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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FILHOS E AMANTES
FILHOS E AMANTES

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.


CONTINUA

O relógio bateu a uma hora. E o jogo continuava. Mrs. Radford já tinha dado todas as voltas necessárias antes de ir para a cama, já tinha fechado a porta à chave e deitado água na chaleira. E Paul continuava a baralhar e a contar as cartas. Estava obcecado pelo colo e pelos braços de Clara. Podia até ver onde os seios começavam a apartar-se. Não era capaz de sair de junto dela. Ela olhava para as mãos dele e via as articulações derreterem-se a cada movimento rápido. Estava tão próxima; era quase como se ele lhe tocasse... mas não exactamente. Ele estava ao rubro. Detestava Mrs. Radford. Continuava ali sentada, a cair de sono, mas determinada e persistente, sem sair da sua cadeira. Paul olhou para ela pelo canto do olho, e depois para Clara. Os olhos dela encontraram os dele, zangados, trocistas, duros como aço. Os dela responderam-lhe, envergonhados. Paul sabia que ela estava do seu lado. E continuou a jogar.

Por fim, Mrs. Radford espevitou, pôs-se muito direita e disse.

– Não acham que já são horas de vocês dois começarem a pensar em ir dormir?

Paul continuou a jogar sem responder. Tinha-lhe tanto ódio que estava capaz de a matar.

– É só meio minuto – disse ele.

A velha senhora levantou-se e arrastou-se até à copa, voltando com uma palmatória, que colocou sobre a chaminé. Depois, sentou-se outra vez. O ódio que ele sentia corria-lhe tão fundo nas veias que até deixou cair as cartas.

– Pronto, vamos terminar – disse ele, mas a sua voz era um desafio.

Clara viu-o crispar os lábios e olhar de novo para ela de fugida. Parecia um olhar combinado. Ela debruçou-se sobre as cartas, tossicando, para apurar a garganta.

– Ainda bem que já terminaram – disse Mrs. Radford. – Tome lá... aqui tem as suas coisas. – E deu-lhe o pijama. – Esta é a sua palmatória. O seu quarto é mesmo por cima da cozinha... Só há dois... num tem nada que saber. Bem... boa noite... durma bem.

– Disso não tenho a menor dúvida... durmo sempre muito bem – disse ele.

– Inda bem... e na sua idade bem precisa – respondeu ela.

Paul deu as boas-noites a Clara e foi para cima. As escadas de caracol em madeira branca, bem lavada, rangiam e estalavam a cada passo. Paul subiu com determinação. As duas portas ficavam frente a frente. Entrou no seu quarto e encostou a porta, sem a fechar à chave.

Era um quarto pequeno com uma cama muito grande. Alguns ganchos de Clara estavam espalhados sobre o toucador e a escova do cabelo também; as suas roupas e algumas saias estavam penduradas a um canto, por detrás de uma cortina. Havia também um par de meias nas costas de uma cadeira. Paul explorou o quarto. Dois dos seus livros lá estavam na estante. Despiu-se, dobrou o fato e sentou-se na cama, à escuta. Depois apagou a vela, deitou-se e passados dois minutos estava quase a dormir. Mas, de repente, zás!... estava de olho aberto, espertinado e a contorcer-se de agonia. Era como se, quando estava prestes a adormecer, alguma coisa o tivesse atingido de chofre, enlouquecendo-o. Sentou-se na cama e olhou o quarto às escuras. Apercebeu-se então de um par de meias de vidro nas costas de uma cadeira. Levantou-se sem ruído e calçou-as, sentando-se na cadeira, imóvel, sabendo que tinha de a possuir. Depois, sentou-se na cama, erecto, com os pés dobrados sob o corpo, perfeitamente imóvel, à escuta. Ouviu um gato lá fora... e, depois, a voz de Clara dizer distintamente:

– Desabotoa-me o vestido, mãe?

Tudo ficou em silêncio por algum tempo. Por fim a mãe disse:

– Então... num vens para cima?

– Não... ainda não – respondeu a filha, calmamente.

– Então está bem! Fica mais um bocado, se achas que ’inda num é tarde. Mas depois num m’acordes quando eu já estiver a dormir.

– Não me demoro nada – disse Clara.

Logo a seguir, Paul ouviu a mãe subir as escadas devagar. A luz da vela luziu por entre as frinchas da porta, e o seu coração deu um salto. Depois, tudo ficou escuro e ouviu o trinco a fechar-se na porta do quarto dela. Os preparativos antes de se meter na cama estavam a demorar muito, na verdade. Até que, ao fim de bastante tempo, tudo ficou em silêncio. Ele continuava sentado na cama, a tremer ligeiramente. A porta do quarto estava entreaberta. Quando Clara subisse, saía-lhe ao caminho. Ficou à espera. O silêncio era sepulcral. O relógio bateu as duas horas. Nisto, ouviu um leve raspar no guarda-fogo, lá em baixo. Não aguentou mais. Já não conseguia controlar a tremura. Tinha de ir, ou morria ali mesmo.

Saltou da cama e quedou-se por um momento, a tremer. Depois foi direito à porta. Tentava não fazer qualquer ruído. O primeiro degrau estalou como um tiro. Paul ficou à escuta. A velha senhora mexeu-se na cama. As escadas eram escuras, mas entrava uma nesga de luz por baixo da porta que dava para a cozinha. Ele aguardou um instante. Depois continuou, mecanicamente. Degrau que pisava, degrau que rangia, e ele encolhia-se, temendo que a mulher abrisse a porta lá em cima, mesmo por detrás das suas costas. Tacteou a porta ao fundo das escadas. O fecho saltou com um sonoro estalido. Entrou na cozinha e fechou a porta com força. A mulher não se atreveria a vir agora cá abaixo.

Estacou, boquiaberto. Clara estava nua, ajoelhada no tapete da lareira sobre um monte de roupa interior toda branca, de costas para ele, a aquecer-se. Não se virou para trás, mas sentou-se nos calcanhares, com as costas arredondadas, muito belas, voltadas para ele, e a cara escondida. Aquecia o corpo ao lume, para se consolar. O clarão era rosáceo de um dos lados, e a sombra projectava-se escura e cálida do outro. Os seus braços estavam lânguidos, pendentes.

Ele tremia violentamente, cerrando os dentes e os punhos para se controlar. Depois, avançou para ela. Pousou-lhe uma mão no ombro, segurou-lhe o queixo com os dedos da outra mão, e levantou-lhe a cabeça. Um arrepio fê-la estremecer, convulsa, uma, duas vezes, ao toque das suas mãos. A cabeça continuava curvada.

– Desculpa! – murmurou ele, percebendo que tinha as mãos muito frias. Então, ela olhou para ele assustada, como alguém que teme a morte.

– Tenho as mãos tão frias – murmurou ele.

– Gosto assim – sussurrou ela, fechando os olhos. O sopro das suas palavras tocou a boca dele. Os braços dela enlaçaram-lhe os joelhos. O cordão das calças do pijama batia-lhe no corpo, fazendo-a estremecer. Pouco a pouco, e à medida que o calor invadia, as tremuras abrandaram.

Passado algum tempo, e não podendo já continuar naquela posição, ele ajudou-a a levantar-se e ela afundou a cabeça no seu ombro. As mãos dele percorreram-na devagar, numa carícia terna e infinita. Ela colava-se a ele, tentando esconder-se no seu corpo. Ele apertava-a com força. Por fim, ela olhou para ele, muda, suplicante, não sabendo se devia estar envergonhada.

Os olhos dele eram escuros, muito profundos e calmos. Era como se a beleza dela e o facto de ele a possuir o magoassem e entristecessem. Paul olhava para ela com a dor estampada nos olhos, e tinha medo. Estava ali à mercê dela. Ela beijou-lhe os olhos com fervor, primeiro um, depois o outro, e abandonou-se nos seus braços, entregando-se-lhe. Ele apertou-a com força contra o peito e foram momentos intensos, quase de agonia.

Depois ele soltou-a e o seu sangue pôde enfim correr liberto. Olhava para ela e via-a tão bela e tão desejável que tinha de morder o lábio e as lágrimas vinham-lhe aos olhos. O primeiro beijo que lhe deu nos seios fê-lo perder o fôlego de medo. O temor imenso, a imensa humildade e o terrível desejo eram quase insuportáveis. Os seios dela eram pesados. Ele segurava um em cada mão, como grandes frutos em taças, e beijava-os temeroso. Tinha medo de olhar para ela. As mãos dele viajavam pelo corpo dela, suaves, selectivas, receosas, plenas de adoração. De repente, reparou nos joelhos e deixou-se cair, beijando-os apaixonadamente. Ela estremeceu. E, depois, sentindo os dedos dele fincados nas suas ancas, estremeceu ainda uma outra vez. Ela estava de pé, deixando-o adorá-la e estremecer de felicidade por ela. Sarava-lhe o orgulho ferido. Sarava-a e enchia-a de alegria. Fazia-a sentir-se de novo inteira e orgulhosa em toda a sua nudez. O seu orgulho fora amarfanhado, tinha sido humilhada. Mas, agora, estava outra vez radiante de alegria e orgulhosa. Era a sua restauração e a sua recompensa.

E, então, enquanto ela o contemplava empenhado no seu serviço de adoração, ele ergueu para ela um rosto pleno de felicidade. Sorriram um para o outro e ele apertou-a ainda mais. Os segundos escoavam-se, passavam os minutos, e continuavam os dois abraçados e rígidos, uma boca colada à outra, como uma estátua num bloco único.

Mas logo os dedos dele tactearam ávidos o corpo dela, inquietos, perdidos, insatisfeitos. O sangue alvoroçava-se quente em vagas sucessivas. Ela pousou a cabeça no seu ombro.

– Vem tu para o meu quarto – murmurou ele.

Ela olhou para ele e abanou a cabeça, fazendo beicinho, desconsolada, com os olhos inundados de paixão. Ele fitou-a intensamente.

– Vem! – insistiu ele.

E, de novo, ela abanou a cabeça.

– Porquê? – perguntou ele.

Ela olhou para ele, ainda com gravidade, com tristeza, e voltou a abanar a cabeça. O olhar dele endureceu, e ele desistiu.

Quando mais tarde já estava deitado, perguntou-se porque seria que ela se tinha recusado a vir ter com ele abertamente, para a mãe ficar a saber. Assim, pelo menos, as coisas seriam definitivas. E ela bem podia ter passado a noite com ele, sem ter de ir, como fora, para a cama da mãe. Era estranho e ele não entendia. Depois, quase em seguida, adormeceu.

Acordou já de manhã, com alguém a falar com ele. Abriu os olhos e viu Mrs. Radford, grande e imponente, a olhar para ele lá de cima, com uma chávena de chá na mão.

– Julga que vai ficar a dormir até ao Dia do Juízo Final? – disse ela. Paul riu-se.

– Ainda deviam ser só cinco horas – disse ele.

– Pois é – respondeu ela – mas já são sete e meia, quer queira, quer não. Tome, trouxe-lhe uma chávena de chá.

Paul coçou o nariz, cofiou o bigode castanho, afastou uma melena da testa e despertou.

– Não sei para que é tanta pressa – resmungou.

Ele ficava aborrecido quando o acordavam. Ela estava divertidíssima. Lobrigou-lhe o pescoço por baixo do casaco de flanela do pijama, branco e roliço como o duma rapariga. Paul coçava a cabeça, zangado.

– Num lh’adianta nada coçar a cabeça – disse ela. – Num fica mais cedo por isso. Vá, pegue. Quanto tempo acha qu’eu vou ficar aqui à espera de chávena na mão?

– Ora... quero lá saber da chávena! – disse ele.

– Devia ter-se deitado mais cedo – disse a mulher.

Ele fitou-a com descaramento.

– Deitei-me mais cedo do que a senhora – disse Paul.

– Sim, meu filho! Atão não deitou! – exclamou ela.

– Que luxo – disse ele, mexendo o chá. – Virem trazer-me o chá à cama. A minha mãe vai achar que fico estragado de mimo para o resto da vida.

– Ela nunca lhe faz isto? – perguntou Mrs. Radford.

– Fugia mais depressa pela porta fora.

– Pois eu sempre estraguei a minha gente... Por isso é que eles num prestam – disse a velha senhora.

– Só tinha a Clara para estragar – disse Paul. – E Mr. Radford já está no céu. Por isso, só se é a senhora que não presta.

– Eu não sou má pessoa... sou é uma fraca – disse ela, saindo do quarto. – Sou uma tonta, isso é que eu sou.

Clara manteve-se muito calada durante o pequeno-almoço, mas Paul notou nela um certo ar de posse em relação a ele, que lhe agradava por de mais. Mrs. Radford gostava visivelmente dele. Paul começou a falar da sua pintura.

– O qu’é que lh’adianta – exclamou a mulher – tanto esforço e tanta preocupação e tanto trabalho e apego a essas tais pinturas? O qu’é que ganha com isso?... Sempre gostava de saber... Mais valia andar a divertir-se.

– Ah, mas é que... – exclamou Paul – o ano passado ganhei mais de trinta guinéus.

– A sério? Bom... isso já é alguma coisa, mas nada comparado co tempo que perde.

– E ainda me devem quatro libras. Um homem disse que me dava cinco libras, se eu o pintasse a ele, à mulher e ao cão, à porta de casa. E aí, eu pus lá as galinhas em vez do cão e ele ficou todo ofendido e tive de baixar uma libra no preço. Já estava farto daquilo e não gostava do cão... Mas acabei por pintar o quadro... Que hei-de fazer quando ele me pagar as quatro libras?

– Num sei, o senhor é que sabe o que fazer ao dinheiro – disse Mrs. Radford.

– Vou estoirar as quatro libras. Gostava de ir passar um ou dois dias à beira-mar?

– Quem?

– A senhora, a Clara e eu.

– O quê... co seu dinheiro? – exclamou ela, meio agastada.

– E porque não?

– Num lh’ia levar muito tempo a partir o pescoço numa corrida de obstáculos – disse ela.

– Desde que empregue bem o meu dinheiro...! Então, não quer vir?

– Não... combinem lá isso entre vocês.

– E não se importa? – perguntou ele, surpreso, mas contentíssimo.

– Façam como quiserem – disse Mrs. Radford – quer eu goste, quer não.


XIII

BAXTER DAWES
POUCO DEPOIS de ter ido ao teatro com Clara, estava Paul a tomar uma bebida no Punch Bowl com os amigos, quando entrou Dawes. O ma-rido de Clara estava a ficar mais gordo, as pálpebras começavam a cair flácidas sobre os olhos castanhos, e estava a perder a firmeza sadia das carnes. Era óbvio que entrara no declínio. Tendo-se zangado com a irmã, tivera de se sujeitar a pensões baratas. A amante trocara-o por um homem que queria casar com ela. Tinha passado uma noite na prisão por se ter envolvido numa briga depois de se ter embebedado, e andava ainda metido num negócio escuso de apostas.

Ele e Paul eram inimigos de longa data, e, no entanto, ligava-os uma certa cumplicidade, como se existisse entre os dois uma secreta afinidade, como às vezes acontece entre pessoas que nunca se falaram. Paul pensava muitas vezes em Baxter Dawes, muitas vezes lhe apetecia ir ter com ele e ficarem amigos. Sabia também que Dawes pensava nele muitas vezes, e que se sentia atraído por algo que os ligava. Não obstante, nunca olhavam um para o outro sem ser com hostilidade.

Como funcionário superior da Jordan, competia a Paul oferecer uma bebida a Dawes.

– Tomas alguma coisa? – perguntou Paul.

– Num tomo nada... c’um parasita da tua laia – respondeu o homem.

Paul virou-lhe as costas, com um leve encolher de ombros desdenhoso, muito irritante.

– A aristocracia – continuou Paul – é de facto uma instituição militar. Vejam a Alemanha. Tem milhares de aristocratas cujo único meio de subsistência é o exército. São uns pobretanas do diabo e a vida é uma monotonia desgraçada. Por isso só pensam na guerra. Vêem na guerra a oportunidade de evoluírem. Até rebentar uma guerra, não passam de uns zés-ninguém. Mas em tempo de guerra, são chefes e comandantes. Ora aí têm... o que eles querem é guerra.

Paul não era dos oradores mais apreciados na taberna, por ser demasiado rápido e autoritário. Os homens mais velhos irritavam-se com o seu ar convencido e seguro. Ouviam-no em silêncio, e ficavam contentes quando ele se calava.

Dawes interrompeu o discurso eloquente do jovem, para perguntar bem alto, acintosamente:

– Aprendestes isso tudo no teatro quando lá fostes outro dia?

Paul olhou para ele. Os seus olhos encontraram-se. Percebeu que Dawes o tinha visto sair do teatro com Clara.

– O que é que se passou no teatro? – perguntou um dos amigos de Paul, todo contente por poder meter o nariz na vida do rapaz e descobrir alguma coisa suculenta.

– Ora, era ele todo triques de smoking, na boa-vai-ela! – desferiu Dawes, espetando a cabeça desdenhosamente na direcção de Paul.

– Essa promete... – disse o amigo comum. – Com uma gaja e tudo?

– Com uma gaja e tudo, pois atão...! – disse Dawes.

– Vá... conta lá o resto – gritou o amigo comum.

– Já contei tudo – disse Dawes. – E cá pra mim o Morelly aproveitou-se bem.

– Estou banzado! – disse o amigo comum. – E a gaja era mesmo dessas?

– A gaja, caramba... se era!

– Como é que sabes?

– Ora – disse Dawes – porqu’acho qu’ele passou a noite...

Choveram gargalhadas à custa de Paul.

– Mas quem era ela, tu conhece-la? – perguntou o amigo comum.

– Sou capaz de conhecer – disse Dawes.

Nova explosão de gargalhadas.

– Então amanda lá co nome – disse o amigo comum.

Dawes abanou a cabeça, e bebeu uma golada de cerveja.

– É pr’admirar ele’inda num ter dito nada – disse ele. – Não tarda vai começar a gabar-se.

– Vá lá, Paul – disse o amigo. – Agora já está... o melhor é contares tudo.

– Contar o quê?... Que fui com uma amiga ao teatro?!

– Pronto, se foi tudo às direitas, podes dizer-nos quem ela era – disse o amigo.

– Ela era às direitas – disse Dawes.

Paul estava furioso. Dawes limpou os bigodes dourados com os dedos, escarninho.

– Rais ma partam...! Uma dessas! – disse o amigo comum. – Então, Paul, meu rapaz, estou pasmado contigo... E tu conhece-la, Baxter?

– Mais ou menos... topas?

E piscou o olho aos outros homens.

– Bem – disse Paul –, tenho de ir andando!

O amigo comum deitou-lhe a mão ao ombro e segurou-o.

– Nada disso – disse ele. – Não te escapas com essa facilidade, meu menino. Tens de nos fazer um relatório completo dessa história.

– O Dawes que o faça – disse Paul.

– Não devias esconder as tuas proezas, homem – repontou o amigo.

E foi então que Dawes fez um comentário que levou Paul a atirar-lhe à cara metade da cerveja que tinha no copo.

– Oh, Mr. Morel! – gritou a empregada, tocando a campainha para chamar o homem da segurança, vulgo «enxota bêbados». Dawes cuspiu para o chão e atirou-se ao rapaz. Nesse momento, apareceu um rapagão moreno de mangas arregaçadas e calças muito justas nas nádegas, que os apartou.

– Então! – disse ele, metendo a peitaça à cara de Dawes.

– Anda lá pra fora, meu paneleiro! – gritou Dawes.

Paul estava encostado ao varão do balcão, lívido e a tremer. Odiava Dawes e só desejava que um raio o fulminasse naquele preciso instante. E, ao mesmo tempo, achava-o patético, com os cabelos todos molhados caídos sobre a testa. Paul não se mexeu.

– Anda lá pra fora... meu... – disse Dawes.

– Já chega, Dawes – gritou a empregada.

– Vamos lá – disse o «enxota-bêbados» com afável determinação. – O melhor é ir andando.

E, fazendo Dawes recuar, empurrou-o até à porta.

– Aquele é o paneleiro que começou tudo! – gritou Dawes, meio acobardado, apontando para Paul Morel.

– Mas que grande mentira, Mr. Dawes! – disse a criada. – Sabe bem que foi o senhor quem começou.

O «enxota-bêbados» continuava a espetar o peito diante dele e ele a recuar, até chegar à porta e aos degraus exteriores. Nessa altura voltou-se.

– Deixa estar... – disse ele, meneando a cabeça na direcção do rival.

Paul sentia pelo homem um estranho sentimento de piedade, quase de afeição, misturado com ódio e violência. A porta colorida baloiçou. Na taberna fez-se silêncio.

– É muito bem feito – disse a criada.

– Mas é horrível apanhar com um copo de cerveja nos olhos – disse o amigo comum.

– Pois eu digo-lhe que fiquei bem contente – disse a criada.

– Quer outra cerveja, Mr. Morel? – E levantou o copo de Paul, expectante. Ele assentiu.

– É um homem que não tem medo de nada, este Baxter Dawes – disse um.

– Pff!... Ai é? – disse a criada. – É mas é um desbocado, isso é qu’ele é, e esses nunca valem grande coisa... Mostrem-me um falinhas mansas, e então sim, têm o diabo.

– Bem, Paul, meu rapaz – disse o amigo. – Vais ter de tomar cuidado por uns tempos.

– Só tem de não lhe dar oportunidades, é tudo – disse a criada.

– Jogas boxe? – perguntou um amigo.

– Nem um bocadinho – respondeu Paul, ainda muito branco.

– Posso dar-te uma ou duas lições – disse o amigo.

– Obrigado... não tenho tempo. – E saiu.

– Vá com ele, Mr. Jenkinson – disse baixinho a criada, piscando o olho a Mr. Jenkinson. O homem aquiesceu, pegou no chapéu, disse um caloroso «Boa noite a todos!» e foi atrás de Paul, chamando:

– Espera aí, meu velho. Acho que tu e eu vamos pelo mesmo caminho.

– Mr. Morel não gosta destas coisas – disse a criada. – Vão ver, não vai aparecer por cá muito mais vezes... Tenho pena, é uma boa companhia. O qu’o Baxter Dawes tá a pedir é qu’o metam na cadeia, olá se tá.

Paul preferia morrer a que a mãe viesse a saber deste incidente. Sofria a tortura da humilhação e do complexo de culpa. Havia uma boa parte da sua vida que ele não podia de maneira nenhuma contar à mãe, uma vida que vivia aparte dela – a sua vida sexual. O resto ainda era dela. Mas sentia que tinha de lhe esconder algumas coisas, e isso aborrecia-o. Havia entre eles um certo silêncio, e Paul sentia que tinha de se defender dela com esse silêncio. Sentia-se condenado por ela. Às vezes, odiava-a, e tentava libertar-se. A sua vida queria libertar-se dela. Era como um círculo onde a vida retornava sobre si mesma, e não avançava. Ela gerara-o, amava-o, cuidava dele, e o seu amor voltava para dentro dela, para que ele não pudesse dar livre curso à sua vida, ou mesmo amar outra mulher. Nesta altura, se bem que inconscientemente, Paul rejeitava a influência da mãe. Não lhe contava certas coisas, criara-se entre eles uma certa distância.

Clara era feliz, estava quase segura do seu amor. Sentia que finalmente o tinha só para si. Mas logo era assaltada pela incerteza. Ele contou-lhe em ar de brincadeira o incidente com o marido. As faces afoguearam-se-lhe, os seus olhos cinzentos faiscaram.

– É ele por uma pena – gritou ela. – Um arruaceiro! Não serve para conviver com gente decente.

– Mas tu casaste com ele – disse Paul. Ela ficou furiosa de ele lho lembrar.

– Pois casei! – exclamou. – Mas como é que eu podia adivinhar?

– Eu acho que ele é capaz de já ter sido bem simpático.

– E achas que fui eu que o transformei no que ele é hoje?

– Não! Foi ele que se transformou. Mas há nele qualquer coisa...

Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer.

– E que vais tu fazer? – perguntou ela.

– Fazer como?

– Contra o Baxter.

– Não há nada a fazer, não te parece? – respondeu ele.

– Se for mesmo preciso, chegas bem para ele – disse ela.

– Não... Não tenho a menor queda para a pancadaria... Tem graça... a maior parte dos homens tem o instinto de cerrar os punhos e bater. Mas comigo, não. Se quisesse lutar ia precisar de uma faca ou uma pistola, ou coisa assim.

– Então o melhor é passares a trazer qualquer coisa – disse ela.

– Não – disse ele a rir. – Não sou nenhum rufia.

– Mas ele vai fazer-te alguma... Tu não o conheces.

– Pronto – disse Paul. – Veremos.

– E vais deixá-lo?

– Talvez... se não puder fazer nada.

– E se ele te mata? – disse ela.

– Era uma pena, por ele e por mim.

Clara ficou calada por instantes.

– Consegues mesmo irritar-me – exclamou ela.

– Isso já não é novidade – disse ele, rindo.

– Mas porque hás-de ser tão pateta? Tu não o conheces...

– Nem quero conhecer.

– Sim, está bem... mas não vais deixar um homem fazer-te o que bem quiser...

– O que é que eu posso fazer? – respondeu Paul, sempre a rir.

– Eu cá andava com um revólver – disse ela. – Garanto-te que ele é perigoso.

– Ainda dava um tiro nos dedos – disse ele.

– Não davas nada... Então? – suplicou ela.

– Não.

– Nem outra coisa qualquer?

– Não.

– E vais deixar que ele...?

– Vou.

– És mesmo parvo!

– Certíssimo!

Clara cerrou os dentes de raiva.

– Estou capaz de te bater – gritou ela, tremente de paixão.

– Porquê?

– Deixares que um homem como ele te faça o que lhe apetece!

– Se ele sair vitorioso... podes voltar para ele – disse ele.

– Vê lá se queres que eu te odeie? – disse ela.

– Bem... estava apenas a falar – disse ele.

– E dizes tu que me amas! – exclamou ela, baixando a voz, indignada.

– Vou ter de o matar para te agradar? – disse Paul. – Mas, se o matasse, então é que ele me tramava mesmo.

– Julgas que sou parva? – exclamou ela.

– De maneira nenhuma. Mas não me compreendes, minha querida.

Fez-se uma pausa.

– Mas tu não te devias expor... – disse ela, quase implorando. Ele encolheu os ombros.


«Homem de justiça afivelada,

Puro, honrado e são de vida,

Não quer de Toledo a espada,

Nem aljava de veneno fornecida...»,


recitou Paul.

Ela olhou para ele, inquisitiva.

– Quem me dera compreender-te – disse ela.

– Simplesmente, não há nada para compreender – disse ele a rir.

Ela ficou cabisbaixa, pensativa.

Paul não viu Dawes durante vários dias. Até que, uma manhã, quando subia a escada vindo do departamento Espiral, quase chocou com o corpulento ferreiro.

– Mas que...! – gritou o ferreiro. – Desculpe! – disse Paul, e seguiu em frente.

– Desculpe! – arremedou-o Dawes.

Paul pôs-se a assobiar baixinho: «Ponham-me entre as raparigas.»

– Já te acabo com o assobio, meu menino! – disse ele. O outro não respondeu.

– Vais pagar por aquilo que me fizeste na outra noite.

Paul dirigiu-se para o seu canto, sentou-se à secretária e começou a virar as folhas do livro de registos.

– Vai dizer à Fanny que quero a encomenda 097, rápido – disse ele para o moço de recados.

Dawes estava entre portas, alto e ameaçador, olhando para o alto da cabeça do jovem.

– ... Seis e cinco onze e sete é um mais seis... – continuou Paul, em voz alta.

– Tás a ouvir, ou quê? – disse Dawes.

– Cinco xelins e nove dinheiros! – E Paul escreveu um número. – Mas que vem a ser isto? – disse.

– Eu já te digo o qu’isto é – disse o ferreiro.

O outro continuou a somar em voz alta.

– És mesmo um cobardolas, um filho da puta... Num tens coragem pra m’enfrentares.

Num ápice, Paul deitou a mão à pesada régua. Dawes deu um salto. O jovem traçou algumas linhas no livro de registos. O outro ficou completamente fora de si.

– Espera só até eu te pôr as mãos em cima... onde, não interessa... arranco-te o coiro, meu g’anda javardo!

– Quando quiseres – disse Paul.

Ao ouvir isto, o ferreiro transpôs a porta e avançou pesadamente. Nesse preciso instante, soou um apito estridente. Paul dirigiu-se ao intercomunicador.

– Sim! – disse ele, passando à escuta.

– Hum... sim! – Continuou a ouvir e deu uma gargalhada.

– Vou já para baixo... Neste momento tenho aqui uma visita. Dawes percebeu pelo tom que ele estava a falar com Clara.

Deu um passo em frente.

– Meu g’anda manhoso! Eu já te dou a visita. Julgas que te vou deixar andar por aí a dares-te ares?

Os outros empregados do armazém levantaram a cabeça. O moço de recados de Paul chegou com uma coisa branca nas mãos.

– A Fanny diz que já lha podia ter mandado ontem à noite, se lhe tivesse dito.

– Está bem – disse Paul, olhando para a meia. – Trata de a despachares.

Dawes estava frustrado, impotente de raiva. Morel virou-se para trás.

– Com licença – disse ele a Dawes, começando a descer as escadas.

– Vou pôr-te travão nesse galope, caraças! – berrou o ferreiro, agarrando-o por um braço. Paul virou-se de repente para trás.

– Eh!... Eh! – gritou o moço de recados, assustado.

Thomas Jordan saiu de rompante do gabinete envidraçado e correu pelo armazém fora.

– O que foi, o que foi? – dizia ele, com aquela voz de cana rachada, já de velho.

– Sou só eu que vou tratar da saúde a este filho da mãe, mai nada – disse Dawes, em desespero.

– E o que é que queres dizer com isso? – perguntou Jordan, ríspido.

– Exactamente isso – disse Dawes. Mas conteve-se. Morel estava encostado ao balcão, envergonhado, de cara à banda. – Mas que vem a ser isto? – disse Thomas Jordan, ríspido.

– Não faço ideia – disse Paul, abanando a cabeça e encolhendo os ombros.

– Não fazes... ah, não fazes! – gritou Dawes, espetando ameaçadoramente a cara bem talhada e furiosa, e cerrando o punho.

– Já terminaste? – gritou o velho, a gaguejar. – Vai à tua vida e não voltes a aparecer por aqui já tocado logo de manhã.

Dawes inclinou o corpanzil lentamente para Jordan.

– Tocado! – disse. – Quem é que está tocado? Eu não estou mais tocado do que você.

– Essa já não é nova – respondeu o velho. – Vá, vai-te embora, e depressa... Vires para aqui fazer desmandos!

O ferreiro olhou com desprezo para o patrão. As suas mãos, grandes e enfarruscadas, mas bem talhadas para o seu mister, contorciam-se sem parar. Paul lembrou-se de que eram as mãos do marido de Clara, e um lampejo de ódio fulminou-o.

– Sai daqui antes que te ponham lá fora – disse Jordan, autoritário.

– Essa agora, quem é que me põe lá fora, seu paneleirote bafiento? – disse Dawes, rindo cinicamente.

Mr. Jordan deu um salto, avançou para o ferreiro a gesticular, mandando-o embora, empertigando o corpo atarracado e dizendo:

– Sai já da minha casa... põe-te na rua!

E, agarrando-se ao braço de Dawes, deu-lhe um safanão.

– Largue-me! – disse o ferreiro e, com uma valente cotovelada, atirou o pequeno industrial às arrecuas. Antes que alguém tivesse tempo para o agarrar, Thomas Jordan foi de encontro à frágil porta de batente, que deu de si, tendo o homem rebolado pelos degraus abaixo até se estatelar na sala de Fanny. Houve um segundo de estupefacção. Depois, homens e mulheres precipitaram-se para ele. Dawes ficou por uns instantes a contemplar a cena, e saiu.

Thomas Jordan estava combalido e com nódoas negras, mas sem lesões graves. Estava, no entanto, completamente fora de si. Despediu Dawes e processou-o por agressão.

No julgamento, Paul Morel teve de prestar testemunho. Quando lhe perguntaram como tudo tinha começado, respondeu:

– Dawes aproveitou certa ocasião para insultar Mrs. Dawes, e a mim também, por eu ter ido com ela uma noite ao teatro. Em seguida, eu atirei-lhe à cara com um copo de cerveja, e ele quis vingar-se.

– Cherchez la femme! – disse o juiz, com um sorriso.

O caso foi encerrado depois de o juiz ter dito a Dawes que o considerava um homem sem carácter.

– Estragaste tudo – ripostou Mr. Jordan.

– Não sou da mesma opinião – disse Paul. – Além disso, o senhor não queria mesmo vê-lo condenado, pois não?

– Então porque é que julgas que meti o caso em tribunal?

– Bem, nesse caso peço desculpa se disse o que não devia. Clara também ficou furiosa.

– Porque é que o meu nome tinha de ser arrastado para esta história?

– Mais vale dizê-lo abertamente do que deixar as pessoas andarem por aí a cochichar.

– Nada disto precisava de ter acontecido – disse ela categórica.

– Não ficámos mais pobres por isso – disse ele com indiferença.

– Tu talvez não... – retorquiu ela.

– E tu...? – perguntou ele.

– O meu nome não precisava nada de ter sido mencionado.

– Desculpa – disse ele. Mas não parecia nada arrependido. «Isto passa-lhe», pensou Paul. E de facto passou.

Paul contou à mãe o trambolhão de Mr. Jordan e o julgamento de Dawes, e Mrs. Morel ouviu-o com atenção sem tirar os olhos dele.

– E tu, o que pensas disto tudo?

– Acho que ele é um imbecil.

No entanto, parecia algo constrangido.

– Já pensaste como tudo isto pode acabar? – disse a mãe.

– Não – respondeu ele. – As coisas resolvem-se por si.

– Pois resolvem, e geralmente nada a contento – observou a mãe.

– Não temos outro remédio senão contentarmo-nos.

– Vais descobrir que não és tão fácil de contentar como imaginas – disse ela.

Paul continuou a trabalhar no esboço.

– Pedes-lhe alguma vez a opinião a ela? – disse Mrs. Morel passado algum tempo.

– A respeito de quê?

– De ti... e de tudo o que se passou?

– Quero lá saber da opinião dela a meu respeito. Está loucamente apaixonada por mim, mas nada de muito profundo.

– Pelo menos, é tão profundo como os teus sentimentos por ela.

Paul levantou os olhos para a mãe, comprometido.

– Pois é, mãe – disse ele. – Deve haver alguma coisa errada comigo, porque não sou capaz de amar. Quando estou com ela, sinto geralmente que a amo. Em certas alturas, quando a vejo apenas como mulher, então sim, amo-a de verdade. Mas depois, quando ela se põe a falar e a criticar-me, a maior parte das vezes nem a oiço.

– Pois é, ela tem tão bom senso como a Miriam.

– Talvez. E gosto mais dela que da Miriam. Mas porque será que elas não me conseguem prender?

Esta última interrogação soou quase como um lamento. A mãe desviou a cara e ficou a olhar para o lado oposto da sala, muito calada, muito séria, numa atitude quase de renúncia.

– Mas tu não estás a pensar em casar com a Clara? – disse por fim.

– Não... a princípio talvez estivesse. Mas porque será que não quero casar com ela nem com mais ninguém? Às vezes sinto que faço mal às minhas mulheres, mãe.

– Fazes mal como, meu filho?

– Não sei...

E continuou a pintar sem alento. Tinha chegado ao cerne da questão.

– Quanto a pensares em casar – disse a mãe –, ainda tens muito tempo à tua frente.

– Não é isso, mãe. Eu até amo a Clara, e amei a Miriam. Mas dar-me a elas pelo casamento... não fui nem sou capaz. Não sou capaz de lhes pertencer. Elas parecem querer-me de verdade, e eu não consigo dar-me.

– Porque ainda não encontraste a mulher certa.

– Nem nunca vou encontrar enquanto a mãe for viva – disse ele. Ela ficou calada. E começou a sentir-se de novo cansada, como se estivesse prestes a soçobrar.

– Veremos, meu filho – respondeu.

A sensação de que as coisas andavam em círculos deixava-o como louco.

Clara estava na verdade apaixonadíssima por ele, e ele por ela, mas não passava de uma paixão. De dia, Paul poucas vezes se lembrava de que ela existia. Clara trabalhava no mesmo edifício, mas ele nem dava por isso. Andava muito ocupado e não pensava nela. Ela, porém, durante todo o tempo que passava na Espiral, sentia a presença dele lá em cima, a sua presença física no mesmo edifício, e esperava a todo o momento vê-lo entrar pela porta. Quando isso acontecia, o choque era enorme, mas ele demorava-se geralmente muito pouco e falava-lhe com secura. Dava-lhe ordens em tom profissional, mantendo-a à distância. E ela prestava-lhe a pouca atenção que ainda lhe restava, pois não se atrevia a cometer qualquer engano ou esquecimento. Era uma crueldade: ela queria sentir-lhe o peito, sabia exactamente qual a forma do seu peito por baixo do colete; queria tocar-lhe. Era de endoidecer ouvir a voz dele dando-lhe ordens mecanicamente. Queria romper com o fingimento, arrancar-lhe a camada de pretensa trivialidade que o cobria de dureza, e chegar ao homem. Mas tinha medo e, antes que pudesse sentir ao de leve que fosse o seu calor, já ele se tinha ido embora, deixando-a outra vez a sofrer.

Paul sabia que Clara ficava triste nas noites em que não o via, e dedicava-lhe por isso grande parte do seu tempo. Para ela, os dias eram frequentemente angustiantes, mas os fins de tarde e as noites eram geralmente para ambos uma bênção. Sentavam-se os dois muito calados lado a lado, horas a fio, ou passeavam na noite, balbuciando apenas algumas palavras escassas, quase sem sentido. Mas ele sentia a mão dela na sua, e o peito dela deixava no peito dele um calor morno que lhe dava uma sensação de plenitude.

Um dia, à tardinha, passeavam junto ao canal, e Paul mostrava-se preocupado. Ela percebeu que o pensamento dele não estava ali, pois ele não parava de assobiar baixinho para si próprio. Ela escutava-o, sentindo que ficaria a saber mais pelo assobio do que pelas palavras. Era uma melodia triste, descontente, uma melodia que lhe dizia que ele não ficaria com ela. Clara continuou a andar em silêncio. Quando chegaram à ponte suspensa, ele sentou-se na grande vara, fitando as estrelas reflectidas na água. Ele estava muito longe. Ela tinha vindo pensativa.

– Vais ficar para sempre na Jordan? – perguntou ela.

– Não – respondeu ele, sem pensar. – Não... vou sair de Nottingham e partir para o estrangeiro... dentro de pouco tempo.

– Para o estrangeiro... para quê?

– Não sei! Ando inquieto.

– Mas vais fazer o quê?

– Primeiro, vou ter de arranjar um emprego estável como desenhador e quem me venda os quadros – disse ele. – Pouco a pouco hei-de lá chegar, sei que hei-de.

– E quando é que achas que vais partir?

– Não sei. Enquanto a minha mãe for viva, nunca será por muito tempo.

– Não consegues deixá-la?

– Por muito tempo, não.

Clara contemplou as estrelas nas águas negras. Jaziam muito brancas e paradas, como olhos. Era uma agonia saber que ele a ia deixar. Mas também era quase uma agonia tê-lo junto de si.

– E, se ganhasses muito dinheiro, o que farias? – perguntou ela.

– Ia viver algures perto de Londres, numa casinha bonita, com a minha mãe.

– Estou a ver.

Seguiu-se uma longa pausa.

– Podia continuar a vir visitar-te – disse ele. – Não sei... Não me perguntes o que iria fazer... Não sei. – Fez-se silêncio. As estrelas brilharam trémulas e desfizeram-se na água. Levantara-se uma brisa. Ele aproximou-se dela de repente e pôs-lhe a mão no ombro.

– Não me faças perguntas sobre o futuro – disse Paul, muito triste. – Não sei nada de nada... Mas fica comigo agora, está bem, venha o que vier...

Ela abraçou-o. Afinal, era uma mulher casada e não tinha sequer direito ao que ele lhe dava. Ele precisava dela desesperadamente. Ela tinha-o nos seus braços e ele estava infeliz. Ela cobriu-o com o seu calor, consolou-o, amou-o. Ia deixar que aquele momento durasse para sempre.

Daí a pouco, Paul levantou a cabeça, como se quisesse dizer alguma coisa.

– Clara? – disse ele, a custo.

 


              CONTINUA

 

 

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