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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS DA SORTE / Jeffrey Archer
FILHOS DA SORTE / Jeffrey Archer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

SUSAN ARREMESSOU o sorvete firmemente na cabeça de Michael Cartwright. Foi a primeira vez que os dois se encontraram, ou aquilo foi o que o padrinho de Michael afirmou quando Susan e Michael estavam casados, vinte e um anos mais tarde.
Ambos tinham três anos de idade na época, e quando Michael rompeu em lágrimas, a mãe de Susan apressou-se em descobrir qual era o problema. Tudo que Susan estava querendo dizer sobre o assunto, e ela o repetiu diversas vezes, era: "Bem, ele estava pedindo por isso, não estava?" Susan acabou levando umas palmadas. Não era o começo ideal para nenhum romance.
O próximo encontro lembrado, segundo o padrinho, foi quando ambos chegaram ao curso primário. Susan declarou, com um ar de quem está sabendo, que Michael era um bebê-chorão e, o que é pior, um sonso. Michael disse aos outros garotos que dividiria seus biscoitos Graham com qualquer um que quisesse puxar as marias-chiquinhas de Susan Illingworth. Poucos garotos tentaram pela segunda vez.
Ao final do seu primeiro ano, Susan e Michael receberam, juntos, o primeiro prêmio da classe. Sua professora considerou que esta era a melhor estratégia, se tinha esperança de prevenir outro acidente com sorvete. Susan disse às suas amigas que a mãe de Michael fazia o dever de casa para ele, ao que Michael respondeu que pelo menos era manuscrito por ele mesmo.
A rivalidade prosseguiu, sem tréguas, através do ginásio e do secundário, até que eles par tiram para diferentes universidades, Michael para a estadual de Connecticut e Susan para Georgetown. Pelos próximos quatro anos, ambos trabalharam duro, se evitando reciprocamente. Na verdade, a próxima ocasião em que seus caminhos se cruzaram foi, ironicamente, na casa de Susan, quando seus pais ofereceram uma festa surpresa pela formatura da filha. A maior surpresa não foi Michael ter aceitado o convite, mas ele ter mudado.

 


 


Susan não reconheceu seu velho rival imediatamente, em parte porque ele havia crescido dez centímetros e era, pela primeira vez, mais alto do que ela. Ela não se deu conta de quem era aquele homem alto, simpático, até que lhe ofereceu uma taça de vinho e Michael comentou: — Pelo menos desta vez você não o derramou todo sobre mim.

— Deus, eu me comportei pavorosamente, não foi? — disse Susan, desejando que ele o negasse.

— Sim, é verdade — disse ele — mas daí penso que o mereci.

— Você mereceu — disse ela, mordendo a língua.

Eles dialogaram como velhos amigos, e Susan estava surpresa de quão desapontada se sentiu quando uma colega de Georgetown veio juntar-se a eles e começou a flertar com Michael. Eles não se falaram mais naquela noite.

Michael telefonou no dia seguinte e convidou-a para ver Spencer Tracy e Katharine Hepburn em Adam's Rib (A costela de Adão). Susan já tinha visto o filme, mas ainda se ouviu aceitando, e não podia acreditar quanto tempo levou experimentando vestidos diferentes antes que ele chegasse para o primeiro encontro.

Susan gostou do filme, ainda que pela segunda vez, e ficou se perguntando se Michael colocaria a mão em seu ombro quando Spencer Tracy beijasse Katharine Hepburn.

Ele não o fez. Mas, quando deixaram o cinema, ele tomou sua mão ao atravessarem a rua, e não a soltou até que alcançaram a lanchonete. Foi quando tiveram sua primeira discussão, bem, desentendimento. Michael admitiu que votaria em Thomas Dewey, em novembro, enquanto Susan deixou claro que queria que Harry Truman continuasse na Casa Branca. Ela fez pé firme nisso.

— Nem pense nisso — disse Michael.

Susan não ficou surpresa quando ele telefonou no dia seguinte, apesar de ela ter estado sentada ao lado do aparelho por mais de uma hora, fingindo que estava lendo.

Michael tinha admitido para sua mãe, durante o café da manhã, que era amor à primeira vi sta.

— Mas você conhece Susan há anos — Comentou sua mãe.

— Não, não conheço, mamãe — retrucou ele. — Eu a conheci ontem, pela primeira vez.

Tanto os pais de um como os pais do outro estavam deliciados, mas não surpresos, quando ficaram noivos, um ano mais tarde. Afinal de contas, eles mal tinham ficado um único dia separados desde a festa de formatura de Susan. Ambos haviam conseguido trabalho uns poucos dias depois de deixarem a faculdade, Michael como trainee para a Companhia Hartford de Seguros de Vida e Susan como professora de história no Ginásio Jefferson, de modo que decidiram casar-se durante as férias de verão.

O que eles não haviam planejado era que Susan viesse a ficar grávida enquanto estavam em lua-de-mel. Michael não conseguia esconder seu deleite ao simples pensamento de vir a ser pai, e quando o Dr. Greenwood lhes disse, no sexto mês, que seriam gêmeos, ele estava duplamente deleitado.

— Bem, pelo menos isso vai solucionar um problema — foi sua primeira reação.

— O que quer dizer? — perguntou Susan.

— Um pode ser republicano, e o outro, democrata.

— Não se eu tiver alguma coisa a ver com isso — disse Susan, esfregando a barriga.

Susan continuou lecionando até o oitavo mês, o que felizmente coincidiu com os feria dos da Páscoa. Ela chegou ao hospital no vigésimo oitavo dia do nono mês, carregando uma pequena mala. Michael saiu cedo do trabalho e reuniu-se a ela alguns minutos mais tarde, com a novidade de que havia sido promovido a contador executivo.

— O que é que isso significa? — perguntou Susan.

— É um título elegante para um vendedor de seguros — disse Michael. — Mas inclui um pequeno aumento de salário, o que só pode ajudar agora que nós vamos ter duas bocas a mais para alimentar.

Assim que acomodou Susan em seu quarto, o Dr. Greenwood sugeriu que Michael esperasse do lado de fora durante o parto, já que com gêmeos talvez surgissem complicações.

Michael fez idas e vindas pelo longo corredor. Sempre que chegava ao retrato de Josiah Preston, pendurado na parede do fundo, ele voltava e refazia seus passos.

Nas primeiras dessas caminhadas, Michael não parou para ler a longa biografia impressa abaixo do retrato do fundador do hospital. Quando o médico emergiu através da porta dupla, Michael sabia toda a história do homem de cor e salteado...

A figura de jaleco verde caminhou lentamente em sua direção, antes de remover a máscara. Michael tentou interpretar a expressão da sua face. Em sua profissão era uma vantagem ser capaz de decifrar expressões e pensamentos de segundas intenções, por que quando era chegado o momento de vender seguros de vida você precisava antecipar quaisquer ansiedades que um cliente em potencial pudesse ter. Entretanto, quando chegava a esta política de seguro de vida, o médico não deixava escapar nada. Quando ficaram face a face, ele sorriu e disse: — Parabéns, Sr. Cartwright, o senhor tem dois filhos saudáveis.

Susan tinha dado à luz dois garotos. Nathaniel às 16h37 e Peter às 16h43 daquela tarde. Na hora seguinte, os pais se revezaram para niná-los, até que o Dr. Greenwood sugeriu que talvez a mãe e as crianças devessem ter permissão de descansar.

— Tendo de amamentar duas crianças, irá sentir uma exaustão enorme. Eu deverei colocá-los sob cuidados especiais no berçário, à noite — acrescentou ele. — Nada com que se preocupar, porque isso é o que sempre fazemos com gêmeos.

Michael acompanhou seus dois filhos ao berçário, onde, uma vez mais, foi-lhe pedido que esperasse no corredor. O pai, orgulhoso, pressionou seu nariz contra o painel de vidro que dividia o corredor da fila dos berços, fixando-se nos garotos enquanto dormiam, querendo dizer a todos que passavam que "os dois são meus". Ele sorriu para a enfermeira que estava ao lado deles, mantendo o olhar atento sobre os últimos que chegaram. Ela estava colocando etiquetas com os nomes nos seus punhos.

Michael não conseguia se lembrar de quanto tempo permanecera ali antes de retornar casualmente para a beira da cama da esposa. Ao abrir a porta, estava satisfeito por descobrir que Susan havia adormecido rapidamente. Ele beijou-a gentilmente na testa.

— Eu a verei pela manhã, minha querida, antes de ir para o trabalho — disse ele, ignorando o fato de que ela não podia ouvir uma palavra.

Michael deixou-a, desceu o corredor e entrou no elevador para descobrir que o Dr. Greenwood havia trocado seu uniforme por uma jaqueta esportiva e calças de flanela cinza.

— Eu gostaria que todos fossem assim tão fáceis — disse ao pai orgulhoso assim que o elevador parou no primeiro andar. — Ainda assim, darei uma passada aqui à noite, Sr. Cartwright, para checar como está sua esposa e ver como estão passando os gêmeos. Não que eu antecipe quaisquer problemas.

— Obrigado, doutor — disse Michael. — Obrigado!

O Dr. Greenwood sorriu, e teria deixado o hospital e dirigido para casa se não tivesse visto uma elegante senhora vindo em direção às portas giratórias. Ele caminhou rapidamente através delas para se juntar a Ruth Davenport.

Michael Cartwright olhou para trás para ver o doutor segurando as portas do elevador abertas para duas mulheres, uma pesadamente grávida. Um olhar ansioso havia substituído o sorriso simpático do Dr. Greenwood. Michael desejou apenas que o último encargo do doutor fosse um nascimento tão sem complicações quanto Susan houvera conseguido administrar. Ele atravessou de volta para seu carro, tentando pensar sobre o que tinha ainda para fazer, incapaz de remover o sorriso maroto da face.

A primeira coisa que precisava fazer era telefonar aos seus pais... avós.

2


RUTH DAVENPORT já tinha aceitado que esta seria sua última chance. O Dr. Greenwood, por motivos profissionais, não o teria dito tão francamente, embora, depois de dois abortos em uns tantos anos, ele não pudesse advertir sua paciente quanto a se arriscar a ficar grávida novamente.

Robert Davenport, por outro lado, não estava sujeito ao mesmo rótulo profissional, e quando soube que sua esposa estava esperando pela terceira vez, ele tinha sido tipicamente franco. Simplesmente deu um ultimato: — Desta vez você terá cuidado. — Um eufemismo para "não faça nada que possa prejudicar o nascimento do nosso filho".

Robert Davenport assumiu que seu primeiro filho seria um menino. Ele também sabia que seria difícil, se não impossível para sua esposa "ir devagar". Afinal de contas, ela era a filha de Josiah Preston, e sempre se dissera que se Ruth tivesse sido um menino, ela, e não o seu marido, teria acabado como presidente das Indústrias Farmacêuticas Preston. Mas Ruth teve de se contentar com o prêmio de consolação, quando sucedeu seu pai como vice-presidente da Controladoria do Hospital St. Patrick, uma causa à qual a família Preston tinha estado devotada por quatro gerações.

Apesar de algumas das velhas irmandades de St. Patrick precisarem ser convencidas de que Ruth Davenport tinha a mesma tempera de seu pai, foi algumas semanas antes, apenas, que eles descobriram que não só ela herdara a energia e os modos de conduta do velho homem, mas que ele também lhe houvera passado seu conhecimento e visão consideráveis, tantas vezes pródigos para uma única criança.

Ruth não se casara até os trinta e três anos de idade. Certamente não fora por falta de pretendentes, muitos dos quais saíram de suas trajetórias clamando por devoção eterna à herdeira dos milhões de Preston. Josiah Preston não tinha precisado explicar o significado dos caçadores de dote para sua filha, porque a verdade é que ela simplesmente não havia caído de amores por nenhum deles. Na verdade, Ruth estava começando a duvidar de que fosse, algum dia, se apaixonar. Até que ela conheceu Robert.

Robert Davenport entrara para as Indústrias Farmacêuticas Preston saindo da Roche, via Johns Hopkins e a faculdade de administração de Harvard, naquilo que seu pai descrevera como "o atalho mais rápido". Nas recordações de Ruth, isso era o mais próximo que o velho havia chegado no uso da moderna expressão. Robert era vice-presidente aos vinte e sete anos, e aos trinta e três foi apontado como o mais jovem conselheiro da história da empresa, quebrando um recorde do próprio Josiah. Desta vez Ruth se apaixonou por um homem que não era nem sedento nem intimidado pelo nome ou pelos milhões de Preston.

Na verdade, quando Ruth sugeriu que talvez ela devesse passar a ser Preston-Davenport, Robert tinha simplesmente perguntado: — Quando vou conhecer este jovem Preston-Davenport que espera impedir que eu seja seu marido?

Ruth anunciou estar grávida semanas depois do casamento, e o aborto era quase que a única mácula numa existência até então charmosa. Entretanto, isso logo começou a parecer uma nuvem passageira em céu azul-claro quando ela engravidou novamente, onze meses mais tarde.

Ruth estava presidindo uma reunião de conselho da controladoria do hospital quando as contrações começaram; portanto, tudo que ela precisou fazer foi tomar o elevador e subir dois andares para permitir que o Dr. Greenwood realizasse os exames necessários. Mas nem mesmo a perícia dele, a dedicação de sua equipe ou a última palavra em equipamento médico podiam salvar o bebê prematuro. Kenneth Greenwood não podia deixar de lembrar que quando era um jovem médico enfrentara problema semelhante quando Ruth nascera, e, por uma semana, a equipe do hospital não conseguia acreditar que aquela garotinha fosse sobreviver. Agora, trinta e cinco anos depois, a família atravessava o mesmo trauma.

O Dr. Greenwood decidiu dar uma palavra em particular com o Sr. Davenport, sugerindo que talvez houvesse chegado a hora de eles considerarem uma adoção. Robert concordou relutantemente e disse que levantaria a questão com a esposa tão logo percebesse que ela estava suficientemente forte.

Outro ano se passou antes que Ruth concordasse em visitar uma entidade de adoção, e com uma daquelas coincidências que a sorte decide — e romancistas não têm permissão de considerar — ela engravidou no dia em que estava pronta a visitar uma instituição local para crianças. Desta vez, Robert estava determinado a assegurar que um erro humano não fosse a razão para que seu filho falhasse em entrar neste mundo.

Ruth aceitou o conselho do marido e demitiu-se como conselheira da controladoria do hospital. Ela concordou, inclusive, que uma enfermeira fosse contratada em tempo integral — nas palavras de Robert — para observá-la. O Sr. Davenport entrevistou diversas candidatas ao cargo e resumiu uma lista daquelas que ele considerou tivessem as qualificações necessárias. Mas sua escolha final se basearia, exclusivamente, no fato de estar convencido de que a candidata era enérgica o bastante para garantir que Ruth manteria sua promessa de "ir devagar" e insistir para que ela não recaísse nos velhos hábitos de querer organizar tudo o que acontecesse.

Depois da terceira leva de entrevistas, Robert resolveu-se pela Srta. Heather Nichol, que era enfermeira-chefe na ala da maternidade do St. Patrick. Ele gostou da sua abordagem séria e do fato de ela não ser nem casada nem aquinhoada com aquele olhar que assegurava que a situação provavelmente mudaria num futuro previsível.

Mas o que finalmente pesou nos pratos da balança foi que a Srta. Nichol já havia ajudado a trazer mais de mil crianças a este mundo.

Robert estava encantado sobre como a Srta. Nichol rapidamente tomou as rédeas da casa, e a cada mês que passava até ele começou a acreditar que eles não estariam se defrontando com o mesmo problema pela terceira vez. Quando Ruth completou o quinto, o sexto e o sétimo meses sem incidentes, Robert até levantou o assunto de possíveis nomes cristãos: Fletcher Andrew, se fosse um menino; Victoria Grace, se fosse uma menina. Ruth expressou apenas uma preferência: que se fosse um menino, deveria ser conhecido como Andrew, mas tudo que ela esperava é que nascesse uma criança saudável.

Robert estava em Nova York participando de uma conferência médica quando a Srta. Nichol tirou-o de uma palestra para notificá-lo de que as contrações da esposa haviam começado. Ele asseverou que retornaria de trem imediatamente e, em seguida, tomou um táxi direto para o St. Patrick.

O Dr. Greenwood estava deixando o edifício, tendo feito o parto dos gêmeos Cartwright com sucesso, quando avistou Ruth Davenport atravessando as portas giratórias acompanhada pela Srta. Nichol. Ele fez meia-volta e encontrou as duas senhoras antes que as portas do elevador se fechassem.

Assim que acomodou sua paciente num quarto particular, o Dr. Greenwood rapidamente reuniu a equipe dos melhores obstetras que o hospital podia juntar. Fosse a Sra. Davenport uma paciente comum, ele e a Srta. Nichol poderiam ter feito o parto da criança sem ter de chamar uma assistência extra. Entretanto, logo após examiná-la, concluiu que Ruth exigiria uma cesariana se quisesse que a criança nascesse com segurança. Olhou em direção ao teto e fez uma oração silenciosa, sabendo, conscientemente, que aquela seria a sua última chance.

O parto levou um pouco mais de quarenta minutos. Na primeira olhada para a cabeça do bebê, a Srta. Nichol deixou escapar um suspiro de alívio, mas só quando o doutor cortou o cordão umbilical ela conseguiu exclamar: "Aleluia!" Ruth, que ainda estava sob anestesia geral, era incapaz de ver o sorriso aliviado no rosto do Dr. Greenwood. Ele rapidamente deixou a sala para dizer ao pai expectante: — É um menino!

Enquanto Ruth dormia calmamente, a incumbência de levar Fletcher Andrew para a unidade de cuidados, onde ele dividiria suas primeiras horas com diversas outras descendências, foi dada para a Srta. Nichol. Assim que ela aconchegou a criança em seu berço, deixou a enfermaria para observá-lo antes de voltar ao quarto de Ruth.

A Srta. Nichol acomodou-se numa poltrona confortável, num canto, e procurou manter -se acordada.

Logo que amanheceu, a Srta. Nichol acordou com um sussurro. Ela ouviu as palavras: — Posso ver meu filho?

— É claro que sim, Sra. Davenport — respondeu a Srta. Nichol, levantando-se rapidamente de sua poltrona. — Vou trazer o pequeno Andrew.

Assim que fechou a porta atrás de si, acrescentou: — Voltarei em alguns instantes.

Ruth ergueu-se, afofou seu travesseiro, acendeu a lâmpada de cabeceira e esperou com ávida expectativa.

Enquanto a Srta. Nichol caminhava pelo corredor, ela checou o relógio. Eram 4h31 da manhã. Ela desceu as escadas para o quinto andar e encaminhou-se para a enfermaria. A Srta. Nichol abriu a porta silenciosamente, de modo a não acordar nenhum dos recém-nascidos. Assim que entrou no quarto iluminado por uma pequena lâmpada fluorescente pendurada acima de sua cabeça, seus olhos se acomodaram sobre a enfermeira da noite cochilando num canto. Ela não perturbou a jovem mulher, pois certamente aqueles eram os únicos momentos de descanso que ela conseguiria durante seu turno de oito horas.

A Srta. Nichol caminhou na ponta dos pés entre as duas filas de berços, parando apenas por um momento para olhar os gêmeos no berço duplo que havia sido colocado ao lado do de Fletcher Andrew Davenport.

Ela fixou o olhar num menino que desejaria ter de alguma forma, para o resto de sua vida. Ao debruçar-se sobre o menino para levantá-lo do berço, ela congelou.

Depois de mais de mil nascimentos, você está qualificada para reconhecer a morte. A palidez da pele e a paralisação dos olhos tornaram desnecessário que checasse o pulso.

Quase sempre uma decisão impulsiva, algumas vezes tomada pelos outros, pode mudar nossas vidas por completo.

 

 

3


Quando o DR. GREENWOOD foi acordado no meio da noite para ser notificado de que um dos seus novos pacientes havia morrido, ele soube exatamente de que criança se tratava. Ele também compreendeu que teria de retornar ao hospital imediatamente.

Kenneth Greenwood sempre quisera ser médico. Apenas umas semanas na escola de medi cina e ele já sabia em que campo ia se especializar. Ele agradecia a Deus todos os dias por permitir-lhe levar em frente sua vocação. Mas aí, de tempos em tempos, com o se a Deidade houvesse sentido que era preciso equilibrar a balança, ele tinha de dizer a uma mãe que ela perdera seu filho. Nunca fora fácil, mas ter de dizer isso a Ruth Davenport pela terceira vez...

Havia tão poucos carros na rua às cinco da manhã que o Dr. Greenwood estacionou no espaço que lhe era reservado no hospital vinte minutos depois. Ele empurrou as portas giratórias, andou a passos largos pela recepção e já tinha pisado no elevador antes que qualquer equipe pudesse falar com ele.

— Quem vai dizer a ela? — perguntou a enfermeira que o esperava, quando a porta do elevador se abriu no quinto andar.

— Eu vou — disse o Dr. Greenwood. — Sou amigo da família há anos — acrescentou.

A enfermeira pareceu surpresa.

— Suponho que devamos ser gratos pelo fato de o outro bebê haver sobrevivido — disse ela, interrompendo seus pensamentos.

O Dr. Greenwood interrompeu a caminhada.

— A outra criança? — repetiu ele.

— Sim, Nathaniel está ótimo; foi Peter quem morreu.

O Dr. Greenwood permaneceu em silêncio por um instante enquanto tentava entender aquele pedaço da informação.

— E o menino Davenport? — aventurou.

— Passando bem, até onde sei — respondeu a enfermeira. — Por que pergunta?

— Fiz o parto dele um pouco antes de ir para casa — disse ele, esperando que a enfermeira não houvesse pressentido nenhum sinal de hesitação em sua voz.

O Dr. Greenwood caminhou lentamente entre as filas dos berços, passando pelos recém-nascidos que estavam ressonando e outros que gritavam, como que para provar que tinham pulmões. Parou ao chegar ao berço duplo, onde havia deixado os gêmeos algumas horas antes. Nathaniel dormia tranquilamente, enquanto seu irmão estava imóvel.

Checou o nome na cabeceira do berço próximo, Davenport, Fletcher Andrew. Aquele menininho também estava ressonando, sua respiração era bem regular.

— Naturalmente não pude remover a criança antes que o doutor que o havia ajudado a nascer...

— Você não precisa me lembrar do procedimento hospitalar — reagiu o Dr. Greenwood de modo inesperado. — A que horas você entrou em serviço? — perguntou.

— Logo depois da meia-noite — respondeu ela.

— E você ficou no atendimento desde então?

— Sim, senhor.

— Alguém mais entrou na enfermaria durante esse tempo?

— Não, doutor — respondeu a enfermeira. Ela decidiu não mencionar que uma hora antes pensou ter ouvido a porta se fechar, não pelo menos enquanto ele estivesse naquele mau humor. O Dr. Greenwood olhou para baixo, para os dois berços marcados Cartwright, Nathaniel e Peter. Sabia onde estava seu dever.

— Leve a criança para o necrotério — disse rapidamente. — Escreverei um relatório imediatamente, mas não informarei a mãe até de manhã. De nada servirá acordá-la a esta hora.

— Sim, senhor — disse a enfermeira, docemente.

O Dr. Greenwood deixou a enfermaria, desceu vagarosamente pelo corredor e parou do lado de fora da porta da Sra. Cartwright. Abriu a porta silenciosamente, aliviado por descobrir que sua paciente dormia. Depois de subir a escada para o sexto andar, ele fez o mesmo exercício quando alcançou o quarto particular da Sra. Davenport.

Ruth também dormia. Deu uma olhada através do quarto para ver a Srta. Nichol sentada desconfortavelmente em sua poltrona. Ele poderia jurar que ela abrira os olhos, mas decidiu não perturbá-la. Fechou a porta, andou até o final do corredor e escapou pelas escadas de incêndio que levavam ao estacionamento.

Não queria ser visto saindo pelos que estavam de serviço no balcão da frente. Precisava de algum tempo para pensar.

O Dr. Greenwood estava de volta à cama vinte minutos depois, mas ele não dormiu.

Quando, às sete horas, o despertador parou de tocar, ele ainda estava acordado. Sabia exatamente qual seria sua primeira medida de ação, ainda que temesse as consequências que pudessem repercutir por muitos anos.

O Dr. Greenwood demorou-se consideravelmente para dirigir de volta ao St. Patrick pela segunda vez naquela manhã, e não era apenas pelo tráfego aumentado.

Ele receara ter de dizer a Ruth Davenport que sua criança havia morrido durante a noite, e esperava apenas que aquilo pudesse ser feito sem nenhum escândalo em paralelo.

Ele sabia que teria de ir diretamente ao quarto de Ruth e explicar o que tinha acontecido, caso contrário ele nunca seria capaz de superar aquilo.

— Bom-dia, Dr. Greenwood — disse a enfermeira da recepção, mas ele não respondeu.

Quando ele saiu do elevador, no sexto andar, e começou a caminhar em direção ao quarto da Sra. Davenport, descobriu que seus passos iam ficando mais e mais lentos.

Deteve-se defronte à porta dela, desejoso de que ainda estivesse dormindo. Abriu-a devagar, para ser saudado por um sinal de Robert Davenport, sentado ao lado da esposa. Ruth estava segurando um bebê em seus braços. A Srta. Nichol não estava ali.

Robert saltou para perto dele, do outro lado da cama.

— Kenneth — disse ele, apertando sua mão — ficaremos em débito com você eternamente.

— Vocês não me devem nada — respondeu calmamente o doutor.

— Claro que devemos — disse Robert, dando-lhe as costas para olhar sua esposa. — Deveríamos deixá-lo saber o que foi que decidimos, Ruth?

— Por que não? Aí teremos ambos alguma coisa para celebrar — disse ela, beijando a testa do menino.

— Mas, primeiro, tenho de dizer a vocês... — Começou o médico.

— Sem mas — disse Robert — porque quero que você seja o primeiro a saber que decidimos pedir ao Conselho da Preston que financie a nova ala da maternidade que você sempre esperou pudesse ser completada antes de se aposentar.

— Mas... — repetiu o Dr. Greenwood.

— Pensei que tivéssemos concordado em sem mas. Afinal de contas, os projetos têm sido planejados por anos — disse ele, olhando para seu filho. — Portanto, não posso pensar em nenhuma razão pela qual não devêssemos iniciar o programa de construção de imediato.

Voltou o rosto para o Centro Sênior de Obstetrícia.

— A menos, é claro, que você...

O Dr. Greenwood permaneceu em silêncio.

Quando a Srta. Nichol viu o Dr. Greenwood saindo do quarto particular da Sra. Davenport, seu coração disparou. Ele estava carregando o menino em seus braços e caminhando de volta, em direção ao elevador que o levaria à enfermaria de cuidados especiais. Quando passaram um pelo outro no corredor, seus olhos se encontraram, e apesar de ele não ter falado, ela não tinha dúvida de que ele era sabedor do que ela havia feito.

A Srta. Nichol considerou que se ia assumir tinha de ser agora. Depois que havia levado a criança de volta à enfermaria, ela tinha permanecido acordada no canto do quarto da Sra. Davenport pelo resto da noite, conjeturando se viria a ser descoberta. Ela havia tentado não se mexer quando o Dr. Greenwood tinha olhado lá para dentro. Não tinha ideia de que horas fossem, porque não dera nenhuma olhada para o relógio. Havia esperado que ele a chamasse para fora do quarto e lhe dissesse saber da verdade, mas ele saiu tão silencioso quanto quando entrou; portanto, ela não seria advertida.

Heather Nichol caminhou em direção ao quarto particular, com o olhar firmemente fixo na saída de incêndio ao final do corredor. Quando tinha passado a porta da Sra. Davenport, tentou não apressar o passo. Ela tinha ainda quase dois metros par a completar quando ouviu uma voz que reconheceu imediatamente, dizendo: — Srta. Nichol? — Ela congelou onde estava, ainda olhando fixamente para a escada de incêndio, enquanto considerava suas opções. Contornou-a para encarar o Sr. Davenport.

— Acho que precisamos trocar uma palavrinha, em particular — disse ele.

O Sr. Davenport ficou num canto no lado oposto do corredor, acreditando que ela fosse segui-lo. A Srta. Nichol pensou que suas pernas iam dobrar-se bem antes que caísse na poltrona oposta a ele. Não conseguia interpretar a expressão no rosto dele, se ele também compreendera que ela era a pessoa culpada. Mas aí, com o Sr. Davenport isso era impossível. Não era de sua natureza perder, e isso era algo que ele descobrira ser difícil mudar, até mesmo quando dizia respeito a sua vida particular. A Srta. Nichol não conseguia fitá-lo nos olhos, por isso ela olhou sobre o seu ombro esquerdo e viu o Dr. Greenwood quando as portas do elevador se fecharam.

— Suspeito que você saiba o que é que estou para lhe perguntar — disse ele.

— Sim, eu sei — admitiu a Srta. Nichol, se perguntando se alguém lhe daria emprego novamente, e mesmo se ela não acabaria na prisão.

Quando o Dr. Greenwood reapareceu dez minutos mais tarde, a Srta. Nichol sabia exatamente o que aconteceria a ela e onde ia terminar.

— Quando tiver pensado a respeito, Srta. Nichol, talvez possa dar-me um telefonema para o escritório, e se sua resposta for sim, então terei de trocar uma palavrinha com meus advogados.

— Já pensei sobre isso — disse a Srta. Nichol. Desta feita ela olhou diretamente nos olhos do Sr. Davenport.

— A resposta é sim — respondeu-lhe. — Ficarei muito feliz de continuar trabalhando para a família como babá.

4


SUSAN SEGUROU NAT em seus braços, incapaz de esconder sua angústia. Ela estava cansa da dos amigos e de outras pessoas lhe dizendo para agradecer a Deus pelo fato de uma das crianças ter sobrevivido. Seria tão difícil para eles entenderem que Peter estava morto e que ela havia perdido um filho? Michael esperava que sua esposa começasse a se recuperar da perda assim que deixasse o hospital e voltasse para casa. Mas isso não aconteceu. Susan ainda falava, sem parar, sobre seu outro filho, e mantinha uma fotografia dos dois meninos na mesa-de-cabeceira.

A Srta. Nichol estudou a fotografia quando foi publicada no Hartford Courant. Ela estava aliviada por descobrir que apesar de os dois garotos terem herdado o queixo quadrado de seu pai, Andrew tinha cabelos fartos, encaracolados, enquanto os de Nat eram lisos e já estavam ficando escuros. Mas foi Josiah Preston quem salvou o dia, por comentar repetidas vezes que o neto havia herdado seu nariz e a testa proeminente, que eram uma tradição entre os Preston. A Srta. Nichol repetia constante mente essas observações para bajular os parentes e os empregados insinceros, prefaciando com as palavras: "O Sr. Preston comenta sempre que...".

Passadas duas semanas, e já em casa, Ruth fora, novamente, indicada como vice-presidente da Controladoria do Hospital, e imediatamente decidiu honrar o pedido do marido de construir a nova ala da maternidade para o St. Patrick. A Srta. Nichol, nesse ínterim, fazia qualquer serviço, ainda que subalterno, que permitisse a Ruth retomar suas atividades fora de casa, enquanto ela se encarregava de Andrew. Passou a ser a babá, a mentora, guardiã e governanta do menino. Mas não se passava um só dia sem que ela se apavorasse com a possibilidade de que a verdade eventualmente viesse à tona.

A primeira verdadeira ansiedade da Srta. Nichol surgiu quando a Sra. Cartwright telefonou-lhe para dizer que estava organizando uma festa de aniversário para seu filho, e que, como Andrew havia nascido no mesmo dia, se ela não gostaria que ele fosse incluído.

— Que gentileza a sua perguntar — respondeu a Srta. Nichol, sem perder tempo — mas Andrew terá sua própria festa, e eu sinto apenas que Nat não possa vir se juntar a nós.

— Bem, por favor, leve meus melhores votos à Sra. Davenport e diga o quanto apreciamos ter sido convidados para a inauguração da nova ala da maternidade, no próximo mês.

Um convite que a Srta. Nichol não poderia cancelar. Quando Susan recolocou o telefone no gancho, seu único pensamento foi sobre como a Srta. Nichol sabia o nome do seu filho.

Depois de alguns momentos da chegada da Sra. Davenport em casa naquela tarde, a Srta. Nichol lhe sugeriu que organizasse uma festa para o primeiro aniversário de Andrew. Ruth pensou que era uma ideia esplêndida e estava simplesmente muito feliz em poder deixar todos os detalhes, incluindo a lista de convidados, nas mãos da babá. Organizar uma festa de aniversário na qual você pode controlar quem deveria ser ou não convidado é uma coisa, mas tentar ter absoluta certeza de que sua empregada e a Sra. Cartwright não se encontrariam na inauguração da ala da Maternidade Preston era completamente diferente.

Na verdade, foi o Dr. Greenwood quem apresentou as duas mulheres enquanto fazia um tour guiado pelas novas instalações. Ele não podia acreditar que ninguém notasse que os dois meninos eram muito parecidos. A Srta. Nichol voltou-se para o outro lado quando ele olhou em sua direção. Ela rapidamente colocou um gorro sobre a cabeça de Andrew, o que fazia com que se parecesse com uma menina, e antes que Ruth pudesse comentá-lo disse: — Está esfriando bastante e eu não gostaria que Andrew apanhasse um resfriado.

— O senhor permanecerá em Hartford depois que se aposentar, Dr. Greenwood? — perguntou a Sra. Cartwright.

— Não. Minha esposa e eu planejamos viver nossa aposentadoria na casa da família, em Ohio — respondeu o médico — mas tenho certeza de que voltaremos a Hartford, uma vez ou outra.

 

 

 

 

 


A Sta. Nichol teria deixado transparecer um sinal de alívio não fosse o médico olhar fixamente para ela. Mas com o Dr. Greenwood fora do caminho, a Srta. Nichol sentiu-se um pouco mais confiante de que seu segredo não viesse a ser descoberto.

Sempre que Andrew era convidado a juntar-se a qualquer atividade, passar a ser membro de qualquer grupo, participar de qualquer esporte ou inscrever-se para as apresentações teatrais de verão, a primeira preocupação da Srta. Nichol era ter certeza de que a criança sob sua responsabilidade não entraria em contato com qualquer membro da família Cartwright. Isso ela logrou conseguir com um considerável sucesso nos primeiros anos de formação da criança, sem que o Sr. e a Sra. Davenport suspeitassem de qualquer coisa.

Foram duas cartas chegadas junto com a correspondência daquela manhã que persuadiram a Srta. Nichol de que ela não mais precisava ficar apreensiva. A primeira fora endereçada ao pai de Andrew e confirmava que o menino tinha sido admitido na Hotchkiss, a mais antiga escola particular de Connecticut. A segunda, selada em Ohio, foi aberta por Ruth.

— Que triste! — Comentou ela assim que virou a folha manuscrita. — Ele era um homem tão bom...

— Quem? — perguntou Robert, olhando por cima do seu exemplar do New England Journal of Medicine.

— Dr. Greenwood. A esposa dele escreveu para dizer que ele faleceu na última sexta -feira, aos setenta e quatro anos de idade.

— Ele era um bom homem — repetiu Robert — talvez você devesse ir ao funeral.

— Sim, é claro que vou — disse Ruth — e Heather talvez goste de me acompanhar — acrescentou ela. — Afinal de contas, ela trabalhou para ele.

— Claro — disse a Srta. Nichol, esperando parecer suficientemente angustiada.

Susan leu a carta uma segunda vez, entristecida pelas notícias. Ela sempre se lembraria de como o Dr. Greenwood havia sentido pessoalmente a morte de Peter, quase como se se sentisse responsável por ela. Talvez ela devesse ir ao enterro do médico.

Ela estava pronta para dividir as notícias sobre sua morte com Michael, quando seu marido subitamente deu um salto no ar e gritou: — Ótimo, Nat!

— O que foi? — perguntou Susan, surpreendida pela exuberância tão pouco costumeira.

— Nat ganhou uma bolsa de estudos para a Taft — disse o marido dela, movimentando a carta no ar.

Susan não comungava do mesmo entusiasmo do marido pelo fato de Nat ser mandado em idade tão tenra para fora, com crianças cujos pais vinham de um mundo diferente.

Como podia uma criança de quatorze anos começar a entender que eles não podiam sustentar tantas das coisas que seus amigos de escola teriam com certeza? Ela sentia, de há muito, que Nathaniel deveria seguir os passos de Michael e ir para o Ginásio Jefferson. Se a escola era boa o suficiente para ela dar aulas, por que não seria suficientemente boa para que seu filho aprendesse ali?

Nat tinha estado sentado na cama, relendo seu livro favorito, quando ouviu a explosão do pai. Ele tinha chegado ao capítulo em que a baleia estava para escapar nova mente.

Relutantemente, pulou fora da cama e encostou a cabeça na porta para descobrir o que causava aquela comoção. Seus pais estavam discutindo acaloradamente — eles nunca brigavam, apesar do tão relatado incidente com o sorvete — sobre que escola ele de veria frequentar. Ele ouviu o pai no meio da sentença: "... chance da vida inteira".

— Nat será capaz de se misturar com crianças que acabarão como líderes em todos as áreas, e, portanto, isso vai influenciar o resto da vida dele.

— Ao invés de ir para o Ginásio Jefferson e se misturar com crianças que ele poderá acabar por liderar e influenciar para o resto das vidas delas!

— Mas ele ganhou uma bolsa de estudos; portanto, não teríamos de pagar um centavo.

— E nós não teríamos de pagar nem um tostão se ele fosse para o Ginásio Jefferson.

— Mas temos de pensar no futuro de Nat. Se ele for para a Taft, poderá acabar chegando a Harvard ou Yale...

— Mas o Ginásio Jefferson já graduou diversos alunos que hoje frequentam tanto a Harvard como a Yale.

— Se eu tivesse de tomar uma medida de segurança sobre qual das duas seria a mais provável...

— É um risco que estou querendo correr.

— Bem, eu não — disse Michael — passei todos os dias da minha vida tentando eliminar riscos como esses.

Nat escutou atentamente enquanto seus pais continuavam o debate, jamais elevando suas vozes ou perdendo o controle.

— Eu preferia que meu filho se formasse mais como um igualitário* do que como um aristocrata — redarguiu Susan com paixão.

 

*Do povo, sem distinção de classe, igual a todos. Tradicional partido inglês. (N.T.)

 

— Por que eles deveriam ser incompatíveis? — perguntou Michael.

Nat desapareceu em seu quarto sem esperar para ouvir a resposta da mãe. Ela o havia ensinado a procurar imediatamente toda palavra que nunca tivesse ouvido antes; afinal de contas, fora um homem de Connecticut que compilara a maior lexicografia do mundo. Depois de ter procurado todas as três palavras no seu dicionário Webster,

Nat concluiu que a mãe era mais democrata que o pai, mas nenhum deles era aristocrata. Ele não tinha certeza de querer ser aristocrata.

Quando Nat terminou o capítulo, saiu de seu quarto pela segunda vez. A atmosfera parecia estar mais tranquila; então ele decidiu descer as escadas e juntar-se aos pais.

— Talvez devêssemos deixar Nat decidir — disse sua mãe.

— Eu já o fiz — disse Nat enquanto se sentava entre eles. — Afinal de contas, vocês sempre me ensinaram a ouvir os dois lados da questão antes de chegar a uma conclusão.

Os pais ficaram sem palavras quando Nat, nada provocativo, abriu o jornal da tarde, subitamente alertados para o fato de que ele devia ter ouvido a conversa deles.

— E que decisão você tomou? — perguntou sua mãe baixinho.

— Eu gostaria de ir para a Taft, em vez de ir para o Ginásio Jefferson — respondeu Nat, sem hesitação.

— E podemos saber o que foi que o ajudou a chegar a esta conclusão? — perguntou o pai.

Nat, certo de ter uma audiência fascinada, não se apressou a responder.

— Moby Dick — finalmente ele anunciou, antes de virar a página dos esportes.


Ele esperou para ver qual dos pais seria o primeiro a repetir suas palavras.

— Moby Dick? — pronunciaram juntos.

— Sim — respondeu ele. — Afinal de contas, a boa gente de Connecticut considerava a grande baleia a aristocrata do mar.


5


UM HOMEM DA HOTCHKISS, cada centímetro — disse a Srta. Nichol ao examinar a figura de Andrew no espelho do corredor. Camisa branca, blazer azul com calças escuras de veludo cotelê. A Srta. Nichol apertou o nó da gravata listrada de branco e azul, removendo um cisco de poeira de sua camisa. Cada centímetro, repetiu ela. "Tenho apenas 1,74m de altura", Andrew gostaria de dizer quando o pai se juntou a ele no corredor. Andrew examinou o relógio, um presente de seu avô materno, um homem que ainda demitia pessoas por chegarem atrasadas.

— Coloquei suas malas no carro — disse o pai, tocando seu filho no ombro. Andrew esfriou quando ouviu as palavras do pai. O comentário casual lembrava-o apenas de que estava realmente saindo de casa. — Faltam menos de três meses para o Dia de Ação de Graças — acrescentou o pai. "Três meses é um quarto do ano, uma fração insignificante de sua vida quando você só tem quatorze anos de idade", Andrew desejou lembrar-lhe.

Andrew alargou os passos, passando pela porta de entrada e pelo cascalho do pátio, determinado a não se voltar para a casa que ele amava, e que não veria novamente por um quarto de ano. Quando chegou ao carro, segurou a porta de trás aberta para sua mãe. Depois apertou as mãos da Srta. Nichol como se fosse uma velha amiga e disse que estaria esperando para vê-la no Dia de Ação de Graças. Ele não tinha certeza, mas pensou tê-la visto chorando. Olhou em volta e acenou para a empregada e cozinheira antes de pular para dentro do carro.

Enquanto dirigiam pelas ruas de Farmington, Andrew olhava para os edifícios familiares que ele havia considerado até aquele momento como o centro do mundo inteiro.

— Agora me dê a certeza de que escreverá para casa todas as semanas — sua mãe estava dizendo. Ele ignorou o comentário redundante, e não apenas porque a Srta. Nichol houvesse dado a mesma instrução, pelo menos duas vezes, no mês passado.

E se você precisar de algum dinheiro extra, não hesite em me telefonar — acrescentou seu pai.

Alguém que não havia lido o livro de regras. Andrew não lembrou a seu pai que meninos no primeiro ano da Hotchkiss só tinham permissão para dez dólares por período.

Estava escrito com todas as letras na página 7, e havia sido sublinhado em vermelho pela Srta. Nichol.

Ninguém mais falou outra vez durante a curta viagem até a estação, cada qual mais ansioso do que o outro, à sua maneira. Seu pai levou o carro até uma vaga próxima à estação e desceu. Andrew permaneceu sentado, relutando para deixar a segurança do carro, até que sua mãe abriu a porta do seu lado. Andrew rapidamente reuniu-se a ela, determinado a não deixar ninguém saber quão nervoso ele estava. Ela tentou pegar sua mão, mas ele correu depressa para trás do carro para ajudar o pai com as malas.

Um carregador, uniformizado em azul, aproximou-se puxando um carrinho. Uma vez que as malas estavam acomodadas, ele as deixou na plataforma da estação e estacionou o carrinho na vaga 8. Quando o carregador subiu com as malas para o interior do trem, Andrew voltou-se para dar adeus a seu pai. Ele insistira para que apenas um dos pais o acompanhasse na viagem a Lakeville e, como seu pai fosse um homem da Taft, sua mãe pareceu ser a escolha óbvia. Ele já estava se arrependendo de sua decisão.

— Faça uma boa viagem — disse seu pai, sacudindo as mãos estendidas do filho. "As coisas idiotas que os pais dizem nas estações", pensou Andrew; certamente era mais importante que ele trabalhasse duro quando chegasse lá. — E não se esqueça de escrever.

Andrew instalou-se com sua mãe, e, quando o trem arrancou da estação, ele não olhou nem uma só vez para seu pai, esperando que isso fizesse com que ele parecesse mais adulto.

— Quer o café da manhã? — perguntou-lhe a mãe, enquanto o carregador colocava suas mal as na prateleira acima de suas cabeças.

— Sim, por favor — respondeu Andrew, felicitando-se pela primeira vez naquele dia.

Outro homem uniformizado mostrou-lhes a mesa no vagão-restaurante. Andrew examinou o cardápio e ficou se perguntando se sua mãe lhe permitiria pedir o café completo.

— Peça tudo que quiser — disse ela, como se estivesse lendo seus pensamentos.

Andrew sorriu e o garçom reapareceu.

— Um mexido de batata duplo,* dois ovos com a gema para cima, bacon e torradas. — Deixou de lado os cogumelos, apenas porque não queria que o garçom pensasse que sua mãe nunca lhe dera comida.

 

* Hash browns potatoes. (N.T.)

 

— E você, mamãe? — perguntou o garçom, voltando sua atenção para o outro lado da mesa.

— Só café com torradas, obrigada.

— É o primeiro dia do garoto? — perguntou o garçom. A Sra. Davenport sorriu e anuiu.

"Como é que ele sabe?", perguntou-se Andrew.

Andrew mastigou nervosamente a comida, sem certeza de que fosse ser alimentado o utra vez naquele dia. Não havia nenhuma menção às refeições no manual e vovô tinha dito a ele que quando estivesse na Hotchkiss seria alimentado apenas uma vez por dia. Sua mãe ficava dizendo para ele que colocasse a faca e o garfo sobre a mesa enquanto comia. Facas e garfos não são aviões e não deveriam ficar no ar mais tempo do que o necessário, lembrava. Ele não tinha meios de saber que ela estava tão nervosa quanto ele.

Sempre que outro garoto, tão bem uniformizado quanto ele, passava pela mesa, Andrew olhava para a janela, desejoso de que não o notassem, porque nenhum dos seus uniformes era tão novo quanto o dele. Sua mãe estava em sua terceira xícara de café quando o trem entrou na estação.

— Chegamos! — anunciou, desnecessariamente.

Andrew sentou olhando para a placa de Lakeville, quando alguns meninos saltaram do trem, cumprimentando-se uns aos outros com "Oi, como vai?", "Como foram as suas férias?", e "Que bom vê-lo novamente!", seguido de mais um cumprimento de mãos. Ele finalmente cruzou o olhar com o de sua mãe e desejou que ela desaparecesse numa nuvem de fumaça. As mães eram mais uma demonstração de que este era o seu primeiro dia.

Dois rapazes altos, vestidos com blazers azuis de bolsos duplos e calças cinza, começaram a conduzir os alunos novos para o ônibus que os esperava. Andrew rezou para que os pais houvessem se afastado do ônibus, caso contrário todos saberiam que ele era calouro.

— Seu nome? — disse um dos rapazes de blazer azul quando Andrew desceu os degraus do trem.

Davenport, senhor — disse Andrew, olhando-o de baixo para cima. Será que ele teria alguma vez aquela altura? O jovem sorriu, quase uma risada.

— Não me chame de senhor. Não sou um mestre, apenas um supervisor sênior.

Andrew baixou a cabeça. Eram as primeiras palavras que ele dissera e tinha agido como um bobo.

— Sua bagagem foi colocada no ônibus, Fletcher?

"Fletcher?", pensou Andrew. Claro, Fletcher Andrew Davenport; ele não corrigiu o rapaz alto por medo de cometer outro erro.

— Sim — respondeu Andrew.

O deus voltou sua atenção para a mãe de Andrew.

— Obrigado, Sra. Davenport — disse ele, checando sua lista. — Espero que a senhora tenha uma viagem agradável de volta a Farmington. Fletcher ficará bem — acrescentou gentilmente.

Andrew empurrou sua mãe, determinado a impedir que ela continuasse a abraçá-lo. (Se as mães pudessem ao menos ler pensamentos...) Ele estremeceu quando ela jogou seus braços em volta dele. Mas aí ele não conseguia entender o que ela estava fazendo.

Quando sua mãe finalmente o deixou livre, Andrew logo se juntou ao grupo dos meninos que estavam saltando para dentro do ônibus que os esperava. Ele prestou atenção a um menino, ainda menor do que ele, que estava sentado sozinho, olhando pela janela. Sentou-se depressa ao lado dele.

Sou Fletcher — disse, retomando o nome que lhe fora outorgado pelo deus. — Qual é o seu nome?

James — respondeu ele — mas meus amigos me chamam de Jimmy.

— Você é um aluno novo? — perguntou Fletcher.

— Sim — respondeu Jimmy calmamente, não olhando em volta ainda.

— Eu também — respondeu Fletcher.

Jimmy apanhou um lenço e fingiu assoar o nariz antes que, finalmente, ele se voltasse para encarar seu novo companheiro.

— De onde você é? — perguntou.

— Farmington.

— Onde fica isso?

— Não muito distante de West Hartford.

— Meu pai trabalha em Hartford — disse Jimmy. — Ele está no governo. O que faz o seu?

— Ele vende medicamentos — disse Fletcher.

— Você gosta de futebol? — perguntou Jimmy.

— Sim — disse Fletcher, mas só porque ele sabia que a Hotchkiss tinha um recorde imbatível nos últimos quatro anos, algo mais que a Srta. Nichol havia sublinhado no manual.

O resto da conversa se constituiu de uma série de questões não interrelacionadas, às quais o outro raramente sabia responder. Era um começo estranho para o que seria uma amizade para a vida inteira.

6


IMPECÁVEL! — disse seu pai enquanto checava o uniforme do menino no espelho. Michael Cartwright apertou o nó da gravata azul de seu filho e removeu-lhe um cabelo da jaqueta. "Impecável!", repetiu. Cinco dólares por um par de calças de cotelê foi tudo que Nathaniel conseguiu pensar, ainda que seu pai houvesse dito que elas valiam cada centavo.

— Apresse-se, Susan, ou nos atrasaremos — Chamou o pai, olhando para cima, em direção ao local do pouso. Mas Michael ainda encontrou tempo para acomodar a caixa no porta-malas e tirar o carro da entrada antes que Susan finalmente aparecesse para desejar sorte ao filho no seu primeiro dia. Ela deu um forte abraço em Nathaniel e ele ficou simplesmente agradecido de ali não haver outro homem da Taft à vista par a testemunhar o evento. Ele desejou que sua mãe houvesse superado o seu desapontamento por ele não ter ido para o Ginásio Jefferson, porque ele já vinha tendo segundas intenções. Afinal, se ele tivesse ingressado no Ginásio Jefferson, poderia vir para casa todas as noites.

Nathaniel sentou-se no banco da frente, ao lado do pai, e verificou o relógio do painel. Eram quase sete horas.

— Vamos indo, papai — disse, desesperado para não chegar atrasado no seu primeiro dia e ser posteriormente lembrado por todos os motivos errados.

Assim que eles alcançaram a autoestrada, seu pai atravessou-a e pegou a pista de fora, colocando o marcador no automático, o velocímetro mostrando uns cem quilômetros, cerca de dez quilômetros acima do limite, calculando que as chances de correrem livres naquela hora da manhã estavam a seu favor. O fato de Nathaniel ter visitado a Taft para ser entrevistado era ainda uma lembrança aterrorizante 38

quando o pai dirigia o seu velho Studebaker através dos grandes portões de ferro e lentamente subia a entrada de um quilômetro e meio de extensão.

Ele estava aliviado de ver dois ou três outros carros enfileirando-se atrás deles, a pesar de duvidar que fossem de novos estudantes. Seu pai seguiu atrás de uma fila de Cadillacs e Buicks para dentro do estacionamento, não muito seguro de onde é que deveria estacionar; afinal de contas, ele era um dos pais dos novos alunos.

Nathaniel saltou para fora do carro antes mesmo que seu pai puxasse o freio de mão. Mas, nesse instante, ele hesitou: teria ele seguido a fila de meninos que se dirigiam para o Taft Hall ou os novos estudantes eram esperados em algum outro lugar?

Seu pai não hesitara em juntar-se ao grupo e só parou numa vaga quando um jovem alto, bastante autoconfiante, carregando um quadro de avisos, olhou de cima para Nathaniel e perguntou: — Você é calouro?

Nathaniel não respondeu. Então seu pai disse: — Sim.

O olhar fixo do jovem rapaz não era avesso.

— Seu nome? — perguntou ele.

— Cartwright, senhor — respondeu Nathaniel.

— Ah, sim, um nível abaixo dos intermediários. Você foi indicado para o Sr. Haskins, portanto você deve ser esperto. Os mais brilhantes começam com o Sr. Haskins.

Nathaniel abaixou a cabeça enquanto o pai sorria.

— Quando você entra na Taft — disse o jovem — você pode sentar em qualquer lugar, nas três filas da frente, do lado esquerdo. No momento em que você ouvir nove batidas ritmadas do relógio, você vai parar de falar e não falará novamente até que o diretor e os demais membros da equipe tenham deixado o hall.

— O que faço, então? — perguntou Nathaniel, tentando esconder o fato de estar tremendo.

— Você receberá um resumo feito pelo professor responsável por você — disse o jovem, que voltou sua atenção para o pai de Nathaniel. — Nat ficará bem, Sr. Cartwright. Desejo-lhe uma boa viagem de volta para casa, senhor.

Foi nesse instante que Nathaniel decidiu que, no futuro, seria sempre conhecido como Nat, mesmo compreendendo que isso não faria sua mãe feliz.

Quando adentrou o Taft Hall, Nat abaixou a cabeça e caminhou rapidamente, descendo a longa ala, desejoso de que ninguém o notasse. Ele descobriu um lugar no final da segunda fila e enfiou-se ali. Lançou um olhar para um menino sentado a sua esquerda, cuja cabeça estava enterrada nas mãos. Estaria ele rezando ou estaria ainda mais aterrorizado do que Nat?

— Meu nome é Nat — aventurou.

— O meu é Tom — disse o garoto, sem levantar a cabeça.

— O que acontece agora?

— Não sei, mas gostaria de saber — disse Tom quando o relógio bateu nove horas e todos fizeram silêncio.

Um grupo de professores caminhava em fila pela ala — nenhuma senhora, observou Nat. Sua mãe não teria aprovado. Eles subiram para o palco e tomaram seus assentos, deixando apenas dois lugares desocupados. Os docentes começaram a falar calmamente entre si enquanto o corpo discente, no corredor, permanecia em silêncio.

— O que é que estamos esperando? — murmurou Nat e, um instante mais tarde, sua pergunta foi respondida quando todos se levantaram, incluindo os que estavam sentados no palco. Nat não teve coragem de olhar em torno quando ouviu os passos de dois homens descendo o corredor. Momentos depois, o capelão da escola e o diretor, que vinha logo atrás, passaram por ele em seu trajeto para ocupar as duas cadeiras vazias. Todos permaneceram em pé quando o capelão adiantou-se para conduzir uma pequena cerimônia que incluía a oração do Senhor, e terminou com a assembleia cantando o Hino da Batalha da República.

O capelão, então, voltou ao seu assento, permitindo que o diretor tomasse o seu lugar. Alexander Inglefield fez uma pequena pausa antes de olhar para a assembleia reunida. Ele, então, levantou as mãos, as palmas para baixo, e todos se sentaram. Trezentos e oitenta pares de olhos. olhavam para o homem de dois metros e pouco de altura, com grossas sobrancelhas e queixo quadrado, apresentando uma figura tão amedrontadora que Nat rezava nunca viesse a encontrar.

O diretor segurou as beiradas de sua longa toga negra antes de se dirigir à Plateia por quinze minutos. Começou por expor os seus encargos ao longo da história da escola, valorizando os graus atingidos nos passados acadêmico e esportivo da Taft.

Ele olhava para a assistência, onde se encontravam os calouros, e lembrava-os do lema da instituição: — Non ut sibi ministretur sed ut ministrei.

— O que é que isso quer dizer? — sussurrou Nat.

— Não para ser servido, mas para servir — disse Tom, baixinho.

O diretor concluiu, anunciando que havia duas coisas que um calouro não podia jamais esquecer — uma prova ou empate contra a Hotchkiss — e, como que deixando claras as suas prioridades, prometeu um feriado de meio dia se a Taft vencesse Hotchkiss na partida anual de futebol. Isso foi imediatamente aclamado pelo murmúrio alegre de toda a assembleia, ainda que cada menino atrás da terceira fileira soubesse que isso não fora conseguido nos últimos quatro anos.

Quando as palmas e vivas se acalmaram, o diretor deixou o palco, seguido pelo capelão e o resto da comitiva. Assim que saíram, o falatório recomeçou, quando os estudantes das classes mais adiantadas começaram a formar uma fila fora do corredor, enquanto apenas os meninos das três filas da frente permaneciam sentados, porque eles não sabiam para onde deviam ir.

Noventa e cinco meninos ficaram esperando para ver o que aconteceria depois. Eles não tiveram de esperar muito, porque um professor mais velho — bem, na verdade ele tinha apenas cinquenta e um anos, mas Nat pensou que ele parecia muito mais velho do que seu pai — veio até um nicho que ficava na frente deles. Ele era um homem baixo, troncudo, com um semicírculo de cabelos grisalhos em volta da careca coroada. Enquanto falava, segurava nas lapelas de sua jaqueta de tweed, imitando a pose do diretor.

— Meu nome é Haskins — disse ele. — Sou professor dos abaixo da média — acrescentou ele, com um sorriso torto. — Nós começaremos o dia com uma agenda, que vocês terão completado antes do primeiro intervalo, às dez e meia. Às onze, vocês assistirão às aulas que lhes forem indicadas. Sua primeira aula será de história americana.

Nat franziu o cenho, pois história nunca fora seu forte.

— A isso se seguirá o almoço. Não se iludam quanto a ele — disse o Sr. Haskins com o mesmo sorriso torto. Alguns dos meninos deram risada. — Mas isso é apenas uma tradição da Taft — assegurou-lhes o Sr. Haskins — que qualquer de vocês que esteja aqui seguindo os passos do pai já deve ter sido advertido a respeito.

Um ou dois garotos, incluindo Tom, sorriram.

Desde que eles começaram o que o Sr. Haskins havia descrito como o passeio pelas ninharias, Nat nunca saiu do lado de Tom. Ele parecia saber por antecipação tudo que Haskins estava para dizer. Nat descobriu, rapidamente, e não apenas o pai de Tom fora um ex-aluno, mas o avô dele também.

No momento em que o passeio terminou e eles já tinham visto tudo, do lago ao hospital, ele e Tom já se sentiam os melhores amigos. Quando entraram na sala de aula vinte minutos mais tarde, automaticamente se sentaram um ao lado do outro.

Quando o relógio bateu onze horas, o Sr. Haskins adentrou a classe. Um menino seguiu-o, imitando-lhe os passos. Ele demonstrava autoconfiança, quase que uma arrogância, que fez com que todos os outros garotos parassem para olhá-lo. Os olhos do professor também seguiram o novo aluno quando ele se enfiou na única carteira que sobrara.

— Nome?

— Ralph Elliot.

— Esta é a última vez em que você se atrasa para uma aula minha, enquanto você estiver na Taft — disse Haskins. Fez uma pausa. — Será que eu me fiz entender completamente?

— Sim, com certeza. — O menino fez uma pausa antes de acrescentar. — Senhor.

O Sr. Haskins voltou o olhar fixo para o restante da classe.

— Nossa primeira aula, conforme expliquei a vocês, será de história americana, o que é bem apropriado se nos lembrarmos de que esta escola foi fundada pelo irmão de um ex-presidente.

Com um retrato de William H. Taft no corredor principal, teria sido difícil, até para os alunos menos curiosos, não se lembrar daquilo.

— Quem foi o primeiro presidente dos Estados Unidos? — perguntou o Sr. Haskins.

Todas as mãos se ergueram. O Sr. Haskins apontou para um menino na fila da frente.

— George Washington, senhor.

— E o segundo? — perguntou Haskins. Menos mãos se ergueram e, desta vez, Tom foi o escolhido.

— John Adams, senhor.

— Correto, e o terceiro?

Apenas duas mãos permaneceram erguidas, a de Nat e a do rapaz que chegou atrasado.

Haskins apontou para Nat.

— Thomas Jefferson, de 1801 a 1809.

O Sr. Haskins apontou para o outro menino, sabendo que ele também sabia as datas corretas.

— E o quarto?

— James Madison, de 1809 a 1817 — disse Elliot.

— E o quinto, Cartwright?

— James Monroe, de 1817 a 1825.

— E o sexto, Elliot?

— John Quincy Adams, de 1825 a 1829.

— E o sétimo, Cartwright?

Nat esquadrinhou seu cérebro.

— Não me lembro, senhor.

— Você não se lembra, Cartwright, ou você simplesmente não sabe? — O Sr. Haskins fez uma pausa. — Existe uma diferença considerável nisso — acrescentou. Voltou sua atenção para trás, onde estava Elliot.

— William Henry Harrison, acho, senhor.

— Não, ele foi o nono presidente, em 1841, Elliot, mas morreu de pneumonia apenas um mês depois da posse; portanto, não vamos ficar perdendo tempo com ele — acrescentou o Sr. Haskins. — Vamos nos certificar de que todos saberão o nome do sétimo presidente amanhã de manhã. Agora voltemos aos Founding Fathers. Vocês todos tomem nota, pois eu vou querer um ensaio de três páginas sobre este assunto, para o nosso próximo encontro.

Nat havia escrito três longas folhas antes mesmo que a aula houvesse terminado, enquanto Tom mal tinha preenchido uma. Quando deixaram a sala ao final da aula, Elliot passou raspando depressa por eles.

— Ele já parece um adversário considerável — comentou Tom.

Nat não disse nada.

O que não podia saber é que ele e Ralph Elliot seriam adversários para o resto de suas vidas.

 

 

7


O JOGO ANUAL de futebol americano entre a Hotchkiss e a Taft era a manchete do semestre. Como ambos os times estavam empatados naquela temporada, um pouco mais apenas estava sendo discutido desde que os exames de meio de ano haviam terminado, e pelos atletas muito antes de os exames começarem.

Fletcher descobriu-se excitado e a carta semanal para sua mãe nomeava cada membro do time, ainda que ele compreendesse que ela não teria a mínima ideia de quem fosse qualquer um deles.

O jogo estava pronto para ser jogado no último sábado de outubro, e quando o último apito soasse, todos os escalados teriam o resto da semana de folga, e deveriam ganhar, além do mais, um dia extra.

Na segunda-feira anterior ao jogo, a classe de Fletcher realizou seu primeiro ex ame do semestre, mas não antes de o diretor haver declarado, na reunião da manhã, que "A vida se constitui de uma série de testes e exames, que são a razão pela qual nós os realizamos a cada semestre na Hotchkiss."

Na noite de terça-feira, Fletcher telefonou para sua mãe para dizer que Pensava ter ido bem.

Na quarta, ele buscou se lembrar de todas as coisas que não houvera incluído, e se perguntava se teria, ao menos, alcançado nota suficiente para passar.

Na sexta-feira pela manhã, os pontos da classe foram disponibilizados no quadro de avisos da escola e os alunos do preparatório vinham liderados pelo nome de Fletcher Davenport. Ele imediatamente correu para o telefone mais Próximo e ligou para sua mãe. Ruth não conseguiu esconder sua satisfação quando ouviu as boas novas do filho, mas ela não lhe disse que não estava surpresa.

— Você deve comemorar — disse ela. Fletcher o teria feito, mas sentiu que era melhor não fazê-lo ao ver quem aparecia como o último da classe.

Na assembleia geral escolar, na manhã de sábado, orações foram oferecidas pelo capelão "pelo nosso invicto time de futebol, que jogou apenas para a glória de Nosso Senhor". O nome de cada jogador era, então, garantido pelo de Nosso Senhor e perguntava-se se Seu Espírito Santo poderia ser aplicado a todos e a cada um deles.

O diretor, obviamente, não tinha dúvidas sobre qual time Deus estaria apoiando na tarde de sábado.

Na Hotchkiss, tudo era decidido pela hierarquia, até mesmo o lugar dos meninos entre a torcida organizada. Durante o primeiro semestre, os alunos do preparatório foram relegados ao último lugar no campo, de modo que os dois meninos se sentaram no canto direito da arquibancada, todos os sábados seguintes, e assistiram aos seus heróis encompridarem a corrida imbatível da estação, um recorde que eles compreenderam que a Taft também apreciou.

Quando a partida da Taft caiu num fim de semana de ir para casa, os pais de Jimmy convidaram Fletcher para acompanhá-los num piquenique na carroceria do carro*, antes do chute inicial. Fletcher não contou isso para nenhum dos outros colegas do preparatório, porque sentiu que eles ficariam enciumados. Já era ruim o suficiente ser o melhor da classe, quanto mais ser convidado para assistir ao jogo da Taft, com um estudante mais antigo, que se sentava na linha do centro.

 

* Piqueniques que costumam acontecer em ocasiões especiais, quando todos os apetrechos são colocados na carroceria aberta do carro ou caminhonete, e não na grama, como de praxe. (N.T.)

 

— Como é seu pai? — perguntou Jimmy, depois de apagar as luzes, na noite anterior à partida.

— Ele é o máximo — disse Fletcher — mas devo adverti-lo de que ele é um homem da Taft e republicano. E como é o seu pai? Nunca conheci um senador antes.

— Ele é um político desde o dedão do pé, ou pelo menos é assim que a imprensa o descreve — disse Jimmy. — Não que eu tenha muita certeza do que isso queira dizer.

Na manhã do jogo, ninguém era capaz de se concentrar durante a aula de química, a despeito do entusiasmo do Sr. Bailey para testar os efeitos do ácido sobre o zinco, que não arrefeceu nem pelo fato de Jimmy ter apagado o gás na hora "H", de forma que o Sr. Bailey não pôde sequer ver os acendedores Bunsen funcionando.

— Ao meio-dia, um sino tocou liberando trezentos e oitenta meninos, aos berros, para dentro do estádio. Eles pareciam nada menos do que uma tribo em guerra, com seus gritos repetidos de "A Hotchkiss, a Hotchkiss, a Hotchkiss vai ganhar; morte a todos os calouros!".

Fletcher correu todo o trajeto até o ponto de reunião para ir ao encontro de seus pais, quando os carros e táxis vinham pelos atalhos depois do lago. Fletcher verificou cada veículo, procurando sua mãe e seu pai.

Andrew, meu querido, como vai você? — foram as primeiras palavras de sua mãe assim que pisou fora do automóvel.

— Fletcher, sou Fletcher, da Hotchkiss — murmurou ele, desejoso de que nenhum dos outros meninos tivesse ouvido a palavra "querido". Depois sacudiu as mãos de seu pai, antes de acrescentar: — Temos de ir para o campo agora mesmo, porque fomos convidados a nos juntarmos ao senador e a Sra. Gates, para um almoço na carroceria do automóvel.

O pai de Fletcher levantou uma sobrancelha.

— Se me lembro corretamente, o senador Gates é um democrata — disse ele com um ar de desdém.

— E um ex-capitão de futebol da Hotchkiss — disse Fletcher. — O filho dele, Jimmy, e eu estamos na mesma classe, e ele é o meu melhor amigo; portanto, mamãe, você faria muito bem se se sentasse ao lado do senador e, se você não se sentir bem com isso, papai pode se sentar no outro lado do campo, com os torcedores da Taft.

— Não, acho que vou me acomodar ao lado do senador. Será muito engrandecedor estar sentado ao lado dele quando a Taft fizer o touchdown.*

 

* Gol que vale 6 pontos no futebol americano. A jogada mais importante da partida. (N.T.)

 

Era um dia claro e outonal e os três caminharam o percurso todo, até o campo, através do carpete dourado de folhas. Ruth tentou segurar a mão do menino, mas Fletcher ficou longe o suficiente para impedi-la. Bem antes que atingissem o campo, podiam ouvir a gritaria do jogo.

Fletcher descobriu que Jimmy estava atrás de uma perua Oldsmobile, com sua carroce ria aberta, coberta pela comida mais suntuosa que qualquer outra coisa que ele já houvesse visto nos últimos dois meses. Um homem alto e elegante caminhou para a frente.

— Olá, sou Harry Gates! — O senador estendeu sua mão de político para dar as boas-vindas aos pais de Fletcher.

O pai de Fletcher agarrou a mão estendida.

— Bom-dia, senador. Sou Robert Davenport e esta é minha esposa, Ruth.

— Pode chamar-me de Harry. Esta é Martha, minha primeira esposa. O Sr. Gates andou para a frente para receber os dois.

— Eu a chamo de minha primeira esposa; bem, isso a mantém em pé.

— Gostariam de beber alguma coisa? — perguntou Martha, sem rir da piada que já tinha ouvido tantas vezes.

— Seria melhor que andássemos depressa — disse o senador, olhando para o relógio — isto é, se ainda queremos comer antes do chute inicial. Deixe-me servi-la, Ruth, e deixaremos seu marido se virar sozinho. Posso sentir o cheiro de um republican o a cem passos de distância!

— Tenho receio de que seja pior do que isso — disse Ruth.

— Não me diga que ele é um velho calouro, porque estou pensando em transformar este fato numa ofensa capital neste Estado!

Ruth concordou.

— Então, Fletcher, é melhor você vir e falar comigo, porque pretendo ignorar seu pai.

Fletcher estava envaidecido pelo convite e logo começou a elogiar o senador sobre seus trabalhos no Legislativo de Connecticut.

— Andrew — disse Ruth.

— Fletcher, mãe!

— Fletcher, você não acha que o senador talvez gostasse de falar de outros assuntos que não a política?

— Não, está bem assim, Ruth — assegurou-lhe Harry. — Os eleitores raramente perguntam sobre estas questões intestinas, e eu gostaria muito que isso sensibilizasse o Jimmy.

Depois que o almoço terminou e tudo havia sido guardado, o grupo caminhou depressa por entre os torcedores, sentando-se minutos antes de o jogo começar.

Os assentos eram melhores do que qualquer aluno do preparatório podia sonhar, mas, por isso, o senador Gates não havia perdido as pontuações da Taft desde sua formatura. Fletcher não podia conter sua excitação e quando o relógio no placar quase encostou no marco dois, atravessou com o olhar a arquibancada agitada pelos gritos repetidos do inimigo dizendo:

— Dê-me um T, dê-me um A, dê-me um F... — e se apaixonou.

Os olhos de Nat fixaram-se no rosto da jovem que portava a letra A.

— Nat é o garoto mais esperto da nossa classe — disse Tom ao pai de Nat.

Michael sorriu.

— Bem justinho ali — disse Nat um pouco defensivamente. — Não se esqueça de que eu bati Ralph Elliot por um ponto apenas.

— Tenho curiosidade de saber se ele é o filho de Max Elliot — disse o pai de Nat quase para si mesmo.

— Quem é Max Elliot?

— Em meu trabalho, ele é conhecido como um risco inaceitável.

— Por quê? — perguntou Nat.

Mas seu pai não se expandiu muito sobre a afirmativa e ficou aliviado quando o filho se distraiu com as líderes das torcidas, que tinham pompons azuis e brancos amarrados em seus punhos e estavam desempenhando seu ritual de dança. Os olhos de Nat pousaram um segundo sobre a garota da esquerda, que parecia estar sorrindo para ele, ainda que ele compreendesse que, para ela, ele só poderia ser um fantasma por trás da arquibancada.

— Você cresceu, se não me engano — disse o pai de Nat, percebendo que as calças do filho já estavam 2,5 centímetros mais curtas, acima dos sapatos. Ele só se perguntava quão frequentemente teria de comprar-lhe roupas novas.

— Bem, isso não pode ser responsabilidade da comida da escola — sugeriu Tom, que ainda era o menino menor da classe.

Nat não respondeu. Seu olhar permaneceu no grupo das líderes das torcidas.

— Por qual delas você se apaixonou? — perguntou Tom, dando um tapa no braço de seu amigo.

— O quê?

— Você me ouviu da primeira vez.

Nat voltou-se para que seu pai não pudesse entreouvir sua resposta.

— A segunda da esquerda, com a letra A na blusa.

— Diane Coulter — disse Tom, feliz por descobrir que conhecia alguma coisa que seu amigo não.

— Como é que você sabe o nome dela?

— Porque ela é irmã de Dan Coulter.

— Mas ele é o jogador mais feio do time — disse Nat. — Ele tem orelhas de abano e um nariz adunco.

— E assim seria com Diane se ela tivesse jogado no time toda semana pelos últimos cinco anos — disse Tom com uma gargalhada.

— O que mais você sabe sobre ela? — perguntou Nat, de modo conspirador, ao seu amigo.

— Oh, é assim tão sério? — disse Tom.

Era a hora de Nat dar um tapa em seu amigo.

— Estamos tendo de reverter à violência física, não estamos? Isso não chega a ser parte do código da Taft — acrescentou Tom. — Bata num homem com a força do seu argumento, não com a força do seu braço. Oliver Wendell Holmes, se me lembro corretamente.

— Oh, por favor, pare de ficar ranhetando e simplesmente responda à pergunta — disse Nat.

— Para ser honesto, não sei muito mais a respeito dela. Tudo que me lembro é que ela vai para Westover e é ponta-direita do time de hóquei.

— O que você está murmurando? — perguntou o pai de Nat.

— Dan Coulter — disse Tom, sem perder nada. — É um dos corredores lá de trás. Eu estava justamente dizendo ao Nat que ele come oito ovos no café da manhã.

— Como é que você sabe disso? — perguntou a mãe de Nat.

— Porque um deles é sempre meu — disse Tom.

Quando seus pais se escancararam de tanto rir, Nat continuou a olhar fixamente para a letra A da Taft. Era a primeira vez que ele notava, de fato, uma garota. Sua concentração foi distraída por um súbito barulho, pois todo mundo do seu lado do estádio levantou-se para aplaudir o time da Taft que corria para o campo.

Momentos mais tarde, os jogadores da Hotchkiss apareceram do outro lado do estádio e, tão entusiasticamente quanto seus torcedores, pularam no chão.

Fletcher estava se levantando, mas seus olhos permaneceram fixos na líder da torcida com um A na blusa. Ele sentiu-se culpado pelo fato de primeira garota pela qual ele se apaixonara ser uma torcedora da Taft. Não parece que você estivesse concentrado no seu time — disse o senador inclinando-se sobre ele e falando ao ouvido de Fletcher.

— Oh, sim, estou, senhor — disse Fletcher, voltando sua atenção imediatamente para os jogadores da Hotchkiss, enquanto eles começavam a se aquecer.

Os capitães dos dois times corriam através do campo para se juntarem ao juiz que estava esperando por eles na linha, a cento e cinquenta metros. A "zebra" jogou uma moeda de prata para o ar, que brilhou sob o sol da tarde, caindo sobre a lama. Os calouros, na linha de fundo, aplaudiram uns aos outros quando viram "o perfil de Washington".

— Ele deveria ter chamado os cabeças — disse Fletcher.

Nat continuava de olhos fixos quando Diane subiu para perto das torcedoras. Ele se perguntava como faria para conhecê-la. Não ia ser fácil. Dan Coulter era um deus.

Como podia um aluno novo ter a esperança de escalar até o Olimpo?

— Boa corrida! — berrou Tom.

— Quem?

— Coulter, é claro! Ele acaba de sofrer a primeira baixa.

— Coulter?

— Não me diga que você ainda estava de olho na irmã dele quando os "beijoqueiros"* afundaram?

 

*Kissies — Apelido e trocadilho carinhoso com os jogadores da Hotchkiss. (N.T.)

 

— Não, eu não estava.

— Então você será capaz de me dizer quantos metros nós ganhamos — disse Tom, olhando par a seu amigo. — Foi o que pensei. Você não estava nem olhando para o jogo.

Deixou escapar um suspiro exagerado.

Tenho para mim que o time acabou por colocá-lo nesse estado lamentável.

— O que é que você quer dizer com isso?

— Tenho de dar um jeito de conseguir-lhe um encontro.

— Você pode fazer isso?

— Claro, o pai dela é o representante local de venda de automóveis, e sempre compram os nossos carros com ele; portanto, você só terá de vir passar uns dias comigo, durante os feriados.

Tom não ouviu se seu amigo aceitou o convite, porque sua resposta foi abafada por outro estrondo dos torcedores da Taft quando os calouros interceptaram.

Quando um apito anunciou o final do primeiro quarto, Nat deixou escapar a maior alegria, esquecendo que seu time estava na pior. Permaneceu sentado, na esperança de que a garota com cabelos encaracolados e o sorriso mais cativante simplesmente o notasse. Mas como poderia ela, se ele se levantou e se sentou energicamente, encorajando os torcedores da Taft a gritarem ainda mais alto?

O apito para o início do segundo quarto aconteceu prontamente, e quando "A" desapareceu atrás dos torcedores, para ser encoberta por trinta pesados homens musculosos, Nat relutantemente decidiu ficar em seu lugar e fingiu concentrar-se no jogo.

— Pode me emprestar seus binóculos, senhor? — perguntou Fletcher ao pai de Jimmy, no intervalo.

— Naturalmente, meu filho — disse o senador, passando-os para ele.

— Devolva-os quando o jogo recomeçar.

Fletcher não notou a insinuação na voz do seu anfitrião quando focou sobre a garota com o A na blusa e desejou que ela voltasse o rosto na direção oposta mais vezes.

— Em qual delas você está interessado? — sussurrou o senador.

— Eu estava apenas checando os Tafties*, senhor.

 

*Jogadores da Taft — Apelido carinhoso. (N.T.)

 

— Acho que eles ainda não voltaram para o campo — disse o senador. Fletcher ficou vermelho. — T, A, F ou T? — inquiriu o pai de Jimmy.

— A, senhor — admitiu Fletcher.

O senador retomou os binóculos, focou-os sobre a segunda garota da esquerda e esperou que ela se virasse.

— Aprovo sua escolha, meu jovem, mas o que é que você pretende fazer a respeito?

— Não sei, senhor — disse Fletcher, sem graça. — Para ser honesto, nem sequer sei seu nome.

— Diane Coulter — disse o senador.

— Como é que o senhor sabe disso? — indagou Fletcher, perguntando-se se os senadores sabiam todas as coisas.

— Pesquisa, meu filho. Eles ainda não lhe ensinaram isso na Hotchkiss?

Fletcher parecia perplexo.

— Tudo que você precisa saber está na página 11 do programa — acrescentou o senador, enquanto passava o livreto adiante.

A página 11 havia sido dedicada aos torcedores que apoiavam cada escola.

— Diane Coulter — repetiu Fletcher, olhando para a foto.

Ela era um ano mais jovem do que Fletcher — as mulheres ainda admitem a idade aos treze anos — e ela também tocava violino na orquestra da escola.

Como ele desejaria ter acatado as sugestões de sua mãe e ter aprendido a tocar piano !

Depois de ganhar com a maior dificuldade, metro após metro, a Taft finalmente cruz ou a linha e tomou a frente. Engenhosamente, Diane reapareceu na linha demarcatória para desempenhar sua rotina, cheia de energia.

— Entendi mal — disse Tom. — Acho que vou ter de apresentar vocês.

— Você realmente a conhece? — disse Nat, duvidando.

— É lógico! — disse Tom. — Temos ido às mesmas festas desde que tínhamos dois anos de idade.

— Será que ela tem um namorado? — disse Nat.

— Como posso saber? Por que você não vem passar uma semana conosco, durante as férias, e aí deixa o resto por minha conta!

— Você faria isso?

— Isso vai lhe custar...

— O que você está planejando?

— Tenha a certeza de ter terminado todas as suas obrigações até o feriado antes de sair, e então não vou me preocupar em checar duas vezes os acontecimentos.

— Negócio feito! — disse Nat.

O apito soou para o terceiro quarto de tempo, e depois de uma série de passes brilhantes foi a vez de a Hotchkiss chegar à zona final, colocando-se de volta na frente, o que eles mantiveram até o final do terceiro quarto.

— Alô, Taft, alô, Taft, você está de volta ao lugar que lhe pertence — Cantou, desafinado, o senador, enquanto os times se retiravam.

— Ainda temos um quarto pela frente — lembrou Fletcher ao senador, enquanto seu anfitrião passava-lhe os binóculos.

— Você já decidiu qual o lado que está apoiando, meu rapaz, ou já ficou envolvido pela M

ata Hari dos tafties?

Fletcher parecia confuso. Ele teria de descobrir quem fora Mata Hari assim que voltasse ao seu quarto.

— Ela provavelmente mora nessa área — Continuou o senador — Caso em que um membro da minha equipe precisará de dois minutos para descobrir tudo que você precisa saber sobre ela.

— Até mesmo o endereço e o número do telefone dela? — perguntou Fletcher.

— Até mesmo se ela tem ou não um namorado — respondeu o senador.

— Não estaria o senhor abusando da sua posição? — perguntou Fletcher.

— Com toda a certeza eu estaria — respondeu o senador Gates — mas aí qualquer político faria o mesmo se ele sentisse que poderia assegurar mais dois votos para a próxima eleição.

— Mas isso não resolve o problema de eu conhecê-la enquanto estou parado aqui em Farmington.

— Isso também pode ser resolvido se você vier passar alguns dias conosco, depois do Natal, e aí eu terei a certeza de que ela e os pais dela sejam convidados para alguma função no Capitólio.

— O senhor faria isso por mim?

— Claro que farei, mas em algum momento você terá de aprender sobre trocas, se vai negociar com um político.

— O que é uma troca? — perguntou Fletcher. — Eu farei qualquer coisa.

— Nunca admita isso, meu rapaz, porque isso coloca você, imediatamente, numa posição mais fraca na barganha. Mas tudo que quero em troca nesse momento é que você faça com que Jimmy abandone a posição de último da classe. Esta será sua parte na troca.

— Negócio fechado, senador — disse Fletcher, apertando-lhe a mão.

— É bom ouvir isso — disse o senador — porque Jimmy parece bastante desejoso de seguir sua liderança, apenas.

Fora a primeira vez que alguém sugerira que Fletcher pudesse ser um líder. Até aquele momento isso não havia sequer passado pela sua cabeça. Ele pensou sobre as palavras do senador e, com isso, deixou de perceber que a Taft havia ganho o touchdown, até que Diane correu para os torcedores e começou o ritual que, infelizmente, lembrava uma cerimônia de vitória. Não haveria um dia de folga extra este ano!

No outro lado do estádio, Nat e Tom estavam na entrada do vestiário, junto com uma multidão de partidários da Taft que, com uma exceção apenas, estavam esperando para aplaudir seus heróis. Nat cutucou seu amigo nas costelas quando ela saiu. Tom deu imediatamente um passo à frente.

— Oi, Diane — disse ele, não esperando por uma resposta, acrescentou: — Quero que você conheça o meu amigo Nat. De fato, na verdade ele é que gostaria de conhecer você.

Nat enrubesceu, e não apenas porque tivesse pensado que Diane era ainda mais bonita do que na foto.

— Nat mora em Cromwell — acrescentou Tom, querendo ajudar — mas ele virá passar uns dias conosco depois do Natal, assim você poderá conhecê-lo melhor na ocasião.

Nat só tinha convicção de uma coisa: a carreira escolhida por Tom não estava destinada a o corpo diplomático.


8

 

 


NAT ESTAVA SENTADO à sua escrivaninha, tentando concentrar-se sobre a Grande Depressão. Conseguiu fazê-lo até a metade da página, mas descobriu que sua mente estava dispersa. Ele se via no rápido encontro que havia tido com Diane, e uma vez mais, e mais outra. Ele não se demorara porque ela mal dissera uma palavra antes que seu pai viesse juntar-se a eles e sugerira que fossem embora.

Nat havia recortado a fotografia dela de um programa de futebol americano e a carregava consigo para todos os lados. Ele estava começando a desejar ter apanhado pelo menos três programas, porque a pequena foto estava já muito surrada. Havia tele fonado para Tom no dia seguinte ao jogo, com a desculpa de discutirem a quebra da Wall Street, e aí, casualmente, saiu-se com essa: — Diane disse alguma coisa a meu respeito depois que fomos embora?

— Ela achou que você era muito certinho.

— Nada mais?

— O que mais poderia ela dizer? Vocês só tiveram dois minutos antes que seu pai o arrancasse dali!

— Ela gostou de mim?

— Ela achou que você era muito certinho e, se me lembro corretamente, disse alguma coisa sobre James Dean.

— Não, ela não disse isso, disse?

— Não, você tem razão, ela não disse.

— Você é um chato!

— Verdade, mas um chato com um número de telefone...

— Você tem o número do telefone dela? — perguntou Nat, sem acreditar. — Você aprende depressa.

— Qual é?

Você terminou aquele ensaio sobre a Grande Depressão?

Não completamente, mas vou terminá-lo até o fim da semana; portanto, espere um minuto enquanto eu pego um lápis. Nat anotou o número atrás da fotografia de Diane.

Você acha que ela ficará surpresa se eu lhe der um telefonema?

— Acho que ela ficará surpresa se você não telefonar.

— Oi, sou Nat Cartwright, acho que você não se lembra de mim.

— Não, não me lembro. Quem é você?

— Sou a pessoa que você conheceu depois do jogo da Hotchkiss e pensou que se parecia com James Dean.

Nat deu uma olhada no espelho. Ele nunca havia se preocupado com sua aparência antes. Será que ele realmente se parecia com James Dean?

Passaram-se mais uns dois dias e vários outros treinamentos antes que Nat tivesse a coragem de discar o número dela. Uma vez completado o ensaio sobre a Grande Depressão, ele preparara uma lista de perguntas que variavam de acordo com quem atendesse o telefone. Se fosse o pai dela, ele diria: "Bom-dia, senhor, meu nome é Nat Cartwright.

Poderia falar com sua filha?" Se fosse a mãe dela, diria: "Bom-dia, Sra. Coulter, meu nome é Nat Cartwright. Poderia falar com sua filha, por gentileza?" Se Diane atendesse o telefone, ele havia preparado dez perguntas, numa ordem lógica. Colocou três folhas de papel sobre a mesa na sua frente, deu um suspiro profundo e cuidadosamente discou os números. Deu sinal de ocupado. Talvez ela estivesse falando com outro rapaz. Teria ela segurado já a mão dele, quem sabe o houvesse beijado? Seria ele uma companhia regular? Quinze minutos depois, telefonou outra vez. Ainda ocupado. Teria outro candidato telefonado no intervalo? Desta vez ele esperou dez minutos antes de telefonar de novo. No momento em que ouviu o som da Chamada, sentiu seu coração batucando no peito e desejou colocar o fone no gancho, de imediato. Ficou olhando para sua lista de perguntas. O som de chamada parou. Alguém atendeu o telefone.

Alô — disse uma voz profunda. Ninguém precisava dizer que era Dan Coulter.

Nat derrubou o telefone no chão. Certamente deuses não respondem ao telefone. E, de qualquer maneira, ele não havia preparado nenhuma pergunta para o irmão de Diane.

Precipitadamente, apanhou o fone do chão e colocou-o de volta no gancho.

Nat releu seu ensaio antes de telefonar uma quarta vez. Por fim, uma voz feminina respondeu.

— Diane?

— Não, é a irmã dela, Tricia — disse a voz que soava mais velha. — Diane está fora nesse momento, mas estou esperando que volte em uma hora. Quem devo dizer que chamou?

— Nat — respondeu ele — você poderia dizer que eu chamarei novamente, daqui um a hora, mais ou menos?

— Claro — disse Tricia.

— Obrigado — disse Nat, e colocou o telefone no gancho. Ele não tinha nenhuma pergunta ou respostas preparadas para uma irmã mais velha.

Nat deve ter olhado umas sessenta vezes para o relógio de pulso durante a hora seguinte, mas ele ainda acrescentou outros quinze minutos antes de rediscar o número.

Ele havia lido na revista Adolescentes: "Se você gosta de uma garota, não aparente muita ansiedade, isso a afastará." O telefone foi finalmente atendido.

— Alô — disse uma voz mais jovem. Nat deu uma olhada em suas anotações.

— Alô, poderia falar com Diane?

— Oi, Nat, é a Diane. Tricia me disse que você telefonou. Como vai você? "Como vai você" não estava nas anotações.

— Estou bem — Conseguiu ele, finalmente, responder —, como vai você?

— Também estou bem — respondeu ela, o que foi seguido por outro longo silêncio, enquanto Nat procurava por uma pergunta apropriada.

— Estou indo para Simsbury na próxima semana, passar uns dias com Tom — leu num tom monocórdio.

— Isso é ótimo! — respondeu Diane. — Então espero que possamos nos esbarrar um dia por aí.

No texto, com certeza, não havia nada sobre esbarrar um no outro. Ele tentou ler todas as dez perguntas de uma só vez.

— Você ainda está aí, Nat? — perguntou Diane.

— Alguma esperança de ver você enquanto estiver em Simsbury? — pergunta número nove.

— Claro, naturalmente — disse Diane. — Isso seria ótimo!

— Até logo — disse Nat, olhando para a pergunta número dez.

Durante o resto da tarde, Nat tentou se lembrar dos detalhes da conversa, e até a escreveu, linha por linha. Sublinhou as palavras dela três vezes — sim, é claro, isso seria ótimo. Como ainda havia quatro dias antes que ele estivesse pronto para visitar tom, ele ficou se perguntando se deveria chamar Diane novamente — só para confirmar. Voltou à revista Adolescentes para procurar seus conselhos, pois eles pareciam antecipar todos os seus problemas prévios. A Adolescentes não o ajudou em nada sobre telefonar uma segunda vez, mas sugeriu que, em se tratando de uma primeira vez, ele se vestisse de maneira casual, ficasse relaxado e, sempre que tivesse a chance de falar sobre outra menina, ele o fizesse. Ele nunca tinha estado com outra garota antes e, pior, ele não tinha roupas "casuais", a não ser uma camisa xadrez que havia escondido nos fundos de uma gaveta, meia hora depois de comprá-la. Nat pesquisou entre os seus documentos para ver quanto dinheiro havia economizado — sete dólares e vinte centavos — e perguntou-se se aquilo era suficiente para comprar uma nova camisa e calças "casuais". Se pelo menos ele tivesse um irmão mais velho...

Ele fez as finalizações no seu ensaio umas horas antes que seu pai o levasse até Simsbury.

Como eles viajassem para o Norte, Nat ficou se perguntando por que não havia volta do a telefonar para Diane e marcado um local e uma hora em que ia encontrá-la.

Ela deve ter ido embora — decidiu ficar com um amigo ou um namorado. Será que os pais de tom se incomodariam se ele pedisse para usar o telefone no momento em que chegasse?

— Ó meu Deus! — disse Nat tão logo o pai entrou com o carro numa volta da estrada e dirigiu até um haras cheio de cavalos. O pai de Nat o teria punido severamente por haver blasfemado, mas de alguma forma aquilo o pegou desprevenido. O caminho deve ter-se esticado por mais de um quilômetro e meio antes que virassem num pátio de cascalho para serem saudados pela mais magnificente casa colonial com colunas, rodeada de um verde permanente.

— Oh meu Deus! — disse Nat pela segunda vez.

Desta vez o pai chamou-lhe a atenção.

— Desculpe, papai, mas Tom nunca mencionou que morava num palácio.

— E por que ele o faria — respondeu o pai — quando é tudo que ele sempre conheceu? Por falar nisso, ele não é o seu amigo mais chegado por causa do tamanho da sua casa; e se ele tivesse sentido que era necessário impressioná-lo, ele já o teria mencionado tempos atrás. Você sabe o que o pai dele faz? Porque uma coisa é certa, ele não vende seguros de vida.

— Acho que ele é banqueiro.

— Tom Russell, naturalmente. O Banco Russell — disse seu pai assim que eles desceram na frente da casa.

Tom estava esperando no degrau mais alto para saudá-los.

— Boa-tarde, senhor, como está? — perguntou ele enquanto abria a porta do lado do motorista.

— Estou bem, obrigado, Tom — respondeu Michael Cartwright enquanto seu filho pul ava para fora do automóvel, agarrando uma pequena mala surrada com as iniciais M. C. impressas ao lado da fechadura.

— O senhor se importaria de juntar-se a nós para um drinque, senhor?

— Muito simpático de sua parte — disse o pai de Nat — mas minha esposa está à minha espera para o jantar, de maneira que é melhor que eu tome meu caminho de volta.

Nat acenou enquanto seu pai circundou o pátio e começou sua viagem para Cromwell.

Nat olhou para a casa e viu o mordomo em pé no degrau mais alto da escada. Ele se ofereceu para levar-lhe a mala, mas Nat agarrou-se a ela, sendo acompanhado até em cima por uma larga e magnífica escada circular para o segundo andar, enquanto um dos quartos de hóspedes lhe era apresentado. Na casa de Nat eles tinham apenas um quarto de sobra, que teria passado por armário de vassouras nesta casa. Assim que o mordomo o deixou, Tom disse: — Quando você houver tirado suas coisas da mala, desça e venha conhecer minha mãe. Estaremos na cozinha.

Foram necessários três minutos para Nat desempacotar as coisas que trouxera, pois tu do que tinha eram duas camisas, um par de calças e uma gravata. Ele levou um tempo considerável examinando o banheiro, antes que, finalmente, experimentasse a cama, pulando nela. Ela era tão macia... Esperou mais uns minutos, antes de deixar o quarto, para descer correndo a larga escada perguntando-se se seria capaz de encontrar a cozinha. O mordomo estava esperando na base da escada e acompanhou-o ao longo do corredor. Nat deu uma olhada de relance para cada peça pela qual passava.

— Oi? — disse Tom. — Tudo bem em seu quarto?

—Está ótimo — disse Nat, na certeza de que seu amigo não estava sendo sarcástico.

— Mamãe, este é o Nat. Ele é o menino mais inteligente da classe, o maldito!

— Por favor, não xingue, Tom! — disse a Sra. Russell. — Olá, Nat, que bom conhecer você.

—Boa-tarde, Sra. Russell, é muito bom conhecê-la também. Que casa adorável a senhora tem.

— Obrigada, Nat, e nós estamos deleitados em saber que você pôde vir juntar-se a nós por uns dias. Posso oferecer-lhe uma Coca-Cola?

— Sim, por favor.

Uma empregada uniformizada foi diretamente à geladeira, apanhou a Coca e acrescentou gelo.

— Obrigado — repetiu ele enquanto olhava a empregada voltar para a pia e continuar cortando batatas. Ele pensou em sua mãe, lá em Cromwell. Ela também estaria cortando batatas, mas isso depois de um dia inteiro dando aulas.

— Gostaria que eu lhe mostrasse as redondezas? — perguntou Tom.

— Parece ótimo — disse Nat — mas será que antes eu poderia dar um telefonema?

— Você não vai precisar; Diane já telefonou.

— Ela já telefonou?

— Isso, telefonou esta manhã, para perguntar a que horas você estaria chegando. Ela implorou que eu não lhe dissesse nada; portanto, podemos presumir que ela esteja interessada.

— Então seria melhor que eu ligasse imediatamente.

— Não, isso é a última coisa que você deve fazer! — disse Tom.

— Mas eu disse que ia.

— Sim, sei que você disse, mas acho que vamos caminhar aqui em volta, primeiro.

Quando a mãe de Fletcher o deixou na casa do senador e da Sra. Gates, em East Hartford, foi Jimmy quem atendeu a porta.

— Agora, não se esqueça de se dirigir sempre ao Sr. Gates como senador ou senhor.

— Sim, mamãe.

— E não o incomode com muitas perguntas.

— Não, mamãe.

— Lembre-se de que uma conversa conduzida por duas pessoas deve ser cinquenta por cento falando e cinquenta por cento ouvindo.

— Sim, mamãe.

— Olá, Sra. Davenport, como vai? — perguntou Jimmy, ao abrir a porta para cumprimentá-la.

— Estou bem, obrigada, Jimmy, e você?

— Ótimo! Receio que mamãe e papai estejam fora, em algum compromisso, mas eu poderia oferecer-lhe uma xícara de chá?

— Não, obrigada, tenho de voltar a tempo de coordenar uma reunião do Hospital Trust, mas, por gentileza, transmita meus melhores votos aos seus pais.

Jimmy carregou uma das malas de Fletcher para o quarto de hóspedes no andar de cima.

— Coloquei você no quarto ao lado do meu — disse ele — o que significa que teremos de dividir o mesmo banheiro.

Fletcher colocou sua outra mala sobre a cama antes de examinar os quadros nas paredes — gravuras sobre a Guerra Civil, só para o caso de algum sulista aparecer para ficar e ter-se esquecido de quem foi que ganhou. Eles recomendaram a Jimmy que perguntasse ao Fletcher se havia concluído seu ensaio sobre Lincoln.

— Sim, mas você descobriu qual é o número do telefone de Diane?

— Fiz melhor do que isso. Descobri a que café ela vai quase todas as tardes Então pensei que deveríamos passar por lá, casualmente, digamos que em torno das cinco, e se isso falhasse, meu pai convidou os pais dela para uma recepção no Capitólio amanhã à tarde.

— Mas será que eles vão?

— Chequei a lista dos convidados e eles aceitaram.

Fletcher lembrou-se, de repente, do compromisso de troca que ele fizera com o senador.

— Quanto você já fez do seu dever de casa? — Nem sequer comecei — admitiu Jimmy.

— Jimmy, se não obtiver um grau suficiente para passar no próximo semestre, você será posto em dependência, e, aí, não vou poder ajudá-lo.

— Eu sei, mas também estou avisado do trato que você combinou com meu pai. Então, para que eu possa mantê-lo, amanhã pela manhã será a primeira coisa em que nós vamos começar a trabalhar.

— Sim, senhor — disse Jimmy, estalando os dedos em sinal de atenção.

— Mas antes que nos preocupemos com o amanhã, talvez você devesse trocar de roupa — acrescentou.

Fletcher tinha colocado meia dúzia de camisas na mala e uns dois pares de calças, mas ainda não tinha a menor ideia do que vestir no seu primeiro encontro. Estava a fim de seguir as sugestões do seu amigo quando Jimmy disse: — Assim que você tiver desfeito as malas, por que não desce e se junta a nós na sala de visitas? O banheiro fica no fim do corredor.

Fletcher mudou rapidamente as roupas pela camisa e as calças que comprara na véspera de um alfaiate local recomendado por seu pai. Examinou-se num espelho alto.

Ele não tinha nenhuma ideia de sua aparência, porque ele nunca fora vaidoso antes. Aja de forma casual, pareça inteligente — ele teria ouvido de um disc jockey falando para sua audiência no rádio; mas o que será que aquilo queria dizer? Ele se preocuparia com aquilo mais tarde. Enquanto Fletcher descia as escadas, podia ouvir as vozes que vinham do cômodo da frente, sem reconhecer uma delas.

— Mamãe, você se lembra do Fletcher? — disse Jimmy quando seu amigo caminhou pela sala.

Sim, é claro. Meu marido nunca deixa de dizer a todos sobre a conversa fascinante que você e ele tiveram no dia do jogo da Taft.

— Simpático ele se lembrar disso — disse Fletcher sem olhar para ela.

— E sei que ele está esperando pelo momento de revê-lo.

— Isso é simpático da parte dele — disse Fletcher novamente.

— E esta é minha irmã caçula, Annie — disse Jimmy.

Annie enrubesceu, e não apenas porque ela detestasse ser descrita por Jimmy como sua irmã caçula: seu amigo não tinha tirado os olhos de cima dela desde o instante em que entrara na sala.

— E em qual personagem você se imagina? — perguntou o senador.

— Eu poderia ser Mercúcio.

— Não — disse Harry Gates — você só pode ser Mercúcio se ele começar a perseguir Diane.

— Não entendo.

— Pergunte ao Fletcher. Ele vai explicá-lo a você.

9


BOA-TARDE, Sra. Coulter, muito prazer em conhecê-la e ao seu marido; esta deve ser sua filha Diane, se me lembro corretamente. O Sr. e a Sra. Coulter estavam bem impressionados porque eles nunca haviam sido apresentados ao senador, e não apenas seu filho havia marcado os pontos e vencido o touchdown contra a Hotchkiss, mas eles também estavam registrados como republicanos.

— Agora, Diane — Continuou o senador — tenho alguém que quero que você conheça.

Os olhos de Harry Gates varreram a sala, procurando por Fletcher, que tinha estado sentado ao seu lado até um minuto atrás.

— Estranho — disse ele — mas você não pode sair antes de conhecê-lo. Caso contrário eu não terei cumprido com a minha parte no trato — adicionou, sem explicação.

— Onde foi que o Fletcher se meteu? — perguntou Harry Gates ao seu filho tão logo os Coulter se juntaram aos demais convidados.

— Se você puder avistar Annie, não vai encontrar Fletcher muito mais atrás; ele não saiu do lado dela desde que chegou a Hartford. Na verdade, estou pensando em comprar-lhe uma coleira de cachorro e chamá-lo de Fletch.

— É mesmo? — disse o senador. — Espero que isso não o deixe pensar que está liberado do nosso compromisso.

— Não, ele não pensa — disse Jimmy. — De fato, estudamos Romeu e Julieta por duas horas esta manhã, e adivinhe com quem ele se acha parecido...

O senador sorriu.

Tricia abriu a porta. Estava vestida para uma partida de tênis.

— Diane está? — perguntou Nat.

— Não, ela foi a uma festa no Capitólio com meus pais. Deverá estar de volta daqui a uma hora. Sou Tricia, antes que me esqueça. Falei com você ao telefone. Eu estava indo buscar uma Coca. Não quer me acompanhar?

— Seu irmão está em casa?

— Não, ele está treinando na academia de ginástica.

— Gelo?

— Sim, por favor.

Tricia foi mostrando a Nat o caminho até a cozinha, apontando-lhe um banquinho do outro lado da mesa. Nat sentou-se e não disse nada quando Tricia abriu a porta da geladeira. Quando ela se inclinou para retirar as duas Cocas, sua saia-short levantou. Ele não pôde deixar de ficar olhando para as calcinhas dela.

— A que horas você espera que eles voltem? — perguntou ele enquanto ela acrescentava algumas pedras de gelo ao refrigerante.

— Não tenho ideia; então, por enquanto você está preso aqui comigo. Nat tomou um gole de refrigerante, não muito certo do que dizer, porque se lembrou de que ele e Diane haviam combinado assistir a To Kill a Mockingbird*.

 

* O sol é para todos (Robert Mulligan, 196¨2) (N.T.)

 

— Não sei o que você vê nela — disse Jimmy.

— Ela tem tudo que lhe falta — disse Fletcher, sorrindo. — Ela é brilhante, bonita, agradável de se estar com ela e...

— Tem certeza de que estamos falando de minha irmã?

— Claro, o que significa que você é a pessoa que está precisando usar óculos.

— Por falar nisso, Diane Coulter acabou de chegar com os pais dela. Papai quer saber se você ainda está interessado em conhecê-la.

— Não particularmente, ela saiu de A a Z, portanto agora ela é mais natural para você.

— Não, obrigado — disse Jimmy — não preciso da sua bengala. Antes que eu me esqueça, disse ao papai sobre Romeu e Julieta e contei-lhe que me vi como Mercúcio.

— Só se eu começar a ter encontros com a irmã do Dan Coulter, mas não estou mais interessado na filha daquela casa.

— Ainda não compreendo.

— Explico amanhã de manhã — disse Fletcher, quando a irmã de Jimmy ressurgiu carregando dois Dr. Peppers.* Annie fez uma cara feia para o irmão e este desapareceu rapidamente.

 

* Refrigerante típico dos Estados Unidos. (N.T.)

 

Por algum tempo nenhum deles falou, até que Annie disse: — Você gostaria que eu lhe mostrasse as dependências do Senado?

— Claro, isso seria ótimo! — disse Fletcher. Ela deu uma volta e começou a andar em direção à porta, com Fletcher a segui-la um passo atrás.

— Vê o que vejo? — disse Harry Gates, voltando-se para a esposa quando Fletcher e sua filha desapareceram fora da sala.

— Com certeza, sim — respondeu Martha Gates — mas eu não deveria ficar muito preocupada com isso, pois duvido de que qualquer deles seja capaz de seduzir o outro.

— Isso não me fez parar de desistir, naquela idade, como tenho certeza de que você a inda se lembra.

— Típico de um político. Esta é uma outra história que você foi embelezando com o passar dos anos. Porque, se me lembro corretamente, fui eu que seduzi você.

Nat estava bebericando sua Coca-Cola quando sentiu uma mão na sua, ele enrubesceu, mas não fez nenhuma tentativa para removê-la. Tricia sorriu para ele do outro lado da mesa.

— Você pode pôr sua mão na minha também, se quiser.

Nat pensou que talvez ela o considerasse rude se ele não concordasse, então ele a alcançou por baixo da mesa e colocou sua mão na coxa dela.

— Bom — disse ela enquanto bebia a Coca — assim é um pouco mais amigável.

Nat não comentou quando a mão dela moveu-se mais para cima, em sua calça recém-passada.

— Siga apenas minha orientação — disse ela.

Ele moveu a mão mais para cima, na coxa dela, mas chegou a um impasse quando encontrou o cós da saia. Ela não parou até que houvesse alcançado os fundilhos das calças dele.

— Você ainda tem muito o que aprender para se igualar a mim — disse Tricia começando a desabotoar as calças dele. — Sob a saia, não por cima... — acrescentou, sem nenhum sinal de zombaria.

Ele deslizou a mão sob a saia dela enquanto ela continuava a desabotoar suas calças.

Ele hesitou novamente quando seus dedos alcançaram as calcinhas dela. Ele não conseguia lembrar-se de nada na Adolescentes sobre o que deveria fazer como próximo passo.

— Aqui estão as dependências do Senado — disse Annie quando eles olharam para baixo, da galeria para o semicírculo de cadeiras azuis de couro.

— É bastante impressionante — disse Fletcher.

— Papai diz que você vai acabar aqui algum dia, ou talvez vá ainda mais longe.

Fletcher não respondeu, porque ele não tinha nenhuma ideia sobre que testes você teria de fazer para tornar-se um político.

Eu o ouvi dizendo a minha mãe que nunca tinha conhecido um menino mais brilhante.

— Bem, você sabe o que dizem dos políticos — disse Fletcher.

— Sim, eu sei, mas sempre sei quando papai está agindo assim, porque ele sorri ao mesmo tempo, e desta vez ele não sorriu.

— Onde é que seu pai se senta? — perguntou Fletcher, tentando mudar de assunto.

— Como líder da maioria, ele é o terceiro da esquerda, na fila da frente — e a, apontando o lugar — mas é melhor que eu não lhe diga muito mais, porque sei que papai está aguardando o momento de mostrar ele mesmo o Capitólio a você.

Ele sentiu a mão dela tocando na sua.

— Desculpe — disse ele, rapidamente removendo sua mão, pensando que isso havia sido um engano.

— Não seja bobo! — disse ela. E então ela pegou na mão dele outra vez, agora segurando-a de fato.

— Você não acha que deveríamos voltar e nos juntarmos à festa? — perguntou Fletcher. — Caso contrário, eles vão começar a se perguntar por onde é que andamos.

— Imagino que sim — disse Annie, mas ela não se mexeu. — Fletcher, você já beijou uma garota? — perguntou baixinho.

— Não, nunca beijei — admitiu ele, ficando vermelho.

— Você gostaria de beijar?

— Sim, gostaria — disse ele.

— Você gostaria de me beijar?

Ele consentiu, e aí deu uma volta e viu quando Annie fechou os olhos e entreabriu os lábios. Ele examinou tudo em volta para ter certeza de que todas as portas estavam fechadas, antes de inclinar-se para a frente e beijá-la gentilmente na boca. Quando terminou, ela abriu os olhos.

— Você sabe o que é um beijo francês? — perguntou ela.

— Não, não sei — disse Fletcher.

— Eu também não — admitiu Annie. — Se descobrir, você me diz?

— Sim, digo — disse Fletcher.


LIVRO DOIS


ÊXODO


10


VOCÊ VAI SE CANDIDATAR a presidente? — perguntou Jimmy.

— Não me decidi ainda — respondeu Fletcher.

— Todo mundo acredita que você vai.

— Este é um dos problemas.

— Meu pai também quer que você concorra.

— Mas minha mãe não quer — disse Fletcher.

— Por que não? — perguntou Jimmy.

— Ela pensa que eu deveria me concentrar e aproveitar o final do ano para conseguir um lugar em Yale.

— Mas, se você passar a ser o presidente do diretório acadêmico, isso apenas ajudará na sua documentação. Eu, sim, é que vou achar que isso é um abacaxi.

— Tenho certeza de que seu pai tem muitos pistolões para contatar — disse Fletcher com um largo sorriso.

— O que é que Annie pensa disso? — perguntou Jimmy, ignorando o comentário.

— Ela está feliz em acompanhar-me no que quer que eu decida. — Então talvez eu deves se ser o fator decisivo.

— O que você tem em mente?

— Se você espera vencer, você terá de me indicar como seu gerente de campanha isso deveria certamente aumentar as vantagens — disse Fletcher. Jimmy pegou uma almofada do sofá e atirou-a no seu amigo. — Na verdade, se e realmente quer garantir minha vitória — acrescentou Fletcher assim que a — deveria se oferecer como voluntário para gerente de campanha do mais próximo.

Seu bate-boca foi interrompido quando o pai de Jimmy entrou na sala.

— Fletcher, você tem um momento para mim?

— Claro, senhor.

— Podemos conversar em meu escritório?

Fletcher subiu rapidamente e seguiu o senador para fora da sala. Ele se voltou para Jimmy, mas seu amigo havia encolhido os ombros. Ele se perguntava se teria feito alguma coisa errada.

— Sente-se — disse Harry Gates assim que ocupou seu lugar atrás da escrivaninha.

Fez uma pausa antes de acrescentar: — Fletcher, preciso de um favor seu.

— Qualquer coisa, senhor. Nunca serei capaz de retribuir-lhe tudo que tem feito por mim.

— Você mais do que honrou o nosso acordo — disse o senador. — Pelos últimos três anos, Jimmy tem, de alguma maneira, mantido seu posto o mais alto possível, e ele não teria conseguido sequer fazer uma oração sem sua vigilância contínua.

— É simpático de sua parte dizer isso, mas...

— Não é mais do que a verdade, mas tudo o que desejo para o menino agora é que ele tenha como objetivo principal chegar a Yale.

— Mas no que posso ajudar quando não estou sequer seguro de um lugar para mim mesmo?

O senador ignorou o comentário.

— Política de apropriações governamentais com fins eleitorais, meu rapaz.

— Não sei se entendi direito, senhor...

— Se você passar a ser o presidente do diretório acadêmico, como tenho confiança que será, a primeira coisa que você terá de fazer é indicar um vice-presidente.

Fletcher assentiu com a cabeça.

— E isso poderia ser justamente o equilíbrio da balança para Jimmy quando o escritório de admissão de Yale decidir quem vai preencher aquelas última8 vagas.

— E já seria o equilíbrio da balança para mim, senhor.

— Obrigado, Fletcher, sou grato por isso, mas, por favor, não deixe Jimmy saber que tivemos esta conversa.

Na manhã seguinte, assim que acordou, Fletcher entrou no quarto ao lado e sentou-se ao lado da cama de Jimmy.

— É melhor você ter um bom motivo — disse Jimmy — porque eu estava sonhando com Daisy Hollingsworth.

— Continue sonhando — disse Fletcher. — Meio time de futebol está apaixonado por ela.

— Então para que você me acordou?

— Decidi me candidatar à presidência do diretório acadêmico, e não preciso de um coordenador de campanha que passe a manhã dormindo.

— Foi alguma coisa que meu pai falou?

— Indiretamente, sim.

Fletcher silenciou por instantes e prosseguiu: — E então, quem você acredita que vai ser meu oponente?

— Steve Rodgers — respondeu Jimmy sem hesitar.

— E por que Steve?

— Ele é um homem com todas as letras; portanto, eles tentarão fazê-lo concorrer com o candidato popular contra o acadêmico austero. Você entende, Kennedy versus Stevenson.

— Não podia imaginar que você soubesse o significado da palavra austero.

— Chega de brincadeiras, Fletcher — disse Jimmy, saindo da cama. — Se você vencer Rodgers, precisará estar preparado para toda e qualquer coisa que jogarem contra você. Acho que precisamos começar a preparar uma reunião com papai na hora do café da ma nhã, antes de começarmos uma campanha.

Será que alguém vai se incomodar em se candidatar em oposição a você? — Perguntou Diane Coulter.

Ninguém que eu não possa vencer. O que me diz do Nat Cartwright?

— Não enquanto seja do conhecimento de todos que ele é o principal ponto, e, se elei to, simplesmente buscará alcançar seus objetivos; pelo menos É isso que meus torcedores estão dizendo para todo mundo.

— E não vamos nos esquecer da maneira como ele tratou minha irmã.

— Pensei que fosse você que tivesse se descartado dele! Eu nem sequer sabia que ele conhecia Tricia.

— Não conheceu, mas isso não o impediu de tentar se insinuar junto a ela quando ele veio à minha casa para me conhecer.

— Alguém mais sabe disso?

— Sim, meu irmão Dan. Ele o apanhou na cozinha com a mão sobre a saia dela. Minha irmã reclamou amargamente de não conseguir fazê-lo parar.

— Ela tentou? — Ele fez uma pausa. — Você acredita que seu irmão poderia estar desejando apoiar-me para presidente?

— Sim, mas não há muito que ele possa fazer enquanto estiver em Princeton.

— Ah, claro, aí está — disse Elliot. — Para começar com...

— Quem é meu oponente principal? — perguntou Nat.

— Ralph Elliot, quem mais? — disse Tom. — Ele tem estado trabalhando na própria campanha desde o começo do ano passado.

— Mas isso é contra as regras.

— Não acredito que alguma vez Elliot tenha se preocupado muito com as regras, e co mo ele sabe que você é muito mais popular do que ele, podemos nos preparar para uma campanha suja.

— Mas eu não estou descendo a ladeira...

— Então vamos ter de seguir o caminho de Kennedy.

— Em que você está pensando?

— Você devia abrir sua campanha desafiando Elliot para um debate.

— Ele não vai aceitar nunca.

— Então você vence de qualquer forma. Se ele aceita, você varre o chão com ele. Se ele não aceita, nós podemos jogar a carta "ele falhou nisso".

— Como é que você configuraria tal desafio?

— Mande-lhe uma carta, uma cópia da qual eu colocarei no quadro de avisos.

— Mas você não pode colocar nada lá sem a permissão do diretor.

— Na hora em que eles forem retirá-la, a maior parte das pessoas já a terá lido, e aqueles que não a leram irão desejar saber o que é que ela dizia.

— E naquela altura eu já terei sido desqualificado.

— Não enquanto o diretor acreditar na possibilidade de Elliot vencer.

Perdi a minha primeira campanha — disse o senador Gates, quando ouviu notícias de Fletcher —, então vamos ter certeza de que você não cometerá os mesmos enganos. Para começar, quem é o gerente da sua campanha?

— Jimmy, naturalmente.

— Nunca "naturalmente"; apenas escolha alguém que você esteja convencido de que pode executar o trabalho, mesmo que vocês não sejam amigos muito chegados.

— Estou convencido de que ele pode dar conta do recado — disse Fletcher.

— Ótimo. Agora, Jimmy, você não será de nenhuma valia para o candidato — era a primeira vez que Fletcher pensou a seu respeito como candidato —, a menos que seja sempre aberto e franco com Fletcher, ainda que isso possa parecer desagradável.

Jimmy aquiesceu.

— Quem é seu oponente principal?

— Steve Rodgers.

— O que é que sabemos sobre ele?

— Um rapaz bom o suficiente, mas sem muita coisa entre as orelhas — disse Jimmy.

— Exceto por uma cara bonita — disse Fletcher.

— E diversos touchdowns na última temporada, se me lembro corretamente — acrescentou o senador.

— Bem, agora que sabemos quem é o inimigo, vamos começar a trabalhar sobre os nossos amigos. Primeiro você precisa conseguir um círculo de amizades, seis, oito no máximo. Eles só precisam de duas qualidades: energia e lealdade, se eles tiverem cérebro, também isso será lucro. Quanto tempo durará a campanha?

— Pouco mais de uma semana. As aulas recomeçam às nove da manhã de segunda-feira, e a votação acontece na manhã de terça da semana seguinte.

— Não pense em semana — disse o senador —, pense em horas, cento e enta e duas delas, porque cada hora vai ser importante.

Jimmy começou a fazer anotações.

— E então, quem tem permissão para votar? — foi a pergunta seguinte do senador.

— Todo estudante.

— Então tenha a certeza de estar dispensando tanta atenção aos meninos menores quanto aos de sua turma. Eles se sentirão homenageados pelo fato de você estar demonstrando tanto interesse por eles. E, Jimmy, consiga uma lista atualizada de eleitores, para você ter a certeza de que vai entrar em contato com cada um deles antes do dia da eleição. E não se esqueça: os calouros votarão na última pessoa que discursar para eles.

— Existem trezentos e oitenta estudantes — disse Jimmy, desenrolando uma folha de papel sobre o chão. — Eu já havia marcado em vermelho aqueles que conhecemos; aqueles que eu tenho confiança de que irão dar apoio a Fletcher estão em azul; os calouros estão em amarelo e deixei o resto em branco.

— E se você tem alguma dúvida — disse o senador — deixe-os em branco e não se esqueça dos irmãos mais novos.

— Irmãos mais novos? — perguntou Fletcher.

— Eu os marquei em verde — disse Jimmy. — Cada irmão mais novo de um dos nossos eleitores, que esteja numa classe menor será indicado como um republicano. O único trabalho deles será o de assinar em apoio a sua classe e reportá-lo de volta aos seus irmãos.

Fletcher olhou-o com admiração.

— Não tenho muita certeza se não deveria ser você o candidato a presidente — disse ele. — Você é um candidato natural.

— Não, sou um gerente natural de campanha — disse Jimmy — é você que deve ser presidente.

Ainda que o senador concordasse com a afirmativa do filho, não manifestou nenhuma opinião.

Eram seis e meia do primeiro dia de aula quando Nat e Tom se encontraram sozinhos no estacionamento. O primeiro veículo a passar através dos portões foi o do diretor.

— Bom-dia, Cartwright — vociferou ele enquanto saía do carro. — Por seu excesso de entusiasmo a esta hora do dia, devo acreditar que está se candidatando a presidente?

— Sim, senhor.

— Excelente. E quem é seu oponente principal?

— Ralph Elliot.

O diretor franziu as sobrancelhas.

— Então será uma agressiva batalha de competição, porque Elliot vai se envolver muito delicadamente.

— É verdade — admitiu tom enquanto o diretor desaparecia no seu escritório deixando os dois ali para cumprimentar o segundo carro.

O ocupante acabava sendo um aterrorizado calouro, que fugiu quando Nat aproximou-se dele e, pior, o terceiro carro estava lotado de torcedores de Elliot, rapidamente atravessaram o estacionamento, claramente já tendo passado por uma prova de roupas.

— Maldito! — disse tom. — Nossa primeira reunião de grupo não está marcada até o intervalo das dez horas. Elliot, obviamente, agendou sua equipe durante as férias.

— Não se preocupe — disse Nat. — Apanhe nossa gente apenas enquanto sai de seus carros, e ponha-a para trabalhar imediatamente.

No momento em que o último carro havia deixado seus ocupantes, Nat havia respondido, aproximadamente a umas cem perguntas e apertado as mãos de mais de trezentos meninos, mas apenas um fato parecia claro: Elliot estava feliz em prometer-lhes qualquer coisa em troca de seus votos.

— Nós não deveríamos deixar todo mundo saber que sórdido Elliot é realmente?

— O que você tem em mente? — perguntou Nat.

— Como ele lisonjeia os calouros tentando beneficiar-se de sua ajuda de custo?

— Isso nunca ficou provado.

— Intermináveis reclamações, apenas.

— Se existem tantas, eles saberão onde colocar um x, não? — disse Nat. — De qualquer modo, esse não é o tipo de campanha em que eu quero concorrer — acrescentou.

— Eu preferia acreditar que os eleitores podem decidir por si mesmos em qual de nós podem confiar.

— Essa é uma ideia original — disse tom.

— Bem, pelo menos o diretor está deixando bem claro que ele não quer que Elliot seja presidente — disse Nat.

Acho que não deveríamos dizer isso a ninguém — disse tom. — É possível que isso transfira mais alguns votos para Elliot.

Como você acha que vai indo? — perguntou Fletcher enquanto eles davam Uma volta no lago.

— Não tenho muita certeza — respondeu Jimmy. — Uma porção dos "acima da média" está dizendo a todos, em ambos os lados do campus, que eles vão apoiar seu candidato, simplesmente porque querem ser vistos apoiando o vencedor. Fique agradecido pela eleição não acontecer na noite de sábado — acrescentou Jimmy.

— Por quê? — perguntou Fletcher.

— Porque jogamos com Kent na tarde de sábado, e se Steve Rodgers marcar os pontos do touchdown, poderemos dar adeus a qualquer chance de você vir a se tornar presidente.

É uma pena que seja um jogo em casa. Se você tivesse nascido um ano mais cedo ou mais tarde, teria sido um ponto fora, e o impacto teria sido negligenciável. Mas tal como está, cada eleitor estará no estádio assistindo ao encontro; portanto, reze para nós perdermos, ou pelo menos, que Rodgers faça um mau jogo.

Às duas da tarde, no sábado, Fletcher estava sentado no banco, preparado para os quatro quartos que fariam daquela hora a mais longa da sua vida. E até mesmo ele não podia prever o que estava para acontecer.

— Maldito! Como ele conseguiu agarrar aquela bola perdida? — rosnou Nat.

— Aposto que foi suborno e corrupção — disse Tom. — Elliot tem sido sempre um jogador útil, mas nunca bom o suficiente para fazer parte do time da escola.

— Você acredita que eles vão se arriscar a colocá-lo no jogo?

— Por que não? O campo da St. George muitas vezes tem um lado fraco; portanto, eles poderiam deixá-lo por uns minutos, uma vez que têm confiança em que não afetará o resultado. Depois Elliot irá passar o resto do jogo correndo de um lado para outro das linhas, acenando para os eleitores, enquanto que tudo que podemos fazer é ficar olhando das arquibancadas para ele.

— Então vamos ter a certeza de que todos os que trabalham para nós estão em posição do lado de fora do estádio poucos minutos antes do final da partida, e não deixar ninguém ver nosso novo placar de mão até sábado depois do almoço. Dessa maneira Elliot não terá tempo para aparecer com o dele mesmo.

— Você está aprendendo depressa — disse Tom.

— Quando Elliot é o seu oponente, não se tem muitas escolhas.

Mão estou certo de como isso irá afetar a votação — disse Jimmy enquanto seguiam em direção à saída para juntar-se ao resto do grupo. — Pelo menos Rodgers não pode apertar as mãos de todo mundo à medida que for deixando o estádio.

— Eu gostaria de saber quanto tempo ele permanecerá no hospital — disse Fletcher.

— Três dias, é tudo que precisamos — disse Jimmy. Fletcher riu.

Fletcher ficou satisfeito ao descobrir que seu time já havia se espalhado no instante em que se juntou a eles, e alguns meninos apareceram para dizer que estariam lhe dando apoio, apesar de a quilo parecer algo fechado ainda. Ele não atravessou a saída principal enquanto apertava as mãos de qualquer garoto acima dos quatorze e abaixo dos dezenove anos de idade, incluindo, ele suspeitava, alguns torcedores do time visitante. Fletcher e Jimmy não foram embora até terem certeza de que o estádio ficava vazio de todo, exceto dos homens do gramado.

Quando eles se encaminharam de volta para seus lugares, Jimmy admitiu que ninguém poderia prever um empate, ou que Rodgers estivesse a caminho do hospital local antes do fim do primeiro quarto.

— Se a eleição fosse esta noite, ele ganharia por solidariedade. Se ninguém mais o vir novamente antes das nove horas de terça-feira, você será o presidente.

— Então sua habilidade para realizar a tarefa não está chegando a uma equação?

— Claro que não, seu louco! — disse Jimmy. — Isso é política.

Quando Nat chegou ao jogo, os placares podiam ser vistos por toda parte e tudo que os torcedores de Elliot podiam fazer era chorar a falta. Nat e Tom não iam esconder seus sorrisos ao tomar seus assentos nas arquibancadas. Os sorrisos afloraram quando a St. George pontuou cedo, no primeiro quarto. Nat queria que a Taft perdesse, mas nenhum técnico se arriscaria a colocar Elliot no campo enquanto a St. George permanecesse na liderança. E isso não mudou até o quarto final.

Nat apertou as mãos de todos enquanto deixavam o estádio, mas ele sabia a vitória de último minuto da Taft sobre St. George não tinha ajudado a causa, mesmo se Elliot tivesse sido capaz apenas de correr de um lado para outro da linha de fora até que a última pessoa deixasse as arquibancadas.

— Dê graças por ele nunca ter entrado na partida — disse Tom.

Fletcher foi convidado a fazer a leitura do dia na capela, naquela manhã de domingo, deixando claríssimo em quem o diretor votaria. Durante o almoço, ele e Jimmy visitaram cada dormitório para perguntar aos meninos como eles se sentiam a respeito da comida.

— Com certeza um voto vencedor — o senador lhes havia assegurado — mesmo que você não possa fazer nada a respeito.

Naquela noite eles foram para a cama exaustos. Jimmy ajustou o desperta dor para as cinco e meia. Fletcher rosnou.

— Um golpe de mestre — disse Jimmy quando eles se reuniram do lado de fora na manhã seguinte, esperando pela saída das meninas de suas salas de aula.

— Brilhante — admitiu Fletcher.

— Temo que sim — disse Jimmy. — Não que eu possa reclamar, porque eu teria recomendado que você fizesse exatamente a mesma coisa, dadas as circunstâncias.

Os dois estavam de olhos pregados em Steve Rodgers, que estava sentado de muletas, na saída para o hall, permitindo que os meninos colocassem seus autógrafos em sua perna engessada.

— Um golpe de mestre — repetiu Jimmy. — Isso dá um novo sentido ao voto de simpatia. Talvez devêssemos fazer a pergunta: você quer um aleijado para presidente?

— Um dos maiores presidentes na história deste país era um aleijado — lembrou Fletcher ao gerente de sua campanha.

— Bem, então só há uma coisa a fazer — disse Jimmy. — Você vai ter de passar as próximas vinte e quatro horas numa cadeira de rodas!

Depois do último fim de semana, os que trabalhavam para Nat tentaram projetar um ar de confiança, mesmo eles tendo descoberto que era muito cedo para declarar. Nenhum candidato deixou de sorrir até a noite de segunda-feira quando o sino da escola bateu seis horas.

— Vamos voltar ao meu quarto — disse Tom — e contar histórias da mor dos reis.

— Histórias tristes — disse Nat.

O grupo todo se amontoou no pequeno quarto de Tom e trocou anedota sobre os papéis que desempenharam na campanha, e riram das piadas que não tinham graça enquanto esperavam pacientemente para saber o resultado.

Uma batida forte na porta interrompeu sua exuberante barulheira. — Entre!-gritou Tom.

Todos se levantaram no instante em que viram quem estava parado à porta de entrada.

— Boa-noite, Sr. Anderson — disse Nat.

— Boa-noite, Cartwright — respondeu o líder dos estudantes, formalmente. — Como responsável pela contagem dos votos na eleição para presidente do grêmio acadêmico, devo informar-lhes que, dadas as proximidades do resultado, estou convocando para uma recontagem. A assembleia foi, portanto, adiada para as oito horas.

— Obrigado, senhor — foi tudo que Nat conseguiu se lembrar de dizer.

Quando o relógio anunciou oito horas, cada um dos meninos estava sentado em seu lugar. Eles se ergueram, como era seu dever, quando o líder dos estudantes entrou no corredor. Nat tentou ler qualquer sinal do resultado na expressão da sua face, mas mesmo os japoneses teriam ficado orgulhosos da inescrutabilidade do Sr. Anderson.

O líder dos estudantes caminhou para o centro do palco e convidou a assembleia a sentar-se. Havia um silêncio perturbador, raramente experimentado num encontro normal.

— Eu tenho de lhes dizer — Começou o líder — que este foi o resultado mais apertado nos setenta e cinco anos de história da escola.

Nat podia sentir o suor nas palmas das mãos enquanto procurava manter-se calmo.

— O resultado da votação para presidente do grêmio estudantil foi de 178 votos para Nat Cartwright e de 181 para Ralph Elliot.

Metade da audiência levantou-se e ovacionou, enquanto a outra permaneceu sentada e em silêncio. Nat levantou-se do seu lugar, caminhou em direção a Elliot e ofereceu-lhe a mão estendida.

O novo presidente ignorou-a.

Embora todos soubessem que os resultados não seriam anunciados até as nove da noite, o corredor da assembleia estava repleto muito antes que o diretor entrasse.

Fletcher sentou-se na fila de trás, com a cabeça inclinada, enquanto Jimmy colocara-se diretamente na frente dele.

— Eu deveria ter levantado cedo todas as manhãs — disse Fletcher.

— E eu deveria ter quebrado a sua perna — respondeu Jimmy.

O diretor, acompanhado pelo capelão, marchou ala abaixo como que para mostrar que Deus estava de alguma forma envolvido com quem passou a ser presidente do diretório acadêmico da Hotchkiss. O diretor caminhou para a frente do palco e limpou a garganta.

— O resultado da eleição para presidente do diretório acadêmico — disse o Sr. Fleming — é de 207 votos para Fletcher Davenport, e de 173 votos para Steve Rodgers.

Portanto, declaro Fletcher Davenport presidente.

Fletcher dirigiu-se imediatamente a Steve, cumprimentando-o com um aperto de mão, ao que este sorriu afavelmente. Fletcher virou-se e viu Harry Gates ao lado da porta. O senador meneou a cabeça em sinal de respeito pelo novo presidente.

— Você nunca esquece a vitória de sua primeira eleição — foi tudo que ele disse.

Ambos ignoraram Jimmy, que estava pulando de alegria, incapaz de se conter.

— Acredito que conheça meu vice-presidente, senhor — disse Fletcher.

 

 


11

 

 

A MÃE DE NAT PARECIA ser uma das poucas pessoas que não ficara desapontada pelo fato de seu filho não ter sido eleito presidente. Ela sentia que isso daria a ele mais tempo para concentrar-se nos estudos. E se Susan Cartwright pudesse ver as horas que Nathaniel estava dedicando aos livros, ela teria parado de se preocupar.

Até mesmo Tom descobriu ser difícil imaginar Nat distante dos seus livros por mais do que uns poucos minutos, a não ser que fosse para correr seus oito quilômetros diários. E mesmo quando ele quebrou o recorde da escola, cruzando o campus, Nat só se permitiu umas duas horas de folga para celebrar.

Véspera de Natal, dia de Natal, noite de Ano-novo — não fazia a menor diferença. Nat permanecia em seu quarto, a cabeça enterrada nos livros. Sua mãe esperava apenas que quando ele saísse para passar um longo fim de semana com Tom em Simsbury tiras se uma folga de verdade. E ele tirou. Nat dividiu o montante de trabalhos diários em duas horas pela manhã e outras duas horas na parte da tarde. Tom estava agradecido por seu amigo mantê-lo na mesma rotina, mesmo que ele declinasse do convite para acompanhá-lo em sua corrida diária. Nat se surpreendia por poder completar oito quilômetros sem jamais sair das terras de Tom.

— Uma das suas muitas namoradas? — perguntou Nat depois do café da manhã, no dia seguinte, quando seu amigo rasgou um envelope.

— Espero que sim — disse Tom. — Ah, não, é do Sr. Thompson, perguntando se eu gostaria de ser considerado para um papel em Noite de reis*.

 

*Twelfth Night, de William Shakespeare. (N.T.)

 

 

— E você? — perguntou Nat.

— Não. Isso é mais parte do seu mundo do que do meu. Sou um produtor por natureza, não um intérprete.

— Eu teria oferecido meu nome para um papel se tivesse confiança em minha inscrição para Yale, mas ainda nem terminei minha monografia.

— Eu nem sequer comecei os meus estudos — admitiu Tom.

— Qual dos cinco assuntos você escolheu? — perguntou Nat.

— O Controle do Baixo Mississippi durante a Guerra Civil — respondeu Tom. — E você?

— Clarence Darrow e sua Influência sobre o Movimento de Troca no Sindicato.

— Pois é, levei o Sr. Darrow em conta, mas não tinha certeza de poder elaborar cinco mil palavras sobre o assunto. Não tenho dúvida de que você já deve ter escrito dez.

— Não, mas quase terminei o primeiro rascunho, e deverei ter uma cópia final pronta em janeiro, quando voltarmos.

— O prazo final para Yale não termina até fevereiro; você deve considerar, de fato, to mar parte na peça da escola. Pelo menos leia-a para o teste. Afinal de contas, não precisa fazer o papel principal.

Nat pensou sobre a sugestão do amigo enquanto passava manteiga numa torrada. Tom tinha razão, naturalmente, mas Nat sentiu que seria mais uma distração enquanto ele estava querendo conseguir uma bolsa para Yale. Ele deu uma olhada pela janela, através dos acres de terra, e ficou se perguntando como seria ter pais que não precisavam se preocupar sobre pagamentos de matrícula, ter dinheiro no bolso e se ele conseguiria um trabalho durante as férias de verão.

— Gostaria de ler algum papel em especial, Nat? — perguntou o Sr. Thompson enquanto olhava para o rapaz de 1,98m de altura, com cabelos negros que pareciam uma vassoura e cujas calças pareciam estar sempre uns cinco centímetros mais curtas.

— Antônio, possivelmente Orsino — respondeu Nat.

— Você é um Orsino nato — disse o Sr. Thompson — mas eu tenho seu amigo Tom Russell em mente para aquele papel.

— Talvez eu mal consiga ser Malvolio — disse Nat com uma gargalhada.

— O sr. Elliot seria minha primeira escolha para Malvolio — disse o Thompson com um sorriso torto. O Sr. Thompson, como muitos outros da Taft gostariam que Nat houvesse se eleito presidente do diretório acadêmico.

— Mas infelizmente, ele não está disponível, enquanto, na verdade, você se encaixaria melhor no papel de Sebastian.

Nat quis protestar, conquanto, ao ler o texto pela primeira vez, ele tivesse de admitir que a personagem seria um desafio. Mas sua exata transparência exigir ia horas de aprendizado, sem mencionar o tempo gasto com ensaios. O Sr. Thompson percebeu as reservas de Nat.

Acho que chegou o momento de um pequeno suborno, Nat.

— Suborno, senhor?

— Sim, meu rapaz. Veja você, o diretor de admissões em Yale é um dos meus mais antigos amigos. Estudamos os clássicos juntos em Princeton, e ele sempre passa um fim de semana comigo todos os anos. Acho que o convidarei para o fim de semana da peça na escola... — ele fez uma pausa —... isto é, se você se sente capaz de interpretar Sebastian.

Nat não respondeu.

— Ah, vejo que suborno não é o bastante para os seus altos padrões morais! Então, devo me curvar à corrupção.

— Corrupção, senhor? — disse Nat.

— Sim, Nat, corrupção. Você deve ter observado que existem três papéis na peça para mulheres: a boa Olivia, a irmã gêmea Viola e a irritante Maria, sem mencionarmos as substitutas e as servas, e não nos esqueçamos de que todas elas se apaixonam por Sebastian.

Nat ainda não havia respondido.

— E — Continuou o Sr. Thompson, revelando a carta da manga — meu ponente na Srta. Porter sugeriu que eu levasse um rapaz, no sábado, para ler os personagens masculinos enquanto decido quem deve participar do teste Para os femininos.

Fez uma pausa novamente.

— Ah, vejo que finalmente consegui sua atenção!

— Você acredita que seja possível passar sua vida toda amando apenas uma pessoa? — perguntou Annie.

— Se você tiver sorte bastante para encontrar a pessoa certa, por que não?

— respondeu Fletcher.

— Desconfio que quando você for para Yale, no outono, estará rodeado por tão brilhantes e bonitas mulheres que, na comparação, eu ficarei empalidecida, — De modo algum — disse Fletcher. Ele se sentou ao lado dela no sofá colocou um br aço sobre seu ombro. — E, de qualquer maneira, elas logo descobrirão que estou apaixonado por outra pessoa, e tão logo elas descubram que você está em Vassar, descobrirão por quê.

— Mas isso só vai acontecer daqui a um ano — disse Annie — e até lá...

— Psiu... você não percebeu que cada homem apresentado a você fica logo com ciúmes de mim?

— Não, não percebi — respondeu ela sinceramente.

Fletcher voltou-se para a garota pela qual ele havia caído de amores quando ela tinha seios achatados e aparelho nos dentes. Mas mesmo então ele não pôde resistir ao seu sorriso, seus cabelos negros herdados da avó irlandesa e os olhos de um azul-aço do lado sueco da família. Mas, agora, quatro anos mais tarde, o tempo a havia transformado em uma graciosa figura magrinha, com pernas que faziam com que Fletcher se sentisse agradecido à moda das minissaias.

Annie colocou a mão sobre a coxa de Fletcher.

— Você sabia que metade das garotas do meu tipo já não são mais virgens?

— disse ela.

— Isso é o que o Jimmy me diz — disse Fletcher.

— E ele deveria saber — Annie fez uma pausa. — Faço dezessete anos no mês que vem e você não sugeriu, nem uma vez...

— Pensei nisso muitas vezes, é claro — disse Fletcher ao se mover de um jeito que a mão dele tocasse o seio dela — mas quando isso acontecer, quero que seja bom para nós dois, para que nunca tenhamos arrependimentos.

Annie aninhou a cabeça no ombro dele.

— Para mim não haveria arrependimentos — disse ela, colocando a mão sobre a perna dele. Ele a abraçou.

— Quando você espera que seus pais voltem?

Por volta da meia-noite. Estão assistindo a uma daquelas intermináveis funções em que os políticos parecem estar sempre se realizando.

Fletcher não se mexeu quando Annie começou a desabotoar a blusa. quando alcançou o último botão, ela a fez escorregar e deixou-a cair no chão.

— Sua vez, acho — disse ela. Fletcher rapidamente desabotoou a camisa e jogou-a de lado. Annie levantou-se e olhou para ele, surpreendida pelo súbito poder que parecia ter sobre ele. Ela abriu o fecho da saia vagarosamente, da forma como tinha visto Julie Christie fazendo em Darling. Tal como a Srta. Christie, ela não se importou com a meia combinação. — Sua vez — disse outra vez.

"Ó meu Deus", pensou Fletcher, "não tenho coragem de tirar minhas calças." Fez escorregar seus sapatos e meias.

— Você está roubando — disse Annie, que havia tirado os sapatos antes mesmo de Fletcher saber o que ela tinha em mente. Relutantemente, ele abaixou as calças, e ela desatou a rir. Fletcher enrubesceu ao ver as calças no chão.

— É bom saber que posso fazer isso com você — disse Annie.

— Você não acha possível se concentrar nas palavras, Nat? — perguntou o Sr. Thompson, não se preocupando em disfarçar seu sarcasmo. — Continue de "Mas ali vem a senhora".

Mesmo vestida com seu uniforme escolar, Rebecca destacava-se das demais meninas que o Sr. Thompson estava testando. A garota alta, magra, com fartos cabelos caindo sobre os ombros tinha um ar de autoconfiança que cativou Nat e um sorriso que o fez responder imediatamente. Quando ela devolveu o sorriso, ele voltou o rosto par a o lado oposto, aborrecido por tê-la constrangido. Tudo que sabia sobre ela, era o seu nome.

— O que existe atrás de um nome — disse ele.

— Errou, Nat, tente novamente.

Rebecca Armitage esperou quando Nat tropeçou nas palavras "Mas ali vem a senhora".

Rebecca estava surpresa porque, quando ficou de costas para a parede e o ouviu anteriormente, ele havia soado totalmente seguro. Ela olhou para seu texto e leu:

— "Não culpes a minha pressa. Se tens boa intenção, vem comigo, agora, e com este santo homem ao interior da igreja; ali, diante Dele, e sob aquele teto sagrado, demonstra-me a prova irrefutável da tua fé, para que minha alma ciumenta e cheia de dúvidas possa viver em paz. Ele deverá conciliá-la enquanto tu estás desejando que venha a ser notada a hora em que nossa celebração será realizada, de acordo com meu nascimento. O que me dizes?"*

Nat não disse nada.

— Nat, você pensou em participar — sugeriu o Sr. Thompson — de modo que Rebecca possa ao menos ler mais algumas linhas? Admiro que o olhar de adoração seja mais efetivo, e pode ser que passe por atuação, mas não estamos desempenhando uma mímica. Uma ou duas pessoas do auditório talvez possam vir a escutar as familiares palavras do Sr. Shakespeare.

— Sim, senhor, desculpe-me, senhor — disse Nat, voltando ao texto. — "Eu seguirei este bom homem, e irei contigo; e tendo jurado verdade, sempre será verdade."

— "Então, segue na frente, bom pai; e céus tão brilhantes, que eles possam notar este meu ato."

— Obrigado, Srta. Armitage, acho que não preciso ouvir mais nada.

— Mas ela foi formidável! — disse Nat.

— Ah, você pode ler uma linha inteira sem pausar — disse o Sr. Thompson. — Isso é um alívio nesse estágio atrasado, mas aí eu não tinha nenhuma ideia de que você quisesse ser o diretor tanto quanto fazer o papel principal. Mas Nat, acho que já decidi quem irá desempenhar o papel da boa Olivia.

Nat observou Rebecca quando ela deixou o palco rapidamente.

— Bem, e quanto a Viola? — insistiu ele.

— Não, Nat, se entendi a trama corretamente, Viola é sua irmã gêmea e, por sorte ou por azar, Rebecca não tem a menor semelhança com você.

— Então Maria, ela interpretaria uma ótima Maria.

— Tenho certeza de que sim, mas Rebecca é alta demais para interpretar Maria. "

— Já pensou em dar o papel de Feste a uma mulher? — perguntou Nat.

— Para ser honesto, não, Nat, não pensei; em parte porque eu não tenho tempo para reescrever o texto todo.

Nat não havia notado. Rebecca deslizara para trás de uma pilastra, tentando esconder seu embaraço à medida que ele insistia.

— E quanto à serva da casa de Olivia?

— O que tem ela?

Rebecca faria uma ótima serva.

— Tenho certeza de que sim, mas ela não pode fazer a Olivia e ser a serva ao mesmo tempo. Alguém na audiência poderia notar.

Nat abriu a boca, mas não falou.

— Ah, silêncio, finalmente, mas tenho confiança que você está reescrevendo a peça durante a noite, de modo a garantir que Olivia tenha diversas cenas novas com Sebastian, o que o Sr. Shakespeare não havia considerado.

Nat ouviu uma risadinha atrás da pilastra.

— Qualquer outra pessoa que você escolha para a serva, Nat, ou posso continuar com os testes da peça?

— Desculpe-me, senhor — disse Nat. — Peço desculpas.

O Sr. Thompson saltou sobre o palco, sorriu para Nat e murmurou: — Se você estivesse levando em conta atuar de fato para pegar o papel, Nat, mas sou forçado a dizer que você jogou a chance fora. Você se fez mais disponível do que uma prostituta num cassino de Las Vegas. E tenho certeza de que você estará interessado em saber que a peça do ano que vem será The Taming of the Shrew*, que, acho, seria mais apropriada. Se você tivesse nascido apenas um ano mais tarde, que diferente teria sido sua vida! Entretanto, boa sorte com a Srta. Armitage.

— O rapaz deve ser expulso — disse o Sr. Fleming. — Nenhum outro castigo seria o adequado.

— Mas, senhor — disse Fletcher — Pearson só tem quinze anos, e ele se desculpou com a Sra. Appleyard imediatamente.

Eu não teria esperado menos do que isso — disse o capelão, que até aquele momento não dera uma opinião a respeito.

E, de qualquer maneira — disse o diretor, levantando-se de trás da sua mesa, você pode imaginar o efeito sobre a disciplina escolar caso se viesse a saber que você pudesse sair xingando a esposa do professor?

 

 

*A megera domada, de Shakespeare (N.T.)

 

 

— E por causa destas palavras, "mulher maldita", todo o futuro dos garotos ficaria determinado?"

— Esta é a consequência de tais maneiras doentias — disse o diretor. Pelo menos, desta forma, uma pessoa pode ter certeza de que aprenderá com castigo. "

— Mas o que é que ele vai aprender? — perguntou Fletcher. — Que você nunca pode come ter um engano na vida, ou que você nunca deve xingar?

— Por que é que você está defendendo o rapaz tão veementemente?

— No primeiro discurso que eu ouvi o senhor fazer, o senhor nos disse que não nos levantarmos e ficarmos silenciosos quando uma injustiça estivesse sendo cometida era uma atitude covarde.

O Sr. Fleming olhou para o capelão, que não fez comentário. Ele se lembrava bem do discurso. Afinal de contas, ele endereçou aquele mesmo texto a cada novo aluno.

— Tenho permissão de lhe fazer uma pergunta impertinente? — disse Fletcher, olhando para o capelão.

— Sim — disse o Dr. Wade, um pouco defensivamente.

— O senhor nunca teve vontade de xingar a Sra. Appleyard? Porque eu tive muitas vezes.

— Mas esta é a questão, Fletcher, você se conteve. Pearson não, e por isso ele deve ser punido.

— Se este castigo será o da expulsão, senhor, então devo pedir demissão como presidente do diretório acadêmico, porque a Bíblia nos diz que o pensamento é tão pecador quanto o feito.

Os dois homens olharam para ele sem acreditar.

— Mas por que, Fletcher? Certamente você já sabe que se pedir demissão isso poderia afetar até mesmo sua chance de entrar para a Yale?

— O tipo de pessoa que permite que isso o influencie não está à altura de um lugar em Yale.

Os dois homens estavam tão abobados por este comentário que nenhum disse nada por algum tempo.

— Isso não é um pouco extremo demais, Fletcher? — perguntou o capelão casualmente.

— Para o rapaz em questão não é, Dr. Wade, e não estou com vontade ficar olhando o sacrifício deste rapaz no altar de uma mulher que tem seus pra zeres aguilhoando meninos imberbes.

— E você se demitiria como presidente para provar seu ponto de vista? — perguntou o diretor.

— Se não o fizesse, senhor, estaria apenas a um passo do que a sua geração condenou no tempo de McCarthy.

Outro longo silêncio se seguiu antes que o capelão dissesse baixinho: — O rapaz pediu desculpas em pessoa à Sra. Appleyard?

— Sim, senhor — disse Fletcher — e ele também o fez por escrito.

— Então talvez a liberdade condicional para o resto do ano seja mais apropriada — sugeriu o diretor, olhando para o capelão.

— Juntamente com a perda de todos os privilégios, incluindo-se as saídas de fim de semana, até as próximas notícias — acrescentou o Dr. Wade.

— Isso parece um compromisso adequado para você, Fletcher? — perguntou o diretor, levantando uma sobrancelha.

Foi a vez de Fletcher permanecer calado.

— Compromisso, Fletcher! — exclamou o capelão. — É alguma coisa com a qual você terá de conviver, se quiser ser um político de sucesso.

Fletcher não respondeu imediatamente.

— Aceito seu julgamento, Dr. Wade — disse ele casualmente e, voltando-se para o diretor, acrescentou: — E obrigado por sua indulgência, senhor.

— Obrigado, Fletcher — disse o Sr. Fleming, quando o presidente do diretório levantou-se do seu lugar e deixou o escritório do diretor.

— Visão, coragem e convicção são suficientemente raras em um homem adulto — disse o diretor, baixinho, quando a porta se fechou — mas numa criança...

— Então qual é a sua explicação, Sr. Cartwright? — perguntou o presidente da banca examinadora de Yale.

— Não tenho uma, senhor — admitiu Nat. — Isso deve ser uma coincidência.

— É uma coincidência e tanto — disse o encarregado dos assuntos acadêmicos — que grandes partes de seu trabalho sobre Clarence Darrow sejam, Palavra por palavra, idênticas àquelas de outro estudante de sua classe.

— E qual é a explicação dele?

— Quando submeteu sua monografia uma semana antes da sua, e estava escrita à mão, enquanto que a sua foi datilografada, não sentimos que fosse necessário perguntar a ele por uma explicação.

— O nome dele seria Ralph Elliot, por acaso? — perguntou Nat. Ninguém da banca fez qualquer comentário.

— Como foi que ele o conseguiu? — perguntou Tom quando Nat voltou a Taft mais tarde, naquela noite.

— Ele deve ter copiado palavra por palavra enquanto eu estava com a Srta. Porter ensaiando Noite de Reis.

— Mas ele ainda teria de retirar a monografia do seu quarto.

— Isso não seria difícil — disse Nat. — Se não estivesse em minha mesa, ele a teria encontrado arquivada em Yale.

— Mas ele ainda correu um risco tremendo indo até o seu quarto quando você não estava lá.

— Não quando você é o presidente do diretório. Não se esqueça de que ele dirige o lugar; ninguém vai questioná-lo por suas idas e vindas. Ele teria facilmente tido tempo para copiar o texto e devolver o original ao meu quarto na mesma noite, sem que ninguém o espionasse.

— Então o que foi que a banca decidiu?

— Graças ao diretor, que foi contra a banca e a meu favor, Yale concordou em deferir minha inscrição por um ano.

— Então Elliot saiu-se bem com isso novamente.

— Não, ele não conseguiu — disse Nat firmemente. — O diretor percebeu o que deve ter acontecido, porque Yale também eliminou a vaga de Elliot.

— Mas isso só atrasa o problema por um ano — disse Tom.

— Felizmente, não — disse Nat, sorrindo pela primeira vez. — O Sr. Thompson também decidiu intervir e telefonou para o encarregado das admissões, com o resultado de que Yale não tinha oferecido a Elliot a chance de replicar.

— Bom e velho Thomo — disse Tom. — Então, o que você está planejando fazer em seu ano fora? Alistar-se no Corpo da Paz?

— Não, vou passar o ano na Universidade de Connecticut.

— Por que Connecticut — perguntou Tom —, quando você podia...

— Porque foi a primeira escolha de Rebecca.

 

 


12

 

 

O CHANCELER* DE YALE olhou para a plateia de mil calouros em expectativa. No período de um ano, alguns deles tinham descoberto que o ritmo escolar era bastante árduo e se mudaram para outras universidades, enquanto que outros simplesmente desistiram. Fletcher Davenport e Jimmy Gates sentaram-se no auditório e ouviram atentamente cada palavra que o chanceler havia dito.

 

* Chanceler — Cargo em reitoria nas universidades americanas mais conservadoras (N.T.)

 

 

— Não desperdicem um momento de seu tempo enquanto estiverem em Yale ou vocês se arrependerão para o resto de suas vidas de não terem tirado vantagem de tudo que esta universidade oferece. Um louco sai de Yale com um diploma apenas, mas um homem de visão sai com conhecimento suficiente para encarar o que quer que a vida lhe apresente. Meçam toda oportunidade que lhes seja oferecida. Não fiquem amedronta dos com nenhum desafio novo, e se falharem, não existe razão para envergonhar-se.

Vocês aprenderão muito mais com seus erros do que com seus êxitos. Não tenham medo de se us destinos. Não tenham medo de nada. Desafiem cada obstáculo e não deixem que digam de vocês: passei por este caminho, mas não deixei nenhuma impressão.

O chanceler deixou seu lugar depois de aproximadamente uma hora em que ficara em pé, e recebeu uma ovação excepcional e prolongada. Trent, que não aprovava tais demonstrações, levantou-se e deixou o palco.

— Pensei que você não fosse se juntar na ovação — disse Fletcher ao seu amigo quando eles foram para o corredor. — Só porque todas as demais pessoas o têm feito pelos últimos dez anos, não significa que eu deva participar ritual, se me lembro corretam ente dos seus sentimentos.

— Admito, eu estava errado — disse Jimmy. — Foi ainda mais impressionante do que meu pai me asseverou que seria.

— Tenho certeza de que sua aprovação chegará como um alívio para o Sr. Waterman — disse Fletcher, quando Jimmy notou uma jovem mulher carregada de livros caminhando uns poucos passos à frente deles.

— Meça toda oportunidade — murmurou ele ao ouvido de Fletcher. Fletcher se perguntou se deveria impedir Jimmy de bancar o tonto ou deixá-lo descobrir isso da pior maneira.

— Oi, meu nome é Jimmy Gates. Você não gostaria que eu lhe desse uma mãozinha com seus livros?

— Como pensa fazê-lo, Sr. Gates? Carregando-os ou lendo-os para mim? — replicou a mulher que não diminuiu o ritmo de seus passos.

— Eu estava pensando em carregá-los, para começar, e, então, por que não vemos como é que a coisa continua depois?

— Sr. Gates, tenho duas regras que nunca quebro: ter encontros com calouros e ter encontros com alguém de cabelos ruivos.

— Você não acha que chegou a hora — disse Jimmy — de quebrar as duas ao mesmo tempo?

Afinal de contas, o chanceler nos disse para não termos medo de um desafio novo.

— Jimmy — disse Fletcher — acho...

— Ah, sim, este é o meu amigo Fletcher Davenport, e ele é muito inteligente; portanto, poderia ajudá-la com a parte das leituras.

— Não acredito nisso, Jimmy.

— E ele é também bastante modesto, como você pode ver.

— Um problema do qual você não sofre, Sr. Gates.

— Claro que não — disse Jimmy. — Por falar nisso, qual é seu nome?

— Joanna Palmer.

— Bem, você obviamente não é uma caloura, Joanna — disse Jimmy.

— Não, não sou.

— Então é a pessoa ideal para me ajudar e me socorrer.

— O que está pensando? — perguntou a Srta. Palmer enquanto eles subiam as escadas para o Sudler Hall.

— Por que não me convida para jantar esta noite, e então pode me dizer tudo eu dever ia saber sobre Yale — aventurou-se Jimmy enquanto eles chegavam um canto do lado de fora do anfiteatro reservado às aulas. — Ei — disse ele, virando-se para Fletcher — não era aqui que deveríamos estar?

— Sim, é, e tentei alertá-lo.

— Alertar? Sobre o quê? — perguntou Jimmy quando abriu a porta para a Srta. Palmer e seguiu-a para a sala, esperando poder sentar-se ao lado dela. Os universitários imediatamente pararam de falar, o que pegou Jimmy de surpresa.

Peço desculpas pelo meu amigo, Srta. Palmer — murmurou Fletcher — mas posso assegurar-lhe que ele tem um coração de ouro.

— E a coragem que o acompanha, pode-se ver — replicou Joanna. — Falando nisso, nunca o deixe saber, mas me senti extremamente lisonjeada por ele ter pensado que eu pudesse ser uma caloura.

Joanna Palmer colocou seus livros sobre a comprida mesa e voltou-se para o lotado anfiteatro.

— A Revolução Francesa é o ponto de mudança da história da Europa moderna — Começou ela para uma atenta audiência. — Embora a América já tivesse removido o monarca — fez uma pausa — sem ter removido a sua cabeça...

Seus olhos percorreram as filas dos bancos quando seus alunos riram, antes de ir em pousar sobre Jimmy Gates. Ele piscou.

Eles estavam de mãos dadas ao caminhar através do campus para sua primeira aula. Haviam feito amizade durante os ensaios da peça, inseparáveis na semana da apresentação, e ambos perderam a virgindade juntos durante os feriados da primavera. Quando Nat contou à amada que não estava indo para Yale, mas com ela para a Universidade de Connecticut, Rebecca sentiu-se culpada porque a novidade a deixou feliz.

Susan e Michael Cartwright gostaram de Rebecca no instante em que a conheceram, e seu desapontamento sobre o fato de Nat não ter recebido de pronto um lugar em Yale foi suavizado ao verem seu filho tão relaxado pela primeira vez em sua vida.

A aula inaugural no Buckley Hall versava sobre literatura americana, pelo Professor Hayman. Durante as férias de verão, Nat e Rebecca haviam lido todos os autores da lista indicada — James, Steinbeck, Hemingway, Fitzgerald e Bellow — e depois discutiram em detalhes A Herdeira, As vinhas da ira, Por quem os sinos dobram, O grande Gatsby e Herzog. Então, no momento em que tomaram seus assentos no anfiteatro das aulas naquela manhã de terça-feira, ambos se sentiram confiantes por estarem bem preparados. Durante os momentos em que o Professor Hayman proferia sua saudação, ambos compreenderam que não haviam feito mais do que apenas ler os textos. Eles não haviam considerado as diferentes influências sobre os autores cujo nascimento, educação, instrução, religião e meras circunstâncias haviam trazido ao seu trabalho, nem tido qualquer pensamento sobre o fato de que o talento de contar histórias não fora dado a nenhuma classe, cor ou credo em particular.

— Tomem, por exemplo, Scott Fitzgerald — Continuava o professor —, o conto Bernice enrola os cabelos.

Nat olhou suas anotações e viu a parte de trás daquela cabeça. Sentiu-se mal. Parou de ouvir os pontos de vista do Professor Hayman sobre Fitzgerald e continuou a olhá-lo por algum tempo, antes que o estudante se voltasse e começasse a falar com o vizinho. Os maiores temores de Nat foram confirmados: Ralph Elliot não apenas estava na mesma universidade, mas fazia o mesmo curso. Quase cônscio de estar sendo observado, Elliot subitamente virou-se. Ele não se deteve em Nat, pois sua atenção fixou-se em Rebecca. Nat lançou um olhar para ela, mas ela estava ocupada demais tomando notas sobre os problemas de bebida de Fitzgerald durante sua estada em Hollywood para registrar o interesse indisfarçável de Elliot.

Nat esperou até que Elliot houvesse deixado o local das aulas antes de recolher seus livros e levantar-se do seu lugar.

— Quem era aquele que ficou se virando e olhando fixamente para você? — perguntou Rebecca quando eles se dirigiam para o refeitório.

— O nome dele é Ralph Elliot — disse Nat. — Nós dois estivemos na Taft e acho que ele estava olhando para você, não para mim.

— Ele é muito interessante — disse Rebecca com um largo sorriso. — Ele me lembra um pouquinho Jay Gatsby. Ele é o tal que o Sr. Thompson pensou que pudesse fazer um bom Malvolio?

— Um Malvolio nato, acho que foram as exatas palavras de Thompson.

Depois do almoço, Rebecca pressionou Nat a falar mais sobre Elliot, mas ele disse que não havia muito mais para ser dito e tentou continuadamente mudar de assunto. Se ficar contente na companhia de Rebecca também significava ter de estar na mesma universidade que Ralph Elliot, isso era algo com que ele teria de aprender a conviver.

Elliot não compareceu à aula da tarde sobre a influência espanhola nas colônias, e no mo mento em que Nat acompanhou Rebecca de volta ao seu quarto naquela noite, ele tinha quase se esquecido da indesejável presença do seu velho rival.

Os dormitórios das moças ficavam ao sul do campus, e o conselheiro de calouros de Nat o havia alertado que era contra o regulamento os rapazes serem encontrados lá depois do escurecer.

— Quem quer que tenha fixado estas regras — disse Nat ao deitar-se ao lado de Rebecca em sua cama de solteira — deve ter pensado que os estudantes só podiam fazer amor no escuro.

Rebecca deu uma gargalhada quando tirou a suéter.

— O que significa que durante o semestre da primavera você não terá de voltar ao seu quarto até depois das nove — disse ela.

— Talvez os regulamentos me permitam ficar com você depois do semestre do verão — disse Nat sem explicação.

Durante o primeiro ano, Nat ficou aliviado ao descobrir que ele raramente esteve em contato com Ralph Elliot. Seu rival não mostrou interesse na corrida para cruz ar a propriedade, em teatro ou música; portanto, foi uma surpresa quando Nat o descobriu conversando com Rebecca do lado de fora da capela, no último domingo do ano.

Elliot foi embora rapidamente no momento em que viu Nat se aproximando deles.

— O que ele queria? — perguntou Nat, defensivamente.

— Só estava demonstrando suas ideias sobre como melhorar o conselho dos estudantes.

Ele está concorrendo como representante dos calouros e queria saber se você estaria pensando em inscrever seu nome mais adiante.

— Não, não estou — disse Nat firmemente. — Já tive o suficiente com as eleições.

— Acho que isso é bobagem — disse Rebecca, apertando a mão de Nat — porque sei muito sobre o nosso ano, e espero que você concorra.

— Não enquanto ele estiver na área — disse Nat.

— Por que você o odeia tanto? — perguntou Rebecca. — Só porque ele o venceu na eleição idiota daquela escola?

Nat lançou um olhar atravessado para Elliot e viu-o conversando com um e outro estudantes — o mesmo sorriso fingido, e sem dúvida as mesmas promessas mentirosas.

— Você não acha possível que ele tenha mudado? — disse Rebecca.

Nat não se preocupou em responder.

— Certo — disse Jimmy — a primeira eleição em que você pode concorrer é como representante dos calouros no conselho da faculdade em Yale.

— Pensei que escaparia das eleições no meu primeiro ano — disse Fletcher — e me concentraria somente nos estudos.

— Você não pode se arriscar — declarou Jimmy.

— E por que não? — perguntou Fletcher.

— Porque é um fato estatístico que quem quer que ganhe a eleição para o conselho da faculdade no seu primeiro ano é quase certo que acabe como presidente três anos mais tarde.

— Talvez eu não queira ser presidente do conselho da faculdade — disse Fletcher com um amplo sorriso.

— Talvez Marilyn Monroe não queira ganhar um Oscar — disse Jimmy, quando apresentou um livreto da sua maleta.

— O que é isso?

— O livro que é o retrato do calouro; existem 1.021 deles.

— Vejo que você, mais uma vez, começou a campanha sem consultar o candidato.

— Eu tive de começar, porque não posso me dar ao luxo de ficar correndo feito um tonto, esperando que você se decida. Fiz algumas pesquisas e descobri que você tem pouca ou nenhuma chance de sequer ser considerado para o conselho da faculdade, a menos que se pronuncie no debate dos calouros na sexta semana.

— O que é isso? — perguntou Fletcher.

— Porque é a única ocasião em que todos os calouros estão juntos num único local e têm a chance de ouvir qualquer candidato em perspectiva.

— Então, como é que você é selecionado como orador?

— Depende de que lado da moção você quer apoiar.

— E daí, o que é moção?

— Estou feliz por ver que você finalmente está se aquecendo com o desafio, porque esse é nosso próximo problema.

Jimmy retirou um folheto de um bolso interno.

— Resolvido: a América deveria se retirar da Guerra do Vietnã.

— Não vejo nenhum problema nisso — disse Fletcher. — Eu ficaria bastante feliz em me opor a tal moção.

— Esse é o problema — disse Jimmy — porque qualquer um que se oponha é história, mesmo que ele se pareça com Kennedy e fale como Churchill.

— Mas se eu apresentar um bom caso, eles podem sentir que eu era a pessoa certa para representá-los perante o conselho.

— Muito embora sendo persuasivo, Fletcher, seria suicídio, porque quase todo mundo no campus é contra a guerra. Então, por que não deixar isso para um louco que, em primeiro lugar, nunca desejou ser eleito?

— Isso se parece com alguém que conheço: eu — disse Fletcher — e, em todo caso, talvez eu acredite...

— Não me interessa aquilo em que você acredita — interrompeu Jimmy. — Meu único interesse é fazer com que você se eleja.

— Jimmy, você tem algum tipo de moral?

— Como poderia ter? — replicou Jimmy. — Meu pai é um político e minha mãe vende imóveis.

— A despeito do seu pragmatismo, eu ainda não poderia me ver falando a favor de um a tal moção.

— Então você está condenado a uma vida de estudos sem fim e a ficar segurando as mãos de minha irmã.

— Parece ótimo para mim — disse Fletcher — especialmente quando você me parece incapaz de ter um relacionamento sério com qualquer mulher por mais de vinte e quatro horas.

— Esta não é a opinião de Joanna Palmer — disse Jimmy. Fletcher deu uma gargalhada.

— E que tal sua outra amiga, Audrey Hepburn? Não a tenho visto no campus ultimamente.

— Nem eu tampouco — disse Jimmy — mas será apenas uma questão de tempo antes que eu conquiste o coração da Srta. Palmer.

— Nos seus sonhos, Jimmy.

Você irá, com o tempo, se desculpar, ó tu de fé tão pequena, e eu prevejo que isso será antes da sua desastrosa contribuição ao debate dos calouros.

— Você não mudará minha cabeça, Jimmy, porque se eu tomar parte no debate será para me opor à moção.

Você gosta de tornar a vida difícil para mim, não é, Fletcher? Bem, uma coisa e certa: os organizadores darão boas-vindas à sua participação. E por que isso? — perguntou Fletcher.

— Porque eles não foram capazes de encontrar ninguém metade elegível que esteja desejando colocar o caso contra a retirada.

— Você tem certeza? — perguntou Nat, baixinho.

— Sim, tenho — respondeu Rebecca.

— Então precisamos nos casar o mais breve possível — disse Nat.

— Por quê? — perguntou Rebecca. — Nós vivemos nos anos 60, a era Beatles, erva e amor livre; então, por que eu não poderia fazer um aborto?

— É isso que você quer? — perguntou Nat, descrente.

— Não sei o que quero — disse Rebecca. — Só descobri isso esta manhã. Preciso de um pouco mais de tempo para pensar a respeito.

Nat tomou sua mão.

— Eu me casaria hoje com você, se você também me quisesse.

— Sei que você o faria — disse Rebecca, apertando a mão dele — mas temos de encarar o fato de que esta decisão irá afetar o resto de nossas vidas. Não devemos nos precipitar.

— Mas tenho uma responsabilidade moral para com você e com nossa criança.

— E eu tenho meu futuro a considerar — disse Rebecca.

— Talvez devêssemos contar aos nossos pais e ver como é que eles reagem?

— Isso é a última coisa que quero fazer — disse Rebecca. — Sua mãe vai ficar nos esperando casar hoje à tarde e meu pai vai aparecer no campus com um revólver sob o braço. Não, quero que você prometa que não vai mencionar a ninguém que estou grávida, especialmente para nossos pais.

— Mas por quê?

— Porque existe outro problema...

— Como está se saindo no discurso?

— Acabei de terminar o terceiro rascunho — disse Fletcher alegremente -e você fica rá feliz em saber que é provável que eu me Torne o mais impopular dos estudantes do campus.

— Você gosta de tornar minha tarefa mais difícil...

— O impossível é o meu último objetivo — admitiu Fletcher. — Por falar nisso, contra quem?

— Um rapaz chamado Tom Russell.

— O que foi que descobriu a respeito dele?

— Esteve na Taft.

— O que significa que temos por onde começar — disse Fletcher com um largo sorriso.

— Não, temo que não — disse Jimmy. — Eu o encontrei no Mor's a noite passada e posso dizer que ele é inteligente e popular. Não consigo encontrar ninguém que não goste dele.

— Temos alguma coisa a nosso favor?

— Sim, ele admitiu que não está preocupado com o debate. Ele preferiria dar apoio a um outro candidato, se o candidato certo aparecesse. Vê a si próprio mais como um organizador de campanha do que como um líder.

— Então talvez pudéssemos pedir ao Tom que se unisse ao nosso time — disse Fletcher.

— Ainda estou procurando um organizador de campanha.

— Engraçado o bastante, ele ofereceu a mim aquele trabalho — disse Jimmy.

Fletcher fitou o amigo.

— É mesmo?

— Sim — respondeu Jimmy.

— Então terei de levá-lo a sério, não é mesmo? — Fletcher fez uma pausa. — Talvez devêssemos começar por rever meu discurso hoje à noite, aí você poderia me dizer se...

— Esta noite não será possível — disse Jimmy. — Joanna convidou-me Para ir jantar em sua casa.

— Ah, é? Isso me lembra que eu também não poderei ir hoje. Jackie Kennedy pediu-me que a acompanhasse ao Met.*

 

* Metropolitan Opera House (N T )

 

— E só agora você me diz isso? Joanna estava curiosa para saber se você e Annie não gostar iam de juntar-se a nós para um drinque na próxima quinta. Eu disse a ela que minha irmã estava vindo a New Haven para o debate.

— Está falando sério? — disse Fletcher.

— E se você se decidir por juntar-se a nós, por favor diga a Annie para não demorar por muito tempo, porque Joanna e eu gostamos de nos enfiar na cama por volta das dez...

Quando Nat descobriu o bilhete de Rebecca sob sua porta, ele percorreu o campus todo se perguntando o que poderia haver assim de tão urgente.

Quando ele se encaminhou para o quarto dela, ela virou o rosto quando ele tentou beijá-la e, sem explicações, trancou a porta. Nat sentou-se sob a janela, enquanto Rebecca enrodilhou-se aos pés da cama.

— Nat, tenho de lhe dizer uma coisa que venho evitando nos últimos dias. Nat inclinou a cabeça, pois ele podia perceber que Rebecca estava encontrando dificuldades para achar a palavra exata. Seguiu-se o que pareceu a ele um silêncio interminável.

— Nat, sei que você vai me odiar por isso...

— Sou incapaz de odiá-la — disse Nat, agora olhando diretamente para ela.

Ela encarou o seu olhar, mas depois abaixou a cabeça.

— Não tenho certeza de que você seja o pai... Nat agarrou os braços de sua poltrona.

— Como isso é possível? — perguntou ele, casualmente.

— Naquela semana em que você foi à Pensilvânia para a reunião sobre a corrida para atravessar o país, acabei indo a uma festa e receio ter bebido além da conta.

— Ela fez uma nova pausa. — Ralph Elliot juntou-se a nós e eu não me lembro de muito mais depois disso, exceto de acordar pela manhã e descobri-lo dormindo ao meu lado.

Nat ficou calado por um momento. Depois perguntou: — Você disse a ele que está grávida?

— Não — disse Rebecca. — Por que o faria? Ele quase não falou comigo desde então.

— vou matar aquele bastardo! — disse Nat, levantando-se da poltrona.

— Isso não vai ajudar — disse Rebecca, baixinho.

— Não muda nada — disse Nat, atravessando o quarto para tomá-la nos braços — porque ainda quero me casar com você. Em todo caso, a razão nos mostra ser mais provável que a criança seja minha.

— Mas você nunca teria certeza — disse Rebecca.

— Isso não é um problema para mim — disse Nat.

— Mas é um problema para mim — disse Rebecca — porque existe algo mais que eu ainda não disse a você...

No momento em que Fletcher adentrou o apinhado Woolsey Hall, lamentou ter seguido os conselhos de Jimmy. Sentou-se no banco oposto ao de Tom Russell, que o cumprimentou com um sorriso caloroso, quando uns mil estudantes começaram a cantar: "LBJ* Ei, ei, quantas crianças você matou hoje?"

 

* Lindon Johnson, presidente americano na época da Guerra do Vietnã, sucessor de John F. Kennedy, que havia sido assassinado (N T )

 

Fletcher levantou os olhos para seu oponente, quando este se ergueu do banco par a abrir o debate. Tom estava recebendo as boas-vindas da assembleia lotada com aclamação, antes mesmo que abrisse a boca. Para surpresa de Fletcher, parecia estar tão nervoso quanto ele, gotas de suor porejando em sua testa.

A multidão fez silêncio tão logo Tom começou a falar, mas ele havia pronunciado apenas duas palavras — "Lyndon Johnson" — e voltou a encorajá-lo. Ele esperou.

— Lyndon Johnson nos disse que era dever da América defender o Vietnã do Norte e sal var o mundo do comunismo aterrorizante. Digo que é dever do presidente não sacrificar nenhuma vida americana no altar de uma doutrina que, passado o tempo, vai defender a si mesma.

Uma vez mais a multidão irrompeu, desta vez em salvas, e passou-se quase um minuto antes que Tom pudesse prosseguir. Na verdade, o restante de suas palavras foi pontuado por tantas interrupções de aprovação que ele mal conseguiu proferir metade do seu discurso antes de chegar ao final do tempo que lhe era permitido.

As salvas voltaram a encorajá-lo no momento em que Fletcher levantou-se do seu lugar. Ele já havia decidido que este seria o último discurso em público que faria.

Esperou pelo silêncio que nunca chegou e quando alguém gritou Comece logo!", ele pro feriu suas primeiras palavras vacilantes: — Os gregos, os romanos e os ingleses, todos têm, a seu tempo, vestido o manto da liderança mundial — Começou Fletcher.

— Isso não é razão para fazermos o mesmo! — alguém berrou do fundo da sala.

— E após a queda do Império Britânico, logo após a Segunda Guerra Mundial — Começou Fletcher — aquela responsabilidade vem sendo passada Para os Estados Unidos, a maior nação sobre a Terra. Ouviu-se um aplauso insignificante na sala.

— Nós podemos nos sentar lá no fundo, é claro, e admitir que não valemos aquela responsabilidade, ou podemos oferecer liderança para milhões no mundo que admiram nosso conceito de liberdade e desejam imitar nosso modo de viver. Nós também poderíamos ir embora, permitindo que aqueles mesmos milhões sofressem as brincadeiras do comunismo no momento em que ele engolfa o mundo livre, ou poderíamos apoiá=los quando eles também procuram abraçar a democracia. Apenas a história será deixada para lembrar a decisão que fizermos, e a história não pode nos encontrar esperando.

Jimmy estava surpreso que eles tivessem prestado atenção, afinal, com apenas uma interrupção ocasional, e foi surpreendido também pelos aplausos respeitosos que Fletcher recebeu quando voltou ao seu lugar uns vinte minutos mais tarde. Ao final do debate, cada um naquela sala reconheceu que Fletcher havia vencido a argumentação, mesmo que Tom houvesse vencido a moção com uma margem acima de duzentos votos.

De alguma maneira Jimmy conseguiu parecer cheio de alegria depois que o resultado havia sido exposto para a multidão barulhenta.

— Não é senão um milagre — disse Jimmy.

— Algum milagre — disse Fletcher. — Você não percebeu que perdemos por duzentos e vinte e oito votos?

— Mas eu estava esperando descer a ladeira; portanto, considero duzentos e vinte e oito votos como sendo nada menos do que um milagre. Temos cinco dias para mudar as cabeças de cento e quatorze eleitores, porque muitos calouros aceitam que você seja a escolha óbvia para representá-los no diretório acadêmico — disse Jimmy quando eles se encaminharam para fora do Woolsey Hall com muitas pessoas sussurrando para Fletcher "Muito bem!" e "Boa sorte!".

— Achei que Tom Russell falou bem — disse Fletcher — mas, mais importante ainda, ele representa seus pontos de vista.

— Não, ele não fará mais do que manter a cadeira quente para você.

— Duvida que eu pergunte no que é que você está pensando? — disse Fletcher.

— Eu tinha um membro do nosso grupo presente todas as vezes em que ele fez um discurso. Durante a campanha ele fez quarenta e três promessas, a maior parte das quais não poderá cumprir. Depois de ele ter sido lembrado desse fato vinte vezes por dia, não acho que seu nome venha a aparecer na cédula para presidente.

— Jimmy, você já leu alguma vez O príncipe, de Maquiavel? — perguntou Fletcher.

— Não, por quê? Deveria?

— Não, não se incomode, ele não tem nada para ensinar a você. O que você fará depois do jantar, hoje à noite? — acrescentou, quando Annie atravessou a sal a para juntar-se a eles. Ela deu um grande abraço em Fletcher.

— Muito bem — disse ela — seu discurso foi brilhante!

— Que pena que outros duzentos não concordaram com você — disse Fletcher.

— Eles concordaram, mas a maioria deles havia decidido como é que ia votar muito antes de entrar na sala.

— Isso é exatamente o que venho tentando dizer a ele — disse Jimmy, voltando-se para Fletcher. — Minha irmã caçula está certa, e mais ainda...

— Jimmy, farei dezoito anos dentro de poucas semanas — disse Annie, fazendo cara feia para o irmão — só para o caso de você não haver notado.

— Notei, e alguns dos meus amigos até me dizem que você é passavelmente bonita, mas eu mesmo não consigo achar isso...

Fletcher deu uma gargalhada.

— Então, você vai juntar-se a nós, no Dino's?

— Não, você obviamente se esqueceu de que Joanna e eu convidamos vocês para jantar na casa dela?

— Eu não tinha me esquecido — disse Annie — e mal posso esperar para conhecer a mulher que amarrou meu irmão por mais de uma semana.

— Não tenho olhado para outra mulher desde o dia em que a conheci — disse Jimmy, baixinho.

— Mas ainda quero me casar com você — disse Nat, abraçado a ela.

— Mesmo não tendo certeza de quem seja o pai?

— Isso é mais uma razão para nos casarmos, pois assim você nunca duvidará do meu compromisso.

— Nunca duvidei, nem sequer por um só momento — disse Rebecca — ou que você seja um homem bom e decente. Mas você já considerou a possibilidade de que eu não o ame o suficiente para querer passar o resto da minha vida com você?

Nat afastou-se dela e olhou-a nos olhos.

— Perguntei a Ralph o que ele faria se a criança fosse dele, e ele concordou comigo que eu deveria fazer um aborto.

Rebecca colocou a palma da mão no rosto de Nat.

— Não há muitas de nós que possam viver com Sebastian, e certamente não sou Olivia.

Ela retirou a mão e rapidamente deixou o quarto, sem mais palavras.

Nat deitou-se na cama dela sem prestar atenção à noite que caía. Ele não podia parar de pensar sobre seu amor por Rebecca e no seu ódio por Elliot. Adormeceu, e acordou apenas quando o telefone tocou.

Nat ouviu uma voz familiar e congratulou-se com seu velho amigo quando ouviu as novidades.


13

 

 

QUANDO NAT FOI APANHAR sua correspondência no diretório acadêmico, ficou feliz por descobrir que recebera três cartas: uma enxurrada. Uma delas tinha a inconfundível caligrafia de sua mãe. A segunda fora postada em New Haven, daí ele ter deduzido que devia ser de Tom. A terceira era um envelope pardo contendo o cheque mensal da bolsa de estudos, que ele ia descontar imediatamente, pois suas reservas estavam muito baixas. Ele atravessou o campus para McConaughy e apanhou uma cumbuca de cereais e umas duas torradas, evitando os ovos mexidos feitos de um preparado em pó. Tomou um lugar vago no canto mais distante do refeitório e abriu a carta de sua mãe. Sentiu-se culpado por não haver escrito para ela por pelo menos duas semanas. Faltavam apenas uns dias para os feriados de Natal, então esperava que ela compreendesse se ele não respondesse imediatamente. Ele tivera uma longa conversa com ela ao telefone, no dia seguinte ao rompimento do namoro com Rebecca. Nat não tinha mencionado que ela estava grávida, nem era qualquer razão em particular para que houvessem terminado.

 

"Meu querido Nathaniel" — ela nunca o chamou de Nat. Se alguém houvesse alguma vez uma carta de sua mãe, acreditava que eles haviam aprendido tudo que precisavam saber sobre ela. Clara, acurada, informativa, cuidadosa de alguma forma, deixando a impressão de estar sempre atrasada para o próximo compromisso. Ela sempre terminava com as palavras Tenho de correr; te amo, mãe. A única novidade que ela tinha realmente para contar era a promoção do seu pai para gerente regional, o que significava que não ia mais ter de gastar horas sem fim na estrada, mas no futuro estaria trabalhando em Hartford.

 

"Papai está deliciado com a promoção e o aumento salarial, o que significa que nós já podemos nos dar ao luxo de um segundo carro. Mas ele já está sentindo falta do contato pessoal com os clientes."

 

Nat comeu mais uma colher de cereal antes de abrir a carta de New Haven. A missiva de Tom era datilografada e ocasionalmente continha erros de escrita, provavelmente causados pelo excitamento da descrição sobre a vitória de sua eleição. Em sua forma descontraída de ser, Tom relatava que havia vencido só porque seu oponente havia feito um discurso apaixonado defendendo o envolvimento da América na Guerra do Vietnã, que não havia ajudado sua causa quando chegou a hora da votação. Nat gostou do Tom de Fletcher Davenport e compreendeu que ele poderia ter concorrido contra ele se tivesse ido para Yale. Ele mordia sua torrada enquanto lia a carta de Tom: "Fiquei chateado ao ouvir que você terminou com Rebecca. É irreconciliável?" Nat levantou os olhos da carta, sem certeza sobre a resposta para aquela pergunta, ainda que compreendesse que seu velho amigo não ficaria surpreso de forma alguma quando descobrisse que Ralph Elliot estava envolvido.

Nat passou manteiga em mais uma torrada e, por um momento, considerou se uma reconciliação ainda seria possível, mas rapidamente retornou ao mundo real. Afinal, ele ainda planejava entrar para Yale, tão logo completasse seu primeiro ano.

Finalmente, Nat voltou sua atenção para o envelope pardo e decidiu que ia descontar o cheque mensal no banco antes da primeira aula — diferente de alguns dos seus colegas, ele não podia dar-se ao luxo de deixar que suas magras economias quase chegassem ao vermelho. Ele abriu uma fenda no envelope e ficou surpreso ao descobrir que o cheque não estava incluso, apenas uma carta. Desdobrou a única folha de papel e arregalou os olhos para o conteúdo, em descrédito:

 

SISTEMA DE SELEÇÃO DE SERVIÇO

ORDEM DE RESPONDERÃO

EXAME FÍSICO PARA AS FORÇAS ARMADAS

Para:

Nathaniel Cartwright Universidade de Connecticut North Bagleville Road Storrs, Connecticut

Escritório Local Nº 21 Sistema de Seleção de Serviço 205 Walter Street Rockville, CT

14 de dezembro de 1966

SERVIÇO DE SELEÇÃO Nº 621 48270

Solicita-se que V.S. se apresente ao exame físico para as Forças Armadas, no escritório local indicado acima, dirigindo-se à: Estrada 195 com 44 (esquinas de Mansfield), Storrs, Connecticut (Local de atendimento)

 

Nat colocou a carta sobre a mesa à sua frente e considerou as consequências. Ele aceitou que o recrutamento fosse uma loteria, e seu número havia surgido. Seria moralmente certo fazer um pedido de isenção só porque ele era um estudante ou deveria ele, como seu velho pai houvera feito em 1942, inscrever-se e servir a seu país? Seu pai houvera passado dois anos na Europa, com a Oitava Divisão, antes de voltar para casa com a Purple Heart. Passados vinte e cinco anos ele sentia muito fortemente ainda, que a América deveria desempenhar um papel no Vietnã. Será que tais sentimentos se aplicavam somente àqueles americanos não educados, aos quais se dava uma escolha muito pequena?

Nat imediatamente telefonou para casa, e não ficou surpreso quando seus pais tiveram um dos seus raros desentendimentos sobre o assunto. Sua mãe não tinha sombra de dúvida de que ele deveria completar seus estudos e depois reconsiderar sua posição; a guerra já teria acabado, então. O presidente Johnson não o havia prometido durante a campanha eleitoral? Seu pai, por outro lado, sentia que, embora fosse uma interrupção de pouca sorte, não era mais do que um dever de Nat responder ao chamado. Se todos decidissem queimar seus cartões de recrutamento, um estado de anarquia prevaleceria, foi a palavra final de seu pai sobre o assunto.

Ele logo telefonou para Tom, em Yale, para descobrir se ele havia recebido uma notificação de recrutamento.

— Sim, recebi — disse Tom.

— Você a queimou? — perguntou Nat.

— Não, não cheguei tão longe, embora eu conheça muitos estudantes que o fizeram.

— Isso significa que você vai se alistar?

— Não, não tenho sua fibra moral, Nat. vou enveredar por um caminho legal. Meu pai encontrou um advogado em Washington que se especializou em isenção, e ele tem plena confiança de que pode me conseguir esse deferimento, pelo menos até que eu tenha me formado.

— E que tal aquele rapaz que concorreu com você para representante dos calouros e sentiu tão fortemente a responsabilidade da América na questão dos que desejaram participar da democracia? Qual foi a decisão que ele tomou? — perguntou Nat.

— Não tenho a menor ideia — disse Tom — mas se o nome dele surgir na votação, você provavelmente vai se encontrar com ele na linha de frente.

À medida que os meses passavam e nenhum envelope pardo aparecia em seu escaninho de correspondência, Fletcher começou a acreditar que ele se encontrava entre os afortunados que não tinham vencido a eleição. Entretanto, ele já tinha decidido qual ser ia sua resposta se o magro envelope pardo aparecesse.

Quando Jimmy foi chamado, consultou o pai imediatamente, que o aconselhou a solicitar uma isenção enquanto ele ainda fosse universitário, mas deixando claro que desejaria reconsiderar sua posição nos próximos três anos. Ele também lembrou a Jimmy que, naquela ocasião, eles talvez já tivessem um novo presidente, uma nova legislação e uma forte possibilidade de que os americanos não mais estivessem no Vietnã.

Jimmy aceitou os conselhos do pai e deixou transparecê-los quando discutiu a questão moral com Fletcher.

— Não tenho a intenção de arriscar minha vida contra um bando de Vietcongs que irão, a o final, sucumbir ao capitalismo, mesmo que eles falhem, em curto prazo, ao responder à superioridade militar.

Annie concordou com os pontos de vista do irmão, e ficou aliviada ao saber que Fletcher não havia recebido nenhuma notificação de recrutamento. Ela não tinha nenhuma dúvida sobre como ele responderia.

No dia 5 de janeiro de 1967, Nat foi ao escritório local de recrutamento.

Depois de um rigoroso exame médico, ele foi entrevistado pelo major Willis. O major ficou impressionado; Cartwright obteve noventa e dois por cento de aprovação em sua pré-introdução física, tendo passado a manhã com rapazes que vieram com umas cem diferentes razões pelas quais o major deveria considerá-los incapacitados fisicamente para servir. À tarde, Nat realizou o teste de classificação geral e obteve noventa e sete por cento.

Na noite seguinte, juntamente com outros cinquenta aspirantes, Nat tomou um ônibus com destino a New Jersey. Durante a viagem — vagarosa, interminável, através das rotas estaduais — Nat brincou com as bandejinhas Plásticas de comida que vieram com seu almoço de caixinha, antes de cair num sono profundo.

O ônibus finalmente encostou em uma vaga de Fort Dix nas primeiras horas da manhã. Os que seriam e os que não seriam aprovados como soldados desceram para serem saudados pelos gritos dos responsáveis pela tropa. Eles foram prontamente alojados em cabanas pré-fabricadas e tiveram permissão para dormir por umas duas horas.

Na manhã seguinte, Nat levantou-se às cinco — ele não tinha outra escolha — e depois de ter ido cortar rapidamente os cabelos, recebeu o uniforme para serviços pesados. Todos os cinquenta novos recrutas receberam permissão de escrever uma carta para seus pais, enquanto que, ao mesmo tempo, devolviam cada objeto pessoal ao local de registro.

Durante o dia, Nat foi entrevistado pelo especialista de quarta classe, Jackson, que, tendo averiguado seus documentos, tinha só uma dúvida: — Você compreende que poderia ter solicitado isenção, Cartwright?

— Sim, senhor, sei.

O especialista Jackson levantou uma sobrancelha: — E tendo sido aconselhado a isso você tomou a decisão em contrário?

— Não precisei ser aconselhado, senhor.

— bom, então assim que haja completado seu treinamento básico, recruta Cartwright, tenho certeza de que desejará se inscrever para a escola de cadetes.

Ele fez uma pausa.

— Apenas dois entre cinquenta o conseguem; portanto, não tenha tantas esperanças. Falando nisso — acrescentou — não me chame de senhor. Especialista de quarta classe será ótimo.

 

 

Depois de anos de corridas em campo aberto, Nat se considerava em boa forma, mas descobriu bem depressa que o Exército dava um sentido diferente para a palavra, não totalmente explicado pelo Webster. E, com respeito à outra palavra, "básicos", tudo era básico: a comida, a roupa, o aquecimento e, especialmente, a cama em que ele esperava dormir. Nat só podia concluir que as Forças Armadas estavam importando seus colchões diretamente do Vietnã do Norte, de modo que todos pudessem experimentar as mesmas privações do inimigo.

Pelas próximas oito semanas, Nat levantou-se às cinco todas as manhãs, tomou uma ducha fria — "quente" é uma palavra que simplesmente não existe no vocabulário do Exército — vestiu-se, alimentou-se e dobrou suas roupas perfeitamente aos pés da cama antes de ficar na posição de atenção, na formação do canteiro, às seis da manhã, juntamente com todos os outros membros do pelotão Alfa da Segunda Companhia.

A primeira pessoa a dirigir-se a ele todas as manhãs era o sargento de exercícios Al Quamo, que sempre parecia tão desperto que Nat presumiu que ele devia levantar-se às quatro para passar a ferro seu uniforme. E se Nat tentasse falar com qualquer um nas próximas quatorze horas, Quamo queria saber quem e por quê. O sargento de exercícios era da mesma altura que Nat, e ali terminavam as semelhanças. Nat nunca ficou em pé tempo suficiente para contar as medalhas do sargento.

— Sou sua mãe, seu pai e seu amigo mais chegado — ele baixou o Tom da voz. — Vocês me ouviram?

— Sim, senhor! — berraram trinta e seis soldados rasos do Segundo Pelotão. — Você é minha mãe, meu pai e meu amigo mais chegado!

A maioria do pelotão tinha solicitado uma isenção, que fora recusada. Muitos deles consideravam Nat um louco por se oferecer como voluntário, e passaram-se algumas semanas antes que eles mudassem suas ideias a respeito do rapaz de Cromwell. Muito antes que o treinamento terminasse, Nat passara a ser o conselheiro do pelotão, o escritor de cartas e o confidente. Ele até ensinou dois recrutas a ler. Nat não contou à sua mãe o que eles o haviam ensinado em troca. Na metade do treinamento, Quamo o elevou a líder do esquadrão.

Ao final de dois meses de tarefas, Nat passou a ser o primeiro em tudo que envolvesse letras. Também surpreendeu seus colegas falastrões superando-os em todas as corridas em campo aberto, e ainda que jamais houvesse atirado com uma arma antes do treinamento básico, suplantou os rapazes de Queens quando chegou a hora de manusear a metralhadora M60 e de lançar granadas M70. Eles tinham uma prática maior com as ar mas menores.

Não se passaram oito semanas para que Quamo mudasse suas ideias sobre as possibilidades de Nat fazer a Escola de Cadetes. Diferente de todos os outros patetas enviados a Nam, ele descobriu que Nat era um líder nato. — Ponha na sua cabeça — alertou Quamo para Nat — que é tão provável que um segundo-tenente tenha seu traseiro chutado quanto um soldado raso, Porque uma coisa é certa, o Vietcong não sabe a diferença.

O sargento Quamo voltou-se para a direita, porque apenas dois soldados foram selecionados para ir a Fort Benning. O outro era um universitário do terceiro pelotão chamado Dick Tyler.

Para as primeiras três semanas em Fort Benning, o cartaz de atividades principais estava em paralelo com os capacetes pretos. Os instrutores de paraquedismo levaram seus novos recrutas através dos locais de pouso, primeiro de um muro de onze metros e cinquenta e cinco centímetros, e mais tarde, de uma apavorante torre de noventa e nove metros. Dos duzentos recrutas que começaram o treinamento, menos de cem conseguiram ir até o estágio seguinte. Nat estava entre os dez finalistas escolhidos para vestir o capacete branco durante a semana de salto. Quinze saltos mais tarde, era chegada a hora de ele usar asas prateadas pregadas no seu peito.

Quando Nat voltou para casa, numa folga de fim de semana, sua mãe mal pôde reconhecer a criança que a deixara três meses atrás. Ela fora substituída por um homem quase três centímetros mais alto e bem mais magro, com os cabelos cortados à escovinha, que fizeram seu pai se lembrar dos seus dias na Itália.

Depois do breve descanso, Nat voltou a Fort Benning, colocou de volta as reluzentes botas Corcoran de saltar, jogou a mochila-barraca sobre os ombros e tomou um curto atalho pelo ar, pulando para o outro lado da estrada.

Ali ele começou seu treinamento como oficial de infantaria. Embora se levantasse tão cedo todas as manhãs, ele agora gastava seu tempo muito mais nas salas de aula estudando história militar, lendo mapas, aprendendo tática e estratégia de comando, juntamente com outros setenta aspirantes a oficiais, que também estavam se preparando para serem enviados ao Vietnã. A estatística sobre a qual ninguém falava era a de que mais de cinquenta por cento deles podiam esperar voltar num saco de defunto.

— Joanna vai ter de enfrentar um inquérito disciplinar — disse Jimmy, sentando-se aos pés da cama de Fletcher. — Apesar de que eu é que deveria sofrer a ira da comissão de ética — acrescentou.

Fletcher tentou acalmar o amigo, mas ele nunca o vira tão exasperado.

— Por que eles não podem compreender que não é crime se apaixonar?

— Acho que eles descobrirão que, ao contrário, estão mais preocupados sobre as consequências do acontecimento — disse Fletcher.

— O que você quer dizer? — perguntou Jimmy, olhando para cima.

— Simplesmente que a administração está genuinamente preocupada sobre os professores tirarem vantagem das universitárias influenciáveis.

— Mas eles não sabem quanto esse caso é verdadeiro? — perguntou Jimmy. — Qualquer um pode ver que eu adoro Joanna e que ela sente o mesmo por mim.

— E eles talvez até houvessem fechado os olhos para o seu caso se vocês não o houvessem tornado tão público.

— Eu gostaria de acreditar que você, entre todos os demais, teria respeitado Joanna pela sua recusa em não se fazer de ingênua sobre o assunto — disse Jimmy.

— Eu a respeito — disse Fletcher — mas ela não deixou alternativa às autoridades senão responder àquela honestidade, devido aos regulamentos da universidade.

— Então são os regulamentos que precisam mudar — disse Jimmy. — Joanna acredita, com o professora, que não deveria ter de esconder seus verdadeiros sentimentos. Ela quer ter certeza de que a próxima geração nunca tenha de sofrer os mesmos preconceitos.

— Jimmy, não estou discordando de você e, conhecendo Joanna, sei que ela terá pensado cuidadosamente sobre aqueles regulamentos e terá um ponto de vista forte sobre a relevância da regra 17b.

— Claro que ela pensa, mas Joanna não vai ficar noiva só para não deixar o conselho na berlinda.

— Esta é aquela mulher a quem você perguntou se podia carregar os livros — disse Fletcher.

— Nem me lembre disso — respondeu Jimmy. — Você sabe que agora eles a estão aplaudindo no começo e no fim de cada aula que ela dá?

— Então, quando é que a comissão de ética convencionou fazer a decisão?

— Na próxima quarta-feira, às dez horas. Vai ser um meio-feriado aquele dia. Eu só desejaria que meu pai não viesse para a reeleição no outono.

— Eu não me preocuparia com seu pai — disse Fletcher. — Minha aposta é que ele já terá descoberto uma forma de contornar o problema para vantagem dele.

Nat nunca havia esperado vir a ter contato com seu oficial-comandante, e não o ter ia feito se sua mãe não tivesse estacionado seu carro na vaga reservada ao coronel.

Quando o pai de Nat avistou a indicação "COMANDANTE", sugeriu que ela desse marcha à ré rapidamente. Susan voltou atrás depressa demais e colidiu com o jipe do coronel Tremlett, assim que ele entrou.

— Ó Deus! — disse Nat ao descer do carro.

— Eu não iria tão longe — disse Tremlett. — O coronel ficará bem.

Nat ergueu-se em posição de sentido e saudou-o quando seu pai furtivamente examinou as medalhas do comandante.

— Nós devemos ter servido juntos — disse ele, fixando o olhar sobre uma fita vermelha e verde entre as agrupadas em seu peito. O coronel levantou os olhos do para-lama onde estava examinando um amassado. — Eu estive com a Oitava, na Itália — explicou o pai de Nat.

— Espero que o senhor tenha manobrado aqueles tanques Sherman um pouco melhor do que dirige um carro — disse o coronel quando os dois homens apertaram-se as mãos. Michael não mencionou que era sua mulher quem dirigia. Tremlett olhou para Nat. — Cartwright, não é?

— Sim, senhor — disse Nat, surpreso pelo fato de o oficial-comandante saber seu nome.

— Parece que seu filho será o primeiro da classe quando se graduar na próxima semana — disse Tremlett, voltando a atenção para o pai de Nat.

Fez uma pausa.

— Eu talvez tenha uma designação em mente para ele — acrescentou sem explicação. — Dirija-se ao meu escritório às oito, amanhã pela manhã, Cartwright.

O coronel sorriu para a mãe de Nat e apertou as mãos de seu pai novamente antes de se voltar para Nat: — E se eu vir uma mossa naquele para-lama quando eu sair esta noite, Cartwright, você pode esquecer sua próxima folga.

O coronel piscou para a mãe de Nat quando o rapaz se colocou em posição de sentido e saudou-o outra vez.

Nat passou a tarde ajoelhado, com um martelo e um vidro de tinta caqui.

 

Na manhã seguinte, Nat chegou ao escritório do coronel às 7h45, e foi surpreendido ao ser enviado diretamente para ver o comandante. Tremlett apontou-lhe uma poltrona do outro lado de sua mesa.

— Então, você ficou acordado e ficou contando, Nat — foram as primeiras palavras do coronel enquanto dava uma olhada na sua pasta. — O que é que você gostaria de fazer a seguir?

Nat olhou para o coronel Tremlett, um homem com cinco fileiras de condecorações em seu peito. Ele combatera na Itália e na Coreia e tinha voltado recentemente de um tour de obrigações pelo Vietnã. Seu apelido era "o terrier", porque gostava de estar muito próximo ao inimigo, a ponto de poder "morder seus calcanhares". Nat respondeu àquela pergunta imediatamente.

— Espero ser considerado entre os que serão enviados ao Vietnã, senhor.

— Não é necessário que você sirva no setor asiático — disse seu oficial-comandante. — Você tem provado seu ponto, e existem muitos outros postos que posso recomendar, variando de Berlim a Washington D.C., de forma que assim que completar dois anos possa voltar à universidade.

— Isso, entretanto, encerra o assunto, não é mesmo, senhor?

— Mas é praticamente desconhecido mandar-se um oficial alistado para Nam — disse o oficial-comandante — especialmente um do seu calibre.

— Então, talvez tenha chegado a hora de alguém quebrar o costume. Afinal de contas, isso é o que o senhor fica nos lembrando sobre o que seja liderança.

— E se eu lhe pedisse que completasse seu serviço como meu oficial de pessoal? Pode me assessorar aqui na academia com a próxima leva de falastrões.

— De tal forma que todos eles possam ir ao Vietnã e serem eles próprios mortos?

Nat olhou por cima da mesa do oficial-comandante. Ele imediatamente se arrependeu de ter ultrapassado o sinal.

— Você sabe qual foi a última pessoa que sentou nessa cadeira e que me disse que estava determinado a ir para Nam, e nada do que eu dissesse mudaria sua opinião?

— Não, senhor.

— Meu filho, Daniel — respondeu Tremlett — e naquela ocasião não tive outra escolha senão aceitar sua decisão.

O coronel fez uma pausa, dirigindo o olhar para a foto sobre sua mesa, que podia ver.

— Ele sobreviveu por onze dias...

 

 

 

PROFESSORA UNIVERSITÁRIA SEDUZ FILHO DE SENADOR — gritava a manchete do New Haven Register.

— Isso é um maldito insulto! — disse Jimmy.

— O que você quer dizer? — disse Fletcher.

— Eu a seduzi.

Quando Fletcher parou de gargalhar, ele continuou a ler o artigo da primeira página: Joanna Palmer, uma professora de história europeia em Yale, teve seu contrato quebrado pelo comitê de ética da universidade, depois de admitir que estava tendo um caso com James Gates, um calouro que ela vinha ensinando nos últimos seis meses.

O Sr. Gates é filho do senador Harry Gates. Na noite passada, de sua casa a leste de Hartford...

Fletcher levantou os olhos.

— Como foi que seu pai recebeu isso?

— Ele me disse que vencerá "por uma ladeira" — disse Jimmy. — Todos os grupos de direitos da mulher estão apoiando Joanna, e todos os homens pensam que sou a coisa mais fria desde o filme A primeira noite de um homem, com Dustin Hoffman. Papai também acredita que o comitê não terá nenhuma escolha senão reverter sua decisão muito antes que o semestre termine.

— E se eles não reverterem? — perguntou Fletcher. — Qual a chance que Joanna terá de conseguir um novo emprego?

— Este é o menor dos seus problemas — replicou Jimmy — porque o telefone não parou de tocar desde que o comitê anunciou sua decisão. Tanto Radeliffe, onde ela conseguiu seu grau de universitária, quanto Columbia, onde ela completou seu Ph.D., têm oferecido trabalho a ela, e isso foi antes da concentração de opiniões relatadas na coluna Today Show, de que oitenta e dois por cento de seus leitores pensaram que ela deveria ser readmitida.

— Então o que é que ela pensa fazer agora?

— Apelar, e aposto que o comitê não será capaz de ignorar a opinião pública.

— Mas onde é que você fica nisso tudo?

— Ainda quero me casar com Joanna, mas ela não quer ouvir falar nisso até saber os resultados de seu julgamento. Ela se recusa a ficar noiva, caso isso influencie o comitê a seu favor. Está determinada a ganhar o caso pelos próprios méritos, não pelo sentimento público.

— Esta é uma mulher fabulosa com a qual você acabou se envolvendo — disse Fletcher.

— Concordo — disse Jimmy. — E você não sabe da missa a metade.


14


"TENENTE NAT CARTWRIGHT" estava gravado na porta de seu pequeno escritório no quartel-general da MACV antes mesmo que ele chegasse a Saigon. Rapidamente ficou claro para Nat que ele estava para ser delimitado pela própria vista, não lhe sendo permitido sequer descobrir onde a linha de frente ficava. Na chegada ele não se juntou ao seu regimento no campo, mas foi designado para o Serviço de Apoio em Combate. Os despachos do coronel Tremlett tinham obviamente chegado a Saigon muito antes dele.

Nat foi designado oficial de intendência, o que permitia aos acima dele que empilhassem a documentação, e aos abaixo dele que cumprissem suas ordens. Todos pareciam envolvidos no planejamento, um planejamento que fazia Nat usar cada hora de trabalho no arquivamento de formulários para itens tão díspares quanto baked beans e helicópteros Chinook. Setecentas e vinte e duas toneladas de suprimentos eram enviadas de avião para a capital toda semana, e era dever de Nat ver se eles chegavam à linha de frente. A cada mês ele manobrava cerca de nove mil itens. Tudo parecia chegar lá, à exceção dele. Ele até recorreu, dormindo com a secretária do oficial de comando, mas logo descobriu que Mollie não tinha uma influência real sobre seu chefe, embora tivesse descoberto sobre seu considerável conhecimento de combate não armado.

Nat começou deixando o escritório mais e mais tarde a cada noite, e começou mesmo a se perguntar se, de fato, ele estava num país estrangeiro. Quando você tem um Big Mac e uma Coca-Cola como almoço, um Kentucky Fried Chicken com uma Budweiser como jantar e volta ao quartel dos oficiais todas as noites para assistir à ABC News e reprises de 77 Sunset Strip, que provas tem de ter saído de casa?

Nat fez inúmeras e discretas tentativas de juntar-se ao seu regimento na linha de frente, mas acabou por compreender que a influência do coronel Tremlett permeava por todas as partes; suas inscrições acabariam por cair na mesa dele, um mês mais tarde, carimbadas: Recusado; tente novamente em um mês.

Sempre que Nat solicitava uma entrevista para discutir o problema com um oficial -de-campo, ele nunca conseguia ver ninguém, do pessoal, acima da patente de major.

Em cada uma das ocasiões, um oficial diferente levaria meia hora tentando convencê-lo de que estava realizando um trabalho valioso e necessário com as requisições.

Seu arquivo de combate era o mais acurado de Saigon.

Nat estava começando a compreender que o fato de se manter sobre um princípio não havia servido a nenhum propósito. No período de um mês, Tom estaria começando seu segundo ano em Yale, e, afinal, o que é que ele tinha para mostrar pelos seus esforços a não ser um cabelo à escovinha e um conhecimento interno de quantos clipes de papel o Exército requeria a cada mês no Vietnã?

Nat estava sentado em seu escritório, preparando-se para a nova leva de falastrões prontos para se apresentarem na próxima segunda-feira, quando tudo aquilo mudou.

Acomodações, roupas e documentos de viagem o tinham mantido ocupado o dia todo, e bem até a noite. Estava carimbado Urgente em muitos deles, uma vez que o oficial-comandante queria ter um resumo completo sobre o background de cada novato antes que eles descessem em Saigon. Nat não havia notado quanto tempo a tarefa havia levado e, quando completou o formulário final, decidiu deixá-los no escritório do ajudante antes de agarrar alguma coisa para comer em meio à bagunça do oficial.

Quando passou de volta pela sala de Operações, ele experimentou uma raiva súbita: todo o treinamento em que ele havia sido colocado entre Fort Dix e Fort Benning tinha sido uma completa perda de tempo. Embora já estivesse próximo das oito horas, havia ainda umas doze ou mais operações, algumas das quais ele reconhecera, respondendo aos telefonemas e atualizando um grande mapa operacional do Vietnã do Norte.

No seu trajeto de volta do escritório do ajudante, Nat deu uma parada na sala de operações para ver se alguém estava livre para ir jantar com ele. Ele se descobriu ouvindo os movimentos das tropas do Segundo Batalhão, 503º Regimento de Paraquedismo da Infantaria. Ele teria saído de fininho e ido para a barulheira sozinho se não fosse seu próprio regimento. O Segundo Batalhão estava enfrentando uma barreira de fogo mortal dos Vietcongs e estava encurralado do lado errado do rio Dyng, defendendo-se de uma investida seguinte. O telefone vermelho sobre a mesa à frente de Nat começou a tocar insistentemente. Nat não moveu um músculo.

— Não fique aí parado, tenente, atenda e descubra o que eles querem — ordenou o oficial de operações. Nat rapidamente obedeceu à ordem.

— Mayday, Mayday, aqui é o capitão Tyler, está conseguindo me entender?

— Estou, capitão, aqui é o tenente Cartwright. Em que posso ajudar, senhor?

— Meu pelotão está sendo emboscado por Victor Charlie logo acima do rio Dyng, grade de referência SE42 NNE71. Preciso de um voo de Hueys com apoio médico total. Tenho noventa e seis homens, onze dos quais já deram baixa, três mortos, oito feridos.

Um sargento do grupo falou de outro telefone.

— Como é que consigo resgate de emergência? — perguntou Nat.

— Contate a base Blackbird no Campo Eisenhower. Pegue o telefone branco e dê ao oficial de guarda a grade de referência.

Nat agarrou o telefone branco e uma voz sonolenta respondeu.

— Aqui é o tenente Cartwright. Temos um Mayday. Dois pelotões presos no lado norte do rio Dyng, grade de referência SE42 NNE71; eles foram emboscados e requerem assistência imediata.


— Diga-lhes que estaremos fora do chão e a caminho em cinco minutos — disse a voz, agora totalmente alerta.

— Posso juntar-me a vocês? — perguntou Nat, fechando sua mão sobre o microfone, esperando a inevitável rejeição.

— Você tem autorização para voar?

— Sim, tenho — mentiu Nat.

— Alguma experiência com paraquedas?

— Treinado em Fort Benning — disse Nat —, dezesseis saltos a cento e noventa e oito metros de S-123s, e, em todo caso, é o meu regimento lá fora.

— Então, se você puder chegar aqui a tempo, tenente, seja meu hóspede.

Nat recolocou o fone branco no gancho e retornou ao vermelho.

— Eles estão a caminho, capitão — foi tudo que conseguiu dizer.

Nat fugiu da sala de "ops" e foi para o estacionamento. Um oficial não comissionado estava cochilando na direção de um jipe. Nat pulou para dentro, ao lado dele, bateu com a mão na buzina e disse: — Base do Pássaro Negro em cinco minutos.

— Mas isso é mais ou menos a seis quilômetros e quatrocentos daqui, senhor — disse o motorista.

— Então você precisa começar a se mexer, não é verdade, oficial? — gritou Nat.

O oficial mudou a marcha, engrenou o jipe e acelerou para fora do estacionamento, todos os faróis acesos, deixando uma das mãos sobre a buzina e a outra na alavanca de marchas.

— Mais rápido, mais rápido! — repetia Nat, enquanto aqueles que ainda estavam nas ruas de Saigon, depois do toque de recolher, levantaram de seu caminho junto com diversas galinhas assustadas. Três minutos depois, Nat vislumbrou uma dúzia de helicópteros Huey no ar, no campo de pouso à frente. As hélices de um deles já estavam girando.

— Pise fundo — repetia Nat.

— Já estou tocando o chão, senhor — replicou o oficial, quando os portões do campo de pouso apareceram. Nat contou novamente: sete dos helicópteros tinham agora as hélices girando.

— Merda! — disse ele quando o primeiro levantou voo.

O jipe guinchou em uma guarita dos portões para o recinto, onde um PM pediu para ver suas identidades.

— Tenho de estar dentro de um daqueles helicópteros em um minuto! — berrou Nat, passando-lhe seus documentos. — Você pode se apressar?

— Só estou fazendo meu trabalho, senhor — disse o PM enquanto checava os documentos de ambos.

Uma vez que as carteiras de identidade dos dois haviam sido devolvidas, Nat apontou para o helicóptero cujas hélices ainda não estavam rodando e o oficial arrancou em direção a ele, derrapando perto da guarita do portão aberto assim que as hélices começaram a girar.

O piloto olhou para baixo e abriu um sorriso.

— Você quase não conseguia, tenente — disse ele. — Suba a bordo. O helicóptero tinha subido antes mesmo que Nat tivesse a chance de apertar seu cinto de segurança.

— Você quer ouvir as más notícias ou as más notícias? — perguntou o piloto.

— Experimente-me — disse Nat.

— A regra em qualquer emergência é sempre a mesma. O último a sair do chão é o primeiro a pousar no território inimigo.

— E as más notícias?

— Quer se casar comigo? — perguntou Jimmy.

Joanna virou-se e olhou para o homem que lhe tinha trazido mais felicidade no último ano do que ela jamais poderia ter imaginado possível.

— Se você ainda desejar me fazer a mesma pergunta no dia em que se graduar, calouro, minha resposta será sim, mas hoje a resposta ainda é não.

— Mas por quê? O que poderia ter, de alguma forma, mudado no período de um ano ou dois?

— Você estará um pouquinho mais velho e, espero, com um pouco mais de visão — disse Joanna com um sorriso. — Tenho vinte e cinco anos e você ainda não fez vinte.

— Que diferença isso pode fazer se queremos passar o resto de nossas vidas juntos?

— Talvez você não sinta da mesma maneira quando eu tiver cinquenta e você quarenta e cinco.

— Você entendeu tudo errado — disse Jimmy. — Aos cinquenta você ainda estará na flor da idade e eu serei uma palha seca... portanto, é melhor que você me agarre agora, enquanto ainda tenho alguma energia reservada!

Joanna caiu na gargalhada.

— Tente não se esquecer, calouro, de que aquilo pelo que passei durante as últimas semanas pode ter afetado, também, seu julgamento.

— Eu não concordo. Acredito que a experiência só pode ter estreitado as nossas relações.

— É possível — disse Joanna — mas, no longo prazo, você nunca deveria tomar uma decisão irreversível em apoio às boas e às más notícias, porque é bem possível que um de nós venha a sentir-se diferente quando tudo isso passar.

— Você sente diferentemente? — perguntou Jimmy, baixinho.

— Não, não sinto — disse Joanna firmemente, tocando seu queixo. — Mas meus pais foram casados por quase trinta anos, e meus avós viveram para celebrar suas bodas de ouro; portanto, quando eu me casar, quero que seja para o resto da vida.

— São mais e mais razões para nos casarmos o mais breve possível — disse Jimmy. — Afinal de contas, terei de viver até a idade de setenta anos se esperarmos celebrar nossas bodas de ouro.

Joanna deu uma gargalhada.

— Aposto que seu amigo Fletcher concordaria comigo.

— Pode ser que você esteja certa, mas não está se casando com Fletcher. Em todo caso, minha aposta é que ele e minha irmã ficarão juntos por, pelo menos, cinquenta anos.

— Calouro, eu não poderia amá-lo mais se quisesse, mas lembre-se de que estarei em Columbia no próximo outono, e você ainda estará em Yale.

— Mas você ainda pode mudar de ideia sobre aceitar aquele trabalho em Columbia.

— Não, foi apenas a opinião pública que forçou o conselho diretor (da universidade) a reverter sua decisão. Se você pudesse ver o olhar em suas faces quando deram seu veredicto, compreenderia que eles mal podiam esperar para me ver pelas costas! Você provou a nossa questão, calouro, então acho que seria bom para todos se eu me mudasse.

— Nem todos — disse Jimmy, baixinho.

— Porque uma vez que eu não esteja mais na área para assombrá-los, eles descobrirão que é muito mais fácil mudar as regras — disse Joanna, ignorando seu comentário.

— Num período de vinte anos, os estudantes nunca acreditarão que tais regulamentos ridículos possam sequer ter existido.

— Então terei de tomar, eu mesmo, uma passagem de viajante regular para New York, porque não vou perder você de vista.

— Estarei na estação para encontrar você, calouro; mas enquanto estiver distante, espero que saia com outras mulheres. Então, se você ainda se sentir da mesma forma a meu respeito, no dia em que você se formar, ficarei feliz em dizer sim — acrescentou ela quando o despertador tocou.

— Inferno! — disse Jimmy quando ela levantou-se da cama. — Posso usar o banheiro primeiro? Porque tenho uma aula às nove horas e nem sequer sei qual é o assunto.

— Napoleão e sua influência sobre o desenvolvimento das leis americanas — disse Joanna.

— Pensei que você nos houvesse dito que a lei americana foi mais influenciada pelos romanos e pelos ingleses do que qualquer outra nação?

— Meio ponto, calouro, mas você ainda precisa comparecer à aula das nove horas, se espera descobrir por quê. Por falar nisso, pode fazer duas coisas para mim?

— Duas só? — disse Jimmy quando se virou para o chuveiro.

— Poderia parar de me olhar como se fosse um cachorrinho perdido quando quer que eu dê uma aula?

Jimmy colocou a cabeça pela porta entreaberta.

— Não — disse ele enquanto olhava Joanna tirar sua camisola. — Qual é a segunda?

— Bem, será que podia pelo menos parecer interessado naquilo que estou dizendo, e talvez fazer uma ou outra anotação ocasional?

— Por que eu deveria me importar em fazer anotações quando é você que dá notas aos meus trabalhos?

— Porque você não ficará feliz com a nota que eu dei ao seu último trabalho — disse Joanna, juntando-se a ele no banho.

— Oh, e eu que esperava por um A para aquela obra-prima em particular! — disse Jimmy, começando a ensaboar os seios dela.

— Você, por acaso, se lembra de quem foi que disse ser a maior pessoa de influência sobre Napoleão?

— Josefina — disse Jimmy, sem hesitação.

— Esta pode até ter sido a resposta correta, mas não foi o que você escreveu no seu ensaio.

Jimmy saiu do chuveiro e pegou a toalha.

— O que foi que escrevi? — perguntou, voltando-se para ela.

— Joanna.

 

 

 

Dentro de minutos, todos os doze helicópteros estavam voando numa formação em V. Nat olhou para os dois atiradores atrás dele, que estavam olhando fixamente para a noite negra, sem nuvens. Ele fez deslizar um par de fones de ouvido e ouviu o tenente-aviador: — Pássaro Negro Um para grupo: estaremos fora dos espaços aliados em quatro minutos, então eu antecipo um ETA de duzentas e dez horas.

Nat descobriu-se sentado reto como um parafuso enquanto ouvia o jovem piloto. Ele deu uma olhada para fora, por uma janela lateral, para as estrelas que jamais seriam vistas do continente americano. Podia sentir a adrenalina sendo bombeada através do seu corpo quando voavam próximo às linhas inimigas. Por fim, sentiu que era parte desta maldita guerra dos homens. Sua única surpresa era a de não sentir medo. Talvez isso viesse a acontecer mais tarde.

— Estamos entrando no espaço inimigo — disse o tenente-aviador — Como se estivéssemos cruzando uma estrada com tráfego intenso. Você está me copiando, líder em terra?

Havia um crepitar na linha antes que uma voz dissesse: — Ouço você, Pássaro Negro, qual é sua posição?

Nat reconheceu o sotaque sulista do capitão Dick Tyler.

— Estamos aproximadamente a cinquenta milhas ao sul de você.

— Copiado, espero encontrá-lo em quinze minutos.

— Roger, você não nos verá até o último momento, porque estamos mantendo todas as nossas luzes externas apagadas.

— Copiado — voltou aquele mesmo sotaque.

— Você já identificou um possível ponto de aterrissagem?

— Há um pequeno abrigo sobre um cume, bem abaixo de mim — replicou Tyler — mas só vai dar espaço para um helicóptero de cada vez, e devido à chuva, sem mencionarmos a lama, aterrissar poderá ser um problema e tanto!

— Qual é sua posição atual?

— Continuo na mesma grade de referência, bem ao norte do rio Dyng.

Tyler fez uma pausa.

— E eu estou convencido de que os Vietcongs começaram a cruzar o rio.

— Quantos homens com você?

— Setenta e oito.

Nat sabia que o número completo de dois pelotões era de noventa e seis.

— E quantos corpos? — perguntou o tenente-aviador, como se estivesse perguntando quantos ovos o capitão queria para o café da manhã.

— Dezoito.

— O.k., esteja pronto para colocar seis homens e dois mortos em cada helicóptero e certifique-se de que suba para a beirada no instante em que você me vir.

— Estarei pronto — disse o capitão. — Que horas são?

— Oito e trinta e três — disse o tenente-aviador.

— Então, às 8h48 solto um sinalizador.

— Às 8h48 um sinalizador, Roger, e caímos fora — repetiu o tenente-aviador.

Nat estava impressionado por ver como o tenente-aviador parecia ser tão calmo quando ele, seu co-piloto e os dois atiradores atrás poderiam estar mortos em vinte minutos. Mas, conforme ele fora lembrado tantas vezes pelo coronel Tremlett, mais vidas são salvas por homens calmos do que por homens bravos. Ninguém falou pelos próximos quinze minutos. Isso deu a Nat tempo para pensar sobre a decisão que ele havia tomado; será que ele também estaria morto em vinte minutos?

Nat, então, sentiu os mais longos quinze minutos da sua vida, olhando para acres de densa floresta iluminada apenas por uma meia-lua enquanto o silêncio do rádio era mantido. Olhou para os atiradores de trás quando o helicóptero roçou sobre a linha das árvores. Eles já estavam abraçando suas armas, os polegares nos gatilhos, alertas para qualquer problema. Nat estava olhando para fora por uma janela lateral quando, subitamente, um sinalizador foi lançado para o alto, no céu. Ele não pôde deixar de pensar que poderia estar tomando café na bagunça à sua volta agora.

— Este é o Pássaro Negro Um para voar — disse o piloto, quebrando o silêncio do rádio. — Não mude as luzes sobre sua barriga até que esteja a trinta segundos do encontro; e lembre-se: eu vou chegar primeiro.

Um traçado verde de balas atiradas à frente da cabine do piloto, e os atiradores de trás imediatamente retomaram o fogo.

— Os Vietcongs já nos identificaram — disse o líder do voo, secamente. Ele aprofundou a entrada da aeronave para a direita, e Nat viu o inimigo pela primeira vez.

Os Vietcongs estavam avançando pela escarpada do monte, uns poucos cem metros à frente de onde o helicóptero ia tentar pousar.

Fletcher leu o artigo no Washington Post. Era um episódio heróico, que havia cativado a imaginação do público americano, numa guerra de que ninguém queria saber a respeito. Um grupo de setenta e oito homens de infantaria, acantonados ao norte da floresta vietnamita, alvo fácil para o Vietcong, fora resgatado por uma frota de helicópteros que haviam voado sobre um perigoso terreno, incapazes de pousar sob fogo inimigo. Fletcher estudou o diagrama detalhado na página oposta. O tenente-aviador Chuck Philips tinha sido o primeiro a precipitar-se para baixo e a resgatar seis homens assustados. Ele havia pairado apenas uns poucos centímetros acima do chão enquanto o resgate acontecia. Ele não tinha percebido que outro oficial, o tenente Cartwright, tinha saltado da aeronave assim que ela baixou o nariz e levantou a cauda do helicóptero no ar, a fim de permitir que o segundo helicóptero ocupasse seu lugar.

Entre os corpos do terceiro helicóptero estava o do oficial em comando, o capitão Dick Tyler. O tenente Cartwright havia assumido o comando imediatamente e levado a efeito o contra-ataque enquanto, ao mesmo tempo, coordenava o resgate dos homens. Ele foi a última pessoa a deixar o campo de batalha e a subir a bordo do helicóptero de resgate remanescente. Todos os doze helicópteros voltaram a Saigon, mas apenas onze desceram no campo de pouso Eisenhower.

O general-brigadeiro Hayward ordenou imediatamente uma festa pelo resgate, e os mesmos onze pilotos e seus comandados se dispuseram a procurar o Huey desapareci do, mas, a despeito de realizarem diversas entradas pelo território inimigo, não puderam encontrar um só sinal do Pássaro Preto Doze. Hayward descreveu, mais tarde, Nat Cartwright — um homem alistado, que deixou a Universidade de Connecticut no ano em que foi calouro para inscrever-se — Como um exemplo a todos os americanos de alguém que, nas palavras de Lincoln, havia mostrado a última medida de devoção.

— Vivo ou morto, nós o encontraremos! — prometeu Hayward.

Fletcher vasculhou cada um dos artigos que mencionavam Nat Cartwright, depois de ler um perfil que revelava que ele tinha nascido no mesmo dia, na mesma cidade e no mesmo hospital que ele.

Nat saltou do primeiro helicóptero enquanto ele continuava pairado uns poucos centímetros acima do solo. Ele assistiu o capitão Tyler quando este mandou de volta o primeiro grupo que subira a bordo do Huey, enquanto uma onda de balas e morteiros cruzava à frente do nariz da aeronave.

— Você assume daqui — disse Tyler — enquanto eu vou lá atrás e organizo os meus homens. Mandarei seis de cada vez!

— Vá — gritou Nat quando o primeiro helicóptero afundou para a esquerda antes de ascender ao céu. Quando o segundo helicóptero subiu, a despeito de estar sob fogo constante, Nat calmamente organizou o próximo grupo a tomar seu lugar a bordo. Ele olhou para baixo do monte, para ver Dick Tyler ainda liderando seus homens numa ação de retaguarda, enquanto que, ao mesmo tempo, pairava sobre a pequena praça de chão barrento. Um primeiro-sargento e cinco soldados correram para o lado do helicóptero e começaram a subir a bordo.

— Merda! — disse o primeiro-sargento, olhando para trás. — O capitão foi abatido!

Nat voltou-se para ver Tyler caído, de rosto para baixo, na lama, dois soldados a levantá-lo. Eles rapidamente carregaram seu corpo em direção ao helicóptero que os esperava.

— Assuma daqui, sargento — disse Nat, e aí desceu correndo em direção ao cume. Agarrou a M60 do capitão, pediu cobertura e começou a disparar para o inimigo que avançava. De algum modo, ele selecionou outros seis homens para correrem morro acima e juntar-se ao quarto helicóptero. Ele foi o único naquele cume por cerca de vinte minutos, à medida que ia tentando repelir as ondas de Vietcongs que avançavam, enquanto seu próprio grupo de apoio passou a diminuir e diminuir, porquanto ele os ia enviando morro acima para a segurança do próximo helicóptero.

Os últimos seis homens naquele topo não se retiraram até que viram o Pássaro Preto Doze se precipitar. Quando Nat, finalmente, virou-se e começou a correr morro acima, uma bala rasgou sua perna. Ele sabia que deveria ter sentido dor, mas isso não o fez parar de correr como ele nunca havia corrido antes.

Quando alcançou a porta aberta da aeronave, atirando enquanto corria, ele ouviu o primeiro-sargento dizer: — Que droga, senhor, ponha o seu traseiro a bordo!

Quando o primeiro-sargento o alavancou, o helicóptero afundou o nariz e deu um solavanco a estibordo, atirando Nat no chão, antes de sacudir-se rapidamente, indo embora.

— O senhor está bem? — perguntou o capitão.

— Acho que sim — disse Nat, com a voz entrecortada, descobrindo-se deitado sobre o corpo de um soldado raso.

— Típico do Exército, não se pode nem ter certeza se ele ainda está vivo. Com sorte e um rabo de vento — acrescentou — deveremos estar de volta para o café da manhã.

Nat arregalou os olhos para o corpo do soldado que estivera ao seu lado há alguns momentos. A família dele agora poderia ir a seu funeral em vez de ser simplesmente informada de que ele fora morto sem cerimônia, numa terra nada cerimoniosa.

— Santo Cristo! — ouviu o tenente-aviador dizer.

— Problema? — Conseguiu Nat falar.

— Pode-se dizer que sim. Estamos perdendo combustível depressa; os bastardos devem ter atingido meu tanque de gasolina.

— Acho que estas coisas têm dois tanques de gasolina — disse Nat.

— O que você imagina que usei na saída, soldado?

O piloto tamponou o escapamento do combustível e depois checou o medidor. Uma luz vermelha intermitente mostrava que ele tinha menos de trinta milhas de combustível antes que fosse forçado a descer. Ele se voltou para ver Nat, ainda caído sobre o corpo do soldado morto, quando ele se agarrou ao chão.

— Vou ter de procurar algum lugar para pousar.

Nat arregalou os olhos através da porta aberta, mas tudo que pôde ver eram os acres de uma densa floresta.

O piloto acendeu todas as luzes, procurando por uma clareira entre as arvores, e então Nat sentiu o helicóptero estremecer.

— vou descer — disse o piloto, soando tão calmo quanto parecera durante toda a ope ração. — Acho que vamos ter de adiar o café da manhã.

— À sua direita! — gritou Nat quando avistou uma clareira na floresta.

— Posso vê-la! — disse o piloto, tentando virar o helicóptero em direção ao espaço aberto, mas a jamanta de três toneladas simplesmente não respondia. — Vamos descer, gostemos ou não.

Nat pensou em sua mãe e sentiu-se culpado por não haver respondido à sua última carta, e depois em seu pai, que ele sabia ia ficar tão orgulhoso dele, em Tom e seu triunfo ao ter sido eleito para o conselho de estudantes de Yale — será que ele teria tempo de vir a ser presidente? E em Rebecca, que ele ainda amava e, receava, amaria sempre. Ao se agarrar ao chão, Nat subitamente sentiu-se muito jovem; ele tinha, afinal de contas, apenas dezenove anos. Ele descobriu, um pouco depois, que o tenente-aviador, conhecido como Pássaro Preto Doze, era apenas um ano mais velho do que ele.

Quando as hélices do helicóptero pararam de girar e a aeronave caiu rapidamente em direção às árvores, o primeiro-sargento falou: — Se, por acaso, não nos virmos mais, senhor, meu nome é Speck Foreman; foi uma honra tê-lo conhecido.

Eles apertaram as mãos, como qualquer um faz ao fim de qualquer jogo.

 

 

 

Fletcher arregalou os olhos para a foto de Nat na primeira página do New York Times, sob a manchete "UM HERÓI AMERICANO". Um homem que havia se alistado no momento em que recebera a carta de inscrição, ainda que pudesse ter citado três diferentes razões para solicitar isenção. Ele fora promovido a tenente e, mais tarde, como oficial de intendência, assumiu o comando de uma operação de resgate de um pelotão aprisionado do lado errado do rio Dyng. Ninguém parecia capaz de explicar o que um oficial de intendência estava fazendo num helicóptero durante uma operação na linha de frente.

Fletcher sabia que ele passaria o resto da vida se questionando sobre que decisão teria tomado se o envelope pardo tivesse terminado em sua caixa postal; uma questão que só podia ser respondida adequadamente por aqueles que haviam sido expostos a teste. Mas até mesmo Jimmy concordara que o tenente Cartwright devia ter sido um homem notável.

— Se isso houvesse acontecido uma semana antes das eleições — disse ele a Fletcher — Você talvez até pudesse ter vencido Tom Russell... tudo no tempo perfeito.

— Não, eu não teria — disse Fletcher.

— Por que não? — perguntou Jimmy.

— Isso é o estranho da coisa — respondeu Fletcher. — Ele acaba sendo o amigo mais próximo do Tom.

 

 

 

Uma frota de onze helicópteros tinha voltado a procurar pelos homens desaparecidos, mas tudo que eles conseguiram, uma semana mais tarde, eram os remanescentes de uma aeronave que devia ter explodido no momento em que atingira as árvores. Três corpos haviam sido identificados, um deles o do tenente-aviador Carl Mould, mas a despeito de uma intensa busca na área, nenhum traço podia ser encontrado do tenente Cartwright ou do primeiro-sargento Speck Foreman.

Henry Kissinger, conselheiro de Segurança Nacional, pediu à nação para velar e honrar os homens que serviam de exemplo de coragem para todos os soldados que lutavam na frente.

— Ele não devia ter dito velar — Comentou Fletcher.

— Por que não? — perguntou Jimmy.

— Porque Cartwright ainda está vivo.

— O que é que lhe dá tanta certeza disso?

— Não sei como é que eu sei — disse Fletcher — mas aposto com você que ele ainda está vivo.

 

 

 

Nat não conseguia lembrar-se de ter atingido as árvores ou de ter sido atirado para fora do helicóptero. Quando acordou, o sol, esplendoroso, queimava sua face ressecada.

Ele ficou ali perguntando-se onde é que estava, e então as lembranças daquela hora dramática o entristeceram.

Por um momento, um homem que nem sequer tinha certeza da existência de Deus rezou.

Depois ele levantou o braço direito. Movia-se como um braço deveria mover-se; então agitou os dedos, todos os cinco. Abaixou o braço e levantou o outro. Este também obedeceu à mensagem telegráfica de seu cérebro; então ele agitou seus dedos e, uma vez mais, todos os cinco responderam. Abaixou o braço e esperou. Vagarosamente, levantou a perna direita e repetiu os mesmos exercícios com os dedos do pé.

Abaixou a perna antes de levantar a outra, e foi aí que ele sentiu a dor.

Virou a cabeça de um lado para outro, e depois colocou as palmas das mãos no chão. Rezou novamente e pressionou suas mãos para, entontecidamente, puxar a si mesmo para cima. Esperou por alguns instantes na esperança de que as árvores parassem de girar, e depois tentou ficar em pé. Uma vez em pé, tentou colocar um pé na frente do outro, como uma criança faria, e como não caiu, tentou mover o outro na mesma direção. Sim, sim, sim, obrigado, sim, e então sentiu a dor novamente, quase como se até aquele momento tivesse sido anestesiado.

Caiu sobre os próprios joelhos e examinou a barriga da perna por onde a bala havia atravessado. Formigas estavam caminhando dentro e fora da ferida, esquecidas do fato de que este humano pensava que ainda estava vivo. Demorou algum tempo para que Nat pudesse removê-las uma a uma, antes de fazer uma bandagem em sua perna com uma das mangas da camisa. Olhou para cima, para ver o sol queimando na direção dos morros. Ele teve um tempinho apenas para descobrir se algum dos seus colegas sobrevivera.

Ainda em pé, ele voltou a completar um círculo, parando apenas quando vislumbrou fumaça proveniente da floresta. Começou a mancar em direção a ela, vomitando ao tropeçar sobre o corpo carbonizado do jovem piloto cujo nome ele não sabia, a jaqueta de seu uniforme pendurada num galho. Apenas as insígnias do tenente em sua espádua indicavam quem ele havia sido. Nat o enterraria mais tarde, mas agora ele tinha uma corrida contra o sol. Foi então que ouviu o gemido.

— Onde está você? — gritou Nat.

O gemido cresceu um decibel. Nat deu a volta para ver a moldura maciça do primeiro-sargento Foreman apoiada sobre as árvores, apenas uns centímetros acima dos destroços.

Assim que alcançou o homem, o gemido aumentou mais um decibel.

— Você pode me ouvir? — perguntou Nat. O homem abriu e fechou os olhos quando Nat o trouxe para o chão. Ouviu-se a si mesmo dizendo: — Não se preocupe, vou levá-lo para casa — Como algum herói escolar das páginas de um livro de histórias em quadrinhos. Nat removeu a bússola do cinto do primeiro-sargento, olhou para o sol e, então, avistou um objeto nas árvores. Ele teria se regozijado se pudesse pensar, ao menos, numa maneira de apanhá-lo. Nat arrastou-se sobre a base da árvore. De alguma maneira, ficou pulando com um único pé quando se agarrou a um galho e sacudiu-o, esperando desalojar o objeto. Ele estava a ponto de desistir quando o objeto mexeu-se uns dois centímetros e meio.

Ele balançou o galho ainda mais vigorosamente e aí, ele se mexeu outra vez e, subitamente, sem avisar, quebrou-se e caiu. Teria atingido a cabeça de Nat se ele não tivesse rolado depressa para um lado. Não podia pular.

Nat descansou por um momento antes de levantar o primeiro-sargento devagarzinho e, gentilmente, colocá-lo sobre a maça. Ele então sentou-se no chão e olhou o sol desaparecer atrás da árvore mais alta, tendo terminado seu dever para o dia nessa terra tão diferente.

Ele havia lido em algum lugar sobre uma mãe que conseguira manter seu filho vivo depois de um acidente de carro por ter falado com ele a noite inteira. Nat falou com o primeiro-sargento a noite toda.

 

 

 

Fletcher leu, com descrédito total, como, com a ajuda dos camponeses locais, o tenente Nat Cartwright havia carregado a maca, de vilarejo em vilarejo, por quase trezentos e quarenta quilômetros, e visto o sol nascer e morrer dezessete vezes antes de alcançar as cercanias da cidade de Saigon.

O primeiro-sargento Speck Foreman morreu três dias mais tarde, sem descobrir o nome do tenente que o resgatara e que agora estava lutando pela própria vida.

Fletcher seguiu cada fragmento de notícia que pôde encontrar sobre o tenente Cartwright, nunca duvidando de que ele viveria.

Uma semana mais tarde, mandaram Nat voar para o Acampamento Zama, no Japão, onde o operaram para salvar sua perna. No mês seguinte, ele teve permissão de voltar para casa, para o Centro Médico Walter Reed, do Exército, em Washington D.C., para acabar de recuperar-se.

A próxima vez em que Fletcher viu Nat Cartwright ele estava na primeira Página do New York Times, apertando a mão do presidente Johnson, no Jardim Rosa da Casa Branca.

Ele estava recebendo a Medalha de Honra.


15


MICHAEL E SUSAN Cartwright foram "arremessados longe" na sua visita à Casa Branca para testemunhar seu único filho sendo condecorado com a Medalha de Honra, no Jardim Rosa. Depois da cerimônia, o presidente Johnson ouviu atentamente o pai de Nat explicando os problemas americanos que eles estariam enfrentando se todos vi vessem até a idade de noventa anos e não fossem apropriadamente cobertos por um seguro-saúde.

— No próximo século, os americanos investirão tanto em aposentadoria quanto em trabalho — foram as palavras que LBJ repetiu para seu gabinete na manhã seguinte.

Em sua viagem de volta a Cromwell, a mãe de Nat perguntou-lhe que planos ele tinha para o futuro.

— Não tenho certeza, porque não depende de mim — respondeu ele. — Recebi ordens de me reportar a Fort Benning, na segunda-feira, quando descobrirei o que o coronel Tremlett tem em mente para mim.

— Outro ano perdido... — disse sua mãe.

— Construção do caráter — disse o pai, que ainda estava digerindo seu longo bate-papo com o presidente.

— Dificilmente acredito que Nat ainda tenha necessidade de muito mais para isso — foi a resposta de sua mãe.

Nat sorriu quando ela olhou pela janela e dirigiu-se à paisagem de Connecticut. Enquanto puxara uma maca por dezessete dias e dezessete noites, com alguns momentos de sono e um pouco de comida, ele tinha se perguntado se veria sua terra natal o utra vez.

Pensou sobre as palavras de sua mãe e teve de concordar com ela. A ideia de mais um ano perdido com formulários preenchidos, fazendo e recebendo continências antes de treinar alguém para tomar seu lugar, o deixava enraivecido. O chefão tinha deixado claro que eles não permitiriam que ele voltasse ao Vietnã e, portanto, arriscar a vida de um dos poucos heróis americanos reconhecidos.

Após o jantar, depois que seu pai repetiu algumas vezes a conversa que tivera com o presidente, ele pediu que Nat contasse mais sobre Nam.

Por mais de uma hora, Nat descreveu a cidade de Saigon, as vizinhanças e as pessoas, raramente se referindo ao seu trabalho como oficial de Intendência.

— Os vietnamitas são trabalhadores e amigáveis — disse ele aos pais — e pareceram sinceramente felizes que nós tivéssemos estado lá, mas ninguém, em nenhum dos lados, acredita que possamos ficar lá para sempre. Temo que a história venha a considerar o episódio todo um despropósito, e uma vez acabado, será rapidamente apagado da psique nacional. — Depois virou-se para seu pai: — Pelo menos sua guerra tinha um propósito.

Sua mãe demonstrou concordância e Nat ficou surpreso ao ver que seu pai não ofereceu, de pronto, uma opinião contrária.

— Você veio embora com alguma lembrança insuportável? — perguntou sua mãe, esperando que o filho falasse de sua experiência no front.

— Sim. A desigualdade do homem.

— Mas estamos fazendo tudo o que podemos para ajudar o povo do Vietnã — disse seu pai.

— Não estou me referindo aos vietnamitas, pai — respondeu Nat. — Estou falando sobre aquilo que Kennedy descreveu como "meus colegas americanos".

— Colegas americanos? — repetiu sua mãe.

— Sim, porque minhas lembranças insuportáveis são nosso tratamento para com as minorias pobres, os negros em particular. Eles estavam no campo de batalha, em grande número, por nenhuma outra razão que o fato de eles não poderem sustentar um advogado esperto que pudesse mostrar-lhes como evitar o recrutamento.

— Mas seu amigo mais próximo...

— Eu sei — disse Nat — e estou feliz que Tom não tenha se alistado, porque ele podia muito bem ter sofrido a mesma fatalidade que Dick Tyler.

— Então você se arrepende de sua decisão? — perguntou sua mãe, baixinho.

Nat demorou um tempo para responder: — Não, mas penso muitas vezes em Speck Foreman, a mulher dele e as três crianças no Alabama, e me questiono sobre a que propósito serviu sua morte.

Nat levantou cedo na manhã seguinte para apanhar o primeiro trem com destino a Fort Benning. Quando o carro entrou na estação Columbus, ele examinou o relógio.

Ainda tinha uma hora antes de ir ao encontro do coronel, e então decidiu andar os três quilômetros até a academia. No caminho era constantemente lembrado de que estava em uma cidade militarizada, pela maneira como tinha de devolver as continências de todos que estavam abaixo da patente de capitão. Alguns até sorriam em reconhecimento quando divisavam a Medalha de Honra, tanto quanto o fariam com um herói de futebol da faculdade. Ele estava do lado de fora do escritório do coronel Tremlett uns quinze minutos antes da hora marcada.

— Bom-dia, capitão Cartwright. O coronel me disse para levá-lo diretamente ao seu escritório assim que o senhor chegasse — disse um ajudante-de-ordens ainda mais jovem.

Nat marchou até o escritório do coronel, ficou em posição de sentido e bateu continência.

Tremlett deu a volta por trás de sua mesa e atirou os braços em torno de Nat. O ajudante-de-ordens foi incapaz de esconder sua surpresa, pois pensava que apenas os franceses cumprimentavam seus colegas oficiais daquela maneira. O coronel levou Nat até uma poltrona do outro lado da mesa. Depois de retornar à sua poltrona, Tremlett abriu uma pasta grossa e começou a estudar seu conteúdo.

— Você tem alguma ideia daquilo que gostaria de fazer no próximo ano, Nat?

— Não, não tenho, senhor, mas como não tenho permissão de retornar ao Vietnã, ficaria feliz em aceitar sua oferta anterior e permanecer na academia para assisti-lo junto a qualquer novato.

— Aquele posto já foi ocupado — disse Tremlett — e eu já não tenho certeza se isso é o melhor para você, em longo prazo.

— O senhor tem mais alguma coisa em mente? — perguntou Nat.

— Agora que você o menciona, tenho — admitiu o coronel. — Tão logo soube que você estava voltando para casa, chamei os melhores advogados da academia para que me aconselhassem.

Normalmente desprezo os advogados, uma raça que só luta suas batalhas em um tribunal, mas tenho de admitir nessa ocasião um deles surgiu com um esquema muito engenhos o.

Nat nada comentou, pois estava entusiasmado para saber o que se passava na cabeça do coronel.

— Regras e regulamentos podem ser interpretados de muitas formas, que outra mane ira os advogados manteriam seus empregos? — perguntei ao coronel. — Um ano atrás, você se alistou para o recrutamento sem nenhuma dúvida e, tendo sido comissionado, foi enviado ao Vietnã, onde provou que estava errado, graças a Deus.

Nat desejou dizer "vá em frente, coronel", mas se refreou.

— Por falar nisso, Nat, esqueci de perguntar se você gostaria de um café.

— Não, obrigado, senhor — disse Nat, tentando não parecer impaciente. O coronel sorriu: — Acho que vou tomar um. Ele pegou o telefone.

— Prepare-me um café, por gentileza, Dan — disse ele — e talvez algumas roscas.

Ele olhou para Nat.

— Tem certeza de que não vai mudar de ideia?

— O senhor está aproveitando, não está, senhor? — disse Nat com um sorriso.

— Para ser honesto, estou — disse o coronel. — Veja você, passaram semanas até que Washington caísse na minha proposta; então espero que você me perdoe se sou indulgente comigo mesmo por mais uns minutos.

Nat sorriu ironicamente e sentou de volta em sua poltrona.

— Parece que diversas avenidas foram deixadas abertas para você, e a maioria delas, na minha opinião, é uma completa perda de tempo. Você poderia por exemplo, solicitar uma dispensa em terra por um ferimento sofrido em ação. Se fôssemos por esse caminho, você acabaria com uma pequena pensão e estaria fora daqui em cerca de seis meses. Depois de sua exoneração como oficial de Intendência, ninguém precisa lhe dizer quanto tempo a papelada demorará. Você podia, naturalmente, conforme sugeriu, completar seu serviço aqui na academia, mas será que realmente quero um aleijado em meus quadros de pessoal? — o coronel perguntou com um sorriso largo assim que seu ajudante-de-ordens entrou na sala com uma bandeja de café fresco e quente e duas xícaras.

— Você poderia, por outro lado, assumir algum outro posto num ambiente mais amigável, como Honolulu, mas não espero que precise ir tão longe para encontrar uma dançarina. Mas o que quer que eu tenha para oferecer — e uma vez mais olhou para a pasta de Nat — você ainda terminaria batendo continência por mais um ano. Portanto, agora preciso fazer-lhe uma pergunta, Nat. O que você havia planejado fazer assim que completasse seus dois anos?

— Voltar à universidade, senhor, e continuar meus estudos.

— Exatamente o que pensei que você diria — disse o coronel — portanto, isso é exatamente o que fará.

— Mas o novo período começa na próxima semana — disse Nat — e, conforme o senhor mesmo apontou, a papelada sozinha...

— A menos que você fosse se alistar por outros seis anos; então você deve descobrir que se agita os papéis surpreendentemente depressa.

— Alistar-me por outros seis anos? — repetiu Nat, sem acreditar. — Eu estava esperando poder deixar o Exército, não pensava em ficar.

— E você vai sair — disse o coronel — mas apenas se você se inscrever por seis anos. Veja, com suas qualificações, Nat — acrescentou ele quando se levantou e começou a andar pela sala — você pode imediatamente inscrever-se para qualquer curso de nível mais elevado, e, o que é melhor, o Exército pagará por ele.

— Mas eu já tenho uma bolsa — relembrou Nat ao oficial-comandante.

— Estou muito bem-informado a respeito, está tudo aqui — disse o coronel, olhando para a pasta aberta à sua frente. — Mas a universidade não oferece a você o soldo de um capitão para acompanhá-la.

— Eu seria pago para ir à universidade? — disse Nat.

— Sim, você receberia o soldo completo de um capitão, mais um adicional por um posto além-mar.

— Um posto além-mar? Mas não estou solicitando um lugar na Universidade do Vietnã! Quero retornar a Connecticut, e depois ir para Yale.

— E assim será, porque o regulamento diz que se, e apenas se, você tiver servido fora, num setor de guerra, e, entre aspas — o coronel virou outra página da sua pasta — então houver uma inscrição para educação avançada, você receberá o mesmo status de seu último posto. Decidi que agora amo os advogados — disse o coronel, olhando para cima — porque, você pode acreditar, eles me informaram algo ainda melhor.

Tremlett bebeu seu café enquanto Nat permanecia em silêncio.

— Não apenas você receberá integralmente seu soldo de capitão, como também o adicional de além-mar — o coronel continuou — mas devido ao seu ferimento, ao final de seis anos será imediatamente dispensado, quando então se qualificará para uma pensão de capitão.

— Como foi que eles conseguiram isso? Através do Congresso? — perguntou Nat.

— Não acredito que eles tenham conseguido que qualquer pessoa se qualificasse nas quatro categorias ao mesmo tempo — replicou o coronel.

— Tem de haver o lado negativo disso — disse Nat.

— Sim, existe — disse o coronel, gravemente — porque até mesmo o Congresso tem de cobrir sua retaguarda.

Uma vez mais Nat não se preocupou em interrompê-lo.

— Primeiro, você terá de retornar a Fort Benning, todos os anos, para duas semanas de treinamento intensivo, para ser colocado em forma.

— Mas eu adoraria isso! — disse Nat.

— E, ao final de seis anos — disse o coronel, ignorando a interrupção — você permanecerá na ativa até completar quarenta e cinco anos, de modo que, na eventualidade de uma nova guerra, você possa ser chamado.

— Então é isso? — disse Nat, sem acreditar.

— É isso — repetiu o coronel.

— Então, qual é meu próximo passo?

— Assine todos os seis documentos que os advogados prepararam e estará de volta à Universidade de Connecticut nesta mesma hora, na próxima semana. Por falar nisso, já conversei com supervisor e ele me disse que estão esperando vê-lo na segunda-feira. Ele me pediu que o informasse que primeira aula começa às nove horas. Parece um pouco tarde, para mim — acrescentou ele.

— O senhor sabia até como eu ia responder, não sabia? — disse Nat.

— Bem, admito — disse Tremlett — que pensei que você fosse considerá-la uma alternativa melhor do que fazer meu café nos próximos doze meses. Falando nisso, tem certeza de que não quer me acompanhar? — perguntou o coronel enquanto enchia uma segunda xícara de café.

 

 

 

— Você aceita esta mulher como sua legítima esposa? — pronunciou o bispo de Connecticut.

— Aceito — disse Jimmy.

— Você aceita este homem como seu legítimo esposo?

— Aceito — disse Joanna.

— Você aceita esta mulher como sua legítima esposa? — repetiu o bispo.

— Aceito — disse Fletcher.

— Você aceita este homem como seu legítimo esposo?

— Aceito — disse Annie.

Um casamento duplo era um evento raro em Hartford, e o bispo admitiu que era o primeiro que ele conduzia.

O senador Gates estava à testa de uma longa fila de cumprimentos, sorrindo para cada convidado. Ele conhecia quase todos eles. Afinal de contas, os dois filhos se casaram no mesmo dia.

— Quem poderia acreditar que Jimmy acabaria se casando com a garota mais esperta da classe? — disse Harry, orgulhosamente.

— E por que ele não deveria? — perguntou Martha. — Você também se casou. E não se esqueça de que, graças a Joanna, ele também conseguiu se graduar cum laude.

— Nós cortaremos o bolo assim que todos estiverem sentados as suas mesas — anunciou o maître — e precisarei das noivas e noivos aqui na frente, e dos pais atrás do bolo, quando as fotografias forem tiradas.

— Você não terá de rodear meu marido — disse Martha Gates. — Se um flash apagar, ele estará do outro lado da câmera dentro de instantes; é um perigo ocupacional.

— Quão certa ela está — admitiu o senador.

Ele voltou sua atenção para Ruth Davenport, que estava olhando melancolicamente para sua nora.

— Algumas vezes eu me pergunto se eles não são, ambos, jovens demais.

— Ela tem vinte anos — disse o senador. — Martha e eu nos casamos quando ela tinha vinte.

— Mas Annie nem se graduou.

— E isso importa? Eles ficaram juntos pelos últimos seis anos. O senador voltou-se para cumprimentar outro convidado.

— Algumas vezes desejo... — Começou Ruth.

— O que é que você deseja às vezes? — inquiriu Robert, que estava sentado do outro lado da esposa.

Ruth voltou-se de modo que o senador não pudesse ouvi-la: — Ninguém poderia amar Annie mais do que eu amo, mas às vezes eu desejo, bem — ela hesitou — que eles tivessem tido outros encontros mais.

— Fletcher conheceu muitas outras garotas; ele apenas não queria manter encontros com elas, e por falar nisso — disse Robert, permitindo que sua taça de champanhe fosse novamente completada — quantas vezes eu tenho ido às compras com você só para descobrir que você acabou comprando o vestido que viu da primeira vez?

— Isso não me impediu de considerar diversos outros homens antes que eu me decidis se por você — disse Ruth.

— Sim, mas aquilo foi diferente, porque nenhum dos outros quis você.

— Robert Davenport, eu queria que você soubesse...

— Ruth, você já se esqueceu de quantas vezes eu a pedi em casamento, antes que você aceitasse finalmente? Tentei até engravidá-la!...

— Você nunca me contou isso — disse Ruth, voltando o rosto para seu marido.

— Você, obviamente, se esqueceu de quanto tempo levou antes que por fim tivesse Fletcher.

Ruth olhou para trás, para sua nora.

— Vamos esperar que ela não tenha de encarar o mesmo problema.

— Não há razão alguma para isso — disse Robert. — Não é Fletcher que vai ter de dar à luz. E minha aposta é — continuou — que Fletcher, como eu, nunca olhará para outra mulher pelo resto de sua vida.

— Você nunca mais olhou para outra mulher desde que nos casamos? — disse Ruth depois de trocar apertos de mão com outros dois convidados.

— Não — disse Robert, antes de beber outro gole de champanhe —, dormi com muitas, mas nunca olhei para elas.

— Robert, quanto você já bebeu?

— Não contei — Robert admitiu quando Jimmy saiu da fila.

— Do que vocês dois estão rindo tanto, Sr. Davenport?

— Eu estava dizendo a Ruth sobre minhas muitas conquistas, mas ela se recusa a acreditar em mim. Então, diga, Jimmy, o que você espera fazer depois de se formar?

— Acompanho Fletcher na faculdade de direito. É provável que seja uma corrida muito difícil, mas com seu filho de olho em mim o dia todo, e Joanna à noite, devo conseguir. Os senhores devem estar muito orgulhosos dele — disse Jimmy.

— Magna cum laude e presidente do conselho de estudantes — repetiu Robert. — Claro que estamos — acrescentou ao erguer sua taça vazia para um garçom que passava.

— Você está bêbado — disse Ruth, tentando não sorrir.

— Você está certa, como sempre, minha querida, mas isso não me impedirá de estar desordenadamente orgulhoso do meu único filho.

— Mas ele nunca teria sido presidente sem a contribuição de Jimmy — disse Ruth firme mente.

— É muito delicado de sua parte dizer tal coisa, Sra. Davenport, mas não se esqueça, Fletcher ganhou "por uma ladeira".

— Mas só depois que você tinha convencido Tom... qualquer que seja o nome dele, de que ele deveria permanecer e apoiar Fletcher.

— Talvez tenha ajudado, mas foi Fletcher que instigou as mudanças que afetarão uma geração de yalies* — disse Jimmy quando Annie veio juntar-se a eles.

 

* Estudantes de Yale (N.T.)

 

— Alô, irmãzinha?

— Quando eu for presidente da General Motors, você ainda vai se dirigir a mim dessa maneira enfadonha?

— Claro que vou — disse Jimmy — e sabe o que mais, não vou mais dirigir cadilaquezinhos...

Annie estava a ponto de bater nele quando o maître sugeriu que era a hora de cortar o bolo.

Ruth passou um braço em volta de sua nora.

— Não dê importância ao seu irmão — disse ela — porque assim que estiver formada, ele se rá colocado em seu devido lugar.

— Não é para meu irmão que tenho de provar qualquer coisa — disse. — Tem sido sempre o seu filho que determina o lugar.

— Então você terá de bater nele também — disse Ruth.

— Não tenho certeza de que o desejo — disse Annie. — Você sabe que ele tem falado em entrar para a política assim que obtenha seu diploma em direito.

— Isso não deveria impedi-la de ter sua própria carreira.

— Não vai, mas não sou tão orgulhosa para fazer sacrifícios, se isso for ajudá-lo a alcançar seus objetivos.

— Mas você tem direito a uma carreira própria — disse Ruth.

— Por quê? — disse Annie. — Porque subitamente passou a ser moda? Talvez eu não seja como Joanna — disse ela, olhando para sua cunhada. — Eu sei o que quero, Ruth, e farei o que for necessário para atingi-lo.

— E do que se trata? — perguntou Ruth, baixinho.

— Apoiar o homem que amo pelo resto da vida, educar nossos filhos, ficar feliz com seu sucesso sob todas as pressões dos anos 70 que possam se provar mais difíceis do que ganhar magna cum laude em Vassar — disse Annie quando pegou a faca de prata com cabo de marfim. — Você sabe, suspeito que haverá menos aniversários de casamento no século XXI do que no século XX.

— Você é um homem de sorte, Fletcher — disse sua mãe quando Annie atingiu a camada de baixo do bolo com a faca.

— Eu sabia disso antes mesmo que o aparelho fosse removido dos dentes dela — disse Fletcher.

Annie passou a faca para Joanna.

— Faça um pedido — sussurrou Jimmy.

— Eu já fiz, calouro — respondeu ela — e mais do que isso, está garantido.

— Ah, você quer dizer o privilégio de estar casada comigo?

— Claro que não, seu metido, é muito mais significativo do que isso.

— O que poderia ser mais significativo do que isso?

— O fato de que vamos ter um bebê.

Jimmy jogou os braços em volta de sua esposa.

— Quando foi que isso aconteceu?

— Não sei o momento exato, mas parei de tomar a pílula quando me convenci de que você ia se formar.

— Isso é maravilhoso. Venha, vamos dividir a novidade com os convidados!

— Você diz uma palavra e eu planto esta faca em você e não no bolo! Raciocine, eu sempre soube que era um erro casar com um calouro de cabelos ruivos.

— Aposto que o bebê terá cabelos vermelhos.

— Não tenha tanta certeza, calouro, porque se você contar a alguém direi que não tenho certeza de quem seja o pai.

— Senhoras e senhores — disse Jimmy quando sua esposa levantou a faca — tenho um comunicado a fazer.

O salão ficou em silêncio.

— Joanna e eu vamos ter um bebê!

O silêncio continuou por um momento antes que quinhentos convidados caíssem em aplausos.

— Você está morto, calouro! — disse Joanna, enquanto enterrava a faca no bolo.

— Eu sabia no momento em que a conheci, Sra. Gates, mas acho que deveríamos ter pelo menos três crianças antes que a senhora me mate.

— Bem, senador, você está a ponto de tornar-se avô — disse Ruth. — Minhas congratulações!

Eu mal posso esperar para ser avó, ainda que suspeite de que vai acontecer um pouco antes que Annie tenha seu primeiro filho.

— Ela nem sequer vai considerá-lo até que se gradue, aposto — disse Harry Gates — especialmente quando descobrirem o que planejei para Fletcher.

— É possível que Fletcher não caia nos seus planos — sugeriu Ruth.

— Não enquanto Jimmy e eu continuarmos a fazê-lo sentir que foi sempre uma ideia dele, em primeiro lugar.

— Você não acha que a esta altura ele já deve ter desconfiado o que você pretende?

— Ele tem sido capaz disso desde o dia em que o encontrei no jogo Hotchkiss versus Taft, aproximadamente uma década atrás. Eu soube, então, que ele era capaz de levantar o exame da ordem muito mais alto do que eu jamais poderia.

O senador passou o braço em volta de Ruth.

— Mas existe um problema para o qual precisarei de sua ajuda.

— E qual é? — perguntou Ruth.

— Ainda não acho que Fletcher já decidiu se ele é republicano ou democrata, e eu sei quão fortemente seu marido...

— Não são maravilhosas as novidades sobre Joanna? — disse Fletcher à sua sogra.

— Claro que sim — disse Martha. — Harry já está contando com os votos extras que ele ganhará quando passar a ser avô.

— O que o faz confiar tanto nisso? — perguntou Fletcher.

— Cidadãos sêniores são do setor que mais cresce no eleitorado, então deve valer a pena, pelo menos, o ponto percentual para os eleitores verem Harry empurrando um carrinho de bebê por toda parte.

— E se eu e Annie tivermos uma criança, isso valerá mais um ponto percentual?

— Não, não — disse Martha — Cada coisa a seu tempo. Tente apenas se lembrar de que Harry estará aqui para a reeleição, novamente num período de dois anos.

— Você acha que deveríamos planejar o nascimento de nosso primeiro filho simplesmente para coincidir com a data da eleição de Harry?

— Você ficaria surpreso em saber quantos políticos o fazem — respondeu Martha.

— Congratulações, Joanna! — disse o senador, abraçando sua nora.

— Será que seu filho será capaz de manter um segredo? Joanna o beijou, retirando a faca do bolo.

— Não, não se fizer seus amigos felizes — admitiu o senador — mas se ele pensasse que isso ia ferir alguém amado, carregaria o segredo até o túmulo.

 


16


O PROFESSOR KARL ABRAHAMS adentrou o anfiteatro de palestras quando o relógio bateu nove horas. Ele fez oito conferências no período e ouviram-se rumores de que nunca havia perdido uma em trinta e sete anos. Muitos dos outros rumores a respeito de Karl Abrahams não podiam ser substanciados, e, por causa disso, ele os teria dispensado como um diz-que-diz-que inadmissível, portanto.

Mas tais rumores persistiram e vieram a fazer parte do folclore. Não havia dúvida de que seu humor seria sardônico se qualquer dos estudantes fosse louco o bastante para levá-lo a sério; aquilo podia ser testemunhado na pauta, semanalmente.

Até mesmo o caso dos três presidentes que o haviam convidado a juntar-se a eles na Corte Suprema: só os três presidentes sabiam. Mas recordava-se que, quando questionado a respeito, Abrahams disse sentir que o melhor serviço que podia prestar à nação era instruir a próxima geração de advogados a criar tantos conselheiros honestos e decentes quanto fosse possível, em vez de ficar limpando a sujeira feita por outros tantos ruins. O Washington Post, num perfil não autorizado, observou que Abrahams havia lecionado para dois membros da atual Corte Suprema, vinte e dois juizes federais e diversos reitores das faculdades de direito mais conceituadas.

Quando Fletcher e Jimmy assistiram à primeira das oito conferências de Abrahams, não tinham nenhuma ilusão sobre quanto trabalho os esperava pela frente. Fletcher, entretanto, iludia-se pensando ter-se dedicado, durante seu último ano como universitário, longas e suficientes horas, muitas vezes indo para a cama depois da meia-noite. Foi necessária uma semana para que o Professor Abrahams o familiarizasse com as horas, quando ele, então, dormiu normalmente.

O Professor Abrahams lembrava seguidamente aos seus alunos do primeiro ano que nem todos chegariam ao destino final como formandos de direito quando o curso ter minasse.

Jimmy balançou a cabeça. Fletcher gastava tantas horas pesquisando que Annie raramente o via antes que as portas da biblioteca fossem fechadas e aferrolhadas. Jimmy saía algumas vezes um pouco mais cedo, de forma que pudesse ficar com Joanna, mas ele raramente partia sem diversos livros sob o braço. Fletcher disse a Annie que nunca soube que seu irmão trabalhasse tanto.

— E não será nada fácil para ele quando o bebê chegar.

Annie lembrou o marido uma tarde, depois que fora apanhá-lo na biblioteca: — Joanna planejou que a criança nascesse durante as férias, de sorte que ela pudesse estar de volta ao trabalho no primeiro dia do período. — Não quero que nosso filho cresça dessa maneira — disse Annie. — Tenciono criar meus filhos em nossa casa, como uma mãe de tempo integral e com um pai que estará de volta cedo o suficiente, à tarde, para ler para eles.

— Para mim está ótimo — disse Fletcher — mas se mudar de ideia e decidir ser a presidente da General Motors, ficarei feliz em trocar as fraldas.

A primeira coisa com que Nat se surpreendeu ao voltar para a universidade foi verificar quão imaturos seus colegas pareciam ser. Ele tinha créditos suficientes que lhe permitiriam passar para o segundo ano, mas os estudantes com os quais se havia misturado antes de se alistar ainda discutiam o último grupo pop ou uma estrela de cinema, e ele nem sequer ouvira falar do The Doors. Foi só quando assistiu a sua primeira aula que notou o quanto a experiência no Vietnã havia mudado sua vida.

Nat observou, também, que seus colegas não o tratavam como se fosse um deles, mesmo porque alguns dos professores também pareciam, de alguma forma, cerimoniosos.

Nat gostava do respeito que estava merecendo, mas descobriu bem depressa que havia o outro lado da moeda.

Depois do feriado do Natal, discutiu o problema com Tom, que lhe disse que entendia por que alguns deles eram um pouco cautelosos a seu respeito: afinal, eles acreditavam que ele houvesse matado pelo menos uns cem Vietcongs.

— Pelo menos cem? — repetiu Nat.

— Enquanto outros têm lido o que nossos soldados fizeram com as mulheres vietnamitas — disse Tom.

— Devo ter tido muita sorte; se não fosse por Mollie, eu teria ficado a ver navios.

— Bem, não os desiluda, é o meu conselho — disse Tom — porque minha aposta é que os homens são invejosos e as mulheres estão intrigadas. A última coisa que você quer que eles descubram é que você é um insuportável cidadão normal, da lei.

— Eu gostaria que eles, de vez em quando, se lembrassem de que eu também só tenho dezenove anos — respondeu Nat.

— O problema — disse Tom — é que o capitão Cartwright, detentor da Medalha de Honra, não parece ter só dezenove, e eu receio que o fato de ser coxo os relembre disso.

Nat acatou o conselho do amigo e decidiu dissipar sua energia na sala de aula, na ginástica e no curso de corrida livre. Os médicos o haviam advertido que descansas se por pelo menos um ano antes de começar a correr novamente — se é que o faria. Depois de sua predição pessimista, Nat nunca passou menos do que uma hora por dia na ginástica, subindo com cordas, levantando pesos e até mesmo jogando uma partida ocasional de tênis de mesa. Ao final do primeiro período, depois que retornou, estava apto a dar a volta na pista correndo suave e vagarosamente — mesmo que levasse uma hora e vinte minutos para cobrir cerca de dez quilômetros. Ele observou seu velho calendário de treinamento e descobriu que seus recordes como calouro permaneciam em trinta e quatro minutos e dezoito segundos nos livros; prometeu a si mesmo que os quebraria ao final do segundo ano.

O próximo problema que Nat enfrentou era a resposta que ele obtinha sempre que convidava uma mulher para sair com ele. Elas queriam ir logo para a cama ou simples mente diziam não logo de cara. Tom o havia prevenido de que seu escalpo na cama era provavelmente um prêmio que muitas universitárias queriam reclamar, e Nat bem depressa descobriu que algumas, que ele nem sequer havia conhecido, já faziam isso.

— A reputação tem lá suas desvantagens — reclamou Nat.

— Trocarei de lugar com você, se quiser — disse Tom.

A única exceção acabou sendo Rebecca, que deixou bem claro, no dia em que Nat chegou de volta ao campus, que ela queria ter uma segunda chance. Nat estava cauteloso sobre reacender aquela velha chama em particular e concluiu que se fosse para eles reconstruírem qualquer relacionamento, deveria ser devagar. Rebecca, entretanto, tinha outros planos.

Depois do seu segundo encontro, ela o convidou a voltar ao seu quarto para um café e começou a tirar a roupa dele apenas alguns momentos depois de fechar a porta.

Nat distanciou-se e só conseguiu dar uma desculpa esfarrapada de que estava participando de uma sessão de julgamento no dia seguinte. Rebecca não se deixou vencer, e quando reapareceu, uns poucos instantes mais tarde, carregando duas xícaras de café, vestia um robe de seda, que revelava estar usando um pouquinho de quase nada por baixo. Nat subitamente compreendeu que não sentia mais nada por ela, e bebeu seu café depressa, repetindo que precisava dormir cedo.

— Sessões de julgamento nunca o preocuparam antigamente — brincou Rebecca.

— Isso era quando eu tinha duas pernas boas — respondeu Nat.

— Talvez eu já não seja boa o suficiente para você — disse Rebecca — agora que todo mundo pensa que você é algum tipo de herói.

— Não tem nada a ver com isso. Apenas...

— Apenas Ralph tinha razão a seu respeito, desde o começo.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou Nat, agressivamente.

— Você simplesmente não tem a classe dele. Ela fez uma pausa.

— Na cama ou fora dela.

Nat estava pronto para responder, mas decidiu que não valia a pena. Saiu sem dizer palavra. Tarde daquela noite ele estava deitado, acordado, e compreendeu que Rebecca, como muitas outras coisas, fazia parte de sua vida passada.

Uma das mais surpreendentes descobertas para Nat, ao voltar à universidade, foi a de que muitos estudantes o pressionavam a candidatar-se contra Elliot para presidente do diretório acadêmico. Mas Nat deixou claro que não tinha interesse em brigar por nenhuma eleição enquanto ainda precisasse recuperar o tempo que havia perdido.

Quando voltou para casa, ao final do segundo ano, Nat disse ao pai que estava satisfeito com seu tempo na corrida livre, que agora levava menos do que uma hora ao descobrir que havia sido colocado entre os seis do topo da lista de sua classe.

Durante o verão, Nat e Tom viajaram pela Europa. Nat descobriu que uma das muitas vantagens do salário de um capitão é que lhe permitia acompanhar seu amigo mais chegado sem sequer sentir que não poderia arcar com o pagamento da parte que lhe cabia.

Sua primeira parada foi em Londres, onde assistiram à guarda marchar até o White Hall. Nat não teve dúvida alguma de que eles teriam sido uma força formidável no Vietnã. Em Paris, eles caminharam pelos Champs-Élysées e lamentavam ter de retornar ao livro de frases todas as vezes que viam uma mulher bonita. Então, viajaram para Roma, onde nos pequenos cafés das ruelas escondidas descobriram pela primeira vez como deveria realmente ser o sabor de uma massa, e juraram jamais comer um McDonald's outra vez.

Mas foi só quando chegaram a Veneza que Nat se apaixonou, e ficou promíscuo com o passar da noite, seu gosto variando dos nus para as virgens. Começou com a amostra de um dia — Da Vinci, seguido por Bellini, e depois Luini. Tal era a intensidade desses amores que Tom concordou que eles deveriam passar mais alguns dias na Itália e, talvez, acrescentar Florença ao seu itinerário. Novos amores eram rapidamente apanhados em cada esquina das ruas — Michelangelo, Caravaggio, Canaletto, Tintoretto.

Quase qualquer um com um "o" ao final do nome se qualificara para juntar-se ao harém de Nat.

O Professor Karl Abrahams ficou na frente de sua mesa para a quinta aula do período e olhava arregalado para o semicírculo de cadeiras enfileiradas que se erguiam acima dele.

Ele iniciou sua aula, não com um livro, nem com uma pasta, nem mesmo uma nota à sua frente, assim que os levou através dos detalhes do caso Carter versus Amalgamated Steel.

— O Sr. Carter — Começou o professor — perdeu um braço num acidente industrial em 1923, e foi roubado, não recebendo um centavo em compensação. Ele ficou incapacitado para procurar outro emprego, pois nenhuma outra companhia de aço ofereceria trabalho a um homem com um braço só. E quando ele se rebaixou, para aceitar um trabalho como porteiro de um hotel local, compreendeu que jamais trabalharia outra vez. Não havia um Ato de Compensação na Indústria até 1927. Então, o Sr. Carter decidiu naquela época dar o raro (e quase não ouvido falar ) passo, que era processar seus empregadores. Ele não tinha possibilidade de pagar um advogado, coisa que não mudava há anos; entretanto, um jovem estudante de direito, que sentiu que o Sr. Carter não havia recebido uma compensação justa, apresentou-se como voluntário para representá-lo na Corte. Ele ganhou o caso e Carter foi premiado com cem dólares de recompensa, não um grande montante para uma tal gravidade, vocês bem podem sentir. Entretanto, juntos, estes dois homens foram responsáveis por suscitar uma mudança na lei. Esperemos que um de vocês possa, em alguma oportunidade futura, causar uma mudança na lei quando der de cara com tal injustiça. Subtexto: o nome do jovem advogado era Theo Rampleiri. Ele apenas evitou, apertadamente, ser jogado fora da faculdade de direito por passar muito tempo sobre o caso Carter. Mais tarde, muito mais tarde, ele foi indicado para a Corte Suprema. O professor franziu o cenho.

— No ano passado, a General Motors pagou a um Sr. Cameron cinco milhões de dólares pela perda de uma perna. Isso aconteceu a despeito do fato de a CM ter sido capaz de provar que foi uma negligência do Sr. Cameron que causou o acidente.

Abrahams levou-os através do caso lentamente, antes de acrescentar: — A lei muitas vezes é, como o Sr. Charles Dickens nos teria feito acreditar, um eu, e talvez mais importante do que isso, indiscriminadamente imperfeita. Não tenho projeto como conselho que olhe apenas para uma saída em torno da lei, especialmente quando eles sabem exatamente o que o Senado e o Congresso intentam, em primeiro lugar. Haverá aqueles dentre vocês que esquecerão estas palavras nos dias em que estiverem se juntando a alguma firma ilustre, cujo único interesse é ganhar a qualquer preço. Mas haverá outros, talvez não muitos, que irão se lembrar do que disse Lincoln: "

Deixai que a justiça seja feita."

Fletcher olhou por cima de suas anotações e arregalou os olhos para o seu mentor.

— Da próxima vez em que nos encontrarmos, espero que vocês tenham pesquisado os cinco casos que se seguiram ao de Carter versus Amalgamated Steel, até Demetri versus Demetri, todos os quais resultaram em mudanças na lei. Vocês podem trabalhar em dupla, mas não consultem nenhum outro par. Espero estar sendo claro.

O relógio bateu onze horas.

— Bom-dia, senhoras e senhores.

Fletcher e Jimmy dividiram a pilha de processos à medida que foram pescando caso a caso, e ao final da semana eles haviam encontrado três que eram relevantes. Joanna puxou dos recessos de sua memória um quarto que ouvira em Ohio quando era ainda um a criança. Ela se recusou a dar-lhes quaisquer outras pistas.

— O que amor, honra e obediência significam? — ordenou Jimmy.

— Nunca concordei em lhe obedecer, calouro — foi tudo que ela disse — e, por falar nisso, se Elizabeth acordar durante a noite, é a sua vez de trocar as fraldas.

— Sumner versus Sumner — disse Jimmy, triunfantemente, assim que ela escorregou para a cama, logo depois da meia-noite.

— Nada mau, calouro, mas você ainda tem de encontrar o quinto caso até as dez da manhã de segunda, se é que está esperando conseguir um sorriso do Professor Abrahams.

— Acho que deveríamos fazer muito mais do que isso para fazer mexer os lábios daquele bloco de granito — disse Jimmy.

Quando Nat subiu o morro, ele a avistou correndo à frente dele. Nat assumiu que a ultrapassaria ladeira abaixo. Verificou o relógio quando atingiu a marca da metade do caminho: dezessete minutos e nove segundos. Nat sentiu confiança de que quebrar ia seu melhor recorde pessoal e estar de volta ao time para o primeiro encontro da estação.

Ele se sentiu cheio de energia quando surgiu sobre o topo do monte, e aí gritou bem alto. A estúpida mulher tinha tomado o caminho errado! Ela devia ser uma caloura.

Começou a gritar às suas costas, mas ela não respondeu. Ele xingou novamente, mudou de direção e correu atrás dela. Quando ele vinha inclinado, ladeira abaixo, ela de repente se virou e olhou assustada.

— Você está indo pelo caminho errado! — berrou Nat, pronto para voltar e retraçar depressa os seus passos, mas mesmo a dezoito metros e trinta ele quis dar uma olhada mais de perto.

Ele correu depressa em sua direção e continuou correndo à vista dela. — Obrigada! — disse ela. — Esta é a minha segunda vez no curso, e eu não conseguia lembrar qual caminho tomar para o alto do monte. Nat sorriu.

— Você tem de tomar um caminho mais curto: o maior leva você até a floresta.

— Obrigada! — repetiu ela, e começou a correr de volta para o alto do monte, sem mais palavras.

Ele foi atrás dela, e assim que a alcançou, correu lado a lado com ela, até que atingiram o topo. Ele acenou adeus quando estava certo de que ela retornara para o caminho reto e estreito.

— Vejo você depois — disse ele, mas se ela respondeu Nat não ouviu. Nat verificou o relógio quando cruzou a linha final: quarenta e três minutos e cinquenta e um segundos. Ele xingou novamente, se perguntando quanto tempo mais perdera redirecionando a mulher que errara o caminho. Ele não se importava. Começou a se aquecer, e se demorou mais tempo nos exercícios de alongamento do que normalmente teria feito, esperando pelo retorno da moça.

Subitamente, ela apareceu no topo do monte, correndo vagarosamente para baixo, em direção à linha final.

— Você conseguiu — disse Nat com um sorriso enquanto corria para juntar-se a ela.

Ela não devolveu o sorriso. — Sou Nat Cartwright — disse ele.

— Sei quem você é — disse ela rapidamente.

— Nós já nos conhecemos?

— Não — disse ela — eu só o conheço pela reputação. Ela correu para fora, em direção ao vestiário das mulheres, sem oferecer nenhuma nova explicação.

 

 

— Todos aqueles que conseguiram encontrar os cinco casos, levantem-se.

Fletcher e Jimmy levantaram-se triunfalmente, uma emoção que os esvaziou quando descobriram que pelo menos setenta por cento da classe estavam igualmente em pé.

— Quatro? — disse o professor, tentando não soar muito desdenhoso. A maior parte permanecia em pé, deixando sentados dez por cento à sua volta. Fletcher se perguntava quantos deles terminariam.

— Sentem-se — disse ele. — Vamos começar pelo caso Maxwell RiverGas versus Pennstone. O que foi que mudou na lei devido a este caso em particular?

Ele apontou para o estudante na terceira fila.

— Em 1932, passou a ser responsabilidade da empresa assegurar que todo o equipamento estivesse comprometido com os regulamentos de segurança, e todos os empregados compreenderam assim qualquer procedimento de emergência.

O professor mexeu seu dedo uma vez mais.

— E instruções escritas tiveram de ser colocadas onde todos os empregados pudessem lê-las.

— E quando foi que aquilo ficou redundante? O dedo mexeu-se outra vez, outra voz:

— Reynolds versus McDermond Timber.

— Correto. — Outra indicação. — E por quê?

— Reynolds perdeu três dedos quando cortava um tronco, mas seu advogado de defesa foi capaz de mostrar que ele não podia ler, e não havia recebido nenhuma instrução verbal sobre como operar a máquina.

— Quais eram as bases da nova lei? O dedo mexeu-se novamente.

— Pelo Ato da Indústria de 1934, quando começou a ser responsabilidade dos empregadores instruir todos os empregados verbalmente e por escrito sobre como usar qualquer equipamento.

— Quando foi que isso precisou de novas emendas? Alguém mais foi selecionado.

— Rush versus governo.

— Correto, mas por que o governo ainda ganha o caso, a despeito de estar errado?

Outra escolha, ainda.

— Eu não sei, senhor.

O dedo mexeu-se perquiridoramente, em direção a alguém que o soubesse.

— O governo foi capaz de defender sua posição quando foi mostrado que Rush havia assinado um acordo declarando...

O indicador mudou.

—... que ele recebera instrução completa, conforme ordenado por lei.

O dedo mudou a indicação outra vez.

— Que ele estava empregado com eles sob o período estatutário de três anos.

O indicador continuou a mexer-se...

—... mas o governo prosseguiu, provando que eles não eram uma companhia no sentido da palavra, conforme havia sido erroneamente projetado na constituição pelos políticos.

— Não culpem os políticos — disse Abrahams. — Advogados projetam a legislação, então eles têm de ser responsabilizados. Os políticos não foram culpados nessa ocasião, pois uma vez que as Cortes aceitaram que o governo não estava sujeito à sua própria legislação, quem ocasionou a mudança da lei mais uma vez?

Ele apontou o dedo para outra face aterrorizada.

— Demetri versus Demetri — veio como resposta.

— Onde foi que isso diferiu das leis passadas? O dedo apontou para Fletcher.

— Era a primeira vez que um membro de uma família acionava outro por negligência, enquanto eles ainda estavam casados, sendo cada um portador de cinquenta por cento das ações da companhia.

— Por que aquela ação falhou? — Continuou ele olhando para Fletcher.

— Porque a Sra. Demetri recusou-se a apresentar prova de evidência contra o marido.

O dedo moveu-se na direção de Jimmy.

— Por que ela se recusou? — perguntou Abrahams.

— Porque ela era estúpida.

— E por que ela era estúpida? — perguntou o Professor outra vez.

— Porque seu marido provavelmente fez amor com ela novamente, ou bateu nela na noite anterior, ou possivelmente as duas coisas, e então ela se recolheu.

Uma pequena gargalhada estourou.

— O senhor estava presente para testemunhar o fazer-amor, Sr. Gates, ou o ataque a ela? — perguntou Abrahams, para maiores gargalhadas ainda.

— Não, senhor — disse Jimmy — aposto que foi isso que aconteceu.

— O senhor talvez esteja certo, Sr. Gates, mas o senhor não teria sido capaz de provar o que foi que aconteceu no quarto, naquela noite, a menos que o senhor pudesse apresentar uma testemunha confiável. Se o senhor houvesse feito tal declaração na Corte, um advogado oponente teria interposto objeção, o juiz teria sustentado a objeção e o júri o teria dispensado como louco, Sr. Gates. Mais importante do que isso, o senhor teria acabado com o seu cliente. Nunca se apoie no que possa ter acontecido. Se o senhor não puder provar, fique calado.

— Mas... — Começou Fletcher.

Diversos estudantes rapidamente inclinaram suas cabeças, outros prenderam suas respirações, enquanto o resto arregalou os olhos para Fletcher, sem acreditar.

— Nome?

— Davenport, senhor.

— Não resta dúvida de que o senhor se sente capaz de explicar o que quer dizer com a palavra "mas", Sr. Davenport.

— A Sra. Demetri foi advertida por seu conselheiro de que, se ganhasse o caso, como nenhum dos dois era proprietário da maioria das ações, a companhia teria de suspender o comércio. O Ato Kendall de 1941. Daí ela colocou suas ações no mercado aberto e elas f oram compradas pelo maior rival de seu marido, um tal Sr. Canelli, por cem mil dólares. Não posso provar se o Sr. Canelli estava ou não estava dormindo com a Sra. Demetri, mas sei que a companhia foi liquidada um ano mais tarde, quando ela recomprou suas ações por dez centavos cada, ao custo de 7.300 dólares, e, imediata mente, assinou uma nova sociedade com o marido.

— O Sr. Canelli foi capaz de provar que os Demetri estavam agindo em conluio?

Fletcher pensou cuidadosamente. Será que Abrahams estava arquitetando uma trapaça com ele?

— Por que o senhor hesita? — ordenou Abrahams.

— Isso não constituiria prova, Professor.

— No entanto, o que o senhor deseja dizer?

— A Sra. Demetri deu à luz um segundo filho, um ano mais tarde, e a certidão de nascimento indicou que o Sr. Demetri era o pai.

— Você tem razão, isso não é uma prova; então, que acusação recaiu sobre ela?

— Nenhuma. Na verdade, a nova empresa continuou muito bem-sucedida.

— Então, como foi que eles provocaram a mudança na lei?

— O juiz trouxe esse caso à atenção do advogado geral daquele estado.

— Que estado?

— Ohio, e, como consequência, eles passaram o Ato de Sociedade no Casamento.

— Ano?

— 1949.

— Mudanças relevantes?

— Maridos e esposas não podiam mais recomprar ações vendidas de uma companhia anterior, na qual tivessem sido sócios, se isso diretamente os beneficiasse como indivíduos.

— Obrigado, Sr. Davenport — disse o professor, quando o relógio bateu onze horas. — Seu "mas" foi bem qualificado — acrescentou Abrahams, deixando o anfiteatro de aulas.

Nat sentou-se à parede oposta à da sala de refeições e esperou pacientemente. Depois que viu umas quinhentas garotas deixando o edifício, decidiu que a razão pela qual ela era tão magra era porque ela simplesmente não comia. Então, de repente, ela passou correndo pelas portas giratórias. Nat tinha tido tempo suficiente para ensaiar suas palavras, mas ainda se sentiu nervoso quando foi ao encontro dela.

— Oi, sou Nat.

Ela levantou os olhos, mas não sorriu.

— Nós nos conhecemos outro dia. Ela ainda não respondeu.

— No topo do monte.

— Sim, eu me lembro — disse ela.

— Mas você não me disse o seu nome.

— Não, eu não disse.

— Fiz alguma coisa que a aborrecesse?

— Não.

— Então posso perguntar o que você quis dizer por "reputação"?

— Sr. Cartwright, o senhor poderá ficar surpreso ao saber que existem mais mulheres nesse campus que não pensam que o senhor tem um direito automático de reclamar a virgindade delas simplesmente porque ganhou a Medalha de Honra.

— Nunca pensei que o tivesse.

— Mas o senhor deve ser alertado para o fato de que metade das mulheres do campus comenta que dormiu com o senhor.

— Talvez elas o reclamem — disse Nat — mas a verdade é que apenas duas podem prová-lo.

— Mas todo mundo sabe quantas garotas correm atrás de você.

— E a maior parte delas não o consegue, como tenho certeza que você se lembra.

Ele deu uma gargalhada, mas ela não respondeu.

— Então, por que não posso me interessar por alguém, como qualquer outra pessoa?

— Mas você não é apenas uma pessoa como outra qualquer — respondeu ela baixinho. — Você é um herói de guerra, com um salário de capitão, e, como tal, espera que todas façam fila para você.

— Quem lhe disse isso?

— Alguém que o conhece desde seu tempo de estudante.

— Ralph Elliot, sem dúvida.

— Sim, o homem que você tentou tapear na presidência do diretório acadêmico...

— Eu fiz o quê? — disse Nat.

—... e depois entregou o trabalho dele como se fosse seu, quando você se inscreveu para Yale — disse ela, ignorando a interrupção dele.

— Foi isso que ele contou a você?

— Sim — respondeu calmamente a jovem.

— Então, talvez você devesse perguntar a ele por que não está em Yale.

— Ele explicou que você transferiu a culpa para ele, e assim ele também perdeu o lugar.

Nat estava pronto para explodir novamente quando ela acrescentou: — E agora você quer ser o presidente do diretório acadêmico e a única estratégia que usa parece ser dormir, como seu caminho para a vitória.

Nat tentou se controlar.

— Primeiro, não sou candidato a presidente; segundo, só dormi com três mulheres na minha vida: uma estudante que também conheci quando estava na escola, uma secretária no Vietnã e um relacionamento de uma noite, que agora lamento. Se você puder encontrar alguém mais, por favor me apresente, porque eu gostaria de conhecê-la.

Ela parou e olhou para Nat pela primeira vez.

— Alguém mais? — repetiu ele. — Será que agora eu posso pelo menos saber o seu nome?

— Su Ling — disse ela baixinho.

— Su Ling, se eu prometer nunca tentar seduzir você até depois pedir sua mão em casamento, sob a permissão de seu pai, entregar-lhe um anel, marcar a igreja e fazer os proclamas correrem, você vai pelo menos me deixar levá-la para jantar?

Su Ling deu uma gargalhada.

— vou pensar nisso — disse ela. — Desculpe-me por correr, mas já estou atrasada para minha aula da tarde.

— Mas como encontro você? — perguntou Nat, desesperadamente.

— Você conseguiu encontrar o Vietcong, capitão Cartwright; certamente não será difícil me encontrar.

17


— LEVANTEM-SE TODOS! O Estado versus a Sra. Anita Kirsten. Sua Excelência, o Meritíssimo juiz Abernathy presidindo. O juiz tomou seu lugar e olhou em direção à mesa do advogado de defesa.

— O que é que a senhora alega, Sra. Kirsten? Fletcher levantou-se de trás da mesa da defesa.

— Minha cliente alega inocência, Excelência. O juiz olhou para ele: — O senhor está representando a ré?

— Sim, estou, Excelência.

O juiz Abernathy deu uma olhada no processo.

— Não acredito que tenhamos nos encontrado antes, Sr. Davenport.

— Não, Excelência, é minha primeira apresentação em sua Corte.

— O senhor poderia, por gentileza, aproximar-se do balcão, Sr. Davenport?

— Sim, Meritíssimo.

Fletcher saiu de trás da mesinha e caminhou em direção ao Juiz, onde o promotor público juntou-se a ele.

— Bom-dia, senhores — disse o juiz Abernathy.

— Posso perguntar quais as qualificações legais que o senhor tem, que sejam reconhecidas pela minha Corte, Sr. Davenport?

— Nenhuma, Meritíssimo.

— Entendo. Sua cliente está alertada para este fato?

— Sim, Meritíssimo, está.

— Mas ela quer assim mesmo que o senhor a represente, a despeito de tratar-se de uma pena capital?

— Sim, Meritíssimo.

O juiz voltou-se para encarar o promotor público de Connecticut.

— O senhor faz alguma objeção ao Sr. Davenport representar a Sra. Kirsten?

— Não, de forma alguma, Excelência; na verdade, o Estado lhe dá as boas-vindas.

— Tenho certeza de que sim — disse o juiz — mas devo perguntar-lhe, Sr. Davenport, se o senhor tem algum tipo de experiência da lei, afinal.

— Não muita, Excelência — admitiu Fletcher. — Sou estudante do segundo ano em Yale, e este será meu primeiro caso.

O juiz e o promotor público sorriram.

— Posso saber quem é seu professor de estudos? — perguntou o juiz.

— Professor Karl Abrahams.

— Então estou orgulhoso de presidir seu primeiro caso, Sr. Davenport, porque isso é alguma coisa que o senhor e eu temos em comum. E quanto ao senhor, Sr. Stamp?

— Não, Meritíssimo, eu me qualifiquei pela Carolina do Sul.

— Ainda que seja bastante irregular, ao final tem de ser uma decisão da ré; portanto, vamos prosseguir com o caso em questão.

O promotor público e Fletcher voltaram aos seus lugares. O juiz olhou para Fletcher.

— O senhor vai solicitar fiança, Sr. Davenport? Fletcher levantou-se do lugar.

— Sim, Meritíssimo.

— Baseado em quê?

— Que a Sra. Kirsten é ré primária, e não se constitui em risco para a sociedade. Ela é mãe de duas crianças, Alan, de sete anos, e Delia, de cinco, que estão vivendo atualmente com a avó em Hartford.

O juiz voltou sua atenção para o promotor público.

— O Estado faz alguma objeção à fiança, Sr. Stamp?

— Certamente fazemos, Excelência. Nós nos opomos à fiança não apenas nas bases da pena capital, mas porque o assassinato, em si, foi premeditado. Portanto, acreditamos que a Sra. Kirsten constitui um perigo para a sociedade, e Pode, inclusive, tentar deixar a jurisdição do Estado.

Fletcher foi invectivo: — Contesto, Excelência!

— Sustentado em quê, Sr. Davenport?

— Esta, de fato, é uma pena capital, e, de qualquer maneira, o domicílio da Sra. Kirsten fica em Hartford, onde ela ganha a sua vida trabalhando como faxineira do Hospital St. Mary, e suas crianças estão ambas na escola local.

— Algum futuro requerimento, Sr. Davenport?

— Não, Meritíssimo.

— Fiança recusada — disse o juiz, e bateu o martelo. — Esta Corte está suspensa até segunda-feira, dia 17.

— Levantem-se todos!

O juiz Abernathy piscou para Fletcher enquanto deixava a sala do tribunal.

 

 

 

Trinta e quatro minutos e dez segundos. Nat não conseguia esconder seu deleite, não apenas por ter batido seu próprio recorde, mas por ter conseguido o sexto lugar nos julgamentos da universidade e estava, portanto, seguro de pegar o encontro de abertura com a Universidade de Boston.

Enquanto Nat se aquecia e seguia sua habitual rotina de alongamento, Tom caminhava para ir ao seu encontro.

— Congratulações! — disse ele. — E aposto que ao fim da temporada você terá derrubado mais um minuto do seu tempo.

Nat olhava para a dolorida cicatriz vermelha nas costas de sua perna, enquanto vestia as calças suadas.

— Por que não vamos jantar hoje à noite — Continuou Tom — e celebramos, porque há uma coisa que quero discutir com você antes de voltar a Yale.

— Esta noite não posso — disse Nat no instante em que eles começavam a se encaminhar para o vestiário. — Tenho um encontro.

— Alguém que eu conheço?

— Não — disse Nat — mas é meu primeiro encontro em meses; devo admitir que estou um pouco nervoso.

— O capitão Cartwright nervoso? Conta outra! — Tom brincou.

— Este é o problema — admitiu Nat. — Ela pensa que sou um misto de Don Juan e Al Capone.

— Ela parece saber julgar bem um caráter — disse Tom. — Então, vamos, diga-me tudo sobre ela.

— Não há muito o que dizer. Nós corremos em direção um ao outro, no topo de um morro. Ela é inteligente, feroz, bem bonita e acredita que sou um bastardo.

Nat recontou sua conversa do lado de fora do refeitório.

— Ralph Elliot obviamente deu sua versão em primeiro lugar — disse Tom.

— Ao inferno com Elliot! Você acha que eu devia usar paletó e gravata?

— Você não pede esse conselho desde que estávamos na Taft.

— E naqueles dias eu precisei de sua jaqueta e sua gravata emprestadas; então, o que você acha?

— Uniforme completo, com medalhas.

— Fale sério!

— Bem, isso certamente confirmaria a opinião dela a seu respeito.

— Isso é exatamente o que estou querendo desfazer nela.

— Bem, então tente olhar para isso do ponto de vista dela.

— Estou ouvindo.

— O que você acha que ela vai vestir?

— Não tenho a mínima ideia; só a vi duas vezes em minha vida, e numa daquelas ocasiões ela vestia shorts e estava coberta de lama.

— Deus, isso deve ter sido sexy, mas não acredito que ela venha vestida com roupas de correr; e como foi na outra ocasião?

— Esperta e subestimada.

— Então siga a cabeça dela, o que não será fácil, porque não existe nada esperto a seu respeito, e, pelo que você diz, ela não acredita que você seja capaz de ser subestimado.

— Responda à pergunta — disse Nat.

— Eu iria pelo informal — disse Tom. — Camisa, não; camiseta, calças e uma malha. Eu poderia, naturalmente, como seu conselheiro sobre elegância em vestir, juntar-me a vocês para o jantar.

— Não quero você próximo de lugar algum, porque você iria cair de amores por ela.

— Você realmente está interessado nessa garota, não é? — disse Tom, baixinho.

— Eu a acho divina, mas isso não a impede de estar bastante insegura a meu respeito.

— Mas ela concordou em ter um jantar com você; portanto, não acredita que você seja as sim tão ruim.

— Sim, mas os termos do acordo foram bastante incomuns — disse Nat ao contar a Tom o que propusera antes que ela concordasse com o encontro.

— Como eu disse, você entendeu mal, mas isso não altera o fato de que preciso vê-lo. Que tal ao café da manhã? Ou você também estará comendo ovos e bacon com esta misteriosa senhora oriental?

— Eu ficaria muito surpreso se ela concordasse com isso — disse Nat cautelosamente. — E desapontado.

 

 

 

 

— Quanto tempo você acha que o julgamento vai demorar? — perguntou Annie.

— Se tivéssemos alegado inocente de assassinato, mas culpado de homicídio involuntário, poderia terminar em uma manhã com, talvez, uma segunda volta à Corte para a sentença.

— Isso é possível? — perguntou Jimmy.

— Sim, o Estado está me oferecendo um negócio.

— Que tipo de negócio? — perguntou Annie.

— Se eu concordar com uma pena de homicídio involuntário, Stamp pedirá três anos, não mais, o que significa que, com bom comportamento e liberdade condicional, Anita Kirsten seria liberada em dezoito meses. Caso contrário, ele tenciona pressionar para primeiro grau e ordenar a pena de morte.

— Eles nunca mandariam uma mulher para a cadeira elétrica, neste Estado, por ter matado seu marido.

— Concordo — disse Fletcher — mas um júri difícil talvez configure para noventa e nove anos, e como a ré só tem vinte e cinco, tenho de aceitar o fato de que ela pode estar melhor fora, concordando com dezoito meses; pelo menos desta maneira ela poderia esperar passar o resto de sua vida com sua família.

— Verdade — disse Jimmy. — Mas eu me pergunto por que o promotor público está querendo concordar com três anos, se ele sente que pode ganhar num caso tão forte?

Não se esqueça de que se trata de uma mulher negra, acusada de matar um homem branco, e pelo menos dois membros do júri serão negros.

Se você jogar bem as suas cartas, serão três, e aí você pode garantir um júri rendido.

— Mais o fato de que minha cliente tem uma boa reputação, tem uma posição num trabalho responsável e não tem condenações anteriores. Isso é passível de influenciar qualquer júri, mesmo que de cor.

— Eu não teria tanta certeza disso — disse Annie. — Sua cliente envenenou seu marido com uma overdose de curare, o que causou paralisia, e depois ela se sentou na escada, esperando ele morrer.

— Mas ele vinha batendo nela por anos... e ele também abusou dos seus filhos — disse Fletcher.

— Você tem alguma prova disso, conselheiro? — perguntou Jimmy.

— Não muitas, mas no dia em que ela concordou em me indicar, tirei diversas fotografias das manchas roxas do corpo dela, mas a queimadura da palma da mão permanecerá com ela para o resto da vida.

— Como foi que ela a adquiriu? — perguntou Annie.

— O bastardo do marido pressionou a mão dela sobre a chapa quente do fogão, e só parou quando ela desmaiou.

— Soa como um rapaz e tanto — disse Annie. — Então, o que o impede de alegar homicídio involuntário e pressionar por circunstâncias atenuantes?

— Apenas o medo de perder e a Sra. Kirsten ter de passar o resto de sua vida na cadeia.

— Antes de mais nada, por que foi que ela pediu que você fosse o advogado de defesa dela? — perguntou Jimmy.

— Ninguém mais se candidatou ao caso — respondeu Fletcher. — E, de qualquer forma, ela descobriu que os meus honorários eram irresistíveis.

— Mas você está indo contra o promotor.

— O que é um pouco misterioso, porque não posso resolver a questão de por que ele está se incomodando em representar o Estado num caso como este.

— Isso pode ser respondido simplesmente — disse Jimmy. — "Mulher negra mata homem branco num Estado onde apenas vinte por cento da população são negros", e mais da metade deles não se importam em votar, e... surpresa, surpresa... existe uma eleição a caminho, em maio.

— Quanto tempo Stamp deu a você para que lhe dê a conhecer sua decisão? — perguntou Annie.

— Estaremos de volta ao tribunal na próxima segunda-feira.

— Você pode esticar o tempo por estar envolvido num julgamento longo?

— perguntou ela.

— Não, mas não posso fazer disso uma desculpa para concordar com um compromisso.

— Então estaremos passando nossos feriados na Corte número três, não é?

— perguntou Annie com um sorriso.

— Poderia ser a Corte número quatro — disse Fletcher, abraçando sua esposa.

— Você pensou em pedir ao Professor Abrahams um conselho sobre como ela deveria apelar?

Jimmy e Fletcher olharam para ela sem acreditar.

— Ele aconselha presidentes e chefes de Estado — disse Fletcher.

— E possivelmente um governador ocasional — acrescentou Jimmy.

— Então talvez tenha chegado a hora de ele começar a aconselhar um estudante de segundo ano de direito. Afinal, é para isso que é pago.

— Eu não saberia por onde começar — disse Fletcher.

— Que tal pegar o telefone e perguntar se ele o receberia? — perguntou Annie. — Aposto que ele se sentiria envaidecido.

Nat chegou ao Mario's quinze minutos mais cedo. Ele escolhera o restaurante porque era despretensioso — mesas com toalhas de xadrez vermelho e branco, um pequeno arranjo de flores, com fotos em preto e branco de Florença decorando as paredes. Tom também havia lhe dito que a massa era feita em casa, cozida pela esposa do proprietário, e o fizera lembrar-se de sua viagem a Roma. Ele acatou os conselhos de Tom e selecionou uma camisa azul informal, calças cinza e uma malha azul-marinho, sem gravata ou paletó. Tom havia aprovado. Nat apresentou-se ao Mário, que sugeriu uma mesa discreta, no canto. Depois que Nat leu o menu algumas vezes, olhou para o relógio novamente, ficando cada vez mais nervoso. Ele deve ter checado umas doze vezes para ter certeza de que tinha dinheiro suficiente com ele, caso não aceitas sem cartões de crédito. Talvez fosse mais delicado se ele andasse em volta do quarteirão umas duas vezes.

No momento em que a viu, trajando um terninho azul bem cortado, uma blusa creme e sapatos azul-marinho, Nat levantou-se do lugar e acenou. Ela sorriu — um sorriso que ele não experimentara até então, o qual fez com que ela parecesse ainda mais cativante. Ela se encaminhou para ir juntar-se a ele.

— Peço desculpas — disse ele, levantando-se do seu lugar enquanto esperava que ela se sentasse.

— Pelo quê? — perguntou ela, parecendo confusa.

— Minhas roupas. Confesso que levei muito tempo pensando sobre o que deveria vestir, e ainda assim escolhi o errado.

— Eu também — disse Su Ling — esperava vê-lo num uniforme coberto de medalhas — acrescentou enquanto tirava a jaqueta e a colocava sobre as costas da sua cadeira.

Nat caiu na risada e eles não pararam de rir pelas próximas duas horas, até que Nat perguntou se ela gostaria de um café.

— Sim, preto, por favor — disse Su Ling.

— Já lhe contei sobre a minha família, agora me conte sobre a sua — disse Nat. — Você é como eu, filha única?

— Sim, meu pai era sargento-mestre na Coreia quando conheceu minha mãe. Eles só ficaram casados por uns poucos meses antes que ele fosse morto na batalha de Yudamni.

Nat gostaria de inclinar-se e segurar sua mão.

— Eu sinto muito — disse ele.

— Obrigada — respondeu ela. — Mamãe decidiu emigrar para a América, de modo que pudéssemos encontrar meus avós. Mas nunca fomos capazes de descobri-los.

Nesse momento ele tomou a mão dela.

— Eu era jovem demais para saber o que estava havendo, mas minha mãe não desiste facilmente. Ela conseguiu um emprego na Lavanderia Storrs, ao lado da livraria, e o proprietário permitiu que morássemos em cima da loja.

— Conheço aquela lavanderia — disse Nat. — Meu pai manda lavar suas camisas ali. É muito eficiente e...

—... e tem sido sempre, desde que minha mãe a dirige, mas ela teve de sacrificar tudo para assegurar-se de que eu teria uma boa educação.

— Sua mãe soa igual a minha — disse Nat quando Mário apareceu ao seu lado.

— Tudo a seu gosto, Sr. Cartwright?

— Uma comida excelente; obrigado, Mário — disse Nat. — Tudo que eu quero agora é a conta.

— Certamente, Sr. Cartwright, e eu gostaria de dizer que foi uma honra recebê-lo em meu restaurante.

— Obrigado — disse Nat, tentando esconder seu embaraço.

— Quanto você deu de gorjeta para ele dizer aquilo? — perguntou Su Ling assim que Mário desapareceu.

— Dez dólares, e ele tem a palavra perfeita para cada ocasião.

— Mas vale sempre a pena? — perguntou Su Ling.

— Oh, sim, a maior parte das que vêm me encontrar começa tirando a roupa, antes mesmo que voltemos ao carro.

— Então você as traz sempre aqui?

— Não. Se acho que será uma noite mal dormida, eu as levo ao McDonald's, depois seguimos para um motel; se é sério, vamos ao Altnaveigh Inn.

— Então, qual é o grupo escolhido para o Mario's? — perguntou Su Ling.

— Não posso responder a isso — disse Nat — porque nunca trouxe ninguém ao Mario's antes.

— Sinto-me envaidecida — disse Su Ling enquanto ele a ajudava a vestir a jaqueta. Enquanto caminhavam para fora do restaurante, Su Ling tomou sua mão. — Você é muito tímido, de fato, não?

— Sim, suponho que seja — disse Nat enquanto eles continuavam caminhando em direção ao campus.


— Não tanto como seu arqui-rival, Ralph Elliot. — Nat não fez comentários. — Ele me convidou para um encontro, uns instantes depois de me conhecer.

— Para ser justo — disse Nat — eu o teria feito também, mas você foi embora.

— Pensei que eu estivesse correndo naquela hora — disse ela.

Ele voltou-se e sorriu.

— E ainda mais interessante é quanta ação você viu no Vietnã para tornar-se um tal herói.

Nat estava a ponto de protestar quando ela acrescentou: — Resposta: mais ou menos meia hora.

— Como você sabe disso? — perguntou Nat.

— Porque pesquisei a seu respeito, capitão Cartwright, e, para citar Steinbeck, você está navegando sob falsas cores. Aprendi este ditado hoje — disse ela — só para o caso de você pensar que leio muito. Quando você pulou no helicóptero, nem sequer carregava um revólver. Você era um oficial de intendência que não deveria estar naquela aeronave, em primeiro lugar. Na verdade foi ruim à beça que você pulasse naquele helicóptero sem permissão, mas também pulou fora sem permissão. Raciocine, se você não tivesse pulado, talvez tivesse pegado uma corte marcial.

— Verdade — disse Nat — mas não diga a ninguém mais, porque vai me impedir de ter minhas costumeiras três garotas por noite!

Su Ling colocou a mão sobre a boca e riu.

— Mas eu li sobre isso, e sua ação depois de o helicóptero se espatifar na floresta foi a de um homem extremamente corajoso. Ter agarrado aquele pobre soldado numa maça, com metade de sua própria perna estourada, deve ter exigido muita coragem; e descobrir, mais tarde, que ele havia morrido, só pôde ter deixado uma cicatriz irremediável.

Nat não respondeu.

— Sinto muito — disse ela enquanto eles chegavam ao sul do campus — este último co mentário foi uma falta de consideração de minha parte.

— Foi gentil de sua parte pesquisar a verdade — disse ele, olhando para baixo, para seus olhos castanhos. — Bem poucos se incomodaram em fazê-lo.


18

 

 

MEMBROS DO JÚRI, na maior parte dos julgamentos por assassinato é responsabilidade do Estado provar, e corretamente, que o réu é culpado por homicídio. Isso não foi necessariamente provado neste caso. Por quê? Porque a Sra. Kirsten assinou uma confissão no prazo de uma hora sobre o assassinato brutal do seu marido. E agora mesmo, oito meses mais tarde, os senhores terão percebido que seu representante legal não sugeriu, em nenhum momento deste julgamento, que sua cliente não cometera o crime, ou sequer desafiou sobre como ela agiu a respeito.

"Então deixem-nos voltar aos fatos, neste caso, porque isso não é o que poderia ser descrito como um crime passional, onde a mulher busca defender-se com a arma mais próxima de sua mão. Não, a Sra. Kirsten não estava interessada na arma mais próxima de sua mão, porque ela gastou muitas semanas planejando este frio e sangrento assassinato, sabedora de que a vítima não teria chance de se defender.

"Como foi que a Sra. Kirsten programou sua tarefa? Por um período de aproximadamente três meses ela colecionou uma porção de recipientes de curare, de diferentes negociantes de drogas, que trabalhavam nas sombras de Hartford. A defesa tentou sugerir que não se podia confiar em nenhuma das evidências dos negociantes, as quais poderiam vir a influenciá-los caso a própria Sra. Kirsten não houvesse confirmado que, do banco das testemunhas, todos estavam dizendo a verdade.

"Tendo coletado os recipientes por várias semanas, qual o próximo passo da Sra. Kirsten? Ela espera até uma noite de sábado, quando sabe que seu marido sai para beber com os amigos, e, disfarçadamente, despeja a droga em seis garrafas de cerveja e até recoloca as tampas. Depois ela põe essas garrafas sobre a mesa da cozinha, deixa a luz acesa e vai para a cama. Ela até dispõe um abridor de garrafas e um copo próximo delas. Ela faz tudo, exceto servir a bebida para si mesma.

"Senhoras e senhores do júri, isso foi um assassinato bem planejado e inteligentemente executado. Entretanto, se os senhores acreditam que isto seja possível, havia ainda coisas piores para acontecer.

"Quando seu marido chega tarde em casa, naquela noite, ele de fato cai na sua armadilha. Primeiro ele vai até a cozinha, provavelmente para apagar a luz, e, vendo as garrafas sobre a mesa, Alex Kirsten é tentado a tomar uma cerveja antes de ir para a cama. Antes mesmo de ele ter colocado a segunda garrafa em seus lábios, a droga começa a fazer efeito. Quando ele a chama pedindo ajuda, sua esposa deixa o quarto e se encaminha vagarosamente até o corredor, onde ouve o marido chorando de dor. Ela telefona e pede uma ambulância? Não, ela não telefona. Ela pelo menos tenta assisti-lo? Não, ela não o faz. Ela senta-se na escada e espera, pacientemente, até que seus choros agonizantes tenham parado e ela possa ter certeza de que ele está morto. E então, e apenas então, ela dá o alarme.

"Como é que podemos ter tanta certeza de que foi isso o que aconteceu? Não apenas porque os vizinhos foram acordados pelos gritos desesperados de seu marido pedindo socorro, mas porque quando um daqueles vizinhos veio até a porta para ver se podia ajudar, em pânico a Sra. Kirsten se esqueceu de jogar fora o conteúdo das outras quatro garrafas."

Ele fez uma pausa por alguns segundos.

— Ao serem analisadas, elas continham curare suficiente para matar um time de futebol.

"Membros do júri, a única defesa que o Sr. Davenport tem sugerido para este crime é que o marido da Sra. Kirsten batia nela regularmente. Se este foi o caso, por que ela não informou à polícia? Se isso foi verdade, por que ela não foi viver com sua mãe, que reside do outro lado da cidade? Se temos de acreditar na história dela, por que ela não o deixou? Eu lhes direi por quê. Porque uma vez que seu marido estivesse fora do caminho, ela herdaria a casa em que eles viveram e receberia a pensão da companhia para a qual ele trabalhava, tornando possível para ela viver em conforto relativo pelo resto de sua vida.

"Em circunstâncias normais, o Estado não hesitaria em apelar para a pena de morte para um crime tão horrendo, mas não sentimos que isso seja apropriado para esta ocasião. É seu dever, entretanto, enviar uma mensagem clara a qualquer pessoa que acredite poder safar-se depois de cometer assassinato. Um tal crime pode ser considerado leve em alguns outros Estados, mas não precisamos de nenhum deles para sermos Connecticut. Queremos ser conhecidos como o Estado que condena o assassinato?"

O promotor público baixou a voz até quase se transformar em um sussurro e olhou diretamente para o júri.

— Quando você é indulgente consigo mesmo, num momento de solidariedade para com a Sr a. Kirsten, e de fato talvez você devesse ser, só porque você está se importando com seres humanos, coloque isso num dos pratos da balança chamada justiça. No outro prato, coloque os fatos: o frio e sangrento assassinato de um homem de quarenta e dois anos, que ainda estaria vivo hoje se não fosse pela premeditação do crime astutamente executado por aquela mulher má.

Ele se virou e apontou diretamente para a ré.

— O Estado não hesita em pedir-lhes que descubram ser a Sra. Kirsten culpada, e a sentenciem de acordo com a lei.

O Sr. Stamp voltou ao seu lugar, a insinuação de um sorriso na face.

— Sr. Davenport — disse o juiz — tenciono fazer uma pausa para o almoço. Quando voltarmos, o senhor pode começar a apresentar seu sumário.

— Você me parece bastante satisfeito consigo mesmo — disse Tom quando eles se sentaram na cozinha para o café da manhã.

— Foi uma noite inesquecível!

— Posso presumir dessa declaração que a consumação se deu?

— Não, você não pode presumir nada dessa natureza — disse Nat. — Mas eu posso lhe dizer que segurei a mão dela.

— Você fez o quê?

— Segurei a mão dela — repetiu Nat.

— Isso não vai melhorar em nada sua reputação.

— Ao contrário, estou esperando que arruíne a minha reputação — disse Nat, ao despejar um pouco de leite sobre o cereal. — E como vai você? — perguntou ele.

— Se você está se referindo à minha vida sexual, ela é inexistente hoje, ainda que não por falta de ofertas; uma, inclusive, persistente. Mas eu não estou interessado.

Nat arregalou os olhos para o amigo e levantou uma sobrancelha.

— Rebecca Thornton tem deixado óbvio demais que está disponível.

— Mas eu pensei...

— Que ela tinha voltado para o Elliot?

— Sim.

— Possivelmente, mas, sempre que a vejo, ela prefere falar sobre você, em termos muito elogiosos, devo acrescentar, ainda que me seja dito que ela conta uma história diferente sempre que está com Elliot.

— Se este é o caso — disse Nat — por que você acha que ela está se preocupando em correr atrás de você?

Tom empurrou a cumbuca vazia para o lado e começou a se concentrar nos dois ovos quentes à sua frente. Ele quebrou a casca de um e olhou a gema antes de continuar.

— Se é sabido que você é filho único e seu pai vale milhões, a maior parte das mulheres o vê sob uma luz completamente diferente. Portanto, nunca estou seguro se é por mim ou pelo meu dinheiro que elas estão interessadas. Fique muito agradecido por não sofrer do mesmo problema.

— Você saberá quando encontrar a pessoa certa — disse Nat.

— Será? Eu questiono isso. Você é uma das poucas pessoas que nunca mostrou o menor interesse pela minha riqueza, e você é quase a única pessoa que conheço que sempre insiste em pagar do seu próprio bolso. Fico surpreso por ver quantas pessoas assumem que eu pagarei a conta só porque posso arcar com ela. Desprezo essas pessoas, o que significa que meu círculo de amigos acaba sendo bastante pequeno.

— Minha amiga mais recente é muito pequena — disse Nat, esperando tirar Tom de seu humor amargo — e eu sei que você vai gostar dela.

— A garota do "eu segurei a mão dela"?

— Sim, Su Ling, ela mede mais ou menos 1,78m, e agora que ser magra está na moda, ela vai ser a mulher mais procurada do campus.

— Su Ling? — disse Tom.

— Você a conhece? — perguntou Nat.

— Não, mas meu pai diz que ela assumiu o novo laboratório computadorizado que sua companhia financiou, e os instrutores têm virtualmente parado de se incomodar em tentar ensiná-la.

— Ela não mencionou nada sobre computadores para mim ontem à noite — disse Nat.

— Bem, acho melhor você se mexer depressa, porque papai também mencionou que o MIT e a Harvard estão, ambos, tentando tirá-la da Universidade de Connecticut; portanto, esteja alerta, existe um grande cérebro em cima daquele corpo pequeno.

— E eu banquei o completo idiota outra vez — disse Nat — porque até brinquei sobre o inglês dela, quando ela é, obviamente, mestre numa nova linguagem que todo mundo deseja conhecer. Falando nisso, é por isso que você queria me ver? — perguntou Nat.

— Não, eu não tinha ideia de que você estava se encontrando com um gênio.

— Não estou — disse Nat. — Ela é uma mulher gentil, delicada e bonita, que considera que segurar as mãos esteja um passo distante da promiscuidade.

Ele fez uma pausa.

— Então, se não era para discutir minha vida sexual, por que você marcou esta reunião de alta patente para o café da manhã, em primeiro lugar?

Tom desistiu dos ovos e os empurrou para o lado.

— Antes que eu volte a Yale, queria saber se você concorreria para presidente. Ele esperou pela barreira costumeira do "me deixe de fora, não estou interessado, você está falando com a pessoa errada", mas Nat não respondeu por algum tempo.

— Discuti isso com Su Ling na noite passada — disse casualmente — e, na sua costumeira forma desarmada de ser, ela me disse que eles não me queriam tanto assim, do mesmo modo como não queriam Elliot. O menos ruim entre os dois foram suas palavras exatas, se me lembro corretamente.

— Tenho certeza de que ela tem razão — disse Tom — mas isso poderia mudar se você lhes desse a chance de o conhecerem melhor. Você tem ficado recluso desde que voltou à faculdade.

— Eu tinha muita coisa a recuperar — disse Nat, defensivamente.

— Bem, esse não é mais o caso, como a média dos seus pontos mostram claramente — disse Tom. — E agora que você foi selecionado para correr pela universidade...

— Se você estivesse na Universidade de Connecticut, Tom, eu não hesitaria em concorrer para presidente, mas enquanto você estiver em Yale...

Fletcher levantou-se do seu lugar para encarar o júri — noventa e nove anos estava escrito em cada uma das suas faces. Se ele pudesse ter voltado o relógio no tempo e aceitado a oferta de três anos, ele o teria feito sem hesitação. Agora ele tinha sido deixado com apenas uma jogada de dado para tentar devolver à Sra. Kirsten o resto de sua vida. Ele tocou o ombro de sua cliente e virou-se para procurar o sorriso de afirmação de Annie, que tinha sentido tão fortemente que ele podia defender esta mulher. O sorriso desapareceu no momento em que ele viu quem estava sentado duas filas atrás dela. O Professor Abrahams agraciou-o com uma inclinação de cabeça.

Pelo menos Jimmy descobriria o que era necessário para arrancar um sorriso de Homer.

— Membros do júri — Começou Fletcher, um ligeiro tremor em sua voz. — Os senhores têm escutado as palavras persuasivas do promotor público, quando ele despeja o veneno sobre minha cliente; então, talvez tenha chegado a hora de mostrar para onde esse veneno deveria ser direcionado. Mas, antes, deixem-me gastar um tempo falando sobre os senhores. A imprensa tem desempenhado um grande papel no fato de eu não ter objetado nenhum jurado branco selecionado; na verdade, existem dez dos senhores neste júri. Eles foram mais longe, e sugeriram que se eu tivesse conseguido um júri todo negro, com uma maioria de mulheres, então a Sra. Kirsten certamente caminharia para a liberdade. Mas eu não quis isso. Escolhi cada um dos senhores por uma razão diferente.

Os membros do júri pareciam confusos.

— Mesmo o promotor público levantou a questão de por que não objetei alguns dos senhores — acrescentou Fletcher, voltando a encarar o Sr. Stamp. — Cruzei meus dedos, porque tampouco ninguém da sua grande equipe compreende por que os selecionei. Então, o que os senhores têm em comum?

O promotor público estava parecendo agora tão confuso quanto os jurados. Fletcher deu uma volta e apontou para a Sra. Kirsten.

— Tal como a ré, cada um dos senhores tem estado casado por mais de nove anos.

Fletcher voltou sua atenção para o júri.

— Não há solteiros nem solteiras, que nunca tiveram experiência com a vida de casados, ou com o que acontece entre duas pessoas atrás de portas fechadas. — Fletcher avistou uma mulher na segunda fila, que estremeceu. Ele se lembrou das palavras de Abrahams, dizendo que em um júri de doze pessoas, haveria uma grande possibilidade de que uma delas tivesse sofrido a mesma experiência da ré. Ele acabara de identificar aquela jurada.

— Qual das senhoras receia o pensamento de seu esposo retornando para casa depois da meia-noite, bêbado, com violência na cabeça apenas? Para a Sra. Kirsten, isso era alguma coisa que ela tinha de esperar seis noites em cada sete nos últimos nove anos. Olhem para esta fraca e frágil mulher e se perguntem que chances ela teria de se levantar contra um homem de 2,05m, que pesava 105kg...

Ele focou sua atenção na mulher do júri que havia estremecido.

— Qual de vocês chega em casa à noite e espera que seu marido agarre a tábua de pão, um ralador de queijo ou mesmo uma faca de churrasco, não para usar na cozinha, preparando a refeição, mas no quarto, para desfigurar sua esposa? E o que usou a Sra. Kirsten em sua defesa, esta mulher de 1,78m, pesando 47kg? Um travesseiro? Uma toalha? Um matador de mosquitos, talvez?

Fletcher fez uma pausa.

— Isso nunca passou por suas cabeças, passou? — acrescentou, encarando o resto dos jurados. — Por quê? Porque seus maridos e esposas não são maus. Senhoras e senhores, poderiam começar a entender que esta mulher estava sendo sujeitada a isso, dia sim, dia não?

"Mas não satisfeito com tal degradação, uma noite este facínora volta bêbado para casa, sobe as escadas, arranca sua mulher pelos cabelos para fora da cama, desce as escadas e vai para a cozinha; ele está enjoado de simplesmente bater nela e dei xá-la cheia de hematomas."

Fletcher começou a andar em direção à sua cliente.

— Ele precisa de outra emoção para alcançar novas alturas de excitamento. E o que Anita Kirsten vê imediatamente assim que é arrastada até a cozinha? A chapa de ferro da boca do fogão já está incandescente e espera por sua vítima.

Ele se vira para encarar o júri.

— Os senhores podem imaginar o que deve ter passado por sua mente quando ela viu pela primeira vez a chapa incandescente? Ele agarra a mão dela como um pedaço de carne crua e a pressiona sobre o fogão por quinze segundos.

Fletcher apanha a mão com cicatriz da Sra. Kirsten e a mantém para cima, de forma que a palma possa ser vista com clareza pelo júri; olha para o relógio e conta até quinze, antes de acrescentar: — E aí ela desmaiou.

"Qual dos senhores pode sequer imaginar tal horror? Então por que o promotor público demanda noventa e nove anos? Porque, ele nos disse, a morte foi premeditada. Mas certamente um crime passional perpetrado por alguém que defendia a própria vida num momento de raiva."

Fletcher deu a volta para encarar o promotor público e disse: — É claro que foi premeditado, e é claro que ela sabia exatamente o que estava fazendo. Se você tivesse 1,78m e fosse atacada por um homem de 2,05m confiaria numa faca, num revólver ou em algum instrumento cego que o facínora pudesse facilmente virar contra você?

Fletcher caminhou lentamente em direção ao júri.

— Qual dos senhores seria assim tão estúpido? Qual dos senhores não planejaria? Pensem nessa pobre mulher da próxima vez em que tiverem uma briga com as esposas. E que depois de algumas palavras zangadas forem trocadas, se deixariam o fogão a 220 graus para provar que ganharam a discussão?

Ele olhou para os sete homens do júri, um por um.

— Será que um homem assim merece seu apoio? Se esta mulher é culpada de homicídio, qual dos senhores não teria feito a mesma coisa se tivesse sido infeliz o bastante para casar-se com Alex Kirsten?

Desta vez ele voltou sua atenção para as cinco mulheres, antes de continuar.

— Mas eu não me casei, ouço vocês chorando. Eu me casei com um homem bom e decente. Então, agora todos nós podemos concordar. Ela se casou com um homem mau.

Fletcher encostou-se na mureta do banco de jurados.

— Tenho de implorar a indulgência do júri para essa paixão de juventude, pois isso é paixão. Escolhi defender este caso da mesma forma como receio que a justiça não seja feita para a Sra. Kirsten, e espero sempre que onze cidadãos justos vejam o que eu vejo e não consigam condenar esta mulher a passar o resto da vida na prisão.

"Preciso encerrar minha argumentação repetindo aos senhores as palavras que a Sra. Kirsten me disse quando nos sentamos sozinhos em sua cela uma manhã. "Sr. Davenport, ainda que eu tenha apenas vinte e cinco anos, prefiro passar o resto da minha vida na cadeia do que ter de passar outra noite sob o mesmo teto daquele homem mau." Graças a Deus ela não tem de voltar com ele para casa esta noite. Está em seu poder, como membros do júri, mandar a mulher de volta para casa, para seus amados filhos, com a esperança de que, juntos, eles possam reconstruir suas vidas, porque doze pessoas decentes compreenderam a diferença entre o bem e o mal."

Fletcher baixou a voz quase até ficar um sussurro.

— Quando forem para casa, para seus maridos e esposas, esta noite, digam-lhes o que fizeram hoje em nome da justiça, pois eu confio em que se voltarem com o veredicto de inocente suas esposas não levarão o fogão a 220 graus só porque elas não concordam com os senhores. A Sra. Kirsten já sofreu uma sentença de nove anos. Os senhores realmente acham que ela merece outros noventa?

Fletcher voltou a sua cadeira, mas não olhou em volta procurando por Annie, com medo de que Karl Abrahams pudesse notar que ele estava brigando com as lágrimas.


19


— OLÁ, MEU NOME É Nat Cartwright.

— Não é o capitão Cartwright?

— Sim, o herói que matou aqueles Vietcongs com as mãos vazias, porque se esqueceu de levar qualquer clipe de papel com ele.

— Não — disse Su Ling com jocosa admiração. — Não aquele que voou de helicóptero sozinho sobre a floresta infestada de inimigos, quando não tinha brevê de piloto?

— E então matou tantos inimigos que eles pararam de contá-los, enquanto, ao mesmo tempo, ele resgatava um pelotão inteiro de homens assustados.

— E as pessoas em casa acreditaram, daí ele foi condecorado, recebeu grandes prêmios em dinheiro e os ofereceu a cem vestais virgens.

— Eu só ganho quatrocentos dólares por mês, e nunca conheci uma virgem vestal.

— Bem, agora você conhece — disse Su Ling com um sorriso.

— Bem, você pode dizer a ela que fui escolhido para correr contra a Universidade de Boston?

— Sem dúvida você esperaria que ela ficasse em pé, sob a chuva, e esperasse até que você trilhasse lá por perto dos fundos, como todas as outras fãs que o adoram?

— Não, a verdade é que preciso de minha roupa de corrida, e soube que a dela tem uma lavanderia.

Su Ling caiu na gargalhada.

— Naturalmente eu gostaria que você viesse a Boston — disse Nat, tomando-a nos braços.

— Já fiz a reserva de um lugar no ônibus dos torcedores.

— Mas Tom e eu estaremos indo de carro na noite anterior; então, por que você não vem conosco?

— Mas onde é que eu ficaria?

— Uma das numerosas tias de Tom tem uma casa em Boston, e ela se ofereceu para nos receber a todos, por uma noite.

Su Ling hesitou.

— Eu soube que ela tem nove quartos, e até uma ala separada da casa; mas se isso não for o suficiente, posso passar a noite no banco de trás do carro.

Su Ling não respondeu quando Mário apareceu trazendo dois cappuccinos.

— Este é o meu amigo Mário — disse Su Ling. — Muito simpático de sua parte ter guardado minha mesa costumeira — acrescentou ela.

— Você traz todos os seus homens aqui?

— Não, tenciono selecionar um restaurante diferente de cada vez, de modo que ninguém possa descobrir minha reputação de vestal.

— Tal como sua reputação como feiticeira do computador?

Su Ling enrubesceu.

— Como foi que você soube disso?

— O que você quer dizer com "como foi que você soube disso"? Parece que todos no campus sabiam, exceto eu. Na verdade, meu amigo mais chegado contou-me, e ele está em Yale.

— Eu ia lhe contar, mas você nunca fez a pergunta certa.

— Su Ling, você pode me contar coisas sem ter de esperar que eu faça a pergunta certa.

— Então preciso perguntar se você também ouviu falar que tanto a Harvard como o MIT estão me convidando para trabalhar em seus departamentos de ciências da computação.

— Sim, mas eu não sei o que você respondeu.

— Diga-me, capitão — disse ela — posso lhe perguntar uma coisa antes?

— Você está tentando mudar de assunto outra vez, Su Ling.

— Sim, estou, Nat, porque preciso da minha pergunta respondida antes de responder à sua.

— O.k.; então qual é sua pergunta?

Su Ling abaixou a cabeça como sempre fazia quando ficava ligeiramente embaraçada.

— Como podem duas pessoas tão diferentes — ela hesitou — acabar gostando tanto uma da outra?

— Acabar se apaixonando, acho que é o que você está tentando dizer. Se eu soubesse a resposta para esta pergunta, Florzinha,* eu seria um professor de filosofia e não estaria me preocupando quanto às minhas notas na prova de encerramento de período.

 

* Tradução de "Su Ling". (N.T.)

 

— No meu país — disse Su Ling — o amor é alguma coisa sobre a qual você não fala a respeito, até que tenha conhecido bem o outro por muitos anos.

— Então prometo não discutir o assunto outra vez por muitos anos, mas sob uma condição.

— E qual é?

— Que você concorde em vir conosco para Boston na sexta-feira.

— Sim, se eu puder ter o número do telefone da tia do Tom.

— Claro que pode, mas por quê?

— Minha mãe vai precisar falar com ela.

Su Ling levantou o pé direito, deslizou-o sob a mesa e colocou-o sobre o pé esquerdo de Nat.

— Agora sei que isso tem um sentido significativo em seu país.

— Sim, tem. Significa que desejo falar com você, mas não na multidão. Nat colocou o pé direito sobre o pé esquerdo dela.

— E o que isso quer dizer?

— Que você concorda com o meu pedido — hesitou ela. — Mas eu não deveria ter tomado a iniciativa, caso contrário eu seria considerada uma mulher fácil.

Nat imediatamente removeu seu pé, mas logo o recolocou.

— Honra restaurada — disse ela.

— Então, assim que tivermos estado em nosso passeio sem multidão, o que acontece depois?

— Você precisa esperar por um convite para tomar chá com minha família.

— Quanto tempo isso vai demorar?

— Normalmente um ano seria considerado apropriado.

— Não poderíamos apressar o processo um pouquinho? — sugeriu Nat. — Que tal na próxima semana?

— Está bem, então você será convidado para um chá no domingo à tarde, porque domingo é o dia tradicional para um homem ter sua primeira refeição com a mulher, sob o olhar cuidadoso da família.

— Mas nós já fizemos juntos diversas refeições.

— Eu sei, então você precisa vir para o chá antes que minha mãe descubra, caso contrário eu serei abandonada e deserdada.

— Então não devo aceitar seu convite para o chá — disse Nat.

— Por que não?

— Ficarei justamente do lado de fora de sua casa e vou agarrá-la quando sua mãe jogá-la fora, e, então, não terei de esperar outros dois anos.

Nat colocou seus dois pés sobre os dela, e ela os retirou imediatamente.

— O que foi que fiz de errado?

— Dois pés significam uma coisa completamente diferente.

— O quê? — perguntou Nat.

— Não posso dizer, mas como você foi muito esperto para descobrir a tradução correta de "Su Ling", confio que você venha a descobrir o sentido de dois pés, e nunca mais fará isso novamente, a menos que...

Na tarde de sexta-feira, Tom levou Nat e Su Ling à casa de sua tia nos subúrbios verdejantes de Boston. A Srta. Russell tinha, obviamente, falado com a mãe de Su Ling, porque ela a colocara no quarto da entrada principal, próximo ao seu, enquanto Nat e Tom foram relegados para a ala leste.

Depois do café da manhã, na manhã seguinte, Su Ling saiu para uma entrevista com o professor de estatística em Harvard, enquanto Nat e Tom passaram algum tempo caminhando vagarosamente em torno do percurso de corrida livre, algo que Nat sempre fazia quando saía para correr em terreno desconhecido. Ele verificou todos os bem decorados caminhos, e sempre que se aproximava de um córrego, um portão ou uma súbita ondulação, praticava a corrida por diversas vezes.

No caminho de volta, atravessando o campo, Tom perguntou-lhe o que faria se Su Ling concordasse com uma transferência para Harvard.

— Eu me mudaria na mesma hora e me matricularia na escola de administração de empresas.

— Você sente isso fortemente com respeito a ela?

— Sim, e não posso arriscar deixar que ninguém mais coloque os dois pés sobre os dela.

— Sobre o que você está falando?

— Explico noutra ocasião — disse Nat ao chegar próximo a um córrego. — Onde é que você imagina que eles vão cruzá-lo?

— Não tenho ideia — disse Tom — mas parece largo demais para pular.

— Concordo; então espero que eles consigam pedras chatas e grandes para pôr no meio.

— O que você faz quando não tem certeza? — perguntou Tom.

— Sigo bem de perto atrás de alguém do time deles, porque eles farão a coisa certa automaticamente.

— Onde você espera acabar cedo assim, nesta temporada?

— Eu ficaria satisfeito em ser um fiscal.

— Não entendo... não é todo mundo que conta?

— Não. Embora existam oito corredores em cada time, apenas seis contam quando a pontuação final é calculada. Se eu chegar em décimo segundo lugar, ou um número mais alto, serei um fiscal.

— E como é feita a contagem?

— O primeiro do outro lado da linha conta como um, o segundo como dois e assim por diante. Quando a corrida termina, os primeiros seis de cada time são somados juntos e o time com a pontuação total mais baixa é o ganhador. Dessa maneira, sete e oito só podem contribuir se ficarem na frente de qualquer dos seis primeiros corredores do outro time. Está claro?

— Sim, acho que sim — disse Tom, olhando para seu relógio. — Acho melhor voltar, porque prometi à tia Abigail que almoçaria com ela. Você vem?

— Não, estou me juntando ao resto do time para uma banana, uma folha de alface e um copo de água. Você poderia ir buscar Su Ling e ter certeza de que ela vai estar de volta a tempo de ver a corrida?

— Ela não precisará ser lembrada — disse Tom.

Enquanto andava por dentro de casa, Tom descobriu sua tia e Su Ling em profunda conversa sobre uma tigela de mariscos. Ele sentiu que sua tia havia mudado de as sunto no momento em que adentrou a sala.

— Você faria melhor se apanhasse alguma coisa para comer — disse ela — se está esperando estar de volta a tempo de ver o começo.

Depois da segunda tigela de mariscos, Tom acompanhou Su Ling através do campo. Ele explicou a ela que Nat havia selecionado um local aberto no alto onde eles poderiam ver todos os corredores por mais de um quilômetro, e, então, se tomassem um pequeno atalho, estariam de volta a tempo de verem o ganhador cruzando a linha de chegada.

— Você entende o que é um contador? — perguntou Tom.

— Sim, Nat explicou para mim, um engenhoso sistema, que faz com que o ábaco pareça positivamente moderno. Você gostaria que eu explicasse para você? — perguntou ela.

— Sim, acho que gostaria — disse Tom.

No momento em que eles atingiram o ponto de vantagem que Nat havia selecionado, não tiveram de esperar muito antes que o primeiro corredor chegasse a ver o cume do monte. Eles viram o capitão da Boston passá-los num raio, e dez outros corredores tinham ido e vindo antes que Nat aparecesse. Ele acenou ao acelerar descendo o monte.

— Ele é o último contador — disse Su Ling quando eles se levantaram para pegar o pequeno atalho de volta para a linha de chegada.

— Aposto que ele se mudará para dois ou três lugares agora que sabe que você está aqui para vê-lo — disse Tom.

— Que elogioso! — disse Su Ling.

— Você vai aceitar a oferta de Harvard? — perguntou Tom, baixinho.

— Nat pediu a você que o descobrisse? — inquiriu ela.

— Não — disse Tom — ainda que ele fale pouco demais.

— Eu disse que sim, mas só sob uma condição.

Tom permaneceu silencioso. Su Ling não disse a Tom que condição era aquela, então ele não perguntou.

Eles tiveram de correr quase cento e oitenta metros para ter certeza de que esta riam de volta a tempo de ver o capitão da Boston levantar seus braços em triunfo quando ele cruzou a linha de chegada. Tom voltou-se para a direita, porque Nat acabou na nona posição e como quarto contador para seu time. Ambos correram para congratular-se com ele, como se ele fosse o vencedor. Nat deitou-se no chão exauri do, desapontado por não ter feito melhor quando soube que a Boston tinha ganho por 31 a 24.

Depois da ceia com tia Abigail, eles começaram a longa viagem de volta a Storrs. Nat descansou a cabeça no colo de Su Ling e, depressa, adormeceu.

— Não consigo imaginar o que minha mãe diria sobre nossa primeira noite juntos — murmurou ela para Tom, enquanto ele dirigia através da noite.

— Por que você não vai até o fim e diz a ela que foi um ménage à trois?

— Mamãe achou que você foi maravilhoso — disse Su Ling quando eles andavam de volta lentamente, em direção ao sul do campus, depois do chá na tarde seguinte.

— Que mulher! — disse Nat. — Ela pode cozinhar, cuidar de uma casa e também é uma mulher de negócios bem-sucedida.

— E não se esqueça — disse Su Ling — de que ela foi banida em sua própria terra por ter dado à luz a filha de um estrangeiro, e não se sentiu sequer bem-vinda neste país quando chegou pela primeira vez, o que é a razão pela qual fui educada tão rigidamente. Como muitos filhos de imigrantes, não sou mais inteligente do que minha mãe, mas por ela sacrificar tudo para dar-me uma educação de primeira classe, ela me permitiu uma chance melhor do que ela jamais teve. Talvez você possa agora compreender por que sempre tento respeitar os desejos dela.

— Sim, eu posso — disse Nat. — Agora que conheci sua mãe, eu gostaria que você conhecesse a minha, porque também tenho muito orgulho dela.

Su Ling riu.

— Por que você ri, Florzinha? — perguntou Nat.

— No meu país, para um homem se encontrar com a mãe da mulher é admitir um relacionamento. Se o homem então pede para conhecer sua mãe, isso significa noivado.

Se ele depois não se casa com a garota, ela será desprezada para o resto de sua vida. Entretanto, eu correrei este risco, porque Tom pediu-me que me casasse com ele ontem quando você estava correndo.

Nat abaixou-se, beijou-a nos lábios e depois colocou os pés gentilmente sobre os dela. Ela sorriu.

— Eu também amo você — disse ela.


20


O QUE VOCÊ faz com isso? — perguntou Jimmy. — Não tenho a menor ideia — disse Fletcher, que olhou por cima da mesa do promotor público, mas ninguém da equipe do Estado deu qualquer sinal de parecer nem ansioso, nem confiante.

— Você bem que podia pedir a opinião do Professor Abrahams — disse Annie.

— Por quê? Ele ainda está por aí?

— Eu o vi perambulando para cima e para baixo no corredor, há alguns instantes.

Fletcher deixou a mesa, abriu o pequeno portão de madeira separando a Corte do público, e saiu a passos largos da sala do tribunal para o corredor. Olhou para cima e para baixo em toda a grande extensão de mármore, mas não viu o professor até chegar às aglomerações dispersas junto às escadas da rotunda, revelando um homem distinto, sentado no canto, a cabeça baixa, fazendo anotações num bloco oficial de notas. Os membros da Corte e do público, apressados, passavam por ele sem perceber-lhe a presença. Fletcher atravessou o corredor apreensivamente para juntar-se a ele e viu que continuava tomando notas. Não sentiu que pudesse interrompê-lo; então esperou até que o professor olhasse para cima, casualmente.

— Ah, Davenport! — disse ele, batucando o banco a seu lado. — Sente-se. Você tem um livro de perguntas em sua cara; portanto, de que forma posso ajudá-lo?

Fletcher sentou-se a seu lado.

— Eu só queria pedir sua opinião sobre por que o júri está recolhido por tanto tempo. Eu deveria entender alguma coisa disso?

O professor checou seu relógio.

— Já se passaram cinco horas — disse ele. — Não, eu não consideraria tão longo tempo assim para uma pena capital. Os júris gostam de deixar você saber que eles estão levando sua responsabilidade a sério; a menos, naturalmente, que seja curto e grosso, e este caso certamente não o foi.

— O senhor tem alguma suspeita de qual possa vir a ser o resultado? — perguntou Fletcher, ansiosamente.

— Você nunca consegue julgar um júri, Sr. Davenport; doze pessoas escolhidas ao acas o, com pouco em comum, ainda que eu possa dizer, com umas duas exceções, eles me parecem muito bons de cabeça. Então, qual é sua segunda pergunta?

— Não sei, senhor, qual é minha próxima pergunta?

— O que eu deverei fazer se o veredicto for contra mim? O professor fez uma paus a.

— Uma eventualidade para a qual você precisa estar sempre preparado. Fletcher balançou a cabeça.

— Resposta? Você pede imediatamente ao juiz para partir para a apelação. O professor rasgou uma das folhas de papel amarelo e passou-a às mãos do seu aluno.

— Espero que você não considere uma presunção de minha parte, mas anotei uma simples fórmula de palavras para todas as eventualidades.

— Incluindo "culpada"? — disse Fletcher.

— Não há necessidade de ser tão pessimista ainda. Primeiro nós temos de considerar a possibilidade de um júri rendido. Eu observei, no centro da fila de trás, uma jurada que não olhou nem uma vez para a ré enquanto ela estava sentada no banco das testemunhas. Mas notei que você também viu a senhora na ponta final da fila da frente, que abaixou os olhos quando você levantou a palma marcada da mão direita da Sra. Kirsten.

— O que eu faço se o júri houver se rendido?

— Nada. O juiz, ainda que não seja a mais brilhante das mentes atualmente sentada no tribunal de apelações, é meticuloso e justo quando se trata da lei; portanto, ele irá perguntar ao júri se estão prontos a voltar com um veredicto da maioria.

— O que neste Estado é de dez para dois.

— Tal e qual em quarenta e três outros Estados — lembrou-lhe o professor.

— Mas e se a maioria for incapaz de concordar no veredicto?

— O juiz fica sem outra escolha que a de dispensar o júri e perguntar ao promotor público se ele não gostaria de fazer um novo julgamento, e antes que você me pergunte, não posso julgar como o Sr. Stamp irá reagir a essa eventualidade.

— Parece que o senhor fez uma porção de anotações — disse Fletcher, olhando linha por linha as notas escritas cuidadosamente.

— Sim, tenciono mencionar este caso no próximo período, quando eu der minha aula sobre a diferença legal entre morte involuntária e homicídio. Será para os meus alunos do terceiro ano, portanto você não deveria ficar assim tão embaraçado.

— Eu deveria ter aceitado o acordo sugerido pelo promotor público sobre homicídio in voluntário e o configurado para três anos?

— Suspeito que descubramos a resposta a esta pergunta num futuro não muito distante.

— Cometi muitos enganos? — perguntou Fletcher.

— Alguns — disse o professor, virando as folhas do seu bloco de notas.

— E qual foi o pior deles?

— O único erro crasso que você cometeu, na minha opinião, foi não ter chamado um médico para descrever em detalhes gráficos, uma coisa que os médicos sempre têm prazer em fazer, como foi que as manchas roxas nos braços e pernas da Sra. Kirsten foram-lhe infligidas. Os júris admiram os médicos. Eles acreditam que sejam pessoas honestas, e eles, quase sempre, o são. Mas, como todos os outros grupos, se você lhes faz a pergunta certa, e afinal são sempre os advogados que escolhem as perguntas,

eles tendem ao exagero, como todos nós.

Fletcher sentiu-se culpado por ter perdido uma tão óbvia abertura, e desejou apenas ter acatado a advertência de Annie e procurado o conselho do professor mais cedo.

— Não se preocupe, o Estado ainda tem uma ou duas barreiras para cruzar, porque o juiz está convicto de nos garantir uma execução.

— Nós? — disse Fletcher.

— Sim — disse o professor, baixinho. — Apesar de eu não ter aparecido no tribunal por muitos anos, e pode ser até que eu seja meio rude, eu estava esperando que você me permitisse assisti-lo nesta ocasião.

— O senhor trabalharia como meu assistente? — disse Fletcher, sem acreditar.

— Sim, Davenport, eu trabalharia — disse o professor — porque você me convenceu de uma coisa. Sua cliente não deveria ter de passar o resto de sua vida na prisão.

— O júri está de volta! — gritou uma voz que ecoou pelo corredor.

— Boa sorte, Davenport — acrescentou o professor. — E quero dizer, antes de ouvir o resultado, que para um estudante do segundo ano, sua defesa foi um tour de force exemplar.

Nat podia sentir quão nervosa Su Ling estava quanto mais eles se aproximavam de Cromwell.

— Você tem certeza de que sua mãe vai aprovar a maneira como estou vestida? — perguntou ela, puxando a saia ainda mais para baixo.

Nat virou-se para admirar o tailleur simples amarelo que Su Ling tinha escolhido, que apenas realçava quão graciosa sua figura era.

— Minha mãe aprovará, e meu pai não conseguirá tirar os olhos de você. Su Ling beliscou a perna dele.

— Como seu pai irá reagir ao descobrir que sou coreana?

— Deverei lembrá-lo do pai irlandês — disse Nat. — De qualquer forma, ele passou sua vida toda negociando com números; portanto, só levará uns poucos minutos para que compreenda quão inteligente você é.

— Não é muito tarde para voltarmos atrás — disse Su Ling. — Nós poderíamos visitá-los no próximo domingo.

— É muito tarde — disse Nat. — Em todo caso, você levou em consideração como meus pais devem estar nervosos? Afinal, eu já disse a eles que estou desesperadamente apaixonado por você.

— Sim, mas minha mãe adorou você.

— E a minha vai adorar você. — Su Ling permaneceu silenciosa até que Nat lhe disse que estavam se aproximando das cercanias de Cromwell.

— Mas eu não sei o que dizer.

— Su Ling, esta não é uma prova que você precisa passar.

— Sim, é, é exatamente o que é.

— Esta é a cidade onde eu nasci — disse Nat, tentando relaxá-la, enquanto desciam pela rua principal. — Quando eu era criança, pensava que esta era uma grande metrópole.

Mas, para ser justo, eu também costumava pensar que Hartford era a capital do mundo.

— Quanto falta para chegarmos lá? Nat olhou pela janela.

— Eu diria que uns dez minutos. Mas, por favor, não espere nada muito grande; nós vivemos numa casa pequena.

— Minha mãe e eu vivemos em cima da loja — disse Su Ling.

Nat riu.

— E do mesmo jeito morou Harry Truman.

— E veja aonde isso o levou — respondeu ela. Nat virou o carro na avenida Cedar.

— Nós somos a terceira casa à direita.

— Poderíamos dar uma volta na quadra por uns minutos? — disse Su Ling. — Preciso pensar sobre o que vou dizer.

— Não — disse Nat, firmemente — tente se lembrar como o professor de estatística de Harvard reagiu quando a viu pela primeira vez.

— Sim, mas eu não queria me casar com o filho dele.

— Tenho certeza de que ele teria concordado se tivesse pensado que isso a convenceria a juntar-se à equipe dele.

Su Ling riu pela primeira vez em uma hora, enquanto Nat encostava o carro em uma vaga do lado de fora da casa. Ele deu a volta depressa pelo outro lado do carro e abriu a porta para Su Ling. Ela desceu e derrubou um dos seus sapatos na sarjeta.

— Sinto muito, sinto muito — disse ela, assim que o escorregou para calçá-lo de volta. — Sinto muito.

Nat riu e abraçou-a.

— Não, não — disse Su Ling — sua mãe pode nos ver.

— Tomara que sim — disse Nat. Ele sorriu e levou-a pela mão enquanto andavam pela calçada estreita.

A porta foi aberta bem antes de eles a alcançarem e Susan correu para fora, para cumprimentá-los. Ela imediatamente tomou Su Ling em seus braços e disse: — Nat não exagerou. Você é muito bonita!

Fletcher andou lentamente de volta pelo corredor, no sentido do tribunal, surpreso por descobrir que o professor permanecia ao seu lado. Quando chegaram à porta giratória, o jovem advogado acreditou que seu mentor voltaria a seu lugar, umas duas filas atrás de Annie e Jimmy, mas ele continuou caminhando em direção à frente do tribunal e tomou um assento vago ao lado de Fletcher. Annie e Jimmy mal podiam esconder a surpresa. O oficial de justiça da Corte anunciou: — Levantem-se todos! Sua Excelência, o juiz Abernathy presidindo.

Uma vez sentado, o juiz olhou na direção do promotor público e reconheceu-o, voltando depois sua atenção para o grupo da defesa, e pela segunda vez durante o julgamento, uma surpresa ficou registrada em sua face.

— Vejo que o senhor adquiriu um assistente, Sr. Davenport. Deve o nome dele ser colocado nos registros antes que eu chame o júri de volta?

Fletcher voltou-se para o professor, que se levantou do lugar e disse: — Este seria meu desejo, Excelência.

— Qual é o seu nome? — perguntou o juiz, como se nunca o houvesse visto antes.

— Karl Abrahams, Excelência.

— O senhor está qualificado para aparecer em minha corte? — perguntou o juiz solenemente.

— Acredito que esteja, Meritíssimo — disse Abrahams. — Sou da Ordem dos Advogados de Connecticut desde 1937, apesar de nunca ter tido o privilégio de aparecer perante Vossa Excelência.

— Obrigado, Sr. Abrahams. Se o promotor público não fizer objeção, darei entrada do seu nome nos meus registros como assistente do Sr. Davenport.

O promotor público levantou-se, inclinou a cabeça levemente para o professor e disse: — É um privilégio estar na mesma corte do assistente do Sr. Davenport.

— Então, acho que não devemos mais perder tempo e chamar o júri de volta — disse o juiz.

Fletcher examinou as faces dos sete homens e das cinco mulheres enquanto iam ocupando seus lugares. O professor havia sugerido que Fletcher averiguasse para saber se qualquer membro do júri olhava para sua cliente, o que iria, possivelmente, indicar um veredicto como inocente. Ele pensou que dois ou três o fizeram, mas não teve certeza.

O representante do júri levantou-se.

— Os senhores chegaram a um veredicto para este caso? — perguntou o juiz.

— Não, excelência, não fomos capazes de fazê-lo — o representante respondeu.

Fletcher podia sentir o suor nas palmas de suas mãos ainda mais intensamente do que quando se dirigira ao júri pela primeira vez. O juiz tentou uma segunda vez: — Os senhores estariam capacitados a voltar com um veredicto de maioria?

— Não, Excelência — replicou o representante do júri.

— Os senhores acreditam que se tivessem tido mais tempo chegariam, eventualmente, a um veredicto de maioria?

— Não acreditamos nisso, Excelência. Ficamos igualmente divididos pelas últimas três horas.

— Então não tenho outra escolha senão declarar anulado este julgamento e dispensar o júri. Em nome do Estado, agradeço aos senhores por seu serviço. Voltou sua atenção para o promotor público e, enquanto o fazia, o Sr. Abrahams levantou-se.

— Eu me pergunto, Excelência, se devo seguir sua orientação sobre uma pequena questão de protocolo.

O juiz pareceu confuso, tanto quanto o promotor público.

— Mal posso esperar para ouvir sua pequena questão de protocolo, Sr. Abrahams.

— Permita-me primeiro inquirir do Meritíssimo se estou correto no meu pensamento de que se devesse haver um novo julgamento, o grupo de defesa deveria ser avisado num prazo de quatorze dias?

— Esta deveria ser a praxe normal, Sr. Abrahams.

— Então, posso ajudar a Corte deixando claro, caso esta situação fosse levantada, que o Sr. Davenport e eu continuaremos representando a ré.

— Sinto-me agradecido por sua pequena questão de protocolo — disse o juiz, já não mais confuso. — Então, agora devo perguntar ao Sr. Stamp — disse o juiz, voltando sua atenção para o promotor público — se é de sua intenção solicitar um novo julgamento para este caso?

A atenção da Corte voltou-se para os advogados do Estado, todos os cinco que estavam em aconchegante e animado bate-papo. O juiz Abernathy não fez nenhuma tentativa de apressá-los, e levou algum tempo até que o Sr. Stamp se erguesse.

— Não acreditamos, Excelência, que seja do melhor interesse do Estado reabrir este caso.

Aplausos eclodiram no recinto da Corte, enquanto o professor rasgava uma folha do seu bloco amarelo e a passava ao aluno. Fletcher olhou para ele, levantou-se do seu lugar e o leu, palavra por palavra.

— Meritíssimo, nestas circunstâncias eu pediria pela imediata liberação da minha cliente.

Ele olhou para a próxima sentença do professor e continuou lendo.

— E eu gostaria de dizer quão grato estou pela maneira cortês e profissional pela qual o Sr. Stamp e sua equipe conduziram o caso para a acusação.

O juiz inclinou a cabeça, e o Sr. Stamp levantou-se novamente.

— Por outro lado, eu queria congratular-me com o advogado de defesa e seu assistente, em seu primeiro caso perante Vossa Excelência, e desejar ao Sr. Davenport todo o sucesso naquela que, sinto, será uma carreira promissora.

Fletcher sorriu para Annie enquanto o Professor Abrahams se levantava.

— Objeção, Excelência!

Todos se voltaram para encarar o professor.

— Eu não teria tanta certeza — disse ele. — É minha crença que muito trabalho ainda precisa ser feito antes que esta promessa se realize.

— Mantida — disse o juiz Abernathy.

 

 

 

— Minha mãe me ensinou dois idiomas até a idade de nove anos e, depois, fiquei quase pronta para ser apresentada à principal escola de Storrs.

— Foi ali que comecei minha vida acadêmica — disse Susan.

— Mas descobri muito cedo que tinha uma facilidade maior com os números do que com as palavras.

Michael Cartwright inclinou a cabeça em sinal de compreensão.

— E tive muita sorte em ter um professor de matemática cujo hobby era a estatística, e que também era fascinado pelo papel que o computador poderia desempenhar no futuro.

— Estamos começando a confiar muito neles, no negócio de seguros — disse Michael, enquanto enchia seu cachimbo outra vez.

— Qual o tamanho do computador de sua empresa, Sr. Cartwright? — perguntou Su Ling.

— Mais ou menos do tamanho desta sala.

— A próxima geração de estudantes trabalhará com computadores não maiores do que os tampos de suas carteiras, e a geração após aquela será capaz de segurá-los nas palmas de suas mãos.

— Você acredita mesmo que isto seja possível? — perguntou Susan, paralisada.

— A tecnologia está mudando a tal compasso, e a demanda será tão alta, que o preço deverá cair rapidamente. Isso ocorrendo, os computadores passarão a ser como os telefones e a televisão dos anos 40 e 50; quanto mais pessoas os comprarem, menores e mais baratos eles serão.

— Mas certamente alguns computadores ainda precisarão ser grandes? — sugeriu Michael. — Afinal de contas, minha empresa tem mais de quarenta mil clientes.

— Não necessariamente — disse Su Ling. — O computador que mandou o primeiro homem para a Lua era maior do que esta casa, mas viveremos para ver uma cápsula espacial descer em Marte, controlada por um computador não maior do que a mesa da cozinha.

— Não maior do que a mesa da cozinha? — repetiu Susan, tentando compreender o conceito.

— Na Califórnia, o Vale do Silício passou a ser o berço quente da tecnologia. A IBM e a Hewlett Packard já estão descobrindo que seus últimos modelos podem ficar fora de linha numa questão de meses, e uma vez que os japoneses estão concorrendo totalmente, pode ser uma questão até de semanas.

— Então como podem as empresas como a minha esperar ficar atualizadas? — perguntou Michael.

— O senhor terá de substituir seu computador simplesmente tantas vezes quantas troca de automóvel, e, num futuro não muito distante, o senhor será capaz de carregar em seu bolso detalhadas informações sobre cada cliente que representa.

— Mas, eu repito — disse Michael — nossa firma tem quarenta e dois mil clientes atualmente.

— Não vai importar se o senhor tem quatrocentos mil, Sr. Cartwright; um computador portátil ainda será capaz de fazer o mesmo trabalho.

— Mas pense nas consequências — disse Susan.

— Elas são muito excitantes, Sra. Cartwright — disse Su Ling. Ela fez uma pausa e ficou enrubescida. — Peço desculpas, estou falando demais.

— Não, não — disse Susan — é fascinante, mas eu estava esperando perguntar a você sobre a Coreia, um país que sempre desejei visitar. Se não for uma pergunta idiota, você é mais favorável aos chineses ou aos japoneses?

— A nenhum deles — respondeu Su Ling. — Somos tão diferentes como os russos dos italianos. A nação coreana foi originalmente uma tribo, e, provavelmente, existiu primeiro já no século II...

— E pensar que eu disse a eles que você era tímida — Nat comentou enquanto escorregava para perto dela, tarde naquela noite.

— Sinto muito — disse Su Ling. — Quebrei a regra de ouro de sua mãe.

— Qual? — disse Nat.

— Que quando duas pessoas se conhecem, a conversa devia ser igualmente dividida: três pessoas, trinta e três por cento; quatro pessoas, vinte e cinco por cento.

Eu falei — ela fez uma pausa — quase noventa por cento do tempo. Estou envergonhada, porque me comportei tão mal que não sei o que deu em mim. Eu estava muito nervosa.

Tenho certeza de que eles já lamentam qualquer sugestão a meu respeito como nora.

Nat riu.

— Eles adoraram você — disse. — Meu pai ficou hipnotizado pelo seu conhecimento sobre computadores, e minha mãe ficou fascinada pelos costumes da Coreia, apesar de você não ter mencionado o que pode acontecer se uma garota coreana toma chá com os pais de seu pretendente.

— Isso não se aplica a uma primeira geração de americanas, como eu.

— Que usa batom cor-de-rosa e minissaias — disse Nat, segurando um tubo de batom cor-de-rosa.

— Eu não sabia que você usava batom, Nat. Outro hábito que aprendeu no Vietnã?

— Só em "ops" noturnas. Agora vire-se.

— Virar?

— Sim — disse Nat firmemente. — Pensei que mulheres coreanas fossem criadas para ser subservientes; então faça como lhe foi dito e vire-se.

Su Ling virou-se e colocou o rosto no travesseiro.

— Qual é sua próxima ordem, capitão Cartwright?

— Tire sua camisola, Florzinha.

— Isso acontece a todas as garotas americanas em sua segunda noite?

— Tire sua camisola!

— Sim, capitão.

Ela lentamente tirou a camisola de seda branca pela cabeça e a deixou cair no chão.

— E agora? — perguntou ela. — É agora que você bate em mim?

— Não, isso não acontece até o terceiro encontro, mas eu vou lhe fazer uma pergunta. Nat pegou o batom rosa e escreveu quatro palavras em sua pele cor de azeitona, seguidas por um ponto de interrogação.

— O que foi que você escreveu, capitão Cartwright?

— Por que você mesma não descobre?

Su Ling saiu da cama e olhou sobre o ombro na frente do espelho. Ela se voltou para ver Nat deitado na cama com os braços abertos como as asas de uma águia, segurando o batom bem acima da cabeça. Su Ling atravessou lentamente, apanhou o batom, olhou para os ombros dele por algum tempo, antes de escrever a palavras SIM.

21


— ANNIE ESTÁ GRÁVIDA!

— Que notícia maravilhosa! — disse Jimmy enquanto eles deixavam o refeitório e se encaminhavam através do campus para sua primeira aula da manhã.

— De quantos meses ela está?

— Uns dois apenas; então agora será sua vez de dar o conselho.

— O que você quer dizer?

— Não se esqueça de que é você que tem toda a experiência. Você é pai de uma filha de seis meses. Para começar, como posso ajudar Annie durante os próximos sete meses?

— Tente dar-lhe apoio apenas. Nunca esqueça de dizer que ela parece maravilhosa, mesmo quando parecer uma baleia esparramada na praia, e se ela tiver algumas ideias malucas, não lhes faça caso.

— Tais como? — perguntou Fletcher.

— Joanna gostava de comer um pote de quase 240ml de sorvete de creme, com chips duplos de chocolate, um pouco antes de ir para a cama, toda noite; daí eu comia um pote também, e se ela acordasse no meio da noite, muitas vezes me pedia mais um.

— Isso deve ter sido um verdadeiro sacrifício — disse Fletcher.

— Sim, foi, porque sempre tinha de ser seguido de uma colher de óleo de fígado de bacalhau.

Fletcher riu.

— Continue em frente — disse ele quando se aproximavam do edifício Andersen.

— Annie logo vai começar a frequentar as reuniões de pré-natal e os instrutores geralmente recomendam que os maridos assistam a elas também, de modo que possam apreciar tudo pelo que suas esposas estão passando.

— Eu gostaria disso — disse Fletcher — especialmente se tiver de comer todo aquele sorvete.

Subiram os degraus e passaram através das portas giratórias.

— Com Annie, pode ser que se trate de cebolas e picles — disse Jimmy.

— Então eu talvez não deva ficar tão entusiasmado.

— E depois vem a preparação para o nascimento. Quem vai ajudar Annie com isso?

— Mamãe perguntou se ela gostaria da Srta. Nichol, minha velha babá, que vai se aposentar logo, mas Annie não quer nem ouvir falar nisso. Ela está determinada a criar seu filho sem qualquer ajuda externa.

— Joanna teria tirado vantagem da Srta. Nichol sem pensar duas vezes, porque do que eu me lembro daquela senhora, ela teria ficado feliz em concordar tanto em pintar a enfermaria quanto em trocar as fraldas.

— Nós não temos uma enfermaria — disse Fletcher — apenas um quarto extra.

— Então, de hoje em diante, aquele passa a ser a enfermaria, e Annie vai esperar que você o pinte outra vez, enquanto ela sai e compra um guarda-roupa inteiramente novo.

— Ela já tem mais do que o suficiente em roupas! — disse Fletcher.

— Nenhuma mulher tem mais do que o suficiente em roupas — disse Jimmy — e num período de dois meses ela não conseguirá caber em nenhuma delas; e isso antes de ela começar a pensar no que o bebê vai precisar...

— Eu faria melhor se começasse a procurar um emprego de recepcionista ou garçom, imediatamente — disse Fletcher enquanto desciam o corredor.

— Mas certamente seu pai vai...

— Não pretendo passar minha vida inteira sugando meu velho pai.

— Se meu pai tivesse todo esse dinheiro — disse Jimmy — eu não trabalharia um único dia.

— Ah, sim, você trabalharia — disse Fletcher — Caso contrário Joanna nunca teria concordado em se casar com você.

— Não acho que você vá acabar sendo um garçom, Fletcher, porque depois do seu triunfo no caso Kirsten vai pegar o auge dos trabalhos do verão. E se existe uma coisa que sei a respeito da minha irmã caçula, é que ela não permitirá nada que se atravesse no caminho de sua subida ao topo, desse nosso ano.

Jimmy fez uma pausa.

— Por que não troco uma palavrinha com minha mãe? Ela certamente ajudou Joanna com uma porção de tarefas, sem parecer tão óbvio.

Fez nova pausa.

— Mas eu esperaria alguma coisa em retorno.

— O que você tem em mente? — perguntou Fletcher.

— Bem, para começar, que tal o dinheiro de seu pai? — disse com um sorriso.

Fletcher riu.

— Você quer o dinheiro de meu pai em troca de pedir à sua mãe para ajudar a filha dela com o nascimento de seu neto? Você sabe, Jimmy, tenho a impressão de que você seria um advogado de divórcios de muito sucesso.

— Decidi me candidatar a presidente — disse ele sem sequer anunciar quem estaria do outro lado da linha.

— Esta é uma notícia boa — disse Tom — mas como é que Su Ling se sente a respeito?

— Eu não teria dado o primeiro passo se ela não o tivesse sugerido. E ela também deseja desempenhar um papel na campanha. Pediu-me para ser responsável pela votação e qualquer coisa que tenha a ver com números e com estatística.

— Então um dos seus problemas está resolvido — disse Tom. — Você já indicou um gerente de campanha?

— Já, assim que você voltou para Yale, eu me concentrei num rapaz chamado Joe Stein.

Ele já brigou por duas campanhas anteriormente, e trará com ele, também, o voto dos judeus — disse Nat.

— Existe um voto judeu em Connecticut? — disse Tom.

— Na América, sempre existe um voto judeu, e nesse campus existem quatrocentos e dezoito judeus, e eu preciso do apoio de cada um deles.

— Então qual é sua opinião de peso sobre o futuro das colinas de Golan? — perguntou Tom.

— Eu nem sequer sei onde ficam as colinas de Golan! — respondeu Nat.

— Bem, é melhor você descobrir isso até amanhã, nessa mesma hora.

— Eu me pergunto qual seria a opinião de Elliot sobre as colinas de Golan.

— Que elas deveriam ser sempre parte de Israel, e nenhum centímetro deveria ser jamais sacrificado aos palestinos; seria a minha aposta — disse Tom.

— Então qual será a linha dele com relação aos palestinos?

— Só existem, provavelmente, uns poucos no campus; ele não dará sua opinião.

— Isso certamente tornaria fácil uma decisão favorável a ele.

— A próxima coisa que você teria de levar em conta é seu discurso de abertura, e onde vai realizá-lo — disse Tom.

— Eu estava pensando no Russell Hall.

— Mas aquele só abriga quatrocentas pessoas. Não existe nada maior?

— Sim — disse Nat — os recintos da Assembleia abrigam mais de mil, mas Elliot caiu nesse erro, porque quando fez seu discurso de inauguração, o lugar parecia ocupado só pela metade. Não, eu prefiro reservar o Russell Hall e ter pessoas sentadas no peitoril das janelas, penduradas nos caibros, até mesmo sentadas nos degraus de fora, impedidas de entrar, o que causará uma impressão muito melhor nos eleitores.

— Então, seria melhor você escolher uma data e reservar o lugar imediatamente, e, ao mesmo tempo, ir em frente, pondo todo o resto da sua equipe em campo.

— Sobre o que mais eu deveria estar preocupado? — perguntou Nat.

— O discurso "pão-com-manteiga" do candidato. E não se esqueça de falar com todo estudante que cruzar com você; você se lembra da rotina: "Oi, meu nome é Nat Cartwright, estou disputando a presidência e espero poder realmente contar com seu apoio." Depois ouça o que eles têm a dizer, porque, se acreditarem que você está interessado em suas opiniões, você tem uma chance muito melhor de contar com o apoio deles.

— Alguma coisa mais?

— Não tenha pena de usar Su Ling e peça-lhe que use a mesma rotina com todas as alunas, porque ela está se tornando a mulher mais admirada do campus depois da decisão que tomou de permanecer na universidade. Não existem muitas pessoas que digam não para Harvard.

— Nem me lembre! — disse Nat. — Isso é tudo? Porque parece que você já pensou em todos os detalhes.

— Sim, eu voltarei para ajudá-lo pelos últimos dez dias do período, mas não farei oficialmente parte do seu time.

— Por que não?

— Porque Elliot dirá a todo mundo que sua campanha está sendo veiculada por uma pessoa de fora, e, pior, o filho milionário de um banqueiro, de Yale. Tente não se esquecer de que você teria vencido a última eleição se não fosse pela fraude de Elliot e, portanto, esteja preparado para ele aparecer com alguma coisa que possa derrotá-lo.

— Como o quê?

— Se eu soubesse disso, eu seria o chefe de gabinete do Nixon.

— Como estou? — perguntou Annie, muito digna, sobre o banco da frente do carro, afivelando o cinto de segurança.

— Você está fantástica, querida — disse Fletcher, sem nem sequer olhar para ela.

— Não, não estou, eu pareço horrível, e vai ser uma ocasião tão importante!

— Provavelmente é apenas mais uma daquelas reuniões dele, para uma dúzia de estudantes, ou coisa que o valha.

— Duvido — disse Annie. — Era um convite escrito à mão, e até eu prestei atenção nas palavras: "Procure comparecer. Lá estará alguém que eu quero que você conheça."

— Bem, estamos perto de descobrir quem é essa pessoa — disse Fletcher enquanto estacionava seu velho Ford atrás de uma limusine circundada por uma dúzia de agentes do Serviço Secreto.

— Quem poderia ser esta pessoa? — murmurou Annie enquanto ele a ajudava a sair do carro.

— Não tenho a menor ideia, mas...

— Que bom vê-lo, Fletcher! — disse o professor, que estava esperando à porta de entrada. — Foi bom você ter vindo — acrescentou. "Teria sido estúpido da minha parte não ter vindo", Fletcher gostaria de ter respondido. — E a senhora também, Sra. Davenport. Naturalmente eu me lembro bem da senhora, porque por umas duas semanas eu me sentei em umas duas filas atrás da senhora na Corte.

Annie sorriu.

— Eu era um pouco mais magrinha, então.

— Mas não era mais bonita — disse Abrahams. — Posso perguntar para quando é o bebê?

— Daqui a dez semanas, senhor.

— Por favor, chame-me de Karl! — disse o professor. — Faz com que eu me sinta bem mais jovem quando uma universitária de Vassar me chama pelo primeiro nome. Um privilégio, devo acrescentar, que não Vou estender ao seu marido por pelo menos mais um ano.

Ele piscou enquanto colocava um braço em volta do ombro de Annie.

— Entrem, há alguém que eu quero que vocês dois conheçam.

Fletcher e Annie seguiram o professor até a sala de visitas, onde encontraram uma dúzia de convidados já entretidos numa conversa profunda. Pareceu-lhes terem sido os últimos a chegar.

— Senhor vice-presidente, eu gostaria de apresentar Annie Davenport.

— Boa-tarde, senhor vice-presidente.

— Oi, Annie — disse Spiro Agnew, esticando sua mão — disseram-me que você se casou com um homem muito inteligente.

Karl sussurrou em Tom alto: — Procure não se esquecer, Annie, de que os políticos têm uma tendência a exagerar, porque estão sempre esperando pelo seu voto.

— Eu sei, Karl, meu pai é político.

— Isso é verdade? — disse Agnew.

— Sim, de esquerda,* senhor — respondeu ela com um sorriso — ele é líder da maioria no Senado, pelo estado de Connecticut.

 

* No original, Annie faz um trocadilho: Agnew pergunta. "Is that right?", e ela responde" "No, left, sir", com um sorriso.. Impossível traduzi-lo com o mesmo sentido. (N.T.)

 

— Não existem republicanos entre nós esta noite?

— E este, senhor vice-presidente, é o marido de Annie, Fletcher Davenport.

— Oi, Fletcher, seu pai também é democrata?

— Não, senhor, ele é republicano de carteirinha!

— Ótimo! Bem, pelo menos já ganhamos dois votos na sua casa!

— Não, senhor, minha mãe não permitiria que o senhor cruzasse o umbral da porta!

O vice-presidente desatou a rir.

— Não sei em que isso afetaria sua reputação, Karl.

— Devo continuar a permanecer neutro, Spiro, pois não entendo de política. Entretanto, posso deixar Annie com você, pois existe outra pessoa que eu quero que Fletcher conheça.

 

Fletcher estava confuso, pois tinha acreditado que fora ao vice-presidente que o professor se referira em sua carta, mas, respeitosamente, seguiu seu anfitrião para juntar-se a um grupo de homens sentados perto de uma fogueira no final do recinto.

— Bill, este é Fletcher Davenport; Fletcher, este é Bill Alexander, da Alexander...

—... Dupont and Bell — Completou Fletcher enquanto apertava as mãos do sócio mais antigo de uma das mais prestigiosas firmas de advocacia de Nova York.

— Tenho estado ansioso para conhecê-lo já faz algum tempo, Fletcher — disse Bill Alexander. — Você atingiu uma coisa que eu nunca consegui em trinta anos.

— E o que foi isso, senhor?

— Ter Karl como assistente em um dos meus casos. Como foi que conseguiu isso?

Os dois homens esperaram para ouvir sua resposta: — Eu não tinha muita escolha, senhor. Ele forçou a barra comigo, da maneira menos profissional possível, mas aí o senhor precisa compreender que ele estava desesperado. Ninguém lhe oferecia nenhum trabalho verdadeiro desde 1938. — Os dois homens riram.

— Mas estou inclinado a perguntar se ele valia seus honorários, que devem ter sido altos, lembrando que você conseguiu manter aquela mulher fora da cadeia?

— Certamente que valia — disse Abrahams antes que seu jovem convidado pudesse responder. Ele colocou uma mão sobre a prateleira de livros atrás de Bill Alexander e retirou uma cópia, de capa dura, de Os julgamentos de Clarence Darrow.

O Sr. Alexander analisou o livro.

— Eu tenho uma cópia também, é claro — disse Alexander.

— E eu também — disse Abrahams.

Fletcher pareceu desapontado.

— Mas não uma primeira edição assinada, com a sobrecapa em perfeitas condições. Ela é, sem dúvida, um exemplar de colecionador.

Fletcher pensou em sua mãe e seu inestimável conselho: — Tente escolher alguma coisa que ele valorize; não precisa custar muito dinheiro.

 

Nat deu a volta ao círculo de oito homens e seis mulheres que compunham sua equipe, pedindo a cada um deles para entregar uma autobiografia resumida ao resto do grupo. Ele então designou suas responsabilidades particulares na corrida para a eleição. Nat só podia admirar o comprometimento de Su Ling, porque, seguindo os conselhos extra-oficiais de Tom, ela havia selecionado um grupo representativo de estudantes notáveis, a maior parte dos quais havia obviamente desejado que Nat se mantivesse na posição por algum tempo.

— O.k.! Vamos começar pelas atualizações — disse Nat. Joe Stein levantou-se do seu lugar.

— Já que o candidato deixou bem claro que nenhuma contribuição pode exceder um dólar, aumentei o número de captadores de fundos no grupo, de modo que possamos nos aproximar do maior número possível de estudantes. Esse grupo atualmente se encontra uma vez por semana, em geral às segundas-feiras. Ajudaria bastante se o candidato fosse capaz de se dirigir a eles ao mesmo tempo.

— A próxima segunda-feira estaria bem para você? — perguntou Nat.

— Para mim está bem — disse Joe. — Até esta data nós levantamos trezentos e sete dólares, a maior parte coletada depois do seu discurso no Russell Hall. Devido ao recinto ter estado tão apinhado, muitos deles foram convencidos de que estavam apoiando o vencedor.

— Obrigado, Joe — disse Nat. — Próximo: o que pretende a oposição? Tim?

— Meu nome é Tim Ulrich e meu trabalho é cobrir a campanha da oposição e ter certeza de que sabemos o que eles pretendem o tempo todo. Temos pelo menos duas pessoas tomando nota sempre que Elliot abre a boca. Ele fez tantas promessas durante os últimos dias que se tentar mantê-las todas, a universidade irá à falência no ano que vem, por esta época do ano.

— E sobre os grupos, Ray?

— Os grupos se dividem em três categorias: étnica, religiosa e social; então, eu tenho três assistentes para cobrir cada uma. Existe, é claro, um considerável montante dos que se sobressaem, como, por exemplo, os italianos e os católicos.

— Sexo? — sugeriu alguém.

— Não — disse Ray — nós descobrimos que sexo é universal, e, portanto, não podemos agrupá-los, mas ópera, comida e moda são exemplos de onde os que se sobressaem se voltam para os italianos; mas nós estamos no topo disso. Mário está até oferecendo café de graça para aqueles clientes que prometem votar em Cartwright.

— Tenha cuidado. Elliot vai pegar isso como uma despesa eleitoral — disse Joe. —Não vamos perder por uma tecnicalidade.

— Concordo — disse Nat. — E esportes?

Jack Roberts, o capitão do time de basquete, não precisou se apresentar.

— Pista e campo estão devidamente cobertos pelo envolvimento pessoal de Nat, especialmente depois da sua vitória na final de corrida livre, na partida contra Cornell.

Elliot já tem o futebol costurado, mas a surpresa está nas mulheres do lacrosse; aquele clube tem mais de trezentos membros.

— Tenho uma namorada no segundo time — disse Tom.

— Pensei que você fosse homossexual... — disse Chris. Alguns deles riram.

— Quem está cobrindo os votos gay? — perguntou Nat. Ninguém falou.

— Se qualquer pessoa assume ser gay abertamente, descubra um lugar para ela no time, e nada de críticas desagradáveis!

Chris concordou com os comentários dele.

— Desculpe, Nat.

— Finalmente, pesquisas e estatísticas, Su Ling.

— Meu nome é Su Ling. Existem 9.628 estudantes registrados: 5.517 homens, 4.111 mulheres. Uma pesquisa muito amadorística foi conduzida no campus na manhã do último sábado, mostrando que Elliot tinha 611 votos e Nat 541, mas não se esqueçam de que Elliot começou na nossa frente, porque ele está fazendo campanha há mais de um ano e seus cartazes já estão dispostos por toda parte. Os nossos serão colocados na sexta-feira.

— E retirados no sábado.

— Daí nós os recolocaremos imediatamente — disse Joe — sem recorrermos às mesmas táticas. Desculpe, Su Ling.

— Sem problema. Cada membro da equipe tem de ter certeza de falar com pelo menos vinte eleitores por dia — disse Su Ling. — Faltando sessenta dias ainda, temos de tentar politizar cada estudante, diversas vezes antes do dia da eleição. Agora, este exercício não deve ser praticado de qualquer jeito — Continuou ela. — Na parede atrás de vocês, encontrarão um quadro com o nome de cada estudante em ordem alfabética. Na mesa abaixo, verão dezessete lápis de cor. Escolhi uma cor para cada membro do time. Todas as tardes vocês farão uma marca pelos eleitores com os quais falaram. Esta é apenas outra maneira de descobrir quem são os que falam e quem são os que trabalham.

— Mas você disse que havia dezessete lápis de cor sobre a mesa — disse Joe — quando existem apenas quatorze membros na equipe.

— Correto, mas existe um preto, também, um amarelo e um vermelho. Se a pessoa disser que estará votando em Elliot, você a elimina, ele ou ela, com uma cruz preta; se não tiver certeza, faça uma marca amarela neles; mas se tem certeza absoluta de que estarão votando em Nat, então use o vermelho. Toda tarde eu darei entrada a novos dados no meu computador, e passarei a vocês, como primeira coisa da manhã, uma cópia impressa deles. Alguma pergunta? — perguntou Su Ling.

— Você se casa comigo? — disse Chris. Todos caíram na gargalhada.

— Sim, caso — disse Su Ling.

Fez uma pausa.

— E lembre-se de não acreditar em tudo que lhe dizem, porque Elliot já tinha me perguntado isso, e eu também disse sim para ele.

— E quanto a mim? — disse Nat. Su Ling sorriu.

— Não se esqueça, dei minha resposta por escrito.

— Boa-noite, senhor, e obrigado pela noite memorável.

— Boa-noite, Fletcher, estou feliz que você tenha gostado.

— Certamente gostamos — disse Annie. — Foi fascinante conhecer o vice-presidente. Serei capaz de brincar com meu pai por semanas — acrescentou enquanto Fletcher a ajudava a entrar no carro.

Antes que ele tivesse fechado a porta do seu lado, Fletcher disse: — Annie, você foi fantástica!

— Eu só estava tentando sobreviver — disse Annie. — Não esperava que Karl me colocas se entre o vice-presidente e o Sr. Alexander durante o jantar. Eu ainda me pergunto se não foi um engano.

— O professor não comete enganos — disse Fletcher. — Suspeito que Bill Alexander foi quem o solicitou.

— Mas por que ele o faria? — perguntou Annie.

— Porque ele é o sócio sênior de uma antiga empresa tradicional. Assim, ele imaginou que poderia aprender muito sobre mim se pudesse conhecer minha esposa; se você é convidado a trabalhar para a Alexander Dupont and Bell, não pode ser um casamento de curta duração.

— Então vamos esperar que eu não tenha segurado a proposta.

— Longe disso. O que você fez foi assegurar que eu alcançasse o estágio na corte. Não pense que foi coincidência a Sra. Alexander ter vindo sentar-se perto de você quando o café estava sendo servido na sala de projetos.

Annie deu um leve gemido, e Fletcher olhou ansiosamente para ela.

— Ó meu Deus! — disse ela. — As contrações começaram!

— Mas você ainda tem outras dez semanas — disse Fletcher. — Relaxe, eu a levarei de volta e Vou aconchegá-la pelo tempo que quiser.

Annie gemeu um pouco mais alto desta vez.

— Não se incomode de voltar para casa — disse ela — leve-me a um hospital.

Correndo para atravessar Westville, Fletcher verificou os nomes nas esquinas das ruas e estava raciocinando qual seria o melhor trajeto para o Hospital de Yale, em New Haven, quando avistou um ponto de táxi, longe, do outro lado da estrada. Ele deu uma guinada no carro e parou-o paralelamente à frente do táxi. Abaixou a janela e gritou: — Minha esposa vai dar à luz! Qual é a rota mais rápida para o hospital de Yale, em New Haven?

— Siga-me! — gritou o motorista e saiu na corrida à frente deles.

Fletcher tentou manter-se atrás do táxi enquanto este entrava e saía do tráfego, pressionando a buzina, piscando as luzes, tomando um caminho que Fletcher nem sabia existir. Annie segurava a barriga enquanto os gemidos passavam a ser mais e mais altos.

— Não se preocupe, minha querida, estamos chegando lá — disse ele ao ultrapassar outro sinal vermelho para ter certeza de que não perdia de vista o táxi.

Quando os dois carros finalmente alcançaram o hospital, Fletcher foi surpreendido ao ver um médico e uma enfermeira próximos a uma maca ao lado de uma porta aberta, obviamente à espera deles. Quando o taxista saiu do carro, ele fez o sinal de positivo com o polegar e Fletcher achou que devia ter pedido ao mensageiro que avisasse; ele esperava ter dinheiro suficiente para pagar a corrida, sem mencionar uma boa gorjeta pela iniciativa do homem.

Fletcher saltou do carro e deu a volta correndo para ajudar Annie, mas o motorista do táxi chegou antes. Eles a seguraram pelos cotovelos e ajudaram a retirá-la do automóvel e a colocá-la gentilmente sobre a maça. A enfermeira começou por desabotoar o vestido de Annie antes mesmo que ela passasse pelas portas abertas. Fletcher tirou sua carteira, virou-se para o taxista e disse: — Obrigado, o senhor não poderia ter sido mais prestativo. Quanto é que lhe devo?

— Nenhum centavo, é por minha conta! — respondeu o taxista.

— Mas... — Começou Fletcher.

— Se eu contasse à minha esposa que cobrei do senhor, ela me mataria! Boa sorte! — gritou e, sem mais palavras, caminhou de volta para o táxi.

— Obrigado — repetiu Fletcher antes de voltar às pressas para o hospital. Rapidamente chegou até a esposa e tomou-lhe a mão.

— Vai ficar tudo bem, querida — ele lhe assegurou.

O plantonista fez uma série de perguntas, as quais receberam um monossilábico "sim" como resposta. Completado o questionário, ele atravessou a sala para alertar o Dr. Redpath e a equipe de plantão de que tinham menos de um minuto. O lento e amplo elevador estava parado no quinto andar. Annie foi empurrada na maca rapidamente pelo corredor, Fletcher trotando a seu lado, inclinado sobre ela par a segurar-lhe a mão esticada. Ele pôde avistar duas enfermeiras a distância, segurando as portas duplas abertas, de modo que a maca não perdesse o ritmo.

Annie continuava segurando a mão de Fletcher, mesmo quando ela foi posta em uma mesa de operações. Outras três pessoas entraram de repente, as faces escondidas por máscaras. A primeira verificou os instrumentos colocados sobre a mesa; a segunda preparou a máscara de oxigênio, enquanto a terceira tentou perguntar a Annie mais detalhes, embora ela agora gritasse de dor. Fletcher nunca soltou a mão de sua esposa, até que um homem mais velho atravessou a porta. Ele puxou um par de luvas cirúrgicas e disse, antes mesmo de ter a chance de checar a paciente: — Estamos todos prontos?

— Sim, Dr. Redpath — respondeu a enfermeira.

— Ótimo — disse ele e, voltando-se para Fletcher, acrescentou: — Receio que tenha de pedir-lhe que saia, Sr. Davenport. Nós o chamaremos assim que o bebê tenha nascido.

Fletcher beijou a esposa na testa.

— Estou muito orgulhoso de você — murmurou.

 

 

22


NAT ACORDOU Às CINCO no dia da eleição, só para descobrir que Su Ling já estava no chuveiro. Ele verificou sua agenda na mesinha de cabeceira. Encontro de todo o grupo às sete, seguido de uma hora e meia fora do refeitório para encontrar os eleitores e cumprimentá-los à medida que chegassem e saíssem do café da manhã.

— Venha tomar banho comigo! — gritou Su Ling. — Nós não temos tempo a perder!

Ela tinha razão, porque eles chegaram à reunião do grupo apenas uns minutos antes de o relógio da torre bater sete vezes. Todos os demais membros do grupo já estavam presentes, e Tom, que havia chegado de Yale naquele dia, estava repassando sua própria experiência em recente eleição. Su Ling e Nat ocuparam os dois assentos vazios ao lado do chefe não-oficial de sua campanha, que continuou apresentando o resumo como se eles não estivessem ali.

— Ninguém para, nem para respirar, até um minuto depois das seis, quando o último voto já foi colocado na urna. Agora sugiro ao candidato e a Su Ling que fiquem do lado de fora do refeitório, entre sete e meia e oito e meia, enquanto o resto de vocês vai para o café da manhã.

— Vocês esperam que fiquemos comendo aquela porcaria por uma hora?

— disse Joe.

— Não, eu não quero que vocês comam coisa alguma; Joe, eu preciso de vocês se movimentando de mesa em mesa, nunca dois de vocês na mesma mesa, e lembrem-se de que o grupo do Elliot estará, provavelmente, praticando o mesmo exercício; portanto, não percam tempo pedindo seu voto.

— O.k. Vamos!

Quatorze pessoas saíram da sala e cruzaram o gramado, desaparecendo através das portas giratórias e dentro do refeitório, deixando Nat e Su Ling vagando junto à entrada.

— Oi, sou Nat Cartwright; estou concorrendo como presidente do diretório acadêmico e espero que vocês me apoiem hoje, na eleição.

Dois estudantes sonolentos disseram: — Ótimo, homem, você já conquistou o voto gay.

— Oi, sou Nat Cartwright; estou concorrendo como presidente do diretório acadêmico e espero que vocês me apoiem...

— Sim, eu sei quem é você, mas como pode compreender o que seja sobreviver com um em préstimo estudantil quando recebe quatrocentos dólares extras por mês? — veio de volta a resposta afiada.

— Oi, sou Nat Cartwright e estou concorrendo para...

— Desculpe, somos de outro campus e estamos apenas visitando, portanto nós não votam os aqui.

— Oi, sou Nat Cartwright e estou...

— Boa sorte, mas só estou votando em você por causa da sua namorada; eu a acho maravilhosa.

— Oi, sou Nat Cartwright...

— E eu sou um membro do time de Ralph Elliot, e nós vamos chutar o seu traseiro.

— Oi, sou Nat...

Nove horas mais tarde, Nat só conseguia perguntar-se quantas vezes repetiu aquelas palavras e quantas mãos tinha apertado. Tudo que ele sabia, com certeza, é que havia perdido a voz e estava certo de que seus dedos iam cair. Um minuto depois das seis, ele se voltou para Tom e disse: — Oi, sou Nat Cartwright e...

— Esqueça — disse Tom com uma risada. — Sou o presidente da Yale e tudo que sei é que se não fosse por Ralph Elliot, você teria meu emprego.

— O que foi que você planejou para mim agora? — perguntou Nat. — Porque minha agenda termina às seis e eu não tenho a menor ideia sobre o que fazer depois.

— Típico de todo candidato — disse Tom. — Mas pensei que nós três Poderíamos ter um jantar relaxante no Mario's.

— E quanto ao resto do grupo? — perguntou Su Ling.

— Joe, Chris, Sue e Tim estão operando como fiscais na contagem, enquanto os outros estão tendo um bom descanso. Como a apuração começa às sete e deve levar pelo menos umas duas horas, eu tinha sugerido que todos se encontrassem lá às oito e meia.

— Parece bom para mim — disse Nat. — Eu poderia comer um cavalo! Mário guiou-os à mesa do canto, e ficou se dirigindo a Nat como senhor presidente. Enquanto os três bebiam seus drinques e tentavam relaxar, Mario reapareceu com uma grande tigela de espaguete, que ele cobriu com molho à bolonhesa antes de espalhar queijo parmesão em cima de tudo. Embora muitas vezes Nat espetas se seu garfo no monte de massa, ela não parecia diminuir nunca. Tom notou que seu amigo estava ficando mais e mais nervoso e comendo cada vez menos.

— O que estará fazendo Elliot agora? — perguntou Su Ling.

— Ele deve estar no McDonald's com o resto da sua maldita gangue, comendo hambúrgueres e batatas fritas e fingindo estar feliz na companhia deles — disse Tom enquanto bebia uma taça do vinho da casa.

— Bem, pelo menos agora não há mais truques sujos que ele possa usar — disse Nat.

— Eu não teria tanta certeza — disse Su Ling no instante em que Joe Stein entrou correndo pela porta.

— Que será que o Joe quer? — perguntou Tom enquanto se levantava e acenava para ele. Nat sorriu enquanto o chefe de sua equipe correu para sua mesa, mas Joe não devolveu aquele sorriso.

— Temos um problema — disse Joe. — É melhor vocês virem imediatamente ao salão!

Fletcher começou a andar para cima e para baixo no corredor, da mesma forma que seu pai fizera vinte anos atrás, tarde que fora descrita para ele pela Srta. Nichol em muitas ocasiões. Era como o replay de um velho filme em branco e preto, sempre com o mesmo final feliz. Fletcher descobriu estar a poucos passos do centro cirúrgico enquanto esperava por alguém — qualquer pessoa — sair.

Por fim, as portas duplas de borracha se abriram e uma enfermeira saiu correndo, mas ela passou muito depressa por Fletcher, sem dizer uma palavra. Passaram-se vários minutos antes que o Dr. Redpath finalmente emergisse. Ele removeu a máscara da fac e, mas seus lábios não estavam sorrindo.

— Eles estão colocando sua esposa no quarto — disse ele. — Ela está bem, exausta, mas bem. Você poderá vê-la daqui a poucos instantes.

— E quanto ao bebê?

— Seu filho foi transferido para a enfermaria de cuidados especiais. Deixe-me mostrar — disse ele, tocando o cotovelo de Fletcher e guiando-o pelo corredor, parando defronte a uma larga abertura com placa de vidro. Do outro lado estavam três incubadoras. Duas delas já estavam ocupadas. Ele viu quando seu filho foi colocado gentilmente na terceira. Uma coisinha magrinha, frágil, vermelha e enrugada. A enfermeira inseriu um tubo de borracha no nariz dele, depois acoplou um sensor em seu peito e ligou a tomada do monitor. Sua tarefa final foi atar uma pequena faixa em volta do punho esquerdo do bebê, mostrando o nome Davenport. A tela começou a piscar imediatamente, mas mesmo com um mínimo conhecimento de medicina Fletcher podia ver que os batimentos cardíacos de seu filho estavam fracos. Ele olhou ansiosamente para o Dr. Redpath.

— Quais são as chances dele?

— Ele é prematuro em dez semanas, mas se pudermos fazer com que atravesse a noite, terá uma boa chance de sobreviver.

— Quais são as chances dele? — pressionou Fletcher.

— Não há regras, nem percentuais, nem leis decretadas. Cada criança é única, seu filho inclusive — acrescentou o médico enquanto a enfermeira juntava-se a eles.

— O senhor pode ver sua esposa agora, Sr. Davenport — disse ela. — Se quiser me acompanhar.

Fletcher agradeceu ao Dr. Redpath e seguiu a enfermeira em um lance de escadas para o andar de baixo, onde ele foi levado para junto do leito de sua esposa. Annie estava sentada com diversos travesseiros atrás da cabeça.

— Como está o nosso filho? — foram as primeiras palavras dela.

— Ele parece ótimo, Sra. Davenport, e tem sorte de começar a vida com uma mãe tão surpreendente.

— Eles não me deixam vê-lo — Comentou Annie, baixinho — e eu quero tanto segurá-lo em meus braços!

— Eles o colocaram numa incubadora por ora — disse Fletcher, gentilmente — mas ele tem uma enfermeira com ele o tempo todo.

— Parece que foi há anos que tivemos o jantar com o Professor Abrahams.

— É, foi uma noite e tanto — disse Fletcher — e um duplo triunfo para você. Você deslumbrou o sócio sênior de uma firma com a qual quero trabalhar e depois teve um filho, tudo na mesma noite. Qual é a próxima?

— Isso tudo parece tão sem importância agora que temos uma criança para criar.

Fez uma pausa.

— Harry Robert Davenport.

— É uma aliança bonita — disse Fletcher — e nossos pais ficarão deleitados.

— Como deveremos chamá-lo? — perguntou Annie. — Harry ou Robert?

— Eu sei como vou chamá-lo — disse Fletcher enquanto a enfermeira voltava ao quarto.

— Acho que devia tentar dormir um pouco, Sra. Davenport, foi um momento bem exaustivo para a senhora.

— Concordo — disse Fletcher.

Ele retirou diversos travesseiros de trás da cabeça da esposa enquanto ela mesma escorregava para baixo na cama. Annie sorriu e descansou a cabeça no travesseiro que sobrou enquanto o marido a beijava. Quando Fletcher saiu, a enfermeira apagou a luz.

Fletcher correu de volta escada acima e junto ao corredor, para verificar se os batimentos cardíacos de seu filho estavam mais fortes. Ele arregalou os olhos através do vidro da janela para o monitor, desejando que estivesse marcando mais alto, e conseguiu convencer a si mesmo de que estava. Fletcher manteve o nariz pressionado contra a vidraça.

— Continue lutando, Harry — disse ele, e então começou a contar os batimentos por minuto. Subitamente sentiu-se exausto. — Segure-se aí! Você vai conseguir!

Ele deu uns dois passos de volta e caiu sobre uma poltrona do outro lado do corredor. Em poucos minutos havia caído num sono profundo.

Fletcher acordou de repente quando sentiu uma mão gentilmente tocando seu ombro. Seus olhos cansados piscaram; ele não tinha ideia de quanto tempo estivera dormindo.

A primeira coisa que viu foi uma enfermeira, sua face solene. O Dr. Redpath ficou um passo atrás dela. Ele não precisava dizer que Harry Robert Davenport já não vivia mais.

— Então, qual é o problema? — perguntou Nat enquanto eles corriam em direção ao auditório onde os votos estavam sendo contados.

— Estávamos liderando confortavelmente até uns poucos minutos atrás — disse Joe, já sem ar devido o percurso de ida e volta e incapaz de sustentar o que Nat descreveria como uma corrida. Ele diminuiu para uma caminhada rápida. — E aí, de repente, duas urnas apareceram, abarrotadas de votos, e perto de noventa por cento deles a favor de Elliot — acrescentou ele, enquanto chegavam ao degrau de baixo.

Nat e Tom não esperaram por Joe enquanto desciam pelas escadas e passavam através das portas giratórias. A primeira pessoa que eles viram foi Ralph Elliot — um olhar convencido em sua face. Nat voltou sua atenção para Tom, que já estava recebendo um resumo de tudo feito por Sue e Chris. Ele reuniu-se a eles depressa.

— Estávamos liderando por mais de quatrocentos votos — disse Chris — e acreditávamos que tudo tinha acabado, quando duas novas urnas apareceram do nada.

— O que você quer dizer "do nada"? — perguntou Tom.

— Bem, elas foram descobertas sob a mesa, mas não haviam sido incluídas entre aquelas que foram registradas na contagem original. Naquelas duas urnas — Chris checou o talão de notas. — Elliot computou 319 a 48 votos de Nat, e 322 a 41 de Nat, o que reverteu a contagem original e o colocou liderando por uma boa margem de votos.

— Dê-me alguns exemplos dos números de outras urnas — disse Su Ling.

— Eles eram todos muito consistentes — disse Chris, voltando à lista dele.

— A diferença maior foi de 209 para Nat, contra 176 de Elliot. Na verdade, Elliot apenas contou mais alto em uma urna, 201 a 196.

— Os votos das duas últimas urnas — disse Su Ling — não são estatisticamente possíveis quando você as compara com as outras dez que já haviam sido contadas. Alguém deve ter entupido literalmente aquelas urnas com cédulas suficientes para reverter a apuração original.

— Mas como eles teriam conseguido isso? — perguntou Tom.

— Seria fácil demais se você pudesse pôr as mãos em votos não utilizados — disse Su Ling.

— E isso não seria muito difícil — disse Joe.

— Como você pode ter certeza disso? — perguntou Nat.

— Porque quando votei em meu dormitório, durante a hora do almoço, havia apenas uma escrutinadora em serviço, e ela estava escrevendo um ensaio. Eu poderia ter removi do uma mão cheia de votos sem que ela o percebesse.

— Mas isso não explica o súbito aparecimento de duas urnas desaparecidas — disse Tom.

— Você não precisa de um Ph.D. para raciocinar sobre isso — interrompeu Chris — porque uma vez que a contagem acabou, tudo que eles tiveram que fazer foi segurar duas das urnas e depois entupi-las com votos.

— Mas nós não temos como prová-lo — disse Nat.

— As estatísticas o provam — disse Su Ling. — Elas nunca mentem, embora eu admita que não temos nenhuma prova em primeira mão.

— Então, o que vamos fazer a respeito? — perguntou Joe enquanto arregalava os olhos para Elliot, aquele mesmo olhar de satisfação na face, ainda.

— Não há muito que possamos fazer, exceto passar nossas observações a Chester Davies. Afinal, ele é o chefe oficial das eleições.

— O.k.! Joe, por que você não faz isso e vamos esperar para ver o que ele tem a dizer?

Joe os deixou para apresentar sua petição ao orientador dos estudantes. Eles viram quando a expressão na face envelhecida do acadêmico foi ficando mais e mais severa.

Uma vez que Joe demonstrou seu ponto de vista, o orientador chamou imediatamente o chefe da equipe de Elliot, que não fez nada mais do que sacudir seus ombros e indicar que todos os votos eram válidos.

Nat olhou apreensivamente quando o Sr. Davies questionou os dois homens e viu Joe inclinar a cabeça em concordância antes que eles chegassem a juntar-se às suas respectivas equipes.

— O orientador está convocando uma reunião imediata dos comitês de eleição em seu escritório, e ele irá dar uma resposta de volta depois que tiverem discutido a matéria, o que deverá ocorrer nos próximos trinta minutos.

Su Ling tomou a mão de Nat.

— O Sr. Davies é um homem bom e justo — disse ela — ele chegará à conclusão correta.

— Pode ser que ele chegue à conclusão correta — disse Nat — mas, ao final, ele só pode seguir as regras da eleição, não importa suas reservas pessoais.

— Concordo — disse uma voz por trás deles. Nat virou-se para ver Elliot rindo para ele.

— Eles não terão de olhar no livro de regulamentos para descobrir que a pessoa com o maior número de votos é o vencedor — acrescentou Elliot com desdém.

— A não ser que eles encontrem alguma coisa sobre uma pessoa, um voto — disse Nat.

— Você está me acusando de roubar? — retrucou Elliot de volta, enquanto um grupo de seus apoiadores amontoava-se e ficava atrás dele.

— Bem, vamos colocá-lo desta maneira. Se você vencer esta eleição, poderá se inscrever par a um emprego em Chicago como narrador no Cook County, porque o prefeito Daly não tem nada para lhe ensinar.

Elliot deu um passo à frente e levantou o punho enquanto o orientador entrava outra vez no recinto, uma única folha de papel em sua mão. Ele se virou e foi até o palco.

— Você acaba de escapar de uma surra! — murmurou Elliot.

— E suspeito que você esteja prestes a levar uma — respondeu Nat enquanto ambos voltavam a face para o palco.

Os fuxicos na sala morreram, quando o Sr. Davies ajustou a altura do microfone e encarou aqueles que se encontravam à volta para ouvir o resultado. Ele leu lentam ente de um script preparado:

— Na eleição para presidente do diretório acadêmico, foi trazido à minha atenção que duas urnas de votos foram descobertas algum tempo depois de a contagem ter sido concluída. Quando elas foram abertas, o resultado daqueles votos variou consideravelmente de uma para outra urna. Portanto, como escrutinadores oficialmente designados, ficamos sem outra alternativa senão nos referirmos ao livro de regulamentos sobre as eleições. Depois de pesquisarmos, como devíamos, fomos incapazes de encontrar qualquer menção a urnas desaparecidas, ou que ação tomarmos se ali houvesse uma fração desproporcional de votos encontrados em qualquer das urnas.

— Porque ninguém jamais trapaceou no passado! — gritou Joe dos fundos da sala.

— E ninguém o fez desta vez — veio de volta a resposta imediata — vocês são apenas maus perdedores.

— Quantas urnas a mais vocês têm escondidas, só por curiosidade...?

— Nós não precisamos de mais.

— Quietos! — disse o diretor. — Estas manifestações não refletem bem nenhum dos lados.

Ele esperou por silêncio antes de continuar a ler o script.

— Estamos, Mas cientes de nossas responsabilidades como escrutinadores oficiais, e chegamos à conclusão de que o resultado de uma eleição deve prevalecer.

Os correligionários de Elliot pularam e se congratularam. Elliot voltou-se para Nat e disse: — Acho que você vai descobrir que foi você que acabou de levar uma surra.

— Ainda não acabou — disse Nat, seus olhos ainda fixados no Sr. Davies. Levou algum tempo antes que o diretor pudesse continuar, quando poucos presentes compreenderam que ele não tinha completado ainda sua declaração.

— Como tem havido diversas irregularidades nesta eleição, uma das quais em nossa opinião permanece não solucionada, decidi, portanto, que sob a regra 7B do livro de regulamentos do diretório acadêmico o candidato derrotado deveria merecer a oportunidade de apelar. Caso ele o faça, o comitê vai estar de frente com três escolhas.

Ele abriu o livro de regulamentos: — "a) confirmar o resultado original; b) reverter o resultado original; e c) convocar nova eleição", o que deveria acontecer durante a primeira semana do próximo período. Portanto, propomos dar ao Sr. Cartwright vinte e quatro horas para apelar.

— Não precisaremos de vinte e quatro horas — disse Joe. — Nós apelamos.

— Precisarei disso por escrito, pelo candidato — disse o orientador. Tom olhou para Nat, que estava olhando para Su Ling.

— Você se lembra do que foi que combinamos se eu não vencesse?


LIVRO TRÊS


CRÔNICAS


23

 

 

NAT VIROU-SE, viu Su Ling caminhar lentamente em sua direção e lembrou-se do primeiro dia em que eles se conheceram. Ele a havia perseguido morro abaixo, e quando ela se voltou, naquela ocasião, ele estava sem fôlego.

— Você tem alguma ideia da sorte que tem? — murmurou Tom.

— Você podia, por favor, concentrar-se em seu trabalho? Agora, cadê o anel?

— Anel, que anel?

Nat voltou-se e arregalou os olhos para seu padrinho.

— Inferno, eu sabia que havia alguma coisa que devia ter trazido comigo — murmurou Tom, fora de si. — Você pode segurar as pontas por um instante enquanto volto em casa para procurá-lo?

— Quer que eu o estrangule? — disse Nat, sorrindo.

— Sim, por favor — disse Tom, fitando Su Ling enquanto ela avançava em direção a eles.

— Deixe-a ser minha última lembrança deste mundo.

Nat voltou sua atenção para a noiva e ela deu-lhe aquele sorriso de que ele se lembrava quando ficara à entrada do café, no seu primeiro encontro. Ela subiu e tomou seu lugar ao lado dele, a cabeça levemente inclinada, enquanto eles esperavam o padre começar o serviço. Nat pensou sobre a decisão que eles haviam feito um dia depois da eleição, e sabia que ele nunca se arrependeria. Por que deveria ele segurar a carreira de Su Ling na possibilidade sem chance de ganhar a presidência?

A ideia de fazer novas eleições na primeira semana do período seguinte, e tendo de pedir a Su Ling para esperar mais um ano se ele fracassasse, acabou com a dúvida do que deveria fazer. O padre se virou para a congregação. "Queridos amados..."

Quando Su Ling tinha explicado ao Professor Mullden que ela estava se casando, e seu futuro marido estava na Universidade de Connecticut, eles imediatamente ofereceram a ele a chance de completar seus estudos universitários em Harvard. Eles já sabiam dos recordes de Nat no Vietnã e seu sucesso no time de corrida livre, mas foram suas notas que pesaram na balança. Eles permaneceram confusos sobre o porquê de ele não ter preenchido seu lugar em Yale, porque ficara claro para o escritório de admissões que eles não precisariam carregar nas costas o marido de Su Ling.

— Você aceita esta mulher para ser sua esposa sob as formas da lei? Nat desejou gritar "aceito".

— Eu aceito — disse ele, baixinho.

— Você aceita este homem como esposo sob as formas da lei?

— Aceito — disse Su Ling, a cabeça inclinada.

— Você pode beijar a noiva — disse o padre.

— Acho que isso quer dizer eu — disse Tom, dando um passo à frente. Nat tomou Su Ling em seus braços e beijou-a, enquanto veementemente chutava Tom nas canelas.

— Então isso é o que ganho por todos os sacrifícios que fiz esses anos todos? Bem, pelo menos é a minha vez agora.

Nat deu a volta, tomou Tom em seus braços e abraçou-o, enquanto a congregação desatava a rir.

Tom tinha razão, pensou Nat. Ele não havia sequer protestado quando se recusara a apelar para o comitê das eleições, apesar de Nat saber que Tom acreditava que ele teria sido vitorioso numa reeleição. E na manhã seguinte o Sr. Russell havia telefonado e oferecido a Nat sua casa para a recepção. Como poderia ele alguma vez começar a retribuir-lhes?

— Esteja prevenido — disse Tom — papai vai esperar que você se junte a ele no banco como estagiário assim que tenha se graduado pela Escola de Administração de Empresas de Harvard.

— Essa pode ter sido a melhor oferta que já recebi — disse Nat.

A noiva e o noivo voltaram-se para encarar suas famílias e amigos. Susan não fez nenhuma tentativa de esconder suas lágrimas enquanto Michael sorria com orgulho.

A mãe de Su Ling deu um passo à frente e fotografou os dois em seu primeiro momento como marido e mulher.

Nat não se lembrava muito da recepção, exceto por sentir que o Sr. e a Sra. Russell não poderiam ter feito nada melhor se ele fosse seu filho. Ele se movimentou de mesa em mesa, agradecendo especialmente àqueles que haviam viajado uma longa distância. Foi só quando ouviu o som da prata contra o cristal que ele averiguou para ter certeza de que seu discurso ainda estava dentro do bolso.

Nat rapidamente escorregou para seu lugar na cabeceira da mesa, justo quando Tom se levantou para falar. O padrinho começou explicando por que a recepção estava sendo realizada em sua casa.

— Não se esqueçam de que eu havia feito uma proposta a Su Ling muito antes de eles ficarem noivos, embora, inexplicavelmente, naquela ocasião, ela estivesse desejando figurar como segunda melhor.* — Nat sorriu para Abigail, a tia de Tom, de Boston, enquanto os convivas aplaudiam.

 

* Nos Estados Unidos, o padrinho é chamado "Best Man". No original. Tom se refere a "Second Best". (N.T.)

 

Nat algumas vezes se perguntava se as brincadeiras de Tom sobre seu amor por Su Ling não traíam uma verdade velada sobre seus reais sentimentos. Olhou para o padrinho, relembrando porque ele estava atrasado. — Obrigado, mamãe! — e como ele tinha vindo se sentar próximo ao garotinho em prantos, no final da fila, no seu primeiro dia na Taft. Ele pensou que sorte ele tinha por ser abençoado com um tal amigo, e esperava que não se passasse muito tempo antes que pudesse estar fazendo a mesma coisa por ele.

Tom recebeu uma calorosa recepção quando se sentou para abrir caminho aos noivos.

Nat começou seu discurso agradecendo ao Sr. e à Sra. Russell por sua generosidade em permitir-lhes usar sua bonita residência para a recepção. Ele agradeceu a sua mãe pela visão e ao seu pai por seus olhares, o que provocou aplausos e risadas.

— Porém, acima de tudo, agradeço a Su Ling, por ter seguido pelo caminho errado, e a meus pais pela educação que me fez segui-la, para preveni-la de que estava cometendo um engano.

— Ela cometeu um engano muito maior seguindo você ao alto do morro — disse Tom.

Nat esperou que as gargalhadas diminuíssem antes de dizer:

— Eu me apaixonei por Su Ling no momento em que a vi, um sentimento que claramente não era recíproco, mas daí, conforme já expliquei, fui abençoado pelos olhares de meu pai. E então, deixem-me convidá-los todos para as nossas bodas de ouro em 11 de julho de 2024.

Ele fez uma pausa.

— Somente os bobocas e aqueles que tiverem a ousadia de morrer nesse ínterim serão desculpados pelo não comparecimento. — Ele levantou sua taça. — À minha esposa, Su Ling!

Quando Su Ling desapareceu para trocar de roupa, Tom finalmente perguntou a Nat onde eles passariam a lua-de-mel.

— Coreia — sussurrou Nat. — Estamos planejando descobrir o vilarejo onde Su Ling nasceu, e ver se podemos encontrar quaisquer outros membros da família dela. Mas não conte à mãe de Su Ling; queremos fazer-lhe uma surpresa ao regressarmos.

Trezentos convidados surgiram para juntar-se a eles na saída dos automóveis, e aplaudiram quando o carro carregando a noiva e o noivo desapareceu em seu trajeto para o aeroporto.

— Eu me pergunto aonde será que eles vão passar a lua-de-mel — disse a mãe de Su Ling.

— Não tenho a mínima ideia! — respondeu Tom.

Fletcher segurou Annie em seus braços. Um mês se havia passado desde o funeral de Harry Robert e ela ainda estava se culpando.

— Mas isso não é justo! — disse Fletcher. — Se houver algum culpado, esse serei eu.

Olhe a pressão sob a qual se encontrava Joanna quando deu à luz, e não fez absolutamente nenhuma diferença para ela. — Mas Annie não se consolava. O médico disse a Fletcher a maneira mais rápida de resolver o problema, e ele aquiesceu feliz.

À medida que os dias iam passando, Annie ia se fortalecendo, mas seu primeiro interesse continuava sendo o de apoiar o marido em sua determinação de chegar ao topo esse ano.

— Você deve isso a Karl Abrahams — ela o relembrou. — Ele tem investido muito em você, e só existe uma forma de retribuir-lhe.

Annie inspirava o marido a trabalhar noite e dia durante as férias de verão antes de retornar a seu último ano. Passou a ser sua assistente e pesquisadora, enquanto continuava sendo sua amante e amiga. E ela apenas ignorava seu conselho quando ele a pressionava para que ela também se graduasse.

— Não — disse Annie — quero ser sua esposa, e Deus permitindo em tempo...

Uma vez de volta a Yale, Fletcher acreditou que não levaria muito tempo antes de recomeçar a loucura diária. Embora diversas empresas já o houvessem convidado para uma entrevista, e uma ou duas lhe houvessem oferecido empregos, Fletcher não queri a trabalhar fora de Dallas ou Denver, Phoenix ou Pittsburgh. Mas, à medida que as semanas iam passando e ele não ouvia nem uma palavra da Alexander Dupont & Bell, suas esperanças começaram a desmoronar e ele concluiu que se ainda esperava ser convidado a juntar-se a uma das grandes empresas isso ia requerer uma rodada completa de entrevistas.

Jimmy já havia enviado mais de cinquenta cartas e, até o momento, só tinha recebido três respostas: nenhuma delas lhe oferecia trabalho. Ele teria se preparado para Dallas ou Denver, Phoenix ou Pittsburgh se não fosse por Joanna. Annie e Fletcher concordavam sobre as cidades em que ficariam felizes de morar, e então ela levantou alguma pesquisa sobre as empresas que lideravam naqueles estados. Juntos, redigiram uma carta que foi duplicada cinquenta e quatro vezes e depois despachadas no primeiro dia do período.

Quando Fletcher voltou à faculdade, no final daquela manhã, encontrou uma carta em sua caixa postal.

— Esta foi rápida — disse Annie — nós só as postamos uma hora atrás!

Fletcher riu até que viu o carimbo do correio. Ele rasgou o envelope para abri-la.

Um simples cabeçalho preto realçado anunciou a Alexander Dupont & Bell. É claro, a distinta empresa de Nova York sempre começava a entrevistar candidatos no mês de março, então por que deveria ser diferente com Fletcher Davenport?

Fletcher não parou de trabalhar durante aqueles longos meses de inverno, preparando-se para a entrevista, mas ainda tinha todas as razões para sentir-se apreensivo, quando finalmente iniciou sua viagem a Nova York. Assim que desceu do trem na Grand Central Station, Fletcher foi intoxicado por uma babel de línguas variadas e pés que se moviam mais depressa do que ele havia experimentado em qualquer outra cidade. Ele passou o trajeto de táxi pela Rua 54 perscrutando fora da janela, aspirando um cheiro que nenhuma outra cidade produz.

O táxi parou na entrada de um arranha-céu de setenta e dois andares envidraçados, e Fletcher soube imediatamente que não desejava trabalhar em nenhum outro lugar.

Ele circulou pelo andar térreo por uns minutos, não desejando ficar parado numa sala de espera com diversos outros candidatos. Quando finalmente saiu do elevador, no 36o. andar, a recepcionista colocou seu nome num crachá. Ela, então, estendeu par a ele uma folha de papel que listava um calendário de entrevistas que poderia durar o dia todo.

Sua primeira entrevista foi com o sócio mais antigo, Bill Alexander, na qual Fletcher sentiu ter-se saído bem, embora Alexander não demonstrasse o mesmo entusiasmo que demonstrara na festa de Karl Abrahams. Entretanto, perguntou por Annie, desejando que ela estivesse totalmente recuperada da perda de Harry. Ficou igualmente claro durante a entrevista que Fletcher não era a única pessoa que estava sendo entrevistada — seis nomes apareciam de cabeça para baixo na lista que estava de frente para o Sr. Alexander.

Fletcher passou, então, uma hora com três outros sócios que se especializaram no campo escolhido por ele, direito penal. Quando a última entrevista terminou, ele foi convidado a juntar-se aos demais membros do conselho para o almoço. Foi a primeira vez que entrou em contato com os cinco outros candidatos, e a conversa do almoço deixou-o mais uma vez sem qualquer dúvida a respeito daquilo que estava enfrentando. Ele só podia se perguntar quantos outros dias a empresa havia posto de lado para entrevistas com outros pretensos candidatos.

O que ele não podia saber é que a Alexander Dupont & Bell havia levado a cabo um rigoroso processo de seleção, meses antes de os candidatos serem chamados para a entrevista, e ele se encontrava entre os seis finalistas, em recomendação e reputação. Ele também não compreendera que apenas um, talvez dois, teria uma posição na empresa. Tal como com os bons vinhos, passaram-se anos sem que ninguém fosse se lecionado, simplesmente porque não era uma safra clássica de candidatos.

Mais entrevistas aconteceram depois do almoço, tempo em que Fletcher ficou convencido de que ele não ia conseguir, e logo teria de recomeçar a longa caminhada por aquelas empresas que haviam respondido às suas cartas e lhe concedido uma entrevista.

— Eles ficaram de me avisar até o fim deste mês se passei para a segunda etapa — disse a Annie, que esperava por ele na estação — mas não pare de enviar cartas, embora eu confesse que não gostaria de trabalhar em nenhum outro lugar além de Nova York.

Annie continuou a questionar Fletcher no caminho para casa, desejando saber cada detalhe do que havia acontecido. Ela fora tocada pelo fato de Bill Alexander ter se lembrado dela; mais do que isso, ele havia até mesmo tido o trabalho de descobrir o nome do filho deles.

— Talvez você devesse ter dito a ele — disse Annie ao levar o carro até uma vaga na calçada da casa deles.

— Dizer o quê? — perguntou Fletcher.

— Que eu estou grávida novamente.

Nat amou o movimento e a animação de Seul, uma cidade determinada a deixar todas as memórias da guerra para trás. Arranha-céus gigantescos em todas as esquinas, o novo e o velho tentando conviver em harmonia. Nat estava impressionado pelo potencial de uma força de trabalho tão bem-educada e inteligente que sobrevivera com salários um quarto menores do que seria aceitável em seu país. Su Ling não pôde evitar perceber o papel subserviente que as mulheres desempenhavam na sociedade coreana e, silenciosamente, agradeceu a sua mãe por ter tido a coragem e a visão de partir para a América.

Nat alugou um carro de modo que pudessem passar de vilarejo em vilarejo quando bem lhes aprouvesse. Quando já haviam dirigido uns poucos quilômetros para fora da capital, a primeira coisa que descobriram foi quão rapidamente o modo de vida havia mudado. Quando já tinham viajado uns cento e sessenta quilômetros, também haviam viajado uns cem anos no tempo. Os modernos arranha-céus foram logo sendo substituídos por pequenas choupanas de madeira, e o movimento e a animação por um passo mais lento, mais cauteloso.

Embora a mãe de Su Ling raramente houvesse falado sobre sua educação na Coreia, Su Ling sabia do vilarejo onde ela havia nascido e o nome de sua família. Ela também sabia que dois dos seus tios tinham sido mortos na guerra, de modo que quando chegaram a Kaping, com uma população de 7.303 pessoas, de acordo com o guia de informações, ela não estava tão esperançosa de poder descobrir alguém que pudesse se lembrar de sua mãe.

Su Ling Cartwright começou sua pesquisa pelo edifício do governo, onde um registro de todos os cidadãos locais era mantido. Em nada ajudou o fato de que entre sete mil habitantes, mais de mil dividiam com a mãe de Su Ling o nome de solteira, Peng. Entretanto, a senhora da recepção também exibia aquele nome numa placa sobre sua escrivaninha. Ela contou a Su Ling que sua tia-avó, que agora tinha mais de noventa anos, solicitou o conhecimento de todos os ramos de sua família, e se ela quisesse encontrar-se com a própria, o encontro podia ser programado. Su Ling abaixou a cabeça em sinal de assentimento e foi-lhe pedido que voltasse mais tarde naquele dia.

Ela telefonou outra vez, depois do almoço, para ouvir que Ku Sei Peng ficaria feliz em tomar chá com ela no dia seguinte. Mas a recepcionista pediu desculpas educadamente, explicando que o marido americano de Su Ling não seria bem-vindo.

Su Ling voltou ao seu hotelzinho na noite seguinte, carregando um pedaço de papel e um sorriso feliz.

— Viajamos o dia todo até aqui apenas para escutar que devemos voltar a Seul — disse ela.

— Como assim? — perguntou Nat.

— É simples. Ku Sei Peng se lembra de minha mãe saindo do vilarejo para procurar emprego na capital, mas ela nunca voltou. Mas sua irmã mais nova, Kai Pai Peng, ainda mora em Seul e Ku Sei me deu seu último endereço conhecido.

— Então vamos voltar à capital — disse Nat, que interfonou para a recepção, avisando que estavam deixando o hotel imediatamente. Eles chegaram a Seul um pouco antes da meia-noite.

— Acho que seria mais inteligente se eu fosse visitá-la sozinha — disse Su Ling de pois do café da manhã — pois talvez ela não goste de dizer muita coisa quando descobrir que sou casada com um americano.

— Para mim está bem — disse Nat. — Eu estava esperando visitar o mercado do outro lado da cidade, pois estou pesquisando uma coisa em particular.

— O quê? — perguntou Su Ling.

— Espere e você verá — brincou Nat.

Nat tomou um táxi para o distrito de Kiray e passou o dia perambulando por um dos maiores mercados abertos do mundo — fila após fila de barracas confinadas, abarrotadas com tudo: de relógios Rolex a pérolas cultivadas, de sacolas Gucci a perfume Chanel, de braceletes Cartier a corações da Tiffany. Ele evitou as choramingas de "Aqui, americano, prazer para olhar meus ofertas, muito mais balato", como ele jamais poderia certificar-se quais (se é que era alguma coisa) seriam as verdadeiras.

Na hora em que chegou de volta ao hotel, naquela noite, Nat estava exausto, sobrecarregado com seis sacolas de compras, a maioria cheia de presentes para sua esposa.

Tomou o elevador para o terceiro andar e, quando abriu a porta do quarto deles, esperava encontrar Su Ling de volta da visita à tia. Quando fechou a porta, pensou ter ouvido soluços. Ele não se moveu. O som inconfundível estava chegando do quarto.

Nat derrubou as sacolas no chão, atravessou o quarto e empurrou a porta aberta. Su Ling estava deitada na cama, chorando, encolhida, segurando os joelhos. Ele retirou os sapatos e a jaqueta e subiu na cama, tomando-a nos braços.

— O que aconteceu, Florzinha? — disse ele, acariciando-a gentilmente. Ela não respondeu. Nat puxou-a para perto, sabendo que ela lhe contaria tudo no devido tempo.

Quando a noite caiu e as luzes de néon das ruas começaram a se acender, Nat fechou as cortinas. Ele, então, sentou-se ao seu lado e tomou sua mão.

— Vou amá-lo sempre — disse Su Ling, não olhando para ele diretamente.

— E eu vou amá-la sempre — disse Nat, tomando-a novamente nos braços.

— Você se lembra da noite do nosso casamento, quando concordamos não guardar nenhum segredo? Por isso tenho de lhe contar agora o que descobri esta tarde.

Nat nunca vira um rosto tão triste.

— Nada do que você possa ter descoberto pode fazer-me amá-la menos disse ele, tentando dar-lhe mais tranquilidade.

Su Ling puxou o marido para junto de si enquanto deitava a cabeça em seu peito, co mo se não quisesse que seus olhos se encontrassem.

— Mantive meu compromisso com minha tia-avó esta manhã — Começou ela. — Ela se lembrava bem de tudo e me explicou por que minha mãe tinha deixado a vila para juntar-se a ela em Seul.

Enquanto se aconchegava a Nat, Su Ling repetia tudo que Kai Pai Peng havia dito. Ao terminar a história, ela se levantou e olhou para o marido pela primeira vez.

— Depois de saber toda a verdade, você ainda me ama? — perguntou ela.

— Nunca acreditei que fosse possível amá-la mais, e só posso imaginar quanta coragem você teve de arranjar para dividir essas novidades comigo.

Ele fez uma pausa.

— Isso só vai fortalecer um sentimento que agora ninguém será capaz de destruir.

 

 

 

— Não acho uma boa ideia ir junto com você — disse Annie.

— Mas você é meu pé-de-coelho e...

—... e o Dr. Redpath diz que não daria tempo.

Fletcher, relutantemente, aceitou que teria de viajar sozinho a Nova York. Annie estava no sétimo mês de gravidez e, embora não tivesse tido complicações, ele nunca discutiu com o médico.

Fletcher ficou deleitado ao ser convidado a voltar para uma segunda entrevista com a Alexander Dupont & Bell e conjeturou sobre quantos outros candidatos foram escolhidos.

Ele tinha sensação de que Karl Abrahams sabia, ainda que o professor não estivesse trocando confidencias.

Quando o trem entrou na estação Penn, Fletcher tomou um táxi para a Rua 54, chegando à entrada do edifício vinte minutos mais cedo. Haviam-lhe dito que, certa ocasião, um candidato chegou três minutos atrasado e ninguém quis entrevistá-lo.

Tomou o elevador para o 36o. andar e foi conduzido pela recepcionista para a espaçosa sala que era quase tão maravilhosa quanto o escritório do sócio sênior. Fletcher sentou-se sozinho. Pensou ser um bom sinal, até que um segundo candidato se juntou a ele uns poucos minutos antes das nove. Ele sorriu para Fletcher.

— Sou Logan Fitzgerald — disse ele, a mão estendida. — Ouvi você dirigindo seu discurso aos calouros de Yale. Sua palestra sobre o Vietnã foi brilhante, embora eu não concordasse com uma palavra do que você disse.

— Você estava em Yale?

— Não, eu estava visitando meu irmão. Fui para Princeton, e acho que nós dois sabemos por que estamos aqui.

— Quantos mais estão lá, você tem alguma ideia? — perguntou Fletcher.

— Pelo tempo que resta, eu diria que nós somos os dois últimos. Portanto, só posso dizer que isso é um bom sinal.

— Tenho certeza de que você está dizendo isso com sinceridade — disse Fletcher com um sorriso.

A porta se abriu e uma mulher, que Fletcher lembrava como secretária do Sr. Alexander, dirigiu-se a eles.

— Cavalheiros, queiram me acompanhar — disse ela.

— Obrigado, Sra. Townsend — disse Fletcher, cujo pai uma vez lhe dissera para nunca esquecer o nome da secretária, "afinal de contas, elas passam mais tempo com o chefe do que a esposa dele jamais fez". Os dois candidatos seguiram-na para fora da sala e Fletcher ficou imaginando se Logan estaria tão nervoso quanto ele. Em qualquer dos lados do comprido corredor acarpetado os nomes dos sócios estavam escritos em ouro ao lado de cada porta de painel de carvalho pelas quais eles passaram.

William Alexander era o último antes do salão de conferências.

A Sra. Townsend bateu gentilmente à porta, abriu-a e ficou ao lado de vinte e cinco homens e três mulheres que se levantaram de seus lugares e começaram a aplaudir.

— Sentem-se, por favor — disse Bill Alexander assim que os aplausos cessaram. — Gostaria de ser o primeiro a cumprimentá-los pelo convite da Alexander Dupont & Bell, mas nós os prevenimos que, da próxima vez em que ouvirem tal aprovação de seus colegas, será ao serem convidados para sócios, e isso não acontecerá antes de pelo menos uns sete anos. Pela manhã vocês terão reuniões com diferentes membros do comitê executivo que, entre si, deverão ser capazes de responder a quaisquer de suas perguntas. Fletcher, você foi designado para Matthew Cunliffe, que dirige o nosso escritório de direito penal, enquanto você, Logan, se reportará diretamente a Graham Simpson, das fusões e aquisições. Às doze e trinta vocês retornam e encontram os sócios para o almoço.

A refeição do meio-dia acabou por transformar-se num amigável encontro depois do árduo processo de entrevistas; os sócios deixaram de agir como Mr. Hyde e se transformaram no Dr. Jekyll. Os papéis eram desempenhados todos os dias com clientes e adversários.

— Dizem-me que vocês dois serão elevados à mais alta categoria de suas classes — disse Bill Alexander depois que o prato principal foi servido; nem entrada, nem drinques foram oferecidos além de uma garrafa de água. — E só posso esperar que sim, porque ainda não me decidi para quais escritórios destiná-los.

— E se um de nós não se sair bem? — perguntou Fletcher.

— Aí vocês irão passar seu primeiro ano na sala de correspondência, entregando memorandos a outros escritórios de advocacia.

O Sr. Alexander fez uma pausa.

— Em pé.

Ninguém riu, e Fletcher ficou na dúvida se ele não estaria falando sério. O sócio sênior estava pronto para continuar quando alguém bateu à porta e sua secretária reapareceu.

— Há uma chamada para o senhor na linha três, Sr. Alexander.

— Eu disse sem interrupções, Sra. Townsend.

— É uma emergência, senhor.

Bill Alexander apanhou o telefone, a careta em sua face transformada em sorriso enquanto ele ouvia atentamente.

— Eu o farei saber — disse ele e colocou o telefone no gancho.

— Deixe-me ser o primeiro a congratulá-lo, Fletcher — disse o sócio sênior. Fletcher ficou confuso, porque sabia que as notas finais não seriam publicadas por pelo menos mais uma semana.

— Você é pai de uma menininha! Mãe e filha estão passando bem. Eu soube no instante em que conheci aquela moça que ela era o tipo de mulher que apreciamos na Alexander Dupont & Bell.


24


— LUCY.

— Mas que tal Ruth ou Martha?

— Podemos dar-lhe todos os três nomes — disse Fletcher — o que fará nossas mães felizes; mas nós a chamaremos de Lucy. — Ele sorriu ao colocar sua filha gentilmente de volta no berço.

— E você tem pensado onde é que vamos morar? — perguntou Annie. — Não quero Lucy sendo criada em Nova York.

— Concordo — disse Fletcher enquanto fazia cócegas no queixo da filha. — Tenho conversado com Matt Cunliffe e ele me disse que enfrentou o mesmo problema quando entrou na firma.

— E o que Matt recomendou?

— Sugeriu três ou quatro pequenas cidades em New Jersey, que distam menos de uma hora por trem, saindo da Grand Central. Daí pensei que talvez pudéssemos ir de carro até lá, na próxima sexta-feira, e passar um longo fim de semana para ver se encontramos alguma área de que gostamos.

— Suponho que tenhamos de alugar uma casa, para começar — disse Annie — até termos economizado dinheiro suficiente para comprarmos uma própria.

— Parece que não, porque a firma prefere que compremos a nossa propriedade.

— Tudo bem para a firma preferir alguma coisa, mas e se nós não pudermos adquiri-la?

Quando Nat e Su Ling voltaram de Roma, estavam exaustos, mas a mudança de planos não podia ter sido mais bem-sucedida. Su Ling relaxava mais e mais a cada dia que passava; na verdade, durante a segunda semana, nenhum deles sequer mencionou a C

oreia. Eles concordaram, durante o voo para casa, em dizer à mãe de Su Ling que haviam passado a lua-de-mel na Itália. Somente Tom não entenderia.

Enquanto Su Ling dormia, Nat, uma vez mais, analisou o mercado financeiro no International Herald Tribune e no Financial Times de Londres. A tendência continuava tão forte quanto antes, uma recuperação profunda, uma leve, seguida por outra profunda, mas, em longo prazo, os gráficos mostravam-se favoráveis ao yen e em direção oposta ao dólar. Isso também era verdadeiro para o yen contra o marco, a libra contra a lira, e Nat decidiu continuar pesquisando quais as taxas de câmbio que apresentavam uma disparidade maior. Tão logo chegassem a Boston ele iria falar com o pai de Tom e usar o departamento de câmbio do Banco Russell, ao invés de revelar suas ideias a alguém desconhecido.

Nat deu uma olhada em sua esposa dorminhoca, grato por sua sugestão de fazer das taxas de câmbio o assunto de sua tese de final de ano na faculdade de administração.

Seu tempo em Harvard passaria rapidamente e ele compreendeu que não podia jogar fora uma decisão que afetaria o futuro de ambos. Eles já tinham discutido as três opções possíveis. Ele poderia procurar um emprego em Boston, de modo que Su Ling pudesse permanecer em Harvard, mas, como ela mesma mostrou, isso limitaria os horizontes dele. Podia aceitar a oferta do Sr. Russell e juntar-se a Tom em um banco de uma pequena cidade, mas aquilo cortaria seriamente suas perspectivas futuras. Ou ele podia candidatar-se a um emprego em Wall Street e descobrir se conseguiria sobreviver.

Su Ling não tinha a menor dúvida sobre qual das três opções ele deveria seguir, e embora eles ainda dispusessem de algum tempo para considerar o futuro, ela já estava fazendo contato em Columbia.


25


OLHANDO PARA TRÁS, no seu último ano em Harvard, Nat tinha pouco do que se arrepender. Apenas horas depois de pousar no Aeroporto Internacional Logan, Nat telefonar a ao pai de Tom para discutir suas ideias sobre investimentos. O Sr. Russell mostrou -lhe que as somas que pretendia aplicar eram muito pequenas para qualquer investidor estrangeiro negociar. Nat ficou desapontado, até que o Sr. Russell sugeriu que o banco fizesse um empréstimo de mil dólares, e deu uma ordem para que ele e Tom tivessem permissão de investir mil dólares cada. Esse passou a ser o primeiro fundo de capitais de Nat.

Quando Joe Stein ouviu sobre o projeto, outros mil apareceram no mesmo dia. No prazo de um mês, o fundo havia crescido para dez mil dólares. Nat disse a Su Ling que estava mais preocupado em perder o dinheiro dos investidores do que o próprio.

No final do período, o fundo Cartwright chegara a quatorze mil dólares, e Nat havia obtido um lucro líquido de setecentos e vinte e seis dólares.

— Mas você ainda poderia tê-lo perdido todo — lembrou-o Su Ling.

— É verdade, mas agora que o fundo é mais substancial, a chance de uma perda grave é menor. Mesmo se a tendência se reverter subitamente, poderei resguardar minha posição pela venda antecipada, mantendo o mínimo de perdas.

— Mas isso não rouba uma grande parte do seu tempo, quando você deveria estar escrevendo sua tese? — perguntou Su Ling.

— Só perco uns quinze minutos por dia — disse Nat. — Checo o mercado japonês todos os dias, às seis horas da manhã, e os preços de encerramento, todas as noites, às dezoito horas, em Nova York; e enquanto não houver uma corrida contra mim, por diversos dias seguidos, não tenho nada a fazer senão reinvestir o capital todos os meses.

— Isso é obsceno — disse Su Ling.

— Mas o que há de errado em usar minhas aptidões, conhecimento e algum de empreendimento? — perguntou Nat.

— Porque você ganha mais trabalhando quinze minutos por dia do que posso esperar conseguir em um ano como antiga pesquisadora de Columbia; na verdade, isso pode ser mais do que o meu supervisor ganha.

— Seu supervisor ainda estará ocupando aquele lugar no próximo ano, não importa o que acontecer ao mercado. Essa é uma empresa livre. O outro lado da moeda é que eu posso perder tudo.

Nat não disse à esposa que o economista inglês Maynard Keynes havia comentado que "um homem perspicaz deveria poder conseguir fazer uma fortuna antes do café da manhã, de modo que pudesse trabalhar adequadamente pelo restante do dia". Ele sabia quão forte era o sentimento de sua esposa sobre o que ela chamava de "dinheiro fácil"; por isso ele só falava sobre seus investimentos quando ela levantava o assunto. Ele certamente não a deixou saber que o Sr. Russell sentiu que chegara a hora de considerar uma alavancagem.

Nat não se sentia culpado quando tinha de passar quinze minutos do seu dia gerenciando seu minifundo, ao mesmo tempo em que duvidava que houvesse algum aluno da sua classe que estudasse mais diligentemente. Na verdade, a única folga que tirava do trabalho era para dar uma corrida todas as tardes, e o ponto alto do seu ano chegou quando, vestindo um colete de Harvard, cruzou a linha de chegada em prime iro lugar na corrida contra a Universidade de Connecticut.

Depois de diversas entrevistas em Nova York, Nat recebeu uma enxurrada de ofertas das instituições financeiras, mas havia apenas duas que ele considerava seriamente.

Em tamanho e reputação, não havia nada a escolher entre elas, mas uma vez que ele conheceu Arnie Freeman, que encabeçava a mesa de operações do Morgan, ele estava bastante feliz em se cadastrar. Arnie tinha talento para fazer com que quatorze horas em Wall Street soassem como divertimento.

Nat perguntou-se o que mais poderia acontecer naquele ano, até que Su Ling perguntou quanto lucro o fundo Cartwright havia acumulado.

— Em torno de quarenta mil dólares — disse Nat.

— E suas ações?

—Vinte por cento. Portanto, onde você está pretendendo gastá-los?

— Com nosso primeiro filho — respondeu ela.

 

 

 

 

Fazendo uma retrospectiva sobre seu primeiro ano com a Alexander Dupont & Bell, Fletcher também tinha pouco o que lamentar. Ele não tinha a menor ideia de quais seriam suas responsabilidades, mas os associados do primeiro ano não eram conhecidos como "bando de cavalos" por nada. Ele descobriu depressa que sua principal responsabilidade era ter certeza de que a qualquer momento que Matt Cunliffe estivesse trabalhando ele nunca teria de procurar em sua escrivaninha para encontrar qualquer documento importante ou detalhes do caso. Foram precisos poucos dias para Fletcher descobrir que qualquer ideia de não obscurecer as aparências dos casos glamourosos da Corte, defendendo uma mulher inocente acusada de assassinato, era o recheio das novelas de televisão. Grande parte do seu trabalho era esmerado e meticuloso, e frequentemente gratificante, pela negociação da defesa antes de uma data de julgamento ter sido agendada.

Fletcher também descobriu que enquanto você não passa a ser sócio não começa a ganhar "a grana boa" e a ir para casa ainda sob a luz do sol. A despeito disso, Matt diminuiu sua carga horária não insistindo numa folga de trinta minutos para o almoço, o que lhe permitia jogar squash duas vezes por semana com Jimmy.

Ainda que Fletcher fosse de trem e levasse serviço para casa, ele tentava, sempre que possível, passar uma hora da noite com sua filha. Seu pai o lembrava, seguidas vezes, que, uma vez que aqueles primeiros anos houvessem passado, ele não seria capaz de fazer voltar atrás "momentos importantes da infância de Lucy".

A primeira festa de aniversário de Lucy foi um evento muito barulhento, ao ar livre, num estádio de futebol que Fletcher sempre frequentara. Annie tinha feito tantas amizades na vizinhança que ele encontrou sua casa cheia de crianças que pareciam que rer rir e chorar, ao mesmo tempo. Fletcher ficava maravilhado sobre quão calmamente Annie administrava o sorvete de creme virado, o bolo de chocolate amassado no carpete, uma mamadeira derramada em seu vestido, sem que aquele sorriso familiar jamais saísse do seu rosto. Quando o último pirralho finalmente partiu, Fletcher estava exausto, mas tudo que Annie dizia era "acho que deu tudo certo".

Fletcher continuou a ver Jimmy muitas vezes, o qual, graças a seu pai — palavras dele — havia conseguido um emprego num pequeno mas bem respeitado escritório de advogados na avenida Lexington. Suas horas eram quase tão duras quanto as de Fletcher, mas a responsabilidade da paternidade parecia ter dado a ele um incentivo novo, que só aumentou quando Joanna deu à luz um segundo filho. Fletcher estava feliz com o sucesso do casamento deles, lembrando-se da diferença de idade e de profissões.

Mas isso parecia não importar, porque o casal simplesmente se adorava e causava in veja a muitos outros contemporâneos que já tinham solicitado divórcio. Quando Fletcher ouviu sobre o segundo filho de Jimmy, desejou que não demorasse muito para Annie seguir o exemplo; ele invejava Jimmy, então, por ter um filho homem. Pensava muitas vezes em Harry Robert.

Devido ao acúmulo de seu trabalho, Fletcher fez poucos amigos novos, à exceção de Logan Fitzgerald, que havia entrado para a firma no mesmo dia. Eles comparavam anotações, com frequência, à hora do almoço, e tomavam um drinque juntos, antes que Fletcher tomasse o trem para casa, à noitinha. Logo, o irlandês alto, de cabelos fartos, seria convidado para ir a Ridgewood, a fim de conhecer as amigas solteiras de Annie. Embora Fletcher aceitasse o fato de Logan e ele serem rivais, isso não parecia afetar sua amizade; na verdade, se houvesse alguma coisa, parecia fortalecer ainda mais o laço entre eles. Ambos tinham seus triunfos menores e reveses no primeiro ano, e ninguém da firma parecia desejoso de oferecer uma opinião sobre qual deles deveria vir a associar-se primeiro.

Uma tarde, depois do drinque, Fletcher e Logan concordaram que eles agora eram membros totalmente efetivados na firma. No período de umas poucas semanas, um novo grupo de estagiários apareceria e eles seriam promovidos de "bando de cavalos" a "potrinhos"... Ambos haviam analisado os currículos de todos aqueles que ficaram na lista final.

— O que acha dos candidatos? — perguntou Fletcher, procurando não soar superior.

— Nada mal — disse Logan, quando pediu para Fletcher a cerveja de sempre. — Com uma exceção: aquele rapaz de Stanford, que não consegui entender como foi que chegou à lista final.

— Soube que ele é sobrinho de Bill Alexander.

— Bem, essa é uma razão boa o suficiente para colocá-lo na lista final, mas não para oferecer-lhe um emprego; portanto, espero não vê-lo novamente. Pense bem — disse Logan. — Nem sequer me lembro do nome dele.

 

 

 

Nat era o mais novo de uma equipe de três pessoas no Morgan. Seu chefe imediato era Steven Ginsberg, que tinha vinte e oito anos, e seu auxiliar, Adrian Kenwright, que acabava de celebrar trinta e seis. Ambos controlavam um fundo de mais de um milhão de dólares.

Quando o mercado de capitais abria em Tóquio, no momento em que a maioria dos civilizados americanos vai para a cama, e fechava em Los Angeles, quando o sol não mais brilhava sobre o continente americano, alguém da equipe tinha de estar à disposição para cobrir cada hora da noite ou do dia. Na verdade, a única ocasião em que Steven permitia que Nat tirasse uma folga à tarde foi para ver Su Ling receber seu doutorado em Harvard; e, mesmo assim, ele teve de sair da festa de celebração de modo a fazer uma chamada urgente para explicar por que a lira italiana estava caindo.

— Eles poderão ter um governo comunista a qualquer momento desta semana — disse Nat — portanto, comecem mudando para os francos suíços — acrescentou. — E livrem-se de qualquer libra esterlina que tenhamos em nossos livros, porque o Reino Unido tem um governo de esquerda e será o próximo a sentir a pressão.

— E o marco alemão?

— Segure-se no marco, deve permanecer desvalorizada enquanto o Muro de Berlim estiver em pé.

Embora os dois membros mais antigos do grupo tivessem muito mais experiência financeira do que Nat e desejassem trabalhar tão arduamente quanto ele, sabiam que, por sua veia política, Nat podia ler o mercado mais rápido do que qualquer um com quem eles já haviam trabalhado junto ou contra.

No dia em que todos venderam seus dólares e entraram nas libras, Nat imediatamente vendeu as libras no mercado futuro. Por oito dias parecia que ele havia perdido uma fortuna do banco e seus colegas correram e passaram por ele sem nem mesmo olhá-lo nos olhos. Um mês depois, sete outros bancos estavam lhe oferecendo um emprego e um considerável aumento de salário.

Nat recebeu um bônus em cheque de oito mil dólares no fim do ano e decidiu que era chegada a hora de procurar uma amante.

Ele não disse a Su Ling sobre o bônus nem sobre a amante, pois ela havia recebido um aumento mensal de noventa dólares. Quanto à amante, ele estava de olho numa senhora em particular pela qual passava, todas as manhãs, na esquina da rua, indo para o trabalho. E ela ainda estava repousando na vitrine quando ele voltava ao seu apartamento no SoHo todas as tardes. À medida que os dias passavam, ele dava à senhora, mergulhada no banho, mais do que um olhar casual, e finalmente decidiu perguntar o preço dela.

— Seis mil e quinhentos dólares — o dono da galeria informou-o — e se posso dizer assim, o senhor tem um olho excelente, não apenas por tratar-se de uma magnífica pintura, mas porque também estará fazendo um investimento inteligente.

Nat estava chegando à rápida conclusão de que os negociantes de obras de arte não eram diferentes dos vendedores de carros usados, vestidos com ternos da Brooks Brothers.

— Bonnard está grandemente desvalorizado em comparação com seus contemporâneos Renoir, Monet e Matisse — Continuou o marchand — e prevejo a subida de seus valores num futuro próximo.

Nat não queria saber dos preços de Bonnard, porque ele era um apaixonado, não um cafetão.

Sua outra amante chamou-o naquela tarde para alertá-lo de estar a caminho do hospital. Ele pediu a Hong Kong para aguardar.

— Por quê? — perguntou Nat, ansiosamente.

— Porque estou dando à luz seu bebê — respondeu a esposa.

— Mas não está previsto para o mês que vem?!...

— Ninguém disse isso ao bebê — disse Su Ling.

— Estou a caminho, Florzinha — disse Nat, esquecendo-se da outra linha.

Quando Nat voltou do hospital naquela noite, telefonou para a mãe para contar que ela tinha um neto.

— Notícia maravilhosa — disse ela — Como vai chamá-lo?

— Luke — respondeu ele.

— E o que você pretende dar a Su Ling para comemorar a ocasião?

Ele hesitou por um instante, e depois disse: — Uma Senhora no Banho.

Haviam se passado mais dois dias quando ele e o marchand finalmente concordaram em cinco mil setecentos e cinquenta dólares, e o pequeno Bonnard foi transferido da galeria no SoHo para a parede do quarto do seu apartamento.

— Você a deseja? — perguntou Su Ling no dia em que ela e Luke voltaram do hospital.

— Não, embora haja mais nela para abraçar do que em você. Mas eu prefiro mulheres esguias.

Su Ling parou e olhou para seu presente por algum tempo, antes de dar seu parecer.

— É magnífica! Obrigada.

Nat estava deleitado por ver que sua esposa parecia apreciar a pintura tanto quanto ele. Ele estava aliviado pelo fato de ela não ter perguntado quanto a Senhora havia custado.

O que havia começado como um capricho, numa viagem de Roma a Veneza e de lá para Florença, com Tom, havia se transformado rapidamente num vício de que Nat não conseguia se livrar. Toda vez que recebia um bônus, ia procurar outra pintura. Nat podia bem ter sido dispensado pelo vendedor de carros usados, mas seu julgamento acabou por provar-se correto, porque Nat continuou a escolher impressionistas que ainda estavam dentro das possibilidades do seu bolso — Vuillard, Luce, Pissarro, Camoin e Sisley — só para descobrir que eles cresciam em valor tão depressa quanto qualquer dos investimentos que ele selecionava para seus clientes em Wall Street.

Su Ling gostava de ver crescer a coleção de ambos. Ela não tinha o menor interesse em saber quanto Nat havia pago por sua amante, e menos ainda do valor de seu investimento.

Talvez isso se devesse ao fato de que, quando tinha vinte e cinco anos e fora indicada como a mais jovem professora associada da história de Columbia, ela estava ganhando menos num ano do que Nat ganhava em uma semana.

Ele não precisava mais ser lembrado de que aquilo era obsceno.

 

 

 

Fletcher lembrava-se bem do incidente.

Matt Cunliffe havia solicitado que levasse um documento para ser assinado pela Higgs & Dunlop.

— Normalmente eu pediria isso a um rábula — explicou Matt — mas levou duas semanas para que o Sr. Alexander conseguisse o acordo, e ele não quer nenhum último minuto de chance para que eles tenham uma desculpa para não assiná-lo.

Fletcher esperava estar de volta ao escritório em menos de trinta minutos, porque tudo que ele precisava era conseguir que quatro acordos fossem assinados e testemunhados.

Mas quando Fletcher reapareceu duas horas mais tarde, e disse a seu chefe que os documentos não tinham sido nem assinados nem testemunhados, Matt colocou sua caneta sobre a mesa e esperou por uma explicação.

Quando Fletcher chegara à Higgs & Dunlop, fora deixado esperando na recepção, e foi-lhe dito que o sócio, cuja assinatura era necessária, não havia voltado ainda do almoço. Isso surpreendeu Fletcher, pois o próprio sócio em questão, o Sr. Higgs, havia agendado o encontro para uma da tarde e Fletcher tinha deixado de lado seu próprio almoço para ter certeza de que não se atrasaria.

Enquanto Fletcher estava sentado na área da recepção, leu os acordos e familiarizou-se com seus termos. Depois de terem entrado num acordo sobre uma das propostas, um conjunto de compensações do sócio havia sido questionado e tomara um tempo considerável antes que ambos os sócios chegassem a uma solução definitiva.

À 1h5 da tarde, Fletcher olhou para a recepcionista, que parecia constrangida, e ofereceu um segundo café. Fletcher agradeceu; afinal de contas, não era culpa dela que ele fosse mantido esperando. Mas, depois de ler todo o documento uma segunda vez e de ter tomado três cafés, concluiu que das duas uma: ou o Sr. Higgs estava sendo mais do que rude ou era completamente ineficiente.

Fletcher checou novamente o relógio de pulso: 1h35 da tarde. Ele olhou em volta e perguntou à recepcionista se podia usar o toalete. Ela hesitou por um instante, antes de entregar-lhe a chave que estava em sua gaveta.

— O toalete dos executivos fica no andar de cima — disse ela. — É de uso exclusivo dos sócios e dos clientes mais importantes; portanto, se alguém perguntar, por gentileza, diga que o senhor é um cliente.

O toalete estava vazio e, não querendo embaraçar a recepcionista, Fletcher trancou-se no último boxe. Ele estava fechando o zíper da calça quando duas pessoas entraram, uma delas parecendo ter acabado de chegar de um almoço demorado, onde a água não tinha sido a única bebida servida.

Primeira voz: "Bem, estou contente que esteja tudo arrumado. Não há nada que me dê mais satisfação do que tirar o melhor da Alexander Dupont & Bell."

Segunda voz: "Eles mandaram algum mensageiro com o acordo. Eu disse a Millie para deixá-lo na recepção para suar um pouquinho."

Fletcher apanhou uma caneta do bolso de dentro da jaqueta e puxou delicadamente o rolo de papel higiênico.

Primeira voz, rindo: "O que foi que você resolveu, finalmente?"

Segunda voz: "Essa é a boa nova, 1.325.000 dólares, o que é muito além do que antecipáramos."

Primeira voz: "O cliente deve estar deleitado."

Segunda voz: "É com ele que eu estava almoçando. Ele pediu uma garrafa de Chateau Lafitte 52, afinal nós lhe havíamos dito para esperar meio milhão, o que ele teria ficado bastante feliz em conseguir — por motivos óbvios."

Primeira voz, rindo mais: "Estamos trabalhando sobre uma taxa contingencial?"

Segunda voz: "Claro que sim! Ficamos com cinquenta por cento de qualquer coisa acima de meio milhão."

Primeira voz: "Então a empresa obteve um líquido de ótimos 417.500 dólares. Mas o que você quis dizer com "motivos óbvios"?

Uma torneira foi aberta. "Nosso maior problema era o banco do cliente — a empresa está atualmente a descoberto em 720 mil dólares, e se não cobrirmos a soma, inteiramente, no fechamento dos negócios na sexta-feira eles estão ameaçando não pagar, o que significaria que talvez não pegássemos..." — a torneira foi fechada -"... os quinhentos mil dólares originais, e isso depois de meses de barganha."

Segunda voz: "Isso é idiota quanto a uma coisa."

Primeira voz: "Do que se trata?"

Segunda voz: "Que você pode dizer àqueles esnobes da Alexander Dupont & Bell que eles não sabem jogar pôquer."

Primeira voz: "Verdade, mas acho que vou jogar uma partida com..." — uma porta se abriu — "... o mensageiro deles."

A porta se fechou.

Fletcher embolou o papel higiênico e enfiou-o no bolso. Deixou o boxe e, rapidamente, lavou as mãos antes de sair de fininho e tomar a escada de incêndio para o andar de baixo. Uma vez de volta à recepção, ele entregou à recepcionista a chave do toalete.

— Obrigada — disse a recepcionista, antes de o telefone tocar. Ela sorriu para Fletcher. — O senhor chegou na hora. Se quiser tomar o elevador para o décimo primeiro andar, o Sr. Higgs já está esperando para vê-lo agora.

— Obrigado — disse Fletcher, enquanto caminhava para fora do recinto, entrava no elevador e pressionava o botão do "T".

 

Matt Cunliffe estava desamassando o rolo de papel quando o telefone tocou.

— O Sr. Higgs está na linha um — disse a secretária.

— Diga-lhe que não estou disponível.

Matt voltou a sentar-se em sua poltrona e piscou para Fletcher.

— Ele quer saber quando o senhor poderá atendê-lo.

— Não antes do fechamento dos negócios na sexta-feira.


26

 

 

FLETCHER NÃO PODIA SE LEMBRAR de nenhuma ocasião em que tivesse desgostado tanto de alguém num primeiro encontro; até mesmo as circunstâncias não ajudaram.

O sócio sênior havia convidado Fletcher e Logan para um café em seu escritório — um acontecimento já de si pouco comum. Quando chegaram, foram apresentados a um de seus novos estagiários.

— Quero que ambos conheçam Ralph Elliot — foram as palavras iniciais de Bill Alexander.

A primeira reação de Fletcher foi se perguntar por que ele escolhera Elliot entre os dois bem-sucedidos candidatos. Ele descobriu bem depressa.

— Este ano decidi ter comigo um estagiário. Estou ansioso para estar em contato com o que pensa a nova geração, e como as notas de Ralph em Stanford foram excepcionais, ele me pareceu ser a escolha óbvia.

Fletcher lembrou-se da descrença de Logan de que o sobrinho de Alexander pudesse ter sequer estado na lista final, e ambos chegaram à conclusão de que o Sr. Alexander devia ter passado por cima de quaisquer objeções dos demais sócios.

— Espero que ambos façam com que Ralph sinta-se bem-vindo.

— Naturalmente — disse Logan. — Por que você não vem almoçar conosco?

— Sim, tenho certeza de que eu poderia encaixar isso na agenda — respondeu Elliot, como se lhes estivesse fazendo um favor.

Depois do almoço, Elliot não perdeu nenhuma oportunidade de lembrar que era o sobrinho do sócio sênior, com uma implicação silenciosa de que se qualquer um deles se atravessasse em seu caminho ele poderia atrapalhar seu progresso. A ameaça serviu apenas para estreitar o compromisso entre ambos.

— E agora diz a todos que o escutam que ele será a primeira pessoa a chegar à posição de sócio antes do período de sete anos — disse Fletcher a Logan depois de um drinque, passados alguns dias.

— Você sabe que ele é um grande malandro; não me surpreenderia se passasse por cima — foi a única resposta de Logan.

— Como pensa que ele veio a ser presidente do diretório acadêmico da Universidade de Connecticut, se ele trata a todos da mesma maneira que nos trata?

— Talvez ninguém tenha tido coragem de opor-se a ele.

— É assim que você consegue? — perguntou Logan.

— Como foi que ficou sabendo? — perguntou Fletcher enquanto o garçom apanhava seus copos.

— Chequei seu currículo no dia em que entrei para a firma. Não me diga que você não leu o meu?

— Claro que sim — admitiu Fletcher, levantando seu copo. — Eu até sei que você foi campeão de xadrez em Princeton. — Os dois riram. — Tenho de correr ou vou perder meu trem — disse Fletcher. — Annie pode começar a pensar que existe outra mulher na minha vida!

— Tenho inveja de você sob este aspecto — disse Logan, baixinho.

— O que quer dizer com isso?

— A força do seu casamento. Não passaria nem uma vez pela mente de Annie que você pudesse olhar para outra mulher.

— Tenho muita sorte — disse Fletcher. — Talvez você algum dia tenha a mesma sorte. Meg, da recepção, não consegue tirar os olhos de você.

— Qual delas é a Meg? — perguntou Logan enquanto Fletcher o deixava para apanhar o sobretudo.

Fletcher tinha andado uns poucos metros descendo a Quinta Avenida, quando avistou Ralph Elliot se aproximando. Fletcher deslizou para uma abertura de porta, e esperou que ele passasse. Dando um passo atrás, sob um vento frio cortante que exigia tapa-orelhas mesmo para caminhar apenas um quarteirão, ele enfiou a mão no bolso para pegar seu cachecol, mas não estava lá. Soltou um palavrão. Devia tê-lo deixado no bar. Teria de apanhá-lo no dia seguinte, mas, então, xingou outra vez ao lembrar-se de que Annie o havia presenteado com ele no Natal. Voltou e refez o caminho.

De volta ao bar, perguntou à garota que tomava conta dos casacos se havia visto um cachecol vermelho de lã.

— Sim — respondeu ela — deve ter caído quando o senhor vestiu o sobretudo. Encontrei-o no chão.

— Obrigado — disse Fletcher enquanto se virava para sair, não esperando ver Logan ainda sentado no bar. Ele congelou ao ver o homem com quem ele conversava.

 

 

 

Nat adormeceu depressa.

A Desvalorização Francesa — três palavras simples mudaram as fitas de um gentil murmúrio para uma barulheira de pânico. O telefone ao lado da cama de Nat estava tocando trinta segundos mais tarde, e ele deu uma ordem a Adrian imediatamente: — Livre-se dos francos o mais rápido possível. Ele respondeu: — Dólares.

Nat não conseguia se lembrar de um só dia, nos últimos dez anos, em que tivesse deixado de se barbear. Ele não havia se barbeado.

Su Ling estava acordada na hora em que ele saiu do banho, uns poucos minutos mais tarde.

— Algum problema? — perguntou ela, esfregando os olhos.

— O franco desvalorizou-se em sete por cento.

— Isso é bom ou ruim? — perguntou ela.

— Depende de quantos francos tivermos investido. Serei capaz de fazer um julgamento tão logo consiga abrir uma tela.

— Você terá uma na cabeceira de sua cama em poucos anos, assim não terá sequer de ir até seu escritório — disse Su Ling, deixando sua cabeça cair para trás sobre o travesseiro quando ela viu 5h09 piscando no relógio de cabeceira.

Nat atendeu o telefone; Adrian ainda estava do outro lado da linha.

— Está parecendo difícil livrar-me dos francos; existem poucos compradores além do governo francês, e eles não poderão continuar a se escorar na moeda por muito mais tempo.

— Continue vendendo. Adquira yens, marcos alemães ou francos suíços, mas nada mais. Estarei com você em quinze minutos. Steven está aí?

— Não, mas ele está a caminho. Levei algum tempo para descobrir na cama de quem ele estava...

Nat não riu ao recolocar o telefone no gancho. Ele se inclinou e beijou a esposa antes de correr para a porta.

— Você não está usando uma gravata — disse Su Ling.

— Pode ser que à noite eu não esteja vestindo nem uma camisa — respondeu Nat.

Quando eles haviam se mudado de Boston para Manhattan, Su Ling encontrara um apartamento a uma corrida de táxi de Wall Street. À medida que os bônus surgiam, ela foi mobiliando e decorando os quatro cômodos, de modo que Nat logo se sentiu preparado a trazer seus colegas e até mesmo uns clientes para jantar. Sete pinturas — algumas que até mesmo os leigos teriam reconhecido — agora adornavam as paredes.

Su Ling caiu num meio sono quando seu marido saiu. Nat quebrou sua rotina costumeira quando desceu de dois em dois, ou de três em três os degraus das escadas, não querendo esperar pelo elevador. Num dia normal, ele teria se levantado às seis e telefonado do seu estúdio para o escritório pedindo uma atualização. Ele raramente tinha de tomar decisões maiores por telefone, pois muitos de seus contratos estavam fechados havia vários meses. Então tomaria banho, se barbearia e estaria vestido às seis e trinta. Leria o Wall Street Journal enquanto Su Ling preparava o café e sairia do apartamento em torno das sete, depois de dar uma olhada em Luke. Chovesse ou fizesse sol, ele andaria os cinco quarteirões para o trabalho, apanhando um exemplar do New York Times de uma caixa na esquina da William com a John. Imediatam ente ele viraria a página da seção financeira, e se a manchete chamasse sua atenção, ele a leria durante a caminhada, e ainda estaria em sua mesa às sete e vinte. O New York Times não informaria seus leitores da desvalorização do franco até a manhã seguinte, tempo em que, para muitos banqueiros, isso seria história.

Quando Nat alcançou a rua, acenou para o primeiro táxi disponível, puxando uma nota de dez dólares para um trajeto de cinco quadras, e disse: — Tenho de estar lá ontem!

O motorista imediatamente mudou de marcha e de pista e eles desceram do outro la do do seu escritório quatro minutos depois. Nat correu para dentro do edifício e dirigiu-se para o primeiro elevador aberto. Estava lotado de cambistas, todos falando com vozes mais altas do que o normal. Nat não ouviu nada de novo, exceto que um simples anúncio tinha sido feito pelo ministro francês de Economia, às dez horas, horário da Europa Central. Ele xingou quando o elevador parou oito vezes em sua subida vagarosa para o décimo primeiro andar.

Steven e Adrian já se encontravam em suas mesas na sala de câmbio.

— Contem as últimas! — gritou ele, livrando-se do sobretudo.

— Todo mundo está levando um banho — disse Steven. — O franco desvalorizou em sete por cento, mas os mercados estão descontando, pois muito pouco é muito tarde.

Nat checou sua tela.

— E as demais moedas?

— A libra, a lira e a peseta também estão caindo. O dólar está subindo, o yen e o franco suíço estão se mantendo, enquanto o marco alemão está flutuando.

Nat continuou a olhar para a tela, vendo os números piscando para cima e para baixo, a cada segundo.

— Procure e compre alguns yens — disse ele enquanto via a libra cair mais um ponto.

Steven fez uma conexão telefônica diretamente para a mesa de câmbio. Nat ficou de olho em sua direção. Eles estavam perdendo segundos preciosos enquanto esperavam por um cambista.

— De quanto é a troca? — rosnou Steven.

— Dez milhões a 20,68.

Adrian olhou para o outro lado enquanto Steven dava a ordem.

— E venda quaisquer libras ou liras que ainda estivermos detendo, porque serão as próximas a se desvalorizar — disse Nat.

— E sobre a taxa?

— Para o inferno com a taxa, apenas venda — disse Nat. — E entre nos dólares. Se for uma tormenta real, todo mundo vai tentar se esconder em Nova York.

Nat estava surpreso por estar tão calmo em meio à barreira de gritos e xingamentos a sua volta.

— Nós não temos liras — disse Adrian — e o yen está sendo oferecido a 20,27.

— Agarre-os — disse Nat com inflexão, seus olhos não se movendo da frente do monitor.

— Não temos libras — disse Steven — a 2,37.

— Ótimo, transfira metade dos nossos dólares de volta para os yens.

— Estou sem florins! — berrou Adrian.

— Troque todos por francos suíços.

— Quer vender nossa posição em marcos alemães? — perguntou Steven.

— Não — disse Nat.

— Quer comprar algum?

— Não — repetiu Nat. — Eles estão sentados no Equador e não parecem se mover em nenhuma outra direção.

Ele tinha acabado de tomar decisões em menos de vinte minutos e aí tudo que podia fazer era prestar atenção às telas e esperar para ver quanto prejuízo tinha sido causado. Como a tendência da maior parte das moedas era continuar caindo, Nat concluiu que outros estariam sofrendo muito mais do que ele. Não se podia ajudar.

Se pelo menos o franco tivesse esperado até o meio-dia, o tempo costumeiro para anunciar a desvalorização, ele teria estado em sua mesa.

— Maldito franco! — disse Adrian.

— Franco esperto — Contradisse Nat —, desvalorizar enquanto dormimos.

 

 

 

A desvalorização do franco significou pouco para Fletcher ao ler os detalhes no New York Times no trem, a caminho do trabalho, na manhã seguinte. Vários bancos haviam levado uma sova, e um ou dois estava inclusive tendo de relatar problemas de solvência para a comissão de seguros e trocas. Ele virou a página para ler um perfil do homem que parecia certo estar concorrendo com Ford para presidente. Fletcher sabia pouco sobre Jimmy Carter, além do fato de que fora governador da Geórgia e era proprietário de uma grande fazenda de amendoim. Fez uma pausa e pensou sobre sua própria ambição política, que ele tinha deixado de lado enquanto tentava estabelecer-se na firma.

Fletcher decidiu que iria inscrever-se para ajudar a campanha de apoio a Carter em Nova York na primeira folga que tivesse. Tempo de folga? Harry e Martha reclamavam por nunca vê-lo. Annie tinha entrado em outro trabalho não-remunerado e Lucy estava com catapora. Quando ele telefonou para sua mãe, para perguntar se ele alguma vez tinha tido catapora, a primeira coisa que ela lhe disse foi: "Alô, estranho!" Mas esses problemas foram logo esquecidos alguns momentos depois de chegar ao escritório.

A primeira pista de que havia algum problema apareceu quando ele disse bom dia para Meg na recepção.

— Há uma reunião de todos os advogados na sala de conferências às oito e trinta — disse ela secamente.

— Alguma ideia do que se trata? — perguntou Fletcher, compreendendo que era uma pergunta estúpida assim que a fez. O sigilo era a marca da empresa.

Vários sócios já se encontravam em seus lugares, falando em tons apressados, quando Fletcher adentrou a sala do conselho às oito e vinte e prontamente sentou-se logo atrás de Matt. Teria a desvalorização do franco francês em Paris afetado a empresa de advocacia em Nova York? Ele duvidava. Desejaria o sócio sênior falar sobre os negócios com a Higgs & Dunlop? Não, não era do feitio de Alexander. Ele olhou em volta da mesa da sala do conselho. Se algum deles sabia o que estava na agenda, eles não deixavam que nada transparecesse. Mas deviam ser más notícias, porque as boas -novas eram anunciadas na reunião das seis horas da tarde.

Às oito e vinte e quatro o sócio sênior entrou.

— Devo pedir desculpas por mantê-los longe de suas mesas — Começou ele — mas isso foi algo que não senti que pudesse ser coberto por um memorando interno, ou anexado ao meu relatório mensal.

Ele fez uma pausa e limpou um pigarro da garganta.

— A força desta empresa tem estado sempre no fato de nunca ter-se envolvido em escândalos de natureza pessoal ou financeira; portanto, considero que até mesmo uma nesga de tal problema deveria ser resolvida com rapidez.

Fletcher estava agora ainda mais confuso.

— Chegou ao meu conhecimento que um membro desta empresa foi visto num bar frequentado por advogados de instituições rivais.

Faço isso todos os dias, pensou Fletcher, mas isso não é nenhum crime.

— E, embora em si mesmo este fato não seja repreensível, pode levar a outros desdobramentos que são inaceitáveis na Alexander Dupont & Bell. Por sorte, um dos nossos, com o melhor interesse no coração pela empresa, sentiu que fosse seu dever deixar-me informado sobre o que poderia ser uma situação embaraçosa. O empregado ao qual me refiro foi visto em um bar conversando com um membro de uma empresa rival. Ele, então, saiu com aquela pessoa aproximadamente às dez horas, tomou um táxi para sua casa no West Side, e não reapareceu até as seis e trinta da manhã seguinte, quando retornou ao seu próprio apartamento.

Confrontei imediatamente o empregado em questão, que não fez nenhuma tentativa de negar seu relacionamento com o membro da empresa rival, e estou satisfeito de dizer que ele concordou que a forma mais adequada de agir seria solicitar sua demissão imediata. Ele fez uma pausa.

— Estou grato ao membro do grupo que relutantemente decidiu que era seu dever relatar este assunto para mim.

Fletcher olhou para Ralph Elliot, que estava tentando fingir surpresa à medida que cada sentença era pronunciada, mas ninguém nunca lhe havia dito sobre exagerar na interpretação. Foi então que Fletcher lembrou-se de ter visto Elliot na Quinta Avenida, depois de seu drinque da tarde. Ele se sentiu mal por um momento, ao compreender que era a Logan que o sócio sênior se referia.

— Deixem-me lembrar — enfatizou Bill Alexander — que este assunto não deverá ser discutido outra vez nem em público nem em particular.

Ele levantou-se e saiu da sala sem mais palavras.

Fletcher pensou que seria diplomático estar entre os últimos a sair, e quando não havia mais sócios na sala, ele se levantou e andou lentamente em direção à porta.

No trajeto de volta ao seu escritório, ele podia ouvir os passos atrás de si, mas não olhou em volta, até que Elliot o alcançou.

— Você estava com Logan naquele bar, aquela noite, não estava? — Fez uma pausa. — Eu não contei a meu tio.

Fletcher não disse nada quando Elliot foi embora, mas assim que chegou a sua mesa, escreveu as palavras exatas com que Elliot o havia ameaçado.

O único erro que ele cometeu foi não ter informado Bill Alexander imediatamente.

 

 

 

Uma das muitas coisas que Nat admirava em Su Ling era que ela nunca disse: "Eu avisei", embora depois de muitos alertas tivesse todo o direito de fazê-lo.

— E agora? O que vai acontecer? — perguntou ela, deixando o incidente para trás.

— Tenho de decidir se peço demissão ou espero para ser empurrado.

— Mas Steven é o cabeça do seu departamento, e até mesmo Adrian é superior a você.

— Eu sei, mas eles estavam em todas as minhas posições e assinei as ordens de compra e venda; portanto, ninguém acredita que eles desempenharam qualquer dos papéis.

— Quanto foi que o banco perdeu?

— Pouco menos de meio milhão de dólares.

— Mas você fez muito mais por eles do que isso, nos últimos dois anos.

— Verdade, mas as outras cabeças do departamento agora vão me considerar não-confiável, e estarão sempre amedrontados de que isso possa acontecer outra vez. Steven e Adrian já estão se distanciando o mais depressa que podem; não vão querer perder seus empregos também.

— Mas você ainda é capaz de dar lucros enormes ao banco; então, por que eles o deixariam partir?

— Porque serão capazes de substituir-me; faculdades de administração jogam novos brilhantes graduandos anualmente no mercado.

— Não do seu naipe, eu garanto — disse Su Ling.

— Mas eu pensei que você não me aprovasse!

— Eu não disse que aprovo — respondeu Su Ling — mas isso não significa que não reconheça e admire sua habilidade. — Ela hesitou. — Alguém mais vai lhe oferecer um emprego?

— Não acredito que eles me chamem com tanta frequência quanto um mês atrás; então terei de começar a procurá-los.

Su Ling envolveu o marido num abraço.

— Você encarou coisas muito piores do que estas no Vietnã, e eu também, na Coreia, e você não sucumbiu.

Nat tinha quase se esquecido do que acontecera na Coreia, embora aquilo ainda chateasse Su Ling, obviamente.

— E quanto ao Fundo Cartwright? — perguntou ela, enquanto Nat a ajudava a limpar a mesa.

— Perdi perto de cinquenta mil, mas meu saldo ainda mostra um pequeno lucro no ano. O que me lembra que preciso telefonar ao Sr. Russell e pedir desculpas.

— Mas você também lhes rendeu retornos incalculáveis no passado.

— Razão pela qual eles depuseram tanta confiança em mim, em primeiro lugar — disse Nat, dando uma pancada sobre a mesa. — Maldição, eu devia ter Percebido que isso ia acontecer!

Ele olhou por cima da mesa para a esposa.

— O que você acha que eu devo fazer?

Su Ling considerou sua pergunta por algum tempo.

— Peça demissão e procure um trabalho apropriado para você.

 

 

 

Fletcher discou o número sem ajuda da secretária.

— Está livre para o almoço? — Fez uma pausa. — Não, precisamos nos ver onde ninguém nos reconheça. — Pausa. — Esse é aquele na 57 West? — Pausa. — Vejo você às doze e trinta.

Fletcher chegou ao Zemarki's uns minutos mais cedo. Seu convidado já esperava por ele. Ambos pediram salada e Fletcher pediu uma cerveja.

— Pensei que você nunca bebesse no almoço...

— Hoje é uma daquelas raras exceções — disse Fletcher. Depois de tomar um longo gole, ele disse ao amigo o que tinha acontecido naquela manhã.

— Isso é 1976, não 1776 — foi tudo o que Jimmy disse.

— Eu sei, mas parece que ainda existem um ou dois dinossauros andando a esmo por aí, e Deus sabe que outra intriga Elliot ofereceu a seu tio!

— Parece um rapaz decente, seu Sr. Elliot. É melhor você manter um olho nele, pois você é, provavelmente, o próximo que ele tem na mira.

— Sei me cuidar — disse Fletcher. — Estou preocupado é com Logan.

— Mas se ele é tão bom como você diz, vai se levantar bem depressa.

— Não antes de um telefonema a Bill Alexander perguntando por que ele saiu tão depressa.

— Nenhum advogado teria peito de sugerir que ser gay fosse causa de demissão.

— Ele não precisa — disse Fletcher. — Dadas as circunstâncias, ele só precisa dizer: "Eu preferia não discutir a questão, é bastante delicada." O que é muito mais humano.

Ele tomou mais um gole.

— Tenho de lhe dizer, Jimmy, que se a sua empresa tivesse sorte suficiente de em pregar Logan, eles nunca se arrependeriam.

— Conversarei com o sócio sênior esta tarde e o farei saber como ele reagiu. De qual quer forma, como vai minha irmã caçula?

— Aos poucos vai tomando conhecimento de tudo em Ridgewood, incluindo o clube de livros, o time de natação da vizinhança e a rua dos doadores de sangue. Nosso próximo problema será para qual escola mandar Lucy.

— A Hotchkiss está aceitando meninas agora — disse Jimmy — e nós pretendemos...

— Eu me pergunto como se sente o senador sobre isso — disse Fletcher enquanto terminava a cerveja. — Como vai ele, por falar nisso?

— Exausto; ele nunca para de se preparar para a próxima eleição.

— Mas ninguém poderia vencer Harry. Não conheço nenhum outro político mais popular no Estado.

— Diga você isso a ele — disse Jimmy. — Da última vez em que o vi, ele tinha engorda do quase sete quilos, e parecia mal, fora de forma.

Fletcher olhou o relógio de pulso.

— Mande ao velho batalhador meus melhores votos e diga que Annie e eu tentaremos passar um fim de semana em Hartford, em breve. — Silenciou momentaneamente.

— Este encontro nunca aconteceu.

— Você está ficando paranóico — disse Jimmy, enquanto pegava o cheque — que é justamente o que o tal do Elliot está torcendo para que aconteça.

Nat entregou seu pedido de demissão em mãos, na manhã seguinte, aliviado por ver quão calmamente Su Ling havia recebido todo o fracasso. Mas foi muito bom tê-la ouvido dizer que encontrasse um trabalho apropriado quando havia apenas um emprego para o qual ele se sentia qualificado.

Quando voltou ao escritório para retirar seus pertences pessoais, foi como se houvesse uma notícia de quarentena pregada à sua mesa. Antigos colegas passaram por ele depressa, e aqueles que ocupavam as mesas próximas permaneceram ao telefone, suas faces viradas para o outro lado.

Ele tomou um táxi, que estava disponível, de volta para seu apartamento e encheu três vezes o pequeno elevador antes de, finalmente, depositar tudo em seu estúdio.

Nat sentou-se sozinho à sua mesa. O telefone não havia tocado nenhuma vez desde que chegara em casa. O apartamento parecia estranhamente vazio sem Su Ling e Luke; ele estava acostumado com eles à sua espera para recebê-lo sempre que chegava em casa. Graças a Deus o menino era pequeno demais para saber o que eles estavam atravessando.

Ao meio-dia, ele foi à cozinha, abriu uma lata de carne moída e colocou-a numa frigideira, adicionou manteiga, quebrou dois ovos por cima e esperou até que parecesse pronta.

Depois do almoço ele digitou uma lista de instituições financeiras que haviam estado em contato com ele durante o ano anterior, e então preparou-se para telefonar a um por um. Ele começou com um banco que havia lhe telefonado poucos dias antes.

— Ó, olá, Nat... sim, desculpe, conseguimos preencher a vaga na última sexta-feira.

— Boa-tarde, Nat... parece uma proposta interessante... dê-me uns dois dias para pensar a respeito e eu voltarei a falar com você.

— Foi ótimo o senhor ter telefonado, Sr. Cartwright, mas...

Quando Nat alcançou o fim da lista, baixou o telefone. Ele acabara de se desvalorizar, e havia uma ordem de venda sobre ele, obviamente. Checou sua conta corrente: ainda possuía um bom saldo, mas por quanto tempo mais? Olhou para a pintura a óleo sobre sua escrivaninha, Reclining nude*, de Camoin. Ele se perguntou quanto tempo passaria antes que tivesse de devolver uma de suas "amantes" ao cafetão da galeria.

O telefone tocou. Teria um deles pensado a respeito e o chamado de volta? Pegou o telefone e ouviu uma voz familiar.

 

*Nu allongé em francês, ou Nu reclinado.

 

— Devo me desculpar, Sr. Russell — disse Nat — eu deveria tê-lo chamado antes.

 

 

 

 

Assim que Logan saiu da empresa, Fletcher sentiu-se isolado e raramente se passou um dia sem que Elliot tentasse miná-lo; então, quando Bill Alexander pediu para vê-lo na segunda-feira pela manhã, Fletcher sentiu que não seria um encontro amigável.

Depois do jantar com Annie, na noite de domingo, ele disse à sua esposa tudo que tinha acontecido durante os últimos dias, tentando não exagerar. Annie ouviu-o em silêncio.

— Se você não disse ao Sr. Alexander a verdade sobre o sobrinho dele, vocês dois vão se arrepender pelo resto da vida!

— Não é tão fácil assim... — disse Fletcher.

— A verdade é sempre fácil — disse Annie. — Logan tem sido tratado de um modo desgraça do, e se não fosse por você, nenhum outro emprego lhe seria oferecido. Seu único erro foi não ter contado isso ao Alexander no instante em que a reunião terminou ; isso deu a Elliot a confiança para continuar minando você.

— E se ele acabar comigo da mesma maneira?

— Então esta não é a empresa em que você deveria ter entrado, em primeiro lugar, Fletcher Davenport, e você certamente não seria o homem que escolhi para me casar.

Quando Fletcher chegou do lado de fora da porta do Sr. Alexander, uns minutos antes das nove, a Sra. Townsend o encaminhou diretamente para o escritório do sócio sênior.

— Sente-se — disse Bill Alexander, apontando uma poltrona do outro lado da mesa.

Nada de "que bom vê-lo, Fletcher"; apenas um "sente-se". Nada de "como vão Annie e Lucy?", apenas um "sente-se". Aquelas três palavras determinaram na mente de Fletcher que Annie estava certa, e ele não devia temer mostrar as coisas em que acreditava.

— Fletcher, quando você chegou à Alexander Dupont & Bell, pela primeira vez, há uns dois anos, eu tinha altos planos para você, e, de fato, durante seu primeiro ano, você mais do que correspondeu às minhas expectativas. Todos nos lembramos com considerável prazer do incidente com a Higgs & Dunlop. Mas ultimamente você não tem mostrado a mesma resolução.

Fletcher pareceu confuso. Ele tinha visto o relatório mais recente de Matt Cunliffe sobre ele, e a palavra exemplar ficara incrustada em sua mente.

— Acho que temos o direito de assumir um padrão de lealdade dos mais altos, como profissionais da lei — Continuou Alexander.

Fletcher permaneceu em silêncio, não muito certo do crime de que seria acusado.

— Chegou ao meu conhecimento que você também estava naquele bar com Fitzgerald na noite em que ele estava tomando um drinque com o amigo dele.

— Informação fornecida por seu sobrinho, sem dúvida — disse Fletcher — Cujo papel neste negócio todo tem estado distante de ser imparcial.

— O que você quer dizer com isso?

— Muito simplesmente que a versão dos acontecimentos pelo Sr. Elliot está baseada num interesse totalmente pessoal, como tenho certeza de que um homem de sua perspicácia já deve ter percebido.

— Perspicácia? — disse Alexander. — Foi perspicaz de sua parte ter sido visto em companhia do amigo de Fitzgerald? — Ele enfatizou a palavra novamente.

— Não conheci o amigo de Logan, como tenho certeza de que o Sr. Elliot lhe disse, a menos que ele quisesse que o senhor conhecesse apenas a metade da história. Fui para Ridgewood...

— Mas Ralph me disse que você voltou mais tarde.

— Sim, voltei, e como todo bom espião, seu sobrinho deve ter relatado também que só voltei lá para apanhar meu cachecol que havia caído da manga do meu sobretudo.

— Não, ele não relatou isso — disse Alexander.

— Foi o que eu quis dizer com só contar a metade da história — disse Fletcher.

— Então, o senhor não falou com Logan ou com o amigo dele?

— Não, eu não falei — disse Fletcher — mas isso foi só porque eu estava com pressa, não tinha tempo.

— Então o senhor teria falado com ele?

— Sim, teria.

— Mesmo sabendo que Logan é homossexual?

— Eu não sabia, e tampouco me importaria.

— O senhor não se importaria?

— Não, e nunca considerei que a vida privada de Logan fosse da minha conta.

— Mas era da conta da empresa, o que me traz a assuntos mais importantes. O senhor está sabendo que Logan Fitzgerald está trabalhando na firma que emprega seu cunhado?

— Sim, estou — disse Fletcher. — Eu disse ao Sr. Gates que Logan estava procurando emprego e que eles teriam muita sorte se contratassem alguém do seu calibre.

— Eu me pergunto se isso foi inteligente — disse Bill Alexander.

— Quando se trata de um amigo, tenho a tendência de colocar decência e justiça à frente dos meus próprios interesses.

— E à frente da empresa?

— Sim, se for moralmente correto. Isso foi o que o Professor Abrahams me ensinou.

— Não discuta comigo, Sr. Davenport.

— Por que não? O senhor tem estado a discuti-las comigo, Sr. Alexander.

O sócio sênior ficou vermelho.

— O senhor deve compreender que eu poderia mandá-lo embora desta empresa.

— Nós dois saindo na mesma semana deverá merecer alguma explicação, Sr. Alexander.

— O senhor está me ameaçando?

— Não, acho que o senhor é que está me ameaçando.

— Pode não ser muito fácil livrar-me do senhor, Sr. Davenport, mas posso afiançar-lhe que nunca virá a tornar-se sócio enquanto eu for membro desta empresa. Agora saia.

Quando ele se levantou para sair, Fletcher lembrou-se das palavras de Annie: Então esta não é a empresa em que você deveria ter entrado, em primeiro lugar.

Ele voltou a seu escritório e encontrou o telefone tocando. Seria Alexander chamando-o de volta? Ele o apanhou pronto para apresentar sua demissão. Era Jimmy.

— Desculpe incomodá-lo no trabalho, Fletcher, mas papai sofreu um ataque cardíaco. Ele foi levado ao St. Patrick's. Será que você e Annie podem chegar a Hartford o mais breve possível?


27


ENCONTREI UM EMPREGO apropriado para mim — disse Nat quando Su Ling atravessou a porta.

— Você vai ser um motorista de táxi em Nova York?

— Não — respondeu Nat. — Não tenho qualificações para esse trabalho.

— Isso não parece ter amedrontado muita gente no passado.

— Mas não morar em Nova York, pode.

— Estamos saindo de Nova York? Por favor, diga que estamos indo para algum lugar civilizado, onde os arranha-céus serão substituídos por árvores e os exaustores de fumaça por ar fresco!

— Vamos para casa.

— Hartford? Então só pode ser com Russell.

— Você está certa. O Sr. Russell ofereceu-me um emprego como vice-presidente do banco, trabalhando ao lado de Tom.

— Banco sério? Não apenas especulando no mercado de capitais?

— Supervisionarei seu departamento de capitais, mas posso prometer que se concentra principalmente no câmbio estrangeiro, não na especulação. O que o Sr. Russell precisa mais é que Tom e eu trabalhemos na completa reestruturação do banco. Durante os últimos anos o Banco Russell vem caindo frente aos competidores e...

Su Ling colocou a sacola sobre a mesa do corredor e se encaminhou para o telefone.

— Para quem você está telefonando? — perguntou Nat.

— Minha mãe, naturalmente. Nós precisamos começar a procurar uma casa, e então vou ter de levar em conta uma escola para Luke, e uma vez que ela vai ter de trabalhar nisso, precisarei entrar em contato com antigos colegas sobre trabalho, e aí...

— Calma, Florzinha! — disse Nat, tomando sua esposa nos braços. — Devo acreditar que você aprova a ideia?

— Aprovo? Mal posso esperar para sair de Nova York. A ideia de Luke começar sua educação numa escola onde as crianças usam canivetes para apontar seus lápis me horroriza.

— Eu também mal posso esperar...

O telefone tocou e Su Ling o apanhou. Ela fechou a mão sobre o bocal.

— É alguém chamado Jason, do Chase Manhattan. Devo dizer que você não está mais disponível?

Nat sorriu e pegou o telefone.

— Oi, Jason, o que posso fazer por você?

— Andei pensando em seu telefonema, Nat, e acho que temos uma vaga para você no Chase.

— Quanta gentileza, Jason, mas já aceitei outra oferta.

— Nenhum dos nossos rivais, espero?

— Não ainda, mas dê-me um pouco de tempo — disse Nat, sorrindo.

 

 

 

Quando Fletcher contou a Matt Cunliffe que seu sogro tinha sido levado para o hospital, surpreendeu-se ao ver que ele não era de todo solidário.

— Crises domésticas ocorrem com muita frequência — Comentou Cunliffe rapidamente. — Nós todos temos famílias com que nos preocupar. Você tem certeza de que isso não pode esperar até o fim da semana?

— Sim, tenho certeza — disse Fletcher. — Devo mais a este homem do que a qualquer pessoa, com exceção de meus pais.

Fletcher mal tinha deixado a sala de Bill Alexander e já havia mais do que uma súbita mudança na atmosfera. Ele assumiu que, no momento de seu retorno, aquela mudança deveria ter-se espalhado como uma doença contagiosa entre todos os funcionários.

Ele telefonou da estação Penn para Annie. Ela parecia calma, mas aliviada por sabê-lo a caminho de casa. Quando Fletcher pisou no trem, subitamente percebeu que não havia trazido nenhum trabalho com ele pela primeira vez desde que entrara para a firma. Usou o trajeto para pensar sobre seu próximo movimento depois do encontro com Bill Alexander, mas não chegou a nenhuma conclusão definitiva até a hora em que o trem parou em Ridgewood.

Fletcher tomou um táxi da estação e não ficou surpreso ao encontrar o carro da família estacionado do lado de fora da porta de casa, duas malas já no porta-malas e Annie caminhando pela entrada com Lucy ao colo. Que diferente de sua mãe, pensou ele, mas ainda bem parecida. Ele riu pela primeira vez naquele dia.

No caminho para Hartford, Annie relatou todos os detalhes que obtivera com sua mãe. Harry tinha sofrido um ataque cardíaco poucos minutos depois de chegar ao Capitólio, naquela manhã, e fora levado às pressas para o hospital. Martha estava ao seu lado, e Jimmy, Joanna e as crianças já estavam a caminho, vindo de Vassar.

— O que é que dizem os médicos?

— Que ainda é muito cedo para qualquer conclusão, mas papai tem sido alertado de que se não andar mais devagar, isso poderá se repetir, e da próxima vez pode ser fatal.

— Andar devagar? Harry não sabe o que estas palavras querem dizer! Ele é do tipo que corre contra o tempo.

— Ele já foi assim — disse Annie — mas mamãe e eu vamos dizer-lhe hoje à tarde que ele tem de retirar sua candidatura ao Senado para a próxima eleição.

 

 

 

Bill Russell olhou para o outro lado da mesa e viu Nat e Tom.

— Isso é o que eu sempre quis — disse ele. — Vou fazer sessenta anos daqui a dois anos e sinto que ganhei o direito de não ter de estar abrindo o banco às dez todas as manhãs e fechando a porta da frente antes de ir para casa todas as noites. A idéia de vocês dois trabalhando juntos, para citar o bom livro, enche meu coração de alegria.

— Eu desconheço o bom livro — disse Tom — mas nós nos sentimos da mesma forma, pai. Então, por onde você quer que comecemos?

— É claro que estou ciente do fato de o banco ter perdido lugar para seus concorrentes durante os últimos anos, talvez porque, como uma empresa familiar, tenhamos colocado uma ênfase maior nas relações com os clientes do que na linha de sustentação. Alguma coisa que seu pai aprovaria, Nat, o que é talvez a causa de ele já ter uma conta conosco há mais de trinta anos.

Nat fez sinal de estar de acordo.

— Vocês também devem estar alertados para uma ou duas aproximações de outros bancos, com vistas a nos assumirem, mas não é assim que eu gostaria de terminar minha carreira com o Russell, como um braço anônimo de alguma grande corporação. Então, Vou lhes dizer o que tenho em mente. Quero que ambos passem os seus primeiros seis meses destrinchando o banco de cima a baixo. Vou dar-lhes carte blanche para faz erem quaisquer perguntas, abrirem quaisquer portas, lerem quaisquer arquivos, estudarem quaisquer contas. Ao final desses seis meses, vocês me farão um relatório do que precisa ser feito. E não pensem uma única vez em tentar aplacar meus sentimentos, porque sei que se o Banco Russell quiser sobreviver até o próximo século ele vai precisar de uma completa reformulação. Portanto, qual é sua primeira pergunta?

— Posso ter as chaves da porta da frente? — perguntou Nat.

— Por quê? — perguntou o Sr. Russell.

— Porque dez da manhã é um pouquinho tarde para a equipe de um banco progressista abrir.

Quando Tom reconduziu-os de carro a Nova York, ele e Nat conversaram sobre a divisão de suas responsabilidades.

— Papai ficou emocionado por você ter recusado o Chase para unir-se a nós — disse Tom.

— Você fez o mesmo sacrifício quando deixou o Bank of America.

— Sim, mas o velho sempre acreditou que eu assumiria quando ele chegasse aos cinquenta, sessenta anos, e eu estava pronto para avisá-lo de que não estava disposto a isso.

— E por que não? — inquiriu Nat.

— Não tenho a visão ou as ideias que se exigem para recuperar um banco; mas você tem.

— Recuperar? — disse Nat.

— Sim, não vamos nos enganar. Você estudou o balanço, então sabe muito bem que estamos aqui para ajudar o suficiente, para permitir que meus pais mantenham seu padrão de vida. Mas os lucros não cresceram nos últimos anos; a verdade é que o banco precisa das suas qualificações especiais, mais do que de um eficiente "bando de cavalos" como eu. Então é importante estabelecer uma coisa antes que se constitua num problema: em termos bancários, pretendo reportar-me a você como diretor-executivo.

— Mas ainda será necessário que você venha a ser presidente do conselho diretor assim que seu pai se aposentar.

— Por quê? — perguntou Tom. — Se você vai estar tomando obviamente todas as decisões estratégicas?

— Porque o banco leva o seu nome, e isso ainda importa numa cidade como Hartford. É igualmente importante que os clientes nunca descubram que o diretor-executivo está atrás dos bastidores.

— Concordarei com isso sob uma condição — disse Tom — que todos os salários, bônus e quaisquer outras considerações sejam destinados em bases iguais.

— Isso é muito generoso de sua parte — disse Nat.

— Não, não é — disse Tom. — Perspicaz, pode ser, mas não generoso, porque cinquenta por cento de você vão trazer um retorno muito mais alto do que cem por cento de mim.

— Não se esqueça de que acabo de perder uma fortuna do Morgan — disse Nat.

— E sem dúvida aprendeu com a experiência.

— Tal como fizemos quando lutávamos contra Ralph Elliot.

— Agora ressurge um nome do passado. Tem alguma ideia do que ele anda aprontando? — perguntou Tom enquanto virava para a Route 95.

— A última coisa que eu soube é que depois de Stanford ele tinha passado a ser um ad vogado que não perde uma só causa em Nova York.

— Eu não gostaria de ser um dos seus clientes — disse Tom.

— Ou ir contra ele naquela matéria — disse Nat.

— Bem, pelo menos isso é alguma coisa com que não precisamos nos preocupar a respeito.

Nat olhou pela janela embaçada quando eles estavam atravessando o Queens.

— Não tenha tanta certeza assim, Tom, porque se alguma coisa tivesse de dar errado, ele gostaria de representar o lado oposto.

 

 

 

Todos se sentaram em círculo, em volta da cama dele, conversando sobre coisas as mais diversas, exceto o que estava em suas mentes. A única exceção era Lucy, que continuava firmemente no meio da cama e tratava o avô como se ele fosse um cavalo de balanço. As crianças de Joanna estavam mais retraídas. Fletcher não podia acreditar quão depressa Harry Junior estava crescendo.

— Agora, antes que eu fique muito cansado — disse Harry — preciso trocar uma palavra em particular com Fletcher.

Martha conduziu a família para fora do quarto, claramente ciente do que seu marido queria discutir com o genro.

— Vejo você mais tarde em casa — disse Annie, tirando dali a relutante Lucy.

— E depois deveremos seguir de volta para Ridgewood — lembrou-a Fletcher. — Não posso me dar ao luxo de chegar tarde ao trabalho amanhã.

Annie anuiu enquanto fechava a porta.

Fletcher puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do senador. Ele não se importava com nenhum bate-papo, pois seu sogro parecia cansado.

— Pensei muito sobre o que estou para dizer — disse o senador — e a única pessoa com quem discuti esse assunto foi Martha, e ela concorda inteiramente comigo. E como muitas coisas de um passado de trinta anos, não posso ter certeza de que isso não tenha sido ideia dela, em primeiro lugar.

Fletcher sorriu. Como se parece com Annie, pensou ele, enquanto esperava que o senador continuasse.

— Prometi a Martha que não vou concorrer à reeleição.

O senador fez uma pausa.

— Vejo que você não está apresentando nenhum protesto, então devo concluir que concorda com minha esposa e minha filha sobre este assunto.

— Annie prefere que o senhor viva até uma idade avançada, em vez de morrer fazendo um discurso no Senado, ainda que importante — disse Fletcher — e eu concordo com ela.

— Sei que você tem razão, Fletcher, mas, por Deus, eu vou sentir falta disso!

— E eles sentirão sua falta, senhor, como pode ver pelas flores e cartões que estão neste quarto. Amanhã, a esta hora, eles terão enchido todos os outros quartos deste andar e estarão transbordando pelo corredor.

O senador ignorou o cumprimento, claramente não desejando fugir do assunto.

— Quando Jimmy nasceu, tive a louca impressão de que um dia ele tomaria o meu lugar, talvez até indo a Washington e representando o estado. Mas não demorou muito para que eu compreendesse que isso nunca aconteceria. Eu não poderia estar mais orgulhoso dele, mas ele não foi talhado para o cargo público.

— Ele fez um trabalho fantástico ao conseguir me eleger presidente — disse Fletcher. — Duas vezes.

— De fato, ele o fez — disse Harry — mas Jimmy deveria se restringir ao compartimento do motor, porque ele não foi feito para dirigir.

Ele fez uma pausa.

— Mas, então, doze anos atrás conheci um jovem numa partida de futebol entre Hotchkiss e Taft, que eu soube que mal podia esperar para ser motorista. Um encontro incidental, que nunca esquecerei.

— Nem eu, senhor — disse Fletcher.

— À medida que os anos passavam, vi aquele garoto crescer e se transformar numa excelente pessoa, e estou orgulhoso de que ele seja agora meu genro e o pai de minha neta. E antes que eu fique muito sentimental, Fletcher, acho que tenho de chegar ao ponto, para o caso de um de nós dois adormecer.

Fletcher riu.

— Logo anunciarei que não vou concorrer à reeleição para o Senado.

Ele levantou a cabeça e olhou diretamente para Fletcher.

— Eu gostaria, ao mesmo tempo, de dizer como estou orgulhoso de anunciar que meu genro, Fletcher Davenport, concordou em concorrer no meu lugar.


28


NÃO SE PASSARAM SEIS MESES até que Nat descobrisse por que o Banco Russell tinha falhado em aumentar seus lucros por mais de dez anos. Quase todos os princípios de um banco moderno haviam sido ignorados. O Banco Russell ainda vivia na idade do livro-razão manuscrito, contas personalizadas e uma sincera crença arraigada de que o computador estava para cometer mais enganos do que um ser humano, e era, portanto, uma perda de tempo e de dinheiro. Nat entrava e saía do escritório do Sr. Russell três ou quatro vezes por dia, apenas para descobrir que alguma coisa com a qual eles haviam concordado pela manhã havia sido revertida à tarde. Isso geralmente acontecia sempre que um antigo membro do funcionalismo era visto deixando o mesmo escritório uma hora mais tarde, com um sorriso no rosto. Tom ficava sempre com as rebarbas; na verdade, se ele não estivesse lá para explicar a seu pai por que as mudanças se faziam necessárias, talvez nunca houvesse um relatório de seis meses a apresentar.

Nat chegava em casa, na maioria das noites, exausto e, algumas vezes, enfurecido. Ele alertou Su Ling que possivelmente houvesse uma confrontação quando seu relatório fosse finalmente apresentado. E ele não tinha completa certeza de que ainda seria o vice-presidente do banco se o presidente do conselho diretor não fosse capaz de apoiar quase todas as mudanças que ele estava recomendando. Su Ling não reclamava, embora tivesse acabado de organizar a vida dos três em sua casa nova, vendido o apartamento de Nova York, encontrado uma creche para Luke e se preparado para assumir, no outono, seu novo compromisso como professora de estatística da Universidade de Connecticut. A ideia de mudar-se de volta para Nova York não a atraía Entre uma coisa e outra, ela aconselhara Nat sobre quais computadores seriam mel hores em termos de custo-benefício para o banco, supervisionara suas instalações e dera aulas à noite para aqueles membros da equipe que apreciavam saber que ali h avia mais a aprender do que simplesmente pressionar um botão onde se lia "FUNCIONANDO".

Mas o maior problema de Nat era a crônica folha inchada de funcionários. Ele já havia mostrado ao chairman que o Banco Russell empregava, atualmente, um grupo de setenta e um funcionários, e que o Bennett, o outro único banco independente da cidade, oferecia os mesmos serviços com apenas trinta e nove.

Nat escreveu um relatório em separado sobre as implicações financeiras de uma folha de funcionários numerosa, sugerindo um programa de aposentadoria compulsória que, embora cortasse seus lucros pelos próximos três anos, seria altamente benéfica em longo prazo. Este era o ponto delicado sobre o qual Nat não estava desejoso de mexer. Porque, conforme havia explicado a Tom, depois do jantar com Su Ling, se eles esperassem por mais dois anos até que o Sr. Russell se aposentasse, todos fariam parte do grupo dos desempregados.

Assim que o Sr. Russell leu o relatório de Nat, agendou para sexta-feira, às seis da tarde, o demonstrativo. Quando Nat e Tom adentraram a sala do presidente do conselho diretor, eles o encontraram em sua mesa, escrevendo uma carta. Ele levantou os olhos quando entraram.

— Peço desculpas por dizer que não estou capacitado a prosseguir com suas recomendações — disse o Sr. Russell antes mesmo que seus dois vice-presidentes houvessem se sentado — porque não desejo despedir meus empregados, alguns dos quais conheci e com os quais trabalhei pelos últimos trinta anos.

Nat tentou sorrir ao pensar que estava sendo dispensado pela segunda vez em seis meses, e ficou conjeturando se Jason, do Chase, ainda teria uma vaga à sua disposição.

— Portanto, cheguei à conclusão — Continuou o chairman — de que se isso vai funcionar — ele apoiou as mãos no relatório, como que o abençoando — se alguém tem de sair sou eu.

Colocou sua assinatura ao final da carta que vinha escrevendo e entregou o pedido de demissão ao filho.

Bill Russell deixou o escritório às 6h12 daquela tarde, e nunca mais pisou no banco.

 

 

 

— Quais são suas qualificações para concorrer a um cargo público?

Fletcher olhou de sua poltrona no palco para baixo, onde estava um pequeno grupo de jornalistas. Harry sorriu. Era uma das dezessete perguntas e respostas que eles haviam preparado na tarde da véspera.

— Não tenho muita experiência — admitiu Fletcher, esperando desarmadamente — mas nasci, me criei e fui educado em Connecticut antes de ir para Nova York, onde entrei para uma das mais prestigiosas firmas de advocacia do país. Vim para casa a fim de colocar esses talentos a serviço das pessoas de Hartford.

— O senhor não sente que aos vinte e seis anos é um pouco jovem demais para dizer-nos como é que devemos dirigir nossas vidas? — perguntou uma jovem senhora, sentada na segunda fila.

— A mesma idade que eu tinha — disse Harry — e seu pai nunca reclamou. Um ou dois repórteres mais velhos sorriram, mas a jovem mulher não desistia facilmente.

— Mas o senhor tinha acabado de voltar de uma guerra mundial, senador, com três anos de experiência como oficial no front; portanto, permita-me perguntar: Sr. Davenport, o senhor queimou seu cartão de recruta durante o auge da Guerra do Vietnã?

— Não, não queimei — disse Fletcher. — Não fui recrutado, mas se houvesse sido, teria servido de boa vontade.

— O senhor pode prová-lo? — a jornalista atirou de volta.

— Não — disse Fletcher — mas se você lesse meu discurso durante o debate dos calouros em Yale, não teria dúvida dos meus sentimentos a respeito do assunto.

— Se você for eleito — perguntou outro membro da imprensa — seu sogro vai mexer os pauzinhos?

Harry dirigiu-lhe um olhar e viu que a pergunta havia incomodado Fletcher.

— Acalme-se — murmurou. — Ele só está fazendo seu serviço. Atenha-se à resposta que combinamos.

— Se eu tiver sorte o bastante de ser eleito — disse Fletcher — será loucura de minha parte não tirar vantagem da saudável experiência do senador Gates, e vou deixar de ouvi-lo apenas quando considerar que ele não tem mais nada para me ensinar.

— O que você sente sobre a Emenda Constitucional Kendrick, que atualmente está sendo debatida no país quanto às finanças?

A bola veio girando do lado esquerdo do campo e, certamente, esta não era uma das dezessete perguntas para as quais ele havia se preparado.

— Esta é um pouquinho difícil, não acha, Robin? — disse o senador. — Afinal de contas, Fletcher é...

— Até onde sei, como esta é uma cláusula que afeta os cidadãos mais idosos, acredito que discrimina aqueles que já se aposentaram e têm pensões fixas. Muitos de nós terão de se aposentar algum dia, e a única coisa dita por Confúcio de que me lembro é que "a sociedade civilizada é aquela que educa seus jovens e toma conta dos seus velhos". Se eu for eleito, quando a emenda do senador Kendrick à Constituição chegar diante do Senado, votarei contra. Leis ruins podem ser aprovadas numa sessão legislativa, mas depois leva-se anos para repeli-las e eu apenas votarei por uma carta que acredito possa ser administrada realisticamente.

Harry sentou-se em sua poltrona.

— Próxima pergunta — disse ele.

— No seu currículo, Sr. Davenport, que, devo dizer, impressiona muito bem, o senhor afirma ter-se demitido da Alexander Dupont & Bell de forma a poder concorrer nesta eleição.

— Correto — disse Fletcher.

— Teria um colega seu, o Sr. Logan Fitzgerald, se demitido na mesma ocasião?

— Sim, é fato.

— Existe alguma conexão entre a demissão dele e a sua?

— Nenhuma, que eu saiba — disse Fletcher firmemente.

— Aonde é que você quer chegar? — perguntou Harry.

— Apenas uma chamada do nosso escritório em Nova York, na qual eles me pedem para ir atrás... — replicou o jornalista.

— Anônima, sem dúvida — disse Harry.

— Não tenho permissão para revelar minhas fontes — o jornalista replicou, tentando o máximo não parecer afetado.

— Só para o caso de seu escritório em Nova York não ter-lhe dito quem era o informante, deixarei que o senhor saiba o seu nome assim que a coletiva com a imprensa houver terminado — devolveu Fletcher.

— Bem, acho que isso encerra tudo — disse Harry antes que outra pessoa pudesse fazer perguntas suplementares.

— Obrigado. Vocês terão notícias regulares do candidato nas coletivas semanais com a imprensa, durante a campanha, o que é muito mais do que eu já lhes dei.

— Aquela foi horrível — disse Fletcher quando eles deixaram o palco. — Preciso controlar meu temperamento.

— Você se saiu muito bem, meu garoto — disse Harry — e quando tivermos acabado com os bastardos, a única coisa de que eles se lembrarão sobre esta manhã é da sua resposta sobre a Emenda Kendrick para a carta de finanças. E, francamente, a imprensa é o menor dos nossos problemas.

Harry fez uma pausa.

— A batalha real vai começar quando descobrirmos qual é o candidato dos republicanos.

 

 

29


O QUE VOCÊ SABE sobre ela? — perguntou Fletcher enquanto eles desciam a rua juntos. Não havia muito que Harry não soubesse sobre Barbara Hunter, pois ela havia sido sua oponente nas duas últimas eleições, e um espinho perpétuo em sua garganta no decorrer dos anos.

— Ela tem quarenta e oito anos, nascida em Hartford, filha de um fazendeiro, educada no sistema escolar local e depois na Universidade de Connecticut, casada com um executivo de publicidade bem-sucedido, com três filhos, todos morando no estado, e atualmente ela é membro do Senado do Congresso.

— Alguma notícia ruim? — perguntou Fletcher.

— Sim, ela não bebe e é vegetariana, assim você deve visitar todos os bares e açougues do distrito eleitoral. E como qualquer um que tenha passado a vida na política local, ela fez sua cota de inimigos no caminho, e como mal conseguiu vencer a nomeação republicana nesta última corrida, você pode estar certo de que vários partidos ativistas não a queriam, em primeiro lugar. Mas, mais importante do que isso, ela perdeu as últimas duas eleições; portanto, nós a pintamos como perdedora.

Harry e Fletcher entraram na sede dos democratas, na Park Street, para descobrir que a janela da frente estava coberta com pôsteres e fotos do candidato, algo com que Fletcher ainda não estava habituado. O Homem Certo para a Tarefa. Ele não havia pensado muito no slogan até que os entendidos em mídia explicaram que era bom ter as palavras "certo" e "homem" na mensagem quando o oponente era uma mulher republicana. "Subliminar", explicaram eles.

Harry subiu as escadas para a sala de conferências no primeiro andar e sentou-se à cabeceira da mesa. Fletcher bocejou ao sentar-se, embora eles só estivessem em campanha há sete dias e ainda havia vinte e seis outros para continuar. "Os enganos que você comete hoje serão história amanhã de manhã; seus triunfos, esquecidos nos jornais da tarde. Acalme-se!", era uma das máximas mais repetidas por Harry.

Fletcher olhou em Torno, para o grupo reunido, uma combinação de profissionais e ama dores da estação, Harry não mais sendo seu candidato, mas, ao contrário, sendo pressionado a ser presidente do conselho diretor da campanha. Essa era a única concessão que Martha havia feito, mas ela tinha dito a Fletcher para mandá-lo para casa no instante em que demonstrasse o menor sinal de fadiga. À medida que o tempo passava, era mais e mais difícil ater-se às instruções de Martha, pois era Harry quem sempre projetava o roteiro.

— Alguma coisa nova ou arrasadora? — perguntou Harry, enquanto olhava para a equipe em volta, um ou dois deles já tendo desempenhado um papel em todas as suas sete vitoriosas eleições. No último encontro ele havia vencido Barbara Hunter por mais de cinco mil votos, mas, com as pesquisas colocando-os em pé de igualdade, estavam prestes a descobrir quantos votos haviam sido pessoais.

— Sim — disse uma voz do outro lado da mesa.

Harry sorriu para Dan Mason, que tinha estado com ele em seis de suas sete campanhas. Dan havia começado a trabalhar como redator, e agora estava encarregado da imprensa e das relações públicas.

— O chão é todo seu, Dan.

— Barbara Hunter acabou de soltar um release para a imprensa desafiando Fletcher para um debate. Direi a ela que se dane, e acrescento que é um sinal de que alguém está desesperado e sabe que vai perder. Isso é o que você sempre fez.

Harry ficou em silêncio por uns instantes.

— Você está certo, Dan, eu fiz — disse ele casualmente — mas só porque eu era o titular e tratei-a como uma estrela em ascensão. De qualquer modo, eu não tinha nada a ganhar num debate, mas a situação mudou agora que estamos lançando um candidato desconhecido; então, acho que precisamos discutir a ideia mais profundamente, antes de chegarmos a alguma conclusão. Quais são as vantagens e as desvantagens? Opiniões? — disse ele.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo: — Dá ao nosso homem uma visibilidade maior.

— Dá a ela o centro das atenções.

— Prova que temos um debatedor fora de série, o qual, jovem como é, surgirá como uma surpresa.

— Ela conhece os problemas locais. Poderíamos parecer inexperientes e mal-informados.

— Nós parecemos jovens, dinâmicos e cheios de energia.

— Ela parece experiente, cautelosa e tarimbada.

— Nós representamos a juventude de amanhã.

— Ela representa a mulher de hoje.

— Fletcher poderia "varrer o chão" com ela.

— Ela ganha o debate e nós perdemos a eleição.

— Bem, até agora ouvimos os pontos de vista do comitê. Talvez seja hora de considerar os do candidato — disse Harry.

— Ficarei bem feliz de debater com a Sra. Hunter — disse Fletcher. — As pessoas deduzirão que ela impressiona mais, simplesmente devido aos seus recordes e à minha falta de experiência; portanto, devo tentar transformar isso em vantagem para nós.

— Mas e se ela brilhar mais do que você nas questões locais e fizer com que você pareça não estar preparado? — perguntou Dan. — Então a eleição terá acabado em uma noite! Não pense nisso como uma população de mil pessoas num edifício... Tente lembrar-se de que o acontecimento todo será coberto pela rádio e pela televisão locais, e é certo que encherá a primeira página do Hartford Courant na manhã seguinte.

— Mas isso poderia funcionar como vantagem para nós, na mesma medida — disse Harry.

— Concordo — disse Dan — mas é um risco e tanto que vamos correr.

— Quanto tempo tenho para pensar a respeito? — perguntou Fletcher.

— Cinco minutos — disse Harry — talvez dez, porque se ela já distribuiu uma declaração à imprensa, eles vão querer saber nossa resposta imediata.

— Não podemos dizer que precisamos de um pouco mais de tempo para pensar a respeito?

— Claro que não! — disse Harry. — Isso ia parecer como se estivéssemos debatendo o debate, e no fim você teria que desistir, e ela ganharia de ambos os modos. Ou recusamos firmemente ou aceitamos com entusiasmo. Talvez devêssemos votar isso — acrescentou, olhando em torno da mesa.

— Quem é a favor?

Onze mãos se ergueram.

— Contra?

Quatorze mãos se levantaram.

— Bem, isso está encerrado.

— Não, não está — disse Fletcher.

Todos os que estavam sentados em torno da mesa pararam de conversar e olharam para o candidato.

— Estou grato pelas suas opiniões, mas não pretendo passar minha carreira política sendo dirigido por um comitê, especialmente quando a votação é assim tão fechada. Dan, por favor, publique uma declaração dizendo que estou deliciado em aceitar o desafio da Sra. Hunter, e espero debater as questões reais com ela em vez de ter uma postura política em que os republicanos parecem ter-se especializado desde o início desta campanha.

Fez-se um momento de silêncio antes que a sala eclodisse em aplausos espontâneos. Harry sorriu.

— Aqueles a favor do debate?

Todas as mãos se ergueram.

— Aqueles contra?

Nenhum.

— Declaro a moção aprovada por unanimidade.

— Por que tivemos uma segunda votação? — perguntou Fletcher a Harry, quando saíram da sala.

— Dessa maneira podemos dizer à imprensa que a decisão foi unânime.

Fletcher sorriu enquanto eles se dirigiam à estação. Outra lição aprendida.

Uma equipe de doze pessoas fazia pesquisa na estação todas as manhãs, a maioria delas carregando folhetos enquanto o candidato apertava as mãos dos passageiros madrugadores que deixavam a cidade. Harry havia-lhe dito para concentrar-se naqueles que iam para a estação porque eles quase certamente moravam em Hartford, ainda que aqueles que saíssem do trem provavelmente não votassem naquele distrito eleitoral.

— Oi, sou Fletcher Davenport...

Às oito e trinta eles atravessaram a estrada seguindo para o Mario's Coffee e comeram sanduíches de ovos com bacon. Assim que Mario lhes deu sua opinião sobre como estava indo a eleição, eles partiram para o distrito de seguros da cidade, para apertar mãos de executivos à medida que chegavam a seus escritórios. No carro, Fletcher colocou uma gravata de Yale, com a qual ele sabia que muitos executivos se identificariam.

— Olá, sou Fletcher Davenport...

Às nove e trinta retornaram à sede da campanha para uma coletiva com a imprensa logo pela manhã. Barbara Hunter já tinha agendado a sua para uma hora antes, de modo que Fletcher sabia que haveria apenas um assunto na agenda naquela manhã. No caminho de volta, ele substituiu a gravata de Yale por alguma coisa mais neutra, enquanto ouvia as manchetes atualizadas da manhã para ter certeza de que não seria surpreendido por uma bobagem nova. A guerra tinha eclodido no Oriente Médio. Ele deixaria aquela para o presidente Ford, porque não ia acabar na primeira página do Hartford Courant.

— Oi, sou Fletcher Davenport...

Quando Harry abriu a coletiva com a imprensa pela manhã, ele disse aos jornalistas reunidos, antes mesmo de eles poderem fazer as perguntas, que havia sido uma de cisão unânime aceitar o desafio da Sra. Hunter cara a cara. Quando questionado sobre o debate — local, tempo, formato — Harry disse que isso ainda estava para ser decidido, pois haviam recebido o desafio apenas naquela manhã, mas acrescentou: — Não antevejo nenhum problema.

Harry sabia muito bem que o debate não acarretaria senão problemas.

Fletcher foi surpreendido pela resposta de Harry quando perguntado sobre quais seriam as chances do candidato. Ele esperava que o senador falasse sobre seus talentos para o debate, sua experiência legal e sua perspicácia política, mas, em vez disso, Harry disse: — Claro, naturalmente que a Sra. Hunter começa com uma vantagem embutida. Todos sabemos que ela é uma debatedora requintada, com uma grande experiência sobre as questões locais, mas considero típico da maneira honesta e aberta de Fletcher abordar esta eleição que ele concordou em levar avante.

— Isso não o fará correr um risco tremendo, senador? — perguntou outro jornalista.

— É certo que sim — admitiu Harry — mas como o candidato já mostrou, se ele não fosse homem o suficiente para encarar a Sra. Hunter, como pode o público esperar que ele aceite o desafio maior que é representá-lo?

Fletcher não se lembrava de ter dito nada parecido, embora ele não discordasse do sentido.

Uma vez terminada a coletiva com a imprensa, e o último jornalista tendo saído, Fletcher disse: — Pensei que o senhor houvesse dito que Barbara Hunter era uma debatedora pobre, que leva muito tempo para responder às perguntas.

— Sim, isso é exatamente o que eu disse — admitiu Harry.

— Então por que o senhor disse aos jornalistas que...

— Tudo é uma questão de expectativa, meu garoto. Agora eles acham que você não está pronto — respondeu Harry — e que ela limpará o chão com você; portanto, se você apenas administrar o caso, eles o declararão vencedor.

— Oi, sou Fletcher Davenport... — ficava repetindo automaticamente, como uma música da parada de sucessos que ele não conseguia tirar da cabeça.


30


NAT FICOU DELICIADO quando Tom esticou a cabeça fora da porta e perguntou: — Posso trazer um convidado para jantar esta noite?

— Claro, negócios ou prazer? — perguntou Nat, olhando por cima da mesa.

Tom hesitou.

— Eu gostaria de acreditar que se trata dos dois.

— Mulher? — disse Nat, agora mais interessado.

— Decididamente, uma mulher.

— Nome?

— Julia Kirkbridge.

— E o que...

— Isso é o suficiente para o terceiro grau, você poderá fazer-lhe todas as perguntas que quiser à noite, porque ela é mais do que capaz de tomar conta de si mesma.

— Obrigada pela advertência — disse Su Ling quando Nat surgiu com uma nova convida da nos seus únicos momentos de privacidade, depois que ele chegava em casa.

— Eu devia ter telefonado, não devia? — perguntou ele.

— Teria facilitado um pouco a vida, mas eu espero que você esteja ganhando milhões a gora.

— Alguma coisa parecida... — disse Nat.

— O que sabemos sobre ela? — perguntou Su Ling.

— Nada — disse Nat. — Você conhece Tom; quando se trata de sua vida privada, ele é a inda mais fechado do que um banqueiro suíço, mas como ele está desejando que nós a conheçamos, só podemos viver de esperanças.

— O que aconteceu com aquela ruiva espetacular chamada Maggie? Eu pensava que...

— Desapareceu, como todas as outras. Você consegue se lembrar de tê-lo visto convidando alguém uma segunda vez para juntar-se a nós no jantar?

Su Ling pensou sobre o assunto por um momento e depois admitiu: — Agora que você menciona, não consigo. Suponho que possa ter algo a ver com a minha comida.

— Não, não é sua comida, mas receio que você mereça a culpa.

— Eu? — disse Su Ling.

— Sim, você. O pobre homem tem estado implorando por você há anos, então cada pessoa com quem ele sai é trazida para o jantar, de modo que Tom possa comparar...

— Ah, não, nada daquela velha história outra vez... — disse Su Ling.

— Não é uma velha história, Florzinha, é o problema.

— Mas ele nunca fez nada mais do que dar-me um beijo na bochecha.

— E ele nunca o fará. Eu me pergunto quantas pessoas estão apaixonadas por alguém que nunca beijaram nem na face.

Nat desapareceu no andar de cima para ler para Luke, enquanto Su Ling arrumava a mesa para quatro talheres. Ela estava polindo um copo extra, quando a campainha da porta soou.

— Você pode atender, Nat? Estou um pouco ocupada!

Não se ouviu qualquer resposta, então ela retirou o avental e foi até a porta da frente.

— Oi! — disse Tom enquanto se inclinava e beijava a face de Su Ling, o que trouxe as palavras de Nat à sua mente.

— Esta é Julia — disse ele.

Su Ling olhou para cima, vendo uma elegante mulher, que era quase tão alta quanto Tom, e quase tão esguia quanto ela, embora seus cabelos loiros e olhos azuis sugerissem uma origem na Escandinávia, mais do que o Oeste.

— Quanto prazer em conhecê-la! — disse Julia. — Sei que é chover no molhado, mas tenho realmente ouvido falar muito de você.

Su Ling sorriu enquanto apanhava o casaco de pele de Julia.

— Meu marido — disse ela — está entretido com...

—... gatos pretos — disse Nat enquanto surgia ao lado de Su Ling. — Eu estava lendo O gato no chapéu para Luke. Oi, eu sou Nat e você deve ser Julia.

— Sim, sou — disse ela, dando um sorriso para Nat, que relembrou a Su Ling que o utra mulher descobrira que seu marido era atraente.

— Vamos à sala de visitas tomar um drinque — disse Nat. — Coloquei um champanhe no gelo.

— Estamos celebrando alguma coisa? — perguntou Tom.

— Outra que não seja você ter sido capaz de encontrar alguém que deseja acompanhá-lo no jantar, não, não consigo pensar em nada especial, a menos que...

Julia riu.

— A menos que incluamos uma chamada dos meus advogados para dizer que a tomada de posse do Bennett está sendo fechada.

— Quando foi que você ouviu falar nisso? — perguntou Tom.

— No final da tarde Jimmy telefonou para dizer que eles assinaram todos os documentos. Tudo que temos de fazer agora é pôr a mão no cheque.

— Você não mencionou isso quando entrou — disse Su Ling.

— A ideia de Julia chegando para jantar tirou isso da minha mente — disse Nat — mas discuti o assunto com Luke.

— E qual foi a abalizada opinião dele? — perguntou Tom.

— Ele achou que um dólar era muito mais do que se devia precisar para se pagar por um banco.

— Um dólar? — disse Julia, em eco.

— Sim, o Banco Bennett vem declarando uma perda pelos últimos cinco anos, e se você excluir as premissas bancárias, seu débito em longo prazo não está mais coberto pelos bens; portanto, Luke talvez prove estar certo se eu não puder dar a volta a tempo.

— Que idade tem Luke? — perguntou Julia.

— Dois, mas ele já tem uma compreensão própria de assuntos financeiros.

Julia riu.

— Então diga-me mais sobre o banco, Nat.

— É só o começo — explicou ele enquanto servia o champanhe. — Ainda tenho meus olhos sobre o Morgan.

— E quanto isso vai lhe custar? — perguntou Su Ling.

— Em torno de trezentos milhões, ao preço de hoje, mas na hora em que eu estiver pronto para fazer uma oferta poderá estar acima de um bilhão.

— Não posso pensar nesse tipo de somas — disse Julia. — Está muito distante da minha liga.

— Agora isso não é verdade, Julia — disse Tom. Não se esqueça de que tenho estudado as contas de sua empresa, e diferente do Bennett, você fez um lucro pelos últimos cinco anos.

— Sim, mas apenas acima de um milhão — disse Julia, dando-lhe aquele sorriso novamente.

— Com licença — disse Su Ling — Vou verificar o jantar.

Nat sorriu para sua esposa e depois olhou para a convidada de Tom. Ele já tinha a sensação de que Julia voltaria uma segunda vez.

— O que você faz, Julia? — perguntou Nat.

— O que você acha que eu faço? — recebeu de volta o mesmo sorriso sedutor.

— Eu diria que você é modelo, possivelmente uma atriz.

— Nada mal. Cheguei a ser modelo quando era mais jovem, mas pelos últimos seis anos tenho estado envolvida com propriedades.

Su Ling reapareceu.

— Se vocês quiserem ir para a mesa, o jantar está quase pronto.

— Propriedades? — disse Nat enquanto acompanhava sua convidada até a sala de jantar. — Eu nunca teria adivinhado.

— Mas é verdade! — disse Tom. — E Julia quer que administremos sua conta. Há um lugar que ela está pretendendo comprar em Hartford, e ela estará depositando quinhentos mil dólares no banco, no caso de ela ter de se mudar depressa.

— Por que você nos escolheu? — perguntou Nat enquanto a esposa colocava uma tigela de sopa de lagosta na mesa.

— Porque meu falecido marido negociou com o Sr. Russell a respeito do local do Shopping Robinson. Embora tivéssemos feito a proposta mais baixa na ocasião e falhado em assegurar o negócio, o Sr. Russell não nos cobrou — disse Julia. — Nem mesmo uma multa.

— Isso parece mesmo o meu pai — disse Tom.

— Então meu falecido marido disse que se tivéssemos de procurar qualquer coisa nesta área, deveríamos trabalhar apenas com o Banco Russell.

— As coisas mudaram desde então — disse Nat — o Sr. Russell se aposentou e...

— Mas o filho ainda está lá como presidente do conselho diretor.

— E fica em cima para ter certeza de um serviço profissional. Pensei que você estaria interessada em saber que o shopping tem sido um grande sucesso, mostrando um excelente retorno para os investidores. Então, o que a traz a Hartford?

— Li que há planos para um segundo shopping do outro lado da cidade.

— Isso é certo. O conselho está colocando a terra à venda, com uma licença de desenvolvimento.

— Quanto eles estão pedindo? — perguntou Julia enquanto tomava a sopa.

— Em torno de três milhões, é a voz corrente, mas acho que provavelmente terminará entre 3,3 e 3,5, depois do sucesso do local do Robinson.

— Mas 3,5 é nosso limite máximo — disse Julia. — Minha empresa é cautelosa por natureza e, em todo caso, sempre existe um outro negócio dobrando a esquina.

— Talvez pudéssemos fazê-la interessar-se por algumas das outras propriedades que representamos — disse Nat.

— Não, obrigada — disse Julia. — Minha empresa especializou-se em shoppings, e uma das muitas coisas que meu marido me ensinou é nunca se distanciar do seu campo de conhecimento.

— Homem de visão, seu falecido marido.

— Ele era — disse Julia. — Mas acho que já falamos de negócios o suficiente para uma noite; então, assim que meu dinheiro tenha sido depositado, talvez o banco deseje representar-me no leilão? Entretanto, exijo completa discrição, não quero ninguém mais sabendo por quem é que você está propondo. É outra coisa que meu falecido marido me ensinou.

Ela voltou sua atenção para a dona da casa.

— Posso ajudá-la em alguma coisa?

— Não, obrigada — disse Su Ling. — Nat é desajeitado, mas é capaz de carregar quatro pratos para a cozinha e, quando ele se lembra, de servir o vinho ocasionalmente nos copos.

— Como foi que vocês dois se conheceram? — perguntou Nat enquanto, sinalizado pelo comentário de Su Ling, ele começou a reencher os copos.

— Você não acreditaria — disse Tom — mas nós nos conhecemos no local de uma edificação.

— Tenho certeza de que deve haver uma explicação mais romântica.

— Quando eu estava checando sobre a terra do conselho, no último domingo, passei pela Julia, que estava correndo.

— Pensei que você fosse insistente a respeito de discrição — disse Nat, sorrindo.

— Nem todo mundo, vendo uma mulher praticando corrida numa obra num domingo de manhã, pensaria que ela deseje comprá-lo.

— Na verdade — disse Tom — foi preciso que eu a levasse para jantar no Cascade, para descobrir o que ela pretendia realmente.

— Incorporação de propriedades deve ser um mundo duro para uma mulher — disse Nat.

— Sim, é — disse Julia — mas eu não o escolhi, fui escolhida. Você sabe, quando deixei a faculdade em Minnesota, desfilei um tempo como modelo, antes de conhecer meu marido. Foi ideia dele que eu procurasse por esses locais quando estivesse cor rendo, e então o notificasse. No período de um ano, eu sabia exatamente o que ele estava procurando e, dentro de dois anos, tinha uma cadeira no conselho.

— Então agora você dirige a companhia.

— Não — disse Julia — deixo isso para o meu chairman e o diretor-executivo, mas continuo com a maioria das ações.

— Então você decidiu se envolver depois da morte do seu marido?

— Sim, esta era uma ideia dele; ele sabia que só tinha uns dois anos de vida, e como nós não tivemos filhos, ele decidiu ensinar-me sobre os negócios. Acho até que se surpreendeu com a aluna dedicada em que me transformei.

Nat começou a retirar os pratos.

— Alguém pronto para um creme brülée? — perguntou Su Ling.

— Eu não poderia comer outra vez; aquele carneiro estava tão macio — disse Julia. — Mas não deixe que isso o impeça — acrescentou ela, dando uma batidinha no estômago de Tom.

Nat olhou para Tom e pensou que jamais o vira tão contente. Ele suspeitava de que Julia ainda voltaria para o jantar uma terceira vez.

— É mesmo esta hora? — perguntou Julia, olhando para o relógio de pulso. — Foi uma noite maravilhosa, Su Ling, mas, por favor, me perdoe, tenho uma reunião de conselho às dez da manhã; então, preciso ir embora.

— Claro, naturalmente — disse Su Ling, levantando-se do seu lugar. Tom ergueu-se de sua cadeira e acompanhou Julia até o corredor para ajudá-la com o casaco. Ele beijou Su Ling na bochecha, agradecendo pela noite maravilhosa.

— Eu só sinto que Julia tenha de voltar correndo a Nova York. Da próxima vez será em minha casa.

Nat olhou para Su Ling e sorriu, mas ela não respondeu. Nat descobriu-se rindo enquanto fechava a porta da frente.

— Que tipo de mulher! — disse ele quando se juntou à esposa na cozinha e apanhou um pano de prato.

— Ela é uma falsa — disse Su Ling.

— O que você quer dizer? — perguntou Nat.

— Exatamente o que eu disse, ela é uma falsa, falso sotaque, roupas falsas e sua falsa história era, no todo, muito limpa e arrumada. Não faça nenhum negócio com ela.

— O que pode acontecer de mau se ela depositar quinhentos mil dólares no banco?

— Eu apostaria um mês de salário que os quinhentos mil nunca vão aparecer.

Embora Su Ling nunca levantasse o assunto outra vez naquela noite, quando Nat chegou ao escritório na manhã seguinte ele pediu à secretária que vasculhasse todos os detalhes financeiros possíveis sobre a Kirkbridge & Cia., de Nova York. Ela voltou uma hora mais tarde, com uma cópia do seu relatório anual e a última declaração financeira. Nat checou minuciosamente o relatório e seus olhos finalmente chegaram ao que interessava. Eles tinham obtido um lucro acima de um milhão no ano anterior, e todos os números se encaixavam com aqueles que Julia mencionou durante o jantar. Ele então pesquisou o conselho de diretores. A Sra. Julia Kirkbridge estava listada como diretora, abaixo do chairman e do diretor-executivo. Mas devido à apreensão de Su Ling, ele decidiu levar a pesquisa um passo à frente. Discou o número do telefone do escritório deles em Nova York, sem solicitar ajuda da secretária.

— Kirkbridge & Cia., em que posso servi-lo? — atendeu a secretária.

— Bom-dia, seria possível falar com a Sra. Kirkbridge?

— Não, receio que não, senhor, ela se encontra numa reunião do conselho.

Nat olhou par a seu relógio e sorriu, eram dez e vinte e cinco.

— Mas se o senhor deixar seu telefone, pedirei que ela o chame de volta assim que esteja livre.

— Não, não será necessário — disse Nat.

Assim que ele colocou o telefone de volta no gancho, ele tocou novamente.

— É Jeb, das contas novas, Sr. Cartwright. Achei que gostaria de saber que acabamos de receber uma transferência telegráfica do Chase, de uma soma de quinhentos mil dólares, para ser creditada na conta da Sra. Julia Kirkbridge.

Nat não pôde resistir e telefonou para Su Ling, contando as novidades.

— Ela ainda é uma falsa — repetiu sua esposa.

 

 

31


CARA OU COROA? — perguntou o moderador. — Coroa — disse Barbara Hunter.

— É coroa! — disse o moderador. Ele olhou para a Sra. Hunter e concordou. Fletcher não podia reclamar, porque ele havia pedido cara — ele o fazia sempre; portanto, ficou conjeturando apenas sobre que decisão ela tomaria. Será que ela ia falar primeiro porque aquilo determinaria, ao final da tarde, que Fletcher falasse menos? Se, por outro lado...

— Falarei primeiro — disse ela.

Fletcher suprimiu o sorriso. O lançar da moeda se havia provado irrelevante; se ele houvesse ganho, teria escolhido falar em segundo lugar.

O moderador sentou-se à mesa, ao centro do palco. A Sra. Hunter sentou-se à direita e Fletcher à esquerda, refletindo a ideologia de seus dois partidos. Mas escolher onde eles deveriam sentar-se havia sido o menor dos problemas. Nos últimos dez dias tinham acontecido algumas discussões sobre onde o debate deveria acontecer, a que horas deveria começar, quem deveria ser o moderador e até a altura da tribuna da qual eles deveriam falar, porque Barbara Hunter media um metro e oitenta e oito e Fletcher dois metros e um. No final concordou-se que devia haver duas tribunas de diferentes alturas, uma de cada lado do palco.

O moderador aceito pelos dois era o presidente do conselho diretor do Departamento de Jornalismo da Universidade de Connecticut, no campus de Hartford. Ele se levantou do lugar.

— Boa-noite, senhoras e senhores. Meu nome é Frank McKenzie e serei o moderador para o debate desta noite. O formato do programa chama a Sra. Hunter para começar com uma declaração de seis minutos de abertura, seguida pelo Sr. Davenport. Sinto que deveria advertir os dois candidatos de que farei soar este sino aos cinco minutos — ele apanhou um sininho ao lado e o fez soar firmemente, o que causou uma ri sada na audiência e ajudou a quebrar a tensão — para lembrar que ambos terão sessenta segundos para terminar. Eu o farei soar novamente depois dos sessenta segundos, quando vocês deverão pronunciar sua última sentença. Na sequência de sua declaração de abertura, ambos os candidatos irão, então, responder às perguntas de um painel selecionado, durante quarenta minutos. Finalmente, a Sra. Hunter primeiro, seguida pelo Sr. Davenport, farão cada qual seus comentários de encerramento por três minutos. Agora chamo a Sra. Hunter para abrir os procedimentos.

Barbara Hunter levantou-se do seu lugar e caminhou lentamente até sua tribuna, no lado direito do palco. Ela havia calculado que se noventa por cento da audiência estivesse assistindo ao debate pela televisão, ela se dirigiria ao maior número possível de eleitores em potencial se falasse primeiro, especialmente porque uma série de jogos mundiais estava pronta para ser levada ao ar, às oito e trinta, quando a maioria dos telespectadores mudaria, automaticamente, de canal. Uma vez que ambos já teriam feito seus comentários de abertura àquela hora, Fletcher sentiu que aquilo não seria tão significativo. Mas ele também queria falar em segundo lugar, de modo que pudesse apanhar alguns dos pontos comentados pela Sra. Hunter Durant e sua declaração e, se ao final da noite ele tivesse a última palavra, talvez fosse a única coisa de que a audiência se lembraria.

Fletcher ouviu atentamente a previsível e ensaiada abertura da Sra. Hunter. Ela se segurava firmemente à tribuna enquanto falava.

— Nasci em Hartford. Casei-me com um homem de Hartford, meus filhos nasceram no Hospital St. Patrick e todos eles ainda moram na capital do estado; portanto, sinto estar qualificada para representar as pessoas desta grande cidade.

O primeiro romper de aplausos brotou do andar. Fletcher checou a compacta audiência cuidadosamente e notou que metade aplaudia, enquanto a outra permanecia em silêncio.

Entre as responsabilidades de Jimmy para a noite estava a destinação das cadeiras. Havia sido feito um acordo no qual cada partido receberia trezentos ingressos, ficando outros quatrocentos reservados para o grande público. Jimmy e um pequeno grupo de ajudantes passaram horas apressando seus adeptos a trabalhar pelos quatrocentos lugares livres, mas Jimmy compreendeu que os republicanos também seriam assíduos em exercer o mesmo trabalho, e que, portanto, sempre acabariam em meio a meio. Fletcher se perguntou quantas pessoas genuinamente neutras estar iam sentadas no auditório.

— Não se preocupe com o local — Harry havia lhe dito. — A audiência verdadeira estará assistindo pela televisão, e lá estão aqueles que você precisa influenciar.

Olhe para o centro das lentes da câmera, e pareça sincero — acrescentou ele com um sorriso.

Fletcher fez anotações, à medida que a Sra. Hunter delineava seu programa, e embora o conteúdo fosse sensível e valesse a pena, ela tinha um tipo de pronunciamento que permitia que a mente vagasse. Quando o moderador fez soar o sino aos cinco minutos, a Sra. Hunter ainda estava na metade do seu discurso, e até fez uma pausa enquanto voltava umas duas páginas. Fletcher ficou surpreso que uma tão experiente batalhadora não houvesse calculado que um ocasional irromper de aplausos cortaria uma parte do seu tempo. Os comentários de abertura de Fletcher foram calculados até um pouquinho mais que cinco minutos. "Melhor terminar uns segundos antes do que ter de correr atrás do fim", Harry o havia advertido muitas vezes. As perorações da Sr a. Hunter foram concluídas poucos segundos depois de o segundo sino tocar, fazendo parecer que ela havia sido cortada para menos. Entretanto, ela ainda recebeu aplausos entusiasmados de metade da audiência e o reconhecimento cortês dos restantes.

— Agora pedirei ao Sr. Davenport que faça sua declaração de abertura. Fletcher lentamente se aproximou da tribuna no seu lado do palco, sentindo-se como um homem a poucos passos da forca. Ele estava de alguma forma aliviado pela calorosa recepção que obtivera. Colocou as cinco páginas em espaço duplo e letras grandes sobre a tribuna e checou a sentença inicial, apesar de na verdade ter repassado o discurso tantas vezes que, virtualmente, o sabia de cor. Olhou para a audiência abaixo e sorriu, alertado de que o moderador não acionaria o relógio até que pronunciasse sua primeira palavra.

— Acho que cometi um grande erro em minha vida — Começou ele. — Não nasci em Hartford. — A onda de risadas o ajudou. — Mas o fiz por merecer: me apaixonei por uma garota de Hartford quando tinha apenas quatorze anos.

Risadas e aplausos se seguiram. Fletcher relaxou pela primeira vez e pronunciou o resto de seus comentários iniciais com uma confiança que esperava escondesse sua juventude. Quando o sino para os cinco minutos soou, ele estava pronto para começar suas perorações. Completou-as com vinte segundos de sobra, tornando redundante o sino final. Os aplausos que ele recebeu foram muito maiores do que quando o cumprimentaram ao se aproximar pela primeira vez da tribuna, mas, então, a declaração de abertura não era senão o fim do primeiro round.

Ele olhou para Harry e Jimmy, que estavam sentados na primeira fila. Seus sorris os sugeriam que ele havia sobrevivido à escaramuça inicial.

— Chegou a hora da sessão de perguntas — disse o moderador — que durará quarenta minutos. Os candidatos deverão dar respostas breves. Começarei por Charles Lockhart, do Hartford Courant.

— Os dois candidatos acreditam que o sistema educacional subsidiado deva ser reformado? — perguntou secamente o editor local.

Fletcher estava bem preparado para esta pergunta, uma vez que havia surgido uma e outra vez no local das reuniões e era objeto regular dos editoriais do jornal do Sr. Lockhart. Ele foi convidado a responder uma vez que Hunter houvera falado primeiro.

— Jamais deveria haver uma discriminação que tornasse mais difícil para alguém de background pobre entrar para a faculdade. Não é suficiente acreditar em qualidade; devemos insistir em igualdade de oportunidade.

Isso foi aprovado com muitos aplausos e Fletcher sorriu para a audiência.

— Boas falas — respondeu a Sra. Hunter, cortando os aplausos — mas vocês aí irão também esperar bons atos. Eu participei dos conselhos escolares, portanto você não terá de me ouvir falar sobre discriminação, Sr. Davenport, e se eu tiver sorte bastante de ser eleita senadora, serei a favor da legislação que apoia os reclamos de todos os homens — fez uma pausa — e mulheres por oportunidades iguais.

Ela permaneceu atrás da tribuna enquanto seus partidários começavam a se animar. Ela voltou a olhar para Fletcher.

— Talvez alguém que tenha tido o privilégio de ter sido educado em Hotchkiss e Yale não seja capaz de arcar completamente com isso.

Maldita!, pensou Fletcher, esqueci de dizer que Annie se sentou num conselho escolar — e eles tinham acabado de matricular Lucy na Escola Elementar de Hartford, uma escola pública local. Quando havia doze, apenas, na audiência, ele se lembrou o tempo todo.

Perguntas sobre impostos locais, funcionalismo hospitalar, transportes públicos e crime se seguiram, previsivelmente. Fletcher recuperou-se da ovação da abertura e começou a sentir que a sessão terminaria num empate, até que o moderador chamou para a última pergunta.

— Os candidatos se consideram verdadeiramente independentes ou as políticas serão ditadas pela máquina do partido e seu voto no Senado irá depender dos pontos de vista dos políticos aposentados?

O inquiridor era Jill Bernard, âncora de fim de semana de um programa de auditório da rádio local, que parecia apresentar Barbara Hunter quase todos os dias.

A Sra. Hunter respondeu imediatamente.

— Todos vocês neste auditório sabem que eu tive de lutar centímetro a centímetro do caminho para ganhar a indicação do meu partido, e ao contrário de alguns, isso não me foi oferecido na bandeja. Na verdade, eu tive de lutar por todas as coisas da minha vida, uma vez que meus pais não podiam ter colheres de prata. E deixem-me lembrar de que não hesitei em permanecer firme nas questões sempre que acreditasse que meu partido estava errado. Isso nem sempre me tornou popular, mas ninguém jamais duvidou da minha independência. Se fosse eleita para o Senado, eu não ficaria ao telefone todos os dias pedindo conselhos sobre como votar. Eu tomarei as decisões e as manterei.

Ela terminou sob aplausos entusiásticos.

O nó em seu estômago, o suor em suas mãos e a fraqueza em suas pernas tinham voltado todos juntos enquanto Fletcher tentava reunir seus pensamentos. Olhou para a audiência para ver cada olhar penetrando nele.

— Nasci em Farmington, apenas a poucos quilômetros deste auditório. Meus pais são ativos contribuintes, de longa data, com a comunidade de Hartford, através de seus trabalhos profissionais e voluntários, em particular no Hospital St. Patrick.

Ele olhou para seus pais, que estavam sentados na quinta fila. A cabeça de seu pai mantinha-se bem erguida; a mãe, porém, estava cabisbaixa.

— Minha mãe trabalhou como voluntária em tantos conselhos que pensei que talvez fosse órfão; mas, esta noite, ambos vieram aqui para me apoiar. Sim! eu fui para Hotchkiss, e a Sra. Hunter está certa. Foi um privilégio. Sim, eu fui para Yale, uma grande universidade de Connecticut. Sim, eu vim a ser presidente do conselho estudantil da faculdade, e sim, fui editor da Law Review, razão pela qual fui convidado a entrar para um dos mais prestigiosos escritórios de advocacia de Nova York. Não peço desculpas por nunca ter ficado satisfeito com o segundo lugar. E fiquei igualmente deleitado de poder deixar tudo aquilo de lado, de modo que pudesse retornar a Hartford e fazer alguma coisa pela comunidade onde fui criado. Por falar nisso, com o salário que o estado está me oferecendo, não serei capaz de ter muitas colheres de prata e, além do mais, ninguém está me oferecendo qualquer coisa de bandeja.

A audiência estourou em aplausos espontâneos. Ele esperou que os aplausos terminassem antes que elevasse a voz a um quase sussurro.

— Não vamos disfarçar aonde este questionamento pretendia chegar. Estarei regularmente ao telefone com meu sogro, o senador Harry Gates? Espero que sim; sou casado com sua única filha.

Mais risadas se seguiram.

— Mas deixem-me lembrar de algo que vocês já sabem sobre Harry Gates. Ele serviu a este distrito eleitoral por vinte e oito anos, com honra e integridade, num tempo em que estas palavras pareciam ter perdido seu significado, e, francamente — disse Fletcher, virando o rosto para sua rival republicana — nenhum de nós vale tanto para tomar seu lugar. Mas se eu for eleito, aposto que tirarei vantagem de sua sabedoria, sua experiência e sua visão; apenas um egoísta de antolhos não o faria. Deixem-me também tornar clara uma coisa — disse ele, voltando o rosto para a audiência. — Eu serei a pessoa que os representará no Senado.

Fletcher voltou ao seu lugar com mais da metade da audiência em pé, animadíssima. A Sr a. Hunter tinha feito um erro em atacá-lo no ponto onde ele não precisava de preparação. Ela tentou recobrar-se com suas palavras de encerramento, mas o estrago já estava feito.

Quando o moderador disse "Eu gostaria de agradecer aos dois candidatos", Fletcher fez o que Harry havia recomendado na hora do almoço do domingo anterior.

Ele imediatamente se encaminhou para a oponente, apertou-lhe a mão e fez uma pausa para permitir que o fotógrafo do Courant registrasse o momento.

No dia seguinte, a foto dos dois dominava a primeira página e atingia exatamente o que Harry havia esperado — a imagem do homem de 2,01m como uma torre à frente da mulher de 1,88m.

— E não sorria, mostre-se sério — ele tinha acrescentado. — Precisamos que eles se esqueçam de quão jovem você é.

Fletcher leu as palavras abaixo da fotografia — nada entre eles. O editorial dizia que ele havia tido domínio de si mesmo no debate, mas Barbara Hunter ainda liderava as pesquisas de opinião por dois por cento, faltando apenas nove dias.


32

 


VOCÊ SE IMPORTA que eu fume?

— Não, é somente Su Ling que não aprova o hábito.

— Acho que ela também não me aprova — disse Julia Kirkbridge ao acender seu isqueiro.

— Você não pode se esquecer de que ela foi criada por uma mãe muito conservadora — disse Tom. — Ela inclusive desaprovou Nat no início, mas voltará atrás, especialmente quando eu disser a ela...

— Ih! — disse Julia. — Por enquanto, isso deve permanecer como nosso segredinho.

Ela tragou profundamente e depois acrescentou: — Gosto de Nat; vocês dois fazem um bom time, obviamente.

— Fazemos, mas estou ansioso para fechar esse negócio enquanto ele está de férias, especialmente depois do seu triunfo sobre nosso mais velho rival.

— Posso entendê-lo — disse Julia. — Mas como é que você classifica as nossas chances?

— Está começando a parecer que existem apenas duas ou três ofertas sérias na parada. As restrições, dispostas no documento de oferta do conselho, devenam eliminar quaisquer vaqueiros.

— Restrições?

— O conselho está exigindo não apenas que as ofertas sejam em hasta pública, mas o montante total tem de ser pago na assinatura.

— Por que eles estão insistindo nisso? — perguntou Julia, sentando-se na cama. — No passado, sempre depositei dez por cento e assumi que teria pelo menos vinte e oito dias antes que tivesse de completar.

— Sim, esta seria a prática normal, mas este local passou a ser uma batata quente política. Barbara Hunter está insistindo em que ali não existem atrasos, porque um ou dois outros negócios caíram recentemente quando foi descoberto que um especulador não tinha os recursos necessários para completar o acordo. E não se esqueça de que estamos a poucos dias apenas da eleição; então eles querem ter a certeza de que não haverá retornos mais tarde.

— Isso significa que terei de depositar outros três milhões com você até a próxima sexta-feira? — perguntou Julia.

— Não, se colocarmos a propriedade no seguro, o banco cobrirá com um empréstimo de curto prazo.

— Mas o que acontece se eu renegar o negócio? — perguntou Julia.

— Para nós não importa — disse Tom. — Nós o venderíamos por uma oferta mais baixa, e ainda teríamos os seus quinhentos mil dólares para cobrir qualquer perda.

— Bancos! — disse Julia enquanto amassava seu cigarro e deslizava para baixo dos lençóis. — Vocês nunca perdem.

 

 

 

— Quero que você me faça um favor — disse Su Ling quando o avião começou a descer no Aeroporto de Los Angeles.

— Sim, Florzinha, estou ouvindo.

— Veja se você consegue passar uma semana inteira sem telefonar para o banco. Não se esqueça de que é a primeira grande viagem de Luke.

— Minha também — disse Nat, pondo seu braço em torno do filho. — Eu sempre quis visitar a Disneylândia.

— Agora pare de brincar comigo. Você fez um trato, e espero que o cumpra.

— Eu gostaria de ficar de olho no negócio que Tom está tentando fechar com a empresa de Julia.

— Você não acha que talvez Tom gostasse de ter um triunfo próprio, que não houvesse sido visto e revisto pelo grande Nat Cartwright? Afinal de contas, foi você que decidiu confiar nela.

— Entendo seu ponto de vista — disse Nat enquanto Luke agarrava-se a ele, quando o avião pousava. — Mas você se importa se eu telefonar para ele na sexta-feira à tarde, apenas para descobrir se nossa oferta sobre o Projeto Cedar Wood foi bem-sucedida?

— Não, desde que você espere até sexta-feira à tarde.

— Papai, vamos viajar no Sputnik?

— Pode apostar! — disse Nat. — Para que mais você iria a Los Angeles?

Tom encontrou-se com Julia descendo do trem de Nova York e levou-a de carro direto à prefeitura. No trajeto, cruzaram com os faxineiros que saíam, depois do debate da noite anterior. Tom tinha lido no Hartford Courant que mais de mil pessoas haviam comparecido ao evento, e o editorial do jornal havia sugerido que não havia muito para pegar entre os dois candidatos. Ele sempre votara nos republicanos no passado, mas pensou que Fletcher Davenport soava como um homem decente.

— Por que chegamos tão cedo? — perguntou Julia, tirando-o dos seus pensamentos.

— Quero me familiarizar com a planta do recinto — explicou Tom — de modo que quando as ofertas começarem, possamos apanhá-los de surpresa. Não se esqueça, a coisa toda poderá acabar em poucos minutos.

— Onde você acha que deveríamos sentar?

— Da metade para trás, à direita. Eu já disse ao leiloeiro qual sinal pretendo usar quando estiver fazendo minha oferta.

Tom olhou na direção do palco e observou quando o leiloeiro montou a tribuna, colocou um adesivo no microfone e olhou para a pequena audiência abaixo, conferindo se todas as coisas estavam em seus lugares.

— Quem são todas estas pessoas? — perguntou Julia, olhando o edifício a sua volta.

— Uma mistura de mesários do conselho, incluindo-se o diretor-executivo, o Sr. Cooke, representantes dos leiloeiros e pessoas estranhas que não têm nada melhor a fazer numa sexta-feira à tarde. Mas, do que posso perceber, existem apenas três concorrentes sérios.

Tom checou seu relógio de pulso.

— Talvez devêssemos nos sentar.

Julia e Tom sentaram-se da metade para trás da sala, no final da fileira. Tom apanhou a brochura de vendas no assento ao seu lado, e quando Julia tocou sua mão, ele não pôde deixar de pensar em quantas pessoas descobririam que eles eram amantes.

Ele virou a página e estudou a planta do arquiteto, de como o shopping proposto deveria parecer. Ele ainda o estava analisando 304

através da pequena impressão, quando o leiloeiro indicou estar pronto para começar. Ele pigarreou.

— Senhoras e senhores — disse ele — existe apenas um item a ser leiloado esta tarde, um lugar de primeira ao norte da cidade, conhecido como Cedar Wood. O conselho da cidade está oferecendo esta propriedade já com aprovação para um desenvolvimento comercial. Os termos de pagamento e as exigências regulamentares estão detalhados na brochura que vocês encontraram em suas poltronas. Devo enfatizar que se qualquer dos termos não for cumprido, o conselho se reserva o direito de retirar-se da transação.

Ele fez uma pausa para permitir que suas palavras calassem sobre a audiência.

— Tenho uma oferta aberta de dois milhões — declarou, e imediatamente olhou na direção de Tom.

Embora Tom não dissesse nada e não desse nenhum sinal, o leiloeiro anunciou: — Tenho uma oferta de dois milhões, duzentos e cinquenta mil.

O leiloeiro fez menção de olhar em volta da sala, a despeito do fato de saber exatamente onde os três sérios concorrentes estavam sentados. Os olhos dele pousaram sobre um advogado local, muito conhecido, na segunda fila, que levantou a brochura.

— Dois milhões e quinhentos mil! É com o senhor!

O leiloeiro voltou sua atenção para Tom, que não deu nem uma piscada.

— Dois milhões, setecentos e cinquenta mil!

Seus olhos voltaram ao advogado, que esperou um tempo antes de levantar novamente a brochura.

— Três milhões — disse o leiloeiro, e imediatamente olhou na direção de Tom antes de dizer: — Três milhões, duzentos e cinquenta mil!

Voltou ao advogado, que parecia hesitar. Julia apertou a mão de Tom entre as poltronas.

— Acho que conseguimos!

— Três milhões e quinhentos mil? — sugeriu o leiloeiro, os olhos fixos no advogado.

— Ainda não — murmurou Tom.

— Três milhões e quinhentos mil — repetiu o leiloeiro, esperançosamente. — Três milhões e quinhentos mil — repetiu quando a brochura foi erguida pela terceira vez.

— Maldito! — disse Tom, tirando os óculos. — Acho que nós dois nos demos o mesmo limite máximo!

— Então vamos até três milhões e seiscentos — disse Julia. — Desta forma, pelo menos, fica remos sabendo.

Apesar de Tom ter tirado os óculos — sinal de que ele não estava mais fazendo oferta — o leiloeiro podia ver que o Sr. Russell estava em conversação profunda com uma senhora sentada próximo a ele.

— Terminamos de fazer ofertas, senhor? Ou... Tom hesitou e depois disse: — Três milhões e seiscentos mil.

O leiloeiro virou-se outra vez para o advogado, que havia colocado sua brochura sobre uma poltrona vazia ao seu lado.

— Posso bater três milhões e setecentos mil, senhor, ou todos terminamos? A brochura permaneceu sobre a poltrona.

— Alguma outra proposta? — perguntou o leiloeiro quando seu olho percorreu umas doze ou mais pessoas que estavam sentadas no salão que havia recebido mil outras na noite anterior.

— Última chance, caso contrário fecharei por três milhões e seiscentos mil! Ele levantou o martelo e, não recebendo resposta, bateu-o com um baque surdo.

— Vendido por três milhões e seiscentos mil dólares para o cavalheiro do fim da fila!

— Muito bem! — disse Julia.

— Vai custar a você outros cem mil — disse Tom — mas não poderíamos saber que tínhamos fixado, os dois, o mesmo limite máximo. Vou procurar os papéis e entregar o cheque, depois poderemos sair e comemorar.

— Que boa ideia! — disse Julia enquanto corria um dedo pelo lado de dentro de sua perna.

— Congratulações, Sr. Russell — disse o Sr. Cooke. — Seu cliente assegurou uma boa propriedade que, tenho certeza, em longo prazo, vai render-lhe um excelente retor no.

— Concordo — disse Tom enquanto preenchia o cheque de três milhões e seiscentos mil dólares e o entregava nas mãos do diretor-executivo do conselho.

— É o Banco Russell o principal nesta transação? — inquiriu o Sr. Cooke enquanto estudava a assinatura.

— Não, estamos representando um cliente de Nova York, que tem conta conosco.

— Sinto muito se pareço impertinente a esse respeito, Sr. Russell, mas os termos do acordo deixam claro que o cheque para o pagamento total tem de ser assinado pelo principal e não por seu representante.

— Mas nós representamos a empresa e estamos de posse do seu depósito.

— Então não devia ser tão difícil para seu cliente assinar o cheque em nome da empresa — sugeriu o Sr. Cooke.

— Mas por quê...? — Começou Tom.

— Não cabe a mim tentar compreender as maquinações nos nossos representantes eleitos, Sr. Russell, mas depois do fracasso do último ano sobre o contrato da Aldwich e as perguntas que tenho de responder diariamente à Sra. Hunter — ele deixou escapar um suspiro — não me foi dada nenhuma outra escolha senão manter o espírito do acordo ao pé da letra.

— Mas o que posso fazer na altura dos acontecimentos? — perguntou Tom.

— O senhor ainda tem até as cinco da tarde para apresentar um cheque assinado pelo principal. Se o senhor falhar em obtê-lo, a propriedade será oferecida pela menor oferta, por três milhões e quinhentos mil, e o conselho irá procurá-lo para que pague a diferença de cem mil dólares.

Tom correu para o fundo da sala.

— Você trouxe seu talão de cheques?

— Não — disse Julia. — Você me disse que o Banco Russell cobriria o montante total até eu transferir a diferença na segunda-feira.

— Sim, eu disse — Confirmou Tom, tentando não perder o controle. — Não há mais nada a fazer! — acrescentou. — Teremos de ir direto ao banco.

Ele olhou para o relógio de pulso.

— Maldição! — praguejou, dolorosamente ciente do fato de que se Nat não estivesse de férias ele teria visto a subcláusula e antecipado as consequências. Na curta distância da prefeitura ao Banco Russell, Tom explicou a Julia no que o Sr. Cooke estava insistindo.

— Isso significa que perdi o negócio, sem mencionar os cem mil dólares?

— Não, já pensei numa forma de dar a volta nisso, mas vou precisar do seu acordo.

— Se assegurar a propriedade — disse Julia — farei o que você aconselhar.

Assim que entraram no banco, Tom foi diretamente a seu escritório, pegou o telefone e pediu ao chefe de caixa que viesse ter com ele. Enquanto ele esperava que Ray Jackson chegasse, apanhou um talão de cheques e começou a escrever as palavras "três milhões e seiscentos mil dólares". O chefe de caixa bateu à porta e entrou no escritório do presidente do conselho diretor.

— Ray, preciso que você transfira três milhões e cem mil dólares para a conta da Sra. Kirkbridge.

O chefe de caixa hesitou por um momento.

— Precisarei de uma carta de autorização, antes de poder transferir um montante tão grande — disse ele. — Está acima do meu limite.

— Sim, claro — disse o chairman, e retirou um formulário-padrão de cima de sua gaveta e rapidamente preencheu-o com números relevantes.

Tom não comentou sobre o fato de que era também a maior soma que ele já havia autorizado. Passou o formulário adiante, para o chefe de caixa, que estudou os detalhes cuidadosamente. Ele parecia estar querendo questionar a decisão do chairman, e depois pensou melhor sobre o assunto.

— Imediatamente — enfatizou Tom.

— Sim, senhor — disse o chefe de caixa, e partiu tão rápido quanto chegou.

— Você tem certeza de que isso é sensato? — perguntou Julia. — Você não está correndo um ris co desnecessário?

— Temos a propriedade e seus quinhentos mil, portanto não podemos perder. Como Nat diria, é um negócio amarrado pelos pés e pelas mãos.

Ele virou o talão de cheques e pediu a Julia que o assinasse e escreveu em letras de forma o nome de sua empresa debaixo da assinatura dela. Depois de verificá-lo, Tom disse: — É melhor voltarmos o mais rápido possível à prefeitura.

Tom tentou permanecer calmo enquanto costurava no trânsito, cruzando a Main Street antes de subir correndo as escadas da prefeitura. Ele teve de esperar Por Julia, que lhe explicara ser difícil acompanhá-lo com saltos altos. Quando entraram novamente no edifício, Tom estava aliviado por descobrir o Sr. Cooke ainda sentado atrás de sua mesa, no final do corredor. O diretor-executivo levantou-se quando os viu dirigindo-se para ele.

— Entregue o cheque ao homem magrinho e careca — disse Tom, e sorriu, Julia seguiu as instruções de Tom ao pé da letra e recebeu um sorriso caloroso de volta.

O Sr. Cooke estudou o cheque atentamente.

— Parece estar em ordem, Sra. Kirkbridge; posso ver algum tipo de identificação?

— Certamente — disse Julia, e pegou sua carteira de motorista na bolsa. O Sr. Cooke analisou a foto e a assinatura.

— A foto não lhe faz justiça — disse ele. Julia sorriu. — Bom, agora tudo que resta a fazer é vocês assinarem todos os documentos necessários em nome de sua companhia.

Julia assinou o acordo do conselho em três vias e passou uma cópia para Tom.

— Acho melhor você guardar este documento até que o dinheiro seja transferido em segurança — murmurou ela.

O Sr. Cooke olhou seu relógio de pulso.

— Deverei, como a primeira atividade do dia, estar apresentando este cheque na segunda-feira pela manhã, Sr. Russell — disse ele — e eu ficaria agradecido se pudesse ser descontado o mais rápido possível, conforme seria conveniente. Não quero dar à Sra. Hunter nenhuma munição a mais do que é necessário a uns dias apenas das eleições.

— Será descontado no mesmo dia em que for apresentado — asseverou Tom.

— Obrigado, senhor — disse o Sr. Cooke a um homem com o qual ele tinha uma parti da regular de golfe em seu clube local.

Tom queria dar um abraço em Julia, mas refreou-se.

— Eu darei uma rápida corrida ao banco e deixarei que saibam que tudo transcorreu sem problemas, e depois Vou para casa.

— Você tem de ir realmente? — perguntou Julia. — Afinal, eles não apresentarão o cheque até segunda-feira pela manhã.

— Acho que isso está certo — disse Tom.

— Droga! — disse Julia, abaixando-se para tirar um dos seus sapatos. — Quebrei o salto ao subir correndo aqueles degraus.

— Sinto muito — disse Tom. — Isso foi culpa minha, eu não devia ter feito você correr de volta ao banco. Conforme aconteceu, tínhamos mais do que tempo suficiente.

— Isso não é problema — disse Julia, sorrindo — mas se você pudesse ir buscar o carro, eu o encontraria na base da escada.

— Sim, claro! — disse Tom. Ele correu de volta e atravessou o estacionamento.

Ele estava de novo do lado de fora da prefeitura poucos minutos mais tarde, mas Julia não podia ser vista em lugar algum. Será que havia voltado lá para dentro?

Esperou uns minutos, mas ela não apareceu. Ele xingou, levantou-se do carro estacionado ilegalmente e subiu correndo as escadas, entrando no edifício para encontrar Julia num dos telefones públicos. No momento em que o viu, ela desligou.

— Eu só estava dizendo a Nova York sobre seu golpe de mestre, querido, e eles instruíram nosso banco a transferir os três milhões e cem mil antes do fechamento do negócio.

— Bom ouvir isso — disse Tom enquanto eles corriam de volta juntos para o carro.

— Então, vamos jantar na cidade?

— Não, eu preferia voltar à sua casa e ter uma refeição calma, só nossa — disse Julia.

Quando Tom chegou à entrada da garagem, Julia já havia tirado seu casaco, e no momento em que chegaram ao quarto, no segundo andar, ela havia deixado uma carreira de roupas em seu caminho. Tom estava de cuecas e Julia retirava um par de meias de náilon quando o telefone tocou.

— Deixe-o — disse Julia ao cair de joelhos e retirar as cuecas dele.

— Ninguém responde — disse Nat — eles devem ter saído para jantar.

— Isso não pode esperar até estarmos de volta na segunda-feira?

— Suponho que sim — admitiu Nat, relutantemente — mas eu gostaria de saber se Tom conseguiu fechar o negócio do Cedar Wood e, se sim, por que preço.


33


"PERTO DEMAIS PARA DECLARAR", dizia a manchete na capa do Washington Post sobre a manhã da eleição. "Cabeça a cabeça" era a opinião do Hartford Courant. A primeira se referia à corrida nacional entre Ford e Carter para a Casa Branca, a segunda à batalha local entre Hunter e Davenport, para o Senado estadual. Incomodava Fletcher que eles sempre pusessem o nome dela primeiro, como Harvard antes de Yale.

— Tudo isso importa agora — disse Harry ao presidir a reunião do final da campanha, às seis horas, naquela manhã. — Está levando os que nos apoiam aos votos.

Já não havia mais necessidade de discutir tática, declarações à imprensa ou política. Uma vez que o primeiro voto fosse lançado, todos que se sentaram em volta da mesa teriam responsabilidades novas.

Uma equipe de quarenta pessoas estaria encarregada do conjunto de carros, armada com uma lista de eleitores que solicitava uma carona até o posto eleitoral mais próximo — o velho, o vacilante, o vagabundo e até alguns que tinham o indireto prazer de serem levados à uma só pelo gostinho de dizer que votavam na oposição.

A próxima equipe, e com certeza a maior, era daqueles que manuseavam o banco de apoio telefônico na sede.

— Eles cobrirão turnos de duas horas — disse Harry — e precisam passar seu tempo contactando aqueles partidários conhecidos para lembrá-los de que é o dia da eleição, e mais tarde ter certeza de que eles votaram. Algumas pessoas deste grupo precisam ser chamadas três ou quatro vezes antes que as urnas sejam la cradas às oito horas da noite — lembrou Harry.

O próximo grupo, que Harry descreveu como o dos amados amadores, corria todas as zonas eleitorais do município. Eles se manteriam atualizados minuto a minuto de como a votação estava transcorrendo em seu distrito, podiam ser responsáveis tanto por uns mil eleitores, como, no máximo, uns três mil, dependendo de sua área ser urbana ou rural.

— Eles são — Harry lembrou Fletcher — a espinha dorsal do partido. Desde o momento em que o primeiro voto é lançado, eles terão voluntários sentados do lado de fora das seções de votação, checando os nomes dos eleitores que vão às urnas. A cada trinta minutos as listas serão entregues aos candidatos, que as levarão de volta para casa, onde um registro total será colocado nas tabelas ou afixado a uma parede. Essa lista será, então, marcada: uma linha vermelha sublinhando o nome de todo eleitor republicano; azul para os democratas; e amarelo para os desconhecidos. Uma olhada nos quadros a qualquer hora e o fiscal da zona eleitoral saberá exatamente como a votação está progredindo. Como muitos dos capitães têm feito o mesmo trabalho, eleição após eleição, eles serão capazes de dar a você uma comparação imediata com qualquer uma passada. Os detalhes, uma vez expostos, serão, então, retransmitidos às sedes, de modo que os telefonistas não fiquem incomodando alguém comprometido que já tenha lançado seu voto.

— E o que o candidato deve ficar fazendo o dia inteiro? — perguntou Fletcher assim que Harry terminou seu resumo.

— Sair do caminho — disse Harry — razão pela qual você tem seu próprio programa. Você irá visitar as quarenta e quatro zonas eleitorais, porque todos eles esperam ver o candidato ao mesmo tempo durante o dia. Jimmy agirá enquanto você dirige, conhecido como "o amigo do candidato", porque nós certamente não podemos sustentar nenhum trabalhador gastando seu tempo com você.

Uma vez que a reunião havia terminado e cada qual havia saído apressado para suas novas tarefas, Jimmy explicou como Fletcher passaria o resto do dia — e falou com alguma experiência, porque passara pelos mesmos exercícios em relação a seu pai durante as últimas duas eleições.

— Primeiro os "não" — disse Jimmy quando Fletcher encontrou-se com ele em frente ao carro. — Como temos de visitar todas as quarenta e quatro casas entre agora e as oito da noite, quando as urnas serão fechadas, cada uma delas irá oferecer-lhe um café; entre 11h45 e 14h15 o almoço, e depois das 17h30, um drinque. Você tem de responder sempre com um "não" polido, mas firme, para qualquer tipo de oferta semelhante. Você só vai beber água no carro, e almoçaremos às 12h30, durante trinta minutos e voltaremos às sedes, de sorte que eles compreendam que têm um candidato, e você não vai comer outra vez até depois que as urnas sejam fechadas.

Fletcher pensou que pudesse ficar aborrecido, mas cada visita apresentou um novo elenco de personagens e um novo grupo de números. Na primeira hora, as folhas mostraram poucos nomes eliminados e os fiscais eram capazes de dizer rapidamente no que o resultado se comparava com o da eleição passada. Fletcher foi encorajado por todas as linhas azuis que haviam aparecido antes das dez horas, até que Jimmy o avisou de que o tempo transcorrido entre as sete e as nove sempre resultava em boas colheitas para os democratas, porque os trabalhadores industriais e os do turno da noite votavam antes de começar ou depois de terminar o trabalho.

— Entre as dez e as quatro, os republicanos deveriam liderar — acrescentou Jimmy —; depois das cinco até o fechamento das urnas, é sempre a hora que os democratas têm para se recuperar. Então, reze para que chova entre dez e cinco, seguido de uma boa-noite quente.

Ali pelas onze da manhã, todos os fiscais estavam relatando que a votação estava levemente baixa, comparada com a eleição anterior, quando havia fechado com cinquenta e cinco por cento.

— Qualquer coisa abaixo de cinquenta por cento, nós perdemos; acima de cinquenta e nós estamos bem — disse Jimmy —; acima de cinquenta e cinco e você ganha por uma rua.

— Por que isso? — perguntou Fletcher.

— Porque, incondicionalmente, é mais provável que os republicanos se mobilizem em qualquer clima; portanto, eles sempre se beneficiam de um baixo movimento. Ter certeza de que nosso povo vota tem sido sempre o maior problema dos democratas.

Jimmy manteve-se rigidamente dentro do programa. Um pouco antes de chegar, ele ofereceria a Fletcher um relatório com os fatos básicos sobre a pessoa que dirigia aquele distrito. Fletcher iria, então, guardar os pontos principais na memória antes de alcançar a porta da rua.

— Oi, Dick — disse quando a porta se abriu — foi bom você ter permitido usar sua casa novamente, porque, é claro, esta já é sua quarta eleição.

Ouça para responder, pensa, meio absorto.

— Como vai, Ben? Ainda está na faculdade? Ouça antes de responder.

— Senti muito o que aconteceu com o Buster... sim, o senador Gates me contou.

Ouça para responder:

— Mas você tem um cachorro novo agora, Buster Jr., não é verdade?

Jimmy também tinha sua própria rotina. Dez minutos depois ele sussurraria: "Acho que você deveria ir saindo." Depois de doze minutos, ele começaria a soar um pouco mais ansioso e com pensamentos automáticos, e após quatorze, passaria a ser insistente. Depois de apertar as mãos e acenar, sempre levava mais uns dois minutos antes que eles pudessem finalmente sair. Mesmo com Jimmy mantendo um rigoroso programa, eles ainda chegaram de volta aos postos da campanha vinte minutos atrasados para o almoço.

O almoço era um lanche, em vez de uma refeição, quando Fletcher agarrava um sanduíche de cima da mesa amontoada de comida. Uma vez ou outra ele dava uma mordida em seu sanduíche, enquanto Annie e ele iam de escritório em escritório, apertando a mão do maior número possível de trabalhadores.

— Oi, Martha, como está o Harry? — perguntou Fletcher quando entrou na sala de telefonia.

— Ele está do lado de fora do velho Palácio do Governo, fazendo o que sabe melhor: pondo o dedo na ferida, dispensando opiniões e se certificando de que as pessoas não se esqueceram de votar. Ele deve voltar a qualquer instante.

Trinta minutos depois, Fletcher passou por Harry no corredor, no trajeto de saída, quando Jimmy vinha insistindo em que se ainda fossem visitar todos os postos de escrutínio, então teriam de sair às 13h10.

— Bom-dia, senador — disse Fletcher.

— Boa-tarde, Fletcher, estou feliz que tenha achado tempo para comer.

A primeira casa que visitaram depois do almoço mostrou que os republicanos tinham chegado a uma leve liderança, que continuava a subir durante a tarde. Pelas cinco da tarde ainda havia quinze fiscais por visitar.

— Se você deixar de ver um deles — disse Jimmy — nós nunca ouviremos o fim da história e eles certamente não estarão lá por você da próxima vez.

Pelas seis horas, os republicanos tinham uma clara liderança e Fletcher tentou não demonstrar que estava se sentindo um pouco deprimido.

— Relaxe — disse Jimmy, e prometeu-lhe que as coisas melhorariam no período de umas duas horas; o que ele não mencionou é que, por aquela hora, à tarde, seu pai costumava ter uma pequena vantagem e, portanto, sabia que ia vencer. Fletcher invejava aqueles que estavam concorrendo por cadeiras onde pesavam os votos.

— Como seria mais fácil relaxar se você tivesse a certeza de que ia vencer ou de que ia perder.

— Eu não saberia dizer como é que a gente sente — disse Jimmy. — Papai venceu sua primeira eleição por cento e vinte e um votos antes que eu nascesse, e durante os últimos trinta anos obteve a maioria acima dos onze mil; mas ele sempre diz que se pessoas de sessenta e um anos de idade tivessem votado ao contrário, ele teria perdido naquela primeira eleição, e talvez nunca lhe fosse oferecida uma segunda chance.

Jimmy lamentou as palavras no instante em que as disse.

Às sete, Fletcher estava aliviado de ver outras poucas linhas azuis aparecendo sobre as folhas e, embora os republicanos ainda liderassem, a sensação era de que ia alcançar a reta final. Jimmy teve de cortar as últimas seis casas para onze minutos cada, e mesmo assim ele não chegou às duas últimas até depois de as urnas terem sido lacradas.

— E agora? — perguntou Fletcher enquanto saía da última casa. Jimmy olhou para o relógio.

— Voltaremos à sede e ouviremos as histórias mais incríveis que você já ouviu. Se você vencer, elas serão folclóricas, e se perder serão rejeitadas e rapidamente esquecidas.

— Como eu — Comentou Fletcher.

Jimmy acabou provando estar com a razão, porque de volta à sede todos falavam ao mesmo tempo, mas apenas os temerários e os naturalmente otimistas estavam desejando prever qual seria o resultado. A primeira urna a sair foi transmitida minutos de pois que o último voto havia sido lançado, e mostrava que Hunter tinha vencido por um fio de bigode. As urnas nacionais previam que Ford bateria Carter.

— A história se repete — disse Harry, ao adentrar o recinto. — Aqueles mesmos rapazes estavam me dizendo que Dewey seria o nosso próximo presidente. Eles também disseram que eu perderia por um fio de bigode, e nós cortamos aqueles dois bigodes fora; portanto, não se preocupe sobre urnas de palha, Fletcher; elas são para homens de palha.

— E que tal a reviravolta? — perguntou Fletcher, relembrando as palavras de Jimmy.

— É muito cedo para se ter certeza; certamente acima de cinquenta por cento, mas não cinquenta e cinco.

Fletcher olhou em volta para sua equipe e compreendeu que não havia mais por que ficar pensando sobre como conseguir os votos, pois chegara a hora de contá-los.

— Não há mais nada que possamos fazer agora — disse Harry — exceto ter certeza de que nossos caixas os registrarão na prefeitura antes das dez. Todos os outros deveriam descansar um pouco, e nós nos encontraremos mais tarde, no final da apuração.

Tenho a impressão de que vai ser uma noite comprida.

No carro, a caminho do Mario's, Harry disse a Fletcher que ele não podia ver uma porção de pontos no fato de eles darem a volta por cima muito antes das onze.

— Portanto, vamos fazer uma refeição calma e acompanhar os êxitos do partido no resto do país pela televisão do Mário.

Qualquer possibilidade de uma refeição calma evaporou-se quando Fletcher e Harry entraram no restaurante, e muitos dos que jantavam ficaram em pé e aplaudiram os dois homens até que chegaram a sua mesa no canto, como de costume. Fletcher estava satisfeito por descobrir que seus pais já tinham chegado e saboreavam um drinque.

— Então, o que posso recomendar? — perguntou Mário assim que todos se sentaram.

— Estou cansada demais, até para pensar a respeito — disse Martha. — Mário, por que você não vai em frente e escolhe para nós, já que nunca se incomodou com nossas opiniões antes?

— Claro, Sra. Kates — disse Mário — deixe comigo!

Annie levantou-se e acenou quando Jimmy e Joanna entraram. Quando Fletcher beijou a face de Joanna, olhou por cima do ombro para ver Jimmy Carter na televisão de Mário, chegando de volta ao seu rancho, e, momentos depois, o presidente Ford subindo as escadas do helicóptero. Ele se perguntou Que tipo de dia eles teriam passado.

— Sua pontualidade é perfeita — disse Harry quando Joanna sentou-se ao lado dele — acabamos de chegar. Como estão as crianças?

Em questão de minutos Mário voltou carregando dois grandes pratos de antepasto, enquanto um garçom o seguia com duas garrafas de vinho branco.

— O vinho é por conta da casa — declarou Mário. — Acho que vocês ganham esta — disse ele enquanto servia uma taça para Fletcher provar. Este era outro que também não estava querendo prever o resultado.

Fletcher colocou uma mão sob a mesa e tocou o joelho de Annie.

— Vou dizer umas poucas palavras.

— Você precisa? — disse Jimmy, enchendo ele mesmo um segundo copo de vinho. — Ouvi discursos seus o suficiente para o resto da vida.

— Serei breve, prometo — disse Fletcher ao erguer-se do seu lugar — porque todas as pessoas a quem quero agradecer estão nesta mesa. Deixe-me começar por Harry e Martha. Se eu não me houvesse sentado ao lado do seu terrível menininho no meu primeiro dia de escola, nunca teria conhecido Annie, ou até mesmo Martha e Harry, que mudaram minha vida por completo, embora, na verdade, eu tenha de culpar minha mãe, porque foi ela que insistiu em que eu fosse para a Hotchkiss em vez da Taft.

Que diferente teria sido minha vida se meu pai tivesse agido a sua maneira.

Ele sorriu para sua mãe.

— Portanto, obrigado.

Ele se sentou no instante em que Mário reapareceu a sua mesa, trazendo outra garrafa de vinho.

— Não me lembro de ter pedido esta — disse Harry.

— Você não pediu — disse Mário — é um presente de um cavalheiro sentado lá no fundo da sala.

— Isso foi muito gentil da parte dele — disse Fletcher — ele deixou o nome?

— Não. Tudo que ele disse é que sentia não ter podido ajudá-lo mais durante a eleição, mas ele estava envolvido num negócio. Ele é um dos nossos frequentadores — acrescentou Mário. — Acho que ele tem alguma coisa a ver com o Banco Russell.

Fletcher olhou através do restaurante e acenou com a cabeça quando Nat Cartwright levantou a mão. Ele tinha a impressão de já tê-lo visto em algum lugar antes.

 

 

34


COMO FOI QUE ELA CONSEGUIU? — perguntou Tom, as faces pegando fogo. — Ela escolheu bem sua vítima e, para ser justo, prestou meticulosa atenção aos detalhes.

— Mas isso não explica...

—... Como ela sabia que concordaríamos em depositar o dinheiro? Esta foi a parte fácil — disse Nat. — Uma vez que todas as outras peças se encaixaram direitinho no lugar, tudo que Julia teve de fazer foi chamar Ray e instruí-lo para transferir seu dinheiro para outro banco.

— Mas o Russell fecha às cinco, e a maior parte dos funcionários vai embora antes das seis, principalmente nos fins de semana.

— Em Hartford.

— Eu não entendo — disse Tom.

— Ela instruiu o chefe dos nossos caixas a transferir todo o montante para um banco em San Francisco, onde haviam apenas dois à tarde.

— Mas eu a deixei só por poucos minutos apenas.

— Tempo bastante para ela ligar para seu advogado.

— Então por que Ray não entrou em contato comigo?

— Ele tentou, mas você não estava no escritório e ela desligou o telefone quando você chegou em casa. E não se esqueça de que quando eu o chamei de Los Angeles eram três e trinta, mas eram seis e trinta em Hartford, e o Russell já estava fechado.

— Se pelo menos você não estivesse de férias.

— Aposto que ela levou isso muito bem em consideração — disse Nat.

— Mas como?

— Uma chamada para a minha secretária, pedindo uma reunião naquela semana, e ela ficou sabendo que eu estaria em Los Angeles; e, sem dúvida, você o confirmou tão logo a encontrou.

Tom hesitou.

— Sim, confirmei. Mas isso não explica por que Ray não recusou a ação de transferência.

— Porque você depositou o montante inteiro na conta dela, e a lei é muito clara num caso como este: se ela pedir uma transferência, não temos outra escolha senão seguir suas instruções. Tal como o advogado dela indicou, ao chamar Ray às quatro e quinze, hora em que você estava no caminho de volta para casa.

— Mas ela já tinha assinado um cheque e entregue ao Sr. Cooke.

— Sim, e se você tivesse voltado ao banco e informado nosso chefe de caixa sobre o tal cheque, ele teria se sentido capaz de segurar qualquer decisão até a segunda-feira.

— Mas como ela podia confiar tanto que eu autorizaria o dinheiro extra para ser colocado em sua conta?

— Ela não estava, por isso ela abriu uma conta conosco e depositou quinhentos mil dólares, supondo que nós acreditamos que ela tivesse mais do que fundos suficientes para cobrir a compra de Cedar Wood.

— Mas você me disse que a firma dela o retirou?!

— É verdade. Kirkbridge & Cia. está baseada em Nova York e obteve um lucro de mais de meio milhão de dólares no ano passado, mas, surpresa, surpresa, a acionista majoritária é a Sra. Julia Kirkbridge. E foi só porque Su Ling pensou que ela era falsa que eu telefonei para averiguar se a companhia estava tendo uma reunião de conselho naquela manhã. Quando o operador da mesa telefônica me informou que a Sra. Kirkbridge não podia ser perturbada, pois se encontrava numa reunião, a última peça do quebra-cabeça caiu perfeitamente no lugar. Portanto, isso é o que quero dizer sobre "com atenção ao detalhe".

— Mas ainda está faltando um elo — disse Tom.

— Sim, e isso é o que faz com que aquela artista deixe de ser uma pilantra ordinária para se transformar numa fraudadora verdadeiramente genial. Foi a emenda de Harry Gates para a carta financeira que a presenteou com um gancho que lhe permitiu saber que teríamos de atravessá-lo.

— Como é que o senador Gates entra na ação? — perguntou Tom.

— Foi ele que propôs a emenda sobre a fatura da propriedade, estipulando que todas as futuras transações em vigor com o conselho deveriam ser pagas in totum na hora da assinatura do acordo.

— Mas eu disse a ela que o banco cobriria qualquer extra que se provasse necessário.

— E ela sabia que não seria suficiente — disse Nat — porque a emenda do senador insistia em que o principal beneficiário — Nat abriu a brochura numa passagem que ele havia sublinhado — teria de assinar tanto o cheque como o acordo. No momento em que você correu de volta para perguntar se ela tinha o talão de cheques com ela, Julia soube que tinha você nas mãos.

— Mas e se eu dissesse que o negócio não se faria, a menos que ela depositasse todo o montante?

— Ela teria voltado a Nova York naquela noite, transferido seu meio milhão de volta ao Chase e você nunca mais ouviria falar dela novamente...

—... Uma vez que ela embolsou três milhões e cem mil dólares do nosso dinheiro e manteve os seus quinhentos mil dólares — disse Tom.

— Correto — disse Nat — e na hora em que os bancos abrirem em San Francisco, esta manhã, aquele dinheiro já terá desaparecido e ido para as ilhas Cayman, via Zurique ou, possivelmente, até Moscou, e, embora eu obviamente entre com moções, não acredito que devamos esperar rever um centavo dele.

— Ó Deus! — disse Tom. — Estou me lembrando de que o Sr. Cooke estará apresentando a quele cheque esta manhã, e eu lhe dei minha palavra de que poderia ser descontado no mesmo dia.

— Então devemos permiti-lo — disse Nat. — Uma coisa é o banco perder dinheiro; outra é ele perder sua reputação. Uma reputação que seu avô e seu pai levaram cem anos para estabelecer.

Tom olhou para Nat.

— A primeira coisa que preciso fazer é pedir demissão.

— A despeito de sua ingenuidade, esta é a última coisa que você deve fazer. A menos, naturalmente, que queira que todo mundo descubra que bobo você foi e, imediatamente, transfiram suas contas para o Fairchild's. Não, esta é uma comodidade que preciso ter agora; portanto, sugiro que você tire uns dias de folga. Na verdade, não mencione o projeto Cedar Wood novamente, e se alguém levantar o assunto, simplesmente o encaminhe para mim.

Tom permaneceu em silêncio por algum tempo antes de dizer: — A verdadeira ironia é que eu a pedi em casamento...

— E a genialidade dela é que ela aceitou — replicou Nat.

— Como é que você soube disso? — perguntou Tom.

— Era tudo parte do plano dela.

— Garota esperta! — disse Tom.

— Não tenho tanta certeza — disse Nat — porque se vocês houvessem se comprometido eu estaria pronto para oferecer a ela um lugar no conselho.

— Então ela o enganou também — disse Tom.

— Ah, sim — replicou Nat — Com seu conhecimento financeiro ela não ficaria de passagem, e se ela tivesse se casado com você, ela teria muito mais do que 3,1 milhões; portanto, deve haver algum outro homem envolvido — disse Nat, e fez uma pausa. — Suspeito de que era ele que estava do outro lado da linha. — Ele se virou para sair.

— Estarei em meu escritório, e lembre-se, nós só falaremos sobre esse assunto em particular, nada por escrito, e nunca ao telefone.

Tom concordou enquanto Nat fechava a porta calmamente atrás de si.

— Bom-dia, Sr. Cartwright — disse a secretária de Nat ao entrar em seu escritório —, o senhor teve boas férias?

— Sim, tive, obrigado, Linda — respondeu ele alegremente. — Não tenho certeza sobre quem se divertiu mais na Disneylândia, Luke ou eu. — Ela sorriu. — Algum problema real? — perguntou ele, inocentemente.

— Não, não creio. Os documentos finais para a negociação do Bennett chegaram na sexta-feira; portanto, a partir de 10. de janeiro o senhor estará dirigindo dois bancos.

Ou um, pensou Nat.

— Preciso falar com uma certa Sra. Julia Kirkbridge, diretora da...

— Kirkbridge & Cia. — disse Linda. Nat congelou. — O senhor pediu os detalhes da empresa dela um pouco antes de sair de férias.

— Claro que sim — disse Nat.

Nat estava ensaiando o que dizer à Sra. Kirkbridge quando sua secretária o interrompeu para avisá-lo de que ela estava na linha.

— Bom-dia, Sra. Kirkbridge, meu nome é Nat Cartwright, sou o diretor-executivo do Banco Russell em Hartford, Connecticut. Temos uma proposta que pensamos sua empresa talvez pudesse estar interessada em aceitar, e como Vou estar hoje à tarde em Nova York gostaria que a senhora me concedesse uns instantes.

— Posso chamá-lo de volta, Sr. Cartwright? — respondeu ela com um sotaque inglês afetado.

— Naturalmente — disse Nat. — Ficarei à espera do seu chamado.

Ele pensou quanto tempo levaria para que a Sra. Kirkbridge descobrisse que ele era o diretor-executivo do Banco Russell. Era óbvio que ela estava checando, porque ela nem sequer pediu o número de seu telefone. Quando o telefone tocou novamente, sua secretária disse: — A Sra. Kirkbridge na linha.

Nat olhou o relógio; haviam se passado sete minutos.

— Eu poderia vê-lo às duas e trinta esta tarde, Sr. Cartwright; está bom para o senhor ?

— Para mim está ótimo — disse Nat.

Ele colocou o telefone na base e discou para Linda.

— Precisarei de um bilhete para o trem das onze e meia para Nova York.

A próxima ligação de Nat foi para o Banco Rigg, em San Francisco, que confirmou seus piores temores. Eles tinham sido instruídos a mandar o dinheiro para o Banco México apenas uns minutos depois de ter sido depositado com eles. Dali em diante, Nat sabia que seguiria o sol até desaparecer no horizonte. Ele decidiu que seria inútil chamar a polícia, a menos que desejasse que metade da comunidade bancária tives se muito o que falar sobre o segredo. Suspeitava de que Julia, ou não importa qual fosse seu nome verdadeiro, já havia pensado naquilo também.

Nat adiantou uma grande parte dos atrasos que seriam causados por sua ausência, antes de deixar o escritório para tomar o trem para Nova York. Ele se dirigiu aos escritórios da Kirkbridge & Cia., na Rua 97, com alguns momentos de folga apenas.

Não teve tempo sequer de se sentar na recepção, diante de uma porta aberta. Viu uma elegante e bem-vestida mulher parada à entrada.

— Sr. Cartwright?

— Sim — disse ele, levantando-se do assento.

— Sou Julia Kirkbridge. O senhor gostaria de vir ao meu escritório?

O mesmo sotaque afetado. Nat não se lembrava de quando fora a última Vez que um diretor de qualquer companhia tinha vindo buscá-lo na área de recepção em vez de enviar sua secretária; especialmente um que trabalhasse fora de Nova York.

— Fiquei intrigada com seu chamado — disse a Sra. Kirkbridge enquanto seguia Nat até uma confortável poltrona ao lado da lareira.

— Não é muito comum que um banqueiro de Connecticut venha visitar-me em Nova York.

Nat apanhou alguns papéis de sua maleta enquanto tentava um acesso à mulher sentada do lado oposto. Suas roupas, como aquelas da sua última personificação, eram muito bem talhadas, mas bastante conservadoras, e embora ela fosse esbelta e estivesse nos seus trinta e poucos anos, os cabelos e os olhos escuros eram de um contraste completo com a loura de Minnesota.

— Bem, é bastante simples, de fato — Começou Nat. — O Conselho Municipal de Hartford colocou outro local no mercado que tem uma aprovação planejada para um centro comercial. O banco comprou a terra como um investimento e está procurando um sócio. Pensamos que talvez os senhores estivessem interessados.

— Por que nós? — perguntou Julia.

— Os senhores estavam entre as empresas que fizeram propostas ao local do Shopping Robinson, o qual, incidentalmente, tem provado ser um grande sucesso; portanto, pensamos que talvez os senhores quisessem se envolver nesta nova aventura.

— Estou um tanto surpresa que o senhor não tivesse pensado em se aproximar de nós antes de fazer sua proposta — disse a Sra. Kirkbridge — porque se o senhor a houvesse feito teria descoberto que nós consideramos os termos bastante restritivos. — Nat ficou surpreso. — Afinal de contas — prosseguiu a Sra. Kirkbridge — isso é o que nós fazemos.

— Sim, eu sei — disse Nat, ganhando tempo.

— Posso perguntar-lhe qual o valor da proposta? — perguntou a Sra. Kirkbridge.

— Três milhões e seiscentos.

— Isso está muito acima da nossa estimativa — disse a Sra. Kirkbridge, virando a página do arquivo sobre a mesa à sua frente.

Nat havia sempre se considerado um bom jogador de pôquer, mas não tinha nenhum meio de saber se a Sra. Kirkbridge estava blefando. Ele só tinha uma última carta.

— Bem, sinto muito por tê-la feito perder seu tempo — disse ele, erguendo-se.

— Talvez não tenha — disse a Sra. Kirkbridge, que permaneceu sentada — porque eu ainda estou interessada em ouvir sua proposta.

— Estamos procurando um sócio que arque com a metade do investimento — disse Nat, voltando à poltrona.

— O que significa isso, exatamente? — perguntou a Sra. Kirkbridge.

Os senhores depositam 1,8 milhão de dólares, o banco financia o resto do projeto e uma vez que o débito tenha sido quitado, todos os lucros serão divididos meio a meio.

— Sem juros bancários e o dinheiro emprestado à taxa mínima?

— Acho que podemos levar isso em consideração — disse Nat.

— Então por que o senhor não deixa todos os detalhes comigo, Sr. Cartwright? Voltarei a procurá-lo. De quanto tempo disponho para informá-lo sobre minha decisão?

— Terei um encontro com dois outros investidores enquanto estiver em Nova York —disse Nat. — Eles também fizeram ofertas para o local do Robinson.

Pela expressão em sua face, não havia meios de se saber se ela havia acreditado nele.

A Sra. Kirkbridge sorriu.

— Meia hora atrás — disse ela — recebi um telefonema do diretor-executivo do Conselho Municipal de Hartford, um tal de Sr. Cooke. — Nat congelou. — Não atendi a chamada, pois pensei que seria prudente vê-lo primeiro. Entretanto, descubro que é difícil acreditar que isso seja uma proposta de viabilidade que eles esperariam que o senhor analisasse na Escola de Administração de Harvard, Sr. Cartwright; portanto, talvez tenha chegado a hora de me dizer qual a verdadeira razão de o senhor desejar se avistar comigo.


35


ANNIE LEVOU o MARIDO de carro até a prefeitura. Era a primeira vez que eles ficavam sozinhos naquele dia. — Por que simplesmente não vamos para casa? — disse Fletcher.

— Acredito que todo candidato se sinta assim antes da contagem dos votos.

— Você sabe, Annie, nós não discutimos nenhuma vez o que eu Vou fazer se perder.

— Sempre acreditei que você fosse se ligar a outra firma de advocacia. Os céus sabem quantas têm vindo bater à sua porta. Simpkins e Welland não disseram que estavam precisando de alguém especializado em direito penal?

— Sim, eles até me ofereceram uma sociedade, mas, na verdade, política é o que mais gosto de fazer. Sou mais obsessivo ainda do que seu pai.

— Isso não é possível — disse Annie. — Falando nisso, ele disse para usarmos sua vaga no estacionamento.

— De jeito nenhum — disse Fletcher. — Só o senador deve ocupar o lugar. Não, vamos estacionar numa das ruas de baixo.

Fletcher olhou pela janela para ver dúzias de pessoas subindo as escadas da prefeitura.

— Aonde é que eles estão indo? — perguntou ele. — Eles não podem ser todos amigos chegados da Sra. Hunter.

Annie riu.

— Não, eles não são, mas o público tem permissão de observar da galeria a contagem dos votos. É uma velha tradição de Hartford — acrescentou ela, encontrando, finalmente, um lugar vago a alguma distância da prefeitura.

Fletcher e Annie deram-se as mãos ao se juntarem às massas que se dirigiam para o edifício. Durante anos ele vinha observando incontáveis políticos e suas esposas dando-se as mãos no dia da eleição, e muitas vezes se perguntou quantos fizeram esse ritual de performance simplesmente para as câmeras. Ele apertou a mão de Annie enquanto subiam as escadas, tentando parecer relaxado.

O senhor se sente confiante, Sr. Davenport? — perguntou um repórter local, empurrando o microfone sobre seu rosto.

Não — disse Fletcher honestamente. — Nervoso como no inferno.

— O senhor acha que venceu a Sra. Hunter? — tentou outro repórter, de novo.

— Ficarei feliz em responder a essa pergunta daqui a umas duas horas.

— O senhor acredita que tenha sido uma disputa limpa?

— Você seria um melhor juiz desta questão do que eu — disse Fletcher, enquanto ele e Annie alcançavam o último degrau e entravam no edifício.

Quando entraram no hall ergueu-se uma onda de aplausos de alguns dos que se encontravam na galeria. Fletcher olhou para cima, sorriu e acenou, tentando parecer confiante, mesmo que não se sentisse assim. Quando olhou para baixo, a primeira face que viu foi a de Harry. Ele parecia pensativo.

Quão diferente do dia do debate parecia a prefeitura. Todas as cadeiras tinham sido dispostas ao lado de uma longa fila de mesas em forma de ferradura. Ao centro ficava o Sr. Cooke, que havia presidido as sete eleições anteriores. Esta seria a sua última, pois ele estava pronto para se aposentar no final do ano.

Um dos seus mesários estava checando as urnas que estavam alinhadas sobre o chão, dentro do espaço formado pelas mesas. O Sr. Cooke deixara claro, durante a instrução que tinha dado a ambos os candidatos no dia anterior, que a contagem não começaria a té que todas as quarenta e oito urnas houvessem chegado de suas zonas eleitorais e sido autenticadas. Como a votação se encerrava às oito da noite, esse procedimento geralmente levava uma hora.

Uma segunda onda de aplausos eclodiu e Fletcher olhou em torno para ver Barbara Hunter entrando na sala, exibindo também um sorriso de confiança enquanto acenava para seus eleitores, na galeria.

Quando as quarenta e oito urnas foram examinadas e seus lacres quebrados pelos mesários, os votos foram despejados sobre as mesas prontas para a contagem. Sentados de cada lado da ferradura estavam os cento e tantos escrutinadores. Cada grupo era formado por representante do Partido Republicano, um do Partido Democrata e um fiscal neutro, que ficava um passo atrás deles Se um fiscal estivesse insatisfeito a respeito de alguma coisa, depois que a contagem houvesse começado, ele ou ela levantaria a mão e o Sr. Cooke, ou um de seus mesários, iria àquela mesa imediatamente.

Assim que as urnas foram esvaziadas sobre as mesas, os votos foram separados em três montes — uma pilha para os republicanos, uma para os democratas e uma terceira pilha, menor, das cédulas disputadas. A maioria dos distritos eleitorais em toda a nação agora resolvia todo o processo por máquina, menos Hartford, embora cada um soubesse que aquilo se modificaria no instante em que o Sr. Cooke se aposentasse.

Fletcher começou andando pela sala, olhando as diferentes pilhas que cresciam. Jimmy fazia o mesmo exercício, mas andando em direção oposta. Harry não se mexia enquanto olhava as urnas sendo abertas, os olhos raramente se distraindo daquilo que estava acontecendo nas mesas. Quando todas as urnas tinham sido esvaziadas, o Sr. Cooke pediu aos mesários para contarem os votos e colocá-los em montes de cem.

— Aqui é onde o fiscal passa a ser importante — explicou Harry, quando Fletcher chegou a um cantinho ao seu lado. — Ele tem de ter a certeza de que nenhuma cédula foi contada duas vezes ou que duas não estão grudadas.

Fletcher anuiu e continuou sua perambulação, parando ocasionalmente para ver a separação e contagem dos votos em particular, sentindo-se confiante por um momento, deprimido depois, até que Jimmy indicou que as urnas tinham vindo de diferentes distritos e ele não poderia nunca ter certeza de quais tinham vindo de uma área republicana e quais tinham vindo de uma área democrata.

— E depois, o que acontece? — perguntou Fletcher, alertado para o fato de Jimmy estar assistindo à quarta contagem.

— Arthur Cooke somará todas as cédulas e anunciará quantas pessoas votaram, calculando a percentagem do eleitorado.

Fletcher olhou para o relógio — passava um pouquinho das onze, e lá nos fundos ele podia ver Jimmy Carter na grande tela conversando com seu primo Billy. As primeiras urnas haviam sugerido que os democratas estavam voltando à Casa Branca pela primeira vez em oito anos. Estaria ele indo para o Senado pela primeira vez?

Fletcher voltou sua atenção para o Sr. Cooke, que parecia não ter pressa enquanto realizava seu ofício. Seu passo não refletia o batimento cardíaco de qualquer dos candidatos. Assim que reuniu todas as folhas, ele se juntou aos seus mesários e transferiu seus números para uma calculadora, sua única concessão nos anos 70. Isso foi seguido pelo pressionar dos botões, cochilos e resmungos, antes que dois números fossem escritos claramente sobre uma folha de papel. Ele, então, atravessou o salão e dirigiu-se ao palco com passos vagarosos. Deu uma batidinha no microfone, o que foi suficiente para pedir silêncio, pois a turba estava impaciente para ouvir suas palavras.

— Desgraçado! — disse Harry. — Já se passou uma hora. Por que Arthur não termina isso logo?!

— Acalme-se! — disse Martha. — Tente se lembrar de que você já não é candidato.

— O número de pessoas que votou para o Senado é de 42.429, o que equivale a 52,9 por cento.

O Sr. Cooke deixou o palco sem mais palavras e voltou ao centro da ferradura. Sua equipe procedeu à contagem das pilhas de cem, mas isso levou mais quarenta e dois minutos antes que o diretor-executivo voltasse a subir ao palco. Desta vez, ele não precisou bater no microfone.

— Tenho de informar-lhes — disse ele — que existem setenta e sete cédulas sendo disputadas, e irei agora convidar os candidatos a se juntarem a mim no meio do recinto, de modo que possam decidir quais devem ser consideradas válidas.

Harry correu pela primeira vez naquele dia e agarrou Fletcher antes que ele se juntasse ao Sr. Cooke na mesa de apuração.

— Isso significa que qualquer um de vocês que esteja na liderança pode estar por menos de setenta e sete votos, caso contrário Cooke não estaria se incomodando de passar por este processo de ouvir a opinião de vocês.

Fletcher concordou.

— Você tem de selecionar alguém para examinar aqueles votos cruciais para você.

— Esta não é uma escolha difícil — respondeu Fletcher. — Eu escolho você.

— Acho que não devo — disse Harry —, porque isso fará a Sra. Hunter ler as antenas, e para este pequeno exercício você vai precisar de alguém que não a faça sentir-se traída. — Então, que tal Jimmy?

Boa ideia, porque ela está inclinada a pensar que pode tirar o melhor dele.

— Pode perder a esperança — disse Jimmy quando surgiu ao lado de Fletcher.

— Eu também posso precisar de você — disse Harry, misteriosamente.

— Por quê? — perguntou Jimmy.

— É só um pressentimento — respondeu Harry — nada mais, mas, uma vez que se trata de decidir aqueles votos preciosos, o Sr. Cooke será o homem a observar, não Barbara Hunter.

— Mas ele não vai tentar nada com nós quatro em cima dele — disse Jimmy — sem mencionar todos aqueles que estão de olho lá na galeria.

— E ele não sonharia fazê-lo — disse Harry. — Ele é um dos mesários mais cuidadosos com os quais já lidei, mas ele detesta a Sra. Hunter.

— Por alguma razão em especial? — perguntou Fletcher.

— Ela tem lhe telefonado diariamente, desde que esta campanha começou, solicitando estatísticas sobre todas as coisas, de moradias a hospitais, inclusive opiniões legais sobre licenças de planejamento; portanto, aposto que ele não se entusiasma com a ideia de ela vir a ser um membro do Senado. Ele tem motivos suficientes para se preocupar sobre como ficar livre das vontades da Sra. Hunter em querer ocupar cada momento de folga do seu tempo.

— Mas, como você disse, não há nada que ele possa fazer.

— Nada que seja ilegal — disse Harry. — Mas, se ali aparecer algum desacordo sobre um voto, ele será chamado a arbitrar; portanto, qualquer coisa que ele recomende, simplesmente diga "Sim, Sr. Cooke", mesmo se você achar na hora que favorece a Sra. Hunter.

— Acho que entendi — disse Fletcher.

— Sou um maldito, se entendi — disse Jimmy.

Su Ling examinou a mesa da sala de jantar. Quando a campainha da porta soou, ela não se incomodou em chamar por Nat, porque sabia que ele estava relendo O gato no chapéu.

— Leia outra vez, papai — Luke sempre pedia quando eles chegavam à última página.

Su Ling abriu a porta para encontrar Tom abraçando um punhado de tulipas-papagaio.

Ela lhe deu um grande abraço, como se nada houvesse acontecido desde que eles se viram pela última vez.

— Você quer se casar comigo? — perguntou Tom.

— Se você cozinhar, ler O gato no chapéu, atender a porta e arrumar a mesa, tudo ao mesmo tempo, levarei sua proposta seriamente em consideração.

Su Ling apanhou as flores.

— Obrigada, Tom — disse ela, dando-lhe um beijo na face. — Elas ficarão lindas na mesa de jantar. — Su Ling sorriu. — Sinto muito sobre Julia Kirkbridge, ou qualquer que fosse seu nome verdadeiro.

— Nunca mencione o nome daquela mulher para mim outra vez — disse Tom. — No futuro, nossos jantares serão sempre para nós três apenas, um ménage à trois; tristemente sem o ménage.

— Não esta noite — disse Su Ling. — Nat não lhe contou? Ele convidou um colega de trabalho para juntar-se a nós. Imaginei que você soubesse, e como sempre fui a última pessoa a ser informada, no último minuto.

— Ele não mencionou nada a respeito para mim — disse Tom, enquanto a campainha da porta soava.

— Eu atendo — disse Nat enquanto descia as escadas.

— Agora prometa que você não vai falar de negócios a noite toda, porque quero ouvir sobre sua viagem a Londres...

— Que bom ver você novamente! — disse Nat.

— Foi só uma pequena folga — disse Tom.

— Dê-me seu casaco — disse Nat.

— Sim, mas você conseguiu assistir a alguma peça teatral?

—... Sim, eu vi Judi... — Começou Tom quando Nat acompanhava sua convidada até a sala de visitas.

— Deixe-me primeiro apresentá-la à minha esposa, Su Ling. Querida, esta é Julia Kirkbridge, que, como tenho certeza de que você sabe, é nossa sócia no Projeto Cedar Wood.

— Que bom conhecê-la, Sra. Cartwright.

Su Ling recobrou-se mais depressa do que Tom.

— Por favor, chame-me Su Ling.

— Obrigada, e você deve me chamar de Julia.

— Julia, este é o meu chairman, Tom Russell, que eu sei estava querendo conhecê-la.

— Boa-noite, Sr. Russell. Depois de tudo que Nat me falou a seu respeito, desejava conhecê-lo também.

Tom apertou a mão dela, mas não podia pensar em nada para dizer.

— Uma taça de champanhe para celebrarmos a assinatura do contrato?

— Contrato? — disse Tom, sussurrando.

— Que ótima ideia! — disse Julia. Nat abriu a garrafa e serviu três taças enquanto Su Ling desaparecia na cozinha. Tom continuou a olhar para a segunda Sra. Kirkbridge, enquanto Nat lhes passava as taças de champanhe.

— Ao Projeto Cedar Wood — disse Nat, erguendo sua taça. Tom apenas conseguiu proferir as palavras: — O Projeto Cedar Wood.

Su Ling reapareceu, sorriu para o marido e disse: — O que acha de levar nossos convidados para a sala de jantar?

— Agora acho que isso é muito justo, Julia, que eu devesse explicar à minha esposa e a Tom que você e eu não temos nenhum segredo.

Julia sorriu.

— Nenhum que eu saiba, Nat, especialmente depois de assinarmos um acordo de confiança quanto aos detalhes da transação do Cedar Wood.

— Sim, e acho que deveria permanecer daquela maneira — disse Nat, sorrindo para ela enquanto Su Ling servia a primeira entrada.

— Sra. Kirkbridge — disse Tom, sem tocar na sopa de lagosta.

— Por favor, chame-me de Julia; afinal de contas, nós já nos conhecemos por algum tempo.

— Já? — disse Tom. — Eu não...

— Isso não é muito elogioso, Tom — disse a Sra. Kirkbridge — afinal, foi há poucas semanas, quando eu estava correndo e você me convidou para um drinque e depois um jantar no Cascade na noite seguinte. Aquela foi a primeira vez em que eu lhe falei do meu interesse pelo projeto Cedar Wood.

Tom virou-se para Nat.

— Isso tudo é muito inteligente, mas a senhora parece ter-se esquecido de que o Sr. Cooke, o leiloeiro, e o nosso chefe de caixa entraram todos em contato com a Sra. Kirkbridge original.

— A primeira Sra. Kirkbridge, sim, mas não a original — disse Nat. — E eu já pensei muito a respeito daquele problema. Não existe nenhuma razão para que o Sr. Cooke devesse alguma vez conhecer Julia, pois ele vai se aposentar dentro de alguns meses. Pois, para o leiloeiro, foi você quem fez a oferta, não Julia, e não deveria se preocupar sobre Ray, porque Vou transferi-lo para a filial de Newington.

— E quanto a filial em Nova York? — disse Tom.

— Eles desconhecem tudo — disse Julia — a não ser que fechei um negócio muito vantajoso. — Ela fez uma pausa. — Esta é uma ótima sopa de lagosta, Su Ling. Foi sempre a minha favorita.

— Obrigada — disse Su Ling, retirando os pratos de sopa e voltando para a cozinha.

— E, Tom, eu queria dizer isso enquanto Su Ling está fora da sala: que eu preferia esquecer quaisquer outras indiscrições que tenham ocorrido durante o mês passado.

— Você é um bastardo — disse Tom, virando-se para encarar Nat.

— Não, para sermos justos — disse Julia — eu insisti em saber de todas as coisas antes de assinar o acordo de confiabilidade.

Su Ling voltou carregando uma travessa. O aroma do carneiro assado era inebriante.

— Agora descobri por que Nat me pediu para servir exatamente a mesma refeição uma se gunda vez, mas estou inclinada a perguntar: o que mais eu preciso saber já que tenho de participar desta charada?

— O que você gostaria de saber? — perguntou Julia.

— Bem, descobri que você é um McCoy* de verdade, e, portanto, deve ser a maior acionista da Kirkbridge & Cia. Mas do que eu não tenho certeza é se você, a pedido de seu marido, fez jogging pelos locais de edificações, num domingo pela manhã, e mandou um relatório de volta para ele?

 


* Famoso detetive de seriado da televisão. (N.T.)

 

Julia riu.

— Não, meu marido não esperava que eu fizesse isso, pois eu já sou formada em arquitetura.

— E eu queria perguntar — Continuou Su Ling — o Sr. Kirkbridge morreu de câncer e deixou a companhia para você, tendo-lhe ensinado tudo que ele sabia?

— Não, ele está vivíssimo, mas eu me divorciei dele há dois anos, quando descobri que ele estava escoando os lucros da empresa para seu uso pessoal.

— Mas a companhia não era dele? — perguntou Tom.

— Sim, e isso não teria significado tanto, se ele não houvesse usado aquele dinheiro, generosamente, com outra mulher.


— Aquela mulher, por acaso, mede em torno de 1,90m, é loura, gosta de roupas caras e se diz natural de Minnesota?

— Você obviamente a conheceu — disse Julia — e espero que tenha sido também o meu ex-marido que lhe telefonou de um banco em San Francisco, passando-se pelo advogado da Sra. Kirkbridge.

— Você não tem nenhuma ideia de onde os dois possam estar neste momento? — perguntou Tom. — Porque eu gostaria de matá-los.

— Absolutamente nem uma ideia — disse Julia — mas se você conseguir descobri-los, deixe-me saber. Aí você poderá matá-la e eu o matarei.

— Alguém gostaria de crême brülée — perguntou Su Ling.

— Como foi que a outra Sra. Kirkbridge respondeu a esta pergunta? — inquiriu Julia.

Parte do público estava inclinada sobre o balcão, observando cada movimento, e o Sr. Cooke parecia desejar que cada um no edifício testemunhasse o que estava acontecendo.

Fletcher e Jimmy deixaram o senador juntar-se à Sra. Hunter e seu representante no centro da ferradura.

— Aí está — disse o Sr. Cooke, dirigindo-se aos dois candidatos — setenta e sete disputadas cédulas, das quais acredito quarenta e três sejam inválidas; entretanto, ficam algumas dificuldades sobre as outras trinta e quatro.

Os dois candidatos aquiesceram.

— Primeiro Vou mostrar-lhes as quarenta e três — disse o oficial, já de volta, colocando a mão na maior das duas pilhas — que considero serem inválidas. Se vocês concordarem, então partirei para as remanescentes trinta e quatro que ainda estão sendo disputadas — e transferiu-a para a pilha menor.

Os dois candidatos aquiesceram novamente.

— Digam não apenas se vocês discordarem — disse o Sr. Cooke, quando começou a virar-se para as cédulas da pilha maior, apenas para revelar que nenhum voto havia sido registrado para nenhum deles. Como nenhum candidato fez nenhuma objeção, ele completou a tarefa em dois minutos.

— Excelente — disse o Sr. Cooke, empurrando as cédulas para um lado — mas agora temos de considerar as cruciais trinta e quatro.

Fletcher notou a palavra "crucial" e compreendeu quão perto do final o resultado estava.

— No passado — Continuou o Sr. Cooke — se os dois partidos não fossem capazes de concordar, então a decisão final teria de ser deixada para um terceiro partido.

Ele fez uma pausa.

A Sra. Hunter não respondeu imediatamente e começou sussurrando para seu ajudante. Todos esperaram pacientemente por sua resposta.

— Estou muito satisfeita pelo Sr. Cooke ter de atuar, igualmente, como árbitro — e la finalmente concordou.

O Sr. Cooke fez uma leve reverência.

— Dos trinta e quatro votos no monte disputado — disse ele — onze eu acredito que podem ser rapidamente negociados, pois eles são o que eu chamo, por falta de uma descrição melhor, os eleitores de Harry Gates.

Ele, então, deitou sobre a mesa os onze votos que tinham "Harry Gates" escrito na cédula. Fletcher e a Sra. Hunter os estudaram um a um.

— São, obviamente, inválidos — disse a Sra. Hunter.

— Mas dois deles — Continuou o Sr. Cooke — também têm uma cruz ao lado do nome do Sr. Davenport.

— Eles ainda devem ser inválidos — disse a Sra. Hunter — porque como o senhor pode ver, o nome do Sr. Gates está claramente escrito cruzando o papel, fazendo com que sejam cédulas rasuradas.

— Mas... — Começou Jimmy.

— Como existe obviamente uma discordância sobre estas duas cédulas — disse Fletcher — ficarei satisfeito em permitir que o Sr. Cooke decida.

O Sr. Cooke olhou na direção da Sra. Hunter e ela anuiu relutantemente.

— Concordo que aquela onde está escrito "O Sr. Gates deveria ser presidente" seja, de fato, invalidada. — A Sra. Hunter sorriu. — Mas aquela que tem uma cruz ao lado do nome do Sr. Davenport com o comentário acrescentado "Mas eu preferia o Sr. Gates" é, sob meu ponto de vista, e de acordo com as leis da eleição, uma clara indicação da preferência do eleitor; eu, portanto, declaro que o voto seja dado ao Sr. Davenport.

A Sra. Hunter parecia chateada, mas sabendo que a população perscrutava da galeria, conseguiu esboçar um fraco sorriso.

— Agora podemos voltar aos sete votos em que o nome da Sra. Hunter aparece na cédula.

— Certamente eles devem ser todos meus — disse a Sra. Hunter, quando o Sr. Cooke os deitou claramente em fila, de modo que os dois candidatos pudessem observá-los.

— Não, eu penso que não — disse o Sr. Cooke.

A primeira cédula tinha escrito nela "Hunter é a vencedora", com uma cruz ao lado do nome Hunter.

— Essa pessoa claramente votou na Sra. Hunter — disse Fletcher.

— Concordo — disse o Sr. Cooke, quando uma onda de aplausos emanou da galeria.

— A honestidade desse rapaz será a morte dele — disse Harry.

— Ou o seu sucesso — disse Martha.

"Hunter seria uma ditadora", estava escrito na seguinte, sem "x" marcando um dos nomes.

— Acredito que esta seja inválida — disse o Sr. Cooke. A Sra. Hunter concordou relutantemente.

— Apesar de ser acurado — disse Jimmy, soltando um suspiro. "Hunter é uma cadela", "Hunter deveria ser morta", "Hunter é louca", "Hunter é uma perdedora", "Hunter para papa" também foram invalidados. A Sra. Hunter não se importou em sugerir que nenhum desses a desejasse como a próxima senadora por Hartford.

— Agora chegamos ao último grupo de dezesseis — disse o Sr. Cooke. — Aqui o eleitor não usou uma cruz para indicar sua preferência.

Os dezesseis votos tinham sido dispostos numa pilha separada, e o de cima tinha uma marca no quadro oposto ao nome Hunter.

— Este é claramente um voto para mim — insistiu a candidata republicana.

— Tendo a concordar com a senhora — disse o Sr. Cooke. — O eleitor parece ter feito seu desejo bem claro; entretanto, preciso que o Sr. Davenport concorde com este julgamento antes que eu possa prosseguir.

Fletcher olhou para além das mesas de apuração e seus olhos se encontraram com os de Harry. Ele fez uma leve inclinação com a cabeça.

— Concordo que este é claramente um voto para a Sra. Hunter — disse ele. Aplausos uma vez mais ecoaram na galeria de parte dos eleitores de Hunter.

O Sr. Cooke retirou a cédula de cima para revelar que a de baixo também tinha uma marca no quadro oposto ao nome Hunter.

— Agora que concordamos no princípio — disse a Sra. Hunter — este também deve contar como um voto para mim.

— Não tenho nada contra isso — disse Fletcher.

— Então os dois votos vão para a Sra. Hunter — disse o Sr. Cooke, que removeu a segunda cédula para revelar uma marca ao lado do nome de Fletcher na cédula de baixo. Os dois candidatos concordaram. — Dois a um a favor da Sra. Hunter — disse o Sr. Cooke, antes de remover aquele voto, para mostrar que o próximo tinha marca no quadro Hunter.

— Três a um — disse ela, incapaz de esconder um sorriso falso. Fletcher começou a se perguntar se Harry havia errado nos cálculos. O Sr. Cooke tirou a cédula seguinte, para revelar uma marca no nome de Fletcher.

— Três a dois — disse Jimmy quando o diretor-executivo começou a tirar mais rapidamente os votos da pilha.

Como cada um mostrava uma marca clara o bastante, nenhum dos candidatos podia objetar. As massas na galeria começavam a cantar — três a três, quatro a três — a favor de Fletcher — Cinco a três, seis a três, sete a três, oito a três, oito a quatro, nove a quatro, dez a quatro, onze a quatro, terminando com doze a quatro a favor de Fletcher.

A Sra. Hunter não conseguia esconder a raiva quando o Sr. Cooke, olhando para a galeria, proclamou: — E isso completa a checagem das cédulas rasuradas, dando uma posição total de quatorze para o Sr. Davenport e seis para a Sra. Hunter.

Ele, então, se virou para os candidatos e disse: — Gostaria de agradecer-lhes pela atitude magnânima que tiveram em todo o procedimento.

Harry permitiu-se um sorriso quando se juntou aos renovados aplausos que se seguiram à declaração do Sr. Cooke. Fletcher rapidamente deixou a sala e reuniu-se ao sogro do lado de fora.

— Se vencermos por menos de oito votos, meu garoto, saberemos a quem agradecer, porque agora não há nada que a Sra. Hunter possa fazer a respeito.

— Quanto vai demorar para o resultado? — Perguntou Fletcher.

— A votação? Apenas uns poucos minutos — disse Harry — mas o resultado, acho, não será dado antes de algumas horas.

O Sr. Cooke checou os números em sua calculadora, e depois os transferiu Para uma folha de papel, que todos os quatro mesários assinaram obrigatoriamente. Ele voltou ao palco uma terceira vez.

— Tendo os dois lados concordado sobre as cédulas disputadas, agora posso informar-lhes que o resultado da eleição para o Senado pelo condado de Hartford é: Sr. Fletcher Davenport, 21.218, e a Sra. Barbara Hunter, 21.211.

Harry sorriu.

O Sr. Cooke não tentou falar durante o barulho que se seguiu, mas uma Vez ganhando novamente a atenção do andar, anunciou: — Haverá uma recontagem, mesmo antes de a Sra. Hunter poder solicitar uma.

Harry e Jimmy circularam na sala, dizendo apenas uma palavra para cada observador. "Concentre-se." Cinquenta minutos mais tarde, descobriu-se que três das pilhas tinham apenas noventa e nove votos, enquanto quatro tinham cento e um. O Sr. Cooke checou todas as pilhas uma terceira vez antes de retornar ao palco.

— Declaro o resultado da eleição para o Senado do condado de Hartford como se segue: Sr. Fletcher Davenport com 21.217 votos, e Sra. Hunter com 21.213.

O Sr. Cooke precisou esperar algum tempo antes que pudesse ser ouvido acima do barulho. — A Sra. Hunter uma vez mais pediu recontagem.

Desta vez alguns boos! minguaram entre os alegres comentários quando a galeria sentou-se para assistir a todo o processo novamente.

O Sr. Cooke era cuidadoso em se certificar de que cada pilha era contada e recontada, e se ali ficara alguma dúvida ele mesmo examinava de novo. O Sr. Cooke não voltou ao palco, até alguns minutos depois de uma da manhã, quando chamou os candidatos.

Ele deu uma batidinha no microfone para ter certeza de que ainda estava funcionando. — Declaro o resultado da eleição para o Senado pelo condado de Hartford: Sr. Fletcher Davenport 21.216 votos, Sra. Barbara Hunter, 21.214.

Os vivas e vaias soaram ainda mais altos desta vez e se passaram vários minutos antes que a ordem pudesse ser restaurada. A Sra. Hunter inclinou-se para a frente e sugeriu, num sussurro, ao Sr. Cooke que, como já passava de uma da manhã, o grupo de mesários deveria poder ir para casa e uma nova recontagem fosse realizada pela manhã.

Ele ouviu polidamente os protestos antes de voltar ao microfone. Mas tinha antecipado claramente qualquer eventualidade.

— Tenho comigo — disse ele — o regulamento oficial da eleição.

Ele o segurou para que todos pudessem vê-lo como um padre faz com uma Bíblia.

— E eu me refiro a uma regra na página noventa e um. Vou ler a importante passagem.

O salão ficou silencioso enquanto esperava as deliberações do Sr. Cooke.

— "Numa eleição para o Senado, se qualquer dos candidatos vencer por três vezes seguidas a contagem, não importa quão pequena seja a maioria, ele ou ela será declarado vencedor." Eu, portanto, declaro o Sr...

Mas o resto de suas palavras foi abafado pelos aplausos dos eleitores de Fletcher.

Harry Gates virou-se e apertou a mão de Fletcher. Ele mal podia esperar para ouvir as palavras do senador aposentado acima do barulho.

Fletcher pensou ter ouvido Harry dizer: "Quero ser o primeiro a cumprimentá-lo, senador."


LIVRO QUATRO

ATOS


36

 

 

NAT ESTAVA NO TREM, voltando de Nova York, quando leu uma notinha no New York Times. Ele havia comparecido a uma reunião de diretoria da Kirkbridge & Cia., onde relatou que o primeiro estágio do edifício do Cedar Wood havia sido completado. A próxima fase seria arrendar as setenta e três lojas, as quais variavam em tamanho, de trezentos e trinta a três mil, novecentos e sessenta metros quadrados. Muitos dos bem-sucedidos varejistas do shopping Robinson já haviam demonstrado algum interesse, e a Kirkbridge & Cia. estava preparando uma brochura e um formulário para centenas de clientes em potencial. Nat tinha inclusive reservado um anúncio de página inteira no Hartford Courant e concordara em ser entrevistado sobre o projeto para a seção semanal sobre propriedades.

O Sr. George Turner, novo diretor-executivo do conselho, não tinha mais do que elo gios para com o empreendimento, e no seu relatório anual destacou a contribuição da Sra. Kirkbridge como coordenadora do projeto. No início do ano, o Sr. Turner havia visitado o Banco Russell, mas não antes que Ray Jackson houvesse sido promovido a gerente de sua filial em Newington.

Os avanços de Tom estavam de alguma forma mais lentos, pois havia se passado sete meses antes que ele criasse coragem de convidar Julia para jantar fora. Demorou sete segundos para que ela aceitasse.

Em poucas semanas, Tom seguia no trem das 16h49 para Nova York toda sexta-feira à tarde, voltando a Hartford na segunda-feira de manhã. Su Ling ficava pedindo comentários sobre os avanços dele, mas Nat parecia estar sempre mal-informado.

— Talvez descubramos mais na sexta-feira — disse ele, lembrando-a de que Julia estaria ali no fim de semana e eles haviam aceitado um convite para jantar.

Nat releu a notinha do New York Times, que não entrava em detalhe algum e deixava a impressão de que havia muito mais por trás da história. "William Alexander, da Alexander Dupont & Bell, anunciou sua aposentadoria como sócio mais antigo da empresa fundada por seu avô. O único comentário do Sr. Alexander foi de que, já há algum tempo, ele vinha planejando se aposentar."

Nat olhou pela janela, vendo os campos de Hartford passando com velocidade. Ele reconheceu o nome, mas não conseguia identificá-lo.

— O Sr. Logan Fitzgerald está na linha um, senador.

— Obrigado, Sally.

Fletcher recebia mais de cem chamadas por dia, mas sua secretária só as transferia quando sabia tratar-se de velhos amigos e negócios urgentes.

— Logan, que bom ouvi-lo! Como vai você?

— Estou bem, Fletcher, e você?

— Nunca estive melhor — respondeu Fletcher.

— E a família? — perguntou Logan.

— Annie ainda me ama, os céus sabem por que, porque eu dificilmente saio do edifício antes das dez. Lucy está na Escola Elementar de Hartford e a matriculamos na Hotchkiss. E você?

— Acabo de me tornar sócio — disse Logan.

— Isso não é nenhuma surpresa — disse Fletcher — mas mil congratulações!

— Obrigado, mas esta não é a razão do meu telefonema. Eu queria saber se você leu aquela notinha sobre a aposentadoria de Bill Alexander no Times.

Fletcher sentiu um arrepio percorrendo o seu corpo à mera menção do nome.

— Não — disse ele enquanto se inclinava sobre a mesa e apanhava seu exemplar do jornal. — Em que página?

— Sete, canto da direita.

Fletcher rapidamente virou as páginas ate que viu a manchete "Líder dos Advogados se Aposenta".

— Não desligue, enquanto eu leio a notinha.

Ao chegar ao fim, tudo que ele disse foi: Não acrescenta nada. Ele era casado com aquela empresa, e ele não pode ter mais do que sessenta.

— Cinquenta e sete — disse Logan.

— Mas a idade de aposentadoria obrigatória de um sócio é aos sessenta e cinco, e mesmo assim eles o mantêm como conselheiro da casa até os setenta. Não acrescenta nada. — repetiu Fletcher.

— Até você cavar um pouquinho.

— E quando você cava um pouquinho, o que é que você encontra? — perguntou Fletcher.

— Um buraco.

— Um buraco?

— Sim, parece que uma grande soma de dinheiro estava faltando na conta de um cliente quando...

— Eu não tenho tempo para Bill Alexander — cortou Fletcher — mas não acredito que ele retirasse nem um centavo da conta de um cliente. Na verdade, eu apostaria minha reputação nisso.

— Concordo com você, mas o que vai interessá-lo mais é que o New York Times não se importou em divulgar o nome do outro sócio que se aposentou no mesmo dia.

— Estou ouvindo.

— Ralph Elliot, ninguém menos.

— Os dois saíram no mesmo dia?

— Com certeza.

— E qual foi a razão dada por Elliot para sua aposentadoria? Não pode ser porque ele estava planejando aposentar-se cedo.

— Elliot não apresentou nenhuma razão; na verdade, a porta-voz da empresa parece ter dito que ele não se encontrava disponível para comentários, o que deve ser a primeira vez que acontece...

— Ela acrescentou alguma coisa? — perguntou Fletcher.

— Apenas que ele era um sócio Junior ainda, mas ela não explicou que ele também era sobrinho de Alexander.

— Então uma grande soma de dinheiro desapareceu da conta de um cliente e o tio Bill decidiu retirar-se em vez de embaraçar a empresa?

— É o que está parecendo — disse Logan.

— O que mais você descobriu? — perguntou Nat, em pé, atrás da mesa.

— Ele e Rebecca já têm um filho, e eu soube que eles o inscreveram para a Taft.

— Peço a Deus que ele seja mais moço que Luke, caso contrário eu mandaria o garoto par a a Hotchkiss.

Tom riu.

— Eu juro — disse Nat. — Luke é uma criança sensível o bastante sem ter de aturar este tipo de coisa.

— Bem, haverá consequências para o banco quanto a ele se juntar com a Belman & Wayland.

— E Elliot... — acrescentou Nat.

— Não se esqueça de que eles eram os advogados que supervisionavam o Projeto Cedar Wood, em nome do conselho, e se ele já tivesse descoberto...

— Não há razão pela qual ele devesse — disse Nat. — Mas é melhor você alertar Julia, mesmo após dois anos, e não se esqueça de que Ray também se mudou para lá. Apenas quatro pessoas conhecem a história toda, e estou casado com um a delas.

— E eu Vou me casar com a outra — disse Tom.

— Você vai o quê? — disse Nat, desconfiado.

— Tenho feito esta proposta a Julia pelos últimos dezoito meses, e ontem à noite ela finalmente se decidiu. Portanto, Vou trazer minha noiva para jantar esta noite.

— Esta é uma ótima notícia! — disse Nat parecendo feliz.

— E, Nat, não deixe para contar a Su Ling só no último minuto.

— Tenho uma flecha para usar em nosso arco — disse Harry, em resposta à pergunta de Fletcher.

— É um buraco sangrento — respondeu Fletcher. — Ralph Elliot não negocia aos tiros; portanto, teremos de descobrir o que é que ele está tramando.

— Não tenho a menor ideia — disse Harry. — Tudo que posso dizer é que recebi uma chamada de George Turner para me avisar que Elliot havia perguntado por todos os investimentos em que o banco está envolvido, e ontem de manhã ele ligou novamente pedindo mais detalhes sobre o Projeto Cedar Wood, e em particulares termos originais do acordo que recomendei ao Senado.

— Por que o Projeto Cedar Wood? Está se comprovando uma história de grande sucesso, como uma corrida de inscrições para arrendar espaço. Afinal, o que ele pretende?

— Ele também pediu para ver cópias de todos os meus discursos e notas que eu tenha feito à época da Emenda Gates. Ninguém jamais pediu cópias de meus antigos discursos antes; deixaram minhas notas em paz — disse Harry. — É muito lisonjeiro.

— Ele só lisonjeia para enganar — disse Fletcher. — Relembre-me os pontos mais importantes da Emenda Gates.

— Quem comprar terras municipais avaliadas em mais de um milhão de dólares deve dar seu nome e não pode esconder a identidade atrás de um banco ou de um escritório de advocacia; portanto, saberíamos exatamente com quem estávamos lidando. Requereu-se de todos, inclusive, que fosse pago o montante total no instante da assinatura de qualquer contrato, para se provar que a companhia podia arcar com ele. Desta forma, não haveria atraso.

— Mas agora cada um aceita isso como uma boa prática. Na verdade, diversos outros estados seguiram essas ideias.

— Pode ser apenas um inquérito inocente.

— Você obviamente nunca tratou com Ralph Elliot antes — disse Fletcher. — Inocente é uma palavra que não faz parte do vocabulário dele. Entretanto, no passado, ele sempre selecionou seus inimigos cuidadosamente. Uma vez que ele tenha passado pela Biblioteca Gates umas poucas vezes, pode saber que você é alguém com quem ele não deseja cruzar. Mas esteja alerta, ele está tramando alguma coisa.

— Por falar nisso — disse Harry —, alguém já disse a você sobre Jimmy e Joanna?

— Não — disse Fletcher.

— Então vou ficar de boca fechada. Tenho certeza de que Jimmy vai querer contar ele mesmo.

 

 

 

 

— Parabéns, Tom! — disse Su Ling ao abrir a porta da rua. — Estou muito feliz por vocês dois.

— É gentil de sua parte — disse Julia, enquanto Tom oferecia um buquê de flores para sua anfitriã.

— Então, quando é que vocês vão se casar?

— Em algum dia de agosto — disse Tom. — Nós não marcamos a data ainda, caso você e Luke tivessem reservado outra viagem para a Disneylândia, ou Nat estivesse fora para algumas noites de "ops" com a reserva.

— Não, Disneylândia é coisa do passado — disse Su Ling. — Você acredita que Luke anda falando sobre Roma, Veneza e até mesmo Arles, e Nat não estará comprometido com Fort Benning até outubro.

— Por que Arles? — perguntou Tom.

— É onde Van Gogh pintou no fim da vida — disse Julia, enquanto Nat entrava na sala.

— Julia, estou feliz que você esteja aqui, porque Luke precisa consultá-la sobre um dilema moral.

— Um dilema moral? Não pensei que você começasse a se preocupar com coisas desse gênero senão depois da puberdade.

— Não, isso é muito mais sério do que sexo e não sei a resposta.

— Então, qual é a pergunta?

— É possível pintar uma obra-prima sobre Cristo e a Virgem Maria sendo você um assassino?

— Não parece ter preocupado a Igreja Católica jamais — disse Julia. — Alguns dos mais finos trabalhos de Caravaggio estão pendurados no Vaticano; mas eu vou trocar uma palavra com Luke.

— Caravaggio, naturalmente. E não fique muito tempo lá — acrescentou Su Ling — pois há muitas perguntas que eu quero fazer.

— Tenho certeza de que Tom pode responder à maior parte delas — disse Julia.

— Não, quero ouvir sua versão — disse Su Ling quando Julia desapareceu no andar superior.

— Você alertou Julia sobre o que Ralph Elliot, está planejando? — perguntou Nat.

— Sim — respondeu Tom — e ela não pode prever nenhum problema. Afinal de contas, por que ocorreria a Elliot que há duas Julias Kirkbridge? Não se esqueça de que a primeira só esteve conosco por uns dias e nunca mais foi vista desde então, ainda que Julia venha sendo vista por aí há uns dois anos e todo mundo já a conheça.

— Mas a assinatura no cheque original não é a dela.

— E por que isso seria um problema? — perguntou Tom.

— Porque quando o banco descontou os 3,6 milhões de dólares o conselho pediu que o cheque fosse devolvido a eles.

— Então deve estar escondido em algum arquivo, em algum lugar, e se mesmo Elliot não cruzar com ele, por que deveria ser suspeito?

— Porque o que ele tem em mente é criminoso. Nenhum de nós pensa como ele.

Nat fez uma pausa.

— Mas para o inferno com isso; deixe-me perguntar, antes de Julia e Su Ling retornarem, estaria eu procurando um novo presidente para o conselho diretor ou Julia concordou em ficar aqui em Hartford e lavar pratos?

— Nem uma coisa nem outra — disse Tom. — Ela decidiu aceitar uma oferta daquele rapaz, o Trump, que tem estado atrás da empresa dela por algum tempo.

— Ela conseguiu um bom preço?

— Pensei que esta era uma noite relaxante, destinada a celebrar... não é?

— Ela conseguiu um bom preço? — repetiu Nat.

— Quinze milhões em dinheiro vivo, e outros futuros quinze milhões em ações da Trump.

— Esta é uma taxa de custo-benefício de mais ou menos dezesseis. Nada mau — disse Nat —, embora Trump obviamente acredite no potencial do Projeto Cedar Wood. Então ela planeja abrir uma firma de imóveis em Hartford?

— Não, acho que ela precisa dizer a você o que ela tem em mente — disse Tom enquanto Su Ling voltava da cozinha.

— Por que não convidamos Julia para a diretoria? — perguntou Nat. — E a tornamos responsável pela divisão de propriedades? Isso me daria mais tempo livre para me concentrar nas questões do banco.

— Acho que você vai descobrir que ela considerava esta possibilidade até seis meses atrás — disse Tom.

— Você, por acaso, já lhe ofereceu uma diretoria caso ela aceite se casar com você? — perguntou Nat.

— Sim, eu o fiz inicialmente, e ela não aceitou nenhum dos dois. Mas agora que a convenci a casar-se comigo, deixarei por sua conta persuadi-la a entrar para a diretoria, porque tenho a impressão de que ela tem outros planos.

 


37


FLETCHER ESTAVA ouvindo o discurso sobre a moradia subsidiada, quando os procedimentos foram interrompidos. Ele estava checando suas anotações, pois estava pronto para ser o próximo a se pronunciar. Um oficial uniformizado entrou na sala e passou um pedaço de papel para o presidente, que o leu, e depois o leu outra vez, bateu seu martelinho e levantou-se do lugar.

— Peço desculpas aos colegas por interromper os trabalhos, mas um homem armado está mantendo um grupo de crianças refém na Escola Elementar de Hartford. Estou certo de que o senador Davenport precisará sair e, dadas as circunstâncias, acredito que fosse mais apropriado suspender os trabalhos por hoje.

Fletcher ficou em pé imediatamente e tinha chegado à porta do plenário antes mesmo de o presidente encerrar a sessão. Correu diretamente para seu escritório, tentando pensar no que fazer. A escola estava no meio do seu distrito. Lucy era uma das alunas e Annie era a presidente da Associação de Pais e Alunos. Ele rezou para que Lucy não estivesse entre os reféns. Toda o plenário parecia estar em movimento.

Fletcher ficou aliviado ao encontrar Sally em pé, na porta do escritório, a agenda na mão.

— Cancele meus compromissos, telefone para minha esposa e peça que vá se encontrar comigo na escola e, por favor, fique ao lado do telefone.

Fletcher apanhou as chaves do carro e reuniu-se à enxurrada de pessoas correndo para fora do edifício. Assim que saiu do estacionamento dos senadores, um carro de polícia passou correndo à sua frente. Fletcher pressionou o pé sobre o acelerador e contornou por entre o vapor do cano de escape dos carros da polícia que também se dirigiam para a escola. A fila dos automóveis foi ficando maior e maior, com os pais fazendo seu caminho para apanhar os filhos, alguns parecendo fora de si depois de ouvirem as novidades nos rádios dos carros, outros as desconhecendo ainda, felizmente.

Fletcher manteve o pé no acelerador, ficando a poucos centímetros do para-choque à frente, enquanto o carro da polícia entrava em alta velocidade na estrada, as luzes piscando, as sirenes soando. O policial sentado no banco do carona usava o alto-falante para alertar o veículo da frente que mudasse de pista, mas Fletcher ignorava o ultimato.

Sete minutos depois, ambos pararam na barreira policial fora da escola, onde um grupo de pais, histéricos, tentava descobrir o que estava acontecendo. O policial no assento do carona saiu do carro e correu em direção a Fletcher quando este fechava a porta do carro com uma batida. O oficial apontou seu revólver e gritou: — Ponha suas mãos na capota!

O motorista, que estava apenas a um metro do colega, disse: — Desculpe, senador! Não sabíamos que era o senhor.

Fletcher correu para a barreira: — Onde posso encontrar o chefe de polícia?

— Ele montou uma base no escritório do diretor. Vou pedir a alguém que o leve até lá, senador.

— Não é necessário — disse Fletcher. — Sei o caminho.

— Senador... — disse o policial, mas já era tarde.

Fletcher correu pela calçada em direção à escola, ignorando que o edifício estava cercado por policiais militares, seus rifles todos apontados na mesma direção.

Surpreendeu-o descobrir quão depressa o público todo se postou de lado no momento em que o viu. Uma forma estranha de lembrar que ele era o seu representante.

— Mas o que é isso, afinal? — perguntou o chefe de polícia, quando aquele homem sozinho veio correndo, atravessando o pátio em direção a eles.

— Acho que o senhor vai descobrir que é o senador Davenport — disse Alan Shepherd, diretor da escola, olhando pela janela.

— Isso é tudo que preciso — disse Don Culver.

 

 

 

— Alguma coisa útil na sua pasta?

— Ele já trabalhou no seu lobby do controle de armas. Tem um forte sentimento a respeito desse assunto. Em suas anotações, o senhor escreveu "restrições não muito duras, travas em gatilhos, venda de armas de fogo para menores, prova de identificação".

— Lembro-me dele — disse Fletcher — inteligente, cheio de ideias, mas sem educação formal. Muito bem, Sally.

— O senhor tem certeza de que ele não é apenas um louco? — perguntou o chefe de polícia.

— Muito pelo contrário — disse Fletcher. — Ele é gentil, reservado, até mesmo tímido, e sua maior reclamação é de que ninguém jamais o ouviu. Algumas vezes esse tipo de pessoa sente que precisa provar alguma coisa quando tudo o mais falhou. E a esposa o deixando e levando as crianças, justo quando ele perdeu o emprego, pode ter perturbado o equilíbrio dele.

— Então tenho de tirá-lo de lá — disse o chefe — do mesmo modo como fizeram com aquele rapaz no Tennessee, que prendeu todos aqueles oficiais no escritório da Receita.

— Não, este não é um caso paralelo — insistiu Fletcher. — Aquele homem tinha uma ficha de psicopata. Billy Bates é um homem solitário, que está buscando atenção; o tipo que vem me ver regularmente.

— Bem, ele certamente chamou minha atenção, senador — respondeu o chefe de polícia.

— O que pode ser precisamente a razão pela qual ele chegou a extremos. — disse Fletcher. — Por que o senhor não me deixa entrar e falar com ele?

O chefe de polícia tirou o charuto da boca pela primeira vez. Oficiais menos graduados teriam alertado Fletcher de que aquilo significava que ele estava pensando.

— O.k., mas tudo que quero que o senhor faça é conseguir que ele atenda o telefone; aí começarei negociações. Está entendido?

Fletcher inclinou a cabeça em sinal de concordância. O chefe de polícia virou-se para o seu imediato e acrescentou: — Dale, diga a nossos homens que o senador e eu vamos lá fora; portanto, que segurem os tiros.

O chefe de polícia apanhou o megafone e disse: — Vamos lá, senador!

Assim que começaram a andar pelo corredor, o chefe de polícia acrescentou firmemente:

— Você só deve caminhar dois passos fora da porta de entrada, e não se esqueça de que sua mensagem tem de ser simples, porque tudo que preciso é que ele atenda o telefone.

Fletcher fez sinal de concordar enquanto o chefe de polícia abria a porta para ele. Deu alguns passos antes de entrar num canto e segurar o megafone.

— Billy, aqui é o senador Davenport, que você foi visitar umas duas vezes. Precisamos falar com você. Será que poderia pegar o telefone sobre a mesa da Srta. Hudson?

— Continue repetindo a mensagem! — vociferou o chefe de polícia.

— Billy, aqui é o senador Davenport, atenda, por favor...

Um jovem policial veio correndo em direção à porta aberta.

— Ele atendeu o telefone, chefe, mas diz que só falará com o senador.

— Eu decidirei com quem ele falará — disse Culver. — Ninguém me dita ordens!

Desapareceu através da porta e quase correu para o escritório do diretor.

— Aqui é o chefe de polícia Culver. Agora ouça, Bates, se você imagina...

O telefone ficara mudo.

— Maldito! — disse Culver, enquanto Fletcher caminhava de volta para a sala.

— Ele desligou o telefone na minha cara; vamos ter de tentar de novo.

— Talvez ele tivesse alertado para esta possibilidade quando disse que só falaria comigo.

O chefe de polícia tirou o charuto da boca novamente.

— O.k., mas no momento em que você o houver acalmado, passe-me o telefone.

Tão logo retornaram ao playground, Fletcher falou através do megafone outra vez.

— Desculpe, Billy, você pode atender outra vez, e desta vez sou eu que vou estar do outro lado da linha.

Fletcher acompanhou Don Culver de volta ao escritório do diretor para descobrir que Billy já estava novamente no speakerfone.

— O senador apenas voltou para a sala — o diretor assegurou-lhe.

— Estou bem aqui, Billy, sou Fletcher Davenport.

— Senador, antes que o senhor diga qualquer coisa, não estou considerando nenhuma negociação enquanto o chefe de polícia tiver todos aqueles rifles apontados para mim. Diga que se afastem, se é que ele não quer nenhuma morte em suas mãos.

Fletcher olhou para Culver, que largava o charuto mais uma vez, antes de concordar.

— O chefe concordou com isso — disse Fletcher.

— Volto a falar com você novamente tão logo eu não possa ver mais nenhum deles.

— Certo — disse o chefe de polícia. — Diga a todos para se afastarem, exceto o homem que o está marcando da torre do norte. Ali não há meios de Bates avistá-lo.

— Então, o que acontece agora? — perguntou Fletcher.

— Vamos esperar que o bastardo nos chame outra vez.

 

 

 

Nat estava respondendo à pergunta sobre redundâncias voluntárias quando sua secretária entrou correndo na sala da diretoria. Todos entenderam que só podia ser urgente, já que Linda jamais interrompera uma reunião de diretoria antes. Nat imediatamente parou de falar quando viu o olhar ansioso na face dela.

— Há um homem armado na Escola Elementar de Hartford... — Nat ficou gelado —... e ele está mantendo a classe da Srta. Hudson como refém.

— Luke está...

— Sim, ele está — respondeu ela. — A última aula de Luke às sextas-feiras é sempre na sala de arte da Srta. Hudson.

Nat levantou-se instantaneamente de sua poltrona e caminhou em direção à porta. O resto da diretoria permaneceu em silêncio.

— A Sra. Cartwright já está a caminho da escola — acrescentou Linda enquanto Nat saía do recinto. — Ela pediu para dizer que se encontrará com o senhor lá.

Nat concordou enquanto empurrava uma porta que o levaria para o estacionamento no subsolo.

— Fique junto ao telefone — foi a última coisa que ele disse a Linda, enquanto entrava no carro. Quando o carro apontou no alto da rampa e saiu na rua principal, ele hesitou por um instante, antes de entrar à esquerda, em vez de à direita, como sempre.

O telefone tocou. O chefe de polícia pegou o megafone e o apontou para Fletcher.

— O senhor está aí, senador?

— Com certeza, Billy.

— Diga ao chefe Culver para permitir que as equipes de TV e da imprensa ultrapassem a barreira; assim vou me sentir mais seguro.

— Calma, espere um instante — Começou o chefe de polícia.

— Não, espere você um minuto! — gritou Billy. — Ou você terá seu primeiro corpo no playground! Tente explicar para a imprensa que só aconteceu porque você não os deixou passar pela barreira.

O telefone ficou mudo.

— É melhor você concordar com o pedido dele, chefe — disse Fletcher — porque parece que ele está determinado a ser ouvido, de um jeito ou de outro.

— Deixe a imprensa entrar — disse Culver, inclinando a cabeça para um dos policiais. O sargento rapidamente deixou o recinto, mas se passaram muitos minutos antes que o telefone tocasse novamente. Fletcher tocou o console.

— Estou ouvindo, Billy.

— Obrigado, Sr. Davenport, o senhor é um homem de palavra.

— Então, o que você quer agora? — grunhiu o chefe.

— Nada do senhor, chefe, prefiro continuar negociando com o senador. Sr. Davenport, preciso que o senhor atravesse e venha se juntar a mim; esta é a única chance que tenho de fazer com que meu caso seja ouvido.

— Não posso permitir que isso aconteça — disse o chefe de polícia.

— Eu não acredito que seja uma questão para o senhor, chefe. Quem tem de decidir é o senador, mas acho que os senhores terão de discutir isso entre si. Eu ligarei de volta em dois minutos.

O telefone emudeceu.

— Ficarei feliz em concordar com a exigência dele — disse Fletcher. — Francamente, não parece que tenhamos muitas outras escolhas.

— Não tenho autoridade para impedi-lo — disse o chefe — mas talvez a Sra. Davenport possa falar-lhe das consequências.

— Não quero que você entre lá — disse Annie. — Você sempre pensa no melhor para todo mundo, mas balas não discriminam.

— Como você se sentiria se Lucy fosse uma das crianças presas lá dentro?

Annie estava a ponto de responder quando o telefone tocou novamente.

— O senhor está a caminho, senador, ou o senhor precisa de um corpo para ajudá-lo a decidir?

— Não, não — disse Fletcher. — Estou a caminho.

O telefone ficou mudo.

— Agora ouça cuidadosamente — disse o chefe de polícia. — Eu posso cobri-lo enquanto estiver ao ar livre, mas o senhor estará por sua conta e risco quando entrar na sala de aula.

Fletcher concordou e abraçou Annie, mantendo-a junto de si por vários segundos.

Culver acompanhou-o ao longo do corredor.

— Vou telefonar para a sala de aula a cada cinco minutos. Se o senhor tiver a chance de falar, eu lhe direi tudo que está acontecendo do lado de cá. Quando eu fizer uma pergunta, responda simplesmente sim ou não. Não dê a Bates nenhuma dica sobre o que eu possa estar tentando descobrir.

Fletcher concordou. Quando eles chegaram à porta, o chefe retirou o charuto da boca.

— Deixe-me guardar seu paletó, senador.

Fletcher pareceu surpreso.

— Se o senhor não está carregando um revólver, por que dar a Bates a impressão de que está?

Fletcher sorriu enquanto Culver segurava a porta aberta para ele.

— Eu não votei no senhor da última vez, senador, mas se o senhor sair vivo, eu talvez reconsidere da próxima. Desculpe — acrescentou — é apenas o meu jeito enrolado de fazer piada. Boa sorte!

Fletcher pisou no playground e começou a andar vagarosamente pelo pátio em direção ao principal edifício de salas de aula. Ele já não podia avistar nenhum dos atiradores de precisão, mas sentiu que não estavam distantes. Embora ele não pudesse ver as equipes de TV, podia ouvir sua conversa tensa enquanto se expunha às milhares de lâmpadas dos flashes das câmeras. O pátio que levava às salas de aula não podia estar a mais de cem metros. Para Fletcher, no entanto, pareceu que caminhava quase dois quilômetros de distância na corda bamba sob o sol inclemente.

Assim que atingiu o outro lado do playground, subiu os quatro degraus da entrada. Entrou por um corredor vazio, escuro, e esperou até que seus olhos se acostumassem com a escuridão. Ao alcançar uma porta onde se liam as palavras "Srta. Hudson", escritas com estêncil em dez cores diferentes, ele bateu devagarinho. A porta foi aberta imediatamente, de modo abrupto. Mal Fletcher colocou seus pés lá dentro, ouviu a porta fechar-se do mesmo modo atrás de si. Quando ouviu a pancada abafada, Fletcher olhou em volta e viu um grupo de crianças aconchegadas no chão a um canto da sala.

— Sente-se ali — Comandou Bates, que parecia tão nervoso quanto Fletcher. O senador se espremeu numa carteira construída para uma criança de nove anos no fim da fila da frente. Olhou para o homem desalinhado, cujos jeans mal cuidados estavam amassados e sujos. Uma barriga se pendurava sobre a linha de sua cintura, apesar de ele não poder ter mais do que quarenta anos. Observou cuidadosamente quando Bates atravessou a sala e ficou atrás da Srta. Hudson, que permaneceu sentada a sua mesa, à frente da classe. Bates empunhava o revólver com a mão direita enquanto colocava o braço esquerdo sobre o ombro dela.

— O que está acontecendo lá fora? — gritou ele. — O que o chefe está pretendendo?

— Está esperando para ouvir de mim — disse Fletcher em voz baixa. — Ele vai telefonar a cada cinco minutos. Está preocupado com as crianças. Você conseguiu convencer a todos lá fora de que é um assassino.

— Não sou um assassino — disse Bates. — Você sabe disso.

— Talvez eu saiba — disse Fletcher —, mas eles ficariam mais convencidos se você soltasse as crianças.

— Se eu fizer isso, então não terei nada com que barganhar.

— Você tem a mim — disse Fletcher. — Mate uma criança, Billy, e todo mundo vai se lembrar de você para o resto de suas vidas; mate um senador, e eles já o terão esquecido amanhã.

— O que quer que eu faça, serei um homem morto.

— Não se tivermos de encarar as câmeras juntos.

— Mas o que diríamos?

— Que você já foi me ver duas vezes, e que você já expôs algumas ideias sensíveis e imaginativas sobre o controle de armas, mas ninguém ouviu. Bem, agora eles terão de sentar e ouvir, porque lhe será dada a chance de falar para Sandra Mitchell no primeiro noticiário do dia.

— Sandra Mitchell? Ela está lá fora?

— Claro que está — Confirmou Fletcher —, e ela está desesperada para entrevistá-lo.

— O senhor acha que ela estaria interessada em mim, Sr. Davenport?

— Ela não veio até aqui para falar com outra pessoa... — disse Fletcher.

— O senhor ficará comigo? — perguntou Bates.

— Pode apostar, Billy! Você sabe exatamente qual é a minha posição sobre o controle de armas. Quando eu me encontrei com você da última vez, você me contou que leu todos os meus discursos a respeito.

— Sim, eu li, mas qual foi o benefício que isso causou? — perguntou Billy. Ele tirou o braço de cima do ombro da Srta. Hudson e começou a caminhar vagarosamente em direção a Fletcher, a arma apontada em sua direção.

— A verdade é que você só está repetindo exatamente as coisas que o chefe o mandou dizer.

Fletcher agarrou o tampo da carteira, sem tirar jamais os olhos de Billy. Se ele ia se arriscar, sabia que precisava ter Billy o mais próximo possível. Ele se inclinou apenas um pouquinho enquanto ainda segurava firmemente o tampo da carteira. O telefone ao lado da Srta. Hudson começou a tocar. Billy estava apenas a um passo, mas o toque do telefone fez com que virasse a cabeça por uma fração de segundo. Isso deu a Fletcher a chance de sacudir o tampo da carteira num movimento súbito, batendo-o sobre a mão direita de Billy. Billy perdeu o equilíbrio momentaneamente e, ao tropeçar, deixou a arma cair. Ambos olharam-na escorregar pelo chão, indo parar num canto justamente a poucos centímetros de distância da Srta. Hudson. As crianças começaram a gritar quando ela caiu de joelhos, agarrou a arma e apontou-a para Billy.

Billy levantou-se lentamente e avançou em direção a ela, enquanto ela permanecia ajoelhada no chão, a arma apontada para o peito dele.

— Você não vai apertar o gatilho, vai, Srta. Hudson?

A cada passo que Billy avançava em direção a ela, a Srta. Hudson tremia mais e mais violentamente. Billy estava a apenas um passo dela quando ela fechou os olhos e apertou o gatilho. Ouviu-se um clique. Billy olhou para cima, sorriu e disse: — Sem balas, Srta. Hudson! Eu nunca pretendi matar ninguém. Eu só queria que alguém me ouvisse para variar.

Fletcher escorregou para fora da carteira, correu para a porta e, num solavanco, abriu-a.

— Fora, fora! — gritou ele, a mão direita fazendo gestos num movimento de sair para as crianças aterrorizadas. Uma menina alta, com longas marias-chiquinhas negras, levantou-se e correu em direção à porta aberta e saiu para o corredor. Duas mais a seguiram bem de perto. Fletcher pensou ter ouvido uma voz sussurrante dizer "vão, vão" enquanto segurava a porta aberta. Todas, com exceção de uma das crianças, vieram correndo em direção a ele, desaparecendo de vista em minutos. Fletcher arregalou os olhos sobre o canto para uma criança remanescente. O garoto lentamente se levantou e caminhou para a frente da classe. Ele se inclinou, segurou a Srta. Hudson pela mão e levou-a em direção à porta, sem jamais olhar para Billy. Quando alcançou a porta aberta, ele disse "Obrigado, senador" e acompanhou sua professora para fora, pelo corredor.

Aplausos barulhentos eclodiram quando a menina alta saiu correndo pela porta da frente. Holofotes focalizaram-na e ela colocou depressa a mão nos olhos, incapaz de ver a multidão que a recepcionava. Uma mãe atravessou o cordão de isolamento e correu pelo playground para tomar a menina em seus braços. Dois meninos correram de perto, logo atrás, enquanto Nat colocava um braço em torno do ombro de Su Ling, procurando desesperadamente por Luke. Poucos momentos depois, um grupo maior saiu correndo pela porta, mas Su Ling não conseguia reter as lágrimas, uma vez que compreendeu que Luke não estava entre eles.

— Ainda falta um para sair — ela ouviu um jornalista relatando no noticiário do início da noite — junto com a professora.

Os olhos de Su Ling nunca desgrudaram da porta aberta para o que ela descreveu, mais tarde, como sendo os dois minutos mais longos de sua vida.

Uma onda maior de aplausos aconteceu quando a Srta. Hudson apareceu na porta de saída, segurando a mão de Luke. Su Ling levantou os olhos para o marido, que estava tentando em vão conter as lágrimas.

— O que há com vocês, Cartwright, que sempre têm de ser os últimos a aparecer? — disse ela.

 

Fletcher permaneceu na porta, até que a Srta. Hudson saísse do alcance dos seus olhos.

Depois ele a fechou devagarinho, e se encaminhou para atender o insistente telefone.

— É o senhor, senador? — perguntou o chefe de polícia.

— Sim.

— O senhor está bem? Pensamos ter ouvido uma explosão, talvez um tiro.

— Não, eu estou bem. Todas as crianças estão seguras?

— Sim, apanhamos todas as trinta e uma — disse o chefe de polícia.

— Incluindo a última?

— Sim, ela acaba de se juntar aos pais.

— E a Srta. Hudson?

— Ela está sendo entrevistada por Sandra Mitchell no noticiário Testemunha Ocular. Ela está dizendo a todos que o senhor é um tipo de herói.

— Acho que ela está falando de alguma outra pessoa — disse Fletcher.

— O senhor e Bates estão planejando sair em algum momento? — perguntou o chefe de polícia, concluindo que o senador estava sendo apenas modesto.

— Dê-me mais uns minutos, chefe. Por falar nisso, concordei que Billy também falasse com Sandra Mitchell.

— Quem está com a arma?

— Eu a tenho — disse Fletcher. — Billy não lhe causará mais nenhum problema. A arma não estava sequer carregada — acrescentou ele, antes de colocar o telefone no gancho.

— O senhor sabe que eles vão me matar, não sabe, senador?

— Ninguém vai matá-lo. Billy; não enquanto eu estiver com você.

— O senhor dá sua palavra, Sr. Davenport?

— Você tem a minha palavra, Billy. Portanto, vamos sair e encará-los juntos. Fletcher abriu a porta da sala de aula. Ele não precisava buscar um interruptor de luz, pois havia tantos megawatts a iluminá-los do playground que ele podia ver claramente a porta ao final da passagem.

Ele e Billy caminharam pelo corredor, lado a lado, sem trocar uma palavra. Quando atingiram a porta principal que os levaria ao playground, Fletcher tentou abri-la, ficando exposto por um holofote, para logo ser cumprimentado por outro estrondoso aplauso vindo da multidão. Mas ele não podia ver suas faces.

— Vai ficar tudo bem, Billy — disse Fletcher, virando-se para ele.

Billy hesitou por um instante, mas finalmente tentou um passo para a frente e parou ao lado de Fletcher. Eles caminharam juntos, lentamente, pela calçada. Ele virou-se e viu Billy sorrir.

— Vai ficar tudo bem — repetiu Fletcher justo no instante em que uma bala atravessou o peito de Billy. O impacto preciso projetou Fletcher para o lado.

Fletcher inclinou-se sobre o corpo de Billy e ficou de joelhos a seu lado, mas era muito tarde. Ele já estava morto.

— Não, não, não!!! — gritou Fletcher. — Eles não compreenderam que dei minha palavra a ele?


38


ALGUÉM ESTÁ COMPRANDO nossas ações — disse Nat.

— Espero que sim — disse Tom. — Afinal de contas, somos uma empresa pública.

— Não, chairman, quero dizer que alguém as está comprando agressivamente.

— Com que propósito? — perguntou Julia. Nat largou a caneta.

— Para tentar nos engolir, aposto.

Muitas pessoas da diretoria começaram a falar ao mesmo tempo, até que Tom deu uma batida na mesa.

— Vamos ouvir Nat falar?

— De uns anos para cá, nossa política tem sido comprar pequenos bancos com problemas e acrescentá-los ao nosso portfolio, e por fim isso tem-se provado uma empresa que vale a pena. Todos vocês conhecem minha estratégia de longo prazo que quer fazer com que o Russell seja a maior presença bancária no estado. O que eu não tinha planejado é que nosso sucesso fosse, por outro lado, nos tornar atrativos para uma instituição ainda maior.

— E você agora está convencido de que alguém está tentando nos assumir?

— Estou praticamente certo disso, Julia — disse Nat — e você é, em parte, culpada. A mais recente fase do Projeto Cedar Wood teve um sucesso tão intenso que nossos lucros brutos praticamente dobraram no ano passado.

— Se Nat estiver com a razão — disse Tom — e suspeito que esteja, existe apenas um a questão que precisa ser respondida. Estamos satisfeitos em sermos engolidos ou queremos enfrentar uma briga?

— Eu só posso falar por mim, chairman — disse Nat — mas eu não sou quarenta, sou apenas um, e, certamente, não estava planejando uma aposentadoria antecipada. Suspeito que não tenhamos nenhuma outra escolha senão brigar.

— Concordo — disse Julia. — Já fui engolida uma vez e não Vou deixar que isso me aconteça de novo. Em todo caso, nossos acionistas não vão esperar até darmos uma reviravolta.

— Sem mencionarmos um ou dois dos presidentes do conselho diretor anterior — disse Tom, olhando para as fotografias de seu pai, de seu avô e de seu bisavô olhando para baixo, para ele, penduradas nas paredes à sua volta.

— Não acredito que precisemos votar sobre isso — Continuou Tom. — Então, por que você não nos mostra quais são nossas opções, Nat?

O diretor-executivo abriu uma das três pastas sobre a mesa à sua frente.

— A lei, nessas circunstâncias, não poderia ser mais clara. Uma vez que uma companhia ou indivíduo tem seis por cento da companhia em questão, precisa declarar sua posição para a Comissão de Câmbio de Washington D.C., e declarar, dentro de um calendário de vinte e oito dias, se é sua intenção fazer uma oferta de controle do restante das ações. E, se assim for, que preço eles estão desejando oferecer.

— Se alguém estiver tentando nos assumir — disse Tom — eles não vão esperar o mês estatutário. Uma vez que atinjam seis por cento, farão uma oferta no mesmo dia.

— Concordo, senhor presidente — disse Nat — mas até lá nada nos impedirá de comprar nossas próprias ações, ainda que elas estejam cotadas um pouco mais alto no momento.

— Mas isso não irá alertar a oposição para o fato de que sabemos o que eles estão planejando? — perguntou Julia.

— Possivelmente; portanto, temos de instruir os corretores para comprarem devagar, e dessa maneira iremos descobrir depressa se existe um grande negociador no mercado.

— Quanto é que possuímos em ações entre nós? — perguntou Julia.

— Tom e eu temos dez por cento cada um — disse Nat — e você está mantendo atualmente... — ele checou alguns números numa outra pasta —... um pouco mais do que três por cento.

— E quanto tenho de dinheiro em depósitos, ainda?

Nat virou a folha.

— Um pouco acima de oito milhões de dólares, sem mencionar as ações do Trump, que você vem liquidando sempre que há uma exigência forte.

— Então por que não pego algumas ações leves, que não seriam tão fáceis de qualquer predador traçar?

— Especialmente se você só tivesse negociado com Joe Stein em Nova York — disse Tom — e depois pedido que ele nos deixasse saber se seus corretores podem identificar qualquer indivíduo ou companhia em particular que esteja comprando agressivamente.

Julia começou a fazer anotações.

— A próxima coisa que temos de fazer é selecionar o mais esperto advogado no setor para assumir os trabalhos — disse Nat. — Falei com Jimmy Gates, que nos representou em todas as nossas ofertas de incorporação anteriores, mas ele disse que isso está fora da sua jurisdição e recomendou um rapaz em Nova York chamado — ele checou outra pasta — Logan Fitzgerald, que se especializou em controle de corporações. Pensei em viajar a Nova York antes do fim de semana e descobrir se ele nos representaria.

— Ótimo — disse Tom. — Há alguma outra coisa que devêssemos fazer nesse ínterim?

— Sim, manter os olhos e os ouvidos abertos, chairman. Preciso descobrir, o mais depressa possível, quem estamos combatendo.

 

 

 

— Sinto muito ouvir isso — disse Fletcher.

— Não é culpa de ninguém — disse Jimmy — e eu não posso fingir que tenha sido bom por algum tempo; portanto, quando a UCLA convidou Joanna para chefiar o Departamento de História, apenas trouxe o assunto à baila.

— Como é que as crianças estão encarando isso?

— Elizabeth está bem, e agora que Harry Junior está na Hotchkiss, os dois parecem ter crescido o suficiente para controlar a situação. Na verdade, Harry prefere a ideia de passar as férias de verão na Califórnia.

— Sinto muito — repetia Fletcher.

— Acho que você vai descobrir que isso é o normal hoje em dia — disse Jimmy. — Não vai demorar muito para você e Annie ficarem em minoria. O diretor me disse que cerca de trinta por cento das crianças da Hotchkiss chegam de lares desfeitos. Você sabe que no tempo em que estávamos lá eu não posso me lembrar de um, talvez dois dos nossos contemporâneos, cujos pais fossem divorciados.

Ele fez uma pausa.

— E o bom da história é que, se as crianças estiverem na Califórnia durante o verão, terei mais tempo para gastar com sua campanha de reeleição.

— E eu preferiria que você e Joanna ainda estivessem juntos — disse Fletcher.

— Você tem alguma ideia de contra quem estará concorrendo? — perguntou Jimmy, obviamente querendo mudar de assunto.

— Não — disse Fletcher. — Ouvi dizer que Barbara Hunter está desesperada para concorrer novamente, mas os republicanos não parecem querê-la como candidata se puderem encontrar uma alternativa metade decente.

— Ouvi um rumor circulando — disse Jimmy — de que Ralph Elliot estava pensando em candidatar-se, mas, francamente, depois do triunfo de Billy Bates, não acredito nem que o arcanjo Gabriel pudesse vencê-lo.

— Billy Bates não foi um triunfo, Jimmy. A morte daquele homem até hoje me assombra. Ele ainda podia estar vivo se eu tivesse sido um pouco mais duro com o chefe Culver.

— Sei que é assim que você vê a questão, Fletcher, mas o público vê de outra maneira. Sua reeleição da última vez provou isso. Tudo de que eles se lembram é que você arriscou a vida para salvar trinta e uma crianças e sua professora favorita. Papai diz que se você houvesse se candidatado à presidência naquela semana estaria hoje morando na Casa Branca.

— Como vai a velha águia? — perguntou Fletcher. — Estou me sentindo um pouco culpado porque não tenho podido visitá-lo recentemente.

— Ele está bem. Gosta de acreditar que ainda está dirigindo tudo e todo mundo, mesmo que só planeje sua carreira.

— Em que ano ele está planejando me ver candidato à presidência? — perguntou Fletcher com um sorriso.

— Isso vai depender de você considerar se candidatar a governador. Quando você estiver no quarto mandato de senador, Jim Lewsam terá completado seu segundo mandato.

— Vai ver eu não quero ser governador.

— Vai ver o Papa não é católico.

 

 

 

— Bom-dia — disse Logan Fitzgerald ao olhar em volta da mesa da sala da diretoria. — Antes que você pergunte — continuou ele — a resposta é os Fairchild.

— Naturalmente — disse Nat. — Malditos sejam! Eu deveria ter descoberto por mim mesmo. Quando você pensa a respeito, eles são os óbvios predadores. Fairchild é o maior banco no estado; setenta e uma filiais para quase nenhum oponente sério.

— Alguém em sua diretoria obviamente considera que sejamos seus sérios rivais — disse Tom.

— Então eles decidiram eliminá-lo antes que você pensasse em fazer a mesma coisa com eles — disse Logan.

— Não posso culpá-los — disse Nat. — É exatamente o que eu faria se estivesse em sua posição.

— E também posso dizer que a ideia original não veio de um membro de sua diretoria — Continuou Logan. — A notificação oficial para a Comissão de Seguridade e Câmbio foi assinada em seu nome pela Belman Wayland & Elliot, e aqui não há prêmios para adivinhação sobre qual das três assinaturas de sócio aparece na linha pontilhada.

— Isso significa que temos uma briga tremenda pela frente — disse Tom.

— Verdade! — disse Logan. — Portanto, a primeira coisa que temos a fazer é começar jogando o jogo de contagem.

Ele voltou sua atenção para Julia.

— Quantas ações você comprou nos últimos dias?

— Menos de um por cento — respondeu ela — porque alguém lá fora fica empurrando o preço para cima. Quando perguntei ao meu irmão, ontem à tarde, ele me disse que no fechamento da Bolsa as ações haviam chegado a 5,20.

— Isso é muito acima dos valores reais — disse Nat — mas é um caminho sem volta para todos nós agora. Pedi a Logan que viesse esta manhã para uma avaliação pessoal sobre as chances que temos de sobrevivência tanto quanto levar-nos a atravessar, o que é provável que aconteça durante as próximas semanas.

— Deixe-me atualizá-lo. Para evitarmos um controle acionário, digamos que até as nove da manhã, senhor chairman — continuou Logan — Russell deve ter em sua posse, ou prometido a ele por escrito, cinquenta e um por cento das ações do banco. A diretoria atualmente mantém um pouco acima de vinte e quatro por cento, e sabemos que os Fairchild já têm pelo menos seis por cento. Em vista disso, parece satisfatório. Entretanto, como os Fairchild estão agora oferecendo 5,10 por ação, pelo período de vinte e um dias, sinto ser meu dever indicar que se vocês decidirem vender suas ações, o valor em dinheiro lhes daria um líquido da ordem de vinte milhões de dólares.

— Nós já tomamos uma decisão quanto a isso — disse Tom firmemente.

— Ótimo, então vocês só têm duas escolhas: tanto podem fazer uma oferta mais alta do que os 5,10 por ação dos Fairchild, lembrando a análise de seu diretor-executivo de que eles estão muito acima do valor real, como podem contactar todos os acionistas, pedindo-lhes que prometam suas ações a vocês.

— A última — disse Nat, sem hesitação.

— Conforme previ que seria sua resposta, Sr. Cartwright, estudei a lista dos acionistas cuidadosamente esta manhã, em que havia 27.412 ao todo, a maior parte mantendo pequenos montantes, umas mil ações ou menos. Mas cinco por cento permanecem nos portfolios de três indivíduos, duas viúvas residindo na Flórida, que detêm dois por cento cada, e o senador Harry Gates, que está de posse de um por cento.

— Como isso é possível? — perguntou Tom. — Harry Gates é conhecido por ter passado sua vida pública inteira vivendo do salário de senador.

— Ele tem de agradecer a seu pai por isso — disse Logan. — Parece que ele era amigo do fundador do banco, que lhe ofereceu um por cento da companhia em 1892. Ele comprou cem ações por cem dólares, e a família Gates as tem mantido desde então.

— Quanto valem agora? — perguntou Tom.

Nat fez uma conta na calculadora e disse: — Feche em meio milhão, e ele provavelmente nem sabe disso.

— Jimmy Gates, filho dele, é um velho amigo meu — disse Logan. — Na verdade, devo meu emprego a ele. E posso dizer que assim que Jimmy descobrir que Ralph Elliot está envolvido, aquelas ações serão imediatamente prometidas a nós. Se vocês puderem colocar as mãos nelas e enrolar as duas velhas senhoras da Flórida, estarão perto de controlar trinta por cento, o que ainda significa que precisarão de outros vinte e um por cento antes que qualquer um possa relaxar.

— Mas, pela minha experiência em controles acionários anteriores, pelo menos cinco por cento não voltarão a tocar qualquer um de nós — disse Nat — quando você considerar mudanças de endereço, fundos de aplicação e até aqueles que, como Harry Gates, não se importam em checar seus portfolios de ano em ano.

— Concordo — disse Logan —, mas não descansarei facilmente até saber que vocês controlam mais do que cinquenta e um por cento.

— Então, como faremos para colocar as mãos naqueles vinte por cento extras? — perguntou Tom.

— Um árduo e maldito trabalho — disse Logan. — Para começar, vocês terão de enviar carta personalizada a todos os acionistas, um pouco mais que vinte e sete mil ao todo. É o tipo de coisa em que consigo pensar.

Logan entregou cópias de uma carta a cada membro da diretoria.

— Vocês verão que me concentrei nas forças do banco, longa história na comunidade, o mais alto lucro bruto de qualquer instituição financeira no estado. Perguntei se eles queriam que o banco terminasse como um monopólio.

— Sim — disse Nat. — O nosso.

— Mas não ainda — disse Logan. — Agora, antes de concordar com esta carta, eu daria as boas-vindas aos seus investimentos, pois tem de ser assinada pelo presidente do conselho executivo ou pelo diretor-executivo.

— Mas isso está acima de vinte e sete mil assinaturas?

— Sim, mas vocês podem dividi-las entre vocês — disse Logan com um sorriso. — Eu não sugeriria uma tarefa tão hercúlea se não estivesse absolutamente seguro de que nossos rivais vão mandar uma circular encabeçada por "Querido Acionista", com uma assinatura estilizada em cima do nome do seu chairman. O toque pessoal poderá fazer a diferença entre a sobrevivência e a extinção.

— Posso ajudar de alguma forma? — perguntou Julia.

— A senhora certamente pode, Sra. Russell — respondeu Logan. — Elaborei uma carta totalmente diferente para a senhora assinar, que deveria ser enviada a todas as mulheres acionistas. A maior parte delas é divorciada ou viúva e provavelmente não checa seu portfolio anualmente. Existem aproximadamente quatro mil dessas investidoras; portanto, isso deveria ocupar todo o seu fim de semana.

Ele empurrou uma segunda carta sobre a mesa.

— Verá que eu me refiro à senhora como uma expertise especial, por ter dirigido sua própria empresa tanto quanto por ter participado como membro da diretoria do Russell nos últimos sete anos.

— Alguma coisa mais? — perguntou Julia.

— Sim — disse Logan, passando-lhe mais duas folhas de papel. — Gostaria que a senhora visitasse as duas viúvas da Flórida.

— Eu poderia ir cedo na próxima semana — disse Julia, checando sua agenda para aquele dia.

— Não — disse Logan firmemente. — Telefone a las ainda esta manhã e voe para vê-las amanhã. Pode estar certa de que Ralph Elliot já lhes fez uma visita.

Julia concordou e começou a procurar nos arquivos o que mais se sabia a respeito das senhoras Bloom e Hargaten.

— E, finalmente, Nat — continuou Logan —, você terá de se envolver numa campanha agressiva na mídia; em outras palavras, vamos amarrar tudo.

— O que é que você tem em mente? — perguntou Nat.

— O bom garoto natural do lugar, herói do Vietnã, aluno de Harvard que voltou a Hartford para levantar o banco com seu melhor amigo. Jogar inclusive sua experiência em corridas ao ar livre, a nação atravessa uma explosão da mania do jogging no momento, e um ou dois deles podem até ser acionistas. E se alguém quiser entrevistá-lo, do Notícias de Bicicleta ao Tricotando Semanalmente, simplesmente aceite.

— E contra quem estarei me apresentando? — perguntou Nat. — O chairman dos Fairchild?

— Não, não acho — disse Logan. — Murray Goldblatz é um astuto banqueiro, mas eles não se arriscariam levá-lo à televisão.

— Por que não? — perguntou Tom. — Ele tem sido o chairman dos Fairchild nos últimos vinte anos, e é um dos mais respeitados financistas no ramo.

— Concordo, chairman — disse Logan. — Mas não se esqueça de que ele teve um ataque cardíaco uns dois anos atrás, e pior, ele gagueja. Isso pode não preocupá-lo, porque está acostumado a isso por anos, mas há chances de que se ele for à televisão o público o veja uma vez apenas. Ele pode ser o mais respeitado banqueiro do estado, mas gaguejar pode ser traduzido por vacilar. Injusto, mas você pode ter certeza de que eles terão pensado nisso ao máximo.

— Então penso que será Wesley Jackson, meu oponente? — disse Nat num quase sussurro. — Ele é um dos banqueiros mais articulados que já enfrentei. Eu, inclusive, ofereci a ele um lugar em nossa diretoria.

— Você pode tê-lo feito — disse Logan — mas ele é negro.

— Estamos em 1988 — disse Nat, enfurecido.

— Estou ciente disso — disse Logan — mas bem acima de noventa por cento de seus acionistas são brancos, e eles levarão isso em consideração da mesma forma.

— Então quem você acha que eles vão apresentar? — perguntou Nat.

— Não tenho a menor dúvida de que você estará disputando com Ralph Elliot.

 

 

 

 

— Então quer dizer que os republicanos acabaram endossando Barbara Hunter depois de tudo? — disse Fletcher.

— Só porque ninguém mais estava disposto a concorrer com você — respondeu Jimmy. — Eles entenderam isso depois de descobrir que você estava nove pontos à frente nas pesquisas.

— Ouvi dizer que imploraram para Ralph Elliot atirar seu chapéu na argola, mas ele disse que não podia pensar nisso enquanto estivesse em meio a uma proposta de tomada do Banco Russell.

— Uma boa desculpa — disse Jimmy — mas não havia como aquele homem permitir que seu nome fosse avante, a menos que soubesse ter uma chance razoável de vencê-lo. Você o viu na televisão ontem à noite?

— Sim — disse Fletcher com um suspiro — e se eu não soubesse mais do que isso, tal vez caísse naquela "tenha certeza do seu futuro associando-se ao maior, mais seguro e mais respeitado banco do estado". Ele não perdeu nem um pouco do seu carisma. Eu só espero que seu pai não tenha acreditado naquela.

— Não. Harry já prometeu seu um por cento ao Tom Russell, e está dizendo a todas as pessoas para fazerem a mesma coisa, pois ele ficou chocado quando eu lhe disse quanto é que suas ações estavam valendo.

Fletcher riu.

— Vejo que os jornalistas especializados em finanças estão especulando sobre o fato de os dois lados terem agora quarenta por cento, faltando apenas uma semana para que as propostas se encerrem.

— Sim, serão encerradas. Espero que Tom Russell compreenda quão sujas elas serão agora que Ralph Elliot está envolvido — disse Fletcher.

— Eu não poderia tê-lo deixado mais claro — disse Jimmy, baixinho.

— Quando é que isso foi enviado? — perguntou Nat, enquanto os demais membros da diretoria estudavam a última carta que circulara para todos os acionistas do Banco Fairchild.

— Está datada de ontem — disse Logan — o que significa que temos três dias para responder, mas na ocasião temo que o estrago já tenha sido perpetrado.

— Até mesmo eu não teria acreditado que Elliot fosse capaz de decair tanto — disse Tom, enquanto estudava a carta assinada por Murray Goldblatz:

 

"Coisas que você desconhecia sobre Nathaniel Cartwright, diretor-executivo do Banco Russell:

— O Sr. Cartwright não nasceu nem foi criado em Hartford;

— foi rejeitado por Yale, depois de trapacear no exame vestibular;

— deixou a universidade sem um diploma;

— foi exonerado do J. P. Morgan depois de fazer a empresa perder US$ 500 000;

— casou-se com uma coreana, cuja família lutou contra os americanos durante a guerra;

— O único emprego que conseguiu encontrar, depois de ser exonerado pelo Morgan, foi através de um velho amigo de escola, que é, justamente, o chairman do Banco Russell.

Prometa suas ações ao Fairchild: tenha certeza de que o seu futuro está garantido."

 

 

— Esta é a resposta que proponho que enviemos hoje, por via expressa — disse Logan — não permitindo que o Fairchild tenha tempo de respondê-la.

Ele passou uma cópia a cada membro da diretoria.

 

"Coisas que você desconhece sobre Nat Cartwright, o diretor-executivo do Banco Russell:

— Nat nasceu e se criou em Connecticut;

— ganhou a Purple Heart no Vietnã;

— completou sua faculdade em Harvard (summa cum laude);

— antes de entrar para a Escola de Administração de Empresas de Harvard, ele se demitiu do Morgan, tendo dado ao banco um lucro acima de um milhão de dólares;

— sua esposa é catedrática de Estatística na Universidade de Connecticut, e o pai dela foi sargento-mestre dos Fuzileiros Navais americanos.

Permaneça no Russell: o banco que se interessa por você e toma conta do seu dinheiro."

 

— Posso distribuí-la imediatamente? — perguntou Logan.

— Não — disse Nat, rasgando-a.

Ele não disse nada por algum tempo.

— É preciso muita coisa para me deixar zangado, mas estou a ponto de matar Ralph Elliot de uma vez por todas; portanto, ouçam cuidadosamente.

Vinte minutos mais tarde, Tom aventurou-se com o primeiro comentário: — Isso seria correr um risco tremendo.

— Por quê? — perguntou Nat. — Se a estratégia falhar, todos nós acabaremos multimilionários, mas, se der certo, teremos o controle do maior banco do estado.

 

 

 

— Papai está lívido com você — disse Jimmy.

— Mas por que, se eu ganhei?

— Esse é o problema. Você ganhou com uma margem de mais de doze mil votos, o que não mostrou nenhuma diplomacia de sua parte — disse Jimmy enquanto observava Harry Jr. correndo pela ponta, a bola nos pés. — Não se esqueça de que ele conseguiu apenas onze mil, uma única vez, em vinte e oito anos, e isso foi quando Barry Goldwater estava concorrendo para presidente.

— Obrigado por me alertar — disse Fletcher. — Acho que devo evitar os próximos dois almoços de domingo.

— É melhor você não fazer isso, pois chegou sua vez de ouvir como foi que ele fez um milhão da noite para o dia.

— Sim, Annie contou que ele vendeu suas ações do Banco Russell. Eu pensei que ele houvesse feito uma promessa de não liberá-las para o Banco Fairchild, sob hipótese alguma?!

— Ele prometeu, e teria mantido a promessa, mas, na véspera, a oferta estava pronta para se encerrar e as ações estavam sendo compradas a 7,10, quando ele recebeu um telefonema de Tom Russell, aconselhando-o a vendê-las. Tom inclusive sugeriu que ele entrasse em contato com Ralph Elliot, de modo que o negócio acontecesse rapidamente.

— Eles estão aprontando alguma coisa — disse Fletcher. — Não há a menor possibilidade de Tom Russell ter dito a seu pai para negociar com Ralph Elliot, a menos que haja um novo capítulo especial a ser escrito nesta saga.

Jimmy não disse nada.

— Quer dizer, então, que podemos presumir que os Fairchild asseguraram mais de cinquenta por cento?

— Eu fiz a Logan a mesma pergunta, mas ele me explicou que devido ao sigilo bancário não poderia dizer nada até segunda-feira, quando os números oficiais seriam liberados pela SEC.

— Puxa! — disse Jimmy. — Você viu o que aquele garoto da Taft acabou de fazer ao Harry Junior? Ele tem sorte de Joanna não estar aqui, caso contrário ela teria corrido para o campo e batido nele.

 

 

 

 

 

— Quem é a favor? — perguntou o presidente do conselho executivo.

Todas as mãos em torno da mesa se ergueram, embora Julia parecesse hesitar por um momento.

— Então é unânime — declarou Tom e, virando-se para Nat, acrescentou: — Talvez você pudesse nos mostrar o que é provável que aconteça agora.

— Certamente, chairman — disse Nat. — Às dez horas desta manhã, a SEC anunciará que o Banco Fairchild falhou em conseguir o controle do Banco Russell.

— Com que percentual acha que vamos terminar? — perguntou Julia.

— Eles tinham 47,89 por cento na noite de sábado, e pode ser que tenham conseguido mais algumas ações no domingo, mas duvido.

— E o preço?

— No encerramento dos negócios, na sexta-feira, estava a 7,32 — disse Logan — mas depois do anúncio desta manhã, todas as promessas serão automaticamente liberadas e o Banco Fairchild não poderá fazer outra oferta por pelo menos vinte e oito dias.

— É aí que pretendo colocar um milhão das ações do Russell no mercado — disse Nat.

— E por que você faria isso — perguntou Julia — quando nossas ações cairiam muitíssimo, com certeza?

— O mesmo acontecerá aos Fairchild, porque eles têm cinquenta por cento do que é nosso — disse Nat — e eles não podem fazer nada a respeito por vinte e oito dias.

— Nada? — repetiu Julia.

— Nada — confirmou Logan.

— E se aí nós usássemos o dinheiro que sobra para comprar as ações do Fairchild quando elas começarem a cair?...

— Você teria de informar à SEC no momento em que atingisse seis por cento — disse Logan — e ao mesmo tempo deixá-los saber que é sua intenção fazer uma tomada total do Banco Fairchild.

— Ótimo! — disse Nat, enquanto puxava o telefone em sua direção e teclava dez dígitos.

Ninguém falou enquanto o diretor-executivo esperava que atendessem a chamada.

— Olá, Joe, é o Nat. Vamos prosseguir com o planejado. Um minuto depois das dez, quero que você coloque as ações do banco no mercado.

— Você compreende que elas cairão como uma pedra — disse Joe — porque você está a ponto de transformar a todos em vendedores?

— Vamos torcer para que você esteja certo, Joe, porque esse é o instante que eu quer o que você comece a sugar as ações dos Fairchild, mas não antes de acreditar que eles chegaram ao fundo do poço. E não pare até que consiga chegar a 5,9 por cento.

— Entendido — disse Joe.

— E Joe, tenha certeza de que está mantendo uma linha aberta dia e noite, porque você não vai dormir muito durante as próximas quatro semanas — acrescentou Nat, recolocando o telefone no gancho.

— Você tem certeza de que não está quebrando a lei? — perguntou Julia.

— Certeza — disse Logan — mas, se sairmos dessa, aposto que o Congresso vai ter de reescrever a legislação sobre os controladores num futuro muito próximo.

— E você considera que o que estamos fazendo é ético? — perguntou Julia.

— Não — disse Nat — e não teria sequer passado pela minha cabeça comportar-me desta forma se eu não estivesse lidando com Ralph Elliot.

Ele fez uma pausa.

— Eu os adverti de que o mataria. Só não lhes disse como.


39


VOCÊ TEM O PRESIDENTE DO CONSELHO EXECUTIVO do Banco Fairchild na linha um, Joe Stein na linha dois e sua esposa na linha três.

— Falarei com o chairman do Fairchild. Peça ao Joe Stein que aguarde e diga a Su Ling que ligarei de volta.

— Sua esposa disse que era urgente.

— Ligarei de volta em poucos instantes.

— Estou passando a ligação do Sr. Goldblatz.

Nat gostaria de dispor de alguns momentos para se recompor antes de falar com o chairman do Fairchild; talvez ele devesse ter dito à secretária que telefonaria de volta. Sr. Goldblatz? Sr. chairman ou senhor? Afinal de contas, ele era chairman do Banco Fairchild desde que Nat ainda estava na faculdade de administração de empresas de Harvard, realizando pesquisas sobre casos bancários.

— Bom-dia, Sr. Cartwright.

— Bom-dia, Sr. Goldblatz, em que posso ajudá-lo?

— Estou telefonando para perguntar se poderíamos nos encontrar.

Nat hesitou porque não tinha muita certeza do que dizer.

— E acho que seria mais aconselhável que estivéssemos a sós — acrescentou ele. — Som... Som... Somente nós dois.

— Sim, tenho certeza de que isso não seria problema — disse Nat — mas terá de ser em algum local onde ninguém nos conheça.

— Posso sugerir a catedral de St. Joseph? — disse o Sr. Goldblatz. — Não acho que alguém pudesse reconhecer-me lá.

Nat riu.

— E quando o senhor gostaria que nos encontrássemos? — perguntou ele.

— Eu diria que seria preferível mais cedo do que mais tarde.

— Concordo — disse Nat.

— Poderíamos combinar às três da tarde de hoje? Não creio que haja muita gente numa segunda à tarde na igreja.

— St. Joseph, três da tarde. Eu o verei lá, Sr. Goldblatz.

Assim que ele desligou o telefone, este tocou outra vez.

— Joe Stein na linha — disse Linda.

— Joe, quais são as novas?

— Acabo de pegar outras cem mil ações dos Fairchild, o que nos leva a vinte e nove por cento. Elas estão valendo atualmente por volta de 2,90, o que é menos do que a metade de seu valor mais alto. Mas você tem um problema — disse Joe.

— E que problema é esse?

— Se você não conseguir cinquenta por cento até sexta-feira desta semana, estará encarando o mesmo problema que o Fairchild sofreu uma quinzena atrás; portanto, espero que saiba qual o próximo passo que vai dar.

— Talvez fique mais claro depois de uma reunião marcada para três da tarde de hoje — disse Nat.

— Isso parece interessante — disse Joe.

— E pode ser que seja — disse Nat — mas não posso dizer nada neste momento, porque eu mesmo não tenho certeza do que se trata.

— Curioso e curioso — disse Joe. — Vou ficar esperando para saber mais. E o que você sugere que eu faça nesse ínterim?

— Quero que você continue comprando cada ação do Fairchild em que você possa colocar a mão até o encerramento da Bolsa esta noite. Depois vamos nos falar novamente antes que o mercado abra amanhã pela manhã.

— Entendi — disse Joe. — Então, é melhor deixá-lo e voltar ao meu andar.

Nat deixou escapar um grande suspiro e tentou imaginar por que Murray Goldblatz quereria conversar. Ele apanhou o telefone novamente.

— Linda, consiga-me uma ligação para Logan Fitzgerald. Ele deve estar no número de Nova York.

— Sua esposa foi enfática ao dizer que era urgente, e telefonou de novo enquanto o senhor estava falando com o Sr. Stein.

— Certo, vou ligar para ela enquanto você tenta encontrar Logan.

Nat discou seu número de casa e começou a tamborilar os dedos na mesa, enquanto continuava pensando sobre Murray Goldblatz e o que ele poderia estar querendo.

A voz de Su Ling interrompeu seus pensamentos.

— Desculpe não ter ligado imediatamente de volta — disse Nat — mas Murray...

— Luke fugiu da escola — disse Su Ling. — Ninguém o vê desde que as luzes se acenderam ontem à noite.

 

 

 

— Sr. Fletcher, o presidente do conselho executivo do Comitê Democrático Nacional está na linha um, o Sr. Gates na linha dois e sua esposa na linha três.

— Falarei primeiro com o presidente do partido. Você podia pedir ao Jimmy para aguardar e dizer a Annie que eu ligarei assim que for possível?

— Mas ela disse que é urgente.

Fletcher gostaria de dispor de um pouco mais de tempo para pensar no que dizer.

Ele só havia encontrado Al Brubaker umas duas vezes, no corredor de uma convenção nacional, e num cocktail em Washington D.C. Ele tinha dúvidas de que o Sr. Brubaker se lembraria de qualquer dessas ocasiões. E, depois, havia o problema de saber como dirigir-se a ele, se "Sr. Brubaker", "Alan" ou até "senhor". Afinal, ele havia sido indicado chairman antes que Fletcher sequer houvesse se candidatado ao Se nado.

— Bom-dia, Fletcher. Al Brubaker.

— Bom-dia, senhor presidente, que bom poder falar com o senhor. Em que posso ajudá-lo?

— Preciso dar uma palavrinha com você em particular, Fletcher, e gostaria de saber se você e sua esposa não gostariam de vir a Washington para jantar comigo e com minha esposa, Jenny, uma noite dessas.

— Ficaríamos encantados — disse Fletcher. — E para quando seria?

— O que lhe parece a noite do próximo dia dezoito? É a próxima sexta-feira.

Fletcher rapidamente folheou as páginas de sua agenda. Ele teria uma reunião política do partido ao meio-dia, que ele não podia perder agora que era o líder dos deputados, mas nada estava anotado para aquela noite.

— A que horas o senhor gostaria que estivéssemos aí?

— Às oito horas, está bom para você? — perguntou Brubaker.

— Sim, sem problema, Sr. Brubaker.

— Ótimo, então será às oito, no dia 18. Minha casa fica em Georgetown, na Rua Norte, 3.038.


Fletcher anotou no espaço logo abaixo do da reunião do partido.

— Estou esperando para vê-lo então, senhor.

— Eu também — disse Brubaker. — E, Fletcher, eu preferia que você não mencionasse isso a ninguém.

Fletcher desligou o telefone. Ia ficar com o tempo apertado, e talvez ele tivesse de sair da reunião mais cedo. O interfone tocou outra vez.

— O Sr. Gates — disse Sally.

— Oi, Jimmy, o que posso fazer por você? — perguntou Fletcher alegremente, desejando contar-lhe sobre o convite para um jantar com o presidente do conselho executivo do partido.

— Não tenho boas novidades — disse Jimmy. — Papai sofreu um novo enfarte e eles o levaram às pressas para o St. Patrick. Estou quase saindo, mas pensei em avisá-lo primeiro.

— Como é que ele está? — perguntou Fletcher, baixinho.

— Difícil saber antes de ouvir o que o médico tem para dizer. Mamãe não foi exatamente coerente ao falar comigo; portanto, eu só saberei ao chegar ao hospital.

— Annie e eu estaremos lá com você o mais rápido possível — disse Fletcher.

Ele desligou e discou o número de sua casa. Estava ocupado. Recolocou o telefone no gancho outra vez e tamborilou os dedos. Se ainda estivesse ocupado quando tentasse novamente, decidiu que dirigiria até em casa e apanharia Annie, de modo que pudessem ir juntos para o hospital. Por um momento, Al Brubaker passou como um raio em sua cabeça. Por que desejaria ele uma reunião privada, que preferia que não fosse mencionada a ninguém? Mas aí os seus pensamentos retornaram a Harry e ele discou o número de casa pela segunda vez. Ouviu a voz de Annie do outro lado da linha.

— Você já soube? — perguntou ela.

— Sim — disse Fletcher. — Acabei de falar com Jimmy. Pensei em ir direto para o hospital, e nós nos encontraríamos lá.

— Não, não se trata apenas de papai — disse Annie. — É a Lucy. Ela levou um tombo terrível quando estava passeando esta manhã. Tem uma concussão e quebrou a perna. Eles a colocaram na enfermaria. Não sei o que fazer agora.

 

 

 

 

— Eu me culpo — disse Nat. — Por causa da batalha pelo controle do Fairchild, não me encontrei com Luke nem uma só vez este semestre.

— Eu também não — admitiu Su Ling. — Mas nós estávamos indo para a peça teatral da escola, na próxima semana.

— Eu sei — disse Nat. — Como ele está interpretando Romeu, você acha que o problema pode ser a Julieta?

— Possivelmente. Afinal, você conheceu o seu primeiro amor no teatro da escola, não foi? — perguntou Su Ling.

— Sim, e aquilo terminou em lágrimas.

— Não se culpe, Nat. Tenho estado bem preocupada com meus formandos nas últimas semanas, e talvez eu devesse ter questionado Luke mais de perto sobre por que ele estaria tão calado e afastou-se durante as férias do semestre.

— Ele sempre foi um pouco solitário — disse Nat. — Crianças estudiosas raramente conseguem uma porção de amigos ao redor.

— Como você sabe disso? — perguntou Su Ling, feliz por ver seu marido sorrir. — E tanto a minha como a sua mãe sempre foram calmas e gentis — acrescentou ela, enquanto dirigia pela autoestrada.

— Quanto tempo você acha que vai levar para chegarmos lá? — perguntou Nat, enquanto olhava o relógio do painel do automóvel.

— A esta hora do dia, mais ou menos uma hora; portanto, espero que cheguemos em torno das três da tarde — disse Su Ling, enquanto tirava o pé do acelerador, uma vez que havia atingido oitenta e oito quilômetros por hora.

— Três? Ai, inferno! — disse Nat, lembrando-se subitamente de um compromisso. — Terei de avisar a Murray Goldblatz que não posso comparecer ao encontro com ele.

— O maioral do Banco Fairchild?

— Ninguém menos. Ele requisitou uma reunião privada — disse Nat ao pegar o telefone do carro. Checou bem depressa o número dos Fairchild na lista telefônica.

— Para discutir o quê? — perguntou Su Ling.

— Deve ser sobre o controle do banco, mas, além disso, não tenho a menor pista.

Nat pressionou os onze dígitos.

— O Sr. Goldblatz, por favor.

— E quem devo anunciar? — perguntou a operadora de telefone.

 

 

 

Os quatro sentaram-se em torno da cama, em silêncio, Martha segurando a mão do marido. Depois de alguns instantes, ela disse: — Vocês não acham que um de vocês deveria ir ver como Lucy está passando? Não há muito que vocês possam fazer aqui.

— Não vou sair daqui — disse Annie —, mas acho que Fletcher precisa ir.

Fletcher assentiu. Beijou Martha no rosto e, olhando para Annie, disse: — Vou voltar logo, assim que me assegurar que Lucy, está O.k. Fletcher não conseguia se lembrar muito da viagem a Lakeville, já que sua mente se dividia entre Harry e Lucy, e por um instante sobre Al Brubaker, embora ele houvesse descoberto que não estava mais tão preocupado sobre o que queria o presidente do partido.

Quando alcançou o sinal da estrada anunciando a interseção para Hotchkiss, os pensamentos de Fletcher voltaram-se para Harry e como eles se haviam conhecido numa partida de futebol.

— Por favor, Senhor, permita que ele viva — rezou ele em voz alta, enquanto dirigia pelo interior de sua velha escola e levava o carro até uma vaga do lado de fora da entrada para a enfermaria. Uma enfermeira acompanhou o senador até o lado da cama de sua filha. Enquanto caminhava pelo amplo corredor de camas vazias, pôde avistar, de longe, uma perna engessada, presa no alto por um gancho. Isso o lembrou de quando se candidatara à presidência do grêmio de estudantes e seu rival havia permitido que os eleitores assinassem no gesso no dia da eleição. Fletcher tentou lembrar seu nome.

— Você é uma trapaceira — disse Fletcher, antes mesmo de ver o amplo sorriso na face de Lucy e as garrafas de soda e sacos de biscoito espalhados a sua volta.

— Eu sei, pai, e até consegui perder uma prova de cálculo, mas terei de estar de volta ao campus na segunda-feira se quiser ter alguma chance de vir a ser presidente da classe.

— Então foi por isso que o vovô veio vê-la, a astuta velha águia — disse Fletcher.

Ele beijou o rosto da filha e estava olhando os biscoitos quando um jovem entrou e postou-se nervosamente do outro lado da cama.

— Este é George — disse Lucy. — Está apaixonado por mim.

— Prazer em conhecê-lo, George — disse Fletcher, sorrindo.

— Da mesma forma, senador — disse o jovem rapaz, enquanto estendia a mão direita sobre a cama.

— George está coordenando minha campanha para presidente da classe — disse Lucy — exatamente como meu avô fez com a sua. George acha que a perna quebrada vai me ajudar a ganhar votos de simpatia. Terei de pedir a opinião do vovô da próxima vez em que ele vier me visitar. Vovô é nossa arma secreta — murmurou ela. — Ele já aterrorizou a oposição.

— Não sei por que me incomodei de vir até aqui para vê-la — disse Fletcher. — É bem visível que você não necessita de mim.

— Sim, preciso, pai. Posso receber adiantada minha mesada escolar do mês que vem?

Fletcher sorriu e apanhou a carteira.

— Quanto foi que seu avô lhe deu?

— Cinco dólares — disse Lucy timidamente.

Fletcher retirou outra nota de cinco dólares.

— Obrigada, pai. Por falar nisso, por que mamãe não veio com você?

 

 

 

Nat concordou em levar Luke de carro para a escola na manhã seguinte. O rapaz ficou calado na noite anterior, quase como que querendo dizer alguma coisa, mas não enquanto ambos estivessem naquele recinto.

— Talvez ele se abra no caminho para a escola, só vocês dois — sugeriu Su Ling.

Pai e filho organizaram a viagem de volta à Taft para logo depois do café da manhã, mas Luke ainda havia falado muito pouco. A despeito da tentativa de Nat de levantar os assuntos de trabalho, a peça de teatro da escola e até mesmo como estava a campanha de Luke, ele recebeu apenas respostas monossilábicas. Então Nat mudou de tática e também permaneceu em silêncio, esperando que Luke fosse, a qualquer momento, dar início a uma conversa.

Seu pai estava na pista de ultrapassagem, dirigindo um pouco acima do limite de velocidade, quando Luke perguntou: — Quando foi que você se apaixonou pela primeira vez, pai?

Nat quase se chocou com o carro da frente, mas diminuiu a tempo, antes de começar a derrapar de volta para o meio da pista.

— Acho que a primeira garota que realmente considerei como um interesse sério foi Rebecca. Ela contracenava como Olivia para o meu Sebastian na peça da escola. — Ele fez uma pausa. — É com Julieta que você está tendo problemas?

— Claro que não — disse Luke. — Ela é doida; bonita, mas doida.

Isso foi seguido por outro longo silêncio.

— E quão longe você e Rebecca chegaram? — perguntou ele finalmente.

— Nós nos beijamos um pouco, se estou lembrado — disse Nat — e havia um pouco daquilo que, naqueles dias, chamávamos de carícias.

— Você desejava tocar os seios dela?

— Claro que sim, mas ela não permitia. Não fui tão longe, até chegar o ano de calouro na faculdade.

— Mas o senhor a amava, papai?

— Pensei que sim, mas a "bomba" não me atingiu de verdade, até que corri para sua mãe.

— Então mamãe foi a primeira pessoa com quem você fez amor?

— Não, houve umas duas garotas antes dela, uma no Vietnã e outra enquanto eu estava na faculdade.

— Você engravidou alguma delas?

Nat mudou para a pista do centro e viu-se bem abaixo do limite de velocidade. Fez uma pausa.

— Você engravidou alguém?

— Eu não sei — disse Luke — e tampouco Kathy sabe, mas enquanto estávamos nos beijando atrás do ginásio fiz uma sujeira tremenda na saia dela.

 

 

 

 

 

Fletcher passou mais uma hora com sua filha antes de dirigir de volta para Hartford. Ele gostou da companhia de George. Lucy o havia descrito como o garoto mais brilhante da classe.

— Foi por isso que eu o escolhi como gerente da minha campanha — explicou ela.

Fletcher estava de volta a Hartford uma hora mais tarde, e, quando ele adentrou o quarto de Harry no hospital, o quadro não mudara. Ele se sentou ao lado de Annie e segurou sua mão.

— Alguma melhora? — perguntou.

— Não, nada — disse Annie. — Ele não se mexeu até agora, desde quando você saiu. E como está Lucy?

— Uma fraude completa, como eu disse a ela. Ela ficará engessada durante seis semanas, o que parece ter afetado seu estilo; na verdade, ela parece convencida de que isso a ajudará nas suas chances de ganhar para presidente da classe.

— Você lhe contou sobre o avô?

— Não, e eu tive de blefar um pouquinho quando ela perguntou onde é que você estava.

— Onde eu estava?

— Presidindo uma reunião do conselho da escola. — Annie anuiu.

— Claro, mas da maneira errada.

— Falando nisso, você sabia que ela tinha um namorado? — perguntou Fletcher.

— Você quer dizer George?

— Você conheceu George?

— Sim, mas eu não o descreveria como um namorado — disse Annie — mas como um escravo devotado.

— Pensei que Lincoln houvesse abolido a escravatura em 1863 — disse Fletcher.

Annie virou o rosto para o marido.

— Isso o preocupou?

— Certamente que não. Lucy terá de ter um namorado mais cedo ou mais tarde.

— Isso não é o que eu quis dizer, e você sabe disso.

— Annie, ela só tem dezesseis anos.

— Eu era mais jovem quando o conheci pela primeira vez.

— Annie, você se esqueceu de que quando estávamos na faculdade marchamos pelos direitos civis, e estou orgulhoso de que passamos essa convicção para nossa filha.


40


QUANDO NAT DEIXOU SEU FILHO NA TAFT e retornou a Hartford, ele se sentia culpado por não ter tido tempo suficiente para visitar seus pais. Mas ele sabia que não podia perder o encontro com Murray Goldblatz duas vezes seguidas. Quando se despediu de Luke, pelo menos o rapaz não parecia mais tão envolvido em mistérios, afogado em mágoas. Nat prometeu-lhe que ele e sua mãe estariam de volta na sexta-feira à tarde, para o teatro da escola. Ele ainda estava pensando em Luke quando o telefone do automóvel tocou — uma inovação que havia mudado sua vida.

— Você ia nos telefonar antes que o mercado abrisse — disse Joe. — Ele fez uma pausa. — Com algumas possíveis novidades?

— Desculpe não ter telefonado, Joe; um problema doméstico aconteceu e simplesmente me esqueci.

— Bem, você já está capacitado a dizer-me mais alguma coisa?

— Mais alguma coisa?...

— Suas últimas palavras foram: "Eu saberei mais em vinte e quatro horas."

— Antes que você caia na gargalhada, Joe, eu saberei mais em vinte e quatro horas.

— Vou acreditar nisso, mas quais são as instruções para hoje?

— As mesmas de ontem. Quero que você compre as ações do Fairchild agressivamente, até o encerramento dos negócios.

— Espero que você saiba o que está fazendo, Nat, porque as contas vão começar a chegar na próxima semana. Todo mundo sabe que o Fairchild pode aguentar esse tipo de tempestade, mas e você, tem certeza que também pode?

— Eu não posso não poder — disse Nat. — Portanto, continue comprando.

— Você é quem manda, chefe; só espero que esteja de paraquedas, porque se você não estiver assegurado em cinquenta por cento do Fairchild às dez da manhã de segunda-feira vai ser uma aterrissagem desastrosa.

Enquanto Nat prosseguia em sua viagem para Hartford, ele compreendia que Joe não estava fazendo mais do que simplesmente declarar o óbvio. Ele sabia que a estas horas, na próxima semana, poderia estar fora do emprego e, mais do que isso, ter permitido que o Banco Russell houvesse sido incorporado pelo seu maior rival. Estaria Goldblatz alertado já para este fato? Claro que estava.

Quando Nat entrou na cidade, decidiu não voltar ao escritório, mas estacionar a umas poucas quadras da catedral de St. Joseph, conseguir alguma coisa para comer e considerar todas as alternativas que Goldblatz pudesse vir a apresentar. Pediu um sanduíche de bacon na esperança de que este o deixaria pronto para brigar. Depois começou a escrever uma lista de prós e contras nas costas do cardápio.

Às dez para as três, ele saiu da delicatessen e começou a voltar lentamente para a catedral. Algumas pessoas inclinavam as cabeças ou diziam-lhe "bom-dia, Sr. Cartwright ", ao passarem por ele, lembrando-o de como se tornara tão conhecido recentemente.

Suas expressões eram de admiração e respeito, e ele desejava apenas que pudesse puxar a carretilha por mais uma semana para ver como suas faces reagiriam então.

Checou o relógio de pulso — quatro minutos para as três. Decidiu dar a volta na quadra e entrar na catedral pela entrada dos fundos, mais tranquila. Subiu os degraus de dois em dois e entrou pela lateral da nave uns dois minutos antes de o relógio da catedral bater a hora. Não ganharia nada chegando atrasado.

Nat levou alguns minutos para se acostumar à escuridão da catedral iluminada a velas depois de sair da forte luz solar do meio-dia. Olhou para a ala central que levava ao altar, dominada por uma cruz de ouro maciço ornamentada com pedras semipreciosas. Transferiu sua atenção para as filas e filas de bancos de carvalho escuro que se alinhavam à sua frente sob a nave. Estavam bastante vazios, como de fato supusera o Sr. Goldblatz, a não ser por quatro ou cinco senhoras misteriosas, de preto, uma delas segurando um rosário e cantando: "Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendito é o fruto..."

Nat continuou até o centro da nave, mas não podia ver nenhum sinal de Goldblatz. Quando chegou a um grande púlpito de madeira entalhada, parou por um instante para admirar a artística mão-de-obra, que o fez lembrar-se de suas viagens à Itália. Sentiu-se culpado por não ter estado advertido para uma tal beleza em sua própria cidade. Olhou novamente para a nave, mas os únicos ocupantes continuavam sendo as velhas senhoras juntinhas, as cabeças baixas, rezando baixinho. Decidiu se encaminhar para o lado distante dos fundos da catedral e sentar-se lá atrás. Olhou novamente para o relógio. Já se passara um minuto das três horas. Enquanto caminhava, percebia o eco que seus passos faziam no mármore do chão. Foi então que ouviu uma voz dizer: "Deseja confessar-se, meu filho?"

Nat virou-se para a esquerda para ver um confessionário com as cortinas fechadas.

Um padre católico com um sotaque judeu? Sorriu. Sentou-se no pequeno banco de madeira e manteve a cortina fechada.

 

 

 

 

— Você parece bem esperto — disse o líder da maioria quando Fletcher sentou-se à direita de Ken. — Todos, e eu também, diríamos que você tinha uma amante.

— Eu tenho uma amante — disse Fletcher — e seu nome é Annie. Por falar nisso, talvez eu tenha de sair por volta das duas horas.

Ken Stratton olhou para a agenda.

— Comigo tudo bem; além da lei sobre educação, não parece que haja muita coisa mais que envolva você, exceto talvez os candidatos para a próxima eleição. Todos nós assumimos que você estará novamente concorrendo por Hartford, a menos que Harry planeje voltar. Falando nisso, como vai a velha águia?

— Está um pouquinho melhor — disse Fletcher. — Impaciente, interferindo, irascível e obstinado.

— Não mudou muito então! — disse Ken.

Fletcher analisou a agenda. Elevação dos fundos era tudo que ele estaria perdendo, e aquele item tinha estado em todas as agendas desde o dia em que ele fora eleito,e ainda estaria lá por muito tempo, até depois de ele se aposentar.

Às doze em ponto, o líder da maioria impôs silêncio e pediu a Fletcher que apresentasse as questões sobre a lei de educação. Pelos próximos trinta minutos Fletcher delineou suas propostas, entrando em considerações sobre aquelas cláusulas que ele previa que os republicanos votariam contra. Depois de cinco ou seis perguntas de seus colegas, Fletcher compreendeu que isso iria requerer toda a sua habilidade legal e de debatedor se quisesse que essa peça da legislação passasse pelo Senado. A última pergunta previsivelmente saiu de Jack Swales, o servidor mais antigo do Senado. Ele sempre fazia a última pergunta, o que era um sinal de que estava na hora de passar para o próximo item da agenda.

— Quanto é que isso custará aos pagadores de impostos, senador?

Outros membros sorriram quando Fletcher desempenhou o ritual: — Está coberto pelo orçamento, Jack, e foi parte de nossa plataforma na última eleição.

Jack sorriu e o líder da maioria disse: — Item número dois, candidatos à próxima eleição.

Fletcher tinha intenção de sair logo, assim que a discussão se iniciasse, mas como todas as demais pessoas no recinto, foi apanhado de surpresa quando Ken começou a falar: — Preciso informar aos meus colegas, com muita pena, que não deverei concorrer à próxima eleição.

A reunião de gente meio sonolenta subitamente passou a explosiva, com "por quê?", "claro que não", e "quem?", até que Ken levantou a mão.

— Não tenho de explicar a vocês por que sinto que chegou a hora da aposentadoria.

Fletcher compreendeu que a imediata consequência da decisão de Ken era ele passar agora a favorito para líder da maioria. Quando seu nome foi chamado, Fletcher deixou claro que concorreria à reeleição.

Saiu de mansinho quando Jack Swales começou a falar sobre por que ele sentia que não era mais do que sua obrigação continuar concorrendo aos oitenta e dois anos.

Fletcher dirigiu uns quinhentos metros até o hospital e subiu correndo as escadas para o segundo andar em vez de esperar pelo elevador. Ele entrou, encontrando Harry discutindo a lei do impeachment para uma atenta audiência de duas pessoas. Martha e Annie viraram o rosto para ele quando entrava no quarto.

— Aconteceu alguma coisa na reunião da "panelinha" que eu devesse conhecer? — perguntou Harry.

— Ken Stratton não vai concorrer.

— Isso não é surpresa. Ellie tem estado doente há algum tempo, e ela é a única coisa que ele ama acima do partido. Mas o que significa é que se nós pudermos nos manter no Senado, você poderia muito bem vir a ser o próximo líder da maioria.

— E quanto a Jack Swales? Será que ele não considera que é a sua vez por direito?

— Em política, nada é seu por direito — disse Harry. — De qualquer modo, aposto que os demais membros não o apoiariam. Agora não perca mais tempo falando comigo; sei que você tem de estar em Washington D.C. para seu encontro com Al Brubaker. Tudo que quero saber é quando vocês pensam estar de volta.

— Primeira hora amanhã de manhã — disse Fletcher. — Nós só passaremos a noite lá.

— Então dê uma passadinha por aqui no retorno do aeroporto. Quero que me dê conta, tintim por tintim, das razões de Al querer vê-lo; e não se esqueça de dar-lhe minhas recomendações, porque ele é o melhor presidente que o partido já teve em muitos anos. E pergunte-lhe se recebeu minha carta.

— Sua carta? — disse Fletcher.

— Apenas pergunte a ele — disse Harry.

— Eu o achei muito melhor — disse Fletcher, enquanto ele e Annie iam para o aeroporto.

— Eu também — disse Annie. — E disseram a Martha que vão inclusive deixá-lo ir para casa na próxima semana se, e apenas se, ele prometer ir devagar com as coisas.

— Ele vai prometer — disse Fletcher — mas agradeça pelas eleições não acontecerem antes dos próximos dez meses.

A ponte aérea para a capital saiu dez minutos atrasada, mas Fletcher tinha considerado este tempo; portanto, quando pousaram, saiu confiante de que teriam tempo suficiente para se registrarem no Hotel Willard, tomar um banho e estar às oito em Georgetown.

Seu táxi estacionou defronte ao hotel dez minutos depois da sete. A primeira coisa que Fletcher perguntou ao carregador era quanto tempo levariam para chegar a Georgetown.

— Dez minutos, quinze talvez... — respondeu ele.

— Então eu gostaria de reservar um táxi para as 7h45.

Annie conseguiu tomar um banho e vestir um traje para cocktail, enquanto Fletcher andava pelo quarto, olhando para o relógio a cada minuto. Ele abriu a porta do táxi para sua esposa às 7h51.

— Preciso estar na Rua Norte, 3.038 — ele olhou o relógio — em nove minutos.

— Não, você não precisa — disse Annie. — Se Jenny Brubaker é parecida comigo, ela ficará agradecida de nós chegarmos uns minutos mais tarde.

O pequeno táxi foi costurando no trânsito, enfrentando o movimento da noite e conseguiu parar ao lado da residência do presidente dois minutos depois da hora. Afinal, ele sabia quem ia pagar a corrida.

— É bom ver você outra vez, Fletcher! — disse Al Brubaker ao abrir a porta de entrada. — E esta é Annie, não é? Acho que não nos conhecemos antes, mas é claro que conheço seu trabalho para o partido.

— O partido? — disse Annie.

— Você não tem um lugar na mesa da diretoria da escola de Hartford tanto quanto na do comitê do hospital?

— É verdade — disse Annie — mas sempre olhei para isso como uma prestação de serviço à comunidade.

— Igualzinha a seu pai — disse Al. — Falando nisso, como está o velho brigão?

— Acabamos de deixá-lo — disse Fletcher. — Pareceu-nos bem melhor, e lhe manda seus melhores votos. Antes que me esqueça, ele queria saber se você recebeu sua carta.

— Sim, recebi. Ele nunca descansa, não é? — acrescentou Brubaker com um sorriso. — Por que vocês não vão até a biblioteca? Vou lhes preparar um drinque. Jenny deve descer logo.

 

 

 

— Como vai seu filho?

— Está bem, obrigado, Sr. Goldblatz. A fuga foi causada por razões do coração.

— Que idade ele tem?

— Dezesseis.

— Uma idade ideal para se apaixonar. Agora, meu filho, você tem alguma coisa a confessar?

— Sim, padre, a esta hora, na próxima semana, serei o presidente do maior banco do estado.

— A esta hora, na próxima semana, pode ser que você nem sequer seja o chefe-executivo de um dos menores bancos do estado.

— O que o faz pensar assim? — perguntou Nat.

— Porque o que podia ser um grande golpe pode ter virado contra, deixando-o superdimensionado. Seus corretores devem tê-lo alertado de que não há chance de você colocar as mãos em cinquenta por cento do Fairchild até segunda de manhã.

— Vai ser uma loucura de fechamento de última hora — disse Nat — e eu ainda acredito que possamos realizá-lo.

— Ainda bem que nenhum de nós é católico, Sr. Cartwright, caso contrário o senhor estaria vermelho, e eu estaria recomendando uma penitência de três ave-marias. Mas não tenha medo, vejo redenção para nós dois.

— Preciso de redenção, padre?

— Nós dois precisamos, o que é a razão pel... pel... pela qual pedi para vê-lo. Esta batalha não nos favoreceu em nada, e se continuar depois de domingo, vai ferir as duas instituições para as quais trabalhamos, e possivelmente fechará a sua.

Nat queria protestar, mas ele sabia que Goldblatz estava certo.

— Então, que forma estas redenções vão tomar? — perguntou ele.

— Bem, penso ter chegado a uma solução melhor do que três ave-marias, que pode limpar-nos dos nossos pecados e talvez trazer um lucro maior.

— Estou esperando suas instruções, padre.

— Tenho acompanhado sua carreira com interesse, esses anos todos, meu filho. Você é muito inteligente, extremamente diligente e ferozmente determinado, mas o que mais admiro em você é que é correto, embora muitos dos meus conselheiros legais me fizessem acreditar no contrário.

— Sinto-me lisonjeado, senhor, mas não vitorioso.

— E você não deveria mesmo. Sou realista e acho que se você não for bem-sucedido desta vez pode ser que tente novamente daqui a uns dois anos, e continuará tentando até conseguir. Estou certo?

— Pode ser que sim, senhor.

— Você tem sido franco comigo; portanto, devo responder gentilmente. Num período de dezoito meses completarei sessenta e cinco anos, quando desejo me aposentar e ir jogar golfe. Eu gostaria de transferir para o meu sucessor uma instituição saudável, não um paciente terminal, que vai e volta do hospital para novos tratamentos. Acredito que você possa ser a solução do meu problema.

— Pensei que eu fosse a causa.

— Todas as razões para nós acertarmos um golpe que é corajoso e criativo.

— Achei que era exatamente isso que eu estava fazendo.

— E você ainda pode, meu filho, mas, por motivos políticos, eu preciso que a ideia toda parta de você, o que significa, Sr. Cartwright, que o senhor terá de confiar em mim.

— O senhor precisou de quarenta anos para construir uma reputação, Sr. Goldblatz. Não posso acreditar que o senhor desejasse trocá-la uns meses antes de estar pronto para se aposentar.

— Eu também me sinto lisonjeado, rapaz, mas, como você, não vitorioso. Desta maneira, eu gostaria de sugerir que foi o senhor que solicitou este encontro para expor sua proposta, qual seja, que em vez de continuarmos a nos digladiar deveríamos, na verdade, trabalhar juntos.

— Uma sociedade? — disse Nat.

— Chame como quiser, Sr. Cartwright, mas se os nossos bancos estivessem para fundir-se, nenhum de nós perderia, e, mais importante que isso, todos os acionistas se beneficiariam.

— E quais são os termos que o senhor está sugerindo que eu deveria recomendar ao senhor, sem mencionar minha diretoria?

— Que o banco fosse chamado Fairchild Russell e que eu continuasse presidente pelos próximos dezoito meses, enquanto o senhor seria indicado como meu vice.

— Mas o que acontecerá a Tom e Julia Russell?

— Obviamente lhes seria oferecida uma posição na mesa da diretoria. Se o senhor passar a ser presidente no período de dezoito meses, dependerá do senhor nomear seu próprio vice, embora eu ache que o senhor seria inteligente se mantivesse Wesley Jackson como seu diretor-executivo. Mas, como o senhor o convidou a fazer parte da sua diretoria alguns anos atrás, não acredito que achasse isso um retrocesso.

— Não, eu não acharia, mas isso não resolve o problema da colocação das ações.

— O senhor detém, atualmente, dez por cento das ações do Russell, tal como seu presidente. Sua esposa, que incidentalmente penso deveria gerenciar nossas carteiras combinadas de propriedades, possuiu até o equivalente a quatro por cento das ações. Mas suspeito de que aquelas sejam as ações que o senhor liberou para o mercado aberto nos últimos dias.

— O senhor talvez esteja certo, Sr. Goldblatz.

— Em viradas e lucros o Fairchild é, gro... gro... grosso modo, cinco vezes maior do que o Russell; portanto, eu sugeriria que quando demonstrasse sua proposta, o senhor e o Sr. Russell pedissem quatro por cento e fechassem em três. No caso do Sr. Russell, eu diria que um por cento seria o apropriado. Vocês três manteriam seus salários e benefícios atuais.

— E minha equipe?

— O status quo deveria permanecer pelos primeiros dezoito meses. Depois disso, a decisão seria sua.

— E o senhor quer que eu o aborde com esta oferta, Sr. Goldblatz?

— Sim, quero.

— Perdoe-me por perguntar, mas por que o senhor não faz simplesmente a proposta o senhor mesmo e deixa meu conselho analisá-la?

— Porque nossos conselheiros legais recomendariam contra. Parece que o Sr. Elliot só tem um propósito em sua tomada, e esse é o de destruí-lo. Eu também só tenho um propósito, que é o de manter a integridade do banco ao qual venho servindo por mais de trinta anos.

— Então, por que não demitir Elliot simplesmente?

— Eu quis isso, no dia seguinte em que ele mandou aquela carta infamante em meu nome, mas não pude admitir um desacordo interno dias antes de encararmos uma incorporação. Posso imaginar o que a imprensa teria feito a respeito, isso sem men... men... mencionar os acionistas, Sr. Cartwright.

— Mas assim que Elliot ouvir que a proposta partiu de mim — disse Nat —, advertirá seu conselho contra, imediatamente.

— Concordo — disse Goldblatz —, e essa é a razão pela qual eu o mandei a Washington ontem, de modo que ele possa reportar-se diretamente a mim tão logo as comissões de câmbio e segurança anunciem a realização de sua oferta de incorporação na segunda-feira.

— Ele vai agir como um rato. Sabe muito bem que não precisa ficar rodando por Washington por quatro dias. Ele poderia viajar de volta no domingo e ainda informá-lo sobre a decisão da comissão na manhã de segunda-feira.

— Engraçado o senhor mencionar isso, Sr. Cartwright, porque foi a minha secretária que desc... desc... descobriu que os republicanos estão tendo encontro de meio do ano em Washington, terminando com um jantar na Casa Branca. — Ele fez uma pausa. — Tive de telefonar pedindo mais um favor, a fim de certificar-me de que Ralph Elliot receberia um convite para aquela augusta reunião. Portanto, acho que o senhor descobrirá que ele está, felizmente, preocupado nesse instante. Tenho lido na imprensa local sobre suas ambições políticas. Ele as nega, naturalmente, mas acredito que devam ser verdadeiras.

— E por que foi que o senhor o empregou, em primeiro lugar?

— Sempre utilizamos os serviços de Belman & Wayland no passado, Sr. Cartwright, e até esta tomada de posse eu nunca havia cruzado com o Sr. Elliot. Culpo a mim mesmo, mas estou pelo menos tentando retificar meu erro. Veja você, eu não tive a sua vantagem de perder para ele duas vezes antes.

— Touché! — disse Nat. — E o que é que acontece depois?

— Tive muito prazer em conhecê-lo, Sr. Cartwright, e deverei colocar sua proposta para os membros do meu conselho no final da tarde. Tristemente, um dos membros do nosso conselho está em Washington, mas eu ainda gostaria de ser capaz de dar-lhe um retorno sobre a nossa reação mais à noitinha.

— Estarei esperando seu telefonema — disse Nat.

— Ótimo, e depois poderemos nos encontrar face a face, e sugiro que isso aconteça o mais breve possível, pois eu gostaria de um acordo assinado até sexta-feira à tarde, dependendo de todas as diligências. — Murray Goldblatz fez uma pausa. — Nat — disse ele —, ontem você me pediu que lhe fizesse um favor; eu agora gostaria de outro, em troca.

— Claro, naturalmente — disse Nat.

— O monsenhor, um homem estranho, pediu uma doação de duzentos dólares pelo uso deste confessionário, e sinto, agora que somos sócios, que você deveria pagar sua parte. Só estou mencionando isso porque vai surpreender meu conselho e permitir-me manter a reputação, entre os amigos judeus, de ser implacável.

— Quero ter certeza de não ser a causa de o senhor perder sua reputação, Padre — asseverou Nat.

Nat saiu de mansinho do confessionário e rapidamente se encaminhou para a entrada dos fundos, onde viu um padre em pé ao lado da porta, vestido com um longo hábito preto. Nat tirou duas notas de cinquenta dólares de sua carteira e estendeu-as.

— Deus o abençoe, meu filho — disse o monsenhor — mas tenho a impressão de que eu poderia dobrar sua contribuição se soubesse em qual dos dois bancos a igreja deveria investir.

 

 

 

 

No momento em que o café foi servido, Al Brubaker ainda não dera nenhuma pista de por que ele desejava ver Fletcher.

— Jenny, por que você não leva Annie para a sala de visitas? Há uma coisa que quero discutir com Fletcher. Iremos encontrá-las em poucos instantes.

Assim que Annie e Jenny saíram, Al disse: — Você aceita um brandy ou um charuto, Fletcher?

— Não, obrigado. Vou continuar aqui com o vinho.

— Você escolheu um ótimo fim de semana para estar em Washington. Os republicanos estão na cidade, preparando-se para o meio do ano. Bush está oferecendo uma festa para eles na Casa Branca esta noite, de modo que os democratas estão se escondendo uns dias. Mas, diga-me — disse Al — Como está o partido se definindo em Connecticut?

— Nós nos reunimos hoje para discutir como buscar nossos candidatos e, inevitavelmente, as finanças.

— Você vai concorrer outra vez?

— Sim, já deixei isso claro.

— E eu soube que você poderá ser o novo líder da maioria.

— A menos que Jack Swales deseje o trabalho; ele é, afinal de contas, o mais antigo servidor.

— Jack? Ele ainda está vivo? Eu poderia jurar que fui ao seu funeral... Não, não posso acreditar que o partido vá apoiá-lo, a menos que...

— A menos?... — disse Fletcher.

— Que você decida candidatar-se a governador.

Fletcher colocou sua taça de vinho sobre a mesa, de tal modo que Al não pudesse perceber que sua mão estava tremendo.

— Você deve ter considerado essa possibilidade.

— Sim, eu considerei — disse Fletcher — mas acreditei que o partido fosse procurar Larry Connick.

— Nosso estimado vice-governador — disse Al enquanto acendia um charuto. — Não, Larry é um bom homem, mas ele está consciente de suas limitações, graças a Deus, porque não são muitos os políticos que as conhecem. Conversei com ele na última semana, na conferência do governador em Pittsburgh. Ele me disse que ficaria contente de permanecer no páreo, mas apenas se sentisse que isso ajudar ia o partido.

Al deu uma tragada em seu charuto e aproveitou o instante antes de acrescentar: — Não, Fletcher, você é a nossa primeira escolha, e se você concordar em jogar o chapéu na argola, tem minha palavra de que o partido vai apoiá-lo. A última coisa que precisamos é de uma eleição briguenta para nosso candidato. Vamos deixar os arranhões verdadeiros para quando tivermos de lutar contra os republicanos, porque seu candidato estará tentando servir-se do fraque de Bush; portanto, podemos esperar uma batalha dura se quisermos permanecer na mansão do governador.

— Você tem alguma ideia de quem os republicanos pretendem apontar? — perguntou Fletcher.

— Eu estava esperando que você me dissesse isso — disse Al.

— Parece que há dois sérios contendores que vêm de diferentes alas do partido. Barbara Hunter, que mora no Palácio do Governo, mas sua idade e sua ficha trabalham contra ela.

— Ficha? — disse Al.

— Ela tem o hábito de ganhar — disse Fletcher — embora tenha, ao longo dos anos, desenvolvido uma base forte no partido. E tal como Nixon nos mostrou, depois de perder na Califórnia, você não pode mais contar com ninguém de fora.

— Quem mais? — disse Al.

— O nome Ralph Elliot significa alguma coisa para você?

— Não — disse o presidente — mas notei que ele é um membro da delegação de Connecticut que está jantando na Casa Branca esta noite.

— Sim, ele está no comitê central do seu estado, e se vier a ser candidato, provavelmente a campanha será muito suja. Elliot é um lutador de boxe sem escrúpulos, que contabiliza a maior parte de seus pontos entre rounds.

— Caso em que ele poderá vir a ser responsabilizado, e isso pode ser um lucro.

— Bem, posso dizer uma coisa, ele é um lutador de rua infernal e não gosta de perder.

— Isso é exatamente o que dizem a seu respeito — disse Al com um sorriso.

— Alguém mais?

— Dois ou três outros nomes estão sendo sondados a respeito, mas, até onde eu saiba, ninguém passou na frente. Vamos encarar os fatos, poucas pessoas haviam sequer ouvido falar de Carter até New Hampshire.

— E que tal este homem — disse Al, segurando a capa da revista Banker's Weekly.

Fletcher arregalou os olhos para a manchete "Próximo Governador de Connecticut?"

— Mas, se você ler o artigo, Al, verá que ele é fortemente cotado para ser o próximo presidente do Banco Fairchild, se os dois bancos entrarem em acordo. Eu dei uma folheada neste exemplar, no avião.

Al virou as páginas.

— Você, obviamente, não chegou até o último parágrafo — disse ele, e leu em voz alta: "Embora se presuma que quando Murray Goldblatz se aposentar será substituído por Cartwright, esta posição poderá ser facilmente assumida por seu amigo mais chegado, Tom Russell, caso o chairman de Russell decida permitir que seu nome saia na frente como candidato a governador pelo Partido Republicano."

Quando ele e Annie voltaram ao hotel e foram para a cama, Fletcher não podia dormir, e não era só porque a cama fosse mais confortável e os travesseiros mais macios do que ele estava acostumado. Al precisava saber sua decisão até o final do mês, enquanto estava ansioso para levantar o partido e correr apoiando seu candidato.

Annie acordou logo depois das sete.

— Você dormiu bem, querido? — perguntou ela.

— Eu mal preguei os olhos.

— Dormi como uma tora, mas acontece que não tinha de me preocupar sobre você ter de se candidatar ou não a governador.

— Por quê? — perguntou Fletcher.

— Porque acho que você deve, e não posso imaginar por que você teria quaisquer reservas.

— Primeiro, eu preciso de uma longa sessão com Harry, porque uma coisa é certa, ele já deve ter dado muitos tratos à bola a respeito disso.

— Eu não teria muita certeza disso — disse Annie. — Acho que você vai descobrir que ele está mais preocupado com Lucy para presidente da classe.

— Bem, talvez eu consiga roubar um momento de sua exclusiva atenção para discutirmos o governo de Connecticut. — Fletcher levantou-se da cama. — Você se importaria se deixássemos o café da manhã de lado e pegássemos um voo cedo? Quero dar uma palavra com Harry, antes de ir para o Senado.

Fletcher quase não falou a viagem toda de volta a Hartford, enquanto lia e relia o artigo da Banker's Weekly sobre Nat Cartwright, possivelmente a nova indicação ao cargo de presidente do Fairchild, ou o próximo governador de Connecticut. Uma vez mais ficara impressionado pelo muito que eles tinham em comum.

— O que você vai perguntar a papai? — disse Annie, enquanto o avião circulava no Bradley Field.

— Para começar, sou muito jovem?

— Mas, como apontou Al, já existe um governador mais jovem do que você, e dois mais ou menos da mesma idade.

— Segundo, em quanto ele avalia as minhas chances?

— Ele não vai querer responder a isso até que conheça seus oponentes.

— E, terceiro, serei capaz de realizar a tarefa?

— Eu sei qual será sua resposta sobre esta questão, porque já discuti isso com ele.

— Graças a Deus não demoramos isso tudo para pousar quando voamos para Washington ontem à noite — disse Fletcher enquanto eles circulavam o aeroporto pela terceira vez.

— Você ainda vai parar e dar uma olhada em papai? — perguntou Annie. — Ele deve estar sentado na cama, esperando para ouvir suas novidades.

— Pensei em fazer minha primeira parada com Harry — disse Fletcher, enquanto dirigia para fora do aeroporto em direção à autoestrada.

Era uma luminosa manhã outonal quando o senador Davenport voltou à cidade. Ele decidiu subir a montanha e passar pelo Capitólio antes de ir ao hospital.

Quando eles se aproximavam do topo da ladeira, Annie olhou através da janela e começou a chorar descontroladamente. Fletcher saiu para o acostamento. Ele tomou a esposa nos braços ao olhar por cima do ombro para o edifício do Capitólio.

A bandeira dos Estados Unidos estava hasteada a meio pau.


41


O SR. GOLDBLATZ SE LEVANTOU de seu lugar ao centro da mesa e olhou para seu depoimento previamente preparado. À sua direita estava sentado Nat Cartwright, e à sua esquerda, Tom Russell. Os demais diretores estavam sentados em fila, atrás dele.

— Senhoras e senhores da imprensa, é um grande prazer para mim anunciar a fusão dos bancos Fairchild e Russell, criando um novo banco, que será conhecido como Fairchild Russell. Permanecerei como chairman, o Sr. Nat Cartwright será meu assessor e Tom e Julia Russell participarão da mesa diretora. O Sr. Wesley Jackson continuará como o novo CEO do banco. Estou autorizado a confirmar que o Banco Russell retirou sua oferta de tomada de posse, e uma nova estrutura de propriedade para a empresa será anunciada num futuro próximo. Tanto Cartwright como eu ficaremos felizes em responder às suas perguntas.

Mãos se ergueram em todo o recinto.

— Sim? — disse o chairman, apontando para uma mulher da segunda fila, com quem h avia pré-arranjado a primeira pergunta.

— Ainda é sua intenção aposentar-se como chairman num futuro próximo?

— Sim, é, e não existem prêmios para quem adivinhar quem eu espero que me suceda.

Ele se virou e olhou para Nat enquanto outro jornalista gritava: — Como se sente o Sr. Russell a esse respeito?

O Sr. Goldblatz sorriu, pois aquela era uma pergunta que todos haviam previsto.

Ele se virou para a esquerda e disse: — Talvez o Sr. Russell gostasse de responder a essa pergunta. Tom sorriu para o jornalista benevolentemente.

— Estou deleitado pela junção de dois bancos liderantes no estado, e honrado por ter sido convidado a fazer parte da diretoria do Fairchild Russell como um diretor não executivo. — Ele sorriu. — Estou esperando que o Sr. Cartwright considere me reapontar quando assumir.

— Mundo perfeito — murmurou o chairman quando Tom voltou ao lugar. Nat logo se levantou do outro lado para dar uma resposta igualmente preparada: — Eu, com toda certeza, indicarei o Sr. Russell, mas não como diretor não executivo.

Goldblatz sorriu e acrescentou: — Estou certo de que isto não será uma total surpresa para aqueles que seguem este assunto de perto. Sim? — disse ele, apontando para outro jornalista.

— Haverá alguma dispensa de funcionários causada pela fusão?

— Não — disse Goldblatz. — É nossa intenção manter todo o quadro do Russell, mas uma das responsabilidades imediatas do Sr. Cartwright será preparar uma completa reestruturação do banco durante os próximos doze meses. Entretanto, eu gostaria de acrescentar que a Sra. Julia Russell já foi indicada para chefiar nossa divisão combinada de propriedades. Nós, aqui do Fairchild, temos observado com admiração a for ma como ela administrou o Projeto Cedar Wood.

— Posso perguntar por que seu conselheiro jurídico, Ralph Elliot, não está presente hoje? — disse uma voz lá do fundo do recinto.

Outra questão que Goldblatz havia antecipado, até mesmo sem ele ver de onde partira a pergunta.

— O Sr. Elliot está em Washington D.C. Ontem à noite ele jantou com o presidente Bush, na Casa Branca, caso contrário estaria aqui conosco esta manhã. Próxima pergunta?

Goldblatz não fez nenhuma referência à "franca troca de pontos de vista" que ele tivera com Elliot ao telefone nas primeiras horas da manhã.

— Falei com o Sr. Elliot esta manhã — disse o mesmo jornalista — e gostaria de saber se o senhor se importaria de comentar a declaração que ele acabou de liberar para a imprensa.

Nat congelou quando Goldblatz levantou-se vagarosamente.

— Eu ficaria feliz de comentar se soubesse o que ele disse.

O jornalista olhou para uma única folha de papel e leu: "Fico feliz que o Sr. Goldblatz tenha se sentido capaz de aceitar meu conselho e tenha juntado os dois bancos em vez de prosseguir com uma batalha que feria e arruinava, da qual ninguém sairia lucrando." Goldblatz sorriu e concordou. "Haverá três membros do conselho disponíveis para substituir o presidente atual num futuro próximo, mas como considero um deles bastante improvável para chefiar um cargo que requer probidade financeira, não fico com outra escolha senão desistir da mesa diretora e retirar-me como conselheiro jurídico do banco. Com esta observação, desejo à companhia todo sucesso no futuro."

O sorriso do Sr. Goldblatz desapareceu rapidamente e ele foi incapaz de conter sua raiva.

— Não tenho nenhum comentário no presente mom... mom... momento, e isso encerra esta co... co... coletiva com a imprensa.

Ele se levantou do seu lugar e encaminhou-se para fora do recinto com Nat a segui-lo, um passo atrás dele.

— O bastardo quebrou seu acordo — disse Goldblatz, furiosamente, ao andar pelo corredor em direção à sala da diretoria.

— Que era o que, precisamente? — perguntou Nat, tentando permanecer calmo.

— Concordei em dizer que ele era parte das bem-sucedidas negociações se em troca ele se demitisse e se retirasse como representante legal da nova companhia, e não fizesse comentários adicionais.

— Temos isso por escrito?

— Não, concordei com isso ao telefone ontem à noite. Ele disse que o confirmaria por escrito hoje.

— Portanto, mais uma vez, Elliot sai cheirando a rosas — disse Nat. Goldblatz foi até um canto do lado de fora da sala da diretoria e virou-se para Nat.

— Não, ele não conseguirá. Acho que o cheiro é mais parecido com esterco — acrescentou ele — e desta vez ele escolheu o homem errado para atrav... atrav... atravessar o caminho.

 

 

 

 

A popularidade na vida de um indivíduo muitas vezes se manifesta apenas na sua morte.

O serviço funerário de Harry Gates, que teve lugar na catedral de St. Joseph, estava entre cheio e abarrotado antes mesmo de o coro ter saído do vestiário. Don Culver, o chefe de polícia, decidiu colocar um cordão de isolamento na quadra, defronte à catedral, de modo que os que participavam do velório pudessem sentar-se nos degraus ou ficar em pé na rua enquanto ouviam o serviço sendo ministrado através dos alto-falantes.

Quando o cortejo chegou a um recanto, uma guarda de honra levou o caixão pelas escadas e entrou na catedral. Martha Gates estava acompanhada de seu filho, enquanto sua filha e seu genro caminhavam um passo atrás deles. Nas escadas da catedral a multidão abriu passagem para permitir à família que se juntasse aos demais parentes do defunto lá dentro. A congregação levantou-se quando alguém conduziu a Sra. Gates ao banco da frente. Enquanto eles caminhavam pela nave, Fletcher notou a presença conjunta de batistas, judeus, episcopais, muçulmanos, metodistas e mórmons, todos unificados em seu respeito por este católico romano.

O bispo iniciou o serviço com uma oração escolhida por Martha, a qual foi seguida por hinos e leituras que Harry teria apreciado. Jimmy e Fletcher leram, ambos, as escrituras, mas foi Al Brubaker, como chairman do partido, que subiu os degraus do púlpito de madeira para fazer seus comentários.

Ele olhou para a imensa congregação e permaneceu silencioso por instantes.

— Poucos políticos — começou ele — inspiram respeito e afeição, mas se Harry pudesse estar conosco hoje, ele veria por si mesmo que estava naquele seleto grupo. Vejo muitos que nunca vi antes nesta congregação se aproximarem — fez uma pausa — portanto, tenho de presumir que sejam republicanos.

Uma gargalhada ecoou dentro da catedral e, na rua, uma onda de aplausos.

— Aqui está um homem que quando solicitado pelo presidente para candidatar-se a governador deste estado respondeu simplesmente: "Eu não completei meu trabalho como senador por Hartford", e ele nunca conseguiu; como presidente do meu partido, tenho comparecido aos funerais de presidentes, governadores, senadores, congressistas e mulheres do Congresso, junto aos fortes e poderosos, mas este funeral tem uma diferença, porque o povo também está presente, comparecendo para dizer, simplesmente, obrigado.

"Harry Gates foi obstinado, verborrágico, irascível e exasperante. Ele também era apaixonado pela perseguição das causas em que acreditava. Leal com os amigos, justo com os oponentes, ele era um homem cuja companhia você procurava simplesmente porque ela enriquecia sua vida. Harry Gates não era santo, mas haverá santos esperando nos portões dos Céus para recebê-lo.

"A Martha nós dizemos obrigado por ser indulgente com Harry e todos os seus sonhos, muitos dos quais conquistados; um por ser ainda preenchido. A Jimmy e a Annie, seus filho e filha, dos quais ele era extraordinariamente orgulhoso. A Fletcher, seu amado genro, a quem tem sido dado o inevitável fardo de carregar a tocha. E a Lucy, sua neta, que foi eleita presidente da classe uns poucos dias depois de ele falecer. A América perdeu um homem que serviu seu país em casa e fora dela, na guerra e na paz. Hartford perdeu um servidor público que não será facilmente substituído."

"Ele me escreveu uns dias atrás. — Brubaker fez uma pausa. — Implorando dinheiro, que coragem!, para seu amado hospital. Ele disse que não falaria nunca mais comigo se eu não mandasse o cheque. Considerei os prós e os contras daquele tratamento particular."

Passou-se um bom tempo antes que as risadas e os aplausos terminassem.

— Por fim, minha esposa mandou um cheque. A verdade é que nunca passou pela cabeça de Harry que, se ele pedisse, vocês não o dariam, e por quê? Porque ele passou a vida toda se dedicando, e agora temos de transformar seus sonhos em realidade e construir um hospital em sua memória, do qual ele ficaria orgulhoso.

"Li no Washington Post, na semana passada, que o senador Harry Gates havia morrido, e então viajei para Hartford esta manhã e passei pelo centro dos cidadãos antigos, a biblioteca e a pedra fundamental do hospital que leva seu nome. Devo escrever ao Washington Post amanhã, quando voltar, e dizer-lhes. "Vocês estão errados. Harry Gates está vivo e chutando!""

O Sr. Brubaker fez uma pausa ao olhar para a congregação abaixo, seus olhos fixando-se em Fletcher.

— Aqui havia um homem! Quando virá outro igual?

 

Nos degraus da catedral, Martha e Fletcher agradeceram a Al Brubaker por suas palavras.

— Qualquer coisa menos — disse Al — e ele teria aparecido no púlpito ao meu lado, exigindo uma recontagem.

O chairman apertou as mãos de Fletcher.

— Eu não li toda a última carta de Harry para mim — disse ele — mas eu sabia que vocês gostariam de ver o último parágrafo.

Ele escorregou a mão para um bolso interno, retirou a carta, desdobrou-a e passou-a para Fletcher.

Quando Fletcher leu as últimas palavras de Harry, olhou para o chairman e concordou.

 

Tom e Nat desceram juntos os degraus da catedral e juntaram-se à multidão enquanto ela se dispersava silenciosamente.

— Gostaria de tê-lo conhecido melhor — disse Nat. — Você acredita que eu o convidei para entrar para a mesa da diretoria quando ele se aposentou do Senado? — Tom concordou. — Ele escreveu à mão uma carta tão gentil, explicando que a única mesa em que ele se sentaria seria a do hospital.

— Só o encontrei umas duas vezes — disse Tom. — Ele estava zangado, naturalmente, mas você tem de estar se escolhe passar sua vida inteira carregando pedregulhos para cima da montanha. Nunca diga a ninguém, mas ele foi o único democrata em quem eu já votei na minha vida.

Nat riu. — Você também? — admitiu ele.

— Como você se sentiria se eu recomendasse que a diretoria fizesse uma doação de cinquenta mil dólares para o fundo hospitalar? — perguntou Tom.

— Eu me oporia — disse Nat. Tom pareceu surpreso. — Porque quando o senador vendeu as ações do Russell, ele imediatamente doou cem mil dólares para o hospital. O mínimo que podemos fazer é responder com a mesma quantia.

Tom concordou e virou-se para ver a Sra. Gates em pé no topo dos degraus da catedral. Escreveria para ela naquela tarde, incluindo o cheque. Ele suspirou: — Veja quem está apertando as mãos da viúva!

Nat deu a volta para ver Ralph Elliot segurando a mão de Martha Gates.

— Você está surpreso? — disse ele. — Eu já posso vê-lo dizendo quão feliz ele ficou por Harry ter aceito seu conselho e vendido aquelas ações do Banco Russell, ganhando um milhão.

— Ó meu Deus — disse Tom — você está começando a pensar como ele!

— E eu vou ter de pensar assim, se quiser sobreviver nos próximos meses.

— Isso já não é mais um problema — disse Tom. — Todo mundo no banco aceita que você venha a ser o próximo presidente.

— Não estou falando do cargo de presidente — disse Nat.

Tom foi até um canto à frente dos degraus do banco e virou-se para encarar seu mais antigo amigo.

— Se Ralph Elliot colocar seu nome à frente como candidato republicano a governador, então deverei concorrer com ele. — Ele olhou em direção à catedral. — E desta vez vou vencê-lo!


42

 

 

SENHORAS E SENHORES, Fletcher Davenport, o próximo governador de Connecticut!

Fletcher se surpreendeu ao ser imediatamente apresentado como o próximo governador, uns poucos instantes depois de selecionado como candidato do Partido Democrata; nenhuma sugestão de um oponente, nenhuma insinuação de que viesse a perder. Mas lembrou-se muito bem de Walter Mondale sendo apresentado como o próximo presidente dos Estados Unidos, e terminando como embaixador em Tóquio, enquanto Ronald Reagan é que se mudava para a Casa Branca.

Assim que Fletcher telefonou para Al Brubaker, confirmando ser seu desejo concorrer, a máquina do partido voltou-se depressa para apoiá-lo. Uma ou duas cabeças democráticas apareceram sobre a balaustrada, mas, como patos na mira dos caçadores, eles foram rapidamente acertados.

Ao final, a única oposição a Fletcher passou a ser uma congressista que nunca havia feito nenhum mal, tampouco nenhum bem — bem o suficiente, ao menos — para ser notada por qualquer pessoa. Assim que Fletcher a derrotou nas eleições primárias de setembro, a máquina do partido subitamente transformou-a num oponente formidável que havia sido vencido, alto e bom som, pelo candidato mais impressionante que o partido já houvera produzido em anos. Mas Fletcher sabia, particularmente, que ela não havia sido mais do que uma oponente só no papel e que a batalha real começaria assim que os republicanos houvessem selecionado seu padrão de titular.

Embora Barbara Hunter continuasse tão ativa e determinada quanto sempre fora, ninguém acreditava, de fato, que ela fosse encabeçar a cédula republicana.

Ralph Elliot já possuía o apoio de diversos membros-chave do partido, e sempre que ele falava em público ou em particular, o nome de seu amigo, e até ocasionalmente seu mais íntimo amigo, Ronnie, saía com facilidade dos seus lábios. Mas Fletcher ouvir a repetidos rumores sobre um grande grupo de republicanos que estava pesquisando uma alternativa confiável; caso contrário, eles até votariam nos democratas, ou se absteriam de votar. Fletcher descobriu ser enervante ficar esperando para descobrir quem seria aquele oponente. No final de agosto, compreendeu que se tivesse de haver um candidato surpresa, eles estavam deixando que isso ficasse sedutoramente para mais tarde, para ganharem lá na frente.

Fletcher olhou para a multidão lá embaixo à sua frente. Era seu quarto discurso no dia, e ainda não era meio-dia. Ele sentia falta da presença de Harry naqueles almoços de domingo, onde ideias podiam ser testadas e decidir-se se eram desejáveis. Lucy e George estavam felizes por acrescentar suas contribuições, que apenas o relembravam sobre quão indulgente Harry fora quando ele teve de se apresentar com sugestões que o senador já devia ter ouvido pelo menos cem vezes antes, mas nunca antes tão insistidas. Mas a geração seguinte certamente não deixava nenhuma dúvida a Fletcher sobre o que o corpo discente da Hotchkiss esperava do seu governador.

O quarto discurso de Fletcher naquela manhã não diferia em muito dos outros três: na sede da fazenda Pepperidge, em Norwalk, nos escritórios da Wiffle Bali, em Shelton e para os ferramenteiros da Stanley, na Nova Inglaterra. Ele apenas alterou um parágrafo ocasional para dar a conhecer que a economia do estado não estaria em tão boas condições sem sua contribuição em especial. Ao almoçar com as Filhas da Revolução Americana, falhou em não mencionar sua ancestralidade escocesa, seguindo-se mais três discursos à tarde, mas comparecendo, antes, a um jantar de levantamento de fundos, que não ia produzir mais do que dez mil dólares.

Por volta da meia-noite, ele se enfiou na cama e passou os braços em torno da esposa que dormia e suspirava ocasionalmente. Ele lera, em algum lugar, que Reagan, certa vez, estava em campanha e fora encontrado abraçando um poste de luz. Fletcher tinha rido na ocasião, mas já não ria mais.

"Romeu, Romeu, qual a razão para a arte, então, Romeu?"

Nat teve de concordar com a avaliação de seu filho. Julieta era bonita, mas, provavelmente, não seria o tipo de garota pela qual Luke se apaixonaria. Com cinco outras mulheres no elenco, ele tentou decidir qual delas poderia ser. Quando a cortina desceu para o intervalo, ele pensou que Luke dera uma mudada na performance e sentiu um brilho de orgulho ao sentar-se no auditório, ouvindo os aplausos. Seus pais haviam visto a peça na noite anterior e disseram-lhe que eles sentiram o mesmo orgulho de quando ele desempenhara o papel de Sebastian, no mesmo edifício.

Assim que Luke saiu do palco, Nat descobriu-se pensando no telefonema que recebera de Washington pela manhã. Sua secretária presumiu que fosse Tom, fazendo uma de suas costumeiras brincadeiras, quando lhe perguntou se ele estava disponível para falar com o presidente dos Estados Unidos.

Nat ergueu-se quando George Bush veio ao telefone.

O presidente o parabenizou pelo fato de Fairchild & Russell ter sido eleito o banco do ano — sua desculpa para telefonar — e, então, acrescentou a simples mensagem: "Muitas pessoas em nosso partido esperam que você libere seu nome para a candidatura a governador. Você tem muitos amigos e correligionários em Connecticut, Nat. Vamos torcer para que nos encontremos em breve."

Toda Hartford sabia, em uma hora, que o presidente tinha telefonado, mas aí operadores de mesa também têm um trabalho de rede, eles próprios. Nat contara apenas a Su Ling e Tom, e eles não pareceram surpresos.

"A troca do teu amor fiel a mim promete."

A mente do pai retornou à peça.

Nat descobriu que as pessoas começavam a para-lo na rua e a dizer: "Espero que você se candidate a governador, Nat" — Sr. Cartwright — até mesmo senhor. Quando ele e Su Ling entraram no edifício naquela tarde, as cabeças se viraram e ele sentiu um cochicho a sua volta. No carro, a caminho da Taft, não Perguntou a Su Ling se achava que ele devia se candidatar, mas disse simplesmente: — Você acha que serei capaz de fazer o trabalho?

— O presidente parecia pensar que sim — respondeu ela.

Quando a cortina desceu, logo após a cena da morte, Su Ling comentou:

— Percebeu que as pessoas estão olhando para você? — Ela fez uma pausa. — Suponho que você vai ter de se acostumar com o fato de seu filho ser um astro.

Quão depressa ela conseguia trazê-lo de volta à Terra! E que esposa de governador ela não daria!

O elenco e seus pais foram convidados a cear com o diretor da escola; então Nat e Su Ling se dirigiram à casa dele.

— É a ama.

— Sim, ela teve um ótimo desempenho — disse Nat.

— Não, seu louco, a ama deve ser a pessoa por quem Luke se apaixonou — disse Su Ling.

— O que lhe dá tanta certeza assim? — perguntou Nat.

— Quando a cortina caiu, eles se deram as mãos, e tenho certeza de que não se tratava de orientação do trabalho original de Shakespeare — disse Su Ling.

— Bem, estamos a ponto de descobrir se você está certa — disse Nat, quando eles entraram na casa do diretor da escola.

Encontraram Luke tomando Coca-Cola no corredor.

— Oi, pai — disse ele, virando-se para olhá-los. — Esta é Kathy Marshall; ela interpretou a ama. — Su Ling procurou não rir. — E esta é minha mãe. Kathy não estava fantástica? Ela pretende fazer um mestrado em dramaturgia, na Sarah Lawrence.

— Sim, ela estava fantástica, mas você não estava mal — disse Nat. —Ficamos muito orgulhosos de você.

— Já tinha visto esta peça antes, Sr. Cartwright? — perguntou Kathy.

— Sim, quando Su Ling e eu visitamos Stratford. A ama era interpretada por Celia Johnson, mas não acredito que você já tenha ouvido falar dela.

— Breve Encontro — Kathy respondeu, imediatamente.

— Noel Coward — disse Luke.

— E Trevor Howard contracenou com ela — disse Kathy.

Nat inclinou a cabeça para o filho, que ainda estava vestido de Romeu.

— Você deve ser o primeiro Romeu que se apaixonou pela ama — disse Su Ling.

Kathy riu. — É o complexo de Édipo dele — disse. — E como a Srta. Johnson leu o personagem? Quando minha professora de teatro viu a peça, e ela ainda não era formada, com Dame Edith Evans, disse que ela interpretou a ama como uma matrona de escola, rígida e firme, mas amorosa.

— Não — disse Su Ling —, Celia Johnson retratou-a um tanto atrapalhada, imprevisível, mas também amorosa.

— Que ideia interessante! Devo procurar o diretor. Naturalmente eu adoraria ter interpretado Julieta, mas não sou muito boa de se olhar muito tempo acrescentou ela como um assunto definitivo.

— Mas você é bonita — disse Luke.

— Você é dificilmente um juiz confiável sobre este assunto, Luke — disse ela, pegando sua mão. — Afinal, você tem usado óculos desde os quatro anos.

Nat sorriu e pensou na sorte que Luke tinha em ter Kathy como amiga.

— Kathy, você gostaria de vir passar alguns dias conosco, durante as férias de verão? — perguntou Nat.

— Sim, se isso não for lhe causar nenhum transtorno, Sr. Cartwright — respondeu Kathy. — Porque eu não gostaria de atrapalhá-lo.

— Atrapalhar? — inquiriu Nat.

— Sim, Luke me disse que o senhor vai se candidatar a governador.

 

"BANQUEIRO DA CIDADE CONCORRE A GOVERNADOR", dizia a manchete do Hartford Courant. Uma página interna era dedicada ao perfil de um brilhante jovem financista que, vinte e cinco anos antes, havia sido premiado com a Purple Heart, progredindo na carreira com o papel que desempenhara na fusão entre a pequena família do Banco Russell, com suas onze filiais locais, e os Fairchild, com seus cento e dois estabelecimentos espalhados pelo estado. Nat sorriu quando se lembrou do confessionário da catedral de St. Joseph e a maneira graciosa como Murray Goldblatz continuou a expressar a impressão de que a ideia original tinha sido dele, Nat. Ele continuara aprendendo lições valiosas com Murray, que nunca baixou a guarda ou os padrões.

O editorial do Courant sugeria que a decisão de Nat de concorrer com Ralph Elliot sob a bandeira republicana tinha aberto a contenda, uma vez que ambos eram candidatos fora de série no topo de suas profissões. O editorial não favorecia este ou aquele, mas prometia relatar com justiça sobre o duelo entre o banqueiro e o bacharel, que, sabidamente, não gostavam um do outro. "A Sra. Hunter também vai concorrer", adicionavam eles no último parágrafo, quase como se fosse um pensamento de última hora que sumarizava o ponto de vista do Courant sobre as chances dela agora que Nat havia autorizado que seu nome fosse considerado.

Nat sentiu-se bem satisfeito com a cobertura da imprensa e da televisão que se seguiu a esse anúncio, e ainda mais contente pela reação favorável do público nas ruas. Tom havia tirado dois meses de licença do banco para cuidar da campanha de Nat, e Murray Goldblatz enviara um cheque substancial para os fundos da campanha.

O primeiro encontro foi realizado na residência de Tom naquela noite, quando o chefe de equipe de Nat explicou aos cuidadosamente escolhidos membros da equipe que eles ficariam acordados, combatendo durante as próximas seis semanas.

Levantar-se antes do sol todas as manhãs e desmaiar na cama depois da meia-noite tinha bem poucas compensações, mas uma não esperada por Nat era a fascinação de Luke pelo processo eleitoral. Ele passou suas férias acompanhando o pai por toda parte, muitas vezes com Kathy a seu lado. Nat estava gostando mais e mais dela a cada dia que passava.

Nat levou um pouquinho de tempo para se acostumar à nova rotina, e sendo lembrado por Tom de que você não pode "latir" suas instruções para voluntários, e que precisa agradecer-lhes sempre, embora eles possam ter feito muito pouco e embora o tenham feito mal. Mas, mesmo com seis discursos e uma dúzia de reuniões por dia, a curva do aprendizado provou-se acentuada.

Ficou claro, rapidamente, que Elliot tinha estado em campanha, por diversas sema nas, esperando que sua precoce preparação lhe desse uma indiscutível vantagem. Nat logo compreendeu que, embora a primeira convenção de Ipswich fosse render apenas dezessete votos, sua importância era desproporcional aos números envolvidos, como em New Hampshire na eleição presidencial. Ele visitou cada um dos eleitores de parti do e saiu com a dúvida de se, talvez, Elliot não havia estado lá antes dele.

Embora seu rival já houvesse entrado em acordo com vários delegados, ainda permaneciam uns poucos hesitantes, que não se haviam decidido ou simplesmente não confiavam no homem.

À medida que os dias corriam, Nat descobriu que se esperava sempre que ele estives se em dois lugares ao mesmo tempo, porque as primárias em Chelsea aconteciam apenas dois dias depois da convenção em Ipswich. Elliot estava agora passando a maior parte do seu tempo em Chelsea, pois considerava já haver conquistado a convenção de Ipswich.

Nat retornou a Ipswich na noite da votação pela convenção para ouvir o anúncio de que Elliot havia conquistado dez dos votos, enquanto ele tinha assegurado sete.

A equipe de Elliot, enquanto clamava que era um claro atalho de vitória, era incapaz de esconder seu desapontamento. Tão logo ele ouviu o resultado, Nat correu para o carro e Tom o recebeu de volta em Chelsea à noite.

Para sua surpresa, os jornais locais descontaram o resultado em Ipswich, dizendo que Chelsea, com um eleitorado de mais de onze mil votantes, seria muito mais do que um indicador de como o público se sentia em relação aos dois homens, em vez de ler em qualquer coisa sob o ponto de vista de um punhado de "mulheres frescas e medrosas" do partido. E Nat certamente sentiu-se mais relaxado nas ruas, nos shoppings, nos portões das fábricas, e nas escolas e clubes do que quando estivera em salas repletas de fumantes, ouvindo as pessoas que acreditavam ser seu "o direito dado por Deus" de selecionar o candidato.

Depois de umas duas semanas sentindo a pressão na carne, Nat disse a Tom que estava muito encorajado pelo número de eleitores que diziam que o apoiariam. Mas estaria Elliot recebendo a mesma resposta?, ele se perguntava.

— Não tenho a mínima ideia — disse Tom enquanto eles se dirigiam para mais uma reunião — mas posso dizer que estamos ficando sem dinheiro depressa. Se formos vencidos em grande escala amanhã, talvez tenhamos de nos retirar do páreo, tendo tom ado parte em uma das mais curtas campanhas da história. Poderíamos, é claro, deixar o mundo saber que Bush está apoiando você, porque isso com certeza arrebataria alguns votos.

— Não — disse Nat firmemente. — Esta é uma chamada particular, não um endosso.

— Mas Elliot nunca para de falar sobre sua ida à Casa Branca com seu velho amigo, George, como se fosse um jantar a dois.

— E como é que você acha que o restante da delegação republicana se sentiu a respeito disso?

— Isso é algo muito chocante para o eleitor médio — sugeriu Tom.

— Nunca os subestime — disse Nat.

Nat não conseguia se lembrar de muita coisa do dia da eleição primária em Chelsea, exceto que não parou de se mexer. Quando foi anunciado, logo depois da meia-noite, que Elliot havia vencido por 6.109 votos contra 5.302 para Cartwright, a única pergunta de Nat foi: — Teremos como continuar, agora que Elliot ganhou de vinte e sete a dez líderes entre os delegados?

— O paciente ainda está respirando — respondeu Tom — mas apenas por um fio; portanto, é partir para Hartford, e se Elliot ganha aquela da mesma forma, não seremos capazes de parar sua roda-viva rolando sobre nós. Dê-se por feliz por você ter um trabalho para o qual voltar um dia — acrescentou ele, com um sorriso.

A Sra. Hunter, que havia recebido apenas dois votos do colégio eleitoral, aceitou a derrota e disse que estava se retirando do páreo e que anunciaria em futuro próximo que candidato apoiaria.

Nat gostou de estar de volta a sua cidade, onde as pessoas nas ruas o tratavam como amigo. Tom sabia quanto esforço tinha de ser colocado em Hartford, não apenas porque era sua última chance, mas, como capital do estado, continha o maior distrito eleitoral — dezenove ao todo — Com a regra pré-histórica de que o ganhador leva tudo; portanto, se Nat chegasse ao topo das pesquisas, ele lideraria por 29 a 27. Se perdesse, podia desfazer as malas e ficar em casa.

Durante a campanha, os candidatos eram convidados a comparecer a funerais juntos, mas sempre que o faziam raramente tomavam conhecimento da presença um do outro, e por certo nunca pararam para um bate-papo.

A três dias das eleições primárias, uma pesquisa no Hartford Courant colocava Nat dois pontos à frente do rival, e eles relataram que a Sra. Barbara Hunter estava dando seu apoio a Cartwright. Isso era exatamente o estímulo de que a campanha de Nat precisava. Na manhã seguinte, ele notou que muito mais trabalhadores não estavam com ele na rua e muito mais passantes aproximavam-se para estender-lhe as mãos.

Ele se encontrava no Shopping Robinson quando uma mensagem de Murray Goldblatz chegou: "Preciso vê-lo urgentemente."

Murray não era o tipo de pessoa que usasse a palavra urgente, a menos que aquilo fosse exatamente o que ele estava querendo dizer. Nat deixou a equipe sair em busca das sondagens, assegurando-lhes que voltaria em breve. Mas naquele dia eles não o viram outra vez.

Quando Nat chegou ao banco, a recepcionista lhe disse que o presidente do conselho diretor estava na sala da diretoria com o Sr. e a Sra. Russell. Nat entrou e tomou seu lugar de costume, do lado oposto de Murray, mas as expressões nas faces de seus três colegas não abrigavam boas-novas. Murray foi direto ao ponto: — Soube que você tem um encontro esta noite, em que você e Elliot estarão, ambos, fazendo seus discursos.

— Sim — disse Nat — é o último maior evento antes da eleição de amanhã.

— Tenho uma espiã na área de Elliot — disse Murray — e ela me diz que eles têm uma questão planejada para hoje à noite que vai derrubar sua campanha; agora, ela pode descobrir do que se trata e procurar não parecer muito inquisitiva, caso eles possam ficar muito desconfiados. Você tem alguma ideia do que seja?

— Não, eu não tenho — disse Nat.

— Talvez ele tenha descoberto alguma coisa sobre Julia — disse Tom, rapidamente.

— Julia? — disse Murray, soando um pouco confuso.

— Não, não a minha esposa — disse Tom. — A primeira Sra. Kirkbridge.

— Eu não tinha a menor ideia de que havia uma primeira Sra. Kirkbridge — disse Murray.

— Não havia nenhuma razão para que você soubesse — disse Tom. — Mas eu sempre receei a possibilidade de que algum dia a verdade viesse à baila.

Murray escutava atentamente enquanto Tom recordava como ele havia conhecido a mulher que havia assinado o cheque do banco e depois retirado todo o dinheiro de sua conta.

— Onde está esse cheque agora? — perguntou Murray.

— Em algum local das entranhas da prefeitura, eu diria.

— Então devemos presumir que Elliot tomou conhecimento dos fatos; mas vocês estavam infringindo tecnicamente a lei?

— Não, mas não mantivemos nosso acordo por escrito com o conselho — disse Tom.

— E o Projeto Cedar Wood acabou se constituindo num sucesso gigantesco, dando a todos os envolvidos um retorno considerável — acrescentou Nat.

— Portanto — disse Murray — só nos resta uma escolha: ou você faz uma apresentação limpa dos fatos e prepara um depoimento esta tarde ou espera a bomba estourar esta noite e reza para ter uma resposta para todas as perguntas que lhe forem atiradas.

— O que é que você recomenda? — disse Nat.

— Eu não faria nada. Primeiro, minha informante pode estar errada e, segundo, o Projeto Cedar Wood pode não ser o problema real, e neste caso você estaria abrindo uma lata de lombrigas desnecessariamente.

— Mas o que mais poderia ser? — perguntou Nat.

— Rebecca? — disse Tom.

— O que você quer dizer? — perguntou Nat.

— Que você a engravidou e forçou-a a fazer um aborto.

— Isso não pode ser considerado um crime — disse Murray.

— A menos que ela tente acusá-lo de ter sido estuprada por você.

Nat riu.

— Elliot jamais trará a público este assunto em particular, porque ele pode muito bem ter sido o pai da criança, e aborto não faz parte da sua imagem de homem santo.

— Você já considerou a possibilidade de você mesmo vir a atacar? — perguntou Murray.

— No que você está pensando? — perguntou Nat.

— Elliot não precisou pedir demissão da Alexander Dupont & Bell no mesmo dia que o sócio mais antigo, porque meio milhão de dólares estavam faltando na conta de um cliente?

— Não, eu não vou me rebaixar ao nível dele — disse Nat. — De qualquer forma, o envolvimento de Elliot nunca foi comprovado.

— Ah, sim, foi — disse Murray. Tom e Nat fixaram o olhar sobre o chairman. — Um amigo meu era o cliente em questão e telefonou-me para alertar no mesmo instante em que soube que Elliot estava nos representando na tomada de posse.

Nat suspirou.

— O que até pode ser o caso, mas a resposta ainda é não.

— Ótimo! — disse Murray. — Então vamos vencê-lo nos seus termos, o que significa que teremos de passar o resto da tarde preparando respostas para todo tipo de pergunta que você imaginar que venha a ser feita.

Às seis da tarde, Nat saiu do banco sentindo-se drenado. Telefonou a Su Ling e disse-lhe o que estava acontecendo.

— Você quer que eu o acompanhe esta noite? — perguntou ela.

— Não, Florzinha, mas você pode manter Luke bem ocupado? Se tiver de ser algo não prazeroso, eu preferia que ele não estivesse por perto. Você sabe quão sensível ele pode ficar, e sempre recebe tudo de modo pessoal.

Eu o levarei ao cinema. Há um filme francês sendo passado em Arcadia, ele e Kathy têm me pressionado para ir ver durante toda esta semana. Nat tentou não parecer nervoso quando chegou ao Goodwin House aquela noite. Entrou na principal sala de jantar do hotel para descobrir que estava lotado, com centenas de homens de negócios conversando uns com os outros. Mas quem eles estariam apoiando?, ele se perguntou. Ele suspeitava de que muitos ainda não tinham se decidido, pois as pesquisas permaneciam lembrando-os de que dez por cento ainda estavam indecisos.

O chefe dos recepcionistas direcionou-o à cabeceira da mesa, onde ele encontrou Elliot conversando com o chairman do partido local. Manny Friedman deu a volta par a dar-lhe boas-vindas. Elliot inclinou-se na mesa e fez uma encenação pública apertando-lhe as mãos. Nat sentou-se depressa e começou a tomar notas nas costas do cardápio.

Quando o chairman pediu silêncio, ele apresentou "os dois pesos-pesados, ambos qualificados para virem a ser nosso próximo governador", e aí convidou Elliot a fazer seus comentários de abertura. Nat nunca o ouvira falar tão pobremente. O chairman, então, convidou Nat a responder, e quando ele retornou ao seu lugar foi o primeiro a admitir que ele próprio não havia se saído nada melhor. O primeiro round, pensou, tinha terminado num empate sem pontos.

Quando o chairman começou com as perguntas, Nat perguntou-se quando o míssil seria disparado e de qual direção. Seus olhos varriam a sala enquanto esperava pela primeira pergunta.

— Como se sentem os candidatos a respeito da lei sobre educação que está atualmente sendo debatida no Senado? — a pergunta partiu de alguém sentado na extremidade da mesa.

Nat concentrou-se nas provisões da lei que ele sentia que deveriam ser corrigidas, enquanto Elliot permaneceu relembrando-os de que ele havia completado sua faculdade na Universidade de Connecticut.

A segunda pessoa a fazer uma pergunta desejava saber sobre os novos impostos do Estado e se os dois candidatos garantiam que não iriam elevá-los. Sim e sim foram as respostas.

A terceira pergunta dizia respeito à política de ambos, no que tangia ao crime, e com uma referência especial aos jovens criminosos. Elliot disse que todos deveriam ser aprisionados e receber uma lição. Nat estava menos convicto de que a prisão fosse a resposta para cada problema, e que talvez eles devessem considerar algumas das inovações que Utah houvera introduzido recentemente em seu sistema penal.

Quando Nat voltou à poltrona, o chairman levantou-se, olhou à volta da sala para outra pergunta. Assim que o homem ergueu-se, sem olhar diretamente para ele, Nat soube que este era o sinal da maquinação. Olhou para Elliot, que tomava notas, fingindo estar esquecido de sua presença.

— Sim, senhor — disse o chairman, apontando para ele.

— Sr. chairman, posso perguntar se qualquer dos candidatos alguma vez infringiu a lei?

Elliot imediatamente pôs-se em pé.

— Diversas vezes — disse ele. — Recebi três multas por estacionamento irregular na semana passada, as quais são as razões pelas quais vou facilitar as restrições ao estacionamento no centro da cidade, no instante em que eu for eleito.

Palavra perfeita, pensou Nat; inclusive o tempo havia sido estudado. Uma explosão de aplausos eclodiu.

Nat levantou-se e virou-se para Elliot.

— Eu não mudarei a lei para acomodar o Sr. Elliot, porque acredito que deveria haver menos veículos no centro de nossas cidades, não mais. Talvez isso não seja popular, mas alguém tem de se levantar e alertar as pessoas de que seu futuro será desolador se nós construirmos carros maiores e maiores, que consomem mais e mais gasolina e depois cospem mais e mais fumaça tóxica. Devemos aos nossos filhos uma herança melhor do que esta, e não tenho interesse em ser eleito sobre comentários labiosos que serão esquecidos rapidamente assim que eu estiver no poder.

Ele se sentou sob aplausos estrondosos e esperou que o chairman partisse para outro entrevistador, mas o homem permaneceu em pé.

— Mas, Sr. Cartwright, o senhor não respondeu à minha pergunta sobre se alguma vez já infringiu a lei.

— Não que eu saiba — replicou Nat.

— Mas não é verdade que o senhor uma ocasião validou um cheque de três milhões e seiscentos mil dólares do Banco Russell, quando o senhor sabia que os fundos já haviam sido apropriados indevidamente e que a assinatura do cheque era fraudulenta?

Diversas pessoas no auditório começaram a conversar ao mesmo tempo e Nat precisou esperar algum tempo antes de poder responder.

— Sim, o Russell teve aquele dinheiro surrupiado por um fraudador muito inteligente, mas como aquela exata soma era devida ao conselheiro municipal, senti que o banco não tinha outra escolha senão honrar o débito e pagar ao conselho o montante total.

— O senhor informou à polícia, na ocasião, que o dinheiro havia sido roubado? Afinal de contas, pertencia aos clientes do Banco Russell e não ao senhor — continuou o entrevistador.

— Não, porque tínhamos todas as razões para acreditar que o montante havia sido transferido para fora; portanto, sabíamos que não haveria possibilidade de resgatá-lo.

Nat compreendeu, assim que acabou de falar, que sua resposta não satisfaria o inquiridor ou várias outras pessoas na plateia.

— Se o senhor vier a ser governador, Sr. Cartwright, tratará o dinheiro dos contribuintes da mesma forma cavalheiresca?

Elliot ergueu-se imediatamente.

— Sr. Chairman, esta foi uma sugestão infeliz e não mais do que uma insinuação e uma calúnia; por que não prosseguimos?

Ele se sentou para ouvir os aplausos enquanto Nat permanecia em pé. Ele tinha de admirar a coragem vivaz de Elliot levantando a questão e depois vindo em defesa do oponente. Esperou que o silêncio fosse completo.

— O incidente ao qual o senhor se refere ocorreu dez anos atrás. Foi um engano de minha parte, que lamento, embora seja irônico que se tenha transformado num sucesso financeiro vertiginoso para todos os envolvidos, porque os três milhões e seiscentos mil dólares que o banco investiu no Projeto Cedar Wood transformaram-se em progresso para o povo de Hartford, sem mencionarmos a economia da cidade.

O inquiridor ainda não se sentara.

— A despeito dos magnânimos comentários do Sr. Elliot, posso perguntar a ele se ele teria relatado tal apropriação indébita dos fundos à polícia?

Elliot levantou-se lentamente.

— Eu preferiria não comentar sem conhecer os detalhes desse caso em particular, mas estou feliz em aceitar a palavra do Sr. Cartwright quando ele diz não ter cometido nenhum deslize, e amargamente lamenta não ter relatado o assunto da apropriação às autoridades na ocasião. — Silenciou por algum tempo.

— Mas se eu for eleito governador, vocês podem ter certeza de um governo aberto. Se cometer um erro, eu o admitirei na hora e não apenas dez anos mais tarde.

O mediador sentou-se, o trabalho terminado.

O chairman encontrou alguma dificuldade em colocar ordem na reunião. Havia muitas outras perguntas, mas elas não eram ouvidas em silêncio, enquanto os que estavam sentados na sala continuavam a discutir a revelação de Nat.

Quando o chairman finalmente achou que era hora de encerrar a reunião, Elliot deixou a sala depressa, enquanto Nat permanecia em seu lugar. Ele estava comovido por ver quantas pessoas vieram apertar-lhe a mão, muitos concordando em que o Projeto Cedar Wood era comprovadamente benéfico para a cidade.

— Bem, pelo menos não nos lincharam — disse Tom quando saíram da sala.

— Não, não lincharam, mas haverá apenas um assunto na cabeça dos eleitores amanhã. Serei eu adequado para ocupar a mansão do governador?


***

43


O ESCÂNDALO DE CEDAR WOOD" era a manchete no Hartford Courant, na manhã seguinte. Um a fotografia do cheque e a assinatura verdadeira de Julia haviam sido colocadas lado a lado. Era uma péssima notícia, mas, para sorte de Nat, metade dos leitores havia comparecido às pesquisas muito antes de o jornal chegar às ruas. Nat havia preparado mais cedo um pequeno depoimento de retirada, caso perdesse, no qual se congratulava com o oponente, mas não o endossava para governador. Nat estava em seu escritório quando o resultado foi anunciado da sede dos republicanos.

Tom recebeu a chamada e entrou correndo, sem bater.

— Você venceu, você venceu, 11.792 votos a 11.673, uma diferença de 119 votos, mas ainda o coloca na liderança do colégio eleitoral: 29 a 27.

No dia seguinte, o editorial do Hartford Courant destacava que ninguém havia perdi do dinheiro em investir no Projeto Cedar Wood, e talvez os eleitores tivessem demonstrado claramente suas intenções.

Nat ainda tivera de enfrentar mais três convenções e outras duas primárias antes que o candidato fosse finalmente escolhido. Ele estava, portanto, aliviado por descobrir que o Cedar Wood rapidamente passara a ser notícia ultrapassada. Elliot ganhou o comitê seguinte por 19 a 18, e Nat a primária, quatro dias depois — 9.702 a 6.379 votos, o que o posicionava ainda mais à frente enquanto eles se aproximavam da última primária.

No colégio eleitoral, Nat agora ganhava por 116 a 91, e as pesquisas mostravam que ele estava sete pontos à frente em sua cidade natal.

Nas ruas de Cromwell, Nat se encontrara com seus pais, Susan e Michael que se concentravam sobre os velhos eleitores enquanto Luke e Kathy tentavam persuadir os jovens a mudar de lado. À medida que os dias passavam, Nat confiava mais e mais na possibilidade de ganhar. O Courant começou a sugerir que a batalha verdadeira aconteceria mais adiante, para Nat, quando tivesse de encarar Fletcher Davenport, o popular senador por Hartford. Entretanto, Tom ainda estava insistindo para que eles se ocupassem seriamente do debate da tarde de pesquisas na televisão com Elliot.

— Nós não necessitamos transitar na trave final — disse ele. — Vença esta e você será o candidato. Mas ainda quero que você passe o domingo estudando as questões, mais de uma vez, da mesma forma que se preparando para toda e qualquer situação que possa surgir durante o debate. Você pode estar certo de que Fletcher Davenport estará sentado em casa, vendo-o pela televisão e analisando tudo que disser. Se você tropeçar, ele lançará um comunicado à imprensa em questão de minutos.

Nat lamentava agora que algumas semanas antes ele houvesse concordado em aparecer num programa da televisão local e debater com Elliot na noite anterior à primária final. Ele e Elliot haviam concordado que David Anscott conduzisse os procedimentos. Anscott era um entrevistador que estava mais interessado em ser reconhecido como popular do que como incisivo. Tom não se opôs a ele, porque sentia que a oportunidade agiria como uma corrida dura em relação ao inevitável e, muito mais sério, debate com Fletcher Davenport, agendado para algum tempo adiante.

Relatórios chegavam para Tom, de volta, todos os dias, mostrando que os voluntários estavam abandonando Ralph Elliot aos bandos, e alguns estavam, inclusive, se passando para sua equipe; portanto, no momento em que ele e Nat chegaram ao estúdio de televisão, ambos se sentiram bastante confiantes. Su Ling acompanhara o marido, mas Luke dissera que preferia ficar em casa e assistir ao debate pela televisão, de modo que pudesse dar um resumo a seu pai de como ele se apresentara perante um a grande audiência.

— No sofá com Kathy, sem dúvida — sugeriu Nat.

— Não, Kathy voltou para casa esta tarde, para o aniversário de sua irmã — disse Su Ling — e Luke poderia ter ido com ela, mas, para ser justa, ele esta desempenhando bastante seriamente o papel de seu jovem conselheiro.

Tom entrou correndo no salão verde e mostrou a Nat a última pesquisa de opinião. Elas lhe davam seis por cento de liderança.

Acho que somente Fletcher Davenport pode impedi-lo agora de ser governador.

— Não estarei convencida até que o resultado final seja anunciado — disse Su Ling. — Nunca se esqueça dos votos extras que Elliot empurrou para as urnas, quando todos nós presumíamos que a contagem tivesse acabado.

— Ele já tentou todos os golpes que pôde imaginar e falhou — disse Tom.

— Eu gostaria de poder acreditar nisso — disse Nat, baixinho.

Os dois candidatos foram aplaudidos pela pequena audiência da televisão quando entraram no palco do programa conhecido como O Encontro Final. Os dois homens se encontraram no meio do palco e apertaram as mãos, mas seus olhos permaneceram fixos na câmera.

— Este será um programa ao vivo — explicou David Anscott para a audiência — e estaremos no ar dentro de cinco minutos. Abrirei com algumas perguntas e depois me voltarei para vocês. Se vocês têm alguma coisa que gostariam de perguntar a qualquer dos candidatos, façam-no rápida e objetivamente, sem discursos, por favor.

Nat sorriu ao analisar a audiência, até que seus olhos pousaram sobre o homem que fizera a pergunta sobre Cedar Wood. Ele estava sentado na segunda fila. Nat podia sentir o suor nas palmas das mãos, mas mesmo que fosse questionado, confiava que pudesse sair-se bem. Desta feita, ele estava bem preparado.

Os holofotes da televisão estavam ligados, as legendas começaram a rolar e David Anscott, sorriso na face, abriu o show. Uma vez introduzidos os participantes, os dois candidatos fizeram um depoimento de abertura de um minuto — sessenta segundos pode ser um tempo longo para a televisão. Depois de muitas agulhadas ferinas, eles liberariam tais homilias em seu sono.

Anscott começou com duas perguntas que haviam sido escritas para ele para aquecer o programa. Assim que os candidatos respondiam, ele não fazia nenhuma tentativa de acompanhar qualquer coisa dita por eles, mas, simplesmente, passava para a próxima pergunta, tal e qual surgia no teleprompter colocado a sua frente. Uma vez que o entrevistador chegava ao fim daquele grupo de perguntas, ele rapidamente se vi rava para o auditório.

A primeira pergunta veio num discurso sobre a escolha, que deixou Nat feliz enquanto via os segundos se esgotando. Sabia que Elliot estaria indeciso sobre este assunto, pois não desejava agredir nem o movimento das mulheres nem seus amigos da Igreja Católica Romana. Nat deixou claro que apoiava inequivocamente o direito de escolha da mulher. Elliot, tal como ele suspeitara, foi evasivo. Anscott fez uma segunda pergunta.

Assistindo de casa, Fletcher anotou tudo que Nat Cartwright disse. Ele entendeu claramente os princípios subjacentes da lei sobre educação e, mais importante do que isso, obviamente pensava que as mudanças que Fletcher desejava trazer à baila eram bastante razoáveis.

— Ele é muito inteligente, não é? — disse Annie.

— E atraente também! — disse Lucy.

— Alguém a meu favor? — perguntou Fletcher.

— Sim, não acho que ele seja atraente — disse Jimmy. — Mas ele deve ter pensado bastante sobre sua lei e obviamente a considera uma questão eleitoral.

— Não sei se ele é atraente — disse Annie — mas você notou que sob certos ângulos ele se parece muito com você, Fletcher?

— Ah, não — disse Lucy — ele é muito mais bonito do que papai.

A terceira pergunta dizia respeito ao controle de armas. Ralph Elliot declarou que apoiara o lobby das armas e o direito de cada americano de defender a si mesmo.

Nat explicou por que gostaria de ver um maior controle das armas, de modo que incidentes como os que seu filho experimentou na escola elementar não se repetissem.

Annie e Lucy começaram a aplaudir, juntamente com a audiência do estúdio.

— Ninguém vai lembrá-lo de quem estava naquela sala de aula com seu filho? — perguntou Jimmy.

— Ele não precisa ser lembrado — disse Fletcher.

— Mais uma pergunta — disse Anscott — e deverá ser rápida, porque nós estamos esgotando nosso tempo.

O sujeito plantado na segunda fila levantou-se do seu lugar, atirando sobre a dica. Elliot indicou-o para o caso de Anscott estar considerando alguém mais.

— Como os dois candidatos lidariam com o problema da imigração ilegal?

— O que isso tem a ver com o governador de Connecticut? — perguntou Fletcher.

Ralph Elliot olhou diretamente para o mediador e disse: Tenho certeza de que falo por nós dois quando digo que a América sempre deveria dar as boas-vindas a qualquer um que se sinta oprimido e precise de ajuda, como temos feito sempre, através da nossa história. Entretanto, aqueles que desejam entrar em nosso país precisam, naturalmente, seguir os procedimentos corretos e buscar os requerimentos legais necessários.

— Isso soou superpreparado e superensaiado para mim — disse Fletcher, virando o rosto para Annie. — Portanto, o que é que ele está pretendendo?

— Este é também seu ponto de vista sobre os imigrantes ilegais, Sr. Cartwright? — perguntou David Anscott, um pouco confuso sobre aonde é que o inquiridor estava querendo chegar.

— Eu confesso, David, que não dei muita importância a este assunto, por não ser uma das minhas maiores prioridades quando considero os problemas que atualmente são encarados pelo estado de Connecticut.

— Enrolou — Anscott ouviu o produtor dizer em seu fone de ouvido, justo quando o inquiridor acrescentou — mas o senhor deve ter pensado um pouco sobre isso, Sr. Cartwright; afinal de contas, sua esposa não é uma imigrante ilegal?

— Espere um pouco, deixe-o responder a esta pergunta — disse o produtor. — Se sairmos do ar agora, teremos um quarto de milhão de pessoas telefonando para descobrir qual foi sua resposta. Focalize e feche sobre Cartwright.

Fletcher estava entre aquele quarto de milhão que esperava a resposta de Nat quando a câmera virou-se para Elliot, que mostrava um olhar de confusão em sua face.

— Seu bastardo! — disse Fletcher. — Você sabia que aquela pergunta ia ser feita.

A câmera retornou para Nat, mas seus lábios permaneciam cerrados.

— Não estaria eu certo em sugerir — continuou o entrevistador — que sua esposa entrou ilegalmente no país?

— Minha esposa é professora de estatística da Universidade de Connecticut — disse Nat, tentando disfarçar um tremor na voz.

Anscott ouviu seu fone para descobrir como o produtor queria proceder com aquilo, uma vez que já haviam extrapolado seu tempo.

— Não diga nada — disse o produtor — Concentre-se aí apenas. Eu sempre poderei fazer rolar os créditos sobre eles, se ficar complicado.

Anscott deu uma ligeira assentida em direção à câmera.

— Pode bem ser o caso, Sr. Cartwright — Continuou o inquiridor — mas a mãe dela, Su Kai Peng, entrou neste país com documentos falsos, dizendo-se casada com um americano que serviu durante a guerra, que, de fato, na verdade, havia morrido combatendo por seu país alguns meses antes da data da licença de casamento?

Nat não respondeu.

Fletcher estava igualmente silencioso, enquanto via Cartwright sendo esticado no bambu.

— Como o senhor parece não desejar responder à minha pergunta, Sr. Cartwright, talvez o senhor queira confirmar que na licença de casamento sua sogra se descreve como costureira. Mas o fato é que antes de ela entrar na América, era uma prostituta fazendo seus negócios nas ruas de Seul; portanto, os céus sabem quem é o pai de sua esposa.

— Créditos — o produtor ordenou. — Nós já esgotamos o tempo e não desejo invadir o espaço de Baywatch, mas mantenha as câmeras abertas. Poderemos apanhar algumas sequências extras para o noticiário da noite.

Assim que o monitor sobre o palco mostrou os créditos correndo, o inquiridor rapidamente saiu do estúdio. Nat olhou para a esposa, sentada na terceira fila. Ela estava pálida e trêmula.

— É um rolo — disse o produtor. Elliot virou-se para o mediador e disse: — Aquilo foi muito chato; você devia tê-lo impedido muito antes. — E olhando para Nat, acrescentou: — Creia-me, eu não tinha ideia de que...

— Você é um mentiroso — disse Nat.

— Ponha o foco nele — disse o diretor para o primeiro cameraman. — Mantenha todas as quatro câmeras abertas; quero todos os ângulos disso.

— O que é que você está insinuando? — perguntou Elliot.

— Que você preparou tudo isso. Você não ficou nem chocado; até usou o mesmo homem que me inquiriu sobre o Projeto Cedar Wood, há duas semanas. Mas eu vou lhe dizer uma coisa, Elliot — disse ele com o dedo em riste apontado para ele — ainda vou matar você.

Nat saiu enfurecido do palco e encontrou Su Ling esperando por ele numa das alas.

— Venha, Florzinha, Vou levá-la para casa.

Tom seguiu-o de pronto enquanto Nat passava um braço em torno de sua esposa.

— Eu sinto muito, Nat, mas tenho de perguntar — disse Tom. — Alguma coisa daquele lixo era verdadeira?

— Todos eles — disse Nat — e antes que você faça qualquer outra pergunta, eu sabia de tudo desde quando nos casamos.

— Leve Su Ling para casa — disse Tom — e o que quer que você faça, não fale com a imprensa.

— Não se preocupe — disse Nat. — Você pode liberar um depoimento em meu nome, dizendo que estou me retirando da corrida. Não permitirei que minha família seja exposta desta maneira outra vez.

— Não tome uma decisão precipitada de que você possa vir a se arrepender depois. Vamos conversar sobre o que precisa ser feito amanhã de manhã — disse Tom.

Nat levou Su Ling pela mão, se encaminhando para fora do estúdio e através da porta que levava ao estacionamento.

— Boa sorte! — gritou um eleitor, enquanto Nat abria a porta do carro para sua esposa. Ele não tomou conhecimento dos aplausos enquanto ia embora depressa. Olhou para Su Ling, que estava tamborilando com raiva o painel. Nat retirou uma das mãos da direção e colocou-a gentilmente sobre a perna de Su Ling.

— Eu amo você — disse ele — e sempre amarei. Nada nem ninguém conseguirá mudar isso.

— Como foi que Elliot descobriu tudo?

— Ele provavelmente tem uma equipe de detetives particulares vasculhando meu passado.

— E como não pode apresentar nada contra você, virou as lentes sobre mim e minha mãe — sussurrou Su Ling. Fez-se um grande silêncio antes Que ela acrescentasse: — Não quero que você se retire; você tem de continuar na corrida. É a única maneira de vencermos o bastardo.

Nat não respondeu, pois entrava no fluxo do tráfego da tarde.

— Só sinto muito por Luke — disse como que casualmente Su Ling. — Ele terá recebido tudo muito pessoalmente. Eu só gostaria que Kathy tivesse ficado mais um dia.

— Eu cuidarei de Luke — disse Nat. — Você faria melhor se fosse procurar sua mãe e a trouxesse para ficar conosco esta noite.

— Eu telefonarei para ela assim que entrar — disse Su Ling. — É possível que ela não tenha assistido ao programa na televisão.

— Sem chance — disse Nat ao chegar à entrada da garagem. — Ela é uma fã muito leal e nunca perde qualquer de minhas apresentações na tevê.

Nat passou o braço em torno de Su Ling enquanto eles se encaminhavam para casa. To das as luzes estavam apagadas, exceto uma, no quarto de Luke. Nat colocou a chave na fechadura e enquanto abria a porta ele disse: — Ligue para sua mãe enquanto subo para ver Luke.

Su Ling apanhou o telefone no corredor, enquanto Nat caminhava lentamente, subindo as escadas, tentando recompor seus pensamentos. Ele sabia que Luke gostaria que todas as perguntas fossem respondidas honestamente. Ele caminhou pelo corredor e bateu gentilmente.

— Luke, posso entrar? — Nenhuma resposta ainda.

Abriu a porta um pouquinho e olhou para dentro, mas Luke não estava na cama e nenhuma de suas roupas estava na cadeira. A primeira reação de Nat foi pensar que ele pudesse ter ido à loja defronte para ver a avó.

Apagou a luz e ouviu Su Ling falando com a mãe. Estava pronto para descer quando notou que Luke havia deixado a luz do banheiro acesa. Decidiu apagá-la.

Nat atravessou o quarto e empurrou a porta do banheiro. Por um instante ele perdeu o fôlego ao ver seu filho. Depois, caiu sobre os próprios joelhos, incapaz de olhar uma segunda vez para cima, embora soubesse que teria de remover o corpo de Luke que estava pendurado, de modo que aquela não fosse a última lembrança que Su Ling teria de seu único filho.

 

 

 

 

 

Annie pegou o telefone e escutou.

— É Charlie, do Courant, para você — disse ela, passando o telefone.

— Você assistiu ao programa? — o editor político perguntou no instante em que Fletcher pegou o telefone.

— Não, não assisti — disse Fletcher. — Annie e eu nunca perdemos Seinfeld.

— Touché! Então você gostaria de dar algum depoimento sobre o fato de a esposa de seu oponente ser uma imigrante ilegal e a mãe dela uma prostituta?

— Sim, acho que David Anscott deveria ter impedido o mediador. Era obviamente uma brincadeira de péssimo gosto, desde o início.

— Posso dizer que você declarou isso? — disse Charlie.

Jimmy estava sacudindo a cabeça vigorosamente.

— Sim, é claro que pode, porque isso fez com que o problema de Nixon se parecesse com Os Muppets.

— O senhor ficaria feliz em ouvir, senador, que seus instintos estão alinhados com a opinião pública. A grade dos programas da emissora está abarrotada com chamadas de solidariedade para com Nat Cartwright e sua esposa, e aposto que Elliot perde rá por uma montanha de votos amanhã.

— O que fará com que isso seja muito mais árduo para mim — disse Fletcher — mas pelo menos uma boa coisa resulta disso.

— E do que se trata, senador?

— Todo mundo, finalmente, descobriu a verdade sobre aquele bastardo do Elliot.

— Eu me pergunto se foi inteligente falar isso — disse Jimmy.

— Tenho certeza de que não foi — disse Fletcher — mas não é nada pais do que seu pai teria dito.

Quando a ambulância chegou, Nat decidiu acompanhar o corpo do filho para o hospital, enquanto sua mãe tentava, inutilmente, confortar Su Ling.

— Voltarei diretamente para cá — prometeu ele antes de beijá-la gentilmente.

Quando viu os dois para-médicos sentados silenciosamente, um de cada lado do corpo, ele explicou que os acompanharia no seu carro. Eles assentiram, apenas.

A equipe do hospital tentou ser tão solidária quanto possível, mas havia formulários a serem preenchidos e procedimentos a serem seguidos. Uma vez que aquilo tudo fora completado, eles o deixaram sozinho. Ele beijou Luke na testa e se virou para ver os hematomas vermelhos e pretos em volta do seu pescoço, ciente de que a lembrança daquilo permaneceria viva pelo resto da vida.

Assim que o rosto de Luke foi coberto por um lençol, Nat deixou seu amado filho, algumas cabeças baixas passando e murmurando sua compaixão. Ele tinha de voltar para Su Ling, mas sabia que antes disso havia alguém mais que ele tinha de visitar primeiro.

Nat saiu do hospital no piloto automático, sem conseguir que a raiva diminuísse a cada quilômetro percorrido. Embora ele nunca tivesse estado naquela casa, sabia exatamente onde ficava e quando ele finalmente chegaria à entrada de carros.

Nat podia ver sinais de luz por baixo da porta. Estacionou o carro e começou a caminhar lentamente em direção à casa. Precisava ter calma se quisesse ir até o fim. À medida que se aproximava da porta da frente, ele podia ouvir vozes elevadas vindas de dentro. Um homem e uma mulher estavam discutindo, desconhecendo o visitante do lado de fora. Nat bateu com a aldrava na porta e, subitamente, as vozes silenciaram, como se uma televisão houvesse sido desligada. Um instante depois, a porta se abriu e Nat estava face a face com o homem que ele considerava culpado pela morte de seu filho.

Ralph Elliot parecia chocado, mas recuperou-se depressa. Tentou bater a porta na cara de Nat, mas este colocou depressa um ombro contra ela firmemente. O primeiro murro que Nat desferiu sobre o nariz de Elliot mandou-o feito um rolo para trás. Elliot tropeçou, mas recobrou o equilíbrio rapidamente, virando-se e correndo pelo corredor. Nat disparou atrás dele, seguindo Elliot até seu escritório. Ele olhou em torno, buscando a outra voz elevada, mas não havia sinal de Rebecca. Voltou sua atenção para Elliot, que estava abrindo uma gaveta de sua escrivaninha. Ele apanhou um revólver e apontou-o para Nat.

— Caia fora da minha casa — berrou ele — ou eu o matarei! — Escorria sangue de seu nariz.

Nat avançou em direção a ele.

— Eu acho que não — disse ele. — Depois da façanha que você realizou ontem à noite, ninguém mais vai acreditar na sua palavra novamente.

— Sim, acreditarão, porque eu tenho uma testemunha. Não se esqueça de que Rebecca viu você invadindo a nossa casa, fazendo ameaças e depois me esmurrando.

Nat avançou, pronto para um segundo murro, fazendo com que Elliot desse um passo para trás e, momentaneamente, perdesse o equilíbrio ao tropeçar no braço da poltrona.

O revólver disparou e Nat levantou Elliot, empurrando-o para o chão. Enquanto caíam, Nat deu uma joelhada em sua virilha com tal força que seu rival dobrou-se em dois, deixando o revólver cair. Nat o agarrou e apontou para Elliot, cuja face estava contorcida de medo.

— Você plantou aquele bastardo no auditório, não foi? — disse Nat.

— Sim, sim, mas eu não sabia que ele iria tão longe, e certamente você não mataria um homem porque...

— Porque ele é responsável pela morte de seu filho?

Todas as cores foram drenadas da face de Elliot.

— Sim, mataria — disse Nat, pressionando o cano do revólver sobre a testa de Elliot.

Nat olhava para baixo, para um homem que agora estava sob seus olhos, choramingando e implorando pela sua vida.

— Eu não vou matá-lo — disse Nat, abaixando o revólver — porque esta seria a forma fácil para um covarde. Não, quero que você sofra uma morte muito mais lenta, ano após ano de humilhação. Amanhã você vai descobrir o que as pessoas de Hartford realmente pensam a seu respeito, e aí você vai ter de viver com a ignomínia final de me ver morando na mansão do governador.

Nat levantou-se, colocou calmamente o revólver no canto da escrivaninha, virou-se e deixou a sala para encontrar Rebecca, encolhida de medo, no corredor. Assim que ele passou, ela correu para o escritório. Nat atravessou apressado a porta aberta e subiu em seu carro.

Ele estava saindo dos portões quando ouviu o tiro.

 

 

 

 

 

O telefone de Fletcher tocava a todo instante. Annie anotou todos os chamados, explicando que seu marido não tinha nenhum comentário a fazer, a não ser que enviara suas condolências ao Sr. e à Sra. Cartwright.

Logo depois da meia-noite, Annie tirou o telefone da tomada e subiu as escadas.

Embora a luz estivesse acesa em seu quarto, ela ficou surpresa por verificar que Fletcher não estava ali. Ela voltou a descer as escadas para checar o escritório. Os documentos de sempre estavam empilhados sobre a mesa, mas ele não estava sentado em sua poltrona. Annie subiu as escadas lentamente e notou que uma luz estava br ilhando sob a porta do quarto de Lucy. Annie virou o trinco devagar e, silenciosamente, para o caso de Lucy haver adormecido, empurrou e abriu a porta deixando a luz acesa. Ela olhou para dentro e viu o marido sentado à beira da cama, agarrado à sua filha sonolenta. Lágrimas escorriam pelas suas faces. Ele se virou e encarou a esposa: "Nada pode valer aquilo", disse ele.

Nat voltou para casa e encontrou sua mãe sentada no sofá com Su Ling. O rosto de Su Ling estava queimando, os olhos afundados; ela havia envelhecido dez anos em poucas horas.

— Vou deixá-lo com ela agora — disse sua mãe — mas voltarei amanhã Pela manhã. Estou saindo.

Nat inclinou-se, deu um beijo de até breve em sua mãe e depois se sentou ao lado da esposa. Ele envolveu seu corpo leve, mas não disse nada. Não havia nada a dizer.

Ele não se lembrava de quanto tempo ficaram sentados ali quando ouviu a sirene da polícia. Presumiu que o barulho estridente fosse desaparecer depressa, a distância, mas foi ficando mais e mais alto, e não parou até que um carro entrou numa pequena reentrância sobre o cascalho do lado de fora de sua porta de entrada. Ele então ouviu a porta do carro bater, passos pesados, seguidos por uma batida forte na porta da frente.

Retirou o braço de cima do ombro da esposa e, esgotado, encaminhou-se para a porta da frente. Abriu-a e encontrou o chefe Culver com um oficial da polícia em pé, um de cada lado dele.

— Qual é o problema, chefe?

— Sinto muito sobre isso tudo que vocês têm passado — disse Don Culver — mas eu não tenho escolha senão prendê-lo.

— E por quê? — perguntou Nat, desconfiado.

— Pela morte de Ralph Elliot.


LIVRO CINCO

JUÍZES


44

 

NÃO ERA A PRIMEIRA VEZ na história da América que o nome de um candidato morto saía listado na cédula de voto. E não era certamente a primeira vez que um candidato preso havia se recuperado para a eleição, mas, pesquisando como podiam, os historiadores políticos não conseguiam encontrar os dois ao mesmo tempo.

O único telefonema que o chefe Culver permitira fora dado para Tom, que ainda estava bem acordado apesar de ser três da manhã.

— Vou tirar Jimmy Gates da cama e encontrá-lo na delegacia de polícia o mais rápido que eu puder.

Eles tinham acabado de tirar suas impressões digitais quando Tom chegou, acompanha do de seu advogado.

— Você se lembra de Jimmy? — disse Tom. — Ele nos aconselhou durante a tomada de posse do Fairchild.

— Sim, lembro-me — disse Nat, enquanto secava as mãos, depois de remover os traços de tinta preta dos dedos.

— Conversei com o chefe — disse Jimmy — e ele está muito feliz que você Possa ir par a casa, mas terá de aparecer na Corte amanhã, às dez horas da manhã, para ser formalmente acusado. Deverei solicitar fiança em seu nome, e não há razão para acreditar que não seja concedida.

— Obrigado — disse Nat, a voz sem vida. — Jimmy, você se lembra de que antes de nós começarmos a oferta de tomada do Fairchild eu lhe pedi que encontrasse o melhor advogado de empresa disponível para representar-nos?

— Sim, eu me lembro — disse Jimmy — e você dizia sempre que Logan Fitzgerald fizera um trabalho de primeira classe.

— Ele fez mesmo — disse Nat baixinho — mas agora eu preciso que você encontre o Logan Fitzgerald do direito penal.

— Terei dois ou três nomes para você analisar amanhã, quando nós nos encontrarmos. Há um rapaz em Chicago que é excepcional, mas não sei como está sua agenda — disse ele, quando o chefe de polícia caminhava ao encontro deles.

— Sr. Cartwright, quer que um dos meus rapazes o acompanhe até em casa?

— Não, isso é bom para você, chefe — disse Tom — mas eu levarei o candidato para casa.

— Você diz candidato automaticamente, agora — disse Nat — quase como se fosse meu nome de batismo.

No trajeto para casa, Nat contou para Tom tudo que havia acontecido enquanto estava na casa de Elliot.

— Portanto, ao final, vai ser a palavra dela contra a sua — foi o comentário de Tom, enquanto saía para abrir a porta da frente para Nat.

— Sim, e receio que minha história não seja tão convincente quanto a dela, mesmo sendo a verdade.

— Poderemos falar sobre isso amanhã de manhã — disse Tom — mas agora você precisa tentar dormir um pouco.

— Já é de manhã — disse Nat, enquanto olhava os primeiros raios de sol deslizando pela grama.

Su Ling estava em pé, à porta aberta da rua.

— Eles acreditaram em algum momento que...

Nat contou-lhe tudo que havia acontecido enquanto estava na delegacia de polícia, e, quando terminou, tudo que Su Ling disse foi: — Que pena.

— O que você quer dizer? — perguntou Nat.

— Que você não o tenha matado.

Nat subiu as escadas e caminhou através do quarto diretamente para o banheiro. Ele foi se desfazendo das roupas e jogando-as numa sacola. Ele se desfez daquela sacola mais tarde, de modo que nunca mais tivesse de se lembrar deste dia terrível. Entrou no chuveiro e permitiu que jatos frios de água errassem sobre ele.

Depois de vestir um novo conjunto de roupas, reuniu-se com sua esposa na cozinha. No quadro ao lado estava a data de sua eleição; nenhuma menção ao comparecimento à Corte sob acusação de assassinato.

Tom voltou às nove. Relatou que a votação estava acontecendo ativamente, como se mais nada estivesse acontecendo na vida de Nat.

— Eles fizeram uma pesquisa logo depois da entrevista na televisão — disse ele a Nat — e isso lhe deu uma liderança de sessenta e três a trinta e sete.

— Mas isso foi antes que eu fosse preso por matar o outro candidato — disse Nat.

— Acredito que isso deverá empurrá-lo para cima, numa cotação de setenta a trinta — respondeu Tom. Ninguém riu.

Tom fez o melhor que pôde para centralizar-se na campanha e tentar manter sua mente longe de Luke. Não funcionava. Ele olhava para o relógio na parede da cozinha.

— Hora de irmos — disse ele a Nat, que voltou e tomou Su Ling em seus braços.

— Não, eu Vou com você — disse ela. — Nat pode não tê-lo matado, mas eu teria se tivesse a metade da sua chance.

— Eu também — disse Tom gentilmente — mas deixe-me alertá-los de que quando formos para a Corte aquilo deve estar parecendo um circo. Pareça inocente e não diga nada, porque qualquer coisa que você disser acabará na primeira página.

Quando saíram de casa, foram cumprimentados por uma dúzia de jornalistas e três equipes de câmeras que esperavam vê-los entrar no carro. Nat procurou a mão de Su Ling enquanto dirigia através das ruas e não notaram quantas pessoas acenavam no instante em que os avistavam. Quando chegaram aos degraus do fórum, quinze minutos mais tarde, Nat encarou a maior multidão que já tinha encontrado durante sua campanha inteira para a eleição.

O chefe de polícia havia antecipado o problema e destacado vinte policiais uniformizados para segurar a turba e fazer uma passagem que permitisse a Nat e seus acompanhantes entrarem no edifício sem complicações. Não funcionou, porque vinte policiais não foram suficientes para controlar o avanço dos fotógrafos e jornalistas que gritavam e acotovelavam Nat e Su Ling enquanto eles tentavam fazer seu caminho, subindo os degraus do fórum. Microfones eram enfiados no rosto de Nat e perguntas surgiam de todos os lados.

— O senhor matou Ralph Elliot? — perguntou um repórter.

— O senhor vai retirar sua candidatura? — seguiu-se à primeira, enquanto um microfone era enfiado a sua frente.

— Sua mãe era prostituta, Sra. Cartwright?

— Você ainda acha que pode vencer, Nat?

— Rebecca Elliot foi sua amante?

— Quais foram as últimas palavras de Ralph Elliot, Sr. Cartwright?

Quando avançaram através da porta giratória, encontraram Jimmy Gates em pé do outro lado, esperando por eles. Ele conduziu Nat a um banco do lado de fora da sala do tribunal e fez um resumo a seu cliente sobre o procedimento que ia enfrentar.

— Sua presença deverá alongar-se por, no máximo, cinco minutos — explicou Jimmy. — Você vai declarar seu nome e, isto posto, será então acusado, depois lhe será perguntado sobre como é que você se considera. Uma vez que você se tenha declarado não culpado, deverei solicitar fiança. O Estado está sugerindo cinquenta mil dólares de sua própria aceitação, com o que concordei. No momento em que você tiver assinado os documentos necessários, será liberado e não terá de aparecer novamente até que uma data para o julgamento seja fixada.

— Para quando esperamos que isso aconteça?

— Normalmente isso levaria uns seis meses, porém pedi que o processo todo seja acelerado, em face das eleições.

Nat admirou a abordagem profissional do seu advogado, lembrando-se de que Jimmy também era amigo chegado de Fletcher Davenport. Entretanto, como qualquer bom advogado, pensou Nat, Jimmy entenderia o significado dos corredores chineses.

Jimmy olhou para o relógio de pulso.

— Precisamos entrar, porque a última coisa que estamos precisando é fazer o juiz esperar.

Nat entrou na sala apinhada do tribunal e caminhou lentamente pelo corredor com Tom. Ele se surpreendeu por ver quantas pessoas erguiam suas mãos num aceno e até mesmo lhe desejavam sorte, fazendo com que se sentisse mais numa reunião do partido do que sob acusação de assassinato. Quando eles atingiram a frente, Jimmy segurou aberto o pequeno portão de madeira que dividia os membros da Corte dos simples curiosos. Ele, então, guiou Nat para a mesa a sua esquerda, e conduziu-o até a cadeira ao seu lado. Enquanto esperavam a entrada do juiz, Nat olhou para o promotor estadual, Richard Ebden, um homem que ele sempre admirara.

Ele sabia que Ebden seria um adversário formidável, e se perguntou quem Jimmy iria recomendar que se opusesse a ele.

— Levantem-se todos! O Meritíssimo juiz Deakins presidindo.

O procedimento que Jimmy descrevera aconteceu exatamente conforme previsto, e eles estavam de volta à rua cinco minutos depois, se deparando com os mesmos jornalistas, que repetiam as mesmas perguntas e ainda falhavam em obter quaisquer respostas.

Assim que eles se colocaram a caminho, através da multidão compacta e até o carro que os esperava, Nat estava mais uma vez surpreso por ver quantas pessoas ainda queriam apertar-lhe as mãos. Tom refreou-os, ciente de que estas seriam as novidades vistas pelos eleitores nas notícias do meio-dia. Nat falou com todos que lhe desejavam o melhor, mas não estava muito seguro de como responder a um espectador que dissera: — Estou feliz que você tenha matado o bastardo!

— Você quer ir direto para casa? — perguntou Tom, enquanto seu carro avançava lentam ente no meio da confusão.

— Não — disse Nat — vamos atravessar até o banco e falar das coisas que estão na sala da diretoria.

A única parada que eles fizeram no caminho foi para apanhar a primeira edição do Courant depois de ouvirem um jornaleiro anunciando: "Cartwright acusado de assassinato."

Tudo em que Tom parecia estar interessado era nas pesquisas da segunda página, mostrando que Nat agora passava na frente de Elliot por vinte pontos.

— E — disse Tom — numa pesquisa em separado, setenta e dois por cento dizem que você não deveria se retirar da campanha.

Tom leu sobre o assunto, olhou subitamente para cima, mas não disse nada.

— O que é? — perguntou Su Ling.

— Sete por cento dizem que eles teriam ficado felizes em matar Elliot, se você apenas tivesse lhes pedido.

Quando eles chegaram ao banco, havia um novo grupo de jornalistas e câmeramen esperando por eles; outra vez, eles se encontravam diante do eterno silêncio de pedra.

A secretária de Tom encontrou-os no corredor e relatou que uma pesquisa anterior mostrava um recorde alto, pois os republicanos, obviamente, desejavam tornar conhecidos seus pontos de vista.

Assim que eles se acomodaram na sala da diretoria, Nat abriu a discussão, dizendo: — O partido vai esperar que eu me retire, quaisquer que sejam os resultados, e eu sinto que talvez este seja meu melhor momento de ação, dadas as circunstâncias.

— Por que não deixar que os eleitores decidam? — disse Su Ling baixinho. — E se eles lhe derem apoio irrestrito, finque o pé, lutando, porque isso também ajudará a convencer o júri que você é inocente.

— Concordo — disse Tom. — E qual é a alternativa? Barbara Hunter? Vamos, pelo menos, deixar o eleitorado usar isso.

— E como você se sente, Jimmy? Afinal de contas, você é meu advogado.

— Sobre este assunto não posso oferecer um ponto de vista imparcial — admitiu Jimmy. — Como você não ignora, o candidato democrata é um amigo muito chegado, mas se o estivesse aconselhando sob as mesmas circunstâncias, e se eu soubesse que ele era inocente, eu lhe diria: finque o pé e combata os bastardos!

— Bem, suponho que seja possível que o público eleja um homem morto; e aí, só os céus sabem o que vai acontecer.

— Seu nome ficará na cédula do voto — disse Tom — e, se ele vencer a eleição, o partido poderá convidar qualquer pessoa que eles escolham para representá-lo.

— Você fala sério? — disse Nat.

— Não poderia estar falando mais sério. Muito frequentemente, eles escolhem a esposa do candidato, e aposto que Rebecca Elliot tomaria seu lugar com a maior felicidade.

— E se você for condenado — disse Jimmy — ela poderia, com certeza, contar com os votos dos simpatizantes logo antes da eleição.

— Mais importante do que isso — disse Nat — você já tem um advogado de defesa para representar-me?

— Quatro — respondeu Jimmy, tirando uma pasta volumosa de sua maleta executiva.

Ele virou a capa.

— Dois de Nova York, ambos recomendados por Logan Fitzgerald; um de Chicago, que trabalhou no caso Watergate; e o quarto, de Dallas. Este só perdeu um caso em dez anos, e isso foi quando seu cliente havia cometido assassinato e fora pego pelo vídeo. Tenciono chamar os quatro, hoje, no final do dia, descobrir se algum deles está livre. Este vai ser um caso de alta prioridade, e aposto que todos eles estarão disponíveis para isso.

— Não há ninguém de Connecticut que possa ser selecionado? — perguntou Tom. — Isso mandaria uma mensagem muito melhor ao júri.

Concordo — disse Jimmy — mas o único homem que é do mesmo calibre que aqueles quatro simplesmente não está disponível.

— E quem é ele? — perguntou Nat.

— O candidato democrata a governador. Nat sorriu pela primeira vez.

— Pois ele é minha primeira escolha.

— Mas ele está em meio a uma campanha eleitoral!

— Caso você não tenha percebido, o acusado também — disse Nat — e vamos encarar os fatos, a eleição só acontecerá daqui a nove meses. Se eu acabar me transformando em seu oponente, pelo menos ele saberá onde é que me encontro o tempo todo.

— Mas... — repetiu Jimmy.

— Diga ao Sr. Fletcher Davenport que se eu vier a ser o candidato republicano, ele é a minha primeira escolha, e não se aproxime de nenhum outro até que ele se negue a atender-me, porque se tudo que ouvi sobre aquele homem for verdade, confio que ele vá querer representar-me.

— Se estas são as suas instruções, Sr. Cartwright.

— Estas são as minhas instruções, bacharel.

No instante em que as pesquisas haviam fechado, às oito horas da noite, Nat havia adormecido no carro enquanto Tom o levava para casa. Seu chefe de equipe não fez nenhuma tentativa para perturbá-lo. A última coisa de que Nat se lembrava era de ter acordado encontrando Su Ling deitada ao lado dele na cama, e seus primeiros pensamentos foram sobre Luke. Su Ling olhou para ele e apertou sua mão.

— Não — sussurrou ela.

— O que você quer dizer com "não"? — perguntou Nat.

— Posso ver em seus olhos, meu querido, que você se pergunta se eu preferia que você se retirasse, de modo que pudéssemos velar Luke apropriadamente, e a resposta é não.

— Mas teremos o funeral, e depois os preparativos para o julgamento, sem mencionarmos o julgamento em si.

— Sem mencionarmos as horas infindáveis entre uma coisa e outra, quando você estará se remoendo e de convívio intolerável; portanto, a resposta ainda é não.

— Mas será quase impossível esperar que o júri não aceite a palavra de uma viúva aflita que também alega ter sido testemunha ocular do assassinato do seu marido.

— Claro que ela foi uma testemunha ocular — disse Su Ling. — Ela o matou.

O telefone da mesinha-de-cabeceira de Su Ling começou a tocar. Ela o apanhou e ouviu atentamente antes de escrever dois números sobre o bloquinho ao lado do aparelho.

— Obrigada — disse ela. — Eu direi a ele.

— Dizer a ele o quê? — inquiriu Nat.

Su Ling retirou a folha de papel do bloquinho e passou-a ao marido.

— Era Tom. Ele queria que você soubesse o resultado da eleição.

Tudo que havia escrito no pedaço de papel que Su Ling passou eram dois números: 69 e 31.

— Sim, mas quem recebeu 69? — perguntou Nat.

— O próximo governador de Connecticut — respondeu ela.

O funeral de Luke foi levado a efeito na capela da Escola Taft, a pedido do diretor. Ele explicou que muitos estudantes tinham desejado assistir à cerimônia. Foi só depois da morte do filho que Nat e Su Ling tomaram ciência de quão popular Luke tinha sido. O serviço religioso foi simples, e o coro do qual ele sentia orgulho em fazer parte cantou Jerusalem, de William Blake, e Ain't Misbehavin, de Cole Porter. Kathy leu uma das passagens bíblicas, e o querido velho Thomo outra, enquanto o diretor fazia a saudação.

O Sr. Henderson falou de uma juventude tímida, não assumida, mas amada e admirada por todos. Ele lembrou a todos os presentes os comentários sobre a performance de Luke como Romeu, e como ele havia sido informado apenas naquela manhã que havia sido oferecida uma bolsa a Luke na Princeton.

O caixão foi carregado para fora da capela por rapazes e moças da nona série, que haviam desempenhado papéis com ele na peça do teatro. Nat aprendeu tanto sobre Luke naquele dia que se sentia culpado por ignorar o impacto que seu filho causara em seus colegas.

Terminado o serviço, Nat e Su Ling participaram da cerimônia do chá dada na casa do diretor para os amigos mais chegados de Luke. A casa estava entre cheia e abarrota da, mas aí, como explicou o Sr. Henderson a Su Ling, todos pensaram que cada um tivesse sido um amigo bem próximo de Luke.

— Que presente! — Comentou ele, simplesmente.

O líder estudantil presenteou Su Ling com um livro de fotos e ensaios curtos, compostos por seus colegas estudantes. Mais tarde, sempre que Nat se sentia deprimido, ele virava uma página, lia uma entrada e olhava para uma foto. Mas havia uma à qual ele sempre voltava: "Luke era o único menino que falava comigo, que nunca mencionou meu turbante ou minha cor. Ele simplesmente não os via. Eu tinha esperado tornar-me para ele um amigo para o resto da vida. Malik Singh (dezesseis anos)."

Assim que saíram da casa do diretor, Nat avistou Kathy sentada sozinha no jardim, a cabeça baixa. Su Ling atravessou-o e sentou-se ao lado dela. Ela colocou um braço em torno de Kathy e tentou confortá-la.

— Ele a amava muito — disse Su Ling.

Kathy levantou a cabeça, as lágrimas rolando em suas faces., — Eu nunca disse a ele que o amava.


45


NÃO POSSO FAZER ISSO! — disse Fletcher.

— Por que não? — perguntou Annie.

— Tenho cem razões que me justificam.

— Ou serão cem desculpas?

— Defender o homem que estou tentando derrotar?! — disse Fletcher.

— Sem medo ou favor — enfatizou Annie.

— Então, como você espera que eu conduza a eleição?

— Isso será a parte fácil. — Fez uma pausa. — De um jeito ou de outro.

— Um jeito ou outro? — repetiu Fletcher.

— Sim, porque se ele for culpado, não será sequer o candidato republicano.

— E se ele for inocente?

— Então você será altamente elogiado por libertá-lo.

— Isso não é nem prático nem sensível.

— Duas desculpas a mais.

— Por que você está do lado dele? — perguntou Fletcher.

— Não estou — insistiu Annie. — Para citar o Professor Abrahams, estou ao lado da justiça.

Fletcher ficou em silêncio por algum tempo.

— Eu me pergunto o que ele faria se estivesse encarando um dilema semelhante.

— Você sabe exatamente o que ele faria... "mas, algumas pessoas esquecerão esses padrões alguns instantes depois de saírem desta universidade..."

— "... Eu só posso esperar que pelo menos uma pessoa na geração inteira" — disse Fletcher, completando o ditado tantas vezes repetido pelo Professor.

— Por que você não se encontra com ele? — disse Annie. — E talvez ele possa persuadi-lo.

A despeito das abundantes precauções de Jimmy e dos protestos vociferantes dos democratas locais — na verdade, de todos, com exceção de Annie — concordou-se que os dois homens deveriam encontrar-se no domingo seguinte.

O local combinado foi o Fairchild Russell, pois sentia-se que alguns cidadãos esta riam circulando pela rua principal logo cedo, na manhã de domingo.

Nat e Tom chegaram um pouco antes das dez, e foi o chairman do banco que abriu a porta da frente e desligou o alarme pela primeira vez em anos. Eles só tiveram de esperar alguns minutos antes que Fletcher e Jimmy aparecessem no último degrau.

Tom conduziu-os rapidamente através da sala da diretoria.

Quando Jimmy apresentou seu amigo mais próximo ao seu mais importante cliente, ambos olharam um para o outro, sem certeza de quem deveria fazer o primeiro movimento.

— Foi muito simpático de sua parte...

— Eu não esperava...

Os dois riram e depois se deram as mãos calorosamente.

Tom sugeriu que Fletcher e Jimmy se sentassem de um lado da mesa de reunião enquanto ele e Nat se sentariam no lado oposto. Fletcher confirmou estar de acordo e, uma vez sentado, abriu sua maleta de executivo e retirou um caderno amarelo de anotações, colocando-o sobre a mesa à sua frente, Junto com uma caneta-tinteiro retirada do bolso do paletó.

— Eu gostaria de começar dizendo o quanto apreciei você ter concordado em me ver — disse Nat. — Só posso imaginar a oposição que deve ter enfrentado a cada quinze minutos, e estou ciente de que não vai encarar a melhor opção.

Jimmy abaixou a cabeça. Fletcher levantou a mão.

— Você deve agradecer à minha esposa. — Fez uma pausa. — Não a mim. é a mim que você precisa convencer.

— Então, por favor, agradeça à sua esposa por mim e deixe-me asseverar-lhe que responderei a todas as perguntas que você me fizer.

— Eu só tenho uma pergunta — disse Fletcher, olhando para a folha branca de papel — e é a pergunta que um advogado nunca faz, porque só pode comprometer sua posição ética. Mas, nessa ocasião, não vou considerar discutir este caso até que essa pergunta seja respondida.

Nat assentiu, mas não replicou. Fletcher levantou a cabeça e olhou através da mesa par a aquele que viria a ser seu rival. Nat segurou o seu olhar.

— Você matou Ralph Elliot?

— Não, não o matei — replicou Nat, sem hesitação.

Fletcher olhou novamente para a folha branca de papel à sua frente, e virou a parte de cima para revelar uma segunda folha coberta por filas e filas de perguntas preparadas.

— Então, deixe-me fazer a próxima pergunta... — disse Fletcher, olhando para seu cliente.

O julgamento foi marcado para a segunda semana de julho. Nat ficou surpreso pelo pouco tempo disponível para estar com seu recentemente indicado advogado, uma vez que ele havia repassado sua história uma e outra vez, e que terminou apenas quando Fletcher estava confiante por ter revisto todos os detalhes. Embora ambos reconhecessem a importância das evidências sobre Nat, Fletcher levou apenas o tempo necessário para ler e reler as duas declarações que Rebecca Elliot dera à polícia, o relatório do próprio Don Culver sobre o que tinha acontecido naquela noite e as notas do detetive Petrowski, que estava encarregado do caso. Ele alertou Nat: — Rebecca deve ter sido instruída pelo promotor, e cada pergunta em que você possa pensar ela terá tido tempo de pensar e repensar. No momento em que chegar ao banco das testemunhas, ela estará tão bem treinada quanto uma atriz na noite da estreia. Mas — Fletcher fez uma pausa — ela ainda tem um problema.

— E qual é? — perguntou Nat.

— Se a Sra. Elliot matou o marido, ela mentiu para a polícia; portanto, existem fios soltos que eles não perceberam. Primeiro teremos de encontrá-los e, depois, amarrá-los.

O interesse pela corrida governamental alastrou-se para bem longe das cercanias de Connecticut. Artigos sobre os dois homens saíram nos mais diversos veículos, como New Yorker ou National Enquirer, e quando o julgamento começou não havia hotel disponível em trinta quilômetros de Hartford.

Faltando três meses para o dia da eleição, as pesquisas de opinião mostravam que Fletcher liderava por vinte pontos, mas ele sabia que se fosse capaz de provar a inocência de Nat aquilo poderia se reverter da noite para o dia.

O julgamento estava pronto para começar no dia 11 de julho, mas a maior parte dos programas de televisão já tinha suas câmeras sobre os telhados dos edifícios opostos ao fórum e ao longo das calçadas, tanto quanto outras câmeras de mão pelas ruas. Eles estavam ali para entrevistar qualquer pessoa remotamente relacionada com o julgamento, a despeito do fato de que faltavam dias ainda para Nat ouvir as palavras "Levantem-se todos!"

Fletcher e Nat tentaram conduzir sua campanha eleitoral como um negócio costumeiro, embora ninguém fingisse que o fosse. Eles descobriram bem depressa que não havia um salão que não pudessem lotar, um rali que não pudessem superlotar, um piquenique que não pudessem vender para o dobro de pessoas, mesmo que num distrito distante.

Na verdade, quando os dois participavam de um levantamento de fundos para caridade, em apoio a uma ala ortopédica a ser acrescentada ao Hospital Memorial Gates, em Hartford, os ingressos iam mudando de mãos a quinhentos dólares cada. Aquela era uma das raras eleições em que as contribuições para a campanha jorravam... Durante várias semanas eles estavam atraindo mais do que Frank Sinatra.

Nenhum dos dois homens dormiu na noite anterior ao julgamento, e o chefe de polícia tampouco se importou em ir para a cama. Don Culver havia determinado lugares para cem policiais que ficariam em serviço do lado de fora do fórum, comentando, meio arrependidos, quantos dos pequenos criminosos de Hartford estariam tirando vantagem de seu contingente superaumentado.

Fletcher foi o primeiro membro da equipe de defesa a aparecer nos degraus do tribunal, e deixou claro à imprensa que o esperava que não daria nenhum depoimento ou responderia a qualquer pergunta, até que o veredicto houvesse sido pronunciado. Nat chegou uns minutos mais tarde, acompanhado por Tom e Su Ling, e se não fosse pela ajuda da polícia, eles nunca teriam conseguido chegar ao edifício.

Uma vez no recinto do tribunal, Nat caminhou pelo corredor de mármore que levava à Sala 7, da Corte, ouvindo comentários dos espectadores, mas apenas assentindo polidamente em resposta, conforme fora instruído por seu defensor. Assim que entrou no recinto da Corte, Nat sentiu que mil olhos o espiavam enquanto ele prosseguia até o centro da ala, antes de sentar-se ao lado de Fletcher, à mesa da defesa.

— Bom-dia, advogado — disse Nat.

— Bom-dia, Nat — respondeu Fletcher, olhando por cima de uma pilha de documentos. — Espero que esteja preparado para uma semana bem chata enquanto escolhemos um corpo de jurados.

— Você já programou um perfil de júri ideal? — perguntou Nat.

— Não é assim tão fácil — disse Fletcher. — Porque não posso resolver se devo escolher entre pessoas que dão apoio a você ou a mim.

— Existem doze pessoas em Hartford que o apoiam? — perguntou Nat. Fletcher sorriu.

— Estou feliz que não tenha perdido seu senso de humor, mas, uma vez que o júri entre, quero que você pareça sério e preocupado. Um homem para com o qual uma grande injustiça foi cometida.

Fletcher provou estar com a razão, porque só na sexta-feira à tarde um complemento total dos doze jurados e dois alternativos conseguiu finalmente sentar-se em seus lugares, seguindo-se argumento, contra-argumento e diversas objeções sendo levantadas de ambos os lados. Eles, finalmente, configuraram sete homens e sete mulheres.

Duas das mulheres e um dos homens eram negros, cinco com um currículo profissional, duas mães que trabalhavam fora, três operários, uma secretária e um desempregado.

— E que tal são suas inclinações políticas? — perguntou Nat.

— Aposto que quatro republicanos, quatro democratas e quatro indecisos.

— Então, qual seria o nosso próximo problema, advogado?

— Como livrá-lo e ainda conseguir os votos dos quatro indecisos — disse Fletcher, enquanto eles desciam as escadarias do tribunal.

Nat descobriu que, quando quer que ele fosse para casa à tarde, esqueceria o julga mento de imediato, pois sua mente voltava-se continuamente para Luke. Não importa o quanto ele desejasse discutir outros assuntos com Su Ling, havia sempre um único pensamento na cabeça dela: — Se ao menos eu tivesse dividido meu segredo com Luke — dizia ela uma e outra vez — talvez ele ainda estivesse vivo.

 


46

 

 

NA SEGUNDA-FEIRA SEGUINTE, o júri foi introduzido no recinto e o juiz Kravats convidou o promotor a fazer seu depoimento de abertura. Richard Ebden ergueu-se lentamente de seu assento. Ele era um homem alto, elegante, de cabelos grisalhos, que tinha a reputação de confundir os jurados. Seu terno azul-marinho era aquele que usava sempre no dia da abertura do julgamento. A camisa branca e a gravata azul instilavam uma sensação de confiança.

O promotor estava orgulhoso do recorde de sua acusação, a qual era, de alguma forma, irônica, porque ele era um moderador, um frequentador de igreja com a família, que inclusive cantava, como baixo, no coro local. Ebden levantou-se, empurrou a cadeira para trás, e caminhou devagar pelo espaço aberto da Corte antes de voltar o rosto para o júri.

— Membros do júri — Começou ele. — Em todos os meus anos como advogado, eu raramente cruzei com um caso tão óbvio de homicídio.

Fletcher inclinou-se em direção a Nat e sussurrou: — Não se preocupe, é sua maneira comum de começar; "mas, apesar disso" é o que vem agora.

— Mas, apesar disso, eu ainda preciso levá-los a percorrer os eventos do fim da noite e da madrugada dos dias 12 e 13 de fevereiro.

"O Sr. Cartwright — Continuou, virando-se devagar para encarar o acusado — havia aparecido em um programa de televisão com Ralph Elliot, uma popular e bem respeitada figura de nossa comunidade e, talvez mais importante de tudo, o favorito para vencer a nomeação republicana, a qual talvez pudesse levá-lo a ser governador do Estado que amamos tanto. Ele era um homem no ápice de sua carreira, pronto para receber os louvores de um eleitorado grato por anos de serviços não egoístas prestados à comunidade; mas qual foi o prêmio que recebeu? Acabou assassinado pelo seu mais próximo rival.

"E como foi que esta desnecessária tragédia aconteceu? O Sr. Cartwright é perguntado sobre o fato de sua esposa ser imigrante ilegal — tal é a força da política — uma pergunta que, devo acrescentar, ele não estava desejando responder, e por quê? Porque ele sabia que era verdade, e permaneceu em silêncio sobre o assunto por mais de vinte anos. E tendo-se recusado a responder àquela pergunta, qual foi o próximo passo do Sr. Cartwright? Ele tentou transferir a culpa para Ralph Elliot. No momento em que o programa acaba, ele começa a gritar obscenidades para ele, chama-o de bastardo, acusa-o de ensaiar a pergunta e, o mais desgraçado de tudo, ele diz: "Eu ainda Vou matar você!" Ebden olhou para o júri, repetindo as cinco palavras lentamente: "Eu ainda Vou matar você"!

"Não confiem em minhas palavras para condenar o Sr. Cartwright, pois vocês estão prestes a descobrir que isso não é um rumor, um ouvi dizer que... ou minha imaginação.

Porque a conversa toda entre os dois rivais foi gravada pela televisão para a posteridade. Acredito que isso seja incomum, Meritíssimo, mas sob estas circunstâncias, eu gostaria de mostrar este vídeo ao júri neste momento."

Ebden fez um sinal de cabeça em direção à sua mesa e um assistente pressionou um botão.

Pelos vinte minutos seguintes, Nat olhou para uma tela que havia sido colocada em oposição ao júri, mas foi dolorosamente lembrado de quão enraivecido ele ficara.

Assim que o vídeo foi desligado, Ebden continuou com seu depoimento de abertura.

— Mas é ainda uma responsabilidade do Estado mostrar o que foi que de fato aconteceu depois que este zangado e vingativo homem saiu do estúdio.

Ebden baixou a voz.

— Ele voltou para casa para descobrir que seu filho, seu único filho, havia cometido suicídio. Agora todos nós podemos compreender bem o efeito que uma tal tragédia surte sobre um pai. E quando acontece, membros do júri, esta morte trágica desencadeia uma torrente de outros eventos que acabam na fatídica e sangrenta morte de Ralph Elliot. Cartwright diz a sua esposa que depois de ter ido ao hospital voltará imediatamente para casa; mas ele não tem intenção de fazê-lo, porque já planejou um desvio que irá levá-lo à casa do Sr. e da Sra. Elliot. E qual poderia ter sido a razão para sua visita noturna, às duas da manhã?

Só podia haver um propósito: retirar Ralph Elliot da corrida governamental. Tristemente para a sua família e para o nosso Estado, o Sr. Cartwright conseguiu realizar sua missão.

"Ele se dirige, sem ser convidado, para a casa da família Elliot, às duas da manhã. A porta é aberta pelo Sr. Elliot, que estava trabalhando em seu escritório sobre um discurso de posse. O Sr. Cartwright invade a casa, esmurra o Sr. Elliot tão for temente no nariz que ele cai de costas no corredor, depois de ver seu adversário correr em sua direção. O Sr. Elliot recupera-se a tempo de correr para seu escritório e apanhar uma arma que guardava na gaveta da escrivaninha. Ele se vira no instante em que Cartwright levanta-se sobre ele, chutando o revólver de sua mão, assegurando-se desse modo de que o Sr. Elliot não tem nenhuma chance de se defender, Cartwright, então, agarra a pistola, aponta-a sobre sua vítima e sem um instante de hesitação atira em seu coração. Ele, então, detona um segundo tiro no teto, para dar a impressão de que acontecera uma luta. Cartwright larga o revólver, foge pela porta aberta e, pulando no seu carro, dirige depressa para casa. Desconhecendo isso, ele deixar a na casa uma testemunha do episódio todo — a esposa da vítima, Sra. Rebecca Elliot. Quando ouviu o primeiro tiro, a Sra. Elliot correu do seu quarto para o topo da escada e, momentos depois, ouvindo o segundo tiro, viu, com horror, quando Cartwright saía pela porta da frente. E tal como a câmera de televisão havia gravado cada detalhe um pouco antes, naquela noite, a Sra. Elliot descreve para os senhores, com a mesma precisão, exatamente o que aconteceu mais tarde naquela noite."

O promotor desviou sua atenção de cima do júri por um instante e olhou diretamente par a Fletcher.

— Em alguns instantes o advogado de defesa vai levantar-se do seu lugar e, com toda a sua famosa oratória e charme, irá tentar trazer lágrimas aos seus olhos, buscando esclarecer o que realmente aconteceu. Mas o que ele não Poderá esclarecer é o corpo de um homem inocente assassinado a sangue-frio Por seu rival político. O que ele não poderá esclarecer é sua mensagem na televisão dizendo "Eu ainda vou matar você". O que ele não poderá esclarecer é uma testemunha do assassinato, a viúva do Sr. Elliot, Rebecca.

O advogado de acusação transferiu seu olhar para Nat.

— Sim, tenho, Meritíssimo. O Estado chama o chefe de polícia, Don Culver.

Nat olhou quando Don Culver sentou-se no banco e repetiu o juramento. Alguma coisa estava errada, mas ele não conseguia descobrir o que era. Então ele viu o segundo e o terceiro dedos da mão direita de Culver cruzados, e compreendeu que era a primeira vez que ele o havia visto sem a marca registrada do seu charuto.

— Sr. Culver, o senhor poderia dizer ao júri qual é a sua patente atual?

— Sou o chefe de polícia da cidade de Hartford.

— E há quanto tempo o senhor detém esta posição?

— Um pouco mais de quatorze anos.

— E por quanto tempo o senhor tem sido um policial para o reforço da lei?

— Pelos últimos trinta e seis anos.

— Então seria seguro dizer que o senhor tem uma grande experiência no que tange a homicídios?

— Acho que isso é certo — disse o chefe.

— E o senhor alguma vez já esteve em contato com o acusado?

— Sim, já estive, em diversas ocasiões.

— Ele está roubando algumas das minhas perguntas — sussurrou Fletcher para Nat — mas eu ainda não entendi bem por quê.

— E o senhor formou uma opinião sobre o homem?

— Sim, formei, ele é um decente e confiável cidadão, que, até matar...

— Objeção, Meritíssimo — disse Fletcher, erguendo-se de seu lugar. — É papel do júri decidir quem matou o Sr. Elliot, não do chefe de polícia. Nós não vivemos num estado policial, ainda.

— Mantida — disse o juiz.

— Bem, tudo que eu posso dizer — disse o chefe — é que, até que isso acontecesse, eu teria votado nele.

Risadas eclodiram na Corte.

— E depois que eu acabar com o chefe — murmurou Fletcher — ele certamente não vota rá em mim.

— Então o senhor deve ter tido alguma dúvida em sua mente de que um tão exemplar cidadão fosse capaz de assassinato?

— Não tanto, Sr. Ebden — disse o chefe. — Assassinos não são criminosos tão especiais.

— O senhor se importaria em explicar o que quer dizer com isso?

— Claro que sim — disse Culver. — A média de assassinatos está entre casos domésticos, geralmente dentro da família, e são muitas vezes cometidos por alguém que nunca cometera um crime antes, e que, provavelmente, não o cometerá outra vez. Uma vez que eles estejam sob custódia, são muitas vezes mais fáceis de lidar do que um ladrãozinho comum.

— O senhor sente que o Sr. Cartwright se encaixa nesta categoria?

— Objeção! — disse Fletcher de onde estava sentado. — Como pode o chefe saber a resposta a esta pergunta?

— Porque eu tenho lidado com assassinos pelos últimos trinta e seis anos — respondeu Don Culver.

— Retire isso dos arquivos — disse o juiz. — A experiência é ótima etc., mas o júri, no final, terá de lidar apenas com os fatos deste caso em particular.

— Então vamos passar para uma pergunta que lida com um fato deste caso em particular — disse o promotor. — Como foi que o senhor se envolveu neste caso, chefe Culver?

— Recebi um chamado em casa da Sra. Elliot nas primeiras horas do dia 12 de fevereiro.

— Ela o chamou em casa? Ela faz parte dos seus conhecimentos pessoais?

— Não, mas todos os candidatos a cargos públicos podem ligar-me pessoalmente. Eles estão muitas vezes sujeitos a traições, reais ou imaginárias, e não era segredo que o Sr. Elliot havia recebido várias ameaças de morte desde que ele se candidatara a governador.

— O senhor se lembra exatamente das palavras que a Sra. Elliot disse quando o chamou?

— Pode apostar que sim — disse o chefe. — Ela soava histérica e estava gritando. Eu me lembro que tive de segurar o telefone longe do meu ouvido; na verdade, ela acordou minha esposa.

Umas poucas risadas ecoaram na Corte pela segunda vez e Culver esperou que se acalmassem antes de acrescentar: — Anotei suas exatas palavras num bloco que mantenho ao lado do telefone. — Ele abriu o caderninho.

Fletcher levantou-se.

— Isso constitui prova? — perguntou ele.

— Estava na lista de documentos aprovados da promotoria, Meritíssimo — interveio Ebden — Como tenho certeza de que o Sr. Davenport deve ter sido informado... Ele teve semanas para considerar sua relevância, sem mencionarmos sua importância.

O juiz assentiu para o chefe de polícia.

— Vá em frente — disse ele, enquanto Fletcher voltava a sentar-se.

— "Meu marido recebeu um tiro em seu escritório. Por favor, venha o mais depressa possível!" — Contou o chefe, lendo no seu caderninho.

— E o que foi que o senhor disse?

— Eu disse a ela para não tocar em nada que eu estaria com ela tão logo pudesse chegar lá.

— Que horas eram?

— Duas e vinte e seis — o chefe respondeu depois de rever o bloco.

— E quando foi que o senhor chegou à casa dos Elliot?

— Não até três e dezenove. Primeiro precisei ligar para a delegacia e pedir o mais experiente dos detetives disponível para a residência dos Elliot. Depois me vesti, e que quando cheguei lá descobri que dois dos meus patrulheiros já haviam chegado, mas acontece que eles não tiveram de se vestir antes.

Novamente as risadas se fizeram ouvir no salão da Corte.

— Por favor, descreva para o júri exatamente o que foi que o senhor viu assim que chegou.

— A porta da frente estava aberta e a Sra. Elliot estava sentada no chão do corredor, os joelhos dela erguidos até o queixo. Deixei-a saber que estava lá, e depois encontrei o detetive Petrowski no escritório do Sr. Elliot. O Sr. Petrowski é um dos mais respeitados detetives do meu contingente, com uma grande dose de experiência em homicídios, e como parecia que ele conduzia bem a investigação, eu o deixei continuar com seu trabalho enquanto voltava para a Sra. Elliot.

— O senhor a interrogou, então?

— Sim, interroguei — respondeu o chefe.

— Mas o detetive Petrowski já não havia feito isso?

— Sim, mas é sempre útil pegar duas declarações, de modo que o senhor possa compará-las mais tarde e ver se elas diferem em qualquer dos pontos essenciais.

— Meritíssimo, essas declarações provêm de "ouvir dizer" — interferiu Fletcher.

— E elas diferiam? — perguntou Ebden, apressadamente.

— Não, não diferiam.

— Objeção! — enfatizou Fletcher.

— Indeferida, Sr. Davenport. Conforme lhe foi indicado antes, o senhor teve acesso a esses documentos por diversas semanas.

— Obrigado, Meritíssimo — disse Ebden. — Eu gostaria que contasse à Corte o que foi que o senhor fez em seguida, chefe.

— Sugeri que nos sentássemos na sala da frente, de modo que a Sra. Elliot pudesse ficar mais confortável. Então, pedi a ela que me contasse lentamente o que havia acontecido naquela noite. Não a apressei, uma vez que as testemunhas estão quase sempre ressentidas de ouvirem exatamente as mesmas perguntas uma segunda e uma terceira vez. Depois que ela terminou sua xícara de café, a Sra. Elliot finalmente me disse que estava dormindo na sua cama quando ouviu o primeiro tiro. Ela acendeu a luz, colocou seu robe e foi até o topo da escada e, ali, ouviu o segundo tiro. E viu então quando o Sr. Cartwright saía correndo do escritório em direção à porta aberta.

Ele virou-se para olhar para trás, mas não pôde vê-la no escuro, do topo dos degraus, em bora ela o reconhecesse imediatamente. Depois desceu correndo as escadas e entrou no escritório, onde encontrou o marido caído no chão, numa poça de sangue. Ela, então, telefonou para minha casa imediatamente.

— O senhor continuou a interrogá-la?

— Não, deixei uma policial com a Sra. Elliot enquanto eu checava sua declaração original. Depois de uma nova consulta com o detetive Petrowski, fui até a casa do Sr. Cartwright, acompanhado de outros dois policiais, prendi o acusado e acusei-o do assassinato de Ralph Elliot.

— Ele havia ido para a cama?

— Não, ainda estava com as roupas que vestira no programa de televisão daquela noite.

— Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

— Sua testemunha, Sr Davenport.

Fletcher caminhou até a testemunha, permanecendo com um sorriso na face.

— Boa-tarde, chefe. Não o deterei por muito tempo, pois estou bastante ciente de como o senhor está ocupado; mas, de qualquer modo, tenho três ou quatro perguntas que precisam ser respondidas.

O chefe de polícia não retribuiu o sorriso de Fletcher.

— Eu gostaria de saber quanto tempo se passou entre o recebimento do telefonema da Sra. Elliot para a sua casa e a hora em que o senhor prendeu o Sr. Cartwright.

Os dedos do chefe de polícia se cruzaram outra vez enquanto ele considerava a pergunta.

— Duas horas, duas horas e meia, não mais — disse ele com naturalidade.

— E quando o senhor chegou à casa do Sr. Cartwright, como é que ele estava vestido?

— Eu já disse isso à Corte. Exatamente com as mesmas roupas que estava usando na televisão, naquela noite.

— Então ele não abriu a porta vestindo roupas de dormir, como se tivesse acabado de ir para cama?

— Não, não estava — disse o chefe, confuso.

— O senhor não acha que um homem que acabou de cometer um assassinato gostaria de tirar sua roupa e ir para cama às duas da madrugada, de modo que se a polícia subitamente aparecesse à sua porta, ele pudesse pelo menos dar a impressão de que tinha acabado de ir dormir?

O chefe franziu as sobrancelhas.

— Ele estava confortando sua esposa.

— Compreendo — disse Fletcher. — O assassino estava confortando sua esposa; então, deixe-me perguntar-lhe, chefe, quando o senhor prendeu o Sr. Cartwright, ele deu um depoimento?

— Não — respondeu o chefe de polícia. — Ele disse que queria falar com um advogado, primeiro.

— Mas ele disse alguma coisa que o senhor houvesse registrado em seu caderno de anotações?

— Sim — disse o chefe de polícia, e virou algumas páginas de seu caderninho antes de estudar cuidadosamente uma anotação. — Sim — repetiu ele com um sorriso. — Cartwright disse: "Mas ele ainda estava vivo quando o deixei."

— "Mas ele ainda estava vivo quando o deixei" — repetiu Fletcher. — Dificilmente estas seriam as palavras de um homem que está tentando esconder o fato de que tinha estado lá. Ele não trocou de roupas, ele não foi para a cama e ele abertamente admitiu que estava na casa de Elliot um pouco antes naquela noite.

O chefe permaneceu silencioso.

— Quando ele o acompanhou à delegacia de polícia, o senhor tomou suas impressões digitais?

— Sim, naturalmente.

— O senhor efetuou qualquer outro tipo de teste? — perguntou Fletcher.

— O que é que o senhor tem em mente? — perguntou o chefe.

— Não jogue comigo — disse Fletcher, sua voz revelando uma leve farpa. — O senhor efetuou algum outro teste?

— Sim — disse o chefe. — Nós checamos sob suas unhas para ver se havia algum indício de que houvesse disparado um revólver.

— E havia alguma indicação de que o Sr. Cartwright houvesse disparado um revólver? — perguntou Fletcher, voltando ao seu Tom mais conciliatório.

O chefe hesitou.

— Nós não pudemos encontrar resíduos de pólvora em suas mãos ou sob suas unhas.

— Não havia resíduo de pólvora em suas mãos ou sob suas unhas — repetiu Fletcher, encarando o júri.

— Sim, mas ele tivera umas duas horas para lavar suas mãos e escovar suas unhas.

— Ele certamente teve, chefe. E ele também teve duas horas para tirar a roupa, ir para a cama, apagar as luzes da casa e apresentar palavras muito mais convincentes do que estas: "Mas ele ainda estava vivo quando o deixei."

Os olhos de Fletcher nunca deixaram o júri. Uma vez mais, o chefe de polícia permaneceu em silêncio.

— Minha última pergunta, Sr. Culver. Trata-se de uma coisa que está me apoquentando desde que resolvi assumir este caso, especialmente quando penso sobre seus trinta e seis anos de experiência, quatorze dos quais como chefe de polícia. — Ele se virou para encarar Culver. — Alguma vez passou pela sua mente a possibilidade de alguém mais ter cometido este crime?

— Não havia sinal de ninguém mais que houvesse entrado na casa, além do Sr. Cartwright.

— Mas já havia outra pessoa na casa.

— E não havia absolutamente nenhuma evidência de espécie alguma a sugerir que a Sra. Elliot pudesse estar envolvida.

— Nenhuma evidência, de nenhuma espécie? — repetiu Fletcher. — Eu espero, chefe, que o senhor encontre tempo em sua agenda ocupada para dar um pulinho e verificar as provas que confrontei sobre a Sra. Elliot, quando o júri estiver preparado para decidir se ali não havia absolutamente nenhuma evidência de espécie alguma para mostrar que ela poderia estar envolvida nesse crime.

Um barulho tremendo se fez ouvir na sala do tribunal enquanto todos começavam a falar ao mesmo tempo.

O promotor levantou-se.

— Objeção, Meritíssimo! — disse ele rispidamente. — Não é a Sra. Elliot que está sendo julga da. — Mas ele não pôde ser ouvido acima do barulho do juiz batendo seu martelo, enquanto Fletcher caminhava lentamente de volta ao seu lugar.

Quando o juiz conseguiu trazer alguma ordem aos procedimentos, tudo que Fletcher disse foi: — Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

— Você tem alguma prova? — sussurrou Nat, enquanto seu advogado se sentava.

— Não muitas — admitiu Fletcher — mas uma coisa em que sinto confiança é que se a Sra. Elliot matou o marido, ela não dormirá muito bem entre este momento e a hora de ir sentar-se no banco das testemunhas. E a respeito de Ebden, ele gastará os próximos poucos dias se perguntando o que queremos trazer aqui que ele ainda não sabe.

Fletcher sorriu para o chefe de polícia quando este desceu do banco das testemunhas, mas recebeu um olhar frio, inexpressivo, em troca. O juiz olhou para os dois advogados.

— Acho que isso é o suficiente por hoje, cavalheiros — disse ele. — Nós nos reunirem os amanhã, outra vez, às dez da manhã, quando o Sr. Ebden poderá chamar sua próxima testemunha.

— Levantem-se todos!

 


47


QUANDO, NA MANHÃ SEGUINTE, o juiz ENTROU, apenas a troca da gravata dava uma pista de que ele saíra do edifício. Nat se perguntava quanto tempo passaria antes que as gravatas também começassem a fazer uma segunda, e talvez, uma terceira aparição.

— Bom-dia — disse o juiz Kravats, sentando-se à bancada e sorrindo para a multidão a li reunida como se ele fosse um pregador benevolente, pronto a dirigir-se à sua congregação.

— Sr. Ebden — disse ele — pode chamar sua próxima testemunha.

— Obrigado, Meritíssimo. Eu chamo o detetive Petrowski.

Fletcher estudou o detetive sênior cuidadosamente, enquanto este se encaminhava para o banco das testemunhas. Ele ergueu a mão direita e começou a recitar o juramento.

Petrowski mal conseguira passar na altura mínima requerida pelo contingente para seus recrutas. Seu terno apertado mostrava a conformação de um boxeador em vez de alguém que estava acima do peso. Seu queixo era quadrado, seus olhos estreitos, e seus lábios dobravam-se um pouco nas beiradas, dando a impressão de que não sorria com muita frequência. Um dos investigadores de Fletcher descobrira que Petrowski for a indicado para ser o próximo chefe de polícia quando Don Culver se aposentasse.

Ele tinha como reputação seguir as regras ao pé da letra, mas odiava burocracia, preferindo visitar a cena do crime do que ficar sentado atrás da escrivaninha, na sede.

— Bom-dia, capitão — disse o promotor assim que a testemunha sentou-se. Petrowski anuiu, mas ainda não sorriu. — Só para os arquivos, queira declarar seu nome e patente.

— Frank Petrowski, chefe dos detetives do Departamento de Polícia da cidade de Hartford.

— E há quanto tempo o senhor é detetive?

— Quatorze anos.

— E quando foi que o senhor foi indicado como chefe dos detetives?

— Há três anos.

— Tendo declarado sua identificação, vamos passar para a noite do assassinato. Os registros policiais mostram que o senhor foi o primeiro policial a chegar à cena do crime.

— Sim, fui — disse Petrowski. — Eu era o mais antigo policial em serviço naquela noite, tendo recebido o turno do chefe, às oito horas.

— E onde estava o senhor às duas e trinta daquela manhã, quando o chefe de polícia o chamou?

— Estava num carro de patrulha, a caminho de investigar uma invasão num armazém na Rua Marsham, quando o sargento de plantão telefonou para dizer que o chefe de polícia queria que eu fosse imediatamente à casa de Ralph Elliot, em West Hartford, e investigasse um possível homicídio. Como eu estava a minutos de distância apenas, aceitei a incumbência e pedi a outra patrulha que cobrisse a Rua Marsham.

— E o senhor se dirigiu diretamente para a casa dos Elliot?

— Sim, mas no caminho passei uma mensagem pelo rádio para a sede a fim de comunicar-lhes que estava precisando da assistência de um médico-legal e o melhor fotógrafo que eles pudessem tirar da cama naquela hora da manhã.

— E o que foi que o senhor encontrou ao chegar à casa dos Elliot?

— Fiquei surpreso ao descobrir que a porta da frente estava aberta e que a Sra. Elliot estava encolhida no chão do corredor. Ela me disse que encontrara o corpo de seu marido no escritório, e apontava para a outra ponta do corredor. Ela acrescentou que o chefe de polícia lhe havia dito para não tocar em nada, razão pela qual a porta da frente houvera sido deixada aberta. Fui direto para o escritório, e uma vez confirmado que o Sr. Elliot estava morto, voltei para o corredor e tomei o depoimento de sua esposa, cópias da qual estão em posse do tribunal.

— O que foi que o senhor fez depois?

— No seu depoimento, a Sra. Elliot disse que estava dormindo quando ouviu dois tiros vindos das escadas e, então, eu e três outros policiais voltamos ao escritório para procurar pelas balas.

— E o senhor as encontrou?

— Sim. A primeira foi fácil de localizar, porque depois que passou pelo coração do Sr. Elliot, acabou encravada no painel de madeira da parede atrás de sua escrivaninha.

A segunda demorou mais um pouquinho para ser encontrada, mas nós, finalmente, a avistamos alojada no teto, acima do armário do Sr. Elliot.

— Poderiam estas duas balas ter sido disparadas pela mesma pessoa?

— É possível — disse Petrowski — se o assassino quisesse deixar a impressão de uma luta, ou que a vítima tivesse virado o revólver para si mesma.

— Isso é comum em caso de homicídio?

— Não é desconhecido que criminosos tentam deixar evidências conflitantes.

— Mas o senhor pode provar que ambas as balas vieram da mesma arma?

— Isso foi confirmado pela balística no dia seguinte.

— E foram encontradas impressões digitais na arma de fogo?

— Sim — disse Petrowski — uma marca de palma na coronha do revólver, mais uma marca do dedo indicador no gatilho.

— E o senhor foi capaz de identificar essas amostras depois?

— Sim. — Ele fez uma pausa. — As duas se identificavam com as impressões do Sr. Cartwright.

Uma babel de conversas irrompeu do público nos bancos, atrás de Fletcher. Ele procurou não piscar enquanto observava a reação do público com esta peça de informação.

Um momento mais tarde, escreveu uma nota em seu bloco amarelo. O juiz bateu seu martelo diversas vezes, pedindo ordem antes que Ebden fosse capaz de prosseguir.

— A partir da entrada da bala no corpo e do peito chamuscado, o senhor foi capaz de asseverar a que distância o assassino se encontrava de sua vítima?

— Sim — disse Petrowski. — Os peritos estimaram que o assassino deve ter ficado em pé, à distância de um metro e vinte a um metro e meio em frente da vitima, e do ângulo em que a bala entrou no corpo eles foram capazes de mostrar que os dois homens estavam sentados naquele momento.

— Objeção, Meritíssimo! — disse Fletcher, erguendo-se de seu assento. — ainda temos de provar que foi um homem que disparou os dois tiros.

— Mantida.

— E quando juntou todas as evidências — Continuou Ebden, como se não houvesse sido interrompido — foi o senhor que tomou a iniciativa de prender o sr. Cartwright?

— Não, no momento o chefe de polícia tinha aparecido, e embora fosse meu o caso, perguntei se ele também tomaria o depoimento da Sra. Elliot, termos certeza de que sua história não havia mudado em nada.

— E tinha mudado?

— Não, em todos os pontos essenciais permaneceu consistente. Fletcher sublinhou a palavra essencial já que tanto Petrowski quanto o chefe a tinham usado. Bem ensaiado, ou uma coincidência, ele se perguntou.

— Foi aí que o senhor decidiu prender o acusado?

— Sim, foi sob minha recomendação, mas a última palavra foi uma decisão do chefe.

— O senhor não estava correndo um risco tremendo prendendo um candidato governamental durante uma campanha de eleição?

— Sim, nós estávamos, e discuti aquele problema com o chefe. Costumamos descobrir, por nossa conta, que as primeiras vinte e quatro horas são as mais importantes em qualquer investigação, e nós tínhamos um corpo, duas balas e uma testemunha do crime.

Considerei que teria sido um não cumprimento do meu dever não fazer uma prisão simplesmente porque o atacante tinha amigos poderosos.

— Objeção, Meritíssimo! Isso foi prejudicial! — disse Fletcher.

— Mantida — disse o juiz — e retire dos arquivos. — Ele virou-se para Petrowski e acrescentou: — Por favor, detetive, restrinja-se aos fatos. Não estou interessado em sua opinião.

Petrowski anuiu.

Fletcher virou-se para Nat: — O último depoimento soou como se tivesse sido escrito na delegacia. — Ele fez um a pausa, olhou para seu bloco amarelo e comentou que aquele "não cumprimento", "pontos essenciais" e "atacante" haviam sido liberados como se eles os tivessem estudado até as profundezas da alma.

— Petrowski não terá oportunidade de soltar respostas ensaiadas quando eu o defrontar.

— Obrigado, capitão — disse Ebden — não tenho mais perguntas para o detetive Petrowski, Meritíssimo.

— O senhor deseja inquirir esta testemunha? — perguntou o juiz, preparando-se para outra manobra tática.

— Sim, com certeza desejo, Meritíssimo.

Fletcher permaneceu sentado enquanto virava a folha do seu bloco.

— Detetive Petrowski, o senhor disse à Corte que as impressões digitais do cliente estavam na arma?

— Não apenas suas impressões digitais, mas uma impressão da palma da mão, na coronha, conforme confirmado pelo relatório da perícia.

— E o senhor não disse também à Corte que em sua experiência criminosos muitas vezes tentam deixar evidências conflitantes de modo a enganar a polícia?

Petrowski assentiu, mas não respondeu.

— Sim ou não, capitão?

— Sim — disse Petrowski.

— O senhor descreveria o Sr. Cartwright como um louco?

Petrowski hesitou, enquanto tentava descobrir onde é que Fletcher estava tentando conduzi-lo.

— Não, eu diria que ele é um homem altamente inteligente.

— O senhor descreveria deixando suas impressões digitais e a impressão da palma da mão numa arma de assassinato como um ato de um homem altamente inteligente? — perguntou Fletcher.

— Não, mas o Sr. Cartwright não é um criminoso profissional, e não pensa como um. Amadores muitas vezes entram em pânico e é então que cometem enganos simples.

— Como derrubando a arma no chão, coberta com suas impressões, e correndo para fora da casa, deixando a porta da frente totalmente aberta?

— Sim, isso não me surpreende, dadas as circunstâncias.

— O senhor levou várias horas interrogando o Sr. Cartwright, capitão; ele o impressiona como o tipo do homem que entra em pânico e depois sai correndo?

— Objeção, Meritíssimo! — disse Ebden, levantando-se. — Como se pode esperar que o detetive Petrowski responda a esta pergunta?

— Meritíssimo, o detetive Petrowski tem-se mostrado apenas muito desejoso de dar-nos sua opinião sobre os hábitos de criminosos amadores e profissionais; portanto, eu não posso ver por que ele não se sentiria confortável em responder à minha pergunta.

— Indeferida, defensor. Continue.

Fletcher abaixou a cabeça para o juiz, levantou-se, caminhou em direção ao banco das testemunhas e ficou numa reentrância defronte ao detetive.

— Havia quaisquer outras impressões digitais na arma?

— Sim — disse Petrowski, não parecendo estar muito atemorizado pela presença de Fletcher. — Havia impressões parciais do Sr. Elliot, mas elas haviam sido levadas em conta se nos lembrarmos que ele tirou o revólver de sua escrivaninha para proteger-se.

— Mas suas impressões estavam na arma?

— Sim.

— O senhor checou para ver se havia resíduos de pólvora sob suas unhas?

— Não — disse Petrowski.

— E por que não? — perguntou Fletcher.

— Porque o senhor precisaria de braços muito longos para atirar em si mesmo de uma distância de um metro e vinte.

Risadas fizeram-se ouvir na Corte.

Fletcher esperou pelo silêncio antes de dizer: — Mas ele poderia ter disparado a primeira bala, que acabou alojada no teto?

— Poderia ter sido a segunda bala — redarguiu ele.

Fletcher virou-se do banco das testemunhas e se encaminhou para o júri.

— Quando o senhor tomou o depoimento da Sra. Elliot, o que é que ela estava vestindo?

— Um robe, como ela explicou; ela estava dormindo no momento em que o primeiro tiro foi disparado.

— Ah, sim, eu me lembro — disse Fletcher antes de caminhar de volta para sua mesa. Ele apanhou uma simples folha de papel e leu: "Foi quando a Sra. Elliot ouviu o segundo tiro que ela saiu do quarto e correu para o topo da escada."

Petrowski assentiu.

— Por favor, responda à pergunta, detetive, sim ou não?

— Eu não me lembro da pergunta — disse Petrowski, parecendo atrapalhado.

— Foi quando ouviu o segundo tiro que a Sra. Elliot saiu do quarto e correu para o topo da escada.

— Sim, isso foi o que ela nos disse.

— E ela ficou lá, olhando o Sr. Cartwright enquanto ele saía pela porta da frente. Isso também está correto? — perguntou Fletcher, voltando-se por completo para olhar diretamente para Petrowski.

— Sim, está — disse Petrowski, tentando permanecer calmo.

— Detetive, o senhor disse à Corte que entre outros profissionais pediu assistência de um policial fotógrafo?

— Sim, isso é uma prática padrão num caso como este, e todas as fotografias que foram tiradas naquela noite foram submetidas como evidência.

— De fato foram — disse Fletcher enquanto voltava à mesa e esvaziava um grande pacote de fotografias sobre ela. Ele selecionou uma e andou de volta para o banco de testemunhas. — Esta é uma daquelas fotografias? — perguntou ele.

Petrowski estudou-a cuidadosamente e depois olhou o carimbo nas costas.

— Sim, é. — O senhor a descreveria para o júri?

— É uma fotografia da porta de entrada dos Elliot, tirada da calçada de entrada.

— Por que essa fotografia em particular foi submetida como evidência?

— Porque provava que a porta havia sido deixada aberta quando o assassino fugiu por ali. Também mostra o longo corredor até o escritório do Sr. Elliot.

— Sim, naturalmente que mostra, eu deveria ter pensado nisso — disse Fletcher. Ele fez uma pausa. — E a figura encolhida no corredor, é a Sra. Elliot?

O detetive deu uma segunda olhada.

— Sim, é, ela parecia calma na ocasião; portanto, decidimos não perturbá-la.

— Que delicadeza! — disse Fletcher. — Então, deixe-me perguntar-lhe, finalmente, detetive. O senhor disse ao promotor municipal que o senhor não pediria uma ambulância até que sua investigação tivesse sido completada?

— Isso está correto. Paramédicos algumas vezes aparecem na cena do crime antes que a polícia tenha chegado, e eles são notórios em destruir as evidências.

Eles são? — perguntou Fletcher. — Mas isso não aconteceu nesta ocasião, porque o senhor foi a primeira pessoa a chegar, seguindo a chamada da Sra. Elliot para o chefe de polícia.

— Sim, eu cheguei.

Muito recomendável — disse Fletcher. — O senhor tem alguma ideia de tempo levou para chegar à casa da Sra. Elliot, em West Hartford? Cinco, talvez seis minutos.

— O senhor deve ter tido de quebrar o limite de velocidade para alcançar isso — disse Fletcher, com um sorriso.

— Eu liguei minha sirene, mas eram duas da manhã, havia muito pouco tráfego naquela hora.

— Estou grato pela explicação — disse Fletcher. — Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

— Sobre o que era tudo aquilo? — murmurou Nat quando Fletcher voltou ao seu lugar.

— Ah, estou feliz que você não tenha descoberto — disse Fletcher. — Agora vamos esperar que o promotor também não tenha.

 

 

48


— CHAMO REBECCA ELLIOT para o banco das testemunhas.

Quando Rebecca entrou, todas as cabeças se voltaram, exceto a de Nat. Ele permaneceu olhando resolutamente para frente. Ela caminhou devagar para o centro da sala, fazendo o tipo de entrada que uma atriz faria em todos os scripts. A Corte estava lotada desde o momento em que as portas foram se abrindo, às oito horas daquela manhã. As três filas de assentos para o público haviam sido isoladas por cordas, e só a presença de soldados uniformizados impediu que fossem invadidas.

Fletcher olhara em volta quando Don Culver, o chefe da polícia, e o detetive Petrowski haviam se sentado na primeira fila, logo atrás da mesa do promotor. Faltando um minuto para as dez horas, apenas treze lugares permaneciam desocupados.

Nat olhou para Fletcher, que tinha uma pequena pilha de blocos amarelos, de padrão jurídico, na sua frente. Ele podia ver que a folha de cima estava em branco e rezava que os outros três blocos ainda não abertos tivessem alguma coisa escrita neles. Um policial deu um passo à frente para indicar à Sra. Elliot a área aberta da Corte e guiá-la até o banco das testemunhas. Nat olhou para Rebecca pela primeira vez. Ela estava desempenhando o papel de viúva — um terninho preto da moda, abotoado até o pescoço, e uma saia que caía diversos centímetros abaixo dos joelhos. A única jóia que portava, além da aliança de noivado e do anel de casamento, era uma simples fieira de pérolas. Fletcher olhou para seu punho esquerdo e fez a primeira anotação no seu bloco. Assim que se sentou no banco, Rebecca virou o rosto para o juiz e deu-lhe um sorriso tímido. Ele assentiu cortesmente.

Ela, então, imóvel, fez o juramento. Em seguida sentou-se e, virando-se para o júri, deu-lhe o mesmo sorriso tímido. Fletcher notou que diversos membros devolveram-lhe o cumprimento. Rebecca tocou os próprios cabelos, e Fletcher ficou sabendo onde ela devia ter passado a maior parte da tarde anterior. O promotor não perdeu nenhum truque, e se ele pudesse solicitar que o júri declarasse seu veredicto, antes mesmo que uma única pergunta fosse feita, ele suspeitava de que o teriam sentenciado com prazer, o mesmo se passando com seu cliente, à cadeira elétrica.

O juiz assentiu, e o promotor ergueu-se do seu lugar. O Sr. Ebden também se sentia num quebra-cabeça. Ele vestia um terno escuro, cor de carvão, camisa branca e uma sóbria gravata azul — a roupa adequada para se interrogar a Virgem Mãe.

— Sra. Elliot — disse ele, baixinho, enquanto caminhava para o centro do tribunal. — Todas as pessoas aqui presentes estão cientes da provação pela qual a senhora tem passado, e que agora terá de reviver penosamente. Deixe-me reafirmar-lhe que é minha intenção fazer-lhe todas as perguntas necessárias da maneira menos sofrida possível, na esperança de que a senhora não tenha de ficar no banco das testemunhas mais tempo do que o necessário.

— Especialmente porque nós fomos capazes de ensaiar todas as perguntas, por mais de uma vez, pelos últimos cinco meses — murmurou Fletcher. Nat tentou não sorrir.

— Deixe-me começar perguntando-lhe, Sra. Elliot, quanto tempo ficou casada com seu falecido marido?

— Amanhã completaríamos dezessete anos de casados.

— E como foi que a senhora planejou celebrar essa ocasião?

— Ficaríamos no Salisbury Inn, onde passamos a primeira noite de nossa lua-de-mel, porque eu sabia que Ralph não poderia ficar mais do que cinco horas longe da sua campanha.

— Típico do comprometimento e da consciência pública do Sr. Elliot — disse o promotor enquanto se encaminhava para o centro do tribunal, em direção ao júri. — Preciso pedir-lhe, Sra. Elliot, que confirme comigo enquanto volto à noite da prematura e trágica morte do seu marido. — Rebecca inclinou discretamente a cabeça. — A senhora não compareceu ao debate em que o Sr. Elliot tomou parte no final da tarde. Houve alguma razão em particular para isso?

— Sim — disse Rebecca, encarando o júri. — Ralph gostava que eu ficasse em casa e o visse sempre que estivesse na televisão, quando eu poderia fazer anotações detalhadas que ele discutiria depois. Ele achou que, se eu fosse parte da audiência do estúdio, poderia ficar influenciada pelos que estavam à minha volta, especialmente se soubessem que eu era a esposa do candidato.

— Isso faz bastante sentido — disse Ebden.

Fletcher rabiscou uma segunda nota no bloco à sua frente.

— Alguma coisa em particular, do que a senhora se recorde sobre a transmissão, naquela tarde?

— Sim — disse Rebecca. Ela fez uma pausa e inclinou a cabeça. — Eu me senti mal quando o Sr. Cartwright ameaçou meu marido com as palavras "eu ainda Vou matar você".

Ela ergueu a cabeça lentamente e olhou para o júri enquanto Fletcher fazia uma nova anotação.

— E quando o debate terminou seu marido retornou para casa, em West Hartford?

— Sim, eu havia preparado uma refeição leve para ele, que fizemos na cozinha, porque algumas vezes ele se esquece... — Ela fez uma nova pausa. — Sinto muito, esquecia, de fazer uma pausa para comer em sua agenda cansativa.

— A senhora se lembra de alguma coisa em especial sobre aquela refeição?

— Sim, conversei com ele sobre as anotações que fiz, pois tinha questionamentos muito fortes sobre alguns pontos que haviam sido levantados durante o debate.

Fletcher virou a folha e fez mais uma anotação.

— Na verdade, foi depois da refeição que eu soube que o Sr. Cartwright tinha acusado meu marido de haver programado a última pergunta.

— Como foi que a senhora reagiu a tal insinuação?

— Fiquei horrorizada que qualquer pessoa pudesse pensar que Ralph estivesse envolvido em táticas desonestas. Entretanto, continuei convencida de que o público não acreditaria nas falsas acusações do Sr. Cartwright e que sua explosão petulante apenas aumentaria as chances de meu marido ganhar as eleições no dia seguinte.

— E depois da refeição, vocês dois foram para a cama?

— Não, Ralph sempre achava difícil dormir depois de uma apresentação na televisão. — Ela virou o rosto para encarar o júri novamente. — Ele me disse que a adrenalina ainda estaria solta por algumas horas e, de qualquer modo, queria dar uns toques finais ao seu discurso de posse; então, fui para a cama, enquanto ele se sentava para trabalhar no escritório.

Fletcher acrescentou mais uma nota aos seus escritos.

— E que horas eram?

— Um pouco antes da meia-noite.

— E depois que a senhora adormeceu, qual é a próxima coisa de que a senhora se recorda?

— De ter sido acordada por um tiro, e não ter ficado certa de que fosse real ou apenas parte de um sonho. Acendi a luz e verifiquei as horas no relógio sobre a mesinha de cabeceira. Passava um pouco das duas horas, e eu me lembro de ter-me surpreendido que Ralph ainda não houvesse vindo para a cama. Então pensei ter ouvido vozes; portanto, me encaminhei para a porta e a abri levemente. Foi aí que ouvi, pela primeira vez, alguém gritando com Ralph. Fiquei horrorizada ao compreender que era Nat Cartwright.

Ele estava gritando no seu Tom mais alto de voz, e uma vez mais ameaçava matar meu marido. Saí correndo do meu quarto para o topo da escada e aí ouvi o segundo tiro. Um instante mais tarde, o Sr. Cartwright saiu correndo do escritório, continuou pelo corredor, abriu a porta da frente e desapareceu na noite.

— A senhora correu atrás dele?

— Não, eu estava apavorada.

Fletcher fez outra anotação enquanto Rebecca continuava.

— Desci as escadas correndo e entrei no escritório de Ralph, temendo o pior. A primeira coisa que vi foi meu marido do outro lado da sala, caído no canto, sangue escorrendo pela boca; então apanhei o telefone rapidamente de cima da escrivaninha e liguei para a casa do chefe Culver.

Fletcher virou mais uma folha e continuou escrevendo com fúria.

— Tive receio de tê-lo acordado, mas o chefe disse que chegaria tão logo fosse possível e que eu não devia tocar em nada.

— O que foi que a senhora fez depois?

— Subitamente senti frio e fiquei enjoada, pensando que fosse desmaiar. Cambaleei até o corredor e desabei no chão. A próxima coisa de que me lembro é da sirene da polícia, a distância, e uns instantes mais tarde alguém entrando correndo pela porta da frente. O policial ajoelhou-se ao meu lado e se apresentou como detetive Petrowski. Um dos seus policiais fez-me uma xícara de café e depois me pediu que descrevesse o que tinha acontecido. Eu lhe contei tudo de que pude me lembrar, mas tenho receio de não ter sido muito coerente. Eu me lembro de ter apontado para o escritório de Ralph.

— A senhora consegue se lembrar do que aconteceu depois?

— Sim, alguns minutos mais tarde ouvi outra sirene, e aí o chefe entrou. O Sr. Culver passou um bom tempo com o detetive Petrowski no escritório do meu marido, e então voltou e me perguntou toda a história outra vez. Ele não ficou por muito tempo depois disso, mas eu o vi numa conversa profunda com o detetive antes que saísse.

Só na manhã seguinte descobri que o Sr. Cartwright havia sido preso e acusado do assassinato do meu marido.

Rebecca explodiu em lágrimas.

— Tiro na mosca — disse Fletcher, enquanto o promotor retirava um lenço do bolso superior de seu paletó e o entregava à Sra. Elliot. — Eu me pergunto por quanto tempo eles ensaiaram isso? — acrescentou enquanto voltava sua atenção para o júri, notando que uma mulher na segunda fila também estava chorando baixinho.

— Sinto muito ter de fazê-la passar por esta provação, Sra. Elliot. — Ebden fez uma pausa. — Talvez a senhora queira que eu peça à Corte um adiamento, assim teria um tempo para recompor-se...

Fletcher teria objetado, mas ele já sabia qual seria a resposta, porque eles estavam obviamente se atendo a um script muito bem preparado.

— Não, eu ficarei bem — disse Rebecca — e, de qualquer modo, eu preferia que isso acabasse logo.

— Sim, naturalmente, Sra. Elliot.

Ebden olhou para cima, para o juiz, e disse: — Não tenho mais perguntas para a testemunha, Meritíssimo.

— Obrigado, Sr. Ebden — disse o juiz. — Sua testemunha, Sr. Davenport.

— Obrigado, Meritíssimo.

Fletcher tirou o cronômetro do bolso e colocou-o sobre a mesa, na sua frente. Ele, então, se levantou lentamente do seu lugar. Ele podia sentir os olhos de cada um na sala do tribunal examinando a parte de trás de sua cabeça. Como podia ele ainda considerar questionar esta mulher desprotegida, santificada? Encaminhou-se para o banco das testemunhas e ficou em silêncio por algum tempo.

— Tentarei não detê-la mais do que o necessário, Sra. Elliot, lembrando-me da provação pela qual a senhora tem passado. — Fletcher falou suavemente. — Mas preciso fazer-lhe uma ou duas perguntas, pois o meu cliente corre o risco da Pena de mor te, com base quase que exclusivamente em seu testemunho.

— Sim, claro — respondeu Rebecca, tentando soar forte, enquanto limpava a última lágrima.

— A senhora disse à Corte, Sra. Elliot, que tinha um relacionamento bastante satisfatório com seu marido.

— Sim, éramos devotados um ao outro.

— Eram? — Fletcher fez uma nova pausa. — E a única razão pela qual a senhora não compareceu ao debate na televisão naquela tarde foi porque o Sr. Elliot pediu-lhe que ficasse em casa e fizesse algumas anotações sobre a sua performance, de modo que a senhora pudesse discuti-las com ele, mais tarde, naquela noite?

— Sim, está correto — disse ela.

— Eu posso apreciar isso — disse Fletcher — mas estou um pouco confuso sobre por que a senhora não teria acompanhado seu marido a nenhuma das suas funções públicas no mês anterior. — Ele fez uma pausa. — Noite ou dia.

— Eu acompanhei, tenho certeza que sim — disse ela. — Mas de qualquer modo o senhor deve se lembrar de que minha tarefa principal era tomar conta da casa e tornar a vida mais fácil para Ralph, depois das longas horas que ele passava na estrada, em campanha.

— A senhora guarda essas anotações? Ela hesitou.

— Não, assim que as discutíamos, eu as entregava a Ralph.

— E, nessa ocasião em particular, a senhora disse à Corte que se sentia fortemente convicta sobre determinadas questões?

— Sim, sentia.

— Posso perguntar quais questões em particular, Sra. Elliot? Rebecca hesitou novam ente.

— Eu não consigo lembrá-las exatamente. — Ela fez uma pausa. — Foi há muitos meses.

— Mas foi a única função pública em que a senhora demonstrou interesse durante toda a sua campanha, Sra. Elliot; portanto, alguém poderia pensar que a senhora talvez se lembrasse de uma ou duas questões sobre as quais se sentia tão convicta a respeito. Afinal de contas, seu marido estava concorrendo a governador e a senhora a primeira-dama, só para mencionarmos.

— Sim, não, sim, planos de saúde, acho.

— Então a senhora terá de pensar novamente, Sra. Elliot — disse Fletcher, enquanto voltava à mesa e apanhava uma das folhas do seu bloco amarelo.

— Eu também assisti àquele debate com mais do que um interesse passageiro, e foi de algum modo surpreendente que o assunto saúde não fosse levantado.

Talvez a senhora queira reconsiderar sua última resposta, pois guardei notas detalhadas de todas as questões debatidas naquela noite.

— Objeção, Meritíssimo! O advogado de defesa não está aqui para funcionar como testemunha.

— Mantida. Guarde-as para os seus resumos, senhor advogado.

— Mas havia uma coisa sobre a qual a senhora estava bastante convicta, não é verdade, Sra. Elliot? — Continuou Fletcher. — O ataque violento sobre o seu marido quando o Sr. Cartwright disse na televisão "eu ainda Vou matar você".

— Sim, aquilo era uma coisa terrível de dizer, com o mundo todo assistindo.

— Mas o mundo todo não estava assistindo, Sra. Elliot, caso contrário, eu o teria visto. Não foi dito até depois de o programa ter terminado.

— Então meu marido deve ter-me contado durante a refeição.

— Eu não acho, Sra. Elliot. Suspeito de que a senhora sequer viu o programa, uma vez que a senhora nem sequer compareceu às suas reuniões.

— Sim, eu assisti.

— Então quem sabe a senhora possa dizer ao júri os locais de quaisquer das reuniões a que a senhora compareceu durante a longa campanha de seu marido, Sra. Elliot?

— Como se pode esperar que eu me lembre de cada uma delas quando a campanha de Ralph começou um ano atrás?

— Eu lhe pediria que citasse apenas uma — disse Fletcher, virando a face para o júri.

Rebecca começou a chorar novamente, mas nessa ocasião o tempo não foi tão efetivo e não havia ninguém disponível para oferecer-lhe um lenço.

— Agora vamos considerar aquelas palavras, "eu ainda Vou matar você", ditas fora do ar, na noite anterior à eleição. — Fletcher continuava encarando o Júri. — O Sr. Cartwright não disse "eu Vou matá-lo", o que teria, de fato, sido desastroso; o que ele disse, mesmo, foi "eu ainda Vou matar você", e todos os presentes presumem que ele estivesse se referindo à eleição que aconteceria no dia seguinte.

— Ele matou meu marido! — gritou a Sra. Elliot, a voz se elevando pela primeira vez.

— Ainda existem algumas perguntas que precisam ser respondidas antes que eu chegue até quem matou seu marido, Sra. Elliot. Mas, primeiro, permita-me voltar aos eventos daquela noite. Tendo assistido a um programa de televisão do qual a senhora não se recorda, 478

e feito uma refeição com seu marido para discutir as questões de que a senhora não se lembra, a senhora foi para a cama enquanto seu marido voltava ao escritório para trabalhar no seu discurso de posse.

— Sim, isso é exatamente o que aconteceu — disse Rebecca, olhando desafiadoramente para Fletcher.

— Mas como ele estava significativamente atrás nas pesquisas de opinião, por que per der tempo trabalhando num discurso de posse que ele nunca podia esperar pronunciar?

— Ele ainda estava convencido de vencer, especialmente depois da explosão do Sr. Cartwright e...

— E?... — repetiu Fletcher, mas Rebecca permaneceu em silêncio. — Então quem sabe ambos soubessem de alguma coisa que o resto de nós não sabia — disse Fletcher — mas eu chegarei a isso em instantes. A senhora diz que foi para a cama à meia-noite?

— Sim, fui — disse Rebecca, soando ainda mais desafiadora.

— E quando a senhora foi acordada por um tiro de revólver, a senhora checou as horas, olhando para o relógio ao lado de sua cama?

— Sim, passava um pouquinho das duas.

— Então a senhora não usava um relógio de pulso na cama?

— Não, guardei todas as minhas jóias em um cofre que Ralph havia instalado no quarto. Tem havido muitos furtos na área recentemente.

— Que prevenido ele era. E a senhora ainda acha que foi o primeiro tiro que a acordou?

— Sim, tenho certeza de que foi.

— Quanto tempo transcorreu entre o primeiro e o segundo tiro, Sra. Elliot? — Rebecca não respondeu imediatamente. — Use seu tempo, Sra. Elliot, porque eu não gostar ia que a senhora cometesse um engano desses, como tantos no seu depoimento que precisarão ser corrigidos mais tarde.

— Objeção, Meritíssimo, meu cliente não é...

— Sim, sim, Sr. Ebden, Mantida. Aquele último comentário será retirado do processo.

— E, virando-se para Fletcher, o juiz repetiu: — Guarde-o para os seus arquivos,

Sr. Davenport.

— Procurarei fazê-lo, Meritíssimo — disse Fletcher, mas seus olhos nunca saíram de cima do júri, para ter certeza de que não fosse retirado de suas mentes.

— A senhora já teve tempo suficiente para considerar sua resposta, Sra. Elliot? — Ele esperou mais uma vez antes de repetir: — Quanto tempo se passou entre o primeiro e o segundo tiro?

— Três, possivelmente quatro minutos — disse ela.

Fletcher sorriu para o promotor, voltou para sua mesa, apanhou o cronômetro e o co locara no bolso.

— Ao ouvir o primeiro tiro, Sra. Elliot, por que a senhora não telefonou imediatam ente para a polícia? Por que esperou três ou quatro minutos até ouvir o segundo tiro?

— Porque, para começar, eu não tinha certeza de tê-lo ouvido. Não esqueça, eu tinha estado dormindo por algum tempo.

— Mas a senhora abriu a porta do seu quarto e estava horrorizada de ouvir o Sr. Cartwright gritando com seu marido, ameaçando matá-lo; logo, a senhora deve ter acre ditado que Ralph estava sob um perigo considerável e, portanto, por que não fechar sua porta e imediatamente chamar a polícia, do seu quarto? — Rebecca olhou para Richard Ebden. — Não, Sra. Elliot, o Sr. Ebden não poderá ajudá-la desta vez, porque ele não antecipou esta pergunta, o que, para sermos justos — disse Fletcher — não foi inteiramente culpa dele, porque a senhora só lhe contou metade da história.

— Objeção — disse Ebden, saltando de seu lugar.

— Mantida — disse o juiz. — Sr. Davenport, restrinja-se a questionar a Sra. Elliot, sem dar opiniões. Este é um tribunal, não o plenário do Senado.

— Peço desculpas, Meritíssimo, mas, nessa ocasião, eu sei a resposta. O senhor veja, a razão pela qual a Sra. Elliot não chamou a polícia foi porque ela tinha medo que seu marido tivesse dado o primeiro tiro.

— Objeção! — gritou Ebden, levantando-se, enquanto diversos membros do público começaram a falar ao mesmo tempo. Levou algum tempo até que o juiz pudesse trazer a ordem de volta ao tribunal.

— Não, não, da forma como Nat estava gritando com Ralph, eu tinha certeza de que ele disparara o primeiro tiro.

— Então eu Vou lhe perguntar novamente, por que não chamar a polícia imediatamente? — repetiu Fletcher, virando o rosto para ela. — Por que esperar três ou quatro minutos até ouvir o segundo tiro?

— Tudo aconteceu tão rápido que eu não tive tempo.

— Qual é seu filme favorito de ficção, Sra. Elliot? — perguntou Fletcher, baixinho.

— Objeção, Meritíssimo! Como pode isso ser relevante?

— Negada. Sinto que estamos a ponto de descobri-lo, Sr. Ebden.

— O senhor está, de fato, Meritíssimo — disse Fletcher, seus olhos nunca deixando a testemunha.

— Sra. Elliot, deixe-me assegurar-lhe que esta não é uma pergunta capciosa; simplesmente quero que a senhora diga ao tribunal qual é seu filme favorito de ficção.

— Não tenho certeza de gostar de algum em particular — respondeu ela — mas meu autor favorito é Hemingway.

— O meu também — disse Fletcher, tirando o cronômetro do bolso. Voltando a encarar o juiz, ele perguntou: — Meritíssimo, posso pedir-lhe permissão para sair brevemente do tribunal?

— Com que propósito, Sr. Davenport?

— Provar que meu cliente não disparou o primeiro tiro. O juiz inclinou a cabeça.

— Brevemente, Sr. Davenport.

Fletcher, então, pressionou o pino do disparador, guardou o cronômetro no bolso, atravessou a apinhada sala do tribunal e saiu.

— Meritíssimo, o Sr. Davenport está transformando este julgamento num circo.

— Se vier a ser o caso, Sr. Ebden, eu terei de censurar severamente o Sr. Davenport no instante em que ele retornar.

— Mas, Meritíssimo, esse tipo de comportamento é justo com a minha cliente?

— Acredito que sim, Sr. Ebden. Como o Sr. Davenport lembrou a esta Corte, seu cliente corre o risco da pena de morte, baseado tão-somente no depoimento de sua principal testemunha.

O promotor sentou-se de volta e começou a consultar sua equipe, enquanto todos conversavam nos bancos atrás dele. O juiz os olhava, tamborilando seus dedos, examinando ocasionalmente o relógio na parede sobre a entrada do público.

Richard Ebden levantou-se outra vez, no instante em que o juiz pedia ordem.

— Meritíssimo, solicito que a Sra. Elliot seja dispensada de novos interrogatórios, baseado no fato de que a defesa não será capaz de continuar com sua confrontação, pois deixou esta sala sem explicações.

— Aprovarei sua solicitação, Sr. Ebden — o promotor estava deleitado — se o Sr. Davenport falhar em voltar antes de quatro minutos.

O juiz sorriu para o Sr. Ebden, presumindo que ambos houvessem entendido o significado do seu raciocínio.

— Meritíssimo, tenho de... — Continuou o promotor, mas ele foi interrompido pelas portas da Corte sendo abertas largamente e Fletcher marchando de volta pela ala e se dirigindo para o banco das testemunhas. Ele entregou um exemplar de Por quem os sinos dobram para a Sra. Elliot antes de se virar para o juiz.

— Meritíssimo, poderia a Corte anotar judicialmente a extensão do tempo em que estive ausente? — disse ele, entregando seu cronômetro para o juiz.

O juiz Kravats pressionou o pino de trava do disparador e, olhando para o cronômetro, disse "três minutos e quarenta e nove segundos". Fletcher voltou sua atenção para a testemunha da acusação.

— Sra. Elliot, tive tempo suficiente de sair da sala do tribunal, andar até a biblioteca pública do outro lado da rua, localizar a prateleira de Hemingway, liberar o livro com meu cartão da biblioteca e ainda estar de volta à sala da Corte com onze segundos de sobra. Mas a senhora não teve tempo suficiente de atravessar seu quarto, discar 911 e pedir uma ajuda quando a senhora acreditava que seu marido pudesse estar correndo perigo de morte. E a razão pela qual a senhora não fez isso é porque a senhora sabia que seu marido havia disparado o primeiro tiro e a senhor a estava receosa do que ele pudesse ter feito.

— Mas mesmo se eu tivesse pensado nisso — disse Rebecca, perdendo a serenidade — é apenas a segunda bala que interessa, aquela que matou Ralph. Talvez o senhor tenha se esquecido de que a primeira bala acabou no teto, ou o senhor estaria sugerindo que meu marido se suicidou?

— Não, não estou — disse Fletcher — portanto, por que é que a senhora não diz agora à Corte exatamente o que foi que a senhora fez quando ouviu o segundo tiro?

— Fui até o topo da escada e vi o Sr. Cartwright correndo para fora da casa.

— Mas ele não a viu?

— Não, ele apenas olhou para trás, em minha direção.

— Não acredito, Sra. Elliot. Acho que a senhora o viu bem, com nitidez, quando ele, calmamente, caminhou passando pela senhora no corredor.

— Ele não poderia ter passado por mim andando pelo corredor, porque eu estava no topo da escada.

— Concordo que ele não poderia tê-la visto, se a senhora estivesse no topo da escada — disse Fletcher enquanto voltava para a mesa e escolhia uma foto, antes de atravessar a sala até o banco das testemunhas. Ele passou a foto a para ela. — Como a senhora poderá ver por esta foto, Sra. Elliot, quem quer que tenha deixado o escritório do seu marido, andado pelo corredor e depois saído pela porta da frente não poderia ser observado do topo da escada.

Ele fez uma pausa, de modo que o júri pudesse absorver o significado de sua declaração, antes de continuar: — Não, a verdade, Sra. Elliot, é que a senhora não estava em pé no topo da escada, mas sim no corredor, quando o Sr. Cartwright saiu do escritório do seu marido. E se a senhora quisesse pedir ao juiz um adiamento, para que o júri pudesse visitar sua casa e checar a veracidade da sua declaração, eu ficaria muito feliz em aceitá-lo.

— Bem, talvez eu tivesse descido até a metade da escada.

— A senhora nem sequer se encontrava na escada, Sra. Elliot; a senhora estava no corredor. E também não estava, conforme afirmou, vestindo seu robe, mas um vestido azul que a senhora usara para um coquetel no início da noite, que é o motivo pelo qual a senhora não viu o debate na televisão!

— Eu estava de robe, e aí existe uma foto que pode prová-lo.

— De fato, ela existe — disse Fletcher, uma vez mais voltando à mesa e apanhando outra fotografia — a qual eu fico feliz em introduzir como evidência; item 122, Meritíssimo.

O juiz, a equipe da promotoria e o júri começaram a vasculhar entre seus arquivos, enquanto Fletcher passava sua cópia à Sra. Elliot.

— Aí está — disse ela.

— Tal como eu lhe disse, eu estou sentada no corredor com meu robe.

— A senhora de fato está, Sra. Elliot, e essa fotografia foi tirada por um policial fotógrafo, e desde então nós a ampliamos de modo a podermos considerar todos os detalhes mais claramente. Meritíssimo, eu gostaria de submeter esta ampliação como evidência.

— Objeção, Meritíssimo! — disse Ebden, erguendo-se do seu assento. — Não nos foi dada a oportunidade de analisarmos esta foto.

— É uma evidência do Estado, Sr. Ebden, e tem estado em sua posse por semanas — o juiz lembrou a ele. — Sua objeção está negada.

— Por favor, analise a fotografia cuidadosamente — disse Fletcher enquanto saía de perto da Sra. Elliot e passava uma cópia da ampliação fotográfica ao promotor.

Um oficial entregou outra cópia a cada membro do júri. Fletcher, então, virou-se para encarar Rebecca: — E diga ao tribunal o que a senhora vê.

— É uma foto em que estou sentada no corredor com meu robe.

— É, de fato, mas o que a senhora está usando em seu pulso esquerdo e em torno do pescoço? — perguntou Fletcher, virando-se antes para encarar o júri, o qual estudava a fotografia atentamente, agora.

O sangue sumiu da face de Rebecca.

— Eu acredito que sejam seu relógio de pulso e seu colar de pérolas — disse Fletcher, respondendo à sua própria pergunta. — A senhora se lembra? — Ele fez uma pausa.

— Aqueles que a senhora sempre guarda a chave em seu cofre antes de ir para a cama, porque tem havido diversos furtos na área recentemente. — Fletcher voltou a encarar o chefe Culver e o detetive Petrowski, que estavam sentados na fila da frente. — Isto é, como o detetive Petrowski nos lembrou, são os pequenos enganos que sempre revelam o amador.

Fletcher virou-se e olhou diretamente para Rebecca, antes de acrescentar: — A senhora talvez tenha se esquecido de tirar o relógio e o colar, Sra. Elliot, mas posso dizer uma coisa que a senhora não esqueceu de tirar: seu vestido. — Fletcher colocou a mão na grade que o separava do júri, dizendo antes, lentamente e sem expressão: — Porque a senhora não fez isso até depois de matar seu marido.

Diversas pessoas se levantaram ao mesmo tempo, e o juiz prosseguiu, batendo seu martelo antes que o tribunal ficasse calmo o suficiente para o promotor poder dizer em voz alta:

— Objeção! Como é que o fato de estar usando um relógio de pulso prova que a Sra. Elliot assassinou o marido?

— Concordo com o senhor, Sr. Ebden — disse o juiz, e voltando-se para Fletcher, sugeriu: — Isso é uma suspeita e tanto, defensor.

— Então ficarei feliz em conduzir o promotor passo a passo, Meritíssimo. O juiz anuiu. — Quando o Sr. Cartwright chegou àquela casa, ele escutou uma discussão entre o Sr. e a Sra. Elliot, e quando ele bateu na Porta, foi o Sr. Elliot quem atendeu, enquanto a Sra. Elliot não podia ser vista em parte alguma. Estou querendo acreditar que ela correu para cima, até o topo da escada, de modo que pudesse ouvir o que estava acontecendo sem ser observada, mas no instante em que o primeiro tiro foi disparado, ela desceu até o corredor e escutou a briga que estava acontecendo entre o marido e meu cliente. Três ou quatro minutos mais tarde, o Sr. Cartwright caminhou calmamente para fora do escritório e passou pela Sra. Elliot antes de abrir a porta da frente. Ele olhou para trás, para a Sra. Elliot, razão pela qual pôde dizer à polícia, que o interrogou mais tarde naquela noite, que ela estava usando um vestido curto, azul, e um fio de pérolas. Se o júri analisar a foto da Sra. Elliot, e se eu não estiver enganado, ela estava usando o mesmo fio de pérolas que está usando hoje. — Rebecca tocou seu colar enquanto Fletcher continuava. — Mas não vamos confiar na palavra do meu cliente, e sim na sua própria declaração, Sra. Elliot. — Ele virou outra folha das evidências do Estado, antes de começar a ler: "Eu corri para o escritório, vi o corpo do meu marido estatelado no chão e, então, chamei a polícia."

— É isso mesmo, telefonei para a casa do chefe Culver, ele já confirmou isso — interrompeu Rebecca.

— Mas por que a senhora chamou o chefe de polícia primeiro?

— Porque meu marido havia sido assassinado.

— Mas, no seu depoimento, Sra. Elliot, dado ao detetive Petrowski apenas momentos depois da morte de seu marido, a senhora declarou que viu Ralph caído no canto do seu escritório, o sangue saindo da sua boca e, imediatamente, chamou o chefe de polícia.

— Sim, foi exatamente isso que eu fiz! — gritou Rebecca. Fletcher fez uma pausa antes de virar-se para encarar o júri.

— Se eu tivesse visto minha esposa estatelada num canto, com sangue saindo da boca, a primeira coisa que eu teria feito era checar para ver se ela ainda estava viva, e, se ela estivesse, eu não chamaria a polícia, chamaria uma ambulância. E em nenhum momento a senhora chamou uma ambulância, Sra. Elliot. Por quê? Porque a senhora já sabia que seu marido estava morto.

Uma vez mais levantou-se um ruído no tribunal e os repórteres que não eram antigos o suficiente para usar taquigrafia enlouqueceram para registrar cada palavra.

— Sra. Elliot — Continuou Fletcher assim que o juiz parou de bater o martelo — permita-me repetir as palavras que a senhora disse apenas uns momentos atrás, quando inquirida pelo promotor. — Fletcher apanhou um dos blocos amarelos de sua mesa e começou a ler.

— "Subitamente senti frio e fiquei enjoada, pensando que fosse desmaiar. Cambaleei até o corredor e desabei no chão." — Fletcher jogou o bloco sobre a mesa, escancarou os olhos para a Sra. Elliot e disse: — A senhora ainda não se preocupara em verificar se seu marido estava vivo, mas a senhora não precisava fazê-lo, precisava? Porque a senhora já sabia que ele estava morto; afinal de contas, a senhora o matou.

— Então, por que eles não encontraram traços de pólvora no meu robe? — gritou Rebecca acima das batidas do martelo do juiz.

— Porque quando atirou em seu marido, a senhora não estava vestindo seu robe, Sra. Elliot, mas ainda o vestido azul que a senhora usara à noite. Foi só depois de matar Ralph que a senhora correu para cima e vestiu a camisola e o robe. Mas, infelizmente, o detetive Petrowski ligou a sirene do carro, avançou o limite de velocidade e conseguiu estar com a senhora seis minutos mais tarde, razão pela qual a senhora precisou descer correndo, esquecendo de tirar o relógio e as pérolas. E mais desgraçadamente ainda, não deixando tempo suficiente para a senhora fechar a porta da frente. Se, conforme a senhora afirmou, o Sr. Cartwright houvesse matado seu marido e depois corrido pela porta da frente, a primeira coisa que a senhora deveria ter feito era fechá-la, de sorte que ele não pudesse voltar e machucá-la. Mas o detetive Petrowski, homem consciencioso que é, chegou um pouco depressa demais para a senhora, e até mesmo comentou que ficou surpreso ao encontrar a porta da frente aberta. Amadores muitas vezes entram em pânico, e é então que eles cometem os erros mais simples — repetiu ele, quase num sussurro. — Porque a verdade é que assim que o Sr. Cartwright passou pela senhora, caminhando pelo corredor, a senhora correu para o escritório, pegou a arma e compreendeu que esta era a oportunidade perfeita para livrar-se de um marido que desprezava havia anos. O tiro que o Sr. Cartwright ouvira quando estava saindo da casa foi de fato a bala que matou seu marido, mas não foi o Sr. Cartwright que puxou o gatilho, foi a senhora. O que o Sr. Cartwright fez foi dar-lhe o álibi perfeito e uma solução para todos os seus problemas. — Ele fez uma pausa e, virando-se de costas para o júri, acrescentou: — Se ao menos a senhora houvesse se lembrado de tirar o relógio de pulso e as pérolas antes de descer as escadas, fechado a porta da frente e, só então, telefonado para uma ambulância, em vez de chamar o chefe de polícia, a senhora teria cometido o crime perfeito e meu cliente estaria enfrentando a pena de morte.

— Eu não o matei!

— Então quem o matou? Porque não pode ter sido o Sr. Cartwright, pois ele saíra algum tempo antes que o segundo tiro fosse desferido. Tenho certeza de que a senhora se lembra das palavras dele ao ser confrontado pelo chefe de polícia: "Ele ainda estava vivo quando o deixei", e, por falar nisso, o Sr. Cartwright não achou que fosse necessário mudar o terno que estava vestindo mais cedo naquela noite. — Uma vez mais Fletcher virou-se para encarar o júri, mas estavam agora, todos, olhando para a Sra. Elliot.

Ela enterrou a cabeça entre as mãos e sussurrou: — Ralph é a pessoa que deveria estar no julgamento. Ele foi responsável pela própria morte.

Ainda que firmemente, o juiz Kravats pediu ordem na Corte, mas levou ainda algum tempo para que fosse capaz de restaurar a calma. Fletcher esperou até que se fizesse um silêncio total, antes que ele expusesse sua próxima sentença.

— Mas como pode isso ser possível, Sra. Elliot? — perguntou ele. — Afinal de contas, foi o detetive Petrowski que demonstrou que seria bem difícil atirar em si mesmo a um metro e vinte de distância.

— Ele me fez fazê-lo.

Ebden levantou-se quando o público começou a repetir a sentença, uns para os outros.

— Objeção, Meritíssimo, a testemunha está sendo...

— Negada — disse o juiz Kravats firmemente. — Sente-se, Sr. Ebden, e permaneça sentado. — O juiz voltou sua atenção para a testemunha: — O que a senhora quis dizer com "ele me fez fazê-lo"?

Rebecca voltou-se para o juiz, que olhou para ela com preocupação.

— Meritíssimo, Ralph estava desesperado para ganhar as eleições a qualquer custo, e depois que Nat lhe disse que Luke havia cometido suicídio, ele sabia que não tinha mais nenhuma esperança de ser governador. Ele ficou andando pelo quarto e repetindo as palavras: "Eu ainda vou matar você"; depois, ele estalou os dedos e disse: "Eu tenho a solução, você terá de fazê-lo."

— O que a senhora quer dizer com isso? — perguntou o juiz.

— Para começar, não entendi eu mesma, Meritíssimo, depois ele começou a gritar comigo. Ele disse: "Não há tempo para discussão; caso contrário, ele escapará, e então nós nunca poderemos atribuir a ele; portanto, Vou dizer exatamente o que você vai fazer. Primeiro vai atirar em meu ombro, e aí você telefona para a casa do chefe de polícia e diz que você estava no quarto quando ouviu o primeiro tiro. Você desceu correndo as escadas quando ouviu o segundo tiro, e foi aí que viu Cartwright correndo pela porta da frente."

— Mas por que a senhora concordou em prosseguir com esta sugestão ultrajante? — perguntou o juiz.

— Eu não concordei — disse Rebecca. — Eu disse a ele que se havia algum tiro a ser dado, ele que o desse, porque eu não ia me envolver.

— E o que foi que ele disse quanto a isso? — perguntou o juiz.

— Que não poderia dar um tiro em si mesmo, porque a polícia descobriria, mas, se eu o fizesse, eles nunca saberiam.

— Mas isso ainda não explica por que a senhora concordou em prosseguir com isso.

— Eu não concordei — repetiu Rebecca, baixinho. — Eu disse a ele que não tinha nada a ver com isso, Nat nunca me havia feito nenhum mal. Mas aí Ralph agarrou a arma e disse: "Se você não está querendo continuar com isso, então só há uma alternativa. Eu vou ter de atirar em você." Eu estava aterrorizada, mas tudo que ele disse foi: "Eu direi a todos que foi Nat Cartwright que matou minha esposa quando ela tentava vir em meu socorro; daí eles ficarão ainda mais solidários quando eu desempenhar o papel do viúvo agredido." Ele riu e acrescentou: "Não pense que eu não o faria." Então tirou um lenço do bolso e disse: "Envolva sua mão com isso, de modo que suas impressões digitais não fiquem na arma."

Rebecca ficou em silêncio por algum tempo antes de murmurar: — Eu me lembro de apanhar a arma e apontá-la para o ombro de Ralph, mas fechei os olhos quando puxei o gatilho. Quando os abri, Ralph estava caído no canto. Não precisei checar para saber que ele estava morto. Entrei em pânico, derrubei a arma. Corri para cima e telefonei para a casa do chefe de polícia, tal e qual Ralph me havia dito. Aí comecei a tirar a roupa. Eu tinha acabado de vestir o robe, quando ouvi a sirene. Olhei através das cortinas e vi um carro de polícia chegando à entrada da garagem. Voltei a descer correndo quando o carro estava estacionando do lado de fora da casa, o que não me deixou muito tempo para fechar a porta da frente. Desabei no corredor um pouco antes de o detetive Petrowski entrar correndo.

Ela inclinou a cabeça e, desta vez, o choro era genuíno e sem ensaios. Os sussurros se transformaram em cochichos quando todos na sala do tribunal começaram a comentar o testemunho de Rebecca.

Fletcher virou-se para encarar o promotor, que estava agrupado, consultando a sua equipe. Ele não fez nenhuma tentativa de apressá-los e voltou a sentar-se próximo a Nat. Levou algum tempo antes que Ebden ocasionalmente se erguesse de seu lugar.

— Meritíssimo.

— Sim, Sr. Ebden? — disse o juiz.

— O Estado retira as acusações contra o réu. — Ele fez uma pausa por algum tempo. — Apenas uma nota pessoal — acrescentou enquanto se virava para encarar Nat e Fletcher.

— Tendo visto vocês como um time, eu mal posso esperar para ver o que vai acontecer quando vocês estiverem enfrentando um ao outro.

Aplausos espontâneos explodiram vindos do público nos bancos; o barulho era tanto que eles não ouviram o juiz dispensar o prisioneiro, liberar o júri e declarar o caso encerrado.

Nat inclinou-se e quase teve de berrar: — Obrigado! — antes de acrescentar: — Uma palavra inadequada esta, pois passarei o resto da minha vida em débito com você, sem poder jamais pagar apropriadamente, mas, de qualquer forma, obrigado.

Fletcher sorriu.

— Os clientes sempre se dividem em duas categorias: — disse ele — aqueles que você espera jamais voltar a ver e, esporadicamente, aqueles que você sabe que serão seus amigos pelo resto...

Su Ling subitamente apareceu do lado do marido e jogou seus braços em volta dele.

— Graças a Deus! — disse ela.

— Ser governador será o bastante — disse Fletcher quando Nat e Su Ling riram pela primeira vez em semanas. Antes que Nat pudesse responder, Lucy atravessou a grade feito um furacão e cumprimentou o pai com as palavras: — Muito bom, papai, estou muito orgulhosa de você.

— Elogie de fato — disse Fletcher. — Nat, esta é minha filha Lucy, que felizmente ainda não está pronta para votar em você, mas se estivesse... — Fletcher olhou em torno. — Em primeiro lugar, onde está a mulher que causou todo esse problema?

— Mamãe está em casa — respondeu Lucy. — Afinal de contas, você disse a ela que se passaria mais uma semana antes que o Sr. Cartwright chegasse ao banco das testemunhas.

— Verdade — disse Fletcher.

— E, por favor, transmita meus agradecimentos a sua esposa — disse Su Ling — Nós nos lembraremos sempre que foi Annie quem o persuadiu a representar meu marido. Talvez possamos nos reunir num futuro próximo e...

— Não antes da eleição — disse Fletcher firmemente — pois ainda tenho a esperança de que pelo menos um membro da minha família vote em mim. — Ele fez uma pausa e virou-se para Nat, dizendo: — Sabe qual foi a razão verdadeira pela qual trabalhei tão arduamente neste caso?

— Você não podia sequer imaginar ter de passar as próximas semanas com Barbara Hunter — disse Nat.

— Alguma coisa parecida — disse ele com um sorriso.

Fletcher estava pronto para atravessar o recinto e apertar as mãos da promotoria, mas deteve-se em suas intenções quando viu Rebecca Elliot ainda sentada no banco das testemunhas, esperando que o tribunal a dispensasse. Ela estava cabisbaixa e parecia infeliz e solitária.

— Sei que é difícil acreditar — disse Fletcher — mas eu, na verdade, sinto pena dela.

— Você deveria — disse Nat — porque uma coisa é certa: Ralph Elliot teria assassinado a esposa se pensasse que isso lhe garantiria a eleição.


LIVRO SEIS

 

REVELAÇÃO


49

 

FLETCHER SENTOU-SE EM SUA SALA, NO Senado, lendo os jornais da manhã no dia seguinte ao do julgamento. — Quanta ingratidão! — disse ele, passando o Hartford Courant para a sua filha.

— Você deveria tê-lo deixado "fritando!" — disse Lucy enquanto olhava os resultados da última pesquisa de opinião.

— Expressado com sua costumeira elegância e charme... — disse Fletcher. — Faz-me pensar se todo o dinheiro que gastei enviando você para a Hotchkiss valeu a pena, sem mencionar o que a Vassar vai me custar.

— Eu talvez não vá para Vassar, papai — disse Lucy, em voz baixa.

— É sobre isso que você estava querendo conversar comigo? — perguntou Fletcher, detectando algo na mudança de Tom da filha.

— Sim, papai, porque apesar de Vassar ter me oferecido uma vaga, pode ser que eu não consiga ocupá-la.

Fletcher nem sempre tinha certeza de quando Lucy estava brincando ou de quando f alava a sério, mas, como ela houvera pedido para vê-lo em seu escritório — e sem mencionar o encontro com Annie — ele podia presumir que ela estivesse sendo honesta.

— Qual é o problema? — perguntou ele baixinho, cruzando olhares com ela por cima da mesa.

Lucy não o fitou nos olhos. Abaixou a cabeça e disse: — Estou grávida.

— Se Nat vier a ser governador, você vai sentir falta de todo o excitamento. Depois de tudo que vocês passaram juntos, voltar ao Fairchild pode acabar se transformando num anticlímax.

— A verdade é que perdi qualquer interesse pelos investimentos no dia em que o Russell foi assumido.

— Mas você está pronto para se tornar o chairman do maior banco do estado.

— Não. Se Nat vencer a eleição, não serei — disse Tom. Julia empurrou os jornais de lado.

— Não tenho certeza de ter entendido.

— Nat convidou-me para ser seu chefe de gabinete se ele vier a se eleger governa dor.

— Então, quem será o chairman do banco?

— Você, naturalmente — disse Tom. — Todos sabem que você seria a melhor pessoa para aquele trabalho.

— Mas o Fairchild nunca apontaria uma mulher como chairman; eles são muito tradicionais.

— Estamos vivendo na última década do século XX, Julia, e graças a você quase metade dos nossos clientes é de mulheres. E, pelo menos a diretoria, na minha ausência, para não mencionarmos o gabinete, a maior parte deles pensa que você já é a chairman.

— Mas, se Nat perdesse, ele esperaria voltar, sem dúvida, como chairman do Fairchild, com você como delegado, em cuja circunstância a pergunta se torna de algum modo acadêmica.

— Eu não estaria tão certo disso — disse Tom. — Não se esqueça de que Jimmy Overman, o senador mais antigo de Connecticut, já anunciou que não vai se candidatar à reeleição do próximo ano, caso em que Nat seria a escolha óbvia para substituí-lo. Quem quer que venha a ser governador, tenho certeza de que o outro estará indo para Washington como senador do estado. — Fez uma pausa. — Desconfio que seja apenas uma questão de tempo até que Nat e Fletcher concorram para presidente.

— Você acredita que eu possa desenvolver esse trabalho? — perguntou Julia, baixinho.

— Não — disse Tom. — Você precisaria ter nascido na América antes de poder candidatar-se a presidente.

— Eu não quis dizer da República, seu bobo, mas chairman do Fairchild.

— Eu soube disso no dia em que nos conhecemos — disse Tom. — Meu único receio é que você não me considerasse bom o suficiente para ser seu marido.

— Oh, os homens são tão lerdos em seu raciocínio. — disse Julia. — Eu me conscientizei de que ia me casar com você na noite em que nos conhecemos, no jantar em casa de Su Ling e Nat.

Tom abria e fechava a boca.

— Que diferente minha vida teria sido se a outra Julia Kirkbridge tivesse chegado à mesma conclusão — acrescentou ela.

— Isso para não citarmos a minha. — disse Tom.

 


50

 

 

FLETCHER OLHAVA PARA A MULTIDÃO ALEGRE, lá embaixo, e acenava entusiasticamente para ela. Ele havia feito sete discursos em Madison naquele dia — nas esquinas das ruas, nos mercados, fora da biblioteca — mas até mesmo ele ficara surpreso com a recepção ao final da reunião, na sede da prefeitura, naquela noite.

"Venha e ouça o vencedor" estava impresso em letras fortes, azuis e vermelhas, num a faixa imponente que se estendia de um lado ao outro do palco. Fletcher sorrira quando o chairman local lhe dissera que Paul Holbourn, o prefeito independente de Madison, havia deixado a faixa no lugar depois que Nat falara no começo daquela semana na sede da prefeitura. Holbourn era prefeito há quatorze anos, e não se mantivera sendo reeleito porque esbanjara o dinheiro dos contribuintes.

Quando Fletcher se sentou, no fim do seu discurso, ele podia sentir a adrenalina bombeando através do seu corpo, e a permanente ovação que se seguira não era uma rotina comum, controlada do palco, quando um bando de espiões do partido, estrategicamente bem colocados, se levantava no instante em que o candidato acabava de pronunciar sua última sentença. Naquela ocasião o público ficara em pé ao mesmo tempo em que os espiões. Ele gostaria apenas que Annie estivesse ali para testemunhar aquilo.

Quando o chairman segurou a mão de Fletcher e gritou ao microfone: "Senhoras e senhores, eu lhes apresento o próximo governador de Connecticut!", Fletcher acreditou nisso desde o primeiro instante. Clinton estava emparelhado com Bush nas pesquisas nacionais e a candidatura independente de Perot fora avançando sob o apoio dos republicanos. Isso estava criando um efeito de trom bada para Fletcher. Ele desejava apenas que quatro semanas fosse o tempo suficiente para obter os quatro pontos que faltavam nas pesquisas.

Passou-se outra meia hora antes que a prefeitura se esvaziasse, e até então Fletcher já havia apertado as muitas mãos estendidas para ele. Um chairman satisfeito o acompanhava de volta ao estacionamento.

— Você não tem um chofer? — disse ele, soando um pouco surpreso.

— Lucy tirou a noite de folga para assistir a Meu Primo Vinny; Annie está comparecendo a alguma reunião de caridade; Jimmy está presidindo um levantamento de fundos, e como estávamos a menos de oitenta quilômetros, senti que eu mesmo poderia resolver isso sozinho — explicou Fletcher, sentando-se ao volante.

Ele dirigiu desde a sede da prefeitura por uma autoestrada, e começou a relaxar pela primeira vez naquele dia. Mas só havia dirigido uns poucos metros quando seus pensamentos se voltaram para Lucy, como ele sempre fazia quando ficava sozinho.

Ele estava encarando um dilema considerável. Deveria contar a Annie que sua filha estava grávida?

Nat estava num jantar particular com quatro industriais naquela noite. Entre eles havia a possibilidade de fazerem uma contribuição significativa para os cofres da campanha; portanto, ele não os apressou. Durante a tarde eles o haviam deixado na dúvida sobre o que deveriam esperar de um governador republicano, e embora nem sempre concordassem com algumas das ideias mais liberais de Nat, um democrata não estaria se mudando para a mansão do governador se eles tivessem alguma coisa a ver com isso.

Havia passado da meia-noite quando Ed Chambers, da Chambers Alimentos, sugeriu que talvez o candidato devesse ir para casa e ter uma boa noite de sono. Nat não conseguia se lembrar de quando isso havia acontecido pela última vez.

Esta era a dica costumeira para que Tom se levantasse, concordasse com quem quer que tivesse dado a sugestão e depois fosse buscar o paletó de Nat. Nat, então, pareceria estar sendo tragado, apertando as mãos de seus anfitriões antes de dizer que não poderia esperar ganhar a eleição sem seu apoio. Elogioso como o sentimento pudesse soar, naquela ocasião ele também tinha o mérito de ser verdadeiro.

Todos os quatro homens acompanharam Nat de volta ao carro, e enquanto Tom dirigi a pela longa estrada sinuosa da casa de Ed Chambers, Nat sintonizou as últimas notícias.

O discurso de Fletcher para os cidadãos de Madison era o quarto item, e um repórter local estava destacando alguns dos pontos que ele havia salientado sobre os esquemas de proteção da vizinhança, uma ideia que Nat vinha promovendo há meses. Nat começou a pensar a respeito de um tão descarado plágio, até que Tom o lembrou de que ele havia, igualmente, roubado algumas das inovações de Fletcher sobre a reforma da educação.

Nat desligou as notícias quando o serviço de meteorologia voltou a alertar que poder ia haver gelo nas estradas, tornando-as escorregadias. Em poucos minutos ele caiu no sono, um truque que Tom gostava de pensar que pudesse incentivar porque, no instante em que Nat acordava, ele estava totalmente desperto e na maior atividade.

Tom também estava sonhando com uma noite de sono decente. Eles não tinham nenhum com promisso oficial antes das dez horas da manhã do dia seguinte, quando compareceriam ao primeiro dos sete serviços religiosos, terminando o dia com uma oração noturna na catedral de St. Joseph.

Ele sabia que Fletcher Davenport estaria cobrindo o mesmo circuito em outra parte do estado. No fim da campanha não haveria reuniões religiosas onde eles não houvessem se ajoelhado, tirado seus sapatos ou coberto as cabeças de jeito a provar que eram cidadãos tementes a Deus. Mesmo que não fosse necessariamente o seu Deus em particular que estivesse sendo reverenciado, eles tinham demonstrado pelo menos o desejo de se levantar, sentar ou ajoelhar em Sua presença.

Tom decidiu não ligar o rádio no noticiário das 13 horas porque ele não via nenhum propósito em acordar Nat apenas para ouvir a regurgitação do que eles haviam ouvido trinta minutos antes.

Ambos perderam as manchetes.

Uma ambulância estava no local dentro de minutos, e a primeira coisa que os paramédicos fizeram foi chamar o corpo de bombeiros. O motorista estava preso contra o volante, eles relataram, e não havia modo de interferir para abrir a porta do seu lado, sem o uso prévio de um maçarico. Eles teriam de trabalhar rapidamente se quisessem retirar o homem ferido do carro batido ainda com vida.

Foi só quando a polícia checou a placa do automóvel em seu computador, de volta à delega cia, que eles compreenderam quem estava preso atrás da direção. Como sentiram ser improvável que o senador tivesse bebido, presumiram que tivesse adormecido. Não havia marcas de pneus na estrada e nenhum outro veículo envolvido.

Os para-médicos passaram uma mensagem pelo rádio para o hospital, e quando descobriram a identidade da vítima, o médico de plantão decidiu passar um bipe para Ben Renwick. lembrando-se de sua idade avançada, Renwick não esperava ser acordado se ali houvesse outro cirurgião disponível para fazer o trabalho.

— Quantas outras pessoas no carro? — foi a primeira pergunta do Dr. Renwick.

— Apenas o senador — foi a resposta obtida.

— O que ele pensava estar fazendo, dirigindo sozinho àquela hora da noite? — retrucou Renwick, retoricamente. — Qual a extensão dos ferimentos?

— Diversos ossos quebrados, incluindo pelo menos as costelas e o tornozelo esquerdo — disse o médico de plantão — mas estou mais preocupado com a perda de sangue. Levou pelo menos uma hora para que os bombeiros conseguissem retirá-lo do local do acidente.

— O.k, certifique-se de que minha equipe esteja pronta na hora em que eu chegar aí. Vou chamar a Sra. Davenport. — Ele hesitou por um instante. — Acabo de me lembrar agora — disse ele — Vou chamar ambas as senhoras Davenport.

Annie estava sentada, sob as vergastadas do vento, na entrada de emergência do hospital, quando viu a ambulância entrar correndo naquela direção. Foram os policiais de motocicleta que a acompanharam que fizeram com que ela pensasse que devia ser seu marido. Embora Fletcher ainda estivesse inconsciente, eles permitiram que e la agarrasse sua mão machucada enquanto entravam com a maca pela sala de operações. Quando Annie viu pela primeira vez a situação em que Fletcher se encontrava, não acreditou que alguém pudesse salvá-lo.

Por que ela comparecera àquela reunião de caridade quando deveria ter estado em Madison com seu marido? Sempre que estava com Fletcher, ela dirigia na volta para casa. Por que ela ignorara os protestos dele quando insistira em dirigir ele mesmo, com satisfação — isso lhe daria algum tempo para pensar — e, de qualquer maneira, era uma distância tão curta, acrescentara. Ele estava a apenas oito quilômetros de casa quando saiu da estrada.

Ruth Davenport chegou ao hospital poucos minutos mais tarde e imediatamente procurou saber o máximo que pôde. Assim que falou com o administrador de plantão, Ruth pôde assegurar uma coisa a Annie: — Fletcher não poderia estar em melhores mãos do que nas de Renwick. Ele é simplesmente o melhor no Estado.

O que ela não disse a sua nora é que eles só o tirariam da cama quando as chances de perder o paciente houvessem diminuído. E Ben Renwick não era um homem de fazer apostas.

Martha Gates foi a próxima a chegar, e Ruth repetiu tudo que havia descoberto. Ela confirmou que Fletcher tinha três costelas e um tornozelo quebrados e o baço perfurado, mas era a perda de sangue que estava deixando os profissionais ansiosos.

— Mas certamente um hospital grande como o St. Patrick tem um banco de sangue grande o suficiente para enfrentar este tipo de problema.

— Sim, seria a resposta costumeira — respondeu Ruth — mas Fletcher é AB negativo, o mais raro de todos os grupos de sangue, e embora tenhamos sempre mantido uma pequena reserva, quando aquele ônibus escolar caiu da Route 95, em New London, no mês passado, e o motorista e seu filho acabaram por ser AB negativo, Fletcher foi o primeiro a insistir em que todo o estoque fosse enviado para o hospital daquela cidade prontamente, e não tivemos tempo de substituí-lo.

Uma iluminação feérica subitamente clareou a entrada do hospital.

— Os abutres chegaram — disse Ruth, olhando através da janela. Ela virou o rosto e encarou sua nora. — Annie, eu acho que você devia falar com eles, é melhor você falar com eles; pode ser a nossa chance de localizar um doador a tempo.

Quando se levantou, no domingo pela manhã, Su Ling decidiu não acordar Nat até o último momento possível; depois de tudo, ela não tinha ideia de a que horas ele houvera chegado e desmaiado na cama.

Ela se sentou na cozinha, coou um café fresco para ela e começou a examinar os jornais da manhã. O discurso de Fletcher parecia ter sido bem recebido pelos cidadãos de Madison, e a última pesquisa de opinião sobre a distância entre eles havia se estreitado por outro ponto, trazendo Nat a três por cento da liderança.

Su Ling tomou seu café e empurrou o jornal para o lado. Ela sempre ligava a televi são um pouco antes para ouvir a previsão do tempo. A primeira pessoa a aparecer na tela, antes mesmo do som aparecer, foi Annie Davenport. Por que ela estaria em pé, na frente do Hospital St. Patrick?, pensou Su Ling. Estaria Fletcher anunciando alguma nova iniciativa para a saúde? Seis segundos depois, ela sabia exatamente o porquê. Ela disparou para fora da cozinha e subiu correndo as escadas para acordar o marido e contar-lhe as notícias. Uma coincidência impressionante. Ou o que seria?

Como cientista, Su Ling não dava muito crédito às coincidências. Mas ela não tinha tempo para considerar aquilo agora.

Nat, sonolento, ouviu a esposa repetir o que Annie Davenport acabara de dizer. Subitamente ele estava bem acordado, pulou da cama e bem depressa vestiu as roupas usadas no dia anterior, não se importando em se banhar ou se barbear. Assim que se vestiu, ele desceu correndo as escadas, colocando os sapatos só quando já estava no carro. Su Ling já estava na direção com o motor ligado. Ela engrenou no exato momento em que Nat bateu a porta do carro.

O rádio ainda estava sintonizado na estação Notícias 24 Horas e Nat ouviu o último boletim enquanto tentava amarrar os cordões dos sapatos. O repórter não poderia ter sido mais explícito: o senador Davenport estava num respirador, e se alguém não do asse cerca de dois litros de sangue AB negativo, dentro de algumas horas, o hospital temeria pela sua sobrevivência.

Levou doze minutos para Su Ling alcançar o St. Patrick, simplesmente ignorando os limites de velocidade. Não que houvesse muito tráfego na estrada àquela hora num domingo de manhã. Nat correu para dentro do hospital enquanto Su Ling procurava um a vaga para estacionar.

Nat avistou Annie no final do corredor e imediatamente a chamou pelo nome. Ela virou-se e parecia assustada quando o viu caminhando apressado em sua direção. Por que ele estaria correndo?, foi seu primeiro pensamento.

— Vim assim que soube! — gritou Nat, caminhando ainda, mas as três mulheres continuavam a olhar para ele como coelhos apanhados por uma luz vermelha. — Tenho o mesmo tipo de sangue que Fletcher — balbuciou Nat ao chegar a um canto, ao lado de Annie.

— Você é AB negativo? — disse Annie, sem acreditar.

— Com certeza — disse Nat.

— Graças a Deus! — disse Martha.

Ruth rapidamente desapareceu numa unidade de tratamento intensivo, e voltou um instante depois com Ben Renwick a seu lado.

— Sr. Cartwright — disse ele, estendendo-lhe a mão — meu nome é Dr. Renwick, e eu sou...

— O consultor sênior do hospital; sim, conheço sua reputação — disse Nat, apertando-lhe a mão.

O cirurgião assentiu com a cabeça.

— Temos um técnico pronto para colher seu sangue.

— Vamos começar então — disse Nat, retirando a jaqueta.

— Para começar, vamos ter de fazer uns testes e checar se seu sangue corresponde exatamente ao dele, e depois analisá-lo no que tange a HIV e hepatite B.

— Sem problema — disse Nat.

— Mas eu receio, Sr. Cartwright, que tenhamos de colher pouco menos de um litro e meio de seu sangue se quisermos que o senador Davenport tenha qualquer chance de sobrevivência, e isso vai requerer uma série de formulários de segurança, assinados na presença de um advogado.

— Por que um advogado? — perguntou Nat.

— Porque há uma possibilidade pequena de que o senhor possa sofrer efeitos colaterais graves, e, de qualquer forma, o senhor acabará por se sentir bastante enfraquecido depois, e pode provar-se necessária a sua internação por diversos dias para administrarmos fluidos extras.

— Alguma situação extrema em que Fletcher venha a manter-me fora da campanha?

Todas as três mulheres riram pela primeira vez, quando Renwick rapidamente levou Nat ao seu escritório. Nat virou-se para trás para falar com Annie, para descobri-la sendo confortada por Su Ling.

— Agora tenho outro problema a considerar — admitiu Renwick ao sentar-se atrás de sua escrivaninha e começar a escolher alguns formulários.

— Assinarei qualquer coisa — repetiu Nat.

— O senhor não pode assinar o formulário que eu tenho em mente — disse o consultor.

— Por que não? — perguntou Nat.

— Porque é uma cédula de voto pelo correio, e eu já não sei mais em qual dos dois votar.


51


— TER PERDIDO QUASE UM LITRO E MEIO DE SANGUE não parece ter deixado o Sr. Cartwright mais lento — disse a enfermeira de plantão enquanto examinava o último relatório do Dr. Renwick.

— Talvez não — disse Renwick, virando as páginas — mas certamente fez uma diferença impressionante para o senador Davenport. Salvou a vida dele.

— Verdade — disse a enfermeira — mas eu alertei o senador de que, a despeito da eleição, ele terá de ficar internado por pelo menos mais umas duas semanas.

— Eu não apostaria nisso — disse Renwick. — Antecipo que Fletcher terá dado alta a si mesmo no final da semana.

— Talvez o senhor esteja certo — disse a enfermeira com um sorriso — mas o que posso fazer para evitar isso?

— Nada — disse Renwick, recolocando a pasta em sua mesa, de modo que ela pudesse ler os nomes Nathaniel e Peter Cartwright impressos no topo direito. — Mas preciso que você marque uma consulta para que eu possa ver os dois homens, o mais breve possível.

— Sim, doutor — respondeu a enfermeira, fazendo uma anotação no papel sobre sua prancheta, antes de sair do consultório.

Assim que a porta se fechou, Ben Renwick apanhou a pasta novamente e leu seu conteúdo uma vez mais. Ele pensava em pouquíssimas outras coisas nos últimos três dias.

Ao sair tarde naquela noite, fechou a pasta em seu cofre particular. Afinal de contas, uns poucos dias a mais não fariam uma diferença muito grande, depois de tudo que ele precisava discutir com os dois homens que tinham permanecido como um segredo pelos últimos quarenta e três anos.

Nat recebeu alta do St. Patrick na quinta-feira à tarde, e ninguém entre os funcionários do hospital imaginou, por um único segundo, que Fletcher ainda estivesse ali até o fim de semana, a despeito de sua mãe tentar convencê-lo de que ele deveria agir com calma. Ele a lembrou de que faltavam apenas duas semanas para o dia da eleição.

Durante a mais longa semana de sua vida, Ben Renwick continuou a luta contra sua consciência, tanto quanto o Dr. Greenwood devia ter feito quarenta e três anos atrás, antes dele; mas Renwick tinha chegado a uma conclusão diferente: sentia que estava sem escolha, a não ser revelar a verdade aos dois homens.

Os dois contendores concordaram em encontrar-se às seis da manhã de terça-feira no consultório do Dr. Renwick. Era o único instante antes do dia da eleição em que os dois candidatos tinham uma hora vaga em suas agendas.

Nat foi o primeiro a chegar, pois ele tinha esperança de estar em Waterbury para a reunião das nove horas, e talvez até encaixar uma visita a duas agências de viagem no caminho.

Fletcher mancava quando entrou no consultório do Dr. Renwick, faltando dois minutos para as seis, chateado por Nat ter chegado antes dele.

— Assim que eu tirar esse gesso — disse ele — vou dar um chute no seu traseiro.

— Você não devia falar com o Dr. Renwick desta maneira, depois de tudo que ele fez por nós — disse Nat com um sorriso.

— Por que não? — perguntou Fletcher. — Ele me encheu com o seu sangue; portanto, agora sou metade do homem que eu era.

— Errado novamente — disse Nat. — Você é duas vezes o homem que era, mas ainda é metade do homem que eu sou.

— Crianças, crianças — disse o doutor, compreendendo subitamente o significado de suas palavras —, existe alguma coisa mais séria que eu tenho de discutir com vocês.

Os dois homens fizeram silêncio depois de ouvir o tom com que estavam sendo admoestados.

O Dr. Renwick saiu de trás da escrivaninha para abrir o cofre, de onde retirou uma pasta, colocando-a sobre a mesa.

— Tenho passado vários dias tentando resolver como devo fornecer uma informação tão confidencial aos dois. — Ele pressionou a pasta com o dedo indicador direito. — Uma informação à qual eu nunca teria dado atenção, não fosse pelo acidente quase fatal do senador e a necessidade de analisar os dossiês médicos dos dois.

Nat e Fletcher se olharam, mas não disseram nada.

— Até mesmo se eu devia contar aos dois juntos, ou a cada um em separado, tornou-se uma questão ética. Pelo menos sobre isso ficará óbvio agora qual foi a decisão que tomei.

Os dois candidatos ainda nada disseram.

— Tenho apenas um pedido: que a informação que estou a ponto de revelar permaneça secreta, a menos que os dois, repito, os dois, determinadamente, desejem torná-la pública.

— Não tenho nenhum problema quanto a isso — disse Fletcher, voltando o rosto para Nat.

— Eu também não — disse Nat. — Afinal de contas, estou na presença de meu advogado.

— Mesmo que isso influenciasse o desenrolar da eleição? — o médico acrescentou, ignorando a lividez de Nat. Os dois homens hesitaram por um instante, mas uma vez mais aquiesceram.

— Deixem-me esclarecer que o que estou pronto a revelar não é uma possibilidade, tampouco uma probabilidade; é uma questão fora de qualquer dúvida.

O médico abriu a pasta e olhou uma certidão de nascimento e um atestado de óbito.

— Senador Davenport e Sr. Cartwright — disse ele como que se dirigindo a duas pessoas que ele nunca tivesse visto antes. — Tenho de informá-los que, tendo checado e rechecado as amostras de DNA de ambos, não pode haver nenhum questionamento sobre a evidência científica de que vocês não apenas são irmãos — ele fez uma pausa, olhos voltados para a certidão de nascimento — mas gêmeos dizigóticos*.

 

*Formados a partir de dois óvulos.

 

O Dr. Renwick permaneceu em silêncio, permitindo que o significado de sua declaração pudesse calar em ambos.

Nat lembrou-se dos dias em que ainda precisava correr ao dicionário para checar o sentido de uma palavra. Fletcher foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— O que quer dizer que nós não somos idênticos.

— Correto — disse o Dr. Renwick —, a crença de que gêmeos precisam ser iguais sempre foi um mito, mantido principalmente por escritores românticos.

— Mas isso não explica... — Começou Nat.

— Se vocês quiserem respostas a todas e quaisquer perguntas que tenham — disse o Dr. Renwick — incluindo quem são seus pais naturais e como vocês foram separados, eu ficaria muito feliz se analisassem esta pasta quando quiserem.

O Dr. Renwick pressionou a pasta aberta na frente dele mais uma vez. Nenhum dos dois respondeu imediatamente. Passou-se algum tempo até que Fletcher dissesse: — Não preciso ver o conteúdo da pasta.

Era o Dr. Renwick que se virava para mostrar sua surpresa.

— Não existe nada que eu não saiba sobre Nat Cartwright — explicou Fletcher — incluindo os detalhes da morte trágica do irmão.

Nat assentiu com um movimento de cabeça.

— Minha mãe ainda mantém uma foto de nós dois na mesa de cabeceira, e muitas vezes fala do meu irmão Peter e quem ele deveria ter se tornado.

Ele fez uma pausa e olhou para Fletcher.

— Ela teria ficado orgulhosa do homem que salvou a vida do irmão. Mas eu tenho uma pergunta — acrescentou ele, virando-se de costas para encarar o Dr. Renwick.

— Preciso perguntar se a Sra. Davenport está ciente de que Fletcher não é seu filho.

— Não que eu saiba — respondeu Renwick.

— O que lhe dá tanta certeza? — perguntou Fletcher.

— Porque entre os muitos documentos com os quais me deparei nessa pasta, havia uma carta do médico que fez o parto de vocês dois. Ele deixou instruções dizendo que só fosse aberta se disputas pudessem surgir concernentes ao seu nascimento e que pudessem manchar a imagem do hospital. E essa carta declara que havia apenas uma pessoa que sabia a verdade, além do Dr. Greenwood.

— Quem é esta pessoa? — perguntaram Nat e Fletcher, simultaneamente. O Dr. Renwick fez uma pausa enquanto virava outra página do seu arquivo.

— Uma tal Srta. Heather Nichol, mas como ela e o Dr. Greenwood já morreram, não há meios de se poder confirmá-lo.

— Ela foi minha babá — disse Fletcher — e, do que posso me lembrar, faria qualquer coisa para alegrar minha mãe.

Ele se virou para olhar Nat.

— Entretanto, eu ainda preferiria que meus pais nunca descobrissem a verdade.

— Não tenho nenhum problema em relação a isso — disse Nat. — Qual seria o propósito de colocar nossos pais sob tão desnecessária provação? Se a Sra. Davenport ficasse sabendo que Fletcher não é seu filho e minha mãe descobrisse que Peter nunca morreu e foi impedida de criar os dois filhos, a angústia e a agitação que se seguiriam... quase que nem vale sequer pensar.

— Concordo — disse Fletcher. — Meus pais hoje têm quase oitenta anos; portanto, por que sujeitá-los a fantasmas do passado? — Ele fez uma longa pausa. — Contudo, só posso pensar em quão diferentes nossas vidas teriam sido se eu acabasse em seu berço e você no meu — disse ele, olhando para Nat.

— Nós nunca saberemos — respondeu Nat. — Entretanto, uma coisa permanece certa.

— E qual é? — perguntou Fletcher.

— Eu ainda seria o próximo governador de Connecticut.

— O que faz você tão confiante nisso? — perguntou Fletcher.

— Comecei uma cabeça à sua frente e tenho permanecido na liderança desde então. Afinal de contas, eu já estou na Terra seis minutos a mais que você.

— Uma desvantagem mínima, da qual eu me recuperei totalmente em uma hora.

— Crianças, crianças — admoestou Ben Renwick pela segunda vez. Os dois homens riram quando o doutor fechou o dossiê à sua frente.

— Então nós estamos de acordo que qualquer evidência provando seu parentesco deveria ser destruída e nunca referida novamente?

— Concordo — disse Fletcher sem hesitação.

— E nunca referida outra vez — repetiu Nat.

Os dois homens viram quando o Dr. Renwick abriu a pasta e primeiro tirou uma certidão de nascimento, que ele passou pelo triturador de papéis sem relutância.

Nenhum deles falou à medida que viam cada peça de evidência desaparecer. À certidão de nas cimento seguiu-se uma carta de três folhas, datada de 11 de maio de 1949, assinada pelo Dr. Greenwood. Depois dela vieram diversos documentos e memorandos internos do hospital, todos carimbados de 1949. O Dr. Renwick continuou a passá-los, um por um, através do triturador, até ficar com uma pasta vazia. Em cima estavam marcados os nomes Nathaniel e Peter Cartwright.

Ele rasgou a pasta em quatro pedaços, antes de oferecer o vestígio final da prova aos dentes esperançosos do triturador de papéis.

Fletcher levantou-se com vigor do seu lugar e virou-se para apertar a mão do irmão.

— Verei você na mansão do governador.

— Você verá, com certeza — disse Nat, tomando-o nos braços. — A primeira coisa que far ei é instalar uma rampa para cadeiras de rodas, de modo que você possa visitar-me regularmente.

— Bem, preciso ir — disse Fletcher, voltando a apertar a mão de Ben Renwick. — Tenho uma eleição para vencer.

Ele mancou até a porta, tentando alcançá-la antes de Nat, mas seu irmão pulou na sua frente e segurou a porta aberta para ele.

— Fui educado para abrir as portas para as mulheres, velhos cidadãos e inválidos — explicou Nat.

— E você agora pode acrescentar futuros governadores àquela lista — disse Fletcher, mancando pelo trajeto.

— Você leu meus documentos sobre auxílio invalidez? — perguntou Nat, enquanto o acompanhava.

— Não — respondeu Fletcher — eu nunca me importei com ideias pouco práticas que nunca poderiam alcançar os livros dos estatutos.

— Você sabe, Vou me arrepender de uma coisa apenas — disse Nat assim que eles ficaram sozinhos no corredor e não podiam mais ser ouvidos pelo Dr. Renwick.

— Deixe-me adivinhar — disse Fletcher, enquanto esperava pela próxima piada.

— Acho que você teria sido um irmão maravilhoso, com quem eu gostaria de ter sido criado.

 

 

52


A PREVISÃO DO DR. RENWICK acabou por mostrar-se acurada. O senador Davenport havia se dado alta do Hospital St. Patrick no fim de semana, e quinze dias depois ninguém acreditava que ele tinha estado a poucos passos da morte a um mês antes.

Faltando poucos dias para a eleição, Clinton avançou muito nas pesquisas de opinião, enquanto Perot continuava a abocanhar todo o apoio que seria de Bush. Tanto Nat como Fletcher viajaram pelo Estado, a passos que impressionariam até atletas olímpicos. Nenhum deles esperava pelo desafio do outro para um debate, e quando uma das emissoras locais de televisão sugeriu que eles deviam enfrentar-se em três encontros, ambos aceitaram sem necessidade de persuasão.

Era opinião universal que Fletcher se havia saído melhor no primeiro debate, e as pesquisas confirmaram aquela impressão quando ele chegou à liderança pela primeira vez. Nat imediatamente cortou seus compromissos de viagem e passou diversas horas num estúdio simulado de televisão, sendo preparado por sua equipe. Valia a pena, porque até mesmo os democratas concordaram que ele havia ganho o segundo round quando as pesquisas o recolocaram de volta na liderança.

Havia tantos intervalos comerciais no final do debate que os dois homens começaram a ficar ansiosos para não cometer nenhum engano, e o debate acabou sendo julgado como um beco sem saída ou, como o descreveu Lucy, um "empate amoroso". Nenhum dos candidatos ficou desapontado ao saber que uma emissora concorrente de televisão tinha levado ao ar um jogo de futebol a que assistiram dez vezes mais espectadores.

As pesquisas, no dia seguinte, deram quarenta e seis por cento aos dois candidatos, com oito por cento de indecisos.

— Onde foi que eles ficaram nos últimos seis meses? — perguntou Fletcher ao olhar para os oito por cento.

— Não é todo mundo que é fascinado pela política como você — insinuou Annie depois do café da manhã. Lucy assentiu com a cabeça.

Fletcher contratou um helicóptero e Nat alugou o jatinho do banco para levá-los pelo Estado durante os últimos sete dias, ocasião em que os indecisos haviam caído para seis por cento, dando um ponto para cada rival. No final da semana, os dois homens se perguntavam se haveria um shopping, uma fábrica, uma estação de trem, uma prefeitura, um hospital ou até uma rua que eles não tivessem visitado ainda, e ambos aceitaram que, no fim, seria o trabalho organizado de seus gabinetes que contaria. E o vencedor seria aquele que tivesse a máquina mais azeitada no dia da eleição. Ninguém estava mais atento para isso do que Tom e Jimmy, mas eles não podiam pensar em nada que ainda não tivessem feito ou preparado, e tudo que podiam fazer era especular sobre o que poderia acontecer de errado no último minuto.

Para Nat, o dia da eleição era um emaranhado de aeroportos e ruas principais, pois ele tentara visitar todas as cidades que tivessem uma possibilidade antes que as cabines de votação se fechassem às oito da noite. Assim que seu avião pousava, ele corria para o segundo carro da caravana e saía a cento e vinte quilômetros por hora até alcançar o limite de velocidade das cidades, quando diminuía para vinte quilômetros por hora e começava a acenar para todos que demonstrassem um mínimo interesse. Ele acabava na rua principal, a passo de caminhada, e, então, revertia o processo com uma corrida louca para o aeroporto, antes de ir para a cidade seguinte.

Fletcher passou sua última manhã em Hartford, tentando conseguir os votos mais difíceis antes de apanhar o helicóptero para visitar as populações mais densas das áreas democráticas. Tarde daquela noite, os comentaristas ainda discutiam quem teria feito um melhor uso de suas poucas horas finais. Os dois homens desceram de volta no Aeroporto Brainard de Hartford poucos instantes depois de as urnas terem sido lacradas.

Normalmente, nessas situações, os candidatos fazem qualquer coisa para evitar encontrar um ao outro, mas quando as duas equipes se cruzaram na pista, como cavaleiros numa competição, eles se encaminharam diretamente um para o outro.

— Senador — disse Nat — o senhor é a primeira pessoa que eu precisarei ver amanhã pela manhã, pois haverá muitas mudanças que Vou querer realizar antes de me sentir apto a assinar sua carta sobre a educação.

— A carta será lei amanhã a estas horas — replicou Fletcher. — Pretendo que ela seja minha primeira ação como governador.

Os dois homens sabiam que seus assessores mais próximos tinham ficado lá atrás, portanto podiam ter uma conversa privada; e eles sabiam que as brincadeiras irônicas serviam a poucos propósitos quando não havia uma audiência para ouvi-las.

— Como está Lucy? — perguntou Nat. — Espero que os problemas dela tenham sido resolvidos.

— Como você soube disso? — perguntou Fletcher.

— Um dos meus assessores foi informado dos detalhes umas duas semanas atrás. Deixei bem claro que se o assunto vazasse outra vez ele não faria mais parte da minha equipe.

— Fico-lhe grato — disse Fletcher — porque eu ainda não contei a Annie. — Ele fez uma pausa. — Lucy passou alguns dias em Nova York com Logan Fitzgerald, e depois voltou para casa para juntar-se a mim nas trilhas da campanha.

— Eu gostaria de tê-la visto crescer, como qualquer outro tio. Eu adoraria ter tido uma filha!

— A maior parte dos dias da semana ela adoraria trocar-me por você — disse Fletcher. — Precisei aumentar sua mesada em troca de ela não ficar me lembrando o tempo todo como você é maravilhoso.

— Eu nunca lhe contei — disse Nat — que depois de sua intervenção com aquele atirador que sequestrou a classe da Srta. Hudson, na escola de Hartford, Luke prendeu uma fotografia sua na parede do quarto dele, e nunca a retirou; portanto, por favor, dê os meus melhores votos à minha sobrinha.

— Darei, mas fique alerta, porque, se você ganhar, ela vai adiar a faculdade por um ano e pedir um emprego em seu gabinete como estagiária, e ela já deixou claro que não estará disponível para o pai como governador.

— Então já estou esperando que ela ingresse no meu gabinete — disse Nat quando um ou dois assessores reapareceram e sugeriram que talvez fosse hora de os dois se mexerem.

Fletcher sorriu.

— Como é que você quer agir hoje à noite?

— Se um de nós mostrar uma liderança bastante clara até a meia-noite, o outro telefona rá e reconhecerá?

— Para mim está ótimo — disse Fletcher. — Acho que você tem o telefone da minha casa.

— Estarei esperando pela sua chamada, senador — disse Nat.

Os dois candidatos apertaram as mãos e suas caravanas saíram em direções opostas.

Um grupo de soldados designados pelo Estado seguiu os dois candidatos para casa.

Suas instruções eram precisas. Se o seu homem ganha, você está protegendo o novo governador. Se ele perde, você tira uma semana de folga.

Nenhum dos grupos ganhou uma semana de folga.

 

 


53


NAT LIGOU o RÁDIO no instante em que entrou no carro. As urnas que haviam sido lacradas pela manhã mostravam que Bill Clinton estaria fixando residência na Casa Branca no próximo janeiro, e que o presidente Bush teria de reconhecê-lo antes da me ia-noite. Uma vida inteira de serviço público, um ano de campanha, um dia de votação e sua carreira política passara a ser apenas um rodapé na história.

— Isso é democracia para vocês — ouviu-se o presidente Bush dizendo num comentário arrependido mais tarde.

Outros pesquisadores através do país estavam insinuando que não apenas a Casa Branca, mas o Senado e o Congresso também seriam controlados pelos democratas. O âncora da CBS, Dan Rather, estava relatando um resultado fechado para várias cadeiras.

— Em Connecticut, por exemplo, a diferença na corrida governamental é muito pequena para se poder avaliar, e os resultados das urnas que estão sendo anunciados não são capazes de predizer o resultado ainda. Mas, por enquanto, acabou para o nosso correspondente Little Rock, que está do lado de fora da casa do governador Clinton.

Nat desligou o rádio quando a pequena caravana de três utilitários chegou a uma vaga à frente de sua casa. Ele estava sendo saudado por duas câmeras de televisão, um radialista e dois jornalistas — diferente de Arkansas, onde mais de cem câmeras de televisão, radialistas e incontáveis jornalistas esperavam para ouvir as prime iras palavras do presidente eleito. Tom estava em pé à porta da frente.

— Não me conte — disse Nat, enquanto passava pela imprensa e entrava em casa. — A margem está muito pequena para se dizer. Então, quando é que poderemos ouvir o resultado envolvendo eleitores de verdade?

— Estamos esperando que os primeiros indicadores sejam mostrados dentro de uma h ora — disse Tom — e se for de Bristol, eles geralmente votam pelos democratas.

— Sim, mas por quanto? — perguntou Nat, enquanto eles se dirigiam à cozinha, para encontrar Su Ling colada na televisão, um cheiro de queimado saindo do forno.

Fletcher ficou na frente da televisão vendo Clinton, enquanto este acenava para as multidões do balcão de sua casa em Arkansas. Ao mesmo tempo ele tentava ouvir um resumo de Jimmy. Quando ele encontrou pela primeira vez o governador de Arkansas na convenção dos democratas, na cidade de Nova York, Fletcher não acreditava que ele pudesse ter a menor chance. E pensar que no último ano apenas, depois da vitória na Guerra do Golfo, Bush havia experimentado a mais alta pesquisa de opinião da História!

— Clinton talvez seja declarado vencedor — disse Fletcher — mas Bush perdeu, com certeza.

Ele escancarou os olhos para Bill e Hillary se abraçando enquanto sua bestificada filha de doze anos estava a seu lado. Pensou em Lucy e seu recente aborto, compreendendo que aquilo teria estado na primeira página do noticiário se ele estivesse concorrendo à presidência. Ele se perguntou como Chelsea teria enfrentado aquele tipo de pressão.

Lucy entrou correndo na sala.

— Mamãe e eu preparamos todos os seus pratos favoritos, pois não haverá outra coisa além de funções públicas pelos próximos quatro anos.

Ele sorriu da sua jovem exuberância.

— Milho cozido, espaguete à bolonhesa e, se você vencer antes da meia-noite, creme brülée.

— Mas não tudo junto! — implorou Fletcher, e virando-se para Jimmy, que mal conseguia ficar longe do telefone desde o instante em que entraram em casa, ele perguntou: — Para quando você espera o primeiro resultado?

— A qualquer momento agora — respondeu Jimmy. — Bristol sempre se orgulha de anunciar em primeiro lugar, e nós teremos de conseguir entre três e quatro por cento lá, se quisermos vencer nas demais.

— E abaixo de três por cento?

— Estaremos com problemas — replicou Jimmy.

Nat verificou seu relógio. Passava das nove em Hartford, mas a imagem na tela mostrava os eleitores ainda votando na Califórnia. "ÚLTIMAS NOTÍCIAS" — atravessava a tela.

A NBC foi a primeira a declarar que Clinton seria o novo presidente dos Estados Unidos. George Bush já estava sendo rotulado com o cruel epitáfio "um só período".

Os telefones tocavam constantemente nos fundos enquanto Tom procurava localizar todas as chamadas. Se ele pensasse que Nat precisava falar pessoalmente com quem telefonava, o aparelho era passado para ele; caso contrário, ele ouvia Tom repetindo: "Ele está amarrado no momento, mas obrigado por chamar. Eu darei o seu recado.

— Espero que haja uma câmera onde quer que eu esteja "amarrado" — disse Nat — Caso contrário, nunca saberei se aceito ou admito — acrescentou enquanto tentava valentemente cortar um bife queimado.

— Pelo menos uma verdadeira notícia — disse Tom — mas não consigo entender a quem isso ajuda, porque a reviravolta em Connecticut foi de cinquenta e um por cento, uns dois pontos acima da média nacional.

Nat assentiu com um movimento de cabeça, voltando sua atenção para a tela. As palavras "muito perto para admitir" ainda estavam sendo retransmitidas em cada canto do estado.

Quando Nat ouviu o nome Bristol, empurrou seu bife para o lado. "E agora vamos passar a nosso correspondente, com os resultados atualizados", disse o apresentador.

"Dan, estamos esperando um resultado aqui a qualquer momento, e ele deverá mostrar o primeiro verdadeiro sinal de quão pequenas as diferenças da corrida governamental realmente são. Se os democratas ganham por... espere um instante, o resultado está surgindo em meus fones de ouvido... os democratas ganharam em Bristol!"

Lucy saltou de sua cadeira, mas Fletcher não se moveu enquanto esperava pelos detalhes a serem mostrados no pé da tela. "Fletcher Davenport, 8.604 votos; Nat Cartwright, 8.379", disse o repórter.

— Três por cento. Qual será a próxima a estar pronta?

— Provavelmente Waterbury — disse Tom — onde deveremos estar bem, porque...

 

"E Waterbury foi para os republicanos, por apenas cinco mil votos, colocando Nat Cartwright na liderança."

Os dois candidatos passaram o resto da tarde levantando-se, sentando-se e depois se levantando outra vez, pois as lideranças mudaram dezesseis vezes durante as duas horas seguintes, tempo em que até os comentaristas não encontravam mais hipérboles. Mas, em algum momento, entre os resultados que iam surgindo, o âncora local encontrou tempo para anunciar que o presidente Bush havia telefonado para o governador Clinton em Arkansas, admitindo a derrota. Ele tinha oferecido suas congratulações e os melhores votos para o presidente eleito. Será que isso anunciava uma nova era Kennedy?, perguntavam-se os políticos... "Mas agora vamos voltar à corrida para governador em Connecticut. E aqui está uma para os aficionados das estatísticas. A posição, no momento, é de que os democratas lideram os republicanos por 1.170.141 a 1.168.872, uma diferença total geral para o senador Davenport de 1.269 votos. Como isso é menos do que um por cento, uma recontagem automática deverá acontecer. E se isso não for o suficiente", continuou o comentarista, "nós estaremos diante de uma complicação a mais, porque o distrito de Madison mantém sua velha tradição de não contar seus votos até as dez horas da manhã seguinte."

Paul Holbourn, o prefeito de Madison, foi o próximo a aparecer na tela. O político septuagenário convidou a todos para que visitassem sua cidade praiana, a qual decidiria quem seria o próximo governador do Estado.

— Como é que você interpreta isso? — perguntou Nat enquanto Tom continuava a adicionar números à sua calculadora. — Fletcher lidera no momento por 1.269 votos, e nas últimas eleições os republicanos ganharam em Madison por 1.312.

— Então seremos os favoritos? — aventurou-se Nat.

— Eu gostaria que fosse fácil assim — disse Tom — porque existe outra complicação, depois, que vamos ter de levar em conta.

— E qual é?

— O atual governador do Estado nasceu e se criou em Madison; portanto, poderia haver votos pessoais consideráveis em algum lugar, ali.

— Eu deveria ter ido a Madison mais uma vez — disse Nat.

— Você visitou o lugar duas vezes, o que foi uma vez a mais do que Fletcher

— Preciso telefonar para ele — disse Nat — e deixar claro que não estou admitindo.

Tom assentiu enquanto Nat se encaminhava para o telefone. Ele não precisava procurar o número do telefone particular do senador, porque o havia discado todas as noites durante o julgamento.

— Oi — disse uma voz — residência do governador.

— Não ainda — disse Nat firmemente.

— Alô, Sr. Cartwright — disse Lucy — o senhor estava esperando falar com o governador?

— Não, quero falar com seu pai.

— Por quê? O senhor já está admitindo?

— Não, Vou deixá-lo fazer isso em pessoa, amanhã, quando, se você se comportar, estarei lhe oferecendo um emprego.

Fletcher pegou o telefone.

— Sinto muito, Nat — disse ele, mas presumo que você esteja telefonando para dizer que todas as apostas estão fechadas até amanhã, quando nós nos encontraremos ao meio-dia?

— Sim, e agora que você mencionou, estou planejando desempenhar o papel de Gary Cooper — disse Nat.

— Então eu o verei na Rua Principal, xerife.

— Fique agradecido que não seja Ralph Elliot concorrendo com você.

— Por quê? — perguntou Fletcher.

— Porque a estas horas ele poderia estar em Madison, enchendo as urnas com votos extras.

— Isso não faria nenhuma diferença — disse Fletcher.

— Por que não? — perguntou Nat.

— Porque se Elliot tivesse sido meu oponente, eu já teria vencido por uma ladeira.


LIVRO SETE


NÚMEROS


54

 

 

NAT LEVOU QUASE UMA HORA para dirigir até Madison, e quando alcançou as cercanias da cidade, ele devia ser perdoado por pensar que o pequeno burgo tinha sido escolhido por unanimidade para a sétima temporada dos jogos na série mundial.

A autoestrada estava repleta de carros decorados com emblemas em vermelho, branco e azul, com burros e elefantes* olhando cegamente para fora das numerosas janelas.

 

1* Burro = símbolo dos democratas; elefante = símbolo dos republicanos. (N.T.)

 

Quando ele entrou no desvio para Madison, com uma população de 12.372, metade dos veículos deixara a estrada como se ainda sentisse que estava sendo atraída por um ímã.

— Se você puser de lado aqueles que são jovens demais para votar, presumo que uma vi rada deveria estar em torno de cinco mil — disse Nat.

— Não necessariamente. Acho que será um pouco acima disso — respondeu Tom. — Não se esqueça de que Madison é onde os aposentados vêm visitar seus pais; portanto, você não vai encontrá-la cheia de clubes para jovens e discotecas.

— Pois isso deveria nos beneficiar — disse Nat.

— Eu desisti de prever — disse Tom com um sorriso.

Nenhuma sinalização era necessária para guiá-los até a sede da prefeitura, pois todos pare ciam estar seguindo na mesma direção, confiando que a pessoa à sua frente soubesse exatamente para onde estava indo.

No instante em que a pequena caravana de Nat chegou ao centro da cidade, foi surpreendida por mães, que, empurrando os carrinhos de seus bebês, atravessavam na frente dos automóveis. Quando dobravam a Rua Principal, eram constantemente abordados por pedestres atravessando a pista. Quando o carro de Nat estava sendo impedido de prosseguir por causa de um homem numa cadeira de rodas, ele decidiu que era tempo de sair e começar a caminhar. Isso atrasou seu progresso, porque no momento em que era reconhecido as pessoas corriam para apertar sua mão e diversas outras perguntavam se ele se importava de posar para uma fotografia com sua esposa.

— Estou feliz por ver que a campanha de sua reeleição já começou — brincou tom.

— Vamos nos eleger primeiro — disse Nat quando eles chegaram à prefeitura. Ele subiu as escadas, continuando a apertar as mãos de todos que lhe desejavam boa sorte, como se fosse o dia anterior à eleição em vez do dia seguinte. Ele nada podia fazer se não se perguntar se aquilo mudaria quando ele descesse as escadas e as mesmas pessoas soubessem o resultado. tom avistou o prefeito em pé no alto da escadaria, procurando por ele.

— Paul Holbourn — murmurou tom. — Ele já trabalhou em três períodos, e, na idade de se tenta e sete anos, ganhou sua quarta eleição sem oposição.

— Bom ver você novamente, Nat — disse o prefeito, como se eles fossem amigos, embora, na verdade, eles só se houvessem avistado uma única ocasião antes.

— E é bom vê-lo também, senhor — disse Nat, apertando a mão estendida do prefeito. — Congratulações pela sua reeleição, sem oposição, me disseram.

— Obrigado — disse o prefeito. — Fletcher chegou uns instantes atrás e está esperando em meu escritório; então, talvez devêssemos nos juntar a ele.

Enquanto eles caminhavam para o edifício, Holbourn disse: — Eu só queria passar uns momentos a mais mostrando a vocês dois a maneira como trabalhamos em Madison.

— Para mim está bem — disse Nat, sabendo que, se não acontecesse, aquilo não faria nenhuma diferença.

Uma multidão de funcionários e jornalistas seguiu o pequeno grupo do partido pelo corredor até o gabinete do prefeito, onde Nat e Su Ling se juntaram a Fletcher e Annie e mais outras trinta pessoas que sentiam que tinham o direito de compare cer ao encontro privado.

— Posso oferecer-lhe um café, Nat, antes que prossigamos? — perguntou o prefeito.

— Não, obrigado, senhor — disse Nat.

— E como está sua elegante e pequenina esposa? — Su Ling sacudiu a cabeça educadamente, não se incomodando com a falta de tato do comentário da geração passada.

— Então vou começar — Continuou o prefeito, voltando sua atenção para a assembleia apinhada que se havia espremido dentro do seu gabinete.

— Senhoras e senhores — fez uma pausa —, e futuro governador. — Ele tentou olhar ao mesmo tempo para os dois homens. — A apuração começará às dez horas desta manhã, como tem sido hábito em Madison por mais de um século, e não posso ver nenhuma razão pela qual isso devesse se atrasar, simplesmente porque desta feita existe um interesse maior em nossos procedimentos do que é usual.

Fletcher estava surpreso pela declaração, mas não tinha nenhuma dúvida de que o prefeito estava tentando salvar cada instante dos seus quinze minutos de fama.

— O município — Continuou o prefeito — tem 10.942 eleitores registrados, que residem em onze bairros. As vinte e duas urnas foram, como sempre aconteceu no passado, levadas uns minutos depois que a votação terminou e, então, transferidas para a custódia segura do nosso chefe de polícia, que as guardou a chave durante a noite.

Algumas pessoas riram polidamente diante da pequena brincadeira do prefeito, que fez com que ele também risse e perdesse sua concentração. Ele pareceu hesitar, até que o chefe de gabinete inclinou-se para a frente e murmurou em seu ouvido: "Urnas."

— Sim, naturalmente, sim. As urnas foram coletadas esta manhã e trazidas para a prefeitura às nove horas, quando pedi ao chefe dos meus funcionários que checasse se os lacres não haviam sido violados. Ele confirmou que eles estavam todos intactos.

O prefeito olhou em volta para observar seus antigos funcionários que concordavam com um movimento de cabeça.

— Às dez horas deverei romper esses lacres, quando os votos serão removidos das urnas e colocados sobre as mesas de contagem no centro da sala principal. A primeira contagem será para verificar quantas pessoas votaram. Assim que isso seja estabelecido, os votos serão separados em três pilhas. Os que votaram no Partido Republicano, os que votaram no Democrata e os que podem ser descritos como votos disputáveis. Ainda devo acrescentar que estes são raros em Madison, porque para muitos de nós esta pode ter sido a última chance de registrar um voto.

Isso foi recebido com um pequeno riso nervoso, ainda que Nat não tivesse nenhuma dúvida de que ele queria dizer isso mesmo.

— Minha tarefa final, como responsável oficial por esta eleição, será declarar o resulta do que, em troca, irá decidir quem está eleito como o próximo governador do nosso grande Estado. Espero estar com todo o trabalho completado em torno do meio-dia.

Não se continuarmos nesse passo, pensou Fletcher.

— Agora, alguma pergunta antes que eu os acompanhe até o edifício? "

Tom e Jimmy começaram a falar ao mesmo tempo, e tom concordou polidamente com seu oponente, pois ele suspeitava de que eles estariam fazendo exatamente as mesmas perguntas.

— Quantos escrutinadores o senhor tem? — perguntou Jimmy. O oficial uma vez mais murmurou ao ouvido do prefeito.

— Vinte, e todos eles são membros do conselho — disse o prefeito —, com a qualificação de serem membros do clube de bridge local.

Nem Nat nem Fletcher puderam entender o significado deste comentário, mas não estavam inclinados a pedir novos esclarecimentos.

— E quantos fiscais o senhor permitirá? — perguntou Tom.

— Dez representantes de cada partido — disse o prefeito —, que permanecerão um passo atrás de cada conferente dos votos e que não poderão em nenhum momento dirigir-se a eles. Se tiverem uma pergunta, eles deverão dirigir-se ao chefe do meu gabinete, e se esta continuar não solucionada, ele me consultará.

— E quem agirá como juiz se restar algum voto disputável? — perguntou tom.

— O senhor vai descobrir que eles são raros em Madison — repetiu o prefeito, esquecendo-se de já ter expressado este sentimento antes —, porque para muitos de nós esta poderia ser a última chance de registrar um voto.

Desta vez ninguém riu, ao passo que, ao mesmo tempo, o prefeito falhava em responder à pergunta de tom. Este decidiu não perguntar uma segunda vez.

— Bem, se não existem outras perguntas — disse o prefeito —, Vou acompanhá-los ao histórico edifício, construído em 1867, do qual somos extraordinariamente orgulhosos.

— Bem, se não existem outras perguntas — disse o prefeito — Vou acompanhá-los ao histórico edifício, construído em 1867, do qual somos extraordinariamente orgulhosos.

O edifício havia sido construído para alojar até mil pessoas, pois a população de Madison não se aventurava muito à noite. Mas, nessa ocasião, antes mesmo do prefeito, os altos funcionários da prefeitura, Fletcher, Nat e seus dois respectivos partidos haviam entrado no recinto, que parecia mais uma estrada de ferro japonesa na hora do rush do que uma sede de prefeitura num ponto turístico da costa sonolenta de Connecticut. Nat esperava apenas que o capitão do corpo de bombeiros não estivesse presente, pois ali não devia aparecer uma regulamentação de segurança que eles não pudessem violar.

— Vou iniciar os procedimentos permitindo que cada um saiba como pretendo conduz ir a contagem — disse o prefeito antes de sair em direção ao palco, deixando os dois candidatos se perguntando se ele alguma vez começaria. Finalmente a figura diminuta e grisalha emergia na plataforma e tomava assento em frente a um microfone baixo.

— Senhoras e senhores — Começou ele — meu nome é Paul Holbourn e apenas estrangeiros não saberão que sou o prefeito de Madison.

Fletcher suspeitou de que a maioria das pessoas no recinto estava fazendo sua primeira e última visita ao histórico município.

—... mas hoje — Continuou ele — fico à sua frente, na minha posição de oficial das eleições para o município de Madison. Já expliquei a ambos os candidatos o procedimento que pretendo adotar, o qual irei expor novamente...

Fletcher começou a olhar em volta da sala e rapidamente ficou alertado para o fato de poucas pessoas ouvirem o prefeito, pois elas estavam interessadas em assegurar um lugar mais perto da área de coordenação possível, onde a apuração estaria acontecendo.

Quando o prefeito terminou sua homília, fez um esforço galante de voltar ao centro do recinto, mas não chegaria a completar o circuito se não fosse pelo fato de que a apuração não podia começar sem sua permissão.

Quando alcançou o portão de entrada, o chefe dos funcionários entregou-lhe uma tesoura.

Ele procedeu ao rompimento dos lacres nas vinte e duas urnas como se estivesse desempenhando uma cerimônia de abertura. Esta tarefa completada, os oficiais despejaram o conteúdo das urnas e começaram a checar os votos na comprida mesa no centro.

O prefeito, então, verificou cuidadosamente o interior de cada uma — primeiro virando-as para baixo, e depois as sacudindo como um conjurado que precisasse provar que não existia mais nada dentro. Os dois candidatos foram convidados a averiguar uma segunda vez.

Tom e Jimmy mantiveram seus olhos sobre o centro da mesa assim que os funcionários começaram a distribuir as cédulas entre os escrutinadores, tal como um crupiê deve empilhar as fichas sobre a mesa da roleta. Eles começaram a juntar os votos em pilhas de dez, e depois colocaram uma fita elástica em volta de cada cem votos.

Este simples exercício levou aproximadamente uma hora para ser completado, em cujo tempo o prefeito não tinha mais coisas interessantes a dizer sobre Madison para ninguém que ainda estivesse disposto a ouvir. As pilhas foram então contadas pelo chefe dos funcionários, que confirmou serem cinquenta e nove, com uma pilha deixada de lado, além de uma contendo pouco mais de cem votos.

No passado, quando chegava a este estágio, o prefeito sempre se encaminhava de volta ao palco, mas seu chefe de gabinete pensou que seria mais fácil se o microfone fosse trazido até ele. Paul Holbourn concordou com a inovação e teria sido uma decisão perspicaz se o líder não tivesse levado tempo demais para alcançar a área de isolamento; mas pelo menos o prefeito tinha agora um trajeto consideravelmente mais curto para completar antes de expor seu ultimato. Ele soprou o microfone, produzindo um som como que de um trem entrando por um túnel, objetivando ocasionar alguma ordem na sala.

— Senhoras e senhores — Começou ele, checando o pedaço de papel que o chefe de gabinete havia passado às suas mãos — 5.934 bons cidadãos de Madison tomaram parte nesta eleição, o que me foi informado corresponder a cinquenta e quatro por cento do e leitorado, estando um por cento acima da média deste Estado.

— Este ponto percentual extra talvez se transforme em vantagem para nós — sussurrou Tom ao ouvido de Nat.

— Pontos extras geralmente favorecem os democratas — lembrou-o Nat.

— Não quando o eleitorado tem uma média de idade de sessenta e três anos — disse Tom.

— Nossa próxima tarefa — Continuou o prefeito — é separar os votos dos dois partidos antes que possamos começar a contagem.

Ninguém ficaria surpreso se este exercício levasse mais tempo ainda, pois o prefeito e seus funcionários eram regularmente chamados a apaziguar disputas. Completada a tarefa, a contagem dos votos começou na maior honestidade. Pilhas de dez se multiplicaram com o tempo em centenas, antes de serem colocadas em linhas perfeitas, como soldados num desfile em terra.

Nat teria gostado de uma sala circular e acompanhou o processo todo, mas o edifício estava ficando tão apinhado que ele teve de se satisfazer com os relatórios regulares na retaguarda, feitos por seus olheiros a postos. Tom resolveu insistir e brigar por seu trajeto de volta e chegou à conclusão de que, mesmo que Nat visse que estava na liderança, ele não poderia se certificar se era suficiente fazer os cento e dezoito votos da vantagem que Fletcher atualmente aproveitara, seguindo a contagem das urnas noturnas.

Passou-se outra hora antes que a contagem fosse completada, e as duas pilhas de cédulas estavam alinhadas, uma de frente para a outra. O prefeito, então, convidou os dois candidatos a juntar-se a ele na área de isolamento no centro do recinto. A li ele explicou que dezesseis votos tinham sido rejeitados por seus conferentes, e ele, portanto, desejava consultá-los antes de decidir se algum deles deveria ser considerado válido.

Ninguém podia acusar o prefeito de não acreditar em governo aberto, porque todos os dezesseis votos tinham sido alinhados no meio da mesa para que todos pudessem vê-los. Oito pareciam não ter nenhuma marca sobre eles, e os dois candidatos concordaram que eles poderiam ser rejeitados. Uma cédula com a mensagem "Cartwright deveria ter sido enviado à cadeira elétrica" também foi dispensada tão rapidamente quanto "Nenhum advogado foi feito para deter um cargo público". Das seis que sobraram, todas tinham marcas além das cruzes contra um dos nomes, mas como elas eram, igual mente, divididas, o prefeito sugeriu que deveriam ser validadas. Tanto Jimmy com o Tom checaram os seis votos e não puderam encontrar nenhuma falta em relação à lógica do prefeito.

Como este pequeno desvio não havia acionado nenhuma vantagem para qualquer dos candidatos, o prefeito deu luz verde para a apuração total começar. Pilhas de cem votos foram uma vez mais alinhadas na frente dos escrutinadores, e Nat e Fletcher tentaram, a distância, avaliar se eles haviam ganho ou perdido o bastante para mudar a palavra sobre suas posições para os próximos quatro anos.

Quando a contagem finalmente terminou, o chefe dos funcionários passou um pedaço de papel ao prefeito com dois números escritos. Ele não precisou pedir silêncio, porque todos queriam ouvir o resultado. O prefeito, tendo abandonado qualquer ideia de voltar ao palco, simplesmente anunciou que os republicanos haviam ganho de 3.019 a 2.905. Ele, então, apertou as mãos dos dois candidatos, obviamente sentindo que sua tarefa tinha sido concluída, enquanto todos os demais tentavam compreender o significado daqueles números.

Dentro de instantes, vários dos partidários de Fletcher haviam se levantado e sentado assim que entenderam que, embora tivessem perdido Madison por cento e quatorze, eles haviam ganho no estado por quatro votos. O prefeito já voltava para seu gabinete, pensando num almoço bem merecido, quando Tom o alcançou. Ele explicou o verdade iro significado do resultado local e acrescentou que, em nome do seu candidato, ele estaria solicitando uma recontagem. O prefeito fez seu caminho de volta, lentamente, para o edifício, com pedidos de "recontagem, recontagem, recontagem" e, sem consultar seus oficiais, anunciou que sempre pensara em fazê-lo.

Diversos escrutinadores que já se preparavam para sair voltaram rapidamente aos se us lugares. Fletcher ouviu com atenção quando Jimmy murmurou em seu ouvido. Ele considerou a sugestão por uns instantes, mas respondeu firmemente: "Não!"

Jimmy comentara com seu candidato que o prefeito não tinha autoridade para ordenar uma recontagem, pois fora Fletcher quem perdera a eleição em Madison, e somente um candidato perdedor poderia solicitar uma recontagem. O Washington Post escreveu na manhã seguinte, antecipando-se aos demais, que o prefeito também houvera excedido sua autoridade sobre aquela área. Diga-se de passagem que Nat havia vencido seu oponente por mais de um por cento, igualmente tornando desnecessária uma recontagem.

Mas o colunista admitiu que rejeitar tal solicitação talvez acabasse em tiroteio, sem mencionar lutas judiciais intermináveis, as quais não fariam jus à forma pela qual os dois candidatos haviam conduzido suas campanhas.

Uma vez mais, as pilhas foram contadas e recontadas antes de serem analisadas e reanalisadas. Isso resultou na descoberta de que três pilhas continham cento e um votos, enquanto outra tinha apenas noventa e oito. O chefe dos funcionários não confirmou o resultado até ter certeza de que os conferentes e as mãos que apuravam os votos coincidiam. Então, ele mais uma vez passou um pedaço de papel para o prefeito com dois novos números para serem anunciados. O prefeito leu o resultado revisto de 3.021 para Cartwright e 2.905 para Davenport, o que suplantou a liderança dos democratas por dois votos.

Tom imediatamente requisitou uma nova contagem, embora ele soubesse que não tinha essa permissão. Ele suspeitava de que, como a maioria dos votos para Fletcher havia caído, o prefeito teria descoberto ser difícil negar sua solicitação. Ele cruzou os dedos quando o chefe dos funcionários fez um resumo ao prefeito.

O que quer que fosse que o chefe houvesse aconselhado, o prefeito simplesmente assentiu e voltou ao microfone.

— Faremos uma nova recontagem — anunciou ele — mas se os democratas detiverem a maioria pela terceira vez, ainda que pequena, declararei Fletcher Davenport o novo governador de Connecticut.

Isso foi acolhido com festejos pelos correligionários de Fletcher e um sinal de aquiescência de Nat, enquanto o procedimento de contagem recomeçou.

Quarenta minutos mais tarde, as pilhas dos votos estavam todas confirmadas como corretas, e a batalha parecia finalmente terminada, até que alguém notou que um dos fiscais de Nat tinha a mão levantada. O prefeito se encaminhou lentamente até ele, com o chefe dos funcionários apenas um passo atrás, e inquiriu qual era a dúvida.

O fiscal apontou para uma pilha de cem votos do lado de Davenport na mesa e reclamou que aqueles votos deveriam ter sido creditados a Cartwright.

— Bem, só existe uma forma de verificar isso — disse o prefeito enquanto despejava os votos na mesa, com a multidão cantando em uníssono "um, dois, três..."

Nat sentiu-se embaraçado e comentou com Su Ling: — É melhor que ele tenha razão.

— Vinte e sete, vinte e oito... — Fletcher não disse nada quando Jimmy juntou-se à contagem.

— Trinta e nove, quarenta, quarenta e um... — E subitamente fez-se um silêncio: o fiscal estava certo, porque o quadragésimo segundo voto tinha uma cruz contra o nome de Cartwright. O prefeito, o chefe dos funcionários, Tom e Jimmy todos checaram o voto ofensivo e concordaram que um engano havia sido cometido, e, portanto, o resultado geral era um empate. Tom estava surpreso pela resposta imediata de Nat.

— Eu me pergunto como foi que o Dr. Renwick votou.

— Acho que você vai descobrir que ele se absteve — murmurou Tom.

O prefeito parecia exausto e concordou com seu chefe de gabinete que eles deviam pedir um recesso, para permitir que os escrutinadores e outros funcionários tiras sem uma hora de descanso antes da nova recontagem às duas horas. O prefeito convidou Fletcher e Nat para se juntarem a ele para o almoço, mas ambos os candidatos polida mente declinaram, não tendo intenção de sair do edifício ou mesmo se distanciarem uns poucos metros do centro da mesa, onde os votos estavam empilhados.

Mas o que acontecerá se o empate continuar? Nat ouviu o prefeito perguntar ao chefe dos funcionários enquanto eles caminhavam em direção à saída. Como não ouviu uma resposta, fez a Tom a mesma pergunta. Seu chefe de gabinete já tinha a cabeça enterrada no manual de eleições do estado de Connecticut.

 

 

 

Su Ling deslizou para fora do edifício e caminhou lentamente pelo corredor, permanecendo poucos passos atrás dos partidários do prefeito. Quando ela avistou BIBLIOTECA, impresso em letras douradas sobre uma porta de carvalho, parou num canto. Ficou feliz por descobrir que a porta não estava trancada e entrou depressa. Su Ling sentou-se atrás de uma grande prateleira, inclinou-se para trás e tentou relaxar pela primeira vez no dia.

— Você também? — disse uma voz.

Su Ling olhou para cima e viu Annie sentada no canto oposto. Ela sorriu.

— A escolha era mais uma hora naquela sala ou...

—... o almoço com o prefeito e futuras epístolas do apóstolo Paulo sobre as virtudes de Madison.

As duas riram.

— Eu gostaria que tudo tivesse sido decidido ontem à noite — disse Su Ling. — Agora um deles está destinado a passar o resto da vida se perguntando se deveria ter visitado outro shopping...

— Não acho que houvesse outro shopping — disse Annie.

— Ou escola, hospital, fábrica ou estação.

— Os dois deveriam ter concordado em governar por seis meses do ano cada um, e depois deixar o eleitorado decidir quem eles querem por mais quatro anos.

— Não acredito que isso pudesse resolver alguma coisa.

— Por que não? — perguntou Annie.

— Tenho a impressão de que isso vai ser o começo de muitas disputas entre eles, que não provarão nada até o confronto final.

— Talvez o problema para os eleitores seja o fato de eles serem tão parecidos que é impossível escolher entre os dois — sugeriu Annie, olhando cuidadosamente para Su Ling.

— Talvez seja porque não exista nada entre eles — disse Su Ling, retornando seu olhar fixo.

— Sim, minha mãe muitas vezes comenta que são tão parecidos sempre que estão na TV, e a coincidência de terem o mesmo grupo sanguíneo só aumenta essa sensação.

— Como matemática que sou, não acredito em tantas coincidências — disse Su Ling.

— É interessante você dizer isso — aventurou Annie — porque sempre que eu levanto o assunto com Fletcher ele simplesmente o desvia.

— Descobri! — disse Su Ling.

— Desconfio que se juntássemos tudo o que sabemos...

—... iríamos nos arrepender para o resto da vida, apenas.

— O que você quer dizer? — perguntou Annie.

— Apenas que se os dois decidiram não discutir o assunto até mesmo conosco, eles devem ter uma boa razão.

— Então você acha que deveríamos ficar caladas também?

Su Ling concordou. — Especialmente depois do que minha mãe passou...

— E minha sogra iria indubitavelmente passar também — insinuou Annie.

Su Ling sorriu e levantou-se da cadeira. Olhou diretamente para sua cunhada.

— Vamos esperar que eles não se candidatem a presidente, ou a verdade virá à baila.

Annie assentiu com um gesto de cabeça.

— Eu voltarei primeiro — disse Su Ling — e então ninguém vai perceber que esta conversa aconteceu.

— Você conseguiu comer alguma coisa? — perguntou Nat.

Su Ling não tinha de responder, pois seu marido estava distraído pela reaparição do prefeito trazendo um pedaço de papel na mão direita. Ele parecia mais relaxado do que da última vez em que desaparecera em direção ao seu escritório. Ao chegar ao centro da sala, o prefeito deu uma ordem imediata para que outra recontagem começasse.

O olhar satisfeito em seu rosto não era o resultado de uma boa comida e de um vinho ainda melhor; na verdade, o prefeito havia deixado de lado o almoço para telefonar ao Ministério da Justiça em Washington D.C. e procurar conselho no escritório do procurador-geral da União sobre como deveriam proceder na eventualidade de um empate.

Os escrutinadores eram, como sempre, meticulosos e minuciosos, e quarenta minutos depois apresentaram exatamente o mesmo resultado. Um empate.

O prefeito releu o fax do procurador-geral e, para descrédito de todos, chamou par a mais uma recontagem, a qual, trinta e quatro minutos mais tarde, confirmou o fechamento.

Assim que o chefe dos funcionários relatou isso aos seus representantes eleitos, o prefeito começou a caminhar até o palco, tendo pedido aos dois que se juntassem a ele. Fletcher encolheu os ombros quando seus olhos se cruzaram com os de Nat.

Tão ansiosos estavam os fiscais para descobrir o que havia sido decidido, que eles rapidamente ficaram de lado para permitir que os três homens passassem, como se Moisés houvesse colocado seu cajado nas águas de Madison.

O prefeito subiu na plataforma com os dois candidatos. Quando chegou ao púlpito, no meio do palco, os candidatos ocuparam os seus assentos — Fletcher à esquerda, Nat à direita — Como se a evidenciar suas posições políticas. O prefeito precisou esperar mais uns minutos para que o microfone voltasse ao seu lugar original, antes que pudesse se dirigir à audiência, que não diminuíra em tamanho, a despeito dos atrasos.

— Senhoras e senhores, durante a folga para o almoço eu aproveitei a oportunidade para telefonar ao Ministério da Justiça em Washington D.C., procurando seu conselho de como proceder no caso de um empate.

Essa declaração ocasionou um silêncio que até aquele instante não havia sido alcançado desde que as portas tinham se aberto às nove horas da manhã.

— E para essa finalidade — Continuou o prefeito — tenho aqui um fax, assinado pelo procurador-geral da União, confirmando o processo legal que agora deve acontecer.

Alguém tossiu, e no silêncio que acometera a todos soou como se o Vesúvio houvesse entrado em erupção.

O prefeito fez uma pausa por um instante antes de retornar ao fax do advogado geral: — Se, numa eleição para governador, qualquer dos candidatos vencer a contagem três vezes consecutivas, o candidato deve ser reconhecido como o vencedor, ainda que sua diferença majoritária seja pequena. Mas, caso a votação termine num empate pela terceira vez, então o resultado deve ser decidido — fez uma pausa, e desta vez ninguém tossiu — pelo arremessar de uma moeda.

A tensão se quebrou e todos começaram a falar ao mesmo tempo, à medida que tentavam alcançar o significado desta revelação, e se passou algum tempo até que o prefeito pudesse continuar.

O prefeito uma vez mais esperou pelo silêncio completo antes de tirar um dólar de prata do bolso do seu colete. Ele colocou a moeda sobre o polegar antes de olhar para os dois contendores, como se estivesse procurando sua aprovação. Os dois assentiram.

Um deles disse: "Cara", mas é que ele sempre dizia cara.

O prefeito sacudiu levemente a cabeça antes de projetar a moeda em movimentos espiralados para o ar. Todos os olhos seguiram aquela ascensão e sua descida ainda mais rápida antes que, finalmente, pulasse para cima e para baixo sobre o palco, acabando nos pés do prefeito. Todos os três homens olharam para baixo, para o trigésimo quinto presidente, que resolutamente devolveu seu olhar fixo.

O prefeito pegou a moeda e virou para encarar os dois candidatos. Ele sorriu para o homem que agora estava à sua direita e disse:

— Posso ser o primeiro a cumprimentá-lo, governador?

 

 

                                                                  Jeffrey Archer

 

 

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