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FIM DE SEMANA COM A MORTE / Erle Stanley Gardner
FIM DE SEMANA COM A MORTE / Erle Stanley Gardner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FIM DE SEMANA COM A MORTE

 

O homem que andava de um lado para o outro no escritório de Bertha Cool encontrava-se perdido num tal êxtase de autocomiseração que quase nem deu por mim, quando entrei no aposento.

- Que louco fui! - lamentou-se. - O mal que isto vai fazer à minha mulher, à minha posição social, ao meu emprego! É terrível! É inacreditável! É...

- Mr. Allen - interrompeu-o Bertha Cool-, chegou Donald Lam.

Olhou-me, acenou com a cabeça e continuou a falar, sem se dirigir a ninguém em particular.

- Ao recordar o que aconteceu à luz do dia, parece absolutamente impossível que qualquer homem na posse das suas faculdades mentais fizesse semelhantes coisas. Devo ter sofrido de qualquer espécie de lapso mental, Mrs. Cool.

Bertha mexeu na cadeira giratória os seus setenta e cinco quilos e os diamantes do seu anel faiscaram, quando estendeu a mão esquerda e disse:

- Sente-se. Tire o peso de cima dos pés. Este é o sócio de que lhe falei, Donald Lam. Ele poderá ajudá-lo.

- Receio que ninguém me possa ajudar - redarguiu Mr. Allen. - A gordura está no lume. A...

- Mas que se passa, afinal? - indaguei, interrompendo o seu hino de lamentações.

- Uma imprudência que adquiriu proporções catastróficas e acabou por se transformar, agora, em algo que afectará toda a minha vida. Ora é isso precisamente que Dawn não tolerará.

- Quem é Dawn?- perguntei-lhe.

- A minha mulher.

- Sente-se, sente-se - insistiu Bertha Cool. - Pelo amor de Deus deixe de me gastar a carpete e conte ao Donald o que se passa. Ele não o poderá ajudar se o senhor não se explicar.

Allen sentou-se, mas parecia incapaz de afastar o pensamento do desastroso cataclismo que supunha estar prestes a desabar sobre ele.

- É tão impróprio de mim fazer este género de coisas que...

Bertha Cool voltou-se para mim e explicou:

- Levou uma marafona para um motel.

- Não, não, não! - escandalizou-se Mr. Allen. - Ela não era uma marafona. Pelo menos poupe-me isso, Mrs. Cool.

- Bem, o que era ela, então?

- É uma jovem senhora muito decente. Bem parecida, tolerante, desempoeirada, moderna em toda a acepção da palavra. Não é, nem por sombras, ordinária e não a julgo capaz de relacionar as suas... imprudências com uma transacção financeira.

- A que motel foram? - perguntei.

- Ao "Bide-a-wee-bit" - respondeu Bertha.

- Um daqueles que alugam quartos à hora?

- Meu Deus, não! -protestou Mr. Allen. - Trata-se de um hotel decente, de grande classe. Piscina, quartos excelentes, telefone em todos os quartos, serviço de mensageiro, televisão, ar condicionado central regulável individualmente, por termostato...

- Porque o escolheu?

- Foi ela que o sugeriu. Já lá estivera antes, numa convenção.

- Levou, portanto, a tal rapariga ao motel...

- Bem, não foi... não foi nada assim, Mr. Lam. Gostaria que tentasse compreender.

- Irra! - berrou Bertha Cool, impaciente. - Ele tenta compreender, mas você não o deixa!

- Fale-me da rapariga - pedi. - Como a conheceu? Há quanto tempo a conhecia?

- Conhecia-a havia meses.

- Intimamente?

- Não, não, não! Gostaria que tentasse compreender, Mr. Lam.

Bertha susteve a respiração, começou a dizer qualquer coisa, mas mudou de opinião. Os seus olhos brilhavam de aborrecimento.

Recomendei-lhe silêncio, com um gesto.

- Sharon-Miss Barker - é uma hospedeira de um salão de cocktails onde ocasionalmente tomo uma bebida.

- Hospedeira? Que quer dizer?

- Bem, uma espécie de criada-chefe... Instala as pessoas, reserva mesas, distribui as criadas, vê se os clientes são bem servidos, enfim, dirige o serviço.

- Muito bem. Levou-a, portanto, ao tal motel e, segundo julgo deduzir, foi apanhado.

- Não, Mr. Lam, o senhor não compreende. Não foi nada assim. Receio que... bem, receio que redunde tudo em graves complicações. Preciso de alguém que me tire o peso de cima dos ombros. Garanto-lhe que não cruzarei os braços e me resignarei sem lutar!

- Assim é que se fala - declarei. - Que tem em mente?

- Bem, preciso de alguém que...

- Acho melhor dizer-lhe o que aconteceu e como

- aconselhou-lhe Bertha Cool. - Depois poderá explicar como tenciona começar a lutar.

- Gosto de mulheres, Mr. Lam - confessou Allen.

- Não sou um libertino, mas aprecio profundamente o encanto feminino.

- Sharon é bonita? - inquiri.

- Maravilhosamente bonita! Séria, serena, competente e com um andar que tem...-como dizer? - ...que tem um certo...

- Saracoteio - rematou Bertha.

- Oh, não! Não se trata de saracoteio. É um balancear, um ritmo, uma espécie de ondular... Dir-se-ia que a pequena nada...

- Continue - pedi, interrompendo-lhe o devaneio.

- Bem, gosto de cumprimentar as mulheres acerca do seu aspecto. Quando me agrada uma mulher... Enfim, é a minha natureza, não posso resistir, Mr. Lam. Se uma mulher usa um vestido que a beneficia, ou um esquema

de cores que lhe fica bem... Enfim, não resisto à tentação de fazer um comentário a respeito.

- E a respeito da figura dela?

- Sim, também.

- E das pernas - acrescentou Bertha, secamente.

- Bem, reparo...-concordou Allen.

- Enfim, começou por cumprimentar Sharon Barker acerca da sua maneira de andar e...

- Não, não fui assim tão grosseiro! Gabei apenas o vestido que envergava e a maneira como se penteava. Sharon tem mãos bonitas, muito expressivas e de dedos compridos. Sabe usá-las tão maravilhosamente bem! Enfim, cumprimentei-a acerca de pequenos pormenores, disto e daquilo...

- E daquilo e daqueloutro... - troçou Bertha Cool.

- Uma coisa leva a outra, como sabe, e por fim ela sentava-se um bocadinho à minha mesa, riamo-nos um pouco e não havia mais nada.

- Mas acabaram num motel.

- Sim, nessa tal noite...

- Que aconteceu?

- Trabalhara até tarde, no escritório, e minha mulher fora passar o fim-de-semana a Reno, com a mãe, como é seu costume umas duas vezes por ano. Encontrava-me sem ter que fazer...

- E por isso resolveu ir até ao tal bar de cocktails.

- Sim.

- E era tarde?

- Era.

- E havia pouco movimento de fregueses?

- Sim, de certo modo.

- E Sharon foi sentar-se à sua mesa.

- Sim.

- E o senhor começou a falar-lhe do trabalho dela, das suas ambições e do seu aspecto e declarou-lhe que o lugar dela era no cinema. Depois falou-lhe na maneira como andava...

- Sim, sim, sim!-exclamou. - Como adivinhou tudo isso, Mr. Lam?

- Limito-me a seguir a sua deixa.

- Foi, de uma maneira geral, o que aconteceu, de facto. Fiquei a saber que ela só come depois de sair do trabalho...

- A que horas?

- Às onze da noite. Come umas coisitas leves, ao princípio da noite, e quando acaba o trabalho come uma boa refeição.

- Portanto, convidou-a para jantar consigo depois das onze da noite.

- Convidei.

- Aonde foram?

- A um restaurante especializado em goulash, um estabelecimento húngaro que ela conhecia.

- E onde a conheciam, também?

- Sim.

- Ao senhor, conheciam-no?

- Não.

- Já lá estivera antes?

- Não.

- Muito bem. Começou por levá-la de carro a casa...

- Ela tinha o seu carro.

- Quer dizer que foi cada um no seu carro?

- Não. Eu levara-a no meu ao restaurante e depois pusemo-nos a caminho de casa... isto é, metemo-nos no automóvel em direcção ao parque de estacionamento onde ela tinha o seu carro. Antes, porém, demos uma volta e fomos a Mulholland Drive, donde podíamos olhar para baixo e ver as luzes da cidade. Parei o carro e... bem, passei-lhe o braço pela cintura, ela aconchegou-se a mim, eu disse qualquer coisa e ela voltou-se e inclinou a cabeça para trás e... bem, beijei-a. Pareceu a coisa mais natural do mundo.

- E depois?

- Bem, durante um bocado não houve mais nada, mas depois beijámo-nos outra vez, começámos a beijar-nos a sério, e quando dei por mim, tornara-se difícil dominar-me. Sharon estivera a falar no tal motel "Bide-a-wee-bit", a dizer que era muito decente, e como não ficava longe dirigi-me para lá. Ela não protestou, quando parei, e... bem, de súbito compreendi que tinha de levar aquilo até ao fim.

- Registou-se?

- Sharon procedeu com muito tacto. Prontificou-se a proceder ao registo, se lhe desse dinheiro para pagar o quarto.

- Não mostrou relutância nenhuma em se inscreverem como marido e mulher?

- Não. Compreende, nessa altura estávamos... bem, só pensávamos um no outro. Ela entrou no motel e...

- Deu-lhe algum dinheiro?

- Dei.

- Quanto?

- Vinte dólares.

- Quanto era o quarto?

- Treze dólares.

- Ela entregou-lhe os sete dólares de troco?

- Com certeza. Meu Deus, Mr. Lam, gostava que encarasse este assunto da perspectiva adequada. Não houve nenhuma consideração financeira, isso teria tirado toda a beleza ao caso.

- Tento obter a perspectiva adequada - repliquei. - Que aconteceu depois?

- Que lhe parece, hem? - interveio Bertha Cool, sarcástica.

- Sharon voltou e informou-me de que dissera ao empregado da recepção que ela e o marido tinham vindo de automóvel de S. Francisco, estavam cansadíssimos e queriam um bom quarto sossegado, e que preenchera o registo sem dar azo a perguntas nem à mínima suspeita.

- Em que nome efectuou o registo?

- Charleton Blewett.

- Onde foi buscar esse nome?

- Bem, foi uma espécie de... enfim, esse caso do nome é só por si uma história. Explicou-me que ouvira o nome uma vez, se sentira impressionada e o relacionara com S. Francisco. Como dissera ao empregado que viéramos dessa cidade, o seu cérebro recordara-o maquinalmente e ela procedera ao registo em nome de Charleton Blewett.

- E a respeito do número de matrícula do automóvel? Geralmente pedem-nos, nos mótéis.

- Sharon resolveu esse pormenor com muita finura. Não pensara nisso, segundo me disse, e quando lhe devolveram a ficha e lhe chamaram a atenção para o facto de não ter preenchido o espaço destinado a essa indicação, pensou em inventar um número. Nesse momento, porém, olhou para fora, viu que estavam a arrumar um carro defronte do escritório... e copiou-lhe o número da licença, mudando apenas a letra!

- Quando se passou tudo isto?

- No sábado.

- Refere-se a este sábado, a anteontem?

- Refiro.

- Portanto, essa jovem procedeu à vossa inscrição e disse-lhe que o senhor passava a ser Mr. Charleton Blewett e ela Mrs. Charleton Blewett, procuraram o vosso quarto e que mais?

- Nós não procurámos o nosso quarto, conduziu-nos lá um mandarete.

- Seja, conduziu-os um mandarete e o senhor gratificou-o?

- Exactamente.

- Quanto lhe deu?

- Um dólar.

- Não levavam bagagem nenhuma?

- Não.

- O mandarete soube disso?

- Não. Disse-lhe que tiraria pessoalmente a bagagem da mala, que desejávamos apenas que nos mostrasse onde era o nosso quarto.

- E acha que o convenceu com essa explicação?

- Bem, ele pelo menos não deu mostras de considerar o procedimento invulgar.

- É natural - comentei. - Continue, que aconteceu depois? Instalaram-se no motel e presumo que foram apanhados de qualquer maneira?

- Não, não fomos. Mas... Oh, isto é terrível! Esta história vai ser a minha ruína! Isto...

- Cale-se - ordenou Bertha Cool. - Deixe-se de lamentações e explique ao Donald o que pretende. Passe aos factos, com a breca!

- Bem, Mr. Lam, quero que seja Mr. Blewett.

- Um momento! - exclamei, surpreendida. - Quer que eu seja Mr. Blewett?

- Sim.

- Como?

- Desejo que vá lá com Sharon e seja Mr. Blewett.

- Que eu vá lá com Sharon Barker?

- Sim.

- Quando?

- Esta noite. O mais depressa possível.

- Que diz ela a esse respeito?

- É boa rapariga e compreende a situação em que me encontro. Cooperará.

- E qual é, ao certo, a situação em que se encontra?

- É uma história estranha... Compreende, Mr. Lam, na realidade, nada aconteceu no motel.

- Nada aconteceu? Que quer dizer?

- Começámos a discutir...

- Acerca de quê?

- Para lhe dizer a verdade, não sei. Cometera o erro de levar uma garrafa de uísque e de pedir que levassem ao quarto água gasosa. Começámos a beber e eu comecei... bem, comecei a apalpar, para usar o termo que ela empregou. Não sei porquê, não teve o efeito que tivera no carro. Não era natural nem espontâneo e, enfim, não pareceu adequado. Sharon disse que detestava que lhe tocassem, que não era nenhuma puritana em questões de sexo, desde que fosse franco e simples, mas que aquela história das apalpadelas a irritava. Acabou por me esbofetear, eu enfureci-me e ela levantou-se e saiu. Esperei que regressasse, mas não regressou e vim a saber, depois, que chamara um táxi e fora para casa.

- Que fez, então?

- Esperei um bocado e creio que adormeci. Depois senti-me furioso, meti-me no automóvel e fui para casa.

- Então porque está tão inquieto?

- O assassínio.

- Que assassínio?

Foi Bertha Cool quem me respondeu:

- Passou-se tudo no último sábado, na noite em que Ronley Fisher foi assassinado.

- O tipo a quem deram uma pancada na cabeça e atiraram para dentro da piscina? - inquiri.

Bertha acenou afirmativamente.

Pensei, um momento, antes de perguntar:

- Foi num motel algures, nas proximidades, não foi?

- Foi - confirmou Allen. - Os jornais não mencionaram o nome do motel, disseram apenas que se tratava de um dos motéis de luxo. Um deles, porém, fugiu à regra e disse qual era. É essa a política adoptada pelos jornais. Quando se verificam assassínios ou suicídios num lugar público, regra geral não mencionam o nome, dizem apenas que foi num hotel do centro. Agora estão a fazer o mesmo com os motéis de primeira.

- Está bem, mas que aconteceu? - inquiri.

- A Polícia está interessada em falar com toda a gente que esteve naquela ala do motel; julga que talvez descubra alguma coisa, assim. O assassínio é um daqueles casos que têm de ser resolvidos. Ronley Fisher era ajudante do promotor de justiça e estava a julgar um assassínio complicado. Claro que a sua morte pode ter sido acidental. Tinham despejado a piscina naquela noite, pois mudam a água uma vez por semana, e é possível que Fisher estivesse um bocadinho "toldado", decidisse dar um mergulho e esmagasse a cabeça no fundo de cimento. Mas também lhe podem ter batido na cabeça e depois atirado para dentro da piscina vazia. Se foi um acidente, é preciso explicar muitas coisas; se foi um assassínio, a Polícia tem de o desvendar. Neste jornal de ontem diz que a Polícia tem o nome de todas as pessoas que estiveram no motel naquela noite e está empenhada em as localizar e interrogar, para apurar se viram alguma coisa fora do vulgar. Algumas pessoas estão longe - até em Nova Iorque-, mas nem mesmo assim escapam.

- Compreendo. Portanto a Polícia procurará Mr. e Mrs. Charleton Blewett, em S. Francisco, e verificará que a morada que deram é falsa.

- Exactamente-confirmou, de cabeça baixa.

- Posto isto, que pretende?

- Que vá lá esta noite com Sharon Barker. Telefonei para o motel e disse-lhes que era Charleton Blewett e que conservávamos o quarto, mas que íamos fazer uma curta viagem a San Diego. Enviei-lhes vinte e seis dólares por um portador. O quarto continuará, assim, na lista dos ocupados, e como a Polícia será informada de que os ocupantes regressam, não se preocupará muito com a falsa morada de S. Francisco. Imaginará que somos apenas um casal numa viagem de prazer. Assim você poderá lá voltar com Sharon. Ela pedirá a chave, no escritório, e o empregado da recepção reconhecê-la-á. De qualquer modo, o homem terá comunicado o meu telefonema à Polícia, que estará presente para os entrevistar.

- E que acontece, então?

- O estratagema é perfeito. A Polícia não ficará furiosa por causa de uma paródia de fim-de-semana. O que lhe interessa é ter a certeza de que encontrou o par que esteve no motel na noite de sábado. Diga que brigou com Sharon nessa noite, que ela se foi embora e que já fizeram as pazes e ela está a compensá-lo.

- Nada feito - respondi, a abanar a cabeça.

- Nada feito? Que quer dizer?

- Quero dizer que não me meteria nisso por nada deste mundo.

- Ouça, reconheço as graves responsabilidades da situação - declarou Allen.- Disse a Mrs. Cool que pagaria mil dólares para que se fizesse passar por mim nesta noite e dissesse à Polícia que não sabe nem viu nada do que se passou na noite de sábado. Dirá a verdade, pois eu não vi absolutamente nada. Não compreende? A Polícia não espera, na realidade, que alguém tenha visto ou saiba alguma coisa; trata-se simplesmente de um gesto, de reunir todos quantos estiveram no motel. Não posso, de maneira nenhuma, permitir que me encontrem.

- Quem é o senhor?

- Charleton Allen.

- Em que se ocupa?

- No negócio de investimentos.

- Vá à Polícia e conte a sua história, na condição de guardarem segredo. Entrevistá-los-ão, ao senhor e a Sharon, e não divulgarão o vosso segredo. No fim de contas o que interessa à Polícia são informações, mais nada.

Allen abanou a cabeça, violentamente, e declarou: -A situação é complicada. Ofereci mil dólares, mas estou disposto a pagar mil e quinhentos, Mr. Lam. Bertha endireitou-se na cadeira, com os olhos a reluzir de ganância.

- Mas onde está a complicação, Mr. Allen? - indaguei.- Por que motivo não pode ir à Polícia e contar-Lhes a história verdadeira, do princípio?

- Por causa de minha mulher.

- Que há com a sua mulher?

- Minha mulher é Dawn Getchell.

- Dawn Getchell... - repeti. - Não me...

Calei-me, de súbito, e Bertha perguntou, por sua vez:

- Meu Deus, quer dizer que é a filha de Marvin Getchell?

- Exactamente.

- Com todos os seus milhões, Getchell poderá resolver-lhe esse assunto sem dificuldade - afirmou Bertha Cool. - Podia...

- Podia cortar-me o pescoço-interrompeu Allen.

- Meu sogro não gosta nem nunca gostou de mim e isto arruinaria o meu casamento... Mas porque me terei metido em semelhante sarilho?! Nunca fiz asneira maior. Já me tenho visto em apertos, mas nunca em nenhum como este. É o fim!

Abanei a cabeça e disse a Bertha:

- Não nos podemos meter nisto.

- Você é engenhoso, Donald - redarguiu a minha sócia. - Consegue sempre arranjar maneira de resolver as coisas, quando quer.

- Desta vez, não quero.

Bertha lançou-me um olhar furibundo e eu fiz menção de sair.

- Não, não, espere! - gritou-me Charleton Allen.

- Deve haver uma maneira qualquer...

- Porque nos veio com este negócio, Allen?

- Porque Sharon só trabalhará consigo, com mais ninguém.

- Sharon conhece-me?

- Chamaram-lhe a atenção para si.

- Quando?

- Numa altura em que foi ao salão de cocktails.

- Quer dizer que Sharon é hospedeira do "Cool and Thistle"...

- Exactamente.

- De qualquer modo, não podemos fazer o que deseja.

- Porque não vai dar um passeio, Allen? - sugeriu Bertha. - Vá até à sala uns cinco minutos, enquanto converso com o Donald.

- É inútil, Bertha, eu...

Allen levantou-se, com entusiasmo.

- Voltarei daqui a cinco minutos - disse, e saiu pela porta fora.

Os olhos de Bertha pareceram querer trespassar-me, como punhais.

- Mil e quinhentos dólares por uma noite de trabalho, e atira-os pela janela fora!-verberou-me. - Além disso, aposto que a tal rapariga é um mimo e...

- Ouça, trata-se de um caso grave, de assassínio - interrompi-a. - Pretendem utilizar-nos para enganar a Polícia, para a afastar da pista. Em segundo lugar, ficaremos completamente nas mãos dessa tal Sharon Barker. Se alguma vez lhe der na gana contar tudo à Polícia, arriscamo-nos a perder a licença. Apetece-lhe passar a vida com a consciência de que poderá perder o negócio se alguma vez apetecer a uma hospedeira de salão de cocktails dar à dica?

Bertha pestanejou, pensativa.

- Porquê essa cautela toda, agora? - perguntou-me, por fim. - Tem-me dito muitas vezes que experimentará tudo uma vez. Porque não faz esta experiência?

Abanei a cabeça, obstinado.

- Charleton Allen pode ser marido de Dawn Getchell, mas é uma enguia. Mais, não nos contou tudo; disse-nos apenas o suficiente para nos impingir o papel de anjinhos.

Bertha suspirou, levantou o auscultador do telefone e disse à telefonista:

- Diga a esse tipo que está aí fora à espera, a esse tal Allen, que pode voltar.

Allen abriu bruscamente a porta mal lhe deram o recado, olhou, ansioso, para Bertha Cool e, ao ler o que dizia o seu rosto, virou-se para mim e recomeçou o coro de lamentações.

Fechou a porta, deixou-se cair numa cadeira e murmurou:

- Leio a resposta na vossa cara. Porque não me dão uma aberta?

- Porque não nos podemos dar ao luxo de ir tão longe de olhos tapados - respondi-lhe.

- Ouça, Lam, este assunto é muito grave. Embora poucos saibam, minha mulher não tem muito tempo de vida e eu estou habilitado a herdar qualquer coisa como vinte milhões de dólares. Se você me fizer agora este favor, prometo que a vossa agência terá todos os negócios de primeira de que se puder encarregar.

A cadeira de Bertha gemeu, quando a minha sócia se voltou para me olhar.

- Vou dizer-lhe o que farei, Allen. Reflectirei na sua proposta e se a aceitar procederei à minha maneira e não à sua. Convêm pôr os pontos nos "ii". Segundo depreendi, deseja apenas que a Polícia não o relacione com Charleton Blewett. É assim?

- É. Quero que se convençam de que interrogaram Charleton Blewett e a mulher e não pensem mais neles.

- Se eu conseguir fazer isso seja lá como for, bastar-lhe-á?

- Oh, Lam, isso seria salvar-me a vida! - exclamou, saltando da cadeira. - Você... Enfim, não faz ideia do que significaria para mim. Dar-me-ia anos de vida!

- Discutiu o caso com Sharon Barker?

- Discuti.

- Telefone-lhe. Quero falar com ela.

Tirou um livrinho de apontamentos preto, Bertha pediu uma linha e os dedos grossos e bem manicurados de Allen marcaram o número.

- Sharon? - perguntou, passados momentos. - Adivinha quem é... Acertaste. Olha, estou aqui no escritório dos detectives e Donald Lam deseja falar contigo.

Peguei no auscultador que ele me estendeu e disse:

- Olá, Sharon.

- Olá, Donald. - A sua voz era fria, mas atraente.

- Compreende bem o negócio que me propuseram?

- Compreendo.

- Está disposta a colaborar?

- Consigo, estou. Não o farei com um homem qualquer, mas consigo não me importo.

- Porquê?

- Vi-o há uma semana, mais ou menos. Esteve na casa onde trabalho a beber cocktails com uma rapariga.

- Sabia quem eu era?

- Alguém me disse que era Donald Lam, o detective.

- É pena.

- É pena o quê?

- Um detective gosta de conservar o anonimato. Esforça-se por não dar nas vistas e não lhe agrada que as pessoas saibam quem é. Gosta de se confundir com o cenário.

- Bem, Donald, não logrou confundir-se muito eficazmente, pois não consegui desviar os olhos de si.

- Porquê?

- Por ser tão cavalheiro.

- Não percebo.

- A pequena que o acompanhava está apaixonada por si, mas você portou-se como um perfeito cavalheiro, não... Oh, não sei explicar! Mostrou-se delicado, mostrou-se... simpático. Não lidou com ela como se pretendesse aproveitar o que ela estivesse disposta a dar - e ela daria tudo, Donald. Por isso, quando me perguntaram se representaria uma farsa com um detective particular, respondi que só havia um detective com quem estaria disposta a fazê-lo. E para que não haja desentendimentos, esclareço desde já que se trata exclusivamente de um negócio.

- Bem sei.

- O quarto do motel tem duas camas, serão as ditas utilizadas e... Bem, você portar-se-á como um cavalheiro.

- Tentarei.

- De acordo. Quer passar por cá para combinarmos as coisas?

- Que coisas?

- As regras do jogo.

- Como, por exemplo?

- Ouça, Donald, não vou ficar a pé toda a noite, nem vou discutir toda a noite. As luzes apagam-se quando eu disser que se apagam, e mais nada.

- Está bem, passarei por aí.

- Sozinho.

- Até logo.

Desliguei, voltei-me para Allen e disse-lhe:

- Representá-lo-emos por dois mil dólares e todas as despesas pagas. Advirto-o de que estas serão elevadas. O seu desejo é não ser relacionado com o Charleton Blewett que se registou no motel "Bide-a-wee-bit" na noite em que Ronley Fisher foi assassinado. É só isso que lhe interessa e não quer saber como eu o consiga. Certo?

- Certo.

- Reduziremos isso a escrito. - Virei-me para Bertha e pedi-lhe: - Chame uma estenógrafa, mande pôr o preto no branco e dê-lho a assinar.

- Aonde vai, Donald?

- Sair.

Encaminhei-me para a porta, virei-me e acrescentei, por cima do ombro:

- Não se esqueça de cobrar os dois mil dólares antecipadamente, como sinal.

O rosto de Bertha era um modelo vivo de cólera fútil.

 

- Que tem a Bertha esta manhã? - perguntou-me Elsie Brand, a minha secretária.

- Tem lá no escritório um homem que está mais em baixo que a barriga de uma cobra - respondi-lhe, sorridente. - Lamenta-se em dezassete línguas, incluindo o escandinavo.

- E tu vais ajudá-lo a sair de apuros?

- Talvez.

- É perigoso, Donald?

- Depende. Relaciona-se com o assassínio, ocorrido no sábado, de Ronley Fisher. Talvez tenha de passar a noite com uma bonita sereia... e preciso que me emprestes os recortes de jornais relacionados com o Fisher.

- Donald! - exclamou, corada.

- Na realidade, foste tu quem me arranjou este negócio.

- Como?

- Lembras-te de irmos ao salão de cocktails "Cock and Thistle"?

- Lembro. Porquê?

- Houve alguém que nos viu lá e achou que fazíamos um bonito par.

Corou de novo.

- E achou que eu era um cavalheiro.

- Porquê, Donald?

- Suponho que por não estar a servir-me das mãos...

- Farias uma coisa dessas num bar de cocktails?

- Creio que certos homens o fazem, mas deduzi que eu nem mentalmente o fazia. Esta rapariga parece desaprovar as pessoas que apalpam.

- Todas nós desaprovamos, não gostamos de mãos atrevidas.

- Queres dizer que um homem deve conservar as mãos nas algibeiras quando sai com uma rapariga?

- Claro que não, mas...

- Mas o quê?

- Tudo depende do homem, se ele está a palpar ou...

- Ou quê?

- Ou a acariciar - respondeu e tornou-se, acto contínuo, toda profissional:-Vou buscar os recortes acerca da morte de Ronley Fisher.

- Está bem, vamos lá ver isso.

Ao estudar os recortes de jornal contidos no sobrescrito que Elsie me trouxe, convenci-me de que a Polícia não possuía absolutamente nada no capítulo de provas tangíveis, apesar de se tratar de um caso que não podia deixar de ser resolvido.

Ronley Fisher era um jovem ajudante de promotor de justiça que tivera êxito em duas causas importantes e depressa granjeara fama.

Ao tempo da sua morte acusava Stauton Cliffs e Marilene Curtis no julgamento do assassínio da mulher de Cliffs. Este afirmava que a morte fora acidental, que tinham discutido violentamente e que a mulher empunhava um revólver de calibre 38 e ameaçara matá-lo. Aproximara-se para lhe tirar a arma, ela disparara um tiro que lhe passara de raspão pelo braço, ele agarrara o revólver, torcera-o para lho arrancar da mão, ela debatera-se e a arma disparara-se acidentalmente, quando Cliffs torcia o braço da mulher.

Cliffs contou à Polícia uma história muito convincente, mas a certa altura as autoridades começaram a seguir as pistas que se apresentavam e obrigaram-no a admitir que Marilene Curtis, sua amante, se encontrava em casa do casal no momento do tiro e que a discussão tivera origem no facto de Cliffs querer o divórcio e de a mulher não lho conceder. A Polícia acusou Cliffs de ter assassinado a mulher a sangue frio e de Marilene ter depois disparado cuidadosamente, de maneira a que a bala lhe passasse de raspão pelo braço. Foi neste ponto das investigações que Cliffs deixou de responder às perguntas e pediu um advogado.

Agora, com Cliffs a ser julgado, a morte de Ronley Fisher constituía um acontecimento dramático que deixava a Polícia numa situação complicada, aumentava a venda dos jornais e dava ao advogado de defesa uma grande oportunidade.

Se a morte de Fisher fora acidental, representava uma evolução dramática num caso complicado; se fora resultante de assassínio, a Polícia tinha sérias dificuldades a vencer e era importantíssimo determinar o móbil do crime.

Os factos conhecidos eram muito simples e reduzidos.

Cerca das cinco horas da manhã de domingo um guarda-nocturno do motel "Bide-a-wee-bit" notara que se encontrava qualquer coisa no fundo da piscina. Investigara e deparara com o corpo de um homem completa-mente vestido.

Às dez e meia da noite de sábado a piscina fora despejada e limpa; à uma hora da manhã as válvulas tinham sido abertas, para deixar entrar um novo jorro de água, e às três horas um mecanismo automático desligara a água, com a piscina completamente cheia.

Ao descobrir o corpo, o guarda-nocturno alertara a Polícia e o chamado "serviço de segurança" do motel - "serviço" que na realidade se compunha de um detective de nome Donleavy Ralston, antigo investigador do gabinete do Promotor de Justiça, que deixara esse emprego para se dedicar à "investigação particular", como dizia.

Li os diversos recortes, mas quanto mais lia menos o caso me agradava.

 

Àquela hora da tarde era pequena a actividade no bar, pois o movimento da hora do cocktail ainda não começara.

Entrei e parei um momento, à espera de que os meus olhos se habituassem à luz mortiça.

Brilhava uma lâmpada por cima da caixa registadora e o balcão estava razoavelmente bem iluminado, mas as lâmpadas cor de púrpura pareciam derramar um luar profundo sobre as mesas e os compartimentos ao longo das paredes não eram visíveis para quem entrasse vindo das ruas iluminadas.

Não a vi aproximar-se, mas a sua voz soou a meu lado, como uma carícia rorororoante:

- Donald Lam.

- Sharon?

- Sim. Veio falar das regras do jogo?

- Posso comprar uma bebida?

- Se não comprar não poderá falar comigo.

- Posso oferecer-lhe uma, também?

- Não. É proibido.

- Onde conversamos?

- Venha comigo.

Conduziu-me a um compartimento do canto, arranjado de tal maneira que ficava isolado do resto do salão.

- Que deseja tomar, Donald?

- Um "Rei Afonso" - respondi.

- Vou pedi-lo e depois trago-lho pessoalmente. Dê-me um dólar, Donald.

Dei-lhe o dólar e ela acrescentou:

- O empregado do balcão é bom rapaz, tomará conta do negócio e far-me-á sinal se eu for precisa. Sente-se ali, àquele canto, e espere.

Sentei-me nas fofas almofadas de cabedal e esperei.

Quando Sharon voltou com o "Rei Afonso" os meus olhos tinham-se habituado à luz o suficiente para me permitir vê-la.

Era uma rapariga esguia e de pernas compridas, curvas pronunciadas e olhos frios e avaliadores, extraordinariamente firmes na inspecção a que me submetiam.

Inclinou-se para depositar na mesa a bandeja do cocktail, lançou um olhar rápido para trás, por cima do ombro, colocou a bandeja numa ponta da mesa e sentou-se a meu lado.

- Estou assustada, Donald - declarou.

- Muito?

- Nada que mil dólares não curem, mas mesmo assim estou assustada.

- Vai ganhar mil dólares nesta história?

- Não sabia, Donald? - perguntou, arqueando as sobrancelhas sublinhadas a lápis.

Abanei a cabeça.

- Que se passa, Donald?

- Por enquanto, sei apenas que tenciona receber mil dólares.

- Não seja assim.

-Assim como?

- Não mude de conversa quando peço informações.

- E se começássemos a somar dois e dois? Explique-me melhor porque me escolheu a mim para comparsa.

- Porque gosto de si. Num trabalho como o meu aprendemos a avaliar bem os homens. Você esteve aqui com uma rapariga, há dias... Quem era ela, Donald?

- Uma amiga, apenas.

- Ela... ela não conseguia tirar os olhos de si e você portou-se tão cavalheirescamente, foi tão simpático, tão respeitador... Diga-me, Donald, ela é casada? Tratava-se de um romance desse género?

- Creio que é para falar de si que estamos aqui.

- Pois sim, mas preciso de saber alguma coisa a seu respeito - replicou, em tom agressivo. - No fim de contas - está previsto que passe a noite consigo.

- Queria discutir as regras do jogo... - lembrei-lhe.

- Isso pode ficar para depois. Agora o que me interessa é saber que espécie de risco vou correr.

- Depende.

- De quê?

- Do que sabe.

- Não sei absoluta mente nada, Donald. Fui ao motel, e o empregado observou-me com muita atenção. Consta-me que disse à Polícia que me reconheceria, se me voltasse a ver. Ora é precisamente esse pormenor que me obriga a colaborar nesta história, pois não posso desistir do meu emprego aqui e mais cedo ou mais tarde acabarão por me encontrar e então será muitíssimo difícil explicar o que aconteceu.

- E depois?

- E depois, para mais com o incentivo de mil dólares, irei para a frente - afirmou.

- Pode explicar-me a que se refere, ao certo?

- Não sabe?

- Vagamente, apenas, e preferia que me explicasse.

- Pela minha parte, também sei apenas que a Polícia, investigou o registo e verificou que o endereço não condizia. Quero dizer, na morada que indiquei existe uma casa e moram lá pessoas, mas não são as mesmas e podem provar que estiveram em S. Francisco no sábado e no domingo, todo o dia. Em seguida a Polícia investigou o número da matrícula do automóvel e mais uma vez não coincidiu. O automóvel com a matrícula indicada por mim é um Olds, não saiu de Seattle durante todo o fim-de-semana e os donos também não. A Polícia não precisou de mais nada para ter a certeza de que se tratava de um registo falso, pois eu escrevera que o carro era um Cadillac.

- Porquê um Cadillac?

- Foi o primeiro carro que vi quando olhei pela janela do escritório do motel: um Cadillac com o número de matrícula VGH 535. Troquei o "G" por um "C" e escrevi VCH 535.

- Portanto, a Polícia compreendeu que se tratava de um registo falso - murmurei. - Supõe que tentarão localizar Cadillacs cujos números de matrícula sejam susceptíveis de ser invertidos?

- Não. Imaginarão que inventei o número todo, o que teria de facto feito se não calho a olhar para fora e a ver o referido automóvel entre quatro ou cinco estacionados defronte do escritório.

- E então, que fazemos?

- E então vou para o motel consigo e peço a chave na recepção. Entretanto o empregado deve ter notificado a Polícia de que o casal que alugou o quarto mandou dinheiro para o reservar e ocupá-lo-á quando regressar de San Diego. Iremos para o quarto, tomaremos umas bebidas e a Polícia chegará. Interrogar-me-ão e eu terei de fazer o papel de uma mulher reles e você o de anjinho.

- Está disposta a isso?

- Estou disposta a ir até aí. No fim de contas, ninguém espera que uma hospedeira de um bar de cocktails seja uma santa de gesso. Conheço a vida. Fui casada e divorciada e... enfim, conheço a vida.

- O que se propõe fazer não afectará o seu trabalho?

- Claro que não! O proprietário até gosta de ter uma hospedeira com uma certa aura de depravação. Por esse lado, não há novidade.

- Por que lado poderá haver?

- Pelo que respeita ao que a Polícia fará.

- Que lhe parece que será?

- Contarei a minha história, confessarei que estou em lua-de-mel. sem casamento, consigo.

- Qual é a história verdadeira?

- A história verdadeira é que sempre conheci por Charleton esse homem com quem estive.

- Nenhum apelido?

- Nenhum apelido.

- Há quanto tempo o conhece?

- Vi-o aqui talvez... enfim, talvez uma dúzia de vezes.

- Foi simpática com ele?

- Conversávamos e, uma vez por outra, quando o negócio estava mais parado, sentava-me à sua mesa.

- Que aconteceu, depois?

- Este sábado compreendi que estava livre e sem saber que fazer. Não me pergunte como o descobri; percebi que assim era, a bem dizer, mal o vi.

- Era uma ocasião especial?

- Claro que era uma ocasião especial. Uma coisa lhe posso dizer acerca dele, Donald: é casado. A mulher : devia estar fora, de visita a amigos ou coisa parecida, ] pois bastava olhar para ele para compreender que andava à deriva.

- E você?

- Eu também. Tinha um rapaz, mas há cerca de um mês corri com ele e... Enfim, não tinha nada que fazer, nenhum lado aonde ir além do meu apartamento e sentia-me só.

- Como se passaram as coisas?

- Pode dizer-se que se passaram por etapas. Charleton convidou-me para jantar. Pensei aceitar, tomar umas bebidas com ele e ficar por aí. Era isso, pelo menos, o que tinha em mente.

- E que tinha ele em mente?

- Aproveitar o que pudesse, creio. É o que todos têm em mente. Tentaria a sua sorte até encontrar um sinal de parar. Que diabo esperava você?

- Eu não esperava nada - repliquei. - Perguntei-lhe apenas o que esperava você.

- Pois era isso que esperava e foi assim que a situação se desenrolou.

- Saiu para jantar com ele?

- Sim.

- E depois?

- Quando, depois do jantar, me conduzia ao parque de estacionamento onde deixara o meu automóvel, disse que lhe apetecia subir a Mulholland Drive e eu concordei.

- Sabia o que isso significava?

- Santo Deus, Donald, claro que sabia! O indivíduo pararia o carro para ver as luzes, mas em vez disso começaria a acariciar-me, a ver até aonde podia ir, as suas mãos começariam a explorar até serem detidas - se fossem detidas.

- E você estava de acordo?

- Com certeza. Sou humana. Tencionava apenas levantar o sinal de "proibido ultrapassar" no ponto que eu escolhesse, não no escolhido por ele.

- Que sucedeu, então?

- Bem, fomos, parámos a ver as luzes e, quer creia, quer não, o tipo foi decente. Não tentou ser grosseiro, limitou-se a conversar e a ver as luzes e, de súbito, compreendi que gostava dele.

- E depois?

- Virou-se para mim a fim de dizer qualquer coisa e eu coloquei o rosto no ângulo adequado, para o tentar a inclinasse para a frente e a beijar-me.

- E ele inclinou-se para a frente e beijou-a?

- Com certeza. Que diabo esperava? Eu levantara as barreiras e o homem não era de pau.

- E depois?

- Foi o que aconteceu depois - ou melhor, o que não aconteceu - que tornou o caso tão agradável. Não tentou aproveitar a vantagem e apressar as coisas, como se tivesse de apanhar um comboio. Acariciou-me, beijou-me mais e... bem, entusiasmei-me e apliquei-lhe o tratamento completo.

- Que sucedeu, então?

- Depois de lhe permitir chegar à primeira fase esperava que tentasse chegar à segunda e estava disposta a permitir-lho, mas não tencionava consentir que fizesse mais progressos.

- E...?

- Foi decentíssimo. Não começou a abusar das mãos nem tentou coisa nenhuma; limitou-se a pôr o carro em movimento.

- E depois?

- Bem, eu... enfim, você sabe como é... Ou talvez não saiba, Donald? A verdade é que comecei a pensar que possivelmente não estaria a conduzir bem as coisas. Convencera-me de tal maneira que teria de levantar o sinal de passagem proibida que, ao ver que ele não começava a explorar, para saber onde o sinal se encontrava, me senti um pouco...

- Decepcionada? - sugeri.

Hesitou, antes de responder, pensativa:

- Não, decepcionada, não... Para ser franca, Donald, era a primeira vez que me sucedia uma coisa daquelas.

- Continue.

- Começou a guiar, sempre muito decente, e de súbito virou para o motel. Era um motel acerca do qual faláramos antes, quando me referira a uma convenção publicitária a que assistira. Dissera-lhe que estivera lá num cocktail, que tomara banho na piscina e que era um belo estabelecimento.

- E depois?

- Ao vê-lo entrar no recinto do motel reconheci a sua ousadia e confesso que me agradou. Procedera com tanta calma e segurança e sem fazer perguntas... Não sei se você sabe, Donald, mas há certas perguntas que uma rapariga detesta. Se um homem se vira para nós e nos pergunta, de chofre, "Escuta, querida, queres ir comigo para um motel onde nos registaremos como marido e mulher?", é impossível resolver a situação de maneira agradável. Se respondemos "não", talvez não seja essa a resposta que gostaríamos de dar, mas não podemos responder "sim", sem nos rebaixarmos insuportavelmente. Talvez seja conveniente dizer-lhe, desde já, que detesto apalpadelas. Não me importo que os homens me toquem se o fizerem com decência, mas alguns são insuportáveis e eu não o tolero.

- Enfim, agradou-lhe o procedimento dele.

- Disse apenas para comigo: "Que esperteza, hem? Este tipo sabe o que faz. Aposto que deve ser interessante e como me sinto só... por que não?" Não fiz nenhuma cena.

- E depois?

- Perguntou-me com toda a delicadeza se me importava de tratar do registo.

- E você entrou no motel e procedeu ao registo?

- Entrei, inscrevi-me e disse que acabava de chegar de S. Francisco com meu marido, que viéramos de automóvel e estávamos fatigados. Creio que o empregado me observou com mais atenção do que a necessária. Ouvira algures o nome de Charleton Blewett, que se me fixara na memória, e como sabia que o homem com quem viera se chamava Charleton, declarei que éramos Mrs. e Mr. Charleton Blewett e inventei um endereço em S. Francisco. Quando nos conduziu ao quarto o criado quis ir buscar a nossa bagagem, mas Charleton disse-lhe que iria buscá-la depois e... enfim-, não enganou o homem. Tenho a certeza de que ele foi à recepção e comunicou que não trouxéramos bagagem.

- Continue.

- Ao ficarmos sós, Charleton mostrou uma garrafa de uísque. Foi o seu erro e o meu. Bebera champanhe, ao jantar - gosto de champanhe, quando é bom, e gosto das coisas que dizem bem com o champanhe: as luzes suaves, o romance, etc.

- E não gostou do uísque?

- Não.

- Não bebeu?

- Bebi pouco. Ele telefonou a pedir água gasosa e o homem que a trouxe não era criado. Não sei se Charleton reparou nisso, mas a mim não me escapou.

- Se não era criado, que era?

- O detective do motel.

- Há detectives, nos motéis?

- No "Bide-a-wee-bit", há. é um motel importante.

- E que aconteceu?

- Mediu-nos, saiu e, francamente, fiquei à espera de que o telefone tocasse e alguém dissesse a Charleton que o aluguer expirara, que não tínhamos bagagem, queriam o quarto vago e podia reaver o seu dinheiro na recepção, depois de deduzir a despesa da roupa e o serviço da criada.

- E então?

- E então comecei a ganhar tempo. Fui à casa de banho arranjar o cabelo e, entretanto, Charleton preparou duas bebidas. Disse-lhe que não bebia a minha toda, mas ele bebeu a sua e o resto da minha e preparou ainda mais outra. Compreendi que misturava uisque com champanhe e que as coisas não começavam a correr tão bem. O seu rosto tornou-se um pouco pálido, adquiriu uma expressão devassa e... É difícil explicar, mas de repente deixou de me agradar.

- E depois?

- Depois cometeu o erro maior. Começou a servir-se das mãos de maneira diferente da usada no carro, e que tanto me agradara. Aí as suas carícias tinham sido ternas, sofisticadas, serenas. Se continuasse a proceder assim, no quarto, tudo correria bem, mas procedeu como quem está seguro da presa, eu aborreci-me e vim-me embora.

- Que fez?

- Fui a uma cabina telefónica, chamei um táxi e regressei a casa.

- Que tenciona dizer à Polícia?

- A verdade pura.

- E que dirá a respeito de Charleton Blewett?

- Você será Charleton Blewett. Claro que não é esse o seu nome, mas eu direi à Polícia que foi consigo que estive no sábado, que nos arrufámos e eu me fui embora e o deixei sozinho. Acrescentarei que você me telefonou a pedir desculpa, que aceitei as desculpas apresentadas e tenciono recompensá-lo esta noite de ter sido antipática e o ter abandonado no sábado. Você terá de improvisar a partir daqui, mas não precisará de se esforçar muito; pretendem apenas perguntar-nos se sabemos alguma coisa a respeito de Ronley Fisher, a que horas nos deitámos, se ouvimos alguma coisa fora do normal, etc. Claro que depois de a Polícia partir teremos de ficar toda a noite, para que não pareça um estratagema.

- O tal detective que lhes levou a água gasosa dirá que não fui eu que estive consigo.

- Não dirá, pois Charleton estava deitado e conservou-se de rosto voltado. Essa foi uma das coisas que estragou tudo. Depois de chegarmos ao motel procedeu furtivamente, como se tivesse vergonha de mim.

- Mas depois procurou-a e ofereceu-lhe mil dólares para contar esta história à Polícia, não é verdade?

- Não, não, ele não me procurou. Nunca mais o vi, de então para cá, e aposto cem dólares em como nunca mais o verei.

- Então como lhe ofereceu os mil dólares? - insisti.

- Disse-me, pelo telefone, que a Polícia me procuraria e que provavelmente acabaria por me encontrar, em virtude de eu trabalhar, por assim dizer, em público. Mais cedo ou mais tarde, afirmou, o criado ou o empregado da recepção acabariam por me encontrar.

- Quer dizer que a oferta dos mil dólares foi feita pelo telefone?

- Foi.

- Acha que os receberá?

- Já os recebi.

- Já os recebeu?

- Claro. Ou acha que levaria as coisas tão longe, se não os tivesse?

- Como os recebeu?

- Um portador trouxe-me um maço de bonitas notas de cem dólares.

- Que disse a Charleton pelo telefone?

- Ele disse-me que queria que regressasse ao motel, que pedira ao recepcionista que reservasse o quarto e mandara, para tal, dinheiro por um portador. Como eu não podia voltar lá sozinha contrataria um detective particular que iria comigo e passaria pelo homem que me acompanhara. O recepcionista informaria a Polícia do nosso regresso, a Polícia interrogar-nos-ia e eu poderia contar a minha história, o que chegaria para o livrar de apuros.

- Por que motivo chegaria para o tirar de apuros?

- Porque tanto o criado como o empregado da recepção poderiam confirmar que ele estava bêbedo- e não pode ter dado por nada.

- Que lhe respondeu você?

- Respondi-lhe que nada feito, que não pertencia a esse tipo de rapariga. Ofereceu-me quinhentos dólares e recusei de novo, mas depois lembrei-me, de repente, de si e disse-lhe: "Olhe, Charleton, se conseguir convencer Donald Lam a ser meu comparsa e me der mil dólares, estou de acordo. Caso contrário, nada feito."

- E depois?

- Depois... você está aqui. Charleton telefonou ao motel e pediu que reservassem o quarto 27, o que prometeram que fariam. - Charleton veio-se embora sem passar pela recepção.

- O detective do motel e o criado viram-no. Suponha que a Polícia lhes pede que me identifiquem?

- Eles não repararam nele, no sábado, à noite. O criado não se interessou e o detective olhou para mim.

- Estava com aspecto sexy, não?

- Estava com aspecto sexy, Donald. Faz parte do meu emprego. Que se passa com os seus olhos? Ou será da luz?

- É, com certeza, da luz .

- Ver-me-á melhor mais logo... - insinuou, a rir.

- Não estou disposto a mentir em grande escala. Cingir-me-ei à teoria de que tomei umas bebidas, a convidei, você aceitou e fomos para o motel. Talvez resulte, mas não da maneira que foi planeado. O principal é não dizer à Polícia que temos um patrocinante.

- Acha que obteremos resultados assim? - perguntou-me, com o rosto animado.

- Podemos tentar. Quando começamos?

- Acabo de trabalhar às onze horas da noite e depois gosto de jantar. Paga-me o jantar, Donald?

- Com certeza.

- Vamos com bagagem ou sem bagagem?

- Parece-me melhor sem bagagem - respondi. - Proceda exactamente como fez no sábado à noite.

- Está bem, Donald. Agora tenho de ir atender os clientes. Até às onze horas. - Levou o indicador aos lábios e depois colou o dedo à minha boca.

Cerca de dez minutos depois saí.

Sharon estava de costas voltadas, mas sorriu-me por cima do ombro. Registava um pedido de uma mesa ocupada por dois casais. A sala começava a encher-se para a hora do cocktail.

 

Cheguei ao bar às onze horas. Sharon fez-me esperar cerca de três minutos, depois metemo-nos no meu automóvel, fomos a um restaurante húngaro e bebemos champanhe. Dei uma boa gorjeta à criada e pusemo-nos a caminho do motel "Bide-a-wee-bit".

- Nervosa? - perguntei.

- Tremo toda.

- Tenha calma. Em breve estará tudo acabado e poderá deitar o caso para trás das costas.

- Não paramos?

- Não paramos onde?

- Na estrada.

- Para quê?

- Para travarmos um pouco

Parece tão frio e comercial ir para um motel com um homem que nem sequer se beijou...

- É frio e comercial e você não terá tempo para se preocupar com reacções - redargui. - A Polícia apresentar-se-á antes de acabar a segunda bebida.

- Uísque por cima de champanhe?

- Champanhe por cima de champanhe. Tenho algumas garrafas frescas, metidas em gelo seco numa caixa de cartão.

- Julguei que não levávamos bagagem.

- Não se trata de bagagem, mas de champanhe.

- Taças? Detesto beber champanhe por copos.

- Também levo taças, bem geladas.

- Donald, você pensa em quase tudo!

- Porquê em quase tudo, apenas?

- Porque não pensou nos meus sentimentos, em... enfim, não pensou em que um bocadinho de calor ajudaria.

- Ajudaria, talvez, a começar qualquer coisa que nos impediria de concentrar o pensamento na história que vamos contar aos "chuis".

- Bem, talvez pudéssemos acabar...

- O quê?

- Nada.

Fui direito ao motel "Bide-a-wee-bit".

- Pronto, agora tem de ir pedir a chave - disse-lhe. - Não se esqueça de que, por agora, é Mrs. Char-leton Blewett, mas quando a Polícia aparecer e lhe pedir a carta de condução indicaremos os nossos verdadeiros nomes.

- Não sou tão estúpida que não saiba o que tenho a fazer, com os diabos! - resmungou.

Entrou no motel, demorou-se cerca de dois minutos e regressou à frente de um criado. Este dirigiu-se à nossa frente ao quarto número 27 e aguardou, para nos levar a bagagem.

Deixei-o tirar a caixa de cartão, para que se certificasse de que não tínhamos mais bagagem, depois dei-lhe um dólar de gratificação e entrámos.

Sharon olhou nervosamente à sua volta e exclamou:

- Nunca me senti tão constrangida!

Abri a caixa, tirei uma garrafa gelada de champanhe e disse-lhe:

- Isto ajudá-la-á.

- Sinto que mal o conheço, Donald.

A rolha da garrafa produziu um estampido semelhante ao de um tiro de pistola e Sharon soltou um gritinho.

- Assustou-me, Donald!

Virei-me, para a olhar. Endireitava uma das meias e mostrava quilómetros de perna.

- Oh! - exclamou, sem baixar a saia. - Julguei que estivesse de costas voltadas.

- Mudei de posição.

- Era fatal!-troçou, com um sorriso provocante.

- Venha e brindemos à aventura - propus. Sentei-me na cadeira estofada, num dos braços da qual ela se empoleirou, com uma taça gelada na mão.

- À aventura! - brindei, depois de encher as duas taças, e sentamo-nos a beber o champanhe.

- Acha que a Polícia vem já, Donald? - perguntou-me, por fim.

- Depende do ponto até aonde querem que vamos antes de aparecerem. O recepcionista reconheceu-a?

- Reconheceu. Além disso, o homem que nos levou a água gasosa, no sábado, estava no vestíbulo e eu senti-o a olhar-me, quando estava de costas voltadas.

- Sente quando a olham?

- A alguns, sim. Sinto os seus olhos a percorrer-me todos os centímetros do corpo.

- E desagrada-lhe?

- Pelo contrário, agrada-me. Tenho muitos, muitos centímetros interessantes, Donald.

- Já tinha notado.

- Verá que sei do que estou a falar, Donald. Que tal o champanhe?

Enchi-lhe outra vez a taça.

- Você é simpático - afirmou, enquanto me passava os dedos pelo cabelo.

Descalçou os sapatos, com um movimento das pernas, e depois voltou-se no braço da cadeira e colocou os pés no meu colo.

- Tenho os pés frios.

- Não é bom deixar arrefecer os pés nesta fase do jogo...

Sharon riu-se e agitou os dedos dos pés.

- Sentiu? - perguntou-me.

- Senti.

Agitou outra vez os dedos, mas nesse momento bateram a porta.

- Que será? - murmurou, nervosa.

- Os seus amigos. Vai começar a dança. Pousei a taça, agarrei-lhe nos tornozelos e tirei-lhe suavemente os pés do meu colo, antes de me levantar e me dirigir para a porta.

No limiar encontravam-se dois homens à paisana.

- Que desejam? - perguntei-lhes.

Um dos homens tirou da algibeira uma carteira de cabedal, abriu-a e mostrou-me uma insígnia.

- Polícia - informou. - Queremos falar consigo.

- Porquê? Eu... eu... De que se trata?

- Vamos entrar.

Tentei barrar-lhes a entrada e protestei:

- Neste momento não é conveniente... Irei ter com os senhores ao vestíbulo, se quiserem...

Um deles avançou, afastando-me do caminho com o ombro robusto.

- Eu disse que íamos entrar - lembrou. - Talvez não ouça bem.

Recuei e os dois homens entraram e fecharam a porta.

Voltei-me, para olhar para Sharon. Despira o vestido e estava na nossa frente de soutien, cuequinhas e meias, uma taça de champanhe na mão e um ar assustado.

Possuía uma beleza esguia e aerodinâmica e não havia dúvida de que o "traje" a beneficiava.

- Que vem a ser isto?! - barafustou. - Ponham-se lá fora, andem!

- Queremos falar consigo - replicou o porta-voz. Sharon agarrou no vestido e correu para a casa de banho.

Um dos polícias aproximou-se, pegou na garrafa de champanhe, cheirou-a, avaliou a temperatura com os dedos, olhou para a caixa de cartão e viu a outra garrafa e as taças em gelo seco.

- Uma festazinha elegante, hem? - comentou. Sharon saiu da casa de banho a puxar o fecho de correr do vestido.

- Que vem a ser isto?- repetiu, indignada.

Os polícias sentaram-se, um na cadeira onde eu estivera e o outro na cama.

- Chama-se Charletom Blewett?- perguntou um deles.

- Não - respondi.

- É Mrs. Charleton Blewett? - perguntou, em seguida, a Sharon.

- Não.

- Para começar, mostrem-nos as cartas de condução.

- Que significa isto? - indaguei, irritado.

- Para já, queremos averiguar se vocês alugaram o quarto para fins imorais.

- Fins imorais? De que está a falar? Queríamos beber um pouco de Champanhe e isso é uma coisa que não se pode fazer nas traseiras de um automóvel.

- Foi por isso que a sua companheira se despiu, hem?

- Ela entornou champanhe no vestido quando vocês bateram à porta e quis limpá-lo antes que deixasse mancha.

- Oh, claro! Ela estava aqui sentadinha, completamente vestida, quando batemos à porta.

- Exactamente - afirmei. - Estava.

- Está bem. Mas vamos lá a ver essas licenças de condução. A sua, primeiro.

Tirei a carteira e mostrei-lhe a carta de condução. O detective tomou nota do nome e da morada e o outro disse a Sharon:

- Toca a mostrar a sua, camarada.

- Isto é indecente! - protestou Sharon.

- Pois é, mas despachemo-nos; vamos lá a mostrar a licença de condução.

A rapariga abriu a mala, tirou uma carteira com vários documentos e atirou-lha literalmente acima.

O indivíduo examinou cuidadosamente o conteúdo.

- Sharon Barker - leu, para o colega ouvir-.vinte e quatro anos, um metro e sessenta e sete, cinquenta e dois quilos e, ao que parece, empregada do bar de cocktails, "Cock and Thistle". Tomei nota do seu número da previdência social.

- Este camarada chama-se Donald Lam... - leu o outro. - Um momento! Você não é detective particular?

- Sou - confirmei.

- Macacos me mordam, mas as coisas, assim, assumem outro aspecto! Chamo-me Smith. E se começasse a falar, hem?

- Acerca de que deseja que fale?

- Que faz aqui?

- Vim com Sharon Barker, a fim de nos divertirmos a beber um pouco de champanhe - respondi.

- E depois disso?

- Creio que iríamos para casa. Não fizemos planos.

Bateram à porta. Um dos polícias levantou-se e foi abrir e o homem que entrou era, segundo deduzi, o "encarregado da segurança" do motel, título mais eufónico do que o de "detective" do motel.

- Donleavy Ralston, camaradas - apresentou o polícia que abrira a porta. - Trabalha aqui.

- A rapariga é esta - identificou o recém-chegado-, mas não creio que o homem seja o mesmo.

- Não tem a certeza? - perguntou-lhe o detective.

- Não. Ele tentou conservar o rosto voltado, mas vi-lhe a figura.

Smith virou-se para Sharon e perguntou-lhe:

- Que negócio é o seu, camarada?

- Negócio? Que quer dizer?

- Deixe-se disso! Tentamos dar-lhe uma aberta, mas é evidente que se dedica a um pouco de prostituição de alta classe. Quer ir parar à cadeia como meretriz?

- Como meretriz! - exclamou Sharon, escandalizada.- O senhor...

- Calma - interrompeu-la Smith. - Fecharemos os olhos, desde que fale.

- De que querem que fale?

- Esteve aqui na noite de sábado, registou-se como Mrs. Charleton Blewett e deu a morada de 254, El Belmonte Drive, S. Francisco. As pessoas que foram neste endereço nunca ouviram falar em nenhum Charleton Blewett.

- Foi um nome que eu inventei, por assim dizer.

- Porquê?

- Porque... porque... Não sei porquê, mas foi o nome que me ocorreu. Não gosto de utilizar nomes verdadeiros. Inventei-o, assim como ao número da matrícula do automóvel.

- Muito bem. É uma rapariga e tanto. Se cobra cem dólares por noite, é uma prostituta.

- Não cobro nada. Não levo dinheiro pela minha... pela minha amizade.

- Parece ter muitos amigos.

- Há algum mal nisso?

- Depende do que considerar mal e, também, da maneira como definir amizade. Mas vamos a falar, sim?

- Sou hospedeira do "Cock and Thistle" e esforço-me para que os clientes que lá vão se divirtam e obtenham o serviço a que têm direito. Saio por volta das onze horas da noite e a partir desse momento sou senhora de mim própria.

- Muito bem. Agora fale-nos de sábado.

- No sábado esse indivíduo convidou-me para jantar. Ele estava só, eu não tinha compromissos, por isso jantámos juntos e depois parámos a admirar as luzes da cidade e...

- Cortejou-a?

- Com certeza!-exclamou, indignada. - Ou imagina que algum homem se sentaria num carro comigo, a admirar as luzes, sem me cortejar?

- Evidentemente que não - concordou o detective. - Que sucedeu depois?

- Ele dirigiu-se para este motel .

- Quando a convidou?

- Não convidou.

- Limitou-se a vir para aqui?

- Limitou-se.

- E você não protestou quando percebeu o que se passava?

- Não. No caso de lhe interessar saber, díigo-lhe desde já que me agradou. Era uma maneira de proceder nova e eu não gosto de pessoas que fazem perguntas. Ter de responder "sim" coloca uma rapariga numa situação embaraçosa... e às vezes não nos apetece responder "não". Ele limitou-se a ousar e a arriscar e isso agradou-me.

- Cada vez melhor - comentou Smith. - Continue a falar.

- Não há praticamente mais nada a dizer. Chegámos, ocupámos este mesmo quarto e como não trazíamos bagagem o meu amigo disse ao criado que a tiraria pessoalmente do carro, mais tarde. Depois sentámo-nos, ele tirou da algibeira um frasco de uísque, pedimos pelo telefone que nos trouxessem água gasosa, este cavalheiro que entrou há pouco trouxe-a e tomámos umas bebidas.

- E depois?

- Depois... bem, eu gosto de champanhe e não gosto de uísque. Mas como estávamos aqui e... enfim, às vezes ajuda ter umas bebidas debaixo do cinto, quando... quando travamos conhecimento assim...

- Essa de travar conhecimento é boa - observou Smith. - E depois?

- Depois o uísque por cima do champanhe não permitiu que me continuasse a sentir tão bem como até aí. A mistura de bebidas nunca serviu para me entusiasmar. Desta vez senti-me um pouco estonteada e... não sei, de repente as coisas começaram a azedar-se. O meu amigo começou a parecer-me menos interessante e mais bêbedo.

- Deitou-se?

- Não me deitei.

- ?! - admirou-se Smith.

- Não! - repetiu, furiosa. - Ele começou a abusar das mãos, irritei-me, saí pela porta fora, chamei um táxi e regressei a casa. Se não acredita, investigue junto da empresa dos táxis e verificará que chamei um e me pus a andar daqui para fora.

- A que horas, mais ou- menos, foi isso? - inquiriu Smith, interessado.

- Cerca das duas da manhã.

- Que sucedeu ao indivíduo?

- Não sei, pois deixei-o sozinho e não voltei. Ele estava precisamente a ficar atordoado quando saí. Creio que cozeu a bebedeira a dormir.

- Que fez ele?

- Só pode ter feito uma coisa, depois de acordar: meter-se no carro e seguir para casa.

- Onde mora ele?

- Não sei.

- Quantas vezes já o vira?

- Estivera no bar uma vez antes.

Smith voltou-se para mim e perguntou-me:

- Como se envolveu você nesta história?

- Conheci-a esta tarde e jantámos juntos. Percebi que ela gostava de champanhe e pedi no restaurante que acondicionassem algumas garrafas e taças em gelo seco. Pareceu-me que devia mostrar a minha consideração pelos seus gostos.

- E que esperava ganhar com isso?

- Que lhe parece?

- Está bem - resmungou Smith. - Agora falarei claro. Houve um assassínio aqui no motel, na noite de sábado ou na manhã de domingo. O cadáver foi encontrado na manhã de domingo. Andamos a investigar o caso e vamos investigá-los aos dois. Se estiverem limpos, ninguém os incomodará; mas se não estiverem terão muito que amargar. Podemos prender a rapariga por suspeita de prostituição e aplicar-lhe os regulamentos a si. Sabe isso não é verdade?

Acenei afirmativamente.

- Muito bem. Agora queremos saber tudo quanto aconteceu no sábado à noite. Todos os pormenores.

- Não estive cá - repliquei. - Não mentirei a esse respeito.

Smith voltou-se para a rapariga e disse-lhe:

- Queremos saber tudo quanto viu e tudo quanto fez, e, queremos saber quem é, ao certo, esse homem que esteve consigo. Queremos saber onde poderemos encontrá-lo.

- Parámos defronte do escritório - começou Sharon. - Estavam parados dois ou três automóveis com pessoas que procediam ao registo. Charleton – fora assim que me dissera chamar-se - não quis apear-se e pediu-me que efectuasse eu o registo e dissesse que chegara com meu marido de S. Francisco e estávamos fatigados. Inventei a morada - 254, El Belmont Drive. S. Francisco-e disse que éramos Mr. e Mrs. Char-leton Blewett.

- E a respeito da matrícula do carro?

- Tanto o número da licença como o apelido de Blewett foram inventados por mim.

- Já fez isso mais alguma vez? - indagou Smith.

- Que lhe parece?

- Por dinheiro?

- Não. Já lhe disse que não dou a minha amizade por dinheiro. Trabalho para ganhar a vida.

- A que horas saiu daqui e chamou o táxi? Lembre-se de que poderemos confirmar isso.

- Agradeço-lhes, até, que o façam. Creio que eram umas duas horas da manhã.

- Telefonou a chamar o táxi?

- Telefonei.

- Do escritório do motel?

- Não.

- Donde?

- Da cabina.

- Da que fica defronto do motel?

- Sim.

- Teve de passar pela piscina para chegar a essa cabina.

- Não tive de passar exactamente pela piscina, pois esta é cercada por um gradeamento. Contornei-a pelo exterior. A cancela de entrada estava fechada.

- Tem a certeza de que estava fechada?

- Tenho.

- Porquê?

- Quis atalhar por lá, em virtude de ser mais perto e não pude porque a cancela mais próxima estava fechada.

- Tem a certeza absoluta?

- Tenho a certeza absoluta.

- Muito bem; contornou, então, o exterior do gradeamento. A piscina estava iluminada?

- Estava.

- Conseguia vê-la?

- Conseguia ver a superfície, não o interior.

- Tinha água?

- Estava cheia até meio. Lembro-me de ver as luzes reflectidas na água.

- Andava alguém a tomar banho ou nas imediações?

- Não.

- Poderia estar algum cadáver lá dentro?

- Por onde passei não era possível ver o interior. Via o extremo oposto, mas não conseguia abarcar toda a superfície.

- No que viu, não notou nada de extraordinário?

- Não.

- Ouça, quando o cadáver foi encontrado, de manhã, a cancela do caminho para a cabina telefónica, do lado oposto, estava aberta. A fechadura fora arrombada.

- A cancela por onde tentei passar estava fechada. Posso afirmá-lo porque quando pensei em empurrá-la para atalhar vi a corrente e o cadeado. Segui, por isso, pelo lado de fora do gradeamento e telefonei a chamar o táxi.

- Que fez, enquanto aguardava que o carro chegasse?

- Bem, fiquei por ali, parada.

- Quanto tempo esperou?

- Uns cinco minutos.

- Olhou para a piscina enquanto esperou?

- Não me lembro, mas creio que não.

- Mas as cancelas estavam ambas fechadas?

- Suponho que sim.

- A cadeado?

- Sei apenas que a mais próxima, a do lado do escritório, tinha uma corrente e um cadeado fechado. Não vi nenhuma corrente na outra cancela; não sei se estava fechada!.

- Até agora foi-nos muito útil, Miss Barker - confessou Smith, em tom mais amável. - Agradecia-lhe que pensasse um pouco e visse se nos pode dizer mais alguma coisa.

Sharon semi cerrou os olhos, olhou para a carpete e por fim abanou a cabeça, devagar.

- Não... não me lembro de mais nada.

- O táxi chegou?

- Chegou.

- Dirigiu-se para a berma do passeio, ao seu encontro?

- Não. Continuei junto da cabina telefónica e o motorista apeou-se e acercou-se de mim.

- Perguntou-lhe se tinha sido você quem telefonara a chamar um táxi?

- Perguntou-me se eu era Miss Baxter, respondi-Lhe que era.... Um momento, ele disse qualquer coisa acerca de nadar...

- Sim? - interrogou Smith, em voz que traduzia interesse.

- Perguntou-me se estivera a nadar, se queria ir nadar ou qualquer coisa no género, e eu respondi-lhe que a água parecia muito fria. Ficou a meu lado a olhar para a água, coisa de um minuto, e por fim disse: "Bem, vamos", ou qualquer outra frase semelhante.

- Portanto, o motorista de um táxi olhou para a piscina às duas horas da manhã?

- Exactamente.

- Nesse momento encontrava-se consigo perto da cabina telefónica que fica junto da cancela das traseiras da piscina?

- Encontrava-se.

- Foi-nos muito útil, Miss Barker, e peço-lhe desculpa por a ter incomodado. Que me diz, agora, acerca desse tal Charleton Blewett?

- Nada sei a seu respeito, a não ser que me disse que o tratasse por Charleton. O apelido de Blewett foi inventado por mim. Antes só o vira uma vez, no bar. Mas ele não lhes poderia dizer nada, pois estava muito toldado. Deve ter adormecido.

- Solteiro ou casado?

- Não me disse.

- Ora, mas você tem experiência da vida e não precisou que ele lho dissesse. Casado ou solteiro?

- Casado. Tenho a impressão de que não costumava meter-se em aventuras daquelas. Mostrou-se um pouco embaraçado e creio até que... enfim, pareceu-me envergonhado e essa foi uma das coisas que me enfureceu. No fim de contas, quando um homem faz o que ele fez deve saber o que quer. Ou está interessado, ou não está. O seu procedimento fez-me sentir má, fez-me sentir... impura. No fim de contas, somos todos humanos, com desejos e apetites humanos, e eu não sou nenhuma santa. Mas também não sou hipócrita e aceito a vida como ela é. Gostei dele, julguei que também gostasse de mim e antes de chegarmos aqui, ao motel, entendíamo-nos muito bem. Gostei dos momentos que passámos em Mulholland Drive e agradou-me a maneira como decidiu vir para aqui, sem dizer nada... Tinha-me conquistado. Quando chegámos, porém, pareceu convencido de que tinha de se embriagar para ir por diante e isso deu-me vontade de o esbofetear. Não pensei em mais nada senão em desaparecer daqui para fora. Pela parte que me toca, não quero voltar a vê-lo... e suponho que com ele se passa o mesmo a meu respeito, embora tenha telefonado a perguntar que diabo me deu.

- Que lhe respondeu?

- Contei-lhe que diabo me dera!

- Afirma que a cancela de acesso à piscina estava fechada quando saiu? - perguntou, inesperadamente, Smith.

- Estava.

- E que ele ficou aqui, embriagado, e portanto não poderia dizer-nos nada?

- Exactamente.

Smiith olhou para os outros e inquiriu:

- Mais algumas perguntas? Abanaram a cabeça, negativamente.

- Obrigado, Miss Barker, por ter sido camarada! - agradeceu Smith. - Um destes dias passarei pelo "Cock and Thistle", quando estiver de folga, e talvez a possa convidar para jantar.

- Você é casado - declarou Sharon. - Disse-me que eu sabia distinguir, e como vê não se enganou.

- Está bem, ganhou - replicou o detective, a rir. - Não os incomodamos mais e pedimos desculpa por termos interrompido a festa. Divirtam-se.

Os três homens saíram e eu voltei-me para Sharon e perguntei-lhe:

- Que ideia foi essa?

- Qual?

- A de tirar a roupa enquanto abri a porta.

- Eu não tirei a roupa - protestou. - Despi apenas o vestido.

- Está bem, mas que ideia foi essa de despir o vestido?

- Tornou as coisas mais convincentes. Por minha vontade tê-lo-ia despido antes, se você me tivesse dado um bocadinho de incentivo, mas você mostrou-se tão... tão distante que não teria piada nenhuma começar a despir-me.

- Está bem, está bem. Que fazemos agora?

- É o homem que deve tomar a iniciativa, não é?

- Em que sentido?

- Com os diabos, Donald, não é capaz de dar um pouco de incentivo a uma rapariga? Não posso ser eu a fazer tudo!

- Mais champanhe?

- Sim, se é isso o que você quer - resmungou. Experimentei a garrafa aberta. Ainda se bebia, mas estava um pouco insípido. Sharon despejou uma taça em três golos e estendeu-ma para a encher de novo. Enchi-lha e deitei mais um dedo na minha, para acabar de a encher.

- Diga-me, Sharon: recebeu, realmente, mil dólares por isto?

- Recebi.

- Não sentiu curiosidade?

- Que quer dizer?

- Não lhe pareceu de mais?

- De mais? Que quer dizer?

- Quero dizer que mil dólares me parece importância excessiva para pagamento de uma pequena actividade extracurricular.

- Eh, mais devagar! - exclamou, de olhos semi-cerrados. - Que significa isso de actividade extracurricular? Refere-se ao que eu suponho que se refira?

- Não.

- Que quer dizer, então?

- Refiro-me a uma tarefa que desempenhou em poucas horas, sem interferir com o seu trabalho normal.

- O bom nome de uma rapariga tem algum valor - replicou.

- Quem vai ter conhecimento disto além do inspector Smith?

- Muita gente.

- Quem?

- O encarregado da segurança deste motel, por exemplo.

- Acha que isso fará alguma diferença?

- Talvez eu queira cá voltar...

- Sozinha?

- Não seja idiota.

Estendeu-me a taça, mas o conteúdo da garrafa já não chegou para a encher por completo. Sharon fitou-me, pensativa, e indagou:

- Pretende arruinar uma noite absolutamente perfeita?

- Como?

- Com todas essas perguntas.

- Tentava apenas esclarecer as coisas, no meu espírito.

- Acha que é preciso?

- Gostaria, pelo menos.

- Está bem, Donald. Dir-lhe-ei a verdade e depois não falaremos mais nisso. Desconfio de que o indivíduo é algum figurão importante da política, que não pode dar-se ao luxo de ser apanhado em aventuras destas. Como não se atreve a prestar declarações à Polícia nem a permitir que esta saiba quem ele é, teve de inventar este estratagema para que o deixassem em paz.

- E parece-lhe que o deixarão em paz, agora?

- Com certeza que sim. Ele estava bêbedo e não ficou em condições de ver nada. Eu é que vi alguma coisa que valeu a pena.

- O quê?

- A cancela fechada às duas horas da manhã.

- Acha isso importante?

- A Polícia achou.

- Mas você não pareceu prestar muita atenção ao pormenor enquanto Smith não deu a entender que era importante.

- Não tinha, sequer, pensado nele. Contrataram-me para fazer determinado trabalho e eu fi-lo.

- E não tentará descobrir quem é, na realidade, esse Charleton Blewett?

- Para quê?

- Pensei que tivesse um bocadinho de curiosidade...

- Mas não tenho. Digo-lhe mais, Donald Lam: se sabe quem ele é, não quero que me diga.

- Porquê?

- Porque as informações desse género são perigosas. Se não souber, não poderei dizer a ninguém e não me sentirei tentada a meter um susto ao tipo. Não o poderia fazer, mesmo que quisesse, e isso só me será vantajoso.

- Que quer dizer?

- Na minha profissão, uma rapariga às vezes sabe de mais.

- Dizem que saber é poder.

- Às vezes o saber redunda em cadáveres em quartos de motéis e eu não quero ser encontrada com uma das minhas meias de nylon amarrada ao pescoço... Quanto ganha com isto, Donald?

- Nem metade do suficiente.

- Isso não é resposta. Eu disse-lhe o que ganhava.

- E eu disse-lhe que não ganhava nem metade do suficiente. Não gosto disto.

- Porquê?

- Pode haver algumas repercussões.

- Ora adeus! O perigo já lá vai. Correu tudo bem. Diga-me, Donald, representei bem?

- Quando?

- Quando agarrei no vestido e o segurei à minha frente, recuei na direcção da casa debanho e, de súbito, me virei e fechei a porta. Aposto que os "chuis" viram um bonito panorama.

- Fartam-se de ver bonitos panoramas.

- Aposto que você também viu um bonito panorama.

- Vi.

- Não parece muito entusiasmado...

- Neste momento, tenho outras coisas em que pensar.

- Quais?

- O inspector Smith, por exemplo.

- Que há com ele?

- Que opinião faz do inspector?

- É bom rapaz... Quis tentar um bocadinho a sorte, também. Reparou na maneira como deitou o barro à parede, ao dizer que qualquer dia passaria pelo "Cock and Thistle"?

- Reparei.

- E eu disse-lhe logo que era casado!

- Isso costuma detê-los?-inquiri.

- Detém-me a mim.

Manteve-se calada, alguns momentos, e de súbito indagou:

- Porque falou no inspector Smith?

- Porque se ele nos quiser pregar uma partida suja ou se pensar que você não cooperou cem por cento, pode colocar-nos em sérios apuros.

- Como?

- Baseando-se no decreto acerca das pensões... Se a quisesse acusar de conduta indecente...

- Porque se calou, Donald?

- Estava apenas a pensar.

- Com os diabos, você pensa de mais! - protestou.- Serve-se da cabeça quando devia servir-se das mãos.

Ficámos calados, alguns momentos, e de súbito Sharon levantou-se, endireitou as meias e viu-se ao espelho.

- Sabe uma coisa, Donald?

- O quê?

- Tenho notícias para si.

- Que notícias?

- Vou para casa.

- Eu levo-a.

- Não é preciso; irei de táxi.

- Pagarei o táxi - ofereci, tirando a carteira.

- Não faz nenhuma tentativa para me deter.

- É isso que pretende?

- Irra, Donald, não é nada lisonjeiro para uma mulher! Até me sinto um prato requentado! Vá para o diabo que o carregue!

Pôs o casaco pelas costas, pegou na mala e despediu-se:

- Boas-noites e adeus.

Vi-a sair pela porta fora.

 

Passados cinco minutos meti a chave na algibeira, saí, fechei a porta e encaminhei-me para a cabina telefónica existente ao fundo do passeio, passando pela piscina.

A cancela da frente da piscina estava fechada e tinha um cadeado, a das traseiras tinha uma fechadura de mola e estava igualmente fechada.

Entrei na cabina, introduzi uma moeda na ranhura e marquei o número de Elsie Brand.

O telefone retiniu repetidamente, e por fim ouvi a voz de Elsie, furiosa:

- Estou? Quem se lembrou de telefonar a esta hora?

- Donald.

- Donald! - exclamou, e a sua voz adoçou-se, acto contínuo. - Que sucedeu, Donald? Estás em apuros?

- Preciso de auxílio.

- Diz-me onde estás e farei tudo quanto puder. Irei ter contigo. Que devo fazer?

- Mete-te no carro, vai ao escritório, tira da minha secretária o material dactiloscópico e um rolo de fita de recolha de impressões digitais. Depois vem ao motel "Bide-a-wee-bit". Estou na cabina 27. Mas toma cuidado, não leves o carro para o parque de estacionamento nem passes pelo escritório do motel. Há uma piscina no canto nordeste e uma cabina telefónica no fim desta. Pára aí o automóvel, entra na cabina e finge que telefonas até te certificares de que a costa está livre. Depois faz o resto do percurso a pé. A cabina 27 é a terceira a contar do fim da penúltima fila de cabinas. Por outras palavras: depois de deixares a piscina para trás, caminha ao longo da cerca e verás seis filas de cabinas do lado esquerdo, a seguir um parque de estacionamento e do outro lado deste oito ou dez filas de cabinas. Segue pelo lado esquerdo, dirige-te à segunda fila de cabinas a contar do fim e vira à esquerda. A 27 é a antepenúltima. Entra logo, deixarei a porta só no fecho.

- Donald... estás só?

- Estou.

- Levarei algum tempo a vestir-me e a ir ao escritório... Só daqui a quarenta e cinco minutos ou talvez uma hora aí estarei.

- Não faz mal. Leva o tempo que precisares. Desliguei e regressei à cabina 27. Fechei a porta apenas no fecho, estendi-me numa das camas, meti a almofada debaixo da cabeça e pensei em tudo quanto acontecera.

Passado um bocado comecei a dormitar e acabei por adormecer profundamente, apesar de desejar manter-me acordado.

Sonhei que suaves lábios femininos pousavam nos meus e senti-me envolvido numa onda de doce perfume de flores.

Acordei, de repente, e encontrei Elsie Brand de pé ao lado da cama, a olhar-me com uma expressão estranha.

- Acordei-te, Donald, não acordei?

- Queria que me acordasses. Temos que fazer.

- Sorrias, Donald - acrescentou, sem deixar de me olhar. - Sorrias a dormir. Estavas a sonhar?

- Estava.

- O sonho era bonito?

- Muito bonito.

- Que sonhavas?

- Esbofetear-me-ias, se to dissesse.

- Donald! Que era, Donald?

- Estava a sonhar que te abraçava e beijava.

- Donald! Não devias dizer coisas dessas!

- Avisei-te de que ficarias furiosa, mas insististe...

- Era realmente isso que sonhavas?

- Era.

Sentei-me, sacudi a cabeça, passei os dedos pelos cabelos e perguntei:

- Trouxeste tudo?

- Trouxe. Estás cansado, Donald. Trabalhas de mais.

- Acabaremos em duas horas o que temos aqui a fazer e depois tentarei dormir um bocado.

- Que aconteceu, Donald? Que aconteceu... à rapariga?

- Irritou-se e foi para casa.

- Irritou-se porquê? Por tu... por tu...?

- Não - interrompi. - Irritou-se porque eu não.

Desatou de súbito a rir e exclamou:

- Bem feito! Quem a mandou tomar-te por certo? Mas, afinal, que fazemos?

- Vou procurar impressões digitais no quarto todo e tu seguir-me-ás e limparás tudo aquilo em que tocar, para que ninguém saiba que se empregou pó dactiloscópico para recolha de impressões digitais.

- Que procuras, Donald?

- Já te disse: impressões digitais.

- De quem?

- De quem cá esteve.

- Da rapariga.

- Da rapariga também.

- De quem mais?

- Não sei.

- Está bem, se não queres dizer, não digas. Forreta!

- Já te disse que não sei.

Fui à casa de banho, fechei a porta, tirei um Kleenex da caixa e passei-o pela boca. Ficou levemente sujo de bâton. Passei a língua pelos lábios e encontrei-Lhes um ténue sabor a framboesa.

Deitei o Kleenex na sanita, saí da casa de banho e disse:

- Ao trabalho.

Comecei pelo telefone e passei depois para as cabeceiras e para os suportes metálicos das camas. Experimentei a face inferior do toucador e a borda do espelho oval ajustável. Polvilhei no armário dos remédios, na casa de banho, o suporte das escovas de dentes, os caixilhos das janelas, as faces inferiores das cadeiras e o tampo da mesa.

De vez em quando encontrava boas impressões digitais. Quando tal sucedia, recolhi-as com fita própria, numerava-as, dizia a Elsie que tomasse nota do local onde as encontrara e guardava o pedaço de fita no recipiente a esse fim destinado, no meu estojo de dactiloscopia.

Em seguida Elsie, munida de trapo molhado e sabão, limpava a superfície que eu polvilhara, de maneira que ninguém saberia que se tinham recolhido impressões digitais.

Às três da manhã tinha quinze boas e nítidas impressões digitais, embora não soubesse, evidentemente, quem as deixara.

- E agora? - perguntou Elsie, quando acabámos.

- Agora vamos comer presunto e ovos - respondi-lhe.

- Que caixa de cartão é esta?

- Contém champanhe, taças e gelo seco.

- Recolheste uma impressão digital de uma destas taças... da que estava suja de bâton...

- Pois recolhi.

- Mas eu Lavei-a. Fiz mal?

- Não. Podes lavá-las e guardá-las na caixa.

- Como ignorava que pertenciam à caixa, tinha-as posto ali, em cima do armário.

- Não tem importância; agora arrumamo-las no seu lugar.

- Que fazemos a seguir?

- Eu meto-me no meu automóvel e tu metes-te no teu e segues-me. Conduzirei devagar e não desviarei os olhos do retrovisor.

- Aonde vamos?

- A um restaurante.

- Donald, não podes... dormir umas horas?

- É uma ideia. E tu, que farias?

- Esperaria... esperaria no carro.

- Não sejas idiota.

- Está bem eu ficaria... ficarei... Que queres Donald?

Cheguei-me para um lado da cama e respondi-lhe:

- Deita a cabeça no meu braço e dormiremos os dois uma ou duas horas, o que já será alguma coisa. Depois iremos tomar o pequeno-almoço.

- Donald... não posso...

- Não podes porquê?

Aconcheguei melhor o casaco e estendi o braço por cima da almofada. Elsie hesitou, mas por fim estendeu-se cautelosamente na borda da cama e deitou a cabeça no meu braço. Passados momentos senti-a menos tensa e aproximei-me mais do calor do seu corpo.

Cinco minutos depois adormeci.

Quando acordei era dia claro e ela estava aninhada contra mim. Apoiei-me num cotovelo e olhei-a.

Os lábios tremeram-lhe levemente, as pálpebras fremiram-lhe e abriu os olhos.

Ao princípio não se lembrou onde estava e assustou-se por me ver a olhá-la. Depois gaguejou:

- Donald, que... que...

- São horas de saltar da cama - interrompi-a.

- Oh! - exclamou, mas não fez menção de se levantar.

- Temos de tomar o pequeno-almoço e de ir trabalhar.

Levantou as mãos, passou docemente as pontas dos dedos pela minha cara e murmurou:

- E tu precisas de te barbear.

- Achas que arranharia? - perguntei-lhe, a sorrir.

- Não... não me importaria.

De súbito, passou-me os braços pelo pescoço e puxou-me para baixo, para si.

Continuámos deitados mais cinco ou dez minutos e de repente Elsie afastou-me e saltou da cama, a indireitar o vestido.

- Nem quero imaginar o que deves pensar de mim!

- Porquê?

- Por fazer coisas destas...

- Estivemos apenas a arrulhar. Nunca arrulhaste?

- Num automóvel, mas não... não...

- O lugar faz alguma diferença?

- Faz! - ripostou, de faces em brasa, correu para a casa de banho e bateu com a porta.

Levantei-me e passei o pente pelo cabelo. Dez minutos depois, quando ela saiu da casa de banho, lavei a cara em água fria e disse-lhe:

- Lembra-te de que me deves seguir, Elsie. Se algum carro se meter entre os nossos, vira na primeira esquina e vai imediatamente para casa.

- Porquê? Que significará o facto de outro carro se meter entre os nossos?

- Significará que alguém me segue. Agora sai primeiro, mete-te no teu carro e aquece o motor. Depois vigia a saída que fica à esquerda do local onde deixaste o automóvel estacionado e segue-me assim que me vires partir.

Saí, depois de lhe dar um bom avanço, meti-me no carro, deixei o motor aquecer um bocado e abandonei sem pressas o parque de estacionamento.

Elsie seguiu-me e ninguém tentou meter-se entre nós.

Parei junto de um restaurantezinho pacato que conhecia e tomámos o pequeno almoço juntos.

- Agora vai para casa e em seguida dirige-te para o escritório da maneira habitual. Eu farei o mesmo passado um bocado.

- Donald... não ficaste a pensar que sou... atrevida, pois não?

- És uma garota deliciosa, Elsie - respondi, a dar-Lhe palmadinhas no ombro.

- Donald, eu... quero dizer, foi bom... e tu és simpático.

Acompanhei-a ao automóvel e abri-lhe a porta. Entrou, olhei-lhe para as pernas e Elsie puxou a saia para baixo, constrangida.

- Estás a olhar embasbacado, Donald! - protestou, soltando uma gargalhadinha nervosa.

- É proibido?

- Não, mas é... embaraçoso.

- São bonitas.

Fechou de repelão a porta do automóvel, pisou com força o acelerador e arrancou a toda a velocidade.

Meti-me no automóvel e fui para casa. Tirei da caixa as fitas com as impressões digitais que recolhera e estudei-as com uma lente, a tentar familirizar-me com os diferentes padrões. Por fim acondicionei-as numa embalagem, enderecei-a a mim mesmo, no elegante "Edgemont Motel, selei-a e fui levá-la a um posto dos Correios, para entregar por mensageiro especial.

 

O rosto de Bertha Cool resplandecia.

- Parabéns, sócio - saudou-me.

- Porquê?

- Por ter completado o trabalho com êxito, evidentemente.

- Não está completado e não teve êxito - repliquei.

- De que diabo está você a falar? - perguntou, ansiosa.

- Aquele género de trabalho não se resolve com essa facilidade toda.

- Tolice! Correu tudo às mil maravilhas.

- Como sabe?

- O nosso cliente telefonou.

- Como foi que ele soube?

- Sharon Barker disse-lho.

- E como soube Sharon Barker onde podia comunicar com ele?

Bertha pensou uns momentos, antes de responder:

- Tem razão, ela não devia saber. Deve ter sido ele que lhe telefonou.

- Não acha cedo de mais para telefonar à hospedeira de um salão de cocktails? A maior parte das raparigas que trabalham até quase à meia-noite, depois vão jantar fora e depois passam a noite num motel, ficariam furiosas se lhes telefonassem antes das nove da manhã.

- Oh, não seja tão céptico! - exclamou Bertha. - O indivíduo disse-me que pagou mil dólares à rapariga, e quando se dão mil dólares a uma hospedeira de bar pode-se chamá-la seja a que horas for.

- Que disse ele?

- Que correra tudo bem e que estaria aqui dentro de uma hora para nos oferecer um pequeno bónus. Disse que seria mais se não tivesse dado os mil à rapariga... É a isto que chamo ganhar dinheiro com facilidade! Com facilidade da sua parte, evidentemente.

- Acha?

- Com certeza! - exclamou, indignada. - Leva uma boneca atraente para um motel, passa a noite com ela e nós recebemos dois mil dólares por isso. Que diabo quer mais? Presumo que era bonita?

- Linda.

- Figura?

- Aerodinâmica; pernas compridas, curvas - mas não banhas - e olhos bonitos.

- É um mariola cheio de sorte!

- Sou?

- Sabe perfeitamente que é.

- Engana-se. Estamos perante um caso de assassínio, Bertha.

- E depois?

- Não subestime a Polícia...

- Ora! Não fizemos mal nenhum.

- Repito, não subestime a Polícia.

- Está bem, não subestimarei a Polícia. Mas que quer dizer com isso?

- O seu amigo, Frank Sellers...

- Está aqui! - disse Sellers, da porta.

- Como diabo entrou sem ser anunciado? - perguntou, irritada, Bertha.

- Disse à telefonista que não tocasse - explicou o sargento.

- Não querem lá ver a desfaçatez? Quem dá ordens à telefonista sou eu! - barafustou a minha sócia.

- Desta vez, dei-lhas eu.

Sellers sorria, à entrada da porta. Era um polícia robusto e de ombros largos, a quem divertia a cólera de Bertha, que acabou por lhe perguntar:

- Que quer, afinal?

- Quero cartas na mesa - respondeu-lhe o polícia.

- A que respeito?

- A respeito das aventuras de Donald, a noite passada.

- Que aventuras?

- Não arme em ingénua; sabe perfeitamente a que me refiro.

- Pergunte-lhe a ele, então. Meu Deus, ter-se-á esta cidade tornado tão puritana que já um tipo não pode recolher uma garota atraente e levá-la para um motel sem atrair a maldita corporação da Polícia, em peso?

- Tem acontecido - redarguiu Sellers. - Continua a acontecer, sem dúvida, e continuará provavelmente. Mas embora este caso particular não tenha atraído a corporação da Polícia em peso, atraiu-me a mim e eu estou com curiosidade.

Sellers dirigiu-se para uma cadeira, instalou-se, tirou um charuto da algibeira e meteu-o no canto da boca, mas não o acendeu. Olhou de mim para Bertha e desta novamente para mim.

- Vamos, dê à dica - ordenou-me.

- Levei uma rapariga ao motel. Por coincidência, ela já lá estivera no sábado à noite, com outro tipo, o qual pagara o quarto por dois ou três dias. Suponho que pensava que o romance seria prolongado... Por coincidência também, foi nessa noite de sábado que encontraram Ronley Fisher assassinado na piscina do referido motel.

- Que aconteceu a noite passada?

- Interromperam-me o sono.

- Que pena!-troçou Sellers.- Consta-me que os rapazes se foram embora, a seguir, e os deixaram entregues a vocês mesmos.

- Deixaram?

- Bem, quase...

- Quase? - interveio Bertha Cool. - Que quer dizer?

Sellers virou-se para ela, passou o charuto para o outro canto da boca, com a língua, e respondeu-lhe:

- Os rapazes ficaram um bocadinho curiosos, o que não se lhes pode levar a mal. Os contribuintes pagam-nos precisamente para sermos curiosos. Vigiámos, por isso, o motel, a fim de vermos como progredia o romance de amor de Donald. Claro que não progredia...

- Explique-se, homem! - resmungou Bertha.

- A rapariga deixou-o só passada meia hora, telefonou a chamar um táxi e foi para casa. Parece ser um hábito dela.

Bertha olhou-me, de expressão agressiva.

- Depois - prosseguiu o sargento - Donald saiu, olhou à sua volta, telefonou e foi outra dama ter com ele.

- Outra dama! - exclamou a minha sócia, estupefacta.

- Exactamente - confirmou Sellers.

- Macacos me mordam!

- Segundo deduzimos - continuou o sargento -, Donald não esteve no motel com Sharon Barker para se divertir e, sim, para trabalhar. Concluído o trabalho, livrou-se dela e mandou chamar a rapariga com a qual queria, realmente, encontrar-se. O nosso amigo fez um joguinho muito bem feito. O motel estava pago, a interrupção que esperara verificara-se e não havia nada que o impedisse de passar umas horas agradáveis.

- Sabem quem era essa segunda rapariga? - inquiriu Bertha.

- Claro que sabemos. Achámos nosso dever esclarecer esse pormenor. Tratava-se da secretária de Donald.

- Macacos... me mordam!-gaguejou Bertha, apoplética.

Surpreendida? - trouçou Sellers.

- Não, com os diabos! Isto é, em certo sentido, não. Ignorava, apenas, que a coisa tivesse ido tão longe. A secretária dele faz-lhe olhos de carneiro mal morto sempre que o vê, mas não me passava pela cabeça que estivessem tão adiantados. Parecia-me mais um caso de frustração do que outra coisa, Meu Deus, se ela até cora quando Donald a olha! - Voltou-se para mim e concluiu: -Acabou, então, a noite com ela, hem?

Não respondi

Passado um bocado, Bertha Cool disse ao sargento:

- Mas, afinal, que tem isso? Creio que têm ambos idade suficiente para saberem o que andam a fazer.

- Ainda não percebeu - comentou Sellers.

O diabo é que não compreendi!

- Não compreendeu - teimou o polícia. - O facto de Donald ter acabado a noite com a pequena da sua predilecção serve -apenas para confirmar a nossa convicção de que as suas actividades durante a primeira parte da noite foram puramente profissionais. Queremos, portanto, saber o nome do vosso cliente.

Bertha limiitou-se a fulminá-lo com um olhar.

- Saron Barker é uma rapariga discreta e, que, saibamos, não vende nada. Às vezes mostra uma certa tendência para ser generosa, mas isso não nos diz respeito. Se gosta assim, é lá com ela. O que é certo é que não tem dinheiro que chegue para pagar a um detective para nos deitar poeira nos olhos, e isso aguça a nossa curiosidade acerca da identidade do vosso verdadeiro cliente.

Talvez ela não pagasse com dinheiro... - insinuou Bertha.

Considerámos essa possibilidade, mas pusemo-la de parte. Enquanto você for sócia desta agência de detectives, o trabalho será pago com dinheiro. Vamos lá a saber, portanto, quem- foi o vosso cliente.

Sabe muito bem que não podemos dizer-lho - respondeu Bertha.

Trata-se de um caso de assassínio e não estamos com trapos quentes - lembrou Sellers. - Quem foi o vosso cliente?

Bertha olhou para mim e eu abanei a cabeça.

- Não constará nem uma palavra do que disseram, mas queremos saber - insistiu o sargento.

- E nós não lho podemos dizer.

A expressão de Sellers tornou-se agressiva. Cerrou os queixos de tal maneira que o charuto se inclinou para cima, num ângulo truculento.

- Desta vez não aceitarei um "não" como resposta, meia-leca! - redarguiu-me, ameaçador.

- Ouça, Frank, o caso é melindroso - interveio Bertha. - O homem é casado e encontra-se numa situação precária. Tem de proteger o seu bom nome.

- Nós proteger-lhe-emos o bom nome - prometeu Sellers-, dar-lhe-emos toda a protecção que quiser, mas temos de saber. Queremos investigar e precisamos de falar com ele. Vocês podem até cobrar outros honorários por estabelecerem connosco um acordo segundo o qual ele será protegido.

Bertha olhou de novo para mim, mas recusei:

- Não podemos fazer isso, Sellers. O indivíduo podia apanhar-nos a licença, se o fizéssemos.

- Mas se não fizerem podem ter a certeza de que quem a apanhará serei eu! - ameaçou o sargento.

- Não o poderá fazer com esse pretexto.

- Talvez possa e talvez não possa, mas hei-de arranjar maneira de a apanhar. Não permitirei que façam caixinha connosco num caso de assassínio desta importância.

- O homem procurou-nos por precisar de protecção - informou Bertha. - Paga-nos...

- Cale-se, Bertha! - ordenei.

Bertha lançou-me um olhar coruscante e Sellers levantou-se.

- Está bem - declarou. - Se não conseguir obter a informação que pretendo pela maneira mais simples, obtê-la-ei pela mais difícil - e depois de a obter não esquecerei o que aconteceu e como aconteceu.

- Talvez obtenhamos autorização dele para revelar o seu nome se você prometer protegê-lo - sugeriu Bertha.

- Prometerei protegê-lo se ele não tiver culpas no cartório - esclareceu Sellers. - Caso contrário, atirá-lo-ei aos lobos.

- Telefone-nos daqui a uma hora, Frank.

Frank Sellers parou com a mão na maçaneta da porta, semicerrou pensativamente os olhos e disse, de súbito:

- Está bem.

Saiu. Quando calculei que estava suficientemente longe para não me ouvir, disse a Bertha, em voz baixa:

- Telefone a Charleton Allen.

- Não é preciso; ele vem a caminho.

- Precisamente por isso. Tem de o afastar.

- Porquê?

- Porque ao dizer a Sellers que comunicasse consigo daqui a uma hora lhe deu a entender que vai comunicar com o cliente. Como sabe que você não se arriscaria a tratar pelo telefone de um assunto de tanta delicadeza, Sellers mandará com certeza vigiar o escritório. Telefone ao Allen e diga-lhe que não venha.

- Impossível - respondeu a minha sócia. - Já lhe disse que ele vem a caminho.

- Nesse caso esperá-lo-ei lá em baixo, no átrio. Verei se, quando ele entrar no edifício, poderei meter-lhe um bilhete na mão a dizer que vá a um dos outros escritórios em vez de vir aqui.

- Se o sargento o apanha a fazer isso vai ser o bom e o bonito.

- Paciência. É nossa obrigação proteger o nosso cliente.

Peguei num papel e rabisquei o seguinte: "A Polícia vigia o nosso escritório. Meta-se no elevador e suba ao andar que fica por cima do nosso e onde há um especialista em assuntos relacionados com o imposto de rendimento. Procure-o e faça-lhe algumas perguntas. Não se aproxime do nosso escritório enquanto não lhe dissermos que o pode fazer. Telefone mais tarde, para saber se a costa está livre."

Saí do escritório, desci ao átrio no elevador e fui ao balcão onde vendiam charutos. Constara-me que a loura encarregada de venda iria fosse aonde fosse por cinquenta dólares por noite e transportes de ida e volta.

Sendo assim, pareceu-me que ela gostaria de discutir o assunto.

Verifiquei que era verdade.

Comprei cigarros, fingi-me interessado e desviei-me para a ponta do balcão, onde ela me ia falar de vez em quando, enquanto atendia os clientes.

Charleton Allen entrou quando ela se dispunha a fechar o negócio. Allen olhava para os elevadores e não me viu. Choquei com ele, meti-lhe o bilhete na mão, murmurei "Desculpe" e saí do edifício antes que tivesse tempo de reagir.

Não me pareceu que estivesse alguém a olhar.

Esperava que a vigilância se efectuasse no andar onde estava instalado o nosso escritório, pois Sellers não pudera arranjar homens que chegassem para cobrir todo o prédio no curto espaço de tempo de que dispusera.

 

O cartão comercial que Charleton Allen nos dera, com a sua morada, não contava a história toda.

O cartão indicava apenas: "Charleton Alen, Presidente, Allen Enterprises", e uma morada. O endereço, porém, era o da "Getchell & Allen Investment Management Corporation", e a "Allen Enterprises" não passava de uma da meia dúzia de companhias filiadas da mesma.

Com a pasta que continha o material dactiloscópico debaixo do braço, disse à recepcionista que desejava falar com a secretária particular de Mr. Allen acerca de um assunto da máxima importância. Tratava-se, garanti-lhe, de um assunto que só podia revelar à secretária particular de Mr. Allen.

Depois de uma conversa telefónica conduziram-me, através de comprido corredor, a um escritório ricamente alcatifado onde uma jovem excepcionalmente vistosa, a irradiar eficiência, pontificava a uma secretária.

Atrás da secretária havia duas portas, uma com o nome de Charleton Allen e outra com o de Marvin Getchell.

No escritório havia várias cadeiras estofadas, por sorte todas desocupadas naquele momento. Dirigi-me à secretária, com a pasta bem apertada debaixo do braço, e perguntei à rapariga:

- É a secretária particular de Mr. Allen?

- Sim, sou Miss Beal. Suponho que tem um assunto confidencial a discutir?

- Exactamente-confirmei, ao mesmo tempo que lhe entregava um dos meus cartões. - Sou Donald Lam, da firma Cool and Lam. Isso diz-lhe alguma coisa?

- É Mr. Lam? - perguntou, de olhos semicerrados.

- Sou.

- Traz algum documento que o identifique, Mr. Lam?

Mostrei-lhe a carta de condução, que examinou com cuidado.

- Muito bem - declarou, por fim. - Que espécie de informação deseja transmitir a Mr. Allen?

- Preciso de falar com ele. Como talvez seja do seu conhecimento, Mr. Allen saiu do nosso escritório não há muito tempo. Infelizmente, determinadas circunstâncias impediram-me de lhe dizer uma coisa de considerável importância, a qual desejo comunicar-lhe sem demora. Quando espera o seu regresso?

- Mr. Allen telefonou há uns cinco minutos a informar que contava chegar dentro de meia hora, mais ou menos.

- Diabo! Tenho de o ver!

- Importa-se de esperar, Mr. Lam? Olhei à minha volta e abanei a cabeça.

- Aqui não - respondi-lhe. - Não quero que ninguém me veja, sobretudo ninguém que venha de fora... Sabe o que farei? Esperarei todo o tempo que puder no seu gabinete particular. Assim que ele vier informe-o da minha presença, mas tenha cuidado; não convém que alguém que esteja no escritório ouça o meu nome ou saiba que estou à espera lá dentro.

Precisei de toda a minha presença de espírito para passar pela sua secretária e abrir calmamente a porta do gabinete particular de Allen.

Não me atrevi a proceder com excessiva pressa nem- com excessivo vagar; não queria de maneira nenhuma dar-lhe a impressão de que precisava da sua permissão. Adoptei a atitude de um homem tão intimamente relacionado com o seu patrão que sabia estar bem tudo quanto desejasse.

Miss Beal pareceu hesitar, durante uma fracção de segundo, mas depois aceitou a situação - com umas certas dúvidas, é certo, mas aceitou-a.

Fechei a porta, depois de entrar. Era um gabinete mobilado para facilitar o trabalho. A secretária de aço, com um pesado tampo de correr, tinha gavetas subdivididas em compartimentos para cartões, ficheiros de cartas e documentos legais; as cadeiras eram modernas, mas confortáveis, e na estante havia umas duas dúzias de livros de consulta e dicionários.

Esperei o tempo suficiente para me certificar de que Miss Beal não entraria atrás de mim e depois aproximei-me da secretária, em cuja orla metálica ornamental espalhei o pó que tirei da pasta. Revelei assim umas duas dúzias de impressões digitais iatentes. Umas oito estavam pouco nítidas, mas a maioria valia a pena ser recolhida. Apliquei a fita adequada sobre as impressões digitais, recolhi-as apressadamente e limpei a secretária com um bocado de camurça que tirei da pasta.

Em seguida abri uma fenda da porta e chamei:

- Miss Beal, pode chegar aqui, por favor? Saltou da cadeira como se as minhas palavras tivessem ligado uma corrente eléctrica e eu afastei-me da porta, a fim de ela entrar.

- Está alguém lá fora, no seu escritório? - perguntei-lhe, baixinho.

Abanou negativãmente a cabeça.

- Julguei que podia esperar que Mr. Allen regressasse, mas é impossível. Agradecia-lhe que lhe entregasse um recado importantíssimo.

- Que recado?

- Diga-lhe que não deve comunicar, em circunstâncias nenhumas, com a jovem com quem eu estive a noite passada.

- A jovem com quem o senhor esteve a noite passada?

- Sim.

- Não pode indicar-me o nome dela?

- Não. Lembre-se, apenas, de que é a jovem com quem estive a noite passada.

- Mr. Allen saberá a quem se refere?

- Saberá - afirmei.

- Muito bem, diir-lhe-ei.

- Lembre-se: não deve comunicar com ela em circunstâncias nenhumas - frisei.

- Compreendo,. Transmitirei o recado a Mr. Allen.

- Muito obrigado. Agora veja se está alguém no seu escritório. Se a costa estiver livre faça-me sinal, a fim de me ir embora. Se não estiver, livre-se da pessoa que lá se encontrar e diga-me assim que puder sair.

Miss Beal abriu a porta, espreitou e disse-me:

- Pode sair, Mr. Lam.

Saí, de pasta debaixo do braço, e lancei-lhe um olhar rápido e um sorriso tranquilizador ao transpor a porta do seu escritório.

Não retribuiu o sorriso. Os seus olhos estavam nublados de dúvida e postos na pasta que eu apertava contra mim.

 

Certifiquei-me de que ninguém me seguia e pus-me a caminho do "Edgemount Motel", onde me registei sem falcatruas de nomes. Quando perguntei se chegara algum correio para mim, entregaram-me a embalagem que eu próprio expedira, para ser entregue por mensageiro especial. Pendurei na porta o letreiro "Não incomodar ", espalhei em cima da mesa as impressões digitais que recolhera e comecei a trabalhar.

Não tinha muitas esperanças mas impressões digitais recolhidas no motel, a não ser no que respeitava às que Sharon deixara na taça de champanhe. As outras podiam ser de criadas, de anteriores ocupantes da cabina ou de visitas destes. Também não me podia fiar muito nas que recolhera na orla metálica brilhante da secretária do gabinete particular de Allen. Algumas seriam, sem dúvida, dele, mas haveria outras de Miss Beal e de visitantes que o teriam procurado para tratar de assuntos relacionados com as suas variadas actividades comerciais.

O que naquele momento pretendia era verificar se uma das impressões digitais latentes recolhidas na secretária do gabinete particular de Allen coincidia com uma das que recolhera no quarto do motel.

Meia hora depois de começar a trabalhar, encontrei o "casal".

Não havia dúvida, uma das impressões digitais recolhidas na secretária de Allen coincidia com uma das encontradas na cabina do motel.

Meditei no assunto durante uns cinco minutos, findos os quais liguei para o escritório e pedi à telefonista que chamasse Bertha Cool.

- Onde diabo está você? - perguntou, irritada, a minha sócia.

- Estou a trabalhar.

- O telefone não tem parado de tocar e tem aparecido gente a querer falar consigo.

- Que esperem - repliquei. - Queria dizer-lhe, apenas, que estarei fora da circulação por uns tempos.

- Por uns tempos? Que quer isso dizer?

- Até passar o calor.

- Que calor?

- Não tardará a saber.

- Não está calor.

- Então conserve-se fresca - redargui, e desliguei. Tinha conhecimentos de confiança, que me podiam ajudar no capítulo de matrículas de automóveis. Peguei outra vez no telefone e tentei localizar o proprietário do automóvel VGH 535.

Vim a saber que se tratava de um Cadillac pertencente a Carlotta Shelton.

Carlotta Shelton era pessoa importante, uma divorciada de pernas compridas com um grande cadastro de iates, cavalos e golfe - membro do círculo do country club.

Portanto, se Sharon falara verdade, o carro de Carlotta estivera estacionado no motel, na noite de sábado.

Mas teria Sharon dito a verdade? O nome de Carlotta não fora mencionado uma só vez em relação com o caso, quer pela Imprensa quer, que eu soubesse, pela Polícia.

Contudo, a menção do seu nome seria notícia.

Se estivera no motel na noite de sábado, registara-se com um nome falso - e porque demónio iria ao "Bide-a-wee-bit" uma divorciada que recebia mensalmente avultada pensão e tinha um apartamento luxuoso só para si?

Teria Sharon mentido?

Sharon indicara um número de matrícula a que mudara apenas uma letra. Seria excessiva coincidência que o tivesse inventado e o mesmo coincidisse com o Cadillac de último modelo a que por direito pertencia...

Decidi pensar muito, muito mais naquele assunto.

 

O juiz de instrução discutira com o chefe da Polícia. Pessoas que não gostavam do indivíduo haviam tentado colocá-lo na defensiva. Um dos seus ajudantes, James C. Lowden, estava encarregado das relações com o público e tinha uma certa tendência para ser agradável, sempre que possível. Conhecia-o de vista.

Só ao fim de uma hora consegui vê-lo.

Olhou para o meu cartão e perguntou-me:

- Em que lhe posso ser útil, Lam?

- As companhias de seguros são um aborrecimento, não são? - redargui.

Começou a acenar com a cabeça, mas depois o velho instinto das relações públicas veio ao de cima e respondeu-me:

- Não as podemos censurar, Lam; têm de ter a certeza.

- Bem sei, mas às vezes parecem despender uma quantidade de tempo e dinheiro a perseguirem-se a si mesmas, em círculos.

- Suponho que representa uma companhia de seguros - observou, sorridente -, se se prepara para nos causar uma série de trabalhos e está com essa conversa para tentar quebrar o gelo.

- Talvez - respondi. - Que há acerca de Ronley Fisher?

O seu rosto endureceu, acto contínuo.

- A que se refere, Lam?

- A autópsia revelou alguma coisa?

- Ouça, Lam, isso é um caso de assassínio que a Polícia investiga. Sabe muito bem que não lhe posso dizer nada a esse respeito.

- Não me referia a quem matou o indivíduo. Falava do ponto de vista de" seguro.

- Que quer dizer?

- Há alguma dúvida acerca da identificação?

- Céus, não!

- Não poderá ter sido suicídio?

- Explique-me como pode um homem amolgar a própria nuca e depois falaremos de suicídio. Considerando a maneira como a pancada foi dada, teria sido quase fisicamente impossível Fisher ter-se ferido a si mesmo. Além disso, quando uma pessoa se quer suicidar não o faz à cacetada. Envenena-se, atira-se a um lago, dá um tiro nos miolos ou toma uma dose excessiva de comprimidos para dormir. Não pega num bastão de basebol e bate com ele na nuca.

- Ouça, Lowden: tento apenas ganhar a vida. Suponha que a piscina não tinha água e Fisher julgava que tinha. Subiu à prancha, atirou-se ao ar e mergulhou... Desceu à espera de encontrar água, mas três metros mais abaixo chocou com o fundo de cimento...

- No fim de contas, Lam, não posso falar disso, como sabe.

- Interessaria à companhia de seguros.

- Nesse caso a companhia de seguros terá de procurar provas.

- Está bem, falemos então da questão da identidade...

- Qual identidade? Homem, o indivíduo era muito conhecido em toda a cidade.

- Claro, claro... Mas você sabe como as companhias de seguros são.

- Para qual delas trabalha? - perguntou-me Lowden.

- Não disse que trabalhava para uma companhia de seguros, pois não? Disse apenas que tentava esclarecer este assunto... e, claro, as companhias de seguros adoptam um procedimento a bem dizer único em casos deste género. Naturalmente, esforço-me por manter o meu trabalho de investigação ao nível das especificações das companhias de seguros...

- Eis uma maneira muito complicada de me dizer que já foi contratado por uma companhia de seguros que não quer que se saiba que anda a investigar pela calada!-exclamou, a rir.

- As investigações a que procederam confirmam a identificação?

- Com certeza, Lam. Mas aomde quer você chegar, homem? Sabe alguma coisa?

- Não sei nada, tento apenas confirmar todos os pormenores. A respeito de impressões digitais? Tiraram-lhas?

- Evidentemente que tirámos. Tiramos as impressões digitais a todos quantos passam por este serviço.

- Confrontaram-nas com as suas impressões digitais constantes dos arquivos governamentais?

- Não, com os diabos! - exclamou, exasperado.- Isto é, ainda não. Não tínhamos intenção nenhuma de proceder ao confronto enquanto você não apareceu com essa conversa toda acerca da identificação.

- Têm as impressões digitais dele?

- Já lhe disse que sim.

- Posso dar uma vista de olhos ao dossier?

- Não.

- E às impressões digitais?

Lowden hesitou um bocado, mas por fim respondeu:

- Com certeza, porque não? Vou buscar-lhas. Saiu do gabinete e regressou pouco depois com um jogo de dez impressões digitais.

- Não se arranja uma cópia?

Hesitou de novo, mas acabou por repetir:

- Porque não? - Foi a uma máquina duplicadora e tirou uma cópia das impressões digitais. - Isto serve?

- Creio que sim - respondi-lhe. - A cópia está suficientemente nítida para fins de comparação.

- Que ideia é essa acerca da identidade da vítima, Lam?

- Como quer que saiba? Sei apenas que quero confirmar a identificação para que não haja nenhuma dúvida acerca dessa fase do caso.

- Alguém a pôs em dúvida?

- É difícil responder...

- O que você quer dizer é que lhe é difícil, a si, responder.

- Como quiser - repliquei, a rir.

- Está bem, Lam, você obteve as impressões digitais e eu tomo nota de que a companhia de seguros pode levantar dúvidas quanto à identificação.

- Não faça isso.

- Porquê?

- Porque não será verdade.

- O que é verdade, afinal?

- O que neste caso está realmente estabelecido é a bem dizer apenas que a vítima era Ronley Fisher, ajudante do Promotor de Justiça no julgamento de Staunton Cliffs, acusado de ter assassinado a mulher. Como este caso despertou muita curiosidade, Ronley Fisher tornou-se um vulto público e o seu assassínio deu origem a muitas perguntas. Estas são as únicas certezas que tem. Tudo quanto passar disto são conjecturas.

- Há algum mal em conjecturar? - perguntou-me.

- Não, quando se encontram as respostas certas.

- Que acontecia se eu encontrasse as respostas erradas?

- Isso seria mau para si e mau para o seu departamento - respondi-lhe, sustentando o seu olhar.

- Mais devagar, Lam! O departamento já teve aborrecimentos mais do que suficientes; não lhe arranjemos mais.

- Também acho.

- Ponhamos as coisas neste pé: se uma companhia de seguros trabalha nalgum aspecto do problema susceptível de prodluzir efeito, ajudar-nos-ia muito saber de que aspecto se trata.

- Para dizerem à Polícia?

- Isso ajudar-nos-ia.

- Tem a certeza?

- Tenho. A Polícia não tem sido... enfim, não tem cooperado tanto como podia.

- Assim vocês apresentariam à Polícia um aspecto novo do caso e a Polícia pensaria que talvez em qualquer ocasião futura o departamento se servisse dele para ficar bem visto e a Polícia mal vista - sugeri.- Seria agradável, não seria?

- Pensando bem, não seria agradável - respondeu, sublinhando as palavras com um sorriso amarelo.

- Por outras palavras: pensando bem, entendem-se às mil maravilhas como estão.

- Desde que você não apareça com qualquer coisa que nos deixe mal vistos a nós...

- Limitei-me a perguntar-lhe que providências tomaram no sentido de confirmar a identificação e se havia alguma possibilidade de a mesma ser errónea.

- E que lhe respondi eu?

- Disse-me saber do caso apenas o que as suas investigações tinham revelado e que não me podia dizer nada a esse respeito.

- Deixei-o ver o dossier?

- Não. Deu-me um jogo de impressões digitais para que eu pudesse averiguar a identidade do indivíduo, no caso de haver algum erro a esse respeito.

- Muito bem. Mas suponha que havia algum erro na... enfim, nas impressões digitais?

- Como podia haver?

- Talvez... Com os diabos, sei lá! Mas têm acontecido coisas mais estranhas, Lam. Ronley Fisher podia ter sido morto na guerra, por exemplo, e alguém ter-se apoderado dos seus documentos de identificação, regressado e começado a viver a vida dele, a partir desse momento.

- Tem visto demasiados filmes na televisão. No entanto, como vocês possuem as impressões digitais da vítima e o Governo as tem igualmente, porque não confirma o pormenor com o F. B. I-, se quer ter a certeza de que está tudo em ordem?

- Se pensa que não o faremos, está doido - respondeu-me, em tom enfático. - Agora que você se mostrou tão perguntador e tão misterioso, confirmaremos até a impressão- do seu pé no hospital onde nasceu. Mas agora ponha-se a andar, para que eu possa fechar a loja e ir para casa.

Saí, regressei ao motel e comecei a confrontar impressões digitais.

De súbito, dei um pulo na cadeira. Encontrara outro par! Uma das impressões digitais de Ronley Fisher condizia com uma das que encontrara e recolhera na cabina 27 do "Bide-a~wee-bit".

Agora a agência estava afundada até aos Olhos num caso de assassínio.

O facto de um detective particular estar de posse de semelhantes informações equivalia a encontrar-se na orla da cratera de um vulcão prestes a entrar em erupção ou a vaguear num imenso paiol de pólvora e acender fósforos para saber onde se encontrava a porta.

A dificuldade residia em que as impressões digitais não têm um rótulo com a data...

Se o assassinado estivera no quarto do motel com Sharon Barker e Charleton Allen, eu só podia conduzir o jogo de uma maneira, de uma apenas.

Mas supondo que Ronley Fisher lá estivera antes de eles chegarem?

Certos motéis adoptam o sistema de alugar acomodações várias vezes numa noite.

O "Bide-a-wee-bit" não pertencia a essa categoria

- ou não devia pertencer-, mas não é raro uma fachada respeitável ocultar toda a sorte de irregularidades.

Como podia ter a certeza de que era merecida a aura de respeitabilidade que rodeava o motel?

A dar-se o caso de aquela cabina ter sido alugada duas vezes, era natural que a gerência suprimisse o registo do primeiro aluguer. Assim, a gerência encontrar-se-ia na mesma camisa de onze varas em que eu me encontrava.

Fui a uma cabina telefónica, procurei o número do telefone do apartamento de Carlotta Shelton, liguei e perguntei à mulher que atendeu:

- Mrs. Shelton está, por favor?

- Quem devo anunciar?

- Um homem que tem informações muito importantes acerca da noite de sábado.

- Como se chama, por favor?

- Mr. Knight.

- Qual é o primeiro nome?

- Sábado.

- Lamento, mas não posso transmitir a Mrs. Shelton um recado desse género. Mr. Sábado Knight, disse?

- Exactamente, Knight. - E repeti, letra por letra:

- K-n-i-g-h-t.

- O apelido percebi, mas o primeiro nome é que não compreendo.

- O primeiro nome é Sábado - esclereci.

- Sábado Knight?-repetiu a minha interlocutora.

- Lamento, mas não...

Ouvi outra voz de mulher perguntar: "De que demónio estás a falar, Rosa?"

Seguiu-se um momento de silêncio; Rosa tapara;, sem dúvida, o bocal, enquanto explicava a Carlota Shelton de que se tratava.

A seguir uma voz cautelosa e fria substituiu a primeira ao telefone e perguntou-me:

- Não pode explicar melhor o que deseja, Mr. Kmight?

Arrisquei-me e respondi:

- Dê um recado a Mrs. Shelton. Diga-lhe que Donald Lam, um detective particular, se encontra no Edgemount Motel a proceder a investigações relacionadas com as pessoas que estiveram em certo motel na noite de sábado e está potencialmente interessado em todas as possíveis testemunhas.

- Quem fala? Não disse que se chamava Mr. Knight?

- Na realidade, o meu nome é São Nicolau... tento transmitir certas informações susceptíveis de ajudar Carlotta Shelton. Lam não é nenhum trouxa e transmitirá o que descobriu ao seu cliente, a não ser que alguém o detenha. Corri um grande risco para poder passar estas informações. Suponho estar a falar com a secretária de Carlotta Shelton e por isso peço-lhe que não se esqueça de a avisar.

Desliguei, regressei ao "Edgemount Motel" e deitei-me. Não esperava dormir toda a noite, mas dormi. Não aconteceu nada.

Às nove e meia da manhã seguinte disfarcei a voz, telefonei para o escritório e disse à telefonista que era Harry Carson, uma testemunha que Donald Lam tentara contactar. Podia falar com Mr. Lam?

A rapariga respondeu-se que ia ligar à secretária de Mr. Lam e, passados minutos, ouvi a voz de Elsie Brand.

- Onde está agora, Mr... Carson? - perguntou-me.

- A tratar do caso.

- Pois sim, mas onde?

- É melhor não saberes.

- A Bertha está pior do que uma barata.

- Deixa-a estar.

- Se descobrir que estive a falar contigo e não lhe disse onde estás, despede-me.

- Onde estou?

- Eu... eu não sei! Não me disseste.

- Ora aí tens. Não sabes. O Frank Sellers tem estado por aí, no escritório?

- Se cá tem estado! Só na última meia hora já o vi duas vezes.

- E a Bertha quer saber onde eu estou, hem?

- Quer.

- Muito bem, tiveste notícias minhas. Telefonei de fora da cidade, disse que precisava muito de falar com Frank Sellers, que tentara encontrá-lo e soubera que fora para aí. Perguntei-te se ele estava e respondeste-me que não e que Bertha Cool queria falar comigo, ao que redargui ser-me impossível perder tempo a falar com ela enquanto não falasse com o sargento; era importantíssimo comunicar com ele, pois tinha uma informação muito valiosa para lhe dar.

- E depois?

- E depois desliguei.

Juntando o gesto à palavra, repus o telefone no descanso e cortei a ligação.

Comecei à espera.

Não há nada que bula tanto com os nervos como esperar, em certas circunstâncias. Quando se espera que suceda qualquer coisa, torna-se verdadeiramente insuportável, pois nunca sucede nada.

Como um amigo meu uma vez disse, "se esperas um telefonema importante não te sentes junto do telefone; vai para a casa de banho."

Ao princípio da tarde telefonei de novo para o escritório.

- Novidades, Elsie?

- A Bertha está rouca de tanto gritar.

- Têm telefonado a perguntar por mim?

- Muita gente.

- Foi aí alguém procurar-me?

- Uma mulher. Não quis dizer o nome; preferia esperar que voltasses.

- Uma loura alta, com...

- Não. Uma morena bem: feita.

- Idade?

- Vinte e oito, vinte e nove, talvez trinta anos.

- Brasa?

- Brasíssima!

- Não disse o que queria?

- Não.

- E esperou?

- Mais de uma hora. Não sei porquê, parecia convencida de que telefonarias. Sentou-se na sala de espera e de vez em quando vinha ter comigo e perguntava se telefonaras.

- E tu mentias-lhe?

- Ter-lhe-ia mentido descaradamente, mas não foi preciso; não telefonaste, nesse ínterim.

- Que mais sabes a seu respeito?

- Posso dizer o tom das suas meias, a marca de perfume que usa e onde comprou a mala e os sapatos. Sei que foi casada e se divorciou, que anda entusiasmada com um namorado com o qual gostaria de casar, mas que ele ainda não lho propôs e provavelmente nunca o fará. Levou a franqueza ao ponto de me dizer não haver motivo para que ele o fizesse.

- Por outras palavras: falaram pelos cotovelos. Tagarelice feminina.

- Exactamente.

- Que lhe disseste a teu respeito?

- Nada.

- A conversa passou-se no teu escritório ou na sala de espera?

- No meu escritório. Ela sentou-se na borda da minha secretária e entrou em confidências. Tem pernas bonitas.

- Está bem. Provavelmente voltará. Desliguei e recomecei a espera. Não aconteceu nada. Às três horas telefonei a Bertha Cool.

- Onde diabo está você? - perguntou-me, mal me ouviu.

- Estou a trabalhar num caso.

- Que caso?

- Não lho posso dizer pelo telefone.

- Sellers quer vê-lo, precisa muito de falar consigo.

- Também o quero ver, mas preciso de esclarecer mais uns pormenores antes de falar com ele.

- Eu quero falar consigo! - declarou Bertha, em tom firme.

- A respeito de quê?

- Quero ter a certeza absoluta, absolutíssima, de que não está a reter o mínimo vestígio de informação. Sellers afirmou que perderemos a licença se não lhe dissermos o nome do nosso cliente. Garante que lho podemos dizer confidencialmente, se quisermos, e que nos protegerá. Ou lho dizemos ou arranjam um pretexto qualquer para nos cassarem a licença. Afirma que a Polícia não permite que detectives particulares se ponham com evasivas em casos de assassínio.

- Quando foi que ele lhe disse isso?

- Ontem à tarde e novamente esta manhã, às nove horas.

- Disse-lhe?

- Não.

- Ele esteve aí esta tarde?

- Não.

- Telefonou?

- Não.

- Então diisse-lhe.

- Não disse nada!

- Está a mentir, Bertha.

- Seja! Tive de proteger o nosso modo de vida.

- Está, então, explicado por que motivo Sellers não me encontrou, para me apertar. Não era preciso, pois você deu à dica.

- Foi tudo confidencial. Sellers proteger-nos-á.

- Tretas!

- Não tive outro remédio, Donald. O caso está muito feio. Leu o que aconteceu ontem, no tribunal?

- Não. Que foi?

- O procurador do Distrito tentou obter um adiamento, em virtude da morte de Ronley Fisher, mas a defesa objectou veementemente. Por fim o juiz concedeu ao promotor o prazo de quarenta e oito horas para nomear um novo advogado de acusação e para que este se familiarize com o caso em julgamento. É crença geral que Fisher descobrira qualquer coisa, qualquer testemunha-surpresa que tencionava chamar. O procurador do Distrito não pode dar-se ao luxo de perder a causa Cliffs, assim como a Polícia não se pode permitir deixar o assassínio de Fisher por esclarecer.

Levantam todas as pedras e espreitam debaixo de cada uma com uma lente de aumentar...

- Bem, como você costuma dizer tão acertada-mente, não podemos esperar competir com a Polícia.

- Com os diabos, não se mostre tão complacente! Podia, ao menos, garantir ao Frank Sellers que não está a fazer caixinha de nada e... bem, proporcionar-lhe o benefício do seu pensamento.

- Que eu saiba, nunca desejou o benefício do meu pensamento.

- Deseja agora.

- Havemos de pensar nisso. -Onde está?

- Não lho posso dizer.

- Que diabo de conversa é essa? Não me pode dizer? Sou sua sócia, não pode...

- Você diria ao Sellers - cortei.

- Porque não?

- Ainda não estou preparado para falar com ele.

- Pois ele está preparadíssimo para falar consigo.

- É isso que eu temo - redargui, e desliguei. A tarde arrastou-se.

- Não aconteceu nada.

Reinava uma calma pesada, como antes de uma tempestade.

Liguei o rádio e ouvi a notícia de que o julgamento de Staumton Cliffs e Marilene Curtis, acusados do assassínio da mulher do primeiro, recomeçaria no dia seguinte, de que o procurador do Distrito nomeara novo ajudante para o representar no tribunal e de que a Polícia investigava a teoria de que Ronley Fisher entrevistava uma testemunha-surpresa, até aí desconhecida quando fora morto.

Às quatro horas pareceu-me que esperara tempo suficiente. Deitei-me no chão e colei as impressões digitais que recolhera à parte de baixo do televisor, com o auxílio de fita gomada.

Arrumara a mala e preparava-me para sair quando bateram de mansinho à porta.

Abri.

Nunca vira Carlotta Shelton em carne e osso, mas vira fotografias suas. A carne e o osso valiam a pena.

Fingi-me absolutamente surpreendido e gaguejei:

- Mas... mas... Eu... Boas tardes...

- Boas tardes - retribuiu. - Deixe-me entrar, por favor.

Entrou, fechou a porta e parou com as mãos atrás das costas e a olhar-me ironicamente. Por fim sorriu.

Era loura, alta e cheia de vida, tinha profundos olhos azuis e sorria-me, provocante.

- Bem, Donald...

- Sabe quem sou?

- Claro que sei quem é, Donald, e sei também o que faz. Ora diga-me, Donald, de que pretende acusar-me? Sou Carlotta Shelton.

- Não pretendo acusá-la de nada. Aproximou-se de mim com a graça sinuosa que arrancava assobios de apreço a quantos a admiravam.

- Importa-se que me sente? - perguntou, ao mesmo tempo que se deixava cair numa cadeira e cruzava as pernas. - Tem- andado a fazer perguntas... Não devia fazer isso, Donald.

- Quem não faz perguntas não chega a parte nenhuma.

- Tem razão, mas assim, em contra partida, pode chegar aonde não lhe agrade estar... Está calor, aqui dentro. Importa-se que dispa o casaco?

- Dispa o que quiser.

- O que gostaria que despisse, bem?

- Acha que tem alguma importância?

- Talvez tenha.

Despiu o casaco, aproximou-se de mim, passou as mãos pela cintura e olhou-me com expressão ingénua.

- Não faria mal a uma mulher, pois não, Donald?

- Se o pudesse evitar, não faria.

As suas mãos deslizaram da minha cintura para os meus quadris e puxaram-me para si.

- Sou grata aos meus amigos, Donald, e odeio os meus inimigos.

- Assim é que deve ser.

As suas mãos atraíram-me com mais força, mas de súbito largaram-me, Carlotta recuou um passo, desceu um fecho de correr e despiu o vestido.

Ficou -na minha frente de cuequinhas, soutien e meias e notei que possuía o par de pernas mais comprido e mais bonito que já vira.

Atirou descuidadamente o vestido para as costas de uma cadeira e disse-me:

- Donald, eu amo os meus amigos.

Aproximou-se com um movimento ondulante, sedutor... passou a mão esquerda em redor da minha cabeça e, de súbito, esgatanhou-me a cara com as unhas da direita, recuou, gritou, agarrou num copo e atirou-mo.

Com uma das mãos puxou o soutien, que ficou preso apenas pela alça do ombro direito.

A porta escancarou-se e três homenzarrões entraram no quarto, de roldão.

- Agarrem-no! - gritou Carlotta. - Agarrem-no!

Um dos homens apontou-me um directo aos queixos, tentei esquivar-me e a pancada apanhou-me de raspão na testa. Os outros dois agarraram-me os braços e algemaram-me.

- Tentou violentar-me! - guinchou a mulher, e caiu na cama, a soluçar.

Um dos indivíduos mostrou-me uma insígnia e perguntou:

- Vamos lá saber que ideia foi essa, camarada? - perguntou-me.

Senti o sangue a correr-me da cara para a camisa.

- Podem revistar-me - respondi. - Ela chegou há uns dois minutos e...

Carlotta sentou-se e cobriu o seio descoberto com o soutien pendente do ombro, ao mesmo tempo que dizia:

- Tentou fazer chantagem comigo. Escreveu-me uma carta a pedir dinheiro e eu dei-lho. Fi-lo de boa vontade, mas quando ele... quando ele me quis a mim, revoltei-me e então tentou possuir-me à força. Disse que não me encontrava em posição de abrir bico.

- Recebeu o dinheiro? - perguntou um dos homens.

- Claro que recebeu o dinheiro. Que julgam que ele queria? Quero dizer, essa era uma das coisas que queria. Meteu-o na algibeira de trás, do lado direito.

Percebi, então, porque me abraçara pelos quadris e me puxara para si.

Um dos indivíduos meteu a mão na algibeira por ela indicada e tirou um maço de notas dobradas e presas por um clip.

- Cá está, de facto.

- É melhor conferirem os números, para não restarem dúvidas - aconselhou Carlotta, enquanto abotoava o soutien.

Depois levantou-se e, com tanta naturalidade como se estivesse completamente vestida, foi à cadeira buscar o vestido, sacudiu-o e olhou-o com expressão penalizada.

O tecido apresentava um rasgão em que eu não reparara antes.

- Têm de me arranjar alfinetes-de-ama, pois não posso sair nesta figura.

- Mostre-nos a tal carta - pediu um dos homens. Carlotta Shelton abriu a mala que atirara para cima da cama, ao entrar, tirou uma carta e estendeu-lha. O indivíduo meteu-me o papel debaixo dos olhos e perguntou:

- Já tinha visto isto?

Tratava-se de uma vulgar folha de papel de carta, cerca de sete centímetros mais curta do que o normal, em virtude de o cabeçalho ter sido dobrado e depois cortado. Coladas ao papel liam-se as seguintes palavras, cortadas de jornais e revistas: "SE SABE O QUE LHE CONVÉM, ENCONTRAR-SE-Á COMIGO, NÃO ABRIRÁ A BOCA E TRARÁ O DINHEIRO."

- É a primeira vez que a vejo - respondi.

- Tretas!-exclamou um dos homens.

- Como explicam vocês o que aconteceu? - inquiri por minha vez. - Que faziam lá fora, à espera de que ela se despisse?

- Não arme em esperto, camarada. Sou polícia.

- E os outros dois?

- Eu sou detective particular - esclareceu um dos outros. - "Black Hawk Detective Agency".

- E eu sou um amigo e guarda-costas - apresentou-se o outro.

- Só lhe guarda as costas? - trocei.

Um dos valentões esbofeteou-me com força e o sangue dos arranhões espalhou-se.

- Basta - ordenou o polícia. - Nada de brutalidades, a não ser que ele arme em esperto... e se armar eu me encarregarei de o meter na ordem.

- Não passa de um nojento exemplar de detective particular, a obter informações e depois a tentar tirar proveito delas por meio de chantagem-comentou Carlotta.

- Sabe que informações possuo? - perguntei-lhe.

- Sei que a Polícia está muito interessada em apanhar chantagistas e que, por isso, não deixarão de proteger-me - respondeu, a sorrir docemente. - Contarei tudo, em confidência, ao procurador do Distrito e nada terei a temer.

Fitei-a nos olhos irónicos e inquiri:

- Suponha que eu também conto tudo, bem?

Por momentos as suas pupilas registaram um relâmpagozinho de pânico, mas Carlotta dominou-se e replicou, em tom venenoso:

- Experimente manchar a minha reputação e verá os trabalhos em que se mete!

- Parece que quem precisa de guarda-costas sou eu - comentei.

- Pronto, Lam, acompanhe-me, pois ficará preso.

- Porquê?

- Extorsão.

- Confiramos os números das notas, enquanto estamos todos juntos - lembrou um dos outros dois.

O polícia aquiesceu, com um aceno de cabeça, e tirou as notas da algibeira.

Eram dez notas de cem dólares. O polícia leu os números e um dos outros conferiu-os por uma lista.

- Pronto, Lam, vamos - ordenou o representante da autoridade, enquanto guardava outra vez o dinheiro na algibeira.

- Sabe quem eu sou? - perguntei-lhe.

- Se sei quem você é! Com os diabos, homem, sabemos tudo a seu respeito. Lembre-se de que o seu automóvel está estacionado lá fora com o certificado do registo na barra de direcção e de que se registou com o seu verdadeiro nome. A esse respeito não o podemos acusar de nada, mas apanhámo-lo em flagrante acto de chantagem e provavelmente de tentativa de violentação.

- Ponhamos os pontos nos "ii", sim? - propus.

Ela veio aqui com o fim ostensivo de pagar e vocês esperaram lá fora. Segundo haviam combinado, ao ouvirem determinado sinal, entrariam e encontrariam o dinheiro em meu poder. Certo?

- Há algum mal nisso?- indagou o polícia.

- O vestido dela estava nas costas da cadeira, de maneira que o rasgão não se via, ela tinha o soutien quase arrancado do corpo e eu a cara toda esgaitanhada. Se Charlotta Shelton sabia que vocês estavam lá fora à espera de ouvir o seu sinal, por que não os chamou quando comecei a rasgar-lhe o vestido? Por que esperou que quase lhe arrancasse o soutien e que a minha cara estivesse neste estado? Por que não os chamou quando as coisas começaram a tornar-se violentas?

Os olhos do polícia hesitaram, mas Carlotta Shelton apressou-se a explicar:

- Foi tudo tão rápido! Fiquei apavorada e esqueci-me do sinal.

- Basta-resmungou um dos homens, dirigindo-se ao polícia. - Se vai ficar de braços cruzados enquanto esse figurão a acusa, procurarei pessoalmente o chefe da Polícia. Suponho que conhece o meu nome? Chamo-me Harden C. Monroe e prezo-me de ter um pouco de influência nesta cidade e, até, neste Estado.

Carlotta envolveu-o num sorriso trasbordante de promessas.

- Não o prendo por tentativa de violação - disse-me o polícia. - Por enquanto, pelo menos. Detenho-o por chantagem. Venha, vamos dar um passeio.

Conduziram-me a um carro-patrulha e o polícia falou pela rádio com os serviços de comunicações:

- Acabo de prender Lam, no "Edgemount Motel". Tinha em seu poder mil dólares em dinheiro referenciado. Podem passar o mandado de busca.

- Que mandado de busca? - perguntei, quando ele terminou a comunicação.

Não se dignou responder-me.

Eu continuava algemado e o polícia sentou-se ao volante. Os dois homens e Carlotta seguiram-nos, noutro automóvel.

O polícia não tinha pressa de chegar, seguia vagarosamente, atento a todos os sinais de trânsito. Por fim parou o automóvel junto ao passeio e disse-me:

- Vou comprar o jornal.

Chamou um ardina, comprou um jornal e sentou-se a ler.

- Por este andar - comentei, irónico-, nem daqui a cem anos...

- Cale-se - ordenou-me.

Passado um bocado, falou de novo com o serviço de comunicações:

- Carro dezasseis especial. Alguma novidade?

- Acabam de chegar notícias para si - responderam-lhe. - Encontraram o cabeçalho rasgado do papel de carta na secretária dele, no escritório.

- Obrigado. Vou levá-lo.

O polícia desligou e a partir desse momento acompanhámos o movimento normal do trânsito, sem ronceirice.

Na esquadra tiraram-me as impressões digitais, inscreveram-me e meteram-me numa cela.

Dez minutos depois apareceu Frank Sellers.

- Ora viva, meia-leca! Não respondi.

- A tentar uma chantagenzinha por fora, hem?

- Por que pensa isso?

Soltou uma gargalhadinha e replicou:

- Vou mostrar-lhe porque penso isso. Vê esta carta? - Desdobrou a folha de papel na qual estavam coladas as palavras recortadas de jornais e revistas.

- Vejo.

- Vê este cabeçalho de papel de carta?

Tirou da algibeira um cabeçalho que fora cortado do papel de carta da firma "Cool & Lam Investigadores", e uniu-o à parte superior da missiva, cortada irregularmente.

Os dois fragmentos uniam-se, sem uma falha.

- Encontrámos isto na sua secretária do escritório - informou. - Meu Deus, como você é descuidado! Porque se deu ao trabalho de recortar palavras de um jornal, para não ser possível relacioná-las consigo, e depois cometeu a estupidez crassa de dobrar o cabeçalho do papel de carta da agência, rasgá-lo e deixá-lo na secretária?

- Parece idiota, não parece?

- Parece, não. É a maior das suas idiotices. Está sempre convencido de que é muito esperto, mas acaba por deitar tudo a perder com uma parvoíce.

- Desta vez com uma parvoíce muito, muito grande, diria eu. Fui quase demasiado idiota, não acha?

- Que quer dizer com esse "quase demasiado idiota"? - inquiriu o sargento, de olhos semicerrados.

- Sirva-se da cabeça e pense. Conhece-me há muito tempo, não é verdade? Acha que seria assim tão parvo?

- Sei lá, com os diabos! Os factos falam por si mesmos.

- Engana-se, Sargento. Você fala pelos factos e os factos foram preparados para lhe agradarem.

- Qual é a sua história?

. - Não tenho história nenhuma.

- Pois fará bem em arranjar uma.

- Contarei a minha história quando chegar a altura.

- Ouça, Lam, não tem motivo nenhum para se mostrar tão arrogante. Gostaria de ser seu amigo, se não fosse um galarote tão pimpão.

- Está bem. Peço que me levem ao magistrado mais próximo e mais acessível.

- Não ganha nada com essa atitude, Lam - insistiu Sellers.- Sei que anda a trabalhar num assunto e tenho cá uma ideia de que o mesmo se pode - se pode, apenas, note-relacionar com o assassínio de Fisher... Admito que, no passado, houve entre nós algumas divergências, mas isso não impede que sejamos amigos no presente, tanto mais que me encontro numa situação em que poderei, talvez, ser-lhe útil.

- Pois poderá - concordei.

- Ora diga-me lá que ideia foi essa de tentar exercer chantagem sobre a pequena?

- Sei apenas que me encontraram mil dólares em notas na algibeira de trás das calças.

- Exactamente. Como lá foi parar esse dinheiro hem?

- Que lhe parece? Foi ela própria quem lá o pôs, quando me abraçou pelos quadris e me puxou para si!

Sellers desatou a rir e redarguiu:

- Não foi isso que ela disse!

- Mas é o que eu digo.

- Qual é a sua história?

- Quero ser levado ao advogado mais próximo e mais acessível.

- E sem desnecessárias demoras - imitou-me. - Esqueceu-se desse pormenor.

- Você é que está a esquecer-se dele, Sargento.

- Com essa atitude pode tornar as coisas muito feias para si, meia-leca.

- O que lhe convinha era que eu lhas facilitasse a si.

- Podíamos facilitá-las mutuamente.

Ouvi abrir uma fechadura e passos no corredor e, logo a seguir, vi Bertha Cool aproximar-se.

- Que diabo vem a ser isto? - preguejou, à guisa de saudação.

- Olá, Bertha!-cumprimentou Sellers.

- Que diabo lhe aconteceu, Donald? - perguntou-me a minha sócia. - Tem a cara ensaguentada e a camisa toda salpicada de sangue.

- Brutalidade policial - respondi.

- Filho de uma cabra!-vociferou Sellers. Bertha lançou-lhe um olhar coruscante, mas não disse nada.

- O que aconteceu - acrescentou o sargento - foi que ele se enganou acerca de uma senhora...

- Ainda estou pasmada com o desaforo de que deu mostras ao mandar os seus homens invadir-nos o escritório com um mandado de busca e virar tudo de pernas para o ar!

- Nós não virámos tudo de pernas ao ar, pois fomos logo direitinhos à secretária do Donald e encontrámos o que procurávamos - afirmou o sargento, ao mesmo tempo que tirava os dois fragmentos de papel de carta da algibeira, os unia e mostrava a Bertha.

A minha sócia observou-os durante cerca de um minuto e depois fitou-me, de olhar cintilante e duro.

- Além disso - prosseguiu Sellers-.encontrámos mil dólares em notas na algibeira dele.

- Quem o arranhou? - perguntou-me Bertha, sem fazer caso do sargento.

- Carlotta Shelton.

- No seu lugar, não mencionaria o nome da senhora...-aconselhou-me Frank Sellers.

- Porquê?

- Talvez ela decida não o processar, talvez não lhe agrade a notoriedade que o caso acarretaria...

- Diga-lhe que lhe ficam muito bem esses sentimentos, mas que se ela não me processar, processá-la-ei.

Os olhos de Sellers reflectiram surpresa.

- Por que diabo o esgatanhou ela? - quis saber Bertha,

- Ele arrancou-lhe a roupa do corpo, à força - explicou o sargento.

Bertha desatou a rir à gargalhada.

- Acha muita graça? - abespinhou-se Sellers.

- Alguma vez experimentou violentar uma atleta de pernas compridas? - perguntou-lhe a minha sócia. - Uma perita em ténis, natação, esqui aquático e equitação?

- Não posso dizer que tenha experimentado...

- Então, não se esqueça de experimentar, qualquer dia... Vamos, Donald, toca a andar daqui para fora.

- Que quer dizer? - perguntou-lhe, admirado, o sargento.

- Cinco mil dólares de fiança.

- Quem os pagou?

- Eu.

- Irra, não precisava de ter tanta pressa! - barafustou Sellers.

- Ouça uma coisa, Frank Sellers. Se mais alguma vez se lembrar de irromper pelo meu escritório com um mandado de busca, terá acção, carradas de acção, e imediata. Aqui tem o recibo da fiança. Mande abrir a porta, a fim de sairmos daqui para fora. Depressa.

Sellers aproximou-se da porta e gritou:

- Eh, carcereiro!

- Aí vou - respondeu uma voz, ouviram-se novos passos no corredor, a porta da cela abriu-se e eu pude sair.

- Meu Deus, você está num estado lastimoso! - exclamou Bertha.

- Bem sei - respondi-lhe. - Guardaremos a camisa ensanguentada; constitui prova de brutalidade policial.

- Acho que lhe atribuíram uma fiança muito baixa

- resmungou Sellers.

Bertha respondeu-lhe com uma expressão nada feminina, que não me atrevo a repetir, e o sargento conduziu-nos ao funcionário que me devolveu os objectos que me tinham apreendido.

- Está lá em baixo um dos carros da agência - disse-me Bertha.

- Não se esqueça, Donald, de que podia meter-se numa grande camisa de onze varas com esta história...

- declarou Seilers.

- E não se meteu? - perguntou-lhe, irónica, a minha sócia.

- Não comunicaremos o caso aos jornais...

- Quando se efectua a minha audiência? - indaguei.

- Aqui entre nós, não creio que a pequena leve as coisas por diante...

- Vamos - disse a Bertha e saímos da cadeia. Bertha sentou-se ao volante e perguntou-me:

- Que diabo andou a fazer?

- Não sei.

- Está num estado lastimoso. Vá a casa e desinfecte essa cara. Meu Deus, ela enterrou-lhe bem as unhas!

- Estenderam-me deliberadamente uma armadilha, para me incriminarem-declarei.

- Mas porquê?

- Porque eu andava a bisbilhotar...

- A fazer o quê?

- A investigar impressões digitais.

- Que impressões digitais?

- As que encontrei no quarto do motel.

- De quem eram?

- Até agora, encontrei impressões digitais de quatro ou cinco pessoas.

- Quer dizer que Charleton Allen não esteve lá sozinho com a rapariga?

- Quer dizer que Charleton Allen esteve lá, assim como outras pessoas.

- Como sabe?

- Fui ao escritório dele e colhi impressões digitais na secretária de aço. As de Allen e as de Sharon Barker estavam também no quarto do motel... e agora cheguei ao ponto que me intriga.

- De que se trata?

- Encontrei impressões digitais de Ronley Fisher no quarto do motel.

- O quê?! - exclamou Bertha, estupefacta.

- O facto pode significar que Ronley Fisher, Sharon Barker e Charleton Allen tiveram uma conferênciazinha.

- É isso que tem de significar - asseverou Bertha.

- Não é imperioso que assim seja. Lembre-se de que não é possível datar uma impressão digital. Ronley Fisher pode lá ter estado antes, com uma pequena, e saído. Não me surpreenderia se, depois, a gerência do motel tivesse mandado mudar os lençóis e alugado outra vez a cabina.

- Costumam fazer isso?

- Não seja ingénua, Bertha.

- Referia-me a estabelecimentos como o "Bide-a-wee-bit".

- Fazem-no todos, quando calha, se o negócio é bom e têm a certeza de que os anteriores locatários não tencionam voltar.

- Se isso aconteceu, é lógico supor que Ronley Fisher esteve com uma pequena...

- É lógico supor que esteve com alguém e que a gerência do motel o viu meter as malas no automóvel e partir.

- Quem lhe parece que terá assistido a isso?

- O funcionário encarregado da segurança, de serviço de noite.

- Falou com ele?

- Não.

- Porquê?

- A Polícia falou com ele e virou-o do avesso.

- Nesse caso, deve ter dito à Polícia tudo quanto sabe.

- Acha?

- Por que não?

- Não seria bom para o motel.

- Parece-lhe, então, que o homem mentiu à Polícia?

- Não seria o primeiro.

- Quem pensa que esteve no quarto com Ronley Fisher?

- Leve-me ao motel onde fui preso. Deixei lá as minhas coisas e o outro carro da agência. Depois falaremos mais a preceito.

- Trate dessa cara-recomendou a minha sócia. - Precisa de desinfectar esses arranhões com água oxigenada e algodão. Também precisa de se vestir de lavado, pois está todo sujo de sangue. Como foi que o sangue o salpicou dessa maneira?

- Um dos tipos esbofeteou-me quando os arra-nhões sangravam.

- Filhos de uma cadela!

Dei a Bertha as instruções necessárias e ela conduziu-me ao "Edgemount Motel".

- Entre - indiquei.

Bertha arrumou o carro e seguiu-me. A gerente do estabelecimento veio ao nosso encontro e disse-me:

- Não nos interessa que volte ao nosso motel, Mr. Lam.

- Paguei o aluguer até amanhã de manhã - objectei.

- Reservamo-nos o direito de expulsar clientes indesejáveis, que tentam violentar mulheres - respondeu-me a gerente, em tom glacial.

- E eu tentei violentar mulheres?

- Foi o que a Polícia disse. Tentou também exercer chantagem sobre alguém.

- É por essas razões que me expulsa?

- É!

Voltei-me para Bertha e disse-lhe:

- É testemunha disto, Bertha. Lembre-se de referir isso no julgamento. Expulsaram-me deste motel por tentativa de violentação e chantagem.

A gerente empalideceu.

- Um momento!-exclamou. - Que quer dizer? Que conversa vem a ser essa acerca de julgamento?

- Processarei o motel e exigirei uma indemnização de cinquenta mil dólares por difamação, cinquenta mil dólares por ter sido expulso e mais cem mil dólares de perdas e danos.

A mulher engoliu em seco.

- Como conseguiu sair? - perguntou-me, nervosamente.

- Telefone para a Polícia e pergunte.

- Entre por aqui, por favor.

Conduziu-me ao escritório, tirou a chave da minha cabina e estendeu-ma sem dizer palavra.

Dirigi-me à cabina que ocupara, abri a porta; e afastei-me para Bertha entrar.

Encontrei o copo que Carlotta me atirara e que batera na cama, passara de raspão pela parede e rebolara para trás do leito. Peguei-lhe, tendo o cuidado de só tocar com os dedos no interior, abri a pasta, tirei o pó dactiloscópico e comecei a trabalhar. Depois de revelar duas impressões digitais latentes, tirei a fita da pasta, a fim de as recolher.

- Que diabo é isso? - perguntou-me Bertha.

- Fita para recolher impressões digitais. - Vou recolher estas, do copo.

Estendi a fita, recolhi as impressões digitais e montei-as em cartão.

- Siga para o escritório-disse à minha sócia.- Segui-la-ei, assim que der uma limpeza a isto.

Bertha partiu num automóvel e eu no outro. Quando chegámos ao escritório, o telefone tocava e Bertha atendeu.

- É para si - disse, estendendo-me o auscultador.

- Fala Lam - atendi.

- Tenho boas notícias para si, meia-leca - disse-me Frank Sellers. - Vale a pena cooperar com a Polícia e ter amigos prontos a defendê-lo...

- De que boas notícias se trata? E a que devo o súbito ataque de amizade?

- A acção contra si não foi aceite e a Bertha pode levantar os cinco mil dólares de fiança quando quiser.

- Pois sim. E a respeito dos mil dólares?

- Dos quê?

- Das dez notas de cem dólares que foram encontradas na minha algibeira.

- Isso constitui prova.

- Prova de quê?

- Prova de... - Hesitou e acabou por praguejar: - Prova, com os diabos! A "Black Hawk Detective Agency" tomou nota dos respectivos números, para que não possa haver dúvidas quanto a quem pertencem.

- Essas notas foram-me pagas como honorários - declarei. - Quero que mas devolvam.

- De que diabo está a falar, seu meia-leca? Aquilo foi chantagem.

- Quem disse que foi chantagem?

- Carlotta Shelton.

- Ela que o diga em tribunal.

- Ouça, com mil raios! - berrou o sargento, ao telefone. - Você não tem, com certeza, o desaforo de exigir esses mil dólares! Não force a sorte, seu idiota! Se teima nessa atitude, obriga-a a processá-lo.

- Essas dez notas de cem dólares foram-me pagas como honorários - teimei. - Tiraram-mas e quero que mas devolvam.

- Fale com o procurador do Distrito.

- Fale você; eu não o conheço. Repito-lhe que quero os mil dólares. Se os dá a Carlotta, processo-o e mando-lhe penhorar o ordenado.

- Grande filho de uma cadela! - gritou o sargento, fora de si, e desligou.

 

Saí do escritório e telefonei a Elsie Brand.

- Donald!-exclamou, ao ouvir a minha voz.-Que sucedeu? A Bertha disse que tinhas sido preso.

- E fui.

- E que estavas todo sujo de sangue...

- E estava.

- Oh, Donald!

- Não é nada de grave, são uns arranhões que sararão depressa - tranquilizei-a. - Entretanto, todos os minutos são preciosos e precisamos de travar uma grande luta contra o tempo. Vou aí buscar-te e depois damos umas voltas. Tens algum compromisso?

- Eu... Não.

- Mentes, Elsie.

- Tenho um compromisso, mas anulo-o. Explicarei ao rapaz que se trata de trabalho.

- Tens razão, trata-se de trabalho. Passarei por aí daqui a um quarto de hora.

- Estarei pronta.

Meti-me no automóvel e fui buscá-la a casa. Elsie olhou-me para a cara e mostrou-se compadecida. Passou-me as pontas dos dedos pelos cabelos, que alisou docemente.

- Tem um aspecto terrível, Donald.

- Dói-me.

- Porque te arranhou ela?

- Queria que parecesse tentativa de violentação.

- O quê?

- A armadilha que me estendera.

- Donald, tu... tu...

- Não.

- Que fazemos agora?

- Estenderam-me uma armadilha, como já te disse. Aquela possível e ansiosa cliente que esperou pelo meu regresso, mentiu com quantos dentes tinha na boca, pois sabia que eu não regressaria. Sabia perfeitamente que estava e estaria ausente do escritório, à espera de ter notícias de Carlotta Shelton.

- Mas por que esperou, se sabia que não regressarias?

- Porque queria roubar uma folha de papel de carta, rasgar o cabeçalho impresso, deixá-lo na gaveta da minha secretária e entregar o resto a Carlotta Shelton.

- Donald, fui assim tão estúpida?

- Não, pequena, foste cordial. Simpatizaste com a rapariga porque eu não estava e ela parecia em apuros.

- Parecia tão simpática!

- Deixaste-a sozinha no meu escritório? Começou a abanar a cabeça, mas depois pensou melhor e disse:

- Alguns minutos, apenas, enquanto fui ao vestíbulo.

- Tempo mais do que suficiente para ela fazer o que queria. Agora temos de encontrar essa rapariga.

- Mas, Donald, não a conheço, nunca a tinha visto. Não disse como se chamava e...

- Reconhecê-la-ias pela fotografia, se a visses?

- Eu... eu... Sim, creio que sim.

- Então vem daí, que ta mostrarei.

Procurei a minha amiga que trabalhava no arquivo de um jornal e que, ao ver-me a cara, olhou para Elsie Brand e sorriu, com ar entendido.

- Não olhe para mim dessa maneira! - explodiu Elsie, furiosa. - Seria incapaz de lhe pôr a mão, fosse o que fosse que ele me fizesse!

A minha amiga do jornal era uma mulher alta e angulosa, dos seus cinquenta anos, conhecedora da vida. Ninguém sabia nada do seu passado. Limitou-se a sorrir novamente, voltou-se para mim e perguntou:

- Porque procura sarilhos com uma lealdade destas tão à mão, Donald?

- Desta vez não fui eu que procurei sarilhos; os sarilhos é que me procuraram.

- Que deseja de mim?

- Desejava dar uma vista de olhos ao dossier de Carlotta Shelton.

- É um dossier de peso - comentou.

- Estou interessado em fotografias - esclareci.

- As fotografias encontram-se numa pasta à parte. Quais prefere, fato de banho, fato de praia, calções de ténis, fato de montar...?

- Prefiro todas.

A minha amiga conduziu-nos a um compartimento deserto, sentou-nos a uma das mesas compridas e deixou-nos para voltar cerca de cinco minutos depois com um braçado de sobrescritos de tela.

- Agradeço-lhes que não as misturem - pediu e deixou-nos outra vez.

- Quem é ela? - perguntou-me Elsie.

- Ruth Ritter. É boa rapariga, mas ninguém sabe nada do seu passado. Deve ter sido vítima de qualquer tragédia, embora nunca fale nisso. Gosta de permanecer apagada, na sombra, mas tem uma memória enciclopédica e a paixão dos pormenores.

- Julgou que tinha sido eu quem te arranhara - resmungou Elsie, indignada, e depois olhou outra vez, cheia de comiseração, para a minha cara.

- Se continuas a olhar assim para os arranhões, não saram.

- Oh, Donald, apetecia-me agarrar-te na cabeça e... e...

- Infectar-se-iam.

- Oh, não sejas tão irritantemente higiénico!

Abri o primeiro sobrescrito e comecei a espalhar as fotografias em cima da mesa.

Carlotta Shelton era uma bela rapariga e maravilhosamente fotogénica. Sempre que se movia parecia adoptar "poses de graça natural. Gostava de ser fotografada.

Depois de mostrar todas as fotografias em que Carlotta aparecia só, passei aos grupos.

- Cadela! - exclamou Elsie, entre dentes.

- Encontraste-a? - perguntei, ansioso.

- Não, não. Referia-me a Carlotta.

Passámos em revista várias dúzias de fotografias. De súbito, Elsie pegou numa delas.

- Espera, Donald... Creio... creio que é esta!

- Tens a certeza?

- A certeza não tenho, mas parece ela.

Virei o retrato e li a legenda escrita nas costas: "Beldades divertem-se na praia de Salton Sea. Da esquerda para a direita..."

Voltei novamente a fotografia. A que Elsie indicara era a terceira da direita, uma moça bonita que, segundo a legenda, se chamava Elaine Paisley.

Chamei Ruth Ritter e perguntei-lhe:

- Tem algum dossier acerca de Elaine Paisley?

- Como se escreve?

Soletrei o nome, Ruth saiu e voltou pouco depois com uma pasta pouco volumosa.

- É uma beldade das praias. Ganhou um concurso, desempenhou uns papéis de figurante e está à beira de uma carreira.

- Tem fotografias dela?

- Parece que sim.

Abri o sobrescrito que me estendeu e encontrei alguns recortes de fotografias.

- É ela, Donald - afirmou Elsie, após um breve olhar. - É ela.

A fotografia que Elsie examinava era um grande plano de Elaine Paisley sentada no braço de uma poltrona, com as mãos enlaçadas à volta do joelho direito e a perna esquerda pendurada, com quilómetros de nylon...

- Tens a certeza?

- Absoluta.

Dei uma vista de olhos pelos recortes e encontrei um endereço, que confirmei pela lista telefónica.

- E agora? - perguntou-me Elsie, em voz trémula de excitação.

- E agora, nada- respondi-lhe, tentando dar à voz um tom desinteressado. - Conseguimos, apenas, parte da informação que pretendíamos. Mais tarde veremos como havemos de utilizá-la.

Olhou-me vivamente e começou a dizer qualquer coisa, mas depois desistiu.

Devolvi os sobrescritos a Ruth Ritter e levei Elsie a casa.

- Uma rapariga que trabalha fica faminta. Podíamos comer qualquer coisa...-insinuou.

- Mais tarde.

- Esta noite?

- Talvez.

- Mas eu tenho fome agora, Donald.

- Veste uns farrapos e vai pedir esmola.

- Estás a tentar ganhar tempo, Donald.

- Tempo é uma coisa de que não disponho.

- Tenho umas coisas boas no apartamento e podia preparar um jantarinho gostoso. Assim não precisarias de ir jantar fora. A tua cara arranhada constrange-te, não é verdade?

- É.

- Irás ao meu apartamento?

- Se puder.

- Que queres dizer?

- Quero dizer que me posso encontrar numa situação em que não esteja na minha mão ir ou não ir.

- Nesse caso telefonar-me-ás?

- Tentarei.

Hesitou um instante, mas de súbito decidiu-se, puxou a minha cabeça para si e beijou-me docemente a cara arranhada.

- Daqui a uma hora, mais ou menos - disse.

- Está bem.

Ajudei-a a sair do automóvel e acompanhei-a à porta do prédio onde morava.

Quando regressava ao automóvel, um vulto surgiu da sombra e Frank Sellers disse-me:

- Bertha Cool pensou que o encontraria aqui... Veio trazer a pequena a casa muito cedo, não acha, meia-leca?

- Isso é comigo.

- Claro. Você tem muitas coisas que são consigo... E tem também muitos sarilhos.

- De que se trata agora?

- Imposto de rendimento.

- Perdeu o juízo!

- Não pagou o seu imposto de rendimento e eu terei de tomar providências a esse respeito.

- Ouça, Sellers, deixe de me perseguir. Estou limpo como um sabonete. Tenho alguns direitos, como cidadão, e sei perfeitamente quais são.

- Não estou a persegui-lo nem coisa parecida; limito-me a cumprir o meu dever. Aceitarei a sua palavra de que pagou o imposto se o declarar por escrito.

- Se declarar o quê?

- Que não deve nenhum imposto de rendimento.

- Já lhe disse que o paguei. Estendeu-me uma folha de papel e ordenou:

- Escreva "Não devo nenhum imposto de rendimento" e assine.

Tomei a precaução de datar o papel, na parte de cima, e depois escrevi a frase que me ditara e assinei.

- Mais nada? - perguntei, ao devolver-lhe a declaração.

Aproximou-se do candeeiro, para que a luz incidisse no papel, riu baixinho e tirou outra folha de papel da algibeira.

- Mais nada, meia-leca. Agora, sim, está em maus lençóis!

- Que quer dizer?

- Dê uma vista de olhos pelas palavras "imposto de rendimento" - disse-me, estendendo-me o segundo papel. - São idênticas, o que significa que foi você quem escreveu este papel: "A Polícia vigia o nosso escritório. Meta-se no elevador e suba ao andar que fica por cima do nosso e onde há um especialista em assuntos relacionados com o imposto de rendimento. Procure-o e faça-lhe algumas perguntas. Não se aproxime do nosso escritório enquanto não lhe dissermos que o pode fazer. Telefone mais tarde, para saber se a costa está livre."

Não fiz comentários.

- Uma das mulheres da limpeza encontrou o bilhete amarrotado defronte do elevador, no andar por cima do seu, e por acaso leu-o. Depois chamou-nos.

Continuei calado.

- Que diz? - pergumtou-me.

- Pensa que fui eu que o escrevi?

- Sei perfeitamente que foi você que o escreveu.

- É crime proteger um cliente?

- Desta maneira e neste género de caso, é. Lá se vai a licença, Lam. Custa-me usar a vassoura por causa da Bertha, mas há muito tempo que você não anda a pedir outra coisa e agora chegou o momento.

- Está bem, farei um acordo consigo. Dar-lhe-ei material que lhe permitirá solucionar o caso, mas não quero o meu cliente metido misto e ficará entendido que não tocará na nossa licença.

O seu rosto iluminou-se, cheio de ávida curiosidade, mas a sua voz manteve-se calma.

- Não prometo nada enquanto não vir o que tem para dar em troca.

- Onde está o seu automóvel?

- Deixei-o ali, na travessa.

- Vá buscá-lo. Iremos mais depressa no seu do que no meu. Tenho um compromisso para daqui a uma hora e assuntos a tratar, entretanto.

- Aonde vamos?

- Ao "Edgemount Motel".

- Que tem lá?

- Impressões digitais.

- Que espécie de impressões digitais?

- Recolhi-as na cabina 27 do "Bide-a-wee-bit".

- Compreendo.

- Impressões digitais do seu cliente?

- Do meu cliente e de mais alguém...

- De quem?

- Ronley Fisher.

Apesar dos seus esforços para conservar uma expressão desinteressada, Sellers reagiu como se o tivesse picado com um alfinete.

- De que diabo está você a falar?

- Disse-lhe a verdade.

- Se Fisher esteve nessa cabina... avalia o que isso significa, seu grande idiota? Significa que o seu cliente o assassinou!

- Não significa tal. O que significa é que o motel alugou a cabina duas vezes. Fisher esteve lá com qualquer pessoa, mas saíram e levaram a bagagem, o que deixou o motel com uma vaga numa noite de sábado, em que o negócio costuma apertar. O empregado da recepção decidiu alugar a cabina duas vezes.

- Deixe-se de teorias. Mostre-me a impressão digital que Ronley Fisher deixou nesse quarto e irá tudo raso! Terei o assassino em vinte e quatro horas, resolverei tudo!

- Por que esperamos?

- Vamos, meia-leca, vamos!

- Se eu lhe entregar a impressão digital, não se falará mais na nossa licença, poderemos proteger o nosso cliente e...

- Se o seu cliente estiver limpo e se você me entregar a impressão digital que diz possuir, pode ter quase tudo quanto desejar. Bastar-lhe-á pedir. Pela parte que nos toca, o seu cliente até lá pode ter tido uma dúzia de mulheres, todas ao mesmo tempo.

- Combinado - concordei.

Entrámos no carro do sargento e tive de me agarrar bem, para não dançar de um lado para o outro com as voltas e contravoltas que ele dava. Não se serviu da sereia nem da luz vermelha, mas ignorou todos os limites de velocidade.

Chegámos ao "Edgemount Motel", tirei a chave da algibeira e Sellers entrou atrás de mim.

- Estão coladas debaixo do televisor. Incline-o para trás e eu tiro-as.

- Incline-o você que as tiro eu - replicou o sargento.

Inclinei para trás o pesado televisor, para que Sellers, de joelhos, conseguisse meter a mão pela parte de baixo.

- Incline mais - pediu-me.

Obedeci e Sellers levantou-se, carrancudo.

- Como eu pensava - resmungou. - Outra das suas malditas fintas.

- Quer dizer que não está aí nada?

- Quero dizer que não está nem nunca esteve aqui nada.

Senti o meu queixo pender, de estupefacção. Sellers, ao ver a expressão do meu rosto, comentou:

- É um bom actor, Donald, mas isso não chega para levar a bom termo uma esperteza destas.

- Não se trata de esperteza nenhuma. Meta qualquer coisa debaixo dessa perna do aparelho, para que possamos ver melhor.

Sellers olhou à sua volta, encontrou dois livros e meteu-os debaixo da perna do aparelho.

Ajoelhei-me e examinei a parte inferior do televisor.

- Ainda se vêem as marcas da fita gomada. Vê estes dois sinais paralelos?

- Você é finório, Lam, admito...-comentou o sargento, com um ar absolutamente desinteressado.- Sempre o admiti, aliás. Serviu-se de um bocado de fita gomada e deixou aqui estas marcas, para confirmar a sua história da carochinha. É como aquele tipo que dizia: "Matei um veado com um tiro disparado de quinhentos metros de distância. Estava parado debaixo daquele carvalho e se não acreditam venham comigo e mostrar-lhe-ei o carvalho."

- Podia calcular quem tem as impressões digitais...

- Até pode calcular quem está a dar de comer às renas do Pai Natal - redarguiu Sellers. - Não estou interessado.

- Ouça, Sellers, disse-lhe a verdade. Eu...

- Não estou interessado - repetiu.

Apaguei a luz e saímos da cabina. Guardei a chave na algibeira enquanto Sellers se dirigia para o automóvel e entrava. Fiz menção de entrar também, mas Sellers bateu com a porta, arrancou e deixou-me ficar embasbacado.

Chamei um táxi e indiquei ao motorista a morada de Elaine Paisley.

 

O prédio onde Elaine Paisley morava era antigo.

Disse ao motorista que parasse depois da esquina e esperasse por mim.

Ao entrar na escada, percebi que tentavam disfarçar o cheiro a velho com desodorizantes. Um elevador ruidoso conduziu-me ao terceiro andar, onde ficava o apartamento que me interessava.

Bati à porta.

- Quem é? - perguntou uma voz feminina.

- Eu - respondi.

- Oh, estou tão contente por teres vindo!-exclamou Elaine, ao mesmo tempo que escancarava a porta.

Ao ver-me, recuou, surpreendida, e fitou-me com expressão assustada.

Usava meias pretas, cinta de malha, soutien e mais nada. Agarrou atabalhoadamente num roupão e envolveu-se nele, enquanto eu entrava.

- Não pode entrar!

- Já entrei.

- Saia.

- Depois de você falar.

- Quem é o senhor?

- Chamo-me Donald Lam. Quis ver-me... mostrou, até, muito interesse nisso.

- Oh! - exclamou, assustada.

- Por isso aqui me tem, vim eu vê-la.

Soltou uma gargalhadinha nervosa e exclamou:

- Não há dúvida de que me viu bem!

- Quem julgou que eu era?

- Devia ter dito o seu nome, quando perguntei, em vez de responder "eu".

- Quem julgou que eu era? - insisti.

- Isso tem alguma importância?

- Talvez tenha.

- Não se quer sentar, Mr. Lam?

- Obrigado. Esperava alguém?

- Ia sair.

- Com quem?

- Não importa.

- Tem a certeza de que ia sair?

- Não viu a maldita cinta? Sempre que a visto, vou sair.

- Desconfortável?

- Mais ou menos, mas é a única maneira de segurar bem as meias... Procurei-o por causa... por causa de uma situação muito complicada...

- Explique-me de que se trata.

- Talvez precise de um guarda-costas.

- Durante quanto tempo?

- Não sei...

- Referia-me a quanto tempo, durante o dia.

- O dia inteiro.

Percorri com o olhar o apartamento de uma divisão, com a cama metida na parede, e perguntei: =-Onde dormiria eu?

Riu nervosamente e respondeu-me:

- Para ser franca, não tinha pensado nesse pormenor. Que preço me faria?

- Um bom guarda-costas custa cinquenta dólares por dia.

- Cinquenta dólares! - exclamou, surpreendida

- Sim.

- Não poderia pagar tanto.

- Porque precisa de guarda-costas?

- Sirva-se da imaginação.

- É coisa que não tenho. Qual é a complicação? Homem ou mulher?

- É... homem. - Hesitou um minuto e acabou por acrescentar: - É mulher.

- De que espécie de complicações se trata?

- Receio... receio não poder pagar a um guarda-costas.

- Como não possui imaginação suficiente para inventar uma história convincente, nem sequer se atreve a tentar, hem?

- Que quer dizer?

- Quero dizer que não está nem nunca esteve interessada nos meus serviços, que foi ao meu escritório apenas com a intenção de roubar uma folha de papel, cortar-lhe o cabeçalho e deixá-lo na gaveta da minha secretária e entregar o resto a...

Calei-me e aguardei. A rapariga fitava-me de olhos muito abertos e assustados.

- Como diabo me encontrou? - perguntou, por fim.

- Sou detective.

- Mas eu não...

Bateram levemente à porta e a rapariga levantou-se, atravessou o apartamento a correr e abriu-a.

Harden Monroe, o indivíduo que se intitulara guarda-costas e amigo de Carlotta Shelton, entrou e exclamou:

- Olá, beleza! Pronta para... - De súbito viu-me e praguejou: - Que diabo faz aqui?

- Viva, Mr. Monroe! - cumprimentei.

- Que diabo faz aqui? - repetiu.

- Miss Pailey procurou-me no meu escritório, esta tarde, muito interessada nos meus serviços. Agora parece ter perdido um pouco o interesse...

- Como é que ele te encontrou? - perguntou o recém-chegado à rapariga.

- Não sei.

- Não indicaste a morada, não te esqueceste da carteira ou...

- Meu Deus, não! Não sou assim tão parva.

- Não indicaste, inadvertidamente, esta morada, não telefonaste, não...?

- Já te disse que não, com a breca! Não, não e não!

Momroe fitou-me, pensativo, e perguntou:

- Como veio aqui ter?

- De automóvel.

- Deixe-se de graças e fale claro. Como veio aqui ter?

- Encontrei Miss Paisley porque procurava a pes­soa que surripiara uma folha de papel da minha agên­cia, rasgara o cabeçalho, deixando-o na minha secretá­ria, e servira-se do restante para me estender uma armadilha.

Momroe virou-se bruscamente para a rapariga e perguntou-lhe, furioso:

- Disseste-lhe alguma coisa?

- Não.

- Admitiste alguma coisa?

- Não sejas parvo.

- Acusa Miss Paisley de se ter apoderado do papel? - perguntou-me o homem.

- Procuro a pessoa que o fez.

- Bateu à porta errada e gastou o seu tempo. Rua!

- Preciso de que me respondam a certas perguntas.

- Rua!

- Não gosto de ser falsamente incriminado de...

Agarrou-me, com uma enorme manápula, o peitilho da camisa e a gravata, levantou-me de repelão da cadeira e repetiu:

- Rua, já disse!

Tentei esmurrar-lhe o queixo, mas o brutamontes agarrou-me o pulso, dobrou-me o braço atrás das costas e empurrou-me, obrigando-me a andar para aliviar a pressão e evitar que me deslocasse o ombro.

A rapariga abriu a porta, Monroe empurrou-me para o patamar e a porta fechou-se, com força. Ouvi girar a fechadura.

Meti-me na geringonça do elevador, experimentei o braço para ver se o podia usar bem e fui ter com o motorista que deixara à espera.

- Apeou-se aqui um homem há cerca de cinco minutos - disse-lhe. - Um indivíduo forte, de ombros largos e aspecto atlético, cabelo louro ondulado, olhos azuis...

- Um pouco mais de um metro e oitenta de altura, oitenta e cinco quilos e cerca de trinta anos - interrompeu o motorista. - Vi. Que deseja saber a seu respeito?

- Onde estacionou o automóvel?

- É aquele descapotável.

- Ligue o motor - recomendei. - Se o vir sair do prédio, buzine, abra a porta e prepare-se para arrancar.

- Que vai fazer?

- Dar uma vista de olhos ao livrete do carro dele.

- É polícia?

- Detective.

- Os detectives não têm o direito de meter o nariz nos automóveis alheios.

- Mas têm o direito de obter informações... e você tem o direito de ganhar dinheiro.

- Não quero colaborar em nada que seja ilegal.

- Não colaborará.

- Quanto tempo se demora?

- Um minuto, apenas.

- Vigiarei. Se o indivíduo sair, abrirei a porta e ligarei o motor, mas não buzinarei.

- Está bem - concordei. - Ouvi-lo-ei ligar o motor; fará quase tanto barulho como a buzina.

- Combinado. Tenho o direito de ligar o motor quando me convém, mas buzinar é diferente. Equivale a um sinal e a isso não me arrisco eu.

Dirigi-me ao descapotável e comecei a bisbilhotar.

O livrete do automóvel estava numa carteira pendente da barra de direcção e indicava que o proprietário do veículo era Harden C. Monroe. Não havia nada no carro que me pudesse ser útil.

Tentei o compartimento das luvas e verifiquei que estava aberto.

Espreitei para o interior. Continha uma lanterna eléctrica, alguns mapas, um maço de cigarros e, ao fundo, um objecto oblongo.

Meti a mão...

Colou-se-me qualquer coisa aos dedos e, instintivamente, puxei a mão para trás. Atrás da fita gomada veio o resto do embrulhinho, que ficou pendurado nos meus dedos.

Tratava-se das impressões digitais latentes que eu revelara, recolhera e colara ao fundo do televisor do "Edgemount Motel". Segurei no embrulhinho, fechei a porta do compartimento das luvas, depois a porta do veículo e dirigi-me para o táxi, cujo motorista me observava com interesse.

- Tirou alguma coisa daquele carro? - pergun-tou-me.

- Não - respondi, de olhos postos nos seus.

- Óptimo. Para onde quer ir agora?

Indiquei-lhe a morada de Elsie Brand, que deixara havia exactamente cinquenta e dois minutos.

Não passava muito da hora quando premi o botão da campainha do seu apartamento.

Cheirou-me a cozinhados, mal ela abriu a porta.

- Pronta?

- Estou a preparar-te um bife com rodelas de cebola, muitas batatas e muito molho. Abrirei uma garrafa de vinho e jantaremos aqui mesmo. Assim não precisarás de sair nem de suportar os olhares de toda a gente.

- És uma jóia - murmurei, e passei-lhe o braço pela cintura.

Aninhou-se contra mim e levantou o queixo.

 

Eram dez horas da noite quando saí do apartamento de Elsie Brand. Sentia-me muito melhor. Graças à água oxigenada que Elsie aplicara nos arranhões, a cara ardia-me menos. Depois das atribulações e das fadigas do dia, sentia-me repousado, em paz com o mundo.

Ao aproximar-me do carro da agência, vi brilhar a brasa de um cigarro.

Estava um homem sentado ao volante, a fumar.

Hesitei.

- Viva, Lam! - cumprimentou-me. - Entre que temos de passear.

- Quem é você?

- Polícia.

- Fartei-me de passear todo o dia com a Polícia.

- Óptimo. Assim fará um belo palmarés se passear também toda a noite.

- E se lhe disser que não vou?

- Vai.- O polícia desviou-se do volante e acrescentou: - Deixo-o guiar, mas nada de espertezas.

- Ouça, estive com o sargento Sellers e disse-lhe tudo quanto sabia...

- Ouça você, Lam - interrompeu-me o polícia.- Dei-lhe uma aberta. Cheguei aqui há um quarto de hora e podia tê-lo ido buscar ao apartamento onde esteve, mas fui amável e resolvi esperar por si meia hora. Sellers disse que o queria a si e a Bertha Cool na esquadra, às dez e meia. Como vê, podia tê-lo ido buscar, mas tive consideração e deixei-o em paz. É assim que me agradece...

- Está bem, obrigado.

- Assim é melhor.

Meti-me no automóvel e segui para a esquadra, aonde chegámos às dez horas e vinte e cinco.

Bertha aguardava no gabinete de Sellers. O sargento estivera a falar com ela e a minha sócia parecia assustada.

- Olá, rmeia-leca! - saudou-me Sellers.

- Imaginem vir encontrá-lo aqui! - exclamei, com fingida surpresa.

- Sempre cheio de graça! - comentou o sargento, dirigindo-se a Bertha Cool. - Custou-lhe a sua licença, mas tem de ser palhaço até ao fim.

Virou-se para o polícia que me trouxera e perguntou-lhe:

- O tipo vem "limpo"?

- Não o revistei.

Sellers franziu a testa e ordenou:

- Reviste o filho da mãe, homem!

- Levante as mãos, Lam-ordenou-me o polícia.

- Não tem o direito de... - protestei, mas Sellers não me deixou acabar:

- Bem sei, mas podemos prendê-lo por suspeita ou como testemunha essencial, e nesse caso tudo quanto traz consigo será metido num sobrescrito e entregue ao funcionário competente. Uma hora depois soltamo-lo e pode reaver as suas coisas. Como prefere?

Levantei os braços.

As mãos do polícia percorreram-me o corpo e detiveram-se na algibeira do casaco.

- Há aqui qualquer coisa - dissse, e tirou o embrulho das impressões digitais.

- O quê? - indagou o sargento.

- Não tem nada com isso. Não se trata de uma arma e...

- Deixe ver - ordenou o sargento, como se não me ouvisse.

Sellers desfez o embrulhinho, viu as impressões digitais e exclamou:

- Quem havia de dizer! - Virou-se para Bertha Cool e prosseguiu: - Compreende agora aonde eu queria chegar, Bertha? Disse-lhe que o tipo andava a fazer caixinha, a ocultar-nos informações, e não me enganei. É característico, de resto, da sua maneira de trabalhar. Fingiu confiar em mim, contar-me tudo acerca das impressões digitais, levou-me até ao "Edgernount Motel" para mas entregar... e ficou muito surpreendido ao verificar que lá não se encontravam! Na realidade, teve-as sempre em seu poder, a bom recato.

- Não as tive sempre em meu poder - protestei -; recuperei-as há pouco.

- Devia escrever argumentos de filmes, Donald - ripostou Sellers, a sorrir sarcasticamente.- Possui o cérebro mais imaginativo e a mais avultada dose de ficção que já encontrei. Mas vamos, sente-se e conte-nos como arranjou estas impressões digitais.

- Serei franco consigo. Não ganharei nada com isso, mas serei franco.

- Vamos a factos, Donald. Geralmente não precisa de ganhar tempo desta maneira.

- Não pretendo ganhar tempo - afirmei.

- Então fale.

- Estenderam-me uma armadilha naquela história de chantagem. Carlotta Shelton foi a autora da graça. Encarregou uma amiga de se apoderar de uma folha de papel de carta no meu escritório, rasgar o cabeçalho e deixá-lo na minha secretária e levar-lhe o resto. Carlotta, provavelmente ajudada pelo namorado, Harden C. Monroe, recortou de jornais e revistas as palavras necessárias para for mar em uma carta de chantagem e colou-as no papel que me tinham roubado. Depois levaram a carta a um detective particular e este informou a Polícia.

"Preparada a armadilha, dirigiram-se ao "Edgemount Motel". Carlotta entrou sozinha no meu quarto, toda mel e ternura, atirou-se a mim e introduziu as dez notas de cem dólares na algibeira das traseiras das minhas calças, enquanto me abraçava pelos quadris. Tivera o cuidado de rasgar o vestido, antes de entrar, e de ocultar o rasgão nas pregas. Depois enterrou-me a unhas na cara, arrancou o vestido e o soutien e desatou a gritar."

- Eu sei, eu sei... - comentou Sellers, céptico.- Ouvimos essa história sempre que um tipo é apanhado por chantagem ou tentativa de violação. A rapariga é que foi o agressor, é que tentou violentá-lo... Ele resistiu virilmente, mas depois ela arrancou as roupas...

- Isso não significa que não pudesse acontecer assim.

- Pois não - concordou o sargento-, mas significa que já não nos impressionamos com a história. É como aquela da mulher que brigou com o marido e que só se lembra de vê-lo caído no chão e a si de pistola em punho e a gritar: "John, John, fala comigo!" Mas o John não pode falar porque está morto.

- E se se deixassem de fantasias? - sugeriu Bertha, irritada. - Há horas que devia estar a dormir, mas já agora queria ouvir a história até ao fim. - Voltou-se para mim e acrescentou: - Depois tentarei agarrar-me a um salva-vidas. Você pode responsabilizar a sociedade no capítulo de obrigações legais, mas não consinto que arrisque a minha carreira com asneiras destas.

- Atirar-lhe-ei uma bóia se não tiver culpas no cartório, Bertha-ofereceu-lhe Sellers. - É por isso que quero esta história esclarecida. Vamos, Lam, comece a falar, mas desta vez empregue palavras que signifiquem alguma coisa.

- Como não enviara a Carlotta Shelton a tal carta, compreendi que ela tivera de a arranjar - e de deixar parte comprometedora na minha secretária - por intermédio de alguma pessoa amiga. Perguntei a Elsie Brand, minha secretária, se alguém estivera e se demorara no escritório e ela falou-me de uma rapariga que tinha tanto interesse em me ver que esperara tempos esquecidos pelo meu regresso. Levei Elsie ao arquivo de um jornal e examinámos fotografias de Carlotta Shelton, dando preferência aos retratos de grupo, em que ela aparecia com amigos. Encontrámos uma fotografia de Elaine Paisley e Elsie identificou-a. Fora ela que me esperara em vão no escritório. Pedi o dossier de Elaine Paisley, que continha fotografias nítidas, e a minha secretária confirmou a identificação.

"Dirigi-me, por isso, ao apartamento de Miss Paisley e perguntei-lhe porque estava tão interessada em me ver. Apanhei-a desprevenida e ter-lhe-ia arrancado alguma coisa de interesse se Harden Monroe não aparecesse."

- Que desejava Monroe? - perguntou-me o sargento, com certo interesse.

- Não sei o que ele queria, mas sei o que não queria. Ao encontrar-me ali, pôs-me na rua e, entretanto, já deve ter catequizado a rapariga de tal maneira que ninguém lhe arrancará uma confissão.

Sellers estudava as impressões digitais que me tinham apreendido.

- Compreendo... compreendo... - murmurou, distraído.- A sua secretária identificou Elaine Paisley como sendo a rapariga que se demorara no seu escritório?

- Exactamente.

- Por que não me disse que tinha estas impressões, Lam? Porque se deu ao trabalho de me fintar?

- Eu disse-lhe que as tinha, assim como lhe disse que as tinham tirado do lugar onde as escondera.

- Uma bela finta, foi o que foi... É isso que me desagrada em si, Donald. A Bertha mostra-se disposta a cooperar, mas você tem o feio hábito de conduzir os polícias pelo caminho mais longo, enquanto se mete por atalhos para chegar primeiro aonde deseja chegar.

- Não conduzo ninguém pelo caminho mais longo e sempre que meto por atalhos dou à Polícia a oportunidade de seguir também por eles. Não tenho culpa de que não aceitem o convite.

- Claro, claro - murmurou Sellers.- Você adora dizer-nos como devemos resolver os nossos problemas, mas nós gostamos de os resolver à nossa maneira. Mas fale-me das impressões digitais, Donald.

- Monroe expulsou-me do apartamento de Elaine Paisley. Chegara num carro aberto, de desporto, e resolvi dar-lhe uma vista de olhos.

- Porquê?

- Porque alguém voltara, forçosamente, ao meu quarto no "Edgemount Motel" e roubara as impressões digitais. Não podia ter sido Carlotta Shelton, pois essa tivera de ir à esquadra contar a sua versão da chantagem e do ataque com a intenção de cometer violação; não podia ter sido o detective porque ela não queria, com certeza, que ele ficasse a saber tanto, e também não podia ter sido o polícia porque, nesse caso, você saberia. Portanto, das quatro pessoas que tinham participado na comédia do "Edgemount Motel", tinha de ser Monroe o que me interessava. Dei uma vista de olhos ao compartimento das luvas do seu descapotável e não perdi o meu tempo.

Sellers tamborilou na secretária com as pontas dos dedos, olhou para o relógio, tirou um charuto e meteu-o na boca, sem o acender. Tinha os olhos semicerrados.

- O que há de interessante nas suas histórias, meia-leca, é parecerem sempre tão plausíveis que quem não o conhece pode sentir-se inclinado a acreditar... Sei que não deseja arrastar a sua secretária para isto se se trata de uma farsa. Diga-me, por isso, se falou verdade acerca de Elaine Paisley e da maneira como Elsie Brand a localizou.

- Falei verdade - afirmei. - Pode confirmar tudo, desde o princípio ao fim.

- Harden Monroe, hem?

- Não disse nada.

- Voltemos às impressões digitais latentes que recolheu e que identificou com nomes escritos por si. Não há dúvida de que é a sua caligrafia. Tem uma de Ronley Fisher e outra de alguém que identificou apenas com as iniciais C. A. Quem é este C. A.?

- É o nosso cliente.

- Diga-lhe quem é o cliente - interveio Bertha Cool. - Trata-se de um assassínio e nós estamos no meio dele. Só podemos proteger o nosso cliente até certo ponto. Depois disso...

- Não diga mais nada, Bertha - aconselhou Sellers, levantando a mão para a minha sócia.

Bertha calou-se, de olhos coruscantes.

- Não precisam de nos dizer quem é o cliente - acrescentou o sargento. - Nós sabemos.

- Sabem porque você apertou a Bertha e ela diisse e está agora a representar para me iludir.

A porta abriu-se e um polícia entrou acompanhado de um pálido e assustado Charleton Allen. Sellers sorriu-me e disse:

- Continue, meia-leca, não deixe de falar agora. Charleton Allen olhou para o sargento, para Bertha e para mim e acusou:

- Vocês denunciaram-me, vocês...

- Cale-se antes de se denunciar a si mesmo - interrompi-o.

Sellers voltou a sorrir e perguntou a Allen:

- Conhece, portanto, esta gente, não é verdade?

- Conheço, sim - respondeu Allen, depois de hesitar um minuto. - Qual é o significado de tudo isto? Não me podem obrigar a vir aqui, sem existir nenhuma acusação contra mim.

- Não podemos, hem? - troçou Sellers.

- Claro que não podem.

- Mas o senhor está aqui, não está? Allen não respondeu e Sellers continuou:

- Vou dizer-lhe por que motivo aqui está e depois poderá falar.

O sargento tirou um sobrescrito da algibeira e retirou do mesmo o bilhete que eu escrevera a Allen.

- Como pode ver, este papel foi amarrotado e deitado fora, mas nós recuperámo-lo e endireitámo-lo. Foi você, Allen, quem o deitou fora. Atirou-o para o recipiente de latão, cheio de areia, que está defronte do elevador, no andar que fica por cima do escritório de "Cool & Lam". Os registos do especialista de imposto de rendimento que o mandaram consultar indicam que só um cliente o procurou de manhã... Claro que o senhor não tem muita experiência destas coisas, pois, enquanto falava com o homem indicou-lhe o seu nome e a sua morada verdadeiros, fez-lhe perguntas tolas acerca da lei de imposto de rendimento e pagou-Lhe vinte dólares pelos conselhos... Mas vamos, comece agora a falar.

Allen humedeceu os beiços com a ponta da língua e olhou, desesperado, de Sellers para Bertha Cool e desta para mim.

Sub-repticiamente, levei uma das mãos ao rosto e atravessei o indicador levantado nos lábios, a aconselhar-lhe que se calasse, mas ele ou não percebeu ou não ligou importância.

- Então? - insistiu Sellers.

- Seja! Ocupo uma posição que não me permite envolver-me em escândalos. No sábado à noite estive no motel "Bide-a-wee-bit" com uma senhora, as coisas correram mal e eu embriaguei-me e adormeci. Mais tarde vim a saber que a Polícia investigava todas as pessoas que se tinham registado no motel nessa noite. Como seria desastroso para mim se me identificassem, contratei Donald Lam para lá voltar na segunda-feira à noite e tomar o meu lugar. Ele assim fez e na terça-feira de manhã telefonei para o escritório da firma e felicitei-os pela maneira como tinham resolvido o assunto. Ia a caminho, a fim de encerrar o assunto e oferecer uma gratificação, mas Lam chocou comigo no vestíbulo do edifício e meteu-me esse bilhete na mão.

Li-o no elevador, procurei o perito em questões de impostos, fiz-lhe umas perguntas e regressei a casa.

- Esteve no motel na noite de sábado?

- Estive.

- Com uma mulher?

- Sim.

- Quem?

- Sharon Barker, hospedeira do bar de cocktails "Cock and Thistle".

- É casado?

- Sou.

- Andou a divertir-se?

- Não. Eu... bem, não sei exactamente como isto aconteceu. Conversara apenas uma ou duas vezes com ela, mas naquele dia ela mostrou-se descaradamente provocante, eu senti-me lisonjeado e como estava livre... Enfim, deixei-me tentar.

- Que sucedeu depois de chegarem ao motel?

- Brigámos.

- Que fez ela?

- Deixou-me.

- Que fez o senhor?

- Embriaguei-me, adormeci, acordei naturalmente indisposto, levantei-me e segui para casa.

- A que horas?

- A que horas segui para casa?

- Sim.

- Um pouco antes de amanhecer. Estava a nascer o dia quando cheguei a casa.

- Viajou no seu automóvel?

- Sim.

- E depois?

- Depois nada, até me constar que a Polícia investigava todos os registos do motel. Então deixei-me tomar de pânico. Falei com Sharon e perguntei-lhe se me ajudaria num estratagema para não me identificarem. Quis saber qual era a minha ideia e eu expliquei-Lhe que pensava arranjar alguém que fosse para o motel com o mesmo nome que usáramos e respondesse às perguntas da Polícia.

- Ela concordou?

- Com uma condição: Donald Lam teria de ser o detective que me substituiria. Sharon vira-o e simpatizara com ele e afiirmou que não se importaria de passar a noite na sua companhia, mas que não o faria com qualquer detective corpulento que eu escolhesse. Vi-me entre a espada e a parede. Tinha de contratar Donald Lam, pois ela não aceitaria outro.

Sellers virou-se para mim e declarou:

- Se me tivesse dito tudo isto, teríamos protegido o seu cliente e tê-lo-íamos protegido a si. Assim, meteu-se numa camisa de onze varas. Se Bertha quiser dissolver a sociedade e continuar a trabalhar por sua conta, tentaremos protegê-la, mas pelo que a si diz respeito está acabado como detective particular. Não obterá mais licença nenhuma.

O sargento voltou a pegar nas impressões digitais latentes que eu recolhera e perguntou-me:

- Que mais temos a respeito destas impressões digitais?

- São impressões digitais de Sharon Barker, de Ronley Fisher e, suponho, de Carlotta Shelton. Não tive oportunidade de verificar as últimas.

- Tudo isto pode ter sido forjado - resmungou Sellers-, mas se Ronley Fisher esteve no quarto do motel, a coisa muda muito de figura...

- Não esteve - afirmou Charleton Allen.- Mais ninguém lá esteve além de Sharon e de mim.

Sellers fitou-me, pensativo, e murmurou:

- O patifório era muito capaz de forjar provas e... - Inclinou a cabeça para o lado de Charleton Allen, virou-se para o polícia e, sem acabar a frase, ordenou-Lhe: - Leve esse tipo lá fora e diga que lhe tirem as impressões digitais. Depois traga-mas cá, para eu conferir e ver se essa parte da história bate certa.

Levantou o auscultador do telefone e pediu:

- Tragam-me as impressões digitais de Ronley Fisher. Preciso delas imediatamente. Há uma cópia arquivada.

- Oponho-me a que me tirem as impressões digitais - declarou Allen. - Isso é...

Sellers inclinou a cabeça na direcção da porta e o polícia agarrou no braço de Allen e disse-lhe:

- Vamos. O senhor ainda não percebeu quando está com sorte. Quer o retrato nos jornais?

- Meu Deus, não!-exclamou Allen, apavorado.

- Se quer que lhe diga, está a tomar uma atitude que só pode conduzir à publicidade que parece empenhado em evitar.

Allen acompanhou-o sem dizer mais nada.

- Ouça lá, Frank - disse Bertha, de súbito. - Se Donald falou verdade, você não tem o direito de tentar apanhar-nos as licenças. (

- Ai não, que não tenho! É àPolícia que compete desvendar assassínios e não às agências de detectives particulares. Assim que encontrou as impressões digitais de Romley Fisher no quarto do motel, Donald devia ter vencido todos os máximos de velocidade para vir aqui comunicar-me o facto.

- Telefonei diversas vezes para o escritório a dizer que precisava de falar consigo - afirmei.

- É verdade - confirmou Bertha.

- Mas não telefonou para a esquadra e tentou comunicar comigo - lembrou Sellers.

- Pois não.

- Porquê?

- Porque pensei que você quereria ficar com o crédito - respondi-lhe. - Sei como as coisas se passam, aqui no departamento. Quando se trata de um caso da importância deste, há pelo menos meia dúzia de pessoas capazes de se apunhalarem pelas costas só para lhes caber o crédiito de solucionar o mistério.

Sellers semicerrou os olhos e fitou-me, pensativo.

- Que amizade tão dedicada! - exclamou, sarcástico.

- Não se tratava de amizade dedicada. Pensava simplesmente que lhe daria uma aberta e você me daria outra a mim - respondi, imperturbável.

- Voltemos ao assunto. Você recolheu estas impressões digitais, mas ninguém pode provar que as mesmas se encontravam no quarto do motel. Só você o sabe. Se as tivesse deixado onde estavam e um fotógrafo da Polícia as tivesse fotografado, constituiriam prova; assim, meteu-se onde não era chamado e qualquer advogado de defesa o mandaria passear.

- Não fazia ideia que fossem as impressões digitais de Fisher. Se tomei a precaução de recolher impressões digitais foi simplesmente para me proteger.

- Quando soube que eram de Fisher?

- Quando obtive uma cópia das impressões digitais dele no gabinete do juiz de instrução.

- Por que foi ao gabinete do juiz de instrução pedir as impressões digitais de Fisher?

- Queria demonstrar que nenhuma das impressões digitais recolhidas no quarto tinha a ver com o assassínio de Fisher, e tive de obter as suas impressões digitais para provar que nenhuma das latentes era dele. Para minha surpresa, obtive um par que condizia.

- Mente - asseverou Sellers.- Teve um pressentimento.

- Minto, tive um pressentimento.

- Nessa altura é que me devia ter chamado.

- Nessa altura é que você se teria rido de mim e me mandaria passear.

Sellers calou-se, a mordiscar o charuto.

Um polícia entrou com um jogo de impressões digitais e o sargento começou a compará-las com o auxílio de uma lente.

O seu rosto mantinha-se inexpressivo, mas mamava no charuto com rapidez crescente. A ponta apagada subia e descia, como um pêndulo.

Endireitou-se, pousou a lente, fitou-me e disse:

- Acertou em qualquer coisa, seu lingrinhas, embora eu ainda não saiba em quê. As impressões digitais que assinalou com o nome de "Fisher" condizem.

- Já lho tinha dito.

- Já sei que já mo tinha dito. Disse-me, até, uma quantidade de coisas, mas eu acredito numas e não acredito noutras. Não aceitarei a sua história senão à medida que se for confirmando, passo a passo.

- Que lhe parece que tento impingir-lhe?

- Francamente, não sei - confessou o sargento.- Mas sei que Bertha lhe chamou tantas vezes pulha-zinho inteligente que isso lhe subiu à cabeça e até já se convenceu de que é verdade. De que pretende intrujar-me, não duvido, embora ignore de que maneira. Mas eu não lhe comprarei a peta nem o deixarei intrujar-me.

O polícia que trouxera Charleton Allen regressou com as impressões digitais deste.

Sellers aceitou-as, pegou nalgumas das que eu levava, examinou-as com a lente e franziu a testa. Examinou-as de novo e por fim largou a lente, fitou-me, tirou o charuto da boca, agarrou-o com as pontas de dois dedos e apontou-mo, como se me fosse espetar com ele, para sublinhar as palavras:

- Agora, seu meia-leca do diabo, temo-la na unha! Inventou tudo isto, tentou maquinar uma história que o livrasse de apuros, mas enganou-se.

- De que está a falar? - perguntei, admirado.

- As impressões digitais de Charleton Allen não condizem!

- Não condizem!-exclamei, estupefacto.

- Exactamente.

- Mas eu não me podia ter enganado nessas!

- É essa a minha opinião - declarou Sellers.- Você não se enganou; tentou ser espertinho. Inventou uma história para nos impingir e poder safar-se, forjou provas e...

- Estão aí algumas impressões digitais latentes para as quais não encontrei par - interrompi-o. - Não sei de quem são. Experimente-as, talvez uma seja de Allen...

Sellers reflectiu, mas por fim meteu o charuto espapaçado na boca e começou a examinar as impressões digitais a que me referira.

- Deixe-me ajudá-lo - ofereci. - Eu...

- Vá para o Inferno! - berrou-me, sem levantar a cabeça. - Não se aproxime, não toque em nada.

Dez minutos depois o sargento levantou a cabeça, abanou-a e declarou:

- Não condizem. Nenhuma é de Allen.

- Mas o próprio Allen admitiu que lá esteve - interveio Bertha. - Ele...

- Pois admitiu - concordou Sellers. - É isso que prova que todas estas impressões digitais são falsas, constituem provas forjadas por Donald para se safar de apuros. - Virou-se para mim e acrescentou: - Muito bem, meia-leca; você assim o quis e assim o terá.

- Ouça, Frank, há algo de estranho em tudo isto - afirmou Bertha. - Donald não forjaria provas desse género.

- Julguei que tencionava dissolver a sociedade e não se comprometer nas aventuras dele - resmungou Sellers.

- Quero jogo limpo para mim, mas não o negarei ao Donald - asseverou a minha sócia.

- Vou dizer-lhe o que acontecerá ao seu Donald. Sabe o que é uma cela de bêbedos?

O rosto de Bertha mostrava que não entendia o que Sellers queria dizer.

- Eu explico-lhe. Os polícias apanham os bêbedos nas ruas e metem-nos nessa cela. Os tipos enjoam e vomitam por cima deles e dos outros... Gritam, berram, ressonam e vomitam, lutam, praguejam e perdem todo o domínio de si mesmos... Pois o seu querido Donaldzinho vai ser metido na cela dos bêbedos. De manhã talvez consiga provar que não estava bêbedo, mas neste momento creio que está, pois de contrário não afirmaria estar de posse das impressões digitais de Charleton Allen nem teimaria que recolheu todas aquelas impressões digitais latentes no quarto do "Bide-a-wee-bit". Talvez Donald precise de ficar dois ou três dias na cela dos bêbedos até lhe passar por completo a embriaguês... Quando estiver sóbrio e for capaz de me contar uma história em que eu acredite, acerca das impressões digitais, deixá-lo-ei sair.

- Não pode fazer isso, Frank - declarou Bertha.

- Verá como posso!

- Não conseguirá - teimou a minha sócia.

- Quem mo impedirá? - berrou o sargento, lançando-lhe um olhar furibundo.

- Eu!-replicou, pagando-lhe na mesma moeda.

- Ouça-me bem, Bertha Cool. Desde que se associou com este espertalhãozinho ele não tem feito outra coisa senão arranjar-lhe sarilhos. Donald passa a vida a esquivar-se, mas agora colocou a firma numa tal situação que a vossa licença tem tantas probabilidades de continuar em vigor como uma bola de neve de não se derreter no Inferno. Estou a dar-lhe, a si, uma oportunidade de se salvar, a atirar-lhe uma bóia em nome da nossa antiga amizade. Seja inteligente, agarre-a e não a largue, pois arranjarei maneira de a puxar para terra firme. Poderá reconduzir a sua agência para a senda dos trabalhos respeitáveis e calmos, sem complicações. Você não foi feita para este tipo de trabalho.

- Há algo de estranho em toda esta história - respondeu Bertha. - Se meter o Donald na cela dos bêbedos, não precisarei da sua bóia de salvação para nada.

- Acaba de perder a sua licença, Mrs. Bertha Cool - declarou Frank Sellers.

- E você pode ir para o diabo que o carregue, seu arrogante filho de uma cadela!-gritou-lhe Bertha.- Talvez não saiba, mas acabou de perder- o seu emprego, Mr. Frank Sellers!

- Levem-na lá para fora - ordenou Sellers a um dos polícias. - E metam o meia-leca na cela dos bêbedos. O tipo está com um pifão.

 

A cela dos bêbedos correspondia exactamente aos vaticínios do sargento.

Quando lá me puseram, ainda não estava muito cheia e os frequentadores não se encontravam em muito má forma.

Um deles fora preso por conduzir embriagado, estava razoavelmente bem vestido e a bebedeira dava-lhe para choramingar e para lamentar o que seria do seu bom nome, da mulher e dos filhos. Passou o tempo todo numa contrição lacrimosa.

Havia também o bêbedo sociável, que só queria falar e apertar a mão a toda a gente. Contava a sua história vezes sem conta, jurara imorredoira amizade... e apertava-nos a mão. Depois apertávamos outra vez a mão e recomeçava a história.

Havia o bêbedo beligerante, que queria lutar com todos os outros, mas que não tardou a adormecer.

Por volta da uma, duas horas da manhã, começaram a chegar os piores casos.

A cela era uma grande jaula quadrada com chão de cimento e um ralo no meio, o que permitia que a lavassem à mangueira, todas as manhãs, depois de os presos saírem.

Os líquidos normais escorriam para o centro e desciam pelo ralo, mas por volta das três da madrugada a cela ficou cheia e dois corpos inertes obstruíram o ralo gradeado. Os líquidos começaram a empoçar por toda a parte e o cheiro ácido dos vómitos a sobrepor-se a todos os outros.

Cheguei-me para um canto, tentei evitar as poças e a proximidade dos meus companheiros de infortúnio e cheguei, até, a dormitar.

Às seis da manhã trouxeram uma mistela quente a que chamavam café. Destroços humanos de olhos reme-losos estenderam as mãos trémulas para os púcaros.

Às seis e meia chamaram-nos para sermos levados ao tribunal, mas quando tentei juntar-me ao grupo empurraram-me e disseram-me:

- Está demasiado bêbedo para comparecer em tribunal. Fica.

Fiquei com quatro desgraçados que se encontravam demasiado imundos e pouco apresentáveis para irem fosse aonde fosse.

Às nove da manhã chamaram o meu nome.

Aproximei-me da porta da cela e um guarda abriu-a e disse-me:

- Por aqui.

Devolveram-me as coisas que me tinham tirado, meteram-me num elevador e levaram-me ao gabinete de Frank Sellers.

O sargento estava sentado à secretária e, a um canto, façanhuda como um buldogue de guarda a um osso, encontrava-se Bertha Cool, ao lado de um indivíduo de rosto duro e penetrantes olhos cinzentos.

- Dawson Cecil, o nosso advogado - apresentou-mo a minha sócia.

Apertámos a mão.

- Ponhamos os pontos nos "ii", meus senhores - disse Sellers. - Eu não embirrei com o tipo; pensei apenas que estava bêbedo. Tinha de estar, para fazer as afirmações que fazia. Ordenei que o levassem para a cela dos bêbedos, mas tencionava mandar transferi-lo para outro lado assim que pudéssemos verificar se era seguro para ele transferi-lo ou soltá-lo.

- E esqueceu-se - insinuou Cecil.

- Não esqueci... pelo menos nesse sentido. Mas tinha tanto em que pensar... Com os diabos, ando a investigar um caso de assassínio! Trabalhei todo o dia e toda a noite, quase sem dormir, e é natural que alguma coisa ficasse para trás.

- A sua memória não estava, contudo, tão ocupada que se esquecesse de deixar instruções para que eu não saísse da cela quando, esta manhã, levaram os homens ao tribunal. Disse ao guarda que me encontrava demasiado bêbedo para comparecer em tribunal e devia ficar de quarentena mais vinte e quatro horas.

- Mais devagar!-apressou-se o sargento a protestar. - Disso deve acusar o encarregado da cela; eu não lhe dei instruções dessas. Disse-lhe apenas que o deixassem ficar até se encontrar sóbrio. - Voltou-se para mim e prosseguiu: - Por que é de reservas, Donald? Cooperei consigo no passado e estou disposto a cooperar de novo, sempre que puder.

- A que se deve esta súbita cordialidade? - indaguei.

Bertha Cool apontou diversas folhas de papel que se encontravam em cima da secretária de Sellers e explicou:

- Deve-se a que Elaine Paisley fez uma confissão completa. Foi Carlotta Shelton quem a mandou ao escritório com instruções para roubar uma folha de papel de carta, rasgar a parte impressa do topo de maneira irregular, para que fosse possível identificar os dois docados, deixar o cabeçalho na sua secretária e levar-Lhe o resto. Elaine foi ao escritório, demorou-se por lá até se lhe oferecer ensejo de cumprir as ordens recebidas e entregou o papel a Carlotta, em branco. Foi esta que lhe colou as palavras recortadas, mas a rapariga não sabia nada a esse respeito.

- E que diz, agora, Carlotta Shelton? - inquiri.

- Carlotta Shelton e Harden Monroe parece terem desaparecido - respondeu-me Cecil. - Não conseguimos localizá-los.

- Nós encontrá-los-emos - prometeu Sellers.

- Mas agora estamos a falar de si, Mr. Lam - declarou Cecil. - Há departamentos de direitos civis interessados em tomar conhecimento de brutalidades cometidas pela Polícia. Se o atiraram para a cela dos bêbedos só para o obrigarem a falar, o caso levantará tal fedor que Sellers voltará a polícia de giro, a calcorrear as ruas.

- Deixe-se disso - resmungou Sellers. - Conheço Bertha e conheço Donald Lam; são boas pessoas e não complicarão a vida a um polícia. Compreendem perfeitamente que em certas ocasiões nos encontramos em campos opostos; cada um de nós tem as suas obrigações. Bertha e Donald são justos e razoáveis e o senhor fazia bem se os imitasse.

- Provavelmente interporemos uma acção civil a pedir uma indemnização de cento e cinquenta mil dólares e solicitaremos um inquérito a efectuar pela Comissão - declarou Cecil.

Sellers olhou para Bertha e disse-lhe:

- Ouça, Bertha, fomos sempre amigos...

- Pois fomos, mas ultimamente você tem adoptado uma estranha maneira de o demonstrar.

- Sabem tão bem como eu que, nesta cidade, uma firma de detectives não consegue viver se a Polícia se lhe opõe - disse Sellers.

- Fixem esta declaração - interveio o advogado.

- Considero-a uma ameaça, uma tentativa para os levar a renunciar aos direitos civis que lhes são inerentes para ele sair de apuros.

- Não se tratou de nenhuma ameaça; foi a afirmação de um facto.

- A respeito da declaração de Elaine Paisley?- perguntei a Bertha Cool.

- Provavelmente não vale o papel em que está escrita. Deve ser o resultado de força e coerção - desdenhou Sellers.

- Que força e coerção podiia eu exercer? - perguntou-lhe Bertha. - Sou apenas uma cidadã particular.

- Não houve força nem coerção - afirmou Cecil.

- Tenho o original do depoimento em meu poder, assinado e ajuramentado na minha presença, como notário público, por Elaine Paisley, às oito horas desta manhã. Perguntei-lhe, especialmente, se houvera coerção, persuasão, qualquer instigação ou esperança de recompensa. A minha secretária tomou nota de toda a conversa.

- Claro que esse depoimento permite a Lam intentar qualquer coisa contra Carlotta Shelton, mas não significa nada no que respeita à Polícia - declarou o sargento. - Não existe ofensa criminal.

- Extorsão, chantagem e falsas declarações à Polícia - lembrou o advogado. - Encontrou motivos mais do que suficientes para interferência policial quando Miss Shelton se queixou de Lam, mas agora mostra-se assaz desinteressado.

- Está bem, está bem, pise e repise no caso - resmungou Sellers.- Mas, agora, desçam à terra e digam-me o que querem.

Olhei para Cecil e respondi:

- Neste momento não me parece que valha a pena discutir o assunto com o sargento Sellers. No fim de contas, como tencionamos processá-lo e o senhor é advogado, creio que devia discutir o assunto com o advogado de Sellers e não com ele próprio. Além disso, parece-me que não seria desacertado termos todos ensejo de acalmar, antes de discutirmos seja o que for.

Dei uma piscadela de olho a Cecil, que se levantou, acto contínuo.

- Se é assim que deseja, Lam, assim se fará. Expusemos as nossas razões de queixa ao sargento Sellers e vamos fazer valer os nossos direitos. Parece-me que devia consultar um médico, Donald; é muito possível que esses arranhões que tem na cara infectem. Graças ao depoimento de Elaine Paisley tornou-se evidente que Carlotta Shelton maquinou todo este estratagema para o desacreditar e dificultar qualquer investigação a que procedesse.

- Ninguém pode extrair sangue de um nabo, por muito que o esprema - sentenciou Sellers. - Sou polícia, não tenho nada; Carlotta Shelton pertence à alta. Por que não vão ter com ela e me deixam, a mim, em paz?

- Iremos ter com todos os implicados - afirmou o advogado - e não ignoraremos a possibilidade de ter havido qualquer espécie de conluio entre você e Carlotta Shelton. Provavelmente será réu dessa acção, Sargento, assim como da que interporemos contra si por prisão ilegal, perseguição malévola e abuso dos poderes que lhe foram confiados.

E, sem acrescentar mais nada, Cecil encaminhou-se para a porta e abriu-a, para nós passarmos.

Bertha Cool saiu majestosamente e eu segui-a.

Sellers continuou sentado à secretária, a segurar a cópia do depoimento de Elaine Paisley e com uma expressão que dir-se-ia não estar a digerir bem o pequeno-almoço.

No corredor, Bertha olhou para mim e comentou, repugnada:

- Meu Deus, você mete nojo!

- Pois meto - concordei. - Vou a casa limpar-me.

- Não diga nada a ninguém - aconselhou-me Cecil. - É natural que os repórteres o interroguem acerca da acção que tencionamos intentar, mas mande-os ter comigo.

- Claro que não intentaremos acção nenhuma, a não ser que sejamos obrigados a isso - esclareceu Bertha Cool. - Queremos apenas que Sellers nos desampare a loja.

- Está muito bem pelo que respeita a Sellers, mas este caso de Shelton é diferente.

- Neste momento estou apenas interessado em ir a casa, mudar de roupa, tomar um banho, lavar a cabeça e barbear-me - declarei.

- Deus sabe quanto precisa disso tudo! - exclamou a minha sócia.

- Seria conveniente que não aparecesse hoje no escritório, Donald - aconselhou o advogado-, e também que não se tornasse demasiado acessível aos repórteres.

- Não me tornarei acessível a ninguém.

Saímos pela porta principal, Cecil despediu-se e deixou-nos.

- Vou trabalhar na clandestinidade - disse a Bertha. - Telefonarei de vez em quando, para saber novidades, mas não indicarei nenhum lugar onde você ou qualquer pessoa me possam encontrar.

- Não se meta em mais trabalhos - recomendou-me.- Dawson Cecil fala como se fosse tudo uma maré de rosas, mas a verdade é que patinamos em gelo muito fino.

- Que aconteceu a Elaine Paisley?

- Deduzi o suficiente da sua conversa de ontem com Sellers para avaliar a situação. Fui ao apartamento da rapariga, que estava ausente e só regressou à uma hora da manhã. Mal ela entrou, comecei a "trabalhar" e às duas da manhã a moça estava pronta. Levei-a para um hotel, conservei-a acordada toda a noite, telefonei a Dawson logo de manhãzinha e pedi-lhe que registasse o depoimento. Depois viemos ter com o sargento.

- Teve de "trabalhar" muito a rapariga?

- Nem por isso. Empreguei a força uma vez, quando pensou em mandar-me expulsar...

- Se ela conseguir mostrar nódoas negras...

- Não seja idiota - replicou Bertha, desdenhosa. - Pensei nisso. Limitei-me a atirar a desavergonhada para cima da cama e a sentar-me em cima do seu estômago, enquanto conversava com ela. Passado um bocado resolveu-se a ouvir-me.

 

Demorei algum tempo a lavar-me e a tornar-me apresentável.

Depois de lavar a cabeça com um shampoo, de me barbear e de estar de molho na banheira, convenci-me de que já não cheirava mal. Apesar disso, sempre que às minhas narinas chegava qualquer odor mais forte lembrava-me maquinalmente do fedor da cela dos bêbedos e receava trazê-lo ainda agarrado a mim.

Estava extenuado, mas resolvi meter-me na carripana da agência e ir ao escritório de Charleton Allen.

A secretária estava de serviço, mas desta vez mostrou-se de uma eficiência ácida.

- Bons dias, Mr. Lam - cumprimentou-me. - Tem entrevista marcada com Mr. Allen?

- Não tenho nenhuma entrevista marcada com Mr. Allen nem estou interessado em falar com ele. Venho procurar Mr. Getchell.

- Para falar com Mr. Getchell precisa de marcar entrevista. O senhor...

Passei-lhe pela frente e abri a porta com o dístico de Marvín Getchell.

A rapariga saltou da cadeira e correu atrás de mim.

- Não pode fazer isso! - protestou.

Getchell levantou a cabeça da secretária e fitou-me. Era um indivíduo de cinquenta e poucos anos, com o arcaboiço de um lutador, ombros largos, grisalho, aspecto duro, muitíssimo apto e muito viril.

- Que vem a ser isto, Lorraine?- perguntou à secretária.

- Ele forçou a entrada, ele...

Getchell levantou-se e empurrou a cadeira para trás.

- Encarregar-me-ei dele - disse, ao mesmo tempo que contornava a secretária com passos rápidos. - Ele forçou a entrada e eu forçar-lhe-ei a saída.

Lorraine Beal apressou-se a explicar:

- Chama-se Donald Lam. Esteve cá anteontem para falar com Mr. Allen e...

Getchell parou a meio do caminho, agarrou o canto da secretária e perguntou:

- Lam, sim?

- Lam.

- Saia e feche a porta - ordenou à rapariga: - Encarregar-me-ei pessoalmente dele.

A porta fechou-se.

Getchell parecia uma torre ao meu lado e fitava-me com olhar firme, cinzento e agressivo.

- Muito bem, Lam, que demónio julga que está a fazer?

- Julgo que estou a proteger um cliente.

- Nesse caso saia para a sala, espere que o seu cliente o chame e depois proteja-o. Não entre por aí dentro como um furacão.

- O que me espanta é como eu caí nessa esparrela uma vez!

- Que quer dizer?

- Claro que não caí ao comprido; sempre me pareceu que havia um não sei quê de suspeito no caso. Para me certificar, fui ao escritório de Allen, aqui ao lado, recolhi impressões digitais da orla metálica da secretária e comparei-as com as que recolhera no quarto do motel. Como encontrei um par iguais, presumi que Allen estivera, de facto, na cabina 27... A verdade só me ocorreu quando descobri que, afinal, as impressões digitais não eram de Allen.

Getchell observou-me longamente, em silêncio, e depois voltou a sentar-se à secretária, na cadeira giratória.

- Sente-se, Lam - convidou.

- Talvez não disponhamos de muito tempo - adverti.

- Porquê?

- A Polícia não é de todo estúpida.

- Foi à Polícia?

- A Polícia é que foi ter comigo. Abriu uma gaveta, tirou um livro de cheques, pegou na caneta e perguntou-me:

- Muito bem, que deseja?

- Desejo a verdade, para começar.

- Talvez fosse melhor desejar dinheiro...

- Desejo a verdade, para começar - repeti, mas sublinhei significativamente as últimas palavras.

Getchell pousou a caneta e fechou o livro de cheques.

- Sou viúvo.

Acenei afirmativamente.

- E também sou um homem.

Acenei outra vez.

- Conheci Sharon Barker no bar onde ela trabalha. É esperta, gostei dela e saímos juntos.

- Quantas vezes?

- Isso tem alguma importância?

- Na realidade, não tem.

- Muito bem, saímos juntos. No sábado à noite fomos para o "Bide-a-wee-bit", depois de ela sair do emprego e de termos jantado. Sharon procedeu ao registo. Eu não sou de todo desconhecido e gosto pouco de ser visto nesses lugares. Ela procedeu ao registo indicando o nome de Mr. e Mrs. Charleton Blewett, de São Francisco, recebeu a chave e instalámo-nos. Pedimos umas garrafas de água gasosa e, não sei porquê, o detective da casa desconfiou e foi entregá-las pessoalmente.

- Isso incomodou-o?

- Nem por isso. Tenho uma primeira hipoteca sobre o estabelecimento, que devia ser dirigido para arranjar dinheiro e não para arranjar sarilhos. Resolvi recomendar que empregassem outro detective. Para ser franco, nem sequer vejo motivo para terem aquilo a que chamam "encarregado da segurança" num motel daquele género.

- Que sucedeu depois disso?

- Bateram à porta - respondeu e calou-se.

- Continue.

- Será muito melhor se não souber tudo isto, Lam...

- Tenho de saber. Continue a falar.

- Seja. Sharon abriu a porta e entrou um homem que tirou um cartão da algibeira e se identificou como Ronley Fisher, ajudante do procurador do Distrito. Julguei que se tratasse de uma extorsão de qualquer espécie e, francamente, não soube como encarar a situação. Devia dizer-lhe quem era e perguntar-lhe que diabo pretendia ou aguardar que ele pusesse as cartas na mesa? Decidi aguardar. Aconteceu, porém, que o homem nos tomou por aquilo que pretendêramos ser, pensou que fôssemos, de facto, Mr. e Mrs. Charleton Blewett, de São Francisco. Pediu desculpa por nos incomodar e explicou que trabalhava num caso muito importante e que uma testemunha do mesmo se encontrava numa cabina contígua onde, supunha, se lhe reuniria um cavalheiro, um pouco mais tarde. Precisava de falar com ambos, mas como tinha de evitar que o vissem, pedia-nos que o deixássemos espreitar durante alguns minutos pela janela.

- Que lhe respondeu?

- Que lhe havia de responder? Acedemos e perguntámos-lhe se queria uma bebida, o que recusou. Fingimos, portanto, que éramos marido e mulher, de São Francisco, e estávamos um pouco cansados.

- E depois?

- Passada cerca de uma hora agradeceu-nos e saiu.

- E depois? - insisti.

- Reflecti, e quanto mais pensava no caso menos me agradava. Mandei Sharon para casa, num táxi, e regressei também, no meu carro.

- Que horas eram?

- Cerca das duas da manhã, talvez.

- Que mais?

- No dia seguinte ouvi falar no assassínio de Ronley Fisher. Sabia que a Polícia investigaria toda a gente que estivera no motel e ignorava se Fisher dissera a alguém que estivera na nossa cabina. Não ousei arriscar-me. Havia uma pessoa, e uma só, na qual podia confiar. Telefonei para o motel e informei que desejava reservar a cabina por mais dois dias e que mandava a importância do aluguer por mensageiro.

- Por que se deu a esse trabalho de conservar a mesma cabina?

- Para que a Polícia imaginasse que o par que lá se encontrava era o mesmo que a ocupara antes, evidentemente.

- Quer dizer que o seu genro nunca lá estivera?

- Nunca. Ele só conhecia Sharon de vista.

- Quanto deseja ela por tudo isto?

- Por enquanto, pouco, mas mais tarde há-de querer muito.

- O senhor pagará?

- Pagarei.

- Na sua opinião, que sucedeu? Refiro-me a Ronley Fisher.

- Não sei nem me interessa. Não quero saber nada acerca desse assunto.

- Está metido numa camisa de onze varas.

- Não me dá novidade nenhuma.

- Pelo meu lado, entrei no jogo a sério e meti-me em sarilhos.

- Muitos?

- Mais do que a conta.

- Arranharam-lhe a cara.

- Arranharam-me a cara, esmurraram-me o estômago, magoaram-me o queixo e fizeram-me passar a noite numa cela de bêbedos.

- E por que está aqui?

- É norma da nossa firma tentar proteger os nossos clientes, mesmo quando eles não são francos, no princípio, e não fazem jogo limpo connosco.

- Lamento.

- Também eu.

- Que vai fazer, agora?

- Esforçar-me para que não o relacionem com o caso, se puder. Mas para isso preciso de saber o que sucedeu.

- Já lhe disse o que sucedeu.

- O seu genro contou uma grande história.

- Inventei a melhor que pude...

- A Polícia acha que não tenho cooperado com ela e ameaça cassar-me a licença.

- Disponho de alguma influência política. Claro que não a posso exercer directamente nesta altura, mas, quando quiser renovar a sua licença, não creio que tenha motivos para se preocupar.

- E entretanto?

- Temos ambos dores de cabeça. Tentaremos ajudar-nos um ao outro.

Voltou a pegar na caneta, preencheu um cheque, separou-o do livro e estendeu-mo.

A importância era de cinco mil dólares. Guardei-o na algibeira e apertei a mão de Getchell.

- Poderá evitar que me envolvam misto?

- Não posso garantir - respondi-lhe com franqueza. - Esforçamo-nos sempre por satisfazer os nossos clientes.

- Está bem. Lembre-se de que sou seu cliente!

- Não me esqueço - redargui e encaminhei-me para a porta.

Getchell abriu-a e disse-me, em voz alta:

- Agrada-me o seu estilo, rapaz. Gosto da sua iniciativa e da sua coragem, mas oponho-me terminantemente a que desperdice o seu e o meu tempo. Além disso, não creio que Mr. Allen, o meu genro, esteja interessado na sua proposta. Desta vez desculpo-o, mas não volte a entrar por aqui dentro sem fazer caso da minha secretária. Compreende?

- Sim, senhor - respondi e saí humildemente pela porta fora.

Meti-me no carro e segui para o tribunal o mais depressa que me foi possível.

Harcourt Parker, o ajudante do procurador do Distrito que fora escolhido para substituir Ronley Fisher, esforçava-se por fazer o melhor que podia, mas não obtinha resultados.

Staunton Cliffs estava na barra, a depor em nome da Defesa e a causar boa impressão ao júri. Era um indivíduo convincente, de raciocínio ágil, e ainda por cima bom actor. Dava a impressão de tentar ser justo.

Sentia profundamente a morte da mulher, explicava. Apesar de já não se entenderem e de estarem prestes a separar-se, tinha por ela o maior respeito e estimava-a como a uma amiga. Mas o antigo encanto das suas relações quebrara-se...

Admitia que tentara poupar à amante, Marilene Curtis, a notoriedade jornalística que por força resultaria da descoberta do que entre ambos havia e, por isso, mentira à Polícia ao afirmar que se encontrava só com- a mulher, no apartamento, no momento dos tiros.

Na realidade, procurara a mulher para lhe dizer que queria o divórcio e para a tentar convencer a encarar a situação com sensatez. Estava, dizia, disposto a fazer-Lhe uma doação substancial.

A testemunha acrescentou que se enganara a respeito da esposa ao supor que ela reconheceria o inevitável; havia meses que não existiam entre ambos relações normais de mairido e mulher e ele supusera que ela avaliaria a impossibilidade de uma tal situação se manter.

Ao contrário do que esperara, porém, a mulher perdera a cabeça, tirara uma arma de uma gaveta e tentara alvejar Marileine Curtis, que fugira a correr do aposento. A testemunha agarrara a esposa, perguntara-lhe que loucura pretendia cometer, compreendera que estava nas garras do histerismo e esbofeteara-na com força, para a chamar à realidade. Ela voltara, então, a arma para ele e disparara. A bala passara-lhe de raspão por um braço. Agarrara o pulso da mulher, a fim de evitar que levasse mais longe aquela loucura, ela torcera o braço e na luta que se seguira a arma disparara-se acidentalmente e matara-a. Lamentava muitíssimo o sucedido, mas estava inocente.

Muito sóbrio e senhor de si, Cliffs reafirmou que sentia profundamente a tragédia. Salientou que era um homem normal e ardente, que a esposa era frígida, que o obrigara a procurar companhia fora de casa e que ao saber que ele encontrara finalmente a felicidade com Marilene Curtis adoptara uma atitude irredutível e recusara conceder-lhe o divórcio.

Marilene Curtis, co-ré, estava sentada ao lado do seu advogado, olhava o amante, no banco das testemunhas, e de vez em quando acenava, a confirmar o que ele contava. Outras vezes, levava o lenço aos olhos, mas logo a seguir erguia o queixo e endireitava orgulhosamente a cabeça, com o coração nos olhos, como a querer dizer que não se envergonhava do seu amor, pois era normal, natural e inevitável.

A opinião geral era que a acusação não podia esperar mais do que um júri indeciso, que não havia a míniima possibilidade de condenação e que as probabilidades se inclinavam mais para uma absolvição pura e simples.

A testemunha conduziu a sua história a uma conclusão dramática e o advogado da Defesa disse ao da Acusação:

- Pode contra-interrogar.

Parker levantou-se e começou a fazer perguntas à testemunha.

Cliffs aparou todos os golpes com perícia e saiu sem uma beliscadura da refrega.

Claro que Marilene Curtis era sua amante. Gostavam um do outro, queriam casar e tinham direito à felicidade. Insistira com a mulher para que consultasse médicos, por causa da sua crescente frigidez, mas ela recusara. Deixara havia muito tempo de ser uma esposa O afastamento fora consequência da sua própria decisão e verificara-se muito antes de Marilene Curtis surgir na sua vida. A mulher dissera-lhe que procurasse outros interesses e zombara dos seus desejos naturais.

Parker não obtinha resultados e sabia-o. Todo o tribunal, incluindo o júri, o sabia.

Quando a audiência foi interrompida para um descanso de quinze minutos, aproximei-me de Parker e perguntei-lhe:

- Posso falar um momento consigo?

- Acerca de quê?-inquiriu, medindo-me de alto a baixo.

- Do caso.

- Em que sentido?

- Tenho certas informações.

- Isso é diferente. Venha cá... Quem é você e que sabe?

- Chamo-me Lam e sou detective particular. Não sei muito, mas tenho um pressentimento...

- Não procedemos baseados em pressentimentos.

- Mas eu tenho algumas provas a confirmarem o pressentimento...

- Leve-as à Polícia; são eles que investigam. Eu limito-me a julgar causas em tribunal.

- Já estive na Polícia e mandaram-me passear.

- Talvez tivessem razão.

- Como queira. Mas importa-se de fazer uma pergunta à testemunha?

- Depende. De que espécie de pergunta se trata?

- Pergunte-lhe se conhece Carlotta Shelton. Os olhos de Parker iluminaram-se:

- Quer dizer que Cliffs tinha um romance com ela?

- Não sei. Pergunte-lhe se a conhece e, depois, se não é verdade que esteve num grupo com Carlotta e um amigo desta e nessa altura os seus problemas conjugais foram discutidos. Pergunte-lhe se Marilene Curtis não fazia igualmente parte do grupo e se ele não disse que mataria a mulher, se ela não lhe concedesse o divórcio.

Os olhos de Parker iluminaram-se como as lâmpadas de uma árvore de Natal.

- Pode provar isso? - perguntou-me.

- Não, mas você pode.

Abanou a cabeça. As luzes apagaram-se.

- Não posso, sequer, fazer perguntas dessas sem ter provas.

- Obtenha um adiamento e eu farei o que puder para lhe arranjar provas.

- Não posso obter nenhum adiamento.

- Quanto tempo demorará a contra-interrogar?

- Pouco. Francamente, não estou a obter resultados nenhuns com esta testemunha. Terão de chamar Marilene Curtis e eu espero que não seja uma testemunha tão boa como Straunton Cliffs.

- De facto, não está a progredir nada com Cliffs. Pelo contrário, cada pergunta sua coloca o tipo em terreno mais sólido, perante o júri.

- Não preciso- que mo diga.

- Mas precisa de alguém que o ajude - ripostei e virei-lhe as costas.

- Espere lá, homem, não quis ser rude!-chamou-me.- Compreende, estou em; maus lençóis.

- Isso sei eu.

- Não posso fazer perguntas dessas a não ser que tenha provas a apoiá-las. É contrário à ética profissional tentar a sorte com perguntas desse género perante um júri.

- Está bem, nesse caso interroguem acerca das vezes que saiu com Marelene Curtis e dos diferentes lugares onde estiveram.

Abriu as mãos, num gesto de rendição, e replicou:

- Que ganharei com isso? Eles admitem as suas relações e até se orgulham delas! Dizem que é amor... e fazem parte do júri algumas mulheres frustradas que vão atirá-los direitinhos para os braços um do outro!

- Mas pode perguntar-lhe se alguma vez saíram com outro casal, não pode?

- Sim, isso posso perguntar.

- Então pode perguntar-lhe também- se conhece Carlotta Shelton?

Semicerrou os olhos e respondeu:

- Não, creio que não... Não posso arrastar o nome dela para o interrogatório sem... bem, sem ter provas de que ela está relacionada com o caso.

- Então perca a causa que a mim tanto se me dá. Virei-lhe as costas e desta vez não me chamou. Reaberta a audiência, Parker reatou o contra-interrogatório.

Entretanto Cliffs convencera-se de que o pior passara, de que escapara ileso do pior que a acusação pudera fazer-lhe e de que estava tudo a correr muito bem. Começou a sentir-se eufórico, ébrio de vitória e cheio de confiança.

Todo o tribunal sentia que o vento virara. A possibilidade de um júri indeciso tornou-se mais improvável e a absolvição começou a parecer mais certa. Agora bastava a Marilene Curtis contar uma história convincente.

Passava das onze e meia da manhã.

Se Parker terminasse o contra-interrogatório antes do intervalo "do meio-dia, perderia uma vantagem; se o prolongasse)até lá, perderia o interesse, a simpatia e a atenção dos jurados.

Parker sabia-o e a testemunha também.

- Aproxima-se a hora da interrupção para o almoço, Excelência - lembrou ao juiz.

- Ainda temos vinte e cinco minutos. Prossiga.

Parker voltou-se para a sala do tribunal, viu o sorriso levemente triunfante de Marilene Curtis, encontrou o meu olhar e virou-se, decidido, para Cliffs, a quem perguntou:

- Nessas passeatas, nessas viagens sub-reptícias que fazia com a sua amante, Marilene Curtis, ia sempre só?

- Que quer dizer? - redarguiu o interpelado. - Claro que ia com Miss Curtis. - Quero dizer se alguma vez participou num quarteto, com algum amigo seu e outra rapariga?

- As nossas relações, Mr. Parker - replicou Cliffs, assumindo um ar digno-, não eram do género de escapadas sub-reptícias de fim-de-semana, para aventuras sexuais. As nossas relações baseavam-se no amor e eu era tão incapaz de incluir outras pessoas na nossa intimidade como de convidar outro casal para o meu quarto!

Parker respirou fundo e atirou:

- Conhece Carlotta Shelton?

A testemunha endireitou-se bruscamente, como se tivesse apanhado um choque.

- Eu... eu... sim, conheço.

- Alguma vez viu Miss Shelton em qualquer dos seus encontros?

- De vez em quando via algumas pessoas conhecidas... Eu sou...

- Responda à pergunta: alguma vez viu Carlotta Shelton num dos seus encontros?

- Eu... eu... creio que sim.

- Relate as circunstâncias do encontro.

- Um momento - protestou, melífluo, o advogado da Defesa, levantando-se. - Com permissão do Tribunal, não se está a proceder a um contra-interrogatório correcto e a pergunta é não só alheia ao que foi perguntado no interrogatório directo, como também requer depoimento incompetente, irrelevante e secundário.

- A testemunha descreveu os seus passeios com a amante e a natureza dos mesmos e, portanto, tenho o direito de a contra-interrogar pormenorizadamente a esse respeito - replicou Parker.

- O Tribunal sente-se inclinado a concordar - decidiu o juiz.

- Devo tê-la visto? - indagou Cliffs, a tentar pescar em águas turvas.

- Onde a viu ?

- Nunca tive relações românticas com a dama em questão, se é isso que pretende insinuar - argumentou a testemunha.

- Perguntei-lhe onde a viu - insistiu Parker.

- É difícil responder a essa pergunta, assim de improviso... Não previra que ma fizessem.

Parker foi um grande actor. Tirou um livrinho de apontamentos da algibeira, folheou-o e a certa altura marcou uma das páginas com o polegar e perguntou:

- Na realidade, viu-a várias vezes, não é verdade,

Mr. Cliffs?

Cliffs hesitou.

- Bem, sim... creio que sim.

- E numa dessas ocasiões, pelo menos, ela estava acompanhada de um namorado, não é verdade?

- Miss Shelton anda geralmente acompanhada - replicou a testemunha. - É uma mulher muito atraente.

- Alguma vez viajou no automóvel de Carlotta Shelton com Marilene Curtis?

- Viajei.

- Iam só os três no carro?

- Protesto. Não é contra-interrogatório correcto. Incompetente, irrelevante e secundário - declarou o advogado da Defesa.

Protesto indeferido - declarou o juiz, sem hesitar

A testemunha perdera a compostura. Suava e estava visivelmente assustada.

- Não. Ia outra pessoa.

- Homem ou mulher?

- Homem..

- Companheiro de Miss Shelton?

- Sim.

- Aonde foram, nessa ocasião?

- Não... não me lembro.

- Foi fora da cidade?

- Creio que sim.

- Quer dizer que não se lembra do nome do motel onde ficaram nessa ocasião? - perguntou Parker, melífluo.

O advogado da Defesa levantou-se.

- Excelência, este contra-interrogatório é incorrecto e impróprio - protestou. - As perguntas exigem informações incompetentes, irrelevantes e secundárias. É evidente a tentativa de desacreditar a testemunha pela associação com outras pessoas, quando a única associação que interessa, neste caso, é a da testemunha com a sua co-ré, Marilene Curtis. A Defesa admitiu sem hesitar essa associação e forneceu pormenores da mesma. É manifestamente inadequado procurar despertar os preconceitos do júri contra associações deste género.

- A testemunha declarou ser tão incapaz de admitir outras pessoas na intimidade dos seus encontros com a amante como de convidar outro casal para o seu quarto - lembrou Parker.

- Essa declaração não foi feita em interrogatório directo, mas, sim, em interrogatório indirecto - salientou a Defesa.

- Não me interessa quando a declaração foi feita; é privilégio meu pôr em dúvida as palavras da testemunha a esse respeito.

O advogado da Defesa olhou desesperadamente para o relógio-.

- Com licença do tribunal, faltam poucos minutos para o intervalo do meio-dia. Gostaria de consultar Certas fontes autorizadas a este respeito e de voltar ao assunto ao fim do intervalo do meio-día.

- Muito bem - concordou o juiz. - Interromperemos agora a audiência-, que recomeçará às duas da tarde. Recomenda-se aos membros do júri que nesse espaço de tempo não formem nem exprimam nenhuma opinião acerca da culpa ou inocência de cada um ou de ambos os réus, não discutam a causa com ninguém nem permitam que seja discutida na sua presença.

O juiz levantou-se e saiu do aposento. Parker abriu caminho por entre a multidão e disse-me, nervosamente:

- Acertou em cheio, Lam! Esta história desnorteou-os. Agora precisamos de saber mais coisas, não podemos parar aqui. Temos de saber mais. Vá à Polícia e...

- E atirarão outra vez comigo para a sombra. Não lhes agrada que detectives particulares se intrometam nos seus casos de assassínio.

- Mas que diabo quer você fazer, então?

- Quero que telefone à minha sócia, Bertha Cool, e que a nomeie investigadora do gabinete do procurador do Distrito.

- E Depois?

- Depois Bertha terá de "trabalhar" Carlotta Shelton.

- Com os diabos! - praguejou Parker. - Por sua causa meti-me de tal maneira por terra dentro que não tenho agora outro remédio senão seguir para diante.

- Quem abordou o assunto foi você.

- Tive de o abordar, pois estava vencido se não o fizesse. E agora... agora estou em apuros!

- Temos mais de duas horas. Pode nomear-me investigador especial, o que me dará uma certa qualidade oficial, e telefonar a Bertha Cool e nomeá-la investigadora do gabinete do procurador do Distrito. Veremos então o que poderemos fazer. Como investigadores particulares temos as mãos atadas.

- Por que demónio não trabalharam com a Polícia?

- Porque a Polícia não nos quis.

Parker hesitou, mas por fim respirou fundo e perguntou-me:

- Qual é o número do telefone de Bertha Cool?

 

Com as facilidades de que Parker dispunha, bastaram poucos minutos para verificar que Carlotta Shelton estava fora de circulação, ninguém sabia onde. A Polícia procedera a algumas investigações acerca dela, mas com pouco interesse.

Harden C. Monroe, comerciante proeminente e negociante de imóveis, também se ausentara da cidade, para tratar de negócios e, no seu escritório, não sabiam dizer ao gabinete do procurador do Distrito onde seria possível comunicar com ele.

Parker olhou para mim, desesperado.

- Tentaremos Elaine Paisley - decidi.

- Pensa que ela saberá onde eles estão?

- São dois. Talvez saiba onde poderemos comunicar com um deles e...

- Está bem - interrompeu-me. - Como não temos melhor pista, é seguir essa.

Um motorista do procurador do Distrito conduziu-nos através do trânsito com a luz vermelha acesa e a sereia a apitar e, decorridos exactamente doze minutos, batíamos à porta do apartamento de Elaine Paisley.

Vestia uma espécie de roupão diáfano que permitia que a luz, atrás dela, lhe recortasse o corpo em silhueta, mostrando-nos que debaixo da transparente vestimenta se encontrava apenas a sua cativante pessoa.

Recuou, quando entrámos no apartamento.

- Donald Lam! - exclamou. - Pensei... você não tem direito nenhum...

- Este homem é do gabinete do procurador do Distrito. Para já, queremos saber o paradeiro de Carlotta Shelton.

- Não sei. Não a vi nem quero ver. Não a poderei encarar.

- Porquê?

- Aquela horrível mulher obrigou-me a assinar um depoimento falso.

- Que espécie de depoimento?

- Você sabe muito bem... Acerca... acerca de tirar uma folha de papel da sua secretária. Não há absolutamente verdade nenhuma nisso; queria falar consigo acerca de um assunto muitíssimo confidencial.

- Que assunto?

Desta vez explicou-se, atabalhoadamente:

- Não quero mencionar nomes, mas creio encontrar-me agora numa situação em que não tenho outra alternativa. Harden C. Monroe está zangado com a mulher. Ela procurou estender-lhe uma armadilha e certos detectives particulares tentaram levar-me a jurar que fizera uma viagem de fim-de-semana com ele.

- Que lhes disse?

- Disse-lhes que não juraria tal coisa, claro; que mal conhecia Harden C. Monroe; que ele falara comigo uma vez acerca de um investimento em imóveis e fora sempre um perfeito cavalheiro.

- E depois?

- E depois esta... esta horrível mulher entrou por aí dentro e disse que não o procurara a si por ter qualquer motivo a tratar, que quisera apenas roubar a folha de papel de carta do seu escritório. Quando a desmenti, atirou-me para cima da cama e sentou-se em cima do meu estômago. Perdi o fôlego, quase nem podia respirar.

Olhei para Parker e li no seu rosto que começava a perder o entusiasmo.

- Disse a Carlotta alguma coisa a esse respeito? -inquiri.

- Mal a conheço. Conheci Mr. Monroe por causa de um assunto comercial, como já disse, e entrei com Carlotta numa ou duas campanhas publicitárias, mais nada. Conheço-a de vista.

- Não faz ideia onde ela se encontra neste momento?

- Claro que não! Permitam que lhes lembre, cavalheiros, que me preparava para tomar o meu duche, que espero um telegrama e que... bem, como podem ver com os vossos próprios olhos, não estou vestida para receber visitas.

- Temos de localizar Monroe ou Carlotta Shelton antes das duas horas. Não nos pode dar uma boa pista? Por onde devemos começar a trabalhar?

- Não faço a mínima ideia nem quero intrometer-me em nenhum desses assuntos - respondeu, arrogante.- Se insistirem em continuar aqui, no meu apartamento, terei de telefonar ao meu advogado.

Bateram à porta e como Elaine hesitasse fui eu próprio abrir.

Bertha Cool entrou e, ao vê-la, Elaine Paisley recuou para o quarto.

- Importa-se que demos uma vista de olhos pelo quarto antes de sairmos? - perguntei à rapariga.- É só para termos a certeza de que não se encontra lá ninguém. - Em seguida virei-me para Parker e informei: - Esta é Bertha Cool.

Bertha pôs as mãos nas ancas e olhou ameaçadora-mente Elaine Paisley.

- Claro que me importo! - respondeu a jovem. - Antes de mais nada, não têm o direito de estar aqui; não os convidei e não podem revistar-me o quarto sem um mandado de busca.

- Bertha, ela afirma que o depoimento que lhe fez de que tirara uma folha de papel do escritório e a entregara a Carlotta Shelton é absolutamente falso, que você a obrigou a fazê-lo.

- Ah, sim?! - exclamou Bertha, de olhos coroscantes.

- Exijo que me protejam! - gritou Elaine. - Os cavalheiros, ou pelo menos um de vocês, representam a Lei. Se o senhor é do gabinete do procurador do Distrito peço-lhe...

- Primeiro veremos no seu quarto - interrompi-a - e depois...

Encostou-se à porta do quarto, de pernas e braços abertos.

- Não podem entrar aqui sem um mandado de busca - afirmou. - Têm-no?

- Não, não o trouxemos - confessou Parker. - Receio que tenhamos de apelar para a sua generosidade...

- Qual mandado de busca, qual carapuça! - exclamou Bertha e, com um movimento do braço, afastou Elaine da porta e atirou-a de escantilhão para o meio do aposento.

Abriu a porta do quarto e disse:

- Olá, queridinha! É melhor vestir-se, pois estão aqui uns homens que querem falar consigo.

Elaine Paisley gritou e Bertha entrou no quarto. Instantes depois saiu com Carlotta Shelton, que puxava apressadamente o fecho de um roupão.

- É esta que procuram? - perguntou-me a minha sócia.

- É - confirmei.

Carlotta voltou-se para mim e disse-me:

- Ouça, Mr. Lam, houve, sem dúvida, certo mal-entendido, mas quero que saiba que estou disposta a compensá-lo a esse respeito.

- O que me interessa neste momento é saber o que aconteceu no sábado à noite, quando foi ao motel "Bide-a-wee-bit", se inscreveu, ocupou uma cabina e esperou que Hardeo Mooroe se lhe reunisse. Pouco depois de ele chegar, Roroley Fisher visitou-os, identificou-se e entregou-lhes uma intimação. Conte o resto da história, a partir daqui.

- Não percebo de que está a falar...

- Aconselho-a a perceber muito depressa - interveio Bertha Cool. - Pertenço ao gabinete do procurador do Distrito e vai sair comigo.

- Não me pode prender! - protestou Miss Shelton.

- Ai não, que não posso! Aceita cinco minutos para se vestir ou prefere ir mesmo assim? - Virou-se para Elaine Paisley e ameaçou: - Quanto a si, de lambidazinha mentirosa, experimente retratar-se daquele depoimento que fez e que jurou por Deus e arranco-lhe os dentes todos!

- Já não se trata apenas de encobrimento, mas de um assassínio - lembrei a Carlotta Shelton. - O seu procedimento nos próximos cinco minutos determinará se você será apenas uma testemunha ou se será julgada por cúmplice num assassínio.

- É uma desavergonhada! jeitosa - interveio, de novo, Bertha - e pode servir-se do corpo bem feito para obter da vida algumas coisas que deseja, antes de envelhecer muito. Mas, se passar os próximos dez anos numa prisão de mulheres, com uma dieta frugal e uma vida de celibato forçado, verá como sai de lá!

- Foi tudo um erro terrível... - titubeou Carlotta. - Um acidente...

- O quê? - indagou Parker.

- Mr. Fisher...

- É melhor dizer-nos tudo quanto sabe a esse respeito - aconselhei.

Começou a chorar.

- Limpe as lágrimas, queridinha, e comece a falar

- ordenou a minha sócia. - Não dispomos de muito tempo. Estes cavalheiros são pessoas inteligentes, que não se deixam comover por lágrimas, as quais também não significam nada para mim.

Carlotta parou de chorar como se tivesse fechado uma torneira. Estava pálida e assustada.

- Não sei como Mr. Fisher descobriu o que se passava. Harden Monroe e eu fizemos uma viagem com Staunton Cliffs e Marilene Curtis. Harden conhecia Cliffs muito bem. Como a mulher daquele procurava provas para uma acção de divórcio, Harden e Cliffs inventaram uma viagem de negócios e, depois de partirem, telefonaram a Marilene e disseram-lhe que me fosse buscar e levasse consigo ao encontro deles.

- Que aconteceu na noite de sábado? - insisti.

- Fui ao motel onde às vezes me encontrava com Harden e procedi ao registo. Decorrida cerca de uma hora, Harden chegou e, mal entrara na cabina, apresentou-se um homem que se identificou como Ronley Fisher, procurador do Distrito, e nos entregou uma intimação.

- Para deporem acerca do quarteto? - inquiri.

- Não. Acerca de uma conversa.

- Que espécie de conversa?

- Staunton Cliffs estava muito preocupado na ocasião em que formámos o quarteto, aquando da tal viagem de negócios forjada para enganar a mulher de Harden. Começaram a falar dos seus dissabores conjugais e Cliffs disse que a mulher não lhe queria conceder o divórcio, que tentava sangrá-lo e apoderar-se de todos os seus bens. Não o conseguiria, porém, pois mais depressa a mataria.

- Ouviu-o dizer isso? - perguntou-lhe Parker.

- Ouvi. Marilene Curtis e Harden Monroe também ouviram - respondeu Carlotta, fatigada.

- Onde e quando? - quis saber o ajudante do procurador do Distrito.

- No dia 22 de Março, no "Cactus Pear Motel".

Olhei para Parker, que viu as horas e se dirigiu a

Bertha Cool:

- É ajudante do procurador do Distrito, Mrs. Cool. Estas mulheres que se vistam e leve-as ao tribunal. Aqui está uma intimação para se apresentarem às duas horas como testemunhas de acusação na causa do Povo versus, Staunton Cliffs e Marilene Curtis. Recomendo-lhe que não as deixe tentar nada nem travar qualquer conversa em segredo.

Bertha agarrou Carlotta e empurrou-a para o quarto, ao mesmo tempo que dizia a Elaine:

- Vamos, queridinha, vista-se e depressinha, sim? Deixe as pinturas para depois; temos aonde ir e não podemos perder tempo.

 

´O juiz Crawford Trent ocupou o seu lugar às duas horas em ponto e declarou:

- Foi esta a hora fixada para o prosseguimento do julgamento da causa do Povo do Estado da Califórnia versus Staunton Cliffs e Mariiene Curtis. Os réus estão no Tribunal e os jurados todos presentes. Staunton Cliffs estava a ser contra-interrogado. Volte à barra, Mr. Cliffs.

Os advogados de Cliffs tinham estado a dar-lhe instruções, como treinadores de futebol no intervalo de um jogo.

Cliffs recuperara grande parte da sua confiança quando voltou à barra.

- Mr. Cliffs, declarou que nunca participou num quarteto com a sua amante, Mariiene Curtis - começou Parker?

- É verdade.

- Deseja modificar o depoimento?

- Evidentemente que não.

- Pergunto-lhe, Mr. Cliffs, e recomendo-lhe que preste cuidadosa atenção à pergunta, se é ou não verdade que cerca das dez horas da noite do dia 22 de Março deste ano, no "Cactus Pear Motel", onde se registara com Harden C. Monroe como únicos ocupantes da cabina 12, e onde a sua co-ré, Mariiene Curtis, e Carlotta Shelton se registaram como únicas ocupantes da cabina 13, com uma porta de comunicação entre as cabinas, que abriram, pergunto-lhe se é ou não verdade ter declarado, na presença de Mariilene Curtis, Carlotta Shelton e Harden C. Monroe, que sua esposa tentava arruiná-lo, que embora estivesse disposta a conceder-lhe o divórcio exigia uma doação de propriedades que o senhor considerava injusta e que preferia matá-la a consentir que o despojasse de tudo?

Após uma pausa, Parker acrescentou:

- Para que não haja questão de identificação, pedirei ao meirinho que traga Carlotta Shelton, para que a testemunha a veja e...

- Não é preciso - interrompeu-o Cliffs, falando apressadamente e sem ter tempo de pensar, sequer. - Eu não o disse dessa maneira. Disse que minha mulher tentava arruinar-me, assim como a mulher de Harden Monroe tentava arruiná-lo, e que mulheres dessas não passavam de chupistas.

- E deviam ser mortas? - sugeriu Parker.

- Não o disse.

- E que preferia matar sua mulher a conceder-lhe os bens que ela exigia?

- Posso ter dito que mulheres dessas mereciam ser mortas, mas o que não disse, com certeza, foi que mataria a minha.

- Disse que gostaria de a matar?

- Eu... eu... estivera a beber e estava furioso. Não sei... não sei o que disse.

- Não se lembra do que disse?

- Francamente, não me lembro.

- Estava embriagado?

- Estivera a beber.

- Portanto, pode ter dito que preferia matar a sua mulher a consentir que o despojasse dos seus bens.

- Não me lembro.

- Anteriormente declarara neste Tribunal ser tão incapaz de levar outras pessoas consigo nas suas excursões amorosas como de convidar um casal amigo para o seu quarto. Deseja modificar esse depoimento?

- Eu... eu... esquecera-me dessa ocasião - titubeou Cliffs, fatigado.

- Portanto, não só participou num quarteto como o caso lhe causou tão pouca impressão que o esqueceu por completo?

- Não quero dizer que... que não me tenha causado impressão...

- Mas esquecera-o?

- Bem, foram tantas as vezes...

- Tantas as vezes que participara em quartetos desses? - inquiriu Parker.

- Bem, Monroe e eu tínhamos ambos complicações domésticas. Como fazíamos alguns negócios juntos, de vez em quando inventávamos um negócio que nos obrigava a partir ao mesmo tempo e depois... elas reuniam-se-nos.

- Quer dizer, então, que saíram mais de uma vez na companhia de Harden Monroe e Carlotta Shelton...

- Sim.

- E esquecera-se por completo do facto?

- Não... não me lembrara das várias circunstâncias, no momento.

- Por isso declarou que nunca tinham formado um quarteto.

- Sim.

- O que era mentira?

- Era mentira.

- Mentiu, portanto?

- Menti.

- Sob juramento - lembrou-lhe Parker.

- Sim! - gritou a testemunha.

Parker fez uma vénia na direcção do juiz e declarou:

- Com permissão de Vossa Excelência, terminei o meu contra-interrogatório.

O juiz olhou para os advogados, um dos quais disse:

- Está concluída a causa da Defesa em nome de Staunton Cliffs.

- E a respeito de Marilene Curtis? - indagou Trent. O outro advogado levantou-se e respondeu:

- Com permissão de Vossa Excelência, embora tenhamos garantido ao tribunal que Marilene Curtis deporia como testemunha em seu próprio nome, decidimos cingir-nos às provas já apresentadas em tribunal e não chamar Marilene Curtis.

Alguma refutação? - perguntou o juiz.

- Desejo chamar Carlotta Shelton a depor - respondeu Parker-e declaro ao tribunal que fazemos todos os esforços no sentido de entregar a Harden Monroe uma intimação. No entanto, o depoimento de Miss Shelton ocupará provavelmente toda a tarde, pois inclui declarações que talvez esclareçam em parte a morte do meu antecessor, Ronley Fisher.

Levantou-se uma grande algazarra de conversas no tribunal e Trent decidiu:

- A -audiência fica interrompida por dez minutos.

 

Estávamos sentados no gabinete do procurador do Distrito, que mostrava um rosto sorridente e feliz. Parker esforçava-se por parecer modesto e apagado, mas não o conseguia lá muito bem...

Os repórteres dos jornais tinham efectuado as suas entrevistas e partido.

Um funcionário abriu a porta e anunciou:

- Chegou o sargento Sellers.

- Mande-o entrar - respondeu-lhe o Procurador do Distrito.

Sellers entrou e aquele observou-o, de testa franzida.

- Mandei-o chamar, Sargento, porque queria que me compreendesse perfeitamente - declarou o procurador do Distrito. - Obtivemos, como deve saber, condenações na causa de Staunton Cliffs e Marilene Curtis, mas o que mais importa é que resolvemos também o mistério que rodeava a morte do meu ajudante, Ronley Fisher. Ao que parece, Fisher coligira informações que lhes permitiram apresentar uma intimação a Carlotta Shelton e a Harden C. Monroe, no último sábado à noite. Monroe andava empenhado num acordo acerca da doação de bens, com a mulher, e achou que seria muito desvantajoso qualquer depoimento susceptível de dar àquela uma oportunidade de o expoliar. Discutiu com Fisher e seguiu-o quando ele saiu da cabina do motel e se dirigiu a uma cabina telefónica, a fim de fazer uma chamada.

"Enquanto discutiam furiosamente, Monroe perdeu a tramontana e socou Fisher, que lhe pagou na mesma moeda. O cadeado da cancela das traseiras da piscina partiu-se durante a refrega e Monroe obrigou Fisher a recuar através da cancela aberta. Fisher desfechou-lhe um soco, Monroe esquivou-se, Fisher perdeu o equilíbrio e caiu no que provavelmente sabia ser uma piscina, convencido de que o pior que lhe aconteceria seria um banho forçado... Mas a piscina estava vazia e o meu ajudante deu um mergulho de três metros e embateu no fundo de cimento. A partir desse momento, verificou-se, por parte dos implicados, uma tentativa minuciosa para ocultar o sucedido.

"Este Gabinete considera que tem uma grande dívida de gratidão para com a firma "Cool & Lam, Investigadors", temporariamente nomeados investigadores auxiliares do gabinete do procurador do Distrito."

Sellers limitou-se a acenar com a cabeça.

- Creio - prosseguiu o promotor - que se tivesse havido um pouco mais de cooperação da sua parte, o caso teria sido resolvido mais cedo e talvez de maneira menos dramática. Não quero que o povo deste condado suponha que o Gabinete do procurador do Distrito procura deliberadamente desenlaces dramáticos como o verificado no tribunal nos últimos minutos do julgamento de Staunton Cliffs e Marilene Curtis. Mas quero que esse mesmo povo saiba e compreenda que somos lutadores que nunca desistimos e que somos infatigáveis nas nossas investigações.

Sellers acenou novamente.

- Sei que há certa questão acerca do facto de Donald Lam ter passado uma noite na cela dos bêbedos - uma experiência muito desagradável. Lam crê, no entanto, ter havido qualquer erro sincero e sugeriu que este Gabinete esquecesse o sucedido. Achei que devia ter conhecimento desse facto, Sargento.

Novo aceno de Sellers.

- Donald Lam informou-me de que, ao ser preso por suspeita de chantagem, lhe tiraram da algibeira mil dólares em notas numeradas. Esse dinheiro foi tirado da sua posse, a fim de servir de futura prova numa acção a intentar contra ele. Parece, no entanto, que a pessoa que o devia processar não só perdeu todo o desejo de o fazer, como também que a acusação não tinha o mínimo fundamento.

- Acha que Lam tem direito aos mil dólares? - antecipou-se Sellers.

- Foram tirados da sua posse - afirmou o procurador do Distrito.

- E Lam não tenciona acusar a Polícia por via daquela desagradável experiência na cela dos bêbedos?

- Assim me consta - confirmou o procurador. - Tencionava sugerir que, em virtude desse facto e de a firma "Cool & Lam" ser uma agência investigadora de elevada categoria, a Polícia cooperasse com ela sempre que possível, em vez de tentar dificultar-lhe a vida. Na realidade, se tivesse escutado Lam com um pouco mais de atenção, não há dúvida de que poderia ter obtido, pessoalmente, o crédito da solução do mistério que envolvia a morte de Fisher. Em vez disso, o caso foi resolvido de maneira muito dramática, em plena sala do tribunal, por um dos meus ajudantes.

Sellers engoliu em seco, aproximou-se de mim e deu-me um aperto de mão.

- Obrigado, Lam - agradeceu.

Em seguida apertou também a mão a Bertha Cool e declarou:

- Pode contar com toda a colaboração que me seja possível dar-lhe. - Virou-se para o procurador do Distrito e perguntou-lhe: - Era isto que desejava?

- Era isso que desejava - confirmou o interpelado.

- E os mil dólares - lembrei a Sellers.

 

                                                                                Erle Stanley Gardner  

 

                      

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