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A manhã estava límpida, dourada, encantadora. Véus de neblina dissipavam-se ao longe para norte e para sul. Clara estava parada, ligeiramente encolhida para fazer frente à aragem, a torcer madeixas de cabelo. As algas avolumavam-se por detrás do corpo branco da mulher nua. Ela desviou os olhos para o mar, e depois olhou para ele. Ele observava-a com aqueles olhos escuros que ela amava tanto e entendia tão pouco. Apertou os seios entre os braços, encolhida, a rir.
– Ui! Deve estar um gelo! – disse ela.
Ele inclinou-se e beijou os dois globos brancos e resplandecentes que ela aconchegava. Ela ficou à espera. Ele olhou-a nos olhos e depois o seu olhar perdeu-se no areal de brancura.
– Vai lá! – disse ele serenamente.
Ela atirou-lhe os braços ao pescoço, puxou-o para si, beijou-o apaixonadamente e avançou para o mar, dizendo:
– Mas tu também vens?
– Já vou.
Clara caminhava pesadamente pela areia suave como veludo.
O seu corpo era opulento e branco, atravessando o areal com movimentos pesados, mas tão graciosos. Ele, das dunas, via a costa a envolvê-la, longa e pálida. E ela, cada vez mais pequenina, perdendo as proporções, parecia apenas uma grande ave branca a avançar a custo.
«Pouco mais que um grande seixo branco no areal... Pouco mais que um salpico de espuma soprado pelo vento sobre a areia», disse ele para consigo. Ela parecia deslocar-se muito lentamente através do areal vasto e ressonante. Paul ficou a olhá-la até a perder de vista, sugada pelo esplendor do sol. Voltou a vê-la, minúsculo pontinho branco avançando contra a orla branca e murmurante da rebentação.
«Como está pequenina!», disse Paul para consigo. «Perdida como grão de areia na praia imensa... um salpico concentrado atirado pelo vento... branca bolha de espuma... um quase nada na manhã. Porque me absorve ela assim?»
A manhã continuava inalterada: ela mergulhara nas águas. A praia, as dunas, o mato azulado e a água cintilante brilhavam em unís-sono, a perder de vista, na imensa e inquebrável solidão.
– O que é ela afinal? – disse ele para consigo. – Aqui, esta marítima manhã, grandiosa, eterna e bela. Ali, ela, receosa, sempre insatisfeita e temporária como uma bolha de espuma. Que significa ela afinal para mim? Representa alguma coisa, como uma bolha de espuma representa o mar. Mas o que é ela?! Não é ela que me interessa...
E então, sobressaltado pela voz do inconsciente, que parecia falar tão distintamente que a manhã toda escutava, despiu-se e correu ligeiro, galgando a praia. Ela esperava-o lá em baixo. O seu braço lampejou no ar, ela ergueu-se numa onda e mergulhou de novo, com os ombros flutuando em prata líquida. Ele saltou a rebentação e, no minuto seguinte, a mão dela estava no seu ombro.
Paul era fraco nadador e não conseguia permanecer na água por muito tempo. Ela brincava triunfante à sua volta, exibindo uma superioridade que ele invejava. O sol reflectia-se intenso e esplendoroso sobre as águas. Riram e brincaram entre as ondas por um ou dois minutos e voltaram a correr para entre as dunas.
Quando, ofegantes, se secavam com as toalhas, ele reparou no rosto dela, sorridente e ofegante, nos ombros luzidios, nos seios que balançavam e o assustavam ao vê-la esfregá-los, e pensou de novo: «De facto, ela é magnífica, mais soberba ainda, se possível, do que a manhã e o mar... Mas será mesmo?... Será que é?»
Clara, vendo aqueles olhos escuros fitos nela, parou de se limpar e deu uma gargalhada.
– Para onde estás a olhar?
– Para ti! – respondeu ele, também a rir.
Os olhos dela vieram ao encontro dos dele e, no instante seguinte, ele beijava-lhe o ombro branco, com pele de galinha, e pensava: «O que é ela afinal? O que é ela?»
Clara amou-o na manhã. Havia nos beijos dele algo de impessoal, rígido e elementar, como se só tivesse consciência da sua própria vontade, e nenhuma da presença dela ou do seu desejo por ele.
Mais tarde, Paul saiu para pintar.
– E tu, vai com a tua mãe até Sutton. Hoje estou fraca companhia.
Clara levantou-se e olhou para ele. Paul sabia que ela queria acompanhá-lo, mas preferia ficar sozinho. Ela fazia-o sentir-se prisioneiro, como se não pudesse respirar fundo, como se tivesse alguma coisa a oprimi-lo. E ela apercebia-se deste seu desejo de se ver livre dela.
À noite, ele voltou para ela. Passearam juntos pela praia na escuridão, e sentaram-se por um bocado no abrigo entre as dunas.
– Parece – disse ela, enquanto os dois fitavam a escuridão do mar, onde nem uma luz brilhava –, parece que só me amas de noite, que é como se de dia não me amasses.
Ele deixou escapar um punhado de areia fria por entre os dedos, sentindo-se culpado da acusação de que era alvo.
– A noite é toda tua – respondeu ele. – De dia, quero ser eu próprio.
– Mas porquê? – disse ela. – Porquê até mesmo agora, durante estas curtas férias?
– Não sei. Fazer amor de dia sufoca-me.
– Mas não tem de ser sempre fazer amor – disse ela.
– Mas é sempre – disse ele –, quando tu e eu estamos juntos.
Ela sentou-se, amargurada.
– Vais querer casar comigo? –, perguntou Paul, curioso.
– E tu comigo? – respondeu ela.
– Sim... Sim... Gostava que tivéssemos filhos – respondeu ele, falando devagar.
Clara sentou-se, cabisbaixa, correndo o dedo pela areia.
– Mas tu não queres mesmo divorciar-te do Baxter, pois não?
Só passados alguns minutos ela respondeu.
– Não – disse Clara, com determinação. – Acho que não.
– Porquê?
– Não sei.
– É por sentires que lhe pertences?
– Não... Acho que não.
– Porque é, então?
– Acho que é ele que me pertence – respondeu ela.
Paul manteve-se em silêncio por uns minutos, a ouvir o vento soprar sobre o mar rouco de breu.
– E nunca fizeste tenções de realmente me pertenceres? – perguntou ele.
– Mas eu pertenço-te – respondeu ela.
– Não – disse ele. – Porque não te queres divorciar.
Era um nó indesatável. Deixaram-no por isso em paz, agarrando-se ao que tinham e ignorando o que não podiam alcançar.
– Na minha opinião, foste indecente para o Baxter – disse ele numa outra altura. Paul estava algo esperançado de que Clara lhe respondesse, como a mãe teria feito: «Pensas tanto na tua vida que não sabes metade do que se passa com a dos outros.» Mas, para grande surpresa sua, ela levou-o a sério.
– Porquê? – disse ela.
– Cá para mim, pensaste que ele era um lírio-do-vale, e puseste-o numa jarra, e regaste-o com todo o cuidado. Decidiste que ele era um lírio-do-vale e recusaste-te a ver que ele era um nabo, isso tu não aceitaste.
– É claro que nunca o vi como um lírio-do-vale.
– Imaginaste-o como algo que ele não era. As mulheres são assim. Acham que sabem o que é melhor para os homens e impõem-lhes essas coisas. Coitados, bem podem morrer à míngua, fartos de assobiar a pedir o que precisam, que elas apossam-se deles e impingem-lhes o que é melhor para eles.
– E o que estás tu a fazer? – perguntou ela.
– Estou a pensar na música que hei-de assobiar – respondeu ele, a rir.
E ela, em vez de lhe dar um puxão de orelhas, levou-o a sério.
– Achas então que quero dar-te à força o que é melhor para ti? – perguntou Clara.
– Espero bem que sim... Mas o amor devia gerar sentimentos de liberdade e não de prisão. A Miriam fazia-me sentir preso como um burro amarrado a uma estaca. Só podia comer no pasto dela e em mais nenhum. Era doentio.
– E tu deixavas uma mulher fazer o que lhe apetecesse?
– Claro... primeiro, vejo se ela gosta de fazer amor comigo. E, se ela gosta... não vou prendê-la.
– Se fosses tão maravilhoso como dizes...
– Seria maravilhoso, tal como sou... – disse ele, rindo. Seguiu-se um silêncio durante o qual os dois se odiaram, apesar do riso.
– O amor é um desmancha-prazeres – disse Paul.
– E qual de nós os desmancha? – perguntou ela.
– Ora... tu, está bom de ver.
E a altercação continuou. Ela sabia que não o possuía inteiramente: havia nele uma parte importante, vital, que ela não dominava; parte que, aliás, jamais tentara dominar, ou sequer perceber.
E ele sabia que, de certa forma, ela se considerava ainda Mrs. Dawes. Não amava Dawes, nunca o tinha amado, mas estava convencida de que ele a amava ou que, pelo menos, dependia dela. Sentia em relação a ele uma segurança que nunca sentira com Paul Morel. A sua paixão pelo jovem preenchia-lhe a alma, dava-lhe alguma satisfação, trazia-lhe autoconfiança, dissipava-lhe as dúvidas. O que quer que ela fosse, era-o com convicção, quase como se se tivesse ganho a si própria, e existisse agora, independente e completa. Tinha recebido a sua confirmação. Mas nunca acreditara que a sua vida pertencesse a Paul Morel, nem a dele a ela. Acabariam por se separar e passaria o resto da vida a sofrer por ele. Mas pelo menos agora sabia-o, estava segura de si. E quase o mesmo se podia dizer dele. Juntos, tinham recebido o baptismo da vida, um através do outro. Porém, as suas missões seguiam agora separadas. Para onde ele queria ir, ela não podia acompanhá-lo. Mais cedo ou mais tarde, teriam de se separar. Mesmo que casassem e fossem fiéis um ao outro, ainda assim ele teria de a deixar, partir sozinho, restando-lhe cuidar dele de cada vez que voltasse. Mas isso não era possível. Um e outro precisavam de alguém que estivesse sempre a seu lado.
Clara tinha ido viver com a mãe para Mapperley Plains. Uma noite, quando Paul e ela passeavam em Woodborough Road, encontraram Dawes. A Morel pareceu-lhe familiar a figura do homem que se aproximava, mas ia tão absorto em pensamentos que só o olho do artista captou as formas do desconhecido. De repente, deu uma gargalhada, pôs a mão no ombro de Clara, virou-se para ela e disse:
– Nós aqui a passear, e eu em Londres a discutir com um Orpen imaginário... E tu, por onde andas?
Nesse preciso instante, Dawes passou por eles, quase roçando em Morel. O jovem olhou-o de relance e viu-lhe os olhos negros faiscantes, se bem que cansados, carregados de ódio.
– Quem era? – perguntou ele a Clara.
– Era o Baxter – respondeu ela.
Paul tirou-lhe a mão do ombro e voltou-se para trás. E de novo viu distintamente a figura do homem como quando se aproximara. Dawes continuava a andar, muito direito, de ombros escorreitos puxados para trás e cabeça erguida. Mas havia nos olhos dele um ar furtivo que dava a impressão de querer passar despercebido a toda a gente que encontrava, olhando as pessoas de soslaio, para ver o que pensavam a seu respeito. E as suas mãos pareciam querer esconder-se. Vestia roupas usadas: as calças rasgadas no joelho e o lenço de pescoço muito sujo. O boné, esse continuava puxado sobre o olho, em tom de desafio. Ao vê-lo, Clara sentiu-se culpada. Havia no rosto dele tanto cansaço e desespero que a fizeram odiá-lo por tanto que a magoavam.
– Ele está reduzido a um farrapo – disse Paul.
Porém, o tom de piedade na sua voz era uma censura, e isso endureceu-a.
– É toda a sua vulgaridade a extravasar – respondeu ela.
– Odeia-lo? – perguntou Paul.
– E falas tu da crueldade das mulheres – disse ela. – Devias conhecer a crueldade dos homens, em toda a sua brutalidade. Ignoram pura e simplesmente que as mulheres existem.
– Eu também? – disse ele.
– Tu também – respondeu ela.
– Queres dizer que eu não sei que tu existes?
– De mim, não sabes nada – disse ela amargamente. – De mim!
– Não sei mais do que o Baxter sabia?
– Talvez nem tanto.
Paul estava confuso, zangado e desanimado. Ali estava ela, a caminhar ao seu lado, uma desconhecida, embora tivessem vivido juntos uma experiência excitante.
– Mas tu conheces-me muito bem – disse ele.
Ela não respondeu.
– Conhecias o Baxter tão bem como me conheces a mim?
– É isso que os homens não permitem... não nos deixam chegar realmente até eles – disse ela.
– E eu também não deixei?
– Tu deixaste – respondeu ela, devagar. – Mas nunca te aproximaste de mim. Não consegues sair de dentro de ti, simplesmente não consegues. O Baxter conseguia fazer isso melhor do que tu.
Paul caminhava pensativo. Estava zangado por ela preferir Baxter a ele próprio.
– Agora que não o tens é que começas a dar valor ao Baxter – disse ele.
– Não... Estou apenas a reparar naquilo em que ele era diferente de ti.
Mas Paul sentia que ela tinha alguma coisa contra ele.
Uma noite, quando regressavam a casa pelos campos, Clara surpreendeu-o ao perguntar:
– Achas que vale a pena... o... a parte do sexo...?
– O acto de amar, propriamente dito?
– Sim... para ti vale alguma coisa?
– Como é que tu podes separar as coisas? – disse Paul. – É o ponto culminante de tudo o mais... toda a nossa intimidade culmina aí.
– Para mim, não – disse ela.
Ele calou-se. Uma onda de ódio avassalou-o. Afinal, não a satisfazia, nem nesse ponto em que estava convencido de que se completavam um ao outro. Mas, implicitamente, também acreditava nela.
– Sinto-me – continuou ela, falando devagar – como se não te tivesse... como se não estivesses todo lá... como se não fosse eu que tu possuis...
– Quem é então?
– Uma coisa muito tua. Mas, como tem sido tão bom, nem me atrevo a pensar nisso. Mas... é mesmo a mim que tu queres... ou Àquilo?
Paul sentiu-se culpado outra vez. Seria que se esquecia de Clara e possuía apenas a mulher? Mas isso, pensava ele, era como dividir um cabelo ao meio.
– Quando eu tinha o Baxter, quando realmente o tinha, sentia que o tinha inteiro – disse ela.
– E era melhor? – perguntou ele.
– Sim... Sim... Era mais completo... Não quero dizer com isto que não me tenhas dado mais do que ele alguma vez me deu...
– Ou podia dar-te.
– Sim... Talvez... Mas tu nunca te entregas inteiro.
Paul franziu as sobrancelhas, ofendido.
– Quando faço amor contigo – disse ele – deixo-me ir como uma folha ao vento...
– E eu deixo de contar – disse ela.
– E isso não vale nada para ti? – perguntou ele, quase petrificado de desgosto.
– Vale alguma coisa... E vezes houve em que me levaste contigo... muito longe... sei que sim... e admiro-te por isso... mas...
– Não me venhas com «mas» – disse ele, beijando-a com urgência, sentindo o fogo a subir-lhe nas entranhas.
Ela calou-se e submeteu-se.
O que ele dissera era verdade. Geralmente, quando começava a fazer amor, a emoção que ele sentia era suficientemente forte para arrastar com ela razão, alma, sangue, tudo o resto, como o Trent arrasta sem ruído os seus remoinhos e sorvedouros. Gradualmente, foram-se perdendo as pequenas queixas, as pequenas sensações, e o pensamento foi com elas na torrente impetuosa. Ele era, não um homem com uma mente, mas um imenso instinto. As suas mãos eram seres com vida própria; os seus membros, o seu corpo, eram vida e consciência independentes, escapando à sua vontade, vivendo por si mesmos. E, como ele, também as estrelas vigorosas e invernais pareciam palpitar de vida, ele e elas pulsando com os mesmos ímpetos de fogo. E o mesmo júbilo de pujança que mantinha rígidos os caules dos fetos, tão perto dos seus olhos, mantinha firme todo o seu corpo. Era como se ele, as estrelas, a folhagem e Clara, se irmanassem lambidos por uma imensa língua de fogo que os puxava para a frente e para cima. Tudo se precipitava em turbilhões de vida à sua volta, e tudo com ele se quedava, fechado na sua própria perfeição. Esta maravilhosa quietude que reinava em cada coisa, ao mesmo tempo que se deixava arrebatar por êxtases de vida, era para ele o pico da felicidade.
E Clara sabia que isso o prendia a ela, e entregava-se por isso inteira nos braços da paixão, que muitas vezes lhe faltava. Não era com frequência que atingiam os cumes de prazer como daquela vez em que os pavoncinos cantaram. Pouco a pouco, era como se um esforço mecânico lhes destruísse a paixão, ou então, quando atingiam os esplendores do prazer, faziam-no em momentos separados e sem plena satisfação. A maior parte das vezes, ele parecia fazer sozinho todo o percurso, e percebiam geralmente que tinha sido um desaire e não aquilo por que esperavam. E ele deixava-a, ciente de que aquela noite os tinha afastado um pouco mais. O amor tornava-se mais mecânico, perdia o maravilhoso fulgor de outrora. Pouco a pouco, foram introduzindo novidades, na tentativa de recuperarem algum do prazer perdido. Por vezes, iam para perto do rio, poderá dizer-se que perigosamente perto, e a água corria negra não longe da cara dele, que o excitava. Outras vezes, faziam amor num pequeno recôncavo por baixo da cerca do caminho, na orla da cidade, por onde passava gente de longe em longe. Ouviam as pessoas aproximarem-se, quase sentiam as vibrações dos seus passos, e escutavam o que diziam – coisas íntimas que não eram para ser escutadas. Mas depois sentiam-se os dois envergonhados, e estes procedimentos acabaram por cavar um fosso entre ambos, e Paul começou a desprezar Clara, como se ela o merecesse!
Uma noite, deixou-a um pouco mais cedo para ir a Daybrook Station pelos campos. A noite estava escura e prenunciava neve, embora a Primavera já fosse adiantada. Morel não tinha muito tempo e meteu pés ao caminho. A cidade cessa quase abruptamente à beira de um precipício onde as casas se recortam com as suas luzes amarelas num fundo de escuridão. Saltou a cerca e mergulhou rapidamente na vastidão do descampado. Por baixo do pomar, uma janela brilhava aconchegante em Swineshead Farm. Paul olhou em volta. Lá para trás, as casas erguiam-se negras contra o céu de breu, à beira da ribanceira, como animais bravios de pupilas amarelas esbugalhadas perscrutando a escuridão. Era a cidade que parecia selvagem e arisca, de olhos postados nas nuvens, atrás das costas dele. Alguma coisa mexeu por baixo dos salgueiros junto ao açude da quinta, mas estava muito escuro para se distinguir fosse o que fosse.
Ia ele a chegar à outra cerca, quando divisou um vulto negro, encostado. O homem desviou-se para o lado e disse:
– Boa noite!
– Boa noite – respondeu Morel, sem fazer caso.
– Paul Morel? – disse o homem.
Só então Paul reparou que se tratava de Dawes. O homem travou-lhe o passo.
– Apanhei-te, não foi? – disse ele, atabalhoadamente.
– Assim vou perder o comboio – disse Paul.
Não via nada da cara de Dawes. Os dentes do homem pareciam bater enquanto ele falava.
– Agora é que vais ver o que eu te faço – disse Dawes. Morel tentou avançar, mas o homem meteu-se à sua frente.
– Vais tirar o casaco – disse Dawes – ou queres morrer com ele vestido?
Paul receava que o homem estivesse louco.
– Mas eu não sei lutar – disse.
– Tanto melhor – respondeu Dawes. E, antes que o jovem pudesse perceber o que estava a acontecer, já tinha sido projectado para trás aos tropeções, com um murro na cara. A noite fez-se mais negra ainda. Paul arrancou o sobretudo e o casaco e atirou-os para cima de Dawes, que praguejou com violência. Morel, em mangas de camisa, estava agora alerta e completamente fora de si. Sentia todo o corpo projectar-se como garra. Como não sabia lutar, usaria a inteligência. O outro homem tornou-se pouco a pouco mais visível. Paul divisava sobretudo o peito da camisa. Dawes tropeçou nos casacos e atirou-se para a frente. A boca do jovem já sangrava. Era a boca do outro que ele estava morto por agarrar, e esse desejo, de tão forte, tornava-se numa angústia. Paul saltou rapidamente para o outro lado da cerca e, quando Dawes se precipitou no seu encalço, ele, com a velocidade de um raio, desferiu um murro na boca do outro. Até tremeu de prazer. Dawes avançou para ele em desequilíbrio, cuspindo. Paul estava apavorado. Deu meia volta, para saltar de novo a cerca. De repente, vindo não se sabe donde, apanhou um murro tremendo na orelha, que o fez cair de costas, desamparado. Do chão, ouvia a respiração ofegante de Dawes, semelhante à de uma fera. Depois, levou um pontapé num joelho e foi tal a dor que se levantou e, completamente às cegas, se atirou ao adversário. Levava socos e pontapés, mas não lhe doíam. Agarrou-se ao outro homem, mais corpulento do que ele, como um gato bravo, até Dawes cair, por fim, com um sonoro baque, sem sentidos. Mas Paul caiu também com ele. Por puro instinto, deitou-lhe as mãos ao pescoço e, antes que Dawes, no auge do frenesim e da agonia, se pudesse libertar, já Paul tinha as pontas do lenço que lhe cingia o pescoço entrelaçadas nas mãos, e os nós dos dedos fincados na garganta do oponente. Fazia-o por puro instinto, sem um laivo de sentimento ou de razão. O seu corpo, maravilhoso e tenso, comprimia-se contra o corpo do outro homem. Nem um só músculo afrouxava. Completamente inconsciente, apenas o seu corpo se animava, determinado a matar aquele homem. Em relação a si próprio, não tinha sentimentos nem razão. Jazia por terra, violentamente comprimido contra o adversário, ajustando-se o seu corpo ao propósito único de o estrangular, resistindo no segundo exacto, com a dose exacta de força, às convulsões do adversário, silencioso, determinado, imperturbável, afundando-lhe os nós dos dedos na garganta, mais fundo, cada vez mais fundo, sentindo o outro corpo estrebuchar cada vez mais, até ao frenesim. O seu corpo estava cada vez mais tenso, aumentando gradualmente a pressão, como um parafuso que se aperta, até que, subitamente, qualquer coisa se quebrou.
Paul relaxou, espantado e morto de medo. Dawes tinha cedido. Morel sentiu o corpo incendiar-se-lhe de dor, ao perceber o que tentara fazer. Estava perplexo. Mas as convulsões de Dawes redobraram em espasmos de fúria. As mãos de Paul foram arrancadas do lenço a que se amarravam e ele foi atirado pelos ares, desamparado. Ouviu o som horrendo da respiração do outro, mas deixou-se ficar por terra, atordoado. Depois, ainda entontecido, sentiu os golpes dos pontapés do outro, e perdeu a consciência.
Dawes, grunhindo de dor como um animal, pontapeava o corpo prostrado do rival. Nisto, soou o apito estridente do comboio, dois campos mais para lá. Dawes voltou-se e olhou desconfiado. O que seria? Viu as luzes do comboio cruzarem o seu campo de visão. Pareceu-lhe ouvir gente a aproximar-se e meteu pelos campos em direcção a Nottingham. Semiconsciente, sentia vagamente na ponta do pé o ponto em que a bota fora de encontro a um dos ossos do rapaz. O som da pancada parecia ecoar-lhe ainda na cabeça, e foi preciso desatar a correr, para se ver livre dele.
Morel voltou a si gradualmente. Sabia onde estava e o que tinha acontecido, mas não se queria mexer. Deixou-se ficar deitado, muito quieto, com a neve a salpicar-lhe a cara de minúsculos flocos. Era bom estar ali deitado, muito quieto. O tempo foi passando. Eram os flocos de neve que o mantinham acordado, quando ele não queria estar. Por fim, a força de vontade fez-se acção. «Não posso ficar aqui deitado», disse ele, «é um disparate».
Mas permaneceu imóvel.
«Já disse que tenho de me levantar», repetiu ele. «Porque é que não me levanto?»
Mesmo assim, só ao fim de algum tempo, conseguiu reunir forças para se mexer. Depois, aos poucos, levantou-se. A dor provocava-lhe náuseas e tonturas. Mas a lucidez era perfeita. Cambaleante, tacteou à procura dos casacos, encontrou-os e vestiu-os, abotoando o sobretudo até às orelhas. Levou mais tempo para encontrar o boné. Não sabia se a cara ainda sangrava. Caminhando às cegas, cada passo uma tortura, foi até ao lago e lavou a cara e as mãos. A água gelada fazia-lhe doer, mas ajudava-o a recompor-se. Rastejou pela encosta acima até à linha do comboio. Queria voltar para a mãe, tinha de voltar para a mãe. Essa era a sua obsessão. Tapou a cara o mais possível, e lá se arrastou conforme pôde. Tinha permanentemente a sensação de que o chão lhe fugia debaixo dos pés ao caminhar, e tinha a impressão perturbante de ir a cair no vazio. E assim, como num pesadelo, conseguiu chegar a casa.
Já estavam todos deitados. Olhou-se ao espelho. Tinha a cara lívida e manchada de sangue, como um cadáver. Lavou-a e meteu-se na cama. Toda a noite delirou. De manhã, acordou com a mãe a olhar para ele. Os olhos azuis da mãe! Era tudo o que queria ver. Ela estava ali e ele estava nas mãos dela.
– Não é nada de grave, mãe – disse ele. – Foi o Baxter Dawes.
– Diz-me onde te dói – disse a mãe, muito serena.
– Não sei... no ombro... Diga que tive um acidente com a bicicleta, mãe.
Paul não conseguia mexer o braço. Entretanto, Minnie, a criadita, veio trazer-lhe chá.
– A sua mãe quase me matou de susto... desmaiou – disse ela.
Paul sentiu que não podia suportar aquilo por mais tempo. Afinal era a mãe que tratava dele, e Paul contou-lhe tudo.
– No teu lugar, não pensava mais em nenhum deles – disse Mrs. Morel muito serena.
– É o que vou fazer, mãe.
Ela aconchegou-lhe a roupa.
– E não penses mais no assunto – disse ela. – Tenta dormir um pouco. O senhor doutor não vem antes das onze.
Paul tinha o ombro deslocado, e, no dia seguinte, declarou-se uma bronquite. A mãe andava pálida como a morte e muito magra. Ficava sentada a olhar para ele, e depois para o vazio. Havia algo entre eles que nenhum ousava mencionar. Clara veio visitá-lo. Depois de ela se ir embora, Paul disse à mãe:
– Ela cansa-me, mãe.
– Tens razão. Quem dera que ela não tivesse vindo – respondeu Mrs. Morel.
Num outro dia, foi a vez de Miriam. Mas para ele era como se fosse uma estranha.
– Sabe, mãe, eu não me interesso por elas – disse ele.
– Receio bem que não – respondeu ela, tristemente.
A história que corria por toda a parte era que tinha sido um acidente de bicicleta. Paul em breve pôde voltar ao trabalho, mas o seu coração andava agora permanentemente angustiado e descontente. Ia ter com Clara, mas era como se ninguém ali estivesse. Não conseguia concentrar-se no trabalho. Ele e a mãe pareciam evitar-se mutuamente. Existia entre eles algum segredo que lhe era insuportável enfrentar. Mas Paul não tinha consciência disso. Sabia apenas que a sua vida entrara em desequilíbrio, como se estivesse prestes a quebrar-se em mil pedaços.
Clara não entendia o que se passava, mas percebia que ele quase não dava pela presença dela. Mesmo quando vinha procurá-la, parecia não dar por ela. Estava sempre muito longe. Ela tinha a sensação de tentar agarrá-lo a todo o custo, e ele não estar ali, o que a torturava, levando-a por sua vez a torturá-lo a ele. Durante um mês inteiro manteve-o à distância. Ele estava a ponto de odiá-la, mas, por mais que tentasse evitá-lo, sentia-se atraído por ela. Acompanhava a maior parte do tempo com os amigos, e passava a vida no George ou no White Horse. A mãe andava doente, distante, calada e taciturna. Paul morria de medo e não sabia de quê. Nem se atrevia a olhar para ela. Os olhos da mãe pareciam cada vez mais escuros e o rosto mais amarelado. Continuava no entanto a ocupar-se dos seus afazeres habituais.
Pelo Pentecostes, Paul participou-lhe que ia passar quatro dias a Blackpool com Newton, um amigo seu. Tratava-se de um homem corpulento e bem-disposto, de aspecto pouco respeitável. Paul insistiu para que a mãe fosse para Sheffield, passar uma semana com Annie, que agora morava lá. Talvez a mudança lhe fizesse bem. Mrs. Morel andava a tratar-se com um médico de doenças de senhoras, de Nottingham, que lhe disse que o coração e o aparelho digestivo não andavam nada bem. Embora a ideia não lhe agradasse, concordou em ir para Sheffield. Ultimamente, fazia tudo o que o filho lhe mandava. Paul ficou de passar por Sheffield daí a cinco dias, e ficar lá com ela até ao fim das férias. E assim ficou combinado.
Os dois amigos partiram alegremente para Blackpool. Mrs. Morel estava toda animada quando Paul lhe deu um beijo e a deixou. E ao chegar à estação, esqueceu-se de tudo o mais que ficara para trás. Tinha quatro dias por sua conta, sem ansiedades nem preocupações. Os dois jovens só tinham de se divertir. Paul era como outro homem qualquer: nada conservava de si próprio – nem Clara, nem Miriam, nem mãe para o apoquentar. Escreveu a todas elas brevemente, e longas cartas à mãe. Mas eram cartas alegres, que a deixassem bem-disposta. Estava a divertir-se imenso, como qualquer outro jovem em Blackpool. Mas, subjacente a tudo isto, permanecia a sombra dela.
Paul andava muito alegre e entusiasmado com a ideia de passar uns dias com a mãe em Sheffield. Newton ficaria também com eles. O comboio atrasou-se. Por entre risos e piadas, ditas de cachimbo ao canto da boca, os jovens atiraram os sacos de viagem para a bagageira do comboio. Paul tinha comprado uma gola de renda fina para a mãe, que queria que ela usasse, para depois poder meter-se com ela.
Annie vivia numa bela casa e tinha uma criadita. Paul subiu os degraus todo contente. Esperava encontrar a mãe a sorrir-lhe na entrada. Mas foi Annie quem veio abrir a porta, e pareceu-lhe distante. Ele ficou parado por um momento, apreensivo. Annie deixou-o dar-lhe um beijo na face.
– A minha mãe está doente? – perguntou.
– Está... Não tem passado muito bem... Não a apoquentes.
– Está de cama?
– Está.
Paul foi então invadido por um sentimento bizarro, como se a luz do sol se tivesse apagado dentro dele e só as sombras ficassem. Largou o saco e correu pela escada acima. Hesitante, abriu a porta. A mãe estava sentada na cama, com uma camisa de dormir cor-de-rosa velho. Olhou para ele quase envergonhada, com humildade, como quem pede desculpa. Ele reparou no tom cínzeo da sua pele.
– Mãe! – disse ele.
– Julguei que nunca mais chegavas – disse ela, alegremente.
Mas Paul limitou-se a cair de joelhos junto à cama e a enfiar a cara nos lençóis, chorando amargamente e repetindo:
– Mãe... Mãe... Mãe! – Ela acariciou-lhe o cabelo com a mão debilitada.
– Não chores – disse ela. – Não chores... isto não é nada.
Mas ele sentia o sangue desfazer-se em lágrimas, e chorava de terror e sofrimento.
– Vá... não chores – disse a mãe, vacilante.
Mrs. Morel acariciava-lhe o cabelo devagar. Completamente fora de si, ele continuava a chorar e cada lágrima era uma dor retalhando cada fibra do seu corpo. Subitamente, parou. Mas não se atrevia a levantar a cara dos lençóis.
– Chegaste tão tarde... onde é que estiveste? – perguntou a mãe.
– O comboio atrasou-se – respondeu ele, com a cara enfronhada no lençol.
– Pois é... É o danado do comboio da linha central!... O Newton também veio?
– Veio.
– Tenho a certeza de que estás com fome... eles guardaram-té o almoço.
A custo, Paul ergueu os olhos.
– O que é que se passa, mãe? – perguntou ele, de chofre.
Ela desviou o olhar, e respondeu:
– É só um pequeno tumor, meu filho... não precisas de te preocupar... já lá está... o alto... há muito tempo.
E as lágrimas voltaram aos olhos dele. O seu espírito estava forte e lúcido, mas o corpo chorava.
– Onde? – perguntou.
Ela levou a mão ao lado.
– Aqui!... Mas eles podem desfazer o tumor, sabes.
Paul pôs-se de pé, confuso e impotente, como um menino. Por um lado, pensava que talvez fosse como ela dizia – sim, dizia ele, para se tranquilizar, era como ela dizia. Mas, por outro, o seu corpo e o seu sangue sabiam bem do que se tratava. Sentou-se na beira da cama e pegou na mão da mãe. Nunca tivera outro anel senão aquele, a aliança de casamento.
– Quando é que se sentiu mal? – perguntou ele.
– Foi ontem que tudo começou – respondeu ela, submissa.
– Dores?
– Sim... mas não mais do que já tinho tido em casa muitas vezes... Acho que o Dr. Ansell é um exagerado.
– Não devia ter viajado sozinha – disse o filho, mais para si próprio do que para ela.
– Como se isso tivesse alguma coisa a ver com o que está a acontecer – atalhou ela.
Depois, ficaram em silêncio.
– Agora vai almoçar – disse ela, por fim. – Deves estar com fome.
– A mãe já almoçou?
– Já. Comi um belo linguado. A Annie é muito boa para mim.
Conversaram mais um pouco, e Paul desceu as escadas. Estava muito pálido e tenso. Newton sentou-se ao lado dele, infeliz e solidário.
Depois do almoço, Paul foi para a copa ajudar Annie a lavar a loiça. A criada tinha ido fazer um recado.
– É mesmo um tumor? – perguntou.
Annie começou a chorar.
– As dores que ela teve ontem!... Nunca vi ninguém sofrer assim! – disse a irmã, a chorar. – O Leonard foi logo como um louco chamar o Dr. Ansell... E quando ela foi para a cama, para ser examinada, ele disse-me: «Annie, olha para este alto aqui do lado... O que será?». E eu olhei, e julguei que desmaiava. Paul, tão certo como eu estar aqui, é um alto duas vezes maior que o meu punho fechado. E eu disse: «Meu Deus, mãe, quando é que isso lhe apareceu?» «Porquê, filha», disse ela, «já tenho isto há muito tempo.» Julguei que morria, Paul, juro-te. Ela tem tido estas dores desde há meses, e sem ninguém para tratar dela.
Os olhos de Paul ficaram rasos de lágrimas, mas logo secaram.
– Mas ela tem andado a tratar-se com um médico de Nottingham... e nunca se queixou – disse ele.
– Se eu estivesse lá em casa – disse Annie – tinha dado por isso.
Paul sentia-se a viver um pesadelo, e à tarde foi falar com o médico, homem afável e perspicaz.
– Afinal, de que se trata? – perguntou.
O médico olhou para o jovem, e começou a entrelaçar os dedos.
– Pode ser um tumor muito grande na membrana – disse, falando compassadamente – e que talvez seja possível destruir...
– E não é operável? – perguntou Paul.
– Naquele sítio, não – respondeu o médico.
– Tem a certeza?
– Absoluta!
Paul ficou pensativo.
– Tem a certeza de que é mesmo um tumor? – perguntou. – Então, porque é que o Dr. Jameson, de Nottingham, nunca descobriu nada?... Há semanas que ela anda a tratar-se com ele, e ele tem-lhe dado remédios para o coração e a digestão.
– Mrs. Morel nunca mostrou o alto ao Dr. Jameson – disse o médico.
– E o senhor tem a certeza de que é um tumor?
– Não, a certeza não tenho.
– E que mais poderia ser? O senhor doutor perguntou à minha irmã se havia casos de cancro na família. Poderá ser cancro?
– Não sei.
– E o que devemos fazer?
– Gostava de poder examiná-la com o Dr. Jameson.
– Então é o que se vai fazer.
– O senhor terá de tratar de tudo. Os honorários dele não serão menos de dez guinéus, para vir de Nottingham até aqui.
– Quando é que gostaria que ele viesse?
– Esta noite vou ver a sua mãe, e depois combinamos.
Paul saiu do consultório a morder o lábio.
A mãe podia descer para o chá, tinha dito o médico. O filho foi buscá-la ao quarto. Tinha vestido o roupão rosa-velho que Leonard oferecera a Annie, e, com as faces ligeiramente coradas, parecia rejuvenescida.
– Que bonita que a mãe fica com esse roupão – disse o filho.
– Pois é, eles põem-me tão bonita, que quase não me reconheço – respondeu ela.
Mas quando se pôs de pé, para começar a andar, as cores fugiram-lhe. Paul teve de ajudá-la, trazendo-a quase ao colo. Ao chegar ao cimo das escadas, desmaiou. Ele pegou-lhe ao colo e trouxe-a a correr para baixo, deitando-a no sofá. Estava muito leve e frágil. A cara parecia a de um cadáver, com os lábios roxos e crispados. Os olhos estavam abertos, aqueles seus olhos azuis sempre alerta, olhando para ele suplicantes, como se a pedir perdão. Olhavam para ele com amor, com pena. As lágrimas corriam sem cessar pela cara de Paul, mas nem um só músculo se movia. Ele estava determinado em chegar-lhe um pouco de brandy aos lábios. Por fim, ela conseguiu engolir o equivalente a uma colherinha de chá e deixou-se cair para trás, exausta. As lágrimas continuavam a rolar pela cara de Paul abaixo.
– Pronto... – disse ela, ofegante –, isto já passa... não chores.
– Não estou a chorar – disse ele.
Daí por pouco tempo ela já estava melhor. Paul estava ajoelhado ao lado do sofá, os dois de olhos nos olhos.
– Não quero que te incomodes – disse ela.
– Não, mãe... só tem de ficar muito quietinha, e verá que se põe boa num instante.
Porém, Paul estava lívido – até os lábios – e os olhos de ambos, ao encontrarem-se, compreenderam. Os olhos dela eram azuis, tão azuis como miosótis! Paul sentia que, se ao menos fossem de outra cor, suportaria melhor aquela dor. Tinha a sensação de que o coração se dilacerava lentamente no seu peito. Estava ali ajoelhado, a segurar-lhe na mão, e nenhum deles falava. Annie entrou.
– Sente-se bem? – murmurou timidamente, virando-se para a mãe.
– Claro – disse Mrs. Morel.
Paul sentou-se e relatou-lhe as férias em Blackpool. Ela mostrou-se interessada.
Passados um ou dois dias, foi a Nottingham para marcar o exame com o Dr. Jameson. Paul não tinha um tostão, mas podia pedir o dinheiro emprestado.
A mãe costumava ir à consulta da assistência social de sábado de manhã, em que tinha de pagar apenas uma tarifa simbólica. O filho foi consultá-lo no mesmo dia. A sala de espera estava repleta de mulheres pobres pacientemente sentadas num banco corrido a toda a volta da sala. Paul imaginou a mãe ali à espera, como as outras, com o seu fatinho preto. O médico estava atrasado. As mulheres tinham todas um ar assustado. Paul perguntou à enfermeira se podia falar com o médico mal ele chegasse, e assim foi. As mulheres que esperavam encostadas à parede, no banco corrido, olhavam intrigadas para Paul.
Finalmente, o médico chegou. Andaria pelos quarenta anos, e era moreno e bem-parecido. A mulher tinha morrido, e ele, que a amava muito, especializara-se em doenças do foro feminino. Paul apresentou-se e disse o nome da mãe. O médico não se lembrava.
– Número 46M – disse a enfermeira. E o médico consultou as fichas.
– Há um grande alto que pode ser um tumor – disse Paul. – Mas o Dr. Ansell disse que ia escrever-lhe uma carta.
– Ah, sim! – respondeu o médico, tirando a carta do bolso. Mostrava-se muito solícito, afável, ocupado e simpático. Iria a Sheffield no dia seguinte.
– Que faz o seu pai? – perguntou.
– É mineiro – respondeu Paul.
– Não há-de ser de grandes posses, suponho?
– Quanto a isso... fica por minha conta – disse Paul.
– E o senhor? – perguntou o médico, com um sorriso.
– Sou empregado de escritório na Fábrica de Acessórios Ortopédicos Thomas Jordan.
O médico sorriu.
– Hum... ir a Sheffield...! – disse ele, unindo as mãos pelas pontas dos dedos e sorrindo com o olhar. – ... Oito guinéus?
– Muito obrigado! – disse Paul, pondo-se de pé muito corado. – Vai então amanhã?
– Amanhã... domingo!... Exactamente! Sabe dizer-me a que horas tenho comboio à tarde?
– Há um da linha Central que chega às quatro e um quarto.
– E... para chegar a casa da sua irmã... terei de ir a pé? – perguntou o médico, a sorrir.
– Tem o eléctrico – disse Paul. – Para Western Park.
O médico tomou nota.
– Obrigado – disse ele. Apertaram as mãos.
Depois, Paul foi a casa para falar com o pai, que ficara aos cuidados de Minnie. Walter Morel tinha agora o cabelo quase todo branco. Paul foi encontrá-lo a cavar o jardim. Já lhe tinha mandado uma carta. Apertaram as mãos.
– Olá, meu filho, atão sempre vieste? – disse o pai.
– É... – respondeu o filho. – Mas volto esta noite.
– Ah, voltas! – exclamou o mineiro. – Já comeste?
– Não.
– És mesmo tu – disse Morel. – Anda daí.
O pai estava com medo de falar na mulher. Entraram os dois para dentro de casa. Paul comeu em silêncio, e o pai, com as mãos cheias de terra e as mangas arregaçadas, foi sentar-se no cadeirão a olhar para ele.
– Atão, como tá ela? – perguntou o mineiro por fim, com voz sumida.
– Pode sentar-se na cama... podemos trazê-la para baixo para tornar chá... – disse Paul.
– Já é uma bênção! – exclamou Morel. – Espero qu’a gente a tenha de volta depressa... E que disse o tal doutor de Nottingham?
– Que vai examiná-la amanhã.
– Ah, vai!... Isso é uma conta calada!
– Oito guinéus.
– Oito guinéus! – O mineiro até se engasgou. – Bem, vamos ter qu’o arranjar nalgum lado.
– Eu pago – disse Paul.
Ficaram os dois em silêncio por algum tempo.
– Ela diz que espera que se esteja a dar bem com a Minnie – disse Paul.
– Estou a dar-me bem, sim... quem dera qu’ela tamém estivesse bem! – respondeu Morel. – A Minnie é uma catraia esperta, Deus a abençoe. – Estava sentado, muito abatido.
– Tenho de partir às três e meia da manhã – disse Paul.
– É muita massa pra ti, rapaz!... Oito guinéus!... E quand’é qu’achas qu’ela pode voltar pra cá?
– Primeiro temos de ver o que é que os médicos dizem amanhã – disse Paul.
Morel soltou um suspiro muito fundo. A casa parecia estranhamente vazia, e Paul achou que o pai tinha um ar perdido, desamparado, envelhecido.
– Tem de ir lá vê-la para a semana, pai – disse Paul.
– Espero qu’ela já ’teja em casa nessa altura – disse Morel.
– Se não estiver – disse Paul – tem de lá ir.
– Não sei onde hei-d’ir buscar o dinheiro – disse Morel.
– Eu depois escrevo-lhe a contar o que disse o médico – disse Paul.
– Mas tu escreves cá duma maneira qu’eu num intendo nada.
– Bem... vou tentar escrever palavras mais fáceis.
Nem valia a pena pedir a Morel que respondesse, pois pouco mais conseguia escrever além do nome.
O médico chegou. Leonard achou que era sua obrigação ir buscá-lo à estação de táxi. O exame não foi muito demorado. Annie, Arthur, Paul e Leonard estavam à espera na sala, ansiosos. Os médicos desceram. Paul olhou para eles de relance. Nunca alimentara esperanças, a não ser para se enganar a si próprio.
– Pode ser um tumor... temos de aguardar – disse o Dr. Jameson.
– E se for – disse Annie – conseguem destruí-lo?
– Provavelmente sim – respondeu o médico.
Paul pôs oito soberanos e meio em cima da mesa. O médico contou-os, tirou um florim da bolsa e devolveu-o.
– Muito obrigado! – disse ele. – Lamento que Mrs. Morel esteja tão doente. Veremos o que se pode fazer.
– Não a podem operar? – perguntou Paul. O médico abanou a cabeça.
– Não – disse ele. – E, mesmo que pudéssemos, o coração dela não ia aguentar.
– O coração está muito fraco? – perguntou Paul.
– Está... Têm de ter muito cuidado com ela.
– Muito fraco?
– Não... hum... não, não! Mas tomem cuidado. – E o médico foi-se embora.
Em seguida, Paul foi buscar a mãe e trouxe-a para baixo. Ela estava deitada, com o ar inocente de uma criança. Mas, quando chegaram às escadas, ela passou-lhe os braços à volta do pescoço e agarrou-se com força.
– Tenho tanto medo destas escadas infernais! – disse.
Ele também tinha medo. Ia deixar que fosse Leonard a levá-la outra vez. Sentia que não tinha força para a transportar.
– Ele acha que é só um tumor! – gritou Annie para a mãe. – E diz que pode destruí-lo.
– Eu sabia que podia – disse Mrs. Morel, com sobranceria.
Mrs. Morel fingiu não notar que Paul tinha saído da sala, indo sentar-se na cozinha a fumar. De repente, tentou sacudir um risco de cinza que lhe manchava o casaco. Mas depois olhou com mais atenção. Era um cabelo grisalho da mãe. Como era comprido! Ergueu-o no ar e o cabelo voou para a chaminé. Paul deixou-o ir. O longo cabelo grisalho flutuou no ar e desapareceu na negrura da chaminé.
No dia seguinte, Paul foi dar um beijo à mãe antes de voltar para o trabalho. Era ainda muito cedo e estavam os dois sozinhos.
– Não te preocupes, meu filho! – disse ela.
– Não, mãe.
– Claro que não... seria tolice. E tem cuidado contigo.
– Vou ter – respondeu ele. E, passado algum tempo: – Venho vê-la no próximo sábado. Quer que traga o pai?
– Ele deve querer vir – respondeu ela. – Por isso, se ele quiser, tens de o deixar vir.
Paul beijou a mãe outra vez e afastou-lhe os cabelos das têmporas, com ternura e leveza, como se ela fosse uma amante.
– Não te atrases – murmurou ela.
– Vou já – disse ele, muito baixinho.
Mas ficou ainda mais alguns minutos, afastando-lhe das têmporas os cabelos castanhos e grisalhos.
– Prometa-me que não vai piorar, mãe.
– Não, meu filho.
– Promete?
– Prometo... Não vou piorar.
Ele beijou-a, apertou-a nos braços por um momento, e saiu. Foi a correr até à estação na manhã fria e soalheira, chorando durante todo o percurso sem saber porquê. E os olhos azuis da mãe surgiam parados, muito abertos, enquanto ele pensava nela.
De tarde, foi dar um passeio com Clara. Sentaram-se na moita onde cresciam campainhas. Ele pegou-lhe na mão e disse:
– Vais ver – disse para Clara –, ela nunca mais vai melhorar.
– Isso é que tu não sabes – retorquiu ela.
– Sei, sim – disse ele.
Ela, num impulso, apertou-o contra o peito.
– Tenta esquecer, meu querido – disse ela. – Tenta esquecer.
– Vou tentar – respondeu ele.
O peito dela estava ali, quente, à sua espera, e os dedos dela entrelaçavam-se-lhe nos cabelos. Era uma sensação aconchegante, e ele abraçou-a também. Mas não esqueceu. Apenas mudou de assunto. E era sempre assim. Quando ela pressentia a agonia a avassalá-lo, dizia-lhe:
– Não penses nisso, Paul, não penses nisso, meu querido.
E apertava-o contra o peito, embalando-o e acalmando-o como a uma criança. Ele punha de lado as preocupações para lhe agradar, mas não tardavam a voltar assim que ficava sozinho. Enquanto andava de um lado para o outro no armazém, chorava mecanicamente. O espírito e as mãos estavam ocupados, mas chorava e não sabia porquê. Era o seu sangue a chorar. Estivesse com Clara ou com os amigos no White Horse, a solidão era sempre igual. Só ele e aquela opressão que sentia no peito; nada mais existia. Por vezes lia. Tinha de manter o espírito ocupado. E Clara era uma maneira de ocupar o espírito.
No sábado seguinte, Walter Morel foi a Sheffield. Era uma fi-gura abatida, como se estivesse sozinho no mundo. Paul correu pela escada acima.
– O pai veio vê-la – disse, beijando a mãe.
– Ah, veio? – respondeu ela, com ar cansado.
O velho mineiro entrou a medo no quarto.
– Em que estado te venho encontrar, cachopa! – disse ele, aproximando-se dela e dando-lhe um beijo tímido, de fugida.
– Bem... assim assim – respondeu ela.
– Vejo que sim – disse ele. E ficou parado, de pé, a olhar para ela. Depois, limpou os olhos com o lenço. Impotente, desamparado, como se estivesse sozinho no mundo – era assim que ele olhava para ela.
– Tens passado bem? – perguntou a mulher, muito cansada, como se lhe custasse falar.
– Tenho! – respondeu ele. – A catraia às vezes atrasa-se a fazer as coisas, como podes calcular.
– Mas faz-te ao menos o comer a horas? – perguntou Mrs. Morel.
– Bom... Já tive de lhe mandar dois berros uma ou duas vezes – disse ele.
– Isso mesmo, deves berrar com ela, quando não tiver a comida pronta. Deixa sempre tudo para a última hora.
Mrs. Morel deu algumas instruções ao marido. Ele estava sentado a olhar para ela, como se ela fosse quase uma estranha, alguém diante de quem se sentisse acanhado e contrafeito; era como se tivesse perdido a presença de espírito e só pensasse em fugir. Esta vontade de querer fugir dali para fora a todo o custo, de estar em brasas para se afastar de tão dolorosa situação e, no entanto, deixar-se ficar para não parecer mal, era o que tornava tão penosa a sua presença. Ergueu as sobrancelhas, com desânimo, e fincou as mãos nos joelhos, sentindo-se completamente impotente perante um problema de tanta gravidade.
O estado de Mrs. Morel não sofreu grandes alterações. Ficou em Sheffield durante dois meses. Nessa altura, se alguma coisa tinha mudado, era para pior. Mas ela queria ir para casa. Annie tinha os filhos para cuidar. Mrs. Morel queria ir para a sua casa. Alugaram por isso um carro em Nottingham, pois ela estava muito doente para ir de comboio, e a viagem fez-se aproveitando o sol. Era Agosto, e tudo era calor e luz. Cá fora, sob o céu azul e luminoso, todos viram que ela estava a morrer. Estava no entanto mais animada do que tinha andado nas últimas semanas, e todos riam e conversavam.
– Annie! – exclamou ela. – Vi uma lagartixa a escapulir-se para debaixo daquela pedra.
Os seus olhos estavam ainda rápidos e alerta, e ela estava ainda cheia de vida.
Morel sabia que ela estava prestes a chegar. Tinha a porta da frente aberta, e andavam todos em bicos de pés. Metade das vizinhas tinham vindo para a rua. Ouviu-se o motor do grande automóvel. Mrs. Morel, sorridente, desceu a rua de carro até à porta de casa.
– Vejam só... Vieram todos cá para fora para me verem! – disse ela. – Mas eu, no lugar deles, acho que também fazia o mesmo... Como está, Mrs. Mathews... Como está, Mrs. Harrison?
Elas não a podiam ouvir, mas viam-na sorrir e acenar. E todas viam a morte estampada no seu rosto, diziam elas. Foi um grande acontecimento em toda a rua.
Morel queria levá-la ao colo para dentro de casa, mas já estava muito velho. Foi Arthur quem lhe pegou, como se ela fosse uma criança. Tinham colocado a poltrona dela em frente da lareira, no sítio onde antes estava a cadeira de baloiço. Quando já estava sentada, depois de ter tirado os agasalhos e bebido um pouco de brandy, olhou em volta.
– Não penses que não gostei de estar em tua casa, Annie – disse ela. – Mas é bom estar outra vez de volta à minha casa.
Ao que Morel respondeu, roufenho:
– Lá isso é, cachopa. Lá isso é.
E Minnie, a criadita, disse:
– Estamos muito contentes d’a ter de volta.
Havia no jardim um luxuriante tufo de girassóis que Mrs. Morel contemplou da janela.
– Olha, os meus girassóis! – exclamou, enlevada.
XIV
A LIBERTAÇÃO
–A PROPÓSITO – disse o Dr. Ansell uma noite, quando Morel estava em Sheffield – temos um homem aqui internado no hospital das febres que veio de Nottingham... um tal Dawes. Não parece ter nada nem ninguém no mundo.
– O Baxter Dawes! – exclamou Paul.
– Isso mesmo... um tipo excelente, fisicamente, é o que me parece. Ultimamente tem andado um bocado por baixo. Conhece-o?
– Trabalhou na fábrica onde eu trabalho.
– Ah, sim? E sabe alguma coisa a respeito dele? Está muito deprimido, senão já estaria bem melhor do que está.
– Não sei nada da vida dele, a não ser que se separou da mulher e tem andado um bocado em baixo, creio eu. Diga-lhe que um dia destes vou vê-lo, está bem?
Na próxima vez que Morel encontrou o médico, perguntou-Ihe:
– Então e o Dawes?
– Olhe, fui ter com ele e disse-lhe: «Conhece um fulano de Nottingham chamado Morel?»... e ele virou-me uns olhos como se quisesse atirar-se a mim. E eu então disse-lhe: «Vejo que conhece o nome... é o Paul Morel.» E depois disse-lhe que você iria lá visitá-lo. «Qu’é qu’ele vem cá fazer?», disse o Dawes, como se você fosse algum polícia...
– E ele disse se me queria ver? – perguntou Paul.
– Não disse absolutamente nada... nem sim nem não nem talvez – respondeu o médico.
– Porquê?
– Isso é o que eu gostava saber. Ele ali deitado, deprimido a maior parte dos dias, e não lhe consigo arrancar qualquer informação.
– Acha que posso lá ir? – perguntou Paul.
– Pode...
Desde a luta que travaram, a ligação entre os dois homem estreitara-se mais do que nunca. De certa forma, Morel sentia-se culpado perante o outro e mais ou menos responsável. Encontrando-se neste estado de espírito, sentia uma proximidade quase dolorosa em relação a Dawes, que sofria também, em desespero. Além disso, o ódio nu e cru que os levara à confrontação era ele próprio um elo. Fosse como fosse, cada um defrontara o homem primário que existia dentro do outro.
Paul dirigiu-se ao hospital de doenças contagiosas, levando um cartão do Dr. Ansell. A Irmã, uma rapariga irlandesa de aspecto sadio, conduziu-o à enfermaria.
– Tem aqui uma visita para si, seu bicho-do-mato – disse ela. Dawes voltou-se de repente, com um rosnido de espanto.
– Ha?
– Rrrr? – fez ela, zombeteira. – Ele só sabe dizer «Rrrr!»... Trouxe-lhe um senhor que o vem visitar. Vá, agora diga obrigado e veja se tem maneiras.
Dawes fixou os olhos escuros e assustados num ponto para lá da Irmã e de Paul. O seu olhar estava cheio de medo, desconfiança, ódio e miséria humana. Morel enfrentou aqueles olhos escuros inquietos e hesitou. Os dois temiam os seres primários em que já se tinham transformado.
– O Dr. Ansell disse-me que estavas aqui – disse Morel, estendo-lhe a mão.
Dawes apertou-lhe a mão mecanicamente.
– Por isso, achei que devia vir – continuou Paul.
Não obteve resposta. Dawes continuou a olhar para a parede em frente.
– Diga «Rrrr»! – voltou a dizer a enfermeira, trocista. – Diga lá «Rrrr», seu bicho-do-mato!
– Ele está melhor? – perguntou Paul.
– Está, sim! Fica aí deitado a pensar que vai morrer – disse a enfermeira – e é tanto o medo que nem consegue falar.
– Mas também é preciso que tenha alguém com quem falar – disse Morel, a rir.
– Aí é que está! – e a enfermeira riu-se. – Só tem dois velhos e um miúdo que está sempre a chorar. Tem um versejar difícil de entender! Eu aqui, a morrer por ouvir a voz do Bicho-do-mato, e ele só faz «Rrrr».
– É duro, não é? – disse Morel.
– Se é! – disse a enfermeira.
– Então, eu devo ser uma dádiva do céu. – E Morel riu-se.
– Se é... caída do céu aos trambolhões – respondeu a enfermeira, com uma gargalhada.
Depois, deixou os dois homens sozinhos. Dawes estava mais magro, bem-parecido como sempre, mas faltava-lhe vida. Tal como o médico dissera, estava ali deitado, deprimido, pensativo, resistindo, atrasando todo o processo de convalescença. Parecia até lamentar cada batimento do coração.
– Passaste muito mal? – perguntou Paul.
Dawes olhou para ele de repente.
– O qu’é que tás a fazer em Sheffield? – perguntou.
– A minha mãe está doente em casa da minha irmã, em Thurston Street... E tu, que fazes aqui?
Não obteve resposta.
– Há quanto tempo estás cá? – perguntou Morel.
– Não sei ao certo – respondeu Dawes, mal-humorado.
Olhou de novo para a parede em frente, como se para se convencer de que Morel não estava ali. Paul começava a perder a paciência.
– Foi o Dr. Ansell que me disse que estavas aqui – disse ele, friamente.
O outro não respondeu.
– A febre tifóide é uma doença terrível, eu sei – insistiu Morel.
Subitamente, Dawes disse:
– Pra que vieste?
– Porque o Dr. Ansell disse que não conhecias aqui ninguém. Ou conheces?
Novo silêncio.
– Bem, nós vamos levar a minha mãe para casa logo que seja possível – disse Paul.
– O qu’é qu’ela tem? – perguntou Dawes, com aquele interesse típico dos doentes por todas as doenças.
– Tem um cancro.
– Novo silêncio.
– Mas nós queremos levá-la para casa – disse Paul. – Vamos ter de alugar um automóvel.
Dawes ficou pensativo.
– Porque não pedes ao Thomas Jordan que t’empreste o dele? – disse Dawes.
– Não é suficientemente grande – respondeu Morel.
Dawes continuou deitado, pensativo, de olhos semicerrados.
– Atão pede ao Jack Pilkington... ele empresta-to... Sabes quem é?
– Acho que o melhor é alugar um – disse Paul.
– És bem parvo se fizeres isso – disse Dawes.
O doente estava de novo magro e bem-parecido, e Paul tinha pena dele, de ver os seus olhos tão cansados.
– Arranjaste emprego por aqui? – perguntou Paul.
– Só cá estava há um ou dois dias, quando adoeci – respondeu Dawes.
– Agora tens de ir para uma casa de repouso, para convalescer – disse Paul.
O rosto do outro ensombrou-se novamente.
– Eu cá não vou pra nenhuma casa de repouso.
– O meu pai esteve numa em Seathorpe, e gostou muito... O Dr. Ansell escreve-te uma carta de recomendação.
Dawes ficou pensativo. Era evidente que não queria enfrentar o mundo outra vez.
– Uma praia era o que te ia fazer bem – disse Morel. – O sol, as dunas e as ondas ali à mão.
O outro não respondeu.
– Bolas – rematou Paul, demasiado abatido para se preocupar com o estilo – é bestial saber que se pode andar outra vez por aí... dar umas braçadas...
Dawes olhou para ele de relance. Os seus olhos escuros receavam encontrar quaisquer outros olhos neste mundo. Porém, a sentida tristeza e o desalento patentes na voz de Paul trouxeram-lhe algum alívio.
– E está muito avançado? – perguntou ele.
– Ela desaparece como cera – respondeu Paul. – Mas anda alegre... bem-disposta... – E Paul mordeu o lábio, levantando-se em seguida.
– Bem, vou andando – disse ele. – Deixo-te aqui meia coroa.
– Num quero – resmungou Dawes.
Morel não respondeu, mas deixou ficar a moeda em cima da mesa de cabeceira.
– Bem – disse ele –, vou tentar passar por cá quando voltar a Sheffield. Talvez gostasses de falar com o meu cunhado. Ele trabalha na Pyecrofts.
– Mas eu não o conheço – disse Dawes.
– É um tipo fixe. Queres que lhe peça para cá vir?... Ele podia trazer-te alguns jornais.
O outro não respondeu. Paul foi-se embora. A emoção intensa que Dawes lhe despertava, e que ele agora reprimira, fê-lo tremer.
Paul não contou nada disto à mãe, mas no dia seguinte falou com Clara sobre a visita. Foi à hora do almoço. Não era frequente saírem os dois juntos, mas desta vez ele convidou-a para ir com ele até ao parque do castelo. Lá chegados, sentaram-se a conversar, entre os gerânios escarlates e as calceolárias amarelas encharcadas de sol. Ultimamente Clara mostrava-se sempre demasiado paternalista e ressentida com ele.
– Sabias que o Baxter está internado no hospital de Sheffield com febre tifóide? – perguntou ele.
Ela olhou-o com uns olhos cinzentos muito espantados, e empalideceu.
– Não – disse, assustada.
– Já está melhor... Fui vê-lo ontem... Foi o médico que me disse.
Clara estava visivelmente abalada com as notícias.
– E está muito mal? – perguntou, aflita.
– Esteve. Agora já está melhor.
– O que é que ele te disse?
– Oh... nada. Parece que está muito deprimido.
Gerou-se uma certa distância entre ambos. Paul deu-lhe mais informações.
Ela não fez comentários. Na próxima vez que foram dar um passeio, Clara não lhe deu o braço e manteve uma certa distância. E Paul precisava mais do que nunca de que ela o consolasse.
– Porque não és mais meiga? – perguntou ele.
Ela não respondeu.
– O que é que se passa? – perguntou Paul, pondo-lhe o braço sobre o ombro.
– Não faças isso! – disse ela, desviando-se.
Ele deixou-a em paz e voltou às suas meditações.
– É por causa do Baxter que estás assim? – acabou por perguntar.
– Fui realmente muito reles com ele – disse ela.
– Já estou farto de te dizer que o trataste muito mal – replicou Paul.
A hostilidade instalara-se entre ambos, e cada um seguia a sua linha de pensamento.
– Tratei... Não, eu tratei-o mesmo mal – disse ela. – E agora tratas-me tu mal a mim. É bem feito.
– Como é que eu te trato mal? – quis saber Paul.
– É bem feito – repetiu ela. – Eu nunca achei que ele valesse grande coisa, e agora és tu que achas que eu não valho... Mas é-me bem feito... Ele amava-me mil vezes mais do que tu alguma vez me amaste.
– Não amava nada – protestou Paul.
– Isso é que amava!... Pelo menos, respeitava-me, e tu não.
– Parecia que te respeitava – disse Paul.
– Respeitava, sim! E eu fiz dele um monstro, eu sei que fiz. Foste tu que me fizeste ver a verdade... E ele amava-me mil vezes mais do que tu.
– Seja – disse Paul.
Neste momento, só queria que ela o deixasse em paz. Os problemas que o afligiam já eram por si só quase insuportáveis. Clara só o atormentava e fatigava. Não sentiu pena quando a deixou.
Na primeira oportunidade, Clara foi a Sheffield visitar o marido. O encontro não foi propriamente um sucesso. Mas ela levou-lhe rosas, fruta e dinheiro. Queria recompensá-lo. Não se podia dizer que o amasse, pois, ao vê-lo ali acamado, não era amor o que lhe fazia pulsar o coração. Queria apenas humilhar-se perante ele, ajoelhar-se a seus pés. Era o auto-sacrífício que a movia. Afinal, tinha fracassado com Morel, não conseguira conquistar o seu amor. Estava, por isso, moralmente fragilizada e queria penitenciar-se. Ajoelhava-se, assim, perante Dawes, o que lhe dava a ele um certo prazer. Mas a distância que os separava era ainda muito grande, demasiado grande. Para o homem era motivo de receio. Para a mulher, era quase um prazer. Gostava de sentir que, para o servir, tinha de galgar uma distância insuperável. Isso alimentava-lhe o orgulho.
Morel foi visitar Dawes uma ou duas vezes. Havia entre os dois homens uma espécie de amizade, apesar de continuarem rivais implacáveis. Porém, nunca mencionavam a mulher que se erguia entre ambos.
Mrs. Morel piorava de dia para dia. A princípio, costumavam trazê-la para o andar de baixo, às vezes até para o jardim. Sentava-se na poltrona e ali ficava, a sorrir, sempre bonita. A aliança de casamento, em ouro, brilhava-lhe na mão muito branca, e tinha o cabelo cuidadosamente escovado e penteado. Viu morrer os girassóis e desabrochar os crisântemos e as dálias.
Paul e Mrs. Morel receavam-se mutuamente. Ele sabia, tão bem como a mãe, que ela estava a morrer. Mas mantinham no ar uma alegria fingida. Todas as manhãs, ao levantar-se, Paul ia ao quarto da mãe ainda em pijama.
– Dormiu bem, mãezinha? – perguntava ele.
– Sim, meu filho – respondia ela.
– Mas não muito bem?
– Bem... sim...
E ele percebia que ela tinha passado a noite em claro. Uma vez, viu a mão dela por baixo dos lençóis a carregar de lado, no sítio onde lhe doía.
– Dói-lhe muito? – perguntou.
– Não...! Só um bocadinho, nada de importância.
E deu uma fungadela desdenhosa, como era velho hábito seu. Ali deitada, parecia uma rapariga. Os seus olhos azuis não se desviavam de Paul, mas os círculos negros de dor que os rodeavam aumentavam o sofrimento dele.
– Está um dia cheio de sol – disse ele.
– Está um dia lindo.
– Acha que lhe apetece ir lá para baixo?
– Veremos...
Paul deixou-a e foi buscar-lhe o pequeno-almoço. Durante o dia só pensava nela. Era uma dor persistente que o deixava febril. Quando chegou a casa, pela tardinha, espreitou pela janela da cozinha, mas ela não estava lá. Não se tinha levantado.
Correu ao quarto e beijou-a. Quase a medo, perguntou:
– Então, a minha Pombinha levantou-se?
– Não – disse ela. – Foi a morfina... deixou-me debilitada.
– Acho que ele exagera na dose – disse Paul.
– Também – respondeu ela.
Paul sentou-se à cabeceira da mãe, muito triste. Ela estava deitada de lado, toda enrolada, como uma criança. Alguns cabelos castanhos e grisalhos caíam-lhe soltos sobre a orelha.
– Não lhe fazem cócegas? – disse ele, puxando-lhos para trás com suavidade.
– Fazem – respondeu ela.
A cara dele estava perto da dela. Os olhos dela, muito azuis, sorriam para os dele, com o seu olhar de menina, cálidos e ternos como sorrisos de amor. Paul perdeu o fôlego – do medo, da agonia, do amor.
– Este cabelo fica melhor entrançado – disse ele. – Não se mexa.
E, colocando-se por detrás dela, desmanchou-lhe o cabelo com cuidado e escovou-o muito bem. Pareciam longos fios de seda muito finos, castanhos e cinzentos. A cabeça dela tombava descontraída sobre os ombros. Enquanto lhe escovava o cabelo levemente e o entrançava, Paul mordia o lábio, atordoado, sem entender. Tudo parecia irreal.
À noite, ia trabalhar muitas vezes para o quarto da mãe, vigiando-a de vez em quando. E quase sempre encontrava os seus olhos azuis fixos nele. Quando os olhos de ambos se encontravam, ela sorria-lhe e ele continuava a trabalhar mecanicamente e a produzir bom trabalho, embora não soubesse o que fazia.
Outras vezes entrava no quarto de repente, muito pálido e silencioso, de olhar atento e inquieto, como um homem a cair de bê-bado. Receavam ambos os véus que entre eles se interpunham e a pouco e pouco se rasgavam.
Ela fingia então sentir-se melhor, e tagarelava alegremente, fazendo grande espalhafato por tudo e por nada. Tinham chegado ambos àquele ponto em que era preciso empolarem as coisas fúteis para evitarem tocar nas muito graves e, inevitavelmente, destruírem a sua condição humana independente. Tinham medo e falavam por isso de superficialidades, mostrando-se sempre alegres.
Por vezes, ao vê-la ali estendida, ele sabia que ela pensava no passado. A sua boca, cerrava-se, então, em linha dura e fina. E, se mantinha o corpo rígido, era para ao morrer não soltar o grito lancinante que lhe dilacerava as entranhas. Paul nunca mais pôde esquecer aquele crispar de lábios, duro e tão pungentemente solitário e obstinado, que durante semanas a acompanhou. Por vezes, quando relaxava um pouco, falava do marido. Agora odiava-o. Não podia perdoar-lhe. Não suportava a sua presença no quarto. E algumas coisas, as coisas que mais a tinham magoado, regressavam-lhe à mente com tal força que transbordavam dos seus lábios e as contava ao filho.
Paul sentia-se como se a vida estivesse a ser destruída dentro dele, pedacinho a pedacinho. Era frequente não conseguir conter as lágrimas. Corria para a estação, com as lágrimas a rolarem para o chão, e muitas vezes tinha de interromper o trabalho. A caneta recusava-se a escrever, e ele ficava sentado, quase inconsciente. E, quando voltava a si, sentia náuseas e tremuras. Nunca se questionava sobre o que isso poderia querer dizer, a sua mente não tentava sequer analisar as causas ou compreendê-las. Submetia-se apenas, de olhos fechados, deixando o que quer que fosse tomar conta dele.
A mãe fazia o mesmo. Pensava nas dores, na morfina, no dia seguinte, mas só muito raramente na morte. Estava para chegar, sabia-o bem. Teria de se submeter. Mas nunca a aceitaria, nem se adaptaria à ideia. Cega, de rosto fechado e cego, deixava que a morte a empurrasse lentamente porta fora. Passaram-se dias, semanas, e meses.
Vezes havia, nas tardes soalheiras, em que Mrs. Morel parecia quase feliz.
– Tento pensar nas coisas boas... em quando fomos a Mable-thorpe e a Robin Hood’s Bay, e a Shanklin – dizia ela. – Afinal, nem todos se podem gabar de ter ido a esses lugares tão bonitos. E que lindos que eram!... É nisso que tento pensar, não nas outras coisas.
Mas de novo, na noite seguinte, nem ela nem ele trocavam uma palavra. Passavam a noite juntos, hirtos, obstinados, em silêncio. Ele ia no fim da noite ao quarto dela, antes de ir para cama, e encostava-se à ombreira da porta, paralisado, incapaz de entrar. E, muitas vezes, quando Annie ou Arthur se encontravam de visita, nem ao quarto da mãe ia. Poucas vezes se encontrava com Clara, preferindo geralmente a companhia dos outros homens. Era vivo, activo e alegre, mas quando os amigos o viam pôr-se branco como a cal, com os olhos brilhando, muito negros, mostravam-se algo contrafeitos. Por vezes, ia a casa de Clara, mas ela tratava-o geralmente com frieza.
– Possui-me! – dizia ele, simplesmente.
De vez em quando, ela acedia. Mas tinha medo.
Quando ele então a possuía, havia no acto qualquer coisa de antinatural que a fazia retrair-se. E, com o tempo, o medo que tinha dele aumentou. Sempre tão calado, mas tão estranho. Tinha medo do homem que não estava ali, ao pé dela, mas que podia pressentir por baixo deste amante de faz-de-conta: um ser sinistro que a enchia de horror. Era horror o que sentia por ele agora, quase como se ele fosse um criminoso. Ele queria-a... ele tinha-a... e ela, ali deitada, sentia-se nas garras da própria Morte. Puro horror. O homem não estava ali presente para a amar, e ela quase o odiava. Esporadicamente, a ternura surgia. Mas ela não ousava sentir pena.
Dawes tinha vindo convalescer para a casa de repouso Colonel Seely, perto de Nottingham. Paul ia visitá-lo algumas vezes, Clara mais raramente. Entre os dois homens crescera uma amizade bem estranha. Dawes, que recuperava muito devagar e continuava muito fraco, parecia entregar-se nas mãos de Morel.
No princípio de Novembro, Clara lembrou a Paul que o aniversário dela estava à porta.
– Quase me tinha esquecido – disse ele.
– Foi o que eu pensei – respondeu ela.
– Não me digas!... E se fôssemos passar o fim-de-semana à beira-mar?
E assim foi. O tempo estava frio e triste. Ela esperava que ele se mostrasse fogoso e terno com ela, mas, pelo contrário, ele parecia quase nem dar pela sua presença. Ia sentado na carruagem, de olhos fixos na paisagem, e sobressaltava-se sempre que ela lhe dirigia a palavra. Não ia propriamente pensativo, era mais como se as coisas não existissem. Ela tentou ajudá-lo.
– Que tens, querido? – perguntou.
– Nada! – disse ele. – Não te parecem monótonas aquelas velas do moinho?
Ia sentado, de mão dada com ela, incapaz de falar ou de pensar. Era no entanto aconchegante ir sentado de mão dada com ela. Clara ia aborrecida e infeliz. Ele não lhe ligava: ela para ele não existia.
À noite, foram sentar-se nas dunas, a olhar o mar, negro e compacto.
– Ela não se rende – disse ele, baixinho.
O coração de Clara soçobrou.
– Pois não – respondeu.
– Há várias formas de morrer. A família do meu pai é medrosa, são puxados para fora da vida e arrastados para a morte como gado no matadouro, puxados pelo pescoço. Mas, na família da minha mãe, são empurrados pelas costas, polegada a polegada. É gente teimosa, que se recusa a morrer.
– Sim – disse Clara.
– Ela recusa-se a morrer. Não consegue morrer. Mr. Renshaw, o cura, foi vê-la um dia destes. «Pense», disse-lhe ele, «que no Outro Mundo vai encontrar o seu pai, a sua mãe, as suas irmãs e o seu filho.» E ela respondeu: «Já passei sem eles tanto tempo, posso muito bem passar sem eles agora. É a companhia dos vivos que eu quero, não dos mortos.» Mesmo assim, ela quer viver.
– Oh, mas isso é horrível! – disse Clara, aterrorizada de mais para falar.
– Ela olha para mim e quer ficar comigo – continuou ele, monocórdico. – Tem tamanha força de vontade que parece que não há-de morrer nunca, nunca...
– Não penses nisso agora – exclamou Clara.
– E ela era religiosa... e ainda é... mas não lhe serve de nada. Ela, simplesmente, não desiste. E sabes uma coisa, na quinta-feira passada eu disse-lhe: «Mãezinha, eu cá, se tivesse de morrer, morria e pronto. Até ia querer morrer.» E ela respondeu-me, incisiva: «E pensas que eu não quero? Se calhar julgas que se pode morrer quando se quer?»
A voz dele calou-se. Não chorava, discorria apenas monotonamente. Clara só queria fugir dali para fora. Olhou em volta. Tudo o que se lhe oferecia era a costa negra, ressonante, e o céu de breu por cima dela. Levantou-se, aterrorizada. Queria ir para onde houvesse luz, onde houvesse outras pessoas. Queria ir para longe dele. Ele continuou sentado, de cabeça pendente, sem mover um músculo.
– Eu não quero que ela coma, e ela sabe-o – disse ele. – Quando lhe pergunto: «Quer alguma coisa?», é quase a medo que ela diz: «Quero. Quero uma chávena de cacau.» «Isso só vai dar-lhe mais forças», digo eu. «Eu sei», diz ela, quase a gritar. «Mas sinto uma coisa a roer tanto cá dentro quando não como nada, que é insuportável.» E eu fui fazer-lhe o cacau... É o cancro que a está a roer por dentro... Já só desejo que morra.
– Anda – disse Clara, com dureza. – Eu vou-me embora.
Paul seguiu-a na negrura do areal, mas não estava ali com ela. Mal parecia dar pela sua presença. E ela sentia medo dele e detestava-o.
Voltaram a Nottingham no mesmo estado agudo de vertigem. Ele sempre ocupado, sempre a fazer qualquer coisa, sempre a correr de amigo em amigo.
Na segunda-feira, foi visitar Baxter Dawes. Pálido e indiferente, o homem levantou-se para cumprimentar o outro, apoiando-se à cadeira enquanto lhe estendia a mão.
– Não precisavas de te levantar – disse Paul.
Dawes deixou-se cair pesadamente na cadeira, olhando para Morel meio desconfiado.
– Não desperdices o teu tempo comigo – disse ele – se tiveres coisa melhor pra fazer.
– Vim porque quis – disse Paul. – Tome... trouxe-lhe uns caramelos.
O doente pô-los de lado.
– O fim-de-semana foi péssimo – disse Morel.
– Como está a tua mãe? – perguntou o outro.
– Na mesma.
– Julguei que tivesse piorado... como não apareceste no domingo.
– Fui para Skegness – disse Paul. – Estava a precisar de mudar de ares.
O outro fitou-o com os seus olhos muito negros. Parecia aguardar, sem se atrever a perguntar, esperando que o outro lhe contasse.
– Fui com a Clara – disse Paul.
– Isso sei eu – disse Dawes, sereno.
– Era uma promessa antiga – disse Paul.
– Faz o que quiseres – disse Dawes.
Foi esta a primeira vez que o nome de Clara foi explicitamente pronunciado entre eles.
– Não – disse Morel, falando devagar. – Ela está farta de mim.
Dawes olhou para ele outra vez.
– Desde Agosto que ela se tem vindo a cansar de mim – repetiu Morel.
Os dois homens ficaram em silêncio. Paul sugeriu uma partida de damas e jogaram em silêncio.
– Quando a minha mãe morrer, parto para o estrangeiro – disse Paul.
– Para o estrangeiro! – repetiu Dawes.
– Exactamente... Seja lá para onde for.
Continuaram a jogar. Dawes estava a ganhar.
– Tenho de começar uma vida nova em qualquer lado – disse Paul. – E você também, julgo eu.
E comeu uma peça a Dawes.
– Num sei pra ond’hei-d’ir – disse o outro.
– As coisas têm de correr o seu curso – disse Morel. – Não adianta fazer nada... pelo menos... não, não sei... Dá-me um caramelo.
Comeram os dois caramelos, e começaram novo jogo.
– Que cicatriz é essa aí na boca? – perguntou Dawes.
Paul levou a mão rapidamente ao lábio, e olhou para o jardim.
– Foi um acidente de bicicleta.
A mão de Dawes tremeu ao mover a peça.
– Num te devias ter rido de mim – disse ele, muito baixinho.
– Quando?
– Naquela noite em Woodborough Road... quando tu e ela passaram por mim... tu levavas a mão por cima do ombro dela.
– Nunca me ri de ti – disse Paul.
Dawes conservava a mão em cima da peça.
– Só me apercebi de que eras tu quando passaste por nós – disse Morel.
Dawes moveu a peça.
– Foi isso que me lixou – disse ele, em voz baixa. Paul tirou outro caramelo.
– Nunca me ri de ti – disse ele. – Eu é que estou sempre a rir.
Acabaram o jogo.
Nessa noite, Morel voltou a pé de Nottingham para casa, só para ter alguma coisa que fazer. As fornalhas lançavam um clarão rubro sobre Bulwell, e as nuvens brancas adensavam-se num tecto baixo. Enquanto percorria as dez milhas que o separavam de casa, era como se a estrada o levasse para fora desta vida, entre o negrume da terra e dos céus. Mas, ao fundo da estrada, esperava-o apenas o quarto da doente. Mesmo que caminhasse em direcção à eternidade, não tinha outro lugar para onde ir.
Quando se aproximava de casa, verificou que não estava cansado ou, pelo menos, não dava por isso. Ainda do meio do campo, avistou a luz vermelha da lareira a crepitar na janela do quarto.
«Quando ela morrer», pensou ele, «aquela lareira apaga-se.»
Descalçou as botas sem ruído e subiu a escada cautelosamente. A porta do quarto da mãe estava aberta de par em par, porque ela ainda dormia sem ninguém à cabeceira. O clarão da lareira relampejava no patamar. Fugaz como uma sombra, espreitou para dentro do quarto.
– Paul – disse ela, num murmúrio.
O seu coração soçobrou mais uma vez. Entrou e sentou-se à cabeceira dela.
– Chegaste tão tarde! – murmurou.
– Não é muito tarde – disse ele.
– Então que horas são? – O murmúrio soou como um lamento desesperado.
– Deram mesmo agora as onze horas.
Não era verdade, era quase uma da manhã.
– Oh – disse ela –, pensei que fosse mais tarde.
Paul conhecia o indizível sofrimento das noites da mãe, em que as horas teimavam em não passar.
– A minha pombinha não consegue adormecer? – disse ele.
– Não... não consigo – gemeu ela.
– Não faz mal, minha pequenina – disse ele, embalando-a – não faz mal, meu amor. Eu fico aqui meia hora ao pé da minha pombinha e tudo vai ficar bem.
E deixou-se ficar sentado à cabeceira dela, passando-lhe as pontas dos dedos pelas sobrancelhas, devagarinho, cadenciadamente, fechando-lhe os olhos e acalmando-a, apertando-lhe os dedos com a mão que tinha livre. Nos outros quartos ouvia-se a respiração das pessoas que dormiam.
– Agora vai para a cama – murmurou ela, repousando muito serena nos afagos dos seus dedos e do seu amor.
– Vai adormecer, não vai? – perguntou ele.
– Vou... acho que sim.
– A minha pequenina já se sente melhor, não sente?
– Já, sim! – disse ela, como uma criança assustada, e quase consolada.
Mais dias e semanas se passaram. Paul só muito raramente se encontrava com Clara, vagueando inquieto de um amigo para outro em busca de auxílio, mas sem o encontrar. Miriam escrevera-lhe uma carta cheia de ternura, e ele foi visitá-la. Partiu-se-lhe o coração ao vê-lo tão pálido e tão magro, com uns olhos negros tão desamparados. A dor que sentiu ao vê-lo assim era quase insuportável.
– Como está ela? – perguntou ela.
– Na mesma... sempre na mesma – disse ele. – O médico diz que já é por pouco tempo... mas eu sei que não é. Ainda vai estar viva no Natal.
Miriam estremeceu. Puxou-o para si, apertou-o contra o peito, beijou-o e voltou a beijá-lo. Paul submeteu-se, mas aqueles beijos eram para ele uma tortura. Ela não podia dar-lhe beijos na agonia. Essa continuava sozinha e independente. Miriam, ao beijar-lhe as faces, alvoroçava-lhe o sangue, enquanto a alma se mantinha aparte, nas ânsias da agonia. Ela beijou-o e acariciou-lhe o corpo até que, por fim, sentindo-se à beira da loucura, ele se afastou. Não era aquilo que ele queria nesse momento... aquilo não. E ela a julgar que o tinha aliviado, que lhe tinha feito bem.
Dezembro chegou e com ele a neve. Paul passava agora todo o tempo que podia em casa, pois não tinham dinheiro para uma enfermeira. Annie veio de Sheffield para cuidar da mãe, e a enfermeira da paróquia, de quem eles gostavam muito, vinha de manhã e à noite. Paul tratava da mãe a meias com Annie. Muitas vezes, à noite, quando estavam com amigos na cozinha, riam com eles desbragadamente, às gargalhadas. Era uma reacção natural. Paul era tão engraçado e Annie tão singular. Riam até desatarem a chorar, tentando controlar-se. Mrs. Morel, sozinha na penumbra do seu quarto, ouvia-os e o pouco alívio que sentia mitigava-lhe a amargura.
Depois, Paul subia as escadas pé ante pé, cheio de remorsos, para ver se ela os tinha ouvido.
– Quer que lhe traga uma pinguinha de leite? – perguntava.
– Só um bocadinho – dizia ela, num gemido.
Ele misturava então água no leite, para que não a alimentasse tanto. Todavia, amava-a mais que a própria vida.
Ela tomava morfina todas as noites, e o coração já começara a falhar. Annie dormia ao lado dela. Paul rendia a irmã ao amanhecer, quando esta se levantava. De manhã, a mãe acordava apática e cor de cinza, da morfina. O sofrimento deixava-lhe os olhos cada vez mais negros, só pupila. De manhã, as dores e o cansaço tornavam-se insuportáveis, mas ela não podia, não queria chorar, e nem sequer se queixava muito.
– A minha pequenina hoje dormiu até mais tarde – disse Paul.
– Ah, sim? – respondeu ela, rabugenta do cansaço.
– Sim senhora... são quase oito horas.
Paul olhou lá para fora pela janela. Os campos estavam gelados e alvos, cobertos de neve. Tomou-lhe o pulso. Sentiu um batimento forte e outro fraco, como se fosse o som e o seu eco. Diziam que era o fim a aproximar-se. E ela deixou-o tomar-lhe o pulso, sabendo quais as suas intenções.
Por vezes, os seus olhos encontravam-se, e era quase como se entrassem num acordo. Como se ele concordasse em morrer também com ela. Mas ela não se deixava morrer... recusava-se. O seu corpo definhara à dimensão de um fragmento de cinza. Os seus olhos estavam negros, a transbordar de tortura.
– Não lhe pode dar nada que acabe com este sofrimento? – perguntou Paul ao médico, finalmente.
Mas o médico abanou a cabeça.
– Já não dura muitos dias, Mr. Morel – respondeu ele.
Paul voltou para dentro.
– Já não aguento isto muito mais... Vamos acabar por enlouquecer – disse Annie.
E sentaram-se os dois a tomar o pequeno-almoço.
– Vai fazer-lhe companhia enquanto tomamos o pequeno-almoço, Minnie – disse Annie. Mas a rapariga tinha medo.
Paul foi passear pelos campos e pelos bosques sobre a neve. Viu marcas de coelhos e de pássaros gravadas na neve branca. Caminhou milhas e milhas. Um pôr do Sol brumoso e avermelhado instalou-se lentamente, doloroso, demorado. Paul julgou morrer naquele dia. Nisto, um burro veio ter com ele, pela neve fora, junto à orla da floresta, e, dando-lhe marradinhas com a cabeça, acompanhou-o lado a lado. Ele passou os braços pelo pescoço do burrinho e roçou a face nas orelhas do animal.
A mãe, silenciosa, continuava viva, com a boca crispada num esgar de resistência e os olhos, negros da tortura, ainda vivos.
O Natal estava à porta; a neve continuou a cair. Annie e Paul sentiam que já não podiam suportar mais tanto sofrimento. E os olhos negros continuavam vivos. Morel, calado e assustado, desaparecia. De vez em quando, entrava no quarto da enferma e olhava para ela, mas logo se retirava, atordoado.
Mas ela mantinha o seu apego à vida. Os mineiros tinham feito greve e recomeçado a trabalhar mais ou menos uma semana antes do Natal. Minnie subiu a escada com a chávena de caldo. Foi dois dias depois de os homens terem voltado ao trabalho.
– Os homens têm-se queixado de terem as mãos gretadas, Minnie? – perguntou ela, num fio de voz queixoso, mas que não desistia. Minnie ficou surpreendida.
– Que eu saiba, não, Mrs. Morel – respondeu ela.
– Mas aposto que estão gretadas – disse a moribunda, virando a cabeça e soltando um suspiro de cansaço. Mas pelo menos esta semana já se podem fazer compras.
Não lhe escapava nada.
– As roupas da mina do teu pai precisam de ser arejadas, Annie – disse ela, quando os homens se preparavam para voltar ao trabalho.
– Não se preocupe com isso, mãezinha – disse Annie.
Uma noite, Annie e Paul estavam sozinhos na cozinha. A enfermeira estava lá em cima.
– Ela ainda vai passar do Natal – disse Annie. Estavam ambos horrorizados.
– Não vai, não – respondeu ele, sombrio. – Eu vou dar-lhe morfina.
– Quanta? – disse Annie.
– Toda a que veio de Sheffield – disse Paul.
– Faz isso... sim! – disse Annie.
No dia seguinte, Paul foi pintar para o quarto da mãe. Ela parecia dormitar. Ele andava para trás e para a frente, com passos leves, entregue à sua pintura. De repente, ela disse, num gemido ténue:
– Não andes para trás e para a frente, Paul.
Ele voltou-se para ela. Os seus olhos, dilatados como bolhas colocadas sobre a face, olhavam-no fixamente.
– Não, meu amor – disse ele docemente. E sentiu mais uma fibra dilacerar-se-lhe no coração.
Nessa noite, juntou todos os comprimidos de morfina que encontrou e levou-os para a cozinha. Com muito cuidado, reduziu-os a pó.
– Que estás a fazer? – perguntou Annie.
– Vou deitá-los no leite da noite.
E riram os dois em conjunto, como meninos travessos. No meio de tanto horror, brilhava ainda neles um raio de sanidade.
Nessa noite, a enfermeira não pôde vir tratar de Mrs. Morel. Paul subiu a escada com a chávena de leite quente com bico, própria para doentes acamados. Eram nove horas.
A mãe estava meio sentada na cama e ele levou-lhe a chávena aos lábios, àqueles lábios pelos quais de bom grado teria dado a vida para os poupar ao sofrimento. Ela bebeu um golinho e empurrou o bico para o lado, fitando-o com os seus olhos negros, intrigados. Ele olhou para ela.
– Oh, está tão amargo, Paul! – disse, fazendo uma careta.
– É o novo remédio para dormir que o médico me mandou dar-lhe – disse ele. – Ele acha que com isto amanhã de manhã vai estar melhor.
– Espero bem que sim – disse ela, parecendo uma criança.
E bebeu mais uma pinguinha de leite.
– Mas isto é mesmo horrível! – disse ela.
Paul olhou para os seus dedos frágeis pousados na chávena, e para os lábios franzidos numa careta.
– Eu sei... provei um bocadinho – disse ele. – Mas depois trago-lhe leite simples.
– Está bem – disse ela, e continuou a beber. Obedecia-lhe como uma criança. Paul perguntava-se se ela teria percebido. Ficou a ver a garganta definhada mover-se com dificuldade enquanto ela engolia, e depois foi a correr à cozinha buscar mais leite. Não havia qualquer depósito no fundo da chávena.
– Ela bebeu tudo? – perguntou Annie, baixinho.
– Bebeu... e disse que estava amargo.
– Oh! – E Annie riu-se, mordendo o lábio inferior.
– E eu disse-lhe que era um remédio novo. Onde é que está o leite?
Foram os dois para cima.
– Porque será que a senhora enfermeira não me veio arranjar esta noite? – queixou-se Mrs. Morel, como uma criança, muito triste.
– Ela disse que ia a um concerto, mãezinha – respondeu Annie.
– Ah, sim?
Calaram-se por um instante. Mrs. Morel bebeu o leite puro.
– Annie, aquela mistela era horrível! – disse, queixosa.
– Era, mãezinha?... Pronto, deixe lá.
A mãe deu outra vez um suspiro de cansaço. O seu pulso estava muito irregular.
– Vamos lá prepará-la para dormir – disse Annie. – A senhora enfermeira é capaz de chegar muito tarde.
– Está bem – disse a mãe – Se fores capaz...
Puxaram a roupa da cama para trás. Paul viu a mãe enrolada como um bebé, com a sua camisa de flanela. Fizeram a cama de um lado rapidamente, viraram a mãe e fizeram a cama do outro, puxando-lhe em seguida a camisa para baixo de modo a tapar-lhe os pés, e cobriram-na de novo.
– Pronto – disse Paul, fazendo-lhe um afago. – Prontinho!... Agora faça por dormir.
– Sim, senhor... nunca pensei que fossem capazes de fazer a cama tão bem feita – disse ela, num tom quase bem-disposto. Depois, enrolou-se sobre si mesma com a cara encostada à mão e a cabeça enterrada entre os ombros. Paul puxou-lhe a fina trança grisalha para cima do ombro, e beijou-a.
– Agora, toca a dormir, minha linda – disse ele.
– Sim – disse ela, confiante. – Boa noite. Apagaram a luz e o quarto ficou em silêncio.
Morel já estava deitado. A enfermeira não chegou a aparecer. Annie e Paul vieram ver a mãe por volta das onze horas. Parecia estar a dormir, como acontecia depois de tomar o remédio. Tinha a boca ligeiramente entreaberta.
– Achas melhor ficarmos acordados? – perguntou Paul.
– Eu vou dormir no quarto dela, como faço sempre – disse Annie. – Ela pode acordar.
– Está bem... Mas chama-me se deres por alguma coisa.
– Está bem.
Deixaram-se ficar mais um pouco junto à lareira do quarto, os dois sozinhos no mundo, que lá fora a noite era negra e longa e a neve não parava de cair. Por fim, Paul foi para o seu quarto, mesmo ao lado, e deitou-se.
Adormeceu quase de imediato, mas, a princípio, acordava constantemente. Por fim, caiu num sono profundo. Acordou sobressaltado com Annie a chamá-lo: – Paul... Paul! – Abriu os olhos e viu a irmã de camisa branca de dormir e trança caída pelas costas abaixo, em pé na escuridão.
– Sim! – murmurou, sentando-se na cama.
– Vem cá ver.
Saltou da cama. Um bico de gás ardia no quarto da doente. Ela estava deitada com a cara encostada à mão e enrolada sobre si mesma, como quando adormecera. Mas agora tinha a boca aberta e fazia uns ruídos muito estranhos, como se ressonasse a grandes intervalos.
– Está a ir-se – murmurou ele.
– Pois está – disse Annie.
– Há quanto tempo está ela assim?
– Só acordei agora.
Annie estava toda encolhida, só com a camisa de dormir, e Paul embrulhou-se numa manta castanha. Eram três horas da manhã. Paul deitou mais lenha na lareira, e sentaram-se os dois no chão, à espera.
A mãe inspirou longa e ruidosamente, a respiração manteve-se suspensa, e depois expeliu o ar. Seguiu-se um intervalo, um longo intervalo. Nisto, estremeceram. De novo ela inspirou ruidosamente, como se ressonasse. Paul aproximou-se e olhou para ela.
– Isto é terrível! – sussurrou Annie.
Ele concordou, e sentaram-se de novo, completamente impotentes. Soou nova inspiração, profunda e ruidosa, e eles uma vez mais ficaram em suspenso. E de novo o ar saiu, com um som roufenho e prolongado. O ruído ecoava por toda a casa a intervalos irregulares. Morel continuava a dormir no seu quarto. Paul e Annie estavam sentados no chão, frente à lareira, enroscados e imóveis. O estertor recomeçou, seguido de nova pausa dolorosa enquanto a respiração esteve suspensa, para logo ser retomada com redobrada rouquidão. Os minutos passavam. Paul voltou a olhar para a mãe, debruçando-se sobre ela.
– É bem capaz de continuar assim ainda por muito tempo – disse ele.
Calaram-se os dois. Paul olhou lá para fora e mal conseguia discernir a neve no jardim.
– Volta para a cama – disse ele à irmã. – Eu fico ao pé dela.
– Não – disse ela. – Eu fico aqui contigo.
– É melhor não ficares.
Por fim, Annie saiu do quarto devagarinho, e Paul ficou sozinho, enrolado no cobertor castanho, sentado no chão em frente da mãe, a olhar para ela. Mrs. Morel metia medo, com o maxilar inferior tão descaído. Paul não tirava os olhos dela. Por vezes, pensava que ela não ia voltar a inspirar. A espera era insuportável. Mas logo o estertor recomeçava, intempestivo. Deitou mais lenha na lareira, sem fazer barulho. Não queria perturbá-la. Os minutos passavam. A noite esvaía-se, estertor a estertor. De cada vez que o som rouco se fazia ouvir, Paul sentia apertarem-se-lhe as entranhas, até que por fim se foi habituando.
O pai levantou-se. Paul ouviu o mineiro a arrastar as meias pelo chão, com um sonoro bocejo. Morel entrou no quarto só com as meias e em mangas de camisa.
– Chiu! – disse Paul.
Morel ficou de pé, a olhar. Depois, virou-se para o filho, impotente e horrorizado.
– Achas melhor eu ficar em casa? – bichanou.
– Não... Pode ir trabalhar... ela ainda dura até amanhã.
– Não me parece.
– Dura, sim. Vá trabalhar.
O mineiro olhou para ela outra vez, a medo, e saiu do quarto obedientemente. A presilha das ligas batia-lhe de encontro às pernas.
Meia hora depois, Paul foi à cozinha beber uma chávena de chá e voltou para cima. Morel, já ataviado para ir a mina, voltou ao quarto outra vez.
– Achas que vá?
– Vá, sim.
Daí a poucos minutos, Paul ouviu as passadas pesadas do pai amortecidas pela neve. Na rua soaram vozes a chamá-lo, de mineiros que, em grupos saíam para o trabalho. O terrível estertor, longamente sustido, continuou – arfava... arfava... depois uma longa pausa... e, depois, Ah-Ah-h-h-h-h!, quando expulsava o ar. Ao longe, perdidas na neve, soavam as sirenes das forjas. Uma após outra, apitavam e silvavam, umas sumidas e distantes, outras bem próximas e estridentes, as das minas e demais fábricas. Fez-se silêncio. Paul atiçou o lume. Só a respiração arfante quebrava o silêncio. Ela continuava na mesma. Ele correu um pouco a persiana e espreitou lá para fora. A escuridão continuava, talvez temperada por um vislumbre de claridade. Talvez a neve estivesse mais azulada. Paul puxou a persiana e vestiu-se. Depois, a tremer, bebeu um trago de aguardente da garrafa que estava junto ao lavatório. A neve estava cada vez mais azul. Ouviu uma carroça desengonçar-se pela rua abaixo. Já eram sete da manhã e o dia começava a clarear. Ouviu gente gritar. O mundo acordava. Sobre a neve, como quem rasteja, avançava uma alvorada cínzea, cor da morte. Sim, já conseguia ver as casas. Apagou o bico de gás. Parecia-lhe estar ainda muito escuro. O estertor continuava, mas ele já estava quase habituado. Conseguia vê-la de onde estava. Continuava na mesma. Paul pensou se não seria melhor colocar-lhe um monte de roupa sobre a cara; o peso poria fim àquela respiração aflitiva. Olhou para a mãe. Aquilo já não era ela... nem por sombras. E, se ele lhe pusesse o cobertor e um monte de roupa por cima da cara...
De repente, a porta abriu-se e Annie entrou, olhando para o irmão, inquiridora.
– Na mesma – disse ele, calmamente.
Trocaram palavras em segredo durante um breve minuto, e depois ele foi à cozinha tomar o pequeno-almoço. Faltavam vinte minutos para as oito. Annie desceu também logo a seguir.
– Não é horrível?... Não a achas horrível? – murmurou, aturdida de pavor.
Ele acenou afirmativamente.
– Se ela continuar assim...! – disse Annie.
– Bebe uma pinguinha de chá – disse ele.
Voltaram para cima. Em breve começaram a chegar as vizinhas com a temível pergunta:
– Como está ela?
Mas tudo continuava na mesma. Ela, deitada com a cara apoiada sobre a mão, a boca escancarada e o vaivém pavoroso, interminável, do estertor.
Às dez horas chegou a enfermeira. Mostrou-se confusa e desolada.
– Senhora enfermeira! – gritou Paul. – Ela vai ficar assim dias e dias!
– Não pode, Mr. Morel – disse a enfermeira. – Ela não pode.
Fez-se silêncio.
– Não é pavoroso? – disse a enfermeira, chorosa. – Quem havia de dizer que ela ia aguentar tanto?... Agora, vá para baixo, Mr. Morel, vá para baixo.
Eram perto de onze horas quando ele finalmente desceu as escadas e foi para casa de uma vizinha, à espera. Annie também veio para baixo. Lá em cima ficaram apenas a enfermeira e Arthur. Paul aguardava, sentado com a cabeça entre as mãos. Subitamente, Annie atravessou o pátio a gritar, como louca:
– Paul... Paul... ela foi-se embora!
Num segundo, Paul estava de novo em casa, no quarto da mãe. Ela estava deitada, enrolada sobre si mesma e imóvel, com a cara apoiada na mão, e a enfermeira a limpar-lhe a boca. Todos se afastaram. Paul ajoelhou-se, encostou a cara dele à dela e abraçou-a.
– Meu amor... meu amor... oh, meu amor! – murmurou uma e outra vez. – Meu amor... oh, meu amor!
Nesse momento, ouviu a enfermeira dizer atrás de si, com voz chorosa:
– Ela está melhor assim, Mr. Morel. Está melhor assim.
Paul levantou a cabeça do corpo morto da mãe, ainda quente, foi direito ao andar de baixo e pôs-se a engraxar as botas.
Havia muito o que fazer, cartas para escrever, as coisas do costume. O médico chegou, olhou para ela e suspirou.
– Ah, pobrezinha – disse, retirando-se em seguida. – Bem, passe pelo meu consultório por volta das seis, para ir buscar a certidão de óbito.
O pai chegou do trabalho cerca das quatro da tarde. Entrou silenciosamente, alquebrado, e sentou-se. Minnie apressou-se a dar-lhe o jantar. Extenuado, apoiou os braços enfarruscados em cima da mesa. O jantar era nabos guisados, um prato que ele apreciava. Paul perguntava-se se ele já saberia. Já se passara um bom bocado e ninguém dissera uma palavra. Por fim, o filho disse:
– Não viu as persianas descidas?
Morel levantou os olhos.
– Não! – disse ele. – Porquê... ela já se foi?
– Já.
– Quando?
– Esta manhã, por volta do meio-dia.
– Hum!
O mineiro permaneceu imóvel por um momento, e começou a comer, como se nada tivesse acontecido. Comeu os nabos em silêncio. Quando terminou, lavou-se e foi para o quarto para se vestir. A porta do quarto dela estava fechada.
– Foi vê-la? – perguntou Annie quando ele desceu.
– Não – disse ele.
Daí a pouco, saiu. Annie foi-se embora e Paul foi falar com o cangalheiro, o cura, o médico e o oficial do registo. Havia muita coisa a tratar. Só voltou perto das oito. O cangalheiro não tardava, para tirar as medidas. A casa estava vazia, à excepção dela. Paul pegou numa vela e subiu as escadas.
O quarto, lugar de aconchego durante tantos anos, estava agora gelado. Flores, garrafas, pratos, todas as tralhas típicas de um quarto de doente já tinham sido retiradas. Tudo era agreste e austero. Ela estava deitada na cama, ligeiramente soerguida, e o lençol, alçado em bico sobre os pés, descia silencioso, como vertente nevada. Ela jazia, qual bela adormecida. Ele debruçou-se sobre o corpo, sem pousar a vela. Ela jazia, qual bela adormecida a sonhar com o seu amado. A boca estava entreaberta, como se perplexa perante tanto sofrimento, mas o seu rosto era de donzela, e a testa estava desanuviada e branca, como se intocada pela vida. Paul olhou uma vez mais para as sobrancelhas e para o nariz pequenino e arrebitado, ligeiramente ao lado. Ela recuperara a juventude. Apenas o cabelo, airosamente arqueado sobre as têmporas, se mesclava de prata, e as duas tranças que lhe caíam nos ombros eram filigrana de fios castanhos e prateados. Ela ia acordar a todo o momento. Ia erguer as pálpebras. Ainda estava com ele. Ele baixou-se e beijou-a com paixão. Mas a sua boca tocou em algo gélido. Paul mordeu o lábio, horrorizado. Olhou para ela e sentiu que nunca, nunca poderia deixá-la partir. Nunca! Alisou-lhe o cabelo sobre as têmporas. Também elas estavam geladas. Depois reparou na boca estupefacta, espantada de tanto sofrimento. Acocorou-se então no chão, e sussurrou-lhe:
– Mãe... Mãe!
Ainda estava ao lado dela quando os cangalheiros chegaram, uns rapazes que tinham andado com ele na escola. Pegaram nela com reverência, com gestos serenos, profissionais, e nem para ela olharam. Ele observou-os, ciumento. Paul e Annie guardaram-na ciosamente, não deixando que ninguém a visse, o que muito ofendeu a vizinhança.
Pouco depois, Paul saiu de casa e foi jogar cartas para casa de um amigo. Era meia-noite quando voltou. O pai levantou-se do sofá ao ouvi-lo entrar, e disse, em tom de lamento:
– Julgava que num vinhas mais, rapaz.
– Não pensei que fosse esperar por mim – disse Paul.
O pai parecia um farrapo. Morel tinha sido um homem destemido – nada lhe metia medo. E agora, Paul via com surpresa que ele tivera medo de ir para a cama, e ficar sozinho em casa com a sua morta, e sentiu dó.
– Esqueci-me de que o pai estava sozinho.
– Queres comer alguma coisa? – perguntou Morel.
– Não.
– Assenta-te... Aqueci-te um bocado de leite. Despeja-o lá pra dentro, que com este frio vai-te saber bem.
Paul bebeu o leite.
– Amanhã tenho de ir a Nottingham – disse ele. Passado algum tempo, Morel foi deitar-se. Passou de fugida pela porta fechada e deixou a do seu quarto aberta. Pouco depois, o filho veio também para cima, entrando no quarto da mãe para lhe dar um beijo de boas-noites, como sempre fazia. O quarto estava frio e escuro. Paul pensou que seria bom terem deixado a lareira acesa. Ela continuava a sonhar os seus sonhos de menina, mas já devia estar fria.
– Minha querida! – murmurou ele. – Minha querida!
Mas não a beijou, com medo de a encontrar fria e não a reconhecer. Era para ele um alívio vê-la a dormir tão serena. Fechou a porta de mansinho, para não a acordar, e foi ele próprio deitar-se.
De manhã, Morel ganhou coragem ao ouvir Annie e Paul a tossirem no quarto do lado oposto do patamar. Abriu a porta e entrou no quarto às escuras. Divisou na penumbra a figura branca, soerguida, mas não se atreveu a olhar para ela. Impressionado, demasiado assustado para conservar intactas as suas faculdades, saiu do quarto em seguida, abandonando-a. Não voltou a olhar para ela. Há meses que não a via, pois não se atrevia a olhá-la. E ela parecia a sua noiva de outros tempos.
– Já a viu? – perguntou-lhe Annie, sem rodeios, depois do pequeno-almoço.
– Já – disse ele.
– E não acha que está bonita?
– Acho.
Morel saiu de casa logo a seguir. Parecia querer esquivar-se a todo o custo, para fugir à ideia.
Paul passou a manhã na cidade, de um lado para o outro, a tratar do funeral. Em Nottingham, encontrou Clara e foram tomar chá juntos, num café, mostrando-se os dois muito bem-dispostos. Era para ela um imenso alívio ver que ele aceitava o acontecimento sem tragédias.
Mais tarde, quando os parentes começaram a chegar para o funeral, o acontecimento perdeu toda a intimidade e os filhos tornaram-se alvo do assédio social, procurando escapar-se aos contactos o mais possível. Enterraram-na sob uma tempestade impiedosa de chuva e ventania. A terra molhada reluzia, as flores estavam ensopadas. Annie agarrou-se ao braço de Paul e inclinou-se para a frente. No fundo da cova, viu um canto negro do caixão de William. A caixa de carvalho afundou-se no buraco. A mãe tinha partido. A chuva caía sobre a campa. O cortejo, vestido de negro e de chapéus de chuva abertos e luzidios, retrocedeu. O cemitério ficou deserto, empapado de chuva fria.
Paul voltou para casa e manteve-se ocupado a servir bebidas a toda a gente. O pai foi sentar-se na cozinha com os parentes de Mrs. Morel, tudo gente «da alta». Chorava e repetia como ela tinha sido uma cachopa e pêras e como ele tinha tentado fazer tudo por ela – tudo. Lutara a vida inteira para lhe dar tudo o que podia, e nunca fizera nada de que pudesse agora arrepender-se. Ela partira, mas ele fizera por ela tudo o que podia. E ia limpando os olhos com o lenço branco. Não tinha nada a censurar-se, repetia. Toda a vida fizera por ela tudo o que podia.
Era assim que tentava afastá-la do pensamento. Nunca pensava nela personalizadamente. Recusava os sentimentos profundos. Paul odiava ver o pai ali sentado a dramatizar a morte da mãe, e sabia que ele iria fazer o mesmo pelas tabernas, pois, por mais que o pai se negasse a aceitá-lo, desenrolava-se no seu íntimo uma verdadeira tragédia. Algumas vezes, mesmo já passado algum tempo, aparecia na cozinha depois da sesta muito branco e amedrontado.
– Sonhei com a tua mãe – dizia ele, a medo, com a voz sumida.
– Sonhou, pai?... Quando eu sonho com ela é exactamente como quando ela estava boa. Sonho com ela muitas vezes, mas é uma coisa natural, bonita, como se nada tivesse mudado.
Mas Morel acocorava-se diante do lume, aterrorizado.
As semanas foram passando, entre o sonho e a realidade, sem muita dor, sem muito de coisa nenhuma, talvez com algum alívio, como uma noite passada em claro. Paul corria inquieto de um lado para o outro. Há vários meses, desde que a mãe piorara, que não fazia amor com Clara. Ela mostrava-se fechada, distante. Dawes via-a de vez em quando, mas nem um nem outro conseguiam encurtar o fosso intransponível que os separava. E, assim, seguiam os três à deriva.
Dawes recompunha-se muito devagar. No Natal, ainda estava na casa de repouso de Skegness, mas já quase recuperado. Paul foi passar uns dias junto ao mar. O pai estava com Annie em Sheffield. Dawes, que entretanto tinha tido alta da casa de repouso, foi procurar Paul à casa da praia. Parecia existir entre os dois homens uma fidelidade genuína, apesar da grande reserva. Dawes dependia muito de Paul e sabia que ele e Clara estavam praticamente separados.
Dois dias depois do Natal, Paul devia voltar para Nottingham. Na véspera à noite, estava ele sentado com Dawes à lareira, a fumar, quando disse:
– Não sei se sabes que a Clara vem cá passar o dia amanhã?
O outro olhou-o de relance.
– Sei, já me disseste – respondeu.
Paul acabou de beber o uísque que tinha no copo, e continuou:
– Eu disse à senhoria que a tua mulher ia chegar.
– Ah, sim? – disse Dawes, retraindo-se, mas entregando-se nas mãos do outro. Levantou-se muito hirto e estendeu a mão para o copo de Morel.
– Vou-t’encher o copo outra vez – disse ele.
– Deixa-te estar – disse Paul.
Mas Dawes, com as mãos muito trémulas, continuou a preparar a bebida.
– Quando chegar, diz.
– Está bem assim, obrigado! – respondeu o outro. – Mas não te faz bem levantares-te.
– Faz, sim, homem – retorquiu Dawes. – Acho que já me sinto bem outra vez.
– E se calhar estás mesmo, sabes.
– Tou, pois, isso é qu’eu tou – disse Dawes, acenando afirmativamente.
– O Len diz que te arranja trabalho em Sheffield.
Dawes olhou para Paul novamente de relance, com uns olhos escuros que concordavam com tudo o que o outro dizia, talvez até um pouco dominados por ele.
– Tem piada – disse Paul – começar de novo!... Eu sinto-me muito mais confuso do que tu.
– Como assim, rapaz?
– Não sei. Não sei. É como se estivesse no fundo dum buraco muito escuro e desolado, sem ter por onde sair.
– Eu sei... eu entendo – disse Dawes, meneando a cabeça. – Mas vais ver qu’isso passa.
Falava num tom afectuoso.
– Acho que sim – disse Paul.
Dawes sacudiu o cachimbo, num gesto de desalento.
– Mas tu não estás arrumado, como eu – disse ele.
E Morel reparou no pulso e na mão do outro, muito branca, agarrada à haste do cachimbo, a sacudir a cinza como se tivesse desistido de viver.
– Que idade tens? – perguntou Paul.
– Trinta e nove – respondeu Dawes, olhando-o de fugida.
Aqueles olhos castanhos perturbaram Paul. Eram uns olhos castanhos plenamente conscientes do fracasso, quase implorando a palavra amiga que pudesse redimir o homem, acarinhá-lo, pô-lo de novo de pé.
– Estás um jovem – disse Morel. – Ninguém dirá que a vida já te pregou das boas.
Os olhos castanhos do outro brilharam num lampejo súbito.
– E não pregou – disse ele. – Mas vai pregar!
Paul riu-se e levantou os olhos.
– Nós dois ainda estamos cheios de vida, para levar tudo de vencida à nossa frente – disse ele.
Os olhos dos dois homens encontraram-se. Trocaram um só olhar e, reconhecendo o ímpeto da paixão em cada peito, ambos beberam o seu uísque.
– Deus te oiça! – disse Dawes, sem fôlego. Seguiu-se uma pausa.
– Não vejo razão para não retomares a vida do sítio onde paraste – disse Paul.
– O quê...! – disse Dawes, intencionalmente.
– Isso mesmo... refazeres o lar desfeito. – Dawes tapou a cara e abanou a cabeça.
– Isso não é possível – disse ele, olhando para Paul com um sorriso irónico.
– Porquê?... Porque tu não queres?
– Talvez.
Foram puxando fumaças em silêncio. Dawes mordia o cachimbo, mostrando os dentes.
– Queres dizer com isso que não a queres de volta? – perguntou Paul.
Dawes fitou o quadro pendurado na parede com uma expressão cáustica.
– Nem eu mesmo sei.
O fumo subia leve e pairava no ar.
– Eu acho que ela te quer de volta – disse Paul.
– Achas mesmo? – perguntou o outro, manso, satírico, ausente.
– Sim senhor... Ela nunca se prendeu realmente a mim... Tu estavas lá sempre, ao fundo. Foi por isso que ela nunca pediu o divórcio.
Dawes continuou a olhar fixamente, satiricamente para o quadro que encimava a chaminé.
– Comigo as mulheres são todas assim – disse Paul. – Ficam loucas por mim, mas não querem ser verdadeiramente minhas... E ela foi tua o tempo todo. E eu sabia-o...
O macho triunfante emanou de Dawes. Mostrava agora os dentes com mais afoiteza.
– Talvez eu tenha sido otário – disse ele.
– Tu... otário! – disse Morel.
– Mas, bem vistas as coisas, talvez tu tenhas sido um otário inda maior – disse Dawes.
Havia nas suas palavras um toque de malícia e de triunfo.
– Se é assim que pensas! – disse Paul. Ficaram calados por algum tempo.
– Seja como for, amanhã vou-me embora – disse Morel.
– Estou a perceber – respondeu Dawes.
A conversa ficou por aí. A vontade de se matarem um ao outro estava de volta. Quase evitavam cruzar-se.
Partilhavam o mesmo quarto. Quando foram deitar-se, Dawes parecia ausente, absorto em pensamentos. Sentou-se na beira da cama em mangas de camisa, a olhar para as pernas.
– Não tens frio? – perguntou Morel.
– Estava a olhar pràs minhas pernas – respondeu o outro.
– O que é que têm? Não vejo nada de especial – disse Paul, da cama.
– Estão bem... mas ainda têm muita água lá dentro.
– E depois?
– Vem cá ver.
Paul levantou-se contrariado para ir ver as pernas bem torneadas do outro homem, cobertas de pêlos castanho-dourados, muito brilhantes.
– Ora vê – disse Dawes, apontando para a canela. – Vê lá a água que elas têm.
– Onde? – perguntou Paul.
O outro carregou na perna com as pontas dos dedos, enchendo-a de covinhas que gradualmente desapareceram.
– Isso não é nada – disse Paul.
– Ora apalpa! – disse Dawes.
Paul experimentou. Voltaram a aparecer as tais covinhas.
– Hum! – disse ele.
– Um nojo, não é? – disse Dawes.
– Essa agora... porquê?... Isso não é grave.
– Não se pode ser grande coisa com tanta água nas pernas.
– Não vejo que diferença faz – disse Morel. – Eu sou fraco dos pulmões.
E voltou para a cama.
– Penso que o resto do corpo está bem – disse Dawes, apagando a luz.
O dia amanheceu chuvoso. Morel fez a mala. O mar estava cor de chumbo, revolto e sombrio. Paul parecia afastar-se da vida cada vez mais, o que fazia com perverso prazer.
Os dois homens foram para a estação. Clara desceu do comboio e caminhou pela plataforma, muito direita e com fria reserva. Envergava um casaco comprido e um chapéu de tweed. Ambos detestaram ver tanta compostura. Paul apertou-lhe a mão junto à grade. Dawes deixou-se ficar encostado ao quiosque, a observá-los. Tinha o sobretudo preto abotoado até ao queixo por causa da chuva. Estava pálido e dava mostras de uma serenidade que quase tocava as raias da nobreza. Avançou para eles, coxeando ligeiramente.
– Já devias estar com melhor aspecto – disse ela.
– Oh, eu já estou bom.
Ficaram os três sem saber o que dizer. Ela mantinha os dois homens ao seu lado, hesitantes.
– Vamos directos para casa – disse Paul – ou preferem fazer outra coisa?
– Já agora, o melhor é irmos para casa – disse Dawes. Paul caminhava pela beira do passeio, depois Dawes e por fim Clara. Trocavam palavras circunstanciais. A saleta estava virada ao mar, cuja maré, plúmbea e alterosa, rugia a curta distância. Morel puxou a poltrona.
– Senta-te, homem – disse ele.
– Não quero essa poltrona – respondeu Dawes.
– Senta-te lá – repetiu Morel.
Clara tirou o chapéu e o casaco e pousou-os no sofá. Parecia ligeiramente ressentida. Levantou o cabelo com os dedos e sentou-se com altivez e compostura. Paul foi ao andar de baixo falar com a senhoria.
– Deves estar com frio – disse Dawes para a mulher. – Chega-te mais para o lume.
– Obrigada, estou muito bem assim – disse ela, pondo-se a olhar lá para fora, para a chuva e para o mar.
– Quando é que te vais embora? – perguntou ela.
– Bem... os quartos estão alugados até amanhã, e ele quer que eu fique. Ele vai-se embora esta noite.
– E depois pensas voltar para Sheffield?
– Sim.
– Já te sentes capaz de voltar ao trabalho?
– Vou já recomeçar.
– E já tens trabalho?
– Tenho... começo na segunda-feira.
– Mas não me pareces ainda completamente bem.
– Porquê?
Ela, porém, voltou a olhar para a janela em vez de responder.
– E já arranjaste alojamento em Sheffield?
– Já.
Clara olhou de novo para a janela. As vidraças estavam embaciadas da chuva que escorria.
– Achas que consegues dar conta de tudo? – perguntou ela.
– Claro. Não tenho outro remédio! – Estavam os dois calados quando Morel entrou.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul, mal entrou na sala. Ninguém lhe respondeu.
– Acho melhor tirares as botas – disse, voltando-se para Clara. – Tenho ali as minhas pantufas!
– Obrigada – disse ela. – Não tenho os pés molhados.
Ele colocou as pantufas perto dos pés dela. Ela deixou-as ficar.
Morel sentou-se. Os dois homens pareciam perdidos, acossados. Mas, enquanto Dawes mantinha a calma, parecendo perfeitamente controlado, Paul parecia remeter-se para dentro de si próprio. Clara não se lembrava de o ter visto com um ar tão insignificante e miserável. Era como se procurasse a todo o custo enfiar-se no buraco mais pequeno que encontrasse. E, enquanto andava de um lado para o outro a arrumar as coisas que faltavam, ou enquanto se sentava a conversar, algo nele soava a falso, destoava. Observando-o sem que ele se apercebesse, Clara reparou na total ausência de estabilidade de que Paul dava mostras. Era fantástico à sua maneira, apaixonado e capaz de lhe dar a provar a verdadeira essência da vida, quando queria. Mas agora parecia mesquinho, insignificante. Nada nele era estável. Havia no marido dela mais virilidade, mais dignidade. Esse pelo menos não se deixava levar pela mais leve brisa. Havia em Morel algo de precário, pensava ela, algo de inconstante e falso. Ele nunca daria firmeza a uma mulher, e ela desprezava-o sobretudo pela sua tendência para se retrair, se amesquinhar. O marido, pelo menos, era viril e sabia render-se quando vencido. Mas Paul jamais admitiria uma derrota. Daria voltas e mais voltas, à deriva, cada vez mais insignificante. Desprezava-o. No entanto, observava-o com mais atenção que a Dawes, e era como se o des-tino dos três estivesse nas mãos dele. Só por isso, ela odiava-o.
Clara parecia compreender agora melhor os homens, o que podiam ou queriam fazer. Receava-os menos, sentia-se mais segura de si, e era reconfortante saber que não eram tão egoístas e mesquinhos como os tinha imaginado. Tinha aprendido muito com ele, quase tudo o que quisera. Tivera a sua conta. Mais não teria podido suportar. Feitas as contas, não se podia queixar quando ele partisse.
Almoçaram e sentaram-se à lareira a partir nozes e a beber. Nada de sério fora dito. Todavia, Clara percebeu que Morel se retirava, deixando-lhe a opção de ficar com o marido, e isso irritava-a. Afinal, ele era um tipo perverso – aproveitara-se dela o quanto quisera e agora devolvia-a. Não se lembrava, porém, de que também ela se aproveitara dele o quanto quisera, e de que, bem no fundo do seu íntimo, até queria que ele a devolvesse.
Paul sentia-se amarfanhado e solitário. A mãe era realmente quem lhe dava forças para viver. Amara-a, tinham na verdade enfrentado o mundo juntos. Agora que ela partira, deixara para sempre atrás dele aquela fenda aberta na vida, aquele rasgão no véu, por onde a sua vida parecia escoar-se mansamente, arrastada para a morte. Paul queria alguém que o ajudasse de sua espontânea vontade. Passou a deixar escapar as pequenas coisas da vida, com medo dessa outra coisa maior, do lento aproximar da morte, na esteira da sua amada. Clara não suportava servir-lhe de arrimo. Queria-o, mas não para ter de o entender. E ele sentia que o que ela queria era o homem superficial, não o homem verdadeiro, o que precisava de ajuda. Seria incómodo de mais para ela, ele não lhe exigiria tanto. Ela não o entendia e isso deixava-o envergonhado. Assim, secretamente envergonhado pela situação desesperada em que se encontrava, pela falta de firmeza com que enfrentava a vida, pela falta de apoios que sentia, e por se sentir inconsistente e vago, como se pouco préstimo tivesse neste mundo de situações concretas, acabara por se retrair interiormente e se reduzir a proporções cada vez mais ínfimas. Não queria morrer, não iria desistir. Mas também não tinha medo da morte. Se ninguém o ajudasse, enfrentá-la-ia sozinho.
Dawes fora empurrado a tais extremos da existência que se tornara medroso. Podia assomar-se ao limiar da morte, deitar-se à beira da vida e contemplar a morte. Mas depois, acobardado, amedrontado, recuava e, como um mendigo, aceitava o que quer que lhe oferecessem. Havia nele contudo uma certa nobreza. Como Clara muito bem observava, reconhecia a derrota e queria que o aceitassem de volta, fosse como fosse. E isso estava ao alcance dela.
Eram três horas da tarde.
– Vou apanhar o das quatro e vinte – disse Paul a Clara uma vez mais. – Vens neste, ou vais mais tarde?
– Não sei – respondeu ela.
– Vou encontrar-me com o meu pai em Nottingham às sete e um quarto – disse ele.
– Nesse caso, vou mais tarde – disse ela.
Dawes foi sacudido por um tremor súbito, como se tivesse es-tado sujeito a uma grande tensão. Olhou para o mar, mas não via nada.
– Estão ali ao canto um ou dois livros que eu já não quero – disse Morel.
Partiu por volta das quatro horas.
– Vemo-nos mais tarde – disse, apertando-lhes a mão.
– Acho que sim – disse Dawes. – E... quem sabe... talvez um dia eu te possa pagar o que...
– Eu apareço para ir buscar a paga, não te preocupes – gracejou Paul. – Estou sem cheta, não tarda...
– Se é assim... – disse Dawes.
– Adeus! – disse Paul a Clara.
– Adeus – disse ela, estendendo-lhe a mão. Depois, olhou-o de fugida pela última vez, muda e contrita.
Ele partiu. Dawes e a mulher sentaram-se outra vez.
– Está um dia miserável para viajar – disse o marido.
– Pois está – concordou ela.
Conversaram sem parar até ao cair da noite. A senhoria trouxe-lhes chá. Dawes puxou a cadeira para junto da mesa, sem esperar pelo convite, numa atitude de marido, ficando à espera da chávena humildemente. Ela serviu-o, como qualquer mulher faria, sem lhe perguntar como queria o chá.
Quando terminaram, perto das seis horas, Dawes foi à janela. Lá fora era noite fechada. O mar rugia.
– Ainda está a chover – disse ele.
– Ah, está? – observou ela.
– Não te vais embora esta noite, pois não? – perguntou ele, titubeante.
Ela não respondeu. Ele aguardou.
– Eu cá não me metia a uma chuvarada destas – disse ele.
– Queres que eu fique? – perguntou ela.
As mãos dele tremeram, agarradas ao cortinado escuro.
– Quero – respondeu ele.
Dawes conservou as costas voltadas para ela. Clara levantou-se e aproximou-se dele devagar. Ele largou o cortinado e voltou-se para ela, hesitante. Ela estava de pé, de mãos atrás das costas, a olhar para ele com uma expressão grave, imperscrutável.
– Queres-me, Baxter? – perguntou.
A voz dele soou rouca ao responder:
– Queres voltar para mim?
Ela soltou um gemido, ergueu os braços e colocou-os à volta do pescoço dele, puxando-o para si. Ele escondeu a cara no ombro dela, apertando-a com força.
– Aceita-me! – sussurrou ela, em êxtase. – Aceita-me de volta! – E passou-lhe os dedos entre os finos cabelos negros, num estado de semi-inconsciência. Ele apertava-a cada vez mais contra o peito.
– Queres que volte para ti outra vez? – murmurou ele, rendido.
XV
À DERIVA
CLARA FOI com o marido para Sheffield e Paul só raramente voltou a encontrá-la. Walter Morel parecia vergado ao peso das dificuldades, arrastando-se pela lama sem esperança de melhores dias. Entre pai e filho quase nada havia que os ligasse, a não ser o dever que cada um sentia de não deixar o outro passar necessidades. Como não havia ninguém para cuidar da casa e nenhum deles suportava a solidão daquela casa vazia, Paul arranjou alojamento em Nottingham e Morel foi viver para Bestwood, com uns amigos.
A vida do jovem parecia uma derrocada total. Não conseguia pintar. O quadro que acabara de pintar no dia da morte da mãe, e com o qual ficara muito satisfeito, fora a última coisa que fizera. No emprego já não tinha a Clara e, quando chegava a casa, não conseguia pegar nos pincéis. Já nada lhe restava.
Passava por isso o tempo na cidade, por aqui e por ali, a beber e a conversar com amigos e conhecidos, até já não suportar mais a rotina. Metia conversa com as criadas dos bares, com quase todas as mulheres, mas os seus olhos tinham a expressão estranha e sombria de quem persegue alguma coisa.
Tudo lhe parecia tão diferente, tão irreal. Não parecia fazer sentido que andasse gente pelas ruas e as casas se amontoassem ao sol. Não parecia fazer sentido que estas coisas ocupassem tanto espaço, em vez de o deixarem vazio. Quando os amigos falavam, ele ouvia os sons e respondia-lhes, mas sem perceber por que razão havia de existir a fala.
Sentia-se mais ele próprio sempre que estava sozinho ou a trabalhar na fábrica, árdua e mecanicamente. Neste último caso, o esquecimento era total e perdia a consciência. Mas este estado de coisas tinha de acabar. Era tanto o sofrimento que as coisas tinham perdido para ele a sua condição real. Chegaram os primeiros flocos de neve. Viu-os sob o céu de chumbo, caindo em gotas, como pérolas. Noutros tempos tê-lo-iam excitado de emoção. Agora, estavam ali, mas não pareciam ter para ele qualquer significado. Dentro de breves momentos deixariam de existir e só ficaria o espaço que eles tinham ocupado. Os grandes eléctricos cruzavam a noite, imponentes e brilhantes. Era quase espantoso como se entregavam a tão ruidoso vaivém. «Para que se darão vocês ao trabalho de ir por aí abaixo até Trent Bridge?», perguntava ele aos grandes eléctricos. Parecia que tanto se lhe dava que existissem como não.
De tudo, o que lhe parecia mais real era a espessa escuridão da noite. Essa afigurava-se-lhe verdadeira, compreensível e repousante. A essa podia entregar-se. De súbito, um pedacinho de papel saltou junto aos seus pés e rolou pelo passeio, levado pelo vento. Ele ficou imóvel, rígido, de punhos cerrados, devorado pela chama da agonia. E viu de novo o quarto, a mãe doente, os olhos dela. Inconscientemente, tinha estado com ela, na companhia dela. Mas o movimento brusco do papel lembrara-lhe que ela já tinha par-tido. No entanto, ele estivera com ela e queria que o mundo parasse para poder estar com ela outra vez.
Passaram-se os dias, as semanas, e tudo parecia ter-se fundido numa massa informe. Não distinguia um dia do outro, uma semana da outra; quase não distinguia os lugares uns dos outros. Nada era distinto ou distinguível. Muitas vezes se perdia durante uma hora, não conseguindo lembrar-se do que tinha feito.
Uma noite voltou tarde para casa. O fogo crepitava lento e já todos se tinham ido deitar. Pôs mais carvão na lareira, olhou para a mesa e resolveu que lhe apetecia comer. Sentou-se então no cadeirão de braços. Tudo estava estático. Não reconhecia nada, mas via o fumo elevar-se indistintamente na chaminé, ao longe. Dois ratos saíram do seu buraco e vieram, cheios de cautelas, comer as migalhas caídas no chão. Ele olhava-os como se de muito longe. O relógio da igreja bateu as duas horas. Ouviu à distância o tilintar metálico dos vagões sobre os carris. Não eram eles que estavam longe. Esses estavam nos seus lugares. Mas ele... onde estava?
O tempo passou. Os dois ratos, em desenfreada correria, escapuliram-se descaradamente por cima das suas pantufas, sem que ele movesse um músculo. Não lhe apetecia mexer-se. Não pensava em nada. Era bem melhor assim. Não corria o risco de ficar a saber nada. Entretanto, a espaços, uma outra consciência funcionando mecanicamente desferia frases incisivas.
«Que estou eu a fazer?»
E a resposta chegava, saída do transe.
«A destruir-me.»
Depois, um sentimento lúgubre, vivo e fugaz dizia-lhe que estava errado. E logo a pergunta chegava:
«Errado, porquê?»
E de novo a pergunta ficava sem resposta, mas um golpe de teimosia escaldante brilhava-lhe no peito, resistindo à aniquilação total.
Na rua soou o rodado desengonçado de uma carroça ronceira. De repente, a luz eléctrica apagou-se com um estalido surdo no contador. Paul nem se mexeu; ficou como estava, a olhar em frente. Só os ratos tinham fugido e o lume brilhava rubro na sala às escuras.
Depois, mecanicamente, mas com mais nitidez, a conversa interior recomeçou.
«Ela está morta... para que serviu tudo aquilo... tanta luta...?»
Era o desespero a levá-lo atrás dela.
«Tu estás vivo.»
«Mas ela não.»
«Está sim... dentro de ti.»
De súbito, sentiu-se cansado de um fardo tão pesado.
«Tens de continuar vivo por causa dela», dizia-lhe a vontade.
Mas o coração esmorecia, sem querer despertar.
«Tens de dar continuidade à vida dela, ao que ela fez, continuar a partir daí...»
Mas ele não queria. Só queria desistir.
«Podes continuar a pintar», dizia-lhe a vontade. «Ou então pôr filhos neste mundo... Ambas são maneiras de dar continuidade ao esforço dela...»
«Pintar não é viver.»
«Então, vive.»
«Casar com quem?», perguntou ele, de mau humor.
«O melhor casamento possível.»
«Miriam.»
Mas ele não confiava nessa hipótese.
Levantou-se de repente e foi directo para a cama. Depois de entrar no quarto e fechar a porta, quedou-se de pé, com os punhos crispados.
– Mater, minha querida... – começou ele, com toda a força do seu ânimo. Nisto, parou. Recusava-se a dizê-lo. Recusava-se a admitir que desejava morrer, acabar de uma vez para sempre. Recusava-se a reconhecer que a vida o tinha vencido, ou melhor, que a morte o tinha vencido.
Deitou-se e adormeceu de imediato, abandonando-se num sono profundo.
E as semanas foram passando. Sempre solitária, a sua alma oscilava, hesitante, ora pendendo para a morte, ora para a vida. A verdadeira agonia era não ter para onde ir, nada para fazer, nada para dizer, ele próprio não ser nada. Corria às vezes pelas ruas como um louco. Outras vezes estava louco de verdade: as coisas desapareciam e voltavam a aparecer. Faltava-lhe o ar. Outras vezes deixava-se ficar arrimado ao balcão da taberna onde entrara para beber, e tudo parecia fugir dele. Via muito ao longe a cara da criada, os fregueses tagarelas, o seu próprio copo sobre o balcão de mogno. Algo se interpunha entre ele e o resto, impedindo-o de estabelecer contacto. Não queria aquela gente para nada, não queria a cerveja para nada. Abruptamente, virava costas e saía. Parava entre portas a olhar a rua iluminada. Mas não estava nela, nem era à parte dela. Algo o separava do resto. Tudo se passava lá em baixo, à luz dos candeeiros, à parte dele. Ele não podia lá chegar. Onde podia ir então? Não tinha para onde ir – não podia voltar para a taberna, nem ir para mais lado nenhum. Sentia-se sufocado. Não tinha para onde ir. A tensão aumentou tanto que julgou que rebentava.
– Mas não devo... – disse ele. E, virando-se sem ver para onde ia, voltou para dentro e bebeu. Por vezes fazia-lhe bem beber, outras, ficava pior. Correu pela rua abaixo. Sem descanso, entrava aqui, ali, em toda a parte. Decidiu voltar a trabalhar. Porém, ao cabo de meia dúzia de traços, atirou o lápis com violência, levantou-se e saiu, indo para um outro clube onde podia jogar cartas ou bilhar, qualquer lugar onde pudesse namoriscar com a criada, que não valia mais para ele do que a alavanca de metal que ela puxava para tirar a cerveja.
Estava esquelético e macilento. Nem se atrevia a olhar-se ao espelho. Queria fugir de si mesmo, mas não tinha ao que se agarrar. No auge do desespero, pensou em Miriam. Quem sabe... Quem sabe?
Até que, num domingo à tarde em que por acaso entrou na Igreja Unitária quando todos se levantavam para entoarem o segundo hino, a viu à sua frente. A luz batia-lhe no lábio inferior quando cantava. A sua expressão era a de quem tinha pelo menos alguma coisa a preservar: se não na vida terrena, a esperança na vida eterna, pelo menos. Todo o seu consolo e ânimo pareciam virados para a outra vida. Emanava dela uma força intensa, calorosa. Enquanto cantava, parecia aspirar ao consolo do mistério, e ele depositou nela as suas esperanças. Ansiava pelo fim do sermão para ir falar com ela.
A multidão arrastava-a para fora da igreja mesmo à sua frente; quase podia tocar-lhe. Ela não sabia que ele estava ali. Ele via-lhe a nuca morena, insignificante, despontando por baixo dos caracóis negros. Entregar-se-ia aos seus cuidados. Ela era melhor e mais forte do que ele. Seria ela o seu esteio.
Miriam deambulava às cegas, entre as pequenas multidões que se formavam à saída da igreja – parecia sempre perdida e deslocada nos grandes aglomerados. Paul avançou e pousou-lhe a mão no braço. Ela estremeceu com violência. Os seus grandes olhos castanhos dilataram-se de medo e, ao vê-lo, questionaram-no intrigados. Ele retraiu-se ligeiramente.
– Eu não sabia... – disse ela, titubeante.
– Nem eu...
Paul baixou os olhos. A esperança que subitamente o animara desvanecia-se outra vez.
– Que fazes aqui na cidade? – perguntou ele.
– Estou em casa da minha prima Anne.
– Ah! Por muito tempo?
– Não... só até amanhã.
– Tens de ir já para casa?
Ela olhou para ele e ocultou o rosto sob a aba do chapéu.
– Não – disse ela. – Não, não tenho.
Paul afastou-se e ela seguiu-o. Abriram caminho por entre a multidão. O órgão soava ainda na igreja. Vultos negros continuavam a sair pela porta iluminada, descendo a escadaria. Os enormes vitrais coloridos brilhavam na noite. A igreja parecia uma lanterna suspensa, gigantesca. Meteram por Hollow Stone e Paul apanhou o eléctrico para Bridges.
– Vens só cear comigo – disse ele – e depois eu levo-te de volta.
– Está bem – respondeu ela, com a voz rouca e sumida. Durante a viagem quase não trocaram uma palavra. O rio Trent corria negro e volumoso sob a ponte. As trevas abatiam-se sobre Colwick. Paul morava em Holme Road, nos limites desolados da cidade, numa casa virada para as várzeas de Sneiton Hermitage e a vertente escarpada da floresta de Colwick. Os campos estavam inundados. Para a esquerda, a perder de vista, estendiam-se as águas silenciosas e a escuridão. Quase a medo, estugaram o passo entre o casario.
A ceia estava pronta. Paul correu as cortinas. No centro da mesa havia uma jarra com frésias e anémonas escarlates. Miriam debruçou-se para as flores. Tocou-lhes nas pétalas com as pontas dos dedos, olhou para ele e disse:
– Não são lindas?
– São – disse ele. – Que queres tomar... café?
– Ia saber-me bem... – disse ela.
– Então, dá-me licença por um minuto.
E foi para a cozinha.
Miriam tirou os agasalhos e olhou em volta. O quarto era aus-tero, despojado. Pendurados na parede, estavam os retratos dela, de Clara e de Annie. Espreitou para o estirador, para ver o que ele es-tava a fazer: apenas alguns traços inconsequentes. Averiguou que livros andava a ler: só um romance banal. As cartas que viu no porta-cartas eram de Annie, de Arthur e de um ou dois amigos que ela não conhecia. Miriam estudou com demorado enlevo tudo aquilo em que ele tocava, tudo o que tinha o seu cunho pessoal. Ele saíra da sua vida há tanto tempo que queria redescobri-lo, saber como vivia, quem ele era agora. Porém, não encontrou no quarto muitos elementos que a ajudassem. O espaço era tão severo e desconfortável que só lhe infundiu tristeza.
Estava ela a examinar o seu caderno de esboços, dando largas à sua curiosidade, quando ele regressou com o café.
– Não tem nada de novo – disse ele. – E nada que valha a pena.
Pousou o tabuleiro e espreitou por cima do ombro dela. Miriam virava as páginas devagar, sem nada querer perder.
– Hum! – fez ela. – Não estou a perceber.
Ele tirou-lhe o livro da mão e folheou-o. E, de novo, soltou uma curiosa interjeição de surpresa e algum prazer.
– Há aqui algumas coisas que não estão más de todo – disse.
– Mesmo nada más – respondeu ela, com gravidade.
Paul sentiu novamente o interesse dela pelo seu trabalho. Ou seria por si próprio? Porque seria que se mostrava sempre mais interessada na parte que emanava do trabalho que ele fazia?
Sentaram-se à mesa.
– A propósito – disse Paul –, é verdade o que ouvi dizer sobre estares a ganhar a tua própria vida?
– É – respondeu ela, deixando pender a cabeça escura sobre a chávena.
– E que tal?
– Vou só fazer um estágio de três meses na escola agrícola de Broughton... e é provável que me convidem para ficar lá como professora.
– Sim, senhora... mesmo de encomenda para ti! Sempre quiseste ser independente.
– É verdade.
– Porque não me mandaste dizer?
– Só soube há uma semana.
– Mas já me contaram isso o mês passado.
– Sim, mas ainda não era certo.
– De qualquer maneira, gostava que me tivesses dito que tinhas concorrido – disse ele.
Ela comeu a ceia com aquela recatada rapidez, que ele tão bem conhecia, de quem se envergonhava de tornar público o gesto.
– Suponho que estejas contente – disse ele.
– Contentíssima.
– Sim... sempre é alguma coisa.
Paul parecia bastante desapontado.
– Pois eu acho que é uma grande coisa – disse ela, ofendida, num tom quase arrogante.
Ele deu uma gargalhada seca.
– Porque achas que não é bom? – perguntou ela.
– Oh, não é que eu ache que não vai ser bom para ti. Mas verás que ganhar a vida não é tudo.
– Pois não – disse ela, engolindo a custo. – Também penso que não...
– Penso que o trabalho pode ser quase tudo para um homem – disse ele – embora para mim não seja. Mas uma mulher só dá ao trabalho uma parte de si mesma. A sua melhor parte permanece oculta.
– Então um homem pode dar-se todo ao seu trabalho? – perguntou ela.
– Sim... praticamente.
– E uma mulher só dá a parte menos importante de si mesma?
– É isso.
Miriam olhou para ele, com os olhos desorbitados de raiva.
– Então – disse ela – se isso é verdade... é uma pena.
– É... Mas eu não tenho a certeza absoluta – respondeu ele. Depois da ceia foram para junto da lareira. Paul colocou uma cadeira em frente à sua e sentaram-se os dois. Ela envergava um vestido em tons de vinho que ligava muito bem com a sua pele morena e as feições grossas. Os caracóis continuavam a cair finos e soltos, mas o rosto tinha envelhecido, e o pescoço moreno estava mais magro. Ela parecia-lhe velha, mais velha do que Clara. Perdera rapidamente a frescura juvenil, sobressaindo agora nela uma certa rigidez, quase de escultura de madeira. Miriam quedou-se por momentos, pensativa, e depois olhou para ele.
– E como vai a tua vida? – perguntou.
– Vai bem.
Ela ficou a olhá-lo, à espera.
– Não vai, não – disse ela, muito baixinho.
Tinha as mãos morenas e nervosas crispadas sobre os joelhos. Continuavam inquietas e inseguras, quase histéricas. Paul estremeceu ao olhar para elas. Depois riu-se, impiedoso. Ela meteu o dedo na boca. O corpo dele, magro, negro, torturado, mantinha-se imóvel na cadeira. Ela tirou o dedo da boca bruscamente e olhou para ele.
– Então, rompeste com a Clara?
– Sim.
O corpo dele estava prostrado na cadeira como coisa abandonada.
– Sabes – disse ela –, acho que nos devíamos casar.
Ele abriu os olhos e, pela primeira vez em tantos meses, ouviu-a com atenção.
– Porquê? – perguntou.
– Vê como te estás a destruir! – disse ela. – Podes adoecer, podes até morrer e eu não te posso ajudar, é como se nunca te tivesse conhecido.
– E se nos casássemos? – perguntou ele.
– Pelo menos evitava que te destruísses... que servisses de presa a outras mulheres... como... como à Clara, por exemplo.
– De presa? – repetiu ele, sorrindo.
Ela baixou a cabeça, em silêncio. Ele, sempre prostrado na cadeira, sentiu o desespero avassalá-lo de novo.
– Não sei se casar será uma boa ideia – disse, articulando as palavras devagar.
– Só estou a pensar em ti – replicou ela.
– Eu sei que estás... Mas... amas-me tanto que me queres meter no bolso. E eu vou morrer asfixiado.
Ela deixou pender a cabeça e meteu o dedo na boca, deixando a amargura invadir-lhe o coração.
– Que vais fazer então? – perguntou Miriam.
– Não sei... Continuar, suponho eu. Talvez parta em breve para o estrangeiro.
A desesperada hesitação com que ele falava fê-la ajoelhar-se junto dele, no tapete da lareira, aí ficando enroscada, esmagada, incapaz de levantar a cabeça. As mãos dele estavam pousadas, inertes, sobre os braços do cadeirão. Ela não podia ignorá-las. Sentiu que o tinha à sua mercê. Se pudesse levantar-se, tomá-lo nos braços, apertá-lo contra o peito e dizer-lhe: «Agora és meu», ele entregar-se-ia à sua guarda. Mas ousaria ela fazê-lo? Sacrificar-se era fácil. Mas ousaria ela afirmar-se? Via à sua frente o corpo dele, esbelto e trajado de negro, prostrado na cadeira, ao lado dela, como uma pincelada de vida. Mas não, não ousava abraçá-lo, possuí-lo e dizer-lhe: «É meu este corpo. Entrega-mo!» No entanto, era o que mais queria fazer. Ele apelava a todos os seus instintos de mulher, mas ela continuava presa ao chão, paralisada, e não ousava. Temia que ele não lho permitisse. Temia que a emoção fosse de mais. O corpo dele, ali, abandonado. Sabia que devia possuí-lo, reclamá-lo, reivindicar o seu direito a ele. Mas será que era capaz? A sua impotência perante ele, perante a pujante exigência de algo que desconhecia nele, marcava os seus próprios limites. As mãos dela flutuaram hesitantes, a cabeça soergueu-se, e os seus olhos, vacilantes, suplicantes, quase ausentes, fitaram-no bruscamente, implorando. O coração dele crispou-se com pena dela. Ele pegou-lhe nas mãos, puxou-a para si e consolou-a.
– Aceitas-me, casas comigo? – disse ele, muito baixinho.
Oh, porque não a possuía ele? Pois se até a alma dela lhe pertencia. Porque não tomava ele o que era seu? Ela, que sofria há tanto tempo a tortura de lhe pertencer e não se ver reclamada, tinha de suportar agora a tortura da espera uma vez mais. Não, era de mais. Endireitou a cabeça, segurou-lhe a cara entre as mãos e olhou-o olhos nos olhos. Não, ele estava a ser difícil. Era evidente que queria mais qualquer coisa. Ela suplicou-lhe com toda a força do seu amor que não lhe entregasse a escolha a ela. Não estava preparada para a enfrentar, para o enfrentar a ele e sabe-se lá o que mais. Mas a pressão aumentou, até ela se sentir prestes a quebrar.
– É isso mesmo que tu queres? – perguntou ela, muito séria.
– Não propriamente – respondeu ele, a custo.
Miriam virou a cara para o lado. Depois, levantando-se com dignidade, encostou a cabeça dele ao peito dela e embalou-o mansamente. Se assim era, ela não o queria! Podia, por isso, confortá-lo. Passou-lhe os dedos pelo cabelo. A ela, restava-lhe a doce angústia do auto-sacrifício! A ele, o ódio e a vergonha de mais um fracasso. Para Paul era insuportável a ideia daquele seio tão quente que o embalava e se recusava a carregar o fardo que ele lhe entregava. Tão forte era o seu desejo de nela repousar, que aquele pretenso repouso apenas o torturava. Afastou-se.
– Queres então dizer que, sem casamento, nada feito? – perguntou ele.
Os lábios reviraram-se-lhe num esgar de sofrimento. Ela meteu o dedo na boca.
– Não – respondeu baixinho, como o repicar de um sino. – Acho que não. – O fim chegava assim para eles. Miriam não podia aceitá-lo e ao mesmo tempo libertá-lo da responsabilidade de se bastar a si próprio. Podia apenas sacrificar-se-lhe, diariamente, alegremente. Mas não era isso que ele queria. Queria que ela o abraçasse e dissesse, com alegria e autoridade: «Acaba com esse desassossego, essa obsessão da morte. Quero-te para meu companheiro.» Porém, faltavam-lhe as forças. Ou será que ela queria ter nele um Cristo e não um companheiro?
Paul sentia que, deixando-a, estava a defraudá-la. Mas também sabia que, ficando, abafando os seus impulsos mais recônditos, o homem desesperado que albergava no seu íntimo, estava a negar a sua própria vida. E jamais seria capaz de renunciar à sua própria vida pela vida dela.
Miriam estava sentada, muito calada. Ele acendeu um cigarro. O fumo elevou-se, ondulante. Paul pensou na mãe, já esquecido de Miriam. De repente, ela olhou para ele. O azedume voltara. Era então inútil o seu sacrifício! Ele continuava altivo, indiferente a ela. Subitamente, apercebeu-se da sua falta de religiosidade, de toda a sua instabilidade. Ele iria destruir-se como uma criança perversa. Pois bem, que se destruísse à vontade!
– Acho melhor ir andando – disse ela, suavemente.
Pelo tom, Paul percebeu que ela o desprezava. Levantou-se da cadeira sem dizer uma palavra.
– Eu acompanho-te – disse por fim.
Ela parou em frente ao espelho para colocar o chapéu. Sentia-se amargurada, indizivelmente amargurada, por ele ter rejeitado o seu sacrifício. A vida jazia morta à sua frente, como se todo o seu brilho tivesse esmorecido. Inclinou-se para as flores, as frésias, tão perfumadas e primaveris, e as anémonas escarlates e altaneiras, sobre a mesa. Era mesmo dele comprar flores assim.
Paul movimentava-se pela sala muito seguro de si, decidido, austero, silencioso. Miriam sabia que não podia vencê-lo. Ele escapar-se-lhe-ia entre os dedos como uma cobra. No entanto, sem ele, a sua vida arrastar-se-ia sem fulgor. Pensativa, tocou nas flores.
– Leva-as! – disse ele. E, tirando-as da jarra, levou-as a pingar para a cozinha. Ela esperou que ele voltasse, agarrou nas flores e saíram os dois, ele a conversar, ela sentindo-se morrer.
Miriam saía agora da vida dele. Vergada à infelicidade, encostou-se a ele quando se sentaram no eléctrico. Paul não reagiu. Para onde iria ele agora, que fim o aguardaria? Era-lhe insuportável aquele vazio de sentimento onde ele deveria estar. Era tão tolo, tão destrutivo, sem nunca conseguir encontrar paz. E, agora, para onde iria? Que lhe importava desperdiçar assim o amor dela? Não tinha religião, só lhe interessava a atracção do momento, nada mais, nada de mais profundo. Pois muito bem, ela ficaria à espera, a aguardar os acontecimentos. Quando ele se fartasse, acabaria por ceder e voltaria para ela.
Paul despediu-se com um aperto de mão e deixou-a à porta de casa da prima. Quando virou costas e se afastou, sentiu quebrar-se o último elo que o prendia. Sentado no eléctrico, olhou a cidade, que se estendia para lá dos carris, numa névoa de luzes. E, para lá da cidade, o campo, pontilhado de luzes de outras cidades... e o mar... e a noite... um nunca mais acabar! E ele sem ter para onde ir. Onde quer que estivesse, era sozinho que estava. Do seu peito, da sua boca, brotava o espaço sem fim... estava ali, atrás dele, em toda a parte. As pessoas que cruzavam as ruas apressadas não perturbavam o vazio em que se encontrava. Não passavam de sombras. Ouvia-lhes os passos e as vozes, mas havia em cada uma a mesma noite, o mesmíssimo silêncio. Paul saiu do eléctrico. No campo, o silêncio era mortal. As estrelas brilhavam no alto, salpicando as águas da enchente e criando um firmamento cá em baixo. Por toda a parte se estendia a vastidão da noite tenebrosa que o dia apenas interrompe e perturba por instantes, mas que logo volta para ficar, eternamente, tudo envolvendo no silêncio e na penumbra da vida. O Tempo não existia, apenas Espaço. Quem poderia dizer que a mãe tinha vivido e agora já não vivia? Tinha habitado um lugar e agora habitava outro, era tudo. E a alma dele não podia abandoná-la, onde quer que ela estivesse. Tinha partido rumo à noite e ele continuava com ela. Os dois, unidos para sempre. Porém, o seu corpo existia, e o seu peito, encostado à cerca, e as mãos, apoiadas no barrote. E isso era alguma coisa. Onde estava... o que era? Ínfima partícula de carne, erecta, mais insignificante que uma espiga de trigo perdida numa seara. Para ele, a ideia era insuportável. O silêncio imenso e tenebroso parecia esmagá-lo de um e outro lado, extinguindo-o qual minúscula centelha, um quase nada, que, todavia, não poderia ser extinta. As trevas, onde todas as coisas se perdem, estendiam-se para lá das estrelas e do sol. As estrelas e o sol, grãos esparsos e cintilantes, giravam em rodopios de terror abraçados uns aos outros nas trevas que os transcendiam, abandonando-os no espaço, minúsculos e atemorizados. O infinito, e ele próprio infinitesimal, no fundo nada, e todavia sem o ser.
– Mãe! – gemeu ele. – Mãe!
Era ela a única coisa que o sustinha no meio de tudo isto. Mas ela partira, dissipara-se! E Paul queria que ela o tocasse, que o levasse com ela.
Mas não, não cederia à tentação. Virando-se bruscamente, caminhou em direcção à fosforescência dourada da cidade. Os punhos iam cerrados, os lábios estavam crispados. Não, não seguiria em direcção às trevas para ir ao encontro dela. E, em passo rápido, caminhou rumo ao zumbido distante da cidade iluminada.
D.H. Lawrence
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