ele, dando-me um tapinha nas costas. — Depois da Soberana.


46

Irmandade

Abraço Dancer com tanta força que suas costas estalam. Ele dá um tapinha em mim, quase em pânico. Peço desculpas e me separo, sentindo-me grande como um Telemanus perto dele. Do lado de fora da garagem-transformada-em-escritório-improvisado, o armazém dos Filhos de Ares vibra em pleno funcionamento. Eles me trouxeram para cá através da porta lateral e me fizeram esperar por Dancer em meio a motores e aerlons enferrujados.

Dancer se afasta de mim e levanta os olhos, olhos enferrujados cintilando de lágrimas. É chocante pensar que uma vez o considerei um homem bem-apessoado. Ele está na casa dos quarenta anos; velho para um Vermelho. Os cabelos salpicados de fios grisalhos. O rosto vincado pela idade e pela dureza. Seu braço direito ainda pende inerte. Seu pé ainda se arrasta. E seu sorriso ainda é amplo o bastante, expondo dentes desnivelados e imperfeitos.

— Meu rapaz — diz ele, agarrando meu ombro com a mão esquerda. Ela é mais forte do que todo o resto dele reunido. Ele tem cheiro de tabaco. Unhas amareladas. — Meu belo rapazinho da porra. Você está com uma aparência tão grandiosa, porra! — Ele ri e ri e ri, sacudindo a cabeça. — Não tenho palavras. Sinto muito por não ter podido entrar em contato com você. Sinto muito por ter deixado Harmony te usar desse jeito. Há tantas coisas, Darrow.

— Pare. — Ponho a mão na sua nuca. — Somos irmãos. Não há necessidade de se desculpar. Somos atados pelo sangue e pelo passado. Mas por favor, por favor, não deixe isso acontecer de novo. — Ele balança a cabeça em concordância. — Como está minha família, você tem notícias?

— Vivos — diz ele. — Ainda nas minas. Eu sei. Eu sei. Mas esse é o lugar mais seguro pra eles com essa guerra toda por aí. Ninguém tem interesse em arruinar a indústria de Marte. Entende?

Ele faz um gesto para que eu me sente.

— Não conheço muitos Ouros, mas esse Sevro é um merdinha desagradável. Quando lhe entreguei na Borda as instruções que o pai dele tinha me dado, pensei que ele fosse me cortar de cabo a rabo. — Dancer acende um queimador, pisca para mim. — Nunca conheci ninguém como ele.

— Ele é de uma lealdade só — digo. — Como você.

— Não! Eu quero dizer que ele consegue xingar melhor do que qualquer porra de Vermelho.

— Sevro xingar? — digo, sorrindo. — Imagino que você acaba se acostumando com isso. Embora ele esteja gostando de dizer “porra” um montão de vezes ultimamente.

— É uma palavra legal. Ela rola pela língua. Fiz algumas pesquisas sobre isso. — Ele infla o peito. — Faz parte do nosso vocabulário desde os primeiros ancestrais, sabia? Os primeiros Ouros, aqueles com olhos normais e uniformes dourados, pegaram a maioria dos primeiros recrutas em meio aos pobres coitados das ilhas irlandesas depois que a radiação de Londres transformou as ilhas numa terra de ninguém. Os Ouros pegaram pessoas da força de trabalho migratória muito qualificadas e as recrutaram pra serem os primeiros Pioneiros. A gíria que eles usavam simplesmente colou, um pouquinho misturada e coisa e tal. A história é uma coisa fascinante, não é?

— Harmony está inventando a história dela própria — digo.

— Isso é verdade. Estou morto! — Ele sacode a cabeça e acende um outro queimador, jogando o anterior no chão. Eu o pego e o ponho na cesta de lixo. — Ela resolveu seguir o caminho dela própria mais ou menos um ano depois de você partir. A gente descobriu que diversos Senadores iriam passar as férias no Mar Gorgon. Aí aparecemos por lá e instalamos vários dispositivos de escuta na villa deles pra ver se dava pra obter algum segredo. A gente não conseguiu nada. Apenas um monte de... conversa cheia de merda e depravação. E pra gente acabou por aí. Mas não pra Harmony. Na última noite, ela entrou e matou os Senadores e seus convidados. Depois nos abandonou.

— Então nunca houve nenhum esquadrão de mestiços invadindo o quartel-general de vocês?

Ele sacode a cabeça.

— Eles vieram por causa de Harmony. Mataram mais ou menos quarenta Filhos. Mas ela já tinha partido pra Luna. Ares salvou a gente. Chegou com força acompanhado de um bando misturado de Obsidianos e Cinzas. Fez uma devastação nas fileiras do esquadrão de mestiços e depois sumiu de vista antes de os reforços chegarem. Foi sorte ele ter matado todos eles. Não haveria a menor possibilidade de eles não perceberem que Ares era um Ouro depois de tudo aquilo. A gente teve o primeiro encontro cara a cara com ele naquele dia. O sujeito é assustador, porra.

— Eu não escolheria essa palavra. — Embora quem sabe ela seja apropriada, tendo em vista como ele me enganou tão bem. — Você não se incomoda por ele ser um Ouro?

— Ele não se incomoda de a gente ser Vermelho. Ares morreria por nossa causa, Darrow. Merda. Ele começou isso. Você sabe por que ele começou?

Balanço a cabeça em negativa.

— É a história dele. — Dancer passa a mão pelas mordidas de víboras-das-cavidades no seu pescoço. — Um homem tem o direito de contar sua própria história. Mas a dele não é uma história feliz. É triste como a sua. Triste como a minha. Tire do homem aquilo que ele ama e sobra o quê? Apenas ódio. Apenas raiva. Mas ele foi o primeiro a saber que poderia haver mais alguma coisa. Ele me encontrou. Ele te encontrou. Porra, quem a gente é pra questionar o cara?

A porta se abre de repente. Nós dois nos viramos e Mickey entra mancando. Ele parece meio morto, magro como um graveto, mais pálido do que antes. Sem dizer uma palavra, ele manca na minha direção e me tasca um beijo na boca, sua afeição é desesperada e verdadeira. Então ele começa a chorar como uma criança. Dancer e eu não sabemos o que fazer, de modo que apenas o abraço e o deixo chorar. Ele sussurra “Obrigado” para mim uma dúzia de vezes.

O que fizeram com ele? Pouco importa. Sei as coisas que são ensinadas aos Cinzas para que eles extraiam informações de outras pessoas. Mickey diz que não contou nada a eles. Mesmo assim, preciso descobrir o que o Chacal está sabendo acerca de tudo isso. Que deduções ele fez depois de encontrar o laboratório de Mickey.

Olho por sobre a cabeça de Mickey e vejo Fitchner lá parado, sorrindo com tristeza. Depois de um longo momento, Mickey se afasta.

— Eu tentei te avisar, quando você foi nos visitar em Luna — diz ele, desculpando-se. — Eu queria dizer pra você fugir. Mas Harmony teria me matado se eu tivesse dito qualquer coisa a mais. Eu estava com medo de você acreditar nela em vez de acreditar em mim.

— Eu teria acreditado em você, Mickey.

— Teria? — Ele funga. — Eu sabia que você apareceria pra me ajudar. Eu disse que meu rapazinho querido era gentil demais pra se esquecer de Mickey, mas ela cuspiu em mim. Disse que eu era um escravocrata. — Ele baixa a cabeça, fungando e muito vulnerável, esgotado e quase louco pelo que deve ter sido feito com ele nas câmaras de tortura do Chacal. — Ela estava certa. Eu sou. Eu sou mau. Fiz mal às garotas e aos garotos. Eu os vendia mesmo quando os amava. É claro que ela estava certa. Por que você apareceria? Por que você faria alguma coisa pelo malévolo Mickeyzinho?

— Porque você é meu amigo. — Levo suas mãos aos meus lábios, beijando-as com delicadeza enquanto ele levanta a cabeça para mim com olhos esperançosos. — Por mais esquisito que você seja, por mais malévolo que você seja. Sei que você quer ser melhor do que isso. Você quer viver por mais coisas além disso. Todos nós sabemos. E aonde quer que um amigo meu seja levado, jamais o abandonarei.

É uma sensação boa falar a verdade.

— Obrigado, meu príncipe — diz Mickey em voz baixa. Ele endireita a postura depois disso, com força o bastante para se virar e sair do escritório. Fitchner fecha a porta.

— Bem, isso foi uma conversa bastante emotiva.

Balanço a cabeça, assentindo. Esse é o homem que eu gostaria de ser. Não constantemente em guarda. Não mentindo entre os dentes. Tenho a impressão de que eu nem sabia quanta afeição tinha por Mickey até o presente momento. Não é porque ele ajudou a me criar. É que ele sempre me amou demais. Mesmo que fosse uma estranha forma de amor, era real. E acredito de fato que Mickey queira ser um homem que ele acredita que eu respeitaria. Da mesma maneira que eu quero ser um homem que Eo e Mustang respeitariam. E essa é a forma boa de amor.

— Precisamos conversar, Fitchner — digo. Não tivemos uma chance antes. Sevro me procurou com o plano de Dancer: convocar uma reunião, grudar os Filhos à minha nave, deixá-los se infiltrar no edifício. Tudo o que fiz foi sugerir Sun-hwa como bode expiatório e fazer com que ele ficasse ciente de que nada de mau acontecesse a Victra.

— Vou deixar vocês dois a sós pra conversar — diz Dancer, empurrando para trás sua cadeira de metal.

— Não, eu quero que você fique — digo. — Tenho muitos segredos com muitas pessoas. Não quero que existam mais segredos entre nós três.

— Aprenda a contar, cabeça de merda — diz Sevro, contornando um bloco de motor enferrujado. A porta de metal barata que leva ao exterior é batida com força atrás dele. Há um aroma de outono mesmo no distrito industrial manchado de óleo de Agea. Ele pula em cima do chassi enferrujado de um velho bombardeiro e senta-se com as pernas penduradas. — Ei, olhe, pela primeira vez só tem pica por aqui, pelo menos por enquanto. Vamos contar piadas sexistas.

Rindo, eu me viro para Fitchner.

— Quer dizer então que você é Ares.

— O cara sai do coma e vira um gênio! — late Fitchner. Ele bate palmas, mas seus olhos permanecem mortalmente sérios. — A maioria me chama de Bronzeado. Os alunos me chamam de Inspetor. Alguns me chamam de Cavaleiro Raivoso. A Soberana me chama de traidor. Meu filho me chama de cabeça de merda...

— Você é um cabeça de merda — repete Sevro.

— ... minha mulher me chamava de Fitchner. Mas os Ouros me transformaram em Ares.

Antes desse momento eu não saberia o que isso significa. Ele é Ouro. Como poderiam os Ouros fazer alguma coisa com ele? Mas agora dei uma espiada por cima da cortina.

— Por que você não me disse quem era desde o início?

— E pôr minha vida nas mãos de um adolescente, sendo obrigado a confiar na sua habilidade teatral? — diz ele, rindo. — Acho que não. Se você fosse descoberto e eles tivessem te torturado... más notícias. Eu tinha planos alternativos, outros ferros no fogo. Você era apenas meu favorito. Mas não devemos ser tendenciosos.

— Quem era sua mulher? — pergunto, já desconfiando da resposta.

— Resposta completa ou resposta resumida? — pergunta ele.

— Completa.

— Eu estava trabalhando fazendo contatos pra uma empresa de terratransformação em Triton — começa ele com rispidez. — Não tinha um emprego glamoroso como você. Nada de lâminas. Nada de armadura. Apenas gerenciamento de construções. O contrato era arrendado por um Prata. Eu estava administrando um dos últimos Motores Lovelock no polo norte de lá quando uma erupção num daqueles malditos gêiseres da lua causou um terremoto. Rachou a calota de gelo. Derramou o motor inteirinho no mar subterrâneo. Três mil almas afundadas. Eles me pescaram do mar e passei os meses seguintes me recuperando no hospital ártico. Eu estava na ala altaCor. Tínhamos boa comida. Melhores chuveiros. Camas mais novas. Mas os baixaCores tinham a janela com vista pras luzes do norte. E a cama dela ficava ao lado dessa janela.

Ele levanta os olhos para Sevro.

— Ela era a mulher mais bonita que eu já tinha visto na vida. E também tinha uma aparência muito agradável. Ela perdeu uma perna no acidente. E eles não iam lhe dar uma nova. Eles poderiam. Trata-se de simples biônica. O custo não valeria a pena, disseram os Cobres. A Cor mais cheia de merda já inventada. Eu juro que...

Sevro limpa a garganta:

— A gente sabe.

Fitchner joga um pedaço de lixo em Sevro e continua:

— Quando saí de lá, levei-a comigo. Eu tinha poupado dinheiro suficiente pra sair de Triton. Não tinha condições de viver no Cerne. Caro demais. Então escolhi Marte. Vivemos nos arredores de New Thebes por um ano. Queríamos um filho mais do que qualquer outra coisa. Mas nosso dna não era compatível. Então fomos a um Entalhador pra ver se não podíamos fazer alguma mágica. Nós fizemos. Me custou quase que tudo o que eu tinha mas, nove meses depois, esse duendezinho saiu de dentro da mãe se contorcendo todo.

Sevro acena do seu posto elevado enquanto examina o lixo para ver se não é comestível.

— Dois anos depois, o Comitê de Controle de Qualidade foi em cima do Entalhador por conta de algum trabalho que ele tinha feito num gladiador Obsidiano e ele nos denunciou, rápido e rasteiro, pra conseguir uma redução na pena. Eles chegaram à nossa casa quando eu estava fora com Sevro. Encontraram minha mulher, levaram-na pra questionamentos. Os médicos deles viram que suas trompas de falópio haviam sido modificadas pra que ela se tornasse compatível a ser mãe de uma criança Ouro. Em seguida eles se desfizeram dela. É exatamente isso o que está escrito nos registros: “desfizeram”. Ela foi enfiada numa câmara de gás com achlys-9, depois foi incinerada num forno e suas cinzas despejadas no mar. Eles nem lhe deram um nome, apenas um número. Não porque ela fosse uma ladra ou uma assassina ou porque tivesse violado quaisquer direitos do homem ou da mulher, mas porque ela era uma Vermelha que ousara amar um Ouro. Meu amor egoísta a matou.

“Não foi como sua mulher, Darrow. Não assisti à morte da minha. Não vi Ouros entrarem no meu mundo e o arruinarem. Em vez disso, senti a frieza do sistema engolir a única coisa pela qual eu vivia. Um Cobre apertando botões, preenchendo uma planilha. Um Marrom girando uma manivela pra liberar o gás. Eles mataram minha mulher. Mas jamais vão pensar que fizeram isso. Ela não é uma lembrança na mente deles. Ela é uma estatística. É como se nunca tivesse existido. Algum fantasma que eu amava mas que nenhuma outra pessoa já havia visto. É isto o que a Sociedade faz: espalha a culpa pra que não haja nenhum vilão, pra que seja inútil ao menos começar a encontrar um vilão, encontrar justiça. É apenas uma maquinaria. Processos. E os motores seguem roncando, inexoráveis, até que uma geração inteira se levante e se jogue por inteiro em cima das ferramentas.”

— Qual era o nome dela?

— O nome dela? Que importância tem isso? — pergunta ele com cautela.

— Porque quero me lembrar dela.

— Bryn — diz Sevro, do alto. — O nome da minha mãe era Bryn. Ela tinha vinte e dois anos de idade quando foi morta por eles. — Apenas um ano a mais do que minha idade atual.

— Bryn — repito a palavra e vejo Fitchner oscilar ligeiramente nos pés. Uma ligeira falta de ar.

— Então você é metade Vermelho — digo a Sevro.

Sevro balança a cabeça, confirmando.

— Descobri isso alguns dias atrás. Esquisitaço isso, né não?

— Esquisitaço. Você vai dar um bom Enferrujado.

— Gosto de pensar que sou uma espécie em extinção.

Dancer rola um fósforo pelos dedos.

— Todos nós somos.

— Você sabia de Titus — digo a Fitchner.

— Mas Dancer, não. Não o culpe por isso. Pensei que vocês seriam irmãos no Instituto. Uma afeição natural pela própria raça. Mas ele ficou sombrio, e não houve jeito de pescá-lo. Eu me encontrei com ele, com embaralhador e fantasManto, da mesma maneira que me encontrei com você. Mas a mente dele não aguentou o rojão. Eu não queria ver a mesma coisa acontecendo com você.

— Mas aconteceu. — Olho para Sevro, para Dancer. — Só que eu tinha amigos pra me ajudar a juntar os cacos. Por que você não contou pro Titus sobre mim e não contou pra mim sobre ele?

— Nesse caso os erros dele teriam sido seus e os seus teriam sido dele. Numa tempestade você não amarra dois barcos. Um vai arrastar o outro pro fundo do mar. — Ele limpa a garganta. — Eu sempre soube que um Ouro não poderia liderar essa rebelião. A coisa precisa ser de baixo pra cima, garotão. Vermelhos têm a ver com família. Mais do que qualquer outra Cor, têm a ver com amor em meio a todos os horrores do nosso mundo. Se ascenderem, os Vermelhos têm uma chance de unir os mundos. MeiaCores não farão isso. Rosas, Marrons não têm como fazer isso. Obsidianos já fracassaram nisso antes. E se eles tiverem sucesso sozinhos, quebrarão os mundos em vez de libertá-los.

— Então qual é o plano? — pergunto. — Eu arrebentei sua posição de proximidade com a Soberana.

— Você é difícil de ser manipulado, Darrow, então vou direto ao assunto. Augustus vai adotá-lo. Você não está surpreso...

— Isso faria sentido. Ele quer amarrar meu destino à sua família. Talvez me fazer casar com Mustang. Mas, se eu me tornar um herdeiro dele, isso vai acabar fraturando minha aliança com o Chacal.

— O Chacal se importa com isso? — pergunta Sevro. — Parece que ele abandonou a esperança de vir a ganhar aprovação algum dia. Aquele filho da puta da porra está construindo o império pessoal dele.

— Eu vou ter que ver — digo.

Fitchner continua:

— Livre-se do Chacal ou faça dele parte do seu plano, pouco importa. Augustus vai adotá-lo como herdeiro. E vai usá-lo como Pretor na armada dele. E se você derrotar a Soberana, ele não se contentará em se tornar Rei de Marte. Ele vai querer ser ele próprio Soberano. Ajude-o a ser. E depois de um ano de reinado dele, Sevro vai matá-lo e pôr a culpa num rival, quem sabe o Chacal...

Minha vez de oscilar nos pés.

— Você quer que eu herde o império — adivinho. — A Sociedade inteira.

Olho embasbacado para ele. Para Dancer. Como eles podem estar com essa aparência tão séria?

— Exato — diz Fitchner. — Depois que ele morrer, todos olharão pro mais forte. Seja o mais forte. Vença o jogo da sucessão e você pode ser Soberano da mesma maneira que foi Primus. Da mesma maneira que é Pretor. É tudo jogo. Exceto pelo fato de que, dessa vez, estamos te ajudando a roubar. Nós vamos te fornecer informações e te proteger contra tentativas de assassinato. Comigo a seu lado, você terá uma rede de espionagem com que nem mesmo o Chacal e a Soberana podem rivalizar. Subornaremos quem precisarmos subornar e mataremos quem precisarmos matar.

Fico lá sentado, reflexivamente olhando para as minhas mãos.

— Pensei que as mentiras tivessem quase acabado. Quero declarar quem eu sou. Quero declarar guerra.

— Ainda não podemos fazer isso. Você sabe disso.

Eu sei. Mas não quero abandonar essas pessoas.

— Não vou ficar no escuro de novo. Vamos nos comunicar. Vamos planejar. Chega de áreas cinzentas. Está entendendo? Não posso ficar sozinho como antes.

— Diga sim, Fitchner — diz Sevro. — Senão, nem eu vou participar disso.

— Nós nos comunicaremos todo dia, se você acha necessário. Não posso ir com você. Existe uma guerra fantasma sendo travada que eu tenho que administrar. Mas no meu lugar vou mandar alguns dos meus melhores agentes. Você terá um grupo de conspiradores em que poderá confiar. Espiões. Assassinos. Cortesãos. Hackers. Todos com disfarces perfeitos. Todos dispostos a morrer pra romper as correntes. Você não está mais sozinho.

O alívio me preenche. Mas há algo que sei que não posso fazer.

— Preciso voltar.

— Sim. Eles devem estar imaginando onde você está — concorda Fitchner.

— Não — eu digo. — Eu preciso ir pra casa.

— Pra casa? — pergunta Dancer. — Pra Lykos?

— Por quê? — pergunta Fitchner. — O que sobrou lá pra você?

— Minha família. Faz quatro anos. Preciso vê-los antes que isso comece. — Olho nos olhos de cada um deles, cada qual com todas as cicatrizes e todas as feridas pessoais. — Vocês precisam entender isso. Tudo está prestes a se decompor de um modo que não temos como prever. Fingimos saber o que estamos fazendo, empurrando esses Ouros pra guerra. Planejando nossa própria guerra. Como se pudéssemos controlar algo assim, mas não podemos. Somos apenas mortais abrindo a caixa de Pandora. E antes que tudo vire de cabeça pra baixo, preciso me lembrar das coisas pelas quais estou lutando. Preciso saber que vale a pena lutar.

— Você quer a bênção deles — diz Dancer. — A bênção dela. — Ele conhece meu coração melhor do que Fitchner. Se devo permitir que Augustus me adote, então preciso primeiro ir para casa.

— Você não pode lhes contar quem você é. Eles não vão entender. — Fitchner dá um passo à frente, subitamente cauteloso em relação ao meu estado de espírito. — Você sabe disso.

— Como tudo isso teria sido bem mais fácil se você e eu tivéssemos conspirado juntos durante todo o tempo — digo. — Mentiras geram mentiras. Precisamos ter confiança. — Olho para Sevro. — Vou levá-la pra Lykos.

— Ela? — pergunta Dancer.

— Mustang — murmura Sevro.

— Não — diz Fitchner, quase com um berro. — Em hipótese alguma. Não. Não vale o risco. Você está bem assentado agora. Ela está apaixonada por você! Não perca essa posição vantajosa por causa de uma consciência culpada.

— E se eu também estiver apaixonado por ela?

— Merda — xinga Fitchner. — Merda. Merda. Merda. Você está falando sério? Pensei que isso fosse parte do seu maldito jogo. Merda. Garotão, você vai botar tudo a perder. Maldito idiota. Merda.

— Isso é tudo — digo. — Ela me ama. Não vou mais usá-la. Não vou mais usá-la como alavanca. Se eu não puder confiar nela, os Ouros não podem mudar, e Titus e Harmony estão com a razão. Que inferno, a Sociedade tem razão se eu não puder confiar nela! Você e eu sabemos que isso não tem a ver com Cor; isso tem a ver com nosso coração. Agora vamos submeter isso a um teste.

— E se você estiver errado? Se ela te rejeitar por eles?

Não tenho uma resposta.

Sevro salta do seu posto no alto.

— Aí eu meto uma bala na cabeça dela.


47

Livre

O Vaso é um pedaço de merda — um ninho de metal e concreto de trezentos metros de profundidade, úmido com o fedor de zurrapa e de produtos de limpeza. No passado ele parecia assomar sobre o Comunitário de Lykos como uma espécie de castelo majestoso. Mas, à medida que minha nave desce, ele não passa de uma obtusa bolha de metal na taiga ao sul de Marte, bem afastada das grandes cidades onde homens se enfileiram pelo grande esforço contra Octavia au Lune.

Os Cinzas lá dentro não são aptos a ser pagos para fazer nada além de intimidar Vermelhos. E pensar que uma vez considerei Cinzas como Ugly Dan soldados de primeira. Triste ver o quão de fato são fracos e reles os demônios da minha juventude. Como se eu viesse de algum passado fantasioso e superficial.

Eles não sabiam que minha nave estava chegando. Eles não sabem por que estou aqui, nem devo lhes dizer. Eles apenas se espalham como moscas enquanto desço com altivez pela rampa da minha nave e sigo em direção à plataforma de aterrissagem escurecida pelos motores, guarda-costas Obsidianos fluindo da nave antes de mim. Ragnar assoma atrás enquanto avanço através dos corredores revestido de grades de metal. Qualquer um desses Cinzas saberá como chegar onde preciso ir, mas estou em busca de um rosto familiar.

— Dan — pergunto a um dos zeladores Marrons. — Onde está ele?

Entro com estrépito numa das salas comunitárias, onde uma dúzia de Cinzas está jogando cartas e fumando charutos. Uma mulher repara minha presença, desviando a atenção de um dos hcs onde diversas personalidades — um Prata, um Violeta e dois Verdes — debatem as ramificações políticas da conquista de Marte em cima de uma montagem exibindo meus feitos. O charuto dela cai da boca. O homem sentado ao lado da mulher dá um tapa no charuto quando este cai na sua perna e queima o tecido.

— Carly, seu monte de carne desmiolada. — Ele sai da mesa num pulo. — Que saco. Que droga você está...

Ugly Dan gira o corpo para me ver pela primeira vez em quatro anos. Consigo sentir os pelos da sua pele se eriçando à medida que o afloramento da disciplina escondida no seu corpo preguiçoso volta ao estado de atenção com um estalo. Não há reconhecimento nos seus olhos, não há medo, apenas obediência.

Isso não me dá nenhuma catarse. Dan deveria ter nos lábios um risinho sarcástico e insolente, um desagradável aspecto de hiena. Mas ele não tem nada disso. Ele está domado. Obediente. O rosto marcado pela acne da infância. Seus cabelos oleosos, que eram motivo de implicância minha e de Loran quando ele não estava por perto, não existem mais. Uma cratera de calvície os substituiu, margeada por fios grisalhos. Ele é tão assustador quanto um cão molhado. Esse é o homem que deixei matar Eo.

Como é possível que eu não o tenha impedido? Eu era tão fraco assim?

— O jardimBolha — digo a Dan, a voz preenchendo a sala de metal comunitária. — Leve-me pra lá.

Já girei nos calcanhares. Ragnar dá um tapa na coxa.

— Vamos, cão.

Faz quatro anos desde a última vez que estive aqui. Estrelas cintilam acima à medida que a noite baixa seu capuz. O jardim é menor do que dizem minhas lembranças. Menos cheio de cor, com sons. Tenho a impressão de que isso é previsível, estando onde estive, vendo o que vi. Há mais lixo. Mais sinais de Cinzas usando o lugar para trepadas e bebedeiras. Chuto uma lata vazia de cerveja. Um papel de bala marca o local onde Eo e eu nos deitamos juntos pela última vez.

Eu me lembro dele como um leito de grama macia. Mas agora o que se vê são ervas. Talvez houvesse ervas naquele tempo e simplesmente não as notei. As flores estão murchas, coisinhas insignificantes. Toco uma delas com o dedo e sinto uma tristeza me puxar enquanto olho pelo tetoBolha para ver estrelas espalhadas pelo céu. Resmungo. No passado talvez elas tenham sido estrelas. Eu pensava nelas como tal quando era mais novo. Mas agora sei que são as naves de guerra que se preparam para um assalto a Luna. Não sei o que eu esperava. Nenhuma mágica permanece aqui.

Eu deveria ter deixado este lugar perfeito na minha memória. Imagino se Eo estará mais a salvo aqui, a salvo dos meus olhos. Se eu a visse agora, se eu voltasse, será que estaria tão apaixonado? Será que ela seria tão perfeita aos meus olhos?

Percorro o jardim. Ele é pouca coisa maior do que minhas suítes na Pax. Sou mais largo do que as árvores sob as quais ando. A grama exibe falhas perto da base, onde as raízes escapam do solo.

Encontro o lugar que vim procurar. Flores de haemanthus vivem em cima do túmulo de Eo. Dezenas delas. Pareceria um milagre se eu não me lembrasse do botão de flor que depositei no túmulo com ela. Eo não está mais lá. Sei disso. Os Cinzas decerto a teriam desenterrado e a tirado do Comunitário para apodrecer depois de me enforcarem.

Há uma ironia sombria que só agora estou começando a perceber. Vim até aqui para pedir a bênção dela, mas Eo não está aqui. Ela fugiu dessa gaiola para habitar o Vale.

Portanto me sento de pernas cruzadas, à espera do pôr do sol, onde uma vez esperei que ele nascesse. Quando ele se põe, os últimos raios de luz do dia preenchem o jardimBolha com uma tonalidade sangrenta. E então o sol se rende ao horizonte e a noite puxa seu véu pontilhado de estrelas sobre Marte.

Rio de mim mesmo.

Ragnar desliza do seu posto na porta.

— Estou bem — digo sem me virar para ele. — Ela ia rir de mim por ter vindo aqui.

— O riso é uma dádiva.

— Às vezes.

Eu me levanto e sacudo a poeira das calças, dando uma última olhada no lugar.

O jardim não é tão perfeito quanto era nas minhas lembranças. E tampouco ela era. Ela era impaciente. Ela podia ser cheia de ódio por pequenas coisas. Mas ela era uma menina. Não tinha nem dezessete anos. E me deu o máximo que podia dar, fez o máximo que podia fazer com o que tinha. É por isso que sempre a amarei, e é por isso que sei se ela daria ou não sua bênção pelo que farei. Meu coração não pode ficar aqui nesta gaiola da qual ela própria fugiu. Ele precisa seguir em frente.


48

O Magistrado

O Magistrado-das-minas Timony ci Podginus espera por mim flanqueado por um séquito de guardas mineiros Cinzas, agora vestindo seus melhores e mais vistosos uniformes. Um deles carrega uma travessa de queijos, tâmaras e o melhor, quem sabe o único, caviar de Podginus. Ugly Dan se foi.

— Lorde Andromedus, certo? — cantarola Podginus com aquela inflexão altaneira muito comum entre Cobres arrogantes. Ele está mais gordo. Seus cabelos menos fartos. E está suando como um porco no calor enquanto abre os dedos recheados de anéis para me cumprimentar com uma mesura estrambótica popular nos dramas políticos exibidos nos hcs. — Eu estava examinando as instalações de compressão de minério (provavelmente um puteiro na cidade próxima de Yorkton, no limite da taiga), quando notícias acerca da sua visita chegaram aos meus ouvidos. Voltei às pressas logo que pude, mas ainda assim imploro seu perdão. Imagino, entretanto, se poderia ter a ousadia de lhe perguntar qual é o propósito da sua visita. — Para que ele possa vender a informação a homens como Pliny. Cobres raras vezes são cem por cento honestos nas coisas que dizem. — A próxima inspeção está marcada pra...

— Na sociedade educada, é considerado grosseria não se apresentar, Cobre. — Falo como um Inigualável, não como os Pixies que ele tão ansiosamente emula.

— Minhas desculpas! — gagueja ele, alarmado, fazendo uma mesura tão exagerada que temo que ele pudesse encostar o nariz no chão não fosse a almofada da sua substancial pança. — Sou o Magistrado-das-minas Timony ci Podginus, seu humilde servo. E gostaria de dizer, se não fosse um excesso de ousadia da minha parte — ele ainda está fazendo a mesura —, que seu aspecto é mais grandioso do que o que eu de fato esperava! Não que eu não esperasse que você fosse largo e alto, o ArquiGovernador tem apenas os melhores dos melhores nas suas fileiras, é claro, mas o hc não lhe faz tanta justiça assim.

— Pode parar com essa mesura.

Ele estica o corpo, intimidado, e espia atrás de mim na direção do jardim, demoniacamente em busca do motivo pelo qual alguém como eu chegaria na sua mina sem ser anunciado.

— Como sei que você sem dúvida nenhuma ouviu falar a partir de outros, os Magistrados-das-minas ficaram extasiados ao ouvir que o planeta havia sido libertado do controle dos Bellona. Sobre guerra aqueles homens podem ter conhecimento, mas sobre mineração? Ha! Não passam de amadores.

— Eles também não entendem de guerra, pelo que parece.

Engolindo em seco, mais uma vez ele olha de relance para a minha lâmina e em seguida para o jardim.

— Um belo espaço, não é? — pergunta ele. — Me faz lembrar do meu tempo no rio Pyrrus. Tulipas florescem aqui, oh, as cores! Não existe nada como isso, tenho certeza de que você sabe do que estou falando. E as árvores, elas por acaso não são tão semelhantes às bétulas que se encontram ao longo das estepes do Monte Olimpo? Fiquei lá no Château le Breu. — Ele faz um estranho gesto expansivo com as mãos. — Eu sei, eu sei, mas às vezes é preciso se dar a algum luxo. Na realidade, foi lá que descobri o mais singular queijo sottocenere. — Ele sorri, orgulhoso. — Eles me chamam de Marco Polo, meus amigos, porque amo viajar. É a cultura que procuro. Companhias refinadas, como você sem dúvida nenhuma poderia adivinhar, é a coisa mais difícil de se encontrar por aqui...

Não sei quanto tempo ele continuaria tentando me impressionar se eu não olhasse para os uniformes dos seus melhores homens e depois para os melhores anéis dele e franzisse o cenho.

— Algum problema? — pergunta ele.

— Você tem razão — digo.

Seus olhos brilhantes examinam de cima a baixo seus melhores Cinzas, em busca de sinais da iniquidade que reparei. Fico enojado pelo jeito como ele se mostra tão desesperado para me agradar. Esse homem roubou da minha família. Ele ordenou que eu fosse chicoteado. Assistiu Eo ser morta. Enforcou meu pai. Ele não é maldoso. Ele nada mais é do que ridículo na sua ganância.

— Tenho razão em relação a quê? — pergunta ele, piscando para mim.

— No fato de que é impossível encontrar companhia refinada em lugares como este. — Meus olhos caem tão pesadamente sobre Podginus que temo que ele venha a ter um ataque de choro. Vê-lo, ver Dan, nada mais faz do que me encher de uma estranheza distante. Eu queria que eles fossem monstros hediondos, terríveis. Mas eles não são. Eles são homens reles que arruínam vidas alheias e nem reparam que o fazem. Quantos outros são como eles?

Em pânico, Podginus acena para uma travessa com queijos.

— Sottocenere, meu suserano. É um produto importado da Itália com notas de alcaçuz, piscadelas de noz-moscada, um traço de coentro, um salpico de cravo e um tiquinho brincalhão porém misterioso de canela e erva-doce na crosta. Tenho certeza de que você o considerará um dos...

— Não vim aqui por causa do queijo.

— Não. Não. É claro que não. — Ele olha ao redor, nervoso. — Se me permite perguntar, qual é o motivo da sua vinda, meu suserano?

Começo a andar. Podginus sai correndo para acompanhar meu ritmo.

— Ragnar. — Aceno para o titã, que tira do bolso um pequeno datapad. Pedrinha levou menos de uma hora para ensiná-lo a usar o equipamento.

— Sua produção de hélio-3 decresceu 14% ao longo do último quartel. Suas projeções mostram um esperado declínio de 13.500 quilos pro quartel fiscal atual. O Pretor Andromedus deseja uma explicação.

Podginus não sabe o que fazer. Ele olha ora para mim, ora para o Obsidiano, ora para o datapad. Ele gagueja uma resposta.

— Eu... Eu... Tivemos algumas questões com o populacho. Grafites, panfletos ilegais. — Ele se dirige a mim: — Você sabe que somos o núcleo do movimento Perséfone... — Ragnar lhe dá um tapinha vigoroso no ombro.

— O Pretor Andromedus é um homem muito ocupado.

— Eu... Eu... — Podginus gira de um lado para o outro em meio a um pesadelo que não compreende e do qual não consegue escapar. — Esqueci o que eu estava...

— Você estava dando desculpas.

— Dando desculpas. Dando desculpas? Como ousa? — Ele apruma os ombros. — Há uma corrente de rebelião perpassando Marte. Nenhuma mina passou ao largo das divergências. É pouquíssimo provável que minha mina seja uma exceção. Houve matanças. Sabotagens. E não apenas oriundas dos Filhos de Ares. Mas dos próprios mineiros!

Podginus se vira outra vez para mim, sentindo desesperadamente que sua ruína se aproxima rápido, os pés lutando para manter o ritmo das nossas longas passadas.

— Meu suserano, não medi esforços no sentido de seguir o método adequado de sufocar as divergências como está bem delineado na seção três, subseção A do Guia de gerenciamento de minas do Departamento de Energia. Reduzi as rações deles, aumentei a rigidez no que diz respeito ao controle policial de violações legais e desacreditei lideranças formadoras de opinião atraindo-as a ligações homossexuais. Inclusive introduzi os cenários recomendados tirados da obra Como debelar rebeliões. Ao longo dos últimos seis anos, introduzi Praga e Cura, Rebelião e Supressão, Desastres Naturais, Migração de Víboras-das-Cavidades e inclusive considerei a possibilidade de adotar o pacote Sublevação de Governos Extraplanetários! — Arfando, ele acena pra que eu pare como quem faz uma súplica. — Ninguém teria feito melhor do que eu.

— Sua posição não está em xeque — digo.

Ele estremece de alívio. De súbito, sua cabeça se levanta num estalo.

— Você não faria... — Ele se curva para a frente. — Você está considerando a possibilidade de uma quarentena! Não está?

— Por que eu não deveria pôr essa mina em quarentena? — Continuo percorrendo o corredor até alcançarmos a plataforma de lançamento onde minha nave está à espera. Lá, eu paro. — Como você disse, a população dela fracassou em reagir favoravelmente a estratégias endossadas pelo Departamento de Energia e pelo Comitê de Controle de Qualidade. Por que não preencher o ar com gás achlys-9 e substituir os indisciplinados Vermelhos por clãs vindos de minas complacentes mais próximas ao equador?

— Não! — Ele efetivamente me agarra. Ragnar nem se importa em ameaçar o homem gordo.

— Escolha suas palavras com cuidado — digo.

— Meu suserano, não faça isso. — Lágrimas cintilam nos seus olhos gananciosos e cheios de pânico. — Os lucros da minha mina podem ter decrescido, mas ela ainda é viável, ela ainda é funcional. Um modelo de como lidar com uma tempestade.

— Você é o salvador da mina — digo, debochando dele.

— Os Vermelhos aqui são bons mineiros. Os melhores em todo o mundo. É por isso que eles são selvagens. Mas eles agora se acalmaram. Aumentei as rações de álcool e aumentei a circulação de feromônios nas suas unidades de ar. Eles estão se reproduzindo como coelhos. Também mandei meus Gamas infiltrados fraudarem as máquinas e os mapas deles. Eles acham que as minas estão secando. Eles vão andar com formigamento nos membros, com medo de não conseguir fazer as cotas. Então vamos consertar as máquinas e eles vão se encher de propósitos renovados. Posso até lhes dizer que a terratransformação está completa e que a migração começará em dez anos, e que a Terra começou a enviar imigrantes. Há ainda tantas e tantas opções antes de procedermos a uma quarentena.

Observo o homem falar aos tropeços até por fim parar, quase tendo um colapso, tão desprovido de vida quanto uma camisa molhada num cabide. Tudo isso é pela sua própria vaidade ou será que ele se importa mesmo com os Vermelhos? Esse era um teste a ser visto. Agora não tenho como afirmar. Ele pode realmente se importar de algum modo estranho. Um outro monstro do meu passado tornado humano pelo chicote da Sociedade.

— Sua mina está salva, por enquanto. Mantenha sua força de trabalho. Aumente as rações, começando esta noite. Quero trabalhadores felizes e cofres transbordantes. Na minha nave você encontrará provisões. Comida e libações. Dê um banquete pros Vermelhos.

— Meu suserano... um banquete? Por quê?

— Porque eu disse pra dar.

Estou sentado sozinho na sala de observação, assistindo à celebração se desenrolar através do vidro sob meus pés. Milhares de Vermelhos bebem e comem enquanto os jovens dançam ao redor do cadafalso ao som da “Balada do Velho Hickory”. As mesas estão cheias de comidas que esses Vermelhos jamais experimentaram, bebidas que nunca ingeriram. E embora eles riam, embora eles dancem, não consigo eu mesmo encontrar nenhuma espécie de alegria. Eles vivem num horror, mas é um horror que eles conhecem. É um horror contra o qual eles conseguem encontrar refúgio. Será que haverá algum refúgio quando os Filhos de Ares revelarem a grande mentira? Ela despedaçará o estilo de vida deles. Eles ficarão perdidos na grandeza dos mundos. E serão poluídos por eles. Como eu estou.

Reconheço quase todos. Meninos com que brinquei, agora crescidos. Meninas que uma vez beijei, agora com filhos. Sobrinhas. Sobrinhos. Inclusive meu irmão, Kieran. Enxugo as lágrimas dos olhos para impedir que alguém as veja.

Um menino leva uma menina para dançar depois de beijá-la no rosto. Jamais voltarei a ser como esse menino. Minha inocência está perdida. E os Vermelhos jamais me aceitarão como um deles, independente do futuro que eu lhes proporcione. Não sou um herói conquistador. Sou um mal necessário. Não tenho lugar aqui, mas não posso ir embora. Há coisas que precisam ser ditas. Segredos que precisam ser revelados.

— Ainda tentando criar um culto? — pergunta ela da porta. Eu me viro para ver Mustang encostada na estrutura de metal, os cabelos num rabo de cavalo, uniforme de político com colarinho alto aberto informalmente na altura do pescoço.

— Tenho a impressão de que devo encomendar umas estátuas em seguida, certo? — pergunto.

— Ragnar está assustando os Cinzas interioranos.

— Bom.

— Você é muito mau com os Cinzas — diz ela, rindo. — Há algo neles que não te agrada? — Ela passa a mão pelos meus cabelos enquanto vem sentar-se no braço da minha cadeira.

— Eles são obedientes demais.

— Ah, então é por isso que você gosta de mim. — Ela enterra as unhas de leve no meu couro cabeludo, implicando. — Estátuas não são uma boa ideia. Fáceis demais de ser desfiguradas. Vândalos poderiam pôr um bigode em você, ou seios, só pra se divertir. Proposta arriscada essa, seios.

— Podia ser pior.

— Bom, não há nada pior do que um bigode. Daxo está tentando cultivar um. Acho que a intenção é ser irônico, é isso? Não tenho certeza. — Mustang ri levemente enquanto se acomoda numa cadeira de metal perto de mim. — As irmãs dele vão arranjar uma solução pra isso.

Ela olha ao redor, na direção da mina e da Lata.

— O lugar é nojento. Escrevi um trabalho sobre legislação que os Reformistas planejam pôr em prática depois de tudo isso. Ele vai destripar o Departamento de Energia, reestruturar o Comitê de Controle de Qualidade — ela olha ao redor do Vaso —, mudar a maneira como essa loja de carne é administrada. Você vê os depósitos de suprimentos neste lugar? Comida suficiente pra sete anos, mas eles continuam enviando os formulários de requisição. Dei uma olhada nos arquivos deles. O Magistrado-das-minas está metendo a mão. Talvez revendendo os suprimentos no mercado negro. O Cobre mentiroso achou que não notaríamos. Provavelmente porque algum Ouro ou Prata disse a ele que molharia as mãos certas pra garantir que ninguém jamais questionasse nada. Enquanto isso ele tem uma população subnutrida. Corrupção por todos os lados.

Ela torce o nariz e pega um pedacinho de tinta descascada da sua cadeira.

— Por que estamos aqui? — pergunta ela. — Alguma coisa aconteceu com meu irmão?

— Essa é a mina onde a garota cantava a Canção Proibida — digo depois de um instante. Os olhos de Mustang ficam arregalados à medida que ela vasculha a multidão abaixo.

— Coitada dessa gente.

Ela me observa, esperando ansiosa o que tenho a dizer. Mas não me restam palavras. Apenas algo a ser mostrado. Pego a mão dela e me levanto.

— Venha comigo.


49

Por que cantamos

Nunca senti um medo como esse. Luzes todas voltadas para baixo para que os Vermelhos não enlouqueçam devido ao dia eterno. Em algum lugar, os trabalhadores do turno da noite tecem sedas, mineram o solo. Mas aqui neste amplo túnel não há movimento, nenhum som exceto o murmúrio dos hcs mostrando antigos holos de terratransformação e o zumbido de máquinas distantes. Está fresco aqui, contudo estou suando.

Mustang está em silêncio ao meu lado. Ela não falou nada desde que descemos nas nossas gravBotas ao piso do Comunitário, os fantasMantos nos tornando quase invisíveis aos bêbados que ainda permanecem debruçados sobre mesas e dormindo profundamente nos degraus do cadafalso. Ouço a tensão no silêncio dela e imagino o que ela não estará pensando.

Meu coração está batendo acelerado no peito, tão alto que Mustang deve estar ouvindo quando entramos no Distrito Lambda, onde cresci de menino a homem. O lugar está menor. O teto está mais baixo. Pontes de corda e sistemas de roldanas como se fossem brinquedos de criança. O hc que antes refulgia com o rosto de Octavia au Lune é uma relíquia antiga, pixels faltando. Mustang dá uma espiada ao redor, com o manto desativado. Seus olhos dançam de ponte em ponte e retornam como se ela estivesse vendo algo maravilhoso. Não me ocorreu que um Ouro pudesse se interessar por um lugar simples como este.

Subo os degraus de pedra até a ponte que leva à minha antiga casa da mesma forma como eu fazia quando era criança. Só que agora meus membros estão grandes demais. Eu me esqueci de que dispunha de gravBotas. Mustang também não usa as suas. Ela segue atrás de mim e esfrega as mãos para tirar a poeira quando aterrissa onde a fina porta de metal da antiga casa da minha família foi cortada no muro.

— Darrow — diz ela muito baixo —, como você sabe pra onde está indo?

Minhas mãos tremem.

— Você me disse que queria entrar. — Olho para ela.

— Eu disse, mas...

— Até onde você quer ir?

Sei que ela está sentindo o que vem por aí. Imagino há quanto tempo ela está sentindo isso. Minha estranheza. Os maneirismos esquisitos. A alma distante.

Ela olha para as mãos, manchadas de vermelho por causa da poeira da escada de pedra.

— Até o fim.

Entrego a ela o holoCubo.

— Se é isso mesmo que você quer, aperte play e entre quando você tiver terminado de assistir. Se você for embora, eu entendo.

— Darrow...

Eu a beijo uma última vez, com dureza. Ela agarra meus cabelos, sentindo que, quando nos separarmos, algo será diferente. Flagro a mim mesmo recuando. Minha mão acaricia o queixo dela. Seus olhos, fechados, começam a se abrir quando me afasto e me viro para a porta.

Eu a abro.

Preciso me abaixar para entrar. A casa é apertada. Quieta. O primeiro andar está exatamente do jeito que me lembro. A mesinha de metal não mudou. Nem as cadeiras de plástico, a pequena pia, os pratos de argila secando ou a chaleira adorada de mamãe que está no fogo. Um tapete novo cobre o piso. É o trabalho de um novato. Botas diferentes se encontram onde papai costumava pôr as suas na base da escada, onde eu costumava deixar as minhas. Espere. Aquelas são as minhas. Será que meus pés eram assim tão pequenos?

O silêncio guarda a casa. Todos dormem, exceto ela.

A chaleira sibila quando a água atinge o ponto de fervura. Logo ela dá início ao seu murmúrio surdo. Pés raspam os degraus de pedra. Quase saio correndo da sala. Mas o terror me enraíza no local à medida que ela fica mais próxima. Mais próxima até se encontrar na sala comigo, fazendo uma pausa no último degrau, o pé suspenso, esquecido. Seus olhos encontram os meus. Eles não os abandonam em momento algum. Nunca olham para o resto da minha forma Dourada. Entro em pânico quando ela não diz nada. Uma respiração. Três. Dez. Ela não me conhece. Sou um matador na casa dela. Eu não deveria ter vindo aqui. Ela não me reconhece. Sou um Ouro perdido enfiando a cabeça na casa dela por pura curiosidade. Posso ir embora. Fugir agora. Minha mãe nunca deverá saber o que seu filho se tornou.

Então ela sai do degrau e vem na minha direção. Pairando. Faz quatro anos. Ela parece vinte anos mais velha. Lábios magros, pele molenga e cheia de rugas, cabelos com fios grisalhos, mãos ásperas como carvalho e retorcidas como raízes de gengibre. Quando sua mão direita alcança meu rosto, tenho de ajoelhar. Seus olhos ainda não deixaram os meus. Agora eles vertem lágrimas. A chaleira berra no fogão. Ela leva sua outra mão ao meu rosto, mas esta é incapaz de se abrir e de tocar como a outra. Ela permanece contorcida e fechada, como meu coração.

— É você — diz ela com doçura, como se eu fosse desaparecer como uma visão noturna se ela dissesse a palavra em voz muito alta. — É você. — Sua voz está diferente, arrastada.

— Você me conhece? — consigo dizer desesperadamente.

— E como eu não conheceria? — Seu sorriso está contorcido, a pálpebra esquerda caída. A vida foi menos gentil com ela do que comigo. Ela teve um derrame. Fico arrasado ao ver que seu corpo não a obedece. Ao saber que eu não estava aqui para ampará-la. Ao saber que o coração dela está partido. — Meu menino. Você é o meu Darrow.

As lágrimas deixam rastros mornos nas minhas bochechas. Eu deixo que elas perdurem.

— Mamãe.

Ainda de joelhos, jogo os braços em volta dela e deixo as lágrimas silenciosas virem. Não dizemos nada pelo mais longo dos tempos. O aroma dela é de graxa, de ferrugem e do ressaibo bolorento do haemanthus. Seus lábios beijam meus cabelos como costumavam fazer. Suas mãos coçam minhas costas como se ela se lembrasse delas tão largas quanto estão agora, e tão fortes.

— Preciso tirar a chaleira do fogo — diz ela. — Antes que alguém acorde e te veja como um...

— É claro.

— Você precisa me soltar.

— Desculpe. — Faço isso, rindo de mim mesmo.

— Como...? — pergunta ela, lá parada olhando para os Sinetes nas minhas mãos, sacudindo a cabeça. — Como isso pôde acontecer? Você... Seu sotaque. Tudo.

— Fui entalhado. Tio Narol me salvou. Posso explicar.

Ela balança a cabeça, tremendo tão de leve que deve estar pensando que eu não posso me dar conta disso. A chaleira chia mais alto ainda.

— Sente-se. — Ela me dá as costas e tira a chaleira do fogão. Ela pega uma outra caneca. Uma caneca da prateleira mais alta. Eu me lembro dela como sendo a do meu pai. A poeira cobre o barro embolorado. Ela faz uma pausa, e não diz nada enquanto aconchega o objeto junto a si, adentrando um momento que não me diz respeito, onde ela se lembra daquelas manhãs nas quais eles ficavam preparados para o dia juntos. Respirando bem fundo, ela solta as folhas soltas de chá na caneca e em seguida despeja a água quente. — Você quer mais alguma coisa? Temos aqueles biscoitos de que você gostava.

— Não, obrigado.

— E eu trouxe minha porção do banquete de ontem à noite. Delicadas guloseimas de Ouros. Você fez aquilo?

— Não sou um Ouro.

— Tem feijão também. Recém-colhidos do jardim de Leora. Lembra dela?

Olho de relance para o meu datapad. Mustang foi embora, voltou à nave depois de assistir ao holoCubo. Eu temia isso. Leio uma mensagem de Sevro. “Eu a detenho?”, pergunta ele. Duas opções. Deixar Sevro e Ragnar pegarem-na e deterem-na até que eu consiga falar com ela. Ou confiar no fato de que ela tomará suas próprias decisões. Mas, se eu confiar nela, ela pode ir embora, contar ao pai dela o que eu sou, e isso poderia significar o fim de tudo. Contudo, ela pode estar apenas necessitando de tempo. Dei a ela muito o que digerir. Se Ragnar e Sevro a capturarem antes da hora, isso pode fazer com que ela se volte contra mim. Ou eles podem agir por conta própria e matá-la.

Xingando em silêncio, digito uma resposta rápida.

— Lembro de todo mundo — digo à minha mãe, olhando de volta para ela. — Ainda sou eu.

Ela faz uma pausa ao ouvir isso, ainda encarando o fogão. Quando se vira, um sorriso torto lhe atravessa o rosto devastado pelo derrame. Sua mão tateia uma das canecas, mas ela se recupera rápido.

— Você tem alguma coisa contra as cadeiras? — pergunta ela com rispidez, reparando que vi como a mão dela se mexe de maneira desajeitada.

— Muito pelo contrário, só tenho medo dela... — Levanto a cadeira. Ela é mais adequada a uma criança Ouro do que a um Inigualável Maculado com mais de dois metros de altura e pesando tanto quanto três Vermelhos reunidos. Ela dá aquela risada sombria típica, a risada que, quando eu era criança, sempre me fazia pensar que ela fizera alguma coisa particularmente sinistra. Com graciosidade, ela cruza as pernas e senta-se no chão. Eu a sigo, sentindo-me grandalhão e desengonçado aqui. Ela deposita as canecas fumegantes entre nós dois.

— Você não parece terrivelmente surpresa de me ver — digo.

— Agora você fala de um jeito engraçado. — Ela faz uma pausa tão longa que imagino se vai prosseguir com sua fala. — Narol me contou que você estava vivo. Mas não me disse que você tinha sumido e se transformado num Ouro. — Ela beberica o chá. — Aposto que você tem perguntas a fazer.

Eu rio.

— Pensei que você tivesse mais.

— Eu teria. Mas conheço meu filho. — Ela olha meus Sinetes. — Sou mais paciente. Faça as suas.

— Narol... Ele está...?

— Morto? Ahã. Ele está morto.

O ar foge de mim.

— Há quanto tempo?

— Dois anos. — Ela dá uma risada. — Caiu de um eixo de mina com Loran. Os corpos nunca foram encontrados.

— E por que você está rindo?

— O irmão do seu pai sempre foi a ovelha negra da família. — Ela beberica o chá. Ele ainda está muito quente para mim. — Imagino que faça sentido ele ser tão difícil de matar quanto uma barata. Então vou acreditar que ele esteja morto quando me encontrar com ele no Vale. Patife manhoso aquele. — Ela fala sem pressa, como a maioria dos Vermelhos. O balbucio decorrente do derrame é tênue, mas está sempre lá. — Acho que ele foi embora daqui e levou Loran com ele. — O jeito como ela diz isso faz com que eu saiba que ela entende haver mais coisas além da minas. Talvez ela não saiba a verdade toda, mas sabe uma parte. Talvez meu tio e primo não estejam mortos. Talvez tenham ido embora para se juntar aos Filhos.

— E Kieran? Leanna? Dio?

— Sua irmã casou de novo. Vive com o marido no Distrito Gama, na casa da família dele.

— Gama? — digo, debochando. — Você a deixou... — Paro assim que vejo a boca da minha mãe franzindo. Posso muito bem usar vestimentas de um Ouro, mas é melhor me calar em relação à filha dela.

— Ela tem duas meninas que se parecem mais com você do que com ela ou com qualquer Gama que eu já tenha conhecido. E Kieran está bem. — Ela sorri para si mesma. — Você ficaria orgulhoso dele. Não é mais aquela criança chorona que talvez você se lembre relegando as tarefas e falando enquanto dormia. O homem da casa. CabeçaFalante pra equipe depois que Narol caiu na mina. Mas Kora, a mulher dele, morreu ao dar à luz. Ele arranjou uma outra alguns meses atrás.

Meu pobre irmão.

— E Dio? E os pais de Eo?

— O pai dela morreu. Matou-se não muito tempo depois que você tentou fazer a mesma coisa.

Minha cabeça pende.

— Tantas mortes.

Ela toca meu joelho.

— É assim que as coisas são.

— Mas não deveriam ser.

— Foi um tempo difícil depois que você e Eo nos deixaram. Mas Dio está bem. Na realidade, ela está lá em cima.

— Lá em cima? Você quer dizer que... ela se casou com Kieran?

— Isso. E está grávida. Estou esperando que seja uma menina, mas com minha sorte vai acabar sendo um menino com vontade de driblar víboras-das-cavidades e queimaduras de vapor quente a vida inteira. Quer dizer, se ele tiver essa opção.

— Como assim?

— As coisas andam duras. Mudadas. A mina não está dando do jeito que deveria dar. Alguns dos homens andam sussurrando que este canto do mundo está todo usado. E isso faz com que eles comecem a temer: o que vai acontecer com os mineiros quando não sobrar mais nada na mina? Eles estão esperando que a terratransformação se confirme antes de a gente torrar nossos depósitos de hélio.

— Nada vai acontecer com vocês. Prometo que vou proteger esta mina. Não importa de que jeito.

— Como?

— Eu vou e pronto.

— Minha vez. — Ela me olha por sobre a caneca de chá. — Por onde você anda, filho?

— Eu... Eu nem sei por onde começar.

— Com a morte de Eo, acho eu.

Estremeço. Minha mãe sempre foi grossa. Fez Kieran chorar durante toda a infância dele. Mas essa grosseria produz calos depois das feridas. Portanto, devo a ela uma resposta delicada. Conto-lhe tudo, começando com os momentos depois da morte de Eo e terminando com a promessa que fiz ao ArquiGovernador.

Nosso chá já acabou há tempos quando termino.

— Isso é uma baita história — diz ela.

— História? É a verdade.

— Eles não vão acreditar em você, o resto deles.

— Mas você acredita, certo?

— Sou sua mãe. — Ela segura minha mão e passa seus dedos tortos pelos Sinetes que vão das costas da minha mão até os antebraços, fazendo uma careta quando alcança as asas de metal incrustadas na parte externa dos meus antebraços.

— Nunca gostei de Eo — diz ela em tom baixo.

Empino a cabeça para olhar para ela.

— Não era boa pra você. Ela podia ser manipuladora. Ela escondeu algumas coisas de você...

— Estou a par do bebê — digo. — Sei o que ela disse pra Dio no cadafalso.

Mamãe se aproxima de mim, suas mãos agarrando com firmeza as minhas e levando os nós dos meus dedos aos seus lábios. Ela nunca foi de dar conforto. Ela é desajeitada fazendo isso agora. Mas não me importo. Papai a amava pela mesma razão que eu. Tudo o que ela faz é de acordo com o que ela pensa. Não há falsidade nela. Não há enganação. Então, quando ela me diz que me ama, sei que está sendo cem por cento sincera.

— Eo não era uma garota cruel, você sabe disso — diz ela, afastando-se para poder me olhar nos olhos. — Ela te amava com tudo o que tinha. E eu a amava por isso. Mas sempre tive medo de que ela pudesse fazer com que você lutasse as batalhas dela. E sempre tive medo do quanto ela gostava de lutar.

Essa não é nem um pouco a Eo de que eu me lembro. Mas não encontro equívocos nas palavras da minha mãe. Não tenho como. Todos os olhos enxergam à sua própria maneira.

— Mas no fim, mamãe, Eo estava certa em relação a isso. Em relação aos Ouros.

— Sou sua mãe. Eu não me importo com o que é certo. Eu me importo com você, menino.

— Alguém precisa consertar isso tudo — digo. — Alguém precisa romper as correntes.

— E esse alguém é você?

Por que ela está duvidando de mim?

— Sim, esse alguém sou eu. Não estou sendo tolo. Posso liderar nosso povo pra fora disso aqui. Pra fora dessa escravidão.

— Pra onde? Pra superfície? — Ela fala disso com familiaridade, como se soubesse da verdade sobre Marte há anos, não há minutos. Talvez ela soubesse. — O que faríamos e onde? Tudo o que conhecemos são as minas. Tudo o que sabemos é escavar e cultivar seda. Se o que você está dizendo é verdade, se existem mesmo centenas de milhões de Vermelhos em Marte, como haverá casas suficientes pra nós lá em cima? Como haverá trabalho suficiente? A maioria não vai deixar as minas, mesmo que eles fiquem sabendo disso. Você vai ver. Eles vão simplesmente continuar mineiros. E os filhos deles serão mineiros. E os filhos dos filhos deles, só que a nobreza se perderá. Você pensa nessas coisas?

— É claro que penso.

— E você tem uma resposta pra isso?

— Não.

— Homens. — Ela esfrega a têmpora direita. — Seu pai era um desses que pulava sem olhar pra onde. — Sua fisionomia me diz o que ela acha disso. — Todos os Mergulhadores-do-Inferno acham que podem prover os clãs. Não. Quem faz isso são as mulheres. — Ela faz um gesto mostrando tudo ao redor. — Tudo isso que você está vendo aqui foi feito por mulheres. Mas você sabe como dar forma ao mundo, não sabe? Sabe como ele deveria ser.

— Não, não sei — digo. — Não sou eu quem tem as respostas. — Quem tem é Mustang. Quem tinha era Eo. Quem tem é mamãe. — Nenhum homem ou mulher tem todas as respostas. Mil mentes brilhantes, um milhão de mentes brilhantes serão necessárias pra responder o que você me perguntou. Essa é a questão de tudo isso. O que posso fazer, o que sei fazer bem é estraçalhar os homens e mulheres que mantêm essas mentes brilhantes acorrentadas. É por isso que estou aqui. É por isso que existo.

— Você está mudado — diz ela.

— Eu sei. — Pego pó no chão e o esfrego entre as palmas das minhas mãos. O pó parece estranho nestas mãos. — Você acha que... é possível amar duas pessoas?

Antes que ela possa responder, pés descem a escada.

Minha mãe se vira para olhar.

— Vovó? — diz uma voz miúda, sonolenta. — Vovó, Dunlow não está na cama.

Uma criancinha está na escada, a camisola raspando o chão. Um dos filhos de Kieran. Ela tem três anos, quem sabe quatro. Nascida logo depois de eu partir. Seu rosto tem a forma de um coração. Fartos cabelos ruivos e enferrujados como os da minha mulher. Mamãe olha de volta para mim, preocupada em saber como vai explicar minha presença. Mas ativei meu fantasManto assim que ouvi o barulho.

— Oh, ele provavelmente deu uma escapadinha pra arrumar alguma encrenca — diz minha mãe.

Aperto a mão dela antes de deslizar da sala na direção da porta. Meu tempo aqui está no fim. No entanto, permaneço. A menininha desce com cuidado os degraus da escada, um pé depois do outro, esfregando os olhos para se livrar do sono.

— Com quem você estava falando?

— Eu estava rezando, menina.

— Rezando pra quê?

— Pela alma de um homem que te ama muito. — Mamãe toca o nariz dela com o dedo.

— Papai?

— Não. Seu tio.

— Tio Darrow? Mas ele morreu.

Mamãe levanta a menina nos braços.

— Os mortos sempre podem nos ouvir, meu amor. Por que outro motivo a gente cantaria? Queremos que eles saibam que, mesmo que tenham partido, a gente ainda pode ter alegria. — Aconchegando minha sobrinha nos braços, ela se vira para olhar para mim enquanto pisa no primeiro degrau da escada. — Isso é tudo o que eles querem da gente.


50

As profundezas

Mustang sumiu. Eu tinha esperança de que ela entrasse. Mas desconfio que isso seja pedir demais. É claro que é. Idiota. Eu me lembro de pensar que isso me tornaria mais humano aos olhos dela. Imaginei que conhecer minha mãe a faria chorar e perceber que todos nós somos iguais.

A culpa cai rapidamente na minha cabeça. Entreguei a Mustang o holo com as imagens do meu entalhe... Esperando o quê? Que ela entrasse na minha casa? Que ela, a filha do ArquiGovernador de Marte, se sentasse no chão da minha casa com minha mãe e comigo? Sou um covarde por ter vindo aqui. Sou um covarde por deixar o holo falar por mim. Eu não queria ver Mustang se dando conta de quem eu realmente sou. Não queria ver a traição nos olhos dela. Quatro anos de mentiras. Quatro anos mentindo para a garota que jamais foi capaz de confiar em ninguém. Quatro anos e eu conto a verdade quando nem estou presente na porra da sala. Sou um covarde.

Ela sumiu.

Verifico meu datapad. O rastreador de radiação que Sevro insistiu em grudar nela antes que ela viesse me ver na sala de observação do Vaso diz que ela está a trezentos quilômetros de distância e se movendo em alta velocidade. A nave de Sevro a persegue, à espera das minhas ordens.

Ragnar e Sevro me chamam. Não respondo às chamadas deles. Eles vão querer que eu dê a ordem para abatê-la. Não vou fazer isso. Não posso fazer isso. Nenhum dos dois compreende.

Sem Mustang, qual é o sentido de tudo isso?

Saio do distrito e vou descendo e descendo em direção à antiga mina, tentando esquecer o presente encontrando o passado. Lá, eu fico parado, sozinho, escutando o chamado das profundezas das minas. O vento passa zunindo pela terra, tristonho no seu canto. Meus olhos estão fechados à pretura, os calcanhares plantados no solo macio, a cabeça olhando para baixo na direção do bucho de escuridão que se estende bem fundo nos intestinos do meu mundo. É assim que testávamos nossa bravura quando jovens. Parados, à espera, nas profundezas vazias que nossos ancestrais cavaram nas épocas anteriores.

Viro o braço esquerdo para ver o interior do antebraço onde se encontra o datapad. Hesitante, chamo Mustang.

O dispositivo dela soa logo atrás de mim.

Eu congelo. Então uma bateria de abrasador chia ao ser ativada, e uma cálida luz amarela brota atrás de mim, iluminando uma porção do enorme túnel.

— Ponha as mãos onde eu possa vê-las. — A voz dela está tão fria que eu mal a reconheço, até que ela ecoa de volta a mim das paredes do túnel. Devagar, levanto as mãos. — Vire-se.

Eu me viro.

Os olhos dela refulgem como os de uma coruja à luminosidade da lanterna. Ela está a dez metros de distância, numa posição mais elevada do que a minha, os pés plantados no solo inclinado e macio. Numa das mãos, ela segura uma lanterna. Na outra, um abrasador. Um abrasador que está apontado para a minha cabeça, o dedo encostado no gatilho. Os nós dos dedos dela estão brancos. Seu rosto é uma máscara impassível e, atrás dele, dois olhos cheios de uma insondável tristeza.

Sevro tinha razão.

— Ela vai atirar na sua cabeça, seu imbecil da porra — disse-me Sevro num tom sarcástico quando estávamos na nave. Às vezes penso que ele se juntou à minha pequena cruzada para poder ter uma desculpa para xingar como um Vermelho. Ragnar permaneceu em silêncio quando lhes contei meu plano.

— Então por que você me daria cobertura com seu pai? — perguntei a ele.

— Porque é isso o que a gente faz.

— Mustang precisa fazer a escolha dela.

— E ela vai escolher você e não a raça dela?

— Você escolheu.

— Ah, pare com isso. Não sou nenhuma porra de rainha dos Ouros, sou? — Ele levanta bem a mão. — Ela está nesse patamar a vida inteira. O ar é legal e gostoso. — Ele baixa a mão. — Eu chuto merda desde que nasci com esse corpo diminuto e essa cara de bunda, filho do parasita do meu pai. Sua garota, não existe uma lasquinha sequer no ombro dela. Ela pode ficar declamando belezuras quando o mundo não pega pesado pro lado dela. Mas quando Mustang for encarar as massas que estiverem roubando o palácio dela, pisoteando seus jardins... Aí você vai ver uma garota diferente.

— Você é um Vermelho — diz ela agora.

— Pensei que você tivesse ido embora.

— O rastreador foi embora. — Ela flexiona o queixo. — Sevro foi sorrateiro. Nem percebi que ele estava fazendo isso. Mas você. Você jamais me diria uma coisa como... essa sem uma apólice de seguro. Joguei fora as roupas na nave.

— Por que você voltou?

— Não. Não. — Ela corta o ar com um gesto. — Você responde às minhas perguntas agora, Darrow. Esse é mesmo seu nome, ao menos?

— Minha mãe me batizou em homenagem ao pai dela.

— E você é um Vermelho.

— Nasci naquela casa. Demorei dezesseis anos pra ver o céu. Portanto, sim. Sou um Vermelho.

— Entendo. — Ela hesita. — E meu pai matou sua mulher.

— Exato. Ele ordenou a morte de Eo.

— Quando você cantou a canção pra mim na caverna... Tudo isso estava se passando na sua cabeça? Esse lugar, o entalhe, o plano, tudo isso estava dentro de você, tudo na sua memória. Todo esse outro mundo. Toda essa outra... pessoa. — Ela balança a cabeça, não querendo que eu responda a isso. — Então o que aconteceu? O marido de Eo foi enforcado. Você foi enforcado. Como foi que você escapou?

— Você sabe por que eles me enforcaram?

Ela espera que eu lhe dê a explicação.

— Quando um Vermelho é enforcado por crimes de traição, o corpo não pode ser enterrado. Ele deve apodrecer e se desintegrar na frente de todos como uma lembrança do que acontece quando há dissenção. — Bato com o polegar no peito. — Enterrei minha mulher, então eles me enforcaram também. Só que meu tio me deu óleo de haemanthus. Ele diminui os batimentos cardíacos pra você parecer morto. Depois ele cortou minha corda. E me deu aos Filhos.

— E eles... — Ela levanta o holoCubo, seu rosto pálido no brilho do objeto — ... fizeram isso com você.

— Eu era mais branco do que um Azul. Uma cabeça menor do que Sevro. Mais fraco do que um Cinza. Sabia menos do mundo do que um Rosa aprendendo arte no Jardim. Aí eles tiraram o que havia de melhor em mim, no meu povo, e soldaram isso com o que havia de melhor em vocês.

— Mas... isso é impossível. O Comitê de Controle de Qualidade tem testes — diz ela, rompendo sua linha fria de inquérito. — Detectores de mentira, análises de dna, verificações de antepassados. — Ela ri ao se dar conta. — É por isso que você vem da família Andromedus, nascido de pais Ouros que fugiram das dívidas pra tentar buscar a riqueza fazendo mineração em asteroides.

— A nave deles se perdeu quando eles voltavam depois que suas minas haviam sido compradas por Quicksilver.

— Então os Filhos de Ares destruíram a nave deles, alteraram os registros e compraram as minas pra poder escrever sua história.

— Talvez. — Eu não havia dedicado tanto tempo a pensar como Dancer havia feito a coisa. — Meus amigos são cheios de recursos.

— E como você conseguiu sobreviver ao entalhe? — murmura ela. — Isso é contrário à fisiologia. O que o Entalhador fez com você... Ninguém poderia sobreviver a isso. Os Sinetes estão conectados ao sistema nervoso central. E o implante no seu lobo central não pode ser removido sem que você se torne catatônico.

— Meu Entalhador tinha um talento singular. Ele conseguiu encontrar uma maneira de remover dois implantes, embora um outro Entalhador tenha feito o segundo.

— Dois. Existem dois de vocês. Sevro? — adivinha ela. — É por isso que vocês sempre foram tão próximos?

— Não. Era Titus.

— Titus? O açougueiro? Você estava associado a ele?

— Nunca estive. Eu não sabia quem ele era até eu te derrotar. Ares pensava que poderíamos trabalhar juntos...

— Mas Titus era um monstro.

— Os Ouros o fizeram desse jeito.

— E isso serve de desculpa pras coisas que ele fez?

— Não se comporte como se você soubesse as coisas pelas quais ele passou — rebato.

— Eu sei, Darrow. Não estou desviando os olhos. Sei como são as diretrizes. Sei como são as condições de sofrimento impostas ao seu povo, mas isso não é desculpa pros assassinatos, os estupros e a tortura que ele cometeu.

— É isso o que a gente sofre todos os dias. Titus fez o que fez por ódio. Por uma deturpada esperança de vingança. Em outra vida, eu poderia ter sido Titus.

Mustang vasculha meus olhos.

— E por que você não foi nesta vida?

— Minha mulher. — Olho para ela. — E você.

— Não diga isso. — A voz densa de arrependimento. Ela dá um passo para trás, sacudindo a cabeça. — Você não tem o direito de dizer isso.

— Por que não? Você sempre imaginou o que se passava por baixo da minha superfície. Conheça agora a corrente que percorre as profundezas.

— Darrow...

— Titus tinha dor. Mas isso era tudo o que ele tinha. Eu tinha algo mais. O sonho de Eo de um mundo onde nossos filhos pudessem ser livres. Mas eu teria perdido isso se nunca tivesse te conhecido. — Dou um passo à frente. — Você impediu que eu me transformasse num monstro. Você não consegue enxergar isso? — Faço um gesto, tentando englobar meu desespero. — Eu estava cercado pelo povo que havia escravizado o meu por centenas de anos. Eu achava que todos os Ouros eram assassinos cruéis e egoístas. Eu teria capitulado à vingança pura e simples. Mas aí você apareceu... E me mostrou que havia gentileza neles. Roque, Sevro, Quinn, Pax e os Uivadores também me provaram isso.

— Provaram o quê, exatamente? — pergunta ela.

— Que isso tudo não tem a ver apenas com meu povo contra o seu. Vocês não são Ouros. Nós não somos Vermelhos. Nós somos pessoas, Mustang. Cada um de nós pode mudar. Cada um de nós pode ser o que desejar ser. Por centenas de anos eles tentaram nos convencer do contrário. Eles tentaram nos quebrar. Mas eles não podem. Você é a prova disso. Você não é a filha do seu pai. Vejo o amor em você. Vejo a alegria, a gentileza, a impaciência, as falhas. Elas existem em mim. Elas existiam na minha mulher. Elas existem em todos nós porque somos humanos. Seu pai iria querer que a gente se esquecesse disso. A Sociedade iria querer que a gente vivesse pelas regras dela.

Dou um outro passo na direção de Mustang.

— Você me disse que eu te dei esperança de que poderíamos viver por mais depois que vencemos no Instituto ao nosso modo. Depois você disse que dei as costas a essa ideia quando aceitei o patrocínio do seu pai e ingressei na Academia. Mas eu nunca dei as costas. Nem por um instante. — Dou outro passo.

— Você vai destruir minha família, Darrow.

— É possível.

— Eles são minha família! — grita ela, o rosto desabando de pesar. — Meu pai enforcou sua mulher. Ele a enforcou. Como é que você consegue ao menos olhar pra mim? — Ela exala, trêmula. — O que você quer, Darrow? Diga-me. Você quer que eu te ajude a matá-los? Você quer que eu te ajude a destruir meu povo?

— Não quero isso.

— Você não sabe o que quer.

— Não quero genocídio.

— Quer sim! — diz ela. — E por que não? Depois do que fizemos com seu povo. Depois do que meu pai fez com você. — Ela desabotoa outra presilha da jaqueta como se a ação a ajudasse a respirar melhor. A arma treme na sua mão. O dedo se retesa no gatilho. — Como vou poder viver com isso? Se eu não puxar este gatilho, milhões vão morrer.

— Se você puxar, estará aceitando que bilhões de pessoas devem viver como escravas. Imagine todos aqueles não nascidos. Se não for eu, uma outra pessoa se levantará contra isso. Daqui a dez anos. Daqui a cinquenta. Daqui a mil. Nós arrebentaremos as correntes, não importa o quanto isso custe. Vocês não podem nos deter. Somos a onda. Tudo o que vocês podem fazer é rezar pra que não seja alguém como Titus a se levantar no meu lugar.

Ela nivela o abrasador com meu globo ocular.

— Puxe o gatilho e você morre. — Ragnar fala como a própria escuridão.

— Ragnar, não! — retruco. Nem consigo enxergá-lo nas sombras do túnel. — Pare! Não a machuque. — Ele não deve ter seguido o sinal de rastreamento como eu lhe disse para fazer. Há quanto tempo será que ele está ouvindo?

— Recue. — Mustang se move de lado de modo que suas costas ficam voltadas para a parede. — Ele também sabe? Você sabe o que ele é, Ragnar?

— O Ceifeiro confia em mim.

Mustang joga a lanterna no chão e saca a lâmina.

— Ele não está aqui pra te matar, Mustang.

— Que outra coisa um Manchado faz?

Levanto as mãos.

— Ragnar não vai fazer nada. Vai, Ragnar?

Nenhuma resposta. Engulo em seco. Tudo está se desfazendo.

— Ragnar, escute-me.

— Você não pode morrer, Ceifeiro. Você é importante demais pro Povo. Lady Augustus, ainda lhe restam dez alentos.

— Ragnar, por favor! — imploro. — Confie em mim. Por favor.

Nove.

— Confiei em você no rio, meu irmão. Você nem sempre está certo. Esse é o custo da mortalidade. — A voz vem de cima. Em algum ponto próximo ao teto da mina, dessa vez. Ele não está errado. Ele depositou sua confiança em mim durante nosso cerco a Agea, e eu os levei a uma armadilha. A sorte me preservou.

Rindo com amargura, Mustang retesa os músculos para atacar.

— Está vendo, Darrow? Você começa essa guerra e bestas como essa aqui a terminarão e farão sua vingança.

Sete.

— Isso não tem a ver com vingança! — digo, tentando me acalmar. — Tem a ver com justiça. Tem a ver com amor se voltando contra um império construído em cima da ganância, em cima da crueldade. Lembre-se do Instituto. Libertamos aqueles que deveriam nos levar como escravos. Depositamos nossa confiança neles. Essa é a lição. Confiança.

Cinco.

— Darrow — implora ela. — Como você pode ser tão tolo?

Ela já tomou sua decisão.

Quatro.

— Nunca é tolice ter esperança. — Tiro minha lâmina, meu datapad e os jogo no chão enquanto me ajoelho. — Mas se você não consegue mudar, ninguém consegue. Então atire em mim, me mate agora e deixe os mundos serem como são.

Três.

— Você tem um excesso de consideração por mim, Darrow.

— Dois.

— Vamos pular as preliminares, Ragnar. — Mustang gira a lâmina. Seu zunido pavoroso preenche o túnel. — Venha me pegar, cão, e mostre a Darrow qual é o motivo da existência dos membros da sua espécie.

O silêncio se alonga indefinidamente.

— Um — rosna Mustang, chutando para longe sua própria lanterna. Nenhuma luz, nenhuma cor além da escuridão. O silêncio é mais profundo do que o túnel. Ele serpenteia através do coração de Marte, esticando-se eternamente, ecoando em direção a lugares nos quais apenas os perdidos já estiveram antes.

Ragnar o despedaça com sua voz:

— Eu vivo por minhas irmãs.

Não há nenhum lampejo de abrasador. Nenhum berro de lâmina. Nenhum movimento. Apenas o ecoar das palavras escorrendo e escorrendo com os fragmentos de silêncio.

— Eu vivo pelo meu irmão.

Uma luz brota de Ragnar. Ele dá um passo à frente como se fosse um peregrino obstinado, a luz branca refulgindo ao longo dos nós da sua armadura. Não vejo nenhuma arma. Mustang fica tensa, confusa.

— Sou e sempre fui filho do povo dos Agulhões das Valquírias. Nascido livre de Alia Snowsparrow no selvagem polo de Marte, a norte da Espinha do Dragão, a sul da Cidade Caída.

Ele passa por Mustang, os braços ao lado do corpo.

— Quarenta e quatro cicatrizes recebi eu por Ouros desde que os escravocratas do Sol Choroso vieram das estrelas pra levar minha família pras ilhas da Corrente. Sete cicatrizes de outros da minha espécie quando eles me puseram no nagoge, onde fui treinado.

Ele se ajoelha ao meu lado.

— Uma da minha mãe. Cinco das garras do monstro que guarda o Desfiladeiro da Bruxa. Seis da mulher que me ensinou a amar. Uma do meu primeiro mestre. Quinze de homens e feras que combati na arena pro prazer de Lorde Ash e dos seus convidados. Nove recebi eu pro Ceifeiro.

O chão suspira sob o peso dos seus joelhos.

— Por Ouros eu enterrei três irmãs. Um irmão. Dois pais. — Ele faz uma pausa, entristecido. — Mas... Pra eles eu nunca recebi uma cicatriz.

Através da pálida luz da sua armadura, seus olhos pretos queimam como chamas de feitiçaria.

— Agora, eu vivo por mais.

Ragnar fecha os olhos, pondo-se à mercê de um Ouro. Tendo fé como eu tenho fé. Como Eo tinha fé em mim. Como Sevro, e Dancer e todo o resto.

Meus olhos se encontram com os de Mustang, quem sabe pela última vez, e imagino estar sentindo o mesmo que meus ancestrais, os primeiros pioneiros de Marte, ao olharem para trás, na direção da Terra escura. Nela eu tinha um lar. Eu tinha amor. E então a envenenei para mim. Sei que isso sempre esteve destinado a ser nosso fim. Mas ainda assim eu tenho esperança, como uma criança desesperada.

— Pra que você vive? — pergunto.


51

Filho Dourado

Hoje é meu Triunfo.

O dia está claro. O céu tem um tom azul-esverdeado, as estrelas despontam na atmosfera. Eu me levanto pingando em ouro, faixa púrpura no peito, cabeça nua e esperando a grinalda da láurea ao fim da procissão. No fim do dia, eu já terei recebido uma Máscara de Triunfo criada por Violetas em honra à minha vitória.

Minha carruagem rosna sob meu corpo. Rodas de madeira puxadas sobre calçadas. Sobre pétalas de rosa. Sobre florações de haemanthus. Sobre cem mil flores lançadas das janelas abertas dos arranha-céus que montam guarda de ambos os lados da grande avenida. Mãos balançam no ar. Braços são esticados. Rostos olham para baixo, sorrisos radiantes. Tantas Cores. Eles também estão na rua, cercando o percurso do desfile. Gritando entusiasmados para as coisas que passaram antes de mim, as maravilhosas flutuações. Os engolidores de fogo. Os dançarinos. Os grifos e dragões e zebracores. Os poucos prisioneiros Bellona que restam. As cabeças do Imperador Bellona e dos seus irmãos e irmãs adornam estacas. Apesar de toda a austeridade pessoal de Augustus, ele sabe a importância da grandiosidade. RasgAsas zunem acima. Cegonhas zumbem através do ar.

Mas ele também sabe a importância da brutalidade. Moscas voam ao redor das cabeças. E picam os quatro cavalos brancos que puxam a carruagem do grande bulevar em direção ao Campo de Marte revestido de pedras brancas que se estende diante do terreno da Cidadela.

Aceno para a multidão, erguendo minha curviLâmina. Eles vibram de uma maneira quase maníaca. Pais erguem seus filhos, apontando para mim e lhes dizendo que eles poderão contar para os seus filhos que viram em pessoa meu Triunfo. Eles jogam folhas de figueira e gritam tresloucadamente, subindo nas estátuas marciais do Campo e nos obeliscos de mármore para me ver melhor.

— Você não passa de um mortal — sussurra Roque no meu ouvido, em cima do seu cavalo seguindo ao lado da carruagem, como reza a tradição.

— E um peido-de-puta — fala Sevro do outro lado.

— Exato — concorda Roque, solene. — Isso também.

Eu gostaria muito que Mustang estivesse aqui cavalgando ao meu lado. Sua força tranquila tornaria mais suportáveis todos esses olhos, tornaria toda essa vibração mais palatável ao estômago. Vermelhos aplaudem na multidão. Eles gritam e vibram e riem, vítimas perfeitas das divisões de entretenimento da Sociedade. Eles acreditam na mentira da guerra gloriosa e nos gloriosos Ouros. Milhões terão revivido o registro do holo contendo minha experiência durante a queda na Chuva de Ferro, pelo menos até a Pulsação Eletromagnética arrancar a câmera das minhas mãos. Mas Fitchner manteve a filmagem do momento em que degolei Karnus.

O desfile é um sonho. Uma falsidade conjurada. Fluo através dela, ciente do quão pouco ela significa. Meus amigos estão atrás de mim, ao meu lado. Todos aqueles a quem eu chamaria de meus tenentes. Eles exibem seus risinhos para mim. Eles me amam. E eu os lidero em direção a uma ruína cheia de esperança. No passado tudo isso deu a impressão de valer a pena. Mas depois que levarmos a guerra para Luna, o que ocorrerá? Mais mentiras. Mais mortes. Mais esquemas impossíveis.

E o que Mustang fará? Ela não voltou de Agea desde que me deu as costas e foi embora das minas. Fitchner está que não se contém de tanta preocupação. Ela é um machado sobre minha cabeça. A qualquer momento, ela pode assinar minha sentença de morte. Pode muito bem já ter feito isso. Talvez isso seja algum grande estratagema. Talvez o pai dela já esteja sabendo.

O Chacal notou a ausência dela da Cidadela quando chegou ontem à noite para a celebração do Triunfo. Eu lhe disse que tínhamos tido uma briga sobre o pai deles.

— Não é nenhuma surpresa — disse ele com um suspiro. — Só não deixe o cara se meter nos assuntos de vocês dois como se metia nos assuntos meus e dela quando éramos crianças. — Ele me deu um tapinha no ombro com muita familiaridade e nos serviu uma boa quantidade de bebida para me dar a desagradável dor de cabeça que agora pulsa no meu olho esquerdo. Juro a mim mesmo que nunca mais volto a tocar em bebida.

Victra cavalga ao lado de Roque e Lorn, olhando ao redor com languidez, absorvendo a luz do sol e as festividades. Ela trouxe a mãe para o lado de Augustus, junto com Antonia, que aparentemente ajudou a tomar Thessalonica das mãos dos Bellona. É difícil ter certeza de que lado elas estão. Mas Victra, por sua parte, tem sido tão leal quanto qualquer outra pessoa. Ela me joga um beijo.

Os Uivadores trotam atrás dela, com metade do seu número original, embora os Telemanus tenham prometido trazer recrutas para o grupo. Atrás desses tenentes se encontram uma dúzia de Pretores e Legados que lideraram o exército. E atrás deles caminham milhares e milhares de Cinzas que, com uma constrangedora afeição, entoam canções obscenas à minha custa. Atrás deles vêm legiões de Obsidianos. Trata-se de um evento furiosamente grandioso, não apenas para mim, mas porque ele significa o começo de uma nova era — um sistema solar liderado por Marte, não por Luna.

Fitchner não está presente. Deveria estar. Procuro por ele no topo da colossal escada branca que leva aos terrenos da Cidadela. O ArquiGovernador e seu séquito se encontram lá com dezenas dos nossos aliados e uma Branca esquelética e calva que segura minha coroa de láurea.

Deixando minha carruagem, subo a escada, flanqueado pelos meus tenentes. O silêncio toma conta da praça. Minha capa púrpura balança ao vento atrás de mim. A cidade tem cheiro de rosas e de esterco de cavalo. Augustus dá um passo à frente.

— Uma Chuva de Ferro foi chamada — proclama ele.

— E o chamado foi atendido — respondo, as palavras amplificadas ecoando como um trovão pela cidade. Um grande rugido ascende de todos que caíram na Chuva. A Branca dá um passo à frente, o rosto abatido devido aos tantos anos que passou dando sentenças a criminosos. Olhos leitosos perdidos em histórias passadas piscam com delicado cuidado.

— Filho de Marte — gorjeia ela, sonhadora. — Hoje você veste púrpura, como vestiam os reis etruscos de tempos idos. Você se junta a eles na história. Você se junta aos homens que derrubaram o Império do Sol Nascente. Às mulheres que arremessaram a Aliança Atlântica ao mar. Você é um Conquistador. Aceite esta láurea como nossa proclamação da sua glória.

Ela a deposita na minha cabeça. Sevro bufa ao meu lado.

A Branca continua, percorrendo sinuosamente trilhas floridas com suas palavras, reclamando para si grande parte da tarde, de modo que já está anoitecendo quando suas palavras começam a seguir seu curso. Passei a entender com o tempo por que todo esse espetáculo existe. Por que todos esses discursos e monumentos. Tradição é a coroa do tirano. Olho todos os Ouros com seus distintivos e Sinetes e estandartes, tudo isso sendo usado para legitimar um reinado corrupto e para alienar o povo. Para fazê-los sentir que assistem ao cortejo de uma espécie além da compreensão deles. O Chacal parece ler meus pensamentos, pois revira os olhos para a farsa diante de si. As palavras finais vêm logo em seguida.

— Per aspera... — gorjeia a Branca, o corpo tremendo devido ao esforço. Augustus levanta a mão, e o obelisco de cristal encomendado para o cerco de Marte se ergue do seu lugar no Campo por meio de gravElevadores na sua base. Rosnando enquanto se põe no lugar, ele flutua ali, cinquenta metros acima do solo, e continuará a flutuar até que outro Triunfo reivindique seu lugar. Então este irá se juntar àqueles outros no chão. Gigantescos túmulos para os milhões tombados.

— ... ad astra! — ruge a multidão.

Permaneço nos degraus enquanto o festival tem início abaixo, no Campo de Marte. Os Ouros se dispersam em direção aos terrenos da Cidadela, encaminhando-se para o nosso banquete particular. Augustus assiste a tudo ao meu lado. Atrás de nós, o brônzeo sol se põe sobre a cidade dele, estendendo nossas sombras sobre os baixaCores abaixo.

— Ande comigo — ordena ele.

Nós andamos, cercados por guarda-costas. A inquietude se espalha em mim quando os vejo se aglomerar ao nosso redor num forte cordão de isolamento. Ele falou com a filha. Ele sabe. É claro que ele sabe. Tenho minha lâmina, mas não tenho gravBotas. Apenas minha armadura cerimonial. Quantos Obsidianos eu conseguiria matar antes de ser subjugado? Não muitos.

Então percebo aonde ele está me levando e quase rio comigo mesmo por ter sido tão tolo.

A sala do trono queima com a luz do sol. O teto é todo de vidro, e colunas de mármore se estendem por uma centena de metros de altura. O espaço está repleto de ruídos. ÍonSerras, martelos e o delicado zumbido de sete íonBisturis num bloco de ônix duas vezes mais alto do que eu.

— Fora — ordena Augustus.

Os Violetas deslizam das suas posições no alto do ônix e se dispersam com os pedreiros Laranjas e os operários Vermelhos. Os guarda-costas de Augustus nos deixam também. Nossas botas estalam no chão, solitários sons para tamanha sala.

Então ele não vai me matar, afinal de contas.

— Estão fazendo um trono pra você — digo, indo tocar o ônix. Exalo a tensão. A pata de um leão toma forma perto da base do trono. À esquerda, sua cauda se enrosca no outro lado.

— Você desrespeitou a lei, Darrow — diz ele atrás de mim. — Você deu lâminas a Obsidianos. A arma dos nossos ancestrais nas mãos da única Cor que já se levantou contra nós em todo esse tempo.

— Isso é tudo? — pergunto, aliviado. — Eu fiz o que precisava fazer.

— Um Cavaleiro Olímpico foi morto pelo seu guarda-costas. Isso é público.

— Se Ragnar não tivesse tomado o muro, nós teríamos perdido, e você, meu suserano, estaria acorrentado ou teria sido executado. Você sabe disso melhor do que eu. Ragnar tinha garantias minhas pra fazer o que fez.

— Meu pai me ensinou que é sinal de fraqueza perguntar aos outros o que eles acham de você — diz ele, apertando as mãos atrás de si. — Mas preciso fazer isso. Você acha que sou um monstro frio?

Eu me viro para examiná-lo.

— Sem a menor dúvida.

— Honestidade. — Ele olha para o teto. — Alguém poderia imaginar que isso ecoasse diferente de todas as outras merdas. O que eu sou, Darrow, é uma necessidade. Sou a força que corrige aqueles que cometem equívocos. Diga-me, por que você entrega uma lâmina a um Obsidiano? Por que você insta baixaCores a se insurgir? Por que você permite que uma Azul administre sua nave quando ela deveria apenas receber ordens e pilotá-la?

— Porque eles podem fazer coisas que eu não posso.

Augustus acena com a cabeça como se eu tivesse comprovado as observações dele.

— E é por isso que eu existo. Sei que os Azuis podem comandar frotas. Sei que os Obsidianos podem usar tecnologia, liderar homens. Que o mais rápido dos Laranjas poderia, se lhe fosse dada uma chance adequada, ser um excelente piloto. Vermelhos poderiam ser soldados, ou músicos, ou contadores. Uns poucos, muito poucos, Pratas poderiam escrever romances, aposto. Mas sei o que isso nos custaria. Ordem é fundamental pra nossa sobrevivência. A humanidade saiu do inferno, Darrow. Os Ouros não ascenderam do mero acaso. Nós ascendemos da necessidade. Do caos, nascidos de uma espécie que devorou seu planeta em vez de investir no futuro. Prazer acima de tudo, danem-se as consequências. As mentes mais brilhantes escravizadas a uma economia que exigia brinquedos em vez de exploração do espaço ou de tecnologias que pudessem revolucionar nossa raça. Eles criaram robôs, neutralizando a ética do trabalho da humanidade, criando gerações de gafanhotos cheios de direitos. Países armazenaram seus recursos, desconfiados uns dos outros. Vinte facções diferentes munidas de armas nucleares surgiram. Vinte, cada qual dominada pela ganância ou pelo fanatismo — diz Augustus. — Então, quando conquistamos a humanidade, não foi por ganância. Não foi por glória. Foi pra salvar nossa raça. Foi pra acalmar o caos, pra criar ordem, pra aprimorar a humanidade a um novo propósito, garantir nosso futuro. As Cores são a espinha dorsal desse objetivo. Permita que as hierarquias mudem de posição e a ordem começa a desmoronar. A humanidade não vai aspirar à grandeza. Os homens vão aspirar à grandeza.

— Ouros aspiram à grandeza, e nós forçamos as Cores à guerra — digo, sentando-me em cima da pata do leão preto. Augustus não saiu do seu lugar no centro do chão.

— No entanto, existem homens como eu — responde Augustus com tanta sinceridade que quase acredito nele. — Eu não luto de fato porque quero ser rei ou Imperador Máximo ou seja lá que palavra você possa jogar em cima do meu nome nos textos de história. O universo não repara em nós, Darrow. Não existe um ser supremo esperando pra acabar a existência quando o último homem der seu último suspiro. O homem acabará. Esse é o fato aceito porém jamais discutido. E o universo continuará sem se importar com isso.

“Não deixarei isso acontecer porque acredito no homem. Prefiro que continuemos pra sempre. Eu conduziria a nós todos além dos confins do sistema solar em direção a sistemas estranhos. Em busca de novas vidas. Mal ingressamos na primeira infância como espécie. Mas eu faria do homem a presença imutável no universo, não apenas alguma bactéria passageira que pisca e some sem que ninguém se lembre dela. É por isso que sei que existe uma maneira adequada de se viver. Por isso acredito que suas jovens ideias são tão perigosas.”

A mente dele é vasta. Mundos além da minha. E talvez pela primeira vez eu realmente esteja entendendo como esse homem consegue fazer o que faz. Não há moralidade nele. Não há bondade. Não havia nenhuma intenção maligna quando ele matou Eo. Ele acredita estar além da moralidade. Suas aspirações são tão grandiosas que Augustus se tornou inumano no seu desesperado desejo de preservar a humanidade. Como é estranho olhar para a figura rígida e fria que é ele e saber que todos esses sonhos ensandecidos queimam dentro da sua cabeça e do seu coração.

— E tudo o que você disse? E as coisas que você fez? — pergunto, pensando na primeira mulher dele, na boca em que ele enfiou uvas para sufocá-la. — Você se aconselha com criaturas como Pliny. Você bombardeia civis inocentes que não desrespeitaram nenhuma lei. Você abraçou uma guerra civil... E ainda diz que está tentando salvar a humanidade?

— Faço o que preciso fazer pra proteger o bem maior.

Para se defender. Para se beneficiar.

— Pra proteger a humanidade — ecoo.

— Exato.

— Dezoito bilhões respiram ao longo deste império. Quantos você mataria pra proteger a humanidade? Um bilhão? Dez?

— O número não muda a necessidade.

— Quinze bilhões? — pergunto. Vermelho, Ouro, cada pedaço de mim está chocado.

— Alguém precisa fazer essas escolhas — diz ele. — O resto da nossa raça adoece dia após dia. Os Pixies vão à caça de prazer em vez de conquistas pessoais e profissionais, enquanto os Inigualáveis ficaram tão ávidos de poder que nossa Soberana é uma mulher que cortou a cabeça do próprio pai pra poder lhe tomar o trono. Eles têm que ser governados.

— Por você.

— Por nós. — Seu olhar fixo não oscila. — Por nós — repete ele. — Eu te tratei mal porque temia sua impetuosidade, seu atrevimento. Mas prometi que faria reparos, e os farei, porque você demonstrou a capacidade de crescer, de aprender. Torne-se meu herdeiro. Não meu Pretor. Já tenho suficientes senhores de guerra. O que eu preciso... o que eu quero é um filho.

— Você tem um filho.

— Tenho um parasita que quer meu poder. Isso é tudo. Ele é inútil pra isso. Não tem um plano pra quando conquistá-lo. Ele apenas é ávido como nossa Sociedade lhe ensinou a ser ávido. — Seu rosto exibe um fagulha de intriga. — Contudo, notavelmente, isso foi ideia de Adrius. Você tem a bênção dele.

Não duvido de que eu tenha a bênção dele. Conhecendo meu aliado, imagino o que isso vai me custar. Ele é um homem de negócios. Ele vai querer retorno do seu investimento. Ele deveria ter me dito isso.

— E quanto a Virginia? Você não precisa que seu herdeiro seja um homem.

— Mas eu quero que seja. E quero você pra ela. Um marido que se ajuste à mente dela.

— Você está me usando — digo de repente, vendo através do seu esquema. — Eu a amarro a você. Sobretudo se nos casarmos. Nós dois sabemos que você não quer reforma.

Mesmo agora os Reformistas de todas as partes da Sociedade chegam a Marte aos borbotões para protestar na companhia do homem que disse que lhes daria o Senado quando derrotar Lune e seus aliados.

— Os Reformistas são um câncer — diz ele.

— Mas você está prometendo a eles que vai...

— Promessas eram necessárias pra ganhar o apoio deles. Quando derrotarmos Octavia, deixarei os Reformistas na prisão ou os executarei por alta traição.

— Mustang jamais te perdoará. Ela acredita que você está mudando. Seja lá que conversa você teve com ela, seja lá o que você tenha prometido a ela, você lhe deu motivos pra ter esperança em você.

Talvez ela não perdoe nenhum de nós.

— Você a fará compreender uma vez que fizer parte da família, Darrow. Quando isso ocorrer, desconfio que vocês já estarão casados, e ela não o abandonará mesmo que passe a me odiar por isso. Nossa família permanecerá forte, como deve permanecer. Mas você deve ser sempre meu. Responder sempre a mim. Não aos meus filhos.

Ele dá um passo na minha direção.

— Octavia está conduzindo a humanidade a um lento declínio. Os Reformistas, como os Filhos de Ares, nos derrubariam a mil quilômetros por segundo. Devemos proteger nossa espécie. Ajude-me.

Ele é um homem nobre fazendo o que acha ser o melhor para a humanidade.

Dane-se ele.

Nós nunca pedimos para nos curvar. Quem é ele para dizer que Vermelhos e Marrons labutando até morrer têm como objetivo um bem maior? Quem é ele para dizer que crianças Rosas sendo cultivadas para o estupro, Obsidianos e Cinzas para a batalha, são uma necessidade? Como ele pode ficar aqui sentado dizendo que só ele sabe o que é melhor para mim, para a minha família? Isso não é direito dele. Da mesma maneira que não era direito dele entrar no meu mundo e tirar a vida de Eo. E se Augustus pensa que o poder torna isso direito dele, então é a porra do meu direito também cortar sua cabeça nesse exato momento.

Em vez disso eu me levanto e atravesso a distância que nos separa. Ajoelhando-me, eu lhe tomo a mão e beijo a porra do seu anel.

— Como queira, meu suserano.

Seus lábios duros franzem, formando um sorriso predatório.

— Pode me chamar de pai.

— Tente não parecer tão satisfeito consigo mesmo, droga — me diz Lorn.

Estamos em meio aos jardins com trilhas brancas na Cidadela. Uma brisa agita os sininhos que estão pendurados nas árvores. Trata-se de um evento simples, nada parecido com o indecente espetáculo em Luna. Mesinhas se encontram abaixo dos galhos cobertos de hera. Atendentes Rosas as limpam depois do banquete. Sobre a grama verde e as trilhas brancas, Inigualáveis riem e impressionam uns aos outros enquanto aconchegam nas mãos taças de champanhe. Dá para sentir a mão do Chacal no planejamento disso tudo. Ele é uma criatura saborosamente modesta.

Chegam mais dignitários para o jantar do que para a cerimônia. Portanto, há muitos Augustus e fui obrigado a cumprimentá-los. Eles vinham até nós numa fila formada com base na hierarquia, é claro. Logo me cansei de apertar mãos exibindo satisfação e fui atrás de Lorn perto da base de uma árvore fina. Os braços dele estão cruzados, o rosto todo tempestuoso e fazendo cara feia para o champanhe na sua mão. Ele o joga num arbusto.

— Também detesto esse tipo de coisa — digo. — Assim que eu pegar a minha Máscara, Augustus me pediu pra dar uma atençãozinha a alguns dos Lordes da Lua. Depois disso, pra mim vai ser cama. — Sem Mustang aqui, não há nenhuma alegria de fato.

— Sozinho, ao que parece. Onde está sua garota? — Ele estreita os olhos ao redor. — Dei uma olhada por toda parte e não a vi.

— Não sei. — Será que alguém notou?

— Ah — resmunga ele. — Briga de casal? Bom, não vou despejar conselhos no seu ouvido, só vou dizer uma coisa: engula seu orgulho. Ela é uma pérola, se você conseguir mantê-la.

Se.

— Fico contente por você ter vindo — digo. — Mesmo com esse seu conselho de merda.

Ele ri asperamente e acena para o Chacal, que está falando com Roque e diversos políticos de Ganimedes.

— Seu amigo tornou isso possível. Augustus, de alguma forma, esqueceu de me convidar, muito embora meus homens tenham ganho um planeta pra ele. Educação é uma coisa muito condicional hoje em dia. Por falar nisso, quanto tempo você acha que devo ficar pra que minha saída não seja vista como uma grosseria?

— Não são nem nove horas ainda. Por acaso você não vai apresentar a Máscara daqui a cinco minutos?

— Eu ia, mas isso é uma chatice burocrática. Pedi ao seu amigo Roque que fizesse isso, se você não se importar. Pra falar a verdade, ele mesmo me pediu isso. Não faz diferença.

— Não, não, na verdade é até melhor assim. — Vai ser bom para Roque ser incluído o máximo possível. Há reparos a ser feitos. Exibições públicas de amizade são um bom começo.

Lorn encosta as costas na árvore.

— Meus ossos velhos rangem à noite. Vou dar uma olhada na segurança pra não ser obrigado a conversar com nenhuma dessas pessoas pegajosas. — Ele observa uma rasgAsa passar bem no alto.

— Deixe outra pessoa fazer isso. — Uma Rosa entrega a Lorn o copo com o uísque que eu pedi. Sua marca favorita. Ele cheira o conteúdo, subjugado. — Só consigo te ver em armadura. Comporte-se como um mentor de verdade e fique comigo. Temos duas garrafas do Lagavulin pra você.

— De volta aos seus velhos truques. Duas garrafas pra duas horas extra de treinamento, não era esse nosso acordo? Eu devia ter cobrado mais. Ha!

Ele se afasta mancando com seu uísque para brincar de pega-pega com seus netos nas árvores. Observo a Rosa que lhe entregou a bebida deslizar de volta à multidão, seus movimentos vagamente familiares.

Uma mulher encaixa seu braço no meu. Eu me viro com entusiasmo apenas para encontrar Victra. Ela não repara meu desapontamento.

— Realmente espero que os Violetas ponham leões em vez de um Pégaso na sua Máscara. — Ela olha para a minha fisionomia. — Sim, os boatos já estão circulando, Darrow au Augustus. — Ela estremece de maneira brincalhona. — As mulheres vão vir correndo.

Reviro os olhos.

— Ah, cale essa boca.

— Faça eu me calar. — Ela desliza a mão pela minha lombar. — É uma pena você já estar comprometido. — Acenando para um grupo de jovens Inigualáveis das Gigantes Gasosas, ela se aproxima de mim. — Mas por acaso isso significa que você não pode brincar um pouquinho?

— A única coisa que te dá prazer é me ver ficar vermelho?

Ela puxa a grinalda com a láurea da minha cabeça e a deposita na sua própria cabeça, fazendo uma mesura de brincadeira.

— Você me descobriu. Onde está a pequena Mustang, afinal de contas?

— Por que todo mundo está tão curioso, droga?

— Darrow. — Roque se junta a nós, segurando uma caixa de marfim grande o suficiente para acomodar a Máscara do Triunfo. Ele está elegante num uniforme preto de Pretor, os cabelos penteados para trás. — Tenho a impressão de que temos que nos reunir pra apresentação da Máscara. Você sabe onde? Estou um pouquinho confuso com todo esse evento.

Victra franze o cenho.

— O staff da Cidade ainda está agitado. Os Bellona foram donos do lugar por um mês. Adrius teve que dar uma peneirada nos Rosas pra ver se encontrava espiões. Sobretudo depois do que aconteceu em Attica. Ele está com homens espalhados por toda parte esta noite. Ah, que inferno. Está começando. — Ela recoloca a grinalda com a láurea na minha cabeça e me puxa na direção da clareira onde os Ouros estão reunidos. Sevro atravessa meu caminho, detendo-nos.

— Darrow — diz ele rapidamente. Então, olhando para Victra, complementa: — Vá dar uma circulada. — Ela cerra os dentes e vai embora.

— Você gosta dela — implico. — Dá pra ver.

Ele me ignora.

— Ele ainda não chegou.

— Fitchner? Você mandou uma mensagem pro datapad dele?

— A mensagem não está indo. O filho da puta disse que ia vir. Então, se ele não está aqui, alguma coisa importante deve estar acontecendo. É melhor eu verificar.

— Verifique. — Seguro o braço dele. — Mas chame Ragnar. E seja cuidadoso.

— Sempre sou cuidadoso.

É estranho observá-lo partir. É como observar minha sombra partir e perceber que seu destino pode ser diferente do meu. Talvez, no fim das contas, ele seja mais importante do que eu. Verdadeiramente, um filho de dois mundos.

Sigo a multidão através das árvores. Pequenas lanternas estão acomodadas nos galhos, banhando a clareira com um cálido fulgor branco. Não há Brancos presentes aqui. Não há formalidades. É uma cerimônia moderada da mesma forma que a cerimônia de entrega do Triunfo foi opulenta. Nenhuma multidão se abre para a minha passagem. Ando em direção aos paralelepípedos brancos onde Lorn está sentado com seus netos na beirada de uma fonte em forma de golfinho. Augustus faz um gesto para que eu me posicione ao lado dele perto da estátua de uma donzela cega segurando uma balança e uma espada. Ela está coberta de hera. O Chacal se junta a nós.

— Ouvi falar que vamos ser irmãos — digo a ele.

— Bom, quem disse que não se pode escolher os parentes? — Ele olha distraído para o seu datapad. — Melhor você do que aquele filho da puta do Cassius.

— Algum problema? — pergunto.

— Mais alguns malditos pedidos de requerimento. — Ele levanta os olhos do datapad. — Desculpe. Tudo está ótimo em Marte, meu bom-homem. Só que eu gostaria muito que minha irmã estivesse aqui. Você ainda não saberia dizer onde ela está, saberia?

Balanço a cabeça em negativa. A cada menção, Mustang fica um pouquinho mais distante. Mantive esperanças de que ela apareceria. Faria uma grandiosa entrada e eu saberia que tudo estava bem. Mas algumas fantasias não se realizam.

— Por gentileza, meus bons-homens! — anuncia Augustus, cortando o murmúrio das conversas. — Obrigado. — Ele limpa a garganta e estende as boas-vindas aos muitos convidados de Marte, baixando a cabeça para a ArquiGovernadora de Triton. — Embora nossos copos estejam cintilantes e nossas barrigas cheias, esta noite não durará. — Ele espia através dos seus convidados, a voz firme e seca no ar úmido. Vaga-lumes brilham entre as árvores. — Sabemos que isso é apenas o começo. A guerra irá requerer muito de nós todos. Mas não sejamos tão apressados a ponto de deixarmos passar em branco uma vitória como aquela que vimos há poucas semanas. Um triunfo de vontade, lealdade, força. Toda aquela grandiosidade do desfile foi para eles. Momentos tranquilos como este são pra nós. — Ele dá um tapinha no seu rosto maculado. — Onde nós, apesar das diferenças, podemos mexer nossas cabeças e erguer nossos copos pra uma singular conquista da vontade. Isso não foi feito por uma única pessoa. Mas a Chuva foi convocada por um homem. Portanto, Darrow au Andromedus, nós te saudamos.

— Salve, Ceifeiro! — chama Lorn, debochando de mim apenas ligeiramente.

Os copos se erguem através da clareira à medida que vozes murmuram seu consentimento. E eles bebem. É uma sensação muito vazia olhar para o meu lado esquerdo e ver o Chacal em vez de Mustang. Sorrir parece algo tão falso, sabendo que tudo isso logo, logo desmoronará. Victra parece sentir meu estado de espírito, então pisca para mim, inclinando o copo na minha direção.

Augustus faz um gesto para Roque, que avança com uma grande caixa de marfim aconchegada nos braços. Ele deposita a caixa nas minhas mãos e põe uma das suas mãos em cima para que eu não possa abri-la ainda.

— Você e eu vimos tantas coisas juntos. — A voz dele está calma e equilibrada. — Na noite em que o conheci, você estava no chão do Castelo de Marte olhando pro sangue nas suas mãos. Você se lembra do que eu disse?

Sua outra mão toca meu punho direito, o carinho vindo do passado, quando nossas mãos tinham menos calos, menos cicatrizes.

— É claro: “Se te jogarem no fundo do mar e você não nadar, você se afoga. Então, continue nadando” — recito. — Jamais me esqueceria disso.

— Até onde nós chegamos. — Seus olhos avaliam meu rosto, tomando nota das suas rugas, das suas imperfeições. Inclino a cabeça, imaginando o que ele estará procurando. — Eu teria pago cem vezes o valor do seu contrato pra te proteger.

— Eu sei, Roque.

— Eu teria morrido por você mil vezes porque você era meu amigo.

Era. Alguma coisa na voz dele faz com que eu olhe ao redor. Por cima do ombro dele, vejo Victra sussurrar algo engraçado com Antonia e sua mãe esqueletal. Lorn dá aos seus netos pratinhos com bolo trazidos por um Rosa miúdo. Mas é depois que o serviçal se vira que eu congelo por dentro. Ele faz isso com arrogância. Implacavelmente. Uma ação contrária às características de qualquer Rosa que jamais tivesse existido. Desfazendo a personalidade-padrão dos Rosas apenas por meio segundo. Conheço essa virada. Conheço esse homem. É Vixus. Só pode ser. Meus olhos se fixam na Rosa que me trouxe o uísque de Lorn. Lilath. A garota do Chacal que usava ossos nos cabelos. Que se aliou aos Bellona. Eles estão vestidos como Rosas. Ouros com máscarasCarne. Contatos.

Lobos no papel de ovelhas.

Eu me afasto de Roque, prestes a atirar, quando sinto seu aperto ficar mais forte, e percebo que ele estava se despedindo. Uma agulha do seu anel perfura meu punho. Delicada, como o beijo que ele agora deposita no meu rosto.

— E assim vão os mentirosos, com uma porra de um beijo.

Uma única palavra despedaça mil mentiras.

Com o rosto mais frio do que a estátua de mármore atrás de nós, Roque se afasta e abre a tampa da caixa de marfim. Com o delicado ranger de dobradiças de prata, meu mundo termina. Augustus arqueja, horrorizado, ao ver o que se encontra dentro da caixa. E, a trinta centímetros de distância de onde estamos, o Chacal, com os olhos cheios de um ódio há muito adormecido, sorri para mim e inclina a cabeça para trás como um animal para soltar um uivo maníaco, debochado.

Um sinal do fim.

Victra faz um gesto no sentido de sacar sua lâmina. Antonia dá um passo para trás. Saca um abrasador da bandeja do garçom e atira duas vezes na coluna de Victra. Duas mais no pescoço da mãe antes que qualquer pessoa possa se mexer.

— arcos! — berra Augustus, sacando sua lâmina. — às armas!

— uivadores comigo! — ruge Lorn, empurrando os netos para trás. — Protejam o Ceifeiro!

Tarde demais. No instante em que Lorn se levanta, Lilath puxa uma pulsAdaga que estava embaixo da bandeja e acerta o pescoço dele por trás. Lorn põe a mão entre a garganta e a lâmina. Quatro dedos caem no chão. Ele posiciona o corpo, avança em cima dela, agarrando-lhe o punho com o braço ensanguentado. Lâmina zunindo. Rosnando. Horror íntimo enquanto o caos reina em toda a extensão da clareira.

O veneno se espalha no meu corpo.

Desabo no chão, a caixa no meu colo.

Encostado à estátua cega.

Paralisado.

O Chacal adeja em meio a essa confusão, um réptil sobre gelo. Ele observa facadas e carnificina, e encontra Lorn ainda lutando com Lilath enquanto ela tenta lhe cortar a garganta. Lorn conseguiu retirar um caco de vidro quebrado do chão e está prestes a esfaquear a perna de Lilath quando o Chacal se curva, examina Lorn por um momento, e lentamente enfia uma lâmina na sua barriga.

— Eles estavam errados. Seu lado não é feito de pedra.

O rosto de Lorn se contorce de medo quando o Chacal tira a lâmina do corpo do velho. Os olhos do meu mestre-de-lâminas saltam sobre mim, sobre seus netos. Ele tenta se levantar, tenta um último grama de fúria. Tenta dizer algo. Mas seu corpo o abandonou. Ele jamais voltará a ver sua ilha. Jamais voltará a acariciar seu grifo. Jamais voltará a ouvir seus netos rindo ou ver Lysander, o neto que eu lhe prometi. Proporcionei isso a ele. Eu o trouxe de volta daquela paz isolada que ele tanto queria, mas sabia que nunca teria como merecer. E logo seus olhos miram o nada, o Chacal retira sua lâmina e Lilath finaliza seu trabalho com um lento movimento de serra.

Deixo escapar um longo gemido. É tudo o que consigo. A saliva escorre pelo meu pescoço. Victra rasteja na minha direção, o sangue vazando do corpo. Em meio a tudo isso, Roque se encontra parado, uma estátua, isolado.

Armas pulsantes gorjeiam ao longe. Trovões rasgam no céu à medida que formas escuras descem, rompendo a barreira do som. Eles chegam de uma nave oculta. Alguma coisa se esgueira. Onde estão as patrulhas?

Obsidianos e Pretorianos aterrissam no meio da clareira, pisoteando as pedras. Eles perseguem aqueles que fugiram da área da matança em direção aos jardins, caçando-os com quieta economia. Antonia dirige a chacina, finalizando herdeiros, podando linhagens com quinhentos anos de existência. Tomando reféns. Lilath está rindo com Vixus. Eles arrancam máscarasCarne eletrônicas e soltam seus cabelos dourados. Atrás deles, Aja aterrissa em esplendor, sua armadura brilhando à luz da lanterna. Ela avalia a carnificina, o rosto escuro e contente. Mal a noto porque um velho amigo aterrissa ao lado dela. Cassius.

— Virginia? — pergunta ele.

— Faltou, infelizmente — diz o Chacal.

— Alertada?

— Enraivecida. Rusgas com o amante.

Victra consegue rastejar até meu tornozelo. Um fio de sangue obscurece seu caminho do local onde ela foi atingida ao local onde agora se contorce. Vermelho nos seus lábios. Não consigo sentir o toque dela.

— Eu não sabia — sussurra ela. — Darrow, eu não sabia.

Aja se curva sobre o corpo de Lorn, tirando a lâmina dele da cintura e fechando os olhos do seu mentor para sempre. Ele nem teve oportunidade de sacar sua arma. Cassius se aproxima, parando aos meus pés, onde se apoia num dos joelhos e me observa.

— Ele consegue se mexer, poeta? — pergunta ele a Roque.

— Não. Mas consegue ouvir.

— Você matou minha família, Darrow. Todos eles. Julian e eu é uma coisa. Mas as crianças? Como você pôde fazer uma coisa dessas? — Não sei do que ele está falando. — Vou encontrar Sevro. Vou encontrar Mustang. Não haverá misericórdia. — Ele toca o cabo esmaltado da sua lâmina com seu novo braço.

— Você não pode matá-lo — diz Roque, atrás de mim. — Você sabe o que ele é. — Roque põe a mão no ombro de Cassius. — Cassius, as ordens da Soberana foram claras.

— Dissecação — murmura Cassius. Ele me observa, e parece que jamais houve uma época em que esse homem me chamava de irmão. Sem uma esperança de que pudéssemos vir a ser o que somos hoje. De maneira bruta, ele pega minha mão. Eu acho, por um instante, que ele a está sacudindo. Mas, em vez disso, ele rouba o anel que recebi. O lobo de ferro que obtive por ter matado seu irmão. Meu dedo fica nu sem o anel.

Ele se levanta da sua posição de joelhos para assomar diante de mim, mais um belo abutre do que uma águia.

— Julian. Lea. Pax. Quinn. Erva. Harpia. Costas-Podres. Tactus. Lorn. Victra. Eles mereciam mais do que morrer por um escravo. — Com isso, ele me deixa com Roque.

O mundo está em silêncio, exceto por soluços e pelo som de sirenes. Ao meu lado, Victra observa Cassius partir, sua vida vazando do corpo. Aqueles argutos olhos dela olham para mim, perdidos.

— Precisamos nos apressar — diz Aja, a fala arrastada, no centro do massacre. — Eles sabem onde estamos. Traga seu pai e vamos embora daqui.

O Chacal balança a cabeça em concordância.

— Um momento, por favor.

Vários metros de distância de onde estamos, Augustus está pregado ao solo por três garçons. Eles o alçam enquanto o Chacal se aproxima, passando por cima do corpo profanado de Lorn.

— A Máscara não é do seu agrado, Darrow? — pergunta-me ele. — Eu a fiz especialmente pra você depois que você me revelou seu verdadeiro eu em Attica.

O Chacal se vira para o pai.

— O que você acha, papai? Será que essa manobra foi digna do seu nome?

— Seu monstro — diz Augustus, e cospe no rosto dele. — O que você fez?

— Então você não está orgulhoso? — O Chacal enxuga o cuspe e olha para ele. — Droga.

— Pare com isso. Meu filho, você nos arruinou.

— Adrius... — diz Aja, impaciente. — Precisamos ir embora.

O Chacal dá um passo à frente.

— Então agora você me chama de filho? — Ele estala a língua como quem dá uma bronca e desamarrota o paletó do seu pai. — Eu era seu filho quando você me pôs numa rocha pra que as intempéries tomassem conta de mim? Três dias. Eu era um bebê. O Comitê nem quis considerar um Abandono. Mas você me achava muito fraco e Claudius muito forte. Ele foi forte quando mandei Karnus derrubá-lo?

Os lábios do seu pai tremem:

— O quê?

— Eu paguei a Karnus au Bellona sete milhões de créditos e seis Rosas pra conspurcar a garota de Claudius. Eu sabia que a honra de Claudius o levaria ao ringue. O mais engraçado é que... o dinheiro era seu. Eu te pedi a quantia pra poder investir no meu futuro. E eu o fiz. — Ele franze a testa. — Papai, você pensava mesmo que um menino de dez anos de idade dá bola pro mercado dos Pratas? Você devia ter prestado mais atenção.

— Você matou Claudius. — A voz de Augustus se desintegra sob o esforço e ele pende nos braços daqueles que o estão segurando, tremendo de tristeza. — Você matou meu menino.

Isso partiria o coração de Mustang.

— Eu sou seu menino — debocha o Chacal. — Eu era um bom filho. Eu te endeusava. Eu te temia. Eu te obedecia. Eu aprendia o que você desejava que eu aprendesse. Eu ia onde você desejava que eu fosse. Eu só fazia o que você ordenava. Contudo, eu não era o suficiente.

Augustus balança a cabeça, afastando sua raiva enquanto os Pretorianos lhe algemam as mãos com grilhões magnéticos. Seus olhos se levantam para olhar o monstro que ele criou.

— Eu devia ter te estrangulado no berço.

— Ah, pai, não venha com essa...

— Você não é meu filho.

Adrius estremece. Com aquelas poucas palavras, Augustus libera uma coisa. E a pequena parte de Adrius que sustentava uma esperança de ser amado desaparece. Ele se livra da sua humanidade, ficando apenas o Chacal.

— Então, adeus esperança e, com a esperança, adeus medo. Adeus remorso: toda a bondade em mim está perdida. — Ele sussurra para alguma parte distante, evanescente de si mesmo enquanto ergue com indolência o abrasador até a cabeça do pai. — Maldade, sejas tu minha bondade.

— Pare! — Aja dá um passo à frente. — Adrius! Em nome da Soberana...

O Chacal atira na cabeça do pai.

O matador de Eo cai no chão, e sinto um vazio se espalhar pelo meu coração. Morte gera morte que gera morte. Foi sobre isso que Dancer me alertou. Foi por isso que Mustang disse para não confiar no seu irmão. É por isso que meus amigos morrerão. Por isso eu morrerei. Porque não consigo fazer frente a esse mal.

Quem consegue?

— Seu réptil imbecil! — grita Aja. — A Soberana precisava dele pra se sobrepor à Borda Externa! Maldição! — Ela olha para o céu enquanto rastros de chama atravessam a escuridão. Alguém está vindo com força da atmosfera superior. Tiros de armas pulsantes lampejam ao longo da Cidadela quando Pretorianos encontram as primeiras reações das tropas de Augustus e Lorn.

— Eu te dei esse prêmio — diz o Chacal, apontando a cabeça para mim. — Não comece a choramingar. — Ele examina o datapad e aponta os rastros de chama. — Os Telemanus estão chegando. A menos que você queira brincar com eles, sugiro que saiamos daqui agora mesmo.

Cassius concorda.

— Lorn e Augustus estão mortos. Esse exército vai definhar.

Aja ordena que seus Pretorianos embarquem na nave. Eles vêm me recolher do chão. A mão de Victra na minha perna perde a força. Seus olhos se fecharam.

— Roque — murmuro em meio à espessura do veneno. — Irmão...

— Não. Não — diz ele, não um monstro, ainda ele próprio, ainda quieto e tranquilo, apesar de pavoroso na sua tristeza. — Você é um filho dos Vermelhos. Eu sou um filho dos Ouros. Aquele mundo no qual somos irmãos acabou. — Mas ele se aproxima, curvando-se, com mãos delicadas levantando a caixa de marfim do meu colo até meu rosto. — E, neste mundo, o poder de um Ouro jamais definhará.

Eu olho dentro da caixa e meu coração se despedaça.

Tudo o que foi, tudo o que era para ser, se estilhaça. O sonho de Eo cai na escuridão. Onde quer que vocês estejam, Sevro, Mustang, Ragnar, não voltem a este mundo. Há muita dor. Há muita tristeza que possa algum dia ser reparada.

Olho dentro da caixa e vejo a cabeça de Fitchner me encarando, sem olhos, a boca cheia de uvas. Ares, a única esperança que tínhamos, o homem que me escolheu quando eu estava destroçado e me deu uma chance de fazer algo melhor do que uma simples vingança, foi massacrado. E sei que estamos acabados.

 

 

                                                   Pierce Brown         

 

 

 

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