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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS DO FIM DO MUNDO / Fábio M. Barreto
FILHOS DO FIM DO MUNDO / Fábio M. Barreto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

O resquício da forte tempestade ainda podia ser visto pelas janelas da delegacia quando o telefone tocou. As gotas caíam vagarosa­mente; a árvore de Natal iluminava o ambiente; quase ninguém de plantão. Ventava muito.

Os olhos da Plantonista de Emergência estavam paralisados. Arregalados. Aterrorizados. Resultado da mescla da preparação na Academia com a resposta aos gritos arrasadores do outro lado da linha. O identificador de chamadas mostrava a origem da ligação: o hospital local. Ela tentava falar, mas não conseguia. Simplesmen­te ficou muda e imóvel.

Outras ligações começam a preencher o painel virtual na tela do computador.

Em meio aos gritos da mulher que ligava, a Oficiala de Co­municação compreendeu a mensagem e não entendia como ainda não havia desmaiado ou passado mal por conta do estômago em­brulhado. A Enfermeira da maternidade gritava a plenos pulmões e repetia a mesma frase. Um mantra agourento e desconcertante até mesmo para uma piada de mau gosto.

O painel de ligações acendia ferozmente. Notando o cená­rio esquisito e o crescente volume de ligações tomando todos os telefones da delegacia, o Delegado de Plantão ficou perplexo com a postura de sua colega. Deixou sua sala e a cutucou. Ela arriscou lançar um olhar, mas continuou paralisada. Balbuciou alguma coi­sa ininteligível. Ele puxou o telefone de apoio para atender uma das linhas, mas seu telefone celular tocou no mesmo instante.

Casa. A foto de sua esposa e seu filho apareceu no monitor.

Segundos depois de atender, o terror tomou conta de seu semblante. Lágrimas molhavam a face que se contorcia em deses­pero. Sua mulher berrava. Ele tinha um filho, um garoto sorriden­te, gordinho e bonachão de nove meses de idade.

Tinha.

Sua mulher e a Enfermeira gritavam a mesma coisa.

Seu filho estava morto.

Todas as crianças da maternidade estavam mortas. Todas.

Atrás dele, o relógio marcava meia-noite e cinco minutos. A luz verde do calendário eletrônico brilhava com ar fúnebre. Eram os primeiros minutos do fim do mundo.

 

 

 

 

O som das sirenes, gritos e muita conversa acordaram o Repórter. Depois de três dias sem dormir direito por causa de uma grande cobertura no exterior, acordar no meio da madrugada era tudo que ele não queria.

A Esposa estava sentada a seu lado na cama e olhava pela janela. Perplexa.

Você está bem? Está na hora? - ele murmurou, tentando se mostrar alerta. Como se não bastasse o cansaço, a diferença de fuso horário também ajudava em seu estado de esgotamento. "Coi­sas da idade", ela sempre brincava. Ele levou a mão às costas da Esposa. Ou pelo menos tentou. Encontrou a mão delicada no meio do caminho.

Estou bem, não se preocupe. Só acordei assustada - disse, gesticulando na direção da janela e da rua em comoção. Ela acari­ciava a mão do marido.

Luzes coloridas intermitentes iluminavam o quarto. Ama­relo. Azul. Vermelho. Elas invadiam a suíte no segundo andar da casa e perdiam o brilho ao atravessar a cortina fina, normalmente suficiente para escurecer o ambiente, mas davam seu espetáculo contra a parede bege. As sombras dos bibelôs no topo da cômoda mais alta dançavam uniformemente, seguindo o ritmo das sirenes.

O que aconteceu? Algum acidente? - ele murmurou.

Parece que sim. A rua está cheia de gente e estou vendo cinco ambulâncias - respondeu.

Cinco?

-É.

Que horas são? - perguntou, levantando levemente a cabe­ça do travesseiro, lutando contra os olhos pregados.

Quase quatro horas.

Ele balbuciou algo ininteligível.

Ela não entendeu.

Ele repetiu.

Alguém ligou?

Ah, não - respondeu, olhando para a janela. O reflexo das luzes das ambulâncias mudava a cor de seu rosto constantemente, refletindo magicamente naqueles olhos claros, feitos de mel, ca­pazes de arrancar arrepios do marido a qualquer hora do dia. Ele teria achado o espetáculo lindo e ela ganharia um elogio merecido. Não naquele dia. Ele precisava descansar.

Então deixe outro cara cobrir esse. Vou d...

Não completou a frase, voltando a dormir no emaranhado de cobertas e travesseiros. Ela continuou acordada, imaginando o que teria acontecido com tantos vizinhos ao mesmo tempo, mas não saiu do quarto. Puxou uma escova do criado-mudo e penteou o cabelo castanho e liso. Preferia quando ele tocava seus cabelos, mas não o incomodaria e gostava da sensação; da calma. Preferiu ficar na cama. A noite era fria e não queria se arriscar. Todo cui­dado é pouco na reta final da gravidez e, mesmo que fosse só para ficar sentada à beira da cama, vestiu o casaco leve de sua camisola. O tecido era macio e refrescante, mas esquentaria o suficiente à medida que se acostumasse com a temperatura. Não queria errar, não agora. Faltava pouco, muito pouco. Ela sabia.

Todas as mães sabem.

Acariciou a barriga e sentiu um leve chute.

Só mais alguns dias, pensou. E sorriu. Imaginou o rostinho, se viu brincando num gramado num dia de Sol e só conseguia pen­sar em brinquedos e mais brinquedos. Ela e o marido passavam horas perdidos nesses sonhos, arquitetando dias perfeitos para a família perfeita, num mundo perfeito, onde até mesmo fraldas su­jas e fedorentas e noites maldormidas seriam igualmente perfeitas. "Nada pode ser ruim desde que estejamos juntos", ele sempre di­zia. Ela sabia e queria acreditar, ainda que tivesse noção de que isso nem sempre seria possível, especialmente por conta do trabalho do marido que, inevitavelmente, o afastaria da família em diversas ocasiões, levando-o ao redor do mundo e por muito tempo.

Olhou para o marido, que hibernava. Acreditava em seus planos e sabia que a perfeição era uma brincadeira interna, mas eles queriam viver intensamente e aproveitar ao máximo. E isso podia ser feito, com ou sem viagens.

- Pelo menos você não é médico, querido - brincou baixi­nho, enquanto dava um leve beijo em sua bochecha, e acariciou o cabelo curto.

O telefone tocou pouco depois.

 

Meia hora mais tarde, o Repórter estava dentro da redação na zona norte da cidade. Foi um dos últimos a chegar e encontrou toda a equipe mobilizada. Quase toda. Notou algumas ausências. Dificilmente as quarenta pessoas do plantei se reuniam na sede, muito menos às quatro e meia da madrugada. Os grupos de con­versas começaram a se dispersar quando o Diretor de Redação chegou e convocou todo mundo para a grande sala de conferência. O Diretor gostava de drama e mandou construir um anfiteatro no primeiro andar do edifício. As oitenta cadeiras garantiam ampla vista, e a acústica do lugar permitia que todos fossem ouvidos per­feitamente. Fotos de grandes jornalistas e imagens premiadas dos fotógrafos do jornal ocupavam as paredes. Sem exagero. Homenagens ancestrais a um mundo praticamente mitológico, no qual o papel era a única forma de registro e saber ler ainda fazia a dife­rença.

O Repórter gostava. Do lugar e da sensação. Mas... não desta vez.

Desculpe por te acordar, sei que precisava descansar - dis­se ao recebê-lo na entrada da sala. - Está sabendo de tudo?

Ouvi no rádio - pontuou, contendo um bocejo; os olhos vermelhos e a dor de cabeça completavam o quadro de esgota­mento. - Pelo menos cinco casos na minha rua. Alguém afetado... humm... diretamente aqui?

A voz já sóbria do Chefe ficou mais sentida; respirou fundo antes de responder:

Os gêmeos do Editor de Esportes.

Merda! - reagiu.

E o Chefe continuou a lista funesta:

Um dos colunistas de política e mais dois repórteres. Só faltam eles, todo o resto do pessoal veio. Vamos acabar logo com isso, entra aí.

E a sua neta? - perguntou o Repórter, visivelmente preo­cupado.

O Diretor fechou os olhos e respirou fundo novamente.

Ainda não sei, minha filha não atendeu o telefone. Não quero pensar nisso agora.

Minha esposa estudou com a vizinha dela, posso tentar ligar para eles se quiser.

Seria ótimo - disse o Chefe, sorrindo pela primeira vez durante aquela conversa.

Ah, só uma coisa, quem é o sujeito ali no canto? - pergun­tou o Repórter, ao ver um homem engravatado, de cabelo engo­mado e valise marrom; praticamente um alienígena observando, curioso, o ambiente repleto de jornalistas acordados fora de hora e vestidos com agasalhos, moletons e, claro, sempre um ou dois disfarçados de semáforos com as cores mais gritantes.

Já explico. Vai sentar - ordenou o Chefe, apontando para os assentos já ocupados pelos demais membros da equipe.

Ele conhecia aquele olhar e tom. Não eram boas notícias, mas, afinal, naquela noite, haveria mesmo algo capaz de soar mi­nimamente positivo? Precisaria trabalhar, mas só conseguia pen­sar na esposa... e no filho. Conter o pânico pelo simples fato de se imaginar naquela situação já era tarefa suficientemente difícil. Tudo estava bem.

Pelo menos, por enquanto.

O Diretor chamou a atenção da equipe com um toquinho no microfone aberto e começou o discurso, esforçando-se para ir direto ao ponto com precisão quase militar.

Como vocês já sabem, alguma coisa aconteceu com as crianças. As maternidades registraram o evento pouco depois da meia-noite. Até agora recebemos relatos de diversos estados e de pelo menos três países...

Cinco! - alguém gritou da platéia.

Cinco países. Obrigado. Logo, por mais absurdo que pa­reça, devemos encarar esse evento como algo possivelmente glo­bal. Pelo tamanho da escala e a natureza da tragédia, nossa função ainda vai mudar muito nessa história toda - informou, tentando manter contato visual com cada membro do time. Gente experien­te, alguns novatos, muitos amigos. Todos unidos pelo mesmo es­panto e o maior medo de qualquer jornalista: a completa falta de informação.

Cinqüenta anos de profissão e, embora ostentasse controle total, temia estar diante de algo incapaz de compreender ou co­brir corretamente. A carga pessoal era grande demais. Coorde­nar coberturas de tragédias pontuou sua carreira, mas nada dessa magnitude. Mesmo com suas preocupações pessoais, precisava ser profissional e cobrar a mesma postura dos funcionários. Ma­goaria algumas pessoas, sem dúvida. Talvez criasse alguns ícones ou até mesmo heróis. Tudo parte de um show que devia conti­nuar, e o pior ainda estava por vir. Era hora de colocar o plano em prática.

Vamos atacar todos os aspectos desse caso: O que acon­teceu? Como aconteceu? Onde aconteceu? Quais as condições clínicas das vítimas? Quero casos de todos os cantos, precisamos cruzar os dados para tentar desvendar essa desgraça. O mundo vai acordar diferente amanhã cedo e todo mundo vai querer respos­tas. Sejam elas boas ou ruins, é nosso dever transmiti-las com res­ponsabilidade. A maioria de nós está nesse jogo a tempo suficiente para saber que qualquer exagero pode causar pânico, que não há espaço para chutes e que, sem sombra de dúvida, vidas estão em jogo. Hoje, gostaria de lembrar a todos da minha primeira aula de jornalismo. Ouvi algo inesquecível, algo perfeito para o desafio à nossa frente: Nossa função é prestar um serviço à comunidade. E, nesse caso, o serviço é salvar vidas.

Abriu uma garrafa plástica, tomou um gole de água e limpou a garganta.

Familiares de alguns de vocês foram afetados pelo inciden­te, então, quero que comecem por eles. Descubram o possível sobre as circunstâncias. Cada detalhe será importante, tanto para nossa cobertura quanto para nosso próximo assunto. Como disse, nosso papel vai mudar e conto com o profissionalismo de vocês para efe­tuar essa transição da melhor maneira possível.

Vários soluços começaram a surgir na platéia. Homens e mulheres que, pelo semblante triste e castigado, choravam havia um bom tempo.

Os líderes de cada equipe especial vão dividir as funções, mas gostaria de deixar algumas coisas claras aqui. Se alguém não se sentir bem com o trabalho, peça para sair agora. Vou enten­der perfeitamente e, se quiser, retorne quando puder. Daqui para a frente, quem não for afetado diretamente por essa merda vai ficar no barco até o final. Entendidos?

Fez uma curta pausa, como se esperasse pelas pessoas levantando-se e abandonando o anfiteatro. Ninguém sequer titubeou.

Muito bem. Obrigado - continuou o Chefe. - Alguns avi­sos importantes: todo mundo de Esportes está imediatamente ane­xado à editoria de Saúde. A equipe de Cultura vai reforçar a polícia e a cobertura internacional.

Isso é um ultraje! - irrompeu o Editor de Cultura, um ho­menzarrão espalhafatoso, de voz alta, semicalvo, óculos coloridos e metido a diretor de cinema. - Esse evento vai criar um movimento sociocultural sem igual na história e é nossa obrigação registrá-lo e direcionar os rumos da cultura do país!

Nenhum filme vai sair nos próximos dias, então por que você não usa essa criatividade exagerada e ajuda a encontrar um cenário plausível em vez de ficar se preocupando com essa postura escrota? - rebateu o Diretor, sem paciência para os habituais surtos egocêntricos. O homem tentou contra-argumentar, mas foi ignora­do, dando ao Diretor a chance de realizar um sonho de longa data; o pavão cinematográfico enganava os outros membros da direção, mas não ele. - ...continuando a organização do serviço - enfatizou - que devemos prestar, o pessoal de Ciências também vai monito­rar qualquer mudança climática ou sísmica. Qualquer mudança deve ser informada diretamente a mim, imediatamente! Qualquer coisa. O pessoal de internet vai registrar e gravar TUDO - e sur­preendeu sua equipe ao quase gritar a palavra - sobre o assunto nas próximas três horas, depois vai se dissolver para ajudar as ou­tras equipes, especialmente a de Estatística, que será comandada pelo Editor de Economia.

Inevitavelmente, o Editor da versão on-line e coordenador dos cinco blogs da redação se manifestou:

Você pirou? A internet vai explodir com isso, já estamos lutando para bater a concorrência nas últimas horas e você quer dissolver a equipe? E bom fazer alguma coisa a respeito! Vai ser o maior erro da sua carreira! - bradou, ajeitando os óculos com o dedo indicador. As últimas duas horas e meia haviam sido dedica­das à organização da cobertura do incidente; ele suava como um jogador de futebol ao ser substituído depois de fazer dois gols na prorrogação e o time ainda estar perdendo.

O Diretor esperava pela indignação e, infelizmente, a decisão estava feita. Só não sabia se sentia alívio por ter finalmente tirado o peso das costas ou apreensão pelas conseqüências. Definitiva­mente, não gostava de interferência, entretanto, manter o foco era fundamental.

Calma, sem dar piti, porra! Não tem nenhuma criança aqui. Você está certo, mas temos uma missão, desvendar essa tra­gédia... ou, pelo menos, tentar ajudar a compreendê-la. Há alguém aqui que vocês precisam conhecer e espero que tudo faça sentido em instantes. O governo mandou um representante. Por favor... - gesticulou para que o Engravatado o acompanhasse no púlpito.

Sem cerimônia, o Diretor soltou a última bomba.

Vou ser direto, a versão on-line vai ser dissolvida por um simples fato: depois das oito horas de hoje, a internet não vai mais existir. Pelo menos temporariamente. E, por mais difícil que pare­ça, eu apoio a decisão.

Pelo amor de Deus! Ninguém pode fechar a internet!

Adiantando-se ao microfone, o Engravatado respondeu ti­midamente:

Hum, bem, nós podemos.

O comentário foi ignorado pelo Editor da versão on-line, que manteve o foco no Diretor.

Concordo com o escopo da tragédia, mas para que limitar todo o tráfego de informação se a coisa toda já aconteceu e, de uma forma ou de outra, todo mundo vai ficar sabendo?

Os colegas concordaram e se transformaram numa massa raivosa nas cadeiras, gritando e expressando indignação, apro­veitando o momento para liberar a frustração daquela noite. O Repórter permaneceu quieto; queria entender o cenário completo antes de abrir a boca. Em parte, movido por um sentimento de auto-preservação, oriundo do conhecimento histórico aprofundado sobre os embates entre governo e imprensa, e também pela con­fiança no Chefe, que não apoiaria algo tão ultrajante sem grandes razões.

Se tiver que fazer algo, que seja feito dentro do jogo, pensou, observando todos.

O Engravatado tomou o púlpito. Ajeitou a gravata apertada. Pigarreou.

Bom dia - disse o jovem burocrata, deixando a intro­missão anterior de lado e começando do zero. - Entendo toda essa indignação, de verdade. Mas, baseado em tudo o que foi co­mentado pelo Diretor e nas informações que vocês já possuem, me permitam uma rápida explicação. A interrupção da internet e minha presença constante aqui são fundamentais para o bem maior.

Bem maior é o caralho! - rosnou o Diagramador de Espor­tes. E um coro se juntou a ele.

Pega leve, cala essa boca e escuta! - devolveu o Diretor. - Isso aqui não é vestiário de estádio e nem a quinta série!

A piada arrancou algumas risadas, mas não aliviou o clima. O Engravatado continuou:

Um plano mundial de emergência será colocado em práti­ca a partir das oito horas de hoje. A internet será bloqueada com o corte dos satélites privados e controle restrito de todos os backbo­nes em operação. Também vamos reduzir a capacidade de trans­missão dos cabos de fibra óptica. Vai ser grosseiro e traumático, mas efetivo. Não há pretensão de censurar a informação. Nosso objetivo é simples: reduzir a velocidade da circulação. O rádio e a TV também serão afetados e só poderão transmitir conteúdo novo por três horas a cada dia; nos demais horários, transmitirão reprises dos boletins para reforçar as mensagens e as orientações para evitar pânico. A partir desse horário, os jornais e revistas im­pressos serão os únicos veículos de informação responsáveis por noticiar a população de forma mais aprofundada e completa. Duas edições serão lançadas por dia para facilitar o processo. E, podem acreditar, tudo será informado e noticiado. Tudo. Não sou um cen­sor e há outros como eu. Aliás, um por redação selecionada. Al­guns veículos terão acesso a tudo que for descoberto, incluindo vocês. Pensem em mim como um facilitador, não um inimigo.

Como assim plano mundial? - interpelou o Repórter, olhando fixamente para o Diretor. Ele já sabia o que estava aconte­cendo, mas queria confirmar a teoria. Não passou as últimas três noites em claro por nada. A cobertura sobre um grupo de "malu­cos" que se preparou para o fim do mundo com certeza lhe rende­ria prêmios e mais reconhecimento, mas, agora que eles não pare­ciam tão malucos assim, duvidava de qualquer futuro. A imagem dos personagens das reportagens rindo da cara dele foi inevitável. - A gente mal consegue manter esse planeta na linha, quem dirá ter tanta organização assim de uma hora para a outra.

Ninguém se manifestou. Eram as perguntas certas. Todos queriam respostas.

Pelo que sabemos até agora, esse fenômeno foi registra­do em todo o mundo. Não há mais recém-nascidos em nenhuma grande maternidade do planeta. Pelos relatórios iniciais, aparen­temente, todos morreram. E a internet só vai aumentar o pânico, especialmente se mais alguma coisa acontecer... e acreditem, as chances são boas - a voz do Engravatado era neutra; semi-robótica. - Não podemos permitir que a situação deteriore e a coisa já está feia o suficiente.

E podemos desrespeitar os direitos dos cidadãos assim, na maior? Desconsiderar a força da informação e da mobilização em massa por conta das redes sociais é retroceder socialmente, não? Casos em favor desse conceito não faltam! Vocês podem estar cometendo um erro gigantesco - emendou um dos redatores da primeira página. A maioria da platéia concordou imediatamente com sinais de apoio e algumas palmas esparsas.

Veja bem - respondeu o Engravatado. - Ninguém tem bola de cristal e o planejamento já começou a mudar antes mesmo do início da execução, então não adianta muito julgar nesse momento. Erros vão acontecer mesmo com toda a prevenção e os mecanis­mos de segurança que integram o plano de emergência.

Depois de se remoer na cadeira desde o início do debate, o Editor de Ciências não aguentou mais e se manifestou:

Então o governo sabia? E não fez nada, pô?! - A indignação era iminente. O sujeito perdeu dois sobrinhos no evento. - E agora tem a cara de pau de aparecer por aqui?

O Repórter aproveitou o gancho:

E você ainda não respondeu à minha pergunta sobre essa organização prévia.

Ninguém sabia de nada. O plano existia para uma contin­gência em caso de alguma maluquice acontecer nessa data. Funcio­nários do governo também têm filhos. E eles também morreram. - O tom permanecia imutável, logo, era impossível saber se ele mesmo havia passado pela provação do seja lá o que havia aconte­cido horas antes. - Acreditem, se qualquer um de vocês encontrar um bebê vivo, vai aliviar, e muito, a vida de muita gente.

O Diretor levou a mão ao peito, sem criar alarde. A neta mais nova tinha pouco menos de um ano de idade. Uma bebezinha gor­ducha e ranzinza. Olhou para seu telefone celular, nenhuma liga­ção. Até mesmo a esposa tinha parado de ligar a cada cinco minu­tos. O silêncio o assustava.

Sendo mais calculista que os demais, o Editor de Economia tratou de entender a sua parte nessa equação maluca que se cons­truía durante aquele debate:

Certo, supondo que tudo isso funcione, como os mercados vão operar a partir de amanhã? Noventa por cento das operações são baseadas no trânsito de informações e nas transferências inter-cambiais.

Pela primeira vez, o Engravatado demorou a responder. Consultou a pasta branca, digitou algo no tablet cor de chumbo e ajeitou os óculos antes de responder:

O sistema financeiro ficará congelado até segunda ordem. De acordo com a primeira fase do plano, um pequeno contingente de segurança já foi despachado para impedir a abertura das bolsas nas principais capitais. E, enquanto falamos, caixas de agências e unidades vinte e quatro horas estão sendo esvaziadas.

Pequeno quanto? E que história é essa de "primeira fase"? - completou o Repórter, já fechando o bloco de anotações e dando atenção ao pacote entregue por uma das secretárias do jornal a to­dos os presentes.

Muita coisa vai mudar do plano original, temos uma noção dos próximos passos, mas o que descobrirmos daqui por diante vai definir o rumo. E quanto à força de segurança, ela é muito peque­na se comparada aos efetivos militares que vão atuar ou ficar de prontidão para evitar tumulto ou pânico. Lembrem-se, tudo visa a prevenção. Cada um de vocês acabou de receber um detalhamento completo do plano e vou ficar aqui justamente para tirar dúvidas e facilitar a transmissão das informações oficiais. A primeira edição deve chegar às bancas em três horas.

Logo, vamos ao trabalho e aproveitem os telefones o quan­to puderem. As linhas serão cortadas quando o bloqueio de comu­nicação começar! Vamos para a rua conseguir essas entrevistas da forma mais direta. Teremos unidades via satélite para as equipes de campo. Vocês sabem o que fazer.

Ninguém se deu ao trabalho de discutir. Todos os jornalistas mergulharam nos diagramas e explicações de cada uma daquelas pastas.

A reunião terminou. Era hora de trabalhar. Porém, antes de pensar em ir até sua mesa, o Repórter foi chamado pelo Engrava­tado e o Chefe.

Deixe-me adivinhar, preciso pegar um avião de volta, cer­to? - antecipou.

Um... não, vários. Você vai fazer uma visitinha a todos os abrigos possíveis e descobrir se o mesmo aconteceu com eles. A maioria tinha isolamento hermético e biológico, certo?

Três deles, sim.

Pois bem, então já tem seu itinerário inicial. Descubra se isso impediu o fenômeno - disse o Diretor, como se desse a or­dem a um emissário desesperado na véspera da batalha em busca de uma arma milagrosa. - E volte o mais rápido possível, tenho a impressão de que o clima por aqui não vai ficar lá muito amistoso nos próximos dias.

Se for só isso, estamos no lucro. Mas vai ser difícil entrar, a maioria dos abrigos tem travas temporais, e preciso chamar um chaveiro até mesmo para abrir a gaveta de cuecas - tentou brincar. Era verdade, o contato seria virtualmente impossível por pelo me­nos cinco dias em alguns casos.

Isso pode ser resolvido. Temos muito interesse na sua in­vestigação - disse o homem do governo, já digitando algo no com­putador dentro da valise, devidamente aberta sobre o púlpito.

Quanto tempo tenho? E por quais sinais devo procurar? - perguntou enquanto fazia as contas mentalmente. A distância era grande entre cada um dos abrigos e sem comunicação adequada tudo ficaria mais complicado. Teria que bater na porta, literalmente.

Não tenho a menor idéia - respondeu o Engravatado, dan­do de ombros. - A única coisa que sabemos é da tragédia mundial; mais nenhuma ocorrência relevante na mesma escala, nenhuma seqüência de terremotos, nenhuma catástrofe física. Se esse é o fim do mundo, ninguém pensou nesse cenário e as conseqüências são totalmente incertas.

Quanta ajuda posso esperar do governo? - perguntou o Repórter.

A resposta foi lacônica:

Pouca - respondeu prontamente.

Não sei fazer mágica... - devolveu o Repórter, começando a duvidar da importância da missão. - ...e não sou espião ou algo do tipo.

Exceto pela liberação de voo para o jato particular do jor­nal e da sua comunicação conosco, até o momento, nenhuma ajuda oficial. Os voos comerciais também serão suspensos. Não quere­mos aviões despencando do céu caso algo afete os adultos também. Meu trabalho é abastecer vocês de informação. E só. Na verdade, você vai nos ajudar, não o contrário. Encontre informações e quem sabe o governo não decide lhe ajudar um pouco mais. Mas vou fazer o possível.

Vocês querem mesmo ficar esperando tanto por uma even­tual resposta? E onde está todo o interesse na minha investigação que você acabou de se gabar todo?

Ele apenas sorriu e balançou a cabeça, virando as costas para sair. Nesse momento, a Secretária do Diretor saiu correndo do elevador. O agasalho de ginástica valorizava suas curvas, mas era impossível não manter os olhos fixos naquele rosto. Ela estava apavorada. Trazia uma folha de papel com algo impresso.

O Diretor pegou o papel. Leu. Limpou a testa com a manga da camisa, sem se lembrar do lenço que continuou esquecido no bolso do paletó, e olhou para o Repórter.

É melhor você passar em casa antes e ficar um pouco com a sua Esposa - disse, entregando a informação. - Vai demorar um pouco para você voltar.

O coração do Repórter disparou momentaneamente confor­me sentiu uma ponta de desespero. Não encontrava nenhum con­solo no semblante do amigo, que lhe entregara o pequeno relatório.

Será mesmo o fim? - perguntou o Diretor, sem esperar res­posta de nenhum dos dois.

Ele terminou de ler o informativo e saiu correndo sem se despedir. Antes, passou pelo departamento de operações, furou a fila sem pensar duas vezes e pegou um de seus kits de campo, com dois telefones por satélite a mais do que o habitual.

Peça para o nosso amigo do governo garantir que isso tudo funcione. - Qualquer traço de amabilidade havia desaparecido de sua voz.

Ele precisava ser rápido.

De acordo com o relatório, agora nas mãos do Engravatado, diversos hospitais informavam que as crianças nascidas depois da meia-noite, tanto em parto normal quanto cesariana, nasceram mortas. Sem razão aparente. Simplesmente nasciam e perdiam a consciência.

Só conseguia pensar na Esposa e no Filho. Um arrepio esqui­sito subiu pela espinha. Não era hora de calafrios. Chegou ao carro e partiu a toda velocidade.

 

Parte da cidade ainda dormia sob o brilho pálido da ilumi­nação pública. A claridade do raiar do Sol começava a afastar a noite no Leste e, por instantes, tudo parecia estar bem. Um dese­jo inconsciente e irracional de transformar as últimas horas, e as notícias que elas trouxeram, num sonho desagradável. Ou numa simples piada de mau gosto. As árvores balançavam suavemente com a brisa repentina, mas continuava fazendo frio. O Repórter deixou ser levado pelos pensamentos a lugares melhores; conhecia o caminho e não era a primeira vez que dirigia no piloto automáti­co; o devaneio começou conforme reduzia a velocidade para fazer uma curva, virou o carro e foi abruptamente interrompido por um pedestre no meio da rua.

Imediatamente pensou ter avançado um farol vermelho. Não foi o caso. Freou instintivamente e ainda assim encostou o para-choque dianteiro na perna da mulher. Ela olhou com cara de desaprovação e rapidamente voltou sua atenção para o outro lado da rua. Ela não era a única ali. A via estava tomada por pessoas bem agasalhadas. Demorou a perceber onde estava. Era a igreja do bairro. Discreta e baixa; não ostentava o aspecto de templo mile­nar das grandes construções religiosas. Era motivo de orgulho dos moradores locais por ter sido construída com verba própria e pelas mãos dos párocos. A pedido da Esposa, e principalmente da Mãe, o Repórter ajudou na construção por longos oito meses. Carregou tijolos, bateu cimento e ajudou a pintar.

Reduziu mais ainda a velocidade, mas nem sequer pensou em parar o carro. Observou atentamente, na tentativa de encon­trar algum conhecido em meio à multidão. Cem, cento e cinqüen­ta, pessoas estavam por ali. Não tinha certeza. Notou muita gente chorando, especialmente mulheres. Mais pessoas se aproximavam e aumentavam o tamanho do grupo. O Padre estava no centro dos fiéis, conversava com as pessoas mais emocionadas e ficava sempre atento aos recém-chegados. Também percebeu a chegada do auto­móvel.

Com ou sem internet essa coisa vai se espalhar feito fogo em mato seco, pensou o Repórter, notando a aproximação do Padre. Nada de batina, apenas a tradicional gola social escondida pelo pe­sado casaco de couro marrom. O cabelo louro curto, barba por fazer e o rosto quadrado faziam sucesso entre as fiéis. Ele era jovem e respondeu ao chamado do sacerdócio depois da faculdade, onde estudou com o Repórter e a Esposa. Não se falavam muito desde o fim dos estudos, mas a fé da companheira era grande, e sempre respeitara a necessidade por conselho. Confiava nela.

Não confiava muito nele.

Quantos casos, Padre? - perguntou o Repórter, assim que baixou a janela do carro e pisou levemente no freio. Acenou com a cabeça ao cumprimentar o sacerdote.

Bom dia para você também, filho - amenizou o Padre, es­fregando as mãos para espantar o frio. O Repórter olhou de volta com impaciência. Odiava essa terminologia, especialmente vin­da de alguém com a mesma idade. Alguém com quem compar­tilhara farras e histórias na juventude. As pessoas o seguiram e, agora, prestavam atenção na conversa. Eles conheciam o Repórter e, muito mais do que fé, naquele momento, precisavam de respos­tas. Se alguém as tivesse, seria ele. - Doze crianças - finalmente respondeu.

Sinto muito - disse o jornalista, sem perder tempo com amenidades.

Ela está bem?

Sim, até agora tudo bem - respondeu, contendo o ímpeto de soltar um sonoro "não é da sua conta", mas tinha desistido de discutir havia muito tempo. - Vou me ausentar por alguns dias. Preciso investigar essa coisa toda. Ela confia em você. Então, se incomodaria de passar por lá de vez em quando para acalmá-la? Eu chamaria a irmã dela, mas não haverá aviões daqui a algumas horas - pediu, em voz baixa; muito baixa. - Não espalhe, ainda, por favor. O jornal, o rádio e a TV vão explicar tudo daqui a pouco. Não quero assustar ninguém com dados incompletos.

Isso elas já estão. O que os aviões têm a ver com uma tra­gédia no nosso hospital? Isso é caso de polícia! Alguém infectou aquelas crianças? Foi algum vírus? - indagou o Padre, com a voz claramente insegura. Ele estava com medo.

Infelizmente, a verdade é muito mais triste e ampla do que um mero caso local - disse o Repórter, segurando firme no volan­te e procurando um espaço menos movimentado para sair dali o mais rápido possível.

Quão grande? - perguntou o Padre, apertando as mãos mais em agonia do que em oração.

Procurando ser o mais discreto possível, e sem fazer contato visual, o Repórter respondeu:

Mundial... - arriscou uma olhadela para o Padre. - Mundial.

Um sinal da cruz vagaroso e incerto foi a resposta.

O Repórter surpreendeu-se com seu próprio tom desanimado:

Enfim, ligue a televisão em vinte minutos e fique de olho nos jornais. Peça ao pessoal que fique em casa o máximo possí­vel, ok? As coisas podem ficar um pouco conturbadas entre hoje e amanhã.

Farei isso. - O sentimento de preocupação era claro; há pouco, ele era um pároco confortando seus fiéis por uma tragédia local, mas agora não sabia mais o que pensar da situação. - Agora é hora de termos fé nessa provação do Senhor... - iniciou sua mini-pregação. Ao seu lado, pessoas davam as mãos e oravam. Muitas delas com lágrimas nos olhos.

Obrigado - interrompeu o Repórter. - Preciso ir.

Vá com Deus!

Acredite, você vai precisar mais dele aqui do que eu - res­pondeu fechando o vidro.

Pessoas tentavam fazer perguntas e se aglomeravam ao redor do carro à medida que ele começava a se movimentar, mas o Re­pórter não podia dar atenção a elas. Encontrou uma brecha no lado esquerdo da aglomeração e se moveu lentamente, empurrando as pessoas com a lataria prateada de seu carro. Buzinou duas vezes, assustou alguns desavisados e o caminho se abriu.

Viu algumas ambulâncias em disparada na pista oposta e não se deu ao trabalho de parar. Dois caminhões do Corpo de Bombeiros seguiram a mesma rota. Poucos carros estavam na rua, fato incomum para uma manhã de sexta-feira. Evitou pensar no assunto. Mais dois quarteirões e estaria em casa.

Pegou o telefone celular e achou que acordaria o Médico. Enganou-se. O homem estava na maternidade. Atendeu pensando em se tratar de mais um caso fatídico, mas não encontrou alívio na natureza preventiva da ligação.

Passou seu recado e recrutou mais uma presença amigável para deixá-la em boas mãos.

De longe, viu as luzes da sala de estar acesas. Ela esperava por ele.

 

Aquele abraço demorou muito mais do que o normal.

Sem se preocupar com a eventual dor causada pela força do marido, a Esposa simplesmente se agarrou ao Repórter como se fosse a última vez. Lágrimas percorriam o rosto. Ela ofegava; numa mistura dolorosa de alívio pela presença do marido com a incer­teza do destino do filho por conta da tragédia pela qual passavam.

Buscava soluções na fé e na lógica. Ambas eram sobrepos­tas pela sensação de incompetência e inutilidade perante algo tão inexplicável. Tentava se convencer de que o pior daquela chaga di­vina havia passado e que, em breve, boas notícias começariam a chegar. O Marido não precisaria viajar e tudo ficaria bem. Poderia voltar a pensar nas maravilhas, e provações, da maternidade.

Falhou em todas as tentativas.

O medo minou a fé, implodiu a lógica e aprisionou a esperança.

Sentiu o bebê chutar e sorriu em meio aos prantos.

Apertou mais ainda. Não queria que aquele momento aca­basse.

Ainda havia esperança.

Com um beijo em sua testa, o Repórter encerrou o abraço intenso.

Limpou o rosto com tristeza, ao secar a amálgama de emo­ções transformadas em lágrimas pelos dois. Um elixir de valor sen­timental inestimável e tão potente quanto a velocidade em se esvair com o frio da noite ou na malha da manga do suéter.

Quando explicou a seriedade da situação, mesmo contando absolutamente tudo, ela se acalmou gradativamente. Os sentimen­tos continuavam à flor da pele, mas a voz do marido a acalmava. Sempre. Por pior que as notícias soassem, o tom amável e, por ve­zes, professoral acariciava a angústia e a confortava.

As últimas frases fizeram o medo retornar. Sem choro. Ape­nas uma sensação de urgência e preocupação extrema.

Adoraria pedir para sua irmã vir ficar com você, mas não haverá tempo - explicava olhando diretamente nos olhos da Espo­sa. Precisava ser o mais direto possível para minimizar as preocu­pações enquanto estivesse fora. Era a válvula de escape, seu jeito de blindar as emoções. - Pedi ao Padre e ao Médico que viessem visitá-la sempre que possível, então, fique em casa o tempo todo. Os mantimentos podem durar mais de um mês, se for preciso. Mas volto muito antes disso - falou, tentando evitar alarme ou preocu­pações desproporcionais. De fato, pretendia estar de volta em dois ou três dias, no máximo.

As instruções eram longas e específicas. Ela estava acostu­mada e gozava de grande memória, logo, os minissermões funcio­navam conforme o planejado. Nem mesmo a gravidez afetou sua habilidade de registrar informações; pelo contrário, em vez de de­bilitar suas faculdades ou mesmo prejudicar suas funções motoras, a presença do bebê parecia ampliar a sua percepção.

Vou colocar a cama reserva no porão e, por segurança, gos­taria que você dormisse lá a qualquer sinal de perigo. Tranque tudo e nunca se esqueça de carregar consigo o telefone via satélite. Os telefones normais não vão funcionar e esse será o único jeito de nos falarmos, entendeu? - disse, entregando a ela uma maleta prateada com o equipamento.

Sim, claro.

O telefone celular emitiu um alerta sonoro. O Repórter leu a mensagem. Novidades da redação. Mais casos relatados. Todos recém-nascidos ou bebês com menos de um ano de idade.

Pobre Diretor.

Vamos ficar bem, tá? - disse, tentando transmitir confian­ça à Esposa.

Mas, e se ele nascer e... - olhou para baixo, incapaz de ter­minar a frase, sem coragem para verbalizar os pesadelos daquele desfecho fúnebre e, aparentemente, inevitável.

Vai ficar tudo bem - mentiu, também lutando para repelir o sentimento de desespero. - É por isso que vou visitar os abrigos.

O que aquele bando de malucos pode fazer pela gente? Você precisa mesmo ir? - Embora respeitasse imensamente o tra­balho e as decisões do marido, ela vivia um momento extrema­mente vulnerável. Ficar sozinha com o mundo prestes a entrar em uma espécie de colapso não lhe agradava nem um pouco.

Os abrigos que vou visitar foram isolados hermeticamente, meu amor! - explicou. - Então, se isso aconteceu por causa de alguma coisa no ar, pode ser que os bebês e crianças que estavam ali não tenham sofrido os efeitos. E vamos saber como salvar nosso filho.

Os olhos brilhavam. Era muito mais que a luz no fim do tú­nel. Era sua única chance de salvar a vida do filho.

E se ele nascer antes? Não vou agüentar passar por tudo isso sozinha. Não sem você... não sem você. - Era um pedido de socorro disfarçado de carência. A idéia do parto a assustava mes­mo antes da catástrofe. Perdeu as forças e sentou-se em sua cadei­ra de leitura. A luz interior começava a perder intensidade com a mudança de coloração da alvorada. O dia avançava como se nada tivesse acontecido e contra sua vontade, afinal, se dependesse dela, essa madrugada duraria para sempre até que alguém encontrasse uma solução.

Ele também sabia disso e precisava acelerar a partida. Quanto mais rápido decolasse, mais rápido poderia testar as hi­póteses.

Nisso, eu e ele precisamos da sua ajuda. Segure o máximo possível, combinado? - sorriu sinceramente pela primeira vez. Afi­nal, se ele não acreditasse naquela idéia, quem mais acreditaria? Nunca foi um bom mentiroso. - Acredite em mim, por favor. Esta­rei aqui quando chegar a hora. Prometo!

Ela concordou e o beijou.

Lembrou-se do primeiro beijo, doze anos antes; do carinho, da sensação de novidade, da emoção de tê-lo encontrado, final­mente. Ninguém no cinema prestava atenção neles. A tela exercia seu fascínio e, como de costume, despejava sua magia colorida na platéia hipnotizada, num transe imperceptível. Eles estavam imer­sos naquele cenário, mas logo sentiram algo diferente quando as mãos se tocaram. Pouco depois, as vozes e as imagens intermi­tentes transformaram-se em meros espectadores, vendo-se do ou­tro lado da mesa, apreciando algo tão belo e carinhoso. Único e imperceptível para o resto do mundo, a não ser para os dois. E as testemunhas desmemoriadas, mas eternamente iluminadas.

Uma lágrima solitária correu pela bochecha rosada, desapa­recendo ao fazer a curva em direção ao pescoço. O caminho per­maneceu. Brilhante.

O Repórter pegou a mochila de viagem e, como sempre, cutu­cou o nariz da Esposa com o dedo e abaixou-se para beijar sua barriga.

Amo você - disse, mas rapidamente se corrigiu: - Amo vocês.

Sorriu e abriu a porta.

Ouviu o som de folhas secas sob seus pés, mas não deu aten­ção. Nuvens estranhas e um vento gelado atraíram seu foco. Olhou para o céu antes de entrar no carro e, mesmo preocupado, não deixou de sorrir para a esposa. Nada bom. Especialmente quando o destino era o aeroporto.

Ligou o carro e saiu sem olhar para trás.

O Sol começava a iluminar o horizonte com o habitual azul-claro. Gostava das manhãs. Viu uma nova ambulância aceleran­do pelas vias e notou alguns moradores atordoados nas ruas. A bomba-relógio estava prestes a estourar, e ele não estaria por perto quando o tempo acabasse.

Tinha seus próprios problemas.

 

Alô! - falou o Repórter pelo telefone celular.

Não houve resposta. Faltavam quinze minutos para a inter­rupção das comunicações, de acordo com o plano emergencial.

Precisava tentar.

Alô! Mãe? - insistiu.

Oi, filho! - disse, numa voz baixa e doce. Rapidamente, preocupou-se. - Aconteceu alguma coisa? Ainda é muito cedo.

Sim, Mãe. Estamos bem por aqui, mas vou precisar via­jar novamente. Você vai ouvir muitas histórias esquisitas daqui a pouco. - Não sabia como contar a verdade sem parecer maluco ou alarmista. - E a maioria delas é verdade. Só quero dizer que esta­mos bem, tá?

Viajar para onde, filho? E por que me ligou tão cedo, você não é disso... - Eles podiam passar meses sem conversar, mas se conheciam muito bem. Ela sabia que algo muito ruim estava acon­tecendo pelo tom da voz de seu filho. - Alguém morreu?

Sempre brincavam com uma piada interna na família: as pessoas só se falavam ou se viam quando alguém morria. Era o jeito de honrar os mortos com um sorriso e uma oportunidade de se reunirem, mas a brincadeira nunca aplacava totalmente a oca­sião mórbida. Tragédias reuniam aquele grupo. Nem os batismos e nascimentos eram tão populares e efetivos nesse aspecto.

Sim, Mãe. Muita gente morreu. Ninguém da família, até onde eu saiba. Aconteceu algo com os bebês e estou tentando des­cobrir as causas. Quero salvar meu filho - sua voz era firme, mas levemente emocionada. - Os recém-nascidos morreram nesta noi­te, mãe.

Ela ficou em silêncio. A respiração ficou pesada, enquanto tomava coragem para falar.

Mãe?

As crianças... de... quem... morreram? Do seu primo? - per­guntou insegura, amedrontada e claramente fazendo um esforço para driblar, ao mesmo tempo, a desatenção do sono e o impacto da notícia.

O Repórter não havia pensado na família. Um primo pró­ximo acabara de se tornar pai havia pouco mais de dois meses. Gêmeos. Calafrios tomaram-lhe o corpo, seguidos por uma von­tade intensa de chorar. Pela lógica aplicada até o momento, eles estariam prestes a viver a pior manhã de suas vidas.

Não sei, Mãe! Mas provavelmente sim. Merda! - não se conteve. A coisa toda tinha acabado de se tornar pessoal. A pri­meira barreira caiu. Até aquele momento, foi possível encarar as coisas friamente. Tinha acontecido "com os outros". Alguns cole­gas de trabalho, gente na rua, os párocos. Mas não tão perto dele. Até então, tinha medo do futuro incerto do filho, entretanto ainda encarava a situação como medo projetado. E acreditava numa so­lução. Era sua missão. Não esperava por esse golpe. Como se seu subconsciente procurasse manter o foco, afastou o pensamento de membros da família. Quando se deu conta da tragédia, começou, imediatamente, a pensar nas demais crianças. As sobrinhas e so­brinhos, os primos distantes. E se lembrou da Irmã, cuja filha mais nova tinha pouco mais de um ano de idade. Quase perdeu o con­trole do carro e tirou um fino do guard-rail.

Xingou em voz alta. Automaticamente, sua mãe o repreen­deu.

Ficou em silêncio por alguns segundos até que a mente vol­tou a funcionar de maneira lógica.

Ela começou a falar algo, mas o pavor dele foi mais forte. Interrompeu a Mãe:

Mãe, acorde o Pai e se preparem para sair. Ligo de volta em cinco minutos.

Não deu tempo para despedidas ou réplicas. Desligou ime­diatamente. Precisava falar com a Irmã.

Deu o comando de voz para o telefone celular e aguardou. Dez minutos para o corte das comunicações.

No quinto toque, alguém atendeu. O Repórter pôde ouvir o aparelho despencando, batendo na mesa de cabeceira enquanto caía. Seja lá quem atendeu ainda bateu o telefone mais duas vezes antes de conseguir, de fato, responder à ligação.

Quem é, pô? - a voz masculina não estava nada feliz com o horário da ligação. Era o Cunhado.

Não vai dar para explicar nada para ele, pensou.

Sou eu! Preciso falar com minha Irmã, agora! Acorde ela! É urgente! - ordenou sem pestanejar. Se uma coisa era sabida na família a seu respeito era que não se devia brincar com ele quando falava assim. Segundos depois, ela atendeu.

O que aconteceu, Irmão? Não me diz que foi alguma coisa com a Mãe, pelo amor de Deus!

Ela sabia que eram más notícias. Entretanto, não fazia idéia de quão péssimas elas podiam ser.

Não temos muito tempo para falar, então escute com cal­ma e faça exatamente o que eu disser. Levante e vá até o quarto do Bebê. Por mais estranho que pareça, preciso que vocês a acordem. Faça isso por mim? Agora!

Odiava ser o emissário de notícias desse tipo, mas precisava saber. Ainda estava abalado pela aparente inevitabilidade da morte dos priminhos e não conseguiria fazer seu trabalho direito sem saber do destino da sobrinha. Precisava saber.

Ai, Irmão. Do que você está falando? Não me deixe deses­perada assim - tentou contra-argumentar. Ele não cederia.

Não temos tempo! Vá lá agora e leve o telefone com você! Explico tudo quando você chegar no quarto.

Conhecia a casa da Irmã. Ajudou a construir o lugar e cres­ceu ali. Não era uma construção muito antiga e, nem por isso, prá­tica. Longa, térrea e sem nenhuma faceta artística. Tudo quadrado e liso. Precisariam cruzar a sala de estar, a entrada do único ba­nheiro e a cozinha até chegarem ao quarto das crianças, que havia anos dividira com seus irmãos.

Ninguém falou nada enquanto o casal cruzava os vinte me­tros mais angustiantes de sua vida. Ouviu a porta sendo aberta. Tinham chegado.

Chegamos - disse a Irmã, apreensiva e ainda sem entender o que acontecia.

Agora acordem o Bebê - instruiu. Os minutos corriam; olhou para o relógio. Cinco minutos para a interrupção. Tempo suficiente para falar com eles.

Ao longe, ouviu a voz do Cunhado chamando pela filhinha.

Chamou uma vez.

Duas.

Três. E, a cada tentativa, o Repórter ficava mais desesperado. Os olhos lacrimejavam. Em parte pela perda, em parte por ter leva­do a Irmã diretamente à filha morta. Más notícias em tempo real. Odiava isso. Sua obstinação por saber a verdade, doa a quem doer, já havia machucado a família. E, agora, fazia de novo.

Na busca por alívio e esperança, encontrou mais dor e de­sespero. E, o pior, sujeitou a Irmã a uma experiência destruidora e traumática. Claro que ela passaria por isso, com ou sem sua ajuda, mas ter sido surpreendida e guiada até lá aumentaria a dose de tristeza. Ele precisava saber. Queria encontrar a própria salvação e encontrar razão para acreditar na salvação do filho.

Começava a chorar quando encontrou palavras para pedir perdão.

Deixou de ser espectador e compartilhava a dor.

A primeira lágrima percorria a bochecha quente enquanto uma mini-inundação se formava. Pensou em parar o carro, apro­veitando que mais uma ambulância se aproximava.

Desculpe-me, Irmã. Sinto... - começou a dizer, quando foi interrompido abruptamente.

Tá, ela acordou. E agora? O que eu faço? - disse a Irmã, irritada e ainda preocupada. No colo do esposo, a criança de olhos acinzentados sorria para o pai. Piscou algumas vezes enquanto buscava nova posição para dormir.

Ele não respondeu. O Repórter gargalhava alucinadamente do outro lado da linha. Parecia um maluco presenciando o melhor show humorístico da galáxia. Era alegria pura.

Não tem nada de engraçado! Agora deu para fazer piada com a gente de madrugada? Tá maluco? - sua irritação aumentou ainda mais, afinal, pensava ter sido vítima de uma pegadinha de mau gosto do irmão que morava em outra cidade, provavelmente bêbado e acometido por algum surto psicótico.

Ele se conteve. Precisava correr, mas encontrou forças para se controlar e responder.

Não é piada! - disse ainda rindo. - É motivo de felicidade, ela está viva! Está viva!

Ué, e não deveria? - sua voz estava perplexa.

Teoricamente, não. Milhares de recém-nascidos morreram na noite de hoje. Fique feliz!

O quê? Que história é essa? - perguntou, sem saber como reagir. Olhava para o marido e acariciava a filha, que voltou a dor­mir. Respirava de forma leve e angelical. Nada diferente.

Vocês saberão em breve. Mas fiquem felizes. Agora preciso ir, preciso ligar novamente para a Mãe. Corram no mercado agora cedo, comprem o que puderem de produtos não-perecíveis e não saiam de casa depois disso, ok? Pelo menos hoje. Vou mandar a Mãe e o Pai para aí.

Que papo maluco, Irmão! Não estou... - insistiu em conversar.

Não tenho tempo. Se cuidem. Falamos em alguns dias, es­tou chegando ao aeroporto. Boa sorte.

E desligou.

Ligou novamente para a mãe.

Oi, sou eu. Falei com minha Irmã e está tudo bem lá - disse sem perder tempo.

Graças a Deus! Glória a Deus! Obrigada, Jesus! - desembestou com a fé sempre exagerada. Nos cinco minutos em que ficou ansiosa pela ligação do filho, ligou a televisão e soube um pouco mais sobre a tragédia. - Deus não faria isso com a gente! Obrigada. - Ela sabia onde isso ia parar, mas insistiu mesmo assim. A resposta esperada veio.

Foi interrompida abruptamente:

Mãe, para com essa ladainha. Fique feliz pela realidade, sua neta está viva e bem. Agora pegue o Pai e vá até a casa dela. Leve o que tiver de comida, especialmente enlatados.

Filho, você precisa ter Deus no seu coração, Ele vai... - ten­tou novamente.

Mãe, não temos tempo para isso e, sinceramente, se Deus existe, na noite de hoje, Ele fez as matanças do Velho Testamento parecerem histórias de ninar! Poupar uma criança, por alguma ra­zão desconhecida, não livra a cara Dele por ter permitido a morte de todas as outras. E, se o meu filho morrer, você vai continuar agradecendo feito uma beata sem noção? Chega feliz desse jeito na frente do meu Primo pra ver o que acontece.

Dias depois, descobriria estar certo. Os gêmeos do Primo es­tavam mortos. Ninguém sabia. Todos dormiam. E ele não tinha coragem de telefonar. Que o destino cumpra seu papel e lhes dê for­ça, pensou.

Mas você não tem fé... - argumentou a Mãe debilmente. Fé e jornalismo nunca combinaram. A natureza antagônica da fé e do fato separa um jornalista de um devoto por quilômetros de distância. Acreditar sem provas, provar sem crença. Uma equação eterna e sem resposta.

Entretanto, naquela noite, a fé estava em franca desvantagem.

Precisamos acreditar n'Ele, meu filho. Deus vai... - disse, sem sinais de desistir.

Mãe, hoje é dia de passar a acreditar nas pessoas. Deus foi passear e, se esse é o fim do mundo, não foi como Ele escreveu.

Ela não respondeu. O sinal de ocupado tomou o aparelho. O bloqueio havia começado.

Não conseguiu se despedir. Não conseguiu dizer quanto a amava. Não pôde dar um alô ao pai, cuja fé era inabalável, mas contida e mais internalizada. Sentia e acreditava; sem, necessaria­mente, tentar impô-la.

Sentiu o pesar retornando ao seu coração. Odiava desligar sem declarar seu amor eterno aos pais. Nunca se sabe quando é a última vez; nunca esperamos pelo pior.

Teria tempo, não fosse a desnecessária discussão religiosa. Teria tempo, não fosse por Ele. Sempre Ele, cuja simples menção impedia as pessoas de realmente se amarem. Defendê-Lo, atacá-Lo, justificá-Lo, idolatrá-Lo sempre sobrepunha o amor ao próximo. A simplicidade e obviedade da realidade, normalmente dura o sufi­ciente para justificar a existência de uma explicação mais grandio­sa e etérea. Religião e amor não combinavam. Mas, pelo jeito, só ele acreditava nisso.

A manhã chegara. O céu estava claro. A entrada privada do aeroporto se aproximava. Passou pela guarita de segurança rapi­damente e, em poucos minutos, chegou à escada do avião. O piloto conversava com um sujeito desconhecido. Claramente militar. Ao mesmo tempo, era impossível não notar a nova aeronave. O Learjet habitual havia sido substituído. Dotado de desenho mais orgânico e aerodinâmico, o jato grafite tinha armamento leve - aparentemente - e duas turbinas com exaustores retangulares e alongados anexados à parte traseira da aeronave. As asas estavam recolhidas e coladas no eixo central. Ficou curioso, pois nunca havia visto design semelhante. E aviões eram seu hobby desde a infância. Pare­cia com a lâmina de uma adaga enegrecida; logo, decidiu batizá-lo como tal.

Parecia tudo pronto para a decolagem, inclusive notou que a aeronave estava posicionada no início da pista e não havia sinal de nenhuma outra na área. Eles tinham prioridade máxima.

Capitão - saudou o Repórter. - Brinquedinho novo?

Querem que a gente chegue bem rápido desta vez - disse o aviador e logo olhou para o outro passageiro, um negro careca, forte e que aparentava uns 50 e poucos anos de idade. - Ele vai nos acompanhar a pedido dos militares.

Tudo bem, já imaginava - respondeu o Repórter, enquanto avaliava o novo colega de trabalho. - Coronel! - cumprimentou, enquanto prestava continência. Sua experiência de campo era res­ponsável por sua familiaridade com patentes e protocolos milita­res, assim como ajudava a não se ver intimidado pelo jeito duro dos homens de farda.

Muito prazer. Disseram que precisa de alguém para abrir algumas portas. Aqui estou - devolveu a saudação.

Achei que não teria ajuda nenhuma - disse o jornalista, passando sua mochila para o Copiloto, que a lançou para dentro da aeronave.

Mudança de planos. Parece que as últimas notícias deixa­ram o Comando mais preocupado.

Senhores, se não se importam, temos um longo caminho pela frente e vocês podem tricotar o quanto quiserem lá dentro. Podemos? - sugeriu o Capitão, apontando para a entrada da ae­ronave. Logo, o trio estava dentro do jato militar. O Co-piloto já estava a postos na cabine de comando e checou os últimos sistemas antes de acionar o motor do avião quando viu o Capitão recolher a escada de acesso.

As duas turbinas poderosas queimaram a toda com suas chamas primordialmente vermelhas, mas, depois, ganharam tona­lidade azulada. Em vez de um som ensurdecedor, por conta da po­tência e do tamanho, os motores se comportavam bem e emitiam uma versão mais forte do ruído habitual de um grande maçarico.

Em poucos minutos, estavam no ar e, pelo que podia sen­tir do empuxo provocado pela aceleração, em velocidade máxima. Sentiu as mesmas reações das duas vezes em que pilotou um jato de combate. Pelo menos dessa vez a poltrona é mais confortável.

Duas horas para a primeira parada, senhores - avisou o Capitão, pelo alto-falante. Estivesse em seu avião habitual, ele teria apenas aberto a porta e transmitido a informação, mas a pressão era intensa e, assim como ele, a tripulação tinha famílias e sabia o que estava acontecendo. Ninguém queria brincar em serviço.

O Coronel adormeceu instantaneamente na poltrona.

Para espanto do Repórter, o avião era extremamente con­fortável. Podia jurar que estava na primeira classe de uma grande companhia comercial, mas sabia se tratar de um veículo usado por dignitários de alto escalão das Forças Armadas. Era praticamen­te um caça de longo alcance, em termos de motor, teoria reforçada pela existência de dois volumes curiosos onde a base da asa se encontrava com o corpo da aeronave. Provavelmente tanques de combustível sobressalentes. Ou algum ingrediente secreto para incrementar a mistura comburente e aumentar a velocidade? Não sabia a resposta, mas, normalmente, esse trajeto demoraria cinco horas e meia. Disso ele entendia. Voltara de lá havia menos de treze horas.

Pensando nisso, resolveu fazer uma visitinha à cabine de comando.

Para seu deslumbre, e alívio, encontrou um sistema de con­trole com interface totalmente virtual, com painéis projetados à frente dos pilotos. O Co-piloto também era militar e, claramente, tinha experiência com o equipamento. Orientava o Capitão sobre as funcionalidades, que incluíam consumo de combustível, radar, altímetro e os demais elementos fundamentais para a operação. Um terceiro oficial de voo estava presente, mas optou por ignorá-lo por completo. O Repórter não ligou e, rapidamente, percebeu uma interface nova ao lado direito do Co-piloto.

Controles de defesa? - perguntou, tentando se aproximar da maravilha tecnológica. - Vi as armas lá fora. Tem mais algu­ma coisa além dos dois mísseis e daquela metralhadora abaixo da cabine?

Observação era tudo em sua profissão. E ele era bom nisso. Um dos melhores.

O militar hesitou por um segundo.

Aquela... - e fez uma pausa - aquela metralhadora dispara projéteis explosivos e também pode desabilitar uma aeronave ini­miga com algo que você chamaria de pulso eletromagnético. Bom, não é exatamente isso, mas o resultado final é o mesmo.

Os olhos do Repórter brilharam. Tentara fazer uma reporta­gem sobre novas tecnologias da Força Aérea dois anos antes e tinha sido barrado de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Bem, al­gumas inimagináveis, pois em alguns casos, os entrevistados eram retirados de circulação antes de ele sequer tentar contato. Quem se dispunha a falar apresentava os mesmos aperfeiçoamentos de sempre, mas nada inovador, aquela maravilha. O último grande avanço armamentista aeronáutico acontecera vinte anos atrás. Es­tava na hora do próximo salto tecnológico. E estava voando nele naquele momento.

E aquele mapa pequeno no canto direito? - apontou. Um quadrado verde com diversos traços vermelhos parecia acompa­nhar o radar central do avião com grande detalhe, mas em outra função.

Ah, pessoalmente, é minha função favorita. Navegação de emergência - explicou o Copiloto, ampliando a tela no monitor vir­tual principal. - Ele carrega automaticamente as rotas alternativas pré-autorizadas e liberadas ao longo de nosso trajeto, independen­temente de onde estejamos. O computador pode acionar qualquer uma delas em risco de colisão, caso algo aconteça conosco. Ou eu mesmo posso fazer isso com um simples toque - exemplificou.

Faz cappuccino também? - descontraiu o Repórter.

Não, mas isso tem lá atrás, na área de passageiros - disse o Co-piloto com um sorriso, sugerindo que ele se retirasse. Cla­ramente, não gostava de ficar exibindo o brinquedo novo a mais gente do que o necessário.

O Repórter ficou curioso sobre as habilidades misteriosas que o militar, com certeza, não havia revelado. Deixou a imagina­ção voar longe e, por um instante, pensou que a aeronave pudesse até mesmo ser abastecida por um pequeno motor nuclear. Tantas possibilidades, tanta tecnologia. Tão perto e sem autorização para sequer perguntar a respeito. Ossos do ofício.

De uma coisa tinha certeza. As respostas começariam a sur­gir antes do esperado.

Por um lado, ótimo. Assim que chegasse, saberia o que fazer e poderia voltar logo para casa. Para a Esposa. Para o Filho. Por outro, o mais temido, confrontaria a verdade. Havia esperança. A sobrinha estava viva e não fora afetada por seja lá o que tenha acontecido.

Adormeceu perdido num mundo comandado por deva­neios. Lembrou-se da Esposa, tentou imaginar o rosto do Filho, com medo de perder todos; tentava encontrar algum sentido para esse mundo repleto de morte e tragédia. Insegurança... saudade... sonhos menos assustadores do que a noite de pesadelos reais da qual fugia enquanto a alvorada perseguia a aeronave.

 

As primeiras edições especiais dos jornais chegaram às ban­cas com atraso. O anúncio matinal feito pela TV foi incapaz de difundir as notícias de forma efetiva. As rádios transmitiam bo­letins fixos num ciclo interminável, mas muitos motoristas eram surpreendidos quando já era tarde demais. O caos matinal no trânsito é inexorável. Naquele dia, foi muito pior. Pessoas deses­peradas tentaram voltar para casa por causa do susto e, inevitavel­mente, provocaram acidentes com conversões proibidas e dispa­rates pela contramão. Muitos simplesmente largaram os veículos nas avenidas congestionadas. Tudo só aumentava a dificuldade de locomoção dos automóveis. Por mais que os motoristas tentassem e soubessem da importância de sua carga naquele dia, os grandes caminhões de entrega dos jornais pouco podiam fazer a não ser esperar.

Durante a vigília, eles acompanhavam a carga ensandecida das ambulâncias, que não pararam de trabalhar desde a fatídica meia-noite. Mesmo elas só conseguiam furar o bloqueio com es­colta policial e, em muitas vezes, fazendo peripécias ao volante para encontrar espaços, às vezes minimamente suficientes para a travessia. Quando tudo isso falhava, a única opção era forçar a pas­sagem a qualquer custo. As laterais dos veículos eram testemunhas desse esforço, com arranhões extensos e profundos. Um dos mo­toristas dos transportes torcia para que, em alguma daquelas am­bulâncias, houvesse vida, algum sinal de esperança para encerrar essa maré negra, e teve uma idéia. Rapidamente acionou seu rádio e chamou a base de operações.

Demorou, mas viaturas e motos da polícia começaram a lo­calizar cada um dos caminhões espalhados pela cidade e abriram caminho em meio ao congestionamento. O tamanho dos cami­nhões e a potência dos motores turbinados foram rapidamente transformados em vantagem. Avançavam de forma lenta, empur­rando tudo à frente, mas era melhor do que ficar lá esperando.

A população não tinha essa opção.

Ávida por mais informações e despreparada para o amanhe­cer sem comunicação, boa parte da cidade procurava saídas para esse estranho cenário. Telefones mudos, televisores mostrando as mesmas reportagens da hora anterior, intercaladas com uma men­sagem de texto, contra um fundo musical tranqüilo: MANTENHA A CALMA! Filas se formavam em frente a supermercados, quitan­das e quaisquer estabelecimentos que fornecessem comida e água. Os maiores pontos de abastecimento amanheceram com proteção policial cuja organização surpreendeu os clientes. Pela primeira vez em séculos, dinheiro não valia mais nada. As equipes de se­gurança pediam paciência e falavam em distribuição de provisões.

Bancos fechados. Clientes revoltados. Exército na porta. Armas a tiracolo. Nada de gritos ou agressões. O megafone anunciava a in­terrupção das atividades e dava conta dos acontecimentos da madru­gada, mas sem o nível de detalhamento transmitido aos veículos de comunicação horas antes. Quem não sabia da tragédia perdia a ação; muitos perdiam a direção, outros reagiam agressivamente por puro desespero. Eram contidos por soldados com as mesmas lágrimas nos olhos, travando conversas que eram desprovidas de palavras. O ódio e a raiva eram recebidos pela compaixão de quem havia passado pela mesma catástrofe pessoal havia pouco. Lágrimas voltavam a correr de ambos os lados e, logo, a separação se dissipava, transformando protetores e protegidos num grande grupo tomado pela tristeza.

Permaneceram em silêncio por algum tempo, até que as pri­meiras conversas começaram e não demorou muito para que as teorias absurdas começassem a surgir.

Foram os terroristas! - disse uma mulher, encontrando apoio de todas as integrantes de um pequeno grupo de moradoras.

Aqueles cretinos querem acabar com a gente! Eles explodiram as torres de telefone também, foram eles! - defendia, mesmo com a garantia dos militares de que o corte nas comunicações foi propo­sital e não se sabia de nenhum ataque terrorista.

Alguém protestou:

Eu pago pelo meu telefone e vocês não têm o direito de tirá-lo de mim! Isso é inconstitucional! Tenho meus direitos!

O Comandante deu de ombros.

Que nada! Isso é coisa do governo! Algum experimento deu errado e ninguém conta a verdade! Fizeram merda e quem paga o pato somos nós! - bradou um sujeito de cabelos brancos, que ainda chorava e não tinha condição de dirigir, portanto, optou por perambular pela vizinhança. Desnorteado. Perdera o primeiro neto, nascido havia algumas semanas. Não agüentava olhar para o rosto da filha.

No ponto de ônibus ao lado da agência bancária, cujo es­tacionamento havia se transformado em assembléia pública, um grupo de senhoras e dois homens rezavam.

É o Apocalipse! - comentou uma delas em voz mais alta.

As crianças foram arrebatadas e os fiéis serão os próximos! Pre­cisamos ter fé! Deus escolheu nossa cidade para mostrar ao mundo que Jesus vai voltar! Somos abençoados!

Abençoados, sua velha maluca?! Meu neto morreu e você fala em bênção? Vem aqui que vou lhe mostrar uma bênção do tamanho do meu punho - disse o velho, novamente contido pe­los soldados. Ele bufava e tentava investir contra a beata que, ago­ra, sem se importar com os insultos, voltou a se ajoelhar e a re­zar. Extraterrestres, arma biológica, ataque de criaturas de outra dimensão, explosões solares, vazamento nuclear, ira divina, feiti­ços do mal, bruxaria, poluição, veneno no ar... valia tudo. E mais vozes começaram a se exaltar.

O Comandante local antecipou os problemas quando os primeiros jornais chegaram. Sabiam que era um acontecimento mundial, o que levou os beatos a um novo estado de oração pela inevitabilidade do arrebatamento profetizado pelo Apocalipse; o extremismo foi alimentado pela ausência de uma teoria do governo, que concentrava o discurso na promessa de organização e na busca pela solução. Distante das negativas habituais, compartilha­va do espanto e do pesar dos cidadãos. Nem mesmo empurrava a culpa para algum inimigo distante ou implausível. Tudo o que se sabia estava impresso naquelas páginas: estimativas de mortos, primeiros casos, depoimentos de médicos perplexos com ultrassonografias perfeitas segundos antes do nascimento, histórias tristes e emocionantes de pais e mães descobrindo seus rebentos inanimados. Páginas e mais páginas de tragédias.

De forma silenciosa e gradativa, os efeitos da confirmação da desgraça e da completa ausência de informação sobre as causas foram sentidos como os de uma bomba aniquiladora, sorrateira e instantânea. Como reagir a algo tão definitivo? Não sabia a respos­ta. As vozes se calaram, pois teriam significado contraditório ou irracional. Perderam a razão. Só as dúvidas permaneciam, mas não havia nada a ser feito.

Pelo menos, por enquanto.

Tirando proveito da situação, os militares mudaram a men­sagem do alto-falante e, agora, pediam para que as pessoas voltas­sem para suas casas e procurassem notícias dos familiares. Tam­bém leram algumas instruções transmitidas pelas folhas ainda úmidas do Diário.

- Evitem pegar seus automóveis! Se puderem caminhar até seus parentes, façam isso. O metrô é uma opção boa e não vai pa­rar de funcionar! Fiquem atentos à televisão, ao rádio e aos jornais. Tudo será informado!

A nova gravação foi tocada até que o último transeunte deixou a esquina, agora entregue à vigília do blindado, dos sol­dados e da árvore. O gramado estava destruído pela agitação da multidão. Destruído e sem cor. O habitual verde brilhoso dava lugar a uma maçaroca opaca e levemente amarelada. Um dos soldados olhou para a grama, mas logo perdeu o interesse. Virou de costas e perdeu a ação quando viu pela janela da agência ban­cária - anteriormente bloqueada pelos moradores - a existência de um aquário gigante; as bolhas ainda subiam pelo motor de oxigenação, mas, a princípio, não viu nenhum peixe. Vasculhou os corais e as rochas que decoravam o habitat e, por fim, en­controu os ocupantes. Todos boiando na superfície. Barriga para cima. Movendo-se conforme os movimentos provocados pelo oxigenador.

Mortos.

Comandante! - gritou. - O senhor precisa ver isso, rápido!

 

Diretor - chamou a Secretária em voz branda, enquanto tentava balançar o Chefe, que dormia pela primeira vez desde o início do plantão. - Diretor!

O homem não se movia. Abatido pela carga emocional da confirmação da morte de neta e do tanto que trabalhou como for­ma de compensar a tristeza, lembrava muito um urso em hiberna­ção com sua camisa completamente aberta, barrigão peludo expos­to e lábios entreabertos, enquanto desfalecia no divã do escritório.

Diretor! - falou mais alto e, desta vez, realmente chacoa­lhou o sujeito. Lentamente, ele despertou e, quando se deu conta de sua compostura, pulou para um estado de alerta imediato, já abotoando a camisa e tentando se recompor. A Secretária nunca o acordara durante os plantões, mas viviam um dia repleto de exce­ções e emergências.

O que foi desta vez? - perguntou, bocejando.

É o Editor de Ciências. É importante - disse, gesticulando para o sujeito que já metia meio corpo porta adentro.

Desculpe-me por acordá-lo.

Não, tudo bem - disse. - Tudo bem. Já vi que não vou ter paz nenhuma daqui pra frente.

E tentou sorrir com simpatia. Não conseguiu. Não havia ra­zão e todos ali sabiam.

Sou todo ouvidos - declarou o Diretor, mesmo sem se le­vantar de seu confortável divã escarlate acolchoado.

É pior do que pensávamos - falou, enquanto entregava uma pequena pasta de papel pardo.

Que novidade! - disse com sarcasmo e mau humor. - Cem por cento confirmado? - perguntou. Avaliava o conteúdo daquelas três folhas com interesse, mas sem surpresa. Tinha esgotado a cota de surpresas para o resto da vida.

Sim. Todos os laboratórios chegaram à mesma conclusão. Sem exceções entre espécies. Há peixes mortos por toda parte, mui­ta gente dos subúrbios acordou com dezenas de pássaros mortos nos quintais e o dono do apiário local quase agrediu o Delegado.

Por quê?

Ele queria que a polícia parasse de executar o plano do go­verno e fosse prender os concorrentes por sabotagem industrial. O sujeito diz que as abelhas dele foram envenenadas da noite para o dia e só as muito velhas para produzir não foram afetadas. Aquela paranóia toda de espionagem industrial.

Abelhas? Tanta coisa acontecendo e o cidadão preocupado com abelhas? Faça-me o favor! Qual vai ser a próxima? Alguém surtando porque comprou um papagaio e ele resolveu não falar nada? - revoltou-se por um segundo, mas sem mudar o foco da conversa. - Então, os insetos também entraram na dança?

É o que os relatórios preliminares indicam. Boa parte das colônias dele morreu, ou seja, as abelhas mais novas foram afeta­das diretamente - respondeu o Editor, ignorando a retórica ran­zinza do Chefe.

Humm - resmungou, fechando a pasta. - E os mamíferos?

Só conseguimos confirmar com o Zoológico local e com os das cidades vizinhas. Eles perderam filhotes de diversas espécies, incluindo três chimpanzés que nasceram neste ano.

Só neste ano?

O Editor de Ciências não respondeu. Trocaram olhares fi­xamente enquanto as mentes trabalhavam de maneira voraz para confirmar a conclusão assustadora à qual chegaram por instinto. O resultado da equação sugeria algo mórbido demais mesmo para dois veteranos. O cenário se complicava com velocidade assustadora. A cada nova informação, teorias caíam por terra, a lógica deixava de existir e nem mesmo as probabilidades científicas se aplicavam.

Sem nenhuma explicação, o Diretor acionou seu comu­nicador geral. Todos os funcionários do prédio podiam ouvir os anúncios do Chefe. Ele preferia assim a ficar perdendo tempo com e-mails ou mesmo memorandos que nunca eram lidos na íntegra. A equipe sabia que era ele quem falava e o sistema funcionava. Nada de aumentar a burocracia.

O sistema mostrou uma pequena luz verde no painel que in­dicava total funcionamento.

Chefes de equipe, venham aqui agora e tragam as equipes de Ciência e Economia.

Desligou.

Em um pequeno bloco de notas, o Editor de Ciências já ra­biscava cálculos de forma compulsiva. Metade eram rabiscos de contas frustradas, mas, quando entendeu a dinâmica correta, ob­teve o resultado com grande velocidade. Segundos após o anúncio do Chefe, ele já tinha algo a dizer. O veterano percebeu.

E então? - questionou, tamborilando os dedos na mesa de mogno escuro.

É, faz todo sentido - disse, pensando em voz alta e sem olhar para o Diretor. Não escutou a pergunta.

Consegue explicar? - ele sabia, mas queria ouvir algo além de suas próprias conjecturas.

Basicamente, usando apenas os dados que recolhemos nas primeiras horas e informações dos casos que envolveram pessoas aqui do Jornal, do Zoológico e desse da história das abelhas, a cro­nologia se encaixa. O último ano é a chave, ou melhor, os últimos 365 dias - argumentou o Editor, tentando encontrar lógica em suas idéias sem se perder em devaneios sobre o que podia, ou não, ter acontecido.

Um ano? Sério? Parece arbitrário demais.

Pelo jeito, é. Claro, se considerarmos o calendário com iní­cio em 21 de dezembro do ano passado e final ontem, ou seja, um ano depois. O ciclo de vida das abelhas é relativamente longo, mas a taxa de reposição é bastante alta, logo, se as cansadas, como o sujeito disse, sobreviveram, pode significar que apenas as mais jo­vens bateram as botinhas. Boa parte das espécies de peixe também passou pelo mesmo quadro, já que faz pouco mais de quatro meses que encerramos a última temporada de reprodução, que, pelo jeito, foi perdida. E olhando aqui as datas de nascimento das crianças mais velhas que foram afetadas... todas nasceram há menos de um ano. Um dos chimpanzés tinha acabado de completar dez meses. Semana passada fizemos uma matéria sobre a ampliação da ala especial do Zoológico para acomodá-lo e mais dois que nasceram há três meses e meio - explicou, checando seus rascunhos grosseiros novamente.

Alguma idéia da razão? - indagou o Diretor.

Se fossem só os mamíferos, até poderia pensar num relógio biológico escondido no DNA, mas, com insetos... com peixes en­volvidos - elucubrou, buscando uma teoria sensata. - Acredito que com essa história dos pássaros, não há ligação genética. Se estamos vivos, significa que o ar está fora da lista de vilões, e peixes retiram oxigênio da água, logo, não teriam sido afetados tão rapidamente por um acontecimento atmosférico.

Alguma similaridade com aquelas mortes em massa de pássaros há dois anos?

O cenário é o mesmo, mas aquele caso foi localizado e só duas cidades foram afetadas.

E ninguém encontrou explicação plausível, certo?

Tirando as teorias dos fogos de artifício, do pulso eletro­magnético e a possível oscilação atmosférica na região? Não! - ar­riscou um sorriso ao se lembrar das justificativas fantasiosas da época, - Os peixes também morreram naquele período, mas ali foi caso de contaminação específica numa espécie.

Mas partindo do ponto que toda a vida no planeta compar­tilha dos mesmos elementos, pode ser algo biológico?

Como já disse, fica difícil afirmar sem mais dados - res­pondeu coçando a cabeça -, mas, levando em consideração esse cenário, sim. Algum gatilho simultâneo envolvendo diversas for­mas de vida.

Tem certeza sobre as crianças?

Faz sentido e se encaixa no quadro.

Contaminação similar à dos peixes?

Não sei.

Algum caso de que você se lembre, só para termos base para o contra-argumento?

O Editor não queria tocar no assunto. Todos viram o es­tado do Diretor depois que ele voltou da casa da filha, nas pri­meiras horas da manhã, e descobriu que a neta estava morta.

Ninguém entendeu como ele encontrou forças, e disposição, para voltar ao trabalho. Muitos que passaram pela mesma experiên­cia, mesmo que não fossem seus próprios filhos, simplesmente desapareceram.

Ninguém seria julgado por isso.

Sim - respondeu lacônico.

Qual? - insistiu o Chefe.

Depois de uma breve pausa, o Editor não pôde mais evitar a resposta:

Meu filho, Chefe. Ele acabou de completar treze meses. E ele está bem - disse, fazendo o possível para esconder a sensação de alívio e felicidade. Embora fosse um homem da ciência, com­preendia muito bem as emoções humanas e, caso estivesse do ou­tro lado da mesa, não gostaria de ver alguém feliz e saltitante por ter escapado ileso ignorando a dor alheia.

Optou pela cautela e notou algo mudando na fisionomia do Diretor.

Desde que acordou, o Diretor não parou para pensar na mor­te da neta. A menção às crianças trouxe aquela dor de volta. Nada de fazer de conta que tinha sido um sonho ruim ou alguma visita bizarra a um universo paralelo. Uma verdade como essas dói tanto que arranca a vontade sem aviso, como uma mão invisível levando embora o desejo de viver. Teve vontade de deitar-se novamente, na esperança de estar num pesadelo dentro de outro pesadelo. Queria acordar de ambos. Um beliscão seria pouco. Ponderava sobre a ne­cessidade de algo mais forte, algo capaz de tirá-lo daquele devaneio maldito. Não podia. Não sonhava.

Chefe? - chamou o Editor, quando percebeu o olhar dis­tante e desconectado do Diretor. - Chefe?

Colocou a mão sobre o ombro do homem, que agora se senta­va sobre a mesa. As luzes do painel piscavam. Uma delas era o sinal da Secretária indicando que o restante da equipe estava a postos.

Chefe? - chamou novamente.

Sem se mover, seus olhos foram ao encontro do colega. Bus­cava algum incentivo para deixar toda aquela tristeza para trás e reagir. O homem deu um sorriso. E um chacoalhão. Chamou no­vamente.

Ah, o quê? Hein? - disse, ainda tentando se reorganizar. - Ah, sim. Desculpe, lembrei-me da... da... - não encontrou palavras para continuar; em vez disso, lágrimas escorreram pelo rosto do sujeito conhecido por nunca misturar vida pessoal com trabalho, pelo menos, até o começo daquela noite insana. Ter dormido por menos de uma hora só piorava as coisas.

Tudo bem, Chefe. Vamos resolver essa reunião e, depois, o senhor pode relaxar um pouco, que tal? - sugeriu o Editor, ainda com a mão descansando sobre o ombro. - Vou lá fora chamar todo mundo e volto em dois minutos, certo?

O Diretor consentiu com a cabeça. Aos poucos, recuperava a postura habitual. Não havia espaço para vergonha. O ego se perde­ra em algum momento durante os acontecimentos da madrugada, e recuperá-lo era um dos últimos itens em sua lista de prioridades. Se é que existia uma. Precisava ser o motivador, o catalisador da garra pelo trabalho, entretanto, ninguém cobraria. O torpor dominava o habitualmente pulsante jornal, cuja equipe tradicional­mente cheia de si e capaz de debater qualquer assunto a qualquer hora do dia havia sido calada. Mero reflexo do cenário repetido ininterruptamente mundo afora conforme as primeiras horas de surpresa e desespero passavam e a incerteza dominava a mente de cada um.

Faz um favor? - pediu o Diretor.

Claro, Chefe.

Peça para chamarem o Engravatado. Preciso falar com ele. Se o governo ainda não se tocou disso, eles precisam saber.

Sem problema. Já volto.

Assim que o último integrante da redação saiu da sala, o Di­retor viu o Engravatado. Ele esperava do lado de fora da sala. Esta­va sentado no banco de madeira acolchoado em frente à Secretária. O assento histórico estava naquele ambiente havia quase duzentos anos, desde a fundação do jornal e, mesmo tendo passado por di­versas restaurações, ainda mantinha aquele ar secular e respeitoso. Políticos, celebridades, jornalistas em busca de emprego e um gran­de número de advogados - nem todos amigáveis - aguardaram ali ao longo dos dois séculos. Pelo menos assim parecia aos olhos do Diretor, que conhecia sua curiosa história. Para os demais, inclu­sive o Engravatado, era simplesmente um banco velho. O homem do governo tamborilava os dedos no braço direito da cadeira, uma vez que o outro estava ocupado pela valise. Havia escolhido o lugar com cautela. Havia acompanhado cuidadosamente a passagem de cada um dos participantes da reunião até que a linha de visão fosse liberada e ele pudesse olhar diretamente para o Diretor. Ao se le­vantar, não caminhou em direção ao veterano, mas, em vez disso, expressou-se com os dedos dizendo estar com fome e sugeriu que o outro sujeito viesse a seu encontro. Método pouco habitual, mas nunca se deve ignorar a vontade do estômago, especialmente de­pois de uma noite estressante sem dormir.

Para sua surpresa, o Diretor aceitou o convite. Pegou o ca­saco e, em menos de um minuto, encontrava-se ao lado do En­gravatado, que sorria discretamente enquanto segurava a valise e aprontava-se para sair.

- Ouvi dizer que pelo menos os croissants desse lugar se sal­vam! - disse, dando força aos rumores entre os empregados. Reza a lenda que a comida da cantina era a razão pela característica morte de jornalistas, habitualmente vítimas de súbitos ataques cardíacos em pleno expediente. Os últimos dois funcionários simplesmente despencaram de cara nos teclados, seguindo a tradição do primei­ro sujeito que havia morrido trabalhando ali. Ele apagou, acertou a testa numa antiga máquina de escrever e, se não tivesse morrido do coração, teria morrido em virtude da pancada e do subsequente tombo que o deixara ensangüentado.

O Diretor arriscou um sorriso.

Isso por que você não tentou o café! - falou, para descon­trair. - Tudo bobagem desse pessoal, vivem reclamando e colocam a culpa na comida. Se não fumassem feito chaminés, tomassem me­nos café e parassem de reclamar da redução de pessoal, todo mundo seria mais feliz! Se não gosta, pode trazer uma marmita! - Os dois riram. - O que vocês sabem sobre essa limitação de um ano de vida?

Não tinha ouvido nada sobre animais até o Editor de Ciên­cias me avisar - respondeu o burocrata. - É certeza?

Vamos tentar confirmar, por isso fizemos essa reunião - disse. - Como assim "sobre animais"? - perguntou fazendo as as­pas com os dedos, quando mencionou as últimas duas palavras.

Então, temos um relatório do Departamento de Agricultu­ra. Veja isso - disse, entregando uma pasta com fotos e uma folha de papel com informações e levando o Diretor até uma das grandes janelas que circundavam a ala do refeitório no sétimo andar do edifício. Trazia um binóculo. - Olhe ali.

Levemente surpreendido por estar diante da grande vidraça, que ia do pé ao teto, o Diretor pegou o equipamento sem saber ao certo para onde olhar. Em segundos, as fichas começaram a cair.

Onde? - perguntou.

Ali, no gramado, ao lado da figueira - direcionou o Engra­vatado. O prédio do jornal era cercado por um grande gramado, onde cresciam árvores centenárias. Algumas tão velhas quanto o jornal, outras que já estavam ali quando a terra fora colonizada com as primeiras sementes do homem moderno. Aquele lugar abrigava uma grande floresta, margeada por um extenso rio. Hoje, a pequena área destinada ao reduto do verde ao lado de um rio poluído, repleto de carros imóveis pelo caos noturno, com seus motoristas raivosos e desconectados, pouco fazia além de embelezar - mesmo que mi­nimamente - o dia dos poucos que visitavam a velha redação.

Entretanto até isso estava diferente. Algo havia mudado.

O Diretor examinou o trecho apontado pelo Engravatado. Era uma parte nova do gramado, que ocupava a entrada de vi­sitantes e ficava ao lado do estacionamento da diretoria. Passava por ali todos os dias, pois estacionava o carro imediatamente ao lado daquele pedaço de grama. Notou os jardineiros replantando a vegetação ao longo daquela semana. Com o adubo fedido e aquele tapete germinado, o gramado tinha um belíssimo tom de verde. Quase brilhante.

Não mais.

Aquele trecho estava opaco. A impressão inicial era de falta de tratamento ou de irrigação. Mas era grama nova e, centímetros ao lado direito, o resto do gramado parecia exatamente como o habitual. A água proveniente do sistema automático de manuten­ção ainda respingava das folhas curtas. Apenas a nova área tinha aparência descolorida.

No relatório do governo, diversas fontes confirmavam a morte de plantações, árvores e outras plantas recém-brotadas.

É um padrão? - perguntou o Diretor.

Com a teoria sobre animais e agora plantas... aparentemen­te, sim - falou o Engravatado, que guardava o pequeno binóculo na prática valise. - Estou preocupado.

Com o quê? - indagou o veterano, afastando o medo de uma mente já pesarosa e descrente.

Sem crianças, sem animais e, agora, sem plantas - fez uma pausa -, ou seja, sem comida. Qual será nosso futuro?

A pergunta é outra, meu caro - respondeu o Diretor. - Te­remos futuro? Há um certo limite aceitável pelas pessoas. Um sus­to provocado por um acidente é superável. A incerteza completa, provavelmente, não.

Sim. Controlar uma crise é possível - divagou o Engra­vatado, ajeitando o terno e colocando um par de óculos escuros. Fazia sol lá fora. Um belo dia começava, indiferente ao caos que se desenrolava. - Contornar algo dessa magnitude é improvável.

Ninguém sabe como as pessoas vão reagir - ponderou o Diretor. - Ainda é cedo.

Quando descobrirem a extensão do problema será um caos.

Ainda não temos tanta certeza. Precisamos esperar - disse o Diretor, tentando acalmar os ânimos. - E falta uma peça-chave.

Qual? - perguntou o burocrata, recompondo-se.

Os abrigos são a chave. O Repórter vai nos dizer como tudo se comportou de forma isolada - lembrou o Diretor. - Todos os abrigos que ele vai visitar têm ambientes hermeticamente selados com quase tudo o que precisamos saber: crianças e plantas. Alguns podem ter até mesmo animais, filhotes.

Estava certo. Os grupos que se isolaram possuíam exem­plares de tudo que estava morrendo. Caso o Repórter encontrasse evidências de que algum deles tenha passado incólume pela noite mortal, um plano poderia ser traçado para assegurar os próximos nascimentos e, com sorte, iniciar a criação de uma cura.

Alguma notícia dele? - perguntou o burocrata, consultan­do seu relógio de ouro.

Ainda não. Tenho certeza de que entrará em contato assim que tiver novidades - argumentou o Diretor, considerando as di­ferenças de fuso horário e também o tempo de viagem. - E ainda faltam algumas horas para ele chegar.

Já chegou - interveio o Engravatado. - O avião pousou há vinte minutos.

Já? Mas ele deveria viajar por pelo menos... - dizia o Dire­tor quando foi interrompido.

Emprestamos um de nossos transportes para ele. E também enviamos um especialista para ajudá-lo, logo, temos informações constantes sobre o andamento da missão - declarou em tom professoral, fazendo de tudo para não parecer impositivo ou controlador, em­bora o fosse. - Eles chegarão ao primeiro destino em trinta minutos.

- Ok, então, ligo para ele em uma hora - decretou o Diretor, alisando a barriga.

Café preto e panini de frango com queijo para os dois. Um enroladinho de salsicha extra para o Engravatado. Belo desjejum digno da vida desregrada da redação. Ninguém quis arriscar nada com verduras. E, por natureza, coxinhas de frango já são perigosas com ou sem mortes misteriosas assolando o mundo.

Uma hora depois, o Diretor fez um telefonema pelo equipa­mento via satélite.

Ninguém atendeu.

 

A luz matutina aumentava o brilho das paredes cor-de-rosa do quarto da Filha do Governador quando ela acordou. Clarida­de nunca foi um problema para a garota, mas o ambiente ajudou a despertá-la, pois os sentidos já percebiam a movimentação no andar de baixo do casarão centenário onde morava. Vozes ininter­ruptas, por vezes elevadas, e muitos passos contra o piso de madei­ra chamaram sua atenção. Acordou e voltou a dormir. Mas agora não tinha mais jeito, era hora de acordar. E bem antes do horário habitual, por isso não encontrou o copo de leite e biscoitos de que tanto gostava pela manhã e foi direto ao banheiro. Já era grande o suficiente para se arrumar sozinha e se orgulhava de escovar os dentes exatamente como o dentista havia instruído. O ruído lá de baixo aumentava, mas tudo desapareceu quando subiu no banquinho de plástico duro e abriu a torneira. Gostava do som, era o pri­meiro sinal de que um novo dia havia começado. Gostava muito das manhãs. Mas, obrigatoriamente, começava todos os dias com cara emburrada e amassada. O pai definia a característica como herança da mãe. Pura verdade.

De cara lavada, dentes escovados e com um pouco mais de disposição, sentou-se na cama e pensou seriamente se deveria, ou não, acordar mesmo. Adorava a cama, especialmente quando o novo cachorro se perdia no edredom gigantesco e fofo. Foi quando notou sua ausência que desistiu da idéia de voltar ao repouso. Ele sempre acordava antes dela e lambidas eram inevitáveis. Essa parte ela odiava, mas adorava o filhote. Presente de aniversário da mãe. Deve ter ido passear sozinho, pensou a garota. Ou foi comer alguma coisa.

Lembrou que estava com fome, então, ainda de pijama, re­solveu ir até a cozinha. Enquanto descia as escadas, observou um monte de gente andando rápido pela casa. Reconhecia alguns da­queles rostos. Trabalhavam para o pai. Alguns estavam bravos por causa dos telefones celulares. Andavam em duplas e falavam sem parar. Estranhou ver alguns homens de uniforme militar, como aqueles soldados dos filmes, por ali. Nenhum deles a notou, só o segurança da família, que estava de prontidão na porta principal, ao lado de um soldado com uma arma bem grande. Ele sorriu para ela, ela acenou e sorriu de volta. O guarda sinalizou em direção à cozinha e, como já era o plano mesmo, seguiu a orientação.

Viu a mãe sentada no balcão, lendo atentamente o jornal, sem comer nada e com uma cara muito preocupada.

Bom dia - disse ainda sonolenta, desajeitada e com medo de ter feito algo errado. O pijama de unicórnios cor-de-rosa com­binava com os cabelos claros e encaracolados, mas nem tanto com os olhos verdes. Herança do pai, um grandalhão de ombros largos por conta dos anos de natação, cabelo louro curto e olhos persuasivos.

Bom dia, meu amor - respondeu a Primeira-dama, ten­tando disfarçar a tensão, forçando um sorriso e beijando a testa da Filha. Ela vestia saia preta e blusa branca, que valorizavam os olhos negros e os cabelos castanhos até os ombros.

Aconteceu alguma coisa? - indagou a pequena.

Sim, querida. Mas nada com o que você deva se preocupar. Foi algo muito sério e papai está tentando ajudar as pessoas, tá bom?

Choveu de novo? - perguntou, se lembrando da última co­moção que presenciou, quando uma inundação repentina varreu algumas cidades do mapa.

Não, meu amor, não choveu. Mas tem muita gente triste e que precisa da ajuda do papai. Vamos fazer o possível para deixá-lo feliz, tá?

Tá bom - disse, com um jeitinho delicado e conformado, como sempre fazia quando não entendia bem o que acontecia, mas não tinha muito que fazer.

Agora coma alguma coisa e, depois, vá dar um beijo no seu pai - disse a Primeira-dama, colocando um prato com duas torradas com geleia na frente da filha. - Ele está no escritório dele.

Quero leite! - pediu.

Claro, leite - disse, enquanto ia até a geladeira buscar a garrafa.

Ela notou algo curioso na feição da filha. Sem se dar conta dos acontecimentos, ela parecia sentir falta de algo, ou poderia ser simplesmente sono.

Algum problema, querida?

Sim.

O que foi? - perguntou a mãe sem saber o que esperar.

A garota olhava para o canto da cozinha, onde ficavam os potes de comida e água do filhote, mas sem sinal do cachorrinho. A ração estava intocada e o pote d'água completamente cheio.

Você viu meu cachorro?

Não, meu amor. Ele não está dormindo? - sugeriu a mãe.

Não sei.

Olhou na cama dele?

Humm, não! - respondeu, percebendo que nem tinha se dado ao trabalho de procurar.

Essa noite foi esquisita para todo mundo, meu amor. Pode ser que ele tenha resolvido dormir um pouco mais - ponderou. - Termine de comer e vamos procurar por ele juntas, tá?

Certo.

A Primeira-dama continuou a leitura, mas tomando cuidado para não deixar as manchetes à vista. A Filha estava começando a ler e não queria lhe causar alarme. Já seria muito difícil explicar a situação com calma, imagine se ela tivesse uma primeira impres­são assustadora. Ela ficava triste pelos personagens dos filmes e sempre torcia pelos finais felizes. Tinha quase 6 anos, mas se impressionava fácil e era muito sensível.

Minutos depois, as duas deixaram a cozinha ampla da man­são e seguiram em direção ao escritório do Governador, mas a Primeira-dama viu que uma comissão militar seguia o mesmo ca­minho. Trocou olhares com o Brigadeiro que liderava o grupo e mudou de estratégia.

Querida, por que não vamos procurar o cachorro agora? - disse, segurando a filha pelo ombro e mudando a direção gentil­mente. - Aposto que ele está dormindo lá no quarto! Falamos com o papai daqui a pouco!

A garotinha sorriu. Embora quisesse ver o pai, resolver aque­le grande mistério era mais atraente naquele momento. De qual­quer forma, a presença das duas na porta do escritório foi o sufi­ciente para que o Assessor do Governador soubesse que precisava informá-lo de que Filha estava acordada. E que a família queria vê-lo. Fazia questão, mesmo em meio a crises. Pediu à equipe que o notificasse imediatamente quando ela acordasse. Todos sabiam a razão, inclusive o motivo por ele ter optado por coordenar os es­forços estaduais de casa e não da sede do governo.

Ela.

Desde o início do caos, ele visitou o quarto da filha três ve­zes. Na primeira, foi por instinto e abastecido pelo pavor provoca­do pela tragédia. Quando chegou à porta, pensou duas vezes antes de abri-la, com medo de encontrar a pequena morta. Ela roncou no momento em que a porta se abriu e ele chorou de emoção. Puro alívio. Conforme a noite avançava, sua preocupação não diminuía, e voltou em outras duas ocasiões apenas para observá-la e ficar ao seu lado. Sabia do sono pesado da garota, então, acariciou suas bo­chechas macias, arrumou as cobertas e simplesmente observou en­quanto o peito subia e descia sutilmente a cada respiração. Acima de tudo, sabia de tantos pais que não poderiam fazer o mesmo. Se já a amava loucamente, a devoção ultrapassou barreiras. Jogaria a carreira para o alto, caso a segurança ou saúde da família estivesse em risco.

O Assistente sabia que a escolha de não entrar na sala tinha sido da Primeira-dama, logo, respeitou a decisão e só informaria o chefe depois que a reunião terminasse. Rapidamente, as duas subi­ram as escadas para iniciar a pequena investigação.

Olha só, aposto que ele ainda está dormindo, então, por que você não procura no quarto enquanto eu vejo se ele não re­solveu passar a noite no banheiro de visitas e acabou trancado lá? - sugeriu a mãe.

E quem achar primeiro ganha um beijo! - estipulou a Filha.

Um beijo e um abraço! Ou melhor, dois beijos! - devolveu a mãe, inflacionando a commodity habitual utilizada como premiação nos jogos familiares.

Perfeito! - disse a menina, já entrando no quarto.

Ela chamou pelo cachorro algumas vezes, mas não obte­ve nenhuma resposta. Vasculhou as cobertas e olhou debaixo da cama, também sem sucesso. E aí se lembrou da idéia da mãe: ele ainda estaria dormindo na cama dele!

Rapidamente, com a determinação de quem resolveu o maior quebra-cabeça da humanidade, ela rolou sobre a cama e saiu do lado esquerdo, onde ficava a escrivaninha. Embaixo do espaço onde, no futuro, passaria horas estudando na cadeira cor-de-rosa, ficava uma grande armação de vime pintada de branco, com esto­fado macio e um cobertor azul.

Ela afastou a cadeira e puxou a cesta gritando: - ACHEI VOCÊ! - e lá estava o filhote. O sorriso da garota era contagiante.

Ainda estava dormindo, do jeito que a mãe disse. Ela fez cócegas e começou a celebrar a descoberta, mas ele não respon­deu. Tentou acariciar embaixo do pescoço - o lugar favorito do filhote - e nada. Não demorou para ela achar tudo aquilo muito estranho.

A Primeira-dama ainda vasculhava o banheiro quando sen­tiu uma presença no ambiente. Virou-se para porta e viu a filha carregando o filhote no colo. Ele não se movia. A mulher olhou perplexa.

- Mamãe, acho que ele tá doente! - decretou a médica-mirim, que usava um estetoscópio de brinquedo, que desaparecia parcial­mente no emaranhado formado pelos cabelos cacheados da garota e no pelo marrom-claro do cachorro. - Tem algum remédio?

A mãe não respondeu. Não sabia o que dizer. Era a primeira a bater de frente com repórteres fofoqueiros ou exagerados; havia contrariado Chefes de Estado e confrontado corruptos sem medo. Mas, ali, em frente à Filha, não sabia o que dizer. O jogo político é encenado e arquitetado. A realidade não tem meias-verdades, es­pecialmente quando se é criança. Como macular uma alma tão doce com uma notícia tão catastrófica e inesperada? O destino havia maquinado um plano inevitável e a pequena confrontaria os efeitos da noite anterior de forma avassaladora, em seu próprio mundo, de um jeito que só ela vai entender.

Quando reagiu, a Primeira-dama abraçou a Filha com cui­dado para não amassar o cão, ainda nos braços da garota. Encon­trou forças no abraço para dizer algo, mesmo sem saber se era a melhor opção.

Meu amor - disse, beijando a filha sem parar. - Querida, ele... ele... - e a continuou beijando.

Ele está muito doente? - perguntou, com curiosidade. - Vai ficar bom, né?

Não, meu amor. Ele não está doente.

Então, é só ele acordar? - perguntou e falou, sorrindo, com o cão. - Acorda, seu preguiçoso!

Não, querida. Ele não vai acordar.

A princípio, a garota ficou pensando no significado das pa­lavras da mãe. Quando ficava doente, tomava um remédio ou, até mesmo, as injeções - que ela odiava - e melhorava. Como uma lógica aceitável não surgiu, a memória fez seu trabalho e ela se lem­brou de uma frase parecida que ouvira da boca da mãe. Mais precisamente, um ano e meio antes.

Ele está dormindo que nem a bisavó?

Sim, meu amor. Que nem a bisavó! - disse a mãe, agora com lágrimas nos olhos ao se lembrar da morte da sua avó.

E não vai mais acordar? - insistiu.

Não, minha filha. Não vai.

A constatação foi devastadora. Assim como a resposta.

PAPAAAAAAAAAAAAAAAAI! - o grito saiu de forma tão sentida e dolorosa que emocionou a mãe e silenciou a casa.

- PAPAAAAAAAAAAAAAI!

O choro veio logo depois.

O Segurança e o Soldado disputaram uma corrida alucinada escada acima, alarmados pelo chamado. Enquanto isso o Governa­dor teve calafrios e um arrepio na espinha ao ouvir o berro. Igno­rou a presença dos militares e abriu caminho empurrando mesas, cadeiras e pessoas instintivamente. Nem se importou por ter der­rubado dois generais no processo.

Quando chegou ao andar de cima, viu o Soldado sinalizando que estava tudo bem e falando alguma coisa ao rádio, e disparou pelo corredor até chegar à porta do banheiro. Viu o Segurança de confiança agachado ao lado da Primeira-dama e da Filha. Isso não podia ser nada bom. A Filha soluçava ininterruptamente e o rostinho continuava úmido, apesar dos esforços da mãe para tentar limpá-lo. O Governador percebeu que ela segurava algo. Olhou para a esposa e viu toda aquela tristeza em seus olhos. Viu compai­xão e incapacidade perante uma situação incontornável. Não sabia como nenhum daqueles pais e mães que perderam os filhos se sen­tiram, e sentiam, desde a catástrofe, mas acabara de experimentar os efeitos da mazela. Ele ainda não conhecia o sentimento em primeira mão, mas experimentava algo pior: a Filha sabia exatamente o que cada uma daquelas pessoas havia sentido.

O filhote continuava em seus braços, enquanto olhava para o Pai, esperando que ele fizesse um milagre.

Ele não podia.

Ninguém podia.

E, então, foi a vez dele de chorar ao lado da Filha.

 

Carregados de pesar, os gritos da garotinha venceram as pa­redes da casa e puderam ser ouvidos pelos seguranças do lado de fora. Mas eles não foram os únicos. Assustados pelo apagão das comunicações e também chocados pelas notícias que não para­vam de chegar dos hospitais com moradores retornando depois de uma noite de lamentos e miséria, muitos vizinhos do Gover­nador reuniam-se em frente à porta de entrada da então sede do governo.

Era um grupo modesto. No máximo, vinte pessoas estavam ali. Famílias inteiras em alguns casos. Pais assustados com um inimigo invisível não largavam as mãos e os braços de filhos an­gustiados e lacrimejantes pela possibilidade de morrer sem mais nem menos. Se os bebês morreram, o que impediria as demais de trilharem o mesmo caminho misterioso? Eram todos tripulantes de um submarino que fazia água em algum compartimento ocul­to. Ele poderia se encher e extinguir sua ameaça caso a comporta estivesse fechada; ou simplesmente poderia transbordar de forma voraz e irreversível e afogar a todos.

Aguardavam pacientemente. Queriam saber. Precisavam sa­ber. E foi quando o primeiro cartaz de protesto surgiu.

"Quero minha internet de volta!", dizia o pedaço de cartoli­na preso a uma haste improvisada, carregado por uma garota que vestia roupas de cores gritantes. Um coração cor-de-rosa ocupava um dos cantos da mensagem, e um desenho de uma nota musical, o outro. Duas amigas a acompanhavam. Uma delas ainda vestia pijamas, mas o cabelo azul néon chamava mais a atenção do que o figurino da colega. Não disseram nada, apenas pararam ao lado do grupo com sua reivindicação.

Internet? - indignou-se o Dentista, um senhor de cabelos grisalhos, que carregava o neto nos ombros. - Uma coisa dessas acontece e vocês querem a internet?

O trio encarou o homem, rolou os olhos e voltou a obser­var a casa do Governador. Ignoraram o comentário, mas não por muito tempo, pois as demais pessoas - em sua maioria mais velhas e donas das casas ao redor - concordaram com o Dentista. Mui­tas delas haviam perdido parentes diretos. Uma mulher, que era consolada pelas amigas, tinha perdido duas netas. Gêmeas. E um garotinho que se divertia com brinquedos ainda não sabia, mas sua irmã recém-nascida nunca chegaria em casa como ele pensara, festejando.

Estamos aqui para resolver problemas sérios, mocinhas - sacramentou a Corretora de Seguros. Ela conhecia o trio; eram suas vizinhas. - Seus pais estão no hospital com a sua tia. Ela per­deu o filho, seu primo, e vocês estão preocupadas com a internet? Como pode? - disse a uma delas.

Novamente, tentaram ignorar.

Estou falando com vocês! - repetiu a vizinha. - Não é hora de bobagem, guardem isso.

Não vamos guardar nada. Temos compromissos importan­tes hoje! - disse a mais velha, que segurava o cartaz. O tom era de desafio. - Hoje é "níver" da nossa diva e todo mundo vai se reunir para cantar parabéns on-line! Ela ama a gente e vai ficar triste se não cantarmos parabéns! - defendeu, sendo apoiada pelas amigas, que faziam um gesto com os braços imitando uma cantora famosa e exibindo braceletes idênticos, com uma pequena foto de uma ga­rota maquiada ao extremo e com um sorriso falso e forçado.

O Dentista e a Corretora não reagiram imediatamente. Ten­tavam encontrar espaço na sanidade para tentar acomodar tama­nho disparate. Ambos criaram filhos e sabiam das maluquices dos pré-adolescentes. Ela conhecia um pouco desse mundo pelo contato com a filha de 16 anos, que vivia uma realidade alternati­va recheada de paixão doentia por artistas enlatados e seriados de televisão insossos. Mas nem isso foi capaz de ajudá-la a encontrar algum sentido na situação. Celebrar a vida é importante, aliás, se­ria fundamental dali para a frente. Entretanto, ignorar tudo que acontecera ao longo da noite era um conceito ilógico e praticamen­te alienígena. Mais do que surreal, era irreal.

Vocês sabem o que aconteceu? - perguntou o Dentista, tentando se acalmar e deixar a experiência solucionar o embate. - Sabem sobre as crianças? Sabem que elas morreram, meninas? - repetiu, mesmo tendo ouvido o comentário da Corretora, sobre a líder das manifestantes ter perdido o primo.

E, sei. Vi os vídeos na madrugada. Um tiozinho filmou o filho dele apagando - respondeu com indiferença. - E daí?

Não estão tristes com isso? - indagou a Corretora. Agora, o grupo de moradores se aglomerava ao redor do trio de garotas. Em parte irritados, mas também curiosos pelo comportamento peculiar.

O anúncio do governo foi muito preocupante, sabe. Se isso aconteceu em todo o mundo, ninguém sabe o que vai acontecer com a gente - completou o Dentista.

Nem. Isso é teoria da conspiração. Nossa diva escreveu na internet durante a noite. E eu acredito nela. Ela falou que vai es­crever uma música sobre essas mentiras. Ela não é linda e perfeita? - as palavras eram pronunciadas como se uma entidade obscura houvesse tomado conta da garota. Seus olhos brilhavam de emo­ção ao recitar as promessas de seu ídolo, que aproveitava o poder da manobra para faturar milhões diariamente. - Ela também disse lá no blog dela que isso foi um vírus que saiu do controle do go­verno e que só aconteceu hoje porque aquela ridícula concorrente dela é filha de um político rico e fez de tudo para estragar o "níver" dela!

E vocês acreditaram? - perguntou o Dentista incrédulo.

Está lá na internet! E só ler... eu salvei a página! - disse mostrando o leitor portátil cheio de adesivos e fotos de uma ga­rota com cabelos pintados, sorriso falso e um microfone sempre presente.

Mas não faz sentido, não percebe? Nenhum político faria...

Claro que faria! - interrompeu a garota. - Ela não mentiria para nós! Ela ama a gente! E ela sabe mais do que esse bando de velhos bobos.

Terminou a defesa com os olhos lacrimejando e as bochechas rosadas tamanha era sua tensão física.

O bate-boca começava a ficar acalorado quando um grito veio de dentro da casa. Todos se voltaram para a grande constru­ção colonial, com colunas brancas vistosas na entrada e um belíssi­mo jardim repleto de árvores baixas muito bem cuidadas ao longo de sua extensão. Dois dos homens que vigiavam a porta correram para dentro desesperadamente; mas deixaram os soldados arma­dos de olho na multidão.

Todos permaneceram em silêncio por um minuto, antes que os cochichos começassem. Os moradores voltaram a tentar con­vencer as garotas, mas presenciaram uma cena estarrecedora. Uma das velhas beatas locais, de luto, vestida inteiramente de negro, avançou contra a líder das adolescentes, arrancou-lhe a placa das mãos e gritou a plenos pulmões:

SÃO OS FALSOS PROFETAS! É O FIM DO MUNDO! SÓ OS PENITENTES PASSARÃO!

Repetia sua previsão conforme batia o cartaz contra o as­falto da rua, repetidas vezes. Quando quebrou a haste, começou a rasgar a folha de cartolina. Rapidamente, transformou tudo em pedacinhos e não desistiu, pisando e tripudiando sobre os pedaços de papel e madeira. Há poucos metros dali, a garota chorava copiosamente. Soluçava. As amigas a abraçavam.

Calma, querida. Vai ficar tudo bem, ela exagerou - disse a Corretora, encontrando uma razão para se aproximar e demover a garota do protesto tresloucado. E a abraçou, mesmo com as colegas a agarrando como se não houvesse amanhã. - Logo, logo seus pais chegam e você vai poder conversar com eles e poderá chorar pela morte do seu primo. Sei o quão difícil isso é... - contextualizou, acreditando ter encontrado a brecha. Uma reação tão radical e sem noção como essa só poderia ser razão de trauma. Era isso. Ela esta­va triste pelo primo e encontrou consolo no exagero de uma paixão passageira. Tudo ficaria bem.

Ledo engano.

A garota olhou para a mulher mais velha como se visse um fantasma e a afastou de seu corpo, com força e determinação. A mão esquerda acariciava o pulso direito, e os olhos estavam fixos no chão, onde havia um bracelete similar ao das amigas.

Eu comprei esse colar no site oficial da minha diva! Ela mandou pessoalmente pra mim! E se eu não o usar hoje, ela não vai saber que a amo! - explicou entre soluços e espasmos de choro.

Vocês estragaram tudo! Vocês vão se ver com ela! Seus idiotas... - e continuou o rompante de ofensas.

Os adultos se entreolhavam, descrentes do espetáculo bizar­ro. Os gritos na casa haviam cessado, mas agora o show acontecia diante de seus olhos. As meninas sofriam com o desmoronamento das frívolas ilusões; enquanto uma fiel anunciava ao mundo suas convicções. Duas forças esmagadoras confrontadas pela inexplicabilidade da situação. Uma deusa de plástico provando a fragilidade, enquanto um deus de fúria e sofrimento começava a provar as ameaças milenares.

Por um instante, foi possível se esquecer da morte das crian­ças e da tragédia mundial. Ninguém sabia dizer o que era mais apavorante: a devoção doentia das adolescentes ou o acesso de lou­cura da beata. E ela ainda dançava sobre o cadáver celulósico de sua vítima, anunciando sua fé:

- É O FIM DO MUNDO! OS FIÉIS SERÃO ARREBATA­DOS! O SENHOR NÃO NOS ABANDONOU!

Dessa vez, era ela quem estava errada. E muito.

 

As montanhas distantes eram o único sinal de que havia algo além de deserto naquele pedaço de lugar nenhum. Uma es­trada de terra batida e havia muito esquecida ligava a antiga base à rodovia mais próxima e não existiam placas. Chegar ali era tarefa digna de explorador veterano. O GPS ajudaria, entretan­to, o sistema estava fora do ar havia algumas horas desde que os satélites foram reconfigurados pelos militares. O Repórter ficou surpreso com a falha do sistema, que deveria funcionar, de acor­do com o representante do governo. Pelas informações recebidas pelo Coronel que o acompanhava, reajustar tudo ainda levaria uma hora.

O Repórter dirigia o jipe com destreza deixando um grande rastro de poeira. O velocímetro marcava cento e dez quilômetros por hora. Ninguém falava nada. As caixas de som do carro luta­vam contra a barulheira da estrada com pedras e excesso de ter­ra. O rocknroll dos anos 1970 falava sobre um filho batalhador e pródigo, que, depois de enfrentar e superar tarefas virtualmente impossíveis, finalmente, pode descansar e aproveitar a vida. De­pois da última noite, nenhum dos homens naquele carro acredi­tava em finais felizes. Uma pilha de garrafas d'água se amontoava no banco de trás, ao lado de duas valises negras e dois engradados de bebida e comida. O deserto é impiedoso. Nada de riscos desnecessários, especialmente quando não há ajuda disponível.

Estavam por conta própria.

A música ainda tocava quando passaram pela primeira guarita do perímetro do antigo silo nuclear. Olhou de relance e notou um la­garto encarando o veículo, em vigília, com olhos imóveis. E mortos.

Não percebeu esse detalhe. Dirigia rápido demais.

Em pouco tempo, chegaram ao destino. Grande parte do ter­reno árido da antiga construção militar fora tomada por árvores secas e rochas, sendo constantemente banhada pelo sol escaldante. Local inóspito para seres humanos, distante de qualquer cidade e de difícil localização mesmo com mapas, logo, perfeito para uma base secreta. Assim pensaram no passado, quando o mundo temia o fim atômico, quando o holocausto nuclear ameaçava o término precoce de uma civilização brilhante e efetiva no ato de auto-destruição, em pequena ou grande escala.

Por ironia do destino, agora, lá dentro, havia esperança pela vida, em vez da promessa da morte certa.

 

- Engenhoso - disse o Coronel. - Se proteger do fim do mundo num lugar projetado para causar o fim do mundo. - To­mou mais um gole d'água enquanto fazia sua primeira análise da situação. A porta era maciça e selada a vácuo, mas esse não era o maior dos problemas, e sim o fato de que fora projetada para resistir a um impacto direto de uma ogiva nuclear. - Dá para abrir. Só vai levar um tempinho.

Vamos torcer para que não precisemos arrombar. Minha esperança é de que o sistema de isolamento tenha salvado as crian­ças dentro do abrigo - comentou o Repórter, tentando sintonizar a freqüência do transmissor de ondas curtas. Era seu contato com o interior da construção. Dias antes, ele havia conversado com aquelas pessoas e vira cada uma delas à medida que atravessavam as portas pesadas, para, então, pegar um elevador e descer quase duzentos me­tros, na esperança de se salvar do fim do mundo profetizado havia milênios. Dezenove pessoas. Quatro crianças. - E eles não foram os únicos. Há mais três abrigos como esse, todos cheios de "malucos". - Fez as aspas com as mãos enquanto olhava para as montanhas.

É, agora os malucos somos nós. Alguma resposta? - per­guntou o Coronel.

Nada ainda. Nem mesmo estática - disse. - Pelo que sei, o rádio está funcionando, só não há resposta. Podem ter deixado em algum canto distante ou abaixado o volume. Realmente, não sei.

Entreolharam-se, sabiam o que fazer. O Coronel ligou sua perfuratriz.

Não podiam perder tempo.

A primeira porta tinha a função de conter um eventual im­pacto e não necessariamente afetaria o sistema de contenção. Não conversaram muito sobre especificidades do trabalho de cada um, logo, o Repórter esperava que o militar fosse abrir caminho à for­ça com um maçarico ou explosivos. Olhava com perplexidade en­quanto o companheiro perfurava uma pesada placa de metal na lateral da porta. Aparentava ser um tipo de painel de controle, mas ele não abriu nada. Apenas fez uma série de furos como se procu­rasse por algo.

O Repórter olhava, perplexo.

Esperava o quê? Que eu fosse o Unabomber[1]? - tentou brincar, quando percebeu que o Repórter deixou de mexer no rá­dio e olhava com cara de bobo para sua área de trabalho. - Isso aqui foi feito para resistir, mas a gente construiu, então, sabemos como abrir. Estou desabilitando as travas e aí é só fazer uma força para abrir a porta.

Vamos empurrar?

O Coronel riu.

Se quiser tentar, fique à vontade - disse gesticulando cor­dialmente na direção da porta.

Um militar com senso de humor, era só o que me faltava.

Pensei que eles exorcizassem o senso de humor de vocês na academia.

Faltei nessa aula.

Em uma das malas pretas, havia uma espécie de macaco hi­dráulico com duas alavancas de ponta fina e longa, como duas es­padas gigantes. O Coronel forçou o instrumento pelo vão da porta e, dez minutos depois, ela estava aberta. Mais de meia tonelada de aço em cada um dos lados, construída numa base de rocha sólida no que, a distância, aparentaria ser uma grande pedra no meio do deserto. Mesmo dentro da estrutura da base, ela passaria desper­cebida. Era a idéia original, o conceito para uma guerra que nunca aconteceu, para confundir invasores que nunca chegaram, e reta­liar um ataque preventivo que nunca foi deflagrado.

O rádio continuava mudo, sem nem mesmo estática.

A ausência de vento aumentava a sensação incômoda de ca­lor. Os homens suavam mesmo com a ajuda das máquinas para fa­zer o trabalho duro. Uma brisa quente surgia da entrada do abrigo, que se abria diretamente para o fosso do elevador. Um leve chiado começou quando o Coronel acionou os controles de emergência do mecanismo. O gerador instalado pelos fanáticos não era tão forte quanto o antigo reator nuclear responsável por alimentar a base. O governo não havia permitido a reutilização do sistema e, até para aquele bando de malucos endinheirados, ter um reator nuclear próprio era financeiramente inviável. Sem contar o fato de que muitos deles acreditavam no holocausto nuclear causado por alguma falha nos sistemas de segurança dos mísseis operacionais em todas as partes do mundo. O fantasma da hecatombe atômica era tão temido e odiado como o diabo por aquele pessoal.

O Repórter estava ansioso. Nada do elevador. Apenas o ruído constante. Olhou para o Coronel, que deu de ombros e não preci­sou abrir a boca para responder. Esperar era a única solução. Ne­nhum dos dois tinha planos para descer duzentos metros de esca­da e, o pior, ter que subir mais tarde.

Conhecer todo o complexo e, aparentemente, ter uma idéia de quem eram as pessoas lá embaixo não lhe dava segurança al­guma. Até o dia anterior eles não passavam de malucos jogando fora uma fortuna naqueles bunkers e flertando com a mentalidade extrema dos cultos suicidas. Uma caricatura malfeita de uma piada sem graça. Pregaram o fim do mundo durante as entrevistas, ten­taram catequizar o Repórter a se unir à causa e publicar matérias com o intuito de recrutar mais almas para o movimento. "Ajude a salvar a civilização", eles diziam. Malucos, pensava o jornalista. Mas gostava deles, eram gente de bom coração. A cabeça é que não funcionava muito bem.

Tinha fé nas pessoas, sempre teve. Entretanto, já não tinha mais certeza no que pensar. Tudo havia mudado. Ter se afastado da civilização ajudava a manter a mente em ordem, mas sempre que se lembrava da Esposa isolada em casa tinha calafrios. Olhava com temor para o telefone via satélite. Temia que, se ele tocasse, fossem péssimas notícias sobre a Esposa e o Filho.

O aparelho permanecia silencioso.

Pensou em ligar, mas desistiu. Não queria parecer desespera­do e pretendia telefonar apenas com boas-novas. Melhor não dizer nada se não há nada a dizer.

O Coronel chamou da entrada do abrigo. O elevador estava chegando.

 

A descida foi silenciosa.

O rádio continuava sem resposta e o Repórter não fazia idéia de como convencer os habitantes do silo a abrirem as portas e se exporem à tragédia. Embora não tivesse dado muita atenção, ti­nha certo receio pelo fato de radicais armados sempre reagirem de forma mais agressiva ainda quando confrontados com verdades incontestáveis, especialmente quando se fala de algo que norteou suas vidas pelos últimos dez anos. E armas eles tinham. Muitas. Um pequeno arsenal bem variado foi confeccionado para poder re­pelir as mais diversas crenças envolvendo o fim do mundo, inclu­sive as mais malucas. Balas de prata, água-benta, armas de grosso calibre com efeito dispersivo para explodir crânios, lança-chamas, lançador-propelente de granadas, bazucas, rifles de assalto, metralhadoras, granadas e até uma espada samurai. Tudo registrado nas reportagens sobre o grupo. Os leitores os chamavam de Matadores de Zumbis. Eles não gostavam, mas, como todo fanático, acredita­vam que o pagamento dos infiéis aconteceria pela força divina ou qualquer catástrofe enviada para punir os incautos.

Olhou com atenção para a pistola e a escopeta do Coronel. Se algo acontecesse, não poderiam fazer muito além de correr e deixar aquele pessoal à própria sorte.

Logo as luzes da entrada principal puderam ser vistas do elevador. Uma porta sólida estava envolvida pelo primeiro nível da superestrutura de acrílico, que permitia o isolamento. Caso ela falhasse, uma segunda camada manteria tudo isolado.

Quer falar com eles antes, certo? - checou o Coronel, num tom burocrático, consultando as ferramentas e ajustando uma cha­ve alongada e prateada com um sensor eletrônico e de brilho azul na extremidade.

Se não respondem ao rádio, duvido que bater na porta vá adiantar - lamentou o Repórter.

Eles desinstalaram o intercomunicador original? - per­guntou.

Não faço a menor idéia - disse o Repórter. - Nunca men­cionaram, pelo menos. E em todas as vezes que os visitei, eles aten­deram pelo rádio e as portas sempre estavam abertas. Fiz questão de nunca participar de nenhum teste de isolamento. Nada de cor­rer riscos, já pensou se eles resolvem me manter aí dentro? - E arriscou um sorriso, enquanto olhava para a grande porta revestida de alumínio que se apresentava diante deles.

Vamos tentar - disse o militar, abrindo um pequeno painel no lado direito da porta. Lá dentro havia um alto-falante e um mi­crofone. Tudo muito antigo. Resquício do sistema original.

Acionou o sistema e chamou algumas vezes. Sem sucesso.

Aliás, o resultado era o mesmo que o rádio. Silêncio completo.

Tem certeza de que está funcionando?

Positivo. Quer tentar?

Alguém aí? Preciso falar com vocês, é urgente e importan­te! Estão bem?

Também sem resposta.

Antes de dizer qualquer coisa, o Coronel já começava a na­vegar pelos cabos do mesmo painel para desarmar a trava a vácuo e abrir a segunda porta.

Humm, estranho! Precisamos pensar nisso. Eles não res­pondem e vamos abrir mesmo assim? Eles têm armas - disse o Repórter, com um tom de preocupação. - Muitas.

O militar sabia muito mais sobre a estrutura do que demons­trara até aquele momento. E sorriu com a preocupação do jornalista.

- A porta de contenção dá acesso à segunda estrutura do habitat de acrílico, certo? - perguntou mesmo sabendo a respos­ta. - Então, meu plano é abrirmos um pouco a porta, aí podemos espiar com essa mocinha aqui - disse, apontando para sua câmera estendida, basicamente um pequeno tubo dourado com alcance total de dois metros e uma lente capaz de registrar um ambiente completamente sem precisar se mover - E aí pensamos no que fa­zer, certo?

Ele estava certo. O grande trunfo do ambiente criado pelo grupo era uma estrutura externa de acrílico reforçado e lacrada hermeticamente, que se estendia por todo o abrigo e era abastecida por um gigantesco sistema de purificação de ar, isso sem contar as dezenas de cilindros de oxigênio que serviam como suprimento de emergência. A energia era suprida por painéis solares extremamente sensíveis instalados na superfície. Com meia hora de expo­sição, eram capazes de recarregar as reservas e alimentar o sistema por dois anos. Caso a eventual catástrofe afetasse a atmosfera, o silo ainda tinha uma reserva de segurança com autonomia de um ano e meio, contanto que fosse utilizada com moderação e cautela. Haviam criado uma bolha capaz de resistir a qualquer catástrofe que não danificasse a crosta ou o núcleo do planeta. Se a Terra sobrevivesse, eles sobreviveriam.

Ouviu um leve ruído quando o Coronel ativou o compressor de ar. O equipamento estava posicionado.

 

Poucos minutos depois, uma brecha de aproximadamente quinze centímetros dava acesso à estrutura. Nenhuma resposta do interior. Nem rádio, nem tiros. A circulação de ar continuou imutável, o que indicava o bom estado do habitat de acrílico. De qualquer forma, nenhum dos dois arriscou colocar o rosto na fenda, mas a câmera o fez sem trabalho. Um monitor médio acoplado ao controle remoto mostrava o corredor à frente. Nenhum sinal de movimento. O acrílico estava intacto. Ótimo, pensou o Repórter, buscando motivos para manter as esperanças. Fazia de tudo para desviar o olhar da valise com o telefone via satélite. Optou por le­var o equipamento de comunicações mesmo sabendo de sua even­tual inutilidade por conta da profundidade da instalação. O que os olhos não veem, o coração não sente, mas a mente não deixa ir embora. O inevitável conflito entre o desejo de receber uma ligação positiva e o medo da má notícia o atormentava. Nunca tocou no assunto com o Coronel. Desnecessário. Assustador.

Sem movimento aparente.

Parecia seguro, mesmo assim ele resistia aos impulsos mais imediatistas. Nada de rompante heroico de um caubói ensandecido disposto a encontrar o destino, e as respostas a qualquer custo. Cautela ou covardia? Evitava esse tipo de autojulgamento, pois, até agora, essa postura lhe servira bem. Pessoas malucas avançam con­tra balas; algumas ganham a história pelo heroísmo, outras simplesmente caem mortas no esquecimento. Gostava de continuar contando as histórias, seja dos valentes vitoriosos, seja dos escudos humanos que os protegeram no calor da batalha. "Conveniente se esconder sob a manta da profissão", brincava um dos colegas quan­do ele voltou da segunda rodada de serviço em zonas de conflito. "Os caras se matam e você sempre sai ileso, sortudo", dizia.

Isso foi antes. Antes do casamento. Antes de receber a notí­cia emocionada da Esposa, grávida, sem palavras, apenas susten­tando um sorriso estonteante. Trocou os tiros pela curiosidade, o dia a dia bruto pelas investigações de bastidores e as grandes decisões. Aceitou o caminho que sempre criticara na profissão. O homem de ação morreu em meio à alegria da paternidade e, ali mesmo, renasceu de forma arisca e incisiva, forjado pela ex­periência de combate e sem medo dos meandros da política e da tecnologia corporativa.

Oito meses depois, sua decisão não era apenas colocada em xeque como desmoronara instantaneamente. Ele percebera tão logo o Diretor havia encerrado a reunião que aquele mundo mais seguro estava prestes a ruir. Conhecia os homens. Presenciou os efeitos da essência destrutiva por interesses mesquinhos e não teve dúvidas quanto às possíveis reações causadas pelo encerramento da vida. Insegurança e medo mudam as pessoas. Em lugares onde o banho de sangue é comum nem notarão a diferença. O caos vai acontecer quando essa loucura chegar às cidades do mundo civili­zado. A descoberta da violência é mais explosiva e assustadora que a repetição de um ritual cotidiano, por mais grotesco e sanguiná­rio que seja. O primeiro drinque é sempre mais gostoso... e desperta a sede.

Pensou novamente na Esposa e em como reagiria quando re­cebesse as más notícias. Choraria em segredo ou se lançaria contra o moinho de vento mais próximo em busca de um fim rápido e en­ganosamente glorioso? Queria chorar diante da simples lembran­ça. Resistia ao impulso por instinto. O último homem que viu cho­rar em campo desapareceu numa nuvem de destroços depois do impacto de um projétil. Conhecia a regra: nunca deixe de se mover e nunca tire os olhos do objetivo. Encarar os demônios poderia ficar para outra hora, afinal, dependendo do que encontrasse den­tro daquele habitat transparente, todos os seus medos sumiriam tão rápido quanto um aromático traço de vapor subindo de uma xícara de café com leite. Foi marcante enquanto durou, mas, de fato, algo que nunca existiu por mais que uma fração de segundos.

Nenhum ser humano jamais seria o mesmo depois daquela noite.

O Repórter olhou para o Coronel e sinalizou com a cabeça. A porta se abriu.

Um ruído sibilante tomou a entrada da estrutura conforme uma quantidade imensa de ar foi sugada para dentro do habitat. Os intrusos sentiram o vento repentino. O Repórter sentiu um ca­lafrio e engoliu em seco. O Coronel reagiu instintivamente e, antes mesmo de a corrente cessar, foi até seus equipamentos e retirou duas máscaras de acrílico com pequenos tubos de oxigênio.

Lançou uma delas na direção do Repórter enquanto coloca­va a sua.

Para o caso de alguma coisa fechar a porta e ficarmos lá dentro, ok? - disse o militar, prendendo o tubo de oxigênio na par­te superior do braço esquerdo.

Ele aproveitou para retirar uma espingarda fosca para com­bate a curta distância, além de uma pistola extra.

Ah, e tome isso. Só por precaução.

A pistola voou pelo ar encontrando a mão certeira do jor­nalista. Se ainda tivesse suspeitas sobre o nível de preparação do parceiro, elas teriam se dissipado naquele momento. O sujeito co­nhecia a predileção por armas pequenas e lhe jogara a preferida. Uma Desert Eagle .50 prateada.

Pode vir a calhar - disse, lançando um pente de munição extra. - E um arco não seria a melhor opção para esse ambiente.

Na juventude, o Repórter dedicou muito tempo ao aperfei­çoamento da técnica no arco e flecha. Ganhou muitas medalhas. Poucas garotas. Troca justa. Jogar futebol não era para ele. Preferia controlar tudo e depender somente do empenho pessoal. Ele con­cordou, mas ainda tinha receios.

Vamos apostar no pior tão cedo? - perguntou o Repórter.

Quer arriscar?

Não.

O Coronel deu de ombros e se preparou. Era hora de entrar.

Cruzaram rapidamente o corredor que unia a porta princi­pal à sala de estar. As poltronas estavam desalinhadas, algumas roupas estavam espalhadas e copos meio vazios ocupavam as me­sas comunais. O cheiro pungente de vinho voltava a se espalhar pelo ambiente agora devidamente abastecido com oxigênio. A corrente sentida pelos exploradores era um mau agouro. O ar do corredor e daquela sala, pelo menos, havia se esgotado e, pelas por­tas fechadas, avaliaram rapidamente que houve uma contenção de emergência e aquele trecho havia sido lacrado. Não havia sinal de vazamento ou de qualquer sinal aparente de contaminação capaz de ter provocado o procedimento extremo.

Ninguém ali.

Ao lado direito da entrada, numa parede comprida cheia de quadros e adesivos que simulavam janelas, o intercomunicador para o qual a dupla tentava ligar. Ninguém na sala, nenhuma resposta. O Repórter sorriu. Vislumbrou esperança em sua busca mesmo perante a onda de desespero contra a qual lutava. Por mais ínfima que fosse, essa luz no fim do fosso provocou um sorriso. Ele queria acreditar. Acima de tudo, ele queria acreditar.

O Repórter ficou feliz por terem entrado com as máscaras. O jogo havia mudado e nenhum deles conhecia as variáveis daquele cenário. Não pensou duas vezes antes de se posicionar ao lado di­reito do Coronel, dois passos atrás. Estava no terreno do colega e precisava confiar na sua experiência.

Optaram por investigar cada cômodo seguindo o procedimento-padrão exceto por uma diferença: o Coronel tomou cuida­do extra para desativar os circuitos de lacre automático de cada compartimento. Essa novidade estrutural surpreendeu os dois, afi­nal, o plano inicial do abrigo previa uma casca externa de acrílico, que englobaria a estrutura de forma integral. Ninguém mencionou lacres menores e, possivelmente, independentes para cada porta.

Ficar preso dentro de um cubículo sem ar, definitivamente, estava fora de questão.

Conseguiu? - perguntou o Repórter.

Não - respondeu o militar, enquanto lutava contra os coman­dos de um pequeno painel ao lado da porta da cozinha. - Não posso fazer nada daqui. O controle é central. Então, o negócio vai ser abrir a porta, olhar e só entrar se for extremamente necessário. De acordo?

Totalmente. Vamos abrir essa então.

Fique preparado. Se tinha alguém ali dentro, morreu. A cozinha é o único compartimento isolado do complexo.

O Coronel manuseava os circuitos com facilidade, mas seu cuidado sempre consumia alguns minutos. Tentando ser útil e se manter preparado, o Repórter pôs os conceitos de segurança em prática e, depois de reavaliar a sala, começou a arrastar o maior sofá na direção da porta de entrada.

Eu desativei aquela trava automática para poder arrombar. Era a única que podia ser contornada pelo lado de fora.

Não quero ficar preso aqui dentro. Quer arriscar? Pode haver um sistema secundário aqui dentro, vai saber - devolveu o Repórter.

O Coronel sorriu e concordou com a cabeça. O sofá não seria capaz de interromper um lacre de emergência de forma completa, mas, sem dúvida, manteria a porta aberta por alguns minutos extras.

Estou pronto - disse o Coronel.

Abriram a porta da cozinha e encontraram apenas um fogão em uso, com panelas cheias. Alguém foi interrompido enquanto fazia comida. É difícil estimar o tempo de coisas mantidas a vácuo só com os olhos e era a ferramenta de que dispunham. Nenhum dos dois ousou colocar o pé ali dentro. Utensílios estavam jogados no chão, na direção da entrada.

Alguém saiu daí às pressas - comentou despretensiosa­mente o Repórter.

Sério? - satirizou o colega. - Vamos abrir a próxima...

Entretanto, interrompeu sua ação quando um detalhe lhe chamou a atenção. Um pedaço de tecido estava preso no meio da maior porta daquela sala, à esquerda de onde estavam. O pano azul-claro havia ficado preso durante o processo de contenção e, pela posição do disparate da cozinha, aquela foi a rota escolhida pelos ocupantes do abrigo.

Pensando bem, tenho um palpite que encontraremos as respostas ali dentro - disse apontando para a grande porta dupla branca, com maçanetas douradas e entalhes cafonas. A passagem dava acesso tanto ao coração do complexo - onde ficavam os gera­dores, os gigantescos contêineres de oxigênio e a entrada da unidade de tratamento de água - quanto à sala de ginástica, que, por sua vez, dava acesso aos quartos, ao arsenal e aos dois depósitos de alimentos não perecíveis.

O acesso aos equipamentos era controlado por uma peque­na ante-sala, imediatamente atrás daquela porta, com sua entrada menor para a estrutura de acrílico reforçado e temperado que en­volvia a sala vital. Uma vez ali, poderiam ver instantaneamente a maquinaria. Outra porta branca, localizada à direita, daria acesso às acomodações. Valia arriscar.

Vai ser mais rápido - disse o militar. - E descobrir se a vedação aconteceu por falha do sistema vai nos ajudar a entender o que aconteceu aqui. Isso se não encontrarmos alguém ali dentro. Pode haver atmosfera atrás dessa porta!

Certo.

Seria uma boa hora para tirar a trava de segurança - suge­riu, apontando para a pistola do Repórter, mas sem tirar os olhos dos circuitos onde as hábeis mãos selecionavam cabos e pressiona­vam minúsculos botões. - Eu vou na frente, mas é bom garantir.

Certo.

Click.

Sentiu uma gota de suor na testa. A sensação de alegria havia desaparecido por completo e um confronto se aproximava. Mas, enquanto o embate com as surpresas não acontecesse, ele já vivia os horrores do conflito mental. Adorava conflitos; pelo menos da­queles que conhecia as regras e variáveis e, como homem meticu­loso, tinha chances de sair vitorioso. Uma chance era o suficiente. Nesse caso, tudo era incerto. Ansiedade e medo se misturavam. Seu coração palpitava aceleradamente. Não se movia. Arma pronta e semi-elevada, mas ainda apontando para o chão. Nunca passou por isso nem mesmo nas zonas de guerra por onde trabalhou. Es­perava pelos disparos, pelos picos de adrenalina e o caos do com­bate era minimamente esperado.

Sentiu essa angústia pela primeira vez quando pediu sua Esposa em casamento. E depois, quando se casaram em segredo. Uma simples fita ancestral uniu suas mãos. Lembrava-se da trilha sonora new age, das pétalas e flores; do sorriso dos poucos amigos envolvidos na união misteriosa; e do momento em que ela sorriu enquanto sentia a fita ser gentilmente retirada. Sentimentos de um homem disposto a correr contra uma metralhadora, mas indefeso perante a imprevisibilidade do casamento. O pulso disparou con­forme sua mente avançava, tentando imaginar diversos futuros. Só se acalmou quando o doce toque de sua Esposa ganhou força e pressionou seus dedos. Foi resgatado do devaneio. A vida estava acontecendo diante dos seus olhos e, ainda assim, ele preferia so­nhar com desfechos improváveis. A lembrança daquele toque lhe mantinha sereno quando se sentia só e desesperado.

Exatamente como naquele momento. Acalmou-se. Levantou o escudo emocional. Ou vai ou racha.

Pronto?

Sim.

O Coronel levava sua espingarda ao ombro novamente e deu um passo para a direita.

Não vai mandar a câmera dessa vez?

Essa porta ainda está operacional e vai abrir de uma vez só. Não consegui desligá-la. - E sinalizou com a cabeça para que o Repórter se posicionasse à esquerda da entrada.

No um, ok?

O Repórter concordou com a cabeça e viu o militar sinalizar os números com as mãos.

Três.

Colocou as costas contra a parede.

Dois.

Arma em posição.

Um.

Respirar fundo e agir por instinto.

O Coronel apertou o botão.

 

A porta se abriu com grande velocidade e não provocou ne­nhuma corrente de ar. Havia atmosfera. A dupla entrou apontando suas armas para eventuais inimigos. O movimento parecia sincro­nizado, com o Coronel avançando enquanto o Repórter seguia, se­gundos atrás, para protegê-lo.

O jornalista entrou a tempo de ver o Coronel desabando na ante-sala.

Num frenesi, vasculhou a estrutura de acrílico para tentar identificar quem atirou no colega. Olhos e arma eram um só, mas apenas a arma começou a tremer quando ele não viu nada. Conse­guiu identificar uma pessoa dentro da sala de oxigênio segundos antes de cair de cara no chão.

Apenas seu rosto atingiu o assoalho. E sentia a dor na testa, mas nada mais parecia tê-lo atingido.

Tropeçara.

Assim como o Coronel.

Seu corpo não bateu no chão por ter sido amortecido pela mesma coisa que o fez tropeçar e desabar.

O corpo de uma mulher estava no caminho. Nenhum dos dois tinha olhado para baixo.

O Coronel havia tropeçado num homem e dera com a cara nas costas de outra pessoa.

Levantaram-se da melhor maneira possível e permaneceram imóveis por alguns instantes.

Tem alguém lá dentro - disse o Repórter, ainda com a arma apontada para a estrutura de acrílico. Alguém estava sentado com as costas apoiadas num grande cilindro de oxigênio.

Pode abaixar a arma - ordenou o militar. - A porta está selada e é forte o suficiente para segurar qualquer tiro de pequeno calibre e não estou vendo nada grande nas mãos dele.

Certeza?

Sim - disse, já baixando sua espingarda.

O Repórter olhou para baixo e preferia nunca tê-lo feito. Os olhos foram diretamente de encontro aos de uma menina de 7 anos com quem havia brincado havia menos de vinte e quatro horas. O rostinho estava angustiado. Os braços da mãe, que ainda a seguravam, foram insuficientes para espantar o horror do fim.

Morreram juntas.

Se houvesse romantismo na morte, teria encontrado algum consolo na cena. Não havia. Olhou ao redor. Conhecia aqueles rostos, suas histórias, suas expectativas. Todos estavam ali. Todos mortos.

As primeiras lágrimas se formavam quando o Coronel ter­minou de examinar o sujeito em que tropeçou.

Asfixia. Pelo jeito. O sistema deve ter lacrado tudo e sugou o ar em segundos.

Mas que diabos aconteceu aqui? - perguntou a voz trêmula do Repórter. - Se estava tudo lacrado da influência externa, por que o ar de dentro foi sugado?

Não sei. Não sei.

Você abriu aquela porta?

O Coronel olhou para sua direita e notou que a porta de aces­so aos dormitórios estava aberta. As dúvidas venciam a lógica do jornalista e o conhecimento do militar. As atenções ainda estavam voltadas aos corpos que tomavam o piso da antessala.

Não - respondeu o Coronel. - Estão todos aqui?

Quase. Alguma coisa está faltando. Não sei dizer o quê.

O sujeito lá dentro?

Parece o cara que organizou o abrigo - arriscou um chute, enquanto chegava perto do acrílico para confirmar sua suspeita. - É, ele mesmo. E está carregando algo no colo.

Arma?

Não sei.

Quatro dos homens aqui estavam com escopetas. Pelo me­nos, esse aqui atirou - disse, examinando a arma descarregada e encontrando dois cartuchos vazios ao lado do corpo.

Em quê?

O Coronel olhou ao redor procurando indícios ou pistas e apontou para a proteção de acrílico transparente. Cutucou um ponto embaçado e retirou um resíduo de pó, revelando estrias na estrutura.

Aqui.

Contra o acrílico?

Isso provocou o isolamento?

Não. Só arranhou, mas não quebrou a estrutura. Essa coisa é resistente. Precisaria de um maçarico para abrir.

O Repórter continuava olhando para o sujeito isolado, ten­tando desvendar o que carregava. Podia ser qualquer coisa. Até mesmo uma criança.

Engoliu em seco.

Olhou ao redor. As crianças não estavam lá.

Os adultos e crianças mais velhas estavam ali no tapete, sem vida. Não contou, mas foi sua impressão. Nenhum dos bebês esta­va no chão. Virou alguns corpos e não encontrou nada. Pensou por um instante e saiu em disparada, correndo para dentro da sala de ginástica e entrando na porta de acesso aos dormitórios. Foi dire­tamente para o quarto de um dos casais com um recém-nascido. O coração palpitava, sentia dificuldade para respirar como se seu organismo decidisse sugar seu próprio ar, mas não diminuiu o pas­so. Ouviu o Coronel gritar para que esperasse, pois não sabia o que havia lá dentro.

Escorregou e deslizou pelo chão quando atravessou uma poça de sangue. Outro corpo no caminho. Reduziu a velocidade para não cair, aproveitando para tentar identificar a pessoa. Olhou de relance. Rapidamente, desejou não ter prestado atenção. Metade de um par de óculos estava cravado no naco de carne remanescen­te. O resto estava espalhado pela parede, ou então, havia deslizado até o chão depois do disparo.

O Coronel gritou novamente, movendo-se ligeiramente em sua direção. Arma em punho. Força do hábito. Não esperava en­contrar ninguém vivo ali.

Desconsiderou o conselho do colega e seguiu o caminho. A verdade ou nada. Quantas vezes ainda se machucaria por culpa dessa doença incurável que o inspirava diafciamente, mas que era responsável por tanto pesar? Quem conhece as verdades em pri­meira mão nunca diz que "a verdade dói". Isso é algo que se sente e não se deseja a ninguém. Ilusões constroem verdades mais tênues e aceitáveis, desprovidas da natureza crua e irrefutável do fato em si. Mesmo quando alguém morre, instantaneamente pensamos nos benefícios concedidos a um doente terminal que encontrou a paz, no reduto religioso daqueles que foram para um lugar melhor ou mesmo em detalhes circunstanciais capazes de aplacar nossa in­compreensão. É um vazio inconcebível e velozmente substituído por uma imagem mais aceitável.

Viu o primeiro aposento. Dois homens tombaram perto da porta. A mão do mais forte ainda estava presa à alça do maçarico. O Repórter o conhecia. Era um bom homem. Olhar para aquele semblante incrédulo e frustrado, depois de ver pânico e desespero na antessala, apertou seu coração e intensificou a luta para impedir que suas esperanças fossem arrancadas à força.

A porta do quarto estava escancarada.

O bebê que o Repórter encontrou no berço parecia estar dormindo; num sono pálido e inerte. Pegou a criança no colo e acariciou o rosto gélido e macio. Intimamente, torceu por um mo­vimento que nunca veio. Pensou em como reagiria quando che­gasse sua hora de ver o corpo sem vida do filho recém-nascido. O menino tinha um rosto angelical.

Morreu sorrindo.

Mas morreu. Assim como todas as outras crianças no mun­do, morreu.

 

Quando o Coronel chegou, encontrou o companheiro às lá­grimas, sentado contra a porta. Balançava uma criança nos braços. A lamúria profunda arrepiaria até mesmo o mais insensível dos se­res humanos. Não se tratava de um homem sofrendo, pois, naquele momento, o Repórter inexistia. Em seu lugar havia uma pilha de emoção desprovida de filtros sociais ou máscaras, numa clara vitó­ria do âmago instintivo sobre a razão.

Naquele momento, quando começava a sentir o cheiro da morte por todos os lados, e com horas de atraso em relação ao resto do mundo, o Repórter uniu-se à humanidade e encontrou seu fim.

 

A subida parecia não ter fim.

Emocionalmente destruído, o Repórter mantinha os olhos fixos numa direção qualquer. Contemplava a parede do elevador como se olhasse através da estrutura metálica. Gostaria de cer­rá-los e pensar num lugar mais agradável, num tempo mais feliz, mas temia as visões. Seja do passado imediato ou do futuro inevi­tável. Rostos congelados em desespero, corpos e projeções catas­tróficas alimentavam aquele pesadelo às claras.

O Coronel arriscou um tapinha encorajador nas costas as­sim que terminou de organizar os equipamentos, inclusive o kit laboratorial utilizado para estimar a diferença da hora da morte dos bebês e dos adultos. O quadro batia. O isolamento biológico falhara.

Faltavam cem metros até a superfície quando o telefone to­cou. Eles olharam para a maleta em choque. Ainda havia vida lá fora. Aquele mergulho trágico lhes cortara o contato com o exte­rior e, durante as duas horas que passaram no subsolo, nada mais existia. Famílias, carreiras, apocalipse - não passaram de memó­rias distantes naquele período. O despertador inesperado tocou apenas uma vez; sem quebrar o silêncio da dupla. O sinal ainda era instável. Tão logo a luz do Sol invadiu o elevador, o aparelho tocou novamente.

Prossiga - atendeu o Coronel.

Não, senhor - e fez uma pausa enquanto escutava o su­perior na outra linha. - Negativo, senhor. E precisamos de uma equipe de remoção, assim que possível, para processar os corpos. Selei o ambiente novamente, mas não há sobreviventes... - E seguiu com o relatório.

O Sol continuava castigando o deserto. Desolado, o Repór­ter começou a carregar o jipe da forma mais mecânica possível. O olhar continuava perdido, agora na vastidão amarelada do terre­no ermo. Muito além da mera ausência de lógica, e conhecimento, para explicar os acontecimentos no abrigo, essa tragédia sem vencedores começava a atormentá-lo. Num combate, havia uma histó­ria a ser contada, alguém ficava feliz com a carnificina. Ninguém ganhou e, pela lógica natural da vida, só ele perdeu, pois carregaria as imagens para sempre.

Colocou a última bolsa no carro quando o Coronel encerrou a ligação. Fosse por conta do conteúdo das ordens ou efeito do ca­lor, a primeira coisa que fez foi tirar uma garrafa d'água gelada do engradado térmico no porta-malas e despejar sobre a cabeça care­ca. Chacoalhou com toda a força, como se tentasse expulsar seus demônios pessoais - e talvez a experiência - da memória. Estava ganhando tempo. Algo o incomodava.

O Repórter o encarava inquisitivamente.

Bem - disse. - Claro que eles não gostaram nada de saber o que encontramos.

Vão mandar alguém cuidar deles?

Não tão cedo. Há algum tipo de mobilização em larga es­cala por causa do plano de emergência e todo mundo está ocupado.

E o que o está incomodando?

Não posso lhe contar algumas das coisas, mas o maior pro­blema é que temos um endereço a menos para visitar.

Como assim? - sua voz demonstrava sinais de irritação.

O segundo bunker do nosso itinerário, aquele do Norte, está sob quarentena - contou o Coronel, olhando no mapa e confe­rindo as coordenadas. - É, exatamente ali.

Que tipo de quarentena? O mundo parou de fazer sentido de ontem para hoje, é isso?

Calma, cara. Aconteceu alguma coisa lá e registraram duas explosões nucleares nas coordenadas daquele abrigo, além de um pequeno terremoto localizado. A área toda virou um campo ra­dioativo. O comando acha que uma bomba explodiu no subsolo, causando o terremoto; e outra, na superfície. Sabe se eles tinham ogivas escondidas?

Menor idéia, mas, depois do que vimos ali embaixo, não duvido de mais nada - disse, olhando para o fosso da tumba hermé­tica. - Agora, explosões nucleares? Tem certeza? Parece exagero...

...assim como crianças mortas sem razão? - interrompeu o colega. Não houve resposta. - Ah, e pediram para você ligar para o jornal. Eles andaram descobrindo algumas coisas esquisitas por lá - transmitiu, pegando as chaves do carro e colocando seus óculos escuros. - E eu dirijo.

O recado era claro.

Certo, vou ligar do caminho. Vamos tentar chegar ao bunker do Leste antes que alguém nos telefone dizendo para tomar cuidado com zumbis ou alienígenas psicóticos...

Nenhum dos dois riu.

 

Perdeu a conta de quantas vezes lavou o rosto e enxaguou a boca durante a segunda perna do vôo. A poeira do deserto parecia ter se tornado parte do corpo. Aquele gosto permanecia tão pre­sente quanto a sensação de secura árida. Um resquício do pesadelo. Um dejeto traumático de tudo que viu e ouviu durante a incursão ao abrigo nuclear. As notícias do jornal eram desanimadoras, corroborando com um quadro cada vez mais caótico. Ouviu muito, falou pouco. Evitou revisitar as cenas grotescas durante a conversa.

Pelo menos, naquele momento. Precisaria escrever tudo mesmo, então, preferia passar novamente pelo pesadelo apenas uma vez. Ainda podia sentir o peso do bebê. Perguntou apenas sobre o esta­do da Esposa e o Diretor disse não haver nada de novo e que pode­ria ficar tranqüilo, por mais improvável que a tarefa fosse naquele cenário.

Precisava fazer algo para afastar os demônios. A poeira era desculpa.

Sabia disso.

Assim como todo o peso atribuído à descoberta subterrânea. Já viu coisas piores. Muito piores. Abandonar o conforto da cadei­ra de observador naquele momento crucial da vida desestabilizou os dogmas pessoais. Seria pai. As prioridades estavam em clara mutação. Instáveis, para não dizer perdidas. Colocar a própria vida em risco era rotina e algo com o qual fez suas pazes anos atrás. Se acontecesse, aconteceu e pronto. Resistiu bravamente ao calor da batalha e ao pânico da estrada desolada. Sabia dos perigos de ambos, da loteria envolvida em cada um desses cenários e os acei­tava. Gostava de contar essa história em visitas a universidades e nas raras vezes em que se via no centro das atenções: "Respeite o combate, tema a estrada". E, naquele momento, o Repórter estava no meio da estrada abandonada. Mergulhado num sonho acorda­do. Nenhuma vida por perto. Sem esperança e sem conhecimento. Começava a vivenciar essa sensação de outro modo. Antigamente, cada nova colina ou curva podia significar uma emboscada, se­qüestro, uma mina veicular ou mais um dos perigos do mundo tão civilizado nas grandes cidades, mas ainda selvagem e incons­tante nos lugares mais distantes e ainda comandados pela lei do mais forte. Sentia alívio quando via apenas um criador de bodes ou mulheres carregando baldes d'água ou trouxas de roupa suja nas cabeças. Liberava a tensão. Um mecanismo cada vez mais natural da vida nas estradas sem dono.

Mas não agora.

O futuro estava em jogo. Ou melhor, a perspectiva do fu­turo. Torcia para que a próxima curva trouxesse uma solução. Algum resquício de esperança, algo capaz de diminuir a cres­cente angústia desde o último beijo em sua esposa. Nunca enca­rou a estrada de forma solitária, pois compartilhava a ansiedade com colegas ou, no mínimo, com o motorista. Era uma das regras do jogo e todo mundo sabia disso. E essas regras mudaram sem aviso-prévio.

A estrada continuava lá. E cada um a trilharia sozinho, lu­tando por um sonho de futuro ou uma ilusão de realidade. Ambos dissonantes e particulares. Mentes perdidas na busca pela reden­ção por algo incapaz de ser compreendido e mensurado. Cada um por si, pura e simplesmente. Caminhava lentamente. Cada passo na direção da curva para a direita, atrás de uma montanha, não diminuía a distância, tudo permanecia imutável. Tentou acelerar a velocidade sem sucesso, correr era impossível. Havia algo naquele cotovelo da estrada, algo que precisava ver.

O transe foi quebrado pela batida na porta.

O Repórter se encarava em frente ao espelho da aeronave. Fitava seus olhos com obstinação, buscando respostas inexisten­tes. Com um novo jorro da água refrigerada vislumbrou diversas estradas por onde passou ou imaginou. Não se viu em nenhuma delas. Enxergava apenas o pavimento gasto e as paisagens incólu­mes, encarando o olhar bisbilhoteiro. Ninguém por perto. Nada mais de angústia ou medo.

Tudo se dissipou no vazio desprovido de pessoas ou animais.

Viu um futuro.

Uma nova batida e, agora, só conseguia ver seu rosto assus­tado e exausto.

- Está se aprontando para casar ou o quê? Hora de voltar à realidade, princesa! - brincou o Coronel. - Vamos pousar.

Você não disse que eles não mandariam ajuda? - pergun­tou o Repórter, enquanto descia do avião e via um helicóptero ro­deado por soldados bem armados. O veículo era grande e robusto e, mesmo sem pintura típica, não era um modelo comercial.

O comando não tinha o que fazer naquele abrigo, mas, aqui, precisamos da ajuda deles - respondeu o Coronel, apontando para seus seis colegas de farda. - Esta região está ficando instável por causa do Evento Zero e não podemos demorar muito para in­filtrar a instalação. Querem que eu volte o mais rápido possível.

Ah, então, eles estão aqui para proteger você! - ironizou o Repórter.

Para proteger a missão - retrucou. - Mas, sim, se tiverem que escolher entre mim ou você, não tenha dúvidas... eles me sal­vam antes.

Reconfortante! Eu me lembrarei disso antes de aceitar outra missão sigilosa e com poucos recursos governamentais no próximo apocalipse - disse. - Ainda precisa que eu vá com você e corra o risco de ser deixado para trás ou posso ficar aqui, já que agora vocês estão claramente no comando?

Deixa de bobagem. Eles são apoio. A inteligência enviou alguns relatórios preocupantes. Pode ser que haja atividade militar no complexo e, se formos sozinhos, podemos terminar capturados por algum general renegado maluco ou, até mesmo, mortos. Qual você prefere?

Prefiro saber dessas coisas antes de ser surpreendido por relatórios e decisões. Vocês e seus segredos - rebateu, claramente irritado com a mudança da natureza da missão. - Quão instável?

Bastante. Cogitamos escolta aérea no caminho para cá, mas não foi necessário. Você está melhor?

Acho que sim.

- Ok.

- Ok.

Não se esqueça de pegar a pistola e um daqueles coletes - instruiu o Coronel, apontando para dois contêineres localizados ao lado do grupo de soldados, que, agora, se reunia para ouvir as instruções do líder da missão. A conversa foi rápida e logo todos partiram em direção ao helicóptero. Minutos depois, a unidade se­guia em direção ao novo objetivo. A missão era a mesma: encon­trar vida.

E que história é essa de Evento Zero? - perguntou o Repór­ter, elevando a voz para vencer o som das hélices.

Alguém tinha que dar um nome, não? Ou você prefere fi­car falando "noite em que todas as crianças morreram sem razão" em cada conversa?

Só curiosidade, já imaginava que fosse mais um fino exem­plo da criatividade militar para códigos! Dos mesmos criadores do "Dia-D" e "Hora-H" - satirizou o Repórter, imitando voz de nar­rador de trailers de cinema.

Dois dos soldados riram. O resto não.

O helicóptero voava baixo e com aceleração máxima. O abri­go estava localizado na base de uma montanha, cujos picos haviam sido escavados e transformados em tubos de lançamento depois da última Grande Guerra. Era um dos maiores, e mais secretos, com­plexos nucleares do período e também o primeiro a ser desativado quando o desarmamento começou. Era muito caro mantê-lo em operação e serviu aos propósitos políticos. Mesmo assim, ninguém nunca soube quantos silos realmente existiam. Quando os milio­nários apocalípticos compraram a instalação, não havia vestígio algum de túneis ou acesso aos tais silos e nem mesmo às platafor­mas de lançamento na superfície. Se o objetivo não era deixar nada de útil para os inimigos, o processo de desativação foi concluído com notas máximas. Começou a se lembrar do aparente fim do segundo abrigo e as explosões nucleares relatadas pelos militares e imaginou quantos segredos estariam guardados nessas arcas apo­calípticas. Até agora elas não passavam de armadilhas mais letais que o fim para o qual foram projetadas. Mal conseguia criar uma teoria plausível para justificar tamanho colapso em menos de vinte e quatro horas.

Questionar o estado mental dos ocupantes dos abrigos era o caminho mais óbvio, porém conhecia muitas daquelas pessoas e a maioria delas tinha apenas medo demais e, com a mesma in­tensidade, negava a possibilidade de que nada aconteceria ou de que o nível de proteção era ínfimo caso a catástrofe fosse geológi­ca. "Pouca proteção é melhor que proteção nenhuma", disse uma das mulheres. Humm, ainda penso neles como personagens de uma matéria curiosa. Eles, pelo menos, fizeram algo enquanto a gente tirava barato na redação. Não deu em nada, pelo jeito, mas fizeram.

Olhou para o relógio pela primeira vez. Dezesseis horas des­de o primeiro relato. Dormira um total de quatro nas últimas se­tenta e oito horas. Mesmo assim não sentia sono e aplacou a fome com algumas frutas e uma barrinha de nutrientes no avião, o sufi­ciente para se manter de pé.

Quanto tempo até chegarmos? - perguntou ao navegador. Prontamente, o sujeito olhou para o Coronel, buscando aprovação. O militar consentiu com a cabeça.

Cinqüenta minutos - respondeu.

Preciso pedir para ir ao banheiro também ou posso mijar na hora que me der na telha? - indagou o Repórter. - Devo ter um saquinho aqui na mochila, se precisar me viro, sabe.

Sem olhar para o Repórter, o Coronel acionou seu comuni­cador com a equipe:

Ele é civil, mas está conosco na missão, portanto tratem-no como um de nós. Ele tem liberação total para as informações táti­cas e, no caso de combate, deve ser tratado da mesma forma que os demais membros da unidade. É uma ordem - decretou.

Os integrantes da escolta não precisavam responder. Ordens eram ordens.

Feliz agora? - disse, virando-se para o Repórter.

Era o mínimo, não? - respondeu. - Enfim, qual o plano?

O mesmo do primeiro bunker. Tentaremos contato por rá­dio e pelo intercomunicador. Se não der certo, vamos entrar. De­pendendo das circunstâncias, os soldados vão na frente. De qual­quer forma, eles entram com a gente.

Como assim?

Veja você mesmo - disse o Repórter, jogando duas fotos de satélite no colo do Repórter. - Antes que fique pensando que estou inventando.

A montanha estava ali, assim como a entrada do abrigo e um mundaréu de gente ocupava a área frontal num vasto semi-círculo delimitado pela encosta, como um anfiteatro com lotação máxima.

O que são os pontos cinza? - perguntou. Havia quatro deles.

Provavelmente veículos.

Militares?

Espero que não. Mas esse grandão mais afastado tem tudo para ser um blindado.

Um tanque?

Blindado leve, mas, ainda assim, um blindado.

Putz! Como esse pessoal foi parar ali?

Algum jornalista espertinho andou escrevendo reporta­gens sobre esses abrigos, sabe. E, na última delas, havia um mapa bastante detalhado sobre a localização e a finalidade de cada um deles. Ficou fácil.

Mas... por quê? - Agora foi sua vez de ignorar a provoca­ção. - É um abrigo, não uma fonte de milagres!

Não sei. Talvez elas também queiram se proteger, vai saber. Milagres chegam de diversas formas para os que acreditam.

Ah, só mais uma coisa - continuou o Repórter. - Essa ope­ração tem autorização local? Eles podem estar aqui? - disse, olhan­do para os soldados.

Nem eles e nem você. Ou você se lembra de termos passado pela imigração na última visita? Olha ali - respondeu o Coronel, apontando para a janela do helicóptero.

O Repórter viu a cena com olhos arregalados. Uma multidão se aglomerava no sopé da montanha.

Ainda acha que devemos entrar sozinhos? - disse o Coro­nel, sorrindo com a pequena vitória. Seu colega não respondeu e continuou estudando a cena cuja improbabilidade era tão assusta­dora quanto a inegável realidade.

Vamos pousar na frente da entrada - anunciou o Coronel. - Não se preocupe com as pessoas, elas vão sair - disse ao piloto.

Senhor, três alvos avistados na zona de pouso. Qual proto­colo de combate aqui? Permissão para eliminar inimigos?

Negativo. Ainda não há ameaça. Protocolo diplomático: atirem em caso de ordem direta ou agressão iminente. Repito. Re­tornem fogo se eu ordenar ou se identificarem agressão clara. E pouse com a cabine de frente para a multidão, não quero vocês na linha de fogo caso alguém atire. Compreendido?

Sim, senhor - disse o piloto. - Dois minutos para pouso, senhor.

Entendido. Senhores, preparem-se. E você fica no meio da formação, ok? - disse para o Repórter, jogando um capacete em seu colo; dentro da proteção estava o rádio de campo. - Está liga­do, pode começar a fazer seus telefonemas. Pelo que estou vendo, não teremos muito tempo para falar com o pessoal, claro, se já não tiverem se matado como no primeiro bunker.

Sabe que esse é um dos abrigos com trava temporal, certo?

Sim. Por isso é bom alguém atender... e rápido.

E aqueles soldados ali na entrada?

Más notícias.

Precisa daquilo? - perguntou o Repórter, vendo um dos soldados que preparava uma série de explosivos de alto impacto.

É precaução, mas sabe o que estou pensando?

Não.

Que não precisaremos tentar explodir nada. Quero estar errado, mas acho que aqueles caras tiveram a mesma idéia que a gente. Torça para já não terem destruído o lugar. Agora começa a ligar, é uma ordem - disse, dando uma piscadela mais amedrontadora do que descontraída. O Coronel estava em modo de combate e isso era algo que ele adorava.

O Repórter não questionou o tom, nem sua aparente inclu­são no rol de comandados do Coronel. Sair vivo dali era o objetivo e não ganharia absolutamente nada tentando bancar o defensor das liberdades civis ou se comportando como um arrogante mi­mado. O helicóptero girava e descia lentamente na área designada, enquanto o piloto aguardava a saída das últimas pessoas que se dispersavam conforme o transporte se aproximava.

No solo, três guardas olhavam curiosos para os visitantes inesperados. Um deles correu para dentro da estrutura quando o rádio deu o primeiro sinal de vida.

Estática.

Um chiado desconfortável, pelo menos, para o Repórter. Es­perava o mesmo silêncio incômodo do primeiro abrigo como se torcesse por mais uma catástrofe a fim de apressar o retorno para casa e o inevitável confronto com sua própria tragédia. A estática quebrou sua expectativa e reaqueceu o interesse pela missão, até então, improdutiva. Havia alguém lá embaixo.

A estática continuava.

Parte dos soldados concentrava-se de olhos fechados. Dois deles olhavam fixamente para o rádio, aguardando por algum si­nal do que esperar. Podiam ouvir as pessoas gritando do lado de fora, mesmo com o som abafado das hélices do transporte. Uma lata atingiu a fundaria e todos reagiram instantaneamente.

Eram convidados indesejados em uma festa fechada e com anfitriões hostis.

O Coronel chamou a atenção da unidade para sua última instrução:

Aguardem meu... - foi interrompido por uma mudança na recepção da estática, com intervalos de som ambiente, ruídos e fragmentos de voz.

"... shhh... bam... Po... f..vor... lguém..."

O Especialista em Comunicação tomou o aparelho das mãos do Repórter rapidamente e digitou uma seqüência de comandos no teclado digital. O sinal estabilizou-se a tempo de captar uma última palavra:

"... socorro!"

Ajuda está a caminho! Estamos aqui! Alô! Câmbio?!

A transmissão foi interrompida e o silêncio reinou depois de um chiado estranho. Um grito. O Coronel apenas sinalizou para o time e até mesmo o jornalista entendeu. Os olhos brilhavam com intensidade e fúria. A pele escura lhe conferia uma fisionomia sombria e assustadora, uma verdadeira cara de poucos amigos.

Formação Delta 5 - ordenou. - E não errem!

As regras do jogo mudaram.

Haveria sangue.

O helicóptero pousou.

 

O transporte ignorou o plano anterior, girou dando as cos­tas para os civis e posicionou-se de frente para a frágil formação defensiva que se criava na entrada do bunker. O Repórter acom­panhou os movimentos apressados dos defensores pela janela re­forçada e imaginou que o Coronel fazia o mesmo, porém, quando olhou para o colega, apenas presenciou um leve fechar de olhos e um semblante até então desconhecido do militar. Ele já sabia tudo de que precisava sobre a posição adversária. Duas barricadas im­provisadas com os jipes bege e o blindado protegiam os flancos da entrada da estrutura, bastante similar à anterior, exceto pela montanha gigantesca ao fundo. Três soldados no lado direito, ma­nejando fuzis. Dois no lado esquerdo, já apontando suas metralha­doras para os recém-chegados. Nenhum sinal de pânico. Nenhum garoto ali. Todos homens-feitos. Todos experientes. Todos prontos. O Garoto surgiu pouco depois, vestindo um uniforme impecável, correndo abestado de dentro da estrutura e logo sendo seguido por mais três colegas de farda. Ele foi ao encontro do homem que se mantinha em pé, no meio da formação, aguardando o pouso com os braços cruzados e semblante sisudo. O Garoto passou seu reca­do e correu para a proteção mais próxima.

Chegou mais gente - alertou o Repórter.

O Coronel olhou rapidamente, movendo a cabeça minima­mente, e iniciou sua operação.

Eu vou contar até três. Tudo pronto para o pouso?

Sim, senhor - respondeu o piloto, prontamente.

Um - e gesticulou para que o jornalista chegasse mais per­to da porta.

O helicóptero pairou por alguns instantes.

Dois.

Os pilotos trocaram um comentário em código e o copiloto acionou um dos controles, onde suas mãos já estavam posicionadas.

Três! - bradou o Coronel.

O Repórter foi surpreendido pela descida brusca do veículo, que, ao tocar o chão de forma abrupta, permitiu que os soldados e o Repórter saltassem, e levantou-se velozmente, avançando contra a posição adversária. Com o nariz abaixado em um movimento perigosamente próximo ao solo, as poderosas hélices provocaram uma mini-tempestade de areia na direção dos defensores, além de proteger o time de assalto de eventuais disparos. O oficial inimigo perdeu o equilíbrio e quase perdeu a cabeça com a subida veloz do helicóptero. O caminho estava aberto.

O Coronel e seus homens moviam-se com extrema velocida­de e estavam a poucos metros da formação adversária quando seus ocupantes puderam se recompor. O líder dos defensores tentou sa­car sua pistola, enquanto gritava ordens. Ele levou o primeiro tiro, no ombro. E o segundo, na perna. Tombou inconsciente enquanto o Coronel ocupava sua posição ao centro, atrás dele, o Repórter, que cobria a retaguarda. À direita, uma forte coronhada de fuzil desabilitava o último defensor; à esquerda, dois soldados ainda se protegiam atrás do jipe e atiravam como podiam, mais como for­ma de manter alguma distância entre sua posição e a dos atacan­tes do que como uma tentativa organizada de combate. Atiravam contra o vazio; atingindo os civis em pânico. Foram rapidamente flanqueados pelos invasores, que atiraram quase à queima-roupa quando a poeira baixou.

O Garotou fugiu. Correu em meio à confusão, esbarrou em quase tudo pelo seu caminho, mas encontrou a entrada do abrigo. Seu rifle ainda descansava em suas costas, o quepe bem cuidado tinha voado para longe e sua atenção era dedicada a um rádio de ondas curtas que manuseava nervosamente. A mensagem era ób­via, mas não puderam ouvi-la por conta de um forte ruído que surgia às costas da formação.

- Melhor checar a retaguarda, Coronel - um dos soldados avisou pelo comunicador. O Repórter foi o primeiro a responder ao chamado e deparou-se com a turba, inicialmente afastada pela ação relâmpago de sua unidade, mas recobrando-se ameaçadoramente e já ganhando unidade por trás de urros e ofensas na língua natal. Carregavam dois corpos, atingidos pelos disparos dos defen­sores. Se decidissem avançar, a missão acabaria ali mesmo. Com ou sem armas, seu número seria esmagador e os invasores haviam acabado de eliminar seus compatriotas.

Embora apenas momentaneamente, a incursão militar apa­gou a lembrança do misterioso fenômeno e reafirmou a necessida­de primária de sobrevivência responsável pela presença daquelas pessoas numa área tão erma e tão sem recursos. Os temores e es­peranças comprovaram-se simultaneamente, afinal, o silêncio do governo sobre o conteúdo do abrigo e o recente conflito deixavam uma coisa muito clara: havia algo lá dentro; algo capaz de salvar suas famílias e seu futuro; algo tão valioso quanto suas próprias vidas.

Para espanto do Coronel, a turba era das mais peculiares. Embora barulhenta e irada pela invasão e as mortes, ele rapida­mente percebeu a natureza de seus integrantes, que tentavam se armar como podiam, recolhendo pedaços de pau, algumas peque­nas armas de fogo, pés de cabra, chaves de roda e outros objetos pesados encontrados dentro de seus carros e charretes. A linha de frente trazia os homens, especialmente os mais truculentos, po­rém, imediatamente atrás deles - muitas vezes de mãos dadas -, mulheres. Todas grávidas. Todas divididas entre o medo dos es­trangeiros armados e a chance de salvar suas crianças.

A multidão avançava.

Fala a língua deles? - perguntou o Coronel, enquanto ca­minhava na direção da entrada do abrigo e gesticulava para que o Repórter o acompanhasse.

Sim - respondeu o jornalista.

Ótimo, então fale com eles enquanto a gente desce. Vou deixar dois homens com você. E, se precisar, chame o helicóptero. Não vai ser nada bonito, mas eles dão conta do recado.

E digo o que a eles? Não sei se vão querer conversar muito.

Faça o que você faz melhor, conte a verdade. Onde há ver­dade, há esperança. Se falhar, lute como homem e não se esconda atrás de mentiras. A verdade é seu único escudo, acredite nisso.

O Coronel sinalizou para o resto do time e fez uma pausa, colocando a mão sobre o ombro do Repórter.

Já pensou que suas palavras pudessem ser, de fato, a dife­rença entre a vida e a morte?

Nunca dessa maneira.

Esse é o novo mundo. Não falhe. Voltaremos o mais rá­pido possível - disse e, com uma piscadela, virou as costas e de­sapareceu pelas pesadas portas externas do abrigo, visivelmente danificadas pelos explosivos usados para arrombar a estrutura. O elevador de carga, muito mais rústico que o anterior, esperava à esquerda da entrada no final de um curto corredor. O som do gerador ocupava o ambiente, quando não era salpicado por explo­são, tiros e gritos.

O Garoto viu a passagem dos invasores, sentado à sombra, com as mãos levantadas e os olhos fixos no chão.

Os soldados desceram.

O Repórter guardou sua arma, respirou fundo e falou.

Nenhum tiro foi disparado.

 

Com a promessa de compartilhar qualquer descoberta de dentro do bunker, a multidão aguardava. Muitos tinham os olhos cerrados, em oração profunda, e aguardavam em vigília silenciosa. O calor incomodava e a sombra da montanha ainda estava longe de cobrir a aglomeração. Ventava pouco e cada som se propagava com facilidade. Um pigarro. Um espirro. Uma criança reclaman­do. O elevador atracando no nível do solo.

A atividade pelo rádio confirmou o retorno da equipe. As mensagens eram urgentes e a retirada seria imediata. O helicópte­ro havia pousado quando a ameaça da multidão fora neutralizada e, agora, acionava suas hélices. O Repórter pediu calma ao grupo com quem conversava e correu na direção da estrutura. Precisa­va de notícias para cumprir sua parte do acordo. Porém, antes de chegar, viu um soldado, correndo com uma criança no colo. Mes­mo ferido no ombro, ele sorria. Os dois guardas abandonaram seu posto e partiram no auxílio de outro soldado, que saía arrastando um homem inconsciente. Ele vestia agasalho esportivo, tinha ca­belo curto, pele branca e aparentava ter 40 anos. O Repórter não o reconheceu por conta da sujeira e da velocidade com a qual o le­vavam ao veículo. O Coronel surgiu pouco depois acompanhando o terceiro soldado. Ambos apontavam suas armas para o elevador, cobrindo a retirada. O superior sinalizou e o companheiro lançou uma granada na direção do fosso. Segundos depois, ela explodiu e a plataforma, que começava a descer, despencou violentamente.

Onde está... - indagou o Repórter, sem conseguir finalizar a frase, notando a ausência de um membro da equipe e encarando o Coronel, nitidamente cansado e com alguns arranhões no rosto.

Depois de limpar o rosto rapidamente, o Coronel diminuiu o passo e, sem pestanejar, respirou fundo enquanto olhava ao redor.

Uma vida por duas. Troca justa. E, pelo jeito, você fez um bom trabalho aqui. Podia ser pior. Vamos nessa.

Espere - interpelou o jornalista. - Fiz um trato com eles. Qual a idade daquela criança? Ele é o pai dela? Não me lembro dele.

Não sei. Só saberemos quando ele acordar. Ela é pequena o suficiente para ter menos de 1 ano. De qualquer forma, tirá-la de lá viva já foi milagroso por si só.

Ruim assim?

Não sobrou mais ninguém vivo. Nem nosso, nem deles. - O olhar era de pesar, mas imerso no ódio pela perda de um de seus comandados. - Aquele sujeito conseguiu se esconder com a garotinha no colo e estava prestes a se explodir com uma granada quando chegamos. Foi por pouco. Fale com eles e agradeça. Mas seja breve, logo vão perceber que nenhum soldado deles voltou lá de baixo.

Então, há esperança.

Pode ser. Havia vida naquele inferno e isso já me satisfaz muito hoje. Precisamos ir. É hora de voltarmos para casa e aprovei­tar mais tempo com nossas famílias, não acha?

A melhor idéia do dia, pode apostar. Só preciso de um mi­nuto - disse, dirigindo-se ao grupo mais próximo.

Ainda admirado pela calmaria encontrada na superfície, o Coronel arriscou um sorriso. Havia esperança.

Mas não para ele.

Duas balas atravessaram-lhe o pescoço e o peito. Morreu an­tes de chegar ao chão.

Aos berros, o Garoto continuava atirando contra tudo e con­tra todos da porta do bunker.

O Repórter mirou a pistola e descarregou o pente enquan­to um dos soldados mais próximos ao helicóptero armou um lan- ça-mísseis e atirou sem pensar. Os estilhaços voaram para todos os lados e uma grande nuvem de poeira envolveu a todos.

Os tiros pararam.

Ao lado do corpo do Coronel, o Repórter chorava pela se­gunda vez. Movido por ódio e frustração, não conseguia rechaçar a idéia de que ninguém sobreviveria aos efeitos daquela maldição.

Ignorou os civis.

Eles estavam por conta própria.

A missão falhou.

A única solução oferecida pelos abrigos era uma morte mais rápida.

Uma pedra solitária voou. O Repórter desmaiou.

O vento castigava os ouvidos do Repórter enquanto cami­nhava pela estrada deserta. Nada de uivos ou ecos distantes, ape­nas um ribombar no ouvido, num estalo contínuo e incômodo. Reagia a cada estímulo sonoro, procurando a fonte das ondas atormentadoras. Sem sucesso. A cada novo estalo, virava-se e encarava apenas réplicas da mesma desolação da direção anterior.

Estava só.

Sentia o gosto da poeira nos lábios secos, o calor do Sol na pele ardente e na sola de sapato contra o solo escaldante, e um medo inexplicável, como as demais sensações, pois não havia areia sendo levada por aquele vento bizarro, nem sinal de estrela no céu, encoberto por nuvens sem fim. A estrada seguia à frente. Olhou para trás. O mesmo cenário. Continuou a caminhar. Devia haver uma razão para ter feito a escolha anteriormente... e para estar na­quele lugar estranho. Pensou ter andado por horas, embora tudo estivesse no mesmo lugar. As montanhas distantes, o vento com suas batidas surreais, o mesmo calor. Olhou para os pés e eles se moviam. Assim como a estrada. Parou.

Olá! Alguém aí? - arriscou, sem sucesso.

Permaneceu imóvel e ouviu um choro de criança. Tentou procurar a fonte. Continuava sozinho. Ouviu uma voz de mulher. Um timbre conhecido e reconfortante chamava pelo seu nome de algum lugar muito próximo. Havia alguém atrás dele. Era a Esposa.

Querida, que bom ouvir sua voz! - disse ao virar as costas, sorrindo pela primeira vez. Encontrou a mesma vastidão desolada que o assolava havia horas. Frustrado, retomou o caminho e viu um distante ponto branco, movendo-se na sua direção. Aguardou pacientemente. Tentou encontrar lógica naquela caminhada surreal, tentou se lembrar de como chegara ali e só conseguia pensar na Esposa e no Filho. Fechou os olhos para repetir a brincadeira que inventaram juntos. De mãos dadas, o casal imaginava e des­crevia o rosto do Filho e antecipava dias felizes pela frente.

Mas, em vez de invocar a presença deles, viu um homem des­maiado e uma garotinha. Sua última esperança. Mesmo em meio a tanta confusão, ele ficou surpreso quando ela falou.

Vá para casa. Eles precisam de você.

Ah? Como você pode falar? Você é um bebê! - disse, incré­dulo. - A não ser que...

Ela permaneceu em silêncio. E ele tomou consciência de duas coisas: estava sonhando e a garotinha era mais velha do que gosta­ria. Abriu os olhos e o ponto branco transformou-se num homem que se aproximava.

As roupas esfarrapadas, a antiga capa marrom e um trapo com padrões pretos e brancos amarrado na cintura eram compa­tíveis com o rosto castigado e desanimado do velho andarilho e o lembravam da juventude, quando vestiu uma fantasia parecida com aquela numa festa. Ele carregava uma placa amarelada pelo tempo, mas ainda resistindo àquele lugar. Ela trazia a mensagem: O FIM JÁ CHEGOU!

Cada passo era lento e sofrido, mas ele avançava sem dar atenção ao observador.

O Repórter ficou intrigado e, mesmo sem esperar por uma resposta, arriscou uma pergunta:

Ainda há esperança?

O homem seguiu em seu caminho e ultrapassou o jorna­lista sem dizer uma palavra. Porém, o Repórter continuou acom­panhando a passagem e foi atraído para a placa uma vez mais. A mensagem havia mudado: NÃO PARA VOCÊ!

Espere, o que quer dizer com isso... - disse, tentando cor­rer atrás do sujeito que se distanciava cada vez mais, mas não saía do lugar. Os gritos eram abafados por aquele som cada vez mais forte.

Um solavanco o tirou do transe. O som das hélices do he­licóptero castigava seus ouvidos e um dos soldados tentava acor­dá-lo. No chão, à sua frente, um saco preto envolvia o corpo do Co­ronel. No banco oposto ao dele, no fundo da aeronave, o homem resgatado ganhava consciência e um dos militares brincava com a garotinha no colo.

Ei, cara! Acorde! Tudo bem com você? Vamos descer daqui a pouco - disse o soldado.

Tudo, tudo. Obrigado - respondeu, ainda molenga pelo sono. Precisava gritar para vencer a poluição sonora dos motores. - Alguma novidade?

O soldado apenas apontou na direção dos passageiros.

Ei! Ei! - berrou o Repórter, tocando o homem no joelho. - Ela é sua filha?!

O sujeito negou com a cabeça.

Quantos anos ela tem? - perguntou, mostrando o dedo in­dicador para facilitar na resposta.

Ele sinalizou de volta com o indicador e cortou o ar com a mão. Um ano e meio.

Hora de voltar para casa.

 

Sem trabalhar e dormir desde as primeiras mortes, as olheiras pe­sadas chamavam a atenção no rosto cansado e lavado por lágrimas do Mecânico. Alguém tocou a campainha quando ele deixou os la­mentos da mulher e o consolo inútil das duas tias e da vizinha e saiu de casa pelos fundos, reduzindo um pouco seus passos ao passar pela cozinha. Inusitadamente, fitou o refrigerador. Raios delicados de luz esgueiravam-se pela leve cortina de extremidades bordadas da janela acima da pia e ganhavam volume ao se encontrar com o ar estagnado da cozinha. Um copo usado - com marca de batom - descansava na divisória cromada. A pouca louça acumulada nos últimos dias mal enchia a cuba. Comer tornara-se secundário. Ele seguiu o caminho e logo abriu a porta do quintal, levando alguns segundos para se acostumar à claridade do dia ensolarado. Pegou a pá de aço, pendurada ao lado de suas outras ferramentas nos gan­chos da parede da varanda de madeira. O primeiro golpe quase atingiu seu pé por conta do desleixo e da falta de força. A ferra­menta rebateu e caiu no chão. O Mecânico ajoelhou-se, segurou o cabo com as duas mãos e apertou o máximo que pôde, ruborizou conforme as veias saltavam do pescoço e os dedos tentavam ser mais fortes que a madeira. Não tinha mais lágrimas, mas a sali­va lhe sobrava; escorria e respingava para todos os lados. Tremia. Como, na falta de melhor termo, uma panela de pressão com a vál­vula de escape selada. A pá batia contra o solo socado da pequena trilha que levava da porta dos fundos até o portão de serviço. Tre­mia e soluçava enquanto buscava razões para se levantar. Demorou a recobrar a forma, quando o fez, levantou o instrumento e baixou com toda a força. Uma. Duas. Três vezes. A cada golpe, mais terra voava e o solo recebia todo seu ódio em silêncio.

Em poucos minutos, a cova improvisada estava pronta.

O Mecânico ficou parado e fitava a extremidade sul do bu­raco. Ofegava compulsivamente. Levantou o olhar para a varan­da da casa quando ouviu a porta se abrir. O Padre carregava um emaranhado de panos brancos nos braços. Um rosário estava no topo da pequena veste mortuária. Fez uma pausa ao chegar ao topo da escada que dava acesso ao quintal e olhou ao redor. O corre­dor de casas geminadas seguia em ambos os lados e todas estavam em silêncio, embora muitas tivessem os quintais abarrotados por brinquedos infantis, balanços em árvores ou pequenas piscinas de plástico. Algumas delas já tinham as próprias sepulturas caseiras, com lápides e cruzes improvisadas e pequenas homenagens. Laços, ursos de pelúcia, roupas de recém-nascidos.

Era a nova realidade com o entupimento do serviço público, ainda atolado com as fatalidades da primeira noite. Cemitérios su­perlotaram, não havia mais espaço para velórios e os crematórios não assumiam, mas perderam o controle sobre a entrega correta das cinzas, tamanha a quantidade de cerimônias. A idéia de sepulturas domésticas foi dada pelo Presidente, em rede nacional, enquanto os jornais estampavam o pedido na primeira página. O apelo também pedia para que os mortos não fossem guardados em freezers ou geladeiras. Nem todos atenderam. Pelo menos, não prontamente. O Padre podia sentir o frio proveniente do pequeno corpo congelado em seus braços.

Caminhou lentamente em direção à cova e logo ganhou a companhia das ocupantes da casa. O homem não se moveu e se manteve em silêncio durante a cerimônia. Quando proferiu o últi­mo "Amém", o Padre abriu os olhos e elevou a cabeça com o intuito de olhar para o céu azul. Foi interrompido pelo olhar desesperado da Esposa do Repórter, na janela mais alta do fundo da casa do outro lado da rua..

Ele acenou. Ela respondeu.

Continuava sozinha.

A obrigação ecumênica era a de guiar aqueles afligidos pela dor e a de preparar aqueles que ainda a sentiriam na pele. Não im­portava o nível de fé ou o tamanho da esperança presente em cada uma das famílias que ele ajudou, o desfecho era sempre o mesmo. De uma coisa o Padre tinha certeza: lá dentro, encontraria talvez a única pessoa que ainda acreditasse num final feliz, afinal, en­quanto o marido não retornasse ou ligasse, boas notícias poderiam chegar. Depois de ter presenciado tantas pessoas questionarem ou, até mesmo, perderem sua fé, reconfortava-se no fato de alguém acreditar tanto numa pessoa e num ideal.

Despediu-se da família, saiu pelo portão de serviço sem mon­tar na bicicleta que o acompanhava e atravessou o vasto gramado, pontuado por árvores secas, que separava as residências daquele grupo de casas mais simples daquelas mais modernas, onde viviam o Repórter e a Esposa. Deu a volta pelo muro da casa até chegar à entrada, na rua principal. Ela esperava sentada no pórtico, ao lado de uma bandeja com uma jarra transparente, dois copos, um pe­queno pote laranja e a última edição do jornal para o qual o marido trabalhava. A manchete agourenta estampava a primeira página:

 

RACIONE ALIMENTOS ENLATADOS

 

Estimativas do governo garantem abastecimento de carne e vegetais por apenas três semanas.

 

- Boa tarde - disse a Esposa, com os cabelos tocando os ombros, cobertos pelas finas alças da camiseta regata branca, que combinava com a larga calça creme. Uma blusinha leve repousava em seu colo.

Deus a abençoe, minha filha.

A todos nós, Padre. Como eles estão? - perguntou, gesti­culando com a cabeça na direção da casa do Mecânico. - Ele ainda deve estar sozinho lá no quintal.

Imagino. Eles estão tão chocados como todos os outros, mas devem ficar bem. Fazer o funeral faz bem para a mente e en­cerra algumas questões. Não há razão para se apegar a situações irreversíveis.

É, eu sei - disse a Esposa, mantendo os olhos fixos no ho­rizonte.

Desculpe, não quis... - tentou remediar, tocando o ombro e atraindo a atenção. Ela sorria gentilmente. Ele apresentava uma mescla de incredulidade com arrependimento genuíno.

Sem problemas, não sou alienada e até abri um pequeno espaço na geladeira - disse, séria, para espanto do religioso, pego de surpresa e sem reação imediata.

Você não acha que deveria... - tentou argumentar.

Estou brincando - interrompeu rapidamente. - Acreditou mesmo? Nunca pensei que nos distanciaríamos dessa maneira. Você já foi capaz até de antecipar minhas ações.

Bons tempos. Nada mais me surpreende ultimamente, acabei ficando anestesiado com tantas histórias tristes e decisões extremas. Lembro-me da primeira vez em que fui chamado no hospital para apoiar um dos párocos. O pai dele estava desenganado pelos médicos e a vida daquele homem era tudo para o filho. Sofri ao ver alguém questionando a fé com tanto pesar. Nenhum argumento ajudava, nem mesmo o fato de o pai ter vivido bem e feliz por setenta anos. Ele não aceitava e questionava as razões por trás da partida de um homem, de fato, extremamente bondoso a par da longevidade de assassinos, políticos corruptos e ditadores linha-dura. Realmente, não tinha como negar a lógica e só pude incentivá-lo a acreditar na certeza de uma vida plena e do pai estar prestes a encontrar o conforto e o amor de Deus. A mão d'Ele é jus­ta e a seu lado sentam-se os homens de bem. Ele morreu pouco de­pois. Na semana seguinte, enquanto o filho rezava solitariamente na capela, percebi que, bem lá no fundo, toda a tristeza vinha exa­tamente da benevolência do pai, que era seu grande companheiro, confidente e amigo. Ele não temia pela partida, mas sim pelo fato de ficar sozinho. Ele depositava não apenas a esperança, mas tam­bém a fé na certeza de que veria o pai sorrindo todas as manhãs. Reaprender a viver depois de tanto tempo é algo complicado e in­certo. E a incerteza, inevitavelmente, atrai o medo.

Pensei que a fé servia para eliminar a incerteza.

A fé é uma ótima maneira de ampliar o caráter das pessoas. Muita gente esquece que Deus mostra o caminho, não as respostas. Temos que encontrá-las por conta própria.

Quer limonada? - disse a Esposa, despejando a bebida num dos copos. Gotas d'água se formavam e desciam pela jarra trans­parente e úmida. Alguns cubos de gelo ainda resistiam ao calor.

Sim, obrigado.

Depois de ver tudo isso e estar perto de tantas famílias e tan­to sofrimento, o senhor ainda acredita em Deus da mesma forma?

Não conheço outra forma de acreditar. Muita gente tem visto só a metade vazia do copo - disse, pegando a limonada.

Então isso também faz parte do plano? Digo, tudo o que aconteceu...

Não sei. Acredito que tudo tem uma razão de ser, seja essa tragédia, seja nós dois aqui, conversando e tomando limonada. Tem mais açúcar? - pediu o Padre, ao provar a bebida pela primei­ra vez.

No potinho laranja - disse, apontando para a bandeja.

Obrigado.

Talvez ele esteja certo. Devemos acreditar em nós mesmos e no que podemos fazer, não ficar procurando explicação em dog­mas distantes ou numa fé que, como o senhor disse, não dá res­postas.

Você está aprendendo a pensar como o Repórter.

Talvez.

Fico triste que esteja questionando sua fé. De qualquer for­ma, é um direito seu.

Não, longe disso. Mas ele parece ter razão e desde que tudo isso começou, a abordagem dele é a única que faz sentido por aqui. Ter fé não está ajudando muito as outras famílias, não é mesmo? O desfecho é sempre o mesmo.

Infelizmente, ainda não vimos nenhum milagre - disse, bebericando um pouco da bebida, devidamente adoçada. - Seu marido sempre foi assim, mas confesso ter dificuldades para acei­tar o pragmatismo como a única saída.

Quando todas as possibilidades se esgotam, a idéia mais óbvia se torna a mais provável - brincou a Esposa, imitando os tre­jeitos do Repórter. Ambos sorriram. - Posso confessar uma coisa? - perguntou, despejando mais suco e, em seguida, olhando pro­fundamente para os olhos do Padre.

Claro.

Bem lá no fundo, só quero que ele volte e fique aqui comigo. O jornal de hoje mencionou várias ondas de violência e gente co­meçando a perder a cabeça. Estou com medo. Estou acostumada a passar por esses períodos sozinha e posso parecer egoísta, mas não quero que ele saia por aí tentando resolver os problemas do resto do mundo. Não importa o que vá acontecer, não agüento mais ficar sozinha e sem saber onde ele está se metendo.

Pelo que conheço dele, tudo o que ele está fazendo é por sua causa e do filho de vocês. Aliás, o que o Médico disse?

Ele acha que podemos agüentar mais uns cinco dias, uma semana, se eu der sorte, não mais que isso. Combinamos de fazer um exame amanhã, se conseguirmos sair daqui no meio dessa ba­gunça toda. Ao contrário do senhor, não posso sair andando por aí. Sabe aquela história de que notícias ruins vêm a cavalo? Bem, ele não funciona assim. Não comigo. Se tivesse algo de bom para contar, teria ligado antes de decolar.

Então ele já está vindo?

Sim, o Diretor me assegurou agora mesmo. Ele deve chegar amanhã cedo.

Vou rezar por boas notícias. Você vai ficar bem?

Na medida do possível, sim.

Preciso voltar para a igreja e fazer mais algumas visitas até o fim do dia. O caminho é longo.

O pessoal da igreja tem alguma novidade sobre as causas da tragédia?

Não sei, não tive tempo de ler o jornal da tarde. Disseram algo?

Nada no jornal. Pensei que vocês tivessem contato com os cientistas eclesiásticos ou algo assim.

Estamos sem comunicação como todo mundo, minha filha.

Ainda acho estranho você me chamar de "minha filha". Nunca pensei que a batina fosse lhe transformar tanto assim.

Força do hábito.

Os dois riram da piada batida.

E já faz dez anos, não fui ordenado ontem. Nossos tempos de faculdade ficaram lá atrás, minha cara.

Agora fica todo formal - provocou. - Conseguiu tempo para pegar seus mantimentos? Melhor guardar tudo que puder en­quanto as coisas ainda estão mais ou menos organizadas. Estou morrendo de medo da hora em que a comida fresca acabar.

Nossa igreja é um dos pontos de distribuição do bairro. Teremos o suficiente para passarmos por essa provação e, mesmo que não tenhamos muito, nossa obrigação é auxiliar quem pedir nossa ajuda.

Tem certeza de que não foi ordenado ontem, mesmo? - arriscou uma nova brincadeira. - Não seja bobo e guarde comida para você. Boas intenções não enchem barriga e as pessoas vão se aproveitar de você. Como sempre fizeram.

Se essa for minha vocação, pelo menos terei ajudado mais.

Vai ajudar mais se estiver alimentado e apto a dar seus conselhos e conforto a quem precisar... - Parou de repente, massageando a barriga. - Vai nos ajudar mais. Gostaria que estivesse por perto quando chegar a hora.

Não prometo, mas vou tentar.

Obrigada.

A Esposa aproveitou uma leve brisa que soprou da rua e se permitiu um breve momento de tranqüilidade, sentindo o Sol ten­tando aquecer o rosto enquanto o vento a mantinha fresca. O Pa­dre não falou nada e ela aproveitou o silêncio.

Sabe que estou gostando da ausência de carros nas ruas? Tudo ficou mais... humm... pacífico.

Mas os blindados do exército são mais barulhentos do que vários carros juntos.

Ah, eles nem passam tanto por aqui - disse a Esposa, sendo imediatamente contrariada pela passagem acelerada de duas viatu­ras policiais e um transporte militar. O Padre olhou com sarcasmo e resistiu à piada. Ela sorriu e continuou. - Os problemas estão acontecendo lá no centro. Pelo menos, por enquanto.

Vamos rezar para que terminem logo. Obrigado pela hos­pitalidade. Passo aqui depois do jantar para ouvir as boas-novas. A pastoral não conseguiu nenhum desses telefones via satélite para a gente, então temos que fazer tudo pessoalmente.

Pelo menos, podemos passar mais tempo juntos - disse a Esposa, batendo o dedo indicador em seu copo de suco e encerran­do com uma piscadela. - O meu ainda está meio cheio.

Bom ouvir isso.

Fique com Deus - despediu-se o religioso.

Amém. Até mais tarde.

Levantou-se, pegou a bicicleta e partiu pelo mesmo caminho por onde chegara. Ela permaneceu sentada, tomando o resto do suco. Assim que virou o último gole, olhou para o copo vazio e questionou se realmente acreditava no que acabara de dizer. O Sol acabara de iniciar seu arco descendente e apenas algumas horas a separavam do marido e das descobertas. Só conseguia pensar naquele abraço caloroso e na sensação de ficar a seu lado. Quando o abraçava, nada mais parecia existir e era tudo que ela queria na­quele momento.

Um chute do bebê e uma forte pontada na barriga acabaram com o devaneio, garantindo tempo suficiente para que ela acompa­nhasse a passagem veloz de um grande número de bicicletas. Elas seguiam o mesmo caminho das já distantes sirenes dos veículos militares.

Os ciclistas gritavam e faziam barulho. Ela não ouviu e pre­feriu voltar para dentro de casa. Se tivesse ouvido, com certeza não o faria com tanta calma e tranqüilidade.

O brado era desafiador. VERDADE OU MORTE.

 

O mesmo coro era entoado pelos manifestantes já reunidos na praça de protestos na qual se transformara a frente da casa do Governador, a atual sede do governo, localizada a quinze quar­teirões da residência do Repórter. Da janela do segundo andar, o político observava a multidão em constante crescimento. Alguns rostos conhecidos, outros totalmente anônimos. Muitos reclama­vam e o criticavam. Todos, sem exceção, buscavam respostas. E ele não tinha nenhuma.

Tomou um gole da garrafa d'água que o acompanhava havia algumas horas e soltou um pouco mais a gravata; o paletó fazia companhia para a poltrona da biblioteca desde a noite anterior. Deixou a água escorrer devagar pela garganta, torcendo para que levasse suas dúvidas para algum lugar distante. Embora não recla­masse do dinheiro envolvido, escolheu o serviço público por idea­lismo. Gostava de ajudar e dormia todos os dias com orgulho de dedicar seu tempo a melhorar o lugar onde morava para a família e todas as demais pessoas. Queria se sentir daquela maneira nova­mente. Era difícil pensar em ideais quando as regras eram quebra­das de forma tão abrupta. Precisava reencontrar razões.

E uma delas abriu a porta enquanto ele pensava. Ele só per­cebeu a presença da Primeira-dama quando ela o abraçou carinho­samente pela cintura e o beijou na bochecha. O Governador fechou os olhos e sorriu.

Você deveria me abraçar assim o dia todo - ordenou leve­mente.

Se você ficasse parado por mais de cinco minutos, eu ado­raria! - devolveu a Primeira-dama, apertando o abraço. - Acho que não vou deixar você sair deste quarto hoje.

Seria fantástico, não? Fazer de conta que nada aconteceu e que nossa praça não está tomada por manifestantes.

Muita gente mesmo?

Ele apontou para a janela.

E não param de chegar.

Como ela está? - perguntou, trazendo-a para o seu lado e devolvendo o abraço. Eles olhavam pela janela enquanto um ho­mem falava no centro da multidão.

Ainda muito abatida. Deixei-a assistindo a um filme no quarto. Ainda não tive coragem de tentar explicar a situação toda para ela. Já está sendo muito difícil aceitar a morte do cachorro, imagina o que vai acontecer com a cabecinha dela só de tentar...

É por isso que eu a amo. Você está certa - interrompeu o marido. - E ela vai crescer neste mundo. Pode apostar, ela vai en­tender isso melhor do que a gente.

Não sei o que é pior. Ela também vai saber que não teremos futuro, se isso continuar. Já pensou nisso?

Sim.

E...?

Esse é o pensamento positivo. Que ela vá viver o suficiente para compreender tudo isso, mesmo que o resultado seja desanimador.

Positivo?

O Governador se aproximou da janela e trouxe a esposa. Co­locou a garrafa na mesinha de cabeceira e abriu a cortina total­mente, revelando o resto da rua e um trecho mais amplo do bairro. Sirenes policiais piscavam a distância e um mundaréu de gente se aproximava lentamente.

A Primeira-dama levou a mão ao peito quando percebeu o cenário.

Alguns saques já foram relatados e esse não é o único lugar onde há protestos em massa. Basicamente, quem não está em casa chorando pelos filhos, resolveu tomar satisfação. E nem passamos por dois dias depois da tragédia. Imagine isso aí - disse, gesticu­lando na direção da rua - em uma semana ou um mês. Vai ser tenso e qualquer coisa poderá deflagrar uma grande confusão.

O exército e a polícia não vão ajudá-lo a manter a paz?

Eles são tão humanos quanto a gente, querida. Precisam comer e acreditar no futuro. Serão leais a quem puder garantir es­sas duas coisas a eles.

E o governo pode?

Não por muito tempo.

Inconscientemente, apertou o abraço no marido. O calafrio que se seguiu foi inevitável.

E o que você vai fazer?

Cumprir minha função e, na pior das hipóteses, ganhar tempo.

Tempo para quê?

Sinceramente? Não sei. Mas tem muita gente tentando so­lucionar todo esse mistério e, quem sabe, encontrar um meio de parar com as mortes. Ou um milagre.

Vou rezar por isso.

Faça isso... faça isso. Vou até lá falar com as pessoas - disse, tomando um último gole d'água.

Quem é o sujeito lá embaixo? - perguntou a mulher, leve­mente preocupada.

Ele começou a manifestação hoje cedo. É um Blogueiro meio famoso. Está vendo as pessoas distribuindo panfletos na bor­da do grupo?

Ela respondeu com a cabeça.

São os seguidores dele. Eles estão divulgando em todos os bairros adjacentes com folhetos, de bicicletas e até megafones. Ele começou reclamando da derrubada da internet, mas logo percebeu que poderia arregimentar mais atenção ao envolver as demandas gerais nos discursos dele. O sujeito adora atenção e parece estar dando certo.

Cuidado, tá?

O Governador sorriu.

Não ganhei três eleições à toa, meu amor. É hora do show.

Beijou a esposa, deu uma piscadela e saiu do quarto.

 

Ela permaneceu em frente à janela, observando e esperando pela chegada do marido, que se infiltrou no meio da multidão e se aproximou do centro. Sem paletó e com a barba malfeita, quase nin­guém o reconheceu imediatamente. Quando ela notou que o Gover­nador se aprontava para entrar em cena, abriu a janela para ouvi-lo.

Mas foi o Blogueiro quem aproveitou a oportunidade abrup­tamente.

Ao ver a janela se abrir e depois de ter visto o político ali mi­nutos antes, o Blogueiro interrompeu as palavras de ordem contra o autoritarismo do governo e apontou veementemente para o se­gundo andar da casa, enquanto mudava o tom e a mensagem com o microfone sem fio auricular.

Esperem, meus amigos! Esperem! Sabem por que tudo isso está acontecendo? Por que aquele homem está nos enganando! En­quanto estamos aqui sofrendo e vendo nossas famílias aos prantos, ele fica lá dentro da fortaleza autoritária e ignora nossos pedidos, mente na cara dura e espera que acreditemos na honestidade do governo! Aquele homem é mais um da corja que nos trata com in­diferença e espera que fiquemos mansinhos como animais de esti­mação esperando pelo abate. Ele não sabe da nossa realidade! Ele não sabe o que está afetando cada um de nós! E ele não sabe que não vamos aceitar nenhuma desculpa esfarrapada vinda dele ou do governo corrupto! Queremos a verdade. Ele tem medo de nos enca­rar! Ele se acha superior! Ele está errado e vamos provar isso a ele!

O som das caixas atingia boa parte do público e os movi­mentos energéticos do Blogueiro contagiavam mesmo aqueles que não o ouviam claramente. Havia motivos para a desconfiança, mas o exagero sobrepujara a razão. Apenas essa noção já seria o sufi­ciente para a estratégia do Governador, mas o rompante de acusa­ções desferido pelo líder popular era um buffet completo para um político experiente e convicto.

Sem microfone e com o mesmo alcance, o Governador respi­rou fundo, sorriu e falou:

Eu realmente não sei de muitas coisas. Especialmente da­quelas que ninguém, de fato, sabe - começou o Governador, para total surpresa e alarme do Blogueiro, que continuava apontando desafiadoramente para a janela da casa. - Estava falando com mi­nha esposa agora a pouco sobre as decisões que precisaremos tomar muito em breve. E não falo do governo, mas de cada um de nós. Nosso mundo passou por algo traumático e inexplicável e a responsabilidade de descobrir como continuar vivendo nessa nova realidade é nossa. Todo mundo tem o direito de reclamar, de ter dúvidas, de escolher no que acreditar. Eu mesmo estou cheio de dúvidas e adoraria ter alguma certeza do futuro, mas não posso mentir para vocês. Não tenho.

Algumas vozes começaram a ecoar na multidão. Algumas vaias esparsas surgiam.

Não vamos continuar aturando suas desculpas esfarrapa­das! - o Blogueiro retomou o ataque. Mas a atitude durou pouco e logo foi interrompida pelo dedo em riste do Governador.

Por favor! Você falou e eu escutei. Agora é a minha vez. Você cobrou minha presença. Cá estou. Quer ouvir o que tenho a dizer ou sua reclamação era pura provocação? Atendi ao chamado e o mínimo que você tem que fazer é me escutar, concorda? Depois pode voltar a reclamar da internet, do telefone, da pizzaria e de todas as coisas fundamentais para a sua vida - enfatizou o Governador - que estão indisponíveis no momento. Combinados?

O Blogueiro não respondeu. O Governador continuou, rece­bendo um microfone.

Do mesmo modo como não posso explicar a nenhum de vocês o que aconteceu, não tinha nada a dizer à minha irmã, quan­do a filha dela morreu. Pude apenas ficar do lado dela por alguns minutos e voltar para cá, para cumprir minha função e tentar man­ter nossa vida em andamento na medida do possível. Se alguém no governo tem a resposta, podem apostar que não me contou. Minha responsabilidade é com os sistemas essenciais do Estado, para pro­teger cada um de vocês. Já pensaram nas implicações de tudo que passamos? Deixem as reclamações pessoais de lado por um minuto e pensem: o que vai ser de nós? Vamos voltar à barbárie como num filme de ficção ou vamos nos portar como uma raça civilizada e nos unir para evitar o fim da nossa sociedade? Ou melhor, como vamos tratar a pessoa que está ao nosso lado nesse exato momento? Olhem para o lado e pensem. Você vai ajudar essa pessoa ou vai roubar a casa dela se a sua comida acabar? - Ele fez uma pausa, enquanto a maioria dos presentes se entreolhava com receio, sem tirar os olhos do Blogueiro nem por um segundo. - É com isso que precisam ocu­par suas mentes, como fazer essa transição de forma organizada e sem tumulto. Violência só vai acelerar o processo, independentemente da direção que ele esteja seguindo. Quero acreditar na nossa capacidade de superação, em tudo que podemos fazer em momen­tos difíceis quando nos unimos. Mas, sinceramente, não sei o que pensar quando temos muitos de nossos familiares lamentando as mortes em suas famílias e cá estamos, discutindo teorias da conspi­ração, culpando o governo, ofendendo uns aos outros e falando. O governo precisa da sua ajuda. Não, o governo não precisa. Desculpe. Seus vizinhos, familiares e amigos precisam da sua ajuda. Não faremos nada para interromper essa manifestação e nem aqueles que optarem pelo protesto verbal. Aliás, peço que fiquem! É um direito de vocês. Assim como é obrigação de todos aqui ajudar da melhor forma possível. Precisamos de apoio nos centros de saúde, na distribuição de alimentos, nos serviços funerários, na coleta de lixo e, pelo amor de Deus, para descobrir o que aconteceu. Quem estiver disposto a fazer, em vez de falar e reclamar, venha comigo até a minha casa que vamos encontrar algo para você fazer e ajudar a comunidade. Agora peço licença a todos, minha família e todo o Estado precisam de mim. Obrigado pela atenção.

Tão logo terminou o discurso, virou as costas e voltou para a residência. No meio do caminho, seus seguranças particulares o alcançaram e o escoltaram até o portão. O Blogueiro esboçou uma reação, mas, enquanto procurava por palavras para conter a ava­lanche verbal do Governador, as palmas começaram; assim como os protestos vindos dos agitadores virtuais. As placas e os cartazes foram abaixo, sendo substituídos por punhos cerrados e palavras de ordem, pelo menos, na perspectiva dos protestantes.

Verdade ou Morte! - decretava a maioria. Um deles, po­rém, destoou do grupo ao reclamar tão alucinadamente, que lhe faltaram forças para continuar de pé. Com as veias saltadas e a pele vermelha por conta do esforço, mesmo caído de joelhos, o magricelo ainda conseguia esgoelar quase roucamente:

Queremos nossa liberdade de volta, seu filho da puta! Per­di meus amigos, perdi minha vida, preciso da minha liberdade! Mentiroso!

Olhem só o que vocês estão fazendo com a gente, seus covardes! - gritou uma garota vestindo um colete quadriculado, óculos de armação grossa e batom de um verde gritante. O Gover­nador não reduziu o passo e já subia os degraus da sua varanda, devidamente protegido por uma linha de soldados que começa­vam a armar barricadas. A multidão estava ficando inquieta e as palmas logo cessaram em prol da moral agitada anterior à visita do político.

Cerca de trinta pessoas falavam com os soldados atendendo ao chamado.

As demais retornavam lentamente ao estado de apatia. Elas precisavam de algo mais ou de uma simples razão para fazer algo além de esperar por um milagre.

Palavras vazias! - disse o Blogueiro, voltando à carga. - Acreditar nessas promessas não fará nada por nós, ele - apontando para a casa do Governador - não fará nada por nós!

E a resistência, enfim, começou.

E quem fará, se não nós mesmos? Se não escolhermos um caminho com propósito? - respondeu uma voz anônima. O Blogueiro olhava afoito procurando pela fonte, - Qual liberdade seu amigo quer de volta? O que lhe foi tirado? Pode responder? Já per­demos algo irrecuperável e vocês ainda inventam mais problemas?

Ninguém mais falava. Pessoas entreolhavam-se. O Sol estava quase a pino, banhando os manifestantes e aplacando os ânimos.

Aqui, garoto - falou novamente o sujeito que, agora, le­vantava o braço e tentava abrir caminho até o centro do protesto. Logo um curto corredor se formou e ele pôde avançar com mais facilidade, sempre agradecendo aos que abriam espaço, cumpri­mentando alguns conhecidos e distribuindo tapinhas nas costas. - Estou aqui, estou aqui.

Então, pode responder a alguma das minhas perguntas ou meu medo é válido e vocês não sabem a verdadeira razão dessa reclamação toda? - indagou o sujeito parrudo, com barba castanha e farta, camiseta xadrez com os três botões de cima abertos, uma corrente de prata no pescoço, olhos profundos e voz treinada. Ele cutucava as unhas enquanto aguardava a resposta.

Quem é você? - perguntou o Blogueiro, tentando ganhar tempo.

Eu até diria que é rude responder a uma pergunta com outra, mas pelo jeito você nunca precisou da ajuda do meu pesso­al - disse o homem, arrancando algumas gargalhadas da ala mais madura da platéia. - Você não anda de táxi, não é?

Não, protegemos o meio ambiente e não damos dinhei­ro para quem fatura em cima da exploração de petróleo e polui o mundo... - reagiu instintivamente o líder on-line, mas logo foi interrompido.

...e aposto que não come carne, tem uns seis gatos em casa e conheceu a maioria dos seus amiguinhos - provocou, gesticulando na direção do restante do grupo - hoje não foi?

Quem é você para... - indignou-se o Blogueiro, completa­mente perdido.

Ele é o dono da companhia de táxi aqui do bairro! - al­guém gritou da multidão.

E também um dos membros da comunidade de radioama­dor da cidade, muito prazer - completou. - Agora que você já sabe quem sou, pode responder alguma das perguntas? Até agora só sei que você não anda de táxi.

O governo está mentindo e tirou nossa liberdade de ex­pressão - finalmente se articulou.

Certo, e o que você chama isso que está acontecendo aqui e agora?

A internet... - continuou.

A internet pode estar fora do ar, mas cá estamos, tendo o mesmo debate. Poderia ter ficado na empresa, já que meus táxis estão fora de combate mesmo, e falar no rádio que, aliás, não foi cortado, mas reunimos todo mundo aqui para resolver as coisas mais rápido. Todos aqui têm suas dúvidas e demandas. Portanto, pergunto novamente: que liberdade é essa? O que vocês querem? - argumentou o Radialista.

O jovem magricelo continuava a chorar prostrado no chão.

O que ELE quer? - perguntou, apontando para o sujeito surtado.

Nossa liberdade de comunicação, de poder saber a verdade, de não ser enganado e de poder expor as mentiras para todo mun­do. É nosso direito e as pessoas precisam saber - devolveu o Blo­gueiro, despejando seu discurso com empolgação e partidarismo.

Justo. Realmente, uma causa justa, mas a gente vem ten­tando fazer isso desde os anos 1960 e até agora só conseguimos umas teorias bem bacanas - descontraiu o Radialista; mais risadas e algumas palmas vieram dos membros mais veteranos. - Pensan­do assim, estou na fila antes de vocês. Mas preciso ser justo e não quero ser o inimigo, aliás, ninguém quer...

Então pare de nos interromper! Tudo que você conseguiu foi deixar aquele mentiroso ir embora sem dar satisfação.

Ei, garoto - interrompeu de maneira ríspida. - Como eu dizia, ninguém aqui quer confusão e o homem acabou de vir até aqui, falou o que precisava falar, você não abriu a boca e, agora, resolveu se descabelar de novo?

Se não quer briga, então veio fazer o que aqui?

Vim entender a razão de tanto exagero e raiva - disse o Radialista, contemporizando. - Garoto...

Pare de me chamar de garoto, estou na casa dos 30 e tenho dois filhos - protestou o Blogueiro.

E eu já estou na casa dos 70 e tenho netos, se é para ser concurso de idade, você continua sendo garoto. Mas, enfim, meu jovem senhor - disse em deboche vivi e vi muitas coisas nesse mundo, mas nenhuma nem perto dessa tragédia. Mesmo que exis­ta algum envolvimento governamental por alguma arma maluca, testes que deram errado ou seja lá qual for sua teoria, o que o Go­vernador teria para esconder? Estou monitorando as freqüências de rádio dos militares e da polícia e se alguém lá no topo sabe al­guma coisa, pode apostar que se esqueceu de contar para o resto da cadeia de comando.

O murmurinho aumentava em meio aos ouvintes. Realmen­te, boa parte da comunidade dos radioamadores estava ali e cor­roborava a história do enviado do jornal sobre a transparência nas informações vindas do governo.

Aliás, seus filhos estão bem?

Sim - respondeu prontamente.

Ótimo. Bom saber. Bom saber. Só tenho certeza de que se você tivesse sido vítima, sua luta seria outra.

Ora, não me venha... - o Blogueiro foi interrompido por uma voz da multidão, pois mesmo entre os mais velhos havia dis­cordância.

Você ganhou uma licitação pública e está defendendo aque­les safados! - desafiou um homem com rabo de cavalo grisalho, barba malfeita, jaqueta jeans com emblemas militares bordados e uma bandana patriota na cabeça. - Para de puxar o saco e deixa o garoto falar!

Podemos ficar falando aqui até amanhã, idiota. Sua gera­ção não ganhou respeito por ficar exercitando a língua ou foi por isso que você ganhou essas insígnias? - Havia orgulho nas palavras do Radialista pela lembrança das histórias do avô veterano e de sua própria luta para construir sua empresa depois de amargar dois longos anos sem emprego nem horizontes. - Você já foi muito bom com logística, por que não responde ao chamado do Governador e vai lá ajudar em vez de ficar criando confusão, hein?

Não houve resposta.

Novamente fui rude. Só quis saber de você sem falar de mim. Quero saber o que aconteceu - disse o Radialista, mudando de assunto habilmente. - Vocês querem o mesmo?

Sim - respondeu.

Ótimo. Temos algo em comum, veja só. E como você espe­ra conseguir isso?

Não vamos arredar o pé daqui! Depois que você acabar com esse discurso puxa-saco, as pessoas vão notar que estamos certos e vamos pressionar o governo! Vamos invadir a casa do Go­vernador e descobrir a verdade - disse em voz alta o Blogueiro, ganhando volume por conta das reações energéticas de seus seguidores. - O poder do povo vai vencer! Acabou a enganação! Vamos recuperar nossa liberdade e nossas vidas!

Certo, certo - disse o Radialista, observando sua platéia e olhando nos olhos do maior número possível de pessoas. - Só para registro, você quer lutar, inflamar e até invadir aquela casa cheia de soldados e policiais por uma liberdade ideal e que não lhe foi tomada... e, pelo que entendi, pela vida que você ainda tem, mas, por alguma razão misteriosa para mim, está em perigo. É isso?

Por que você insiste tanto em defender os calhordas gover­namentais? Você é mais tolo do que eles! É por gente como você que precisamos descobrir a verdade, para mostrar quão ingênuos vocês foram,

Você e seus vinte amigos vão fazer tudo isso e salvar a hu­manidade?

Tenho meio milhão de seguidores na internet e, assim que forçarmos o governo a religar a rede, seremos mais fortes do que nunca e não haverá exército capaz de nos deter. A verdade será des­coberta - profetizou com certeza inabalável. A mensagem, entre­tanto, não ganhava novos adeptos e a multidão continuava atenta ao debate sem tomar parte.

Bom, vamos fazer o seguinte? Eu quero saber o que acon­teceu e se vai acontecer de novo por temer pelo futuro dos meus netos, pelo futuro da cidade que amo, do país que minha família defendeu com a vida. Quero saber para poder fazer o possível e o impossível na salvação cia liberdade que, não importa o que você pense, eu ainda tenho, e da vida que ainda pulsa dentro de mim. Não vou ficar aqui lutando contra um monstro que ainda não exis­te, garoto. Quero impedir que ele saia do ovo e que malucos como você, com certeza, estão criando mundo afora. - Deixando de lado o interlocutor, ele continuou focando na platéia: - Vou fazer isso da maneira mais lógica e produtiva possível. Vou até a casa que esse pessoal aqui quer invadir na marra, entrar pela porta da. frente, aceitar o convite do Governador e ajudar. Até meus carros ficarem todos presos no congestionamento, eu não cobrei nada das mães que precisavam de transporte para os hospitais, até ajudei num parto que não deu em nada, mas ainda tenho minhas esperanças. Prefiro morrer tolo e puxa-saco a ver tudo isso aqui ruir por conta de gente distante da realidade. Quer lutar pela internet? A escolha é sua, eu prefiro lutar pelo futuro do seu meio milhão de seguidores. Vou lá procurar o que fazer, vem comigo?

Pego de surpresa pelo convite, o Blogueiro reagiu instintiva­mente:

Não. Não vou me vender ou cair na sua conversa.

A escolha é sua - disse o Radialista, encerrando a conversa e abandonando o centro da praça, a caminho da casa do Gover­nador. Uma pequena multidão o acompanhava com olhares espe­rançosos e, na maioria dos casos, necessidade de algo para ocupar as mentes e afastar os fantasmas que pairavam sobre a civilização havia duas noites.

Chegando ao portão, já protegido por duas fileiras de barrei­ras de metal recentemente posicionadas pela guarnição, o Radia­lista anunciou:

Vim ajudar, posso falar com o Governador?

Eu também quero ajudar - disse a voz grossa do Veterano, com um sorriso amarelo e sem jeito ao ser reconhecido pelo Radia­lista. - Nunca se renda, nunca desista.

O Radialista sorriu enquanto o soldado pedia autorização pelo rádio.

Na janela do segundo andar, o Governador observava e re­cebia o chamado. Ele consentiu com a cabeça enquanto falava no comunicador.

Ok, mas só você - disse o soldado, apontando para o Ra­dialista e lançando uma garrafa d'água ao Veterano. - Por en­quanto, ainda, não sabemos direito como organizar todo mundo lá dentro e é melhor evitar bagunça - explicou rapidamente, com um sorriso.

O Radialista cruzou as barreiras, subiu os lances de escada e, em menos de um minuto, depois de uma breve revista pelo se­gurança do Governador, entrou na casa. A porta fechou atrás dele e o som do murmurinho popular foi substituído pelo chiado de rádios, passos velozes de militares e agentes civis. A casa pulsava. O cheiro de café pairava no ar servindo como portal sensorial para aquela dimensão agitada e funcional. Aqueles homens e mulheres tinham uma missão impossível... e acreditavam poder cumpri-la.

A pedido do assessor responsável pelos voluntários, o Radia­lista ficou sentado numa poltrona confortável de veludo bege ao lado da porta de entrada por alguns minutos. Ele pôde observar toda a movimentação e, por interesse pessoal, mantinha a atenção focada nas distantes transmissões de rádio oriundas da antiga sala de TV, devidamente convertida em centro de operações na sede provisória do governo estadual. As conversas incessantes variavam entre a fúnebre transmissão das contínuas mortes até debates aca­lorados causados pela implementação das etapas mais recentes do plano federal. Um assessor descuidado atraiu a atenção de todos ao atender um chamado pelo rádio sem conectar o fone de ouvi­do. Antes que pudesse reagir, o vozeirão furioso de um prefeito da zona rural monopolizou o ambiente.

Eles estão levando tudo! - dizia com urgência. - Precisa­mos das sementes para o plantio da nova safra e eles estão levando tudo! E o pouco que deixaram não vai sustentar a cidade! Eles não podem fazer isso!

Ei! - interrompeu um dos operadores de comunicação, ta­pando o microfone do próprio sistema com as mãos e gesticulando na direção do alvo da gritaria. - Coloque o fone, pô!

Atrapalhado e em pânico, o assessor conectou o fone pronta­mente, mas levou alguns segundos para conseguir posicioná-lo no lugar certo. O nariz e a testa foram paradas inexplicáveis por conta daquelas mãos agitadas e desconexas antes de conseguir repousar o equipamento nos ouvidos. Os colegas de mesa riram. O inferno pes­soal acabara de começar, afinal, no outro lado da linha havia um ho­mem disposto a ganhar o direito de alimentar sua cidade no grito.

O Radialista pensava em oferecer ajuda quando ouviu seu nome ser chamado do alto das escadas. Olhou prontamente e viu a figura do Governador, acompanhado da Primeira-dama, descendo com passos seguros. Um assessor foi ao seu encontro, entregando um relatório que leu imediatamente, agradecendo ao funcionário e continuando o caminho até o Radialista, já devidamente de pé e sorrindo pelo orgulho de ser recebido pessoalmente.

Obrigado pelo apoio lá fora - disse o Governador, estenden­do a mão para cumprimentar o Radialista. Não vestia mais o terno e a gravata vinho estava afrouxada, com direito a algumas gotas de suco de laranja borrando a extremidade. Ainda conseguiu afrouxar uma das mangas da camisa branca antes de chegar à porta.

Claro, senhor Governador - respondeu, para sua surpresa, levemente tímido. - Mas não fiz nada, o senhor não precisava de ajuda lá. Só queria evitar problemas.

Obrigado por não ter dito a ninguém sobre os relatos de saques e focos de violência que estão sendo transmitidos pelas on­das curtas. Sabemos que suas estações foram notificadas e você poderia muito bem ter mencionado isso lá fora.

Ah, aquilo - reagiu o Radialista, abrindo um leve sorriso. - Mas é verdade?

Foi isso que o impediu? Saber se era verdade ou não?

Não, preferi ficar quieto, vendo a tentativa daquele moleque metido de botar na cabeça de todo mundo que isso não passa de uma gigantesca teoria da conspiração - disse, pensando um pouco e fa­zendo uma pausa antes de retomar a pergunta anterior. - É verdade?

O Governador manteve o sorriso e respondeu de pronto:

Sim.

A Filha do Governador passou correndo entre um cômodo e outro no lado oposto à porta e distraiu o Radialista, claramente intrigado com a reação do político perante algo tão assustador. Os primeiros relatos de saques foram superficiais e os operadores de ondas curtas encararam como algo natural e esperado por conta da situação. Entretanto, as informações foram ficando mais assus­tadoras conforme supermercados, bancos e até bancos de sangue começaram a ser alvos de ataques. O exército só conseguia cobrir os pontos de distribuição designados pelo governo, e a Polícia ain­da dedicava a maior parte de seu contingente à proteção das ca­deias e ao auxílio das mães grávidas. Ninguém queria acreditar. Cada novo parto poderia interromper a seqüência de mortes; cada mãe poderia ter a chave.

As primeiras menções a mortes aconteceram, quando um grupo de traficantes invadiu o hospital público, deu cabo dos po­liciais de plantão e resgatou o chefe da quadrilha, internado havia cinco dias. Já consciente, o sujeito teria dado a ordem para saquea­rem o banco de sangue e o estoque de antibióticos do hospital. Três funcionários tentaram impedir o roubo e pagaram com a vida. A comunidade das ondas curtas ponderou retransmitir as informa­ções, porém foi o Radialista quem os convenceu a manter tudo em sigilo até que houvesse confirmação oficial ou a própria Polícia dis­sesse algo.

Entendo a calma, mas não consigo sorrir.

Do mesmo jeito que você transmitiu calma a seus amigos, quero fazer o mesmo. Mas estou sorrindo por outra razão,

E posso perguntar qual é?

Claro, eu já iria dizer de qualquer forma. Eu estou aqui, você está aqui e toda essa gente está aqui - disse, gesticulando ao redor, ainda sorrindo logo, acredito num desfecho feliz. Estamos lutan­do e vamos trabalhar para cuidar de todo mundo, não é mesmo?

Pensando por esse lado...

O Governador interrompeu:

Não há outro modo de se pensar. Se ponderarmos qualquer outro cenário, vamos dar de cara com o maior desafio da humani­dade e nenhum homem pode assimilar tamanha adversidade. Em­bora seja algo muito pessoal, acredito que nossa raça tenha passa­do por algo parecido num passado distante.

Como assim?

Você é um homem de fé?

Sim.

Mesmo com tudo isso?

Sim - insistiu o Radialista.

Ótimo - devolveu o Governador, lendo mais uma página entregue pelo Secretário de Comunicação. - E a fé lhe dá forças? Dá propósito à existência e mostra que há algo mais além dessa vida, não é mesmo?

É no que acredito, sim, senhor.

Faz sentido para você pensar que tenhamos desenvolvido esse conceito ou, para os que acreditam, descoberto a existência de Deus num momento de necessidade como esse? Um cientista amigo meu gosta de brincar com aquele chavão: "O homem teme aquilo que não compreende e idolatra o que pode lhe salvar." Nunca pude discordar totalmente dele.

Então o senhor não acredita?

Sim, sim, claro - disse o governante, olhando para uma belíssima foto do casamento na parede da sala de estar. Versões jovens dele e da Primeira-dama ajoelhavam-se perante o altar da catedral. De olhos fechados, o casal aceitava as bênçãos do Bispo. O Governador tinha acabado de começar a carreira política e já era homem de bons contatos, especialmente na arquidiocese. - Não é questão de acreditar.

O Radialista manteve os olhos fixos no Governador, esperando a conclusão do argumento. Ele gesticulou ao convidado na direção de uma antessala à direita da porta de entrada. O Governador pou­sou a mão sobre o ombro do Radialista e, gentilmente, o empurrou naquela direção, enquanto caminhavam lado a lado. E continuou:

É questão de entender as verdadeiras motivações e desco­brir a coisa certa para dizer às pessoas. Não há meio-termo nesse cenário. Apenas a mensagem certa vai funcionar. Precisamos di­zer algo motivador e sempre positivo. Logo, ajuda se acreditarmos numa saída para isso tudo.

Então precisamos nos enganar e enganar a todo mundo no processo?

Não! - disse o Governador.

O Radialista aguardou uma resposta e manteve os olhos fi­xos nos do político.

Devemos escolher no que acreditar. E, neste momento, acreditar em nós mesmos é tudo que nos resta. Já tem gente demais lá fora esperando por uma tragédia e o medo é mais contagiante que nossa esperança romântica. E que tal começarmos a colocar tudo isso em prática?

O discurso do Governador funcionou. O Radialista sorria, talvez pela inocência e simplicidade do argumento, talvez por também precisar de algo em que acreditar. De qualquer forma, sorria.

Claro, como posso ajudar?

Vou ter uma reunião na sede do jornal e preciso que ve­nha comigo. Vou precisar de um porta-voz lá fora e sei que posso contar contigo. Há um novo pacote de más notícias chegando e precisamos nos preparar.

Preparar para enganar as pessoas? Não sei se gosto disso - indagou o Radialista, apreciando alguns detalhes das duas pra­teleiras repletas de delicadas estátuas de porcelana pintadas com esmero pela Primeira-dama. Uma espessa cortina bege bloqueava a janela externa, mas, ao mesmo tempo, permitia a entrada da luz. O cheiro do café parecia ser repelido pela tranqüilidade presente naquele aposento. O papel de parede pontuado discretamente por flores inspirava um local idílico sem correr o risco de ser brega. Os móveis almofadados com motivos florais eram convidativos.

Nosso trabalho é apenas não espalhar as más notícias. O jornal já está fazendo isso pela gente e, daqui a pouco, vai ser im­possível conter qualquer coisa, por isso precisamos trabalhar nessa coisa toda da organização e da confiança em nossa habilidade de sobreviver a toda essa calamidade. Precisamos ajudar, manter as pessoas longe das áreas de risco e incentivar a paz. De acordo?

O Radialista concordou com a cabeça.

A porta da casa se abriu e um soldado entrou na ante-sala com velocidade.

Senhor Governador, tem mais uma pessoa querendo falar com o senhor - informou o soldado, abrindo uma fresta da cortina bege e apontando para um sujeito inquieto que discutia com os de­mais voluntários. O Blogueiro acabara de furar a fila e havia aceita­do o convite. Ele era acompanhado apenas pelo claro nervosismo.

O que você acha? - perguntou o Governador, curioso pela reação rápida do Blogueiro e ponderando sobre suas reais motivações.

Ele não mudaria de idéia tão cedo.

Com certeza.

Mas o senhor fez um convite. Ele está aceitando.

Pois é, fiz mesmo - disse, enquanto pensava e coçava a nuca. - Preciso honrar o convite e estou curioso para saber o que ele está armando.

Ele pode ser perigoso.

Eu sei.

Vai arriscar?

Escolhi acreditar no que podemos fazer juntos, não na di­visão.

Certo.

O soldado continuava esperando sob o batente da ante-sala. Rifle de prontidão. Semblante fixo. O Governador o encarou com maravilhamento. Mesmo depois de tudo isso, esses garotos ainda se­guem as regras. Mal sabem que logo vão precisar quebrar todas elas para proteger esse novo mundo. Bem, quebrar as regras vai ser o me­nor dos nossos problemas. Do jeito que as coisas vão, precisaremos reinventar tudo. Tudo, ponderou, enquanto abria a cortina parcialmente para olhar o comportamento do Blogueiro; também perce­beu a presença de alguém, no centro da praça, falando com as pes­soas e, aparentemente, convencendo-as a deixar a área. Entretanto, mais e mais gente continuava chegando em busca de notícias.

Mande-o entrar - disse o Governador. O soldado prestou continência e saiu imediatamente, deixando a dupla a sós. Dois co­pos de café foram entregues por um secretário e o vapor era visível, servindo como reforço para a sensação de bem-estar causada pelo aroma familiar e reconfortante. O Governador fechou os olhos por um instante. Lembrou-se dos pais; dos cafés da manhã na fazenda da família; do cheiro do cappuccino na manhã após a noite de núpcias; até mesmo daqueles comerciais de TV com famílias felizes e gente bem-disposta. O sorriso do político abriu espaço para o semblante genuinamente feliz.

Tenho uma idéia para você e seus amigos - falou, pacífico, antes mesmo de voltar a abrir os olhos. - Se conseguirmos os equi­pamentos, vocês poderiam montar uma estação local e espalhar alto-falantes pela praça? Se o fluxo de pessoas vai continuar tão pesado por aqui, precisamos armar um jeito melhor de nos comu­nicarmos com eles. Não posso ficar indo até lá toda vez que algum maluco resolver que o capeta mora aqui dentro.

O Radialista sorriu.

Podemos, claro - respondeu de pronto, juntando-se a ele perto da janela. - Posso até colocar um microfone perto da janela no segundo andar para, quando quiser falar, é só subir e todos vão ouvir. Conheço aquele pessoal e, sinceramente, preferiria ouvir as novidades vindas de você, não de um filtro maluco. As pessoas estão com muito medo, Governador. Elas vão vir até aqui para ou­vir uma única pessoa. Podemos cobrir boa parte do trabalho, mas precisamos de você.

O Governador observava e gesticulou para o Assessor, pa­rado onde o soldado estivera, lhe entregar um pequeno binóculo, enquanto o Radialista falava sobre o plano de posicionamento das caixas de som. O sujeito no centro da praça tinha o controle da situação, mas dava as costas para a casa. Calça preta. Camisa bran­ca. Cabelo curto e claro. Gesticulava com calma e fazia o máximo para cumprimentar pessoas e ficar próximo delas.

Humm - balbuciou o Governador para si mesmo, sem sa­ber que o Padre fazia um sermão pacífico na praça. - Quem será aquele cara?

Alguma dúvida? - interrompeu o Radialista, entendendo a reação como algo relacionado à sua estratégia.

Não, não. Continue, por favor. Fiquei distraído por um momento. Tenho certeza de que tudo vai funcionar. Quanto tempo vai levar para ficar tudo pronto? - retomou o governante, abando­nando a janela.

Umas três horas desde que tenhamos todo o equipamento.

Fale com ele e passe a relação de tudo que precisa - disse o Governador, apontando para o Assessor, a quem devolveu o bi­nóculo. Cochichou alguma coisa em seu ouvido antes de olhar no­vamente o seu mais novo aliado. - Tenho só mais uma coisa para resolver antes de voltar a minhas prioridades estaduais. Qualquer problema realmente sério deve ser informado diretamente a mim, certo? Essa é a regra aqui dentro. E todos - enfatizou - a seguem, espero que isso não seja um empecilho.

No canto, o Assessor, levemente impaciente com a ausência do chefe, confirmou com a cabeça.

Sem problemas. Pode contar com a gente - respondeu o Radialista.

Ótimo - disse o Governador, esticando os dois braços e, em seguida, apoiando um no ombro do Radialista. - Bem-vindo ao time. Hora de trabalhar.

Quando o Governador desviou os olhos levemente para a es­querda, em direção à porta, o Radialista sabia a razão. A dupla tro­cou olhares e o dono da casa voltou ao saguão de entrada, onde o Blogueiro sentava-se na mesma cadeira almofadada. Suava e olha­va para o chão.

Bem-vindo - anunciou o Governador com alegria e fir­meza. - Obrigado por mudar de idéia e contribuir de forma mais efetiva. Estou muito feliz, mesmo!

Obrigado - respondeu, vacilante. - Quero ajudar, mas o melhor jeito de ajudar é sabendo a verdade.

Na entrada da ante-sala, o Assessor e o Radialista conver­savam automaticamente. Ambos estavam claramente interessados no resultado daquele encontro bizarro e pouco se surpreenderam com o ataque abrupto do Blogueiro, lutando contra seus próprios demônios, enquanto procurava coragem para olhar o Governador nos olhos. Dois soldados estavam de prontidão caso o confronto se tornasse violento.

Sabe que você está completamente certo?

Se estou certo, então conte a verdade e devolva nosso di­reito de... - fez uma pausa, procurando as palavras corretas - nos comunicarmos, ou então descobrimos por nós mesmos, se vocês insistirem com essas mentiras.

Sem ser influenciado pelo ataque e mantendo o mesmo sor­riso intrigante que desarmou o Radialista, o Governador se pre­parou para continuar. Porém, sabia que o truque não funcionaria ali. Converter um inimigo requer mais esforço do que reconfortar um aliado. Tinha medo de gente como o Blogueiro. Seus medos e reações emocionais seriam os provocadores de muitas ameaças naquela sociedade insegura. Uma pessoa alardeando alguma maluquice sozinha, em meio à estabilidade da vida pré-evento, seria ignorada. Agora, não. Qualquer idéia maluca encontraria resso­nância, qualquer medo triplicaria em escala, qualquer explosão emocional teria repercussão incontrolável.

Como dizia, você está certo. Saber a verdade é fundamental. Se me permite, posso fazer uma pergunta antes de continuarmos?

E sugiro que repense seu tom. Você está dentro da minha casa e muita gente aqui dentro não gostou do que vocês aprontaram lá fora. Logo, posso fazer minha pergunta e pedir uma resposta sin­cera e sem toda essa pompa revolucionária?

Foi a primeira vez que o Blogueiro olhou ao redor com ver­dadeiro cuidado. Notou os soldados com rifles a postos e os olhos curiosos vindos da sala de operações, assim como o semblante per­plexo do Assessor e do Radialista. Sabia onde estava se metendo, porém não contava com essa postura combativa do Governador. Esperava encontrar um político condescendente, se escondendo atrás de uma mesa e tentando convencê-lo daquilo em que não acreditava. Precisava jogar bem as cartas para cumprir sua missão.

O Governador aguardava pacientemente.

Sim.

Ótimo, obrigado pela oportunidade. Novamente, você está certo. Penso do mesmo jeito. Saber a verdade é importante. Você e seus amigos acham que estamos escondendo a verdade mesmo com toda a transparência dos jornais e da rádio, correto?

Sim, temos certeza.

Mas a certeza só vem de provas concretas ou de um contra-argumento definitivo, não é?

O governo censurou a internet, cortou os telefones e trans­formou os cidadãos em reféns das mentiras que vocês inventaram. Era isso que queria perguntar?

Calma, estou chegando lá. - O Governador soltava cada palavra com cautela e clareza; lembrou-se de sua infância, quan­do encarou a lagoa da fazenda dos pais pela primeira vez, com a superfície espelhada perfeita. Segurava uma pedra. Queria vê-la rebater na água algumas vezes antes de afundar, mas nunca tinha feito. Passou uma manhã inteira pensando em como fazer antes de atirar o primeiro pedregulho. - De fato, cortamos as comunica­ções e explicamos o motivo. Você leu a primeira edição do jornal?

Espera mesmo que acreditemos nessa bobagem de "bem maior" e no controle para evitar pânico?

A primeira pedra afundou no primeiro ponto de impacto. Era pesada demais.

Que bom que tocou no assunto, é exatamente essa a minha pergunta. Considere por apenas um minuto, e se essa for a única verdade que temos a oferecer? O que você faria se estivesse no meu lugar, tendo que seguir as diretrizes de um plano criado para sal­var vidas?

Seria uma verdade conveniente demais - devolveu o Blo­gueiro. Suava mais ainda.

Não pedi sua opinião sobre o assunto, perguntei sobre a hipótese que ofereço. O que faria?

Passando a mão pela testa, o Blogueiro ponderou a pergunta. Em instantes, o Assessor lhe ofereceu um lenço de pano. Nesse meio tempo, a Filha do Governador entrou correndo no saguão e abraçou a perna do pai. Ele se abaixou rapidamente, beijou-lhe a testa, disse algo - um segredo - que a fez sorrir. Ela correu escada acima.

O Blogueiro sorriu ao se lembrar da própria filha.

A segunda pedra repicou uma vez contra a água.

Faria de tudo para mostrar a verdade. E criaria um meio in­dependente de confirmar essas informações. Mas... - respondeu e tentou argumentar, mas foi cortado pelo Governador rapidamente.

Calma, calma! Um assunto por vez. Muito bem, você faria tudo para mostrar a verdade e é exatamente o que tem feito até agora, não é? Tentando desmascarar o governo para encontrar a verdade e iluminar a vida das pessoas num momento tão difícil? Não é isso que seus amigos... seus seguidores - é assim que os cha­ma, não é? - esperam de você?

Sim - disse, rudemente.

Acho a idéia da existência de uma fonte independente bem interessante, mas desnecessária perante o atual cenário. Uma vez que tudo está sendo reportado, não precisamos confirmar nada. Podemos falar sobre isso depois. De qualquer forma, já percebeu que somos a mesma pessoa? Estamos na mesma posição!

Que bobagem! Não sou um político mentiroso, não me es­condo atrás de armações.

O Governador cresceu em estatura e, embora tenha avança­do apenas meio passo, projetou sua voz e seu corpo como se hou­vesse dobrado de tamanho. Os soldados não se moveram.

Olhe à sua volta, rapaz. Você está vendo alguém brincando de teoria da conspiração aqui? Há crianças e animais mortos pelo mundo todo e você ainda acha que pode entrar aqui, falar a boba­gem que quiser e depois ir contar para todo mundo que descobriu uma verdade na qual só você acredita? Não tem provas, e nem mes­mo pode testemunhar aqui dentro. Sabe por quê? Porque ela não existe. Fechamos a internet por causa de gente como você. Imagine o pânico causado entre as pessoas se alarmistas pudessem falar o que bem entendessem para ficarem famosos ou ganhar visitas? O mundo está em frangalhos e, até agora, mantivemos as coisas em ordem, por isso ninguém noticiou grandes problemas, e queremos continuar assim. Não há motivo de pânico por causa do plano. Mas precisamos de ajuda. Por isso, agora, faço outra pergunta. Agora que você viu e ouviu que estamos gerenciando a situação, quer ajudar ou voltar lá para fora e ficar causando confusão? Ajude-nos e veja com seus próprios olhos. É a única verdade que posso lhe oferecer!

As demais operações continuavam como se aquela medição de forças não existisse. A casa continuava seguindo o ritmo deter­minado pelo Governador. E ninguém fumava. Ordens da Primei­ra-dama. O Blogueiro encarava o Governador com intensidade, enquanto pensava na resposta. As convicções eram fortes demais. O governo sempre mentia. Sempre foi assim, por que mudaria ago­ra? A liberdade de informação era importante e o mundo não sabia mais funcionar sem a internet. Viu isso com seus próprios olhos logo que chegou à praça. Pessoas perdidas, preocupadas com pa­rentes e amigos, gente descrente nas meias-verdades do governo, gente que precisava de ajuda. Gente que precisava dele. E ele estava ali, na barriga do monstro, com uma chance única de destruí-lo de dentro para fora, na frente de tudo e todos.

A segunda pedra rebateu, mais uma vez, na já ondulada su­perfície do lago.

Vou ajudar. Mas sob uma condição - disse, desafiante.

E qual seria? - indagou o Governador, curioso.

Ao primeiro sinal de enganação ou mentira sobre esse tal plano, vou embora e desmascaro vocês.

Isso fica a seu critério. Decisões precisam ser tomadas. Es­tamos aqui para salvar vidas. Contanto que você fique por escolha própria e com o objetivo de realizar essa tarefa, é bem-vindo. Nin­guém o está forçando a nada. De acordo?

Sim.

Ótimo, agora converse com o meu Assessor sobre suas idéias para manter o pessoal informado e calmo até recebermos a grande notícia. Quero você com a gente na reunião lá no jornal. Vai colocar algum senso na sua cabeça.

Grande notícia?

De qualquer nascimento ou da razão para tudo isso. Ou você acha que vamos resistir muito tempo sem a perspectiva de futuro?

O governo não vai resistir?

A raça humana não vai resistir!

A frase ecoou pela casa. Naquele instante, a sala de operações havia sido silenciada por uma notícia enviada pelos canais milita­res. Haviam chegado os primeiros relatos de confronto armado no centro da cidade. O General da maior base estadual correu até o Governador. Os passos firmes atraíram a atenção dos interlocuto­res ainda em frente à porta. O olhar do homem era carregado de medo e pavor.

O Governador engoliu em seco e esperou pelo pior.

Nossas tropas entraram em combate no centro da cidade. O ponto de distribuição A-113 foi atacado e respondemos com for­ça letal..Pelo menos, cinqüenta mortos.

Todos os olhos estavam fixos nele. Combates eram esperados e ele era um veterano dos campos de batalha.

Eu sabia! Vocês vão matar todo mundo! - gritou o Bloguei­ro, virando as costas e segurando a maçaneta dourada da porta. - O povo tem o direito de saber! Preciso avisá-los!

Não deixem ele sair! - ordenou o Governador. - Rápido! Os soldados fecharam a passagem e bastou apenas um golpe com o apoio do rifle para nocautear o alardeador.

Levem-no daqui, falo com ele depois - disse o Governador, virando-se apressadamente para o General. - Continue, por que tanto espanto?

Confio plenamente no comandante da unidade, mas ele... ele...

Ele o quê, General?

Ele confirma que dispararam contra... zumbis.

A pedra tocou a superfície do lago pela terceira vez e afun­dou com um som abafado. O sorriso do Governador desapareceu. A guarda executiva começava a se mobilizar. Estavam em guerra.

 

Centro da cidade, duas horas antes...

Uma leve brisa batia no topo dos edifícios conforme o dia avançava. Janelas entreabertas canalizavam o vento para aliviar o dia até então abafado. Uma das precauções do governo era conser­var energia, uma vez que ninguém sabia por quanto tempo as usinas continuariam trabalhando e abastecendo a cidade. O clima de quietude e semiabandono durava poucos andares até as pessoas começarem a ouvir o barulho proveniente da rua. A multidão se reunia lá embaixo. No final da ruela, um centro comercial dominado por um supermercado e algumas lojas de roupas e jogos de video game.

O estacionamento era tomado por tropas do exército. Dois blindados foram posicionados na entrada, afunilando o fluxo de visitantes num corredor estreito, facilmente controlável. Uma pes­soa entraria pela esquerda, duas pessoas sairiam, com seus mantimentos, pela direita. A extensa fila começou a se formar durante a madrugada, mas apenas algumas das grades de metal ainda esta­vam de pé quando o Sol raiou. O caos reinava depois da chegada de um grupo que se aglomerou em frente ao portão e causou revolta em quem estava na fila. Quando a correria começou, o Comandan­te da Guarnição pouco pôde fazer além de aguardar a confusão se resolver e atrasar o início da distribuição.

 

Três horas se passaram desde o incidente e os operadores dos alto-falantes dos blindados estavam cansados de pedir calma à po­pulação. O supermercado, rebatizado de Centro de Distribuição A-113, guardava um dos maiores estoques de alimento do centro da cidade, portanto foi o mais protegido e também escolhido como principal peça de logística para abastecer a região. A situação se complicava cada vez mais.

O empurra-empurra começou.

Três pessoas morreram pisoteadas antes que a unidade mé­dica pudesse chegar até as vítimas. Bastou um pavio curto para colocar a culpa nos militares.

O cenário estava definido: os manifestantes estavam tomando a rua, encurralados entre o mercado e a única rua de acesso, onde fica a guarnição. Deixaram de esconder suas armas e, ainda por cima, faziam de tudo para exibi-las aos soldados. A turba era quatro vezes maior que a reunida em frente à casa do Governador e tinha uma missão clara: saquear o supermercado. Para isso, precisariam passar pelos sessenta soldados estacionados ali. E por suas duas metralhadoras de grosso calibre instaladas no alto dos blindados.

Vez ou outra, pedras voavam contra a guarnição, seguidas por gritos de provocação. Os militares mantinham sua posição e não mordiam a isca. Os momentos de silêncio assustavam, pois todos es­peravam alguma reação agressiva dos manifestantes armados, sem­pre que paravam de xingar e dar ultimatos às tropas. Até mesmo os cidadãos apertados contra as grades de proteção na linha de frente olharam para trás quando tudo ficou quieto. Pneus cantaram e uma sirene foi ouvida a distância, mas suas fontes nunca se relevaram, dando lugar ao som de uma explosão e algo pegando fogo no centro da multidão, antes mesmo da pequena nuvem de fumaça negra de­nunciar o foco do problema. Um coquetel molotov fora aceso.

Três unidades policiais chegaram ao local, respondendo ao pe­dido do Comandante. Ele preferia utilizar seus homens apenas em último caso e os policiais tinham táticas menos impactantes para conter esse tipo de situação. Um caminhão com jato d'água acompa­nhava os reforços. Entretanto, chegou um pouco atrasado e a primei­ra garrafa incandescente rasgou o ar, espatifando-se contra o flanco esquerdo da barricada e arrancando gritos eufóricos da massa.

Os policiais entraram em formação rapidamente, posicio­naram seus escudos de acrílico reforçado e avançaram contra os manifestantes.

Não temos medo de vocês! - gritou um dos manifestantes.

Ajudem a gente, eles querem a comida só pra eles! - gritou outro.

Os policiais ouviam apenas as ordens do superior: "Avançar!" Devidamente posicionado, o caminhão-pipa começou a trabalhar lançando o primeiro jato d'água. Assim dava cobertura ao avanço dos soldados, derrubando parte da linha de frente dos baderneiros.

Outro coquetel molotov traçou sua parábola incandescente, atingindo os escudos do flanco esquerdo. Dois policiais estavam em chamas e entraram em pânico, largando seus escudos e ro­lando pelo chão. Em instantes, estavam encharcados pela força do canhão hidráulico. Os homens foram resgatados por dois solda­dos, que, sob as ordens do Comandante, saltaram sobre a barri­cada e os arrastaram para dentro da fortificação, onde os médi­cos esperavam de prontidão. O barulho era ensurdecedor. Gritos, chamas, o jato d'água, objetos se chocando contra os escudos e a polícia avançando. A ausência de uma liderança definida entre os manifestantes atrasou a verdadeira violência, pois os sujeitos com armas de fogo não disparavam. Era uma linha bem definida naquela equação. Se alguém atirasse, o exército responderia e eles não teriam chances contra blindados e canhões. Logo, a maioria das mulheres recuou e o confronto resumiu-se à barreira policial, uns poucos corajosos e outros que confrontaram já atingidos pelos cacetetes.

Mas por pouco tempo.

Sem razão aparente, a massa inverteu sua direção e avançou com velocidade contra os policiais. Um dos moradores do condo­mínio localizado no flanco esquerdo viu quando um círculo gi­gantesco foi aberto na retaguarda dos manifestantes. Duas pessoas estavam no centro. Elas caminhavam lentamente, vindo de uma das ruas que davam acesso ao centro comercial.

A visão do primeiro homem que os avistou no chão foi com­pletamente diferente.

Ensangüentados, se arrastando com lentidão e gemendo de forma ininteligível, a mulher esticava os braços na direção dos ma­nifestantes. O homem segurava um braço humano.

- ZUMBIS! - vociferou o homem com barba grisalha e um porrete nas mãos. - ZUMBIS!

O casal continuava resmungando e avançando.

Algumas risadas surgiram com o surto do sujeito, porém o grito histérico da primeira mulher que presenciava a caminha­da mórbida dos recém-chegados despertou a atenção de todos e exorcizou qualquer elemento implausível na situação. Um novo corre-corre teve início, mas a milícia decidiu agir. Um grupo ar­mado cercou os "desmortos" com velocidade. Abriram fogo. Ri­fles, escopetas, pistolas, coquetéis molotov atingiam seus alvos em cheio.

Os policiais chegaram tarde e ordenaram o cessar-fogo. Só encontraram o casal envolto em chamas. Nenhum deles se movia. O braço carregado pelo homem havia escapado da fúria armada. Um dos milicianos insistiu em tentar atirar, mas foi impedido por dois policiais. Conseguiu se livrar por um segundo, tempo suficiente para sacar uma granada do colete, arrancar o pino e lançar em direção à pira funerária.

A tragédia começou.

A explosão lançou carne fumegante e sangue para todos os lados. Mesmo caída pelo impacto, a milícia foi banhada pelos de­tritos, assim como os curiosos que observavam mais de perto.

O primeiro dos homens a se levantar - o mesmo sujeito que lançou a granada - olhava alucinado para a cena.

Vocês estão infectados! Vocês estão infectados! - repetia, enquanto levantava seu rifle de assalto. Matou as três pessoas mais próximas de si antes mesmo de se levantarem; e continuou a dis­parar. Os outros vigilantes levantaram, suas armas abriram fogo, assim como os policiais.

A distância, o Comandante da Guarnição observava incré­dulo e ouvia os relatórios da escuta.

Estão dizendo que são zumbis, senhor - informou a Oficial de Comunicação, sem nenhuma convicção naquilo que transmitia. - Foi isso que gritaram antes da explosão e o sujeito que abriu fogo falava em infecção ou contaminação. Ou algo assim.

O Comandante ponderou a situação por alguns segundos, cerrou os olhos, respirou fundo e tomou sua decisão:

Abram fogo, mas só contra quem foi atingido pelo sangue. Sejam precisos, senhores. Fogo.

A matança foi brutal.

O cheiro da morte misturava o sangue com o odor da carne queimada e a pólvora dos rifles. Cerca de cinqüenta pessoas cir­cundavam a área de impacto da granada. Todas tiveram o mesmo destino dos "desmortos". Nenhuma se levantou para aterrorizar os vivos. Não havia feridos.

Quem conseguiu escapar antes dos disparos já desaparece­ra em meio aos manifestantes prostrados no chão, carregando sua mensagem agourenta.

Havia zumbis no centro da cidade.

 

Tão logo a ação foi encerrada, o Comandante enviou dois pe­lotões até os limites da zona de combate para averiguar a existência de mais criaturas. Menos de dois minutos após o primeiro time ter desaparecido além da esquina, o rádio foi acionado.

Comandante, o senhor precisa vir aqui imediatamente.

Líder Dourado, há ameaça, câmbio? - perguntou o supe­rior, sendo observado com grande interesse por toda a unidade. A maioria deles havia disparado contra um ser humano pela primei­ra vez. Ninguém tinha errado.

Não, senhor, venha logo. Área está segura. Precisamos de apoio do Time Vermelho, câmbio. Repito, área segura.

Mas que merda é essa... - xingou o Comandante, descendo do blindado e correndo para o jipe de apoio mais próximo. - Líder Vermelho, abandonar posição e apoiar o Time Dourado, acelerado. Estou a caminho.

Afirmativo, câmbio - veio a resposta. Em instantes, a uni­dade que vasculhava os corpos em busca de sobreviventes logo abandonou a pilha fúnebre e seguiu em direção à esquina da direi­ta. Ninguém ousou se posicionar no caminho dos soldados.

Já sentado no banco do passageiro do transporte, a curiosi­dade do Comandante só aumentava.

Senhor, sua máscara - disse o Médico da unidade, entre­gando a proteção de plástico e acrílico para seu oficial.

Ah, obrigado. Vamos logo, e dirija pelas beiradas, não que­ro ninguém encostando nesses corpos - ordenou ao motorista, já devidamente paramentado com a máscara de oxigênio.

O homem consentiu com a cabeça e pisou no acelerador.

O Comandante segurou firme na porta do carro, pronto para saltar assim que possível. Pelo rádio, a comunicação entre os dois times era estranha e desconexa.

Quem eles estavam ajudando?

Onde estão os zumbis? Médico!

Precisamos de evacuação imediata!

O veículo completou a curva e a primeira peça do novo que­bra-cabeça foi apresentada. Dois carros capotados tomavam meta­de da rua; um deles, em chamas. Uma ambulância estava estaciona­da perto do acidente e diversas pessoas estavam deitadas no chão.

Vendo a aproximação do Comandante, o Líder Dourado, um jovem negro de porte atlético e olhar preocupado, correu em sua direção.

Senhor, houve um acidente. A informação é que um veí­culo desgovernado estava sendo perseguido por outros dois carros e vieram nessa direção. Quando se deparou com a aglomeração, perdeu a direção, bateu em outro carro e rolou sobre um grupo que estava chegando para pegar comida. O terceiro carro fugiu.

Que diabos... - indignou-se o Comandante, coçando a ca­beça e percebendo o tamanho do problema. - Foi só um acidente?

Sim, senhor.

E os tais zumbis?! Em que diabos aquele pessoal estava ati­rando? Deus do céu...

Senhor, aquela ambulância estava passando pela área quando avistou o acidente - informou o Líder Amarelo. - Um dos enfermeiros da ambulância disse ter visto duas vítimas desorienta­das seguindo aquela direção assim que eles encostaram e, depois, foi todo mundo para o chão quando os disparos começaram.

Que Deus nos perdoe... e nos proteja.

Por quê, senhor? - indagou o soldado.

Viu todas aquelas pessoas que saíram gritando horroriza­das com medo dos zumbis?

Sim, senhor.

Imagine o que elas estão fazendo neste exato momento?

O soldado não respondeu. Fitou os olhos profundos do supe­rior e enxergou nele o desespero do futuro que os aguardava.

 

Com os olhos fechados, o Repórter sorria em seus pensa­mentos. Estava sentado sobre uma toalha bordada com o rosto do Mickey Mouse num gramado vasto e convidativo. A seu lado, tam­bém sorrindo, estava a Esposa. Ainda grávida, ela o cativava com uma risada irresistível, com a delicadeza com a qual deslizava a língua para tirar um pedacinho de torta de morango do canto da boca e umedecia os lábios. Ele estava feliz com o simples ato de admirá-la. A mente buscou refúgio no último momento de felici­dade antes das mortes.

Ele precisava se convencer de que sobreviveria.

Precisava fazer de conta que a luz de emergência da Ada­ga não tomava a cabine de passageiros, refletindo no saco de lona preta isolante contendo o corpo do Coronel - que se estendia, devidamente preso por amarras de carga, no corredor central da configuração de emergência - e chamando sua atenção a cada chacoalhão provocado pelas manobras evasivas da aeronave. O alar­me era silencioso. Todo o barulho vinha da fuselagem, do atrito aerodinâmico e das explosões. Cada segundo de calmaria aumen­tava a tensão e a agonia até o próximo solavanco. Com as janelas blindadas seladas, pouco podia ser feito a não ser aguardar. O sol­dado sentado à frente do Repórter, do outro lado do corredor e do corpo, instintivamente segurava seu crucifixo contra os lábios com uma das mãos; a outra não largava o apoio de emergência de jeito nenhum. Ele também procurava paz em outro lugar.

Eles estavam em combate.

O alarme continuava ativo. O som das turbinas trabalhando incessantemente era constante e altíssimo. O avião fez outra curva acentuada para a esquerda e sofreu uma perda brusca de altitu­de. Acelerou novamente e, sem sombra de dúvida, girou em seu próprio eixo pelo menos três vezes. Uma explosão na retaguarda causou outro solavanco. O Repórter bateu a nuca contra o assento de apoio almofadado e quase deu com a testa na divisória de seu assento ao ser imprudente o suficiente para olhar para trás no mo­mento do impacto.

- Chega disso! - irritou-se. Os soldados que escutaram se li­mitaram a observá-lo lutando contra o cinto de segurança de cinco pontas. - Chega... desse... inferno!

O cinto não respondia, a trava ficaria bloqueada enquanto o alarme não fosse desligado. O Repórter também lutava contra as variações brutais da força G, mesmo com os benefícios da estabili­zação experimental instalada na Adaga. Era difícil se mover. Mas, quem procura acha e, num curto intervalo, com menos estresse físico, ele conseguiu puxar a faca do colete de combate que vestia desde a retirada hostil do bunker e cortou três das cinco pontas do cinto de segurança.

Mais um chacoalhão e ele já se arrependia. Foi lançado con­tra a lateral da aeronave e teve a queda amortecida pelo corpo do Coronel.

Desculpe, camarada. Você também odiaria ficar aqui den­tro sem saber o que está acontecendo... ou talvez não, você adoraria seguir ordens, não é mesmo? Bem... eu... não gosto! - disse, com dificuldade, enquanto recuperava a compostura e tentava ficar de pé, usando as cadeiras, pernas e, até mesmo, os ombros do soldado mais próximo como apoio.

Volta pro seu lugar, porra! - reagiu um dos soldados usado de escada improvisada.

Ignorando a reclamação e a dor nas costas, avançou em dire­ção à porta do cockpit. A Adaga virou com tudo para a direita e ele ouviu outra explosão distante.

Forçou a porta. Sem efeito. A cabine pressurizada resistia a seus esforços. Tentou novamente. Nada.

Ao lado da porta, dois painéis lhe davam opções. Uma ala­vanca protegida por um painel de vidro abriria a porta, mas com­prometeria a pressurização da aeronave. Com tantas modificações feitas pelos militares, o Repórter não fazia idéia dos efeitos. Poderia muito bem causar apenas desconforto aos soldados, que perderiam a melhor defesa contra as mudanças na gravidade, mas preferia não provocar o ódio dos homens que lhe salvaram a vida durante a fuga, mesmo quando o único aliado havia morrido. O segundo painel era mais promissor. Um comunicador.

Apertou o botão, mas não falou.

Apertou novamente e, desta vez, conseguiu falar. O avião continuava suas manobras intensas.

Abram a porta, preciso entrar!

A resposta demorou um pouco, mas veio:

Volte para o seu lugar, estamos ocupados.

Destruí meu cinto, não posso voltar para lá.

Problema seu - disse a voz distinta do terceiro piloto, um militar que os acompanhava, mas falava pouco e apenas ficou sen­tado no cockpit na viagem de ida.

Abre logo ou eu puxo a alavanca da pressurização e abro na marra - ameaçou, sem pensar duas vezes. A maçaneta cromada e alongada da porta era seu único apoio conforme o avião conti­nuava a manobrar. - E, então, o que vai ser? - insistiu o Repórter.

A porta se abriu com um leve sibilo da pressurização se igua­lando nos dois compartimentos. O avião tremeu um pouco e uma voz conhecida falou lá dentro:

Entra logo, vai desestabilizar tudo. E senta ali! - disse o Piloto, afastado do console de controle e operando um painel lateral com telas repletas de gráficos e porcentagens. Ele aper­tou um botão conforme falava e um quarto assento surgiu de um compartimento inferior. Uma pequena fresta se abriu, dando es­paço a uma barra metálica, que se desdobrou verticalmente e, em poucos segundos, transformou-se numa cadeira aceitável e funcional.

Aperte os cintos - disse o Piloto, fechando a porta nova­mente. - Tente não destruir esses, se não for pedir muito.

O cockpit poderia ser facilmente confundido com um video game de ficção científica. A quantidade de painéis projetados no ar, mapas táticos e estimativas de rotas de fuga à disposição do Co-piloto, que assumira o controle quando o combate começou, impressionava. O terceiro membro da tripulação atuava às vezes como navegador e operava um sistema desconhecido do Repórter. Uma complexa grade brilhante era projetada em círculo acima de seu console, mostrando três aviões inimigos e outros sinais desco­nhecidos. Ao centro, estava um modelo tridimensional da Adaga, com as longas asas estendidas.

Como estamos? - perguntou o Repórter, sem desviar os olhos da novidade. - É impossível ficar lá atrás esperando pelo pior.

Derrubamos dois deles... faltam três - respondeu o Ca­pitão, concentrado em seus cálculos e ajustes num equipamento novo. Mesmo com as instruções do Copiloto, ainda lhe faltava a prática. - Qual o ângulo de ascensão?

Pré-programe ponto setenta e quatro, ajuste depois dos primeiros cinco segundos de execução - disse o Piloto, direto ao ponto.

O que é isso? - perguntou o Repórter.

O Copiloto não respondeu. O homem travava uma verdadei­ra guerra particular e começava a suar, mesmo com as condições climáticas perfeitas. Mais uma guinada brusca e inclinada para a esquerda, seguida por uma subida forte e intensa por cerca de vin­te segundos. O Repórter agradeceu por, finalmente, estar sentado novamente. Ele teria sido arremessado para o fundo da Adaga, sem cerimônias.

O Navegador continuava a manusear sua esfera de luz, e a curiosidade do Repórter só aumentava.

Ei, o que ele está fazendo? - disse, cutucando o Co-piloto.

Desperto de seu transe e, claramente, descontente, ele res­pondeu:

Sistema de defesa - disse, gesticulando na direção dos três pontos brancos que surgiam na extremidade da bola multicolorida. Instantaneamente, a área tornou-se vermelha e o Navegador tocou o primeiro ponto branco. Um pequeno menu apareceu e ele selecionou uma das opções. Um clarão surgiu no lado direito do avião. Fez o mesmo com os outros dois pontos brancos. Dois cla­rões seguiram.

Um novo ponto vermelho surgiu. Outro caça. No quadrante oposto, ou seja, na esquerda da aeronave.

Inimigo, nove horas - informou o Navegador.

Consegue segurar por aí? - perguntou o Co-piloto.

Não, preciso reconfigurar. Quinze segundos.

Muito tempo. Eu cuido dele.

O Co-piloto manobrou a nave e alinhou com o novo alvo, enquanto outros pontos brancos surgiam, agora, na retaguarda do avião. O Navegador repetiu o procedimento anterior, mas a mu­dança de direção o fez errar um dos alvos.

Perdi um dos mísseis. Impacto em quarenta e cinco se­gundos. Manobra evasiva! - informou. Ele disparava seus próprios mísseis contra os ataques inimigos, mas o sistema necessitava de alta precisão para neutralizar os alvos. Qualquer alteração era suficiente para afetar o desempenho. O sistema tinha um defeito gigantesco: só conseguia ser efetivo contra alvos muito distantes, pois fora desenvolvido como apoio para a defesa de ataques balísti­cos em grande escala. Sua probabilidade de sucesso contra mísseis intercontinentais era estimada em 97,8%. Contra caças supersôni­cos, a história era outra.

Com o nariz do avião apontado na direção certa, o Co-piloto acelerou contra seu alvo e trabalhou no ajuste da mira cuidadosa­mente. O canhão frontal estava armado e pronto, inclusive com sua arma secreta: alcance duas vezes maior que metralhadoras tra­dicionais e munição explosiva.

Ajuste para os mísseis desse cara. Eu cuido do que esca­pou - disse o Piloto, abrindo fogo no instante em que o sistema avisou ALVO TRAVADO. O caça inimigo disparou dois mísseis e eles foram pulverizados pelo feixe quase contínuo dos disparos do canhão giratório. Percebendo que estava quase dentro do raio de ação de seu oponente, o inimigo mudou seu percurso e escapou para a esquerda. O Co-piloto copiou a manobra e iniciou sua perse­guição, acelerando as turbinas ao máximo.

Impacto em quinze segundos - avisou o Navegador, dispa­rando mais dois mísseis de defesa contra a última onda de ataque.

Preparar modo de ataque. Chega de fugir desses merdas. Quantos mísseis eles ainda têm?

Dois.

Afirmativo! Mire nos três alvos da retaguarda. Esse aqui é meu.

Senhor, impacto em dez segundos.

Eu sei. - E acelerou até o limite.

O caça era mais rápido nas manobras mas, em linha reta, não duraria muito. O inimigo percebeu e mudou sua trajetória novamente, porém o Co-piloto antecipou sua reação, angulou sua aeronave em dez graus e apertou o gatilho do canhão, decidido. O avião inimigo voou diretamente para a área de ação dos tiros e explodiu instantaneamente.

A tripulação não reagiu.

Cinco segundos. Ativando defesa de emergência - disse, gastando sua última carta defensiva para tentar confundir o alvo.

Dispare nossos mísseis de ataque quando eu mandar. Pre­parar para impacto - ordenou o Co-piloto, girando a aeronave em seu próprio eixo.

Três - contou o Co-piloto, usando o manche manual para garantir toda a força mecânica de sua manobra. O sistema digital aumentava sua efetividade, mas ele não confiava tanto assim em computadores. Ele fez o avião subir.

Dois. - A subida ficou mais íngreme e o avião começou a virar, num looping curto e extremo. Nem mesmo o sistema de pressurização especial resistiu e os passageiros sentiram os efeitos da gravidade. O Co-piloto parecia um super-herói, resistindo à for­ça G e ganhando a luta contra os controles.

Um. Fogo! - ordenou, enquanto ele mesmo acionou seu canhão e a munição incandescente traçou uma linha avermelha­da contra o perfeito céu azul. Três mísseis deixaram suas estações quando ele completou o giro. Ele pôde ver a ogiva inimiga à sua frente.

Era tudo ou nada.

Continuou com o dedo no gatilho, disparando o pulso ele­tromagnético na direção dos caças restantes.

ROSEBUD! - gritou o Co-piloto.

Tudo ou nada.

O míssil inimigo explodiu e as chamas envolveram a aero­nave. O Repórter fechou os olhos. Tudo à sua volta tremia, alguns circuitos pifaram e faíscas saíam do console principal. Mas o avião resistiu. O Repórter abriu os olhos e viu o Co-piloto ainda fazendo seu trabalho com perfeição e paixão assustadoras.

Relatório de inimigos - pediu.

Inimigos abatidos. Nossos mísseis os atingiram durante o efeito do pulso - informou o Navegador, vasculhando sua esfera minuciosamente.

Danos?

Levou um tempo para o sujeito deixar seus quadrantes lu­minosos e analisar os dados enviados pelo computador central do avião.

Nada aparente.

Os suspiros de alívio duraram pouco, pois um novo alerta foi dado pelo sistema de defesa e a esfera luminosa mostrava dois setores repletos de pontos vermelhos.

Senhor, mais nove aeronaves inimigas se aproximando.

Status das defesas, por favor.

Só mais três mísseis e trinta por cento de münição no ca­nhão principal.

Estimativa para interceptação?

Dois minutos e quinze segundos, senhor.

Obrigado.

O Co-piloto começou a desligar seus sistemas, deixando ape­nas um dos mapas tridimensionais em operação.

. - E agora? Vamos nos render? - perguntou o Repórter, ainda abalado pelo espetáculo que acabara de presenciar.

Você bateu a cabeça quando estava lá atrás, é? Invadimos o espaço aéreo, acabamos de dar cabo dos amigos deles e matamos meio mundo no bunker, você acha que eles querem reféns?

Podemos oferecer a aeronave a eles! Ainda podemos ter uma chance.

Entende por que insisti para que ele ficasse lá atrás e não aqui com a gente, Capitão? - perguntou o Co-piloto, olhando para o colega de comando, que inseria códigos insanamente em seu pai­nel. Ele apenas concordou com a cabeça. - Estamos prontos?

Uma última série de números foi digitada e o homem respi­rou aliviado.

Sim.

Muito bem, preparem os passageiros e coloquem as más­caras de oxigênio. Um minuto para execução - disse o Co-piloto, enquanto o auxiliar falava ao rádio com a cabine de passageiros e acionava o botão que liberaria as máscaras lá atrás.

Execução do quê?

Gosta de esportes radicais, senhor Repórter? - pergun­tou o Co-piloto ironicamente. - Você vai descobrir o verdadeiro significado dessa palavra daqui a pouco. Coloque sua máscara e deixe-nos fazer nosso trabalho, por favor. O cockpit é lugar para ações, não planos mirabolantes.

O jornalista colocou a máscara rapidamente e prendeu o su­porte do queixo o melhor que pôde. Os outros membros da tri­pulação colocavam capacetes pressurizados. Não estou gostando nada disso.

Tudo pronto, senhor. Inimigos travando mísseis.

Ok. Ativar em três, dois, um. Agora! - disse o Copiloto, acomodando-se na cadeira. O Capitão ativou o console e um novo som invadiu o ambiente. Um zunido de baixo impacto e cresci­mento constante, muito parecido com um aspirador de pó entupi­do e irado contra o dono. Ele também ouviu o som tradicional da operação de flaps, porém, eram as asas que se recolhiam e voltavam a se unir ao eixo principal do avião.

Na visão dos pilotos que se aproximavam, as duas turbinas alongadas do alvo ganharam um brilho inicialmente branco que, gradualmente, se tornou azul. Conforme a intensidade aumentou, também o fez o barulho. Em segundos, uma grande explosão at­mosférica deformou as nuvens ao seu redor, criou padrões arre­dondados e gerou um estrondo que rachou os vidros de alguns dos caças.

A aeronave perseguida não estava mais lá. Não estava mais no radar. A distorção atmosférica criada por sua partida era a úni­ca prova de sua existência.

 

Relatório de sistemas - pediu o Co-piloto.

Aceleração operando normalmente, pressurização ok, combustível em quarenta e sete por cento.

Alguém nos seguindo? - perguntou ironicamente.

O Navegador arriscou um sorriso.

Talvez num universo paralelo, senhor.

Vamos manter dessa maneira, então!

Quanto tempo para nosso espaço aéreo?

Dez minutos e quarenta e sete segundos, senhor.

Muito bom - agradeceu o Co-piloto. - O que está achan­do do primeiro passeio com uma turbina hipersônica quádru­pla, caríssimo Repórter? Como o sistema acabou de lhe salvar a vida, creio que deva mostrar gratidão e não contar nada para ninguém.

O jornalista ficou em silêncio, pensando nas possíveis impli­cações da descoberta de uma tecnologia desse tipo. Os caças con­tra quem lutavam não eram tão avançados assim, mas a vantagem numérica deveria ter sido decisiva e esse novo motor simplesmente transformaria o combate aéreo para sempre.

Finalmente, ele respondeu:

Qual nossa velocidade?

Tinha uma idéia aproximada por conta da arrancada inicial, entretanto desconhecia o potencial desse sistema de pressurização e acreditava terem entrado em combate já com grande velocidade para ter chance contra os caças menores e mais ágeis.

Mach 4? - arriscou.

Não - respondeu o Copiloto. - Quanto menos você souber, melhor.

Ah, esqueci que militares adoram manter segredinhos. É para compensar a ausência de alguma coisa, hein? Pensando bem, posso tentar levantar daqui e dar uma espiada. O mundo já está indo para o buraco mesmo. E quem vai ter que limpar a sujeira é você.

E eu não sabia que jornalistas adoravam fazer chantagens envolvendo a vida dos outros. Sua ação lá atrás foi irresponsável e egoísta. Poderia ter colocado a vida de todos nós em perigo.

Eu faço isso às vezes. Ossos do ofício.

Ambos ficaram em silêncio, estudando o próximo passo, até o Repórter quebrar a trégua rapidamente:

Então, Mach 5? Como você disse, não vou poder contar para ninguém mesmo - complementou. E todo mundo está preocu­pado com outras coisas, saber sobre um avião novo não faria mui­ta diferença agora, pelo menos, não para as pessoas transformadas pela tragédia. No alto escalão, sim, faria muita diferença.

Cinco ponto vinte e sete. E só usamos a segunda fase.

Uau! Vocês podem voar na estratosfera?

Ele não precisou responder, pois foi salvo pela chegada de uma transmissão.

Senhor, comunicado do Comando Central solicita redução de velocidade. Há uma escolta esperando por nós. Não querem que arrisquemos o equipamento - informou o Navegador.

Fico feliz em saber que só sou maltratado pela burocra­cia militar quando estou com vocês. Daqui a pouco, estarei com minha Esposa e poderei cuidar dela. Você vai continuar sofrendo desse jeito com seus superiores pelo resto da sua vida. Tá vendo só? Pedi uma informação e você me tratou daquele jeito. Olhe agora! Seu pessoal quer saber do avião, não da gente. Motivador, não?

O Co-piloto ficou quieto.

Afirmativo - disse ao Navegador. - Iniciar processo de frenagem.

Ele apertou uma série de botões e pediu ao Capitão que fi­zesse o mesmo em seu console. Na metade do procedimento, um alarme disparou em ambos os consoles e um aviso foi enviado ao monitor de comando. SISTEMA DESABILITADO. CONTROLE DE VELOCIDADE INOPERANTE.

Análise? - pediu o Co-piloto.

Freios não funcionam e o sistema travou na velocidade de cruzeiro. Um setor inteiro dos circuitos não está respondendo. Deve ter sido danificado pela explosão.

Mas os diagnósticos não estavam positivos antes de acio­narmos?

Sim, mas os freios não foram acionados. Senti os flaps se moverem um pouco antes do travamento. Pode ter sido mecânico.

Pode ou foi?

Não dá para adivinhar...

A discussão técnica continuou mais um pouco, mas a cabeça do Repórter só focava em urna coisa. Estava perto demais para ser despedaçado com um avião desgovernado. Sabia o suficiente para entender as repercussões do problema. Com tanto combustível sendo consumido, seria impossível pousar a aeronave.

Quais as alternativas? - interrompeu o Repórter. - O pro­blema existe e não podemos ficar enrolando, certo? Então, quais as alternativas?

A dupla foi surpreendida pela intensidade do Repórter. O Capitão olhou com curiosidade e aguardou o desfecho, afinal de contas, tinha a mesma dúvida. Sabia o que fazer num avião nor­mal, já, naquele, não tinha idéia das possibilidades técnicas para contornar o obstáculo.

Foi mecânico ou não? - perguntou novamente.

Se foi mecânico, nunca conseguiremos pousar - disse o Navegador, com tom de voz soturno e preocupado.

E se não for?

A outra opção seria apostar numa falha eletrônica ou em algum problema no sistema por causa das explosões e solavancos. Você notou algum aumento na demora da resposta do sistema du­rante o combate? - perguntou o Co-piloto.

Um pouco. Por isso perdi a janela de defesa contra aquele míssil.

O Piloto resolveu intervir:

Podemos reiniciar tudo?

E fazer pegar no tranco? Isso não é um calhambeque - res­pondeu o Co-piloto.

Funcionou com jatos menos avançados. Eu arriscaria. E há uma boa chance de ligarmos a turbina-padrão e conseguirmos controlar a velocidade. Vai ser difícil pousar, mas é melhor que jogar esse foguete contra o solo.

Nessa velocidade, cairíamos mais rápido ainda. O sistema leva três minutos para ser reiniciado - disse o Navegador.

Todos olharam para o Copiloto. A decisão era dele. Ninguém conhecia aquele avião tão bem quanto ele. Ele checou todos os con­soles, dados disponíveis, mapas, localização da escolta e possíveis áreas de pouso forçado. Escapar de um combate tão complicado e morrer por conta de uma falha técnica era algo que o ego não permitiria. Ousado em batalha, igualmente ousado fora dela. Esse era o lema da família, uma lição ensinada por seu avô, um veterano de duas guerras. Uma delas tão secreta, que os familiares nunca ouviram nenhum detalhe. Sabiam que acontecera, pois, além da cicatriz gigantesca no peito provocada por um "acidente de treina­mento", sua alma voltou transformada. Ele nunca falou. Eles nunca perguntaram.

Não necessariamente - disse, finalmente, quebrando o si­lêncio. - Podemos alterar o curso para a trajetória estratosférica, desligar tudo ainda na subida controlada, planaríamos por cerca de um minuto e teríamos dois minutos de queda sem motores para completar o reinicio do sistema, do controle de voo e das turbinas. É mais que suficiente.

Então é bom fazermos isso logo, reservas estão baixando rapidamente e a estrutura começou a ser afetada pela longa dura­ção da aceleração intensa.

Já iniciando a subida, o Copiloto distribuiu as ordens e os auxiliares começaram a trabalhar imediatamente. Seriam longos três minutos, sem propulsão, sem computadores, sem a certeza de re­solver o problema. Como calcular um curso de escape tomaria mais tempo, a subida foi abrupta e eles ultrapassaram a última camada de nuvens. O avião tremeu violentamente. Atingindo sua posição ideal, o Co-piloto ordenou o desligamento completo da aeronave. A cabine escureceu por alguns segundos até ser invadida pelo reflexo do brilho da atmosfera e da luz solar. Eles ainda subiram mais um pouco e presenciaram a marcante, e seleta, experiência de deixar os limites do planeta. O azul do céu escureceu gradualmente, as es­trelas brilharam com intensidade e o Repórter olhou maravilhado para a curvatura da Terra. A vista era encantadora, mas era o mais perto que ele chegaria de um velho sonho de infância.

Foi então que fitou o espaço.

Imenso.

Imutável a olho nu e indiferente aos medos que o aguarda­vam, caso conseguissem pousar.

Pensou, imediatamente, na Esposa e em quanto gostaria de mostrar isso a ela. Observou o Armamento quando sentiu a gravi­dade voltar e o nariz da aeronave começar a apontar para baixo. Em meio à beleza do limiar, o Repórter identificou um objeto bri­lhante de tamanho considerável e, por trás da máscara de oxigênio, sorriu. Aquele ponto distante desencadeou uma seqüência acelera­da de idéias capaz de surpreender o próprio jornalista, habituado a fazer conexões malucas. A conclusão era uma só. E valia todo o risco antecipado pelo plano arquitetado de supetão. Teve a certeza de ter encontrado a razão para essa busca infrutífera e cercada pela morte.

Mas, antes de qualquer coisa, precisaria sobreviver.

A Adaga começava a despencar vertiginosamente e a ganhar velocidade.

 

Voar sempre era um prazer. Aceitar a vaga de editor especial foi uma decisão muito além da simples elevação do ego do Repór­ter, ele poderia voar para todos os cantos com o avião privativo da companhia e ter certos privilégios nas grandes aeronaves de linha. Empolgava-se nas decolagens e adorava analisar as expressões dos outros passageiros durante as aterrissagens. Ele, sempre sorridente, divertia-se com a preocupação alheia, os beijos nos crucifixos, a ansiedade, as mãos agarradas nos braços das cadeiras, os olhos fechados. Tantos detalhes reveladores sobre cada um deles. Todos com algo em comum: o desejo de sobreviver.

Conforme deixava a beleza eterna do Armamento e retorna­va àquele mundo moribundo, era impossível não se sentir como seus objetos de análise. A Adaga apontou o nariz para baixo, mer­gulhou e começou a tremer. Com os comandos mecânicos desabilitados pelo desligamento dos computadores, o Co-piloto podia apenas observar o relógio de pulso e aguardar o fim da contagem regressiva.

Em instantes, o Repórter viu a camada de nuvens se aproxi­mar e sentiu o primeiro solavanco. Foi jogado com força impres­sionante para a esquerda e parou com a mesma intensidade. Um outro baque, desta vez, vindo de cima da carenagem, o tirou da cadeira e o devolveu com tudo. A dor da batida no compartimento de passageiros retornou e, agora, tinha companhia. O peito doía. E a festa estava longe de terminar.

O Repórter tentou agarrar os braços da cadeira com toda a força. Foi vencido facilmente pelo solavanco seguinte, ou melhor, os solavancos. A sucessão de choques vinha de todos os lados. A mão dos deuses agarrara a Adaga com fúria e indignação por sua ousadia em ultrapassar os limites da humanidade e desferia golpe atrás de golpe na tentativa de punir os passageiros e destruir a ae­ronave.

Entre uma jogada e outra, o Repórter olhou para o lado e teve a impressão de ver o Capitão desfalecido em sua cadeira. Logo veio outro chacoalhão e não pôde comprovar a teoria, muito me­nos falar com ele. A punição era severa. A cabeça rodava. Assim como a Adaga. O campo de visão era nulo. Tudo branco. Nuvens para todos os lados. Com seu senso de direção comprometido, o Repórter teve a impressão de que rodopiavam horizontalmente.

- Um minuto! - berrou o Navegador, retirando a máscara com esforço e fazendo de tudo para recolocá-la.

O sistema de estabilização da Adaga era diretamente ligado à ação dos motores e à pressurização interna. Logo, quando todos os sistemas foram desligados, a nave transformou-se num gigantes­co pedaço de metal completamente descontrolado. Os projetistas acreditavam tanto na autonomia, que ignoraram qualquer pensa­mento sobre voo às cegas ou o simples conceito de controle aerodi­nâmico 100% mecânico. A Adaga não podia sequer planar sem os computadores ativos.

A aeronave ainda tremia quando a camada de nuvens termi­nou e o azul tomou conta do horizonte. Assim como o marrom. Algumas pinceladas de verde. E, novamente, o azul. O Repórter estava certo quanto à Adaga estar girando, porém, desta vez, na vertical. O peso da parte traseira provocou o início do movimento e, a cada nova revolução, aumentava a velocidade.

Notar a intensidade do movimento só piorou a resposta do corpo. O Repórter descobriu não apenas a náusea, mas um nível inimaginável de desconforto aéreo. Fechou os olhos para tentar diminuir o efeito, entretanto pouco podia ser feito perante a tremedeira intensa, os solavancos contínuos, a vontade de vomitar e o desespero latente. Começara a duvidar da capacidade dos pilotos de sequer religar os computadores frente a tanta adversidade.

Agora eu a entendo, querida. A Esposa entrava em pânico quando o avião iniciava o procedimento de decolagem e só voltava a acreditar no futuro quando ele taxiava em direção ao portão de desembarque. Só espero poder contar isso para você. E um novo so­lavanco embaralhou seus pensamentos. Seus olhos doíam, os ner­vos davam sinais de cansaço e sentia as mãos formigando.

Era difícil respirar.

Pensou na Esposa. Lembrou-se da família; das últimas pala­vras do Coronel. Abriu os olhos e não viu mais nada.

A escuridão envolveu seus pensamentos.

 

Um par de olhos cansados vasculhava a tela do computador. O reflexo róseo do monitor deixara de ser convidativo havia algumas horas e, agora, o Diretor lutava contra o sono. Completamente desinteressado na televisão ligada e sem som, na qual o âncora de sempre repetia o mesmo boletim, sobre o mesmo cenário e da mesma forma. Ainda faltavam algumas horas para a exibição do próximo programa, as­sim como a distribuição da próxima edição do jornal. O único som próximo era o leve e ininterrupto clique do mouse. A temperatura estava agradável e o ar-condicionado permanecia adormecido, en­quanto o termômetro não o acionava. A Secretária falava baixo fora da sala e o Diretor não escutava. Estava com o queixo apoiado sobre a mão esquerda e clicava com a direita. Os olhos resistiam, mas o movimento repetitivo que fazia com o mouse venceu. E ele cochilou.

O resto de café da xícara caiu no chão antes de a porcelana se espatifar contra o assoalho de madeira escura polida. Quando despertou, assustado, tentou salvar a situação.

A Secretária entrou às pressas na sala, enquanto ele tentava impedir que a garrafa térmica, o teclado e alguns papéis caíssem em cima da pequena tragédia em que se tornara a área de trabalho. Ela carregava uma edição do jornal nas mãos, mas a colocou no chão rapidamente para auxiliar o Chefe.

Tudo bem? - perguntou, com gentileza e cuidado.

Sim, sim. Só cochilei aqui, enquanto lia as notícias - jus­tificou o veterano, entregando o teclado à assistente tão logo ela terminou de salvar os papéis. - Fiquei entediado.

Lendo o feed de notícias? Isso sempre funcionou mais que café forte para o senhor! - comentou a Secretária, enquanto se agachava para buscar o jornal deixado no chão.

Já recomposto, o Diretor olhava para o computador. Um programa muito parecido com uma caixa de e-mails tomava a tela. Diversos assuntos ocupavam cada uma das linhas. O sistema era regido por um código de cores. Cada notícia recebia uma atribui­ção de cor enviada pela agência de origem, fonte independente ou pelo repórter responsável pelo assunto. Branco para trivial, verme­lho para catastrófico e urgente.

Tudo vermelho - respondeu, sem emoção. - Tudo do mes­mo jeito, cada vez mais problemas, nenhum sinal de melhora... - continuou, perdendo-se imediatamente nos próprios pensamentos.

O olhar de compaixão da Secretária era cativante. Ela era a única aliada na empreitada que tomou para si. O Diretor teve algu­mas chances de abandonar o barco no dia anterior, especialmente quando recebeu uma gravação emocionada da filha. O Engrava­tado interveio e o enviou com uma escolta militar até a casa dela para ter notícias da família. O Diretor resistiu bem por fora, mas sentiu o choque emocional. Optou por continuar trabalhando na vã esperança de ainda prestar algum serviço à sociedade. Escon­deu as verdadeiras razões de todo mundo. Temia o reencontro com a filha. Temia por seu coração vacilante e uma carga emocional grande demais. Fez o melhor possível para esconder a dor e guar­dar a memória da neta num canto inacessível.

Ela não interrompeu e o silêncio chamou sua atenção. Ele percebeu a nova distração, por isso aproveitou o momento para mudar de assunto.

Alguma notícia? Não apareceu nada no feed... - a pergunta foi feita como um pedido de socorro velado, com sua voz sentida e realmente disposta a ouvir boas notícias.

Nada ainda, quer dizer, nada depois do relatório do Engra­vatado que apontava a partida da aeronave - informou a Secretá­ria, tão preocupada quanto o Diretor com o paradeiro do Repórter. Normalmente, eles já teriam recebido duas ou três reportagens es­critas dentro do avião e enviadas via satélite. Os hábitos morreram com as crianças e tudo estava de pernas para o ar. - Não entendi bem aquele prazo curto para a aterrissagem, mas, de qualquer for­ma, ele já estourou até o tempo usual da viagem.

Estranho mesmo. Aposto que os militares resolveram me­ter o bedelho na história mais do que ele nos contou. O tal relatório sobre o resgate chegou?

Não, senhor.

E duvido que chegue. Mas falo com ele depois. O que tem para mim? - disse, apontando para o jornal debaixo do braço da Secretária, que abandonara o terninho social havia duas noites e vestia um agasalho confortável, mas ainda mantendo o estilo. A maioria da equipe do jornal dormia por lá mesmo. Transitar pela cidade era praticamente impossível, a não ser de moto, bicicleta ou blindado. O exército se dispôs a colocar um pequeno contingente para proteger a redação, mas recusou os pedidos de escolta feitos pelo Diretor. Quem aceitou o desafio na primeira noite continuava no batente. O governo garantia combustível para os caminhões de entrega, matéria-prima e comida. Só o essencial.

Entregando o exemplar fresquinho recém-chegado do par­que gráfico, localizado num pequeno prédio adjunto ao edifício principal, ela preferiu adiantar algumas informações. Queria dei­xá-lo à vontade o quanto antes. Viu aquele olhar perdido e sentiu um distanciamento incomum. Ele começava a exibir sinais do des­gaste emocional. Esconder ficava cada vez mais difícil.

 

O Diário - Edição Especial no 9 - Manhã

TOQUE DE RECOLHER DECRETADO!

 

Veículos proibidos de transitar pela área metropoli­tana a partir das dezenove horas, de acordo com Comando Emergencial. "Queremos impedir o caos e salvar vidas", diz o Governador.

Hoje, a partir das dezenove horas, apenas veículos militares terão autorização para ocupar as ruas, e a popu­lação deve ficar em casa até às oito horas do dia seguinte. Os primeiros relatos de violência urbana e confrontos por conta de alimentos (leia mais nas págs. 4 e 6) aceleraram os planos do governo para manter o maior controle pos­sível sobre as áreas mais populosas da cidade. Mais dois mil soldados serão posicionados nas ruas a partir de hoje, informou o porta-voz do Comando Emergencial. (Continua na pág. 3)

 

GOVERNO GARANTE ALIMENTAÇÃO E ENERGIA

 

Em anúncio oficial na transmissão de TV do primeiro horário de hoje, o Presidente vai garantir a distribuição de alimentos e a coordenação em grande escala de diversos países para reunir recursos e evitar problemas no abastecimento. Há estoques para mais uma semana, informam fontes governamentais. "E se outros países só receberem nossa ajuda e não enviarem nada em troca? Devemos pen­sar em nossos cidadãos primeiro. Essa é a primeira ditadu­ra benevolente da história da humanidade!" acusou um senador da ala radical da oposição, via satélite. O Congresso continua fechado e o governo opera em regime emergencial. Fontes de energia continuam intactas e abastecimento continua. (Continua na pág. 8)

 

CAUSAS DA TRAGÉDIA

 

A busca pela cura ainda continua. A taxa de morta­lidade continua em 100% e, pelo último relatório do Mi­nistério da Saúde, praticamente todas as espécies foram incluídas na lista de baixas. (Continua na pág. 17)

 

SUICÍDIOS DISPARAM

 

"Não vou ver meu filho nascer morto!", gritou a jo­vem mãe antes de se jogar de oitenta e cinco metros de al­tura. O homem ao lado era o Pastor da igreja que freqüen­tava. Ele tentou salvá-la e caiu junto, deixando mulher e três filhos. A moça era mãe solteira. (Mais na pág. 23)

 

INTERNACIONAL

 

Governo não confirma explosões nucleares e inves­tigações continuam.

 


NÃO HÁ ZUMBIS NO CENTRO

Acidente provoca confusão sobre mortos-vivos

 

Tropas federais repelem ataque a centro de distri­buição e população atribui tragédia a zumbis. O governo desmente e atribuiu a confusão a duas vítimas de acidente de trânsito.

 

Alguém segurava o rosto do Repórter pelo queixo e o estapeava com força suficiente para chamar sua atenção. Ele acordou, ainda vestindo sua máscara de oxigênio. O Capitão impediu-o de retirá-la instintivamente.

Calma, calma! Respire! Você apagou com a pressão. Ape­nas respire - disse, enquanto via o companheiro de viagens li­gar os pontos e perceber o que havia acontecido. Os batimen­tos acelerados eram mais efeito da surpresa de ter sido acordado com um tapa do que do desmaio. A descendente aguda da Adaga aumentou duas vezes e meia a quantidade de forças G aplicadas sobre a tripulação e ele resistiu relativamente bem. A maioria dos passageiros da cabine de transporte perdeu a consciência bem antes disso.

Deu certo? - perguntou, ainda confuso.

Não, morremos! Sou seu anjo da guarda e só vou revelar meus segredos depois que você limpar meu banheiro, lavar meu carro, escovar minhas asas e rezar dez mil ave-marias. Bem-vindo ao paraíso! - devolveu o Capitão, sem pensar duas vezes. Afinal, ele também precisava aliviar a tensão da experiência.

O Repórter olhou de volta, incrédulo, percebendo a brincadeira.

Certo, mereci.

Olha ali - disse o Capitão, apontando para as janelas laterais. Pelo menos dois caças estavam em formação em cada lado. Viaja­vam em velocidade normal, o Co-piloto e o Navegador conversavam tranqüilamente na frente da cabine, já sem máscaras. Sem mais sus­tos, deviam estar perto de casa. Perto da Esposa amada. Fechou os olhos, respirou fundo e, simultaneamente, retirou a máscara e segu­rou os dois braços do Capitão.

Já sei!

Sabe o quê?

Por que fizemos tudo isso!

O quê?

Vi algo lá em cima. Preciso do rádio. Tenho que falar com o comando da Força Aérea - pediu o Repórter, apertando o bo­tão de destravamento do cinto de segurança e dirigindo-se para o console de comunicações. Ouvindo as palavras "Força Aérea", o Co-piloto intercedeu imediatamente.

Ei! Ei! Ei! - disse, interceptando o trajeto do Repórter. A cadeira, que podia se mover num curto semi-círculo, deslocou-se o suficiente para deixar seu ocupante no controle da maior parte daquele espaço. - O que você pensa que está fazendo?

Preciso falar com seu pessoal, contar o que descobrimos nos bunkers e checar uma coisa antes de mandar minha matéria para o jornal. Tive uma idéia! Sei onde podemos encontrar sobre­viventes! Sei onde pode haver uma solução! - respondeu o Repór­ter, em tom informativo e com crescente empolgação. A hipótese fazia mais sentido a cada momento.

Os militares trocaram olhares. E isso não era um bom sinal.

O quê? - perguntou o Repórter, visivelmente agitado.

Por que não me conta e eu transmito o recado? - sugeriu o Co-piloto, olhando de soslaio para o Navegador. - Ou espere até pousarmos e você pode tentar falar com quem quiser.

Você escutou o que eu disse? E eles vão querer saber o que acontece lá atrás, não?

Eles já sabem - disse o Navegador, entrando na conversa.

Como assim? - perguntou o Repórter, indignado, trocan­do sua empolgação por irritação.

Transmitimos o relatório completo antes da decolagem. É o nosso protocolo, especialmente por termos sofrido baixas. Você não faz parte desse ciclo de informação. Diga o que quiser ao jor­nal, mas dos nossos assuntos tratamos nós. E você não fala com o comando - decretou o Co-piloto.

Olha - disse o Repórter, passando a mão pelos cabelos -, obrigado por salvar a gente, de verdade. Já é a segunda vez que você me mantém vivo e estou me esforçando para gostar de você. E pas­sar as informações nem é tão importante assim. Preciso confirmar uma teoria com eles. Custa colaborar um pouco?

Não posso quebrar o procedimento. Ordens são ordens - insistiu.

Procedimento? Com tudo isso acontecendo? Depois do es­forço que fizemos... ou melhor, do esforço que o pessoal lá atrás fez... depois da morte do Coronel você vem me falar em procedi­mento? Faça-me o favor - protestou o Repórter, olhando ao redor à procura de alguma alternativa para conseguir o que queria.

Sem tirar os olhos do Repórter, o Copiloto não se moveu.

Isso vai parecer cafona ao extremo, isso já é ridículo o su­ficiente, não dá para piorar. Você tem família? Será que dei tanto azar de pegar o único piloto da Força Aérea intocado por todas essas mortes? Ou você saiu de um tubo de ensaio direto para a academia de pilotos experimentais?

Tenho, sim. O filho do meu irmão morreu. Estou tão tris­te quanto você, mas vou seguir minhas ordens. Se está mesmo tão agradecido pelo que fizemos, peço compreensão. Como disse, compartilhe a informação e eu retransmito. Prometo. Agora quem pergunta sou eu, custa colaborar um pouco? Você já forçou a entrada na cabine, colocou todo mundo em risco e, agora, precisa parar de forçar o seu jeito. Estou no comando e a ordem é final.

Ele sentiu uma mão tocando-lhe o ombro antes que pudesse responder.

Cara, escute o que ele diz. Vamos voltar para casa logo, vai. Pega leve - pediu o Capitão.

Posso ter encontrado a solução e ele fica com frescura, pô! - respondeu o Repórter, agitando os braços e dando as costas para o Co-piloto.

Conte para mim, então. O que você viu lá em cima? Esque­ça os milicos! Eu quero saber, o que foi?

Um brilho - disse, perdendo a concentração e olhando pela janela como se ainda pudesse encontrar a mesma imagem no céu azul. O Sol acompanhava-os.

Brilho? - insistiu o Capitão, segurando-o pelo braço e que­brando o transe.

Estávamos procurando no lugar errado. A idéia dos bunkers era boa, por isso encarei a missão. Mas algo dessa magnitude clara­mente seria mais forte que nossa tecnologia. Foi um evento biológi­co, foi algo ligado à Terra. Precisávamos ter olhado para fora do pla­neta. Era a única opção. E o que existe lá fora com espécimes vivos?

A estação espacial! - falou o Capitão, entendendo a lógica do camarada. O Repórter havia avistado o reflexo do Sol nos pai­néis da Estação Espacial Internacional.

Os tanques de oxigênio foram criados aqui, claro, mas eles são puros e isolados de qualquer efeito atmosférico responsável pe­las mortes. Faz sentido? - perguntou.

Faz, mas não há crianças na Estação! - respondeu o Piloto.

Não mamíferas - informou o Repórter já as vegetais... as culturas botânicas devem conter espécimes mais recentes. Se um simples pé de alface hidropônico resistiu, podemos ter encontrado a solução.

Sem dúvida.

Entendeu por que estou insistindo em usar o rádio?

Sim. Tenho uma idéia.

Qual? - indagou o Repórter.

Ouviu o que ele disse? - perguntou ao Co-piloto.

Sim.

Pode retransmitir e pedir informação sobre o status das operações na Estação Espacial?

Ei, eu... - interrompeu o Repórter, sendo imediatamente neutralizado pelo forte aperto do Capitão, que ainda tinha a mão posicionada sobre o ombro do amigo.

Pode, por favor, retransmitir e pedir orientação?

Afirmativo - concordou o Co-piloto, tão curioso quanto os demais sobre a possibilidade. - Comando, aqui é Alpha, Um, Um, Três com mensagem prioritária, câmbio.

Prossiga, Alpha, Um, Um, Três. Comando Central na es­cuta, câmbio - respondeu o rádio e foi o único trecho da conversa ouvido pelo Repórter e pelo Capitão. Os militares transferiram o sinal para seus comunicadores embutidos nos capacetes.

Tá vendo? Agora vão esconder tudo da gente! - reclamou o Repórter, puxando o Capitão de lado. - Estava tentando evitar exa­tamente isso! Agora eles têm a informação e vamos ficar de fora, para variar.

Você não queria falar com eles? O sujeito não ia mudar de idéia! O ego dele está lá em cima. Ele acabou de resistir a quase quatro Gs, estabilizou o avião durante o restabelecimento do sis­tema e está se sentindo invencível no momento. O cara passou a mensagem e você vai ter algum tipo de resposta, aposto.

Isso se eles resolverem incluir a gente no clubinho. Esses caras são todos iguais. Heróis ou não, adoram mostrar que têm poder... - disse o Repórter.

E você adora bater de frente com eles. Pare com essa prega­ção sobre as mudanças do mundo, você também se esquece delas boa parte do tempo. E não tenha a cara de pau de me contrariar.

Só quero encontrar minha esposa e dar boas notícias. Até agora só vi mortes, problemas e frustrações. Alguma coisa precisa dar certo! - desabafou o Repórter, agoniado por ficar de fora da conversa.

Vai dar certo. Se não acreditarmos nisso, o que nos resta?

Acreditar em algo mais. Largar mão nesse ponto vai le­var todo mundo para o buraco bem mais rápido. Aposto e ganho. Quando todas as possibilidades forem esgotadas, vamos declinar mais rápido que esse avião. E nenhum piloto metido a Top Gun vai conseguir salvar o dia.

Depois de vários momentos de silêncio incômodo, a conver­sa terminou. Decidindo aceitar o conselho do Capitão, o Repórter passou a ser mais polido.

E, então, boas-novas?

O jornalista percebeu que os aviões da direita manobravam para baixo num ângulo de quinze graus e abandonavam a formação.

Ajustar curso para três-um-zero - informou o Co-piloto ao subalterno. - Já ouviu falar sobre o cuidado ao se desejar alguma coisa? - perguntou ao Repórter.

Sim, por quê?

Você acabou de conseguir. Solicitaram sua presença ime­diata na central de comando. Agora faça um favor a todos e fique sentado na sua poltrona - disse o Copiloto, com desdém e certa irritação.

Mas o que eles disseram? Já checaram com a Estação? Eles sabem de alguma coisa?

Cara, pela última vez, senta lá e deixe-nos fazer nosso traba­lho. Sou só um piloto, não pombo-correio. E eles querem falar com você, não comigo. O que você acha, gênio? Agora, cala essa boca.

Ainda bem que temos heróis como você para nos proteger - ironizou o Repórter. - Às vezes me pergunto o tamanho do exa­gero dos gregos ao criarem nossos grandes modelos.

Se eles fizeram mais do que ficar falando pelos cotovelos, gosto mais deles do que de você! Deve ser muito frustrante passar a vida inteira questionando, escrevendo e fingindo contribuir para a vida alheia. Você faz discurso, cara. Eu faço e ponto. - O ataque do Co-piloto foi brutal e feito para machucar; o tom ríspido e se­guro estraçalhou a auto-confiança do Repórter, debilmente recons­truída depois do breve intervalo de pensamentos concentrados nos acontecimentos recentes da Esposa e do medo da perda.

Eu... eu... - e não conseguiu terminar o pensamento, cla­ramente abalado pela porrada emocional. Havia subido correndo uma escadaria interminável apenas para chegar ao último degrau e saltar diretamente para o fundo do abismo. Chegando lá embaixo, reencontrara tudo o que o assombrara nos últimos dias, entretan­to, desta vez, não tinha defesas. Tudo que o Co-piloto viu antes de reposicionar a viseira tática e voltar a atenção para o console de comando foi o Repórter perder o foco de seu olhar, com a mente claramente em frangalhos, baixar a cabeça e voltar lentamente ao assento.

Ele era treinado para repelir esse tipo de retórica, para su­perar qualquer um num debate e obter a informação necessária. Sabia como esse tipo de gente funcionava, mas, pelo jeito, também sabiam como ele funcionava. Faziam parte de um eterno jogo de gato e rato, duas mentes prontas para se anularem; ações e rea­ções preestabelecidas frutos de um mundo hostil. Seus pais, prova­velmente, deveriam ter passado a vida toda experimentando algo similar, com outros argumentos, claro, mas era a mesma disputa pela vitória momentânea. A glória acima de tudo. Uma prática en­volta na maravilhosa sensação de realização cujo cerne nada mais é do que o desejo mesquinho de ser melhor que os demais.

O Repórter conseguiu apenas olhar para o Capitão e, ao no­tar a mudança de expressão no semblante desanimado, começou a entender as ramificações das ações dentro da aeronave. Tudo que os tripulantes queriam era voltar para casa, para suas famílias. Seja por curiosidade, ou por uma eventual descoberta importante, os desejos de todos foram postergados por mais algum tempo.

A Esposa teria que esperar.

Tudo culpa dele.

 

Acho que, mesmo se Deus falasse comigo agora, resolvesse todos os problemas do mundo e ressuscitasse todas as crianças, eu teria reservas a seu respeito e pensaria seriamente em deixá-lo preso aqui até alguém entrar, ao acaso, na cela e perceber que es­quecemos um prisioneiro lá - disse a voz desagradável e cavernosa do Major da Força Aérea, um homem negro de meia-idade, porte atlético e cabelo raspado, que vestia uma farda simples, ostentando apenas suas divisas. Era jovem para o cargo, embora isso não di­minuísse a postura imponente. Ele estava parado sob o batente da porta da pequena sala de interrogatórios onde o Repórter aguarda­va. Começou a falar antes mesmo que o jornalista percebesse ter companhia.

Algo lhe soava familiar.

O militar fingia inspecionar seu quepe, enquanto continuava seu discurso:

Desde que seu nome apareceu na nossa frente, só causou problemas. Para minha corporação e para mim. Insisti muito para que você fosse deixado por conta própria. Estava certo, não é? Você teria chegado ao primeiro abrigo, não conseguiria abrir a porta, e tudo terminaria ali. Mas sigo minhas ordens e o comando não me dá carta branca. Isso aqui não é um jornal, não sou um diretor de redação idealista e muito menos um espertinho metido a salvador da pátria - disse, fazendo uma pausa para estreitar o quepe e dar os primeiros passos em direção ao convidado.

O Repórter olhava. Mãos cruzadas sobre a mesa. Uma tra­vessa com uma jarra de água e apenas um copo ocupavam o lado direto da mesa. Uma pequena tigela com salgadinhos descansava entre seus braços. Quase vazia. Quem é esse cara?

Diferente de você, sigo ordens. Tínhamos grande interesse no conteúdo daqueles bunkers, logo, aturamos o risco de trabalhar com você. E como resultado: um soldado morto, um avião avaria­do e, como você chamou mesmo? - interrompeu o diálogo, como se buscasse a palavra certa no ar. - Ah sim, uma teoria.

E o Coronel... - interferiu o Repórter, baixinho.

Falou alguma coisa?

Um soldado e o Coronel - repetiu. - Ele não conta só por­que estava na reserva?

Sim, ele conta. Ele era meu pai.

O Repórter perdeu a linha de raciocínio.

Sinto muito, ele era um bom homem - disse o Repórter, ligando as feições do Major às do antigo companheiro. A seme­lhança não era óbvia, mas a postura era a mesma. Conhecia apenas a versão mais experiente e tolerante daquele mesmo homem. De­sistiu de ter qualquer esperança de encontrar simpatia no interlo­cutor.

Sim. Foi um bom homem. O melhor. Mas não aja como se o conhecesse - falou o Major, sem deixar espaço para réplica do prisioneiro. - Era tão bom que insistiu em ser enviado nessa mis­são. Ele conquistou o respeito de muita gente aqui.

Encerrou sua caminhada e parou em frente à mesa. Os olhos penetrantes estavam fixos no rosto combalido do Repórter.

Respeito aqui é importante - continuou. - E você não tem muito, devo deixar claro.

Tudo bem, tudo bem. Vocês não gostam de mim, já entendi. Obrigado pela ajuda, mesmo assim. Podemos falar sobre a minha pergunta? - falou o Repórter, começando a demonstrar impaciência.

Esse - disse o Major, aproveitando a deixa para puxar a cadeira e se sentar - é o problema. Você continua comportando-se como se devêssemos algo a você para, depois, abrir a boca sobre tudo lá no jornal.

Não sei em qual tubo de ensaio o esconderam até agora, mas as coisas mudaram lá fora. Você realmente quer ficar lavando roupa suja e dar lição de moral?

É exatamente por conta de todos os acontecimentos que exigi sua permanência aqui na base. Li boa parte das suas matérias e sei como você opera. Para seu azar, suas perguntas são pertinen­tes demais... arriscadas demais. O simples fato de deixar você vol­tar para casa e comentar sobre a Estação Espacial seria prejudicial demais.

Simples fato? Então, tem mais. Preciso tomar cuidado, pensou o Repórter.

E qual sua sugestão? Aliás, estou preso?

Não está preso. Não oficialmente - respondeu o Major, com certa felicidade. - Apenas sob nossa custódia para interro­gatório. Você tem informações fundamentais para nossas inves­tigações e o governo tem grande interesse nas descobertas dessa expedição.

Notando a ironia, o Repórter decidiu provocar um pouco:

Descobertas? Aquelas que os pilotos transmitiram pelo rá­dio sem dar nenhuma satisfação? Ou seria o jeito amigável como invadimos outros países sem permissão com uma arma super-secreta e abatemos metade da Força Aérea deles sem cerimônias?

Vai tomar as dores do outro lado, agora? Essa é nova, até mesmo para você! - retrucou o Major.

De forma alguma. Já está feito e estou vivo, mas tenho cer­teza de que as autoridades civis adorariam saber de tudo isso e fazer uma investigação bastante reveladora sobre a Adaga e suas peripécias.

Adaga?

Como ninguém falava nada sobre o avião, resolvi batizá-lo por conta própria - disse, aproveitando a mudança de assunto. - Olha, só quero voltar para a minha Esposa. Podemos ficar o dia todo nesse joguinho aqui e realmente pouco importa minha ima­gem perante as Forças Armadas. Se eu não tivesse razão em falar da Estação Espacial, vocês teriam rido da minha cara. Logo, falei algo que não devia e vocês me trouxeram aqui, o tempo de todos nós é precioso e sou todo ouvidos - disse, abrindo os braços e ges­ticulando para demonstrar estar aberto e sem defesas.

Os olhos do Major analisaram-no com calma. Decidir cair numa armadilha propositalmente era tão perigoso quanto, de fato, acreditar na postura colaborativa do Repórter.

Claro que falou. Como disse, suas perguntas costumam fazer sentido. E esse é o problema - disse o Major, abrindo uma das gavetas do lado, retirando uma edição do jornal e jogando so­bre a mesa. Algumas matérias estavam destacadas com marcador vermelho.

O zunido das luzes fluorescentes no teto tomou conta do ambiente, conforme o Repórter lia as manchetes e, rapidamente, folheava a edição em busca de mais informações. Desde a partida, não tinha nenhum contato com esse tipo de dado e, embora nada ali fosse muito inesperado, a velocidade com a qual a situação se deteriorara o assustou.

Tão ruim assim? Toque de recolher? - perguntou.

Essa é uma das cidades mais controladas até agora. O pla­no funcionou bem ali. Estamos usando como modelo.

Para quê? E as demais cidades? - continuou o Repórter, sem tirar os olhos do jornal.

Há casos de todos os tipos. Imagine uma situação extrema e aponto para você uma cidade no mapa. De abandono completo até incêndios incontroláveis.

Modelo para quê? - repetiu o Repórter.

Para a fase alternativa do programa.

Que consiste em... - incentivou o jornalista, embora inter­rompesse a pergunta por espanto genuíno. - Zumbis? Nossa!

Prefiro os alienígenas que incendiaram três hospitais numa cidade do Interior e envenenaram um reservatório d'água - disse o Major, com sarcasmo. - A fase alternativa tem por objetivo pre­servar a espécie.

E isso tem a ver com a Estação Espacial, certo?

O Major não respondeu. O Repórter tirou os olhos do jornal. Os dois se encararam por alguns segundos.

As plantas não morreram, certo? - insistiu o Repórter, in­capaz de conter um início de sorriso.

Não. Não morreram.

Então, foi algo atmosférico. Podemos dar um jeito no pro­blema.

Ninguém sabe o que foi. Mas há fortes indícios.

Por que acho que vou me arrepender de perguntar o mo­tivo disso ainda não estar nos jornais e, por alguma razão bizarra, de você continuar com essa cara de quem comeu e não gostou?

Porque as coisas não são simples assim.

Claro, claro! Dê uma fatia de pão, uma faca e um pote de manteiga a um militar e ele vai encontrar empecilhos antes de fa­zer algo que uma criança consegue fazer!

A provocação não caiu bem e, notando o deslize, o Repórter completou rapidamente:

Ok, desculpe. Pode explicar o problema? Temos algo em que nos apoiar, isso vai dar esperança ao pessoal lá fora.

O que temos é um início. Só isso. Quanto à esperança, acreditamos piamente no perigo de qualquer notícia. Seja ela boa ou ruim. Há muita movimentação nas ruas, os boatos estão cor­rendo muito rápido e os confrontos só vão piorar. Manter a comida intacta é mais importante que evitar mortes por conta da violência.

Gente vai morrer de um jeito ou de outro, garantir estoques de co­mida é o único jeito de uma chance a médio prazo. Até esse início se transformar em algo mais sólido.

Isso é bobagem. Tudo que as pessoas querem é ter esperan­ça. Boas notícias vão aliviar as tensões - insistiu o Repórter.

Boas notícias como esta aqui? - disse o militar, retirando outro documento da gaveta e entregando ao jornalista. Era uma única folha de papel branco, com uma foto no topo e um pequeno relatório no restante da página. Era a primeira análise de um inci­dente grave registrado dez horas antes; uma companhia farmacêu­tica anunciou estar desenvolvendo uma cura e iniciaria testes em animais. Quando a notícia vazou, uma multidão cercou o edifício, que também abrigava um hospital particular, querendo fazer parte dos testes; centenas de mulheres grávidas tentando uma jogada de- sesperadora para salvar o filho. A foto mostrava o prédio destruído pelas chamas. Um número se destacava no canto direito inferior. Seiscentos.

Seiscentos? - perguntou o Repórter, antecipando a resposta.

Mortos. Sim! Os tanques de oxigênio e hidrogênio foram detonados quando começaram a atirar contra o prédio.

Era verdade? Uma cura?

Jogada de marketing. Alguém decidiu ficar rico e causou uma tragédia maior ainda. Por isso, preferimos deixar a história dos ETs circular a manter essa boa notícia - disse, ironicamente. - Melhor do que continuar a causar estrago.

Um caso isolado não pode decidir o futuro de todos... - di­zia o Repórter, quando uma pasta de pelo menos dez centímetros de espessura pousou com força na mesa.

Fique à vontade e vasculhe os casos isolados. O mundo é grande, meu caro. E maior ainda é nossa habilidade de entrar em pânico. Por enquanto, o plano de contingência das comunicações tem reduzido os efeitos de tudo isso. Nossas análises apontam um cenário catastrófico se o fluxo de informação for normalizado - ressaltou o Major, contendo o orgulho pelo bom trabalho realizado e mantendo a seriedade envolvida no assunto. Sentado à sua frente, o Repórter devorava os relatórios.

Difícil acreditar em tudo isso - disse para si mesmo. - Sempre acreditei na nossa habilidade de superar adversidades.

O que você sempre viu em suas visitas ao campo de bata­lha foram pessoas colocadas em situações extremas e confrontadas com uma escolha: lutar ou se render. Morrer faz parte do jogo, entretanto a rendição ou mesmo a derrota são condições aceitá­veis pelo subconsciente. Optamos pela união social e a irmandade quando o resultado final vai beneficiar um dos nossos ou co­locar nossos inimigos numa situação constrangedora, submissa e miserável.

E, agora, isso não existe - comentou o Repórter, sem con­vicção ou vontade.

Não mais - concordou o Major. - Já vimos isso aconte­cer, em escala menor, claro. Conflitos tribais têm muito disso. E vemos esses efeitos em nossos treinamentos de sobrevivência. Até certo nível de estresse, os soldados se unem; dali para a frente, o instinto fala mais alto e qualquer razão para ter alguma vantagem tática ou fisiológica será usada para o benefício daquele indivíduo - continuava o argumento. A lógica parecia impecável e o discurso era sincero, chegando a ser influenciado por momentos de pesar profundo, presentes, mesmo que de forma contida. Assim como o Repórter, o Major preferiria desconsiderar tudo aquilo, entretanto a verdade não podia ser omitida. E ambos sabiam.

Por que me trouxeram aqui? - O tom da voz do Repórter era calmo, quase neutro. Sabia como escolher suas brigas e não havia nada mais a ser dito ali.

Meu pai gostava de você. Lia tudo que você escrevia.

Ele tinha esperança. E você?

Acredito no que está ao meu alcance.

E o que seria isso, nesse momento?

Preparar meus homens para um longo inverno e pensar num jeito de manter a vida. Não como ela é hoje, mas um tipo aceitável de vida. Até podermos recomeçar - explicou o Major. - Muita gente vai morrer.

Ainda não entendi meu papel nisso tudo. Aliás, nem sei se quero manter minha tarefa atual, quem diria ganhar uma nova.

Preciso que mantenha segredo sobre a Estação Espacial.

Esse não é o trabalho do censor de plantão lá na redação?

Nem ele sabe disso. Só você sabe. Só você pode evitar uma tragédia maior ainda. Temo que os aeroportos sejam invadidos com gente que queira voar até o espaço. Devemos esperar reações ilógicas ao lidar com um cenário tão complexo assim. Ou nossa missão científica estará em risco.

Missão? Vocês vão mandar uma equipe para a Estação Es­pacial?

Sim. E decidimos arriscar um parto no espaço, longe da influência desse ecossistema comprometido.

Para espanto do Major, o Repórter levantou-se com vigor da cadeira, que acabou caindo para trás, e segurou seus braços, mos­trando um sorriso contagiante.

Vão mandar uma grávida? E escolheram a minha Esposa? Obrigado! Obrigado!

Pela primeira vez durante a conversa, diante de tamanha emoção o Major foi incapaz de controlar os olhos lacrimejantes e desviou o olhar do Repórter, titubeando envergonhado.

Sinto muito. Essa não foi a razão.

Como assim? - perguntou o Repórter, buscando algum sentido na situação. Não encontrou. Explodiu, limpando a mesa com um único balanço de braços. - Como assim? Por que tudo isso, então? Você tem uma nave e eu tenho uma grávida! Vocês me odeiam tanto assim para contar uma coisa dessas só para me verem sofrer, é isso? Seus malucos! MINHA ESPOSA VAI ESTAR NESSA NAVE!

Dois guardas apareceram na porta e partiram em auxílio do Major, cujo pescoço estava a segundos de ser atingido pelas mãos descontroladas do Repórter. Os dois brutamontes lançaram-se em cima do jornalista, levantaram-no e o jogaram contra o chão, imo­bilizando os braços e o subjugando imediatamente. Ele lutava com valentia, mesmo sem ter chances contra os guardas militares.

O Major aproveitou aquele momento para se recompor, res­pirar fundo e caminhar até o trio. O Repórter ofegava violenta­mente e, de vez em quando, tentava se desvencilhar dos granda­lhões. A silhueta do Major se aproximou contra a luz e, assim que seus olhos se adaptaram com a claridade, o jornalista viu o sujeito se agachar e gesticular, pedindo paciência.

Dei uma boa notícia e olha como você reagiu - disse o Major.

Ferrem-se vocês e suas teorias! - esbravejou o Repórter, tentando uma nova fuga.

Vocês não podem ser incluídos no projeto. Sinto muito.

O Repórter apenas rangeu os dentes e emitiu um forte som gutural, enquanto tentava chutar um dos guardas e atingir o outro com uma cabeçada. Deu de encontro com o capacete e calou-se momentaneamente por causa da dor. O peito voltava a doer. O guarda sacou uma pequena seringa e injetou algo em sua perna.

Ahhhh - gritou o Repórter. - Que porcaria é essa?

É um sedativo, preste atenção - insistiu o Major, aproxi­mando-se mais ainda. - O foguete só vai poder decolar em três meses. E, mesmo que partisse amanhã, sua Esposa não resistiria à força gravitacional. E muito tarde para ela.

O Repórter continuou a gritar e começou a chorar.

Tão perto e tão longe. Podia não acreditar no purgatório, mas tinha a certeza de que estava sofrendo suas mazelas ainda em vida.

Como voltaria para casa sabendo disso, e ainda dizer à Espo­sa que havia esperança?

Naquele momento, sua fé em si mesmo morreu.

- Vou deixar você voltar em breVe. Obrigado por estar ao lado do meu pai no final. Boa sorte - disse o Major, sinalizando para que os guardas o soltassem. Ele deu meia-volta e deixou a sala.

Um dia depois, o Repórter embarcava num helicóptero mili­tar que o levaria para casa.

 

Era difícil enxergar na escuridão da noite. A motocicleta acelerava em direção ao breu opressor existente entre as árvores à frente, e o vento forte no rosto mascarava qualquer cheiro daquele lugar. Não sabia o motivo, mas precisava chegar às árvores. De­pressa. Acelerou, e o motor respondeu. Uma luz espectral surgiu ao longe, à direita; como se a aurora boreal resolvesse sair do solo em vez de cortar os céus. O brilho à esquerda era mais intenso; era fogo. Algo se movia em ambas as direções. Formas indistintas ha­bitavam as sombras e avançavam na mesma velocidade.

Outros fugindo? Preciso correr. Preciso chegar primeiro.

A primeira explosão veio da retaguarda. Não fosse seu peso, o Repórter teria sido jogado para fora da motocicleta. Rapidamen­te, as chamas envolveram tudo ao seu redor, revelando formas fantasmagóricas nas árvores. E rostos familiares no chão. O solo pulsava como um coração de um vermelho intenso. O rosto da Esposa foi o primeiro a ser reconhecido pelo jornalista, dividido entre controlar a motocicleta e seguir aquela feição tão carinhosa por quem se apaixonou. Ela está sofrendo. Não!

O semblante do Diretor também se transformou do sujei­to bonachão numa pessoa transtornada e perturbada. Viu o rosto sem vida do Coronel se aproximar e se contorcer por conta do fogo quando a segunda explosão o sacudiu de um lado para o outro. A aurora fantasmagórica desapareceu em meio às chamas. O abalo seguinte veio da esquerda e lançou pedaços de árvores, pedras e... vidro.

Sentia o calor do incêndio e também o frio do vento que o envolvia. Incômodo duplo. Gelo e fogo. Mais uma onda de choque. Não sabia de onde os abalos vinham. De cima, talvez? Preferiu não olhar. Os rostos, agora, estavam nos estilhaços, troncos e folhas alongadas que se moviam com lentidão em seu caminho. Avistou um pedaço da placa do velho andarilho com a palavra "Próximo". Pensou em falar algo, mas uma série de explosões simultâneas e azuladas aniquilaram a paisagem e o lançaram ao ar com força.

Em seu vôo, o Repórter acreditava estar cercado por crian­ças. Ouviu uma delas chorar. E, de súbito, estava no limbo. Logo a agonia da solidão o alcançou, ampliando seus medos e emba­ralhando seus pensamentos. Quanto mais pensava naqueles que amava, mais abandonado se sentia. A angústia crescia, não havia nada de bom de que se lembrar. Tentou manter os pensamentos livres. O vazio a sua volta aumentou. A solidão também.

Ela é a eterna companheira na noite - disse uma voz dis­tante. - E também uma sombra maldita no dia.

Era a voz do Velho Andarilho.

Isso é a morte? - perguntou o Repórter, testando os limi­tes entre o sonho e a projeção da realidade tão assustadora. Não houve resposta. Absolutamente nada. A solidão era tanta, que ele duvidava de sua própria consciência. - Isso É A MORTE? - tentou novamente, acreditando estar gritando a plenos pulmões. Tentati­vas físicas falhavam. Naquele momento, ele, realmente, não existia. E precisava confrontar aquele fato.

Nada aconteceu por um longo período. Os pensamentos se calaram.

O mundo chegou ao fim.

Não. Não tão fácil. O que foi mesmo que ele disse da outra vez? O Repórter estava disposto a lutar. Esperança! Isso!

Se não há esperança para mim, o que devo fazer? - per­guntou.

Dê esperança àqueles que não têm nenhuma - disse o An­darilho, acompanhando um vendaval sonoro. O Repórter sentia o vento como se flutuasse no meio de um furacão mental. Tudo continuava escuro e nenhuma forma o atormentava.

Esperança aos que não têm.

O vento continuava.

O controle sobre seu corpo retornou, quando ele sentiu uma dor forte no peito e acordou suando, com o rosto estatelado con­tra o vidro do helicóptero. A turbina do transporte esquentava o assento e, nas demais janelas, partículas de gelo se formavam por conta da baixa temperatura exterior.

Passou o restante do trajeto até o heliponto da redação pen­sando no significado da mensagem e não tirou a mão do peito ain­da dolorido.

 

Poucas nuvens cobriam a cidade naquele entardecer alaranjado. O espaço aéreo estava restrito a veículos militares e emergenciais, apenas alguns helicópteros da polícia e ambulâncias aéreas dividiam o céu com o transporte do Repórter. Uma figura solitária aguardava o pouso na escadinha de acesso ao heliponto. O Diretor olhava ao redor com a mesma atenção de sua primeira visita àquele lugar de vista maravilhosa.

A cidade estendia-se para todos os lados. A vizinhança era formada por arranha-céus mais altos que o edifício de cinqüen­ta andares onde trabalhava e construções menores - porém não menos grandiosas -, em sua maioria, prédios de apartamentos de cerca de vinte andares cada. Núcleos residenciais formados por mastodontes interligados de concreto definiam o resto da paisa­gem impressionante.

O Diretor sentiu falta de alguma coisa. Pouco do som das ruas chegava até o topo do prédio, mas logo identificou o problema. As luzes eram escassas, tanto nos prédios vizinhos quanto nas ruas habitualmente movimentadas na volta para casa. Os carros esta­vam lá, abandonados desde o mega-congestionamento do primeiro dia. Quase uma semana havia se passado e poucas pessoas vaga­vam entre os veículos. Bicicletas transitavam pelos corredores cria­dos à força pelos blindados e patrulhas do exército. O Diretor olhou para o relógio. Faltavam dez minutos para as dezenove horas.

As luzes de aproximação do helicóptero piscavam acima dele e a força das hélices duplas se fazia presente. O transporte era quase grande demais para a plataforma, entretanto, como foi informa­do no caminho, qualquer unidade militar era obrigada a sair com pelo menos seis homens para eventuais resgates ou intervenções de emergência. E aquele pessoal patrulharia a cidade durante as primeiras horas da noite. Ele não passava de uma parada fora do curso. O Copiloto apontou para a porta ao lado do Repórter, com­pletamente desperto e pronto para desembarcar, e também apontou para o soldado sentado à frente; ele abriria a porta. Depois estendeu a palma da mão esquerda e usou os dedos da direita como se fossem pernas, simulando uma caminhada para longe. Entendeu o recado. Desça rápido e se afaste das hélices. Ele respondeu com um polegar em riste. Eles queriam se livrar do Repórter o mais rápido possível.

O sentimento era mútuo.

Depois de tantos dias cercado pelos procedimentos, atitu­des e o maldito pensamento militar, ficou com medo de começar a pensar como um deles. Precisava muito voltar a ter contato com gente normal e planejava ficar o mais longe deles possível pelo res­to da vida. Segurou a mala com firmeza e aguardou o sinal. Depois de uma aproximação cuidadosa, o helicóptero tocou a plataforma, chacoalhou um pouco e a porta foi aberta. Ele sinalizou abaixando a cabeça num movimento curto, o soldado à sua frente prestou continência rapidamente e ele desceu.

A porta se fechou atrás do Repórter, e tão logo ele se afastou das lâminas, a unidade levantou voo e prosseguiu para a rota de patrulha.

Deu alguns passos em direção à escada quando o Diretor o alcançou.

Nem o fim do mundo consegue tirar você daqui? - per­guntou o Repórter, para descontrair.

O Diretor ignorou o cumprimento com a mão estendida, partindo para um abraço apertado, longo e carinhoso. O veterano parecia receber um filho renascido das entranhas do inferno, não um simples colega de trabalho.

Nem o fim do mundo consegue manter você longe das confusões! - disse com alegria, enquanto segurava o Repórter pe­los braços e o admirava com orgulho.

Quer maneira melhor de fechar a conta do que sair que­brando tudo? Melhor aproveitar antes de apagarem as luzes e aca­barem com a festa - disse o Repórter, desvencilhando-se do amigo e caminhando atrás dele em direção à escada.

Melhor você aproveitar para ver como as coisas estão - sugeriu o Diretor, apontando para o mirante protegido ao lado do primeiro degrau; o Repórter aceitou o convite, dando um passo sobre a pequena plataforma reforçada e protegida por um escudo de acrílico especial.

Toque de recolher?

Sim.

Qual a punição?

Mulheres e crianças ainda levam uma dura e são escolta­das para casa. Acredita que a molecada faz de tudo para escapar dos pais e tentar fugir das patrulhas só para se gabar no dia seguin­te? - disse o Diretor, dando um leve sorriso.

E os homens?

Quem se comporta bem tem chances de ser escoltado até em casa. E a maioria tem se comportado muito mal. Montaram uma pequena prisão na base ao norte daqui.

Já encheu?

Não - respondeu o Chefe, voltando ao semblante sério. - As tropas estão respondendo às pedradas com munição de ver­dade. Optaram pela política de tolerância zero para desmotivar qualquer confronto.

Funcionou, pelo menos?

Parece que sim. O exército não é a melhor fonte de infor­mações, como você bem sabe. Ainda mais agora. Falam com a gen­te de vez em quando. O governo parece confiante.

Mas o tal do Engravatado não está aqui para isso?

Ele só tria o material e transmite os pedidos do governo. Não sei até que ponto ele é realmente envolvido no fluxo de infor­mações confidenciais.

Pensei que demoraria mais para chegar a esse ponto.

Eu também.

Como foi lá? - perguntou o Diretor, acompanhando o Re­pórter até os degraus.

Horrível Precisamos conversar.

O pessoal está jantando, então temos toda a privacidade do mundo no elevador da direção, enquanto vamos ao meu escritório. Ou você está com fome?

Nem um pouco. E você?

Tenho reservas - respondeu, batendo na barriga e apro­veitando o novo ânimo pelo reencontro revigorante com o amigo.

Certo, certo!

Eles desapareceram pela porta vermelha e deixaram a cidade por sua conta e risco. A noite caiu rapidamente.

 

Estou fora - disse o Repórter assim que as portas do eleva­dor privativo se fecharam. - Passei tempo demais longe dela e essa missão... já deu o que tinha que dar. Hora de pendurar as chuteiras e pensar no que importa de verdade.

E o que importa de verdade?

Sobreviver.

Pensei que lavagem cerebral levasse mais tempo - provocou o Diretor, tentando esconder os primeiros sintomas da decepção. Seu mundo estava prestes a desmoronar por completo. Primeiro a família, agora o pupilo. Cada peça se retirava com requintes de crueldade. - E pular fora agora? Sem comentários. Você está pá­lido, magro e precisa descansar e perceber as bobagens que está dizendo.

Sim, preciso descansar. Por tempo indeterminado. Essa coisa toda vai piorar muito mais. Lembra-se daquelas teorias de que existem curas para certas doenças e as indústrias farmacêuti­cas não divulgam para manter o dinheiro girando? - argumentou o Repórter, visivelmente esgotado. Sem notar, levou a mão ao peito novamente. Depois coçou o queixo e continuou a conversa. - Isso vai virar história para boi dormir muito em breve. E quero estar bem longe daqui quando tudo isso explodir.

O que você descobriu?

Alguém aqui pensou em checar, de verdade, todas as ins­talações de pesquisa?

Não. O governo informou que não havia nada a relatar so­bre nenhuma delas. E, pelo jeito, eles mentiram.

De modo algum. Assim como a gente, eles ocultaram in­formação para o bem da ponulação - ironizou o Repórter. - O bem maior!

Qual delas? - perguntou o Diretor.

Em resposta, o Repórter apenas apontou para cima; deixan­do o Diretor estarrecido.

Escreva a reportagem agora, então. Daremos na capa de amanhã. Consigo enrolar o Engravatado até terminarmos de ro­dar. Ele não vai conseguir segurar todos os caminhos e podemos colocar uma edição falsa na mão dele - sugeriu o chefe, reacenden­do a chama da vontade jornalística. - Escreva o texto e vamos...

Causar a morte de milhares de pessoas.

-Hã?

Qualquer possibilidade ou teoria vai apenas jogar gasoli­na nessa fogueira. Tivemos sorte. A coisa está muito pior em ou­tras cidades. Teremos problemas sérios muito antes de a comida acabar. Sabe aquela velha história de dizer que "as pessoas devem nos contar as coisas para espalharmos a verdade e impedir novas injustiças? Evitar que outros sofram as mesmas mazelas dos entrevistados? Tudo isso é balela. Sempre fizemos isso pela gente, pelas vendas, pelos prêmios. Não faz mais sentido manter essas menti­ras. Como posso colocar os outros em risco em meu benefício?

Eles, realmente, fizeram um bom trabalho com você, não foi?

Foi você quem me mostrou aquelas fotos do primeiro cam­po de concentração, não foi?

Sim, na sua segunda semana como estagiário aqui.

Exato. Lembra-se de uma bem específica, de um soldado retirando comida da boca de um dos prisioneiros? Eles não po­diam comer muito ou os estômagos explodiriam, isso se não mor­ressem engasgados antes. Lembra?

Sim.

Imagine alguém dizendo que havia comida, ou água, ou um caminhão pronto para salvar todo mundo do outro lado da cerca e tudo que eles tinham que fazer era atravessar a cerca. O que aqueles que ainda tinham força fariam?

Aceitando o argumento, o Diretor olhou para baixo antes de responder:

Atravessariam a cerca.

E a maioria deles morreria no processo. Estamos na mes­ma situação, só não percebemos ainda, pois ainda estamos bem alimentados, tristes pelas mortes e morrendo de medo do futuro - disse o Repórter, de forma analítica. - Aceitei essa missão para encontrar vida e tudo que consegui foi a certeza da morte. Cansei de ver gente morrendo à minha volta ou por minha causa. Um amigo disse que trocar uma vida por duas é uma troca justa. O mí­nimo que posso fazer é abrir mão da minha necessidade de contar a verdade e salvar milhares de vidas. Evitar massacres e destruição precisa valer mais que passar o resto de meus dias com amargura e arrependimento.

Esse é um tempo cheio de decisões difíceis.

Difícil é arriscar a vida de tantas pessoas baseado em tantas conjecturas. Meu mentor considerava todas as decisões difíceis. Ele ainda pensa assim? - perguntou o Repórter, provocando mais lem­branças da juventude do mestre, havia muito afastado das repor­tagens diárias, mas sempre presente no dia a dia dos comandados.

Ele ainda tem muito que aprender. Mas, sim, ele ainda pen­sa assim.

Que bom!

O elevador emitiu um sinal sonoro. Faltavam cinco andares para chegarem aos escritórios da direção.

Mas ele também discorda dessa decisão. Você descobriu algo e outros precisam saber. Nãó somos juizes da verdade, temos um trabalho a fazer. Do jeito que você fala, parece que estamos apontando uma arma para a cabeça de cada um deles. Cada um de nós precisa tomar as próprias decisões - disse o Diretor, claramen­te irritado e contrariado pela irredutibilidade do jornalista.

E estou tomando a minha. Vou voltar para minha família. Meu Filho vai nascer e preciso estar lá... para vê-lo morrer sem razão. Mas é meu Filho e devo isso a ele. Vou fazer isso bem longe de todo mundo, tive uma idéia durante o interrogatório e preciso correr antes que seja tarde.

Sem notar que a porta do elevador estava aberta, o Diretor havia se posicionado em frente ao Repórter, impedindo sua saída.

O que tem lá em cima? Não me diga que vai sair correndo, pegar algum foguete dos seus novos amigos e não vai contar para ninguém? Você não tem o direito de guardar algo tão importante só para você! De que adianta termos uma solução? Ela não serve para nada se você continuar com essa atitude!

Notando a irritação do chefe e sem querer desrespeitar o amigo, o Repórter tocou-lhe o ombro levemente e disse suas últi­mas palavras:

Contar a verdade é o que faço de melhor. Doa a quem doer. Nesse momento, a verdade é uma só: cansei de provocar dor. Saí daqui para encontrar vida e, sinceramente, agora me contento com a vida que tenho - desabafou, deixando o Diretor dentro do elevador e seguindo pelo corredor, virando-se para concluir o pensamento com os braços abertos e com a voz livre de pesar ou dúvida. - A humanidade pode se salvar, ou se destruir, sem saber da minha desco­berta e do meu segredo! Esse eu carrego para o túmulo. Se as pessoas querem se destruir, vão fazer um bom trabalho sem a minha ajuda.

Entristecido, o Diretor ouviu a declaração em alto e bom som. Quem também ouviu tudo foi um grupo que acabara de abrir a porta do elevador social. O Governador liderava a comitiva, se­guido pelo Assessor, o Radialista e, acompanhado por dois solda­dos, o Blogueiro, que teria uma última chance de deixar as teorias da conspiração de lado durante a reunião ou seria confinado com os demais arruaceiros.

Aproveitando a surpresa de todos pela revelação desse segre­do e mais certo que nunca sobre suas convicções, o Blogueiro deu dois passos para trás enquanto as portas do elevador se fechavam. Os soldados reagiram devagar demais.

Mesmo algemado, o Blogueiro escapou.

 

As dores no peito e nas costas tornaram-se mais constantes conforme o Repórter, ainda debilitado e contundido, pedalava a bicicleta no último quilômetro antes de chegar em casa. Arriscou tudo contra as patrulhas do toque de recolher e, acima de tudo, queria deixar todos os problemas, o jornal, a ira do Diretor, as questões do Governador e as implicações da fuga do sujeito que escapara, para trás. Passou pela igreja e algumas pessoas estavam sentadas nos degraus da entrada. Havia luz e barulho vindo de dentro do templo. Bom para eles.

Continuava lembrando-se do pesadelo. Desta vez, porém, a ansiedade pelo encontro com a Esposa era maior. O rosto brilhava com intensidade e alegria em sua mente; uma sensação distante, quase proibida naquela atmosfera de pesar. Estava cada vez mais perto. Ouviu o som de blindados a distância e manteve o curso. Aumentando o intervalo entre pedaladas para diminuir os ruídos. Começou a reconhecer as casas e a pensar no estado físico e mental dos vizinhos. Viu duas casas com as portas escancaradas e janelas quebradas. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Mesmo sabendo que a Esposa estava sã e salva, depois de trocarem uma palavra rápida pelo telefone via satélite antes de deixar a base aérea, foi in­capaz de evitar o pensamento. Não pôde dizer onde se encontrava nem que estava retornando naquela hora. Mesmo porque nem ele sabia quando retornaria de fato.

Poucos carros ocupavam aquelas ruas e muitos ainda esta­vam estacionados nas garagens. As notícias devem ter chegado a tempo de impedi-los de ficarem presos nas avenidas. Na pior das hipóteses, viram o trânsito na saída do bairro e puderam retornar. A perspectiva lhe agradava. Precisaria de transporte para executar seu plano. Cruzou os últimos quarteirões e avistou a residência.

Uma luz fraca iluminava o segundo andar.

O coração bateu forte e ele quase perdeu o equilíbrio da bi­cicleta.

Chegando ao portão, demorou a encontrar as chaves, perdi­das em algum lugar na mochila de viagem. Ainda carregava o tele­fone via satélite e algumas provisões de combate. Força do hábito. Ansioso, caminhou até a porta, onde encontrou outra bicicleta es­tacionada, e lutou contra a empolgação para não derrubar a chave, mas, quando finalmente abriu a fechadura, foi surpreendido por um homem dentro da sala de estar.

Surpreso, o Padre olhou para a porta e sorriu.

Graças a Deus! - louvou o religioso, levantando-se com cuidado e controlando a voz. - Rezei muito por esse momento, mas celebremos com moderação - disse, abraçando o dono da casa. - Ela está dormindo!

Obrigado. Dormiu aqui todos esses dias?

Comecei ontem. Ordens médicas. Está quase na hora - dis­se, escondendo qualquer tristeza pelo atual significado do parto. - Ela foi forte e ficará muito feliz ao vê-lo.

Obrigado mesmo. Como estão as coisas por aqui? Vi casas arrombadas.

Difícil andar por aí sem ver algumas - contou o Padre, com pesar. - Tivemos muita sorte e nosso bairro ainda está muito bem policiado. Graças à influência do Governador. Ele conseguiu organizar as pessoas de forma muito efetiva e teve habilidade para desarmar os baderneiros. Mas ninguém pode fazer nada por uma casa abandonada. Muita gente deixou a cidade - disse, fazendo o sinal da cruz e olhando para uma vela que queimava debilmente, na sala de jantar.

Acredite. Estamos bem melhor que muita gente. A situação não está estável no resto do mundo. Preciso vê-la. Quanto tempo falta?

Pode ser a qualquer momento, de acordo com o Médico.

Então, melhor não perder nem um minuto! - anunciou o Re­pórter, virando-se para a escada acarpetada que levava ao segundo andar, onde encontrou um anjo. Vestida com uma camisola rosa e apoiando-se no corrimão, ainda no topo da escada, estava a Esposa.

Querido? - disse, com sorriso próximo da perfeição, cuja magia era intocada até mesmo pelos quilos a mais presenteados pela gravidez. Ela estava linda. - Estava sonhando com você e ouvi sua voz. Acordei de repente e vim pegar um copo d'água. Sonhei que estaríamos juntos hoje.

Os olhos do Repórter lacrimejavam.

Alguns sonhos se tornam realidade, meu amor.

Estava em casa, finalmente.

Mas não ficaria por muito tempo, anunciou que sairiam bem cedo.

 

O Padre acompanhou sorridente enquanto ele subia a escada e abraçava a Esposa. Momentos como esse comprovavam algo re­forçado durante os últimos sermões e conversas com famílias que visitou. A hora é de adversidade e dúvida. Somos constantemen­te lembrados da tristeza e da fragilidade humana e, mesmo assim, podemos encontrar alegria em pequenos momentos; esperança em ações triviais; e fé num único sorriso ou gesto de amor. Precisamos enfrentar essa provação e garantir a nós mesmos que somos mere­cedores do ato de estar vivo. Certa vez, meu pai lançou uma teoria: uma pessoa só morre de verdade quando deixamos de lembrar dela. Embora sua alma esteja ao lado do Senhor, é preciso relembrar e festejar aqueles que nos deixaram. Se alguém nos lembra da morte, vamos dar a outra face... e celebrar a vida!

Ele decidiu acreditar nessa linha de pensamento e, para sua alegria, estava funcionando. Manter a própria sanidade tornou-se prioridade nesse novo mundo. Tantos fiéis novos surgiram em busca de resposta, tantos partiram em desilusão. Ele precisava ser a rocha. Dar o exemplo. Viver as próprias palavras e inspirar as pessoas. Ver os velhos amigos juntos e felizes foi um pequeno lem­brete da missão que tomou para si. Naquele momento de felicida­de, decidiu acompanhá-los até o nascimento. Como em todos os casos anteriores, mesmo sabendo do resultado, rezaria e acredita­ria. Inconscientemente, precisava ficar com eles para reconstruir sua autoestima e se alimentar daquele amor que queimava forte por tanto tempo. Precisava mais deles do que eles precisavam dele.

Satisfeito e aliviado, o Padre apagou a luz da cozinha, levou a xícara de café com leite até a mesa de centro da sala, onde uma cama improvisada o aguardava. Sentado no leito, tomou mais um gole e observou a escuridão lá fora. A luz da vela bruxuleou mo­vendo as sombras de forma estranha. Fechando os olhos vagaro­samente, fez uma breve oração e, quando os abriu, encontrou uma luz constante.

As sombras estavam em seus devidos lugares.

Pegou no sono, embalado por lembranças das maluquices da faculdade ao lado do Repórter e dos anos em que caiu de amores pela Esposa. De forma prática, na alegria ou na tristeza, eles sem­pre foram sua constante. E agora, estava tudo bem. Dormiu.

 

Daria tudo para nunca precisar abandonar aquele abraço. Mas o que seria "tudo" naquelas circunstâncias? Tinha apenas o amor incondicional e isso ela já tinha. O Repórter chorava de ale­gria. A quantidade extrema de esforço emocional e físico dos últi­mos dias valorizou ainda mais aquele pequeno momento de paz. Queria contar tudo a ela e, acima de tudo, queria revelar a desco­berta para que a Esposa encontrasse forças. Mas seus lábios não respondiam. Queria apenas ouvir sua voz. Era sua vez de escutar.

Está tudo bem, querido. Tudo bem - disse. - Estamos jun­tos. Acabou.

Ele soluçava. Ela acariciava seu cabelo, beijava-lhe o rosto, a testa e a boca. O choro acabou quando os lábios se tocaram leve­mente e entregaram-se à mesma sensação de descoberta do pri­meiro beijo. A intensidade aumentava conforme seus braços aper­tavam com mais força; ela o segurava pela cabeça e pelos ombros, ele a envolvia pelos ombros e pela cintura. Os movimentos seguiam a coreografia aperfeiçoada ao longo dos anos, enquanto suas bocas tentavam saciar um desejo insaciável. Para os dois, não havia nada mais mágico do que aquilo.

Aquele beijo havia sacramentado a paixão adolescente e, agora, os unia novamente.

Como de costume, ele deslizou a mão direita pelas costas da Esposa e subiu até a base do pescoço. As mãos dela agora agarra­vam sua camisa e massageavam as costas. Ele pressionou um dedo contra os músculos das costas dela e continuou a brincar como se tocasse piano; ela encerrou o beijo do modo mais mágico: com um sorriso contagiante.

Amo você. Ele pensou. Ela pensou. Ambos sabiam.

O Repórter tocou aquele rosto sorridente, sentindo cada cen­tímetro da pele lisa e delicada como se tentasse memorizar as fei­ções da Esposa. Amava cada centímetro dela e esse era o jeito de lhe mostrar, de substituir a memória estética das fotos pela certeza da sensibilidade, do toque. Ele também sorriu, enquanto a tomava pela mão e seguia em direção ao quarto.

Venha, precisamos conversar.

A Esposa concordou. Entretanto, não se moveu. Levou a mão à barriga e mordeu os dentes por causa da dor.

Mais alguém sabe que você voltou - brincou, enquanto se recuperava. - Você se esqueceu de dizer oi!

Ajoelhando-se e segurando a barriga da Esposa com as duas mãos, ele sussurrou com o rosto colado:

Olá, Filho, papai está aqui! Agüente firme aí, vamos cuidar de você!

Ele chutou! - disse a Esposa, feliz.

O Repórter deu um beijo na barriga antes de levantar.

Está bem agora?

Sim.

Vamos lá.

Caminharam lado a lado até o quarto e se sentaram na borda da cama. Uma das cortinas dançava ao sabor do vento da janela semi-aberta. Os dois abajures de cabeceira estavam acesos, emitindo uma luz alaranjada e reconfortante.

O que você descobriu? O Diretor falou algo sobre uma me­nina ter sido resgatada. É verdade? Ela sobreviveu? - perguntou a Esposa, ansiosa.

Sim, meu amor. Quero dizer, ela foi resgatada e estava viva, mas era mais velha. Dei de cara com dois túmulos subterrâneos e, pelo jeito, escapei da morte certa no abrigo que não visitamos.

Que pena - disse a Esposa, lutando para manter o sorriso e conter a vontade de chorar. O sorriso venceu. - Mas estamos jun­tos e ainda temos uma chance, não é mesmo? Alguém da arquidio­cese falou aos padres sobre uma empresa trabalhando numa cura, podemos tentar ir até...

Não há nada lá, meu amor. O lugar foi destruído e nunca houve cura. Mas... - disse, perdendo as palavras no meio da fra­se. Contar ou não? Prometera nunca mentir para ela. Assim como também havia jurado lealdade à profissão. Mas... com ela era di­ferente. Era sua Esposa. Precisava confiar nela e, acima de tudo, ela tinha o direito de saber a verdade antes de dar à luz. A idéia de plantar uma falsa esperança o aterrorizava. Ela nunca vai me perdoar. Precisaria manter o segredo para sempre. Ela nunca vai me perdoar se eu não contar. O Diretor sabe. Ele vai espalhar isso. O pobre coitado perdeu o controle. Ela vai saber.

Ela já sabia.

Meu amor, não sou criança... - disse a Esposa - e sei o que me espera. O Médico e o Padre não esconderam nada de mim, sei de todas as tentativas de salvar as crianças. E de todas as falhas. Ainda não sei o que o aflige, e deve ser importante para deixá-lo sem palavras, mas não precisa esconder nada. O que foi?

O Repórter continuava o debate interno e olhava fixamente para um ponto distante no canto do quarto. Percebendo o distan­ciamento do marido, ela colocou as duas mãos sobre as dele e pres­sionou gentilmente.

Querido?

Sem olhar para ela e ainda aparentemente em transe, ele res­pondeu:

Descobri um jeito de salvar as crianças - e fez uma pausa. A Esposa esperou. Dita daquela maneira, uma boa notícia só pode­ria ser parte de algo maior. E ruim. - Outras pessoas sabem. Os mi­litares sabem. Fui o único civil que pensou nisso. E de que adianta? Não posso fazer nada por você. Não posso fazer nada pelo bebê.

O que você descobriu?

Ele contou sobre o combate aéreo, a Estação Espacial e o in­terrogatório. Omitiu a discussão com o Diretor.

Tranqüilamente, a Esposa se levantou e foi até a janela. Abriu a cortina fina e também o restante da janela retangular. Debruçou-se sobre o batente e fitou o firmamento. Ela ficou lá, em silêncio. Logo, o Repórter foi até a Esposa e a abraçou pelas costas, acariciando-lhe a barriga e tascando um beijo demorado na bochecha.

Desculpe-me - disse o marido. - Preferia não ter descober­to nada. Desculpe-me.

Está arrependido por ter aceitado essa missão?

Sim.

Não fique.

Por quê?

Pouca esperança é melhor que nenhuma.

Mesmo sabendo que estamos por nossa conta e risco?

Sim - respondeu a Esposa. - Não estou sozinha. Tenho minha fé.

Humm - balbuciou o Repórter.

E tenho você!

Ele sorriu, embora não estivesse convencido.

O que vamos fazer agora? - perguntou a Esposa, viran- do-se para o marido.

Primeiro, preciso de uma terapia intensiva de sono e camu­flagem entre as cobertas ao seu lado.

Concordo plenamente.

Depois... - disse o Repórter, levando a mão ao peito e fa­zendo uma careta. - Depois...

Algo de errado? Está machucado?

As costas estão machucadas. Essa dor chata no peito co­meçou durante o interrogatório. Nunca me senti tão velho e aca­bado.

Sei como resolver isso - disse a Esposa, mordendo os lábios e provocando o jornalista. - Enfim, depois?

Vou deixar o jipe carregado e farei uma visitinha ao Médi­co. Amanhã, antes do toque de recolher, vamos fugir daqui. Essa cidade não pode fazer mais nada por nós e não podemos fazer mais nada por ela.

Naquela noite, o Repórter dormiu em paz. Nenhum pesadelo o assombrou. Deixara de temer a imaginação e, agora, tinha medo da realidade.

Acordou no meio de um furacão incontrolável.

 

As primeiras horas da manhã aterrorizaram até mesmo o mais experiente dos militares. A horda se movia com propósito e organiza­ção. Dois grupos tomavam a cidade. Uma adolescente com maquia­gem escura carregada, camiseta com a estampa de uma cantora ao microfone e um porrete nas mãos estava à frente do primeiro deles, no topo de um pequeno carro de onde discursava. A garota trocou o pijama e o protesto em cartolina por palavras de ordem inflamadas na mesma praça onde fora ignorada dias antes. As duas barricadas da casa do Governador estavam ocupadas por todos os defensores.

Os soldados movimentavam-se com velocidade e os rádios funcionavam a toda. Pouco mais de trezentos metros separava as duas forças. Os soldados impediram os operadores de ondas curtas que insistiam em tentar ir ao centro da praça para recuperar os equipamentos. O argumento era convincente: qualquer coisa além das barricadas estava na linha de fogo e, se eles fossem atacados, os técnicos ficariam por conta própria.

Ninguém cruzou a fronteira.

As trincheiras de concreto e arame farpado estavam prontas. Os cento e vinte ocupantes aguardavam ordens. Um ruído agudo foi emitido pelas caixas de som quando o sistema foi acionado re­motamente. A voz do Governador pôde ser ouvida pouco depois.

- Por favor, retornem às suas casas. Não sabemos o que vocês querem, mas um confronto aqui é tudo o que eu não quero. Por favor, sejam racionais e salvem suas vidas e a de seus amigos. Se de­sejarem, enviem um representante para explicar a razão disso tudo que prometemos ouvi-lo e deixarmos que retorne pacificamente.

A linha de defesa permaneceu em silêncio. A turba escutou o recado e se transformou numa massa ruidosa com conversas e discussões. A adolescente sinalizou, agachou-se e bateu contra o vidro do para-brisa da van. O veículo se adiantou cerca de cento e cinqüenta metros. Ela aumentou o volume do megafone.

Queremos saber onde está o foguete espacial que pode nos levar até a colônia de Marte para conseguirmos a cura! E não man­daremos ninguém como representante, seu idiota mentiroso! Con­te onde está o foguete!

Ao lado do Governador, a Primeira-dama e o Assessor confabulavam.

Aquele desgraçado espalhou a notícia durante a noite. A imaginação deles fez o resto. Podemos segurá-los? - perguntou o governante.

O Secretário de Defesa deu um passo à frente.

Sim, mas vai ser feio. Estimamos a proporção de dez para um.

Algum sinal do Blogueiro?

Não, senhor. Ele não está na vanguarda, pelo menos - in­formou o Secretário.

Isso não é bom.

Temos cobertura aérea?

Sim, senhor.

Ele tem que estar em algum lugar. Precisamos saber disso quanto antes, certo?

Concordo, senhor. Temos a informação de outro grupo nas redondezas, ele pode estar lá.

Precisamos ter certeza disso.

O Governador aguardou um pouco mais, ponderando sobre as opções.

Atirem apenas se eles avançarem e usem balas de borracha primeiro, por favor. Se romperem a primeira barreira, têm autori­zação para uso de força letal. Desse momento em diante, protoco­los militares entram em ação e conto com uma ação efetiva para defender a sede do governo.

Obrigado, senhor - disse o Secretário de Defesa, deixando a sala imediatamente.

Querida, onde está a pequena? - perguntou à Primeira-dama.

No quarto do pânico. Levei vários bichos de pelúcia e brin­quedos para ela. Deixei uma das suas assistentes com ela.

Ótimo. E preciso de uma coisa importantíssima de você.

Diga, meu amor!

Fique pronta para partir.

Todos olharam com assombro.

Só por precaução. Quero todo o material prioritário pronto para evacuação.

Ele pegou o microfone arredondado, apertou o botão lateral com o dedão e voltou a falar com os adversários.

Deixem de acreditar em boatos. Desconhecemos qualquer cura! - mentiu, descaradamente. Era a única alternativa. - Não existe nada em Marte, isso é alucinação!

A resposta foi imediata.

Mentiroso! - gritou a garota, enquanto três objetos incan­descentes riscavam o ar e atingiam a base da torre de transmissão. As garrafas de combustível explodiram com o impacto, inflaman­do a área. Os cabos foram os primeiros a parar de funcionar. Os alto-falantes foram silenciados. Apenas uma voz seria ouvida na praça; e ela não era guiada pela razão.

O calor das chamas foi demais para a pequena torre de alumí­nio reforçado e, em pouco tempo, ela desabou dramaticamente, lan­çando faíscas e pedaços de plástico semiderretido para todos os lados.

O espetáculo empolgou a multidão e a garota deu a ordem pelo megafone.

A massa avançou contra as defesas da sede do governo.

 

Os primeiros minutos foram favoráveis às tropas de defesa. A barragem de balas de borracha feriu praticamente toda a primeira linha de atacantes. Dois carros acompanharam a carga e tiveram seus pneus perfurados por atiradores de elite no alto da casa. Um deles capotou no flanco esquerdo dos soldados, que tiveram melho­res resultados, pois os manifestantes pararam para acudir e retirar os feridos da frente, usando o carro como proteção. No lado direito, porém, ser abatido pela munição não letal era o mesmo que levar um tiro na testa. A velocidade do assalto era tão grande, que quem caiu foi pisoteado ou soterrado por gente tropeçando e se empilhan­do sem parar.

Os soldados intensificaram o fogo e nocautearam muitos agressores com granadas de impacto. Vendo a violência do comba­te no outro extremo, os manifestantes da esquerda retomaram sua carga com decisão e chegaram muito perto da barricada. Ataques com coquetéis molotov eram os mais bem-sucedidos, especial­mente contra o flanco direito. Alguns eram lançados do telhado de uma casa vizinha, mas, depois de alguns disparos certeiros dos defensores, a posição foi abandonada. O combate se revelava de uma natureza orgânica, com os atacantes avançando e recuando conforme os soldados reduziam a cadência de tiro.

O número de feridos crescia assustadoramente e o clima de lamúria tomava a praça. Com as primeiras linhas rechaçadas pela defesa, os manifestantes suspenderam o ataque repentinamente. Era difícil andar. Correr, nem pensar.

Porém, a pausa foi curta e o combate logo tomou novos rumos.

Atiradores dispararam contra os defensores, ferindo um sol­dado e matando outro com um tiro no rosto. Uma saraivada de tiros se seguiu, acompanhada de diversos coquetéis molotov ati­rados à queima-roupa, enquanto os soldados da primeira linha de barricadas se protegiam e, seguindo o protocolo de emergência, substituíam a munição por projéteis de verdade.

Os rifles de longo alcance da segunda barricada e os atirado­res de elite no topo da casa responderam para repelir o avanço. Um dos agressores ficou em chamas quando um dos tiros destruiu a garrafa que carregava. Os mortos começavam a se empilhar sobre os feridos que tentavam se arrastar para longe da linha de tiro.

Acreditando ainda estar avançando contra balas de borra­cha, os manifestantes continuaram a correr na direção das balas até ser tarde demais. Os soldados tentavam atirar apenas para ferir os atacantes armados com porretes, facas e armas caseiras, reservando os tiros certeiros apenas para os atiradores inimigos. Dois morteiros entraram em ação atrás das barricadas. Armados com bombas de gás lacrimogêneo e granadas de efeito moral, eles dispararam no coração da manifestação com o intuito de deban­dar o grupo antes de os agressores entrarem na zona de tiro. Eles lançavam sem descanso os projéteis e, em pouco tempo, criaram uma separação entre o grupo mais avançado e o restante dos manifestantes que aguardava a vez de tentar encontrar o foguete e se salvar do fim do mundo. Encontrariam apenas seu próprio fim se resolvessem cruzar a cortina de fumaça causada pelos morteiros.

Atiradores se posicionaram numa das casas vizinhas e abri­ram fogo contra os militares. Uma metralhadora M60 disparou alucinadamente contra o flanco direito da primeira barreira. Aproveitando a brecha, dois homens escondidos atrás de um dos carros avariados correram contra as defesas carregando granadas. A reação da retaguarda e do flanco esquerdo foi lenta demais e as bombas foram lançadas.

Cinco dos dez defensores morreram na explosão e os outros ficaram feridos. O flanco direito estava desprotegido. Mais garra­fas incandescentes foram atiradas e a barricada foi tomada pelo fogo. Os soldados da retaguarda só tiveram tempo de retirar os feridos e os corpos de seus companheiros antes de o inferno tomar conta do lugar.

A metralhadora começava a direcionar o fogo na outra de­fesa, quando o primeiro morteiro foi ajustado e disparou um ex­plosivo de alto impacto. O topo da casa vizinha foi pelos ares, eli­minando os atiradores de elite. Alguns tiros, antes da explosão, haviam atingido a parede frontal e uma das janelas da casa do Governador. Ninguém foi atingido.

Isolado em uma sala dos fundos e protegido por quatro sol­dados, o Governador observava tudo pelas câmeras instaladas nas barricadas e nos capacetes dos defensores.

Meu Deus... - assustou-se o Governador, semiparalisado pela brutalidade do combate. - Eles realmente acham que vão con­seguir passar?

Estou tão assustado quanto o senhor - disse o Assessor, suando de preocupação. Em toda a sua vida, nunca pensou que se veria no meio de uma zona de guerra. - Os filmes nunca mostra­ram desse jeito.

Eles até mostraram - explicou o Governador. - Mas sabía­mos ser um filme, logo, ninguém levava tão a sério.

Mais uma casa foi destruída pelos morteiros e a defesa con­tinuava fazendo seu trabalho.

O Secretário de Defesa entrou na sala.

Senhor - disse. - Chamou?

Sim. Quanto tempo até o reforço aéreo chegar?

Menos de dois minutos, senhor.

E quanto tempo para organizarmos uma retirada completa?

Retirada, senhor?

Há milhares de pessoas dispostas a correr contra balas para descobrir um segredo que não existe. Cedo ou tarde, elas vão passar pelos seus soldados... - disse o Governador, quando outra explosão atingiu a barricada chamuscada e a tornou inutilizável.

Desculpe-me, senhor, mas temos plenas condições de man­ter a posição - interrompeu o Secretário.

E isso significa matar todas aquelas pessoas. Elas podem estar fora de si, concordo. Se elas não pararam mesmo com tudo que fizemos até agora, duvido que desistam. Prefiro viver sem o peso de um massacre fora de propósito em minhas mãos. Já tive­mos baixas, não quero colocá-los em risco sem necessidade.

Senhor, retirar as tropas tiraria a finalidade de tudo isso. Deveríamos ter saído antes, então.

O Governador ficou em silêncio. Uma mulher grávida cami­nhava contra as tropas. A líder adolescente estava a seu lado. Elas abriam os braços e avançavam. Os tiros foram interrompidos. O rádio do Secretário foi acionado.

Solicito orientação, urgente, câmbio - pedia o tenente res­ponsável pela defesa.

Elas estão desarmadas, Tenente?

Afirmativo. Não conseguimos ver nada daqui. Procedi­mento, senhor, câmbio.

Fique de prontidão. Um momento, câmbio.

Senhor Governador? O que fazemos?

Qual a orientação do protocolo de combate?

Se estão se rendendo, devemos aceitar - disse o Secretário, inseguro.

Mas... - incitou o Governador.

Essa pode ser uma tática básica de infiltração. A barriga pode esconder explosivos com o objetivo de detonar dentro da li­nha de defesa. Há registros de diversos usos bem-sucedidos dessa tática por extremistas.

Podemos avaliar essa possibilidade a distância?

Não, senhor.

Então, devemos atirar nelas e torcer para estarmos certos?

Não foi isso que eu... - defendeu-se o Secretário.

Pare de se defender e me dê alternativas, então - interrom­peu o Governador.

O Secretário não tinha nada a oferecer.

Façamos o seguinte, me dê esse rádio - falou o Governa­dor, tomando o walkie-talkie das mãos do Secretário.

Tenente, aqui é o Governador, câmbio.

Prossiga, senhor.

Questione as intenções delas e as faça parar. Entendido, câmbio?

Afirmativo, senhor. Fique na escuta.

Desligando o rádio momentaneamente, o Tenente foi até a barricada esquerda castigada, ainda defendida por nove dos dez homens e levou consigo um megafone.

Parem e comuniquem seu propósito ou abriremos fogo. Entenderam?

As duas mulheres caminhavam vagarosamente. Braços ainda esticados. Já ultrapassando o mais avançado dos carros destruídos.

Repito, parem e digam por que estão vindo para cá.

Sem sucesso, ele reativou o rádio.

Senhor, nada feito.

Pode fazer alguma advertência física? Atirar perto delas ou algo assim? - sugeriu o Governador.

Afirmativo, senhor. Chamo em seguida.

Prontamente, o Tenente sacou sua pistola e deu três tiros per­to dos pés das mulheres, errando por menos de vinte centímetros em cada um deles. Elas vacilaram. Guardou a pistola e retomou o megafone.

Esse foi meu último aviso. Parem agora ou retornem, caso contrário nos próximos tiros não vou errar.

A cortina de fumaça tomava o centro da praça. Elas estavam isoladas.

A garota gritou:

Queremos nos render. Ela só quer chegar ao médico.

O hospital fica para o outro lado, mocinha. Não precisa se render, apenas volte para casa - contra-argumentou o Tenente, sinalizando veladamente aos comandados que ficassem de pron­tidão.

Elas pararam por um instante. Alguma coisa incomodou o Governador, que deixou a sala, pediu um binóculo e correu até a janela mais distante da zona de combate.

Senhor, não podemos correr o risco de... - disse o Assessor.

Cale a boca e venha comigo. Vi alguma coisa. Posso falar com os franco-atiradores por esse rádio?

Use esse outro, melhor manter a freqüência aberta para o Tenente.

Atiradores, aqui é o Governador. Alguém consegue ver o que é aquilo nas pernas da grávida?

Um segundo, Governador - respondeu o Observador da dupla responsável pelo flanco esquerdo da defesa.

Elas voltaram a caminhar para a frente, desta vez, com as mãos dadas.

Queremos nos render - gritava a adolescente, a plenos pulmões.

A comitiva chegava à janela quando a resposta foi transmi­tida.

Tem alguma coisa amarela escorrendo, senhor.

Os binóculos do Governador estavam focados no mesmo detalhe.

Confirma, amarelo?

Positivo, Governador. Líquido amarelo escorrendo.

Me dê esse rádio aqui - pediu o Governador com urgência, tomando o aparelho das mãos do Secretário.

Tenente, recue seus homens e fique longe delas!

A linha de frente não precisou responder ao rádio e já execu­tava a ordem imediatamente.

Recuar! - gritou o Tenente.

O canal do franco-atirador estava aberto durante a conversa e ele ouviu a ordem.

Senhor, alvo na mira. Permissão para atirar?

A grávida fechou os olhos e acelerou o passo, enquanto a adolescente puxava algo prateado preso às costas.

Os canais de rádio transformaram-se num festival de chia­dos e alertas.

Contato à esquerda! Contato à esquerda! - avisavam os sol­dados daquele setor. - Contato à direita, às dez e nove horas.

Atiradores e carros avançavam contra a fortificação.

Atire nela, porra! - gritou o Governador.

O franco-atirador apertou o gatilho.

A bala atravessou a testa da grávida. Simultaneamente, o se­gundo atirador disparou dois tiros e atingiu o peito da adolescente, que segurava um detonador no braço esticado para o alto e esbra­vejava alguma coisa. Parecia uma cantora no ápice de seu espetá­culo. O espasmo muscular pelo choque impactou seus dedos e ela apertou o botão.

A bola de fogo consumiu as duas instantaneamente e atingiu as duas barricadas avançadas em cheio.

O alerta inicial permitiu aos defensores se posicionarem para o ataque organizado pelos flancos e não serem surpreendi­dos por outra M60 e dois lançadores de mísseis. Mesmo assim o combate foi brutal e uma nova onda avançou pelo centro da zona de combate. Um dos atacantes avistou o Governador em seu ponto de observação e disparou muitas vezes naquela direção. O político foi retirado rapidamente enquanto estilhaços voavam por todos os lados.

O reforço aéreo chegou, dando conta dos carros e dos lança-mísseis. Dois helicópteros de combate eliminaram as ameaças laterais e iniciaram passadas frontais perante a multidão, que re­cuava a cada aproximação, com medo do poder de fogo superior das aeronaves.

Depois de sair de perto da janela, o Governador exigiu ser le­vado até a família. Entrou no quarto do pânico onde a Filha assis­tia a um desenho infantil no colo da mãe, que aguardava ansiosa..

Já acabou? - perguntou a esposa, angustiada.

Para a gente, sim - disse, abraçando as duas. - Quero mi­nha família longe daqui. Ordene a retirada. Ninguém mais morre na minha casa.

Sim, senhor - concordou o Secretário de Segurança, rece­bendo alguma informação pelo fone de ouvido. - Senhor?

Um minuto - disse o Governador. - Já volto querida, está tudo pronto?

Sim.

Beijou a testa da Primeira-dama e saiu do aposento.

Diga.

Encontramos o Blogueiro.

Onde?

Liderando um grupo duas vezes maior que esse contra o jornal. Ele quer a mesma coisa e exige a entrega imediata de algum dos repórteres da redação.

Já entraram em choque?

Ainda não e a guarnição lá é minúscula. Se forçarem a en­trada, eles serão sobrepujados.

E o que o Comando Central diz?

Estão armando um contra-ataque, senhor.

Ok. Agora é com eles. Vamos embora e reorganizar as coi­sas para quando a ordem retornar. E pouse o helicóptero nos fun­dos, quero uma rota de saída que nos leve para longe de tudo isso. Ela não precisa ser atormentada por essa lembrança.

Senhor, só uma dúvida - disse o Secretário, meio sem jeito. - Como o senhor sabia que ela carregava uma bomba?

Ela estava mijando nas calças.

 

Observar as colunas de fumaça tomando o horizonte perto dali era mais que agourento para o Repórter. Tratava-se da confir­mação do medo e do alerta feito pelo Major. O tempo começou a correr mais rápido a partir de agora. Nada como acordar de uma bela noite de sono e lembrar que estamos esperando tudo ir pelos ares.

Entrou no jipe e ligou o rádio, nenhum novo boletim falava sobre aqueles incêndios. Contou seis rastros negros. Os bombei­ros ainda estão em operação, devem dar conta. E dirigiu até a casa do Médico, cerca de dez quarteirões de distância de onde morava. Torceu muito para que o obstetra tivesse resistido mais um dia por ali. Muitas das casas estavam vazias e os quintais foram transfor­mados em vias extraoficiais para cortar caminho e alcançar as es­tradas principais e o campo sem passar pelo centro. Bateu na por­ta e chamou pelo casal. Um cachorro pardo olhava para ele com curiosidade.

Esperando também, é? Boa idéia. Esperar e ver o que vai acontecer. Se eu fosse você só ficaria esperto se algum oriental viesse jogando conversa fora comigo. Fica de olho! - brincou o Repórter.

Uma voz amável e experiente veio de dentro da casa, cujo portão de aço ainda estava fechado.

Não atendo malucos, muito menos tenho especialização em gente que fala com cachorros - zombou o Médico, confirman­do a identificação do visitante antes de abrir a porta. - Entre logo, quanto menos gente ver movimentação aqui, melhor.

Boa tarde, doutor.

Boa tarde, meu jovem. Fez boa viagem? - perguntou, co­locando as chaves numa pequena vasilha que deixava ao lado da porta. Ele vestia calças sociais clássicas, com uma camisa branca de listras verticais pontilhadas. O cabelo já muito grisalho não es­condia a idade e era penteado para o lado; para cobrir os primeiros sinais da calvície. Sempre sorridente, com dentes perfeitos, completava a figura de bonachão com os óculos de armação de metal escovado e hastes com extremidade encurvada para que não caís­sem durante o exercício da profissão.

Podemos pular essa? Estou de volta e isso já é de bom ta­manho. Esse não foi o melhor passeio da minha vida.

Entendo, entendo. Quer um pedaço de bolo? Minha Se­nhora fez hoje cedo. Ela insistiu que os ovos vão estragar logo e quis usá-los agora. Discordei, sabe. Com a geladeira funcionan­do, eles vão durar o que durariam normalmente, mas ela está teimando que as coisas estão ficando com gosto estranho rápido demais.

Bolo de quê?

Laranja! - anunciou, umedecendo os lábios.

Adoro. Vou aceitar, sim. Obrigado.

Ah, que tolo da minha parte. Veio aqui por alguma emer­gência? Ela está precisando de mim? Já está na hora? Esqueci de perguntar!

Não, não. Ela está bem. Aliás, obrigado por tudo, doutor - disse o Repórter, da forma mais sincera e educada possível. - Mas é sobre isso que vim conversar com o senhor, sim.

Diga, meu filho - disse o Médico, enquanto caminhava até a mesa, tirava a tampa de acrílico de cima do bolo e cortava um pedaço para o convidado. - Como posso ser útil?

Preciso que deixe a cidade com a gente. Hoje - disse, pausadamente, tentando não assustar o obstetra com o pedido incomum. - Ela vai precisar do senhor durante o parto.

E o que há de errado com a casa de vocês, a minha ou, até mesmo, o hospital? Longe de querer ser rude, meu filho, mas sabe­mos o final da história, não é mesmo?

Sim, sabemos.

Qual a razão de fazer alguma loucura para tentar salvar uma vida insustentável nesse pesadelo criado por alguém que odeia obstetras? - O sorriso deu lugar a um olhar desafiante, como se, em algum lugar, as palavras estivessem sendo ouvidas pelo res­ponsável pela tragédia.

Alguém que odeia obstetras?

Minha profissão tem um objetivo! - bradou, orgulhoso. - Garantir a vida! Faço isso todos os dias, o dia todo. Tenho cole­cionado desapontamento, tristeza e amargura desde que tudo isso começou. Meu coração não tem mais espaço para tantas mães de­siludidas, pais cegos pela crença de que o filho vai nascer vivo e fa­mílias tão desconsoladas que me pedem para me preocupar apenas com a mãe. Cada um desses partos arranca um pedaço de mim. Descobri alguns pedaços novos, apenas para perdê-los imediata­mente. Logo, alguém por aí odeia o que eu faço. Mas você fugiu da minha questão. Qual sua razão?

Não fugi, não, senhor, apenas fiquei interessado no seu lado da história. Curiosamente, minha razão está totalmente ligada à sua vocação - disse o Repórter, aceitando o pedaço do bolo em um pratinho de porcelana com desenhos florais num azul brilhante. Um filete dourado circulava o prato. - Posso? - pediu, apontando para o sofá da sala.

Faço questão.

Ele olhou para seu relógio de pulso.

Posso ligar a TV?

Para ver a mesma lorota de sempre? Fique à vontade.

Não desta vez. Veja.

Um apresentador lutava para falar dentro de um helicóptero que sobrevoava uma cena de destruição e caos. Mostrada a distância pela câmera do helicóptero, a praça do Governador estava coberta por um tapete vermelho. Qualquer detalhe distinguível estava em­baçado pela emissora. O homem da TV falava sobre conflito arma­do, muitas mortes e explosões. Ele pedia às pessoas que não dessem ouvidos aos boatos e evitassem manifestações agressivas contra os postos de distribuição de alimentos e prédios do governo. Ele tam­bém informava sobre uma movimentação em frente ao maior jornal local. Pedia calma aos telespectadores e os convidava a permanecer em casa. O sujeito garantia e jurava, de pé junto, que seria o primei­ro a quebrar as reprises e a anunciar qualquer notícia ligada à cura.

Loucura é ficar por aqui e esperar ser poupado pelo deses­pero de todas essas pessoas. Quero ter a mesma chance que todo mundo teve até agora, doutor. Quero minha Esposa fazendo o parto em paz, sem explosões ou gente se matando pelas ruas. E preciso do senhor - pediu. Os cabelos revoltos e o rosto ainda pálido do Repór­ter fariam qualquer um pensar que também se tratava de um aluci­nado tão transtornado quanto aqueles que cercavam o jornal. Esse pensamento passou rapidamente pela cabeça do Médico, entretanto o veterano escolheu ignorar a paranóia e viu apenas o homem apai­xonado a cujo parto ele assistiu, como residente no hospital local.

O que tem em mente?

Lembra-se do chalé da família perto da cachoeira?

Lembro. É afastado o suficiente e água não vai faltar - brin­cou, quebrando a tensão que se construía por conta das imagens mostradas pela TV.

Com licença - disse o Médico, desligando o aparelho e fi­tando a janela mais próxima. - Não vejo muita diferença, mas você está certo. Vamos com vocês. Que horas pretendem partir?

Pouco antes do início do toque de recolher, assim todos es­tarão saindo de circulação e não precisaremos nos preocupar com as patrulhas. Passo aqui e pego vocês em quatro horas?

Vamos até você. Você mora mais perto da rota de saída - sugeriu o Médico, voltando a olhar pela janela da sala. Ele avaliou o jipe com calma, enquanto mordia uma garfada do bolo que cortou para si. - Como vou sentir falta disso. Que delícia. Humm. Esse carro. Cabe nós quatro mais bagagem?

Cinco. O Padre vem com a gente.

Não poderemos dizer que Deus nos abandonou. Tem es­paço para um rabino também? - brincou. - Certo. Levarei duas malas. Reserve um espacinho, ok?

Pode deixar, doutor. Até já, então - disse o Repórter, termi­nando o bolo. Apertou a mão do obstetra e saiu.

Querida! - gritou o Médico.

Fala! - respondeu a Senhora de volta. O som vinha dos fundos da casa, onde ela terminava de fazer uma torta de frango para o almoço.

Vamos fazer uma boa ação e passar uns dias fora. Esconda as pratarias! - gritou novamente, puxando um canivete de bolso e fazendo uma alavanca para retirar o cilindro de prata com a mezuzá da família.

 

Enquanto o Repórter e o Padre terminavam de abastecer o jipe com suprimentos e preparar a viagem, a Esposa dividia o tem­po entre contrações e o monitoramento das transmissões de TV e rádio. Os efeitos do massacre ainda eram sentidos pela cida­de e estavam longe de acabar. Além de provocar o aumento dos novos informativos pela TV, o rádio foi liberado para trabalhar sem interrupção. O controle governamental sobre as informa­ções ainda existia, porém, começava a diminuir nas últimas ho­ras. Equipes das redações e dos canais de televisão trabalhavam ininterruptamente.

Embora evitassem divulgar muitos detalhes, os relatos sobre o massacre na praça devastavam os moradores. Nenhuma infor­mação sobre os cerca de setecentos e cinqüenta mortos chegou à população. Cuidadosa com as informações que selecionava, a Es­posa anotou tudo num bloco de papel jornal e, quando as repetições começaram na TV e o rádio anunciou um intervalo, ela foi até a entrada da casa transmitir as novidades. Vestia uma calça larga salmão e um agasalho bege bem leve. Caminhava com dificuldade e ainda tinha momentos de vista embaralhada por conta dos re­médios sugeridos pelo Médico para retardar o parto ao máximo. Decidiu tomar as últimas quatro cápsulas quando o Repórter vol­tou da casa do doutor. De uma forma ou de outra, ao final dessa viagem, daria à luz.

- Querido, você precisa ouvir isso - disse, apoiando o corpo contra o batente da porta.

Ele notou a dificuldade de locomoção e correu para levar uma das cadeiras do quintal até a Esposa.

Você deveria estar deitada.

E deixar só vocês se divertirem? De jeito nenhum! Alguém tem que manter a gente vivo, enquanto vocês montam esse quebra-cabeça de malas! - brincou, dando uma piscadela para o mari­do. - O exército deu um ultimato aos manifestantes lá do cerco ao jornal. Eles têm duas horas para dispersar ou serão expulsos pelas unidades militares posicionadas nas principais entradas da cidade.

A dupla observava com concentração total. Foi a Esposa quem apontou para o horizonte.

Vejam! - E eles olharam. - Aqueles helicópteros de ataque estão sobrevoando as áreas críticas como lembrete aos manifestan­tes. Quando o toque de recolher começar, eles receberão autoriza­ção para agir.

A formação voava com perfeição e navegava pelos grandes arranha-céus do centro da cidade com velocidade reduzida para exibir seus mísseis, lança-foguetes e metralhadoras giratórias.

É, eles estão falando sério - comentou o Padre, cerrando os olhos e tentando tapar o Sol descendente que o incomodava. - Ainda estou preocupado com o conflito na casa do Governador. Ele parecia ter tudo sob controle, as pessoas estavam ajudando e pude contribuir ao aconselhar muita gente desorientada, mostran­do como era mais importante ficar ao lado daqueles que amamos em vez de procurar confusão ou alimentar boatos.

Fez tanto bem assim? - perguntou o Repórter, tentando bisbilhotar o caderninho da Esposa. Ela percebeu e o escondeu jo­cosamente.

Sim. Torço para que tenham ouvido e não retornado para enfrentar soldados. Ainda não entendo como cidadãos teriam a coragem de enfrentar uma unidade militar armados com paus e pedras. A vida tornou-se tão mais relevante e valiosa e eles, sim­plesmente, a desperdiçaram sem razão.

Na cabeça deles, Padre, a razão existia e valia o risco. Mas, se serve de consolo, creio que muitas daquelas pessoas escolheram aquele caminho para encontrar uma resposta ou encerrar o sofri­mento. O medo desse futuro incerto ainda vai influenciar, e muito, nossas mentes.

Curioso, o Padre aproveitou para tirar uma dúvida que o acompanhava desde as primeiras horas da manhã, quando o plano do Repórter foi exposto.

Como você está antecipando cada um desses problemas? Nunca vi alguém estar tão certo sobre tantas coisas terríveis.

O olhar do Repórter se perdeu na barriga da Esposa e ele não respondeu. Percebendo o silêncio incômodo e o distanciamento do marido, ela continuou com o relatório:

Eles pediram para as famílias dispostas a seguir o plano do governo colocarem lençóis brancos em frente às janelas e portas para demonstrar apoio e ficarem dentro de casa. Qualquer foco de resis­tência será considerado hostil e receberá o tratamento adequado.

Tratamento adequado - ironizou o Repórter. - Belo jeito de ameaçar alguém de aniquilação sumária.

A Esposa continuou:

O sujeito que falava pelo Comando Central insistia na im­portância das regras para nossa sobrevivência a longo prazo, para evitarmos uma decadência acelerada da sociedade. Será que esse tipo de pedido faz efeito? Achei profundo demais para acalmar o povão.

Quem foi o cara?

Não lembro a patente.

Era um jovem Major negro?

Isso, Major! Como você sabia? - perguntou a Esposa.

Tirou as palavras da minha boca - adicionou o Padre.

Tive minha parcela de sofrimento por causa dessa busca de­senfreada pela cura ou por uma solução. Aprendi uma lição difícil. Com o tempo, quem sabe, eu consiga falar a respeito. Agora, prefiro ficar quieto e tirar a gente daqui - falou o Repórter, checando seu relógio. - Falta meia hora para o Médico chegar. Quero fazer uma coisa antes de deixarmos a cidade. E, meu amor, já sabemos o suficiente. Deite um pouco, a viagem pode ser complicada para você.

Tudo bem - disse a Esposa, sorrindo e se levantando com a ajuda do marido. - Uma soneca agora viria bem a calhar. Vou tentar dormir.

Ela fez uma careta de dor, levando a mão direita à parte infe­rior da barriga, onde o peso da criança se apoiava.

Contrações?

Elas estão aumentando, meu amor.

Falta pouco. Muito pouco. Estarei contigo o tempo todo.

 

Quando o Médico e a Senhora chegaram, quarenta minutos depois, o trio já os aguardava no carro. Eles deitaram o banco do passageiro ao máximo e tomaram até mesmo o espaço do assento traseiro formando um leito. A Esposa ocuparia a cama improvisa­da, enquanto os recém-chegados compartilhariam os outros dois lugares imediatamente atrás do motorista. Atrás deles, viajariam as malas e provisões.

Como está minha paciente predileta? - perguntou suave­mente o Médico. - Que luxo, temos até cama privativa! Já a invejo, minha querida!

Boa tarde - foi o cumprimento da Senhora de cabelos gri­salhos, calça elegante, sapatos lustrosos e um belíssimo casaco so­bre uma camisa de cetim com motivos florais. - Bom revê-lo - dis­se ao Repórter.

O prazer é todo meu - respondeu, abrindo a porta para acomodar as malas e ajudar os convidados a entrarem no carro. - Por aqui, por favor.

Partiram em poucos minutos. Faltava meia hora para o iní­cio do toque de recolher e o Repórter acelerava pelos corredores criados pelas patrulhas. O número de carros abandonados aumen­tava conforme adentravam as áreas mais populosas daquela região. Precisava fazer uma última coisa, e liberar sua consciência, antes de enfrentar a difícil tarefa à frente.

Tiveram um vislumbre do momento crítico ao passarem por um viaduto e avistarem diversos corpos estatelados em sua base. Outros cinco estavam pendurados pelo pescoço na estrutura de concreto. O Repórter respirou fundo e notou o Sol, começando a se pôr no horizonte, quando ouviu, claramente, as ensurdecedoras hélices das aeronaves de combate circundando a região. Olhava para uma das formações de helicópteros um pouco à sua frente enquan­to fazia uma curva, quando o Padre gritou do banco do passageiro:

Cuidado!

Instintivamente, o Repórter pisou no freio antes mesmo de olhar e ainda conseguiu desviar o carro no último segundo, evitando atingir dois ciclistas armados. A dupla cruzou a rua em grande velocidade, sendo surpreendida pelo carro que fazia uma curva fechada. Quase ninguém ousava dirigir naquela área por conta da forte presença das patrulhas. O Repórter sabia do risco. Pensando ser um dos veículos militares, os ciclistas logo buscaram suas armas para reagir ao ataque que nunca veio. Eles encaravam o Repórter e o Padre com assombro. O susto foi grande para ambos os lados. Recuperado, o Padre colocou meio corpo fora da janela.

Vocês estão bem?

Reconhecendo o pároco, um deles respondeu:

Sim, Padre. Estamos bem. Vocês são loucos de dirigir por aqui, daqui a pouco os helicópteros vão começar a atirar.

E vocês são loucos de andarem por aí armados. Voltem para suas casas e não se arrisquem naquele cerco desnecessário. Quem vive pela espada, morre pela espada e quase nunca merece o reino dos céus! - defendeu o religioso.

Estamos preparados, Padre. Saiam daqui logo. Vamos en­contrar a cura e colocar as coisas de volta no lugar - disse o se­gundo ciclista, tocando no cano duplo de sua escopeta. - Unidos somos invencíveis, Deus sabe.

Deus olha pelos justos! - disse o Padre, encerrando a con­versa. O tempo passava e eles estavam certos. Melhor sair dali o quanto antes. Durante todo o debate, o primeiro ciclista manteve os olhos fixos no Repórter. Incomodado, ele cutucou o religioso para seguirem em frente. - Deus os abençoe, meus filhos.

Ao senhor também, Padre - despediu-se o interlocutor.

O Repórter acelerou e parou meio quarteirão mais à frente.

Esperem aqui - disse, descendo rapidamente e subindo os cinco degraus da entrada de um charmoso sobrado de tijolos aver­melhados.

Por que paramos? - perguntou a Senhora.

Os pais dele moram aqui - respondeu o Médico.

Gente muito boa. Sempre gostei deles. Mas está tudo escu­ro, será que estão aí dentro? - disse o Padre.

Não - interveio a Esposa. - Ele os tirou da cidade antes das intervenções começarem. Devem estar na casa da irmã dele agora.

Então, o que estamos fazendo aqui? - perguntou o Médico, olhando nervosamente ao redor. A visão de homens armados per­correndo as ruas o assustava. Homens armados costumam tomar atitudes irresponsáveis. Atitudes irresponsáveis costumam mandar gente para o hospital. Ou para a cova.

Não sei - confessou a Esposa.

O Repórter tocou a campainha e chamou pelos pais apenas para ter certeza. Respirou aliviado ao confirmar o sucesso da ligação de emergência. Puxou um pedaço de papel e um envelope do bolso. Pegou sua caneta predileta e escreveu mais algumas linhas numa nota que havia preparado pouco antes de entrarem no carro. Lacrou o envelope, deu um beijo e o colocou no vão entre a porta com as grades de proteção e a armação metálica. Até a volta. Amo vocês.

Deu meia-volta e correu para o carro. O horizonte mesclava o laranja-escuro do anoitecer com uma camada escarlate provo­cada pela chegada da noite. O relógio emitiu um alarme sonoro. Cinco minutos para o início do toque de recolher.

Pronto. Digam adeus à cidade. Voltaremos quando os âni­mos se acalmarem.

Querido, tudo bem? - perguntou a Esposa, tocando-lhe o ombro. Ela estava sentada na beira da cama improvisada.

Agora, sim - disse, aliviado. - Agora, sim. Deite-se, vou tirar a gente daqui.

Ela deitou, ele passou a marcha e acelerou seu jipe.

Na esquina onde quase atropelaram os ciclistas, dois pares de olhos os observavam com cuidado. Os sujeitos permaneceram ali para descobrir o que atrairia aqueles fugitivos ao coração ner­voso da cidade prestes a explodir.

 

Chegaram à casa de campo quase três horas depois.

O Padre e o Repórter saltaram do carro imediatamente, deixando o motor ligado, e formaram uma cadeira com os braços para carregar a Esposa às pressas para dentro do chalé. As baterias solares estavam com força máxima e as luzes se acenderam sem dificuldade. A casa estava vazia e logo foi inundada pelos gemidos e gritos doloridos da grávida, que entrara em trabalho de parto quarenta minutos atrás.

Eles a levaram até a cama do quarto principal e a deitaram com cuidado. Praticamente todo o líquido amniótico fora libera­do dentro do carro. Ela sentia dores horríveis. Tanta medicação para retardar o parto começava a cobrar seu preço. Por mais natu­ral que o movimento fosse, o corpo estava indeciso sobre como se comportar. A Senhora vinha logo atrás, trazendo as duas valises do Médico e colocando-as sobre um antigo baú posicionado em frente à porta de vidro, que, durante o dia mostrava o belo gramado lá fora, ao lado direito da cama rústica.

Com habilidade garantida pela experiência, ela abriu uma das malas e, em pouco tempo, havia paramentado o marido para o procedimento.

Cavalheiros, esperem lá fora até eu chamar, por obséquio?

Quero ficar com ela, doutor.

Não agora. Precisamos ter uma conversa, eu e ela. Quando ela estiver pronta, você pode entrar. Agora saia daqui e vá desli­gar o carro para não desperdiçarmos combustível. Você deixou o motor ligado. Preciso das minhas outras malas assim que possível - ordenou o Médico, com o olhar fixo na paciente e na situação peculiar com a qual se deparava. Abriu suas pernas e observou com cuidado. O efeito dos remédios dificultaria o trabalho. - Senhores, mexam-se! - chamou a atenção do Repórter e do Padre, ainda pa­rados e perplexos. O segundo aviso funcionou, e eles saíram da sala. A última coisa que o jornalista ouviu foi o Médico pedir a atenção da amada. - Querida, escute com cuidado...

E a porta se fechou atrás deles.

E agora? - perguntou o Repórter, indeciso.

Vamos lá fora, depois pensamos no que fazer - sugeriu o Padre, levando o amigo pelo braço.

Sim, sim - concordou.

Os faróis do jipe ainda inundavam a entrada do chalé com uma luz forte. O Repórter sentou-se no assento do motorista e girou a chave. O ruído da máquina cessou e, a distância, ouviu o som mais marcante da infância. A água de uma pequena ca­choeira chocava-se contra as pedras e o lago particular depois de cair por cerca de quatro metros de altura. A queda era pequena, mas era motivo de orgulho da família e herança para as gerações futuras.

O pensamento amargou a boca e trouxe outra sensação fa­miliar. O peito doía novamente. O Padre abria o porta-malas e co­meçava a descarregar a bagagem.

- Melhor apagar as lanternas e preservar a bateria - falou em voz alta. Quando o motor foi desligado, apenas o som ambiente ecoava pela paisagem repleta de texturas criadas pela luz da lua cheia. Aquela era a única casa naquele trecho. Construído numa clareira de cento e cinqüenta metros de diâmetro e no ponto mais alto do platô, de onde a cachoeira despencava, o chalé de madeira na parte externa, e alvenaria moderna no interior, tinha uma vista magnífica das demais propriedades da região e da mata fechada ao redor. Quando o Repórter apagou os faróis, tudo isso foi revelado com grandiosidade e beleza.

Uma varanda com quase dez cadeiras e duas mesas de jogos tomava toda a parte frontal da construção com telhado triangu­lar. A varanda havia servido como abrigo para quatro gerações de jornalistas, escritores, advogados, telefonistas, gráficos e até um comerciante de tecidos finos, que fez fortuna no interior, comprou esse terreno para a família, construiu a primeira versão do chalé e iniciou a tradição. Lá dentro, três quartos de casal, dois toma­dos por beliches, uma vasta sala de estar e duas alcovas reservadas para as noitadas de truco, dominó e pôquer podiam receber boa parte da família. Quem não coubesse, acampava no gramado ao redor da casa. Dormir era a última coisa que passava pela cabeça de todos eles durante as reuniões. Adorava reencontrar os primos distantes ou passar noites e mais noites conversando com o Pai ou com a Irmã, mas adorava os finais de semana a sós com a Esposa.

Sentavam-se num banco duplo, ela deitava a cabeça sobre seu ombro enquanto ele contava alguma história impossível, mas cheia de realidade, presenciada durante uma de suas viagens arriscadas. Ou inventava seus próprios mundos, cheios de fadas e seres impro­váveis. Lado a lado, olhavam para as estrelas até que o negrume da noite desse espaço para o azul-claro do amanhecer e a beleza do raiar do Sol. Olhou para o céu e lá estavam as mesmas estrelas, nas configurações que conhecia de cor e salteado. A Lua, por sua vez, estava de roupa nova. Um leve brilho azulado circulava o satélite. Esfregou os olhos e o reflexo prateado voltou a dominar o brilho noturno.

Inspirador, não é? - disse o Padre, ficando ao lado do ami­go. - Para mim, uma prova da mão divina. Tanta beleza não pode ser mera obra do acaso.

Eu vejo uma certeza.

Qual?

Alfa e ômega.

Início e fim? Do quê?

Da minha família. Começamos aqui e daqui nunca saire­mos. Outros virão quando as cidades ficarem caóticas demais. Ou­tros virão. Devo acreditar num milagre, meu amigo? - perguntou o Repórter, para estranhamento do Padre, já conformado com o distanciamento sempre presente entre os dois tanto pela diferença religiosa quanto pelo passado envolvendo a Esposa.

O Padre gostou de ser chamado de amigo, depois de tantos anos.

Essa escolha é sua. Você não precisa da minha opinião para tomá-la. Nunca precisou. Siga o coração. Aliás, quando vai contar para ela?

O quê?

Suas dores - disse o Padre, para surpresa do jornalista. - Sim, eu notei.

Agora não é uma boa hora. Mais tarde, talvez amanhã. Vou ficar bem - garantiu o Repórter, batendo com o punho fechado no peito e levantando os dois braços para mostrar os músculos com bom humor. - Acreditar é o termo errado, devo dizer. Acredito em tantas coisas por conta das provas disponíveis. Mas desejo todas as outras que, eventualmente, falham ao me convencer da verdadeira função ou relevância. Desejo é a palavra. Um milagre pressupõe a existência de alguém, ou de alguma força, capaz de realizá-lo. Um desejo é mais abstrato, na maioria das vezes, mais inacessível. Tal­vez por isso só os gênios, e não os deuses, concedam desejos. Mi­lagres são finitos. Acontecem ou não. Mesmo os desejos realizados são substituídos por novas vontades. Desejos são insaciáveis, logo, infinitos. Querer criar meu Filho e ver minha Esposa sorrir de ale­gria não passam de um desejo. Meu maior desejo - concluiu o Re­pórter, pegando duas malas e seguindo para a casa. - Vou acender as luzes externas, amanhã as baterias vão se recarregar.

E deixou o Padre sozinho.

- Que seus desejos se realizem, meu amigo. Nenhum de nós estaria certo ou errado. Ficaríamos apenas felizes por vocês. Que todos os seus desejos se realizem!

Atrás do Padre, as luzes se acenderam e delinearam um con­torno brilhante em volta dele. O prateado da Lua ainda banhava o rosto. Gostaria de ter conhecido aquele lugar antes. Havia anos não sentia tanta inspiração e contato com o divino. Sorriu e sentiu-se em casa.

 

Exatamente às dezenove horas, as colunas blindadas e as unidades de infantaria entraram na cidade por quatro direções diferentes. A missão prioritária era pacificar a área e retomar o controle da situação, convergindo para o centro, onde a multidão ainda se reunia. Caminhões de transporte seguiam na retaguarda dos combatentes para carregar prisioneiros. O avanço das tropas terrestres seria lento e, mesmo com permissão para atirar, os líde­res foram orientados a minimizar baixas. Por causa disso, uma for­ça militar considerável seria plantada no centro da ação. Helicóp­teros já estavam a caminho do edifício do jornal para desembarcar pelo menos cem homens. O Major observava do alto da torre de comando conforme todas as aeronaves e veículos iniciavam seus movimentos. A base ficou vazia. Era tudo ou nada.

Acredita na rendição? - perguntou o Governador, ainda vestindo o colete à prova de balas desde a intervenção emergencial no último combate. Observava as tropas com um binóculo e ques­tionava cada movimento daquela decisão. O resultado da ordem de ataque ainda pesava e o assombrava. O tapete de mortos e os corpos voando pelos ares durante o ataque dos morteiros serviam como lembretes eficazes.

Não - respondeu o Major, friamente.

E deu a ordem mesmo assim?

Eles podem mudar de idéia, mas são pessoas perigosas para o plano. Se perdermos o controle, perdemos a parcela controlável da população. Se eliminarmos a ameaça, podemos voltar a traba­lhar - explicou de maneira tão calculista que o Governador pensou estar diante de um relojoeiro descrevendo as peças frias e sem vida de um velho relógio. - É pura questão de escolher entre lidar com o problema agora ou mais tarde. Quanto mais cedo pudermos co­meçar a reorganização das coisas, melhor.

O último helicóptero havia desaparecido no horizonte.

Controle. Tudo pelo controle, não é mesmo?

Critique quanto quiser. Precisamos encarar a situação com realismo. Precisamos sobreviver e pensar coletivamente.

Aquele pessoal está pensando coletivamente.

Pelas razões erradas, o que os transforma em problemas es­perando para explodir. Se eles não podem se governar por si, tam­bém são incapazes de ver além de sua individualidade e sucumbem ao desespero.

O futuro vai nos julgar.

Se houver futuro, teremos uma segunda chance; se tiver­mos uma segunda chance, qualquer sentença será justa. Nada mais a ser feito aqui - encerrou o Major, dando as costas e seguindo para a escada que o levaria ao centro de operações.

O Governador permaneceu sozinho, enquanto a noite caía.

A periferia estava abandonada e poucas pessoas arriscavam até mesmo espiar a passagem das tropas. As corajosas o suficiente se apoiavam no batente das janelas e o faziam sob a égide de lençóis brancos estendidos e tremulantes ao vento, que começava a soprar do sul. Pequenos focos de resistência surgiam esporadicamente e reduziam a velocidade do avanço. Bastavam alguns tiros de aviso ou a visão do efetivo militar movendo-se de forma estratégica e assustadora para demover a maioria dos desejos revolucionários.

As primeiras rusgas foram registradas conforme as tropas se aproximavam do centro da cidade, e o progresso foi interrompido em todas as direções. Com barricadas fortificadas, diversos tipos de armas e muitas bombas caseiras sendo utilizadas pela milícia. Corpos dilacerados, esquartejados e incinerados estavam espalha­dos no caminho de bandos armados que se viravam contra os mi­litares no minuto que os avistavam.

Em frente à sede do jornal, o Blogueiro incitava seus segui­dores a manter a posição e não recuar. Carros de vários tamanhos formavam a linha de frente, apontando os faróis na direção da entrada principal. Seguindo as ordens, um grupo de jovens vesti­dos com bandanas vermelhas na cabeça e camisetas com citações revolucionárias e letras de canções engajadas terminava de fazer pôsteres com cópias de uma fotografia impressa havia pouco. O primeiro dos cartazes foi entregue ao líder do movimento. Pronta­mente, ele levantou a placa o mais alto possível.

- Esse é o homem, meus amigos! Ele conhece o segredo e está escondido como um rato covarde, atrás das armas do governo mentiroso! Ele vai nos levar até a salvação! Ele poderia estar aqui conosco, compartilhando o milagre! Mas, não, ele escolheu ser egoísta e guardar tudo para ele! Eles vão tentar fugir, meus amigos! Não deixem esse demônio escapar!

Havia fúria nos olhos do Blogueiro, cujas palavras estavam carregadas com ódio, agressividade e uma paixão descomunal. Bandagens protegiam-lhe o braço direito e boa parte da perna es­querda. Os ferimentos durante a fuga foram rapidamente transfor­mados em sinais de devoção à nova causa, à liderança do levante social capaz de desvendar a farsa governamental e espalhar a cura reservada apenas aos ricos e poderosos. Era tudo tão claro. E todo mundo ali concordava com a mensagem. Percebera o erro inicial, não precisava da internet. As pessoas escutavam com mais fervor ao vivo e respondiam a cada incentivo, cada palavra de ordem, cada provocação. Elas o seguiriam até as portas do inferno. E para lá as estava guiando, nada era capaz de fazê-lo mudar de idéia.

Sem dormir desde o breve encontro com o Repórter, o líder social orquestrara a união de todos os grupos descontentes com as promessas governamentais e aproveitou o desejo de vingança pelos mortos no centro de distribuição para colocar seu plano em ação. Convenientemente, culpara o Governador pela ação do exército na chacina e despachou um grupo secundário para romper as defesas e fazê-lo pagar por seus crimes. No fundo, o Blogueiro queria ver o Governador sofrer por tê-lo humilhado em público.

Sentia falta da família. Mergulhado naquele transe egocên­trico, tinha plena convicção na vitória e no reencontro glorioso com a mulher e a filha, repleto de boas notícias e com um lugar garantido no foguete espacial para deixarem aquele mundo mori­bundo para trás e ajudarem a repovoar a espécie em outro lugar. Esse era o único cenário aceitável. A única opção. Era seu dever como pai, marido e líder. A nova e volumosa família precisava dele.

Também criou pequenos grupos de extermínio para percor­rer a cidade e lidar com os demais "desmortos". Os boatos conti­nuavam alimentando a resistência, com histórias sobre poucos casos, mas que, sem dúvida, incluíam o aniquilamento dos mortos-vivos como uma possibilidade. Usar a desculpa era conveniente para ladrões e, até mesmo, para vizinhos mesquinhos e mal-intencionados, que aproveitavam a história para eliminar pessoas indesejáveis.

O maior grupo seguiu direto para o jornal.

Mais placas começavam a circular pelo mundaréu de gente, enquanto o Blogueiro puxava o coro para um refrão exigente:

 

A CURA É NOSSA! A CURA É NOSSA!

 

E era prontamente atendido. Duas formações de helicópteros sobrevoaram a multidão, quando a primeira aeronave chegou ao topo do edifício. Uma longa fila de transportes ocupava o espaço aéreo, esperando a vez de descarregar seus passageiros.

Uma comoção foi iniciada no meio da aglomeração. Havia pouco espaço para se movimentar, mas um homem tentava forçar um caminho e chegar à linha de frente. Ele alcançou um dos por­tadores dos cartazes com a foto do Repórter com o qual conversou brevemente. Em instantes, o sujeito com o cartaz começou a gritar alguma coisa e a ajudá-lo a navegar pelo aperto da manifestação. Ao ouvir a mensagem, outras pessoas juntaram-se à dupla e o ca­minho foi se abrindo com mais facilidade.

Quando chegaram ao Blogueiro, interromperam um novo discurso e o irritaram.

Já temos placas demais aqui, leve essa para outro canto e me deixe em paz!

Um minuto. É importante! - disse o carregador da placa, empurrando o homem que escoltara até ali. - Fale com ele, rápido!

Quem é esse? - perguntou o Blogueiro, inquieto e aproxi­mando o microfone dos lábios, prestes a retomar sua performance.

Sei onde ele está - disse o homem.

Ele quem? - retrucou.

Ele - disse o Ciclista, apontando para a foto no cartaz.

Sim, ele está escondido lá dentro, com seus amigos covar­des! - esbravejou o Blogueiro.

Não está, não, ele saiu da cidade - informou o Ciclista, ainda carregando sua pistola na cintura. - Eu e meu irmão vimos o carro dele rumar para oeste há menos de uma hora. E encontrei isso - disse, entregando o envelope branco.

Largando o microfone, o Blogueiro pegou o envelope. Estava assinado pelo Repórter e era endereçado aos pais. Abriu com ur­gência. Retirou a carta e a leu rapidamente. No final da mensagem, encontrou a informação que precisava.

 

Estaremos no chalé e vou pescar perto da cachoei­ra todos os dias aguardando vocês chegarem para almo­çarmos juntos. Só não me façam esperar muito ou vou enjoar do peixe.

 

O recado que nunca chegaria aos pais do Repórter pousou no chão, onde centenas de pés sujos e pneus de carros passariam nas próximas horas. O Blogueiro logo convocou seus homens de confiança:

Alguém sabe onde tem uma cachoeira aqui perto? - per­guntou. Um deles sabia. O novo plano foi traçado rapidamente.

Mas... e o jornal? - indagou um dos seguidores, vestindo uma armadura mista composta por um capacete de policial, veste e colete à prova de balas militares, espingarda de caça e coturnos amarrados até os joelhos.

Eles não sabem de nada. Só aquele jornalista conhece a história toda. Precisamos dele! Avisem a todo mundo e passem o endereço. Precisamos chegar lá antes deles - explicou o Blogueiro, apontando para uma nova formação de helicópteros que sobrevoava a zona de conflito.

Toda essa gente? - perguntou o paramentado.

Só quem puder encontrar carros. O lugar é longe. Precisa­mos de muita gente ou eles podem nos parar rapidamente. Vamos nessa - encerrou o líder.

E a correria começou.

Meus amigos, precisamos sair daqui agora! Encontramos o covarde e ele está com a cura! E vai usá-la! Precisamos pegá-lo antes que seja tarde! Sigam-nos como puderem - anunciou o Blogueiro, descendo do topo da picape e sendo colocado no banco do passageiro. Os ferimentos ainda doíam. O motor despejou potên­cia e o veículo começou a se mover com cuidado. Os demais carros simularam o movimento.

A carreata logo encontrou espaço para acelerar e, meia hora depois, conseguiu deixar a multidão para trás. Cerca de quinze carros formavam o comboio. Nem todos foram bem-sucedidos nas manobras e um atropelamento parou parte do grupo. Tempo sufi­ciente para as unidades militares, finalmente, chegarem à aglome­ração e encontrarem boa parte dos manifestantes se dispersando.

Os blindados estacionaram tão logo avistaram o alvo, en­quanto as primeiras tropas saíam de dentro do prédio do jornal para maximizar a manobra. A visão da movimentação militar surtiu o efeito desejado e os manifestantes aceleraram o passo. Alguns indivíduos mais nervosos - muitos deles sobreviventes do massacre na praça que correram para se juntar ao grupo principal - mantiveram a posição e desafiaram as tropas. Poucos soldados estavam armados com projéteis de borracha e puderam conter a situação com rapidez.

Um ataque coordenado com bombas de impacto e gás lacri­mogêneo confirmou a posição de dominância das tropas. Uma es­pessa nuvem branca tomou o centro da avenida onde a multidão se reunia. Alguns espectadores ainda permaneciam às margens do rio ao lado do jornal, mantendo sua distância e apreciando o espetáculo. A vista era realmente impressionante, com a precisão da manobra e a surpreendente chegada da cavalaria.

Pelo ar, os helicópteros voavam baixo e, rapidamente, perce­beram a coluna de veículos deixando a área. Perseguiram de perto até confirmar a direção do comboio. O Comando Central ganhou interesse pela atividade peculiar e precisava de mais informações. Três helicópteros de ataque deixaram a formação principal e avan­çaram contra os carros já acelerando por uma estrada vicinal com apenas duas faixas. Um transporte de tropas foi direcionado ao mesmo setor. O líder aéreo ordenou o isolamento dos dois veícu­los da retaguarda e ele mesmo mergulhou perpendicularmente à fileira de carros, disparando seu canhão no espaço entre os alvos selecionados e os demais manifestantes.

Assustado com o som dos projéteis e o brilho das balas atin­gindo o chão à sua frente, o motorista da caminhonete deixou os instintos tomarem conta e virou o volante com tudo para a direita, surpreendendo o carro que o seguia de perto. O segundo condutor pisou forte no freio e jogou o carro para a esquerda para evitar uma colisão, caso o outro automóvel capotasse ou parasse de repente. Ao escapar por pouco da batida, voltou a acelerar e foi sua vez de ser recebido por uma rajada incandescente vinda do alto.

O primeiro veículo tentou voltar na contramão e recebeu um novo recado dos helicópteros, até que as caminhonetes, finalmen­te, pararam. Uma nuvem de poeira envolvia a área, mas logo foi dissipada pela aproximação do transporte. Doze soldados desce­ram com velocidade e deslizaram pelas suas cordas de rapel cer­cando os veículos. Um dos ocupantes do carro mais adiantado ten­tou correr em direção ao mato e foi perseguido por dois militares, com o apoio dos holofotes de uma das aeronaves.

Rapidamente, os passageiros foram rendidos e os motoristas foram levados ao Tenente que liderava a operação terrestre. Um dos homens era grande, usava um boné de uma marca de cerve­ja, que escondia seus olhos verdes, estava com a barba por fazer e cobria a camiseta branca com uma jaqueta jeans. O outro, aparen­tando ter vinte e poucos anos, impressionava menos, mesmo com um chapéu de couro e camisa xadrez.

Onde é a festinha, caubóis?

O grandalhão cuspiu na cara do Tenente. E sorriu lançando um desafio.

Resposta errada - disse o militar, acertando uma coronhada no rosto do motorista. O sujeito despencou. Com total tranqüi­lidade, o Tenente virou-se para o outro prisioneiro.

Mesma pergunta. Preciso de uma resposta diferente. Aon­de estão indo?

Oeste.

Certo, certo. O que tem lá? - perguntou o Tenente, limpan­do a coronha do rifle. - Uma chance de acertar a resposta.

O rapaz do chapéu de couro olhou ao redor, ponderou suas chances e optou pela saída menos dolorosa.

O tal do jornalista filho da puta está escondendo a cura perto da cachoeira da cidade vizinha e estamos indo lá buscar.

Levem este traste daqui. Prendam o resto dos amigos dele - ordenou o Tenente. - Preciso de um rádio e de uma linha com o Comando, rápido.

 

A porta do quarto abriu-se novamente e a Senhora saiu para buscar mais água na cozinha. Durante o pequeno intervalo de aber­tura, o Repórter ouvia os gemidos da Esposa e torcia pelo melhor. Abriu mais uma cerveja e ofereceu outra ao Padre, que recusou edu­cadamente. Quatro garrafas pequenas ocupavam a mesa de centro.

Venha comigo - pediu o Padre, levantando-se e seguindo em direção à varanda. - Precisamos de ar fresco.

Precisamos de cerveja! - brincou o Repórter, levando a garrafa recém-aberta com ele.

O luar prateado esperava por eles. Longe da poluição da cida­de, as estrelas eram mais brilhantes e a Lua aparentava estar mais próxima que de costume. O Padre foi recebido pela brisa amadeirada conforme abria a porta. O vento soprava da floresta mais pró­xima e trazia os aromas dos pinheiros e carvalhos ainda umedecidos pela chuva que caiu sobre a região pouco antes da tragédia.

Melhor, não? - perguntou.

Ainda não - disse o Repórter, tomando mais um gole do líquido de sua garrafa. A sensação de resfriamento interno supera­va qualquer influência externa naquele momento. Mais uma lufada de vento atingiu a varanda. Desta vez, ele sentiu. - Na verdade, um pouco. Bela noite.

Bela noite - repetiu o Padre, fechando os olhos e respiran­do fundo. - Esqueceu alguma luz acesa no jipe? - apontando para o veículo.

Não, apaguei tudo - respondeu o Repórter, olhando com atenção. Uma luz azulada brilhava no porta-malas e era forte o suficiente para ultrapassar o vidro fumê. Ela oscilava e, depois de um tempo, apagou.

O Repórter olhou para o Padre e deu de ombros, valorizando o mistério e fazendo de conta estar com medo de uma eventual assombração.

Uuuu! - brincou. - Trouxemos alguém conosco!

Você já bebeu tanto assim?

Não. Detesto perder piadas.

A luz acendeu novamente.

Vamos lá ver.

Está com a chave?

Sim.

Caminharam lentamente até o carro e o Repórter encostou o rosto no vidro traseiro, tapando os lados do campo de visão com as mãos. O brilho vinha do compartimento de emergência. O res­tante do carro estava apagado. Ele apertou o botão para desati­var o alarme, que tinha ligado por pura força do hábito, e abriu o porta-malas. Tirou um pedaço de papelão que cobria parcialmente o compartimento onde guardava mantimentos, utensílios para so­brevivência, baterias, roupas, duas armas e mais um item do qual se esquecera. O telefone via satélite tocava sem parar.

Deve ser para você - disse o Padre, sem conseguir quebrar a tensão recentemente construída.

É, deve ser minha consciência ligando para avisar que pirei ao trazer um padreco para meu refúgio à prova de malucos - fa­lou o Repórter, falhando da mesma forma. Ambos estavam com os olhos fixos no telefone. - Quase ninguém tem esse número e menos gente ainda tem acesso a um telefone durante o blecaute das comunicações. Bem, melhor atender.

- Alô!

Finalmente - disse a voz masculina no outro lado da linha. - Onde estão?

Major?

Sim - respondeu. - Qual sua localização?

Estamos no chalé da minha família. Noroeste da cidade, cerca de sessenta quilômetros, perto da única cachoeira da região.

Ele ouviu o Major falando com alguém fora da linha: "Sabem onde é? Quero ver no mapa!"

Olha, minha Esposa está no meio do parto, essa não é hora para ficar discutindo política ou receber visitas.

Fique quieto e preste atenção - demandou o Major, num tom mais sério e urgente do que em suas conversas anteriores.

O pedido provocou um arrepio na espinha do Repórter. Mi­litares dando ordens, ele entendia. Militares sendo solícitos e pe­dindo atenção, disso ele tinha medo.

Avistamos um grande número de veículos seguindo em sua direção. Vocês precisam sair daí imediatamente.

Impossível. O parto ainda não acabou. E que veículos são esses?

Os manifestantes querem encontrá-lo a qualquer custo. Lembra-se do sujeito que fugiu da escolta do Governador?

Sim.

É pior do que imaginávamos. Ele ouviu tudo que o Diretor falou na saída do elevador.

Aquela história sobre a nossa conversa? - perguntou indig­nado, procurando alguma alternativa na situação cada vez mais extrema e sem revelar o segredo ao Padre. - Não tenho nada a ver com aquilo! Pode pará-los? Só tenho mais uma pessoa para me ajudar. E duas pistolas.

O Padre arregalou os olhos com a menção a essa conversa misteriosa. Desde o retorno do Repórter, fez de tudo para não lhe interrogar e respeitou o desejo de manter os acontecimentos da viagem em sigilo. Uma das habilidades adquiridas ao longo dos anos de sacerdócio foi a capacidade de guardar um segredo tão bem quanto manter as fronteiras bem definidas com os párocos. Quem buscava auxílio na confissão sempre estava pronto para re­velar determinadas coisas. Seu papel era de ouvinte e conselheiro, não de inquisidor. Mesmo percebendo estar exposto apenas à pon­ta do iceberg, resistia ao impulso de iniciar revelações para as quais nem mesmo o pároco estaria preparado. Era melhor para os dois lados.

Escute com atenção. Eles acham que você tem a cura e es­tão indo buscá-la!

Quanto tempo nós temos?

Uma hora, duas, talvez. Perdemos contato com o grupo há pouco. Eles podem ter mudado a rota, depois que interceptamos alguns dos carros.

Não podemos sair. Não agora. Partiremos assim que o par­to acabar. Podem mandar ajuda?

Farei o possível para retardá-los - disse o Major. - Boa sor­te. Câmbio final.

A estática tomou conta dos falantes antes de o telefone identi­ficar o fim da chamada e se desligar automaticamente. O Repórter demorou um minuto manuseando os itens da caixa de emergência e fechou o porta-malas. O Padre olhava com reprovação e assom­bro quando viu o jornalista retirar duas pistolas, colocar uma na cintura e entregar-lhe o telefone e outra arma.

Creio ter todo o direito do mundo para perguntar: que conversa foi essa? - indagou o religioso, pegando o telefone com a mão direita. Com a mão esquerda, recusou a pistola oferecida pelo Repórter. - E quem está vindo?

Um bando de malucos que acha que tenho a cura para as mortes e que sei da localização de um foguete milagroso. Eles estão vindo buscar as duas coisas.

E você sabe de alguma delas?

Momentos de silêncio tinham sua força dramática e aque­le poder inerente de transmitir respostas indizíveis. Revelar toda a história ao Padre poderia requentar a benevolência, entretanto também poderia representar desconfiança e preconceito por ele não ter sido envolvido em todos os aspectos do plano de fuga. Fi­tava o religioso disposto a ganhar todo o tempo possível antes de decidir o próximo passo, mas cada segundo ali representava um a menos pare se preparar.

Sei de algumas coisas, Padre. Mas nenhuma delas se aplica a nós. Ela tem as mesmas chances que todas as outras... e, quanto a nós, temos apenas a nós mesmos. Vamos lá, precisamos bloquear as janelas e pensar num jeito de sair dessa. Preciso de você - insis­tiu, oferecendo a pistola novamente.

O Padre não aceitou a arma.

Voltaram à varanda rapidamente e o Repórter olhou com preocupação para a estrada de terra que desaparecia no alto de uma pequena colina ao Leste. O céu sem nuvens permitia visibi­lidade total da área. E aquele era o único ponto de acesso ao platô onde o chalé se localizava. Voltou correndo ao carro, ligou o motor e, sem acender os faróis, escondeu o jipe amarelo atrás da casa, na parede oeste. Fechou a porta do veículo com cuidado e caminhou até porta do chalé.

Entrou e apagou as luzes externas.

Apenas o luar iluminava toda a região. Com sorte, qualquer invasor teria dificuldade de localizar a casa no escuro e passaria direto.

Jogou cobertas pesadas e escuras sobre as janelas do quarto principal para bloquear a luz, beijou o rosto da Esposa, ainda se contorcendo por causa da dor, e a deixou novamente. Precisava bloquear as janelas e se preparar para o cerco.

Ele não acreditava em sorte.

 

Os esforços do Repórter e do Padre foram recompensados quando terminaram de pregar tábuas de madeira que encontra­ram nos fundos da casa. Cada uma das janelas também levou uma camada de tecido escuro contra o vidro para manter a luz dentro de casa, exceto pelo vitral da sala de estar, à direita da porta de entrada. Protegida apenas pelos sarrafos, ela permitia a visão do topo da colina e, em último caso, seria o melhor ponto para tentar repelir os intrusos.

Com as luzes apagadas, o Padre vasculhava a área com olhos inquietos e semicerrados.

- Alguma coisa? - perguntou o Repórter, aproximando-se com uma manta marrom costurada em padrões quadriculados, usando diferentes tons da mesma cor. Ele trocou de roupa, dei­xando a camisa creme e o jeans dentro da mala e optando por uma calça escura, camiseta preta e uma jaqueta de couro. Também car­regava uma bolsa militar por uma alça no ombro direito.

Nada ainda - respondeu o Padre, cujo único elemento branco de toda a vestimenta era o colar sacerdotal. - Obrigado.

Ele pegou a manta e cobriu a janela.

Daqui a pouco a gente olha, enquanto isso podemos pro­curar a sua moto lá fora, tenho certeza de que deve ter um bar por aqui para você encontrar seus amigos.

Muito engraçadinho.

E essa mala?

Vamos sentar um pouco, já lhe mostro - sugeriu o Repór­ter, caminhando até o lado oposto da sala, no canto esquerdo da frente da casa, onde havia colocado duas cadeiras. Um pequeno lampião os esperava. O quarto onde o parto acontecia era o único completamente iluminado em todo o chalé e o brilho vazava pela fresta da porta e inundava o resto do ambiente quando a Senhora precisava sair.

Mesmo no escuro, os dedos hábeis do Repórter manusearam a válvula da lâmpada a gás para liberar o conteúdo do pequeno botijão. Ao ouvir o leve sibilo, ele apertou um botão na base do queimador e a chama surgiu. Ele controlou o fluxo para gerar o mínimo de luz possível.

Veja só, ignição elétrica - surpreendeu-se o Padre. - Usei muito um desses quando era moleque, mas sem um fósforo essas coisas eram completamente inúteis.

Imitando a voz de um locutor de comerciais, o Repórter res­pondeu:

Um oferecimento Raça Humana. Entendemos tudo sobre máquinas e seu funcionamento, só nunca pergunte sobre nós mes­mos ou atiramos na sua cara.

Que exagero - comentou o religioso, claramente interessa­do no que os braços do Repórter retirariam daquela bolsa miste­riosa. O primeiro item saiu e também estava envolto numa emba­lagem escura, tornando impossível adivinhar o que tinha dentro.

Toma, esse é para você - disse o jornalista.

O Padre abriu com rapidez e descobriu um rádio portátil. Havia uma manivela giratória no canto direito; e, dois botões re­dondos no esquerdo. O visor frontal era de plástico e uma agulha vermelha identificava a estação. Uma tela perfurada na parte infe­rior do retângulo protegia os alto-falantes.

É só girar e ele funciona.

Engenhoso.

Precisamos saber o que está acontecendo e analisar nossas rotas de fuga. Se outras cidades estiverem tendo os mesmos proble­mas com violência, é bom saber para onde não ir caso precisemos sair daqui - enfatizou. - E também estou entediado de ficar falan­do com você. Isso aqui está parecendo uma escola de freiras.

O Médico falou alguma coisa? - perguntou o Padre, mu­dando o assunto e começando a carregar a bateria do radinho.

Ainda não. Vou lá assim que terminar isso aqui - falou, puxando um estojo de formato meia-lua, coberto por um tecido lustroso e estampa camuflada. Ele abriu o zíper e revelou um arco composto de caça. Um berço de espuma dura guardava vários acessórios, mas o Padre foi atraído instantaneamente para as pon­tas de flecha douradas e de formato assustador, com cerdas longas e dentadas.

Notando o interesse do sacerdote, o Repórter explicou, en­quanto retirava o arco e armava seu sistema de roldanas.

Pena eu só ter essas seis - disse, puxando um canudo de plástico duro negro de dentro da mala. - Você pega uma dessas - apontou com a cabeça na direção do estojo - e rosqueia na ponta de uma dessas.

Ele tocava a ponta de uma flecha no feixe retirado do canudo.

Só tem seis tiros, então?

Não, não. Com essas seis... eu mato. Com as outras, quem sabe.

O tom soturno do Repórter preocupou o Padre, crente na efetividade da camuflagem e proteções da casa. Estava escuro e os manifestantes não sabiam ao certo onde ficava o chalé. Estavam protegidos.

Estamos aqui para lutar, então?

Não sei. Ligue o rádio e vamos descobrir - sugeriu o Re­pórter, terminando de acoplar a mira de fibra óptica na lateral do arco e posicionar o maior número possível de flechas na aljava que encontrou no fundo da mala.

Os primeiros chiados da estática já eram ouvidos bem bai­xinho. O Padre girou a manivela mais algumas vezes e o volume continuou o mesmo.

Tente o botão de baixo.

O Padre mexeu no controle e a estática aumentou. Imediata­mente, mudou de botão e a agulha vermelha começou a se mover até parar na estação selecionada. Sem surpresa, uma voz desconhe­cida, e picotada, juntou-se a eles.

"...proteção. Evitem correr riscos desnecessários. O anúncio do estado de sítio ratificou o poder do Comando Militar e, repito, eles estão abrindo fogo contra... manifestação violenta. O estado de sítio também significa a presença contínua de tropas durante o dia. Repito, não há mais horário ... retirada dos solda... O governo tam­bém informou ... amanhã, a distribuição de alimentos estar... suspensa. Se o ouvinte não tiver comida, recomendamos pedir ajuda a um vizinho. Nosso consultor militar tam... sugere escrever sua si­tuação num lençol branc... e mostrar a uma patrulha da infantaria. Fiquem longe dos blindados. Os bombeiros estão sobrecarregados com os incêndios no centro. Continuem alertas para grupos arma­dos... consideram qualquer um difer... inimigo. ... enforcamen...", informava o Radialista, enviado para uma das principais rádios locais a pedido do Governador. Aceitou a missão, pois, realmente, acreditava que poderia mudar algumas cabeças. E salvar vidas.

Eles trocaram olhares enquanto ouviam o relatório, durante uma forte interferência estática. O Repórter colocou o arco e a aljava em cima da mesa e começou a analisar uma das pistolas. O sinal voltou trinta segundos depois.

"Pedimos direta...nte aos manifestantes em frente ao prédio ... emissora. Voltem para casa. Só estamos prestando um serviço e não ...emos enganar nin... Se o governo confirmar algo sobre a cura, vamos ...formar. Deixem a gente fázer nosso trabalho, por favor!"

Abaixa um pouquinho - pediu o Repórter e foi atendido prontamente. - E aí?

Parece pior.

Parece pior - concordou o jornalista, abaixando a cabeça e olhando em direção ao quarto onde a Esposa estava. O lugar estava silencioso. - Que horas são?

Quase onze.

Já venho.

Ele abriu a porta com cuidado e encontrou o Médico confa- bulando com a Senhora no canto do aposento. Viu a Esposa respi­rando fundo no leito. Sua presença logo foi sentida.

Ah, você! Bem na hora! Bom que veio... bom que veio. Pre­cisamos falar - disse o doutor.

Ela está bem?

Por enquanto, sim. Venha comigo.

O Médico o retirou do quarto novamente e o acompanhou até a cozinha onde acendeu a luz imediatamente.

Melhor não, doutor - disse o Repórter, desligando o inter­ruptor e sacando uma lanterna do bolso do casaco. Ele apontou o foco de luz para o chão e, com uma das mãos, deixou apenas parte do facho de luz sair do instrumento. O reflexo era suficiente para que pudessem enxergar.

Ela está bem? - repetiu o Repórter.

Sim - insistiu o Médico. - Mas não por muito tempo. Eu precisaria usar um instrumento hospitalar. Aliás, se estivéssemos num hospital, eu teria iniciado uma cesariana há algum tempo.

Bem, estamos aqui. A escolha foi minha - falou com de­terminação. - Poderíamos estar mortos a esta hora. A cidade está tomada pelo caos. Podemos tentar uma cesariana aqui?

Ficou maluco? O bebê até... - parou o Médico, compreen­dendo o teor do argumento. - Os dois morreriam.

Então, qual sua idéia?

Ela está esgotada e não tem condições de decidir nada no momento. Preciso do seu aval.

Para quê?

Trouxe uma droga capaz de relaxar o sistema nervoso dela de tal maneira que eu possa induzir a dilatação necessária para o parto. O problema é a dose. Preciso arriscar uma quantidade alta, pois só terei uma chance. Não tenho o suficiente para um caso como este. Sinto muito, não antecipei esta possibilidade.

E o problema é... - continuou o jornalista, cada vez mais estressado com aquela conversa.

Ela pode morrer do mesmo jeito. Esse relaxante vai afe­tar todo o sistema. Inclusive o coração - o Médico explicou, colo­cando a mão sobre o ombro do jornalista, claramente afetado pelo dilema. Descuidou-se da lanterna e o facho completo iluminou o ambiente. - Ela vai morrer se não decidirmos logo.

Preciso falar com ela.

Apagou a lanterna e voltou ao quarto.

 

A Esposa respirava pesadamente e ainda mantinha as pernas abertas com os joelhos para o alto. Sofria de câimbras terríveis e lutava para controlar os músculos, esforçados ao extremo durante as tentativas infrutíferas de empurrar o Filho. Seus olhos estavam fechados.

Sentando-se no lado esquerdo da cama, o Repórter pousou uma das mãos sobre a barriga e acariciou o rosto suado da Esposa com a outra. Ela abriu os olhos e sorriu.

Oi, bonitão!

Oi, gata!

Como está se sentindo?

Um lixo.

Ela sabia que isso o faria rir. Ele riu.

Tão bem assim? Melhor eu voltar depois, então. Você está ótima! - brincou, fazendo menção de sair da cama.

Sentiu uma pressão em seu braço, onde a mão dela o agarra­va com força.

Não. Fique aqui.

Claro, meu amor - respondeu carinhosamente. - Ele falou com você?

Sim. Quero fazer.

Não quero perder você.

Não vou a lugar nenhum.

Perdão. Você deveria estar num hospital.

Estou onde deveria estar. Com você.

Ela voltava a suar. Sua pele estava gelada e o Repórter notou alguns espasmos musculares nas coxas. A pálpebra direita tam­bém tremia suavemente. Ela continuava a segurá-lo pelo braço.

Vai ficar aqui comigo?

O máximo que puder.

O que aconteceu?

Nada que você possa fazer, então, não se preocupe comigo.

Claro que me preocupo. O que foi?

Uma contração a pegou de surpresa e todo seu corpo se retesou. Ela apertou os dentes e emitiu um gemido sentido. O braço dele pagou caro por ser o único apoio. A Esposa apertou com toda a força. Compartilharam a dor.

O coração dele voltou a reclamar.

Aqueles malucos descobriram onde estamos. Pode ser que cheguem aqui. Sinceramente, não sei. Vou deixar tudo pronto para sairmos assim que você puder, tá? Vamos sair com nosso filho.

Vai começar a mentir para mim agora?

Vivo ou morto, é nosso filho e não o abandonaremos - disse, olhando para a barriga da Esposa, que assumira uma forma estranha por conta do estágio avançado do processo.

Está pronta?

Sim.

Ela o encarava com carinho. Largou o braço e o acariciou no rosto e adorou a sensação, mesmo com a barba por fazer que tanto odiava.

Amo você.

Sempre - ele respondeu.

O Médico aguardava atrás deles.

Doutor, podemos prosseguir.

A seringa estava pronta.

Agora preciso de você aqui. Ela vai ficar zonza e desorientada. Segure as mãos dela e fale com ela o máximo que puder. Entendeu?

Sim.

A Senhora injetou o líquido transparente e, imediatamente, os olhos da Esposa perderam o foco. Suas pernas vacilaram e fo­ram pegadas pelo Médico, que as reposicionou até que sua mulher assumisse aquela posição.

Minha doçura, agora é tudo ou nada. Força!

E ela iniciou a corrida pela própria vida. A dor aumentou. A dilatação também.

 

"Os últimos ataques aos centros de alimentação provocaram uma reação inesperada do exército. Caminhões estão carregando tudo para fora da área metropolitana e há enormes perímetros de­fensivos em torno dos maiores armazéns. Fiquem em suas casas, pelo amor de Deus. Temos informações sobre carros sendo des­truídos ou abordados em estradas e as saídas estão fechadas por bloqueios armados. Fechem bem as portas e fiquem em seguran­ça. Estou com dificuldades em acreditar, mas parece que muitos policiais uniram-se aos manifestantes e estão atacando os milita­res. Não dou a mínima para o que você acha da decisão do gover­no, caro ouvinte, mas tudo isso só está piorando a situação. Essa loucura tem que parar. Se não provocarmos, eles não terão que fazer nada disso..." - dizia o Radialista, quando um ruído agudo invadiu a transmissão, seguido por uma forte barreira estática.

O Padre escutava com cuidado, com o rádio preso por um cordão no pulso, enquanto observava por uma fresta da coberta marrom na janela principal. Segurava um rosário nas mãos. A transmissão retornou pouco depois.

"Amigos, vamos encerrar nossa transmissão. Acabei de saber que nosso prédio está sendo invadido... pela nossa própria proteção policial. Alguns andares parecem estar em chamas. Não sei ao cer­to. Desejo a todos muita sorte e paz nesse momento de tanta treva e incerteza. Boa sorte e que Deus os abençoe."

- Amém - abençoou o Padre.

No alto da colina, uma pequena luz brilhou e diversas for­mas se alinharam no horizonte.

Eles chegaram.

 

Deslizando a coberta de volta para tapar a janela, o Padre andou até o lampião, levou-o até o posto de observação e o desligou. Com cui­dado, abriu a uma nova fresta para espionar. A Lua aparecia majes­tosa à direita da colina e o brilho era intenso o suficiente para inibir as estrelas ao seu redor. Ela permitia visibilidade total ao observador, assim como aos recém-chegados. As figuras diminutas se reuniram e acenderam uma fogueira. Uma delas pegou um pedaço de madeira incandescente e o agitou no ar, traçando um belo arco de luz.

Um carro chegou.

O Padre deixou o posto, lembrando-se de cobrir a janela no­vamente, e foi até o quarto. Encontrou o Médico inclinado entre as pernas da paciente. Ele intercalava o trabalho entre pedir à Esposa que fizesse força e manusear os instrumentos. Naquele momento, usava as mãos para melhorar o posicionamento do bebê.

Consegui alinhar a cabeça! Falta pouco agora! - anunciou com empolgação.

Ouviu, meu amor? Quase lá! - disse o Repórter.

Eles chegaram - anunciou o Padre, atraindo a atenção de todos, exceto da Esposa, que estava perdida num mundo próprio e repleto de blecautes causados pelo excesso de dor e devaneios. Finalmente, ela entendia os relatos de amigas e amigos que experi­mentaram psicotrópicos na adolescência e durante os anos acadê­micos. Embora não pudesse compartilhar as próprias descobertas, ela experimentava algo muito além da imaginação de qualquer viajante, pois a mistura de substâncias liberadas pelo corpo peran­te tamanho estresse, das drogas e dos surtos imaginários provoca­dos pelos acontecimentos recentes transcendia sua capacidade de compreensão. Ela estava fora de si.

Certeza? - perguntou o Repórter, sem abandonar a compa­nheira. A Esposa tentava tocar alguma coisa no ar. O Médico pe­diu outro empurrão. Ela não respondeu, então, o Repórter apertou sua mão e repetiu o comando bem perto do seu ouvido. - Vamos lá, gatona. Faça força.

E ela fez.

Está funcionando. Continue! - alardeou o Médico.

O Padre resumiu a descoberta rapidamente e o Repórter lu­tou para encontrar foco e razão entre duas tarefas de igual impor­tância. Prometera ficar com ela até o final, entretanto, se fossem descobertos, esse final poderia chegar muito mais rápido e trazer um desfecho trágico.

Quero ir falar com eles! - disse o Padre. - Acho que sabem que estamos aqui.

Acha ou tem certeza?

Acho.

Então, espere. Vamos ter certeza. Vem cá - ordenou o Re­pórter. - Fique com ela, enquanto vou ver o que está acontecendo lá fora. E o telefone?

Ninguém ligou.

O Repórter sentiu uma dor incômoda no peito, mas tentou ignorá-la quando levantou da cama e abriu espaço para o Padre.

Ela está viajando. Muito. Ajude-a na manutenção do foco, ok?

Certo.

Volto já.

Comprovar os relatos do Padre foi fácil, difícil era acreditar no desenvolvimento rápido e assustador do cenário tático. Pelo me­nos três carros estavam parados no topo da colina e três fogueiras reuniam um número incerto de pessoas. Mais um carro chegou, com os faróis apagados. Por isso os helicópteros não conseguiram achar todos eles, maledetti. Os ocupantes desceram e se juntaram à fogueira mais próxima. Não tinha dúvidas de que outros viriam e suas opções reduziam-se drástica e rapidamente.

Uma decisão precisava ser tomada depressa. Quatro figuras deixaram o grupo e caminhavam na direção da casa. Olhou para o relógio. Eram onze horas e trinta e cinco minutos. Os indivíduos aproximavam-se lentamente. Pelo menos um deles estava armado. Sabia que aquela caminhada levava pelo menos uns cinco minutos.

Precisava fazer uma ligação.

Fechou a cobertura da janela e pegou o telefone via satélite.

Câmbio, alguém na escuta?

Prossiga - respondeu uma voz desconhecida.

Preciso falar com o Major, urgente.

Ele está no centro de operações, estamos atolados por aqui. Mas ele pediu que ficasse atento para qualquer contato seu.

Sabe sobre alguma ajuda vindo para minha posição?

Negativo, senhor. Algum recado para ele? Posso transmitir com urgência.

Sim, sim, obrigado. Informe que minha posição foi localiza­da e estou sendo cercado. Preciso de ajuda imediata. Entendeu tudo?

Positivo, senhor. Vou retransmitir.

Pode fazer isso agora?

Fique na linha.

Segundos transformaram-se em minutos e ele checava o mo­nitor do telefone para garantir que a ligação ainda estava conecta­da. O operador retornou.

Mandaremos apoio. Tempo de chegada, trinta minutos. E o Major desejou boa sorte.

Meia hora para o resgate, confirma?

Afirmativo, câmbio final.

E a linha ficou muda quando o Repórter agradecia:

Obrigado pela ajuda.

Meia hora. Só precisava resistir por meia hora.

Quando as luzes do telefone apagaram-se, ele espiou nova­mente. Os quatro homens estavam na metade do caminho e um deles apontava para os fundos da casa. Fechou a cortina, progra­mou o relógio de pulso para tocar em trinta minutos, e foi chamar o Padre. Precisariam agir com cautela.

 

Quando chegou ao quarto, o Repórter encontrou a Senho­ra sentada ao lado da Esposa. O Médico tinha uma de suas mãos dentro da vagina dilatada e respirava tão pesadamente quanto a paciente.

Consegui pegar a cabeça, vamos começar a tirá-lo daqui. Sinto o cordão. Preciso ter cuidado - informava, espaçando cada uma das frases para poder executar o procedimento.

Onde está o Padre? - perguntou o Repórter.

Ele ficou olhando um pouco pela janela e saiu dizendo que precisava falar com você assim que desligasse o telefone, meu rapaz - respondeu a Senhora, que usava um pano molhado para estabi­lizar a temperatura oscilante da paciente. O sintoma era incomum e, entre os perigos do calor ou do frio, a dupla médica optou por mantê-la fresca e ajudá-la a se manter desperta. Na janela do quar­to, um dos pregos que segurava as duas cobertas escuras estava largado no chão.

Puta que pariu!!! Aquele imbecil! - xingou, fechando a por­ta imediatamente. No final do corredor que dava acesso aos quar­tos, havia uma segunda porta. O Repórter não se deu ao trabalho de averiguar a porta, de onde as duas tábuas de proteção haviam sido retiradas, e voltou para a janela de observação. O quarteto estava parado. Alguém se aproximava.

O Padre segurava as mãos juntas em oração conforme cami­nhava. O rosário o acompanhava.

 

O Senhor é meu pastor. Nada me faltará. Minha fé é maior que o medo. Minha certeza na palavra do Senhor sobrepujará a in­sanidade e os trará para a razão. Somos irmãos; e irmãos se prote­gem e se entendem. Andarei pelo vale e vencerei, pois a luz da minha fé é meu guia. O Padre dava passos seguros em direção ao grupo de reconhecimento. Eles pararam e aguardaram sua chegada.

Os olhos atentos do Repórter viram um dos invasores apon­tar uma espingarda para o Padre e ele parou, levantando os braços para demonstrar que estava desarmado. Palavras foram trocadas, o religioso gesticulou na direção da casa por diversas vezes e dois dos homens se aproximaram. O Padre manteve sua posição, sem­pre falando e gesticulando.

Um novo grupo começou a descer da colina. Mais carros chegavam.

Completamente alheio ao plano do Padre, o Repórter colo­cou uma das armas na cintura e apoiou o arco e as flechas ao lado da janela. Resistiria ali até o fim, se necessário. Era bom que aquela loucura funcionasse.

A conversa continuou até o segundo grupo chegar.

O coração do Repórter doía e sentiu a cabeça pulsar. Nova­mente, presenciava um acontecimento no qual era obrigado a ficar de fora. Estavam atrás dele. Precisava se manter anônimo a todo o custo. Em último caso, sua mulher era apenas mais uma grávida enfrentando aquele trágico destino. Desinformado sobre os efei­tos daquela discussão acalorada no jornal, acabou conseguindo o oposto do que desejava para a Esposa. Por estar na mesma casa que ele, ela se transformara em alvo.

Posso fugir e correr para a floresta. Isso mudaria a situação. Eu sou o problema. Eles são mais importantes que eu. Vou fugir.

Entretanto, o novo plano só poderia ser executado depois do término do pequeno bate-papo do Padre com os recém-chegados. O religioso deu mais alguns passos na direção do grupo e, nova­mente, armas foram apontadas em sua direção. Ele girou o corpo lentamente para mostrar que estava desarmado. As armas continuaram a ameaçar. Ele não tentou novo avanço. Os dois sujeitos que se aproximaram da casa estavam quase na varanda.

O Repórter virou a cabeça naquela direção. A porta. Esta­va fechada? Sim. Tinha certeza. A dupla de bisbilhoteiros sumiu do campo de visão e ele ouviu passos na varanda. Colou o corpo contra a parede, localizou o coldre, que encontrara num dos baús da casa, já devidamente amarrado no lado de seu torso, e sacou a pistola em silêncio, mirou e aguardou. Instantes mais tarde, a maçaneta foi girada. A porta não abriu. Novos passos no piso de madeira deram a dica do novo movimento.

Um facho de luz invadiu a sala pela fresta da janela. O jipe recém-chegado ligara os faróis e se movia lentamente para averi­guar toda a face leste da construção. Não encontrou nada. Baita sorte, pensou o Repórter, aliviado. Teria sido visto imediatamente. Recolocou a pistola no coldre e ficou longe da janela. A espera era angustiante e ele direcionou sua atenção para a porta dos fundos. Deveria tê-la checado. Poderia estar destrancada, ou melhor, es­tava. Agachou-se com cuidado, especialmente para não derrubar o arco e as flechas, e engatinhou até o corredor, onde não havia janelas e poderia defender o forte. A direita, as portas dos quartos secundários; e, à esquerda, a parede da suíte principal, cuja porta abria diretamente para a sala de estar, logo ao lado da cozinha.

Sacou a arma novamente e esperou.

Um forte ronco dos motores sinalizou uma alteração na di­nâmica da conversa. Alguma coisa aconteceu. Tentava se concen­trar no exterior, mas estava perto demais do quarto onde a Esposa ainda sofria. Sentia o esforço como se fosse seu. Queria estar com ela, queria cumprir o juramento feito durante a cerimônia de ca­samento. Na saúde e na doença. Ele estava tão doente quanto ela, pelo menos, mentalmente. E precisava dela tanto quanto a Esposa precisava de sua presença. A necessidade da proximidade física au­mentou nos últimos dias, ganhou mais força após cada novo even­to traumatizante e improvável que ele presenciava. O sorriso dela tomava-lhe a imaginação de assalto sempre que fechava os olhos. Melhor que um bando de gente morta, pensava antes de ser invadi­do pelo turbilhão de imagens dos bunkers e das reportagens de TV.

A caminhonete cantou pneu na estrada de terra batida e o som afastou-se gradualmente. Pensou ter ouvido uma moto a dis­tância. Apoiou-se num dos joelhos, apontou a arma para a porta e manteve a mira fixa. Ouvia apenas a Esposa e o Médico. Nenhum som externo. Arriscou uma olhadela para a porta principal e a ma­çaneta continuava imóvel.

Ouviu um barulho próximo. Aliviou a tensão dos músculos do ombro e mirou novamente. Passos nos três degraus de acesso. A Esposa gritou alto. Os passos pararam momentaneamente. Um novo passo solitário se fez presente. Mais uma fisgada no peito foi ignorada. Ele rangeu os dentes, mas manteve o corpo em posição.

A maçaneta girou lentamente e a porta se abriu, revelando o breu da noite. Quando chegou à metade de seu arco, o Padre surgiu e ficou paralisado com arma apontada em sua direção. Es­tava escuro e o Repórter só não atirou por ter reconhecido o colar sacerdotal imediatamente.

- Pelo amor de Deus! - disse o Padre, abaixando o tom da voz ao notar ter permitido que sua surpresa o fizesse gritar. - Vire isso para lá.

Levantando-se e indo na direção do pároco, o jornalista guardou sua pistola e pegou o Padre pela camisa, jogando-o contra a parede.

Eu bebo e você se comporta como um idiota inconseqüente?

Calma, está tudo bem.

Tudo bem? Você poderia ter morrido lá, seu imbecil!

Era meu dever.

Conheço um cara que adorava fazer isso. Sabe o que acon­teceu? - A pergunta era retórica. - Ele ferrou todo mundo à sua volta, especialmente aqueles que amava, só para fazer o que acha­va certo. Você colocou todo mundo em risco - disse o Repórter, espantando seus próprios demônios e encontrando um modo de mostrar a dedicação ao grupo, por conta da responsabilidade de tê-los colocado naquela situação. - Parabéns!

Você nunca entenderia - lamentou o Padre. - Era o melhor a ser feito.

Só entendo que minha mulher e meu filho estão ali dentro e o plano era nos escondermos daqueles caras, não ir até lá convi­dá-los para o chá da meia-noite!

Acho que eles caíram.

Caíram no quê?

Na minha história. Eu disse que eu, uma freira e outro padre pegamos carona com vocês - explicou o Padre. - Quando chegamos aqui, você esperava encontrar com a sua família, mas o lugar estava abandonado e você nos largou aqui, sem nos dar nenhuma satisfação. Disse que você fugiu de volta pela estrada há pouco mais de duas horas.

Oba! Agora tenho a cura e sou covarde! Minha moral só aumenta com esse pessoal. Eles foram embora?

O primeiro grupo pelo menos saiu de perto da casa. Disse­ram que precisavam esperar a decisão do Blogueiro que os lidera.

Blogueiro?

Foi o que disseram.

Ele liderou aquele cerco ao jornal, não foi?

Sim.

Ele não vai desistir tão fácil. Precisamos nos preparar - decretou o Repórter, fazendo menção de voltar à sala de estar. A porta ainda estava entreaberta atrás deles.

Por que sua insistência doentia em só acreditar nas pró­prias realizações? Onde foi parar aquela retórica arrogante de con­fiar nas pessoas? Ou você só confia naquelas que executam ordens de acordo com o que você acredita estar certo? Quem age assim são os mesmos homens criticados pelas suas matérias e idéias. Em momentos como este não consigo ver nada além de um sujeito soli­tário, revoltado com alguma coisa oculta e disposto a esperar que o mundo o idolatre pelo simples fato de ele existir! - dilacerou o Pa­dre. - Desde o ginásio você se comporta dessa maneira, revolta-se contra quem sabe mais ou discorda, contra quem gosta de outras coisas e tem a audácia de viver uma vida diferente daquela que você considera ideal! Quer saber? Ninguém liga para a sua vida, por isso você se incomoda tanto e arruma tanta confusão. Quer ser lembrado? Faça algo bom. Acredite de verdade e faça algo.

Parte de todo o discurso do Padre foi a razão que os distan­ciou ainda na escola, muito antes de ele ter vencido a guerra pelo coração da Esposa. A vocação do religioso já se mostrava óbvia e ele havia dito a si mesmo que prosseguir no exercício ardoroso da fé só poderia ser impedido por um sim dela. Ela nunca quis sepa­rar ninguém dos sonhos, fosse o Padre, da batina, fosse o marido, da escrita. Amada pelos dois, entretanto, encontrou paixão física e planos de vida semelhantes apenas num deles. Nunca rejeitou nin­guém, apenas fez o melhor para ela. E nunca se arrependeu.

Eles também não.

Eu fiz algo. Algo muito bom. Algo pelo qual nunca serei lembrado, pois ninguém vai saber. Meu único erro foi defender meu ato no lugar errado. Por isso a cidade entrou em parafuso - disse o Repórter. - Por isso esses alucinados estão aqui.

Então existe uma cura?

Uma solução. Mas não está comigo. Apenas sei o que é, como já disse.

Meu Deus - falou o Padre, perdido nas possibilidades sen­do criadas pela própria mente naquele exato instante. - Você pode salvar a todos dessa loucura! Você tem esse poder! Use-o para o bem, não só para iludir seu ego! Aqueles homens estão armados e vão matar todos nós se souberem que você está aqui. E você é arro­gante o suficiente para não dar o que eles querem!

Sem perceber, o Padre virou a situação e era ele quem pres­sionava o Repórter contra a parede oposta e lhe pressionava o peito com os braços fortes. Ele exigia a entrega da cura, ele bradava a importância da verdade para o serviço ao Senhor, citava trechos bíblicos que davam ao Repórter uma obrigação moral de preservar a vida. O jornalista não reagiu. As palavras machucavam demais. E o peito tentava explodir com cada novo empurrão do Padre.

A Senhora saiu do quarto e parou por um momento no cen­tro do corredor. A claridade a mantinha iluminada como uma entidade vinda de outro mundo. Com o rosto bondoso, cabelos brancos encaracolados e uma natureza pessoal bem conhecida pelos dois, ela parecia uma representante de um mundo no qual paz, igualdade e respeito pelo próximo realmente eram exercidos, especialmente pelos sacerdotes e contadores de histórias. O Padre interrompeu o rompante, deixando o Repórter deslizar pela pare­de e se sentar no chão. A mulher continuou o caminho. O Médico havia desistido de contar com a ajuda dos dois. E estava quase con­cluindo o parto.

Tomando consciência das palavras e dos atos, o Padre se en­costou na parede oposta e, encarando as mãos como se fossem as ferramentas de um crime hediondo, foi deslizando até sentar no chão. O Repórter ofegava; olhos fechados; mão direita apertada contra o coração. As costas doíam como nunca.

No fundo... somos todos iguais - falou o Repórter, com dificuldades para respirar. - Esse será meu legado... evitar que a verdade nos destrua por completo... ao permitir que expurguemos nossos demônios e desejos destrutivos durante a busca da mesma... verdade. Você me mataria se soubesse o que sei? Não sei e não pre­ciso saber. Destruir uns aos outros é nossa melhor habilidade e passamos tempo demais fazendo de conta que podemos nos com­portar. O tempo... de faz de conta... acabou.

O Padre não respondeu. Sentiu a brisa tocar-lhe o rosto e notou ter deixado a porta aberta. De joelhos, encostou na maçane­ta no momento em que uma moto passava pelos fundos da casa e começava a fazer a volta pela face oeste.

Uma moto - anunciou.

Buscando fôlego, o Repórter demorou para assimilar a notí­cia e suas implicações.

Ela... ela... - pausou para respirar. - Ela vai ver o carro. Pre­cisamos... defender a casa. Só mais dez minutos até a ajuda chegar.

Ainda em choque, o Padre aceitou a mão oferecida pelo jor­nalista e levantaram juntos, usando os corpos como contrapeso. O religioso seguiu direto para a sala, abriu a borda da janela e viu a motocicleta voltando ao topo da colina a toda velocidade. Pegou uma das pistolas, sentiu o aço gelado contra seu punho habitual­mente quente, deixou o peso se balancear contra a força do braço, olhou de perto e viu que o barril estava cheio. Tocou o cano da arma com a outra mão e, com delicadeza e certeza, colocou-a de volta na mesa. Voltou a olhar para os invasores.

Andando com clara dificuldade, mas se recuperando aos poucos, o Repórter foi até o quarto e viu a cabeça do Filho sendo retirada. O Médico, prontamente, começou a desenrolar o cordão umbilical, que se enrolava ao redor do pescoço, e começava a abrir espaço para a passagem dos ombros. Olhos pequeninos estavam fechados e a pele ainda misturava sangue, placenta e o cinza da pele recém-formada. Convenceu-se de que o parto ainda não esta­va completo, logo, ele ainda tinha vida em seu corpo.

Quanto falta, doutor?

Menos de dez minutos. A cabeça está saindo e estou sendo o mais cuidadoso possível para não feri-la.

Ajoelhou-se ao lado da Esposa e deu-lhe as boas-novas:

Querida, ele tem a sua boca! É um menino lindo! Fizemos um bom trabalho! Mais um pouco e você vai poder abraçá-lo - falou, sorrindo para conter o desejo de chorar pela natureza da ocasião e pelo que faria em seguida. - Vou deixar você aqui com eles e vou lá fora evitar que qualquer um a machuque, está bem? Você sempre foi minha paixão. A mulher que amei desde o primei­ro instante, desde o primeiro beijo, desde a primeira noite, desde o dia em que nasci, só demorei para achá-la. Você é o melhor de mim. Amo você. Diga oi ao nosso filho por mim.

Ainda afetada pela medicação, mas, claramente, mais cons­ciente, ela percebeu a tristeza do marido e, como de costume, fez o que podia para animá-lo.

Sabe o que eu sempre digo?

Ele sabia, mas fez sua parte na encenação.

Ninguém espera a Inquisição Espanhola!

Eles riram juntos. Ele a beijou nos lábios, na bochecha e na testa.

Volto daqui a pouco, está bem? Vamos recebê-lo juntos - disse, levantando-se, espiando o Filho novamente e sussurrando no ouvindo do Médico. - Deixe a porta fechada e, se alguém en­trar, diga que ela é sua filha e que eu prometi uma cura que nunca existiu. Obrigado e fiquem em paz.

Shalom - despediu-se.

Obrigado.

A Esposa teve uma recaída e voltou a tocar o ar. Ela acredi­tava estar diante do piano da casa da mãe, onde praticara durante toda a infância. Tocava algo familiar, mas cada nota a lembrava de uma palavra do marido. Ela se comunicava com ele com a música; e era correspondida. Estava adorando o som.

Ouviu uma voz distante pedir para fazer força. Ela fez. Sem deixar de tocar.

Mas o piano desapareceu e ela ficou triste. Teve vontade de chorar e o fez. De tristeza e de dor. Precisou fazer mais força. Fe­chou os olhos para manter a imagem do piano flutuante e virou o rosto para o lado.

Novamente recebeu ordens para empurrar com a barriga. A dor era insuportável. Precisava do piano de volta. Precisava dele a seu lado. Abriu os olhos e o viu.

O Repórter estava sentado à uma escrivaninha antiga, no canto do quarto. Ele escrevia algo, mas ela não podia ver. Estava curiosa. Seria um novo poema para ela? Uma carta de amor? Um conto de fadas? Precisava chegar até ele.

Se o piano flutua, eu também posso. Fez muita força antes de ir até o marido e espiou por sobre o ombro esquerdo. Ele escrevia com aquele jogo favorito de penas e tintas importadas. Oba! É coi­sa boa! Ele só usa esse material em casos especiais. Deve ser muito especial, a tinta dele até brilha.

As palavras eram difíceis de ler, mas a tinta azul brilhante se expandia no pergaminho antigo que ele usava. Ele sorria. Ela adorava admirá-lo quando era possuído por aquela vontade incon- trolável de escrever, quando se sentia de bem com a vida, quando o mundo fazia sentido. Logo, a mesa toda estava azulada, assim como parte da parede e, como num passe de mágica, a escrivani­nha desapareceu e ele escrevia carregando sua pena nas estrelas do Universo. Continuava a escrever mesmo sem formar nenhuma palavra.

Bem ao fundo, ela ouviu uma cantiga de ninar. Não a co­nhecia, mas parecia saber a letra de cor. Imaginou tê-la cantado mil vezes. Leu milhares de cartas de amor escritas nas estrelas. Ouviu centenas de sonetos feitos para ela com a beleza da galáxia. Decorou com ele as palavras mais lindas e os sons mais belos. O Repórter escreveu uma nova palavra, desta vez, em vermelho, e ela leu claramente: força.

Fechou os olhos novamente e, quando os abriu, a Senhora lhe fazia companhia.

 

Ele chegou à janela, ligou o lampião e viu seus reflexos no vidro. Vestidos de preto, ambos pareciam uma dupla musical. Ou dois gladiadores malucos prestes a entrar na arena. Espiou pela fresta e viu as caminhonetas acendendo seus faróis, enquanto vá­rias das silhuetas saltavam nas caçambas. Várias delas já desciam a pé, brandindo objetos sobre suas cabeças.

Opa, estão trazendo pães e salame. Teremos um ótimo jan­tar - satirizou o Repórter, pegando o arco composto e ajeitando a aljava na cintura. - Posso derrubar alguns deles antes que perce­bam. E o melhor é que esse danado faz seu trabalho em silêncio. Vamos lá.

Com uma Desert Eagle no coldre e o arco pronto, ele foi até a porta frontal.

Tente não fazer barulho. E vamos deixar as luzes apagadas. O teto da varanda não deixa a Lua bater na gente e isso deve dar alguma vantagem. Eles estão bem iluminados e correndo quase em fila. Espere até o primeiro tiro chegar perto da gente, conte até dez, e atire o melhor que puder.

Eles são muitos.

Eu sei.

Que esperança temos?

Dê esperança àqueles que não a tem. Lembrou-se do pesade­lo. Não parecia tão assustador agora, mas ainda provocou um cala­frio. Enfrentava a morte, de fato, e tinha mais medo de um sonho do que da multidão descontrolada que corria morro abaixo.

Tempo, Padre. Hoje, tempo é vida. Lutemos por ele.

Posicionado atrás de uma das vigas pesadas que sustentava a varanda, o Repórter elevou o arco com o braço esquerdo, torceu o antebraço para alinhar o tiro e puxou a flecha que havia travado na corda segundos antes. Venceu a força da primeira metade da puxada com dificuldade, mas logo sentiu o alívio provocado pelas roldanas. Poderia mirar o tempo que fosse necessário. Na extre­midade da flecha, uma das pontas douradas estava pronta para ser lançada. Ele alisou as penas da traseira da flecha com carinho, lembrando-se das lições da infância. Nunca um ensinamento veio tanto a calhar. Uma flecha, uma vida. O mantra do foco tornava-se realidade. Fechou o olho esquerdo, puxou o tubo feito por uma liga de carbono reforçado e deixou a corda encostar na ponta do nariz e no canto da boca. A traseira da flecha estava abaixo do queixo, aguardando o disparo. Com cuidado, olhou pelo círculo da mira e viu o pequeno cabo de fibra óptica brilhar. Procurou a cabeça mais próxima e alinhou o pontinho vermelho com o alvo. Torceu para que a mira estivesse calibrada para uma distância se­melhante.

Estava.

Ele largou a corda movendo a mão na direção oposta ao tiro, manteve o braço esquerdo firme e deixou o arco cair para a frente ao perder a tensão promovida pelo balanço da armação pré-tiro. A flecha negra voou no escuro e os atacantes só viram as penas laran­ja quando o tiro atingiu o olho direito de um grandalhão armado com uma escopeta. O tubo penetrou o crânio com violência e a ponta prateada saiu do outro lado. O homem morreu antes de cair.

Três pessoas tropeçaram sobre ele e demoraram a perceber que estava morto.

Mais quatro flechas voaram na noite e suas passagens fizeram um barulho que nenhum dos invasores jamais ouvira. Pensaram ser insetos, que passavam por alguns deles e atingiam seus alvos. Uma no peito, duas no estômago e outra no pescoço. Os gritos de dor causavam mais efeitos que uma morte limpa. Inexperientes, os pobres-coitados tentavam puxar as flechas por suas hastes e sofriam com a perversidade das cabeças de caça. Elas rasgavam a pele e causavam sangramentos cinematográficos ao destroçar artérias e veias cruciais. Ninguém mais ousaria arrancar uma flecha naquela noite.

Urros e desafios surgiram da pequena multidão, assim como os primeiros tiros. Um rifle de longa distância foi disparado do alto de uma das caminhonetas em movimento. Atingiu o telhado da casa.

- Ainda não - avisou o Repórter, preparando sua última fle­cha especial. - Esse cara tem uma arma mais potente do que a sua. Espere pelos estalos menores, procure pelas explosões de pólvora, as balas deles vão cair no chão. As suas não.

O rifle disparou novamente e deu ao Repórter o que ele que­ria, uma referência para mirar. Ele viu o atirador abaixar o cano da arma para recarregar seus cartuchos, alinhou a mira e esperou que ele terminasse de carregar. Quando começou a levantar a arma, que ainda apontava para baixo num ângulo de trinta graus, soltou a última flecha. Ela rasgou o pescoço do atirador e, por pura sorte, terminou cravada no peito do sujeito que estava atrás dele, que caiu em cima de outros quatro atacantes.

Strike!

O efeito colateral seguinte foi planejado. Tomado pela dor, e por reflexo nervoso, o atirador apertou o gatilho conforme jogava o corpo para trás. O tiro arrombou as costas do motorista. A caminhoneta virou bruscamente para a esquerda e capotou, lançando seus ocupantes para todos os lados e rodopiando por cima de um grupo que corria paralelamente ao veículo.

Mesmo assim, o número de inimigos ainda era claramente maior. Os primeiros flashes de luz surgiram na multidão.

Vamos lá, Padre. Hora de mostrar a ira de Deus. Esse é nosso apocalipse e somos os instrumentos da fúria divina! Con­te até dez. Um... - contou o Repórter, sem esperar pela reação do religioso, que ainda se esforçava para empunhar a Colt .45 e atirar contra um ser humano. O jornalista disparou uma das flechas nor­mais e uma mulher caiu com o braço perfurado.

Dois - disse, incentivando o amigo. - Escolha seus alvos, veja só, as balas não chegam.

Puxou mais uma flecha, armou e, sem mirar, procurou um grupo mais compacto e soltou. Acertou a barriga de um barbudo armado com um cutelo. Ele caiu e levou mais dois com ele.

Três - continuou atirando novamente contra os veícu­los, mas sem sucesso. A flecha chocou-se contra o capô do carro num ângulo desfavorável e perdeu força. - Quatro! Está comigo, Padre?

Sim, estou.

Mais uma flecha voou e acertou um dos atiradores de raspão na perna, o suficiente para fazê-lo reduzir a velocidade.

Cinco! - e uma série de tiros atingiu o teto, os batentes de madeira e o solo em frente à varanda. - Esqueça os outros cinco, os carros vão chegar mais rápido. Atire neles!

O Repórter lançou mais duas flechas rápidas contra o veículo mais próximo. Uma delas derrubou o sujeito que atirava com o corpo para fora do banco do passageiro. Ele gritou de dor e caiu no chão, sendo atropelado pelas rodas traseiras do carro.

Não usou o cinto, dançou! Devia ter aprendido a lição!

A outra atingiu o para-brisa em cheio, mas não atravessou, apenas deixando o vidro fraturado e forçando o veículo a reduzir a velocidade até que os ocupantes pudessem removê-lo aos chutes. Ironia do destino, mão de Deus ou sorte de principiante. Chame como quiser, o Padre atirou contra o mesmo veículo e o tiram- baço encontrou o peito do motorista e o carro não saiu mais do lugar.

Agora é uma festa! Bem-vindo!

Não estou tão empolgado quanto você. São vidas...

...que querem acabar com as nossas. Continue atirando e se arrependa depois.

O Padre atirava esporadicamente e, em pouco tempo, o Re­pórter ordenou que se protegesse atrás das vigas mais grossas, que serviam de apoio para o telhado inclinado da varanda. O jornalista tomou a proteção mais avançada, enquanto o religioso correu para o poste à direita da escada de acesso.

Os inimigos se aproximavam rapidamente.

A barragem de flechas do Repórter era assustadoramente precisa e ele sentiu muita tristeza ao atirar a última delas. Ele garga­lhava. Não atirava havia anos e, felizmente, os anos de treinamento para disputar a Olimpíada mostravam serventia. Soltou a corda e derrubou uma mulher que atirava loucamente com um revólver.

Alguns disparos os ameaçavam e o Repórter voltou para sua proteção a fim de abandonar o arco e sacar a pistola. Checou os quatro pentes de reserva que carregava nos bolsos. Esvaziou um dos clipes e segurou o avanço de um grupo que descia pela esquer­da; eles buscavam proteção contra os tiros em seqüência. Duas bai­xas. Ele olhou para outro lado e viu que a maior parte das forças do Blogueiro havia se reunido na frente da casa e todo mundo estava escondido atrás dos carros.

Tudo bem aí, Padre? - perguntou sem olhar. Ele não res­pondeu.

Um calafrio percorreu a espinha. Uma saraivada frontal sal­picou a varanda, lançando lascas de madeira para todos os lados. A diversão acabara. Precisava sair dali. Olhou para encarar a rea­lidade de ver o corpo do Padre estirado no chão, mas não o viu. A pistola estava no chão e nem sinal do religioso. Até que durou mui­to. O Repórter tentou sair novamente, mas foi parado por outra seqüência de tiros. Conseguiu encontrar mais um alvo pela brecha entre duas placas grossas de madeira e atirou três vezes. O alvo caiu.

Os tiros dos adversários foram concentrados no canto onde ele se escondia. Um deles atravessou a madeira e atingiu o om­bro esquerdo do jornalista. Os três carros restantes começavam a avançar e eram seguidos pelos alucinados a pé. O Repórter gritou e, desta vez, gastou o arsenal de ofensas em diversas línguas e ní­veis sociais. Lá se vai meu recorde de nunca ter sido atingido em combate.

Olhou o relógio. Quatro minutos.

Só mais um pouco.

Atirou como pôde, sem mirar, apenas para manter a força atacante em cheque. Não surtiu efeito. A dor do ferimento fez o organismo se lembrar de outra dor. O coração disparou e os mús­culos do peito pareciam estar atrofiados. Sentia formigamento no braço esquerdo. Escapou ileso da saraivada seguinte e arriscou olhar pela fresta. Menos de quinze metros separavam os invasores da porta do chalé. A cena de um filme antigo lhe veio à mente. Nunca me perguntaram se eu queria viver para sempre. Finalmente, entendi a piada!

Arriscou uma risada quando um par de luzes chamou sua atenção à direita da formação atacante.

O motor roncou alto e os invasores perceberam.

Ele reconheceria aquele barulho até debaixo d'água. Era seu jipe.

No volante, o Padre fazia o sinal da cruz e acelerava ao máxi­mo. O jipe deslizou na grama úmida até ganhar tração e disparou. O jornalista pôde ver a boca do religioso se mover.

Nem fazendo algo alucinado o infeliz para de rezar!

Era sua deixa. Recarregou a pistola rapidamente, pegou o re­vólver do Padre, completou a magazine com mais quatro balas e se preparou para a glória. Lutou para se levantar e, de frente para a multidão fabulosamente iluminada pelos faróis do jipe, levantou as duas armas e apertou os gatilhos simultaneamente. Os seis tiros do revólver logo se esgotaram e ele pôde mirar melhor com a Desert Eagle. Era impossível errar daquela distância.

Até mesmo o Repórter parou de atirar quando o Padre cum­priu sua missão divina. Ele atingiu em cheio a proteção dos invaso­res e estilhaçou o para-brisa, cortando a testa no processo. Conti­nuou a acelerar até desalinhar os carros. Deu marcha a ré, acelerou novamente e fez a última carga.

Um homem desceu do carro ao centro e, cambaleando, in­citou outros a avançarem contra o jipe. Rapidamente, o carro foi cercado. O Padre tentou sair, mas ficou preso pelo cinto de segu­rança. Quando conseguiu soltá-lo, estava cercado. O Blogueiro foi o primeiro a atirar, os demais seguiram o exemplo.

O Padre nunca soltou o rosário.

Chocado com o extermínio do amigo, o Repórter gritou a plenos pulmões chamando o Blogueiro. Quando o líder do movi­mento olhou na direção do desafio, o Repórter segurava sua pistola favorita com as duas mãos, estava com o pé esquerdo mais à frente do corpo e o torso levemente inclinado, revelando o ferimento no ombro.

Hora de apagar seu perfil!

O alvo tentou se abaixar e correr buscando proteção atrás de alguém ao seu lado, mas o primeiro tiro atingiu-lhe perna, es­tilhaçando o osso. Ele se agachou como se uma gigantesca mão invisível pressionasse seu corpo para baixo. O grito de dor afas­tou as demais pessoas, que temiam mais disparos na seqüência. O segundo tiro do Repórter atravessou-lhe o estômago. O terceiro errou completamente. Um pico de dor desequilibrou o jornalista. Ele caiu de joelhos.

Os disparos adversários começaram e a varanda voltou a ser destruída pouco a pouco. Ele foi atingido na perna e, aceitando a inevitabilidade da situação, fez mira e esperou o Blogueiro olhar para ele. Ele olhou. O Repórter puxou o gatilho. O último tiro da Desert Eagle abriu um buraco no pescoço do homem cujo desejo de ser importante e ser ouvido subverteu uma cidade à barbárie. Ele morreu lentamente, enquanto tentava respirar um ar mistura­do com sangue. Sangrou até a morte.

O Repórter se arrastou até a proteção anteriormente utilizada pelo Padre e deu as costas aos invasores. Tiros espaçados continua­vam a tentar atingi-lo. Daquele lugar, podia olhar diretamente para a porta do quarto onde a Esposa dava à luz. O coração doía. Torcia para que a porta milagrosamente se abrisse e visse um bebê chorão sendo levantado pelo Médico. Era tudo que desejava. O último desejo.

Mais um tiro estilhaçou parte de seu pé e a dor no peito tor­nou-se insuportável. O braço parou de se mover, a vista ficou turva e os olhos nunca deixaram de fitar a porta que continuava fechada.

Morreu protegendo a família.

Fez algo bom. Deu esperança àquele que não tinha.

O relógio emitiu um bipe inquietante, piscando simultanea­mente. O marcador digital mostrava meia-noite quando os invaso­res tomaram a varanda e violaram o corpo do Repórter com tiros, pauladas e facadas. A ajuda nunca chegou.

Motivados por algo fora do controle, e um desejo violento e ancestral, invadiram a casa. Mais e mais gente saía da floresta e descia a colina para conseguir a cura.

Dentro do quarto, a despeito dos sons terríveis vindos do lado de fora, o Médico, finalmente, conseguiu retirar o bebê. Apoiou as costas e cabeça na mão direita e o sentou sobre a mão esquerda. Inspecionou o recém-nascido com cuidado, tocou-lhe o peito em busca de batimentos, em seguida checou o pulso. Nenhum dos indicativos de vida estava presente. A boca estava fechada.

Quero vê-lo - pediu a Esposa.

O Médico cruzou metade do quarto para dar a volta na cama e encontrar um espaço para fazer a entrega. A Senhora se manteve sentada ao lado da paciente. Os olhos lacrimejavam. Assim como os do doutor.

Claro, querida. Aqui está seu Filho.

Ela o recebeu nos braços, tocou-lhe o corpo pela primeira fez e acariciou suas mãozinhas cerradas. Reconheceu seus lábios, o nariz do marido, as bochechas da avó e estava curiosa sobre qual lado da família lhe deu os olhos.

Ah, meu bebê! Saiba que você foi amado do primeiro dia ao último minuto. Saiba que seu Pai moveria montanhas por você, e sua Mãe daria a vida por você sem pensar duas vezes. Só queria ver seus olhos antes de nos despedirmos.

O recado levou o casal de idosos às lágrimas. Viram muitas mães perderem os filhos nos últimos dias, mas essa era a primeira vez que estavam ao lado de uma pessoa tão amada e querida como a Esposa, ou melhor, a Mãe.

Gentilmente, ela passou a mão sobre o rostinho inchado pela dificuldade do parto e colocou o dedão e o indicador da mão di­reita sobre cada uma das pálpebras. Por procedimento, e força do hábito, o Médico checou o relógio para registrar a hora da morte. Era meia-noite.

Passos apressados vieram da sala e, logo, as primeiras batidas violentas na porta. Morbidamente, o Médico falou:

- Hora da morte. Meia-noite - como se anunciasse o próprio destino. - Feliz Ano-novo!

Os dedos da Mãe foram repelidos quando os olhos do Filho se abriram, revelando um azul-celeste e brilhante. Ele chorou bai­xinho por alguns instantes, mas, sem aviso, emitiu um grito agudo e acompanhado por uma onda sonora ensurdecedora lançada para todos os lados. O Médico e a Senhora desmaiaram, assim como a Mãe, que pegou no sono, e a sala foi preenchida por um tapete de pessoas desacordadas, assim como o gramado, a colina e toda aquela área.

O choro dos infantes voltou a ser ouvido no planeta. Pelo menos por aqueles que acordaram do sono causado pelas ondas sonoras que se propagavam a cada novo nascimento. Uma nova ge­ração havia nascido do fogo e do desespero, da tragédia e da incer­teza, depois dos últimos dias de esperança. O Filho foi o primeiro.

O primogênito dos filhos do fim do mundo.

 

Epílogo

 

A Mãe caminhava com calma em meio aos corpos espalhados pelo meio da sala e na porta de entrada do chalé da família. Dirigiu-se diretamente à escada onde encontrou o corpo do Pai. O relógio ainda apitava. Ela desligou. Fechou os olhos dele, ainda fixos na porta do quarto e desceu os degraus curtos. Em seu colo trazia o Filho, que mamava gentilmente.

Ouviu os sons da floresta, revigorados e, igualmente, cheios de vida. Deixou a brisa tocar-lhe rosto por um tempo, levantou o braço e sentiu os pelos arrepiados pelo vento gélido que soprou da colina, levando a fumaça das fogueiras para o sul e deixando a vista da Lua totalmente livre e belíssima, para onde ela se virou.

Ela acariciou a cabeça do Filho e sorriu.

O luar estava menos intenso e as estrelas davam um espetá­culo magnífico. A direita do satélite, um rastro de fumaça riscava o céu conforme um foguete fugia da atmosfera.

O Filho parou de mamar, fitou o firmamento e seus olhos brilharam como a mais bela e viva das estrelas.

 

 

[1] Terrorista norte-americano famoso por enviar cartas-bomba entre 1978 e 1995. Ele fez 23 vítimas.

 

 

                                                                               Fábio M. Barreto 

 

 

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