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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS DO SOL / Morris West
FILHOS DO SOL / Morris West

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em Nápoles, os pesadelos começaram. Começaram, como sempre começam, com uma simples realidade.
Havia uma criança a quem eu costumava visitar na Casa dos Gaiatos. O seu nome era Antonino. Tinha 8 anos de idade, mas o seu corpo era tão pequeno e a sua cara tão mirrada e pálida que parecia ter apenas 5 ou 6. Quando entrei no pequeno e poeirento pátio, onde o Antonino brincava com outros rapazes, ele deixou o jogo imediatamente e correu para mim, de braços estendidos, chamando pelo meu nome: Sig. Mauro! Sig. Mauro!
Quando o tomei em meus braços, ele apertou-se de encontro a mim por algum tempo, e depois pediu que me sentasse e lhe contasse histórias do meu país-a que distância ficava de Nápoles, que género de pessoas viviam lá, que língua falavam e que pássaros e animais lá existiam.
Enquanto falávamos, os outros juntavam-se à nossa volta e eu era o centro desse grupo de rapazes boquiabertos, fascinados como se estivessem a ver Polichinelo na sua pequena casa dourada com cortinas vermelhas. Sempre que um novo rapaz se aproximava, o Antonino apresentava-o e dizia-lhe, com uma carita grave e largos gestos, que eu era um «grande escritor australiano, que tinha vindo de um país maior que a Europa, onde ninguém, ninguém mesmo, passava fome.
Quando me levantava para partir, o Antonino segurava~me a mão e trotava ao meu lado com as suas pequenas e raquíticas pernas, pedindo para carregar o meu casaco ou a minha máquina fotográfica, a fim de ficar comigo mais uns minutos. Enquanto descia a rua estreita, por entre os lugares de peixe, os montes de resíduos e os sórdidos estendais de roupa lavada, olhava para trás e acenava ao Antonino, que me retribuía e o meu coração ficava inundado de piedade e ternura e também de uma profunda vergonha.
Porque o Antonino era um scugnizzol, um garoto sem lar, uma criança sem amor, saído dos becos recônditos de Nápoles. O Antonino não pertencia a Nápoles, era de Roma. Tinha feito a viagem sozinho, a pé, dormindo em valas, procurando comida como um animal, descalço, a sua roupa um amontoado de trapos nojentos. Quando chegou aos subúrbios da cidade, tinha feito uma viagem aterradora, através dos labirintos das linhas férreas subterrâneas, acabando, finalmente, por vir a descansar numa grade de ferro na Rua dos Dois Leprosos. Juntou-se a um bando de outras crianças abandonadas, que viviam vasculhando as ruas, furtando e alcovitando para as raparigas do casino.

 

 

 


 

 

 


De noite, o Antonino dormia sobre uma grade, onde circulava o ar morno de um forno de padeiro, ou entre as rodas de uma carroça de vendedor ou sobre os degraus de pedra de uma velha igreja. Até que, uma noite, foi apanhado e levado para a Casa dos Gaiatos.
Antonino sentia-se lá seguro, confortado e amado, como nunca o tinha sido na vida. O seu frágil corpito começou a fortalecer e a sua mente atormentada a sossegar. Mas nunca mais voltaria a ser criança, e quando se tornasse homem, seria sempre diferente dos outros, porque a cicatriz das ruas estava marcada nele, assim como o medo dos dias sem sol e do terror das noites sem carinho.
Na Casa dos Gaiatos, tentaram fazer com que Antonino esquecesse o passado. Mas ele jamais o esquecerá, porque, um dia, deixará de ser criança e terá novamente que encarar a velha e impiedosa cidade.
Foi assim que comecei a sonhar com ele... O sonho era sempre o mesmo. Era de noite, uma noite de luar, fria e medonha. Havia uma pista de linha férrea - uma longa perspectiva de carris de aço, por entre altos choupos, nus e esqueléticos, como o são no Inverno. No fim da pista, onde as linhas convergiam, existia um túnel, uma arcada preta numa colina cinzenta.
Uma criança caminhava ao longo da via, uma criança esfarrapada, delgada como um fuso, e que coxeava. Tropeçava e caía muitas vezes, depois levantava-se e, sempre coxeando, prosseguia o seu caminho. O meu coração enchia-se de amor e piedade por essa criança, mas quando chamava por ela, começava a fugir, correndo.
Segui a criança, chamando-a sempre e pedindo que parasse, advertindo-a dos perigos que espreitavam no escuro túnel. Mesmo assim, continuava fugindo. Havia luzes no túnel, escassas e amareladas e à sua luz, vi o seu pequenino e distorcido corpo, saltitando como um animal ferido, de travessa em travessa.
Ouvi o som de uma locomotiva. Gritei para o avisar, mas a criança não parou. Corria para a sua morte, parecendo não se importar. Depois, vi o farol da locomotiva e, no seu rasto, a cara da criança - não a do Antonino, mas a do meu próprio filho!
Neste preciso momento, acordava sempre, suando e aterrorizado e chamando pelo nome do meu filho, que dormia sossegadamente na sua cama, sorrindo aos seus próprios sonhos despreocupados.
Soube então que tinha de escrever este livro, para me libertar do pesadelo. Devo dizer de minha a voz dessas crianças de Nápoles, dessas crianças esfomeadas, sem lar, inocentes e desprovidas de tudo. Por elas devo tocar o coração das pessoas, procurando, como elas procuram, não o pão, mas a piedade e a caridade humana e, sobretudo a esperança.
1 Literalmente, «pião a rodar. (N. da T.)
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LES E MORRER
existe em Nápoles uma rua chamada Rua dos Dois Leprosos.
Para a encontrar, você terá de mergulhar num labirinto de ruelas e becos, na parte norte da Via Roma. Terá de tecer o seu caminho por entre os barrancos de casas, escarpados e estreitos, com estendais de roupa lavada suspensos entre elas, como estandartes de um triunfo de maltrapilhos. Terá de forçar o seu caminho por entre a multidão ao redor dos lugares de fruta e das padiolas de peixe, com as suas montanhas de mexilhão e bandejas de polvos e as suas vasilhas de água viscosa, fervilhando de caracóis. Passará por entre os vendedores com as suas resmas de algodões baratos e casacos em segunda mão e calças remendadas e as suas fotografias de estrelas de cinema, em molduras douradas baratas. Terá de se baixar quando passar sob os queijos e salsichas pendurados das janelas das alumerias; tropeçará sobre crianças imundas e esfarrapadas, vasculhando os montes de detritos para encontrar cascas e restos de fruta e beatas de cigarro espezinhadas. Passará por uma dúzia de relicários, contendo estatuetas ou gravuras poeirentas de santos bizarros, por detrás de vidros lambuzados e manchados. As lâmpadas brilham frouxamente e as pequenas velas votivas estremecem ligeiramente ao sopro frio do vento. Espreitará para dentro de pequenos quartos, onde as mulheres, de faces contraídas, se debruçam sobre o tricot ou bordados, ou onde famílias de dez e doze membros, conversam e gesticulam sobre taças de pasta fumegante.
Finalmente, você chega à Rua dos Dois Leprosos.
Não há comércio aqui. É uma rua estreita e escura, cujas paredes são húmidas e viscosas e cujas portas são arcos falsos, frios e tristonhos. Mesmo assim, quando por elas passar, notará
2 Charcutaria. (N. da T.)
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que estão cheias de vida. Sombras disformes sentam-se descuidadamente ao redor de pratos de estanho, cheios de cinzas mornas de carvão. Um monte de farrapos geme e estende a mão em súplica. Num pátio soturno, onde uma lâmpada baça brilha num pequeno nicho, um grupo de crianças sujas dá-se as mãos e dança numa zombaria lamentável da alegria. O frio morde cada vez mais e você enterra mais fundo as mãos nos bolsos, baixa a cabeça sob o arco de um contraforte espanhol e avança de encontro à luz que brilha na extremidade distante da Rua dos Dois Leprosos.
Quando chegar a essa rua, encontrará uma pequena praça, com um monte de cascalho ao centro, por onde transitam algumas pessoas, gente miserável e de cara pálida, passando e repassando, vindos dos becos escuros para a luz amarela da praça e das ruas dos vendedores.
Foi nesta praça que Peppino me deu a minha primeira lição sobre Nápoles.
Para mim, foi uma ocasião importante. Vesti-me para a mesma, com algum esmero. Usei uma camisola velha de marinheiro, esgaçada e passajada em muitos lugares. As calças estavam esfarrapadas e remendadas e calcei um par de sapatos rotos, com as pontas em bico, que me apertavam os pés abominavelmente. Não me barbeava há três dias e as minhas unhas estavam pretas e as minhas mãos manchadas de gordura e nicotina dos cigarros. Em qualquer outra cidade, seria expulso pela polícia, mas aqui, na bassia de Nápoles, estava vestido como milhares de outros.
Mesmo assim, era difícil passar despercebido. Sou um homem grande, seis pés de altura, ombros largos e mãos e pés enormes. O meu cabelo é castanho e os meus olhos avelã-claro, e quando Peppino caminhava ao meu lado, parecíamos David e Golias.
Eu precisava do Peppino. Precisava da sua garganta de que eu era um amigo e bom companheiro, que sabia calar a boca. Precisava da sua ajuda na escuridão labiríntica do formigueiro napolitano. Precisava dele como intérprete do estranho dialecto napolitano - uma língua exotérica, que só os iniciados
3 Zona degradada da cidade. (N. da T.)
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podem compreender. Falo toscano razoavelmente e estou bastante à vontade entre gente cortês, mas aqui, sem o Peppino, bem podia ser surdo e mudo.
Contar, nesta altura, a história completa do próprio Peppino, seria não só antecipar, como criar um mistério para vós, um mistério que vocês poderiam refutar como uma mentira improvável. Por agora, bastará saber que Peppino é napolitano, que tem 20 anos de idade, que já foi um scugnizzo, um garoto que viveu como milhares de outros vivem neste momento, que esteve numa casa de correcção e que agora, graças a uma singular e miraculosa clemência, é um homem que se respeita e é respeitado por todos.
Peppino foi-me recomendado como sendo a pessoa que me poderia mostrar a vida de Nápoles, ensinar-me a compreendê-la e ajudar-me a explicá-lo ao resto do mundo, que vive tão distante da miséria, que não pode nem compreendê-la nem socorrê-la.
Eram 9 horas da noite. Peppino e eu estávamos sentados sobre um monte de cascalho no centro da praça, fumando cigarros e vendo as pessoas passar.
À nossa frente havia uma porta. Ao contrário de outras portas da praça e dos becos, aquela estava brilhantemente iluminada por um tubo de néon e um número iluminado. Um homem estava encostado à ombreira daquela porta. Era baixo, robusto e bem vestido, com cabelo preto liso e um sorriso superficial e olhos escuros, mortiços, numa cara levantina.
Quando um homem ou grupo de jovens se aproximava da porta, ele lançava-lhes um rápido olhar de avaliação, afastando-se de seguida para os deixar entrar. Quando alguém saía, ele olhava por sobre o ombro, como que à espera de sinal de aprovação, antes de os deixar sair do prédio. Durante todo este tempo, ele não pronunciava uma só palavra.
- Aquilo-disse Peppino-é um casino, uma casa fechada. O homem é o guarda das mulheres.
Inclinei a cabeça, em sinal de compreensão. Tal era evidente. Um bordel tem sempre o mesmo aspecto em todas as terras, assim como os homens que o dirigem.
Eu estava era interessado no fluxo constante de jovens e
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homens que saíam e entravam por sob o tubo nu de néon. Uma pessoa corre o risco de se enganar com a aparência desta gente pequena e subalimentada, mas estava certo de que alguns daqueles rapazes não tinham mais de 16 anos. Fiz a pergunta a Peppino. Ele encolheu os ombros e estendeu a mão, inclinando a cabeça para o lado, no gesto peculiar depreciativo dos napolitanos.
- O que é que esperavas, Mauro? Na cidade de Nápoles existem 200 000 homens desempregados. Os mais felizardos, como eu, ganham apenas 500 liras por dia. Não temos esperanças de poder casar. Quem é que pode sustentar mulher e filhos com 6 xelins ingleses por dia? Não podemos ter a companhia de uma boa rapariga, sem a transformar em nossa fídanzata. E qual o pai que nos concederá a mão da sua filha se a não pudermos sustentar? O que é que nos resta? Isto... - disse ele, atirando a cinza do cigarro na direcção do casino -... ou cinco minutos com uma rapariga da rua, num canto escuro. Capisce?
Estremeci como se alguém tivesse pisado a minha sepultura.
Compreendia. Compreendia até muito bem. A abstinência, na esperança de casamento, é uma coisa - moral sã e bons costumes. Mas abstinência sem esperança de casamento é uma santidade desoladora, só alcançada por poucos, e não certamente por esta gente de sangue ardente da Itália meridional, onde dormem dez numa cama porque não têm mais espaço para dormir e, mesmo que o tivessem, não poderiam pagar pelo mesmo.
Também compreendi outra coisa - algo que me tinha intrigado por muito tempo. Quando se passeia pelas ruas recônditas de Nápoles, nota-se a ausência de mulheres nas filas de jovens e homens, que fazem a passeggiata, o passeio da noite, apinhados em frente às montras das lojas, deambulando pelos bares, cantando, rindo, gritando, brigando amigavelmente acerca dos últimos resultados desportivos. Quando se lhes pede uma explicação, eles respondem, com orgulho, que o lugar para uma boa rapariga, é a casa da sua família ou do seu
4 Noiva. (N. da T.)
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ídanzato. Se ela sair com um homem, é considerada rapariga de mau porte, por presunção e, geralmente, de facto. O conceito de amizade entre os sexos é estranho a esta gente.
-A amizade leva rapidamente ao acto sexual-dizia Pepino, sucintamente.-A única segurança para uma boa rapariga, é ficar em casa e esperar por um bom marido.
- E se ela não conseguir um marido? Peppino encolhia os ombros.
- Eis a razão porque é tão difícil encontrar uma boa rapariga. Se eu desejasse casar, o que na realidade não posso fazer, levaria muito tempo a escolher e fá-lo-ia com cuidado, antes e depois de estar seguro. Interrrompeu, puxou-me pela manga e mandou-me olhar para o lado oposto da praça. - Olha, Mauro! Àquilo é outra coisa que deves ver.
A parede da pequena piazza estava dividida por um beco estreito, à entrada do qual se encontrava um trio de marinheiros americanos com licença de saída do porta-aviões ancorado na baía. Eram altos, louros e bem-humorados e se estavam embriagados não davam sinais disso. Um deles carregava embrulhos de papel pardo e os outros dois tinham máquinas fotográficas pequenas à volta do pescoço.
À volta deles dançavam três pequenos rapazes, que pareciam ter apenas 5 ou 6 anos, mas que, provavelmente, estariam mais perto dos 10. As suas vozes eram agudas e lamurientas, ressoando cristalinamente no pequeno espaço. Numa mistura de linguagem de doca inglesa, napolitana e italiana, gritavam louvores aos encantos das raparigas do casino. Os seus gestos reflectiam as mesmas obscenidades de sempre e as palavras que saíam dos seus lábios infantis, soavam como blasfémias. Os três marinheiros riram, desconfortados, olhando uns para os outros. Eram novos e um pouco amedrontados, mas curiosos e interessados na mais antiga das propostas. Por um momento, ficaram indecisos mas depois tentaram afastar-se.
Os rapazinhos continuaram a dançar à sua volta, gritando mais alto. Pareciam cães a guardar um rebanho de ovelhas tresmalhadas. A sua actuação era tão astuta, que parecia ter sido ensaiada. Dançando, lamuriando, puxando por mangas e braços, acercavam-se, sem pressa, dos marinheiros, à volta da praça, até pararem quase à frente da porta do casino.
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Então, enquanto os marinheiros continuaram indecisos, era a vez do levantino intervir. Sorrindo, apontava para dentro e fazia um discurso encorajante em inglês. Dois minutos depois, os marinheiros passavam em fila por debaixo da luz de néon, desaparecendo da vista. Só ficavam os garotos e o levantino de cabelo escorrido. Falavam baixo, fazendo gestos que indicavam um trato financeiro; de seguida, os rapazes iam-se embora, aparentemente satisfeitos, enquanto o levantino se recostava de novo à ombreira da porta, palitando os dentes com um fósforo.
Peguei num cigarro. Quando o acendi, as minhas mãos tremiam. Aquela cena tinha-me enojado. Gostaria de deixar aquele lugar para sempre e regressar ao meu país, onde o ar era limpo e as crianças dormiam nas suas camas, longe da porcaria do velho mundo.
Peppino olhou para mim. Os seus olhos escuros estavam sombrios.
- Agradou-te, Mauro?
- Pôs-me doente. Encolheu os ombros.
- Em tempos fiz o mesmo, Mauro. Cheguei a vender os marinheiros a outro, que os trazia para aqui. Outras vezes, vendia-os a homens mais velhos que os roubavam, levando as suas máquinas fotográficas e as suas roupas. Era bem pago. Amanhã... - ele apontava para a entrada iluminada da porta. - Amanhã, as crianças vão regressar e receberão uma percentagem do preço que os marinheiros pagaram à casa. Não serão enganados. Existe uma confiança, entre eles.
- A confiança do esgoto.
Sobriamente, Peppino concordou. A sua voz era triste e meiga.
- Certo, Mauro! Certo! A confiança do esgoto. Excepto que aqui, na bassia, não existem esgotos. a sujidade escorre para o centro das ruas, onde as crianças brincam. Como podem deixar de ser atingidas por ela? Pediste-me que te mostrasse esta cidade. Digo que ainda nem sequer começaste a conhecê-la, muito menos a entendê-la. Antes de nos julgares, a qualquer de nós, aguarda! Aguarda e verás!
Olhei para ele, reparando nos seus olhos húmidos de lágri-
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mas e na sua cara onde transpareciam todas as misérias que ele próprio tinha suportado, antes de uma mão amiga o ter retirado da porcaria, para uma aparente segurança. Envergonhei-me do meu desabafo. Pus-lhe a mão no ombro e disse:
- Perdoa-me, Peppino. Vou aguardar e tentar compreender.
Levantou-se, apertando mais o casaco à volta dos seus magros ombros.
- Vem então, Mauro. Vem, que te vou mostrar.
Era tarde e eu estava cheio de fome. Tinha tomado o café da manhã e ao meio-dia tinha almoçado fruta e peixe, mas agora, a meio da noite, sentia-me irritado e esfomeado. Sugeri ao Peppino que entrássemos numa casa de pasto e comêssemos qualquer coisa antes de prosseguirmos o nosso passeio. Ele ignorou a sugestão com um breve: mais tarde! Mais tarde! Eu sabia que ele tinha trabalhado doze horas só com uma chávena de café e um pedaço de pão seco no estômago, de modo que não tive coragem de insistir e segui-o, penetrando cada vez mais fundo na confusão das ruelas, por detrás da Via Roma.
Essas ruelas estavam pavimentadas com blocos de pedras grosseiras, escorregadias de lama e mal-cheirosas, com águas sujas escorrendo do casario. O lixo amontoava-se em pequenos montões à porta das casas e em cantos fétidos por detrás dos arcos. Gatos castanhos esqueléticos vagueavam silenciosamente de um montão para outro, eriçando os pêlos à nossa passagem.
Muros brancos cercavam-nos e quando levantei os olhos, vi as grades pretas das varandas e o veio de luz que atravessara as persianas corridas. Muito acima de nós, vislumbrei uma pequena nesga do céu e o piscar de frias estrelas. No alto dos nuros leprosos, via os contornos de brasões antigos, arruinados, quebrados e desfigurados e, aqui e ali, o formato de coroas antigas e querubins em estuque rachado. Lembrei-me que neihum destes edifícios devia ter menos de cem anos de existêncià que muitos deles datavam da era dos espanhóis.
À sombra de um arco descaído, Peppino parou, puxando-me para lá. Acendemos cigarros e ficámos a fumar furtivamente, falando em voz baixa. Ao longo do beco, existiam três
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portas. Estavam abertas, não obstante o frio e, à luz de lâmpadas amarelas, podíamos ver o que se passava dentro dos quartos. O primeiro era uma pequena oficina de sapateiro, onde um homem e os seus dois filhos trabalhavam debruçados sobre as suas formas, enquanto uma mulher, com uma rapariguinha loira nos braços, estava sentada, falando com eles. Por detrás, consegui vislumbrar uma armação de cama em latão e uma lâmpada votiva, que brilhava à frente de uma estatueta da Virgem Maria, em gesso colorido.
A porta seguinte dava para uma habitação. Nela estavam uma mulher muito velha, de cabelos brancos e falhas nos dentes, disforme sob um amontoado de xailes, um casal de meia idade e seis filhos, rapazes e raparigas, cujas idades variavam de 5 a cerca de 18 anos. Nove pessoas, ao todo! Estavam sentadas à mesa, comendo a refeição da noite. O resto do quarto estava ocupado por uma imensa cama matrimonial e um grande roupeiro e um pequeno fogão, sobre o qual estava pendurada uma variedade de panelas.
A terceira porta abria-se para um quarto estreito, com •duas camas simples e uma pequena mesa, onde uma mãe e três filhas adolescentes trabalhavam no que parecia ser um vestido de noiva, em renda branca. Tinham o aspecto macilento e oprimido de pessoas que trabalham muito e comem pouco e que apanham pouca luz do sol.
- Estes - disse Peppino, em voz baixa. - Estes são os felizardos. Têm trabalho e uma casa para viver. Poucas vezes passam fome e os seus filhos são bem tratados.
Olhei para o beco decadente e de novo para os quartos lamentavelmente apinhados, onde esta gente afortunada, vivia e trabalhava arduamente durante horas. Olhei para Peppino, perguntando-me se não se estaria a rir de mim. Mas não, ele estava muito sério.
- Mostro-te isto para que não penses que toda a Nápoles é ruim e sem esperança. Esta gente é boa e não vive mal. Se houvesse mais gente assim, não seríamos tão infelizes como somos agora.
- Nove pessoas num só quarto? Onde dormem elas?
- Na cama. É grande, como vês.
- Todos eles?
- Aonde mais poderiam dormir?
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- Mas isso está certo? Os velhos, os jovens, homens e mulheres, os casados, os não casados. Todos numa só cama?
- Não, claro que não está certo. Mas é melhor do que as barracas, onde dormem quinze num quarto. É melhor do que as ruínas, onde não há luz nem calor, nada, e onde dormem no chão como animais. É mil vezes melhor do que a rua, onde os scugnizzi dormem nas entradas das portas, sobre as grades e debaixo das carroças de fruta. Acredita-me, é muito mas muito melhor.
Acreditei nele. Exposto daquele modo, até uma criança poderia entender.
A miséria é uma palavra relativa. Se conseguires trabalho numa cidade onde existem 200 000 desempregados, poderás de facto considerar-te afortunado. Se nove de vocês dormirem numa cama, em vez de num chão de pedra frio, então poderás agradecer a Deus pela sua misericórdia. Se as tuas crianças regressarem a casa à noite, para comer e descansar, em vez de esgaravatarem com os gatos e dormirem numa grade de padeiro, então poderás considerar-te um pai feliz.
Privacidade e ventilação, banho e água corrente e uma bacia para lavar a roupa, são luxos tão inacessíveis, que só de pensar neles é presunção.
Lembrei-me da minha agradável ville em Sorrento, que possui três quartos de cama e duas casas de banho e um quarto para a criada, que ganha tanto como um pai de seis filhos. Pensei nos turistas que visitam Nápoles e Pompeia, Amalfi e Capri, que dormem no Excelsior e comem no Lê Lucciole. Fiquei envergonhado e tive medo.
Peppino aguardava ainda que eu falasse. Perguntei-lhe:
- Peppino, por que é que os napolitanos têm famílias tão grandes?
Olhou para mim, surpreendido, depois inchou o peito com orgulho natural.
- Por que não, Mauro? Somos um povo de sangue quente. As nossas mulheres são boas parideiras. Gostamos de crianças. Porque não as teríamos?
O nosso relacionamento era muito recente, para permitir que eu insistisse neste ponto. Estava interessado noutra linha de pensamento.
- Este homem aqui - disse eu, apontando para a família de seis. - Todas estas crianças são dele?
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- Claro. Todas feitas na mesma cama. Ele é, o que se pode chamar, um homem valente.
Estava disposto a acreditar que o homem fosse um valente, mas não no sentido napolitano. E disse-lhe:
- Mas achas bem, Peppino, que o acto do amor seja feito à vista das crianças e das jovens raparigas e seus irmãos, que estão a crescer e a pensar que eles próprios, também, estão preparados para se tornarem homens e mulheres?
Peppino franziu a testa. Atirou a ponta do cigarro ao chão, pisando-a. Depois, voltou-se para mim.
- Não, Mauro, não acho que esteja bem. Mas é o modo como as coisas acontecem, pois não temos espaço e as pessoas têm de viver assim ou então perecer nas ruas. Os jovens aprendem cedo demais, e os que estão preparados fazem, por vezes, o que não deviam fazer com as próprias irmãs ou irmãos. Na maioria dosxcasos, é isso que os arrasta para a rua, rapazes e raparigas. é isso que os une aos rapazes no casino. Mas como alteraresta situação? Somos gente pobre. Não temos trabalho, nem sabemos encontrá-lo. Cosa fare? O que há a fazer num caso destes?
Cosa fare?
Eu não sabia. Estava cansado e cheio de fome e os meus pés doíam dentro dos sapatos rotos. Queria desistir de tudo. Queria esquecer esta miséria antiga da gente de Nápoles e regressar a casa, no meu próprio país, ou voltar às ilhas resplandecentes onde os turistas riam e bebiam, brincando com raparigas bem alimentadas.
Calquei o cigarro na lama e entrei no beco.
- Anda Peppino, vamos comer!
Peppino disse que comeríamos na Piazza Mercato. Havia por lá umas tascas, onde a comida era barata, o vinho bom e o proprietário seu amigo.
A Piazza Mercato fica no fim da cidade, mesmo ao pé da Strada delia Marina. O caminho mais directo para lá, de onde estávamos, era atravessar a Via Roma, descer a Via Sanfelice, prosseguindo para o extremo sul do Corso Umberto. Mas isto não agradou a Peppino de modo algum. Havia muita
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coisa que desejava mostrar-me pelo caminho; além do mais, precisávamos de cigarros.
Estava preparado para sofrer um mínimo necessário de desconforto nesta peregrinação por ruas recônditas mas, mesmo assim, não prescindia do luxo dos cigarros ingleses. O local mais barato para os comprar era o dos contrabandistas. O tabaco é um monopólio do Estado na Itália e a variedade de marcas é pobre. Além disso, os cigarros italianos têm por costume desfazer-se nas questuras, antes de se chegar a metade. Iríamos, pois, aos contrabandistas, não obstante a polícia e a consciência individual.
Atravessámos a Via Roma com as suas luzes brilhantes e trânsito gritante e seus homens e mulheres bem vestidos, fazendo apassegiata ritual, de boca aberta perante as montras das lojas, conversando em pequenos grupos, bebendo pequenos copos de café expresso nos bares, onde as montras estavam repletas de ovos da Páscoa, brilhantemente coloridos. Estava bem consciente das minhas roupas esfarrapadas, das minhas mãos sujas e da cara por barbear, mas ninguém me prestou a mínima atenção e, pela primeira vez, não fui importunado por pedintes e vendedores de óculos de sol e cartões postais.
Em poucos momentos estávamos de volta aos becos escuros, com o seu casario alto e adegas onde homens andrajosos se sentavam entre barris e cestos, bebendo com moderação o rico vinho verde. 1 litro de vinho comum custa 150 liras e se você ganhar apenas 500 liras por dia, terá de beber moderadamente e fumar pouco. Se for solteiro e sem responsabilidades familiares, poderá gastar mais, mas se for chefe de família, não poderá sustentar vícios menores.
Esta era a outra face de um problema por si evidente, de uma terra empobrecida e com uma taxa de natalidade alarmante.
A necessidade de remédio para a periódica purgação de tristeza, dor e medo é fundamental na natureza humana. Em terras mais prósperas e evoluídas, existem vinte maneiras para um homem se distrair e esquecer as crucificações diárias da vida. Mas aqui, na bassia de Nápoles, só há duas - o comércio da cama e os rituais da igreja. O voto de matrimónio é tão característico da vida napolitana, como as igrejas barrocas, com os seus santos poeirentos e a grotesca disposição de ofertas
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votivas, que espantam mesmo os católicos de outras partes do mundo.
Estava eu ainda a remoer parte deste problema, quando Peppino me puxou para longe do principal ajuntamento, conduzindo-me para um beco estreito, de encontro a um pequeno grupo de homens e mulheres sentados em cadeiras com fundos de palha, à porta das casas.
- Contrabbandieri - disse ele, alegremente. - Cigarros! O primeiro dos vendedores ilícitos, era uma jovem matrona, com uma cara cansada e olhar triste. Ao seu lado, estava sentada uma menina pequenina, que tremia dentro do vestido de algodão. Peppino aproximou-se, apontando para a pequena bandeja que ela segurava ao colo. Vi uma dúzia de maços de cigarros americanos, todos de marcas conhecidas. Nenhum tinha o imposto de selo do governo italiano. Peppino apontou de novo para a bandeja. -Americane. Tipiace?
Respondi-lhe que não me agradavam. Não tenho nenhuma preferência por cigarros americanos. Prefiro os de fabrico inglês, leves, tipo Virgínia.
Peppino perguntou à mulher se tinha cigarros ingleses. Ela negou com a cabeça, com indiferença, e espetou o dedo por sobre o ombro, dizendo:
- Giu - mais abaixo.
Aproximámo-nos dos outros bufarinheiros. Eram um casal, homem e mulher, e os tabuleiros que carregavam, eram maiores e melhor providos. Ela era uma matrona grande e disforme, no lado errado dos 50 anos, Sobre o seu vestido sujo, vestia três camisolas esfarrapadas, cada uma de sua cor. Ó homem era pequeno, cara cor de cera e um olho vesgo. Quando nos aproximámos, ergueram os olhos e trocaram olhares desconfiados. Mais uma vez, a minha altura e tom de pele tinham revelado a minha origem estrangeira.
- Cigarros ingleses? - perguntou Peppino.
A mulher baixou a cabeça para o tabuleiro, mas não disse palavra. Vi uma dúzia de boas marcas inglesas, todas com o selo de celofane intacto. Escolhi dois maços.
- Quanto? - perguntou Peppino.
- 250 liras cada.
Vinte cigarros custavam ali menos do que o preço normal do
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mercado. Peppino inclinou a cabeça, em sinal de aprovação, e eu paguei mais de 500 liras.
- Quem é ele?
Perguntou o homem apontando um dedo para mim, com o olho a espreitar na direcção oposta.
-Trentino -respondeu Peppino, em tom breve. -Problemas com a polícia.
Era uma mentira que tínhamos combinado para explicar a minha aparência e a minha taciturnidade, bem como a minha presença na bassiii de Nápoles.
O homem inclinou a cabeça. Isso era algo que ele podia compreender. Depois, pareceu ter uma ideia. Enfiou a mão no bolso e retirou uma pequena embalagem. Quando a abriu, verifiquei que continha três preservativos de borracha, cada um no seu invólucro de plástico.
Ofereceu-mos, mas Peppino, num gesto brusco, afastou-os para o lado. Dei um passo à frente e interceptei o gesto. Tinha as minhas próprias razões para estar interessado na oferta.
- Quanto? - perguntei. - Quanto quer por cada um?
- 50 liras.
- Cada um?
- Cada um. 150 liras pelos três.
Sacudi a cabeça. Ele encolheu os ombros e voltou a guardar a embalagem no bolso. Aquele preço era a sua melhor oferta. Não havia possibilidade de regatear. Aquele gesto também me interessou. Revelou a estatística que eu queria obter. Mas o negócio não estava ainda fechado. Tinha outras mercadorias para oferecer.
a - Queres uma boa rapariga? Limpa, conhecedora?
-Onde?
- A rapariga?
-Sim.
Fez um gesto, indicando o fim da rua.
- Por ali. Só tenho de a chamar e ela virá logo.
- Para onde iríamos nós?
Desta vez o gesto foi sobre o ombro, indicando a porta do quarto, atrás dele. Olhei para dentro e vi a usual confusão de mobílias, a enorme cama e a lâmpada acesa, em frente a um óleo de Santo Gennaro. Perguntei-lhe:
- A quem pertence?

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pareceu intrigado.
- A rapariga?
- Não, o quarto.
A sua cara iluminou-se de novo.
- O quarto é nosso. Podes ficar com ele por uma hora, duas horas, o tempo que quiseres. Está limpo e tem privacidade.
Mais uma vez, respondi que não. Ele voltou a encolher os ombros, debruçando-se sobre o tabuleiro. O negócio tinha terminado. Nada mais havia a dizer. Peppino e eu voltámos as costas e encaminhámo-nos para o sul da Piazza Mercato.
Enquanto caminhávamos, Peppino falou sobre os contrabandistas e do modo como obtinham as suas mercadorias. Em tempos passados, tinha trabalhado para eles e as suas informações eram exactas. Os cigarros vinham dos navios, disse ele. Eram lançados de bordo, em sacos de borracha, e apanhados por pescadores que os traziam para o cais, onde os intermediários os recolhiam, transportando-os para armazéns, em ruas recônditas. Por vezes, os funcioná rios do porto eram subornados para fazerem vista grossa aos marinheiros, que vinham a terra carregados de sacos bojudos. Os vendedores que distribuíam os maços, ganhavam apenas uma comissão.
Será que a polícia desconhecia este comércio? Sim,. A polícia sabia, mas desde que se mantivesse restrito às ruelas escuras, estava disposta a deixá-lo florescer. De vez em quando, fazia grandes rusgas aos principais traficantes, mas sendo a polícia também napolitana, compreendia a necessidade que as pessoas tinham de viver. E se a lei não oferece margem para que se ganhe uma crosta de pão, então os administradores da lei terão, eles próprios, que providenciar pelo declínio deste comércio.
Concordei, resmungando, e deixei o assunto morrer. Estava ocupado com outros pensamentos e não confiava suficientemente em Peppino para lhe dar conhecimento deles. Mais tarde, quando vim a conhecê-lo melhor, pudemos falar livremente, sem rancor. Nesta altura, porém, o nosso conhecimento era recente e eu estava cansado e de humor incerto.
6 Decerto. (N. da T.)

O nosso breve contacto com o vendedor de cigarros, levou-me a encarar dois factos que me atormentavam constantemente, durante as minhas investigações em Nápoles. O primeiro era a incrível venalidade dos italianos do Mezzogiorno.
Essa venalidade poderá ser detectada, ao seu mais baixo nível, no comércio do sexo e contrabando que se pratica nas suas vielas. Os turistas encontram-na, quando o seu guia propõe - por determinado preço - mostrar às senhoras a pornografia proibida de Pompeia, ou quando os acompanhantes do Museu de Nápoles, manhosamente, os empurram para um canto tranquilo, para tirarem fotografias de obras de arte.
Essa venalidade, segue-os pela Península sorrentina, onde as lojas de objectos turísticos cobram a dobrar por artigos de intarsio6, fabricados em oficinas húmidas, em ruas escondidas. Amais simples transacção, como alugar umavilla para férias, envolve uma série de comissões e falsas declarações, para que o proprietário não tenha de pagar impostos sobre o arrendamento. Por esta razão e com alguma surpresa, poderemos constatar que em alguns casos somos até apontados como parentes das mais importantes famílias do distrito. O que essas famílias poupam com isso, não sei, mas sei que nem a renda nem o custo de vida baixam.
Nos mais altos meios de política, diplomacia e finanças, esta venalidade floresce como uma germinação de sementes, envenenando a terra, tornando-a estéril à reforma ou tratamento honesto. À medida que os dias iam passando, eu aprendia mais, muito mais, sobre isto: subornos para obtenção de notas altas em exames de aptidão, subornos para obtenção de promoções, desvio de fundos estrangeiros para bolsos particulares, todos os expedientes sórdidos que mantêm as gentes do sul da Itália em estado de existência marginal, sem esperança de melhoria.
A pobreza está na origem de tudo isto. A pobreza e o medo que brota da pobreza, e a longa história de opressão e especulação por parte dos conquistadores.
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1 Mosaico. (N. da T.)
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O criado é corrompido pela corrupção do seu amo-e os Espanhóis, os Bourbons e exércitos aliados não eram nenhuns modelos de virtudes sociais. Nem os homens que hoje governam a Itália. O povo da bassi vive tão próximo da fome e da morte, que não pode dispensar um só pensamento para a moral de um acto que porá pão na sua boca.
O segundo facto, o sempre presente facto, é a elevadíssima taxa de natalidade no Sul da Itália. A cidade de Nápoles é um viveiro de crianças, desde os bebés de traseiro nu aos jovens de
18 anos.
As razões são muitas: fertilidade natural, promiscuidade, desemprego, falta de trabalho, ignorância, a atitude reaccionária do clero do Sul, que se recusa a pregar a versão autorizada - abstinência periódica - para controlar a natalidade.
Os remédios não são simples, como poderão parecer ao teórico, que vive num país altamente evoluído, com empregos para ambos os sexos.
Segundo as estatísticas alimentares da bassi, um preservativo custa o mesmo que meio pão. Os dispositivos e soluções usados pelas mulheres são mais’caros - mesmo que houvesse médicos para aconselhar sobre o seu uso. No Mezzogiorno não existe nenhum médico que o faça-como, mais tarde, vim a saber. Pior do que isto, mesmo os métodos mais simples requerem um mínimo de privacidade para serem aplicados. Quando numa cama dormem dez, sem quarto de banho nem retrete, a situação torna-se impossível.
Quanto mais pensava no assunto, mais pena tinha desta gente, que se agarrava desesperadamente a uma vida que nada lhe oferecia além de trabalho e medo, e que gerava os seus filhos para a variada corrupção das ruas.
Finalmente, chegámos à Pizza Mercato e furámos o nosso caminho por entre as tendas dos vendedores, até à porta aberta da tasca. Ao entrarmos, vi uma velha mulher, imunda e esfarrapada, sentada de encontro à parede, que pedia esmola de mão estendida. Um dos seus olhos estava completamente coberto de cataratas e ambas as pernas estavam amputadas abaixo do joelho. Ao seu lado, estava uma pequena pilha de moedas de 5 e 10 liras, as esmolas dos pobres.
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Peppino meteu a mão nos bolsos à procura de alguns trocos e eu fiz o mesmo. A velha não fez qualquer gesto de agradecimento, apenas continuou a sua súplica, choramingando. Um grupo de rapazes de 5 e 10 anos jogava a bola por entre as padiolas. Um deles tropeçou sobre as pernas da velha que, resmungando, o amaldiçoou em dialecto.
Dentro da tasca, a luz era mais intensa e o ar estava aquecido por um forno resplandecente, onde umapizza alourava e o molho vermelho borbulhava e crescia, em grandes terrinas. O cozinheiro recostou-se à parede e limpou a cara com o avental sujo. O criado, de olhar cansado, debruçou-se sobre o balcão da caixa e falou com apadrona, uma matrona montanhosa que rebentava pelas costuras do vestido preto.
Meia dúzia de pessoas encontrava-se sentada à volta de mesas gordurosas, engolindo pasta e sorvendo caldos ou bebendo vinho tinto verde, que era retirado de pipas que se encontravam na porta ao lado.
Todas essas pessoas nos observavam de esguelha, com um olhar especulativo, típico dos napolitanos. Mais uma vez, o meu aspecto tinha-me denunciado como estrangeiro. Mantive os olhos sobre o prato conversando, em voz baixa, com o Peppino.
Um dos comensais atraiu a minha atenção. Tinha cerca de
35 anos, com traços romanos, bem cinzelados. O seu cabelo e mão estavam bem tratados. A sua roupa era nova e os sapatos bem engraxados. Mesmo assim, ele estava a comer numa tasca sombria, frequentada por padioleiros e raparigas da rua.
Chamei a atenção de Peppino para ele. Sorriu, dizendo, com a boca cheia de pizza:
-Hoje em dia, existem muitos como ele, em Nápoles, Mauro. E um pequeno funcionário, ou, talvez, até um escriturário de hotel ou agência de turismo, ou mesmo um vendedor de uma das grandes indústrias do Norte. Com sorte, deve ganhar, por mês, 40 000 liras; no entanto, terá de se vestir como se ganhasse 140 000. Possivelmente, aquele é o único fato que possui e todas as semanas o limpará e passará a ferro, como se fosse a coisa mais importante do mundo, o que, para ele, é. Mas, para se manter vivo, para ter dinheiro para as suas necessidades e poder pagar uma chávena de café aos clientes, terá de comer aqui com os pobres.
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Eu fazia uma ideia do custo da roupa em Itália, dado que alguns acidentes a bordo tinham-se danificado um par de calças e um casaco já coçado. Mais por curiosidade do que pelo desejo de possuir um casaco cintado e umas calças sem dobras, fui a uma praça comercial, para me informar.
Um simples casaco ter-me-ia custado 13 000 liras; um par de calças 7000; um par de sapatos de qualidade inferior 6000. Somando o resto dos artigos -meias, camisa, roupa interior, lenço de bolso e uma gravata-teria gasto mais que o equivalente a um mês de salário. Um sobretudo de lã artificial e outra muda de roupa interior custaria ao nosso pequeno funcionário outro mês de salário. No entanto, ele só possui um fato para usar durante trezentos dias de trabalho.
«Não pode ser», dirá você. E verdade que não pode ser. Mas hoje em dia em Itália é assim que se passa com centenas de milhares de empregados de escritório. E feito através de uma instituição benemérita chamada cambiale. A cambiale é, na realidade, uma nota promissória. Sempre que eu ia a uma pequena filial do Banco de Nápoles para rebater um cheque ou sacar sobre a minha carta de crédito, via dúzias de pessoas, homens e mulheres, assinando ou resgatando esses impiedosos pequenos documentos.
Suponhamos que um pequeno funcionário necessita de um fato novo. Assina uma nota promissória que se vencerá dali a dois meses. Sendo a multa pela falta de pagamento, a confiscação de bens e uma visita à questura7, ele aperta o cinto e economiza, vivendo um tormento diário para poder cumprir o pagamento na data devida. Se houver doença em casa ou se um filho precisar de roupas ou livros escolares, assina mais e mais cambiali, acumulando dívidas que jamais poderá saldar.
A sua ascensão na vida não lhe trará qualquer benefício. Pelo contrário, estará em piores condições que os trabalhadores da bassi que, pelo menos, conseguem comer e nada têm a perder com os caprichos de um funcionário superior ou a maldade de um colega rival.
A voz de Peppino interrompeu a linha dos meus pensamentos.

- Não estás a comer, Mauro. O seu próprio prato estava vazio e bebia com lentidão o pouco vinho que lhe restava. Mal toquei no meu prato. Apasta estava fria e mole e só de vê-la me agoniava. Encolhi os ombros e afastei o prato, bebendo o vinho de um só trago.
- Não tenho fome, Peppino. Já chega por esta noite. Vamos embora.
Levantámo-nos, aproximámo-nos do balcão e, enquanto Peppino pagava a conta, fiquei à entrada, olhando o beco apinhado de gente. Os vendedores continuavam a apregoar as suas mercadorias, apesar de já serem 11 horas. Em voz lamentosa, a pobre mulher continuava a pedir esmolas e os rapazes continuavam a jogar à bola por entre as padiolas.
Subitamente, como que obedecendo a um sinal, pararam e desceram apressadamente até ao fim do beco. Só um deles ficou. Observei-o e vi-o aproximar-se e parar junto da pedinte. Então, como um único movimento, baixou-se, pegou no miserável montículo de esmolas e fugiu, correndo como o vento, entre as padiolas e em direcção ao emaranhado de passagens no extremo da rua.
A velha gemeu e os vendedores gritaram, enquanto eu continuava à porta, doente de indignação e desgosto. A bassi de Nápoles é uma selva, onde só os fortes e os manhosos ou os que possuam pernas velozes podem sobreviver.
Peppino pôs-me a mão no braço e afastou-me.
-Scugnizzi, Mauro. Os garotos de Nápoles. Eles, também, têm de viver. Vamos embora!
Remexi nos meus bolsos e encontrei uma nota de 1000 liras, que coloquei na mão da velha que continuava a choramingar. Arrebatou-a e escondeu-a dentro dos trapos que cobriam o seu peito. Peppino e eu afastámo-nos sobre a lama, sujidade e restos de legumes apodrecidos. | A voz da pedinte perseguiu-nos como uma maldição.
7 Residência do questor, juiz criminal entre os Romanos. (N. da T.)
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Durante a minha estada em Nápoles, ia todas as manhãs até um pequeno parque, que ficava no topo da Via Santa Teresa. Ali, sentado num banco de pedra, separava as minhas anotações, factos e números que tinha coligido no dia anterior. Factos havia-os muitos. Os números eram um problema diferente. As estatísticas oficiais italianas são muitas vezes falsas e sempre duvidosas. Este país, para sobreviver, depende da continuidade da ajuda americana. O governo de Roma tem de submeter regularmente um cálculo ao departamento do Estado e as suas contas são sempre cozinhadas.
Aqui, no Sul, existem vinte razões extras para esse cozinhado. Neste capítulo, espero esclarecer algumas delas. Por exemplo, número de empregos. As estatísticas oficiais revelam que só em Nápoles existem
151 000 desempregados. Depois de semanas de investigações, cheguei à conclusão de que aquele número é superior a 200000. A razão? Os números oficiais não tomam em consideração os trabalhadores casuais a temporários ou os jovens abaixo dos 18 anos, muitos dos quais deixaram de estudar antes dos 12 anos, tendo todos eles que contribuir, de uma maneira ou de outra, para o sustento da família. Pior do que isso, se um homem possuir uma carteira profissional, habilitando-o como barbeiro ou fotógrafo de rua ou oficial de carpinteiro, iporiiesse facto, será considerado como empregado. Só poderá obter subsídio de desemprego se apresentar provas concretas de indigência absoluta e não poderá, obviamente, ser incluído no número de desempregados.
Se um rapaz deixar a escola - se alguma vez a tiver frequentado - começa a trabalhar aos 10 ou 11 anos de idade. Receberá entre 300 a 400 liras por dia, trabalhando na qualidade de menor sem qualificação profissional, e antes de chegar aos 18, é despedido e atirado de novo para o mercado de trabalho, meio treinado e sem hipóteses para o futuro.

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Os números sobre a educação também revelam algo de interessante. A lei italiana prescreve a frequência escolar até à idade de 16 anos. No entanto, existem em Nápoles 50 000 crianças que não têm a mínima hipótese de obterem qualquer espécie de educação, visto não existirem nem escolas nem professores suficientes.
50 000 analfabetos por um ano numa cidade europeia é um quadro horripilante. Mas os factos reais são ainda piores. Existem tão poucas escolas em Nápoles que, mesmo aqueles que frequentam as classes primárias, só o podem fazer por duas ou três horas diárias. Em algumas zonas, a frequência é apenas de três horas diárias, em dias alternados.
Consequentemente, é impossível obrigar à frequência escolar e em todas as ruas e becos de Nápoles, poderão ver-se crianças de idade escolar a correr livres, esfarrapadas, sujas, sem vigilância, ou obrigadas a trabalhar em lojas e oficinas, >ara aumentar, por uma ninharia diária, os proventos da família.
Há outras estatísticas, também bastante alarmantes pelo que revelam, mas absolutamente horripilantes pelo que escondem.
Segundo as estatísticas oficiais, existem 7000 famílias napolitanas que vivem em barracas ou tugúrios (baracche ou tuguri). Estas barracas são construídas em locais de prédios >ombardeados, nas estruturas de apartamentos demolidos ou mesmo em grutas nas rochas. Se se calcular as famílias que vivem em barracas, segundo a escala conservadora napolitana de oito por peça, obter-se-á o número de 56 000 pessoas, vivendo em condições idênticas às das piores cidades do oriente.
Eu estive lá. Eu vi. Durante três noites não fiz outra coisa se não percorrer as barracas, na companhia de Peppino. Vi quinze pessoas numa cabana, dormindo sob cobertores, num chão de terra batida. Os homens não conseguiam trabalho, de modo que passavam os dias a apanhar beatas do chão, para as vender às fábricas clandestinas, por 1000 liras o quilograma. Tente calcular quantas beatas repisadas são necessárias para perfazer 1 km de tabaco. O resultado surpreendê-lo-á!
De noite, as mulheres saem e vendem-se nas ruas, enquanto as crianças deambulam pela Piazza Mercato à procura
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de comida. Segundo as estatísticas, vivem assim 56 000 pessoas.
Mas os que vivem dez num só quarto nos becos da bassi, não estão incluídos. Esses possuem lares com luz e, por vezes, água. Não estão aptos ajuntar-se às fileiras dos habitantes de barracas.
Números! Números! Números! Como se podem extrair números da litania monótona que são as misérias de Nápoles? Sentei-me no pequeno banco de pedra, fumando um cigarro de contrabando e lendo o parecer do ministro do Orçamento, Adone Zoli, de Roma. A data do parecer era de 23 de Março de
1956. O ministro Zoli estava optimista. O ministro Zoli via progressos significativos na economia italiana.
O rendimento bruto nacional tinha subido 7,2%. Mas em Nápoles, 31 000 trabalhadores tinham sido despedidos durante o Inverno.
Os empreendimentos privados aumentaram os seus rendimentos em 8,5%. Mas em Nápoles, um trabalhador não qualificado podia considerar-se feliz se ganhasse 500 liras por dia.
A produção agrícola estava 22,4% acima dos níveis atingidos antes da guerra, e o custo de vida tinha subido apenas 3%. Mas o azeite de oliveira, parte da dieta básica desta gente, custava 900 liras o litro, uma subida de 50% e os legumes e frutas custavam quase o dobro do preço do ano anterior.
Números! Números! Números! Eram falsas as malfadadas estatísticas e revelavam menos sobre o estado desta cidade do que eu podia ver com os meus próprios olhos.
Enfiei as notas no bolso do casaco, deixei o ministro Zoli sobre o banco de pedra e parti para a minha visita diária à cidade.
Tinha um encontro marcado para esta manhã-beber café na Galleria com um homem que tinha uma história para me contar. Pedi a uns amigos informações sobre ele. Era honesto e respeitado. E mesmo bem conhecido por muitos visitantes que vêm a Nápoles e às ilhas luminosas e locais turísticos ao redor da península sorrentina. Dizer mais do que isto, seria indiscreto e revelaria falta de confiança.
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Enquanto estávamos sentados a uma mesa de vime, entre os patrocinadores da galeria, que gracejavam e mexericavam, ele contou-me a sua história. Dizia respeito às transacções de uma agência do governo italiano, por intermédio da qual são canalizados fundos americanos e subvenções governamentais, para apoio da economia do empobrecido Sul. O seu objectivo é providenciar capital de risco aos investidores italianos que estejam dispostos a realizar os seus projectos naquela zona, assim proporcionando trabalho aos milhares de desempregados do Mezzogiorno. Até aqui, tudo bem.
O meu informador era um investidor. Era dono e gerente de uma pensione de 1 .a classe num local turístico e queria construir um restaurante onde pudesse empregar muitos dos residentes locais e atrair mais turistas para a área. Também este era um projecto razoável. A construção proporcionaria emprego aos artesãos locais e o restaurante empregaria mais pessoal. Mais turistas viriam, o que significaria mais comércio para os lojistas e agricultores locais.
Porém, antes de apresentar o pedido formal para o empréstimo, foi a Roma discutir o projecto com os funcionários da agência. A reacção deles foi encorajante. Devia apresentar o requerimento. Podia contar com uma resposta favorável.
Ebbenesii Fez entrega do requerimento. Na devida altura, apareceram um perito financeiro e um engenheiro de construção civil. Analisaram os planos com cuidado meticuloso. Tudo bem. Prometeram apresentar um parecer favorável. O resto era uma questão de rotina.
Um mês mais tarde, chegou o Sr. X.
O Sr. X era um homem grande, suave e cordial. Tinha pronúncia romana e conduzia um automóvel Isotta do último modelo. Tinha vindo do Sul para gozar o sol. Gostaria de alugar um quarto sobre a baía. Conseguiu-o. Ficou três dias e, no terceiro dia, pediu o favor de uma entrevista ao meu amigo investidor.
Sentaram-se ambos no escritório privativo daapensione e o Sr. X pôs as cartas na mesa. Disse que estava associado à agência.
« Pois bem! (N. da T.)
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Não oficialmente, como o meu amigo compreenderia, mas na qualidade de conselheiro fiscal.
Com alegria, o meu amigo inclinou a cabeça, em sinal de compreensão. Até ali, os seus contactos com a agência tinham sido mais que cordiais.
O Sr. X também aquiesceu. A agência estava ansiosa por fazer tudo o que pudesse para apoiar os investidores naquela área. Era a sua função. Contudo...
- Contudo?
- Contudo, disse o Sr. X, tinham recebido muitos pedidos para o fundo e existiam muitos interesses em conflito. A fim de se despachar o requerimento e conseguir que os fundos fossem entregues a tempo da construção ficar pronta até à temporada seguinte, seria necessário um pequeno...
Dizendo isto, o Sr. X juntou o polegar à ponta do dedo, ao velho estilo arrogante dos napolitanos.
- Quanto? - perguntou o meu amigo, tensamente.
- 10% do montante do empréstimo, pagável em dinheiro, antecipadamente.
O meu amigo ficou espantado. Era um napolitano, um hoteleiro a quem explorar. Compreendia os refinamentos da extorsão e da fraude mas, mesmo assim, isto era demais. Fez notar que a esta taxa, o dinheiro custar-lhe-ia 17% - a taxa bancária usual. A única vantagem dos empréstimos da agência, era a baixa taxa de juro sobre o capital de risco.
O Sr. X encolheu os ombros. Se o meu amigo não conseguisse o empréstimo, não poderia construir o restaurante. Claro que teria de decidir. O meu amigo apresentou uma objecção óbvia. Poderia pagar os 10% e nunca ver o empréstimo. De novo, o Sr. X encolheu os ombros. Claro que o risco existia, mas nestes assuntos havia necessidade de fiducia - confiança mútua. Impossível negociar sem fiducia, non è vero?
Infeliz, o nosso investidor aquiesceu. De qualquer modo, parecia-lhe impossível que o negócio se realizasse. Decidiu ganhar tempo. O Sr. X ficou feliz com isso. O tempo estava bom. Ficaria mais um dia ou até dois dias. Entretanto deter-se-ia visitando Capri. E foi o que fez.
Na sua ausência, o meu amigo procurou aconselhar-se com os seus conhecidos-banqueiros, advogados e funcionários do distrito. Todos o aconselharam a não pagar. Note-se, não por
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um prurido moral, mas porque corria o risco de perder o seu dinheiro. Quanto lhe perguntei porque, por exemplo, não concordara com a proposta do Sr. X, pagando-lhe a comissão e depois denunciando-o à polícia, encolheu os ombros. Eu não podia compreender como as coisas se passavam em Itália. Podia acontecer que o Sr. X fosse de facto um representante da agência e se fosse preso, nunca mais o meu amigo conseguiria obter cimento, pedra e materiais de construção. Capisce?
Compreendi. Este era apenas outro aspecto da corrupção da vida comercial e política da Itália actual. Além disso, eu queria ouvir o resto da história. Seria interessante.
Quando o meu amigo recusou fazer o pagamento, o Sr. X sorriu complacentemente, pagou a conta e saiu. Depois dele ter partido, o nosso investidor continuou as suas indagações junto do mercado de capitais. Claro que podia levantar o dinheiro, mas de acordo com o sistema de descontos vigente, isso custar-lhe-ia até 17%, mesmo no Banco di Napoli. Estava, pois, bloqueado.
Três meses mais tarde, o Sr. X regressou, com o mesmo cartande e o mesmo sorriso largo. A. sua pergunta inicial tinha um sabor napolitano, não obstante a pronúncia romana.
- Já pensou no assunto?
- Sim.
-Então, por que não paga como qualquer pessoa razoável e acaba com isso? Asseguro-lhe que obterá o dinheiro dentro de um mês.
- Não.
Até mesmo um dono de restaurante provinciano pode ter a sua dose de má-fé.
O Sr. X sorriu e foi-se embora. O meu amigo tornou a escrever à agência insistindo pelo empréstimo.
Não obteve resposta.
Quando construiu o seu restaurante, foi com fundos particulares obtidos de um velho amigo de Salerno. A agência, sem dúvida, estaria a aplicar o dinheiro em causas mais nobres como, por exemplo, ajudando as 7000 famílias que apodreciam nas barracas ou as 50 000 crianças que não podiam frequentar as escolas...
Porém, quero ser justo. Em qualquer país do mundo, podem
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ser ouvidas histórias como esta. Experimente fiscalizar o seu informador e a veracidade das suas informações. Tente segui-lo através dos competentes departamentos e encontrar-se-á atolado num pântano de declarações contraditórias e documentação equívoca. Em Itália, contudo, essas histórias proliferam como anedotas de bar. São um sintoma do clima social. Revelam uma profunda desconfiança da administração pública. Geram cinismo e abrem caminho a toda a espécie de corrupção em lugares altos e baixos. O informador pago e o intermediário dos 10%, tornam-se personagens capitais na comédia política e a sua sujidade passa para as mãos de administradores honestos.
Para o caso desta parecer uma observação tendenciosa, transcrevo um pós-escrito de um ex-ministro italiano sobre os movimentos de uma instituição governamental, cujo nome oficial é Casa per il Mezzogiorno - literalmente fundo para o Sul. Pronunciou-o num congresso do Clube dos Rotários, em Roma, no dia 8 de Abril de 1956.
Após um estudo minucioso sobre o destino dessas centenas de milhões de fundos, só existe uma conclusão possível: a Casa dei Mezzogiorno é, na realidade, a Cassa dei Settentrione.
O sabor da piada perde-se com a tradução, mas o seu sentido é bastante elucidativo. A Casa foi estabelecida com o objectivo de financiar o debilitado Sul. Os seus fundos estão a ser desviados para financiamentos industriais no Norte.
Quantos deles? Segundo o ministro Corbino-que deve saber cerca de 70%.
Sentado ali na azáfama poeirenta da Galleria Umberto, bebendo o meu café amargo, vendo as raparigas passar e os desgastados pequenos comerciantes a olhar para as montras repletas de objectos de arte que ninguém queria comprar, fui atacado por uma fúria desesperante. Estava furioso com a injustiça e a corrupção. Estava furioso com o meu amigo. Estava furioso comigo mesmo por me ter envolvido nos assuntos deste velho país sem esperança e corroído pelos vermes, onde os homens se compravam e as mulheres se vendiam e as crianças estavam condenadas, desde o momento em que eram concebidas.
As crianças! Não eram meus filhos. Não eram as crianças do meu país. Não eram as crianças da América. Pertenciam a

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estes mesmos italianos meridionais que entre si se trapaceavam, se extorquiam e oprimiam e que fechavam os seus corações e as suas carteiras ao grito que vinha dos escuros abismos da bassi.
São um povo católico como eu; contudo, as suas éticas sociais são tão pagãs como eram as de Pompeia e da Roma de Tibério. Os escravos foram alforriados há séculos atrás. Mas um homem continua a ser escravo se for forçado a passar fome, a viver com medo dos caprichos de um patrão ou de um inferior, sem nenhuma esperança de poder compartilhar o fruto do seu trabalho ou de melhorar a vida dos seus filhos.
Então, uma verdade assustadora começou a alvorecer em mim.
Esta pobreza, esta desesperança, este medo corrupto são em parte uma relíquia histórica, em parte uma condição económica e, em maior parte, uma coisa calculada e organizada.
A riqueza da Itália - e há riqueza na Itália, não duvidem -está concentrada em muito poucas mãos: nas mãos da aristocracia corrupta de Roma, nas mãos das grandes famílias industriais do Norte, nas mãos de gente como a família Lauro, de Nápoles.
O principal objectivo desta gente é preservar a sua riqueza, aumentá-la e depois, tanto quanto possível, aplicá-la no estrangeiro, em investimentos seguros. O inquérito Kefauver revelou que grandes somas de fundos italianos estavam depositadas em bancos americanos. As investigações que fiz em Nápoles revelaram, pelo menos, uma das maneiras como estes fundos eram enviados para fora do país, num desafio à lei e a todos os princípios de justiça social.
Para essas pessoas, uma situação de desemprego permanente, torna-se vantajosa. Mantém baixos os custos laborais e impede a agitação por melhoria de condições. Uma área permanentemente debilitada é uma fonte de negociações constantes com as potências ocidentais, sobretudo com a América, cujo receio do comunismo europeu a torna particularmente vulnerável a esses assaltos anuais aos seus bolsos. Os fundos americanos que entram anualmente em Itália asseguram aos financiadores italianos custos laborais baixos, mas, pelo menos no Sul, uma parte desse dinheiro chega às pessoas a quem se destinava ajudar os pobres, os sem trabalho, as crianças.
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Há um ditado no Sul que diz que o dinheiro americano só tem uma rota - para dentro de Itália e para fora dela, de regresso ao abrigo monetário dos bancos americanos.
Este medo do comunismo é também utilizado de outras formas. Quando uma voz se levanta contra a corrupção política e injustiça social, o orador é classificado de comunista e corre o risco de demissão. A enunciação dos mais simples princípios democráticos, que são aceites como parte integrante da vida de todos os dias, na Austrália e América, levanta uivos de «reacção e «marxismo, por parte de uma media, controlada e partidária.
Aqui no Sul, a culpa não é só dos industriais e dos políticos como também da própria Igreja. A educação eclesiástica está um século atrasada. O ensino seminário é irreal e reaccionário e as constantes proclamações de quatro papas ainda não penetraram nas poeirentas salas de estudo do Mezzogiorno. Homens como Don Gnocchi e o padre Borrelli são fenómenos quase miraculosos e as suas vidas são batalhas diárias pela obtenção de fundos, incentivos e apoio sistemático por parte da hierarquia e autoridades civis. E a estes homens e a outros como eles, que a ajuda devia ser dada, pois só por seu intermédio, ela chegará às pessoas a quem se destina.
Disse adeus ao meu pequeno restaurante e deixei-o, lutando ainda com os seus próprios problemas, entre os regateadores da Galleria. A Via Roma estava apinhada de gente e o trânsito era um horror de gritaria. Nesta cidade que parecia um formigueiro alastrante, senti-me como um pequeno Diógenes à procura de um homem honesto. Senti pena do velho filósofo. Tinha muito que procurar.
Durante as semanas que gastei em investigações para este livro, ouvi muitas histórias de fraude e corrupção. As histórias em si são menos importantes do que o clima que as gera. Existe fraude em todos os países. Brota esporadicamente como borbulhas na Primavera; mas a saúde da consistência política não fica seriamente afectada.
Aqui na Itália, o caso é diferente. A doença espalha-se. Toda a sociedade fica contaminada. Todos falam dela, mas ninguém
1 Dono de restaurante. (N. da T.)
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ainda encontrou cura para a mesma. A vida social e comercial na Itália é, toda ela, uma gigantesca fraude, na qual a confiança recíproca e o esforço desinteressado se tornaram impossíveis para todos excepto os heróis.
^1 Entre os bons amigos que fiz em Itália, estão dois jornalistas de Castellamare. Castellamare é uma cidade industrial com cerca de 60 000 habitantes. Situa-se a meio caminho entre Nápoles e a ponta da península sorrentina, sob o pico gigantesco do monte Faito. Existem aqui 8000 desempregados, devido ao facto dos estaleiros navais estarem a funcionar a meio tempo e a fábrica de enlatados proporcionar apenas trabalho temporário. Em alguns sítios, as condições de vida são tão más como as de qualquer barraca de Nápoles. Os doisjornalistas levaram-me a dar uma volta em visita de inspecção. Gastaram comigo horas do seu tempo, recolhendo factos, avaliando as minhas primeiras impressões e dando explicações sobre a actuação complexa do governo e da indústria locais. Sempre que eu estava em Sorrento, eles vinham à minha casa e falávamos até à 1 hora da madrugada. Não só estavam bem informados, como conferiam habilmente todos os factos e conclusões apurados por mim.
Constatei o seguinte: era impossível discutir com eles ou com qualquer outro italiano, a mais simples situação económica, sem que fizessem constantes referências a partidos políticos e correntes políticas opostas. Surpreendia-os ouvir-me dizer que não tinha qualquer intenção de incluir neste livro um debate sobre a política multipartidária da Itália. Diziam eles que o único modo de se concretizar algo na Itália era através da fraude e influência política. Quando lhes fiz notar que o único objectivo deste livro era provar o que um só homem pode fazer por meio da fé, esperança e caridade e nenhuma política, encolheram os ombros e sorriram, inquietos. Como muitos intelectuais italianos, eram violentamente anticlericais e achavam que nenhum bem podia vir de Nazaré. Tentei outra jogada. Contei-lhe como, na minha cidade na^Htal, os jovens da Câmara de Comércio Juvenil - homens de todos os credos e partidos - tinham construído com o seu próprio dinheiro e trabalho de fim de semana, um lar para cinquenta

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idosos, o qual se comprometeram a manter sempre em funcionamento.
Os meus amigos jornalistas concordaram que era uma boa obra, uma obra para além das garras da política. Mas aqui na Itália, essa obra seria impossível.
Isso eu não estava disposto a aceitar. O que seria preciso fazer primeiro? Terreno. Seria possível comprar um lote de terreno apropriado, em Castillam ovaPara morar duzentos cidadãos de Castellamare que estivessem dispostos a doar 10 000 liras cada um (menos de 20 dólares?) Seria possível, sim. Como havia tanto desemprego em Castellamare, não seria possível achar trabalho voluntário para ajudar na escavação dos alicerces, picar pedra e o resto?
Não. Isso seria impossível. Os organizadores seriam classificados de revolucionários e de influência perigosa. As suas carreiras ficariam arruinadas e perderiam os empregos.
Isto era demais para se engolir. Trabalho voluntário para melhoria social, ajuda pessoal para proporcionar um esquema de habitação para os velhos e as crianças, eram os passos mais elementares para a reforma social.
- D’accordo! - concordaram os meus dois amigos. Em vez de se gastarem milhões de palavras em 142 jornais diários acerca do que o governo ou os partidos deixaram de fazer, não seria melhor fazer uma demonstração prática do que poderia ser feito com boa vontade e coragem? De novo, estavam calorosamente d’accordo. Excepto que se o fizessem, os meus amigos, provavelmente, perderiam os empregos, um como correspondente e outro como repórter de um jornal local. Possivelmente, seriam até presos e acusados de perturbação à paz, como o tinha sido Danilo Dolci. E a casa nunca seria construída.
Estava chocado, mas ainda não derrotado. Fiz notar que cinco anos antes em Nápoles, o padre Borrelli tinha iniciado do nada-uma instituição para o recolhimento de crianças abandonadas nas ruas. Frisei que o único objectivo deste livro era o de descrever as circunstâncias que originaram a necessidade e o esforço heróico de um só homem para lhes fazer face. Se Borrelli o tinha conseguido, porque não o conseguiriam eles?
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Sorriram. Um deles fez notar que Borrelli era um padre, o que tornava a coisa mais simples. Ele não podia perder o emprego, tinha que se sujeitar a regras mas, pelo menos, não passaria fome nunca. O outro, com um gesto, refutou este argumento. O Mauro tinha razão. Borrelli tinha começado do nada e tinha construído aquela obra. Tinha feito muito pelos scugnizzi. Era um homem excepcional e um padre extraordinário. Mas mesmo agora, passados cinco anos, com a aprovação da Igreja e dádivas esporádicas das autoridades governamentais, continuava a vender ferro velho e roupa usada para poder alimentar os seus rapazes!
Não havia resposta para isto, eu sabia-o. Tinha visto com os meus próprios olhos.
Dez minutos mais tarde, os meus amigos foram para casa e eu para a cama. E a casa para os pobres de Castellamare parecia tão remota e fantástica, como o Brasil ou as ilhas Douradas das Hespérides.
Recebi outra visita, num dia cheio de sol, quando regressei a Sorrento para coligir as pilhas de notas que tinha juntado e para lavar o sujo de Nápoles da pele. O seu nome era Don Arnaldo. Era padre na diocese de Nápoles. Ele, também era escritor, escritor e filósofo político. O seu último trabalho sobre a influência de Maquiavel na política italiana, tinha causado furor nos círculos eruditos da Europa.
Don Arnaldo também tinha sido professor - num dos seminários que só recebem um número restrito de alunos, juntamente com os aprendizes do sacerdócio. Alguns anos passados em salas de estudo húmidas e sem aquecimento, tinham-no deixado doente de asma e ataques periódicos de bronquite. Disse-me que tinha 55 anos de idade, mas parecia mais velho.
Sentámo-nos ao sol, no terraço contíguo ao meu estúdio, olhando para leste das montanhas até à orla da floresta do Capo di Sorrento. Bebemos cerveja alemã e fumámos cigarros ingleses. Falámos sobre as escavações de Castellamare e os templos gregos de Paestum e sobre as glórias passadas da república do Amali.
Depois falámos sobre a Igreja.

- Nós percebemos a diferença - disse Don Arnaldo, em. tom académico, cauteloso. - Nós percebemos a diferença que existe entre a Igreja e os seus membros: A Igreja, que é o corpo místico de Cristo, o receptáculo da verdade, a fonte da graça; e os membros da Igreja, sacerdotes e leigos que usam, bem ou mal, essa verdade ou graça.
Concordei com a distinção entre os dois. De um ponto de vista filosófico, a teoria era sã. A justiça não pode ser confundida com os homens que a administram. A verdade é sempre verdade, não obstante a perversão dos que a apregoam.
A Igreja Católica em Itália reconhece a mesma autoridade e a mesma substância doutrinal que a Igreja Católica na América, Austrália ou Argentina. Oferece a mesma latitude em casos de definição dúbia, tanto com respeito à fé como à prática. Essa é a teoria. Na prática...?
-Na prática-disse Don Arnaldo, com desgosto. -Admito que a situação seja diferente. Há cem anos, a Igreja italiana obrigou-se a usar de um expediente, uma clivagem total e absoluta da vida política e social deste país. Abandonou as escolas, o foro e a legislatura. Aceitou uma dicotomia que, na realidade, é uma heresia, que a vida religiosa é uma coisa e a vida social outra. Só existe uma vida, a vida humana em todos os seus aspectos. O homem é uma criatura de origem e destino divinos. Todas as circunstâncias da sua vida, pois giram dentro da atmosfera da Igreja. Esta é a doutrina afirmada e reafirmada por todos os pontífices desde Leão XIII, mas a sua prática só agora começa a ser aceite pelo corpo da Igreja, na Itália. Aqui, no Sul, a aceitação tem sido a mais lenta de todas.
- Porquê?
- Porque a Igreja do Sul ficou ligada aos governantes de Nápoles: Espanhóis, Bourbons, a Casa de Sabóia, uns após outros. Os bispos do Mezzogiorno transformaram-se em objectos políticos. Por natureza, os prelados eram conservadores, aceitando a ordem social como coisa fixa e imutável. Presentemente, ainda carregamos às costas o peso desses tempos atribulados. Um novo espírito começa a germinar, acredite-me, mas é como uma planta num solo velho e hostil, crescendo por entre as pedras da história. Vai levar anos até que cresça livremente, à luz do sol.
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Fiquei furioso e ataquei-o. Não tinha o direito de o fazer, pois ele era um homem bom e sábio e gentil também, e é muitos anos mais velho do que eu e sabe muito mais e está mais perto de Deus.
Perguntei-lhe o que deviam as pessoas fazer, enquanto os seus vagarosos pastores se reformavam. Falei-lhe dos frades poeirentos e das irmãs de caridade pacientes que andavam pelas ruas a pedir esmolas para sustentar os seus órfãos e os seus doentes, enquanto católicos ricos fechavam os seus corações e as suas bolsas, sem que uma palavra de censura lhes fosse lançada do púlpito.
Perguntei-lhe como é que os patrões católicos podiam pagar salários de fome aos seus trabalhadores e despedi-los, sem aviso prévio, sem que se ouvissem os protestos dos prelados do Sul. Perguntei-lhe como é que a Igreja de Nápoles podia tolerar a promiscuidade da bassi, ao mesmo tempo que se recusava a pregar o método Ogino para controlo da natalidade, que é autorizado pela Igreja. Falei sobre os rapazes de cara macilenta que estavam a ser treinados para o sacerdócio no seminário de Sorrento, instruídos segundo a filologia obsoleta do século XIX, atulhados de clichés de piedade, separados do mundo, que um dia teriam de ensinar a reformar.
Tudo isto e mais eu lhe atirei à cara, até a minha cólera se esvanecer. Depois, sentido-me envergonhado, pedi-lhe desculpa. Ofereci-lhe mais um copo de vinho e aguardei as suas respostas.
Para minha surpresa, ele concordou comigo.
-Meu amigo, tudo o que você disse, é verdade, mesmo que faça pouca justiça àqueles homens activos e esclarecidos, que estão a tentar mudar este estado de coisas. E não faz nenhuma justiça aos muitos que, ao longo dos anos, construíram orfanatos, lares e refúgios, os quais são, mesmo agora, tudo o que esta pobre cidade tem para oferecer como caridade e refúgio. A Igreja no Sul tem cometido muitos erros, mas também fez muito bem e sem ela esta gente ter-se-ia afundado muito mais na miséria, do que aquela que agora suporta.
Concordei, baixando a cabeça. Isso também era óbvio. A Igreja, apesar de todos os seus defeitos, é tudo o que resta aos necessitados de Nápoles. Os pobres procuram-na pedindo ajuda, divertimentos e conforto para o vazio das suas vidas. A
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Igreja deu muito. Se não deu mais, foi porque os seus membros são apenas humanos, carregados de fragilidades e oprimidos como o povo de Nápoles, com os pecados dos seus pais históricos.
Don Arnaldo prosseguiu:
-A raiz da questão é a educação. Educação que proporcione um clero esclarecido, que fale com autoridade tanto aos ricos como aos pobres. Educação que produza educadores, bem como apóstolos de reforma e justiça social.
Fiz notar que a própria Igreja controlava a educação clerical. Bispos e arcebispos dirigiam os seus próprios seminários e o treino do seu clero diocesano.
-É verdade-disse Don Arnaldo -, mas muitos deles são velhos. Outros são conservadores e têm medo de mudanças súbitas. Admitem a necessidade de reforma, mas receiam as consequências da indiscrição numa situação de explosão social.
- Então por que não mudar os bispos?
Don Arnaldo inclinou a cabeça para trás e riu.
- Ora, ora, meu amigo! Não é tão ingénuo como parece! Sabe muito bem que existe uma burocracia na Igreja, mais antiga e mais complexa do que a burocracia desta infeliz Itália. Temos um Papa que está muito próximo da santidade, um grande e sábio homem. Mesmo ele só pode trabalhar com os instrumentos que tem à mão. Destruir um edifício não é difícil. Bastará dinamitá-lo. Mas substituí-lo por outro, representa anos de trabalho.
Concordei, sorvendo a minha bebida. Para este, assim como para tantos outros problemas, a resposta não era fácil. Era Primavera no Sul e as pessoas sorriam porque os turistas estavam a chegar e as fábricas de enlatados a funcionar, e haveria mais trabalho e mais dinheiro, e o sol aqueceria os seus corpos mirrados e a humidade secaria nas paredes da bassi.
São um povo paciente. Sofreram muito e vão sofrer mais. Aprenderam a ser gratos pelas mais pequenas mercês. Mas eu perguntava-me, como já tinha perguntado antes centenas de vezes: as crianças - o que será delas?
III
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Sempre que me ouviam discutir este livro, os meus amigos italianos sorriam.
- Nápoles é muito grande - diziam eles -, demasiado grande, demasiado velha e demasiado complexa para que a possas entender.
Não concordei com eles. Ainda não concordo. A maioria deles nunca tinha estado na bassi. Nenhum deles tinha alguma vez passado metade do tempo que eu lá tinha passado. Se assim não fosse, saberiam que ali a vida é muito simples, tão simples como o nascimento, a morte e o acto do amor.
Não há mistérios na bassi, a não ser o mistério de como tanta gente pode permanecer viva com tão pouco. Se passar pelas ruas de dia e de noite, verificará que é fisicamente possível presenciar todos os momentos do ciclo da vida, desde o nascimento até à morte.
Foi isso que eu e Peppino fizemos. Era minha intenção descrever a vida de um rapaz e de uma rapariga, desde a infância até à maturidade, para ver em que é que Nápoles os transformava, porquê e como.
Estou convencido que muitos desses rapazes e raparigas foram concebidos em amor, no grande letto di matrimonio de latão, sob a imagem da Madonna ou do olhar plácido de um santo de gesso. O acto do amor poderá ficar inibido pela proximidade de tanta gente, e as demonstrações de afecto entre casais são raras. Mas existe muito amor na bassi e um grande respeito pelo laço do matrimónio.
Para a mãe, a concepção de um filho é uma alegria. Mais tarde essa alegria transformar-se-á em dor, mas durante os meses de gestação, ela é objecto de interesse e cuidados e o centro de todos os mexericos da rua. Pormenores obstétricos são uma delícia constante para as mulheres napolitanas e os mesmos são embelezados com detalhes legendários, mais antigos que Pompeia.
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Geralmente, a grávida não vai ao médico. Uma só visita custar-lhe-ia, pelo menos, 1000 liras e, além do mais, a gestação e o nascimento são funções muito normais, então porque se preocupar com elas? Trata-se de um modo de pensar primitivo que terá consequências aterradoras mais tarde, mas muitas mulheres napolitanas parecem sobreviver a elas sem grandes danos.
No caso de uma emergência, que requeira os cuidados de um médico, nenhuma mulher do Sul sonharia em ir a uma consulta, sem ser acompanhada. Submeter-se a um exame íntimo, sem a presença de uma mulher mais velha, seria comprometer-se a si própria e ao médico. Mesmo mulheres de bom nascimento e educação seguem este princípio.
Dado que nenhum, médico se exporia demasiado em frente de uma testemunha - especialmente uma mulher - os médicos particulares tendem a emitir uma opinião sibilina, tornando-se quase impossível a difusão de educação ginecológica. O boato e os mexericos espalham-se como fogos florestais nas apinhadas ruas da bassi e qualquer médico que se arvorasse em educador dos seus doentes, encontrar-se-ia na miséria ou sujeito ao vil comércio do casino e das casas de prostituição.
uma rapariga solteira está predisposta a ceder às insistências do seufidanzato, porter receio de o perder. Se ficar grávida, terá de enfrentar a cólera familiar e, possivelmente, uma sova do pai ou do irmão. Se for expulsa de casa, acabará nas ruas. Na maioria das vezes, pois, ela dirige-se a uma nart. Até que o médico seja chamado, já é
demasiado tarde para outra coisa que não a cirurgia drástica. Quando uma criança nasce de um casamento, a mãe é assistida em casa pela parteira local e por meia dúzia de ajudantes pairiadoras, ainda que incapazes. A sua dor é pública e o seu triunfo é caso de satisfação geral. Grupos de mulheres juntam-se à porta, bem como os homens e as crianças, mas os gritos da parturiente são estridentes e dramáticos e até as crianças sabem o que está a acontecer.
A assepsia é primitiva e sempre difícil. A mortalidade é elevada,
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mas a este respeito, assim como em tantas áreas da assistência pública, os números exactos são difíceis de obter.
Quando a criança nasce e a mãe é lavada e deitada na grande cama de latão, as portas abrem-se e a procissão de admiradores começa. Há uma beleza estranha e comovente nesta adoração primitiva. Amãe, pálida e cansada, com a criança ao peito, o pai torcendo as mãos rudes e sorrindo com orgulho nervoso aos cumprimentos dos vizinhos, as crianças dando risadinhas e trepando à cama para ver de perto o bebé, a parteira no meio das mulheres mexeriqueiras, as solteiras a um canto, falando em voz baixa sobre os pormenores esotéricos do nascimento.
Não importa que dentro de poucos anos a criança esteja vadiando e vasculhando entre os rabos de peixe e a fruta podre. Não importa que a mãe, gasta pelos partos e pela pobreza, fique estéril de amor pela sua vasta e desgovernada prole. Por essa altura, ela terá adquirido a dignidade de uma rainha e o respeito de todos os humildes da bassi.
Os bebés napolitanos são alimentados ao peito. O leite de vaca é caro e, por vezes, de pureza duvidosa. Os necessários aditivos são ainda mais caros. Se faltar o leite à mãe, a criança é alimentada por uma ama e, dado que os bebés nascem a todas as horas na bassi, as amas não são difíceis de encontrar.
Para a criança, este tempo de infância é o melhor da sua vida. E acarinhada e embalada e a vida doméstica gira à sua volta. O pior é que isto não vai durar sempre e a criança nunca se lembrará desse período. Talvez seja melhor assim. Lembrar o paraíso perdido nos cortiços de Nápoles, seria uma dor insuportável.
Contudo, a felicidade como a miséria, é uma palavra relativa e a criança de Nápoles tem dela uma parte incompleta. Sente-se aconchegada, alimentada e amada. Mas a sua alimentação é irregular e cedo será vítima de raquitismo ou outras doenças causadas por subalimentação.
Era o fim da tarde, quando Peppino e eu parámos para falar com uma jovem mulher que amamentava um bebé, à entrada de uma meia porta da Viço São Agnello. A cara da criança estava cheia de manchas e de crostas de pelagra. Parei para olhar.
- Pergunta-lhe - disse ao Peppino - se ela sabe o que aquilo é?
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Peppino e a mulher falaram em dialecto por um momento depois Peppino traduziu.
- Mallatia di pelle (mal de pele). Muitas crianças o têm. Pedi que lhe explicasse que a doença era causada por deficiência alimentar e que poderia ser rapidamente tratada com complexo de vitaminas. Peppino sacudiu a cabeça.
- Ela não compreenderia, Mauro. Estás a perder o teu tempo.
- Muito bem, então vamos fazer o seguinte: Vamos até à farmácia comprar um frasco de comprimidos de vitaminas. Voltaremos aqui e tu explicarás à mulher o que precisa de fazer pela criança.
Peppino sorriu, pacientemente, e de novo negou.
- Sabes o que aconteceria, Mauro? Ela guardaria o frasco e escondê-lo-ia com medo de alguma influência nefasta. Quando o marido regressasse a casa entregar-lhe-ia o frasco que ele, por sua vez, levaria ao mercado negro para o vender por um sexto do seu valor. Estarias gastando o teu dinheiro em vão.
Fiquei espantado com tanta ignorância. Peppino baixou-se e pegou num pequeno ornamento que estava pendurado à volta do pescoço do bebé. Era feito de coral vermelho e parecia uma miniatura de chifre de animal.
- Sabes o que é isto, Mauro?
- Apenas um ornamento. Já vi muitos iguais nas lojas turísticas e nas joalharias.
- Não, Mauro. Não é apenas um ornamento. É um amuleto contra o mau olhado. Quem sabe, talvez esta criança um dia esteja a passear, ou talvez até sentada aqui, como está agora nos braços de sua mãe, e apareça de repente um homem, como tu, por exemplo, que tenha mau olhado: malocchio. O bebé poderia ficar cego de repente, o seu estômago poderia azedar-se, as suas mãos e pernas ficar tortas.
-Superstição! A mesma superstição que transforma a homenagem aos santos numa espécie de idolatria.
Peppino sorriu e estendeu as mãos, num gesto de desprezo.
- Certo, Mauro, certo! Mas a superstição é uma doença que não poderás curar com um frasco de vitaminas. Para isso, a educação é necessária.
Educação! Lá voltávamos nós ao assunto. Esclarecimento,
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pessoal e social. Mas existiam em Nápoles 50 000 crianças que não poderiam frequentar a escola e centenas delas nasciam todos os dias. Agora foi a minha vez de encolher os ombros. Tirei um maço de cigarros e ofereci um ao Peppino, e ficámos a observar a jovem mãe, enquanto esta mudava a fralda à criança.
Precisava mesmo do cigarro. A fralda da criança há muito que não era mudada. O pano de algodão estava nojento e quando foi retirado, a criança berrou de dor. O seu traseiro estava assado e cheio de borbulhas. Como pai de família que sou, tenho alguma experiência do assunto. Ia dizer qualquer coisa mais, explicar à mulher que...
-Anda, Mauro! - disse Peppino, puxando-me pela manga e arrastando-me para longe. - Se queres acabar o livro, não poderás dar-te ao luxo de partir o coração logo no primeiro mês. A criança há-de sobreviver e berrará outra vez. E mesmo que assim não seja, não poderás modificar o seu destino nem um pouco.
- Mas é uma coisa tão elementar, apenas limpeza vulgar. Uma criança não pode ser deixada na porcaria que faz, do mesmo modo que um adulto não pode.
-Eu sei, Mauro. Eu sei e tu também sabes. Mas esta gente, não. E até que haja alguém que as ensine, nunca saberão. Gostarias de vir para a bassi e montar cá uma escola?
Era uma pergunta justa e eu tinha que responder com honestidade. Não, não gostaria de vir para cá. Sabia que o meu coração se quebraria ao fim de doze meses. Não teria coragem. Mas a menos que alguém tivesse essa coragem, não havia esperança para a ignorância medieval do Mezzogiorno. Em Nápoles é ruim, mas quando se chega ao Sul, em Puglia, ou às montanhas da Calábria, torna-se uma coisa má e destrutiva.
O programa de reforma agrária recuou dez anos devido à estupidez primitiva dos camponeses e à imprevidência dos reformadores.
Quando as primeiras grandes propriedades foram divididas e cada um dos agricultores instalado no seu próprio terreno, a economia local sofreu um colapso repentino. Em vez do procurador do senhorio ausente, que aparecia oito ou dez vezes por ano, para aconselhar sobre as sementeiras e qual a parcela que devia ser alqueivada e que vacas deviam ser criadas, o camponês dependia agora dele próprio. Possuía terrenos
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mais pequenos e tinha que os cultivar mais economicamente a fim de poder ganhar o seu sustento. Não havia ninguém que lhe explicasse como pulverizar as árvores de frutos ou como utilizar os modernos fertilizantes da América. Ele possuía terreno, mas não tinha arado. Tinha que comprar animais e grão para os alimentar. E em três meses teria um novo senhorio-o merceeiro local que esfregaria as mãos de contente ao dar-lhe mais crédito, embolsando documentos que vinculavam as novas propriedades.
Todo o Sul necessita de educação. É uma região pobre, muito pobre mesmo. Mas se a educação e métodos^odernos podem abrir caminhos paralelos na América, na índia e no Iraque, também o poderão abrir aqui. O problema é encontrar os educadores. Num país onde o bom sucesso de um exame depende, em grande parte, da recomendação do professor muitas vezes pago para isso - há pouca esperança de formar um núcleo bem treinado de professores. À taxa actual dos salários, o professor fica reduzido ao estado de pedagogo de uma escola obscura e o seu coração será esmagado antes de poder entender a sua missão.
Eram horas do almoço e Peppino e eu estávamos ao lado de uma padiola de fruta a mastigar maçãs e a estudar as tabelas dos preços. A questão da alimentação é importante para este estudo das crianças e a melhor maneira de o fazer era através das tabelas de preços dos comerciantes locais.
Os ovos, que são vendidos em todo o lado, mesmo em algumas tabacarias, eram a 480 liras a dúzia. Mesmo segundo os padrões australiano ou britânico, era um preço excessivo quase 6 xelins esterlinos. As bananas, importadas da Somália, custavam 480 liras o quilograma. Ó quilograma das batatas novas era a 100 liras e o dos espinafres - fracos e amargos devido ao rigoroso Inverno - era a 100 liras. As maçãs, farinhentas, custavam 180 liras o quilograma e mesmo as laranjas sorrentinas locais custavam 150 liras.
Observando as mulheres, notei que elas compravam montanhas de bróculos e de espinafres, pouca cebola, alcachofras e, ocasionalmente, cenouras. Compravam pouca fruta e em peças singulares.
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Do outro lado da travessa, na salumeria, a manteiga estava a ser vendida por 600 liras o meio quilograma e um pão por 700 liras. Se se estimar o ganho diário da família de um trabalhador em 500 liras, verificar-se-á que só fica uma pequena margem para equilibrar a alimentação e fortificar as crianças contra doenças causadas por subnutrição.
A carne de qualquer espécie está fora do alcance dos bolsos de um trabalhador - meio quilograma custa mais do que um dia completo de trabalho. Pasta, o alimento básico desta gente, custa 300 liras o quilograma. O sal é monopólio do Estado e custa 120 liras o quilograma. A bebida mais barata é o vinho a 150 liras o litro e desde que traga a sua própria garrafa!
Cozinhar é outro problema quando tem de se satisfazer uma comunidade de dez num só quarto da bassi. Os mais pobres estão sujeitos a ter de cozinhar num lume de carvão ou pedaços de lenha, mas a maioria das famílias possui um fogão de três bocas, alimentado por uma botija de gás. As chamas são fracas e o gás é de qualidade indeterminada, de modo que variar a comida é impossível.
Não admira, pois, que uma dona de casa assoberbada se restrinja à pasta e a molho de tomate e que crianças de 6 e 7 anos sejam do tamanho das de 4 no meu e no seu país.
Acabei a minha maçã e atirei o caroço para um monte de papéis sob uma arcada escura. Assim que o fiz, lembrei-me que mais logo, quando a escuridão chegasse, rapazes e raparigas vasculhariam aquele monte e que, provavelmente, comeriam o caroço que eu tinha rejeitado. Aquele pensamento agoniou-me. De seguida a minha atenção foi atraída por outra cena, bastante comum nas vielas. Uma menina, talvez de 5 ou 6 anos, caminhava, cambaleando, com um saco de pano grosso aos ombros. Com a sua mão livre, segurava uma criancinha, de traseiro nu, com a carita suja e o nariz ranhoso. Aqui, sob os nossos olhos, estavam a segunda e terceira idade das crianças da bassí.
As crianças que ainda não aprenderam a controlar as suas necessidades orgânicas, correm nuas da cintura para baixo, quer esteja calor ou frio. As mães do nosso país, poderá parecer um costume bárbaro, mas perguntem-lhes como poderiam treinar uma criança - ou mesmo mantê-la de fraldas limpas
- num só quarto, sem água corrente e sem retrete. Claro que
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esta higiene primitiva também faz crescer a taxa de mortalidade causada por pneumonia e tuberculose - mas o que representa uma criança a mais ou a menos entre as centenas de milhares que existem em Nápoles?
A pequenita que cuidava do bebé, era ela própria um caso interessante. As suas pernas e braços pareciam palitos de fósforos. O cabelo estava todo emaranhado. Usava um vestido roto de algodão desbotado, sob o qual se viam um par de cuecas cor de rosa, sujas e esfarrapadas. Os pés estavam descalços e a sua pele estava azulada de frio. Eu tinha vestido roupa de lã e uma camisola suplementar sob o meu blusão de marinheiro, mas mesmo assim sentia frio, ao sol fraco da Primavera, que filtrava através das cordas de roupa lavada! Aquela amostra de gente, esfarrapada, devia estar gelada até aos ossos.
Cambaleando pelo caminho, dobrada sob a carga pesada, arrastando a criança esquálida, mais parecia uma velha pequenina. tuquei Peppino. Ele chamou por ela em napolitano, oferecendo-lhe uma maçã. Imediatamente levantou o olhar, mas os seus olhos estavam vazios e não havia qualquer traço de sorriso na sua boca infantil. Peppino levantou a maçã, confirmando a sua oferta.
Por um momento, a criança olhou para ele, num silêncio amargo, depois baixou a cabeça e, a cambalear, seguiu pelo beco abaixo.
Comecei a compreender o que acontecia às crianças da bassi. A medida que mais e mais crianças iam nascendo, as mais velhas ficavam sobrecarregadas a cuidar dos bebés. Enquanto noutros países, as suas irmãs brincavam com bonecas ou davam chazinhos sobre a relva, estas pobrezinhas estavam lavando pratos, esfregando panelas e varrendo os quartos atravancados, com uma vassoura de palha. Não eram mandadas à escola, porque não haviam escolas suficientes e, além disso, para que serviria a instrução a uma rapariga, se a sua única função era coser e cozinhar e parir crianças! Acordavam cedo e iam para a cama a horas fantasticamente tardias. Estive em ruas recônditas à meia-noite e ainda vi crianças a brincar nos pavimentos de pedras. Espreitei para dentro dos quartos de rés-do-chão e vi-as, às 3 horas da madrugada, ainda vestidas, sentadas a dormitar sobre mesas de cozinha, onde os mais velhos se encontravam a conversar.
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Parte da situação era devido à ignorância, parte a um hábito irreflectido, parte à impossibilidade de se manter uma vida ordenada nos quartos superlotados das habitações.
O centro da família é o pai. Ele é o ganha-pão. Regressa a casa do trabalho - se o tiver - às 9 horas da noite. Terá de ser alimentado e um pouco apaparicado pois, geralmente, trabalha doze horas por dia, só com café e uma côdea de pão no estômago. Quando termina de comer são 10,11 horas e as luzes ainda estão acesas e é impossível alguém acomodar-se na grande cama comum, sem que o pai e a mãe estejam prontos. Assim, as crianças ficam a pé até tarde. Se uma ou duas ou três delas se ausentarem, supõe-se logo que estejam a brincar com as outras no pátio próximo ou sob as luzes das barracas dos vendedores.
A sua ausência é uma pequena bênção. Passados uns tempos, torna-se um hábito despercebido. Quando a corrupção da cidade toma conta dessas crianças, já é muito tarde para remediar o mal.
Em relação às raparigas, a corrupção trabalha mais devagar; porém, não menos seguramente. A sua infância passa depressa, quase despercebida. Esses anos são passados num vaivém de deveres domésticos. São mais chegadas às mães. Compreendem que aquela é a vida de uma mulher. Se se riem pouco e se se esquecem de brincar, como as outras raparigas, isso também é normal, e é coisa que não lamentam muito.
É quando chegam à idade espinhosa e insegura da adolescência, que começam os sarilhos. A quente proximidade do leito matrimonial cedo lhes ensina os factos da vida, ao mesmo tempo que a tradição de dignidade da condição feminina as mantém afastadas do contacto com rapazes da sua própria idade, exceptuando os poucos que são admitidos em casa, como possíveis pretendentes, e que deverão guardar sempre um rígido decoro.
Os seus pensamentos começam por se centrar no^casamento com um bom rapaz - um homem que trabalhe. É uma das coisas mais patéticas de se ver nesta gente. Para eles, uma terra boa é aquela que lhes proporcione trabalho e pão. Não acreditaram quando lhes disse que eu vinha de um lugar onde há mais empregos do que empregados.
Em seguida, a promiscuidade da vida familiar começa a


afectar a adolescente. O seu primeiro contacto sexual será provavelmente, com um irmão mais velho. Pode não chegar até ao acto sexual, apesar disso quase sempre acontecer. E a sua única oportunidade de experiência sexual, sem que seja classificada de mulher desonrada.
Tanto o macho como a fêmea ficam inibidos pelas condições anormais da vida em comum e, muitas vezes, o contacto secreto torna-se um hábito. Contudo, mesmo que assim não seja, existe um grande sentimento de culpa, acentuado pela fé católica e este sentimento deculpa tem, por vezes, piores consequências que a experiência sexual longe da família. A fonte fica envenenada. A segurança individual começa a desintegrar-se e o jovem ou a rapariga sentem-se indefesos na selva de bassi. Tudo isto e mais foi-me explicado por Peppino, numa das nossas excursões nocturnas. Tínhamos comido joasía com uma das famílias e íamos a caminho da casa de outra, onde deveria haver uma reunião com música e, possivelmente, um pouco de dança. Encaminhei a conversa para o campo de raparigas e sexo. Francamente, Peppino explicou:
-Considera o meu caso, Mauro. Aprendi com o padre Borrelli de que nada se lucra com uma vida dissoluta ou suja. Mas poderia eu, na minha idade, viver e dormir num quarto com a minha irmã, quando os seus seios se começam a desenvolver e o seu aspecto se torna no de uma mulher? Se eu não devo tocá-la, então terei que procurar outra mulher para me acalmar. Isso significaria as vielas ou o casino. Qualquer destes meios é mau para mim. O outro meio é mau para ela.
- Mas, Peppino, supõe, como deve acontecer muitas vezes, que a tua irmã ou uma rapariga como ela não encontra um bom marido ou um casamento digno. Não tem ela os mesmos desejos que tu?
- Sicuro! Enfaticamente, Peppino concordou. - As nossas mulheres são ardentes, também. Se não puderem casar, então - encolheu os ombros -, é a rua que as espera ou um homem que cuide delas, mesmo que não case com elas, ou então a casa fechada ou a casa dos encontros.
Enquanto falávamos, caminhávamos por uma travessa escura e estreita, que dava para uma pequena praça, na qual estava uma velha igreja espanhola. Mesmo à nossa frente, uma das portas abriu-se e dela saiu uma rapariga. Enquanto permaneceu de pé, banhada por um quadro de luz, e se voltou para dizer adeus, fiquei surpeendido ao notar que estava bem vestida e à moda, num fato cinzento, com sapatos castanhos e meias de nylon. Segurava uma carteira moderna e tinha um casaco de lã, de corte moderno, atirado sobre os ombros. Abrandámos o passo para a deixar passar à nossa frente e perguntei a Peppino:
- Aquela, por exemplo? Ela vive nesta ruela. A sua família - apontei para a porta quando passámos por ela. - A sua família parece ser como outra qualquer. Como pode ela vestir tão bem e sair sozinha a esta hora?
Peppino fez um gesto expressivo.
- Talvez ela seja como o nosso pequeno funcionário. Tem um emprego num clube, restaurante ou hotel, que exige que ela se vista bem. Talvez toda a família trabalhe, pai, irmãos, e podem comprar-lhe vestidos. Talvez ela não seja sequer uma boa rapariga e possua um quarto na cidade onde recebe homens. Talvez ela trabalhe para uma casa d’appuntamento10. Há tantas razões plausíveis. A única maneira de saber a verdade é perguntar-lhe directamente.
Achei que nada havia a lucrar com isso. Disse-lho. Estava mais interessado em obter resposta a outra questão.
- Supõe, Peppino, que ela é uma rapariga que trabalha nas ruas e na casad’appuntamento. Mas continua a viver com a família. O que se passa então com essa tão falada honra de Nápoles, essa preocupação pela virtude das vossas mulheres?
Peppino olhou para mim, inquisitorialmente, como se suspeitasse que eu me estivesse a rir dele. Quando viu que eu estava sério, respondeu:
- Há um momento, Mauro, na vida de qualquer família, quando nem pai nem irmão conseguem controlar uma mulher. Talvez a necessidade seja tanta que eles até fiquem gratos pelo que ela lhes traz, não se incomodando a perguntar-lhe de onde vem. Se se tratasse da tua família, se não tivesses trabalho e vivesses, como os napolitanos dizem «nos ombros da tua filha», terias o direito ou a coragem de lhe perguntar o que ela fazia?
10 Bordel. (N. da T.)
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Concordei que, provavelmente, não o faria. Conheci muitos pais que não conseguem controlar as suas filhas, mesmo com um jagoar e uma mensalidade.
Quem era eu para julgar a moral de Nápoles? Tive a resposta que queria. Tinha seguido o ciclo de vida de uma rapariga das vielas. Essa vida ou levava ao
Casamento, ou a um substituto infeliz. Em qualquer dos casos, havia pouca esperança.
Actualmente, em Itália, existem entre 2 e 3 milhões de raparigas
Vivendo da prostituição. Esse é o número dado pela senadora Lena Merlin, única mulher legisladora que patrocinou a nova lei, que ainda não foi aprovada pela Assembleia e a qual visa fechar os bordéis
Que funcionam com autorização do governo.
A senadora reivindica que Nápoles é um dos três centros mundiais de tráfego de escravatura branca e que as suas operações são conduzidas
por Lucky Luciano, gangster exportado dos Estados Unidos. Era minha intenção incluir neste livro um estudo sobre as operações desse tráfego em Nápoles e no Mezzogiorno. Os factos básicos seriam fáceis de se obter. As casas estavam abertas e a fazer um negócio estrondoso. Qualquer concierge de hotel ou publicitário turístico dar-lhe-á o endereço ou o número de telefone das casas do Vomero, onde trabalham as prostitutas. Mostrar-lhe-iam um conjunto de fotografias e a rapariga escolhida estaria à sua disposição em meia hora. Pelos scugnizzi soube como eles próprios anunciavam as raparigas e as casas, sendo muitas vezes recompensados em espécie. Numa cidade onde as raparigas não podem casar porque os homens não têm emprego, o trabalho dos recrutas é ridiculamente fácil.
Mas quando aprofundei mais a questão, descobri que estava a ser batido em todos os cantos. Na qualidade de investigador independente, fui bloqueado pela polícia e pelas entidades oficiais. Jornalistas italianos informaram-me que eles próprios tinham sido afastados de todos os inquéritos sobre aquele comércio. Havia muitos interesses em jogo, muitas daquelas casas estavam a ser geridas, sob nomes falsos, por cidadãos muito respeitáveis.
Finalmente, um amigo discreto do departamento da polícia, preveniu que sendo eu um investigador particular, sem a protecção de uma organização noticiosa internacional, podia
bem acabar num beco escuro, com a garganta cortada. Nisto podia eu acreditar. Os meus amigos scugnizzi já me tinham feito o mesmo aviso, em termos diferentes. A própria senadora Merlin revelou as ameaças que lhe tinham sido feitas pelos cartéis de droga e prostituição.
Relutantemente, desisti da ideia. Mas tinha aprendido o suficiente para poder acrescentar, com verdade e convicção, este repugnante pós-escrito à história dos garotos de Nápoles.
O governo italiano admite existirem neste país 2 milhões de desempregados. Se tomarmos em consideração os números mais baixos indicados por Lena Merlin, poderemos dizer que existem 2 milhões de prostitutas em casas fechadas, as quais funcionam com autorização do mesmo governo. Os dois factos estão directamente ligados.
Homens pobres não podem casar. Raparigas pobres não podem comer.
Os alcoviteiros de olhos pálidos palitam os dentes à porta dos casinos, beneficiando de ambos.
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IV
Certa noite Peppino sugeriu que fôssemos ao cinema. Estava a passar um bom filme. Chamava-se IlKentuckiano e o actor era um americano famoso chamado Boort Lahncaster.
Muito honestamente, admito que gosto de filmes de western e que posso comer um pacote de pipocas tão contente como uma criança, enquanto índios gritam e os duplos tombam no chão poeirento. Mas Boort Lahncaster, de cabelo comprido e uma pronúncia italiana, era demasiado, mesmo para os meus gostos juvenis. Pedi a Peppino que sugerisse outra distracção: uma rivista, por exemplo, ou mesmo um teatro de marionetes. Abanou a cabeça. Este filme era algo especial. O lugar também era especial - a Sala Roma. Era um dos lugares de encontro dos rapazes da rua e dos que faziam negócio com eles. Queria estudá-los, não queria? Queria saber em que é que Nápoles os transformava e como agiam depois de abandonarem a casa e se juntarem aos scugnizzi? Ebbene! Teria de ir à Sala Roma. Além disso, um dos rapazes de lá era amigo de Peppino. Podia ouvir a história dos seus próprios lábios. Fomos à Sala Roma.
Era como a maioria das salas de cinema napolitanas, um lugar deprimente, com um vestíbulo pouco iluminado e retratos berrantes. Boort Lahncaster lá estava também, completo com peles de camurça e cabeleira postiça e espingarda e um sorriso de lobo. O meu coração caiu aos pés. Peppino sorriu vendo o meu desconforto e foi comprar os bilhetes. Fiquei do lado de fora, vendo passar os frequentadores e os pequenos grupos de rapazes e garotos a desfilar pela calçada.
Muitos deles estavam mal vestidos, como eu, mas outros estavam bem vestidos, ao estilo napolitano, com casacos curtos apertados, calças à boca de sino, gravatas berrantes e sapatos pontiagudos, meticulosamente engraxados.
Estavam bem barbeados e o cabelo brilhava de brilhantina
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e apanhei uma baforada de água de colónia Lavanda juntamente com a profusão de perfumes tão queridos dos barbeiros italianos. Recostei-me à parede e acendi um cigarro, vendo-os passar. .
Falavam muito e em voz alta cantante. Os seus gestos eram largos e estudados. Por vezes, acariciavam as caras dos mais novos ou punham um braço afectuoso à volta dos seus ombros, murmurando em tom confidencial junto das suas bochechas. Quando caminhavam, era com a graça sinuosa e estudada de raparigas novas.
Depois descobri de quem se tratava. Eram osfemmenelle os esquisitos. Poderão ser vistos em todas as grandes cidades do mundo, e em todas elas existem lugares onde se congregam. A Sala Roma era um deles. Compreendi porque Peppino me tinha trazido aqui. Queria que eu visse o produto acabado da pobreza, o sórdido submundo, no qual se processa o comércio das ruas e no qual acabam, final e inevitavelmente, as crianças dos bairros pobres.
O comércio é variado: contrabando, furtos, venda de roupa usada e de óculos de sol alemães, números de telefone dos alcoviteiros, transporte de drogas de uma cidade italiana para outra. Mas a atmosfera é sempre a mesma - prostituição, perversão, dignidade destruída, uma mascarada monstruosa de humanidade podre.
Peppino saiu do vestíbulo e juntou-se a mim. Com o dedo, fez um gesto furtivo em direcção a um dos grupos.
-Aquele ali, é meu amigo. Espera-me aqui. Vou falar com ele primeiro. Isto são horas de tratar de negócios. Não quero estragar nada.
Concordei, resmungando, e vi-o afastar-se. Parecia que uma mudança se tinha operado nele, era como um actor saindo dos bastidores para o palco. Assemelhava-se a um daqueles com quem ia falar. Tinha a mesma atitude de confiança impudente e de conspiração secretiva, que caracteriza oguappo napolitano.
Quando se aproximou do grupo, foi saudado bastante friamente. Só um deles, um jovem magricela, vestido com uma camisa berrante, mostrou alguma cordialidade. Peppino puxou-o de lado e entabulou com ele um diálogo fluente, entremeado de gestos.
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Peppino apontou um dedo na minha direcção. Desviei o olhar, tentando parecer indiferente, mas pelo canto dos olhos vi o outro rapaz a observar-me cuidadosamente. Depois, inclinou a cabeça como que concordando com a proposta de Pepino. Este colocou uma mão no seu ombro e guiou-o até mim; mas ele não estava ainda preparado para vir ter comigo. Olhou para baixo da rua, na direcção oposta. Encostou um dedo ao nariz e teve um olhar astuto. Virou a cabeça em direcção do vestíbulo e esfregou os dedos, no gesto que significava «dinheiro». Peppino concordou e voltou para perto de mim.
- O que significa tudo isto? - perguntei. Peppino explicou.
- O meu amigo está disposto a falar contigo. Mas primeiro tem de se encontrar com alguém - cuspiu, com desprezo -, um pederasta como esses aí. Têm negócios em comum. Qualquer coisa sobre cigarros. Disse que devemos ir ver o filme, que ele depois virá ter connosco à hora que terminar. Nessa altura contar-te-á tudo o que desejas saber. Diz que tem uma boa história para contar. D’accordo?
- D’accordo.
Tive, pois, que gramar o Boort Lahncaster. Seria melhor conformar-me. O filme era maçador e o diálogo em italiano ainda o tornava pior. A sala estava empoeirada e cheia de fumo de cigarro. Ao meu lado estava sentado um sujeito gordo, que ressonava esporadicamente e arrotava a alho. À frente, um jovem com cabelo oleoso acariciava uma rapariga tão grande como uma casa. Durante todo o chato melodrama, Peppino permaneceu fascinado.
Quando viemos cá para fora, os pequenos grupos tinham-se dispersado e um vento frio soprava os papéis ao longo dos passeios. O rapaz da camisa florida estava à nossa espera. Peppino fez as apresentações. Mauro West, da Austrália, e Enzo Malinconico, de Nápoles. Enzo sugeriu que fôssemos para um bar. Eu disse que preferia ir à sua casa. Lançou-me um olhar agudo e, apressadamente, Peppino explicou que o Enzo vivia no apartamento de um amigo. O amigo ficaria aborrecido se fosse importunado àquela hora tardia.
Compreendo uma insinuação tão bem como qualquer outra pessoa. Sugeri uma adega. Enzo sugeriu uma tasca. Tinha fome. Tinha trabalhado até tarde. Ebbene, iríamos a uma tasca.

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Sentámo-nos num canto sossegado. Indiquei que seria eu a pagar e Peppino e Enzo encomendaram pizza. Eu contentei-me com um copo de vinho. Enquanto esperávamos pela pizza, Enzo começou a falar. Enquanto falava, eu observava-o.
Era um rapaz pequeno, de cara estreita, com a tez escura como a de um árabe. O seu cabelo era liso e preto e escovado para trás, rente ao crânio. Trazia um lenço de seda preto debaixo da camisa florida. As mãos eram pequenas e delicadas, mas as unhas estavam quebradas e sujas. Na mão esquerda usava um anel grande de ouro, com um zircão quadrado. Quando não falava, polia o anel na frente da camisa. Peppino disse-me, depois, que ele tinha 16 anos. Os seus olhos, porém, pareciam ter mais de 20 anos.
Peppino perguntou-lhe como tinha corrido o negócio da noite. Enzo desatou a rir e terminou uma torrente de dialecto. Peppino explicou que Enzo tinha urdido uma maravilhosa combinazione.
A outra parte era uma pederasta, na verdade o amigo com quem vivia. Este pederasta era o intermediário de um grupo de contrabandistas. Nessa noite ele tinha trazido um carregamento de três caixas de cigarros americanos King-Size, para serem vendidos por Enzo nas vielas do Mercato.
Cumpridoramente, Enzo tinha partido com as três caixas. Chegado à Piazza Mercato, já tinha vendido as caixas a outro amigo, por 5000 liras. Era abaixo do preço do mercado, mas Enzo não se importou. Todos tinham de obter um pequeno lucro, se não ninguém se interessaria pelo negócio.
Inocentemente, perguntei o que é que o seu amigo pensara do negócio.
Enzo riu de novo e Peppino explicou que era aqui, precisamente, que a «combinação» tinha sido feita.
Enzo tinha voltado para junto do seu amigo pederasta a quem explicou, tremendo de medo, que a polícia o tinha mandado parar e que os cigarros tinham sido confiscados. O amigo ficou zangado, mas não havia nada a fazer. Era um dos riscos daquele comércio.
Até aqui tudo bem. Enzo tinha embolsado 5000 liras. Mas ainda não estava satisfeito. Era um rapaz esperto. Sabia que o pederasta tinha medo da polícia, por muitas razões. De modo que embelezou a história. A polícia tinha-lhe perguntado
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onde tinha adquirido os cigarros. .Respondeu que os tinha comprado na rua a um vendedor. A polícia não ficou satisfeita. Quem a culparia? Tomara nota do nome e do endereço de Henzo. Amanhã teria de comparecer na questura para o interrogatório. O pederasta ficou horrorizado. Queria ter a certeza que Henzo não o implicaria. Henzo não queria inplicá-lo, mas a polícia era rude, e ainda mais rude quando se tratava de um intermediário de contrabandistas. Enzo podia aguentar uma certa dose de maus tratos, mas de novo o gesto familiar-precisaria de uma certa compensação para o problema. O pederasta acabou por lhe dar 20 000 liras.
Resultado líquido até ali - 25 000 liras.
Enzo e Peppino riram-se de novo. Também ri. Eu precisava da história, mas para isso tinha de contribuir com a minha pequena parte de aplausos. Mas ainda havia mais. O pederasta era um sujeito ardente. Precisava de conforto. Quando estava amedrontado, precisava ainda mais. Estes tipos eram como mulheres, Capisce?

Capito! Claro que Enzo estava disposto a confortá-lo, só que naquela noite não, pois sentia-se cansado. Mais do que isso, estava a ficar chateado. Esta ligação com um homem esquisito estava a começar a preocupá-lo. Já não se sentia feliz. Levou outras 10 000 liras para reencontrar a paz de espírito.
Lucro líquido da noite: 35 000 liras. Bella combinazione, non è vero?

Bela, não há dúvida. Uma comédia. Ri, obedientemente. Todo este tempo eu queria era chorar ou aliviar o coração num canto tranquilo. Sou um sujeito normal, com apetites normais; mas senti pena daquele invertido magro, efeminado, vítima dos garotos de Nápoles, de olhos frios e calculadores. As raparigas estavam em melhores condições. Os garotos proporcionavam-lhes lucro e recebiam, por isso, uma percentagem razoável. Mas os esquisitos, a quem Deus fez um pouco mais que mulheres, um pouco menos que homens, têm de pagar e pagar sempre até que eles, também, sejam forçados a vender-se como as raparigas, nas casas fechadas.
Claro que havia o outro lado da questão. Nem todos os garotos eram tão sabidos como Enzo. Nem todos tinham a sua
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idade e a sua experiência. Por sua vez, os pederastas aproveitavam-se deles, roubando-lhes os últimos vestígios da inocência, levando-os para negócios ainda mais escuros.
e chantageando-os com o medo da polícia e o medo do ridículo entre os seus companheiros. Neste submundo sombrio, quem era eu para julgar quem merecia justiça e quem devia ser castigado?
De resto não era ocasião para julgamentos. Aos poucos e com cuidadosa lisonja, Peppino estava a arrancar de Enzo a história da sua vida. Fascinado, eu escutava. A história de Enzo Malinconico era a de milhares de outros garotos. A sua tragédia era a tragédia dos inúmeros garotos desconhecidos e abandonados, que são conhecidos por scugnizzi - os peões a rodar - os selvagens, atormentados rapazinhos de Nápoles.

Enzo Malinconico era o segundo filho de um padeiro, que vivia na parte norte da Via Teresa. O seu pai era velho e trabalhador, a sua mãe era nova: uma combinação não invulgar no Mezzogiorno, onde muitas vezes os mais velhos são os únicos pretendentes que podem casar. Quando Enzo tinha 10 anos, a mãe arranjou um amante. Antes de fazer 11, o pai descobriu e, louco de ciúme, suicidou-se, queimando-se no seu próprio forno. De seu pai Enzo falava com indiferença. Sempre que mencionava a mãe, cuspia e chamava-a deputtana, o que na Itália é, na verdade, uma palavra muito feia.

Logo após o suicídio do pai, a mãe e o amante casaram-se. Não era um lar muito feliz. A mãe era uma harpia, que atormentava tanto os rapazes como o novo marido, aguilhoando-os porque não ganhavam o suficiente e troçando deles porque viviam «aos ombros de uma mulher». Ela própria vendia cigarros pelas ruas, sendo, por conseguinte, uma mulher de alguns meios!
Por fim, o segundo marido também se suicidou e Enzo e o seu irmão ficaram como únicos sustentáculos da família.
O irmão começou a vender contrabando. Quando a polícia o apanhou e confiscou a sua mercadoria, foi trabalhar para o mercado. Ali, estabeleceu contacto com um pequeno bando que roubava caixas de fruta das linhas de carregamento e as vendiam depois pelos lados da Baiena e da Porta di Capue. Finalmente, a polícia apanhou-o de novo e enviou-o para uma deprimente casa de correcção na pequena ilha de Procida.
Enzo ficou só com a mãe. Ainda não tinha feito os 11 anos.
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A mãe pô-lo a trabalhar como aprendiz numa carpintaria do sítio. Varria o chão e misturava cola e carregava madeira das 8 da manhã às 8 da noite. De noite, a mãe enchia-lhe os bolsos de cigarros de contrabando e mandava-o vendê-los, até bem depois da meia-noite.
Um dia Enzo fugiu de casa e nunca mais voltou. Todas as histórias que ouvi sobre os scugnizzi de Nápoles
- e coleccionei mais de cem casos durante as minhas investigações - chegavam depressa a este primeiro clímax: fugiu de casa e nunca mais voltou.
Deverão entender que não era a fome que os afastava de casa. Nem sempre era a crueldade, como no caso de Enzo Malinconico. Por vezes, era o excesso de pessoas e a impossibilidade de se viver num quarto cheio de bebés que berravam e velhos que se babavam e pais que discutiam. Mais ainda era a carga intolerável de trabalho e a responsabilidade familiar que recaía sobre os ombros de crianças muito novas.
Do mesmo modo que as raparigas se tornavam donas de casa, quando deviam estar a brincar com bonecas, os rapazes eram levados a ganhar o pão, mesmo antes de saberem o que era ser criança.
-Aos 10 anos - como o padre Borrelli um dia me disse são demasiado homens para serem rapazes e demasiado rapazes para serem homens.
Os seus corpos definham-se com este crescimento psicológico explosivo e as suas mentes ficam, irreparavelmente, marcadas pelo impacte prematuro da vida adulta.
Finalmente, quando deixam a casa, é porque chegaram à seguinte conclusão: «Eu sou o ganha-pão. Esta família vive aos meus ombros. Não me dá nada e tira-me tudo. Sou um homem. Estarei melhor se viver como um homem - sozinho gozando os frutos do meu próprio trabalho.
Enzo Malinconico deixou a casa com uma algibeira cheia de cigarros e umas centenas de liras. Não era nenhuma fortuna, mas o suficiente para lhe encher a barriga e comprar a tolerância de um punhado de rapazes que alcovitavam para um casino. Nessa noite dormiu com eles numa pilha de madeira, lá para os lados da Via Marítima. No dia seguinte, brigou com o bando que lhe roubou os cigarros. Estava só e sem dinheiro e ainda era bastante criança para chorar.
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Uma prostituta de nome Filomena teve pena dele e levou-o para dormir no seu quarto. O nome dela em napolitano era Zizzachione (a peituda) e fazia a vida entre os trabalhadores do cais e os marinheiros de navios estrangeiros. Enzo Malinconico viveu dois anos com ela. Arranjava-lhe clientes e ela pagava-lhe a percentagem usual e, quando o último cliente partia, metia-se na cama e dormia com ela. Com ela adquiriu a escola completa de experiência sexual e, mais uma vez, aprendeu sobre a venalidade das mulheres e a corruptibilidade dos homens. Também aprendeu que o sujeito esperto é o que se aproveita de ambos.
Quando abandonou a Zizzachiona, tinha 13 anos de idade.
Nos últimos três anos tinha o grau de ladrão de lavandarias e carteirista no comércio mais aberto e lucrativo da Sala Roma. Através do pederasta, esperava ser apresentado ao homem que precisasse de um estafeta para fazer viagens regulares a Roma, Milão e Florença. O trabalho era simples e bem pago. Davam-lhe um embrulho e um endereço. Entregava o embrulho e regressava.
Quando lhe perguntei o que se encontrava nos embrulhos, Enzo tocou com o dedo no nariz, dizendo astutamente.
- Chi são Neste comércio o homem que menos falar é o que tirará maior proveito. Non à vero?

Sorri e disse: Sicuro! E deixei o assunto morrer. Os vícios dos ricaços romanos não me diziam respeito. Estava mais interessado em Enzo Malinconico e onde iria ele acabar. Perguntei-lhe:
-Não há dúvida que estás a ir bem. Tens cabeça para o negócio. Mas mais tarde? Onde acabarás? Em Procida como o teu irmão?
Os olhos de Enzo escureceram. Apertou os punhos. Não obstante toda a sua confiança de mascate, no fundo do seu coração seco, tinha medo. Quem o poderia condenar? Tinha apenas 16 anos. Disse-me:
- O meu irmão não teve sorte. Foi traído por um louco. Mas eu, eu não vou acabar como ele.
- Então como?
- Dentro de um ano, dois no máximo, terei dinheiro suficiente para arrendar um apartamento no Vomero. Um dos grandes e novos, com quatro quartos de cama e telefone. Depois, arranjarei
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algumas raparigas, não as putane das ruas, você entende, mas raparigas de classe e distinção, que visitam e falem bem. Estabeleceremos negócios com os turistas, faremos contactos nos melhores hotéis, só os melhores. Capisce?
- Queres dizer, uma casa d'appuntamento?
- Henzo - Em seis meses os casini estarão fechados, de acordo com a nova lei, que está a ser discutida na Assembleia. Nessa altura surgirá a oportunidade para os negócios de luxo.
- E a polícia?
- A polícia! - Enzo cuspiu para o chão, com desprezo. Como é que achas que os outros funcionam agora? Se estiveres disposto a pagar, encontrarás de tudo em Nápoles. Com quatro raparigas numa casa de luxo em Nápoles, terei dinheiro que chegue, até para pagar à polícia. Não acreditas?
Encolhi os ombros e estiquei as mãos ao jeito das gentes do Sul. Não importava mesmo nada que eu acreditasse ou não. Se Enzo Malinconico não conhecesse o seu próprio mercado, quem era eu para lhe ensinar? Se cometesse um erro sempre haveria Procida, a cinzenta ilha de pedra, ao fim da comprida estrada. Lá não estaria só. Encontraria o seu irmão e com ele muitos outros rapazes da bassi desta cidade escura e condenada.

Já passava da meia-noite quando deixámos Enzo Malinconico e prosseguimos o nosso caminho através dos becos estreitos, no sentido das docas, com o fim de investigar outro agrupamento de pardieiros.
Falámos pouco. Peppino parecia estranhamente chocado com este encontro. Era como se tivesse ouvido de novo o chamamento das ruas e o sentisse tocar no seu coração, enquanto toda a razão e experiência adquirida lhe diziam que se sucumbisse à tentação, isso só lhe traria amargura e desiluzão. Eu estava ocupado com o meu próprio problema: como fazer as pessoas compreender que o que eu lhes contasse sobre esta cidade era a verdade.
Como as poderia convencer de que a vida na bassi e nos pardieiros é normal para milhares de pessoas? Como lhes

11 Nem mais! (N. da T.)
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poderia provar que a história de Enzo Malinconico se repete milhares de vezes nesta fervilhante cidade marítima, onde os gregos, os romanos, os espanhóis e os franceses, os americanos também, e os cavaleiros de Marrocos tinham chegado, e onde cada um deles tinha deixado uma parte dos pecados dos seus países para herança das crianças? Quando lhes falar sobre os casini e os bordéis, poderão elas compreender que eu tinha visto vinte deles no mesmo número de noites, com as luzes brilhando às portas e os jovens deslizando por elas para prestarem os seus serviços?
Este livro será lido por gente fina em Londres, Oaio e Melbourne, cujos filhos dormem tranquilamente entre lençóis brancos, com ursos peludos ou bonecas favoritas apertados em seus braços. Acreditar-me-ão se lhes disser que milhares de crianças brincam em becos mal-cheirosos até à meia-noite e que centenas delas dormem às portas das casas ou sobre grades de ferro?
Como é que em Nova Iorque elas vão acreditar quando aqui, na própria Nápoles, há turistas e famílias residentes que sorriram, com um ar de descrença polida, quando lhes contei o que tinha visto? Não os censuro. Os turistas vivem em hotéis modernos e luminosos, ao longo da via Caracciolo. Os residentes vivem nas vielas de Posillipo ou nos apartamentos do pós-guerra do Vomero. Podiam ver a Via Roma e San Carlos e a larga praça em frente aos caminhos de ferro. Quando o sol brilhava, partiam para Capri e Ischia e para os laranjais de Sorrento. Os turistas vinham à procura de divertimento. Os residentes queriam apenas uma vida confortável para eles e seus filhos. Como poderiam dormir à noite se soubessem da existência pustulenta que começava a 15 m de distância das luzes da Via Roma e acabava nas feias ruínas próximo de San Giovanni?
Uma das respostas seria dada através de fotografias. Dizem os jornalistas que uma simples fotografia diz muito mais que milhares de palavras. Tinha combinado com um fotógrafo para vir connosco tirar fotografias das coisas que eu tinha visto, os farrapos, a pobreza, a sordidez, as crianças que dormiam ao ar livre nos becos desolados da bassi.
De repente, Peppino parou e puxou-me pela manga. Apontou para uma arcada estreita, dentro da qual estava um poço


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antigo de pedra, do qual os habitantes dos quartos extraíam água num balde de madeira, suspenso por uma corrente ferrugenta.
No espaço apertado entre o poço e a boca da arcada, dormia uma criança. Era um rapazito de 6 ou 7 anos. A sua única roupa era um colete esfarrapado e um par de calças remendadas, que apenas lhe chegavam aos joelhos. Dormia de lado, com os joelhos ossudos encostados ao queixo, numa posição fetal.
Aproximámo-nos. Peppino acendeu um fósforo. À fraca luz amarela vi o cabelo embaraçado e a cara suja e manchas azuladas de frio nos seus membros magros.
Senti lágrimas quentes nos olhos. Peppino olhou para mim. Inclinei a cabeça, mas não consegui falar. O fósforo apagou-se. Peppino entregou-me a caixa e, com um gesto, pediu-me para acender outro fósforo. Depois ajoelhou-se e acordou o rapazito.
Aquele sentou-se de um salto, uma criatura lamentável, de olhos abertos, tenso como um animal encurralado. Se Peppino não o tivesse segurado, teria fugido para dentro da escuridão. Vi o seu peito ossudo a ofegar sob as roupas esfarrapadas. Acendi um fósforo e a seguir outro, enquanto Peppino falava com ele em tom suave.
De onde tinha ele vindo?
- Roma.
- Roma? Até Peppino ficou surpreendido. Roma ficava a
150 milhas de distância. Mas quando repetiu a pergunta, o rapaz mexeu a cabeça vigorosamente.
- Roma.
- Como é que chegaste aqui? Parece que tinha caminhado.
- Todo o caminho?
A maior parte. Por vezes, tinha apanhado boleia em carroças. Depois tentara apanhar um comboio, mas os homens tinham-no afugentado. Depois entrara nos túneis e tinha vindo para a cidade por aquele caminho.
O sobterrâneo! Peppino abanou a cabeça. O horror daquilo, mesmo para ele, era demasiado e ele conhecia, como ninguém,
Cerca de 240 km. (N. da T.)

as reviravoltas duras da vida dos garotos. De novo falou com o rapaz, dizendo-lhe que havia um lugar onde ele poderia dormir numa cama e comer e onde as pessoas o tratariam com bondade. Viria ele? O rapaz negou. Começou a lutar, selvaticamente, como um pássaro prisioneiro. Devagarinho, pacientemente, Peppino acalmou-o, levando-o do pânico para as lágrimas e destas para uma dúvida maravilhosa. Por fim, concordou em ir.
Pela primeira vez em Nápoles fiquei contente por ser um homem grande. Levantei o frágil corpo nos meus braços e carreguei-o todo o caminho de regresso até à Casa dos Gaiatos.
E foi assim que conheci Antonino, a criança que tem habitado os meus pesadelos desde então.
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79PARTIILUZ NA ESCURIDÃOI
Agora, quero apresentar-lhes um homem. E pequeno como todos os napolitanos. A sua altura são uns escassos 5 pés e 6 polegadas;13 o seu corpo é tenso, resistente e compacto. Os seus pés são pequenos, as suas mãos também; mas estas estão cheias de calos e são ásperas como as de um trabalhador. Tem orelhas em forma de jarro e um emaranhado de cabelos encaracolados, alourados, o que é pouco usual num homem do Sul.
A sua cara é magra, com uma boca grande e fina, que se abre muitas vezes num sorriso gaiato ou se fecha como uma ratoeira quando se zanga. O nariz pontiagudo está quebrado e repuxado para um dos lados da sua cara e isto, juntamente com os seus olhos brilhantes e inteligentes, dá-lhe uma aparência estranha de pássaro.
A sua voz é aguda e vibrante de convicção. Quando fala das crianças de Nápoles, a sua fala é repassada de uma poesia concisa e vigorosa. Quando descai para o dialecto, a sua pronúncia é a de bassi, da qual ele veio e cujos horrores sofreu no seu próprio corpo magro.
Tem 35 anos e o seu nome é Mário Borrelli. De todos os homens que conheci, este é o melhor.
Também é padre; mas a comprida sotaina e o grande chapéu em forma de prato, não combinam bem com a sua cara torta de arruaceiro. No entanto, é um bom padre e um homem bom. Se você vier a conhecê-lo melhor, poderá até achar que ele é um grande homem.
Mário Borrelli é filho de um trabalhador que vivia nas barracas de Nápoles. Era um dos dez filhos que viviam, como já tinha visto os outros viver, nas condições superlotadas e insalubres das habitações de ruas recônditas.
13 Cerca de 1,67 m. (N. da T.)
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miseráveis
e us sermões dominicais
miseráveis congregações de pobres, sentados nos confessionários escuros e mal-cheirosos ouvindo a litania de pecados, guiando os moribundos através da sua grata passagem deste mundo para o outro, baptizando as crianças que tão desesperadamente nasceram nele.
Essa foi uma época má para Nápoles, quando a cidade permanecia prostrada na inércia da derrota, quando as raparigas da cidade se prostituíam pelo pão dos conquistadores e os homens o comiam com amargura na boca. Essa foi uma altura em que a palavra de Deus era uma hedionda troça - dos humildes que tinham sido duplamente atraiçoados, dos poderosos que se estavam a preparar para uma nova traição.
Como se poderia pregar o Sermão da Montanha aos esfomeados e desiludidos? «Abençoados sejam os humildes...», quando só os conquistadores e os implacáveis conseguiam sobreviver? «Abençoados os que, mesmo depois de justiça ser feita, continuam a passar fome e sede...», quando tudo o que sentiam era o vazio do estômago e o frio enregelante das ruínas? Não admira, pois, que os padres novos se desesperassem e os velhos padres se acomodassem na apatia do formalismo, que é o desespero dos idosos.
Por volta de 1950, a cidade começou a recuperar. Houve um princípio de ordem, um começo de trabalho, mas as relíquias da guerra estavam por todo o lado. Eu estava lá, eu vi-as. Deus sabe que o que existia em 1956 era bastante mau, mas então ainda era pior. A desmoralização das crianças, dos desabrigados,
o desespero, eram evidentes, mesm• para o turista.’ então
Agora vê menos e não precisa até de ver nada, se se deixar ficar pela Via Caracciolo ou permitir que o guia turístico o conduza para longe da bassi.
Em 1950, Mário Borrelli iniciou o seu trabalho. Quando lhe perguntei por quê e como, encolheu os ombros, eloquentemente.
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- Estava zangado, estava amargo. Sabia que não poderia continuar a ser padre, a menos que fizesse algo digno de um padre. Não poderia estar no altar, segurando o corpo de Deus nas mãos, enquanto os corpos das suas crianças dormiam em becos e sob as padiolas do mercado.
- Por quê as crianças? - perguntei. Olhou para mim, surpreendido.
Por Deus, quem mais? Para os homens e mulheres já é bastante mau, mas para as crianças é um pesadelo! Como devemos começar, se não for pelos pequeninos?
- Como começou?
- Olhou-me de relance, com aquele sorriso napolitano e, encolhendo os ombros expressivamente, disse.
- Isso meu amigo, é uma história comprida, comprida. Em seguida, contou-me. Mas a história que vos vou contar
não é a narrativa do padre Borrelli. Ele é discreto e leal. Compreendo que tenha de ser cauteloso. Os filantropos em Nápoles são poucos; ele ainda depende diminutamente da caridade e da ajuda esporádica da gente rica e de um pequeno estipêndio de Roma. Não se pode dar ao luxo de falar abertamente. Os rapazes ainda precisam dele. Deu-lhes um lar e esperança. Mas em 1956 estavam só a dois passos das ruas escuras, das quais ele os tinha arrebatado.
Um dia, no princípio de 1950, Mário Borrelli apresentou-se nuna entrevista com o seu superior eclesiástico cardeal Aslesi, arcebispo de Nápoles e primaz do Mezzogiorno.
Devem lembrar-se que Borrelli era então um jovem bassi, com o óleo da unção ainda por secar nos seus dedos nervosos. Ascalesi era um homem velho, conhecedor do mundo e da Igreja, sobrecarregado com as muitas desgraças do seu povo e com intrigas políticas, tentando desesperadamente suportar nos seus próprios ombros envelhecidos, o desmoronamento da Igreja do Sul.
Pacientemente, ouviu Borrelli apresentar o seu pedido.
Era um pedido estranho, em qualquer língua. Queria despir a sotaina. Queria ir viver para a rua com os scugnizzi. Queria compreender as suas vidas, a sua psicologia e tornar-se seu amigo e, talvez um dia, trazê-los para viver com ele e ensinar-lhes a viver decentemente.
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O velho cardeal franziu os lábios finos e fez uma careta. Haveria talvez um traço de heresia neste jovem padre? Se não de heresia, então de orgulho. Orgulho esse que destruiria o trabalho e o padre com ele? A vida das ruas era uma coisa sórdida e má, baseada na venalidade e no pecado sensual. Como poderia um homem novo ficar exposto à mesma e continuar puro? Pôs a questão a Borrelli.
A resposta do jovem foi simples. Já tinha pensado muito no assunto.
- Desde que entrei para o seminário, aprendi que um padre deve tornar-se num alter Christus, noutro Cristo. Está escrito nos evangelhos que Cristo comeu e bebeu com ladrões e prostitutas. Como poderia um padre enganar-se fazendo o mesmo? Como poderia ele ser outro Cristo se se recusasse a ir de encontro aos que não têm pastor?
Ascalesi ficou comovido. Com mais homens como este, ele teria, talvez, conseguido reformar a Igreja do Sul, mas estava-se a fazer tarde e ele estava a ficar velho. Abanou a cabeça.
- Não, meu filho. Não! Antes de podermos começar trabalhos como este, teremos que organizar bem os que já temos: as paróquias, as escolas, os orfanatos. Tens trabalho entre as mãos. Faz esse trabalho e contenta-te em saber que estás a servir a Deus, como ele deseja ser servido.
Borrelli ficou zangado. Sendo napolitano, a zanga, foi breve e incontinente.
- V. Ex.a não compreende. Como posso eu servir a Deus se não vir com os meus próprios olhos? Trata-se de crianças, os pequeninos de Cristo! Dormem sobre grades e em camas de prostitutas. Alcovitam e roubam e entregam-se ao crime e à violência. Vivem como os animais na floresta, sem amigos e sós. E V. Ex.a pede-me que os esqueça. Por que razão? Por aqueles que já possuem fé? Por aqueles que já têm casa? Por aqueles que já estão a ser cuidados nos orfanatos? Não! Se a Igreja recusar este trabalho, não é a Igreja de Deus!
Velho, pálido e terrível, o cardeal empertigou-se na sua cadeira alta e olhou para baixo, para o pequeno e agarotado sujeito que o desafiava; desafiando, também, o poder antigo da Igreja que ele representava.
Em que é que ele pensava? Pensava em Paulo opondo-se a Pedro porque ele se agarrava aos Judeus, quando os gentios
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ansiavam pela fé? Pensava em Vicente, o Francês, que se vendeu às galés para se juntar aos esquecidos e desolados? pensava no meigo Francisco, cujos ombros suportaram a vacilante Igreja, em tempos antigos? Pensava nas reformas que ele, cardeal, gostaria de ter feito, mas que não fez porque não teve a força necessária nem homens que o ajudassem.
Já morreu, por isso não nos poderá dizer.
Pálido e a tremer, Borrelli esperou. Também para ele se tratava de uma crise. Se ser padre de Cristo significava abandonar as crianças, então não queria ser padre. Depois de longo tempo, o velho cardeal falou de novo. A sua voz estava estranhamente suave.
- Redimir as crianças é uma coisa. Tirá-las da rua e dar-lhes um lar, com isso concordo. Mas a outra, viver com elas nas ruas, tornar-se parceiro das suas falcatruas, isso não posso eu compreender. Por que o queres fazer?
Borrelli relaxou um pouco. Ainda havia esperança. Inspirou profundamente e apressou-se a explicar.
- V. Ex.a deverá compreender o que a vida das ruas faz a estas crianças. Deverá saber que para ser um scugnizzo é necessário possuir a alma de um homem num corpo de criança. É ter sofrido no corpo a violação da inocência, a dor da fome, o agudo e desolado frio da cidade. Ser um scugnizzo é viver sem amor, não confiar em ninguém, porque aquele em quem você confiar, lhe arrancará o pão da boca ou os cigarros do bolso. Ser um scugnizzo é pensar que todas as mulheres são prostitutas e todos os homens ladrões, que todo o polícia é sadista e todos os padres mentirosos. Se eu fosse para o meio deles, como estou agora, eles rir-se-iam de mim ou me cuspiriam na cara. Se lhes oferecesse um lar, responder-me-iam que os carabinieri também lhes ofereciam um lar, a casa de correcção. Assim como estou, não poderia aproximar-me deles nem a um palmo de distância. Acredite-me, Ex.a... - A sua voz tremeu e estendeu os braços num gesto apaixonado de súplica. A.credite-me! Nasci na bassi. Eu sei!
O cardeal Ascalesi sentou-se na sua cadeira de espaldar al•o e meditou. Uma vez na vida se tiver sorte, e duas se for excepcionalmente abençoado, um bispo poderá encontrar entre os seus clérigos, um homem tão marcado por Deus que virar-lhe as costas, seria como negar o próprio Cristo. Este morreu-
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parecia um desses homens. O que ele pedia era estranho mas extremamente simples, novo mas velho como o Evangelho. Não podia ser negado com ligeireza nem aceite à pressa com imprudência. O velho senhor juntou as mãos, unindo as pontas dos dedos e franziu os lábios pálidos. Depois, mansa e deliberadamente, deu o seu veredicto:
- Preciso de tempo para considerar o assunto. Dentro de dez dias volta para me falares. Entretanto... - a sua voz vacilou um pouco e os seus olhos cansados amoleceram. - Entretanto, reza por mim, meu filho. Reza por ambos. Podes ir. Mário Borrellí saiu para o sol poeirento da cidade, confuso e insatisfeito. Era demasiado novo para saber quão profundamente tinha tocado o coração de Ascalesi. Estava demasiado amedrontado para perceber como estava perto do sucesso. Pior do que isto, como napolitano que era, sabia que muitas vezes um adiamento polido significava uma recusa definitiva. Borrelli soube então, o que eu já tinha constatado através da minha própria experiência, que para quem não tenha visto com os próprios olhos, a vida da bassi e a condição das crianças é um pesadelo bizarro, uma criação de dramaturgo, não para ser acreditada literalmente.
O cardeal estava sentado no seu grande palácio, assistido por conselheiros discretos e subtis, a burocracia da Igreja. Como poderia ele entender o que se passava nos becos? O problema era fazê-lo compreender tão claramente que nenhum dos seus conselheiros o pudesse dissuadir.
Mário Borrelli foi para casa e rezou. Nessa noite, enquanto permanecia acordado na sua estreita cama, teve a ideia. Olhou para o relógio. Ainda faltava uma hora para a meia-noite. Ainda tinha tempo suficiente para contactar o homem de que precisava. Numa excitação alvoraçada, deslizou da cama, vestiu-se, deixou a casa e correu para o bar mais próximo para fazer um telefonema.
Uma hora mais tarde, encontrava-se a beber café e a falar animadamente com o fotógrafo de um diário napolitano. O plano que armaram era espantosamente simples.
Durante dez dias e noites que ainda faltavam, Borrelli e o fotógrafo vaguearam pela cidade juntos. Fotografaram o que viram -crianças abandonadas dormindo nas ruas, bandos de garotos nos becos cozinhando os alimentos sobre fogueiras, os
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interrogatórios nocturnos na questura. O plano era mostrar as fotografias ao cardeal Ascalesi.
Dez dias mais tarde, Mário Borrelli apresentou-se perante o velho e ficou a observá-lo a olhar atentamente as fotografias lustrosas, espalhadas sobre a secretária. Depois o cardeal endireitou-se e cobriu as fotografias com as mãos, como se as quisesse esconder da sua visita. Os seus lábios pálidos estavam apertados de cólera. Quando falou, a sua voz estava cheia de convicção.
- Mesmo que não tivesses mostrado estas fotografias, teria autorizado que fizesses o teu trabalho. Agora que as vi, estou duplamente convencido de que se trata de um bom trabalho. Mas... - Ascalesi fez uma pausa e Borrelli esperou tensamente pela apostila. - Mas continuo a pensar que este trabalho está cheio de perigo, perigo espiritual, para o homem que o empreender.
Borrelli anuiu. Ele também o sabia e muito bem. Era napolitano, jovem e de sangue ardente. Como é que os seus votos sacerdotais resistiriam ao impacte da sensualidade que vinha das ruas? Era uma pergunta que tinha feito a si próprio muitas vezes.
Ascalesi continuou:
- Portanto, acho conveniente que tenham um companheiro, não só para esta peregrinação das ruas, mas para o projecto em geral. Deverá ser um amigo e um conselheiro, de modo que te dou liberdade de o escolheres, mas que ele me seja recomendado. Libertá-lo-ei do seu actual compromisso, para que possa ficar vinculado a ti. - A expressão do velho homem abrandou e com um sorriso afectuoso, disse:
- David parte para combater Golias nas ruas de Nápoles. Será melhor que tenha um Jonas para o confortar. Non à vero?
Um sorriso gaiato surgiu na cara tensa de Barrelli. Sentia-se livre e feliz e, como todo o seu povo, gostaria de gritar e cantar e contar a todo o mundo. Mas o cardeal era um grande homem e exigia grande respeito. Assim, Borrelli dominou a sua alegria e começou a falar ao cardeal sobre o seu amigo
pada, jovem como ele, padre da diocese de Nápoles. Não era como Borrelli, um homem impetuoso e combativo, mas o seu coração estava cheio de amor pelas crianças, e quando um dia os garotos viessem para a casa que eles esperavam vir a ter, sentiriam muita necessidade de amor e cuidados paternais.
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O cardeal inclinou a cabeça, em sinal de aprovação e começou a falar de outros assuntos. Uma hora e meia depois, Mário Borrelli estava na rua e olhava à sua volta. Esta era agora a sua cidade e as crianças que nela se encontravam as suas crianças. Se ele lhes faltasse, não haveria mais ninguém a quem eles pudessem recorrer. Estremeceu sob o sol quente. De repente sentiu-se só e com medo.
Entrou numa velha e cinzenta igreja, ajoelhou e rezou por longo tempo.
Alguns dias mais tarde, os scugnizzi da Piazza Mercato olharam especulativamente para o novo recém-chegado.
Avançava no sentido do porto, apanhando beatas do chão, enquanto caminhava. Vestia uma camisa suja, remendada em muitos lugares. As pernas das calças estavam esfarrapadas e caíam sobre um par de sapatos esquisitos, rotos e descosidos nas costuras. As mãos estavam manchadas de gordura e tabaco. A cara estava encardida e por barbear e usava, no alto da cabeça, um boné pontiagudo e ensebado.
À esquina da Piazza parou, recostou-se à parede, tirou um cigarro meio fumado e acendeu-o com um fósforo de cera que riscou de encontro à pedra. Fumava devagar, o ombro encostado à esquina, pernas cruzadas, olhos brilhantes lançando olhares curiosos ao comércio da Piazza.
Os rapazes estudaram-no cuidadosamente, notando o nariz quebrado e a boca apertada e a insolente inclinação da cabeça. «Um guappo, pensaram eles, atrevido, duro, possivelmente perigoso. Nunca o tinham visto antes. Perguntaram-se de onde viria ele, se estava sozinho ou se pertencia a um dos grupos que operavam lá pela doca dos mercadores. Vendia ou comprava? Seria um intermediário a tentar arranjar negócio para alguém mais? No mundo dos scugnizzi, estas eram perguntas importantes, estreitamente ligadas à economia e política do submundo. Era, pois, importante saber as respostas o mais cedo possível.
Deixaram-no fumar por uns momentos enquanto estudavam todos os seus gestos. Observaram como segurava o cigarro
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entre o polegar e o indicador. Viram como soprava o fumo pelo canto da boca. Como cuspia para uma poça, como limpava o nariz apertando-o entre dois dedos, que depois limpava às mangas. Viram como coçava as coxas e os sovacos, como a pessoa acostumada aos piolhos na sua roupa.
Não havia dúvida, ele era um deles. Agora era chegada a altura de se aproximarem.
Um jovem esguio, com uma cara escura, tipo árabe, destacou-se de um dos grupos dos ociosos e, saracoteando-se, atravessou a Piazza. Pelo canto dos olhos, Borrelli viu-o aproximar-se. O seu estômago apertou-se um pouco, mas nenhum sinal de medo transpareceu no seu olhar. O jovem aproximou-se, abriu um maço de cigarros americanos, meteu um na boca, voltou a meter o maço no bolso e pediu lume. Borrelli tirou a beata acesa da sua boca e aproximou-a da ponta do cigarro do outro. Depois voltou a meter a beata na boca. Não se mexeu da sua postura indolente.
O jovem num grunhido agradeceu e recostou-se à parede, ao lado de Borrelli. Falava pelo canto da boca, no dialecto arrastado e cantante de Nápoles.
- Não te tinha visto antes por aqui. Borrelli encolheu os ombros, expressivamente.
- Nápoles é uma grande cidade. Também nunca te vi.
O jovem moreno deitou uma baforada de fumo e considerou a resposta. A pronúncia era correcta, as palavras certas. Não se pode falsificar o dialecto das ruas. A atitude também estava correcta. O sujeito era de facto um guappo. Não se devia confundi-lo. O melhor seria tratá-lo bem.
- Negoceias.
- Mais ou menos.
- Tens algum contacto?
Borrelli inclinou a cabeça para um lado, fazendo um gesto vago.
- O suficiente para mim.
- Que espécies de contactos?
Sem pressa, Borrelli remexeu nos bolsos e retirou, sucessivamente, um maço de cigarros americanos, um anel barato com uma pedra sintética, uma nota de 1 dólar e uma agenda de endereços contendo alguns nomes e números de telefone, mal escrevinhados. O jovem amarelado estudou-os por um
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momento, depois inclinou a cabeça, em sinal de compreensão Contrabando, roubo ou receptação, algumas raparigas. Era bastante para um homem só. Sem dúvida que este sabia como cuidar de si próprio. Mas gostaria de saber mais.
- Já estiveste preso?
Borrelli sorriu, desajeitadamente, e cuspiu para o chão.
- Ainda não. Mas estou a precisar de uma mudança de ares.
Ah! Agora tínhamos chegado ao ponto essencial. A polícia estava na peugada do sujeito, por isso ele estava a tentar mudar o seu campo de acção. Ficou mais predisposto a colaborar e a aceitar qualquer proposta. Rebuscou o bolso, donde retirou os seus próprios cigarros, que ofereceu.
- Olha, toma um destes.
Cuidadosamente, Borrelli amachucou a sua beata e meteu-a no bolso, com o resto das suas coisas. Em seguida, tirou um cigarro do maço que lhe estava a ser oferecido.
- Obrigado.
- Qual é o teu nome?
- Mário.
- O meu é Carlucciello. Eu oriento as coisas por estas bandas. - Estendeu uma mão aberta em direcção à azáfama da Piazza Mercato. - Gostarias de ser apresentado aos outros rapazes?
- Claro.
Mário Borrelli desencostou-se da parede, prendeu o cinto e, bamboleando, atravessou a praça com o Carlucciello. A sua cara era uma máscara de indiferença atrevida que caracteriza o guappo. Mas, por dentro, sorria como um garoto de escola. Tinha passado o primeiro teste. Tinha sido aceite.
Mário Borrelli tinha-se tornado um scugnizzo.
Começava para ele uma vida que era uma paródia grotesca da existência humana normal. Tinha entrado no reino dos miseráveis. Tinha adquirido a sua maneira de vestir, a sua fala, os seus costumes.
Tinha agora que adoptar os seus truques e estratagemas para poder sobreviver.
O bando da Piazza Mercato tinha-o aceite. Tinha de con-
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tribuir equitativamente para a sua vida difícil. Tinha de aceitar os seus riscos e o seu discutível código de honra.
Assim, o moralista associou-se a um bando de ladrões.
Enquanto os mais ágeis escalavam varandas para roubar roupa estendida ou ferramentas ou as miseráveis jóias dos pobres, Borrelli fazia a vigilância e assobiava os sinais de aviso. Quando o produto era vendido aos receptadores, Borrelli juntava a sua voz ao regateio por um preço melhor. Quando os rapazes eram perseguidos pelos donos das casas ou pela polícia, Borrelli pegava na sua parte da pilhagem e corria como um animal perseguido. Comia o pão que era comprado com dinheiro roubado das caixas de esmolas das igrejas. Vendia pelas ruas os cigarros que tinham sido contrabandeados através da alfândega ou surripiados dos porta-luvas dos carros americanos.
O celibatário furtava-se aos alcoviteiros.
Era um dos dançarinos que abordavam os soldados estrangeiros, levando-os para perto do casino. Quando as raparigas saíam para apanhar sol nas varandas ou às portas dos seus quartos miseráveis, ele falava e gracejava com elas. Recebia a sua parte do dinheiro que era pago como comissão pelos donos dos bordéis e pelos profissionais particulares.
O padre tornou-se ladrão.
Ficava com os rapazes em frente às agências de turismo, pedinchando cigarros. Carregava sacos, solicitando gorjetas. Apanhava beatas pisadas, esfiapava o tabaco para o vender aos fabricantes clandestinos. Abria portas dos automóveis à porta dos teatros e era acotovelado e empurrado pela gente fina, que se sentia afrontada com a sua sujidade.
Quando chegava a meia-noite e o comércio do dia e da noite terminava, agachava-se com os scugnizzi, junto a uma fogueira de galhos e nela aquecia os seus restos de comida, falando com eles no calão das ruas. Dormia apertado aos outros para se aquecer, sob as escadarias ou nos cantos dos pátios, onde soprava menos vento.
Viveu esta vida durante quatro meses e as suas cicatrizes ainda continuam nele.
Quando insistiam com ele por detalhes da sua vida de garoto da rua, encolhia os ombros, desconfortavelmente, e recusava-se a dá-los. Era «enfadonho», dizia ele, usando a palavra
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m italiana. Embaraçava-o. Preferia olhar em frente e não para trás. O que soube a respeito desse tempo, foi o que me contaram os rapazes que tinham compartilhado da sua vida e que também me falaram do amor que lhes tinha dado, mesmo durante a vida atormentada das ruas.
Zanga-se logo se alguém faz uma observação depreciativa sobre os pobres, ou sobre os negócios sórdidos de Nápoles. Fala com uma gentileza cristã sobre as raparigas dos prostíbulos e dos quartos pobres das traseiras. A sua indignação extravasa contra aqueles que lucram com este comércio de carne e miséria humana.
Mas foi só depois de aprofundar mais o assunto que toquei na verdadeira ferida. Ainda não está sarada. Acho que nunca vai sarar.
Como padre católico, Borrelli crê e prega que o fim nunca justifica os meios, que não está certo fazer um mal para atingir um bem.
Certo dia, perguntei-lhe sem rodeios:
- O senhor é um padre, Don Borrelli. Como conciliava a sua consciência com as suas acções de scugnizzo?
Olhou para mim com intensidade. Já tinha sido entrevistado por muitas pessoas, mas acho que eu era a primeira que tinha sondado até ao cerne da questão. Demorou muito a responder. Quando falou, as suas palavras saíram pausadas e muito cautelosas, como se estivesse a tentar explicar não só a mim como a ele próprio.
- Era a minha intenção, tanto quanto possível, afastar-me do acto directo do pecado. Por exemplo, pessoalmente nunca roubei. Nunca solicitei directamente para uma rapariga. Claro que participei no acto mas tentei, tanto quanto possível, tornar a minha participação uma questão de presença e afastá-la, tanto quanto possível, da substância do acto.
- Mas de facto participou?
- Sim.
- E beneficiou dos frutos do acto?
- Sim.
- Legalmente e em consciência, era isso justificável? Borrelli passou a mão cansada pelos cabelos e olhou-me de
frente. Tive vergonha da minha insistência, mas se queria
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descobrir a verdadeira identidade daquele homem, teria de conseguir a resposta. Deu-ma, calmamente.
- Muito do que fiz era justificável, sim. Muito do que se passava era, digamos, sobre o fio da navalha, entre o bem e o mal. Mas eu tinha-me comprometido e não podia voltar atrás, compreende? Só podia fazer o meu próprio julgamento e confiar na misericórdia divina. Mesmo assim...
Interrompeu, baixando o olhar para a palma das suas mãos de trabalhador.
- Mesmo assim?
-Mesmo assim - disse Don Borrelli, em tom baixo-havia muitos momentos em que eu me sentia mais scugnizzo do que padre.
Não perguntei mais, pois não tinha o direito de saber quais as coisas de que ele se acusava. Mas o meu coração compadeceu-se dele. Não importa o que fizesse, não importa o bem que escorresse das suas mãos, ele seria sempre atormentado pelos momentos em que tinha sido homem e não padre. Talvez seja o modo como o Todo-Poderoso salva o melhor dos seus servidores do pecado daninho do orgulho. Não sei.
Mas creio que Deus há-de julgar Mário Borrelli muito menos severamente do que ele se julga a si próprio.
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i
VI

chefia.
MarioBorrelli tinha duas coisas em vista quando entrou para o reino escuro dos garotos da rua: compreensão e chefia.
Sem compreensão, não poderia chefiar. A menos que chefiasse, não poderia esperar sobreviver o momento de clímax em que se revelasse como padre e oferecesse aos scugnizzi um lar e a esperança.
Assim, durante as noites e os dias do seu disfarce, empenhou-se a estudar a natureza e o carácter dos rapazes da rua
- as suas necessidades, as suas esperanças, os seus receios e as suas reacções a uma vida normal. As conclusões a que chegou, foram-me transmitidas durante horas de explicações acaloradas.
A maior parte do tempo que estávamos juntos, era ao fim do dia, antes de ir às minhas digressões nocturnas com Peppino. Apertava-se-me o coração ao ver o padre, cansado e de olhar encovado, depois de ter passado o dia a mascatear e a pedir, marcado e atormentado por contas que não acertavam e por dívidas que não podia pagar. No entanto, quando falava dos scugnizzi, os seus olhos iluminavam-se, a sua voz revigorava e caminhava pelo quarto, gesticulando e dissertando apaixonadamente.
-Para se compreender estas crianças, meu amigo, é primeiro necessário compreender o que é ser um napolitano. Nós não somos italianos. Somos um povo diferente. Somos uma mistura de muitos povos; no entanto, somos apenas um só povo. Olhe para as nossas caras! Esta é escura e estreita como a de um árabe. Aqueloutra é romano puro. Esta rapariga parece como se tivesse saído de um vaso grego do tempo de Péricles. Temos o cabelo ruivo dos Lombardos e os cabelos loiros dos Alemães. - Riu, gaiatamente. - Alguns de nós têm a pele escura como a do negro americano. No entanto, somos todos napolitanos. Somos gabarolas como os Espanhóis, subtis como os
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etruscos, gananciosos como os Bourbons. Tal qual os Árabes, precisamos de um deus. Dizemos muitas vezes as nossas Aves como os árabes dizem Inshallah, depois agachamo-nos sobre os quadris e aguardamos um milagre. Oiça as nossas canções! elas lhe dirão o que somos. Somos arrogantes, somos humildes. Somos mesquinhos, somos generosos. Somos simples e, no entanto, complicados. Mudamos como o mar, mas mesmo assim subsistimos e como ele somos imutáveis. Mas...! - Parou e voltou-se para mim, num gesto dramático. - Há uma coisa em nós que nunca muda. Temos necessidade do amor como o peixe de água e o pássaro de ar. Não somos como as gentes frias do Norte, que dispensam o amor porque se amam a si próprias demasiado. Precisamos da segurança da família, do calor de uma mulher, da paixão de uma amante. Sem isso, tornamo-nos deformados e retorcidos como árvores tropicais transplantadas para campos de neve. Na criança, a necessidade é a dobrar. Ela nasce de um acto de amor. E amamentada ao peito do amor. Ao crescer, terá de se alimentar de amor, como uma planta se alimenta das chuvas macias da Primavera.
Puxou uma cadeira para si e escarranchou-se nela, encostando os braços e o queixo ao espaldar.
-Agora, meu amigo, deixe-me contar a primeira coisa que aprendi sobre os scugnizzi. Todos eles fugiram de casa porque já não havia amor para eles lá. Parece-lhe estranho?
Sim, parecia estranho. Era demasiado simples, demasiado conveniente, explicar o complicado produto final que é o scugnizzo. Disse isto a Borrelli. Abanou a cabeça, com o vigor.
- É verdade, acredite-me. As circunstâncias variam, mas o ponto essencial permanece. Considere por um momento como isso se passa. Numa família existem demasiadas crianças e pouco pão. O pai está todo o dia ausente e a mãe tem tanto que fazer que o seu amor seca como secou o seu leite. Na casa ao lado há inveja e desunião. A mãe tem um amante ou é o pai que tem. Há brigas e cenas furiosas, insuportáveis para uma criança que, aqui também, é destituída de amor. Aqui, ali, há tanta miséria que a criança tem de trabalhar para trazer umas poucas centenas de liras para casa. Para o seu patrão, ela representa trabalho barato. Para a sua família, é o ganha-pão. Nenhum deles dispensa um só pensamento para o seu

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pequeno coração faminto, que seca e definha como uma noz. Olhe mais uma vez e verá outra família onde a vida é envenenada pela culpa do incesto e da promiscuidade. Uma rapariga tem um filho do pai ou do irmão; o amor não pode durar num ambiente assim. Por isso, um dia, a criança foge de casa onde não lhe dão amor e junta-se aos outros sem amor das ruas de Nápoles.
- E lá encontra o amor?
Don Borrelli anuiu, comedidamente.
Algumas vezes, sim. Os scugnizzi sabem como ser bons uns para os outros, pelo menos para os membros do seu bando. Os mais velhos protegem os mais novos. Quando um está doente, os outros dão-lhe mais comida. Roubam medicamentos e dão as suas próprias roupas. São leais uns para com os outros e sofrem muito antes de se traírem uns aos outros. Existe até um elemento de amor, quando uma prostituta recolhe um scugnizzo na sua casa e o conforta com o seu próprio corpo. - Interrompeu por um momento e, quando voltou a falar, a sua voz estava impregnada de tristeza. - Mas, veja, nunca é bastante. O coração humano é um poço sem fundo e isto são apenas gotas de água que o penetram e são logo absorvidas pela terra árida.
Levantou-se, de repente, afastando a cadeira para longe. Espetou-me um dedo como um bisturi.
- Agora! Agora, vou-te mostrar como se faz um scugnizzo. Os alicerces da sua vida normal estão destruídos. Terá de construir outros. Torna-se vaidoso e gabarolas, pois não há amor que garanta o seu valor real como filho de família, como filho de Deus. Torna-se manhoso, pois não há amor que o defenda da maldade dos outros. Só existe ele, o animal. Trapaceia e mente porque a honestidade torná-lo-ia presa dos que não possuem amor nos seus corações. Torna-se nervoso, rancoroso, instável, porque o seu corpo de criança não consegue acompanhar a explosão do seu desenvolvimento psicológico. O seu corpo atrofia-se, como já viu, enquanto a sua mente se expande e cresce distorcida, como erva no estrume. Por vezes, é um pouco doído. Outras vezes... -A cara de Borrelli ensombrou-se. - Por vezes o fardo da vida torna-se tão pesado, que se suicida.
Pôs as mãos na cara e pressionou as palmas sobre as pál-
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pebras, como que a apagar uma visão aterradora. Depois acalmou-se e continuou:
-Quando fui para as ruas, eu era um homem. Mais do que isso, era um padre com anos de disciplina e estudo atrás de mim. Mas digo-lhe, francamente, que até eu fui afectado por essa existência nua, sem amor. Quando ficava à porta dos hotéis de turismo e suplicava para pegar numa mala, odiei os bem-alimentados e sorridentes homens e mulheres, cujas roupas davam para alimentar um scugnizzo por mais de um ano. Quando via os polícias, com os seus cassetêtes e as suas pequenas pistolas pretas, sentia vontade de lhes cuspir e amachucar as suas caras com os meus punhos. Não viam eles a nossa desgraça? Não éramos humanos como eles? Que direito tinham de nos empurrar para longe dos seus caminhos, como se fôssemos animais e eles uma criação especial do Todo-Poderoso? Sabia que o meu ódio era errado. Sabia que tinha de o controlar ou cair em pecado mortal. Mas as crianças? Como poderiam elas compreender? Destituídas de amor e fé, o que lhes restava se não o luxo do ódio?
De súbito, a paixão que o avassalava esmoreceu como uma vela e vi, perante mim, um homem novo, desgastado, com o olhar pálido e triste e, por detrás dele, uma secretária pejada de papéis e contas por pagar. Leu os meus pensamentos e sorriu, amargamente.
- Lá vamos andando, como dizem os americanos. Mas há tanto por fazer e tão poucos para ajudar.
Depois disto deixei-o, porque tinha um encontro no Hotel Vesúvio com uma amiga americana, que me queria vender um carro. Quando subia os degraus, um par de garotos da rua tocou nas abas do meu casaco.
- Dólar, Joe! Dólar! Tens cigarros?
O porteiro tentou afastá-los. Pensou que eu era louco, quando lhes dei um pacote de cigarros e uma nota de 1000 liras. Se calhar, até era. Se um turista quiser ter paz em Nápoles, terá de endurecer o coração e fechar os cordões à bolsa.
Quando me lembrei do que ouvira Don Borrelli contar, não fiz nem uma nem outra coisa.
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Quanto mais tempo Borrelli vivia com os scugnizzi, mais compreendia que a casa que esperava construir para eles, teria de ser muito especial.
Estas eram crianças especiais-meio homens, meio crianças. Engaiolá-los numa instituição, seria uma crueldade intolerável. Abafariam com o medo ou rebentariam numa crise de revolta. Submetê-los à disciplina de uma sala de estudos e a um horário, seria criar outro tormento para as suas pequenas almas perturbadas. Dar-lhes lições de religião, moral e civismo, seria como falar com eles numa língua estranha. Que fazer então? Por onde começar e como? Observando-os de noite, encolhidos ao pé das pequenas fogueiras, os seus corpos magros tremendo de frio, as suas caras atormentadas e atentamente absorvidas num jogo de cartas ou calculando os furtos do dia, descobriu que a primeira coisa que tinha a fazer era dar-lhes comida e abrigo. Devia encher as suas secas barrigas com pasto e pôr um tecto sob as suas cabeças e dar-lhes um cobertor para se protegerem do frio.
Devia construir um lugar para onde eles regressassem de sua própria vontade, pois era melhor do que os que poderiam encontrar nas ruas. Devia dar-lhes segurança com liberdade e comida, sem lhes exigir nada em troca. Nas ruas, eles tinham encontrado amizade e uma pequena dose de amor. Isto não devia ele destruir mas sim conservar, adicionando-lhe o seu próprio amor e a imensa bondade do seu amigo Spada, que todos os dias perambulava pelas ruas à procura de um local vago para os abrigar. Na bombardeada Nápoles era como procurar agulha em palheiro.
Em seguida, teria de tratar da sua saúde - doses de vitaminas, antiescorbutos, penicilina para tratamento de doenças venéreas, que alguns deles tinham contraído através dos seus contactos com as prostitutas.
Mais tarde - muito mais tarde - tentaria educá-los e achar um lugar para eles na superlotada, sem trabalho, sociedade do Mezzogiorno. Esta educação, só por si, representava um dos seus mais difíceis problemas.
Como se ensina a uma criança que os vícios que o alimentaram e o mantiveram vivos, eram de repente coisas más? Como é que se devolve a inocência violentada àqueles para quem o
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roubo, a mentira, a prostituição e a perversão se tornaram lugares comuns?
Olhou para eles de novo, agachados à volta do calor que morria, e o seu coração encheu-se de piedade e revolta contra a injustiça que os condenava a esta vida vagabunda de animais. Eram todos crianças, mesmo os de 16 e 17 anos. A vida da rua tinha consumido os seus corpos, atrofiando-os até ao tamanho dos antigos anões espanhóis. Os mais novos pareciam crianças de peito. Até os seus nomes eram diminutos Carlucciello, Tonino, Peppino.
Enquanto os observava, um dos mais pequenos começou a tremer violentamente. Os seus dentes chocalhavam, e ele tentava aproximar-se mais do prato cheio de carvão. Borrelli avançou e debruçou-se sobre ele.
- Cosé Nino? O que se passa?
Nino levantou a pequena cara simiesca e olhou para cima. Os olhos escuros estavam cheios de lágrimas, mas ele era demasiado homem para chorar.
- Tenho frio, Mário. Tenho frio.
Borrelli levantou-o nos braços e encostando-se ao canto da parede, embalou o corpo magro nos seus braços. De repente, a criança foi acometida de um espasmo de tosse. O seu peito franzino encolheu, os músculos do estômago contraíram-se, depois vomitou no chão. O padre limpou a boca do rapaz com a sua mão-um lenço era um luxo inacreditável entre os garotos da rua - depois olhou para o vómito. Era mucoso, escuro e coagulado e manchado de pequenas gotas de sangue. Nino estava num estado adiantado de tuberculose.
Uma fúria cega apoderou-se do padre, que amaldiçoou esta escura cidade, que crucificava as suas crianças ou as expulsava dos seus passeios para tossir até à exaustão nas sarjetas. Depois a fúria abrandou e ele rezou - pediu coragem e força e sabedoria para guiar estes entes perdidos, tirando-os do deserto para um lugar de repouso e refrigério. E, enquanto rezava, segurava a criança doente de encontro ao peito, ouvindo o vento frio soprando pelos becos e os gatos magros castanhos vagueando pelos montes de lixo.
Durante todo este tempo, os outros olhavam para ele, os seus olhos cansados cheios de admiração muda. Estavam contentes por ter este Mário no seu grupo. Dava-lhes coragem e
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um sentimento de segurança. Era diferente dos outros, apesar de não terem palavras para descrever a diferença.
Como poderiam elas? Mário Borrellí tinha trazido amor às crianças da rua, mas a palavra em si ainda era uma estranheza e uma zombaria.
No dia seguinte, Borrelli escapou-se dos rapazes sob o pretexto de ir arranjar remédios para o doente Nino. Tinha contactos a fazer. Primeiro com Spada, para lhe dizer que não podia esperar mais e que, quer queira quer não, tinha de se encontrar uma casa para os rapazes, mesmo que tivessem de os acampar no pátio do palácio do cardeal; depois, com o jornalista-fotógrafo, cuja ajuda precisava para preparar o cenário para o momento crítico da sua revelação como padre.
Spada tinha boas notícias para ele. Tinha encontrado um lugar - não era grande coisa, mas tinha um tecto e paredes resistentes e muito espaço. Tinha sido danificado pelas bombas e necessitava de uma grande limpeza. Não importa! Entusiasmado, Borrelli foi com o seu amigo ver. O lugar ficava numa praça pequena, no centro de um emaranhado de becos, nas traseiras da Via Teresa.
Tratàva-se de uma igreja abandonada, dedicada em tempos idos à Mãe de Deus. O nome latino era Materdei. Como a maioria das igrejas napolitanas, era de estilo barroco com uma cúpula alta e uma nave circular e um corredor à volta do zimbório. Estava suja e cheia de lixo, mas como disse o Spada, tinha um tecto e paredes robustas. O cardeal Ascalesi estava disposto a cedê-la para abrigar os rapazes.
Ebbene! Era um princípio. O lugar era frio e vazio como uma sepultura, mas depois das ruas e das vielas fedorentas, seria o paraíso.
Os olhos de Borrelli brilharam. De seguida, Spada teria de sair para suplicar, pedir emprestado ou roubar sacaria de juta e palha para fazer os colchões. Se conseguisse alguns cobertores, melhor ainda. Depois, uma panela e uma frigideira e qualquer alimento que pudesse apanhar. Precisariam de montes de pasta, tudo o mais ele poderia arrancar dos lojistas. Medicamentos, também, se lhes pudesse pôr as mãos.
Que espécie de medicamentos? Qualquer coisa - tudo! As
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necessidades dos rapazes eram tantas que quase tudo na farmacopeia seria útil. Do que não precisassem, poderiam vender e comprar outras coisas.
Spada sorriu ao entusiasmo do amigo. Depois, em tom moderado, apresentou-lhe uma questão. Mesmo hoje em dia procede assim. Borrelli é um entusiasta, um arrojado, um batalhador. Consome a sua energia numa batalha infindável para manter vivos o seu trabalho e as suas crianças. Spada é o conselheiro, o mais calmo, o amigo que cuida do seu amigo como dos rapazes, mantendo a rotina do funcionamento da casa e o lume aceso. A pergunta que fez foi de espantosa simplicidade:
-Trazemos os rapazes para aqui, muito bem. Damos-lhes quartos para dormir, comida e remédios, melhor ainda. Mas como os vamos alimentar? Como faremos um lar para eles? Não possuímos nada, literalmente nada, a não ser quatro paredes.
Mário Borrelli fechou o seu pequeno punho, esfregando-o, afectuosamente, na cara por barbear de Spada. A sua grande boca abriu-se num sorriso. Não era em vão que tinha sido um scugnizzo. Mas existem muitas maneiras de matar moscas! Havia uma dúzia de feiras em Nápoles, onde se podia vender roupa usada e ferro velho. Havia de montar uma casa para armazenar sucata vendável. Iria falar com os americanos e dizer-lhes que seria melhor manter a rapaziada longe das ruas do que tê-la a incomodar as forças aliadas, causando sarilhos aos Joes. Faria com que o seu amigo jornalista publicasse algumas fotografias e usá-las-ia como alavanca para sacar dinheiro aos avarentos napolitanos. Não te preocupes! Tinha aprendido muito com os pequenos «ajustes» que regiam a vida dos garotos da rua. Depois de os limpar, faria com os mesmos um comércio honesto. Que Spada não se importasse muito com o futuro. Isso seria com Deus. O seu objectivo era pôr as coisas a funcionar.
Spada sorriu afectuosamente. Mesmo que estivesse só meio convencido, não o disse. Allora! Pela sua parte, começaria já a trabalhar. Quando é que Mário lhe traria os garotos?
Uma sombra passou pela cara de Mário. Isso era outra história. Receava ainda o momento ameaçador da revelação. Se não acontecesse na altura própria, se ele tivesse sobrestimado
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a sua influência junto dos scugnizzi, o seu trabalho seria destruído em menos de um minuto. Teria de a encenar cuidadosamente. Tinha algumas ideias, mas não estava seguro. Estava preocupado.
Foi a vez de Spada lhe dar coragem e esperança. O trabalho, disse ele, não é o nosso mas de Deus. Lançou um olhar inquiridor a Mário Borrelli e referiu-se à escritura sagrada: «Se não for Deus a construir a casa, os que nela trabalham, fá-lo-ão em vão.» Era necessário ser cuidadoso, usar de tacto e discernimento e o sentido teatral do napolitano Sicuro! Mas depois seria com o Todo-Poderoso.
Era verdade! Borrelli deu uma risada pesarosa e concordou com o critério. Falaram um pouco mais e, deixando Spada com a sua logística gigantesca, Borrelli seguiu o seu caminho para uma entrevista na Galleria Umberto, com o seu amigo jornalista.
O seu problema era curioso.
A Itália é um país católico. A fé está profundamente enraizada no coração do seu povo, mais profundamente ainda aqui no Sul. Não obstante isso, a Itália é o país mais violentamente anticlerical da Europa. Por uma série de razões, algumas delas já mencionadas neste livro, há uma profunda divisão entre os crentes e os seus pastores. Existe uma dicotomia de consciência, que pode parecer estranha e perturbante a um católico estrangeiro, o qual, bem ou mal, aceita como verdade elementar a participação do clero na actividade social e na reforma cívica. O padre é aceite como homem. O homem é aceite como padre. Aqui, no Mezzogiorno, não é assim.
Este era o dilema de Borrelli. Se revelasse aos scugnizzi que era padre, eles não acreditariam. Se lhes aparecesse de sotaina e com o seu chapéu preto em forma de prato, não acreditariam que fosse o mesmo homem. Poderia parecer o mesmo, mas não seria ele. Seria mais um truque e eles fugiriam com medo e desconfiança.
Daí a necessidade do fotógrafo. Borrelli dar-lhe-ia uma lista dos locais de encontro do seu pequeno bando de scugnizzi. Fornecer-lhe-ia uma tabela horária aproximada. Então o jornalista daria uma volta com a sua máquina fotográfica para tirar fotografias dos rapazes e também de Borrelli partilhando das suas actividades, da sua comida e dos lugares onde dor-
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jjiiani. Revelaria as fotografias e utilizá-las-ia como provas ,ja sua boa-fé e boa vontade, quando tivesse que encarar o tribunal crítico dos scugnizzi. Mais tarde, as mesmas fotografias serviriam para publicitar o seu trabalho e abater o orgulho e indiferença dos napolitanos.
Assim foi feito. Levou quase uma semana, pois os scugnizzi estavam sempre a mover-se - para longe da polícia, à procura de uma área mais lucrativa. Finalmente, as fotografias ficaram prontas. Mais uma vez, Borrelli afastou-se do grupo para se preparar para o grande momento da revelação.
Conferenciou com Spada e foi com ele até à velha igreja, para verificar se tudo estava pronto. O que viu agradou-lhe, e a cara meiga de Spada iluminou-se com orgulho patético pelo seu trabalho manual.
Sobre os frios azulejos da antiga nave, estava uma fileira de sacos velhos cheios de palha nova. Cada saco tinha um cobertor fino e puído. Havia uma mesa tosca, uma cadeira e uma pequena pilha de lenha. Melhor que tudo, havia um saco de serapilheira cheio de macarrão e uma lata de pasta de tomate. Havia panelas e uma pilha de pratos de latão ferrugento e uns quantos garfos e colheres que já tinham visto melhores dias.
Os dois padres olharam um para o outro e sorriram, palidamente. Não era muito, mas era um começo. O estábulo estava pronto para receber as crianças de Cristo da bassi.
Os ombros de Borrelli tremeram. Spada colocou um braço amigo à volta dos seus ombros e deixou-o atravessar a nave até ao altar, agora vazio e destituído da sua antiga glória. Juntos ajoelharam-se nos degraus do santuário e rezaram, e o amor que saía deles, aquecia as frias paredes da Igreja da Mãe de Deus.
Já era noite avançada quando Borrelli regressou para junto dos scugnizzi. Tinha escolhido esta hora, porque era a pior hora de todas na vida dos garotos da rua. O sol já se tinha posto. O comércio do dia, com as suas excitações, triunfos e perigos tinha chegado ao fim. Os últimos frequentadores saíam dos casinos, e os frequentadores do teatro há muito que se tinham ido embora. Os turistas dormiam nas suas camas e os
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últimos barcos de recreio tinham partido com a última carga de marinheiros embriagados. Os rapazes ficariam sós de novo, enrodilhados à volta dos últimos carvões incandescentes e quando o lume se apagasse, o frio e a escuridão entrariam nos seus ossos e nos seus corações. Sabia como eles se sentiam desgraçados, isolados, perdidos. Ele também se sentia assim. Tinha despido a sua roupa esfarrapada e vestido a batina preta de sacerdote. Na sua algibeira de peito trazia, a pequena colecção de fotografias, a prova da sua boa-fé.
Andou devagar pelos becos escuros da bassi, rezando um pouco, tremendo muito. O trabalho de uma vida dependia do resultado dos dez minutos seguintes.
Virou numa esquina, depois noutra. Passou por uma fonte antiga gravada com o escudo de um príncipe esquecido. Rodeou a parede de uma igreja e atravessou sob uma arcada escura e mal-cheirosa. Entrou numa travessa estreita, que dava para o beco. Era um cul-de-sac 14. No seu extremo, preparando para se deitarem, estavam os rapazes do grupo.
Levantaram o olhar quando ouviram os seus passos e, quando viram que se tratava de um padre, recuaram de cara pálida e fixando-o como pequenos animais amedrontados. Tirou o chapéu e ficou de pé, olhando-os.
Sorriu, alegremente, perguntando-lhes em dialecto:
- Não se lembram de mim? Sou o Mário. Olharam-me com hostilidade estúpida. Tirei uma lanterna do bolso, apontando-a para a minha cara de barba curta. -Vejam! Sou eu. Vocês conhecem-me, não é verdade? Tu, Carlucciello? Tu, Tonino? Tu, Mozzo?
Ao ouvirem os seus nomes, ficaram inquietos e olharam-se uns aos outros, não acreditando. Carlucciello ergueu-se do chão, aproximou-se e olhou-o insolentemente nos olhos. Nino, o doente, tossiu, escarrou e gemeu, infeliz. Então Carlucciello falou:
- Pareces-te com o Mário, não há dúvida. Mas não és. O que queres aqui? Por que não regressas ao teu convento?
Os rapazes riram de manso, inquietos. Carlucciello era um verdadeiro guappo. Borrelli sorriu e tirou da sua algibeira o
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naço das fotografias. Abanou-as e entregou-as a Carlucciello.
- Primeiro, quero provar-vos que sou de facto Mário. Vá! Olhem para essas fotos. Peguem na lanterna, se quiserem.
Carlucciello pegou na lanterna e depois, agachando-se, iluminou as fotografias, enquanto os outros se agrupavam à sua volta, falando desassossegadamente e olhando das fotografias lustrosas para a cara pálida do padre à frente deles. Borrelli também falou.
- Lembram-se agora, não? Essa aí é aquela que foi tirada depois do nosso encontro com os marinheiros à porta do quarto da Filomena. Aquela é a que foi tirada quando comíamos chocolate que o Monzo tinha surripiado do carro americano. Essa outra foi tirada quando o Nino estava doente e dormiu nos meus braços toda a noite. Tu conheces-me, não, Nino? Trouxe-te os remédios, lembras-te, e os enormes comprimidos que de fizeram sentir melhor?
O pequeno raquítico garoto levantou o olhar para ele.
- E o Mário, sim. Como poderia ele saber todas estas coisas, se fosse outra pessoa?
Carlucciello ergueu-se de novo. O seu olhar era hostil. Devolveu as fotografias e a lanterna, sem uma palavra, passado um longo minuto, falou. A sua voz era calma e zangada e o pequeno grupo desviou-se, inquieto.
- Muito bem, Mário, qual é o jogo? Ontem eras um de nós, hoje és um corvo preto. Qual é a história?
- A história virá mais tarde, Carlucciello. Sou um padre, certo. Porquê e como, contar-lhes-ei mais tarde. Por agora, vim dizer-lhes que achei um lugar para nós, não é grande coisa, mas há camas e cobertores, uma fogueira e comida. Foi o melhor que consegui arranjar. O Nino está doente. Se continuar na rua, morrerá. Gostaria que viessem comigo dar uma vista de olhos. Se não vos agradar, poderão ir-se embora. O lugar é vosso, não meu.
A cara morena de Carlucciello torceu-se de raiva e desprezo. Tinha confiado neste sujeito como num irmão e ele, afinal, não passava de um vil padre. Cuidadosamente, encheu a boca de cuspo, depois lançou-o em cheio na cara de Mário Borrelli. Inclinou a cabeça para trás e riu-se. O som ecoou terrivelmente ao longo do beco vazio.
107Os outros rapazes olhavam, num espanto tenso. Assim • que os chefes agiam. Dos dois, Mário estava mais próximo deles, mas não deste modo, não vestido neste odiado traje de autoridade. Queriam ver o que ele iria fazer.
Cuidadosamente, Borrelli limpou o cuspo da cara. Meteu a lanterna no bolso e, ainda segurando as fotografias na mão agachou-se junto à parede, sem fazer caso da lama e da sujidade que mancharam a sua batina preta.
Quando falou, a sua voz era baixa e controlada.
- Se me tivesses feito isso ontem, Carlucciello, sabes bem que te teria partido o nariz. Ainda o posso fazer. Também sabes isso. Mas já deixei que gozasses um pouco. Agora senta-te e ouve. Se não gostares do que tenho a dizer^ podes-te ir embora. Não importa. Mas terás de me ouvir. E justo ou não?
Os rapazes concordaram e sussurraram entre si. Este era mesmo o Mário, não havia dúvida. Este era o modo como costumava falar - calmamente, facilmente; e o que ele dizia, fazia. Hesitaram por um momento, depois agacharam-se a seu lado. Borrelli pegou Nino ao colo e embalou-o de encontro ao peito, como costumava fazer. Pouco depois, Carlucciello também se agachou, mas um pouco distante. Claro que ele iria ouvir. Mas era demasiado sabido para se deixar enrolar por truques mesquinhos.
Por um momento, Borrelli guardou silêncio, estudando as palavras. Tinham de ser as palavras certas, ou os rapazes fugiriam dele e nunca mais se aproximariam. Disse, com simplicidade.
- Sei o que estão a pensar: que os quero levar para um orfanato, onde fecham os portões e vos mandam à escola, vos pregam sermões e, ao domingo, vos deixam passear em fila. Sorriu, alegremente. - Não o poderia fazer mesmo que quisesse. O lugar que arranjei não é grande coisa, mas abriga-os da chuva. Há colchões de palha para dormirem e um cobertor para cada um. Há lenha para uma fogueira e bastante comida para vos proporcionar uma boa refeição. Podem lá ficar de noite e partir de manhã. Se gostarem, voltam quando quiserem, para um pedaço de pão e uma cama. É melhor do que a rua, não acham?
Os rapazes concordaram, silenciosamente. Olharam para
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Carlucciello, mas este fixava o chão, fazendo um desenho obsceno com o dedo.
Borrelli prosseguiu:
- Vou agora para lá. Não os quero forçar a vir. Podem seguir-me ou permanecer onde estão, conforme desejarem. Só farei uma coisa, vou levar o Nino ao colo. E longe e ele está doente. Vou tentar arranjar um médico e remédios. E tudo. De aqui em diante, é convosco.
Levantou-se de um salto, encavalitou Nino aos ombros e carregou-o como um fardo pelo beco escuro abaixo. Ouviu os murmúrios e o tumulto, mas não olhou para trás. Continuou a marcha de cabeça baixa, os braços atrás das costas suportando a franzina criança, que se agarrava aos seus ombros como um macaco.
Só ao chegar à Via Gennaro se atreveu a olhar para trás.
Os rapazes estavam a umas 12 jardas de distância15, seguindo as suas pegadas. Muito mais atrás, estava a figura curvada e magra de Carlucciello.
O seu coração pulou. A sua boca rasgou-se num sorriso tão largo como uma melancia e começou a assobiar a alegre melodia O Patinho e o Girassol. O «multicolorido tocador de flauta de Nápoles» levava as suas crianças para casa.
15 Cerca de 11 m. (N. da T.)
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VI!
A primeira coisa que salta à vista do visitante na Casa dos Gaiatos é a sua pobreza. Esta pobreza é uma crítica diária ao egoísmo e inferença social dos italianos ricos. Estão aqui dois homens novos a manter 110 crianças abandonadas e dez ajudantes, com menos de um dólar por dia, por cabeça. Experimente e veja se gosta - um dólar por dia para pagar comida, roupa, casa, luz, água, gás, electricidade e serviços médicos, não falando já na educação, livros escolares e nas milhares de contingências de uma instituição de caridade.
O lugar tem aspecto pobre. É uma construção velha e cinzenta numa rua escondida, que dá para uma fileira de habitações com estendais de roupa lavada suspensos das varandas, com galinhas a debicar entre os montes de pó. Possui quartos de dormir com filas de camas de ferro lascado, cada uma com dois cobertores e um par de lençóis desbotados e uma pequena toalha.
Tem um pequeno dispensário onde os rapazes mais velhos administram os primeiros socorros. Tem duas salas de estudo e uma sala de jantar e uma pequena cozinha com um fogão, mas não tem frigorífico. Há um quarto de banho com chuveiro de água fria e uma fileira de bacias para lavar mãos e pés, mas sem água quente. Nenhum cavalheiro de Nápoles se lembrou ainda de doar um sistema de aquecimento.
Num quarto comprido e estreito, há uma televisão, onde os jovens se sentam, fascinados, todas as tardes pelas 17 horas e 30 minutos. Existe um pátio muito pequeno nas traseiras da igreja, comprado com um donativo papal de 5 milhões de liras. Parece muito quando se diz em liras, mas são menos do que
3000 libras esterlinas.
A comida é simples mas abundante -pasta com o inevitável molho de tomate, carne uma vez por semana, sopa, pão e compota e, de vez em quando, fruta. Se quiser ter o trabalho de verificar os números do custo de vida no segundo capítulo i
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deste livro, verá porque não há muita variedade. Também se admirará como se governam tão bem só com um dólar por dia, por pessoa. A roupa dos rapazes é pobre e remendada, mas quente e utilitária. Não usam uniformes, porque não os podem comprar. Mas quando os mais velhos vão trabalhar, compram um fato e quando os mais novos vão à escola, cada um leva uma bata limpa, a fim de não se diferenciarem dos outros da sua classe.
Quando o padre Spada o levar a fazer uma visita de inspecção você entenderá a modéstia e o orgulho patético com que ele falará sobre o muito que se fez com tão pouco. Recebem uma pequena dádiva proveniente dos fundos de uma organização papal. Do governo ou do município não recebem nada. Quase tudo foi pago com a venda de sucata e de roupa usada e com um pouco de caridade particular, esporádica e incerta como todas as boas acções em Nápoles.
O lugar é limpo e os rapazes estão asseados, de um modo rude e apressado. O prédio tem centenas de anos. O estuque racha-se e das paredes de calcário cai um pó fino que cobre tudo. Os garotos brincam num pátio não calcetado entre as altas paredes de habitação que se desagregam.
Mesmo assim são felizes. Podem entrar e sair quando querem. Ficam porque querem ficar, porque encontraram um calor e um amor mais fortes ainda do que o chamamento das ruas. Têm orgulho neles próprios e na sua casa, e este orgulho é mais surpreendente pela pobreza em que floresce.
Dirão que é pouco, lamentavelmente pouco, que conseguimos após cinco anos de desilusões e sacrifício. É verdade. Mas quando se pensa no difícil começo e na extrema indiferença da alta sociedade de Nápoles, verificarão que foi na verdade uma grande conquista.
O primeiro punhado de garotos inquietos que chegou à Materdei a pedir comida e cama, partiu na manhã seguinte. Mário Borrelli não fez nada para os impedir de partir. Deu-lhes o pequeno-almoço com os restos da refeição da noite anterior, enfiou alguns cigarros nos seus bolsos rotos, dizendo-lhes que o lugar ficaria aberto de noite e de dia para aqueles que quisessem voltar. Também lhes disse outra coisa. Se algum deles fosse apanhado pela polícia, os outros deviam avisá-lo que ele pagaria a fiança do transgressor para o libertar. Os rapazes
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sorriram, inquietos. A ideia era nova para eles mas talvez se tornasse útil. Disseram-lhe adeus, com indiferença, e foram-se embora para a bassi, para a negociata do dia.
Na noite seguinte estavam de volta, com mais alguns recrutas esfarrapados. A panela fervia e os cobertores eram convidativos. Os que chegavam pela primeira-vez tiveram que se acomodar dois a dois nos colchões de palha. Enquanto comiam Borrelli encostou-se à parede e tocou música no seu desconjuntado acordeão. Não houve rezas, nem sermões, só uma quente difusão de amor e camaradagem. Borrelli é um homem impaciente, mas a vida na rua tinha-o ensinado que o fermento da bondade trabalha muito, muito devagar.
Assim os rapazes vinham e iam, mas quando compreenderam que não havia obrigatoriedade, nem truques escondidos, ficavam um pouco mais. Borrelli e Spada aproveitavam-se dos intervalos para acrescentar mais conforto - uma cadeira ou duas, uma cama para os doentes, um velho fogão, casacos rejeitados e sapatos rotos pedidos aos pobres. Tinham conversas discretas com a questura, para quem os rapazes eram tão incómodos como as moscas de Verão. Em vez de os meterem em casas de correcção, porque não levá-los à Materdei, dando a Borrelli uma oportunidade de os reabilitar?
A polícia era céptica. Os rapazes eram duros como criminosos. Um padre dificilmente seria a pessoa indicada para os controlar. Borrelli mostrava as fotografias, falando com entusiasmo e convicção. Ele também podia ser duro quando queria e não tinha escrúpulos em utilizar os seus conhecimentos de manhas policiais para fazer prevalecer o seu ponto de vista. A questura começou a ver alguma razão nos seus critérios.
Uma noite, depois da refeição e da música, Borrelli agachou-se no chão, no centro do círculo de colchões e apresentou a sua proposta. O seu discurso foi feito no calão vibrante das ruas.
Tinha feito o que tinha prometido. Não era verdade? Tinha-lhes dado comida e abrigo sem fazer perguntas e sem cobrar nada. Não tinha razão?
Tinha! concordaram os rapazes.
Confiavam nele?
Sicuro!
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Eles sabiam que ele não usava truques nem falava duas línguas?
De novo, sicuro.
Concordavam que ele sabia uma coisa ou duas para conseguir uma côdea de pão?
Os rapazes sorriram, gargalhando. Sabiam muito bem. Ele era um guappo, sim senhor. Já o tinham visto em acção.
Muito bem! A sua ideia era a seguinte. Em vez de trabalharem na rua, como o faziam agora, em vez de terem de fugir da polícia e dos carabinieri, em vez de terem que vasculhar no lixo dos becos e serem corridos pelos lojistas e pelos porteiros, porque não trabalhar juntos? Porque não fazer um lar aqui e organizar o seu próprio comércio? Podiam fazê-lo de dia e ter as noites livres.
-Que espécie de comércio?-Carlucciello perguntou, mas sabia que a mesma pergunta passava também pela mente dos outros.
Explicou, com simplicidade:
- O que fazes tu agora, Carlucciello, ou tu Peppi? Vocês roubam stracci (roupa velha) ou baterias de carro e sobressalentes ou ferramentas de carpinteiro. Depois, vendem-nos na feira em Pugliano ou no Porticino. Correcto?
- Correto.
- Muito bem. Agora farão o mesmo. Só que o farão legalmente. Ganharão o mesmo dinheiro que ganham neste momento, provavelmente até mais, pois não terão problemas com a polícia e os receptadores não poderão ludibriá-los porque vocês não terão medo. Compreendem?
Carlucciello anuiu. Compreendia tudo, menos de onde viria a mercadoria.
Também isso Borrelli explicou. Pediria alguma, compraria outra. Ele sabia como regatear. Consegui-la-ia a preços bons. Depois, limpá-la-iam e vendê-la-iam com lucro. O que é que achavam?
Os rapazes, entusiasmados, inclinaram a cabeça em sinal de concordância. Até Carlucciello ficou impressionado.
Borrelli era um homem sábio e a sua sabedoria estava temperada de astúcia meridional. Sabia que estava a apelar para um dos mais profundos desejos dos scugnizzi, que eram, aliás, os de todos os napolitanos - o desejo de respeitabilidade

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e um lugar seguro na sociedade. Esse desejo quando desfrutado, produz a vaidade e a petulante afirmação pessoal, que são as características mais irritantes dos homens do Sul.
Também apelava para a sua fúria, o instinto para o negócio e acordos rápidos. Por isso, esperou; os rapazes também aguardando uma dica de Carluciello. O rapaz moreno estava a preparar outra pergunta.
-Até aqui, soa bem. Mas se não der resultado, podemos desistir, não? Podemos deixar quando quisermos?
- Quando quiserem.
-D’accordo! - disse Carlucciello, bruscamente. -Negócio fechado. Quando começamos?
- Amanhã - respondeu Borrelli, sorrindo. Pegou no seu acordeão, puxou a correia para cima do ombro e começou a tocar uma ária napolitana muito conhecida, «Scaptriciatiello». Os rapazes acompanharam com vozes estridentes e roucas e o som ecoou à volta do estuque rachado da cúpula.
Foi nessa noite que a Casa dos Gaiatos realmente começou, tal como hoje está. De um só golpe, Borrelli resolveu um número de situações críticas.
Tinha transformado a Materdei de uma cozinha num lar. Tinha transformado os primeiros scugnizzi de rufias e vagabundos em comerciantes independentes. Tinha instituído uma pequena fonte de rendimentos para a sua manutenção. Tinha possibilitado aos mais velhos, como Carlucciello, a obtenção de carteiras profissionais de vendedores ambulantes ou colaboradores de instituição de caridade. Tinha algo a mostrar ao cardeal Ascalesi e às autoridades civis, quando lhes pedisse ajuda para consolidar e desenvolver a sua obra. Agora, quando dava uma volta à procura de garotos transviados, por entre as padiolas ou as grades dos padeiros, podia prometer-lhes companheirismo e compreensão, assim como cama e comida. Com Spada, na qualidade de administrador e pai da casa, ele poderia iniciar o lento e difícil processo da reeducação.
Para mim, este era o ponto mais crítico das minhas investigações. O sucesso ou fracasso da obra de Borrelli e Spada dependia disso. Não obstante todo o drama do seu princípio, de
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toda a caridade que ela envolve, a única medida do seu valor é o sucesso ou fracasso da reeducação dos scugnizzi e da sua reintegração na vida normal.
Assim o disse a Borrelli. Ele concordou, de todo o coração. Disse-lhe que queria autorização para proceder às minhas próprias investigações. Respondeu-me que podia fazer qualquer pergunta, que tanto ele como Spada responderiam francamente. Disse-lhe que não era o bastante. O ponto de vista eclesiástico podia não transmitir toda a verdade. Este livro tinha de ser honesto, de contrário seria melhor não o escrever. Eu próprio tinha sido professor em escolas primárias e liceais durante quase dez anos. Queria mover-me entre a rapaziada. Queria abordá-los livremente. Queria acamaradar com os mais velhos, ir com eles para a cidade revisitar os cenários das suas antigas actividades, estudar as suas reacções, fazer o meu próprio julgamento sobre o sucesso ou o fracasso da Casa. Borrelli sorriu, contente, e disse que eu podia fazer o que me agradasse. Deu-me uma cama na enfermaria e a liberdade da casa. O que lhes vou contar, é o que eu próprio encontrei. Asseguro-vos que não o escrevi de ânimo leve.
A primeira coisa que notei foi um facto estranho.
Qualquer rapaz que viesse para a Casa dos Gaiatos - quer fosse a polícia a trazê-lo, quer fosse Borrelli ou o próprio rapaz a ir para lá - ia-se embora passados três ou quatro dias. A nova vida era tão estranha, o chamamento da rua tão forte, que a sua mente espantada, inquieta, não podia suportar a tensão. Fugia. O porteiro vê-lo-ia partir, alguns dos rapazes também, mas ninguém faria uma tentativa para o impedir. Era a regra da casa - a porta abria-se para ambos os lados. A Casa existe para os rapazes, não os rapazes para a Casa. É o seu lar: se não quiserem lá ficar, se o amor que oferece não for suficiente, são livres de partir.
Mas voltam sempre. Três, quatro dias, uma semana mais tarde, uma pequena cabeça desgrenhada e uma cara suja espreita inseguramente pela porta. Pode comer ou ver a televisão? Claro! O porteiro ou o encarregado aponta um dedo para cima. Ele conhece o caminho. Está tudo aberto. A pequena e niagra figura do garoto atravessa a porta correndo, dirigindo-
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-se inseguramente para a cozinha, para o pátio do recreio ou para a sala de estudo. Se o padre Spada o encontra no corredor, esfrega-lhe a cabeça despenteada e sorri, contente.
- Não te esqueças de te lavares antes de ires para a cama É tão simples como isso. Ninguém faz perguntas. É suficiente que o rapaz tenha regressado.
Alguns deles deixaram a Casa duas ou três vezes. Estes também regressaram, geralmente escoltados por um polícia. A razão é curiosa, e tem o seu quê de patético. O rapaz já conhece a Casa. Desistiu da sua posição defensiva. Já não tem necessidade de artimanhas nem de cinismo. Quando regressa à rua, está destreinado. Já não consegue sobreviver como os outros.
De volta à Casa, começa a modificar-se, pouco a pouco. O medo desaparece dos olhos. Perde o olhar furtivo e inquieto dos perseguidos. Já não fala alto nem é agressivo. Sorri quando se fala com ele. Começa a brincar no pátio. O corpo começa a desenvolver-se visivelmente, engorda e cresce como um pé de bambu nos trópicos. Já vi isso acontecer com os meus próprios olhos e é uma experiência comovente.
Levou-me algum tempo a compreender a natureza do fenómeno. O scugnizzo retorna ao seu estado natural - uma infância despreocupada, livre das desenraizantes responsabilidades da sobrevivência. Não tem de se preocupar com comida ou dinheiro ou com um lugar para dormir. Não está atormentado pela culpa das suas acções nem pela presença ameaçadora da lei. As pessoas à sua volta são amigas. O amor que lhe é oferecido tem a indiferença alegre da afectividade familiar. Assim, o espírito torna-se tranquilo e o seu corpo atrofiado começa a crescer. Mas nunca crescerá como o corpo do seu ou do meu filho, porque o amor e os cuidados vieram muito tarde.
- E quanto ao passado? A criança esquece?
Fiz a pergunta ao padre Spada, numa tarde em que estávamos num canto do pequeno pátio de recreio, vendo os jovens jogar à bola. Pareciam-se com qualquer punhado de rapazes saudáveis e sujos em qualquer campo vazio. Spada esfregou o
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queixo e olhou para mim, através dos seus óculos espessos. A sua voz era suave e ponderada.
- Tentamos fazer com que eles esqueçam. Em parte, somos bem sucedidos com os mais novos. Quando vêm até nós, pela primeira vez, têm pesadelos. Rangem os dentes e murmuram durante o sono. Por vezes, acordam aos gritos. Mais tarde, dormem tranquilamente. Esquecem porque querem esquecer. Apesar de todos o sabermos, mesmo quando a esquecemos, nunca conseguimos apagar uma recordação.
- Também se esquecem dos vícios? Os que tiveram relações com prostitutas, quando tinham apenas 10 anos? Os que foram apanhados pelos pederasti? Levam os vícios para a Casa?
A sua resposta foi franca e interessante.
- Em geral, a resposta é não. Acho que temos aqui menos problemas com aberrações sexuais do que encontraria em qualquer internato moderno para rapazes de boas famílias. Há uma razão para isso. Os contactos prematuros com prostitutas são insatisfatórios para rapazes ainda em desenvolvimento. Acontecem em lugares que prejudicam o seu amor próprio. O desejo que esses contactos lhe proporcionam consomem a sua fraca energia. De um modo curioso, ele compreende isso e, sempre que pode, evita essas ocasiões e, inconscientemente, fica contente com isso. Os seus interesses aqui, jogos, estudos, a vida da Casa, são muito mais satisfatórios para ele do que para o rapaz que sempre os teve. Portanto, pelo menos por agora, não está interessado em renovar os seus contactos com as mulheres.
- E a outra coisa, as relações homosexuais?
- Temos encontrado transgressões ocasionais, mas não muitas vezes.
-Alguma razão especial? A experiência normal prova que a pederastia é um hábito difícil de erradicar. Spada aquiesceu:
- Como experiência normal, sim. Mas aqui, também, terá de compreender que o scugnizzo não é um delinquente normal. Quando, pela primeira vez aqui chega, é de esperar que faça qualquer coisa. Mentirá, trapaceará, lutará.x Tentará encontrar alguém com quem partilhe o seu vício. É a sua forma de revolta, compreende. Mas quando regressa, após a sua fuga,
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é porque chegou à conclusão de que aqui ele é mais homem do que é nas ruas. Assim, desenvolve uma rápida reacção contra a pederastia.
- Uma reacção normal?
- Não, uma muito natural. Ele compreende, à sua maneira, que ao dar-se a outro rapaz, coloca-se nas suas mãos. Já passou por essa experiência. Não a deseja repetir. Mesmo por prazer, não o fará. Foi na rua que adquiriu esta sabedoria elementar. O que nós tentamos fazer é confirmá-la através do nosso próprio ensinamento moral.
Gostei deste raciocínio. Era simples, pragmático e isento de moralização untuosa. Penso que agradaria a qualquer psiquiatra. Mais tarde, pude constatar a sua veracidade nas longas conversas que mantive com Peppino e com os rapazes mais velhos da Casa. Para já, estava satisfeito com a explicação. Havia outras coisas que queria saber.
- Logro, por exemplo, mentira, roubo? Como você mesmo disse, os rapazes quando chegam são adeptos dessas faltas. Ainda as praticam?
Spada anuiu.
-Quandochegam, pela primeira vez, sim. Deverá lembrar-se que o scugnizzo é um actor que aprendeu a usar a máscara que lhe trará melhores benefícios. A expressão suplicante, para o turista. A expressão sabida, para os marinheiros. A expressão negociadora, para os receptadores e alcoviteiros. Quando cá chega, tenta tudo isso. Só muito mais tarde compreende que a única cara que queremos que ele tenha, é a verdadeira, a de uma criança.
Isto era algo que eu tinha aprendido através da minha própria experiência. Quando ao princípio chegava à Casa, com os bolsos cheios de doces para os mais novos e cigarros para os mais velhos, fui submetido à pequena comédia da adulação e fingida afeição. Depois de viver com eles algum tempo, deixaram cair a máscara e trataram-me com a franqueza casual de crianças normais.
- E quanto aos roubos?
- Não - disse Spada, violentamente. - São scugnizzi e não roubam entre si. Quanto ao resto? - Encolheu os ombros, comicamente. - Temos cá tão pouco que valha a pena roubar, que a questão não se põe.
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peixei-o e regressei ao meu quartinho branco, no topo da tfaterdei, a fim de registar a nossa conversa e acrescentá-la aos outros factos, que tinha coligido sobre a humanização dos garotos da rua.
Quanto à educação formal, os mais novos são enviados à escola elementar pública, não longe da Casa. Todas as manhãs vestem a bata preta que todas as crianças napolitanas usam para ir à escola. As caras são lavadas, as fitas atadas à volta do pescoço e, depois de inspeccionados pelos rapazes mais velhos, partem juntos. Mesmo agora, só existem dois padres para governar a Casa e o pessoal pago só trata da comida e da limpeza e do negócio de segunda mão que sustenta a Casa. Assim, a maior parte dos estudos tem de ser feita fora.
Isto significa que, como a maioria das crianças napolitanas, os garotos têm cerca de três horas de aulas por dia, três dias por semana. Revezam-se das 9 às 11 horas, e das 11 às 14 horas, em dias alternados. Quando regressam à Casa, os monitores ajudam-nos com os seus deveres caseiros, dando classes informais. É uma situação pouco satisfatória, mas coloca-as em igualdade de circunstâncias com as outras crianças de Nápoles, que têm a sorte de frequentar escolas. De qualquer modo, estão muito melhor do que aqueles milhares que não o podem fazer.
- Como é que eles se comportam na escola?
Fiz a pergunta a um dos jovens pagos por Borrelli, um jovem brilhante e inteligente da Calábria, que recebe 500 liras por dia como monitor e assistente de professor. Na Nápoles sem trabalho, é uma sorte ele ter este emprego. Mais do que isso, explicou com simplicidade, acha que está a fazer algo de útil para ele próprio e para as crianças. Cuidadosamente, respondeu à minha pergunta.
- Na escola os rapazes comportam-se como os outros. Não existe diferença entre os outros alunos e os scugnizzi. Vestem-se do mesmo modo. Os pobres de Nápoles respeitam-se uns aos outros. Se existe alguma vantagem, é do lado dos nossos rapazes. São espertos. A rua ensinou-os. Além disso, quando regressam da escola, podem estudar um pouco e preparar os deveres. Os outros, os que vivem seis, oito, doze num quarto da
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bassi, como podem eles estudar, mesmo que o quisessem fazer? Capisce?
-Capito. - Era elementar, mas significativo. Parecia que Borrelli e Spada estavam a fazer melhor do que a maioria, com os meios limitados de que dispunham.
Comparado aos padrões anglo-saxónicos, o resultado não era famoso. As salas de aulas da Casa são poeirentas e vazias de pessoal docente. Há um quadro, uns poucos de livros escolares rasgados e um retrato ou dois sujos de detritos de moscas. E é tudo. Mas quando se observam estes jovens, debruçados sobre os seus deveres caseiros, com os monitores ao lado, sente-se neles um entusiasmo e uma vontade de aprender, que envergonhariam algumas das nossas crianças.
A Casa dos Gaiatos não pode custear a aprendizagem dos seus professores nem obrigá-los a fazer os exames oficiais. Mesmo que pudesse, não estaria em condições de lhes pagar o mínimo salário obrigatório, retirando-o do seu rendimento modesto de 1 dólar diário, por pessoa. Assim, os rapazes fazem o melhor que podem nas escolas oficiais, onde os métodos são antiquíssimos e onde a superlotação e o sistema de revezamento partem o coração mesmo aos mais empedernidos professores.
Quando se olha na direcção do cais de Nápoles, vê-se uma nova praça, onde o presidente da Câmara está a construir prédios para os seus amados cidadãos. O presidente é o Sr. Lauro e a praça fica mesmo ao lado dos belos escritórios comerciais da Companhia Flotta Lauro. O Sr. Lauro é um homem de espírito público. Foi ele que construiu a parede para esconder os pardieiros, a fim de que estes não estragassem a vista ao longo da Via Marítima. Também presenteou a cidade com uma magnífica fonte nova. O seu último gesto foi a dádiva de um aparelho de televisão a todas as filiais do Partido Monárquico. Pergunto-me porque não se teria ele lembrado de construir uma ou duas escolas para as crianças?
Quando um rapaz já está na Casa há algum tempo, surge outro problema - os seus pais ou parentes! Poucos rapazes são órfãos. A maioria tem pais vivendo em Nápoles. Como Borrelli me explicou muitas vezes e eu já tentei explicar neste li-
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vro, não é a fome ou o abandono ou a morte que afugenta os rapazes para as ruas, é a dupla carga de responsabilidade e a falta de amor.
Quando o pai ou algum parente tem conhecimento da boa sorte do rapaz em ter encontrado um lar, a sua primeira reacção é extrair da situação um benefício pessoal.
O pai virá, rogando a Borrelli que lhe devolva o filho. Ama muito o filho. Não suporta estar separado dele. Precisa da criança para o ajudar no negócio. Uma mãe, vendo a fotografia do filho num jornaleco que Borrelli publica, apresentou-se na Casa, exigindo pagamento. Os vizinhos tinham-na informado que os modelos fotográficos têm o direito de ser pagos. Ela era a mãe do rapaz e era dever dele sustentá-la. Quando o rapaz vai a casa, como acontece algumas vezes, para visitar a família, esta tentará tudo para o prender, chorando, suplicando, sujeitando-o, como fazem ao turista, à desprezível comédia da miséria.
Por exemplo, quando sugeri levar dois garotos para passar o fim-de-semana na minha casa, Spada abanou a cabeça.
-É melhor não, amigo. Claro que ia ser bom para eles. Mas quando as famílias soubessem, você seria importunado por uma fileira deles, a exigir caridade. Nós sabemos como tratar com eles. Você, não.
A maneira de tratar os familiares usava a brutalidade cega. Se importunassem demasiado a criança, Borrelli ameaçava-os de procedimento policial por negligência e violação das leis escolares e de trabalho. Tinha lutado muito por estes rapazes para deixar que fossem de novo explorados.
Não obstante isto, há sempre uma divisão de lealdades, que cria problemas à própria criança. Na rua, não tinha consciência disso. Tinha feito a sua escolha. Tinha que preservar a sua independência, se quisesse sobreviver. Na Casa deixava de estar na defensiva, tornando-se de novo vulnerável à venalidade da sua família.
O ambiente da Casa é livre e fácil. Não se tocam sinos. Os rapazes não se agrupam para marchar de um lugar para outro, como acontece mesmo em internatos normais. Os mais velhos podem fumar, não explica Spada, porque seja bom para eles, mas porque foram acostumados ao hábito nas ruas e é tão forte neles como é nos adultos. Era melhor permitir-lhes
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se luxo e deixá-los sentirem-se à vontade, do que encontra-los nos cantos, fumando às escondidas, num acto de rebelião. Esta atitude liberal é deliberadamente cultivada na Casa e é muito importante para os rapazes. Segundo Borrelli e Spada o mais importante de tudo é proporcionar aos rapazes um lar. Tudo o resto é secundário. Se se sentirem livres e seguros ao mesmo tempo, assentarão e reeducar-se-ão. Por si próprios responsabilizar-se-ão pela preservação do seu lar e dos princípios em que foi fundado.
Quando via o cuidado e ternura com que os mais velhos tratavam dos mais novos, quando via os olhos observadores de Peppino sobre os scugnizzi que encontrávamos durante as nossas deambulações nocturnas, verificando se algum dos fugitivos da Casa se tinha juntado a eles de novo, senti que Borrelli e Spada tinham razão. Os seus métodos eram sãos. O seu sucesso óbvio.
Com os rapazes mais velhos, que fizeram os cinco anos de curso elementar e chegaram, digamos, aos 15,16 ou 17 anos, surgia um novo problema. Ou antes, uma série de problemas, os quais mesmo o feitio rude e combativo de Borrelli, não podia resolver. Para o fazer teria de destruir toda a estrutura política, económica e moral do Mezzogiorno. O que não seria má
ideia. Os esgotos começavam a cheirar mal. i
Quando os rapazes chegam à idade liceal, Mário Borrelli
tem de fazer uma escolha simples, mas brutal. Educá-los-á
ou dar-lhes-á uma oportunidade de comer durante alguns *
anos?
Se os enviar para o liceu - o que não tem meios para o fazer - terão uma educação clássica, à maneira antiga. Esta educação preparará as suas mentalidades para o melhor que há no campo da literatura, arte, filosofia, história; mas negar-lhes-á os meios para a usufruírem.
Em Nápoles, há advogados a conduzir táxis. Há filósofos a servir café expresso. Em todas as estações de caminhos de ferro, você verá avisos anunciando exames para postos de trabalho civis de menor importância. Os homens que se candidatam são laureados em artes, leis, letras e economia. Um em100
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têma chance de obter o lugar. Portanto, para os rapazes de Borrelli. esta é uma educação cara e uma perda de tempo.
Claro que há a educação técnica. Em Nápoles, não há muitas escolas técnicas, mas se se conseguir entrar numa da meia dúzia de colégios que existem, será uma sorte. Mas há tão pouco vagas e tantos pais prontos a pagar pelo privilégio de lá terem os filhos, que aos scugnizzi não resta nenhuma esperança. Evidentemente, se algum cavalheiro napolitano facultasse uma ou duas bolsas de estudo aos pobres desta cidade, o caso seria diferente. Contudo, pondo de parte este milagre remoto, vamos presumir que Borrelli obtenha fundos suficientes e bastante influência para iniciar alguns destes rapazes num curso técnico, que lhes proporcione com inteligência e muito trabalho, digamos, um diploma agricultural.
No Sul existe um sistema insidioso chamado Ia raccomandazione. Para se poder passar um exame, ser promovido de classe e obter o diploma final, o estudante não só tem de obter boas notas, como ser raccomendato - recomendado pelo seu professor. Considerando que um diploma técnico é, hoje em Itália, um dos poucos passaportes para um emprego, a recomendação do professor é de vital significância. Poderá mesmo dizer-se que é de importância capital.
Isso é o que certos professores também dizem. Cobram dinheiro pela sua recomendação. A um amigo meu pediram, particular e discretamente, 200 000 liras para o recomendarem a um diploma de engenheiro. Ele não tinha o dinheiro. Mesmo que o tivesse, não teria pago. Mas isso custou-lhe mais de três anos para obter o diploma - três anos durante os quais poderia ter ganho o salário de um técnico. Que chances tem um ex-scugnizzo contra um sistema como este?
Assim sendo, Borrelli toma a terceira e única estrada que lhe é possível - electricistas, marceneiros, soldadores, mecânicos. Os rapazes aceitam estas profissões com alegria. A vida das ruas, tornou-os conscientes da dignidade do trabalho e da sorte de se ser capaz de o obter.
À noite costumava vê-los regressar, sérios, sujos de óleo, cansados, à pequena hospedaria que Borrelli lhes tinha arranjado perto do Duomo. Costumava comer e falar com eles. Gostavam das suas profissões. Gostavam de sentir as ferramentas nas mãos. Economizavam para comprar revistas téc-
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nicas e manuais de instrução. Estavam sedentos de aprender Mas não havia ninguém para os ensinar!
Parece loucura, mas é assim. Não havia ninguém para os ensinar, porque os seus patrões não queriam que eles aprendessem.
Ao princípio fiquei espantado, mas depois compreendi que tinha tropeçado na explicação de uma coisa que me preocupava há muito.
Aqui no Sul, o padrão de mão-de-obra técnico é terrivelmente pobre. Fiquei horas a observar homens a trabalhar numa nova villa. O cimento era meio misturado, as trajectórias tortas, não havia formas para as molduras das janelas e portas, não havia ventiladores. A instalação eléctrica era uma armadilha de morte e a canalização uma monstruosidade mecânica. Os mecânicos do Sul são capazes de polir o seu carro até ficar brilhante como um diamante, mas por outro lado, também são capazes de atar as suas peças interiores com cordel.
A razão disto, foi-me explicada por dois dos rapazes mais velhos de Borrelli.
Aos 15 ou 16 anos tinham sido aprendizes. Os seus patrões -um modesto marceneiro e um garagista com seis mecânicos
- ensinaram-lhes o suficiente para fazerem serviços ocasionais que aparecessem no lugar. Se quisessem aprender mais, eram mandados varrer o chão ou filtrar óleo para o reservatório. Porquê? Primeiro, porque se aprendessem demais, poderiam tornar-se rivais em potencial. Segundo, os patrões não tinham a intenção de os empregar para além dos 18 anos.
Era o sistema antigo, há muito banido por comerciantes sãos do meu país, de utilizar mão-de-obra barata, atirando-a depois, meio treinada e desprotegida, para o mercado do desemprego.
Os rapazes mais velhos sabiam o que lhes iria acontecer. Todos tinham receio. Duplamente receosos, porque não tinham família a quem recorrer, se perdessem os empregos.
Borrelli também sentia medo e revolta, mas não sabia o que fazer para solucionar o problema. Tinha tido conversas pessoais com os patrões e tinha só encontrado a habitual cabeça levantada e o encolher de ombros compadecido. Cosa fare? Os tempos estavam maus. Já era uma caridade aceitar os rapazes
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quando havia dezenas de milhares de homens casados sem trabalho.
Controlando a sua cólera, Borrelli esclarecia que tirar proveito do trabalho não qualificado dos jovens, sem assumir a responsabilidade pelo seu futuro bem-estar, era um pecado grave. Era tão grave como tirar proveito do corpo das mulheres nos prostíbulos. Destruía a dignidade humana...
Interrompia, doente de indignação pela indiferença arrogante desses sujeitos. Enfurecia-o saber que dependia deles para achar trabalho para os seus rapazes. Mas já tinha tentado as grandes organizações, que pouco ou nada podiam fazer por ele.
A administração estava disposta a colaborar, mas o mecanismo da organização levou Borrelli, por fim, até à porta do chefe do pessoal. A resposta era sempre a mesma. Não havia vagas. Claro que não pode haver vagas numa cidade com 200 000 desempregados. Além disso, era política da empresa dar trabalho a homens casados. Contra este princípio, Borrelli não podia lutar.
Podia condenar era a prática usada por certos chefes de pessoal, que cobrava uma pequena percentagem daqueles a quem davam emprego. Mas onde é que isso o levaria? Todos em Nápoles praticam o jogo da fraude!
E ali está ele agora, o homem que levou esperança e amor e dignidade humana às crianças sem lar de Nápoles. Arrancou-as às ruas. Deu-lhes um lar, ensinou-as a ser honestas e dignas. Educou-as o melhor que lhe foi possível - e agora? Terão de regressar às ruas.
Por que não lhes ensina ele próprio um ofício, perguntará você? Por que não monta uma oficina, com professores qualificados, fazendo ele as recomendações e fornecendo à indústria italiana técnicos bem habilitados de que ela tanto precisa?
A resposta é que não tem dinheiro para isso e nem o consegue arranjar. Os fundos da Igreja são espalhados escassamente entre as muitas obras de caridade que tem de patrocinar. Borrelli afirma-honestamente, acredito - que recebe a sua justa parte. Do Estado não recebe nada. Do município de Nápoles, também não, apesar destas serem as crianças de Nápoles, a amável, a romântica e sentimental cidade que os
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turistas visitam. Da caridade privada recebe uma ninharia, o suficiente para manter a sua obra ao nível actual.
Ele sabe, como você e eu sabemos, que milhares de milhões de dólares americanos entraram neste país para financiar obras como esta, para produzir trabalhadores qualificados para desenvolver os recursos do empobrecido Sul. Dizem-lhe que a Itália é um país pobre, que os seus recursos são magros. E verdade, mas os recursos podiam ser triplicados se o dinheiro fosse aplicado honestamente e com pessoal qualificado.
Este ano os agricultores do Sul foram atingidos pelo mais rigoroso Inverno dos últimos anos. Foi um desastre de primeira magnitude. Mas não ouvi falar da criação de um fundo para ajudar o Sul. O Banco de Nápoles continuava a emprestar dinheiro a 13%, aumentando a taxa para 17% no desconto de obrigações. Ouvi muitas histórias inquietantes sobre industriais e banqueiros que pagam prémios de seguro sobre os fundos do Partido Comunista; mas ouvi poucas sobre dávidas e empréstimos para alívio da desgraça geral.
E os dólares americanos fechados à chave na Cassa dei Mezzogiorno? Os agricultores atingidos dizem que não viram nenhum. Também não foram utilizados para manter baixo o preço do azeite de oliveira para as famílias sem trabalho.
E claro que nenhum deles chegou às mãos de Don Mario Borrelli!
PARTE III
COMO REMEDIAR A SITUAÇÃO?
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VIII
A primeira coisa a fazer é responder a uma pergunta. Com que direito um estrangeiro, um cidadão de um país com emprego para todos e um alto padrão de vida, chega à Itália e se põe a julgar as suas condições sociais e a sua administração política e eclesiástica?
A pergunta é justa. Acho que a resposta também o é. O governo italiano gasta mais dinheiro com campanhas turísticas do que com obras de caridade ou de reforma social. O visitante paga uma taxa de permanência curta e o custo da sua manutenção é muito mais elevado do que o do seu próprio país, se desejar melhor alimentação e melhores padrões sociais. Esta é apenas uma pequena parte da resposta. As divisas turísticas mantêm este país solvente. Através da emigração para a Austrália, Canadá, América e Argentina, escoa-se parte da sua população desempregada. Os dólares dos Estados Unidos amparam as suas vacilantes empresas industriais e proporcionam lucros baratos aos seus financiadores e comerciantes.
O homem que toca a flauta tem o direito de escolher a música que lhe é apresentada.
Mais do que isto, com uma burocracia estanque, tanto no Estado como na Igreja, com uma imprensa dividida e partidária, toda ela financiada por interesses sectários, a verdade é difícil de se obter, porém, há que o conseguir.
A Itália é o pivot da defesa europeia, económica e militar. A corrupção política é um ninho de térmitas, que vai remoendo os sustentáculos dessa defesa. A indiferença social gera revolta entre as suas vítimas. Miséria e desemprego fazem bons comunistas. A venalidade nos negócios e na vida pública gera medo e incerteza e atrasa as reformas. Os escroques proliferam e a voz dos homens honestos é abafada.
Nenhum homem é uma ilha. Uma nação também não o é, neste mundo do século xx. Os pecados de um recaem sobre a cabeça de todos. O castigo poderá ser catastrófico.

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livro
Aquela é a minha primeira justificação para escrever
este
-
A segunda é a seguinte: as crianças de Nápoles não têm voz Comprometi-me a dar-lhes uma. Uma criança não faz pbplástica. Uma criança não têm nacionalidade. Só tem o direito de viver, o direito de esperar. Seria desumano negar-lhes esses direitos, e todo o homem digno deverá levantar a voz contra essa desumanidade.
Para lá das colinas que estão à minha frente, enquanto escrevo estas linhas, estão os pomares e os campos de tomate de Salerno. As árvores de frutos estão em flor e as flores crescem sobre os corpos que estão enterrados sob a terra vulcânica cinzenta. São os corpos dos homens que morreram, acreditando que estavam a lutar para se libertarem da fome e do medo. A fome e o medo que infestam os becos de Nápoles são uma zombaria diária às suas mortes. Também não têm voz. Falo, pois, por eles.
Estas são as minhas credenciais. Por elas tenho de lutar pelo direito de dizer o que é que enferma este infeliz país e o que tem de ser feito para o remediar.
O que há a fazer?
As necessidades são imensas, mas todas se reduzem a uma só: à limpeza do país da corrupção política e administrativa, à formação de consciência social, à criação de confiança pública, à atmosfera de confiança mútua, sem as quais a reforma se torna impossível.
Se pusermos a questão assim, soa como um pedaço de retórica bem elaborada. Deixem-me explicar o que realmente significa.
Já estava em Sorrento há algumas semanas, quando comecei a tomar consciência da luta dos plantadores de laranjeiras, cujas árvores tinham sido queimadas pelas geadas e que estavam sujeitos a perder mais de metade das suas plantações. Os olivais estavam em pior situação. Toda a colheita tinha ficado arruinada e havia o receio de que as próprias árvores estivessem mortas. Eu vivo numa região de laranjais. Sei alguma coisa sobre o seu cultivo e mais sobre a cooperativa de plantadores. Sabia, por exemplo, que as famosas laranjeiras de Sorrento tinham décadas de existência e que há muito teriam sido extirpadas pelos plantadores da Austrália.
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Notei que dezenas de milhares de laranjas caíam todos os dias e que eram deixadas a apodrecer no chão. Notei que os plantadores deixavam o resto da fruta nas árvores, em vez de as colher e encaixotar. Era o seu método primitivo e perdulário de manter o preço alto. Não resultava, claro, porque as perdas diárias ultrapassavam a subida do preço. A fruta que tinha ficado nas árvores estava demasiado madura e era de qualidade inferior. Procurei em vão viveiros de árvores jovens para substituir as que iam morrendo e não podiam dar mais frutos, mas não vi nenhum.
Depois, para minha própria elucidação, comecei a considerar a hipótese de montar uma cooperativa local que controlasse a colocação do produto, que instalasse barracões para a respectiva embalagem e armazenamento frigorífico, que negociasse com o banco empréstimos a juros razoáveis, destinados ao financiamento de novas plantações e à constituição de fundos de amortização contra tempos maus como este.
Todos concordaram que era uma boa ideia. Muitos estavam até bem informados quanto à organização de cooperativas agrícolas na Dinamarca, na América e noutros países. Mas ninguém deu ao meu plano a mínima hipótese de sucesso em Sorrento.
Porquê?
Porque ninguém confia em mim. Nos últimos vinte anos, a história de empreendimentos corporativos em Itália, era uma história de especulação e escândalo. Os homens honestos, com capacidade de organização, não se envolviam em novas tentativas. Os agricultores preferiam guardar as suas reservas consigo próprios, dentro de colchões ou por detrás de tijolos soltos na parede da sala de jantar.
E aí está-administração corrupta, falta de consciência social. Era de novo a história dos meus amigos jornalistas. O conluio era o mesmo, só os cenários eram diferentes.
Mais do que isto, quando eu pedia licença - mais a título experimental do que com a esperança de ser bem sucedido para entrar nos pomares e apanhar a fruta caída, transportando-a, a minhas expensas, para a Casa dos Gaiatos, a resposta era não. Se eu não a podia comprar, ela ficaria a apodrecer no chão. Dois dias mais tarde, observei-os a enterrá-la. A
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verdadeira razão não era mesquinhez, mas o receio de que eu levasse a fruta para vender em meu próprio benefício!
Fiducia! Confiança! Confiança mútua! Qual quer negociante lhe dirá que é o único alicerce de uma economia próspera e estável. A menos que, claro, ele seja um italiano do Mezzogiorno.
Como é que se iniciam reformas num ambiente destes? A resposta é óbvia, só através da educação é possível fazê-lo. Em países anglo-saxónicos ainda é possível iniciar campanhas jornalísticas sobre questões de importância pública-mortes na estrada, pesquisas sobre o cancro ou as necessidades dos idosos. A nossa própria imprensa, sabe Deus, pode ser partidária, mas há determinados assuntos sobre os quais a opinião é unânime. Na Itália, não Pude constatá-lo através da minha própria experiência.
Dois jornais do Sul pediram-me que escrevesse alguma matéria para eles. Recusei. A razão é que não queria prejudicar a minha imagem de observador independente, publicando artigos em jornais, cujas filiações políticas eu não podia verificar. Contudo, depois do episódio com os plantadores de laranjeiras, contactei os editores em questão e ofereci-me para lhes contar a história como um serviço público, dando ênfase à importância dessas coperativas na economia rural do Sul. Ambos recusaram. Um deles foi bastante franco ao dizer-me que não conseguiria a aprovação da administração do seu jornal para o artigo que eu me propunha escrever.
Com os meios de comunicação transformados em partidos políticos, como é que se pode espalhar a verdade e pregar a reforma? A resposta é óbvia seria que a reforma devia começar em Roma, que os serviços públicos deviam ser saneados e uma campanha de reeducação iniciada de cima para baixo. A resposta é óbvia, mas incompleta. O facto é que a Itália é nação há menos de cem anos. Não é um país homogéneo como a Grã-Bretanha que possui um sistema legal uniforme e um serviço público tradicional. É ainda menos homogéneo que os Estados Unidos, que ainda têm os seus problemas com jurisdição estadual e que ainda estão divididos em importantes questões como a da segregação racial. A administração italiana não serve para servir o público, mas é o seu patrão, um instrumento de controlo para o parti-
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do no poder. Se acha difícil de acreditar, deixe-me contar-lhe outra história, esta em primeira mão.
Durante a nossa estada na península, empregámos uma criada sorrentina, mulher de 39 anos. De acordo com o contrato de trabalho, ela devia viver na nossa casa e se lhe déssemos uma folga à tarde, devia regressar a casa antes das 2 horas da manhã. Certa noite ela foi ao cinema. Não regressou até à hora do pequeno-almoço da manhã seguinte. Quando lhe perguntei a razão da demora, ela desatou a chorar, dizendo que tinha tido medo de regressar, porque tinha ido a Piano di Sorrento, três povoações mais longe, ver um filme e tinha-se esquecido dos seus documenti - cartões de identidade e de emprego. Teve medo de regressar sem eles, por isso tinha dormido na casa de uma amiga.
Não consegui compreender e disse-lho um tanto exaltado. Ela explicou. Em Piano di Sorrento ela era uma estranha. Se a polícia a tivesse apanhado, como provavelmente aconteceria, e ela não lhes mostrasse os cartões, teria passado a noite no calabouço. Não interessa que eles tivessem podido confirmar a sua identidade através de um telefonema para minha casa. O facto é que não o fariam. Em Piano ela não tinha nenhuns direitos. A ausência de documentos assim o provava. Mesmo que mostrasse os papéis no dia seguinte, não teria direito a protestar contra a captura e a prisão.
Confirmei a história junto dos outros residentes locais. Sorriram e disseram que era verdade. Não aconteceria a um turista? Oh, não! Ou à gente fina local? Não, de novo. Mas a um camponês desconhecido? Sim!
Existe uma série de pequenas histórias iguais a esta sobre a administração pública e o modo como trata os contribuintes que a apoiam mas porque detalhá-las? Os factos são evidentes para quem quer que passe mais de um mês em Itália. O ponto crucial é que quando o poder executivo está tão fortemente entrincheirado, protegido por códigos antigos do tempo de Justiniano, a reforma a começar de cima é um processo lento e desanimador.
Portanto, o que choca os visitantes, é aceite como um lugar comum pelas gentes do Sul. Sempre houve pobres em Nápoles. Sempre houve scugnizzi. Os camponeses foram sempre meeiros. Os funcionários foram sempre mal pagos. Quando se
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lhes diz que isto são anacronismos perigosos, até explosivos no século xx, encolhem os ombros e vão-se embora.
Quando um homem pobre se torna rico em Nápoles - e alguns deles tornaram-se ricos durante a guerra transforma-se num pedinte montado a cavalo, macaqueando os signori, desprezando a miséria de onde veio.
Se se quiser uma ilustração da diferença entre este país e a Austrália, a América ou mesmo a Inglaterra, ela está aqui. Nestes países, é próprio dos ricos empenhar-se em obras de caridade, fundar escolas e fazer doações a universidades. O sucesso de uma anfitriã é promover um baile de caridade maior do que o da sua rival. Aqui, quando se tem dinheiro, o costume é investir na América, construir uma villa em Capri e pagar os criados a 1 dólar por dia.
Roma fica a 150 milhas de Nápoles, mas para fins políticos e sociais podia bem estar a 15 000 milhas. A reforma do Sul deve, pois, começar no Sul.
Talvez seja uma afirmação arrojada, mas faço-o com convicção bem medida. Os italianos anticlericais rir-se-ão quando a lerem. Os católicos no estrangeiro ficarão desconfiados com a crueza desta afirmação. Se eu próprio não fosse católico, poderiam acusar-me de sectarismo preconceituoso. Mas, porque sou católico, compreendo a minha Igreja. Conheço a sua força e sei das suas fraquezas humanas. Percebo como atinge profundamente a vida destas pessoas, mesmo daquelas que lhe voltaram as costas. Sei que se a tirassem das suas vidas, com todo o seu esplendor e pompa e o seu sólido núcleo de fé na dignidade individual, este povo afundar-se-ia numa miséria ainda maior. Falo, pois, com a franqueza de uma pessoa da família.
A Igreja do Sul partilha das origens feudais do povo. Uma grande parte dos seus bens em terras, edifícios, tesouros acumulados de relicários de ouro e prata, em estátuas revestidas de jóias, e o resto, vieram de uma sucessão de governantes feudais. Neste campo não difere nem um pouco das igrejas de França, Inglaterra e Sul da Alemanha.
A diferença está na mancha de nepotismo que ainda não se apagou. O nepotismo é inevitável onde exista uma religião estabelecida e o grosso da população é crente. Se todos vocês forem católicos, é inevitável que o tio de alguém seja bispo e o
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primo de outro seja cardeal ou abade. E também natural que a influência da família seja exercida para assegurar vantagens ou preferências na Igreja ou através dela.
Quando acontece ser o sobrinho do bispo um banqueiro que paga prémios de seguro ao Partido Comunista ou uma entidade patronal que paga salários de fome e recusa ao trabalhador o direito de se organizar, a culpa de um tende a manchar a virtude pressuposta do outro.
Quando o presidente da Câmara de Nápoles constrói uma nova praça, em vez de uma escola e o cardeal de Nápoles não se pronuncia sobre a anomalia, num dos seus sermões, mesmo o mais fiel dos crentes deseja saber porquê. Quando um cavaHere, que se sabe ter conseguido um empréstimo da Cassa dei Mezzogiorno e o desviou para a sua empresa do Norte, aparece nas cerimónias da Páscoa usando uma condecoração papal ou é recebido como convidado do cardeal, o escândalo é inevitável.
Quando os frades Capuchos ou as pequenas Irmãs de Negro, pedem esmola pelas ruas de Nápoles, as pessoas aceitam o facto sem se questionarem. Sabem que existe uma meia dúzia de obras de caridade apoiados por estes dinheiros mendigados - orfanatos, lares de enjeitados, refúgios para idosos. Mas perguntam-se porque é que são sempre os pobres os que dão, e porque não ouvem pronunciado no púlpito dominical o sermão do homem rico e de Lázaro.
O sermão é pronunciado mas não o bastante e não em todas as igrejas. A crítica mais frequente que ouvi em relação à Igreja do Mezzogiorno foi: «acomoda-se à situação». Esta frase italiana é expressiva. Implica aceitação, tolerância, sugere participação.
Eu próprio assisti, domingo após domingo, a missas da manhã e da tarde e nunca ouvi uma palavra sobre justiça social ou crítica e males sociais. Ouvi clichés piedosos e observações muito usadas, mas uma crítica apaixonada sobre os males bem conhecidos e espalhados, nunca! Não existe um Fulton Sheen16 no Sul da Itália, e sabe Deus como tem necessidade de homens como ele.
16 Prelado católico americano, nascido em 1895, autor de diversos livros, de populares programas de rádio e televisão (na década de 50) e famoso pela conversão de figuras públicas. (N. do E.)
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O trabalho de homens como Borrelli é mais espantoso, devido ao clima difícil que o rodeia.
Existem homens bons, homens interessados, homens esclarecidos, mas muitas vezes não são ouvidos, devido à vacilação ou conservadorismo da hierarquia.
Se tudo isto parecer demasiado generalizado e parcial, pense por um momento no seguinte. Nápoles é uma cidade de dois milhões de pessoas. Todas, excepto uma minoria, pertencem, pelo menos em nome, à Igreja. São baptizados católicos. Um católico pode rejeitar a sua fé, mas quase nunca perde a sua marca. Poucos, mesmo aqueles que não praticam a fé, entregar-se-ão a um desrespeito aberto pelo clero ou a uma rebelião frontal contra um preceito claro. Pelo menos, não aqui no Mezzogiorno. O mais cínico dos políticos faz questão de se mostrar na igreja por altura das eleições. O presidente de município menos devoto não arriscará uma rotura aberta com o bispo.
Portanto, a Igreja tem poder. Tem poder espiritual sobre os devotos e os praticantes. Tem o poder da opinião pública para manobrar os que professam, mas não praticam. Se não utiliza esse poder, é porque muitos dos seus clérigos se acomodaram à situação e muito poucos têm a coragem ou conhecimento para a desafiar.
Se quiser conhecer melhor o assunto, deixe-me contar-lhe a história da criada de Greta.
Greta é uma boa amiga nossa. É sueca, casada com um italiano, que é sobrinho de um bispo. É católica, portanto, ela também, e faz parte da família.
A criada de Greta é uma montanhesa, noiva de um rapaz da costa. O seu fidanzeto tornou-se impaciente no calor da Primavera, e a criada ficou com medo de o perder.
Assim, dois meses mais tarde, Greta teve de enfrentar um problema: uma criada que já não era criada, uma rapariga chorosa que tinha medo de regressar a casa, porque o pai a espancaria, chamando-lhe nomes feios e expulsando-a de casa. Que poderia ela fazer? O seu noivo já não estava certo de querer casar com uma rapariga desonrada. Ela não tinha dinhei-
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ro para pagar a uma parteira para lhe fazer um aborto. Faltava-lhe coragem para se atirar da colina abaixo.
Greta, sendo uma mulher inteligente e boa, fez notar que nada disto seria necessário. Ela, Greta, explicaria a situação à sua família. Se não quisessem a rapariga de volta, havia um quarto na casa de Greta. Se o noivo não quisesse casar, ela teria a criança na mesma. Greta e o marido pagariam as despesas. A criança seria benvinda e seria bem cuidada. Passado algum tempo, a rapariga acalmou-se e Greta lançou-se à primeira fase das suas operações, isto é, apaziguar a família.
Aquela estava irredutível. Ó pai, um camponês agricultor, fechou a porta e o coração à filha pecadora. A rapariga tinha-se tornado numa puta Que fosse juntar-se às outras nas ruas de Nápoles.
Aqui, Greta enfureceu-se-e a sua fúria era algo digno de se ver. Tinha uma qualidade rica e impúdica que espantou a ignorante família, transformando a sua teimosia num pequeno compromisso. Não renegariam a filha, se ela persuadisse o seu fidanzato a casar, a mãe iria ao casamento, mas os outros não. Não a receberiam em casa. Isso seria demais!
A segunda fase seria com ofidanzato. Era um sujeito sólido e rústico, que sussurrava e resmungava em dialecto e se recusava a dar uma resposta definitiva. Poderia casar com a moça. Poderia não casar. Teria de pensar. A família podia não gostar que ele casasse com uma mulher grávida. Greta zangou-se com ele, também, e apesar de não lhe prometer nada, ela sentiu que ele estava amedrontado pelo que a signora lhe poderia fazer.
Até aqui, tudo bem. O céu começava a aclarar-se quando surgiu uma nuvem no horizonte. O pároco, - o padre da freguesia. O pároco era um homem velho de cabelo branco e olhar bondoso. Tinha vindo, disse ele, para aconselhar a signora.
Greta juntou as mãos no regaço e sorriu docemente, aguardando o conselho. Foi directo e simples. A presença de uma rapariga desonrada na casa da signora era um escândalo na cidade, um escândalo que se tornaria mais aparente com o passar dos meses. Ele aconselhava a signora a ver-se livre da rapariga o mais cedo possível.
Greta sorriu brandamente e perguntou se o pároco tinha al-
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guma sugestão a fazer. Tornou-se vago e respondeu que pensava que havia uma casa em Nápoles para essas infelizes. Greta respondeu com aspereza que a rapariga poderia nunca chegar a Nápoles. A rapariga estava desorientada, perdida e infeliz. Podia até atirar-se de uma colina abaixo.
O pároco encolheu os ombros. De qualquer modo, a rapariga estava desonrada. O que era mais importante era preservar a inocência do resto da população. Greta, que tinha pouca fé na inocência e uma vasta experiência da moral primitiva da vila, não se deixou impressionar. Respondeu ao pároco com língua afiada. Ele foi-se embora, sentindo-se muito infeliz.
A seguir veio a Madre Superiora do convento local para uma conversa de mulher para mulher sobre o mesmo tema: escândalo na vila. Greta sugeriu que a Madre desse abrigo à rapariga no convento e assim afastasse o escândalo da maneira mais eficaz de todas. A Madre Superiora escondeu a cara, horrorizada àquela ideia.
Finalmente, o marido de Greta foi chamado para uma chávena de café e uma conversa tranquila com o seu tio, o bispo. A exacta substância da conversa não me foi revelada, mas desde então as relações entre tio e sobrinho ficaram um pouco tensas.
Mais tarde, antes de o escândalo aumentar, a criada casou com o seu fidanzato e a tempestade num copo de água abrandou.
O objectivo da história não é a comédia, mas o facto de que este puritanismo primitivo está ainda muito espalhado entre o clero do Sul.
Não é cristianismo. Não é catolicismo. Não deverá ser apresentado como demonstração de ignorância campesina. A ignorância existe, certamente, mas seria de esperar que o pároco a dispensasse, ensinando a caridade e a bondade. Neste caso, como em tantos outros, ele tinha-se acomodado à situação, e o bispo estava pronto a apoiá-lo.
Quis custodiei ipsos custodes?17 Não sei, mas de certo que aqui no Sul precisam que se cuide deles.
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” «Quem guardará os próprios sentinelas?» (N. da T.)

O cerne de tudo, de novo, é a educação. Não se pode esperar que um padre inexperiente, não preparado e pouco seguro de si próprio, lute contra o mal, a menos que tenha sido treinado a destrinçá-lo e a menos que saiba que o seu bispo o apoiará até às consequências mais aterradoras da verdade evangélica. Não se pode esperar que o bispo o apoie, se este, por fraqueza ou imprudência, aceitou uma dádiva para a sua igreja ou para as suas obras de caridade proveniente de uma fonte que se sabe estar poluída.
As obras de caridade de Nápoles precisam, desesperadamente, de ajuda financeira. A Casa dos Gaiatos é apenas um dos casos. Mas essa ajuda devia ser rejeitada-e publicamente rejeitada - se se souber que a mesma é o preço do silêncio ou da «acomodação», por altura das eleições.
Se estiverem envolvidas relações familiares, então não deverá ser permitido que essa ajuda influencie a exortação da verdade.
Observe a questão de outra maneira. Pense em quantas igrejas existem em Nápoles. Eunão sei dizer quantas são. Mas em Sorrento, uma cidade de 10 000 a 12 000 habitantes, existem vinte e oito! Se, em cada igreja de Nápoles e da península fossem pronunciados, todos os dias, sermões vitais e convincentes sobre os males do Sul, as suas causas e os seus remédios, com indicação de nomes, datas e lugares, quantas pessoas não os ouviriam e quais não seriam os seus efeitos? O cardeal de Nápoles tem poder para ordenar que isso se faça. Ele possui bastantes factos, números e nomes para fazer cem sermões. Possui padres para os pronunciarem mais de vinte vezes. Porque é que isso não é feito?
Por vezes, é uma questão de expediente político: a Igreja italiana está a apoiar os democratas-cristãos, os quais, como qualquer outro partido, tem a sua parte de promotores e caçadores de lugares. Outras vezes, trata-se de cautela administrativa dentro da Igreja. Outras ainda é o receio de que determinadas fontes de receitas de caridade se sequem, caso as personalidades sejam denunciadas do púlpito.
Digo-o agora, frontalmente e sem equívoco, que alguns clérigos do Sul usaram o confessionário para ganhar votos especialmente os votos femininos - para o Partido Democrata-Cristão. Dizer que faz parte da luta contra o comunismo, é
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um disparate pernicioso. Dizer que o fim justifica ou desculna os meios, é uma negação da fé cristã.
A confissão é um sacramento da Igreja Católica, um tribunal privado restrito a Deus e à alma individual, um lugar de absolvição, um meio de perdão.
Pervertê-la ao ponto de arma política é destruí-la, assim como destruir a fé do povo.
Está tudo errado, perigosamente errado. A Igreja foi fundada, tendo por base doze pescadores pobres e a verdade evangélica. Que se saiba, da cadeira de Pedro ainda não se ouviu dizer que as receitas dos partidos e a acomodação a determinadas situações, mesmo a diplomacia do Vaticano, ajudarão mais o mundo do que a verdade, a justiça e a graça de Deus. Claro que há o outro lado da argumentação. Não se pode colocar todos os pecados dos seus membros à porta da Igreja. A função da Igreja é pregar a verdade e abrir os canais do perdão. O indivíduo continua livre para os aceitar ou rejeitar. Isso é verdade. A função da Igreja é espiritual; poderá ser negada pela livre vontade dos seus membros.
Mas aqui, na Itália, a Igreja já está comprometida com a ordem temporal. Está comprometida, historicamente, pela sua natureza do seu desenvolvimento, economicamente, pelos seus haveres e politicamente pelo seu livre patrocínio a determinado partido político. Portanto, torna-se susceptível à crítica aberta aos seus campos de actividade.
Se as suas acções e associações políticas não estão livres de nódoas, terá de se modificar para que assim seja. Se a sua situação económica a envolver com pessoas que querem usar a sua influência para os seus próprios fins, então terá de se libertar, seja a que preço for. Se esse envolvimento não existe, então esse facto terá de ser proclamado-e claramente-pois há muita gente honesta que acredita que o mesmo existe.
O Inverno de 1956 foi brutal para os agricultores da Itália. Organizações católicas americanas doaram milhares de alqueires de sementes de cererais para distribuição livre nas áreas mais afectadas.
As sementes foram distribuídas sob a orientação do presidente e funcionários da Confederazione dei Coltivatori Diretti, uma organização política, supostamente representativa
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dos interesses dos agricultores. Nas estatísticas de votos somente 46% dos agricultores são membros da Confederazione.
Houve reclamações de que as sementes só tinham sido fornecidas aos membros filiados no partido, que depois tiveram de pagar parte do seu valor em dinheiro.
Não posso dizer se a acusação foi verdadeira ou não. Mas não ouvi ninguém a negá-la. Para o objectivo deste argumento, o importante é o envolvimento da Igreja. A dádiva foi feita por católicos americanos a uns camponeses desgraçados que eram todos da mesma religião. Se a acusação fosse verdadeira, seria dever das autoridades religiosas denunciar o escândalo. Se não fosse verdadeira, a Igreja tinha por obrigação dissociar-se da mesma. Em caso algum, poderia ficar silenciosa. Tanto quanto sei, nunca disse uma palavra.
A Igreja, Santa, Católica Apostólica e Romana, exige dos seus membros obediência a um código moral rigoroso. Deveria aplicar o mesmo código na administração da sua Província Italiana do Sul.
Agora há outra história a contar sobre o autor.
A história começa com a contratação da nossa primeira serviçal, de nome Angela. Contratámo-la com a ajuda de um amigo americano, residente em Itália há vinte anos. Assegurou-nos que ela provinha de uma boa família de camponeses, que era forte, saudável, prestável, inteligente e, acima de tudo, honesta. Possuía a 3.a classe e falava italiano e dialecto. Eu não falo dialecto, por isso o italiano era um requisito indispensável.
Contratámo-la. Pensámos que, como ela era uma residente dali e honesta, talvez nos poupasse dinheiro no mercado. Achámos que, se ela ia cozinhar, o melhor seria ela própria fazer as compras no mercado. Os sorrentinos têm o hábito de elevar os preços, assim que vêem um estrangeiro aproximar-se. Assim, demos-lhe 5000 liras e mandámo-la fazer as compras.
Não houve troco das 5000 liras mas, na nossa inocência, achámos que devia estar bem. Estávamos a começar a governar uma casa. Havia armários a encher, géneros a comprar e, além disso, é de má política o patrão ou a senhora interferirem
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demasiado na cozinha, especialmente durante a primeira semana.
Assim, entregámos o governo a Angela por uma semana durante o qual gastou 25 000 liras sem pestanejar. Não me importava com a despesa se tivesse visto o resultado na mesa. Mas não vi. A carne era pobre, a comida pior, e mesmo o vinho era azedo e aguado. Quando entrámos na cozinha, intempestivamente, para ver o que se passava, os armários estavam cheios de comidas enlatadas, que não comeríamos nem em cem anos - mesmo que gostássemos, o que não acontecia!
Havia frascos de anchovas e latas de alcachofras, pimentos enlatados e frascos de azeitonas. Havia latas de salmão vermelho e frascos de compota inglesa; mas não havia farinha, nem açúcar, nem pimenta nem sal.
Olhámos um para o outro e desatámo-nos a rir. Por que não? Tínhamos pago 25 000 liras para ter esse privilégio!
Angela era de facto honesta. Todos os artigos batiam certos com as contas. Mas fazia tanto ideia do que era comprar ou gastar dinheiro económica e convenientemente como de voar para a Lua. Todos os dias tinha ido a Sorrento com a bolsa cheia de dinheiro e o coração cheio de orgulho. Era a camereira do gran’scrittore australiano. Se alguém duvidasse, vissem só como ela esbanjava para o provar.
A moral da minha curta história? Caveat America!18 A América está tão envolvida como a Igreja, os industriais e as velhas famílias, nesta questão de reforma social. Está envolvida porque despeja dinheiro para dentro do país. Tem o dever e o direito de perguntar para onde vai esse dinheiro. O mesmo direito tem o contribuinte, que acredita que os fundos que provêm dele, todos os anos, estão a ser utilizados para construir uma economia forte e um baluarte contra o comunismo.
Esse é o princípio. O efeito no Sul é inteiramente oposto. O constante desemprego, a fome, o desespero, a atmosfera de desconfiança e a corrupção, a tremenda inércia em face da mais aterradora miséria, tudo isto são armas fortes nas mãos do Partido Comunista. São armas forjadas na América, com o dinheiro dos contribuintes.

Acautela-te, América! (N. da. T.)
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Que há a fazer? Aqui vão umas poucas sugestões.
De acordo com a Carta das Nações Unidas, a América não tem o direito de interferir nos assuntos das outras nações. Mas quando ela se arvora em banqueira nessas nações, tem a obrigação de todos os banqueiros de pedir contas. Repito que as contas que ela recebe de Roma não são correctas. Porquê? porque, conforme já demonstrei, os números sobre a Itália são enganadores. Os factos terão de ser observados, se se quiser compreendê-los.
Um gerente de banco rural faz uma visita ocasional a uma propriedade de um seu cliente, para ver como ele a gere. Porque não enviar alguns peritos até ao Sul, oficialmente ou não, para avaliar os progressos da reforma agrária e das necessidades das comunidades rurais? Deixá-los perguntar porque vilas inteiras ficaram vazias devido à emigração, enquanto áreas produtivas permanecem inúteis. Deixá-los ver como tanto dinheiro foi gasto em projectos eleitorais, que nunca chegaram ao fim. Deixá-los perguntar, como o fez Dayton, porque é que o dinheiro bancário custa tão caro, quando só dinheiro barato é necessário para o desenvolvimento agrícola e industrial.
A educação é o princípio do progresso e da reforma. Tragam alguns educadores para o Sul e relatem o que ele vai encontrar. Deixem que algumas organizações de pesquisas enviem economistas e sociólogos para investigarem as fraudes. E assegurem-se de que os seus relatórios sejam publicados e apreciados pelo Congresso, antes que os novos empréstimos sejam aprovados.
E que os investigadores fiquem longe da atmosfera adequadamente enganadora de Roma, Florença e Veneza. Os italianos suplantam os ingleses na gentil arte de «ostentação». Roma é uma cidade de diplomatas e de intermediários. Está muito, muito distante das duras realidades do Mezzogiorno. Mas a verdade está aqui, a verdade autêntica, sobre este país sedutor e enganador. E a América e os seus cidadãos, assim como o resto do mundo ocidental, tem grande necessidade de a conhecer.
Pondo o assunto mais frontalmente, existe no carácter italiano, especialmente no homem do Sul, um grande traço de irresponsabilidade e vaidade, que ele não quer admitir.
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Um jovem napolitano economizará ao ponto de se empenhar, a fim de comprar uma Vespa ou um carro pequeno Fiat. Depois, tirará as entranhas ao motor e desgastará os travões até ao metal e gastará os pneus até ao fio, conduzindo-o como um maníaco.
Se o fizer com o seu próprio dinheiro, tudo bem. Mas se o fizer à vossa ou à minha custa, será melhor ensiná-lo a ser ajuizado antes que destrua o engenho.
Tudo isto, claro, é só o começo. Resta à Igreja preparar um estado de espírito, que seja receptivo aos princípios de justiça social. Resta à América exigir controlo responsável na distribuição e uso dos seus dólares. Mas, a menos que os que possuem dinheiro na Itália - proprietários, industriais, investidores -façam eles mesmos a limpeza das suas casas, não haverá reforma.
A menos que se compenetrem de que a sua única esperança numa economia permanente e sem problemas, reside num sistema industrial saudavelmente equilibrado, não conseguirão alcançá-lo.
Estes homens receiam o que estão a fazer. Se assim não fosse, por que tentam desviar as suas receitas para a América? Por que tentam impedir os trabalhadores de se organizarem? Por que formaram a Fronte Padronale - uma associação de industriais, proprietários e comerciantes, que se comprometeu a interditar todos os movimentos empenhados na luta pela melhoria de salários e de condições de trabalho?
Por que dividiram os sindicatos em dois grupos - elementos de chefia e empregados inferiores? Por que apaparicam o primeiro e mantêm o segundo num nível de subsistência alimentar? Porque têm medo.
Aqui no Sul constróem muros altos à volta das suas villas, adaptando-lhes portões eléctricos e mantêm cães grandes acorrentados no jardim para afastar os pedintes.
Você e eu vivemos num conforto razoável, com uma garagem aberta e um portão que qualquer vendedor pode abrir. Nós não temos medo, porque através da evolução e esforço comum e a divulgação de princípios sociais, alcançámos uma sociedade democrática, razoavelmente equilibrada.
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No Mezzogiorno existem poucas pessoas que estejam dispostas a trabalhar para o progresso democrático, pois há muitas que não acreditam nele. Sabem como alcançá-lo, mas desdenham dos meios à sua disposição. Mais do que isso, lutam contra ele activamente.
São homens inteligentes; no entanto, querem atrasar o relógio. Podem até ser bem sucedidos. A Fronte Padronale é a melhor maneira de fazer voltar à Itália a Fronte Popolare. Os comunistas não precisam de trabalhar na Itália. Podem ficar sentados e deixar que os signori trabalhem por eles. Usando dólares americanos!

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À
IX
Num dia bonito de Primavera fui de automóvel até Nápoles, para visitar uma grande empresa industrial. Fui a convite pessoal da família que é sua propriedade. Ouviram dizer que eu estava a escrever este livro. Sabiam da minha crítica severa às fraudes praticadas na Itália. Não contestaram as minhas descobertas. Contudo, em nome da justiça para com eles e para com outros como eles, pediram-me que visitasse a sua fábrica de Nápoles e verificasse o que tinha sido feito em relação à aplicação dos princípios sociais modernos e ao que poderia ser feito por outros de boa vontade e com bom sentido económico.
A Companhia Cirio é uma das maiores empresas de enlatados da Europa. Os seus produtos são exportados para todo o mundo. Tem uma grande fábrica na Argentina. Possui fábricas em laboração no Sul e no Norte. Tem quintas em Salerno e Mondragone e em todo o lado. A sua sede é em Nápoles.
Uma das coisas mais interessantes sobre aquela Companhia, para o objectivo deste livro, é que a maioria das suas acções está toda nas mãos de uma só família - os Signorini. Todas as decisões, por conseguinte, têm o selo do que é, virtualmente, um conselho de família. Num país como este, com uma taxa de 2 a 3 milhões de desempregados, a Companhia podia funcionar como uma autarquia pequena e fechada, pondo de parte os princípios sociais. Em vez disso, as suas relações de trabalho, assim como as técnicas da linha de produção, podem ser comparadas às das mais evoluídas organizações da América, Grã-Bretanha e Austrália.
A fábrica de Nápoles estende-se sobre uma dúzia de blocos de ambos os lados do famoso distrito de San Giovanni. Está a uma pequena distância dos piores pardieiros da Via Marittima. Está mesmo no centro das habitações mais pobres e mais antigas da cidade. Poucas áreas de Nápoles se comparam a es-
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ta pela sua pobreza, desemprego e miséria abjecta. O observador tem, por isso, o benefício de um contraste natural.
Ambas as áreas fabris estão rodeadas de muros altos, e as entradas são fechadas por portas fortemente reforçados, que só se abrem para permitir a passagem do tráfego necessário.
A minha guia era a esposa americana do irmão mais velho da família. Quando passámos de carro pelo portão principal, um guarda saudou-nos elegantemente, guiando-nos para um parque de estacionamento situado num pátio largo de asfalto. Outro guarda correu pára nos abrir a porta e fomos Conduzidos, com cerimónia, para a porta do edifício da administração. Fomos apresentados a dois doa irmãos Signorini e ao filho do nosso amigo americano.
Foi-nos mostrado um mapa das instalações da organização
- as suas quintas, os centros de produção e de distribuição. Era impressionante e parecia eficiente. Uma visita pela área fabril confirmou a nossa impressão. A maquinaria era moderna, os métodos de produção eram tão bons e, nalguns casos, até melhores do que eu j á tinha visto noutras partes do mundo. Os trabalhadores vestiam uniformes limpos e pareciam trabalhar com alegria. Tudo isto significava pouco para a minha investigação. Uma fábrica de produtos enlatados tem de estar limpa. Tem de ser eficiente se quiser fazer dinheiro num mercado competitivo. A maioria dos trabalhadores da linha de produção parecia atenta ao seu trabalho. Em Nápoles, têm de parecer, pois existem 200 000 à espera para tomar os seus lugares.
O que mais me interessou, porém, foi o que a empresa estava a fazer a favor dos seus empregados.
São 1500 os trabalhadores permanentes da fábrica San Giovanni. Este número sobe para mais do dobro na época das colheitas. Necessariamente, a maioria dos trabalhadores nas linhas de produção, são mulheres. Isto, também, é comum nas fábricas de enlatados no mundo inteiro. Muitas das mulheres são casadas, porque é política da Companhia dar emprego a mulheres casadas numa cidade com tantos homens desempregados.
Em Nápoles, é lugar comum aceitar o facto de que toda a mulher casada tem filhos. Os filhos dos trabalhadores da Cirio, são a primeira preocupação da empresa.
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Depois da nossa visita à fábrica, fomos conduzidos pelo chefe do pessoal para fora da fábrica, em direcção a uma pequena rua lateral. Aqui, os irmãos Signorini fundaram uma escola primária para os filhos dos seus trabalhadores. Antes de entrar, estava preparado para outra repetição do aspecto poeirento, desbotado, das escolas italianas. Mas não foi isso o que aconteceu. Encontrei-me num edifício moderno, com salas de estudo alegres e arejadas, com paredes pintadas de fresco, soalhos bem limpos e equipamento de ensino moderno. As caras das crianças brilhavam de limpeza e saúde. Todas elas estavam vestidas com batas lavadas, de golas brancas e laços de cores diferentes para diferenciar as classes. As professoras eram mulheres jovens, bem dispostas, todas com o diploma do magistério primário. A directora era uma funcionária superior do Departamento de Educação. Verifiquei cuidadosamente os cadernos de exercícios e os projectos da escola. Estavam em ordem imaculada e de um nível pouco visto.
As classes estavam agrupadas à volta de um quarto central grande, a sala de jantar. Aqui, todos os dias, ao meio-dia, as crianças comiam uma refeição quente, feita de acordo com uma tabela dietética preparada pelos especialistas da Companhia. A meio da manhã, todas as crianças bebiam um copo de leite fresco, pasteurizado.
A creche continha um palco pequeno mas ornamentado e da sua janela podia avistar-se o pátio de recreio com as suas barras suspensas e carroceis em tubo de aço. A qualquer nível, a escola de Cirio era de primeira categoria.
As crianças começam a frequentar a creche na idade de 3 anos e fazem o curso primário completo de cinco classes. Todas as despesas escolares - cadernos, uniformes, refeições diárias, assistência médica regular, salário dos professores e o estipêndio de um padre permamente - são pagas pela Companhia. Só a directora é empregada assalariada do Município. Quando vi os quartos limpos e as caras alegres, quando me lembrei que muitas destas crianças viviam nas habitações superlotadas de San Giovanni, não pude deixar de as comparar às outras crianças que eu tinha visto - as criancinhas esgaravatando os montes de lixo, os bebés infestados de moscas nas barracas, as crianças-trabalhadoras dos becos da Via Roma.
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Pensei nas outras 50 000 que não tinham sequer escolas, perguntei-me porque as outras grandes empresas de Nápoles não tinham feito o mesmo que a Cirio. Parecia-me muito mais proveitoso que o dinheiro encoberto pago aos comunistas para acabar com uma greve ferroviária.
Lembrei-me, também, de Don Borrelli: o que fazer com os seus rapazes quando estes acabassem a sua educação primária incompleta. Fiz esta pergunta ao chefe do pessoal.
- Nós somos uma empresa - disse ele. - O que fizermos será, em primeiro lugar, para os nossos. E nossa intenção, quando estas crianças acabarem a sua educação, mandar as mais espertas para a escola técnica e, mais tarde, empregá-las na nossa empresa. Não podemos fazer mais. Para já, este projecto é uma carga pesada nos nossos lucros. Não tínhamos que o fazer. Com tanta gente desempregada, poderíamos encher os nossos quadros dez vezes mais, mas a família Signorini tem uma consciência social. São bons italianos. São bons napolitanos.
Depois do que tinha visto, estava disposto a acreditar. Mas ainda havia mais.
O chefe de pessoal juntou-nos de novo no carro e conduziu-nos de volta à fábrica principal. Subimos um lance de escadas e encontrarão-nos num grande e arejado quarto, que parecia a enfermaria de uma grande maternidade. As paredes eram pintadas em tom pastel; as novas persianas das janelas faziam um contraste agradável de cores. Cada quarto continha cerca de trinta berços, cada um provido de lençóis limpos e de cobertores de bebé, de cores alegres, cada um com o seu pequeno e activo ocupante. Berravam ou dormiam ou mordiam os punhos tão saudavelmente como qualquer criança nos países mais afortunados do mundo.
Havia três enfermeiras para cuidar deles, todas bem treinadas em obstetrícia e cuidados infantis. Havia uma fileira de banheiras limpas e uma kitchenette com um esterilizador e equipamento de cozinha.
Quando uma mãe operária regressava ao trabalho, após o parto, a enfermeira tomava conta do bebé e a mãe vinha a horas certas, alimentá-la ao peito.
As mães iam directamente a um quarto próprio, onde se lavavam e vestiam umas batas brancas limpas que a Compa-

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nhia lhes fornecia. As crianças eram trazidas da enfermaria e uma enfermeira superintendia a alimentação, no caso de ser necessária uma dieta suplementar. As mães não eram autorizadas a entrar na enfermaria em qualquer outra altura.
Além de beneficiar a mãe e a criança, este sistema fornece a melhor lição de limpeza e cuidados infantis que me foi dado ver em Nápoles. Tanto as mães como os bebés regressam à noite às habitações superlotadas da bassi, e a sua boa sorte é a inveja daqueles que não têm trabalho, educação ou oportunidades a oferecer aos seus filhos.
Do lado oposto da fábrica, existe um clube montado pela Companhia Cirio para os seus trabalhadores, com rádio, televisão e livros. Mais adiante existe um grande átrio para desporto e as instalações onde vive o treinador da equipa de futebol mantida pela Companhia.
Tudo isto somado, é um sólido empreendimento. Só comparável ao que a Olivetti fez no seu próprio campo. Mas não termina aqui. A Companhia possui os seus próprios pomares e produtos lácteos. Aos trabalhadores destas quintas são facultadas casas-modelo, completamente mobiladas, a rendas compatíveis com os seus salários. Têm planos de reforma e de indemnização generosa por incapacidade proveniente de doenças ou acidentes.
Na cintura vermelha de San Giovanni, o trabalho desta Companhia é um exemplo brilhante do que as empresas particulares podem fazer para melhorar o nível de vida do decadente Sul. É também uma crítica mordaz àqueles que podiam fazer o mesmo, mas que até agora o não fizeram.
As minhas observações finais são feitas sem malícia. Os portões deste paraíso de trabalhadores são guardados por homens armados de pistolas: uma necessidade inevitável, visto que os armazéns e os frigoríficos da Companhia Cirio estão repletos de produtos alimentares, ao passo que a uma milha de distância estão os pardieiros deprimentes onde dormem quinze pessoas num só quarto e onde as mulheres se vendem para comprar comida para os seus filhos.
Na altura em que preparava as minhas notas para este capítulo, sentia-me cansado e irritado. Queria escrever um livro
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construtivo, mencionando as coisas boas e as más. Mostrar onde tinham começado as reformas no Sul e a ajuda que era necessária para estimular o seu crescimento. Demasiados escritores - demasiados escritores italianos tinham lucrado com as misérias de Nápoles. Eu queria fazer algo mais.
A fábrica Cirio foi um sinal de esperança. O próprio Borrelli era um exemplo dramático de reforma. Procurava outros como eles, mas fora do clero e noutros campos de serviços e desenvolvimento social.
Tinha ficado amargamente desapontado. Tinha tentado vários tipos de investigação, mas todos eles levavam-me, inevitavelmente, aos mercados fraudulentos de Nápoles.
Casas, por exemplo. Tinha regressado a Nápoles, após cinco anos de ausência. A primeira coisa que me impressionou foi o crescimento de novos blocos de apartamentos a sul de Nápoles, ao longo da faixa marítima e em direcção à Torre del Greco e Castellamare. Alguns eram construções privadas, outros faziam parte de um plano habitacional do governo financiado pela Cassa dei Mezzogiorno.
Eu tinha acabado de construir uma casa no meu próprio país, de modo que tinha a cabeça cheia de factos e números e tinha tido uma experiência dolorosa e pessoal dos problemas do investidor e do construtor. Comecei por vagabundear entre as estruturas inacabadas, observando os métodos de trabalho, estudando a disposição.
A primeira coisa que me impressionou foi o mau aproveitamento do espaço. Os arquitectos tinham desprezado centenas de metros quadrados de espaço vital em cada bloco. Num bloco de dez apartamentos, havia espaço para quinze, a maior parte do qual foi gasto em largos vestíbulos e escadas triplamente largas-espaço vital que não tinha armários embutidos, de modo que ficaria reduzido a metade com a ocupação da pesada mobília napolitana. Parece que os arquitectos napolitanos do Sul nunca folhearam um manual estrangeiro sobre habitações económicas. O material para lavagem de roupa resumia-se aos primitivos tanques de cimento sem água quente e não havia espaço comum para secagem de roupa. Naturalmente, pois, continuavam a ser penduradas nas varandas, como eram na bassi.
Isto era um desperdício. Quando verifiquei as facturas,
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í

fiquei espantado Com o custo laboral a um décimo daquele.

os fornecedores tinham grandes margens de lucro. dos Preços que Vi o lucro devia ter sido de 500%” Claro, que a uma taxa bancária de 17%, tudo o resto era
lucro.
110.
Mas havia ainda mais. Havia uma escassez de artesãos ex perientes e uma carência enorme de contabilistas e conferentes. Assim, o supervisor da obra estava apto a obter um Silícito das agências fornecedoras dos materiais de construção. As facturas são falsificadas e a diferença dividida pelos lucros deles. Um construtor com quem falei, conseguiu descobrir ao fim de
investigações’ 500000 liras
Por não existir um controlo efectivo e por a maior parte do Sul se manter em regime feudal de velhas famílias, o preço dos terrenos sobe em desproporção ao seu valor real. Assim, a fraude continua - valores de terrenos irreais custos de construção sobrecarregadas, espaço mal aproveitado.
Perguntei se havia centros de assistência infantil e cuidados maternos. Disseram-me que havia alguns em Nápoles. Acreditei. Só que, durante as minhas vagabundagens de noite e de dia, pelas ruas repletas de crianças esfarrapadas não vi nenhum. Vi, sim, uma epidemia de placards mélco-Dr X, Speciahsta, Veneree e Malattia diPelle!
E serviços sociais locais? Visitas caseiras feitas por assistentes sociais? Grupos de assistência? Disseram-me que as irmas de caridade faziam algumas destas coisas. Pela causa dos pobres desgraçados, esfregavam soalhos, lavavam doentes preparavam refeições e mudavam fraldas aos bebés Mas aparte a Igreja, serviços sociais, pagos ou gratuitos havia algum? Muito pouco. Assistência social, para além do Departamento de Assistência Pública, não havia nenhuma Porquê?
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Há muito que o leitor deve ter notado que eu não tenho palavras em defesa da Igreja do Sul. Estou inclinado a ver com alguma simpatia o anticlericalismo da Itália. Sou capaz de compreender as suas razões históricas e sociais. Mas o facto é que nenhum italiano, por muito anticlerical que seja, poderá indicar qualquer obra comparável às efectuadas por organismos seculares.
Quando os confrontava com este argumento, lançavam-se em longas explicações sobre a intromissão secular da Igreja, a sua acomodação política, os compromissos da hierarquia. Mas nenhum deles me deu uma resposta satisfatória ao facto de nenhum dos críticos ter arregaçado as mangas para fazer o que Borrelli tinha feito, ou Don Gnocchi no Norte. Concordavam que estes homens não faziam parte da hierarquia ou da burocracia da Igreja. Concordavam que o que eles tinham feito, tinha sido com coragem e esforço pessoal. Porque não faziam os críticos o mesmo? A resposta era sempre um encolher de ombros depreciativo. Eu era um estrangeiro. Não se podia esperar que eu compreendesse.
Eu estava disposto a compreender. Queria factos e estava pronto a aceitá-los mesmo vindos do próprio Diabo, mas queria que me indicassem o capítulo e o versículo. Ninguém ainda fez uma referência à página.
Deverão compreender que eu procurava uma resposta a um problema específico: como criar para os rapazes da Casa dos Gaiatos uma oportunidade, um futuro esperançoso. Idealmente, o futuro deveria ser no seu próprio país, mesmo que fosse criado com a ajuda inicial dos estrangeiros bem intencionados.
Um trabalho desta natureza tem um valor duplo. Beneficia os seus destinatários e enobrece os que participam dele e espalha-se, como se espalham as ondas de um lago, atingindo muitos outros, estabelecendo novas correntes de movimento e de acção. Transferir o trabalho para outro país é dar lugar ao desespero. Você dirá: «Não há esperança aqui. Vamos começar noutro lugar!»
A meio caminho, cheguei a esta conclusão. Há esperança para a Itália, mais especificamente, para o Sul. A existência de obras como a de Borrelli assim o confirmam. Mas passar-
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k
-se-ão dezenas de anos antes que a esperança seja realizada e num desses anos a esperança poderá ser destruída.
Para os rapazes em si, não há esperança.Borrelli levou-os tão longe quanto possível nas condições que ainda hoje existem. A única esperança para eles é sair do país e começar vida no estrangeiro.
Deixe-me contar-lhe duas histórias simples. A primeira contém o germe da esperança futura. A segunda ilustra o desespero do presente.
Num bonito dia de Abril, depois de uma semana exaustiva em Nápoles, roubei algum tempo às minhas anotações, e fui até à Marina Grande, a pequena enseada circular no extremo norte da cidade de Sorrento.
A minha guia era Giulana Benzoni, uma mulher crepitante, vital, violenta oponente do antigo regime, cuja carreira como correio da resistência durante a guerra faz uma história de pôr os cabelos em pé. Fez-me descer um lance de escadas desgastadas sob uma arcada grega até à pequena praia, cheia de seixos, onde vivem os pescadores que constróem barcos de remos para todas as vilas, desde Massa até Capri.
As gentes da Marina Grande não são de modo algum italianas. São descendentes de corsários bárbaros, que pilharam esta costa nos tempos antigos. O seu dialecto é repassado de árabe e, até às últimas duas décadas, viviam completamente isoladas das gentes da península, que os chamavam i barbari - os bárbaros.
Não costumavam casar fora da sua raça e séculos de procriação consanguínea tinham produzido fenómenos biológicos esquisitos. Agora, contudo, há sangue novo entre eles italiano, alemão, inglês, americano. Poderão ver-se cabeças de estopa, bochechas de maçã a crescer entre as caras escuras e estreitas das famílias berberes.
São pessoas meigas, primitivas, com caras bronzeadas e sorrisos prontos para o visitante que se dê ao trabalho de ser paciente e educado para com elas. Movem-se devagar e falam devagar também, como todos os pescadores e, não obstante os seus pés nus, as suas roupas remendadas e a simplicidade rara das suas vidas, possuem uma grande dignidade natural.
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Vão pouco à cidade. O comércio das suas vidas é efectuado entre as casas do cais e o mar, entre os barcos ancorados e a rede de pesca e ao longo da grande rampa de pedra que vai até ao cimo da colina.
No Inverno a sua vida é dura e frugal; mas, quando chega o Verão e os peixes regressam com as correntes quentes e os turistas vêm para lhes alugar os barcos, passam melhor. A noite, pode-se ver as suas luzes aglomeradas sobre os lugares de pesca e, de manhã, as mulheres agacham-se na areia ou no paredão, remendando as finas redes castanhas.
As suas casas são velhas e a cair, empilhadas umas sobre as outras como blocos com que as crianças brincam, e nos quartos mal iluminados no rés-do-chão, os meticulosos artífices constróem os compridos barcos de duas pontas, segundo o modelo dos seus antepassados mouriscos.
.Os seus filhos têm a cara castanha, pés descalços e são tímidos como potros; mas têm olhos brilhantes e um sorriso rasgado e atraente. De manhã vão à escola no convento das irmãs religiosas e à tarde fazem serviços caseiros ou vão às compras ou correm barulhentamente entre os barcos pousados na praia cheia de pedras.
Caminhámos sobre os seixos, cumprimentando este e aquele, saudando uma ou duas crianças, perguntando pela saúde de uma avó idosa, toda embrulhada em xailes, sentada ao frio do entardecer. Por fim, subimos um lance de escadas de pedra e chegámos a um quarto do primeiro andar de uma das casas do cais.
Para minha surpresa, estava cheia de crianças. Contei 36, mas disseram-me que algumas estavam ausentes. Apesar de já ser tarde avançada, muito depois da escola terminar, estavam todas ocupadas a estudar. Algumas faziam problemas de aritmética elementar, outras liam livros de geografia, outras desenhavam ou cortavam bonecos de papel.
Não havia professor; mas três raparigas e dois homens novos, de 17 ou 20 anos de idade, moviam-se entre elas, ajudando-as nos trabalhos. Estavam todos bem vestidos. As suas caras eram belas e inteligentes. O seu contacto com as crianças era afectuoso e interessado.
Depois de os observarmos durante algum tempo, chama-
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k
ram os mais novos para o centro da sala, e fizeram com que cantassem e executassem danças folclóricas.
Havia algo de comovente no quarto banal e poeirento, com as crianças esfarrapadas e os seus instrutores jovens e elegantes. Os garotos estavam obviamente interessados, os seus monitores francamente orgulhosos do trabalho que estavam a fazer. Quando regressaram às suas carteiras, Giulana Benzoni explicou-me.
Os jovens instrutores eram estudantes, um de engenharia, outro de arquitectura e o terceiro de economia. Pertenciam a um clube que se encontrava todas as tardes, depois das aulas e cujos membros se revezavam para vir à Marina Grande dar lições extras aos filhos dos pescadores. Não cobravam nada e não esperavam agradecimentos, e todos os anos pagavam as suas próprias despesas à Escola de Verão da Assistenti Sociali, em Roma, para aprender mais sobre a educação das crianças não privilegiadas.
Olhei para eles com um novo interesse. Isto era o que eu procurava no Sul e que tinha encontrado tão pouco - o movimento espontâneo, generoso da juventude a favor da reforma social, fora de estrutura partidária do apoio político. As raparigas eram jovens, atraentes, vitais. A maioria das raparigas napolitanas, as que se podem permitir a isso, passam os anos entre a puberdade e o casamento, em sagrada meditação sobre rapazes, cama, roupas, mexericos locais. Tendem a adquirir uma aparência vaga e confortável de almofadas pneumáticas. Mas aquelas não. Tinham olhos inteligentes e conversa inteligente. Queriam ver lugares, precisavam de alguém que lhes indicasse o caminho.
Encontraram esse alguém em Giuliana Benzoni. Ela tinha fundado o clube e tinha apresentado aos seus membros a ideia do serviço social. Fornecia-lhes livros e mantinha-os em contacto com visitantes célebres.
Na tarde seguinte, sentei-me com eles na grande cave da sua villa, vendo Ruth Draper fazer uma das suas memoráveis actuações.
Os jovens tinham acolhido com entusiasmo a ideia de serviço gratuito e da necessidade de o iniciar em Itália, mesmo a uma escala pequena. Tinham fome de conhecimentos e de contacto com o mundo exterior. Quando usei da palavra no Clu-
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be, os seus olhos brilhavam com interesse e as suas perguntas sobre economia, política e organizações sociais, iam directamente ao cerne da questão.
Quando indaguei sobre o seu extracto social, descobri que todos vinham de famílias da classe média - professores, empregados bancários e contabilistas, que ganhavam cerca de
90 000 liras por mês. Nenhum deles pertencia às famílias senhoriais ou à nova classe de comerciantes do pós-guerra. Isto, também, era significativo. Como se sabe, a democracia é fundada sobre uma classe média forte e próspera. Aqui na Itália, a classe média é mal paga, insegura e aprisionada entre as mós de cima e de baixo do capital irresponsável e do trabalho não utilizado.
Por essa razão, o que estes rapazes e raparigas estavam a fazer era mais importante e mais generoso. Era como uma reprovação acercada aos críticos e políticos que falavam tanto e não faziam nada.
A outra história é uma história de golfe. Não tem nada a ver com a vantagem que me foi concedida nem como o meu instrutor me ensinou a segurar o cabo do taco no décimo quinto buraco. Portanto, poderá lê-la com relativa segurança.
Lá muito alto, na espinha das montanhas sorrentinas, um pouco depois de Santa Ágata e dos Dois Golfos, há uma longa faixa de terra ondulada. Pertence ao Município de Sorrento e é, de facto, um dos poucos trechos de terra comum livre por estas partes. Vai-se até lá por uma estrada com uma paisagem bela e quando lá se chega, a vista é de cortar a respiração. Há a baía de Nápoles de um lado e o Golfo de Salerno do outro. Há majestade nas colinas, na água azul e nas vilas de telha vermelha aninhadas, e uma quantidade de pomares espalhados pelos vales até às colinas escarpadas.
Um amigo sorrentino, candidato à nova comissão municipal, levou-me de carro até lá. Depois de ter admirado a vista, casualmente mencionei que daria um belo campo de golfe. O meu amigo riu, feliz - o Município tinha tido a mesma ideia. Quando regressássemos à cidade ele mostrar-me-ia os planos. Tinham sido desenhados por um perito inglês bem conhe-
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cido. Continham uma pista de nove buracos, um pequeno hotel e uma cadeira elevatória a partir de Sorrento.
O projecto interessou-me. Era imaginativo e tinha boas perspectivas. Atrairia um novo tipo de turistas. Desenvolveria o comércio de Inverno. Poderia fazer de Sorrento um local de estada permanente, em vez de um ponto de passagem para Capri e Ischia. Os visitantes teriam mais com que se entreter do que ficar sentados na Piazza ou vaguear pelas lojas, aborrecidos e frustrados. A construção e manutenção do mesmo proporcionaria mais emprego aos residentes. Tudo considerado, era uma proposta sã e progressiva.
Estava ansioso por ouvir mais pormenores sobre ele. Regressámos à cidade para rever os planos. A pista parecia interessante. O perito inglês tinha feito um bom trabalho. A disposição do hotel era moderna e confortável. A cadeira elevatória seria um investimento separado, a realizar pelos caminhos de ferro circunvesuviana. Só restavam a pista e o hotel que seriam financiados pelo Município.
Ah, não! O meu amigo sorriu calmamente perante a minha ingenuidade. Não pelo Município.
Empreendimento particular, então? Arrendamento do terreno a uma empresa italiana?
Não, de novoí O Município estava a tentar, sem muita esperança, obter em Londres dos investidores ingleses, o necessário capital para o efeito.
Fiquei pasmado. Disse-o, abertamente. Havia bastante capital disponível na península para financiar o projecto dez vezes. Só o terreno, aos valores inflacionados actuais, era garantia bastante para um empréstimo bancário substancial. Havia milhares de desempregados na península. No Inverno haveria ainda mais. Por quê recorrer ao estrangeiro? Por que não um empreendimento italiano?
O meu amigo encolheu os ombros, desconfortavelmente. A conversa tinha tomado um rumo inesperado. Salientou, com relutância óbvia, que o custo do capital de risco era muito menor em Inglaterra e que, de qualquer modo, os investidores italianos eram cautelosos e difíceis de se lidar. Os bancos italianos eram os mais difíceis de todos. De resto, era um projecto tão atraente, porque não estariam os ingleses interessados nele?
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A delicadeza impediu-me de responder. O investimento depende da fiducia - confiança. Se os italianos tinham tão pouca confiança no seu próprio país, no bom senso dos seus financiadores, na honestidade do seu sistema comercial e administrativo, como esperavam que os ingleses tivessem mais?
Na mesma tarde, repeti esta história ao Prof. Gaetano Salvemini, ex-professor da Universidade de Harvard e agora a viver a sua reforma em Capo di Sorrento. Salvemini é agora um homem velho, mas é um dos maiores humanistas do mundo e é um dos incorruptíveis neste país corrupto e desesperante.
Já passa dos 80 anos, mas mesmo assim os seus olhos brilham e a sua cara resplandece de juventude eterna ao sol mediterrânico. O seu refúgio na costa íngreme da floresta é um lugar de encontro para os estudantes italianos, sedentos de esperança e uma meta de peregrinação para aqueles que foram seus alunos no Novo Mundo.
O seu veredicto sobre a minha história foi pronunciado em voz calma e concentrada, que ainda tem traços da sua pronúncia de camponês da Calábria.
-Pelo que acaba de me contar, o meu amigo pode ver o destino de uma nação que perdeu a fé em si, por ter perdido fé na verdade. Quando os homens não acreditam na liberdade, colocam-se sob o poder dos outros para poder encontrar a ilusão da segurança. Não se predispõem a correr riscos, por terem medo de se sacrificar. Perderam a dignidade como homens, por isso se contentam em se tornarem pedintes. Os seus líderes são reis num reino de pobres, beneficiando da miséria dos seus súbditos, mas não fazendo qualquer esforço para os retirar de lá. E por isso que nos apoiamos na extrema-esquerda e na direita reaccionária, enquanto o partido que se denomina cristão e democrático tem tentado criar um estado confessionário, nem cristão nem democrático. Exigimos que nos conduzam, não interessa para onde, porque não temos a coragem de fazer a caminhada sozinhos.
Concordei com o velho senhor. O seu raciocínio era o raciocínio no qual se baseia o melhor do nosso próprio modo de vida. Mas, perguntei-lhe, dada a situação existente, dado o modo de
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pensar tal como é, o que é que se faz para começar? Onde está o fulcro sobre o qual repousar a alavanca da reforma? Retornei à história dos meus amigos jornalistas, ao seu medo do desemprego e da prisão.
O velho professor resmungou, zangado.
- Então que percam os empregos! Que vão para a prisão! Isso foi uma coisa que Mussolini e os fascistas nos ensinaram
- como ir parar à prisão, como morrer pelas coisas em que acreditávamos. Aí está o seu fulcro. Não existe outro. E a coragem de um homem e o seu coração forte. A coragem de muitos é o que torna a vida boa para todos.
Também isto era verdade, mas eu queria ainda mais. Frisei que ele sabia - e ninguém melhor-que o crescimento da verdade e da coragem e o seu desabrochar ao esforço comum, era um processo lento. Salientei que ele era um homem velho, com um longo passado, que os seus colegas trabalhavam para expandir a doutrina da dignidade humana e da necessidade de cooperação e sacrifício pessoal, mas podiam passar-se anos antes dos frutos desses anos poderem ser colhidos.
Os scugnizzi de Nápoles foram o cerne deste livro. Eram, em todo o sentido, o produto dos males da Itália. As suas necessidades eram o símbolo de milhões de outras necessidades. Se fosse encontrada uma solução para eles, também isso poderia ser um símbolo, um lugar de encontro para a reforma. Salvemini olhou para mim, com curiosidade.
- E qual é a sua solução, meu amigo? Disse-lhe, com energia.
- Tirá-los daqui para fora! Fundar escolas agrícolas e comerciais para eles na Austrália, na América, no Canadá e na Rodésia. Embarcá-los como estudantes, como os rapazes de Bernardo e de Fairbridge da Inglaterra. Depois, quando tiverem crescido, já serão cidadãos úteis num novo país. Não criarão nenhum problema de reintegração. Não serão sobrecarga para o Estado. Pelo contrário, serão membros construtivos.
- E donde viria o dinheiro?
Disse-lhe que acreditava poder ser obtido da caridade privada, dos italianos que estivessem estabelecidos nesses países e tivessem feito uma vida boa, de organizações religiosas
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e de grupos de cidadãos. Ele próprio já tinha visto como estas coisas se faziam.
O professor concordou, sobriamente, e fez-me outra pergunta.
- E como há-de pedir àquelas pessoas, àquelas organizações, que façam o que os próprios italianos se recusam a fazer?
- Dizendo-lhes uma verdade simples - que estas crianças são crianças, e uma criança tem o direito de tocar o coração de todo o mundo.
Assim como o disse a Gaetano Salvemini, digo-o agora a todos os que lerem este livro.
Claro que não basta dizer o que é preciso fazer. A menos que um escritor possa oferecer uma solução prática aos problemas que põe, seria melhor que não escrevesse sobre os mesmos. De contrário, será fazer teatro com a miséria dos seus concidadãos.
Quando eu era ainda jovem muito verde, fiz uma pequena aprendizagem com William Morris Hughes, primeiro-ministro da Austrália e um inimigo inveterado de Lloyd George e Woodrow Wilson. Admirava Clemenceau, o Francês, mas detestava Orlando, o Italiano, provavelmente porque ele era um provocador de ralés tão astuto como nenhum outro que alguma vez se tivesse pavoneado pelos ministérios. Ensinou-me uma lição, da qual sempre me lembrarei.
- A retórica - dizia ele - faz boa política e má prática.
Billy era galês e os seus conselhos célticos têm acompanhado o meu pensamento durante a elaboração deste livro.
A Itália é o lar da retórica e Nápoles a fonte do sentimento. A oratória romana já seduziu mais do que um diplomata e o seu encanto mediterrânico já atraiu milhares de visitantes para casos amorosos com uma amante muito espalhafatosa.
De modo que agora posso tornar-me pragmático e dizer, em palavras simples, como as pessoas noutros países podem ajudar os gaiatos de Nápoles.
Em 13 de Abril deste ano, escrevi ao embaixador dos Estados Unidos e ao ministro australiano em Roma. Escolhi estes dois países, não porque sejam os únicos para onde é possível

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a emigração, mas por eu ser cidadão de um deles, e porque o outro está profundamente envolvido nos assuntos da Itália. Os seguintes foram os termos da minha carta:
[...] Este trabalho (A Casa dos Gaiatos) chegou agora a uma fase crítica. Don Borrelli tira estes rapazes da rua, educa-os até à idade de 17 ou 18 anos e depois tem de os enviar para um emprego inseguro e muitas vezes temporário, em Nápoles, onde existem quase 200 000 desempregados.
A melhor esperança para estes rapazes - e para o próprio trabalho - seria a emigração para uma escola técnica e agrícola especialmente organizada, na Austrália, América e Canadá. Queira V. Ex.a informar-me para publicação dos capítulos finais deste livro - sobre os seguintes pontos:
1) Se as referidas escolas fossem montadas e mantidas por organizações de caridade particulares na Austrália ou América, as provisões actuais das leis de imigração australiana ou americana, permitiriam a entrada de um número limitado de rapazes, em cada ano?
2) Se existem alguns impedimentos a essa imigração, quais são e que acção se deve tomar para os remover?
Em 23 de Abril, recebi a seguinte resposta do ministro australiano, Paul Maguire:
Não existe nada na lei de imigração que impeça a entrada limitada de um número de rapazes, em cada ano, nas circunstâncias descritas. Evidentemente, os rapazes teriam de preencher os requisitos daquela lei e qualquer critério adoptado pelo governo australiano, de acordo com a lei [...] da política migratória, em geral favorece os jovens imigrantes, mas há-de compreender que os projectos específicos referentes à imigração e imigrantes individuais, são considerados em conformidade
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com os seus próprios méritos, quanto a capacidade, saúde, etc.
Na essência, a resposta é favorável. Despida das suas frases cautelosas e das opções oficiais, demonstra que o caminho está aberto à caridade privada, para proporcionar um futuro na Austrália aos rapazes de Borrelli. O caminho está aberto, especialmente para aqueles italianos que encontraram uma vida boa e que queiram compartilhar os seus frutos com as crianças perdidas do seu próprio país. Como fazê-lo?
Existe uma dúzia de projectos disponíveis, mas sugiro o seguinte, por ser o mais prático e rendoso para o país e para os próprios rapazes. Que forneçam fundos para a compra de terreno, construção e manutenção de uma escola agrícola e técnica, numa boa área mista agrícola, para onde, todos os anos, possam ser enviados trinta ou quarenta rapazes da Casa dos Gaiatos, a fim de se treinarem, como agricultores e comerciantes especializados.
Se o desembolso de capital e os custos de manutenção desse empreendimento parecerem muito elevados, sugiro que se obtenha o mesmo número de bolsas de estudo em instituições estabelecidas, para cobrir o custo das passagens, das roupas e da manutenção dos rapazes durante o período de treino.
De facto, o segundo esquema poderia ser utilizado como preparação do primeiro e os grupos iniciais de rapazes poderiam ajudar os que chegassem depois, segundo um sistema análogo ao do Movimento Inglês Big Brother.
Poder-se-iam escrever volumes sobre a organização e administração dos sistemas existentes, mas todos os volumes podem ser reduzidos a um só parágrafo:
A necessidade é evidente. De acordo com a lei, o caminho está aberto.
Que os homens de boa vontade façam alguma coisa.
A seguinte é a resposta do consulado americano em Nápoles. A data é de 22 de Maio de 1956:
A sua carta de 13 de Abril de 1956, dirigida ao embaixador, pedindo determinadas informações referentes à
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para os Estados Unidos de rapazes italianos de cerca de 17 a 18 anos de idade, para uma possível formação numa escola técnica ou agrícola, foi-me entregue para resposta.
Os cidadãos italianos, se habilitados para visas de imigrantes, poderão obter esses visas sujeitos à limitação de quotas estabelecidas pela Lei de Imigração e Nacionalidade de 1952. A quota para Itália é de 5,645 por ano.
Presentemente, a quota italiana está muito sobrecarregada. Isso representa o principal impedimento à emigração para os Estados Unidos em maior escala. A quota só poderá ser aumentada através de uma lei do Congresso.
Não cabe a mim expressar uma opinião sobre a conveniência de se fundar uma escola técnico-agrícola nos Estados Unidos, com o fim de formar jovens imigrantes italianos. O governo federal dos Estados Unidos não controla a educação nos Estados Unidos, dado que a educação é assunto que recai sob a jurisdição de cada um dos quarente e oito Estados.
Não tenho nenhum comentário a fazer a esta resposta, nem nenhuma crítica. Estou a par das provisões da Lei McCarran. Não pago impostos americanos, portanto não tenho a pretensão de comentar sobre a legislação americana ou sobre a sua prática diplomática.
Chamo a atenção do povo americano para este assunto, como chamo a do resto do mundo: são crianças. O que se poderá fazer por elas?
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Era o meu último dia em Nápoles, e meu último na Casa dos Gaiatos. Tinha um molho de fotografias na mala e um monte de anotações e números. No dia seguinte regressaria a Sorrento para as pôr em ordem e começar a trabalhar no meu livro. Mais tarde, quando o vento quente parasse de soprar e o mar estivesse calmo, atravessaria para a brilhante e pequena ilha de Capri, onde os primeiros turistas da estação já estavam instalados e onde a princesa do dólar viria para a sua lua-de-mel com um príncipe de comédia musical.
Voltaria as costas à bassi e às crianças sujas e sem esperança. Sentar-me-ia sob as glicínias e as frescas folhas das videiras, bebendo vinho tinto e olhando as raparigas passar na pequena e alegre praça de Capri. Quando a lua surgisse, subiria ao Salto di Timberio, vendo as luzes flutuantes dos barcos de pesca sobre as águas luminosas.
Ouviria música e gargalhadas e as vozes dos gaiatos desvanecer-se-iam num grito ténue e lamentoso, meio perdido no murmúrio da canção da sereia.
Senti-me envergonhado comigo mesmo. Mas um escritor é, | também, uma espécie de garoto da rua, vagabundeando pelas estradas do mundo, fazendo as suas pequenas mímicas para alegria ou tristeza dos seus leitores.
Assim, quando me senti pela última vez no quarto poeirento e atravancado de Don Borrelli, bebendo a minha última chávena de café, fumando o meu último cigarro, fiquei comovido com a tristeza do inevitável adeus.
Borrelli parecia cansado. Tinha tido um dia cheio. Amanhã teria outro e no dia seguinte também e todos os dias de todos os anos à sua frente. Passou os dedos pelo cabelo, num gesto familiar e sorriu para mim, cansado.
- Acha que o seu livro nos vai ajudar, meu amigo? Encolhi os ombros, vagamente. Disse-lhe que não sabia.
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Disse-lhe que um livro era como uma criança. Era concebido com amor, desenvolvido com cuidado e nascido de uma grande dor. O seu destino dependia de muitas coisas fora do seu controlo: da opinião do agente, da procura por parte dos editores, do catálogo da editora, do humor dos críticos e dos leitores. Disse-lhe que iria escrevê-lo com cuidado e, mais do que isso, com amor e compaixão e com todo o talento de que fosse capaz. Depois disso, chi sã? Esperava que tocasse em muitos corações. Não podia garantir que tocasse num sequer.
Borrelli estendeu as mãos num gesto apaixonado.
-Mas eles terão de o ler, Mauro! Eles têm de compreender o que se passa aqui. Têm de saber o que acontece às crianças, não só às minhas, como a todas as outras. Os rapazes que continuavam nas ruas, as raparigas que acabariam por lá ir parar. Se essas pessoas não nos estenderem as mãos para ajudar, estaremos perdidos.
Concordei, desanimado. Sabia-o tão bem como ele. Tentei explicar que as pessoas, muitas vezes, não ajudavam porque tinham os seus próprios problemas-custo de vida, impostos, disputas conjugais, hipotecas que se vencem, doença na família.
Ele agarrou-se ao final do meu discurso e pegou-se a ele como um terrier.
-A família! Aí está o que eles têm de compreender. Nós somos uma família, todos nós! Somos filhos e filhas de um só Pai árabes, gregos, indianos, chineses, mesmo os napolitanos! Se um de nós ficar doente, a infecção pega-se aos restantes. Uma injustiça feita a um, é uma injustiça feita a toda a família. Qual é o velho provérbio? «Um urso tosse no Pólo Norte e um homem morre em Pequim!» Olha, Mauro...! - Espalmou as mãos firmemente sobre a secretária e inclinou-se na minha direcção. - Há vinte anos na Europa começamos a ouvir rumores sobre campos de concentração, homens mortos em caves escuras e crianças espancadas à traição. Por isso houve uma guerra. E depois da guerra, veio o novo terror da bomba atómica, um terror que cresce todos os dias. Agora não é só uma nação, mas toda a família humana que está ameaçada. E a ameaça está aqui, em Nápoles! A ameaça existe onde quer que as pessoas passem fome, não tenham trabalho e não tenham esperança para si ou para os seus filhos.
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Não disse palavra. O que havia para dizer? Acreditava na família humana, tanto quanto Borrelli. O livro que eu planeava escrever seria uma confirmação disso. A obra de Borrelli era uma confirmação ainda mais forte do que a minha. Mas entre a confirmação e a mudança, haviam mil obstáculos, dez mil homens. Nem todos os obstáculos eram maus, nem todos os homens uns velhacos. Porém, não se podiam ultrapassar fronteiras, embarcar 3 milhões de desempregados em navios e atirá-los a monte, sem lar e sem ajuda, com prejuízo de uma outra economia. Não se podia brandir uma varinha mágica e fazer com que centenas de fábricas surgissem de repente em Nápoles.
-Não - disse Borrelli, sombriamente. - Mas um dia, em breve, se não tivermos cuidado, alguém há-de brandir uma varinha, fazendo surgir centenas de milhares de homens armados. Aconteceu na China. Aconteceu na Indochina. Está a acontecer agora no Egipto e em Marrocos. Homens sem trabalho tornam-se desesperados e se não pusermos ferramentas nas suas mãos, armar-se-ão de espingardas. E o que acontecerá então a essa sua boa gente com o seu custo de vida, as suas hipotecas e os seus filhos com dores de dentes? Essa gente faz parte da família humana. Está comprometida tanto com o seu futuro como com o seu presente. Olhe para isto!
Vasculhou um monte de papéis e retirou um exemplar do jornal Daily American. Marcou uma página com um toco de lápis azul e colocou-o sob o meu nariz.
Tratava-se de um relatório sobre a recomendação do procurador-geral Herbert Brownell referente à liberalização da Lei de Imigração MaCarran-Walter. Continha uma citação de Richard Arens, conselheiro do subcomité para a Imigração. A argumentação de Arens era que a proposta de Brownell «modificaria o padrão cultural da nossa imigração, da Europa nordeste ocidental para a Europa sudeste oriental». Li, devolvendo o jornal, sem comentários. Calmamente, Borrelli disse:
- Padrão cultural! Está a ver? A velha e fabulosa monstruosidade. A velha, velha heresia. Em que século vivem estes homens? Compreenderão o que dizem? Isso foi o que criou os guetos e os campos de concentração e o que destruiu a liberda-
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de. Isso é o que faz a guerra hoje em dia. Porventura, terá uma criança um padrão cultural?
Tão cuidadosamente quanto possível, fiz notar que eu não era um cidadão americano, por isso não podia, baseado na força de um parágrafo de jornal, envolver-me numa crítica arrasadora da legislação americana. Salientei que as citações jornalísticas, por vezes, colocavam a ênfase no sítio errado, distorcendo assim o argumento. Resmungando, Borrelli concordou. Mas não era fácil desviá-lo da sua tese.
- Ebbene! Admitamos por um momento este modelo de cultura. Admitamos que tenha de haver um preço ou uma condição para se pôr pão na boca de uma criança ou para se oferecer esperança a um jovem. Na América, e no seu país, a Austrália, os emigrantes desse modelo cultural do Sul contribuíram para a prosperidade de ambos os países. Ajudaram esses países a desenvolverem-se até à prosperidade de que hoje gozam. Com que direito você diz Basta! Chega! Agora não precisamos mais de vós. Gozemos o fruto do vosso trabalho, mas não nos incomodem com conversas de crianças pobres e de homens sem trabalho na bassi de Nápoles!
Agora foi a minha vez de me zangar, não porque discordasse da sua argumentação, mas porque a minha mente e o meu coração estavam cheios de todas as coisas que tinha visto e aprendido sobre os pecados da própria Itália. Virei-me contra ele. Apresentei-lhe factos e números. Dei-lhe nomes e circunstâncias, muitos dos quais, por razões óbvias, tive de omitir no meu livro. Fiz-lhe ver que os americanos e os australianos tinham feito muito mais do que os signori de Nápoles, os industriais e os senhorios ausentes. Frisei que mesmo a nossa indiferença era virtude, comparada com a activa oposição dos próprios italianos à mínima alusão de reforma social.
Borrelli aceitou bem o que eu disse. Aprovou sobriamente, quando lhe apresentei os malfadados factos e os números aterrorizadores. Não contestou o argumento. Concordou que a responsabilidade principal era dos parentes mais próximos da família, isto é, os próprios italianos. Recusou afastar-se da sua primeira tese de que todos éramos da mesma família e que se alguns falharem nos seus deveres, os restantes teriam de suprir essa falta.
A cólera já o tinha abandonado e sorriu para mim por cima
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da secretária, um sorriso maroto, torto, do pai e irmão dos scugnizzi. Estendeu a mão.
- Escreva um bom livro, Mauro. Diga-lhes quem nós somos e o que nós somos, não só os scugnizzi, mas todos nós aqui em Nápoles. Diga-lhes que não somos todos velhacos, alcoviteiros e guias turísticos venais. Se somos maltrapilhos, é porque somos pobres. Se penduramos a nossa roupa nas varandas, é porque não temos outro lugar para a pendurar. Se alguns de nós são pouco asseados, é porque temos de descer seis lances de escadas para tirar um balde de água. Somos um povo velho e cansado; mas aguentamos muito, porque não nos falta coragem. Somos vaidosos como crianças e como crianças choramos, rimos e nos zangamos facilmente. Como as crianças, temos a nossa própria inocência, que nem mesmo Nápoles pode destruir completamente. Ensinem-nos um pouco, ensinem os nossos rapazes, também. Se não forem benvindos nos novos países, peça ao vosso povo que os ajudem a fazer uma boa vida aqui. Que Deus o guarde, Mauro. Que Deus nos ajude a todos nos tempos difíceis!
Apertei-lhe a mão e deixei-o - um homem cansado, só, sentado à luz amarela que reflectia sobre a sua secretária cheia de papéis. O pequeno Antonino aguardava-me para me dar as boas noites e Peppino estava a chegar para me acompanhar na minha última ronda pela cidade.
Subi as escadas estreitas que levavam ao pequeno dispensário, no topo do edifício e encontrei o Antonino à minha espera. Empoleirou-se na cama e ficou a observar-me, solenemente, enquanto eu fazia a barba e vestia uma camisa lavada e emalava a minha roupa e mudava o rolo de filme da minha máquina fotográfica. Ele não disse muito. Estava ali sentado, a chupar um pirolito que eu lhe tinha dado e seguindo todos os meus movimentos com os seus olhos grandes e inquietos.
Só depois de eu ter acabado de arrumar a roupa e de ter colocado o pijama sobre a cama, é que ele deu um sinal dos seus pensamentos.
- T’n’vai via stasera, Mauro? Vais-te embora hoje à noite,
Mauro?
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-Não, Nino. Não hoje. Hoje vou jantar com o Peppino. Voltarei aqui para dormir. De manhã, ir-me-ei embora.
- Ver-te-ei, então? Abanei a cabeça.
- Provavelmente não, Nino. Vou-me embora antes de tu acordares.
Os seus olhos encheram-se de lágrimas. Com o pirolito metido entre as maxilas e o chocolate por toda a cara, parecia quase comicamente triste. Mas para mim não era cómico. Este pequenino garoto era para mim o símbolo de todas as misérias de Nápoles, de toda a injustiça amontoada nos ombros inocentes das crianças. Acabei por amá-lo. Queria levá-lo comigo. Tinha mesmo indagado se isso poderia ser feito, mas depois de dez minutos de indagações sobre os problemas inerentes, convenceram-me que era impossível.
- Hás-de voltar, Mauro?
- Provavelmente sim, Nino.
Como poderia dizer-lhe que nunca mais voltaria? Como lhe poderia explicar que as linhas da vida de um escritor são lançadas em lugares estranhos e ele nunca pode ter a certeza aonde elas o conduzirão, de um ano para o outro? Sentei-me na cama e sentei-o nos meus joelhos. Pôs as mãos à volta do meu pescoço e beijou-me, borrando de chocolate a cara que eu tinha acabado de barbear.
- Conta-me uma história, Mauro. - Só uma antes de te ires embora.
- Que história?
- L’Orso e 1’Albero. O Urso e a Arvore.
Era a minha própria tradução da história do pequeno coala, que vivia nas folhas de uma árvore de borracha, mas era tão guloso que comeu todas as folhas, ficando sem lar e sem casa. Embelezei a história com intrigas sobre o canguru e os papagaios coloridos e a grande e vermelha galah e o vombate que se enterrava na areia como uma monstruosa toupeira. Que espécie de fantasias a criança tinha tecido à volta da minha história, não podia adivinhar. A versão italiana era tão cheia de circunlóquios e descrições laboriosas, que ele talvez sonhasse com dinaussauros. Só sei é que ele adorava ouvi-la.
Assim, pela última vez, contei-lha. Estava sentado, quieto, chupando o pirolito, os olhos dilatados, perdido na fabulosa
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legenda de uma terra que ele jamais iria conhecer, uma terra onde ninguém passava fome.
Algum dia, talvez, a caridade dos cidadãos e a sabedoria dos homens de Estado, tornassem possível ao Nino entrar nessa terra, ser ali educado, crescer alto e forte e livre, numa terra verde e boa. Mas a esperança estava muito distante e falar-Ihe nisso agora, seria enganá-lo de novo.
Quando acabei de contar a história, beijei-o depressa, dei-lhe outro pirolito e empurrei-o em direcção ao dormitório. Não suportava a ideia de o ter ali e não sentir qualquer esperança por ele. Era uma criança como o meu filho. Não pertencia a nenhum partido. Não tinha qualquer padrão cultural. Era um garoto da rua, que permanecia de pé, com a cara encostada às grades de ferro de um jardim pertencente a outrem. Perguntei-me se na casa haveria bondade suficiente para abrir os portões e deixá-lo brincar entre os canteiros de flores.
Estava preocupado com o meu jantar com Peppino. Tinha-o sugerido num impulso, pensando apenas em lhe agradar com um jantar num bom restaurante, depois de todas as noites passadas a vagabundear pelos becos e pardieiros. Ele tinha hesitado por um momento, depois aceitou com calor e entusiasmo. Só mais tarde é que me apercebi de que ele, talvez, não tivesse roupas apropriadas para um sítio daqueles. Receava que fosse cometer alguma extravagância para as obter.
E tinha mesmo. Tinha procurado por toda a Nápoles um casaco novo a um preço a condizer com as suas possibilidades. Por fim, encontrou-o - um bonito modelo com botões de latão como um blaser inglês. Isto, com um bom corte de cabelo, sapatos engraxados e calças limpas na lavandaria, tinha-lhe custado 13 000 liras - metade das economias de toda a sua vida. Quando se encontrou comigo, nos jardins da Villa Communale, estava tão elegante como um modelo de alfaiate.
Assobiei em sinal de aprovação e ele pavoneou-se na minha direcção, com um sorriso largo.
- Gostas, Mauro?
- Bello! Toquei nas ombreiras. -Bellissimo! - Fi-lo rodopiar e admirei o casaco curto, de corte apertado e cintura estreita.
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- É o último modelo, non è vero?
- Certo, era a última moda.
-E o tecido?-fez-me apalpar a gola e sentir o forro de rayon das mangas. - Da melhor qualidade?
- Da melhor. Tens bom gosto, Peppino.
Ficou contente com o cumprimento e sugeriu que como era a hora da passeggiata, caminhássemos um pouco pela avenida para nos exibirmos antes de irmos jantar. Muito bem! Passearíamos um pouco.
O vento tinha amainado. O ar estava parado e quente, prometendo uma chuva macia e purificadora. Depois das minhas longas noites na bassi, as pessoas pareceram-me mais vistosas, mais bem vestidas e mais animadas. As raparigas davam risadinhas e mexiam os quadris orgulhosamente e os mancebos eram ardentes e extrovertidos no seu namoro.
A Primavera estava a chegar a Nápoles e as gentes de Nápoles estavam a abrir os braços e os corações para a receber.
Peppino andava de cabeça erguida e peito saído para fora, perfeitamente consciente da sua roupa nova e da bonita figura que estava fazendo nesse passeio da moda. Olhava para as raparigas e criticava a aparência e a roupa dos rapazes. Meti-me com ele.
-Era o que tu devias estar a fazer, Peppino, procurar uma rapariga a condizer com a tua roupa.
Corou e sorriu.
- Era o que gostaria de fazer, Mauro. Fiz um gesto largo.
- Vá lá. Por que não? A cidade está cheia de raparigas. O seu semblante carregou-se.
- Por esta noite, está bem. Mas amanhã e no dia a seguir, tornar-me noivo, casar e ter filhos? Isso está muito longe, Mauro. Às vezes penso que nunca vai acontecer.
Por um instante lamentei a minha graça. A nossa noite estava a começar mal. Mas tinha dado origem à pergunta. Agora, só me restava responder. Toquei-lhe no ombro e disse com mais confiança do que sentia:
- A altura chegará, Peppino. Provavelmente mais cedo do que pensas. Hás-de achar um bom emprego. Encontrarás uma boa moça. Construirás a tua vida.
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-Ali, na bassi? - Apontou um dedo em direcção à cidade.
- Nunca!
Depois da calma e compassiva exposição sobre a vida dos scugnizzi, a sua veemência surpreendeu-me. No entanto, não devia ter-me surpreendido. A Primavera estava chegando, e a energia corria forte no seu corpo sinuoso. Era normal que sentisse o desejo do amor, natural que se ressentisse com a sua
negação.
Para lhe distrair a atenção e à falta de melhor para dizer, agarreio-o por um braço e voltei-o na direcção da baía, onde um grande navio de passageiros deslizava no crepúsculo. As luzes brilhavam e o fumo parecia uma bandeira cinzenta jorrando da dupla chaminé.
Era um navio inglês, de regresso a casa, vindo de Sydney,
Colombo e Aden.
Atravessámos a rua, encostámo-nos ao muro, vendo-o passar. Enquanto o observávamos, falei com Peppino sobre o navio. Falei-lhe sobre Colombo e os negociadores de pedras preciosas ao redor do porto e o interior verdejante com as plantações de chá e o templo do Dente em Kandy. Falei-lhe sobre Bombaim e as Torres do Silêncio e os encantadores de serpentes ao redor do Portão para a índia. Falei-lhe dos navios que Sheba tinha construído quando Aden era o porto do ouro, incenso e mirra, as dádivas dos Três Reis.
Confesso que foi uma conversa triste sobre viagens mas ele escutou, embevecido, como Antonino tinha ficado quando lhe contei a história do coala na árvore de borracha. Quando acabei, a sua cara sombria voltou-se para mim no crepúsculo.
-Vês, Mauro? Para ti tudo é possível devido à terra em que
nasceste.
Sorri, amargo, e disse-lhe que não era tão fácil como parecia. Eu, também, tinha de trabalhar, poupar e planear. Se os meus livros não se vendessem bem, eu acabaria lavando pratos num pub londrino. Ele abanou a cabeça.
- Não é isso que eu quero dizer, Mauro, e tu sabe-lo. A diferença entre eu e tu é que tu podes trabalhar, economizar e contar com todas essas coisas. Para nós há pouco trabalho, nenhuma poupança e nenhuma esperança. A diferença reside no facto de tu teres nascido num país e eu noutro. É muito simples.
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Simples, na verdade; mesmo assim, quão tragicamente complexo, quando se tenta equilibrar a balança, fazendo tanta justiça a Peppino de Nápoles como ao Mauro de Sydney. Desisti. Vinha aí a Primavera e esta era a minha última noite em Nápoles. Peguei no cotovelo de Peppino e guiei-o até às portas de vidro iluminadas de um hotel moderno da Via Caracciolo.
Foi ele que decidiu que deveríamos vir aqui. Quando lhe sugeri o jantar, ele tinha perguntado, desajeitadamente, se primeiro poderíamos vir a este hotel tomar um aperitivo no bar americano. Quando lhe perguntei porquê, explicou-me que quando era um scugnizzo, ficava à porta à espera que os turistas entrassem ou saíssem, para lhes pedir cigarros ou para ganhar 100 liras, transportando as suas malas para a paragem do autocarro. A ideia de um bar americano, tinha-o fascinado. Gostaria de saber como era por dentro.
Preveni-o de que talvez ficasse desapontado. Era apenas um bar com fileiras de garrafas em frente e espelhos gravados e bancos cromados com assentos em cabedal vermelho e um empregado preparando cocktails. Muito bem! disse ele. Era isso mesmo que queria ver.
Era um bar como milhares de outros. Havia demasiados cromados, demasiados vidros e demasiadas gravuras em azulejos e mais bebidas do que as que um homem poderia beber com os rendimentos de um ano. O empregado tinha o aspecto aborrecido de alguém que tinha preparado demasiados cocktails, e os hóspedes estavam tão tristes ou tão alegres como os seus semelhantes noutras cidades do mundo.
Sentámo-nos nos altos bancos do bar e o empregado levou o seu tempo a aproximar-se para perguntar o que bebíamos. Pedi um uísque. Peppino pensou um bocado, depois pediu o mesmo. O empregado sorriu de lado, depois perguntou-lhe algo em dialecto.
Peppino corou e deu uma resposta brusca. O empregado encolheu os ombros, afastando-se para as suas prateleiras.
Peppino voltou-se para mim. Os seus olhos brilhavam.
- Sabes o que é que ele me disse, Mauro?
- O que foi?
- Perguntou-me onde te tinha apanhado e se esperava tirar um bom lucro contigo.
Disfarcei um sorriso.
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- Que lhe disseste?
- Disse-lhe que eras meu amigo e que ele era um...
A palavra que usou era napolitano puro. Significava um sujeito muito sujo mesmo.
- Muito bem, Peppino. Agora vamos esquecê-lo e gozar a
noite.
O empregado trouxe as bebidas. Paguei. Ele fixou-me quando omiti a gorjeta usual. Quando nos deixou, bebemos à saúde um do outro e beberricámos por um momento ou dois em silêncio, saboreando o bom e dourado líquido, que tinha custado o ordenado de uma semana de um trabalhador napolitano.
Então Peppino, brandamente, e apanhando-me desprevenido, disse:
- Nós somos diferentes, não somos, Mauro?
- Não sei o que queres dizer.
-Acho que sabes, Mauro. E peço-te que me digas a verdade, pois ela é importante para mim e para muitos outros.
Precisava de tempo para meditar na resposta. Para ganhar tempo, fiz a mesma pergunta a Peppino. - Primeiro, deves ser tu a dizer-me. O que te faz pensar que sejas diferente? Como e em que sentido?
Peppino apontou o dedo, com desprezo, para o empregado
do bar.
- Isto, por exemplo! Entras aqui, tu ou qualquer um de Ro-
l ma ou Veneza, ele faz uma reverência e chama-te àesignore! Comigo, é como viste. Eu sei que falo como um napolitano. Sei que me pareço com um napolitano. Mas isso é motivo de orgulho, e não de chacota ou desprezo. Talvez seja algo que eu não sei? Algo que tu me possas explicar? Somos amigos. Não precisas de ter medo de me ofender.
E, ali estava de novo o velho dragão de olhos tortos, encostando os cotovelos no bar e sorrindo para nós: padrão cultural, estágio evolutivo, características raciais. Os seus nomes são uma legião, mas ele é um monstro muito familiar, o medo! Pedi mais dois uísques e tentei descrevê-lo a Peppino.
- A primeira coisa que terás de compreender, Peppino> é que todos nós somos diferentes uns dos outros. Este aqui é alto, aquele é baixo e redondo como um barril. As nossas línguas são diferentes, assim como os nossos gostos em- mulheres, vi-
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nho e funerais. Não resolve nada dizer que não há diferença. Há muitas.
- Mas são diferenças que não podemos resolver nem mudar. Eu não posso falar como tu, nem vestir como tu, nem mesmo piscar o olho às mesmas raparigas. Certo, mas por que insultarmo-nos uns aos outros por causa disso?
- Pessoas que se insultam, Peppino, são geralmente mal-educadas e indelicadas.
-Não!-Estava muito seguro disso. Pôs o uísque cuidadosamente no balcão do bar, a fim de que as suas mãos estivessem livres para expor o assunto. -Não, Mauro, se fosse só isso, não teria importância. Não são só os mal-educados e os indelicados. São todos os outros, a boa gente, os signori, as pessoas que têm a fotografia nos jornais. - Inclinou-se para a frente e tocou-me no joelho. -Sabes o que acontece aos napolitanos quando vão ao consulado americano pedir informações sobre a imigração. Não conseguem entrar. Ficam a monte lá fora e ninguém lhes dá atenção. Eu sei. Eu também estive lá. Achas isso bem? É correcto? Ou quer isso dizer que o homem que está lá dentro é um ser superior e nós apenas uns animais incómodos?
Tentei evadir a pergunta com um sorriso.
-Provavelmente, isso significa que ele não pode satisfazer tantos requerentes, Peppino.
- Então por que não o diz? Por que não ser directo e delicado sobre o assunto? Olha, Mauro. Tu sabes logo quando alguém não gosta de ti. Sabes quando se riem à socapa da tua pronúncia ou do teu modo de viver. Também nós sabemos.
-Certo! Certo!-Era um conto que podia ser contado toda a noite. Tentei apanhar o fio do meu próprio argumento. Dizê-lo, polemicamente, era bastante simples, mas torná-lo inteligível e pessoal a este jovem inquieto de olhos escuros, era um assunto completamente diferente. Disse-lhe:
-Há uma palavra em inglês, Peppino, chamada snobismo. É difícil de traduzir exactamente, mas quer dizer que um homem que tem uma casa grande olha de cima para baixo para o homem que vive numa casa pequena. Quer dizer que se vieres de uma família senhorial, deves ser melhor do que o trabalhador que vive na bassi. Quer dizer que uma mulher que veste roupas caras despreza a criada que a ajuda a vestir-se.
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Peppino concordou. Isso podia ele compreender. Era uma experiência por que passava todos os dias.
Este snobismo é uma loucura, porque diz que um homem é melhor que outro por aquilo que possui, não por aquilo que é. Faz com que o seu mérito dependa de um acidente de nascimento ou da sorte, não do calor do seu coração, da força do seu intelecto, da habilidade das suas mãos. É loucura, mas loucura perigosa. Porque tem o medo por base!
Peppino ficou surpreendido. O pensamento era novo para ele. Os signori com medo dos scugnizzi! Não conseguia perceber.
Mesmo assim, é verdade, Peppino. É verdade sobre os indivíduos, as classes e as nações. Se sou rico, não me agrada que me lembrem que existem crianças a dormir nos esgotos. Estraga tudo o resto. Se eu tiver boas maneiras e amigos educados , irrita-me lidar com os que partem o pão com as mãos e que gorgolejam quando bebem a sopa. Se tiver dois quartos de banho, não me agradará saber que existem milhares que nem água corrente possuem. Sinto-me inseguro no meio dos meus bens, não tenho a certeza de ter direito aos mesmos, começa a ter medo. Porque tenho medo, sou orgulhoso, tirano, refractário à educação e à reforma. O medo torna as pessoas egoístas. O egoísmo resulta em inveja, ódio e suspeita. As guerras são feitas assim. As revoluções também.
A pergunta seguinte de Peppino foi manhosamente acutilante.
- Então é por isso que é difícil entrar noutro país, porque gorgolejamos ao ingerir a nossa sopa?
-Até certo ponto, sim. Há os que receiam que trazer demasiada gente do Sul, seria criar uma nova Nápoles no seu próprio país. Já aconteceu. Pode acontecer de novo.
- Se tivéssemos melhor educação e melhores maneiras e se fôssemos melhores artesãos, seríamos mais benvindos?
- Sim.
-Allora! Esticou as mãos num gesto desesperado e o seu copo de uísque caiu ao chão, partindo-se. O empregado sorriu desdenhosamente e os outros hóspedes olharam, incomodados. - Assim, voltamos ao princípio. Nós somos diferentes, tão diferentes que as outras pessoas não se sentem felizes na nossa companhia. Para mudar isto, precisamos de educação.

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Sabes bem que aqui não a vamos obter. Não podemos partir para o estrangeiro para a obter. Assim, ficamos sem esperança!
E ali estava ele, o dilema difícil do Sul, a amarga tragédia das suas gentes simples, ignorantes.
O seu próprio país não lhes oferece nada. As portas dos outros países abrem-se devagar ou não se abrem mesmo.
São os e, no entanto, vivem na escuridão da bassi. Têm o fogo de Vesúvio no sangue, mas este arde fracamente e a fumaça pouco se vê. São os herdeiros de três mil anos de história, mesmo assim vivem no vácuo da Europa, num local onde o progresso permanece parado. Vivem num tempo que não é tempo, apenas uma síncope irrespirável dos séculos.
Saímos do bar americano e regressámos à Villa Comunale e depois voltámos à Via Roma. O nosso destino era o restaurante chamado «As Três Pombas».
As luzes eram brilhantes, a comida boa e bebemos um bom tinto Barolo das vinhas do Norte. Porque Peppino era napolitano, a sua tristeza não durou muito; assim, descontraímo-nos, rimos e cantámos quando os violinistas vieram tocar para nós.
De comum acordo não falámos mais de problemas ou de políticas ou dos meandros da economia. Éramos dois amigos que se divertiam na cidade. Cada um de nós contou a sua reserva de anedotas e esperiências passadas enquanto íamos comendo.
Comemos devagar o antepasto, peixe - vermelho e lustroso, pescado no golfo exterior, e galinha alia cacciatora - a mais gorda que tinha visto há semanas, pêras novas da Sicília e passas embrulhadas em folhas de laranjeira. Quando acabámos a primeira garrafa de Barolo encomendámos outra, como devem fazer os bons amigos em ocasiões importantes como nascimentos e vésperas de casamento.
Quando chegámos ao café e ao Strega, os outros comensais já tinham partido e os criados estavam a limpar as mesas. Os violinistas há muito que tinham partido, mas nós ficámos ali naquela claridade nebulosa, ruminando os nossos pensamen-
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tos e lembrando-nos de que esta seria a minha última noite em Nápoles, a nossa última noite na companhia um do outro. Estávamos cheios de comida e de vinho e de sentimentos agradáveis. Peppino tinha a certeza que milhares de exemplares do meu livro seriam vendidos e eu estava confiante de que nos próximos doze meses ele e os rapazes mais velhos estariam a chegar às fronteiras de Queensland ou navegando ao largo da Estátua da Liberdade.
Claro que nenhum de nós acreditava naquilo. Estávamos a construir o nosso pequeno castelo de ilusões para afugentar do pensamento as realidades que nos esperavam a 20 m das portas de vidro do restaurante «As Três Pombas».
De repente Peppino olhou para mim, meio a sorrir e meio
envergonhado, dizendo:
- Sabes o que gostaria de fazer agora, Mauro?
- O quê?
-Gostaria de beber outro Strege e mais outro. Depois, gostaria de fazer um telefonema a uma rapariga para combinar um encontro na casa grande do Voinero.
Compreendia o que ele sentia. Também o sentia. Só que eu tinha um lar para onde regressar e onde o amor me aguardava. De qualquer modo, perguntei-lhe:
- Porquê?
- Porquê, Mauro? Porque estou só e tenho medo. Porque
a vida é longa e para mim, como para tantos outros, existe muito pouca esperança nela. Um homem, por vezes, precisa de esquecer. Reprovas-me? Tinha muito pouca fé na minha própria coragem para o condenar seja pelo que fosse. Ele sentia-se só. Nápoles é uma cidade solitária, brutal. Ele tinha medo - do futuro sem perspectivas e das noites sem amor. Culpá-lo? Eu não. Apontei para as filas de garrafas à volta da parede e depois para o telefone. Tirei a carteira do bolso e coloquei-a entre nós, sobre a mesa. -Está ali todo o Strega que queiras. Está ali o telefone. Há dinheiro na carteira. Que mais? Olhou para mim com estranheza. Depois sorriu e empurrou a carteira na minha direcção. Perguntou zombeteiramente:
- E amanhã, Mauro? Encolhi os ombros e sorri, recusando o desafio.

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- O amanhã é teu problema, não meu.
Concordou, sobriamente. Olhou para as mãos, depois de novo para mim. Passados uns momentos, falou:
- Então, Mauro, deixa-me falar-te sobre o meu amanhã. Vou acordar e sentir-me envergonhado e saberei que sou menos homem do que gostaria de ser e que estou a dois passos da rua da qual vim.
- E então?
A luz que reflectia nas garrafas de Strega era dourada e a carteira continuava sobre a mesa, entre nós. Peppino puxou a cadeira para trás.
- Então, Mauro, vais voltar comigo para a Casa dos Gaiatos onde diremos boa noite e adeus e quando escreveres o teu livro, dirás que eu fui teu amigo, Vá meglio cosi, non è vero?
Concordei, inclinando a cabeça, sem coragem para dizer uma palavra.
Era melhor assim, como ele tinha dito. Melhor para ele e para mim. Melhor que todo o mundo soubesse como o amor podia arrancar um rapaz do esgoto e fazer dele muito mais homem do que muitos que dormiram em lençóis brancos todas as noites das suas vidas.
Levantámo-nos ao mesmo tempo. Paguei a conta e juntos encaminhamo-nos para a cidade brilhante e fria à luz da lua, a qual se preparava para dormir no mau cheiro dos seus pecados antigos.
POSFÁCIO
Cheguei ao fim do meu livro, que é o livro dos Gaiatos de
Nápoles.
Escrevi-o com amor, com indignação e, muitas vezes, com
terror.
Escrevi-o para as crianças que não possuem voz, para os mortos que também não têm voz.
Bom, mau ou indiferente, é a luta de um homem contra a indiferença, a injustiça e o mal feito às crianças. É a homenagem de um homem ao bem que encontrou e aos homens que o personificaram.
Se ficar sem ser lido, que assim seja. Mas que seja por falta de talento do escritor e não por falta de amor pela família humana, não por falta de crença na paternidade de Deus e na irmandade dos Homens.

 

 

                                                                  Morris West

 

 

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