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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FIM DE VERÃO / Rosamunde Pilcher
FIM DE VERÃO / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FIM DE VERÃO

 

O tempo estivera abafado e nublado durante todo o Verão, sendo o calor do sol reprimido pelos nevoeiros marítimos que rolavam continuamente do lado do Pacífico. Mas por volta de Setembro, como é muito freqüente acontecer na Califórnia, estes recuaram mar dentro, espraiando-se sombriamente ao longo da linha do horizonte.

Em terra, para cá da zona costeira, terrenos cultivados, prontos para a colheita, regurgitavam de fruta madura, milho, alcachofras e abóboras avermelhadas, que tremeluziam à luz do sol. O calor mergulhava os pequenos aglomerados de casinhas de madeira na modorra, conferindo-lhes uma aparência acinzentada e poeirenta. As planícies, ricas e férteis, estendiam-se para leste, até ao sopé da serra Nevada, esta atravessada, em toda a sua extensão, pela grande auto-estrada de Camino Real que, para norte, ia dar a São Francisco e, para Sul, a Los Angeles, atravancada e tremeluzente com o aço escaldante de milhares de veículos.

A praia estivera deserta durante os meses de Verão, pois Reef Point, ficando na ponta final da costa, raramente era alvo das preferências do passeante ocasional. Por um lado, a estrada não era alcatroada, o que a tornava pouco segura e convidativa. Por outro, a pequena estância de La Carmelia, com as suas encantadoras ruas sombreadas por árvores, o clube local exclusivo e os motéis impecáveis, ficavam mesmo no princípio da linha, e qualquer pessoa de bom senso e com algum dinheiro para gastar ficava-se mesmo por ali. Só quem fosse aventureiro, desprovido de recursos financeiros ou profundamente apreciador de zonas de rebentação, é que se arriscaria a percorrer o último quilômetro e meio, descendo pelo terreno acidentado e pedregoso, derrapando até àquela enseada enorme, despovoada e ventosa.

Mas, naquela altura, devido ao tempo esplêndido que se fazia sentir e à ondulação suave do mar, o local estava apinhado de gente. Carros de todos os tipos desciam a colina com dificuldade, estacionando à sombra dos cedros e despejando amantes de piqueniques, campistas, praticantes de surf e famílias inteiras de hippies, recém-fartos de São Francisco e a caminho do Novo México e do Sol, à semelhança de muitas aves migratórias. E os fins-de-semana traziam os estudantes da Universidade de Santa Bárbara nos seus descapotáveis antigos e Volkswagens enfeitados de flores autocolantes, cheios de raparigas e caixas de cerveja enlatada, ficando-se por ali com as suas pranchas Malibu de cores brilhantes. Armavam pequenas tendas por toda a praia, enchendo o ar com as suas vozes, risadas e o cheiro a bronzeador.

De modo que, depois de tantas semanas de perfeito isolamento, víamo-nos subitamente rodeados de gente e de todo o gênero de atividade. O meu pai estava cheio de trabalho, tentando respeitar o prazo que lhe fora dado para terminar um guião, o que o tornava impossível de aturar. Sem que desse por mim, escapuli-me para a praia, levando com que me sustentar (hamburgers e Cola-Cola), um livro para ler, uma toalha de banho suficientemente grande para nela me estender à vontade, e Rusty para me fazer companhia.

Rusty era um cão. Muito meu, uma criaturinha de abundante pelagem castanha e raça indefinida, porém de grande inteligência. Quando nos mudáramos para a casinha de praia, na Primavera anterior, não tínhamos nenhum cão, mas logo o problema foi resolvido por Rusty, que tomou essa decisão depois de nos observar sorrateiramente. E dali não moveu pata. Enxotei-o de toda a forma e feitio, o meu pai atirou-lhe botas velhas, mas de nada valeu, pois voltou sempre, inabalável e sem ressentimentos, sentando-se a alguma distância do portão das traseiras, de beiço arreganhado à laia de sorriso e a dar à cauda. Certa manhã quente, enchendo-me de comiseração por ele, dei-lhe uma tigela de água fresca para beber. Lambeu-a até à última gota, e voltou, então, a assentar o traseiro no chão, fitando-me com aquele ar amigável e abanando a cauda. No dia seguinte, presenteei-o com um osso de presunto, que ele aceitou delicadamente, afastando-se para o ir enterrar. Cinco minutos depois, estava novamente de volta. Sorridente, de cauda sempre a abanar.

O meu pai saiu de casa e atirou-lhe uma olhadela, embora sem grande convicção. Não passou de simples demonstração de força pouco segura. Apercebeu-se do fato e aproximou-se um pouco mais.

Eu disse ao meu pai:

- De quem será?

- Sabe-se lá.

- Dá a impressão de estar convencido de nos pertencer.

- Enganas-te - retorquiu o meu pai. - acha que nós é que lhe pertencemos.

- Não é nada feroz e nem sequer cheira mal.

Ergueu o olhar da revista que tentava ler.

- Estás a querer dizer que tens vontade de ficar com esse malfadado bicho?

- Acontece apenas que não vejo... não vejo maneira de nos livrarmos dele.

- Basta dar-lhe um tiro.

- Que horror!

- Deve ter pulgas. Tra-las-á para dentro de casa.

- Compro-lhe uma coleira inseticida.

O meu pai mirava-me por detrás dos seus óculos. Percebi que fazia um grande esforço para não desatar a rir. Insisti:

- Por favor. Por que não? Far-me-á companhia quando estiveres ausente.

Respondeu-me:

- Está bem.

Calcei então uns sapatos, sem perder mais um segundo, e assobiei a chamar o cão; subimos colina até La Carmella, onde havia um veterinário de grande fama, e ficamos à espera da nossa vez, numa sala repleta de cães-d'água, gatos siameses e os respectivos donos. Finalmente fomos atendidos, e o veterinário, depois de examinar Rusty, declarou-o em forma, deu-lhe uma injeção e disse-me onde poderia comprar uma coleira inseticida. Depois de pagar a consulta, saímos para comprar a dita coleira, voltando em seguida para casa. Quando chegamos à cabana, o meu pai continuava a ler a sua revista; o cão entrou delicadamente, e depois de andar a identificar o novo território, à espera de que o convidassem a sentar, assim o fez, instalando-se no tapete velho que tínhamos em frente da lareira desativada.

O meu pai perguntou:

- Como lhe vais chamar?

- Rusty - respondi, pois certa vez tivera um resguardo para camisa de dormir em forma de cão com o nome Rusty e foi o primeiro que me veio à cabeça.

O problema de adaptação à família não se pôs porque dava a impressão de que o seu lugar fora sempre junto de nós. Para onde quer que eu fosse, Rusty vinha comigo. Adorava a praia e passava a vida a desenterrar tesouros magníficos que depois nos trazia para casa a fim de os admirarmos: velhos fragmentos de navios naufragados, garrafas de detergentes vazias, longos e ondulantes bocados de algas marinhas. E, de vez em quando, objetos que não retirara propriamente de baixo da areia, tais como um sapato de desporto novo, uma bela toalha de praia, chegando mesmo, certa vez, a furar uma bola, que o meu pai teve de substituir depois de eu sossegar o seu choroso proprietário de palmo e meio. Também gostava muito de nadar e sempre fez questão em me acompanhar, embora não fosse capaz de avançar muito mais rapidamente que ele, que ficava sempre para trás, seguindo-o com a maior das persistências. Seria de esperar que ficasse desencorajado, porém tal nunca aconteceu.

Nesse dia, um domingo, nadamos muito.

O meu pai, cumprida a meta de trabalho, fora a Los Angeles entregar o guião pessoalmente, de modo que Rusty e eu ficamos a fazer companhia um ao outro, passando a tarde a ir e vir da praia, ora a apanhar conchas ora a brincar com um pedaço de madeira que o mar arrastara para a costa. No entanto, já começava a fazer frio e eu voltara a envergar mais alguma roupa; sentamo-nos ao lado um do outro a admirar os surfistas, enquanto o dourado se ia escondendo no ocaso, cegando-nos.

Os surfistas tinham passado o dia nas suas atividades e, contudo, dava a impressão de que não se cansavam. Ajoelhados nas suas pranchas, remavam com os braços mar dentro, passando a zona de rebentação até chegarem às águas bem mais calmas que ficavam do lado de lá. Aí aguardavam, pacientemente, empoleirados na linha do horizonte como corvos-marinhos, à espera de que as ondas ganhassem altura para depois agirem. Escolhiam uma, mantinham-se de pé enquanto a água se encurvava na sua subida, formando espuma branca no seu topo e, quando a onda iniciava o estrondoso movimento de queda, enrolando-se sobre si mesma, navegavam sobre ela num poema de equilíbrio, com a arrogância e a autoconfiança que a sua juventude lhes conferia; cavalgavam até esta se abater sobre a areia, saindo depois de cima da prancha com ar indiferente, pegando nela e voltando novamente para o mar, já que o credo de todo o surfista era o de que os aguardava sempre uma onda maior e melhor, e agora que o sol se punha e começara a escurecer, não havia um momento a perder.

Havia um rapaz que me chamara especialmente a atenção. Era louro, usava o cabelo muito curto, estava profundamente bronzeado e usava os calções justos até ao joelho no mesmo tom azul-brilhante do da sua prancha de surf. Era exímio na sua arte, possuía um estilo e um arrojo que fazia com que todos os outros não parecessem passar de simples amadores desajeitados. A certa altura, porém, estava eu a observá-lo, deu a impressão de que decidira dar o dia por terminado, pois, cavalgando uma última onda, aterrou impecavelmente na praia, apeou-se da sua prancha e, voltando-se para lançar um último e prolongado olhar ao mar, banhado pelos tons róseos do crepúsculo, virou-se, pegou na sua prancha e começou a caminhar pela areia.

Desviei o olhar. O rapaz veio para os meus lados, acercando-se de um monte de roupa, impecavelmente dobrada, que deixara ali perto. Deixou cair a prancha e tirou uma camisola desbotada do topo da pilha. Voltei a olhar na sua direção e, quando o rosto lhe apareceu pela abertura do decote, fitou-me diretamente. Não desviei o olhar, usando de firmeza.

O rapaz pareceu achar graça. Cumprimentou:

- Viva.

- Olá.

Ajeitou a camisola nas ancas. Perguntou:

- Queres um cigarro?

- Pode ser.

Inclinou-se para tirar um maço de Luckys e o isqueiro do bolso, atravessou a extensão de areia que nos separava, tirou um cigarro para mim, depois de se servir ele próprio, deitou-se ao a comprido a meu lado, apoiando-se nos cotovelos. Tinha as pernas e o pescoço cobertos com uma camada fina de areia; os olhos eram azuis e possuíam aquele ar limpo e bem cuidado que ainda era possível encontrar nos pátios das universidades.

Comentou:

- Ficaste toda a tarde aqui sentada. Nem foste nadar.

- Eu sei.

- Por que não te juntaste a nós?

- Não tenho prancha de surf

- Podias arranjar uma.

- Falta-me o dinheiro.

- Então pede uma emprestada.

- Não conheço ninguém a quem o possa fazer.

O jovem franziu os sobrolhos.

- És inglesa, não és?

- Sou.

- Estás de visita?

- Não, vivo aqui.

- Em Reef Point?

- Sim.

Indiquei, com a cabeça, a fila de casinhas de madeira desbotada que mal assomava sobre o topo arredondado das dunas.

- Como é que vieste parar aqui?

- Nós alugamos uma das casas.

- Vocês, quem?

- O meu pai e eu.

- Há quanto tempo cá estás?

- Desde a Primavera.

- Mas não vais ficar durante o Inverno.

Era mais uma declaração de fato do que uma pergunta. Ninguém passava o Inverno em Reef Point. As casas não tinham sido construídas para fazer frente às tempestades, a estrada de acesso ficava intransitável, as linhas telefônicas caíam, não havia eletricidade.

- Acho que ficaremos. A não ser que decidamos mudar de sítio.

- Vocês são hippies ou algo do gênero?

Por ter a noção do meu aspecto na altura, não me admirei com a pergunta.

- Não. Mas o meu pai escreve guiões para filmes e materiais para a televisão. E como detesta Los Angeles ao ponto de se recusar a viver lá... alugamos esta cabana.

O jovem mostrou-se intrigado.

- E tu, que fazes?

Peguei numa mão-cheia de areia áspera e acinzentada e deixei-a escorrer por entre os dedos.

- Nada de especial. Compro a comida, esvazio o balde do lixo e tento manter a cabana sem areia.

- Esse cão é teu?

- É.

- Como se chama?

- Rusty.

- Rusty. Ei, viva, amigo!

Rusty deu sinal de perceber o cumprimento com um aceno de cabeça e depois continuou a olhar para o mar. Para compensar a sua falta de maneiras, perguntei:

- És de Santa Bárbara?

- Hen, hen.

O jovem, porém, não tinha vontade de falar dele.

- Há quanto tempo vives nos Estados Unidos? Ainda tens um sotaque terrivelmente britânico.

Sorri delicadamente perante a piada que já ouvira tantas vezes.

- Desde os catorze. Já lá vão sete anos.

- Na Califórnia?

- Um pouco por todo o lado: Nova Chicago, São Francisco.

- O teu pai é americano?

- Não. Começou por vir para cá com o objetivo de escrever um romance, que foi comprado por uma empresa cinematográfica. Depois foi para Hollywood preparar o guião.

- A sério? Será que o conheço? Como se chama?

- Rufus Marsh.

- Não me digas que é o autor de Tail as Morning!

Acenei afirmativamente com a cabeça.

- Caramba - continuou o jovem -, li esse livro de um fôlego só, ainda andava no liceu. Foi através dele que recebi toda a minha educação sexual.

Fitou-me com interesse renovado e eu pensei que era sempre assim. Começavam por se mostrar amigáveis e muito simpáticos, mas o interesse só surgia verdadeiramente quando eu mencionava o tal romance escrito pelo meu pai. Penso que o fato tinha algo a ver com o meu aspecto porque os meus olhos são extremamente claros, as pestanas quase incolores, a minha cara não bronzeia e fica toda salpicada de sardas enormes. Além disso, sou demasiado alta para rapariga e tenho as maçãs do rosto muito salientes.

- Deve ser um indivíduo formidável - acrescentou o jovem.

No seu rosto espelhava-se agora uma expressão nova, denotando intriga e perguntas que, obviamente, era demasiado delicado para fazer: Se és filha de Rufus Marsh, por que estás aqui sentada nesta praia insignificante nos confins da Califórnia, com umas calças manchadas e uma camisa de homem que já devia ter ido para o lixo há muito tempo, e nem sequer tens dinheiro que chegue para comprares uma prancha de surf?

Depois, seguindo, como era ironicamente previsível, a linha do meu próprio raciocínio, perguntou:

- Já agora, que tipo de homem é ele? Quero dizer, para além de ser teu pai.

- Não sei.

Nunca fora capaz de descrever o meu pai, nem mesmo a mim mesma. Peguei noutra mão-cheia de areia e formei uma montanha miniatura no cimo da qual espetei o resto do meu cigarro, formando uma pequena cratera, um vulcão minúsculo, com a beata a fazer de núcleo fumegante. Era um homem com uma necessidade constante de movimento; uma pessoa que fazia amigos facilmente para os perder logo no dia a seguir; um indivíduo briguento, que não deixava uma observação sem resposta, talentoso quase ao ponto da genialidade, mas completamente inibido perante os problemas da vida do dia-a-dia; um ser humano paradoxal.

Repeti:

- Não sei.

E voltei-me para olhar o rapaz que tinha ao meu lado. Era simpático.

- Convidava-te para ires tomar uma cerveja lá a casa e assim poderias verificar com os teus próprios olhos, mas acontece que ele neste momento está em Los Angeles e só voltará amanhã de manhã.

Ouviu a minha informação coçando a nuca com ar pensativo, gesto que desencadeou uma pequena tempestade de areia.

- Vamos combinar o seguinte - sugeriu -, se o tempo se mantiver bom, no próximo fim-de-semana estou por aqui novamente.

Sorri.

- Estarás?

- Procurarei por ti.

- Está bem.

- Trarei uma prancha a mais. Poderás praticar um pouco de surf

Observei:

- Não é preciso subornares-me.

Ele fez-se de ofendido.

- Que queres dizer com essa de eu querer subornar-te?

- No próximo fim-de-semana, levo-te lá acima para o conheceres. Ele gosta de ver caras novas em casa.

- Não era suborno nenhum. A sério.

Abrandei. Além disso, tinha vontade de fazer surf. Retorqui:

- Eu sei.

O jovem sorriu e apagou o seu cigarro. O sol, ao mergulhar ao longe, sobre o oceano, começava a ganhar o formato e a cor de uma abóbora. Sentou-se, franzindo os olhos perante o seu fulgor, bocejou ligeiramente e espreguiçou-se. Depois declarou:

- Tenho de ir.

Em seguida levantou-se e, então, hesitou por um momento, ao meu lado, de pé. A sua sombra parecia alongar-se interminavelmente.

- Então, adeus - disse.

- Adeus.

- Até domingo.

- Okay.

- Fica combinado. Não te esqueças.

- Está descansado.

Voltou-se e começou a andar, parando para recolher o resto das suas coisas; virou-se para me dirigir um último aceno de mão, antes de se afastar pela praia fora, em direção ao sítio onde os velhos cedros semi enterrados na areia marcavam o carreiro que conduzia à estrada, mais acima.

Fiquei a observá-lo enquanto se afastava, apercebendo-me então de que nem sequer ficara a saber como se chamava. E, o que era pior, ele tão-pouco se dera ao cuidado de perguntar o meu nome. Eu era, simplesmente, a filha de Rufus Marsh. Mas ainda assim, no domingo seguinte, se o tempo continuasse agradável, talvez voltasse. Se o tempo se mantivesse bom. O que era sempre de desejar.

 

Fora por causa de Sam Carter que estávamos a viver em Reef Point. Sam era o agente de meu pai em Los Angeles e, em puro desespero de causa, acabara por nos propor descobrir um local pouco dispendioso para morarmos, pois Los Angeles e o meu pai eram de tal maneira antagônicos que este não fora capaz de escrever um único trabalho comerciável durante a nossa permanência naquela cidade, pelo que Sam ficara à beira de perder tanto clientes preciosos como dinheiro.

- Há um lugar em Reef Point - sugerira Sam.

- É muito insignificante, mas tranqüilidade não lhe falta... do gênero daquela que só se consegue nos confins do mundo - acrescentou, esconjurando visões de uma espécie de paraíso gauguiniano.

Alugáramos então a cabana, embaláramos todos os nossos pertences mundanos que eram tristemente escassos, no velho e desconjuntado Dodge do pai, e rumáramos para aquelas paragens, deixando para trás a poluição atmosférica, a lufa-lufa de Los Angeles, e ficando excitados como crianças ao sentirmos os primeiros odores a maresia.

E ao princípio fora, de fato, excitante. Depois da cidade, era uma delícia acordar ao som das aves marinhas e do rebentar constante das ondas. Era esplêndido caminhar sobre a areia de manhã cedo, ver o sol nascer sobre as colinas, pegar num bocado de espuma e vê-la crescer e enfunar com o vento, branca como velas novas.

A nossa vida doméstica era, como não podia deixar de ser, simples. Seja como for, nunca fui muito eficiente nas tarefas inerentes a essa condição, e em Reef Point só havia uma lojinha - um supermercado que, na Escócia, a minha avó teria chamado de "casa tem-tudo", pois vendia de tudo, desde licenças de porte de arma a batas para a lida doméstica, desde alimentos congelados a pacotes de Kleenex. Era administrada por Bul e Myrtle em estilo pouco dinâmico e moroso, pois parecia sempre que os vegetais frescos tinham esgotado, assim como a fruta, galinhas e ovos, que eram o tipo de compras que eu quereria fazer. Contudo, durante o Verão, começamos a apreciar bastante a carne enlatada e as pizzas congeladas, assim como todas as variedades de gelados que, ao que parecia, Myrtle adorava, pois era tremendamente gorda, dando a impressão de que as enormes coxas e ancas estavam prestes a rebentar as jeans que usava, e andava com os braços reboludos completamente à mostra nas blusas juvenis sem mangas que escolhia para vestir.

Agora, porém, decorridos seis meses em Reef Point, começava a sentir-me inquieta. Até quando duraria aquele magnífico "Verão Indiano?” Mais um mês, quando muito. Depois, as tempestades começariam inevitavelmente, a noite cairia mais cedo e as chuvas chegariam, acompanhadas de lama e vento. A cabana não dispunha de qualquer tipo de aquecimento central, apenas de uma lareira enorme na sala de estar atravessada por correntes de ar, que consumia madeira em quantidades industriais. Recordava, saudosa, os cestos cheios de carvão que se usavam na minha terra, mas ali era material que não se usava. Sempre que voltava da praia, levava comigo, qual pioneira, algum pau ou pedaço de madeira trazida pela correnteza, que juntava à pilha amontoada contra o alpendre das traseiras. Esta ia ganhando uma altura considerável; no entanto, eu sabia que mal começássemos a ter necessidade de acender a lareira, daríamos conta dela num ápice.

A cabana ficava mesmo à beira da praia, unicamente protegida dos ventos marítimos por uma pequena elevação de terreno arenoso. Era de madeira acinzentada e erguia-se sobre pilares do mesmo material, pelo que o acesso aos alpendres da frente e das traseiras era feito por um pequeno lanço de escadas. No interior, havia uma sala de estar espaçosa, dotada de janelas panorâmicas voltadas para o mar; a cozinha era minúscula, estreita; uma casa de banho - sem banheira, apenas um chuveiro - e dois quartos de dormir, um maior, com cama de casal, onde o meu pai ficava, e outro mais pequeno, o meu, com uma cama de solteiro, destinado a uma criança pequena ou a um parente de mais idade. Estava mobiliada no estilo vagamente deprimente das cabanas de Verão, notando-se que todas as peças eram nitidamente provenientes de outras casas maiores. A cama do meu pai era uma vasta monstruosidade de bronze à qual faltavam as maçanetas e com uma série de molas que chiavam de cada vez que se virava. E no meu quarto havia um espelho de gesso trabalhado e pintado de dourado, que parecia ter iniciado os seus dias num bordel vitoriano, devolvendo-me a imagem de uma mulher afogada e coberta de manchas escuras.

A sala de estar não estava em melhor estado de conservação: os velhos sofás balançavam e tinham o forro gasto disfarçado por coberturas de crochet, o tapete puído tinha um buraco e o enchimento de crina de cavalo dos outros sofás dava a impressão de estar prestes a romper a barreira do tecido. A única mesa existente fora ocupada, numa das extremidades, pelo pai, que aí montara a sua secretária, o que nos obrigava, às refeições, a comer quase em cima um do outro, na outra ponta. O melhor que a casa tinha era o assento da janela, que ocupava toda a extensão da parede, almofadado com espuma e coberto por tapetes e almofadas quentes e felpudas, e tão convidativo como um sofá velho quando tínhamos vontade de nos enrodilhar a ler, assistir ao pôr do sol ou, simplesmente, refletir.

Mas era um local solitário. À noite, o vento cutucava e abria caminho por entre as frinchas que rodeavam a janela e as salas enchiam-se de estranhos ruídos e rangidos, dando a nítida sensação de que navegávamos num navio, em pleno alto-mar. Quando o meu pai ali estava, nada daquilo fazia diferença, mas quando eu ficava sozinha, a minha imaginação, inspirada pelas histórias de violência de todos os dias que eu lia nas colunas do jornal da região, levantava amarras. A cabana em si já era uma construção frágil e nenhuma das fechaduras das portas deteria um intruso determinado e, agora que o Verão chegara ao fim e os ocupantes das restantes cabanas tinham feito as malas e regressado aos respectivos lares, tornava-se ainda mais isolado. Mesmo Myrtle e Bill ficavam a uns bons cinqüenta metros de distância, além do telefone ser uma extensão que nem sempre funcionava com muita eficiência. Fosse como fosse, nem valia a pena pensar nas possibilidades.

Nunca falara ao meu pai nestes medos - ele tinha, vendo bem, um trabalho de responsabilidade a realizar e como era, intrinsecamente, um homem perceptivo, tenho a certeza de que me considerava capaz de entrar em pânico, uma das razões pelas quais me deixara ficar com Rusty.

Nessa tarde, depois do dia passado na praia cheia de gente, do sol brilhante e do meu encontro com o jovem estudante de Santa Bárbara, a cabana parecia ainda mais deserta.

O sol deslizara para lá da linha do horizonte, levantara-se uma brisa marítima e não tardava a ficar noite, pelo que, à laia de companhia, acendi a lareira, empilhando afoitamente alguns pedaços da madeira trazida pelas ondas; e, para maior conforto, tomei um duche, lavei o cabelo e, envolta numa toalha, fui ao meu quarto buscar umas jeans lavadas e uma velha camisola branca que pertencera ao meu pai até eu, sem querer, ter feito com que ficasse encolhida.

Por baixo do espelho de bordel estava uma cômoda envernizada com gavetas, que também tinha de servir de mesinha-de-cabeceira. Sobre ela, por falta de espaço noutro sítio qualquer, colocara as minhas fotografias. Eram muitas, ocupavam bastante espaço e raramente olhava para elas, mas naquela noite era diferente e, enquanto desemaranhava o cabelo comprido, mirei-as, uma a uma, como se fossem de uma pessoa que mal conhecia, de lugares que nunca vira.

Uma era da minha mãe, um retrato formal, em moldura de prata. Tinha os ombros descobertos, brincos de diamantes nas orelhas e o cabelo acabado de pentear na Elizabeth Arden. Adorava aquela foto, porém, não era assim que a recordava. Uma outra estava mais próxima da realidade; fora tirada num piquenique e depois ampliada; nesta, ela usava a sua saia escocesa e, sentada sobre uma meda de feno que quase lhe dava pela cintura, ria como se algo de ridículo estivesse prestes a acontecer. E, depois, havia a coleção - mais propriamente a montagem - com a qual enchera ambas as faces do enorme porta-retratos em cabedal: Elvie - a velha casa pintada de branco, tendo por fundo um cercado de lanços e pinheiros, a colina a erguer-se ao fundo, o brilho do lago depois do prado, o pequeno barco a motor, e o outro, maior, no qual costumávamos ir pescar trutas. E a minha avó, no umbral das janelas francesas, abertas, com a onipresente tesoura de podar nas mãos. E um postal a cores do lago Elvie, que eu comprara na estação de correios de Thrumbo. E outro piquenique, com os meus pais juntos, ao fundo o nosso velho carro e um anafado spaniel pintalgado aos pés da minha mãe.

E havia ainda as fotografias do meu primo Sinclair. Dúzias delas. Sinclair com a sua primeira truta, Sinclair envergando o seu kilt, preparado para uma saída qualquer, Sinclair de camisa branca, capitão da equipa de críquete do seu liceu, Sinclair a fazer esqui, Sinclair ao volante do seu carro e, por fim, com um chapéu de papel numa festa de passagem de ano, parecendo ligeiramente embriagado. (Nesta fotografia, tinha um braço em redor dos ombros de uma rapariga morena e bonita, embora eu tivesse disposto as fotos de maneira a esta não aparecer.).

Sinclair era filho de Aylwyn, irmão da minha avó. Aylwyn casara demasiado jovem - disseram todos -, com uma rapariga chamada Silvia. A discordância da família em relação à escolha mostrou-se fundamentada pois, mal deu ao jovem marido um filho varão, Silvia largou os dois e foi Viver com um homem que era corretor de imóveis nas ilhas Baleares. Desvanecido o choque inicial, todos concordaram que fora o melhor que podia ter acontecido, em especial para Sinclair, que foi entregue aos cuidados da avó e criado em Elvie no meio do maior conforto. Eu ficara sempre com a idéia de que o meu primo desfrutara sempre do bom e do melhor.

De seu pai, o meu tio Aylwyn, não conservava nenhuma recordação. Era eu ainda muito pequena, partira para o Canadá, voltando, presumivelmente, de vez em quando, para visitar a mãe e o filho, mas nunca durante as nossas permanências em Elvie. O meu único interesse nele residia na possibilidade de me enviar um toucado de pele-vermelha. No decorrer dos anos, devo ter feito a sugestão uma centena de vezes, mas sempre em vão.

De modo que Sinclair fazia, virtualmente, de filho da minha avó. Não conseguia recordar-me de alguma altura em que não me tivesse sentido mais ou menos apaixonada por ele. Seis anos mais velho do que eu, fora o mentor da minha infância, infinitamente sábio e constantemente corajoso. Ensinara-me a prender um anzol numa linha, a balouçar de cabeça para baixo no seu trapézio, a atirar uma bola de críquete. Juntos, tínhamos nadado, andado de trenó, acendido fogueiras ilegais, construído uma casa numa árvore e brincado aos piratas no velho barco que metia água.

Quando vim para a América, escrevia-lhe regularmente, mas, pouco a pouco, fui desistindo devido à falta de resposta. Em breve, a nossa correspondência ficou resumida a cartões de boas-festas no Natal ou a um bilhete escrevinhado à pressa no dia de anos, sendo através da minha avó que eu obtinha notícias dele; também fora por intermédio desta que recebera a fotografia da festa de passagem do ano.

Depois da morte da minha mãe, como se a sua responsabilidade por Sinclair não lhe bastasse, a minha avó ofereceu-se para me proporcionar, igualmente, um lar.

"Rufus, por que não deixas a criança comigo?"

Fizera a pergunta logo após o funeral, depois do regresso a Elvie, pondo o desgosto de lado e falando sobre o futuro com o seu feitio prático. Não estava previsto eu escutar, no entanto encontrava-me ali, nas escadas, e as vozes chegavam nitidamente até mim através da porta fechada da biblioteca.

"Porque já é mais do que suficiente ter uma criança ao seu cuidado”.

"Mas eu adoraria ficar com ela e ela também me faria companhia”.

"Não achas que é um pouco de egoísmo da tua parte?”.

"Não creio. Mas, Rufus, agora é na vida dela que deves pensar, no seu futuro..."

O meu pai disse uma palavra muito feia. Fiquei horrorizada, não com a palavra, mas porque ele lha dissera. Talvez estivesse ligeiramente embriagado...

Fazendo de conta que não a ouvira, com os seus modos habitualmente senhoris, a minha avó não esmoreceu, baixando, contudo, o seu tom de voz, como acontecia sempre que começava a ficar zangada.

"Acabaste de me dizer que vais para a América escrever o guião do teu livro para um filme. Não podes levar atrás uma jovem de catorze anos daqui até Hollywood”.

"Por que não?"

"E quanto aos estudos dela?"

"Na América há escolas."

"Não me custaria nada ficar com ela aqui. Só até te instalares, encontrares um lugar para viver."

O meu pai empurrara ruidosamente a cadeira para trás ao levantar-se. Ouvi-o andando de um lado para o outro.

"E depois mando-a ir e tu mandá-la de avião?"

"Evidentemente."

"Não dará resultado, sabes."

"Porquê?"

"Porque se deixar Jane aqui contigo, seja por que período de tempo for, Elvie tornar-se-á o seu lar e nunca mais quererá deixá-lo. Conheces bem a adoração que ela tem por este lugar."

"Então, para bem dela..."

"Para bem dela, leva-la-ei comigo”.

Fez-se um silêncio prolongado. Depois, a minha avó voltou a falar.

"A única razão não é essa, pois não, Rufus?"

O meu pai hesitou, como se não desejasse ofendê-la.

"Não", respondeu finalmente, "não é."

"Apesar de todas as considerações, continuo a achar que vais cometer um erro."

"Se assim for, assumo a responsabilidade. Da mesma maneira que ela é a minha única filha e eu não quero separar-me dela."

Ouvira o suficiente. Levantei-me com um pulo e subi a correr as escadas às escuras. No meu quarto, de bruços sobre a cama, chorei copiosamente porque ia deixar Elvie, nunca mais veria Sinclair, e as duas pessoas que mais amava no mundo tinham estado a discutir uma com a outra por minha causa.

Escrevi à minha avó e esta respondeu, evidentemente, e as suas cartas traziam-me os sons e os odores de Elvie. Até que um dia, passara-se já um ano, perguntou numa carta:

"Por que não vens até à Escócia?", escreveu. "Só para umas pequenas férias, um mês, mais ou menos. Temos imensas saudades tuas e por aqui há muito que ver. Plantei um novo roseiral no jardim murado e Sinclair virá cá passar o mês de Agosto... tem um pequeno apartamento em Earls Court e ofereceu-me almoço da última vez em que fui à cidade. Se houver alguma dificuldade com a passagem, sabes que basta avisar pois direi a Mr. Benjamm, da agência de viagens, que te envie um bilhete de ida e volta. Fala do assunto com o teu pai."

A perspectiva de passar o mês de Agosto em Elvie na companhia de Sinclair era quase irresistível; todavia, não podia apresentá-la ao meu pai porque ouvira a discussão irada que haviam tido na biblioteca e não acreditava que obtivesse permissão para a viagem.

Além disso, dava a impressão de que nunca havia tempo ou oportunidade para tal viagem. Era como se nos tivéssemos tornado nômades - chegávamos a um lugar, instalávamo-nos e, pouco tempo depois, partíamos para outro lado qualquer. Às vezes, tínhamos dinheiro em abundância, mas na maior parte do tempo andávamos com falta dele. O meu pai, faltando-lhe a contenção da minha mãe, gastava dinheiro a esmo. Vivemos em mansões de Hollywood, motéis, apartamentos na Quinta Avenida, pensões atravancadas. À medida que os anos foram passando, ficávamos com a sensação de que não fizéramos outra coisa na vida senão passear por toda a América e que nunca mais voltaríamos a assentar num lugar; em simultâneo, a lembrança de Elvie ia-se tornando cada vez mais diluída e ganhando foros de irrealidade, como se as águas do lago Elvie tivessem subido e engolido o lugar, e era com esforço que fazia por me recordar que continuava no mesmo sítio, habitado por seres humanos ligados à minha vida e a quem amava, não que estes se tinham afogado e desaparecido para sempre, diluídos e indistintos nas águas profundas de alguma catástrofe natural.

Aos meus pés, Rusty ganiu. Sobressaltada, olhei para baixo e, por um instante, tão alheada estivera, não conseguia perceber o significado da sua presença e da sua manifestação. Até que, qual filme visto no vídeo de casa que a certa altura pára, ouviu-se um dique no mecanismo e a vida do dia-a-dia continuou a passar; percebi então que já tinha o cabelo quase seco, que Rusty estava cheio de fome e queria o seu jantar e, mais, que comigo acontecia o mesmo. Pousei então a minha escova e afastei Elvie dos meus pensamentos, deitei mais lenha na lareira e fui então inspecionar o frigorífico, em busca de algo para comermos.

Eram quase nove horas quando ouvi o carro descer a colina, pelo carreiro que vinha de La Carmella. Dei por ele porque vinha em primeira, como todos são obrigados a fazer ali, e porque estava sozinha e o meu subconsciente encontrava-se especialmente receptivo ao mais insignificante som que fugisse à normalidade.

Lia um livro e, quando ia a voltar uma página, parei abruptamente e escutei com atenção. Rusty sentiu a alteração verificada em mim e sentou-se, mantendo-se muito quieto, como se não desejasse perturbar o que quer que fosse. Juntos, ficamos à escuta. Na lareira, um a acha cedeu e, à distância, a rebentação do mar ecoou, retumbante. O carro continuou a descer a vertente.

Pensei:

"Devem ser Myrtle e Bill. Foram ao cinema a La Carmella."

A viatura, porém, não parou no supermercado. Continuou a descer, sempre com a mudança em primeira, passou os cedros onde os apreciadores de piqueniques estacionavam os seus carros, seguindo pelo caminho que só podia vir na minha direção.

Meu pai? Mas o seu regresso só estava previsto para a noite do dia seguinte... O jovem que conhecera naquele dia, voltando para tomar um copo de cerveja? Um passante? Um preso fugido? Um maníaco sexual...?

Pus-me de pé num pulo, deixando cair o livro em cima do tapete puído e corri a verificar os fechos das portas. Estavam ambos bem presos. Mas a cabana não tinha cortinas, qualquer pessoa podia olhar para dentro e observar-me sem ser vista. Num frenesi de medo, fui desligar precipitadamente todas as luzes, embora a lareira continuasse bem acesa, enchendo a sala de estar de uma luminosidade tremeluzente... brincando às sombras nas paredes e nos móveis, dando aos sofás um aspecto sombrio e agressivo.

No lado de fora, luzes e faróis vasculhavam a escuridão. Naquele momento, já podia ver o automóvel, que se aproximava lentamente, saltando ao passar sobre as raízes secas que juncavam o caminho. Passou pela cabana que ficava antes da nossa e estacionou suavemente junto do nosso alpendre das traseiras. E não era o meu pai.

Chamei Rusty para o meu lado com um sussurro, sentindo uma certa segurança ao agarrar-me à sua coleira inseticida e ao sentir-lhe o calor do pêlo. Rosnava baixinho, sem, no entanto, ladrar. Depois ouvimos, juntos, o motor ser desligado e a porta abrir e fechar. Por um momento reinou o silêncio. Depois soaram passadas suaves sobre o piso arenoso que se estendia entre a estrada e o alpendre das traseiras e, logo a seguir, bateram à porta.

Deixei escapar uma espécie de arquejo e Rusty não conseguiu conter-se por mais tempo. Libertando-se da prisão a que a minha mão o sujeitava, correu para a porta a ladrar desalmadamente para quem quer que estivesse do lado de fora.

- Rusty! - chamei, correndo atrás dele mas não conseguindo que se calasse. - Rusty, quieto, não faças barulho... Rusty!

Segurei-o pela coleira e afastei-o da porta a custo; no entanto, o animal não se calava e eu lembrei-me de que, quem não o estivesse a ver, possivelmente imagina-lo-ia enorme e feroz, o que, se calhar, era o melhor que podia acontecer.

Recompus-me, dei-lhe um safanão que finalmente o calou, e depois endireitei-me. A minha sombra, projetada pela luz da lareira acesa, dançava de encontro à porta trancada.

Engoli em seco, respirei fundo e perguntei com a voz mais firme e nítida que me foi possível improvisar:

- Quem é?

Foi um homem que respondeu.

- Desculpe incomodar, mas ando à procura da casa de Mr. Marsh.

Seria um amigo do pai? Ou não passaria de um truque para entrar? Hesitei.

O homem voltou a falar.

- É aqui que Rufus Marsh vive?

- Sim, e.

- Ele está em casa?

Seria outro truque?

- Porque deseja saber? - perguntei.

- Bem, disseram-me que talvez o encontrasse aqui.

Eu continuava a tentar decidir-me sobre o que fazer quando o homem acrescentou, num tom bem diferente:

- E Jane?

Não há nada que mais desarme uma pessoa do que ouvir um desconhecido pronunciar o seu nome. Além disso, havia algo na voz dele... apesar de não chegar até mim muito nitidamente através da porta trancada... algo...

Retorqui:

- Sou.

- O seu pai está em casa?

- Não, foi a Los Angeles. Quem é o senhor?

- Bem, chamo-me David Stewart... eu... olhe, é um bocado difícil falar com a porta pelo meio...

Mas, ainda ele não terminara a última palavra, já eu soltara o fecho e lhe abrira a porta. E cometi esse ato aparentemente insano devido ao modo como ele dissera o seu apelido: Stewart. Normalmente, os americanos têm dificuldade em pronunciá-lo... dizem "Stoowart". Mas ele fizera-o da mesma maneira que a minha avó, portanto não era americano, vinha da minha terra. E, com um nome como aquele, provavelmente, chegara da Escócia.

Talvez fosse minha obrigação reconhecê-lo imediatamente, mas, na realidade, era a primeira vez que o via. Continuou à minha frente, com a luz dos faróis ainda acesos a incidirem-lhe nas costas, pelo que somente a que provinha da lareira é que me permitia distinguir-lhe o rosto. Usava óculos de aros de tartaruga e era alto... mais do que eu. Ficamos a olhar um para o outro, ele estupefato pela minha mudança de atitude, eu subitamente envolvida por uma onda súbita de pura raiva. Nada irrita mais do que apanhar um susto, e o que eu acabara de receber fora bem grande.

- Que intenção é a sua, chegando assim tão sorrateiramente a meio da noite...

Até eu me dei conta do tremor e da insegurança que a minha voz deixava transparecer.

O desconhecido respondeu com uma certa lógica:

- São só nove da noite e não era minha intenção aparecer sorrateiramente.

- Podia ter-me telefonado a avisar da sua vinda.

- Não consegui encontrar o vosso número na lista.

Não fizera menção de entrar e Rusty continuava a rosnar e a mirá-lo com ar de poucos amigos, no lado de fora.

- Além disso - acrescentou -, não fazia idéia de que estivesse sozinha, caso contrário teria esperado.

A minha raiva começara a esmorecer e senti-me um tanto envergonhada pelo acolhimento intempestivo com que presenteara o desconhecido.

-Bem... já que aqui está, é melhor entrar.

Recuei e acendi a luz. A sala ficou instantaneamente inundada pela luz elétrica, brilhante e fria.

Mas o desconhecido continuava a hesitar.

- Não quer ver documentos que comprovem a minha identidade... como o meu cartão de crédito, por exemplo? Ou o passaporte?

Fitei-o com rispidez, pois embora detectasse um brilho divertido por detrás dos óculos, não atinava com o que pudesse estar a ser tão divertido.

- Se o senhor vivesse aqui há tanto tempo como eu, também não abriria a porta a qualquer vagabundo que aparecesse pela calada da noite.

- Bom, antes de o vagabundo que apareceu pela calada da noite entrar, talvez não seja má idéia ele ir desligar as luzes do carro. Deixei-as acesas para poder ver melhor o caminho.

Sem esperar pela resposta áspera que tanto gosto me teria proporcionado dar-lhe, voltou-me as costas e dirigiu-se para o automóvel. Deixei a porta aberta e voltei para junto da lareira, acrescentando uma acha à fogueira; reparei que tinha as mãos a tremer e o coração a bater violentamente. Endireitei o tapete puído, atirei, com o pé, o osso de Rusty para debaixo de um sofá e estava a acender um cigarro quando o desconhecido entrou na cabana, fechando em seguida a porta que dava para o alpendre das traseiras.

Virei-me para ele. Era moreno, com a pele branca e o cabelo preto, comuns a muito bom montanhês, era esguio e tinha um ar deveras intelectual, se bem que um tanto desajeitado e simplório. Envergava um fato de tweed macio, ligeiramente gasto nos cotovelos e nos punhos, uma camisa axadrezada em tons de branco e castanho e uma gravata verde-escura, parecendo um mestre-escola ou um professor de sabe-se lá que ciência. Quanto à idade, era impossível de calcular. Podia situar-se algures entre os trinta e os cinqüenta.

Perguntou-me:

- Já se sente melhor?

- Estou bem - retorqui, embora as mãos continuassem a tremer-me, pormenor em que ele reparou.

- Não lhe faria mal nenhum tomar uma pequena bebida.

- Não sei se há alguma bebida em casa.

- Onde poderíamos procurar?

- Talvez debaixo do assento da janela...

O desconhecido acercou-se do armário que ficava no lugar que eu lhe indicara, tateou um pouco no seu interior e, ao retirar o braço, trouxe uma boa camada de pó na manga e uma garrafa de Haig, a um quarto, na mão.

- Serve perfeitamente. Agora só precisamos de um copo.

Fui à cozinha e voltei com dois copos, um jarro de água e o recipiente de gelo que tirara do congelador, ficando a vê-lo preparar as bebidas. Estava estranhamente bronzeado. Observei:

- Não aprecio muito uísque.

- Considere-o como um medicamento.

Passou-me o meu copo.

- Não quero ficar embriagada.

- Com essa porção, asseguro-lhe que não.

Não me parecia descabido. O uísque sabia a fumo e proporcionou-me uma sensação maravilhosa de calor. Reconfortada, senti um certo embaraço por ter sido tão tola. Sorri-lhe, hesitante.

O desconhecido retribuiu-me o sorriso.

- E que tal sentarmo-nos?

Assim fizemos, eu no tapete puído, ele na beira da enorme poltrona do meu pai, com as mãos escondidas entre os joelhos e o copo da bebida no chão, entre os pés. Perguntou:

- Já agora, gostaria de saber o que foi que a levou a abrir a porta.

- Foi o modo como pronunciou o seu apelido: Stewart. É da Escócia, não é?

- Precisamente.

- De que zona?

- De Caple Bridge.

- Mas fica perto de Elvie!

- Eu sei. Sabe, trabalho para Ramsay McKenzie e King...

- A firma de advogados da minha avó.

- Exato.

- Mas não me recordo de si.

- Só estou na firma há cinco anos.

Senti um aperto no coração, mas obriguei-me a perguntar:

- Por acaso não houve... algum problema...

- Nada de especial - retorquiu-me com voz reconfortante.

- Então, porque veio até aqui?

- Trata-se de uma questão - disse David Stewart - relacionada com uma série de cartas que ficaram sem resposta.

 

Passado um bocado, declarei:

- Não compreendo.

- Quatro, para ser mais preciso. Três da própria mistress Bailey e uma da minha parte, escrita em seu nome.

- Escrita a quem?

- Ao seu pai.

- Quando?

- No decurso dos últimos dois meses.

- Enviaram as cartas para aqui? Não sei se sabe, mas acontece que mudamos de residência com muita freqüência.

- A menina foi a própria a escrever à sua avó a dar esta morada.

Era verdade. Quando nos mudávamos, eu informava-a sempre do novo endereço. Atirei o cigarro meio consumido para o fogo e fiz um esforço para me adaptar àquela situação inusitada. O meu pai, não obstante todos os seus defeitos, era um homem que não guardava nada para si... pelo contrário, chegava a pecar por excesso no sentido oposto, barafustando e queixando-se durante dias a fio se algo o perturbava ou preocupava. Relativamente às cartas, porém, não lhe ouvira qualquer referência.

O advogado induziu-me a falar.

- Não viu as cartas de que falo?

- Não. O que não me surpreende, porque é sempre o meu pai que vai buscar diariamente o correio ao supermercado.

- Talvez não as tenha chegado a abrir...

Mas também aquela possibilidade estava fora de questão. O meu pai não deixava uma carta por abrir. Não que as lesse, mas havia sempre a possibilidade auspiciosa de o envelope conter um cheque.

Respondi:

- Não, não o faria. - Engoli em seco e afastei o cabelo da cara. - De que falavam as cartas? Provavelmente não sabe.

- Mas é evidente que sei.

Notei que era capaz de falar com grande secura e não era difícil imaginá-lo ao abrigo de uma secretária antiquada, disfarçando constrangimentos juntamente com emoções e lidando energicamente com pilhas de testamentos incompreensíveis, declarações escritas e juramentadas, transações comerciais, contratos de arrendamento e mandatos judiciais.

- Acontece simplesmente que a sua avó deseja que a miss volte à Escócia... para uma visita...

Retorqui:

- Estou a par desse seu desejo, nunca deixa de lhe fazer referência quando nos escreve.

O advogado ergueu um sobrolho, interrogativo.

- Não tem vontade de lá voltar?

- Tenho... claro que tenho...

Pensei no meu pai e lembrei-me da conversa escutada fazia tanto tempo.

- Não sei... quero dizer, não é uma decisão que possa tomar de ânimo leve...

- Existe alguma razão para que não vá?

- Bem, claro que existe... o meu pai.

- Pretende dizer que o seu pai não dispõe de mais ninguém que cuide dos seus assuntos domésticos?

- Não, não é nada disso.

Ele aguardou que eu adiantasse algo mais relativamente à afirmação, talvez que lhe dissesse qual era a minha idéia. Fiz por não o fitar nos olhos, olhando antes para o fogo. Tinha a desagradável sensação de que o meu rosto deixava transparecer uma expressão que podia ser descrita como envergonhada.

O advogado declarou:

- Sabe, nunca houve nenhum ressentimento pelo fato de o seu pai a ter trazido para a América...

- Ela queria que eu ficasse em Elvie.

- Quer então dizer que tem conhecimento?

- Tenho, ouvi-os a discutir. Coisa que raramente fazem. Acho que sempre se deram muito bem. Mas houve uma zanga terrível por minha causa.

- Mas isso teve lugar há sete anos atrás. Certamente que agora, só aqui entre nós, podemos tomar algumas providências.

Apresentei a desculpa mais óbvia.

- Mas é tão caro...

- Mistress Bailey não tem nenhuma objeção em pagar a sua passagem.

Imaginei, lugubremente, a reação que o meu pai teria perante semelhante proposta.

- Basta que se ausente durante cerca de um mês - continuou o advogado. - Não tem vontade de ir?

Os seus modos desarmaram-me.

- Sim, claro que tenho..

- Então, porquê essa falta de entusiasmo?

- Não quero desgostar o meu pai. É óbvio que ele não quer que eu vá, caso contrário teria respondido a essas cartas de que falou.

- Sim, as cartas. Onde poderão estar? Indiquei a mesa que se encontrava atrás dele, a pilha de manuscritos e livros de consulta, velhos arquivos, envelopes e, lamentavelmente, faturas por pagar.

- Aí em cima, suponho.

- Porque será que ele nunca lhe falou delas?

Não respondi, porém imaginei conhecer o motivo.

De certa maneira, o meu pai ressentia-se com Elvie e o fato de o lugar me ser tão querido. Sentia, provavelmente, algum ciúme da família da parte da minha mãe. Tinha receio de me perder.

Respondi:

- Não faço idéia.

- Bem, quando espera que ele regresse de Los Angeles?

Retorqui-lhe:

- Não me parece que seja aconselhável o senhor vê-lo. Serviria apenas para o fazer infeliz pois, mesmo que concordasse com a minha partida, eu não teria coragem para o deixar aqui sozinho.

- Mas, com certeza, poderíamos tomar alguma medida...

- Não, não poderíamos. Ele não pode deixar de ter alguém que olhe por si. Tem o espírito menos prático do mundo... nunca comprou nenhum alimento ou gasolina para o carro e, se eu o deixasse, andaria permanentemente preocupada com ele.

- Jane... olhe que não pode deixar de pensar um pouco em si...

- Irei noutra ocasião. Diga-o à minha avó.

O advogado refletiu, em silêncio, sobre a questão. Acabou de tomar a sua bebida e depois pousou o copo.

- Bem, fiquemos por aqui. Amanhã de manhã, regresso a Los Angeles, por volta das onze da manhã. Tenho um lugar reservado para si no avião que vai para Nova Iorque terça-feira de manhã. Não há absolutamente razão alguma para que não reflita maduramente no caso e se por acaso mudar de idéias...

- Não mudarei.

O advogado ignorou a minha afirmação.

- Se mudar de idéias, nada a impede de me acompanhar. - Levantou-se. - Continuo a ser de opinião de que devia ir.

Como não gosto que me olhem de cima para baixo, também me pus de pé.

- Parece muito seguro de que irei consigo.

- Tenho essa esperança.

- Acha que são apenas desculpas, não é?

- Não totalmente.

- Lamento muito que tenha feito uma viagem tão longa em vão.

- Estive em Nova Iorque a tratar de uns assuntos. E tive muito gosto em conhecê-la, embora lamente não ter encontrado o seu pai. - Estendeu-me a mão. - Adeus, Jane.

Hesitei, mas depois estendi-lhe a minha. Os americanos não são grandes adeptos dos apertos de mão e uma pessoa depressa perde o hábito.

- Levarei saudades suas à sua avó.

- Sim, e a Sinclair.

- Sinclair?

- Costuma vê-lo, não? Quando ele vai a Elvie.

- Sim, sim, de fato vejo-o. E claro que lhe darei saudades suas.

Pedi-lhe:

- Diga-lhe que me escreva.

Dito isto, inclinei-me para fazer uma festa a Rusty, pois não queria que David Stewart reparasse que eu tinha os olhos rasos de lágrimas.

Depois de o advogado se retirar, voltei para a cabana e fui até à ponta da mesa onde o meu pai tinha os seus papéis. Não demorei muito a encontrar as quatro cartas, todas abertas e, obviamente, lidas. Não quis saber o que diziam. Prevaleceram os meus instintos mais nobres - e, fosse como fosse, já sabia do que falavam, portanto limitei-me a colocá-las novamente onde tinham estado, no meio da papelada.

Fui ajoelhar-me no assento da janela, abrindo-a e ficando a olhar para fora. Estava muito escuro, o mar parecia negro, e fazia frio, muito embora os meus terrores se tivessem dissipado. Pensei em Elvie e desejei profundamente lá estar. Revi mentalmente os gansos a sulcarem os céus, o cheiro da turfa a arder na lareira do vestíbulo. Pensei no lago, de um azul brilhante e calmo como um espelho, ou acinzentado e vergastado por ondas brancas levantadas pelos ventos fortes e intempestivos vindos do norte. De repente, senti uma vontade tão violenta de lá estar que quase me doeu fisicamente.

E senti-me furiosa com o meu pai. Não queria deixá-lo, mas de fato ele podia ter discutido o assunto comigo, dando-me a oportunidade de tomar uma decisão própria. Tinha vinte e um anos, já não era nenhuma criança e aquela atitude, que eu considerava intoleravelmente egoísta e antiquada, provocava-me ressentimento.

Só espero até ele regressar, prometi a mim mesma. Só espero até lhe falar daquelas cartas. Dir-lhe-ei... dir-lhe-ei...

Mas a minha ira foi de curta duração. Nunca conseguia ficar zangada durante muito tempo. Acalmada, provavelmente, pelo ar da noite, ela acabou por se diluir e desaparecer, deixando-me estranhamente vazia. No fundo, nada mudara. Eu ficaria com o meu pai porque o adorava, porque ele queria-me junto dele, precisava de mim. Não havia alternativa possível. E não lhe pediria explicações sobre as cartas porque o fato de ser apanhado em falta deixa-lo-ia embaraçado e humilhado, e era importante que, se quiséssemos continuar a viver juntos, ele continuasse a ser mais importante, forte e ponderado que eu.

Estava muito entretida a esfregar o chão da cozinha na manhã seguinte quando ouvi o chiar inconfundível do velho Dodge a descer a encosta, enveredando depois pelo caminho que ia dar a Reef Point. Limpei rapidamente o último quadrado de linóleo castanho cheio de fissuras, depois pus-me de pé, atirei o pano do chão para um canto, despejei a água no lava-louças e saí ao encontro do meu pai pelo alpendre da frente, limpando, ao mesmo tempo, as mãos ao velho avental às riscas que pusera.

Estava um dia estupendo: o sol quente, o céu azul e cheio de nuvens brancas e brilhantes tocadas pelo vento, a manhã resplandecente e o rebentar das ondas altas sobre a praia. Já fizera uma máquina de roupa, que agora secava, adejando no estendal; baixei-me para passar por baixo desta e saí para a estrada, enquanto o carro vinha na minha direção, saltando e balançando violentamente ao passar por cima das raízes.

Reparei imediatamente que o meu pai não vinha sozinho. Como o tempo estava esplêndido, baixara a capota do carro e ao seu lado vinha, sem a menor dúvida, com a cabeça de cabelos ruivos ao vento, Linda Lansing. Ao avistar-me, inclinou-se sobre a porta do carro e acenou-me, enquanto o cão-d'água branco que trazia ao colo também espreitou pela janela, lançando-se num paroxismo de latidos, como se eu não passasse de uma intrusa.

Rusty, que estivera na praia muito entretido com um bocado de cesto velho, ouviu o cão-d'água e veio imediatamente em meu socorro, dando a volta à esquina da cabana a correr, ladrando desalmadamente, fazendo pequenas investidas contra o Dodge, de dentes à mostra, incapaz de aguardar o momento de êxtase que seria poder mergulhá-los no pescoço do congênere. Antes que houvesse a menor possibilidade de conversa humana, o meu pai praguejou, Linda gritou e apertou o cão-d'água contra si, este ganiu e eu agarrei Rusty pela coleira inseticida e arrastei-o para casa, mandando-o calar e portar-se bem.

Deixei-o, entretanto, amuado e voltei a sair. O meu pai apeara-se.

- Olá, fofinha - cumprimentou, dando a volta ao carro para me vir abraçar e beijar. O seu amplexo fez-me vislumbrar como seria o de um gorila e a barba que usava arranhou-me a cara. - Está tudo bem?

- Sim, tudo ótimo - retorqui, afastando-me.

- Viva, Linda.

- Viva, querida.

- Desculpe o comportamento do cão.

Fui abrir-lhe a porta. Linda vinha completamente maquiada, trazia pestanas postiças, um fato de treino azul-bebê e sabrinas douradas. O cão-d'água tinha uma coleira cor-de-rosa enfeitada com pedrinhas a imitarem diamantes.

- Não tem importância. Mitzi é muito nervosa. Creio que tem a ver com o seu pedigree excelente.

Ergueu o rosto, de lábios esticados, para receber o meu beijo. Mal lho dei, o cão-d'água começou novamente a ganir.

- Por amor de Deus - exclamou o meu pai -, cala-me essa malfadada cadela.

Linda atirou-a então para fora do carro sem cerimônias e também saiu.

Linda Lansing era atriz. Vinte anos antes, aparecera em Hollywood como starlet, o que significava uma prodigiosa campanha publicitária seguida de uma fiada de filmes medíocres, nos quais desempenhava sempre papéis de cigana, camponesa, usando blusas cingidas de ombros descobertos, lábios pintados de vermelho-escuro e uma expressão lúgubre e mal-humorada. Mas este tipo de filmes acabou, inevitavelmente, por sair de moda, assim como o seu tipo de representação, e Linda seguiu o mesmo destino. Astutamente, pois de estúpida não tinha nada, casou imediatamente. "O meu marido está primeiro que a minha carreira", diziam as legendas que acompanhavam as fotografias do casamento; durante algum tempo desapareceu, de fato, da vida cinematográfica de Hollywood. Nos últimos tempos, porém, depois de se divorciar do terceiro marido e não tendo ainda lançado a rede ao quarto, voltara a desempenhar pequenos papéis para o cinema e a televisão. Para toda uma nova geração de espectadores, tratava-se de uma cara nova e, dirigida por profissionais sagazes, revelou um talento completamente inesperado para a comédia.

Conhecêramo-nos num desses pavorosos beberetes de domingo à beira da piscina que tão integrados estavam na vida social de Los Angeles. O meu pai atrelara-se imediatamente a ela, sob a desculpa de que era a única mulher presente com quem valia a pena falar. Eu também gostara dela. Possuía um sentido de humor vulgar, uma voz agradavelmente profunda e uma capacidade surpreendente para se rir de si mesma.

O meu pai é muito solicitado pelas mulheres; no entanto, sempre conduziu as suas ligações com admirável discrição. Eu sabia que se envolvera numa aventura com Linda, mas estava muito longe de esperar que a trouxesse para Reef Point consigo.

Decidi não dar a entender a minha admiração.

- Mas que surpresa. A que se deve a sua presença por estas bandas?

- Oh, tu sabes como é, querida, quando o teu pai mete uma idéia na cabeça. Mas sente-me só este cheiro a maresia!

Inspirou profundamente, o que lhe provocou um ligeiro acesso de tosse, e voltou ao carro para tentar descobrir a sua mala de mão. Foi nessa altura que reparei no monte de bagagem que enchia o assento de trás: três malas, uma mala-armário, um malote com os acessórios de maquiagem, um casaco de pele de marta num saco de plástico e o cesto de Mitzi, juntamente com o seu osso de borracha cor-de-rosa. Fiquei de boca aberta perante tal profusão de equipamento, mas antes que pudesse fazer alguma observação, o meu pai já me pusera fora do seu caminho com o cotovelo, tirando as duas malas.

- Bem, não fiques aí especada - declarou. - Traz alguma coisa para dentro.

E, dizendo isto, seguiu para a cabana. Linda, depois de reparar na minha expressão, decidiu que Mitzi precisava de dar uma corrida pela praia e desapareceu. Eu fiz menção de ir atrás do meu pai, mas, pensando melhor, fui buscar o cesto do cão e voltei então para casa.

Encontrei-o na sala de estar. Depois de pousar as duas malas no meio do chão e atirar o seu boné de pala para cima de um sofá, tirou uns maços de cartas antigas e documentos do bolso, colocando-os em cima da mesa. A sala, que eu acabara de limpar e arrumar, ficou imediatamente em desordem, desalinhada, em alvoroço. O meu pai tinha o condão de provocar aquela situação pelo simples fato de entrar lá dentro. Depois, acercou-se da janela, apoiou-se a ela, lançando uma mirada à paisagem e sorvendo uma boa lufada de ar. Por cima dos seus ombros largos, eu via, ao longe, a figura de Linda a passear à beira-mar em companhia do cão-d'água. Rusty, sentado na bancada da janela, ainda amuado, nem sequer mexeu a cauda.

O meu pai virou-se, tirando os cigarros do bolso.        Parecia muito satisfeito consigo mesmo.

- Bem - disse -, não perguntas como correram as coisas?

Acendeu um cigarro, depois olhou para mim, franziu o sobrolho, e atirou o fósforo usado pela janela, que ficara atrás de si. - Para que continuas com o cesto na mão? Pousa essa porcaria.

Não o fiz. Perguntei:

- Que se passa?

- Que queres dizer?

Apercebi-me de que toda aquela euforia servia apenas para disfarçar um enorme constrangimento.

- Sabes muito bem do que falo. De Linda.

- Que tem Linda? Gostas dela, não é verdade?

- Claro que gosto, mas o problema não está aí. Que faz ela aqui?

- Convidei-a a vir para cá.

- Com toda aquela bagagem? Por amor de Deus, por quanto tempo?

- Bem... - fez um gesto vago com a mão. - Enquanto ela quiser.

- Não está a trabalhar?

- Oh, fartou-se daquilo tudo.

Foi à cozinha ver se encontrava uma lata de cerveja. Ouvi a porta do frigorífico abrir e fechar.

- Fartou-se de Los Angeles, tal como aconteceu conosco. Foi então que tive esta idéia. - Apareceu à porta da cozinha com a lata aberta na mão.

- Mal fiz a sugestão, arranjou logo alguém que lhe ficasse com a casa e a criada, fez as malas e ficou pronta para vir. - Franziu novamente o sobrolho. - Jane, ganhaste algum afeto especial a esse cesto de cão?

Continuei a não ligar à observação.

- Por quanto tempo? - insisti, de má catadura.

- Bem, pelo tempo que nos apetecer. Não sei. Talvez o Inverno.

Observei:

- Não há espaço.

- Claro que há. E, afinal de contas, de quem é esta casa?

Esvaziou a lata, atirou-a certeiramente para o balde do lixo da cozinha e saiu para trazer o resto da bagagem. Dessa vez, levou as malas para o seu quarto. Pus o cesto de Mitzi no chão e fui atrás dele. Na divisão, onde imperava a cama enorme, agora com as malas e nós dois, pouco espaço mais restava.

Perguntei:

- Onde é que ela vai dormir?

- Bem, onde pensas que poderia fazê-lo?

Sentou-se na cama monstruosa e as molas rangeram em sinal de protesto. - Precisamente aqui.

Não me ocorreu nenhuma observação. Limitei-me a olhar para o meu pai. Nunca me vira perante semelhante situação. "Terá ele perdido a cabeça?", pensei.

Algo no meu rosto deve tê-lo alertado então, pois pareceu repentinamente contristado e pegou-me nas mãos.

-Janey, não fiques assim. Já não és nenhuma garota, não preciso de disfarçar as coisas contigo. Gostas de Linda; se assim não fosse nem sequer pensaria em trazê-la. E far-te-á companhia, não terei de te deixar sozinha tantas vezes. Ora, deixa-te disso, põe uma cara mais alegre e vai fazer uma cafeteira de café.

Retirei as mãos de entre as dele. Retorqui:

- Não tenho tempo.

- Que queres dizer?

-Tenho... tenho de ir fazer as malas.

Saí do quarto do meu pai e fui para o meu; tirei a mala de debaixo da cama e coloquei-a em cima desta; abri-a e comecei a enchê-la como se fazia nos filmes, esvaziando as gavetas uma a uma para o seu interior.

Atrás de mim, postado à entrada do quarto, o meu pai perguntou-me:

- Qual é a tua idéia?

Voltei-me para ele com as mãos cheias de saias, cintos, lenços de cabeça e de assoar.

Respondi:

- Vou-me embora.

- Para onde?

- Para a Escócia.

O meu pai deu uma passada para dentro do quarto e obrigou-me a encará-lo. Continuei a falar

apressadamente, sem lhe dar tempo a proferir uma palavra.

- Recebeste quatro cartas - declarei - três da minha avó e uma dos advogados. Abriste-as, leste-as e nunca me falaste delas porque não querias que eu voltasse. Nem sequer discutiste o assunto comigo.

A força com que me segurava nos braços não abrandou, mas reparei que empalidecera ligeiramente.

- Como é que soubeste dessas cartas?

Falei-lhe de David Stewart.

- Ele contou-me tudo - finalizei. - Não que fosse necessário - acrescentei com indiferença -, pois de qualquer maneira já sabia do assunto.

- E que é que sabes exatamente?

- Que nunca quiseste que eu ficasse em Elvie depois da morte da mãe. Que nunca tiveste vontade de me levar novamente até lá.

O meu pai observava-me, estupefato.

- Eu estava à escuta - gritei-lhe, como se de repente tivesse sido atacada de surdez. - Encontrava-me no vestíbulo e ouvi tudo o que tu e a minha avó disseram um ao outro.

- E nunca proferiste uma palavra sobre o assunto...

- De que teria servido?

O meu pai sentou-se cuidadosamente na beira da minha cama, como que para não perturbar a arrumação da minha mala.

- Preferias que eu te tivesse deixado lá?

A casmurrice dele enfureceu-me.

- Não, claro que não, adorei estar contigo e não teria desejado que as coisas se passassem de maneira diferente, mas tudo isso foi há sete anos atrás e agora sou uma adulta e tu não tinhas o direito de me esconder aquelas cartas não me dizendo nada.

- É assim tão grande a vontade de voltares?

- É, sim. Adoro Elvie e tu sabes o que representa para mim. - Peguei numa escova e nas minhas fotografias e enfiei-as nas bolsas laterais da mala. - Não tencionava... não tencionava fazer nenhuma referência às cartas, achei que ficarias muito infeliz, e eu não podia ir-me embora porque não tinhas ninguém que cuidasse de ti. Agora, a situação mudou.

- Está bem, mudou e tu vais-te embora. Não te impedirei que o faças. Mas como tencionas lá chegar?

- David Stewart parte de La Carmella às onze horas. Se me apressar, ainda vou a tempo de o apanhar. Ele tem um lugar reservado para mim no avião que parte para Nova Iorque amanhã de manhã.

- E quando voltas?

- Oh, não tenho a menor idéia. Daqui a uns tempos, suponho.

Enfiei na mala, a custo, o livro Gifi from the Sea, de Anne Morrow Lindbergh, do qual nunca me separava, fazendo o mesmo ao LP de Simon e Garfunkel. Tentei, debalde, fechar a mala demasiado cheia; abri-a então novamente e amachuquei freneticamente as coisas, continuando, ainda assim, a não conseguir ser bem-sucedida. Acabou por ser o meu pai a consegui-lo, à custa de simples força, carregando na tampa e forçando os fechos a prender-se.

Olhei-o nos olhos, tendo a mala a separar-nos, e disse:

- Se Linda não tivesse vindo, não partiria... - A voz falhou-me. Tirei a minha gabardina do gancho de trás da porta e vesti-a por cima da camisa e das calças que envergava.

- Ainda não tiraste o avental - observou o meu pai.

Era dos tais pormenores de que, nos velhos tempos, nos teríamos rido. Mas naquele momento, no mais profundo silêncio, desapertei a laçada e arranquei-o, atirando-o para cima da cama.

Perguntei:

- Se levar o carro e depois o deixar ao pé do motel, tu ou Linda poderão ir buscá-lo?

- Com certeza... - retorquiu o meu pai.

E logo a seguir:

- Espera...

Entrou no seu quarto e voltou com uma mão-cheia de dinheiro, notas de um, cinco e dez dólares, todas sujas e amarrotadas como jornais velhos.

- Toma - disse, enfiando-me o dinheiro num dos bolsos da gabardina -, é melhor levares isto. Poderás precisar.

Tentei objetar.

- Mas o pai...

Porém, Linda e Mitzi escolheram esse momento para voltar da praia, esta enchendo o chão de areia e Linda perfeitamente delirante com aquela sua espécie de comunhão com a natureza.

- Oh, aquelas ondas. Nunca vi nada parecido. Devem ter mais de trinta metros de altura. - Foi então que reparou na minha mala, na minha gabardina e, presumivelmente, no meu ar infeliz. - Jane, que estás a fazer?

- Vou-me embora.

- Para onde, por amor de Deus?

- Para a Escócia.

- Espero que não seja por minha causa.

- Em parte, é. Mas unicamente porque isso significa que o meu pai já tem alguém que olhe por ele.

Linda mostrou-se um tanto desconcertada, como se olhar pelo pai fosse a última coisa que contara fazer. No entanto, disfarçou habilmente e tirou o melhor proveito da situação.

- Bem, é ótimo para ti. Quando é que partes?

- Vou levar o Dodge até La Carmella...

Começara já a sair às arrecuas, pois a situação estava a tornar-se insustentável para mim. O meu pai pegou na mala e foi atrás de mim.

- E espero que tenham um bom Inverno. E que não haja demasiadas tempestades. E na arca frigorífica há ovos e latas de atum...

Desci as escadas do alpendre no mesmo estilo e, ao ver-me fora de casa, voltei-me, passei por baixo da corda cheia de roupa a secar (Linda lembrar-se-ia de a apanhar?), sentei-me ao volante do automóvel e o meu pai colocou a mala no assento de trás.

- Jane...

Eu, no entanto, sentia-me incapaz de me despedir. Já ia a caminho quando me lembrei de Rusty. Mas nessa altura já era demasiado tarde. O animal ouvira-me sair, a seguir chegara-lhe o som da porta do carro e do motor a ser ligado, de modo que lançara-se velozmente para fora de casa, ladrando de indignação, correndo a par comigo, de orelhas achatadas contra a cabeça e em perigo iminente de morte.

Foi a última gota. Parei o carro. O meu pai soltou um grande berro - "Rusty!" - e veio atrás do cão. Rusty pôs-se de pé e raspou a porta do carro com as unhas e eu inclinei-me para tentar afastá-lo, dizendo:

- Oh, Rusty, não faças isso. Vai-te embora. Não podes ir. Não posso levar-te comigo.

O meu pai, que viera a correr, apanhou-nos finalmente. Agarrou em Rusty e ficou em frente da janela do carro a olhar para mim. Os olhos do cão mostravam mágoa e ressentimento, mas os do meu pai tinham uma expressão que eu nunca lhe vira antes nem conseguia entender totalmente. Foi nesse momento que compreendi que não tinha vontade de me despedir de nenhum dos dois e desatei a chorar.

- Cuidarás de Rusty, não, pai? - gritei, sentindo o queixo tremer. - Fecha-o para que não possa vir atrás do carro. E vê se não é atropelado. E ele só gosta de comida para cão da Red Heart, não da outra marca. E não o deixes sozinho na praia, ainda alguém o rouba.

Tentei descobrir um lenço, mas, como de costume, não achei nenhum e o meu pai tirou um do bolso e entregou-mo, sem falar.

Assoei-me e, em seguida, estendi os braços e puxei-o para baixo, dando-lhe um beijo de despedida a ele e outro a Rusty. O meu pai disse "Adeus, minha pequenina", como já não fazia desde os meus seis anos, e eu, soluçando mais violentamente do que nunca, mal vendo o caminho, não olhei uma única vez para trás, sabendo, no entanto, que eles tinham ficado no mesmo sítio, olhando para mim até eu desaparecer do outro lado da berma.

Faltava um quarto para as onze quando entrei na zona de recepção do motel e o homem que estava ao balcão olhou para o meu rosto molhado de lágrimas sem interesse, como se passasse o dia a ver entrar e sair mulheres chorosas.

Perguntei:

- Mister Stewart já sai?

- Não, ainda cá está. Falta-lhe pagar uma conta de telefone.

- Qual é o número do seu quarto?

O homem lançou uma olhada a um quadro.

- Trinta e dois. - Mirou a minha gabardina, os jeans e os tênis manchados e estendeu a mão para o telefone. - Deseja vê-lo?

- Sim, se faz favor.

- Eu ligo para ele... informo-o de que está aqui. Como se chama?

- Jane Marsh.

Indicou, com a cabeça, uma porta, fazendo-me sinal para que fosse andando.

- Número trinta e dois - repetiu.

Caminhei cegamente pelo carreiro que se estendia a par com uma piscina enorme e muito azul. Viam-se duas mulheres estendidas em cadeiras de recosto, enquanto os filhos nadavam, gritavam e disputavam uma bóia de borracha. Ainda não chegara a meio quando reparei que David Stewart vinha ao meu encontro. Ao avistá-lo, deitei a correr e, para grande interesse das duas mulheres, e também para minha grande surpresa, agarrei-me a ele a chorar; David deu-me um abraço de consolo, depois largou-me e perguntou:

- Qual é o problema?

- Nenhum. - Mas começara novamente a chorar. - Vou consigo.

- Porquê?

- Mudei de idéias, nada mais.

- Por que razão?

Não fora minha intenção contar-lhe, porém não fui capaz de me controlar e comecei a falar.

- O meu pai arranjou uma amiga, que trouxe de Los Angeles... e ela... ela...

David Stewart olhou para as duas mulheres que nos miravam, de olhos arregalados e disse:

- Venha daí.

Conduziu-me para a privacidade do seu quarto e fechou a porta depois de entrarmos.

- Agora já pode falar - disse.

Assoei-me e fiz um esforço tremendo para me recompor.

- Acontece apenas que ele já tem alguém que cuide dele. Portanto, já posso ir consigo.

- Falou-lhe nas cartas?

- Falei.

- E ele não se importa que parta?

- Não. Disse que estava bem.

David ficou silencioso. Fitei-o e reparei que virara a cabeça, olhando-me agora pensativamente pelo canto do olho direito. Mais tarde descobri que fora ganhando aquele hábito ao longo dos anos devido a um problema de visão e ao fato de ter de usar óculos, mas, naquela altura, foi simultaneamente desconcertante e incômodo; era como se me encostassem à parede.

Infelicíssima, perguntei:

- Não quer que vá consigo?

- Não é isso. Acontece apenas que não a conheço suficientemente bem para saber se está a dizer toda a verdade.

Sentia-me demasiado infeliz para ficar ofendida.

- Nunca minto - declarei, emendando logo a seguir: - E quando o faço fico muito agitada e

vermelha. E o meu pai concordou realmente com a minha partida.

Para provar o que dizia, meti a mão no bolso da gabardina e tirei uma mão-cheia de dólares sujos e amarrotados. Algumas das notas caíram, como folhas mortas, em cima da alcatifa.

- Deu-me algum dinheiro para gastar.

David inclinou-se para apanhar as notas, que me entregou em seguida.

- Jane, continuo a achar que devia falar com ele antes de apanharmos o avião. Podíamos...

- Eu não seria capaz de enfrentar nova despedida.

O rosto de David perdeu a expressão severa. Tocou-me no braço.

- Então, fique aqui. Não demorarei mais de quinze minutos.

- Promete?

- Prometo.

Saiu. Deambulei pelo quarto que ele ocupara, li um pouco o jornal; depois, espreitei pela porta aberta e fui à casa de banho, onde lavei o rosto e as mãos, penteei o cabelo e prendi-o num rabo-de-cavalo com um elástico que entretanto encontrara. Fui até à piscina, onde me sentei à espera; quando Mr. Stewart chegou, colocamos a bagagem no carro e eu sentei-me a seu lado; seguimos até à auto-estrada, onde tomamos o rumo de Los Angeles. Passamos a noite num motel próximo do aeroporto e, no dia seguinte, apanhamos o avião para Nova Iorque, regressando na noite posterior a Londres; só quando ia a meio do Atlântico é que me lembrei do jovem que ficara de ir fazer surf comigo no domingo.

 

Vivera a maior parte da minha vida em Londres, mas regressar foi como chegar a uma cidade em que nunca estivera antes, tão mudada a encontrei. Os edifícios do aeroporto, as vias de acesso, a linha do horizonte, os enormes prédios de apartamentos, o trânsito intenso... tudo aquilo acontecera no decorrer dos últimos sete anos. Sentada a um canto do táxi, com a mala aos pés, reparei que ainda havia tanto nevoeiro que as luzes dos candeeiros de rua permaneciam acesas de dia, e que já nem me lembrava daquela frialdade úmida.

Não dormira no avião, pelo que me sentia entorpecida pela fadiga; enjoada pelos alimentos pouco apetecíveis que me haviam apresentado; eram, pelo meu relógio, ao qual ainda não mudara a hora da Califórnia, duas da manhã. Doíam-me o corpo, a cabeça e os olhos devido à viagem, sentia os dentes ásperos e tinha a sensação de que andava com a mesma roupa fazia séculos.

Desfilaram painéis com cartazes e anúncios afixados, fiadas de casas, antes de sermos engolidos pela urbe londrina. O táxi virou ao chegar a uns sinais de trânsito, enveredou por uma tranqüila rua descendente ladeada de carros estacionados e parou em frente de um aglomerado de casas vitorianas, altas e antigas, construídas num declive.

Observei-as melancolicamente, perguntando a mim mesma o que deveria fazer naquele momento. David inclinou-se para me abrir a porta do meu lado e declarou:

- É aqui que saímos.

- Como?

Olhei para ele e admirei-me de ver um homem, que partilhara a experiência autodestrutiva - para mim - de empreender uma viagem aérea contínua por meio mundo, conservar-se assim tão limpo, descontraído e senhor da situação. Mas saí do carro obedientemente, deixando-me ficar no passeio a pestanejar como uma coruja e a bocejar, enquanto ele pagava ao motorista, tirava as respectivas malas e conduzia-me por uns degraus que iam dar ao piso de uma cave. Os corrimões que ladeavam as escadas eram de um negro luzidio, a pequena área pavimentada encontrava-se limpa e varrida e havia um vaso de gerânios... um tudo-nada sujos de fuligem, mas, ainda assim, alegres e coloridos. Puxou de uma chave, abriu a porta amarela e eu segui-o, às cegas, para o interior do apartamento.

Estava pintado de branco e cheirava a casa de campo. No chão via-se uma profusão de tapetes persas, havia coberturas de tecido de algodão estampado no sofá e nas poltronas, peças de mobília antiga polidas e de pequena dimensão, um espelho veneziano sobre a lareira. Vi livros e uma pilha de revistas, um armário de frente em vidro cheio de pequenas amostras de tapeçaria feita à mão de Dresden... e, ao fundo da sala, do lado de fora das janelas, um jardim interior em miniatura, com um plátano, junto do qual havia um banco de madeira, e uma pequena estátua implantada num nicho aberto num muro de tijolos esmaecidos pelo tempo.

Eu, que continuava de pé, bocejei. David foi abrir uma janela e eu perguntei:

- É este o seu apartamento?

- Não, pertence à minha mãe, embora costume utilizá-lo sempre que venho a Londres.

Olhei em redor com ar vago.

- Onde está a sua mãe?

Devia ter dado a impressão de que estava à espera de a ver aparecer de detrás do sofá, porém David não sorriu.

- Encontra-se no Sul de França, de férias. Agora venha, dispa o casaco e ponha-se à vontade. Vou preparar-lhe uma chávena de chá.

Desapareceu por uma porta. Ouvi o som de uma torneira a correr, de uma chaleira a ser cheia. O simples fato de imaginar uma chávena de chá já me proporcionava uma sensação de conforto e bem-estar. Desapertei, desajeitadamente, os botões da gabardina até conseguir, finalmente, desabotoá-la. Despi-a e atirei-a para cima do que parecia uma poltrona Chippendale. Deixei-me cair no sofá. Este tinha almofadas forradas a veludo verde-vivo e eu peguei numa, que coloquei debaixo da cabeça. Todavia, creio que adormeci mesmo antes de erguer os pés do chão para me estender ao comprido. Pelo menos, não me lembro sequer de o ter feito.

Quando acordei, a luz ambiente mudara. O meu campo de visão abrangia agora um raio de luz, em cuja área dançavam partículas de poeira e que incidia como se fosse o foco de um projetor. Mexi-me e esfreguei os olhos para espantar o sono, voltando a olhar e reparando então no cobertor leve e quente que me tapava.

Na lareira crepitava um fogo. Só depois de a observar durante algum tempo é que me apercebi de que era elétrica, com toros, carvão e chamas de imitação. Pareceu, naquele momento, infinitamente aconchegante. Virei ligeiramente a cabeça e vi David, enterrado numa poltrona, rodeado de papéis e pastas. Vestia de maneira diferente - camisa azul, camisola creme, com decote em bico. Interroguei-me, sem grande preocupação, se ele seria uma daquelas pessoas a quem o sono nunca fazia falta. Ouvira-me mexer e observava-me.

Perguntei:

- Que dia é hoje?

Mostrou-se divertido.

- Quarta-feira.

- Onde estamos?

- Em Londres.

- Não, refiro-me à zona.

- Kensington.

Inquiri:

- Antigamente, vivíamos na Melbury Road. Fica longe?

- Não. É bastante perto.

Passado um bocado:

- Que horas são?

- Quase cinco da tarde.

- Quando é que vamos para a Escócia?

- Hoje à noite. Temos lugares reservados no wagon-lit do Royal Highlander.

Sentei-me com grande esforço e bocejei, tentando afastar o sono do meu organismo e o cabelo da cara. Perguntei:

- Seria possível eu tomar um banho?

- Com certeza - retorquiu o advogado.

Fui então lavar-me, em água muito quente, numa banheira que não vedava completamente, utilizando profusamente sais de banho da mãe de David que este, delicadamente, me convidou a usar. Terminado o banho, fui à minha bagagem buscar uma muda de roupa limpa, empurrando a suja para dentro da mala e fechando-a com muita dificuldade; depois, voltei à sala de estar e descobri que David preparara um chá e torradas com manteiga, e um prato com bolachas cobertas de chocolate daquele a sério, não apenas com sabor ao produto, como as que comia na América.

Perguntei:

- Foram feitos pela sua mãe?

- Não. Saí e fui comprá-los enquanto dormia. Temos uma lojinha aqui mesmo à esquina, o que dá muito jeito quando precisamos de qualquer coisa.

- A sua mãe viveu sempre aqui?

- De forma alguma, só aqui está há cerca de um ano. Tinha uma casa em Hampshire, mas era demasiado grande para ela e o jardim transformou-se numa preocupação... não é fácil arranjar gente para certos tipos de trabalho. Portanto vendeu-a, conservou alguns dos seus objetos preferidos e mudou-se para aqui.

O que explicava o ambiente de casa de campo. Olhei para o pequeno pátio e observei:

- Aqui também tem um jardim.

- Sim, mas pequeno. Mas desse ela própria cuida.

Peguei noutra torrada e tentei imaginar a minha avó em semelhante situação. Mas foi impossível. Era pessoa a quem nunca amedrontaria o tamanho da sua casa, a quantidade de trabalho ou a dificuldade em arranjar cozinheiros e jardineiros. O certo era que sempre vira Mrs. Lumley a servi-la, de pé, na cozinha, com as suas pernas inchadas, fazendo bolos. E Will, o jardineiro, tinha uma casinha e uma horta sua, onde cultivava batatas, cenouras e crisântemos enormes.

- Quer dizer que nunca viveu sequer neste apartamento?

- Não, mas venho ficar com a minha mãe sempre que passo por Londres.

- Acontece com freqüência?

- Alguma.

- Costuma ver Sinclair?

- De vez em quando.

- Que faz ele?

- Trabalha para uma agência de publicidade. Imaginava que tinha conhecimento do fato.

Lembrei-me de que podia telefonar-lhe. Afinal de contas, ele vivia em Londres e procurar o seu número levaria apenas uns instantes. Ainda pensei em fazê-lo, mas depois mudei de idéias. Não sabia bem qual seria a sua reação e não queria que David Stewart testemunhasse o meu possível constrangimento.

Perguntei:

- Ele tem alguma namorada?

- Ora, montes delas.

- Não, sabe muito bem o que quero dizer. Alguém muito especial.

- Jane, para lhe ser franco, não faço idéia.

Lambi pensativamente a manteiga que tinha na ponta dos dedos.

- Acha que ele irá até Elvie quando eu lá estiver?

- É bem provável.

- E o pai? O tio Aylwyn continua no Canadá?

David Stewart empurrou os óculos nariz acima com o dedo comprido e moreno. Retorquiu:

- Aylwyn Bailey faleceu há cerca de três meses.

Fiquei siderada.

- Mas nunca ninguém me falou disso. Oh, pobre avó. Ficou muito perturbada?

- Sim, ficou...

- E o funeral e tudo...

- Foi no Canadá. Já estava doente fazia algum tempo. Não chegou a conseguir voltar para casa.

- Quer dizer que Sinclair não chegou a revê-lo...

- Não.

Interiorizei a informação e senti-me triste. Lembrei-me do meu próprio pai, que era de fazer perder a paciência, mas que nunca me levaria a lamentar um único momento do tempo que passáramos juntos, e lamentei ainda mais Sinclair. Vieram-me então à memória os tempos em que o invejara, pois, enquanto eu me limitava a passar as férias em Elvie, ele era aí que vivia, permanentemente. E quanto a sentir a falta de um pai, o lugar contara sempre com a presença de muitos homens, pois além de Will, o jardineiro - que adorávamos -, também havia Gibson, o guarda, um indivíduo rígido mas indiscutivelmente ponderado, e os dois filhos deste, Hamish e George, mais ou menos com a mesma idade de Sinclair e que o incluíam em todos os seus empreendimentos, autorizados ou não. E fora assim que Sinclair aprendera a caçar, pescar, lançar papagaios, jogar críquete e trepar às árvores, gozando, de uma maneira ou de outra, de mais cuidados e atenções que a maioria dos rapazes da sua idade. Não, pensando bem, Sinclair disfrutara de muitas regalias.

Apanhamos o Royal Highlander em Euston e eu devo ter passado metade da noite a saltar da cama para me ir pôr à janela, deleitando-me com o fato de o comboio seguir para o Norte e de nada no mundo, exceto algum ato desastroso de Deus, poder alterar semelhante situação. Em Edimburgo, fui despertada por uma voz feminina que me fez lembrar a de Maggie Smith a fazer de Miss Jean Brodie, informando "Edimburgo, Waverley. Edimburgo, Waverley”.Soube então que me encontrava na Escócia, de modo que levantei-me, coloquei a gabardina por cima da camisa de noite e sentei-me em cima da tampa do lavatório vendo as luzes de Edimburgo passar e esperando a ponte; a certa altura, o comboio, fazendo um ruído completamente diferente, passou o Forth e o rio apareceu muito abaixo de nós, parecendo uma massa de água escura e brilhante, tremeluzindo com as luzes em movimento de embarcações que a distância fazia parecerem miniaturas.

Voltei a enfiar-me na cama e dormitei até chegarmos a Relkirk, altura em que novamente me levantei e abri a janela, deixando entrar o ar frio e a cheirar a musgo e pinheiros. Encontrávamo-nos prestes a penetrar nas Terras Altas, a região montanhosa da Escócia. Eram ainda só cinco e um quarto da madrugada. No entanto, vesti-me e passei o resto da viagem com o rosto colado ao vidro que só deixava ver o negrume e a chuva que escorria por ele. A princípio, pouco ou nada conseguia ver; todavia, depois de percorrermos a passagem e iniciarmos o longo declive que vai dar a Thrumbo, o dia começara a clarear. Não havia sinal do sol, apenas um aclarar imperceptível da escuridão. Sobre o cume das colinas viam-se nuvens densas, cinzentas e leves, mas, à medida que descíamos em direção ao vale, estas foram-se rarefazendo e diluindo até desaparecerem, e, então, a vasta imensidão do vale estreito apareceu diante de nós, com uma tonalidade acastanhada e tranqüila sob os primeiros alvores da manhã.

Bateram à minha porta e a camareira meteu a cabeça pela abertura para me dizer:

- O senhor deseja saber se está acordada. Chegaremos a Thrumbo daqui a cerca de dez minutos. Quer que leve a sua mala?

Aceitei a oferta e, depois de ela sair e fechar a porta, voltei para junto da janela, pois a paisagem campestre começara a tornar-se familiar e eu não queria perder um pormenor que fosse. Eu caminhara por aquele pedaço de estrada, cavalgara um pônei naquele campo, fora convidada para tomar chá naquela casinha pintada de branco. Depois, apareceu a ponte que marcava a fronteira da aldeia, a estação de gasolina e o requintado hotel que estava sempre repleto de residentes idosos e onde nunca se podia tomar uma bebida.

A porta voltou a abrir-se e David Stewart apareceu, enchendo a entrada.

- Bom dia.

- Viva.

- Dormiu bem?

- Otimamente.

O comboio começara naquele momento a abrandar a velocidade, acionado os travões. Passamos o semáforo, por baixo da ponte. Deslizei de cima do tampo do lavatório para o chão e segui David até ao corredor, onde vi passar triunfantemente, por cima do seu ombro, a tabuleta assinalando Thrumbo e, logo a seguir, o comboio parou e chegamos ao nosso destino.

David deixara o seu carro numa garagem, pelo que me deixou à sua espera no pátio da estação, enquanto ia buscá-lo. Sentei-me em cima da mala, na aldeia deserta, que, a pouco e pouco, começava a despertar. Vi luzes acenderem-se uma a uma, chaminés começarem a deitar fumo e, pela estrada, veio um homem aos ziguezagues na sua bicicleta. Nessa altura chegou até mim, vindo de muito lá no alto, um grasnar e um chilrear que se foi tornando cada vez mais audível e passou nitidamente por cima da minha cabeça, embora eu não pudesse ver o bando de gansos selvagens que voavam acima das nuvens.

O lago de Elvie ficava a cerca de três quilômetros da aldeia de Thrumbo, sendo uma vasta extensão de água, cortada a norte pela estrada principal, junto de Inverness, e fechada, no extremo oposto, pelos enormes bastiões de Cairngorms. Elvie, em si, pouco mais era do que uma ilha em forma de cogumelo, ligada à terra pelo pedúnculo, uma faixa estreita de terra que não passava de um caminho elevado que se estendia por entre um terreno pantanoso juncado de caniçais, lugar onde centenas de aves nidificavam.

A terra pertencera, durante muitos anos, à igreja e, de fato, ainda eram visíveis as ruínas de uma pequena capela, agora sem telhado e vazia, embora o cemitério diminuto que a rodeava continuasse a ser cuidado e limpo, os teixos impecavelmente cortados e a relva macia como veludo, alegrada todas as Primaveras pelas pétalas coloridas dos narcisos selvagens.

A casa onde a minha avó vivia servira, em tempos idos, de presbitério daquela pequena igreja. Com o decorrer dos anos, porém, ultrapassara os seus modestos limites de origem, sendo-lhe acrescentadas alas e quartos extra destinados a acomodar, presume-se, grandes famílias vitorianas. Vista das traseiras, de quem vinha pela estrada, parecia alta e imponente, sendo as janelas voltadas a norte pequenas e escassas, de maneira a conservarem o calor nos Invernos rigorosos, enquanto a porta da frente, pequena e vulgar, encontrava-se, habitualmente, fechada a sete chaves. Aquela sensação de fortaleza era acentuada pelos dois muros altos do jardim, os quais, como braços, estendiam-se desde a casa para este e oeste e por onde nem mesmo a minha avó conseguira fazer com que uma trepadeira subisse.

Do outro lado, porém, o aspecto de Elvie era completamente diferente. A velha casa branca, protegida e enclausurada de frente para o sul, cintilava e dorroitava à luz do sol. As janelas e as portas mantinham-se abertas para deixar entrar o ar fresco e o jardim descia até um valado estreito que lhe servia de limite em relação ao campo do lado, onde um vizinho agricultor deixava o seu gado pastar.

O campo estendia-se até à beira da água e o bater da ondulação ligeira no cascalho, assim como o mugir suave e o mastigar do gado, fazia parte tão integrante de Elvie que, passado um bocado, deixava de se ouvir. Só depois de se estar longe e voltar é que se dava novamente por ele.

O automóvel de David Stewart, um T.R.4 azul-escuro, revelou-se uma surpresa, mostrando-o inesperadamente veloz para um cidadão de aspecto tão pacato. Guardamos dentro dele as nossas malas e saímos de Thrumbo, indo eu sentada na beira do meu banco, tanta dificuldade tinha em conter a excitação. Apareceram marcos conhecidos, que depressa ficaram para trás: a garagem, a doçaria e a quinta dos McGregor; de repente, vimo-nos em campo aberto. A estrada começou a subir por entre campos de restolho dourado, as bermas estavam salpicadas de escarlate com os aglomerados de roseiras-bravas, e já caíra geada, pois as árvores apresentavam-se manchadas com o dourado e o vermelho das primeiras cores do Outono.

Foi então que, ao darmos a última volta, deparamos com o lago, que se estendia à nossa direita, refletindo a tonalidade da manhã cinzenta, enquanto as montanhas se viam mais ao longe, perdidas no meio das nuvens. E menos de um quilômetro mais adiante apareceu Elvie, a casa oculta pelas árvores e a igreja sem teto romanticamente deserta. Eu não conseguia falar de tão excitada e David Stewart, com uma sensibilidade rara, absteve-se de qualquer comentário. Tínhamos vindo juntos de muito longe, na verdade de uma lonjura tal que era difícil de compreender, mas foi em silêncio que finalmente viramos para o caminho que passava em frente do casebre e o carro serpenteou por entre as bermas altas, passando por entre os pantanais e subindo sob as faias, até parar diante da porta da frente.

Saltei imediatamente para fora do carro, atravessei o chão coberto de cascalho a correr, porém a minha avó foi mais rápida do que eu. A porta abriu-se, ela apareceu e caímos nos braços uma da outra; ela repetia incessantemente o meu nome, exalando o perfume dos saquinhos que guardava debaixo das suas roupas, e eu disse de mim para mim que nada mudara.

 

Um encontro, depois de passados tantos anos, gera sempre confusão. Dissemos coisas como: "Oh, estás aqui de verdade...", "Achei que nunca mais cá chegava...", "Fizeste boa viagem?..." e "Está tudo na mesma", depois afastávamo-nos uma da outra, ríamos das nossas idiotices e voltávamos a abraçar-nos.

A seguir, foram os cães que vieram aumentar o tumulto, saindo de casa a ladrar-nos aos pés, exigindo atenção. Eram spaniels castanho-e-brancos, que eu não conhecia e, no entanto, não deixavam de me ser familiares pois sempre os houvera daquela raça em Elvie, não restando dúvidas de que descendiam daqueles de que eu me lembrava. E mal acabara de fazer festas aos animais quando Mrs. Lumley apareceu, tendo ouvido o chinfrim e sentindo-se incapaz de resistir à tentação de se juntar à recepção doméstica. Estava mais gorda que nunca na sua bata verde e saiu de casa com um sorriso enorme, dando-me um beijo, dizendo-me que eu crescera imenso, tinha mais sardas que nunca e que ela estava a preparar um pequeno-almoço de arromba.

Atrás de mim, David tirava calmamente as malas do carro e, a certa altura, a minha avó foi cumprimentá-lo.

- David, deve estar exausto. Obrigado por ma ter trazido sã e salva.

Para minha surpresa, deu-lhe um beijo.

- Recebeu o meu telegrama.

- Claro que recebi. Estou a pé desde as sete da manhã. Vai entrar e tomar o pequeno-almoço conosco, não vai? Estamos a contar consigo.

No entanto, ele apresentou as suas desculpas e recusou, dizendo que tinha a governanta à sua espera, precisava de ir a casa mudar de roupa e seguir para o escritório.

- Bem, então venha cá jantar hoje à noite. Sim, faço questão. Por volta das sete e meia. Queremos que nos conte tudo o que se passou.

Finalmente, deixou-se convencer e entreolhamo-nos, sorridentes. Dei-me então conta, com alguma surpresa, de que o conhecia apenas há quatro dias, mas que, contudo, no momento da despedida, sentia que deixava um velho amigo, alguém que conhecera toda a vida. Recebera uma incumbência de execução difícil, que levara a cabo com tato e bom humor sem, tanto quanto eu sabia, ter levantado o menor constrangimento a alguém.

- Oh, David...

O advogado fugiu apressadamente à minha desajeitada tentativa de agradecimento.

- Até logo à noite, Jane - disse ele, retrocedendo e entrando no carro, cuja porta fechou antes

de seguir caminho. Ficamos a vê-lo virar e afastar-se sob as faias, entrando na estrada depois da curva, até desaparecer.

- Rapaz simpático - observou a minha avó com ar pensativo. - Não achas?

- Sem dúvida - retorqui. - E gentil.

Precipitei-me para Mrs. Lumley a tempo de a impedir de pegar na minha mala, que eu mesma levei para dentro de casa, seguida pela minha avó e pelos cães; a porta fechou-se e David Stewart foi, no momento, esquecido.

Chegou-me às narinas o cheiro de turfa queimada que vinha da lareira do vestíbulo, o perfume dos botões de rosa que enchiam a enorme jarra que enfeitava o topo da cômoda, por baixo do relógio. Um dos cães resfolegava, requerendo atenção, com a cauda a abanar e cheio de entusiasmo; detive-me para lhe afagar as orelhas e estava prestes a falar-lhes de Rusty quando a minha avó declarou:

- Tenho uma surpresa para ti, Jane.

Endireitei-me e olhei para cima; vi então um homem a descer os degraus na minha direção, com a silhueta recortada contra a luz proveniente da janela da escadaria. Por um momento, fiquei ofuscada pela luminosidade, até que ele falou:

- Olá, Jane.

Apercebi-me então de que se tratava do meu primo Sinclair.

Fui incapaz de tomar outra iniciativa que não fosse a de ficar ali especada de boca aberta, enquanto a minha avó e Mrs. Lumley assistiam, encantadas, ao sucesso da surpresa que tinham planeado. Sinclair chegara junto de mim, pousara as mãos nos meus ombros e dera-me um beijo na face antes de eu recuperar fôlego suficiente para observar debilmente:

- Mas pensei que estivesses em Londres.

- Como vês, não estou lá, mas sim aqui.

- Mas como...? Porquê...?

- Tenho uns dias de férias.

Por minha causa? Tirara-os para poder estar em Elvie para me receber? A possibilidade era simultaneamente lisonjeadora e excitante, mas, antes de poder dizer algo mais, a minha avó tomou conta da situação.

- Bom, não vale a pena ficarmos todos aqui de pé... Sinclair, se não te importas, levas a mala de Jane até ao quarto dela e tu, querida, depois de lavares as mãos, desces para tomar o pequeno-almoço. Deves estar fatigada, depois de uma viagem tão longa.

- Não estou cansada.

E, na verdade, não estava. Sentia-me cheia de vitalidade, desperta e pronta para o que desse e viesse. Sinclair pegou na minha mala e subiu os degraus dois a dois e eu fui atrás das pernas compridas dele como se levasse asas nos calcanhares.

O meu quarto, que deitava para o lago e o jardim, brilhava de tanta limpeza, mas, fora isso, permanecia exatamente como o deixara antes. A cama pintada de branco continuava encostada ao vão da janela, onde eu sempre preferira dormir. Havia também uma almofada para alfinetes em cima do toucador e saquinhos de lavanda no guarda-fatos e o mesmo tapete azul a cobrir a faixa de alcatifa gasta.

Enquanto eu despia a gabardina e lavava as mãos, Sinclair deixou-se cair pesadamente sobre a minha cama, amarrotando lamentavelmente a colcha branca engomada, ficando a observar-me. Os sete anos decorridos tinham-no mudado, como não podia deixar de ser, embora as alterações que eu via nele eram quase demasiado subtis para que pudesse defini-las com exatidão. Estava mais magro, sem dúvida, viam-se rugas finas aos cantos da boca e dos olhos, mas os sinais de envelhecimento ficavam-se por aí. Era muito bem-parecido, possuía sobrancelhas e pestanas escuras e olhos de um azul intenso sedutoramente arrebitados na ponta. O nariz era direito e a boca arredondada e cheia, com um lábio inferior que, nos seus tempos de miúdo, costumava ficar muito proeminente quando amuava. Tinha o cabelo farto e liso e usava-o medianamente comprido, até ao colarinho da camisa e, como eu estava habituada às modas de Reef Point, vendo os cabelos ora à escovinha (surfistas), ora pelos ombros (hippies), achei o efeito muito atraente. Naquela manhã, envergava uma camisa azul, com um lenço de algodão amarrado ao pescoço descoberto e umas calças de veludo estriado de aspecto gasto e um cinto de cordão de lã entrançado.

Procurando confirmar o que esperava que fosse verdade, inquiri:

- É verdade que estás de férias?

- Evidentemente - retorquiu Sinclair sem mais comentários e nada confirmando.

Resignei-me com a expectativa.

- Trabalhas numa agência de publicidade?

- Exato. Na Strutt and Seward. Sou agente comercial da administração.

- É um emprego a teu gosto?

- Inclui uma ótima maquia para despesas de representação.

- Referes-te a almoços bem regados com clientes em perspectiva.

- Não obrigatoriamente. Se se trata de uma cliente em perspectiva, bonita, é bem provável que opte antes por um jantar íntimo à luz das velas.

Obriguei-me a disfarçar impecavelmente a pontada de ciúme que senti. Sentara-me em frente do toucador a escovar o cabelo comprido e Sinclair observou-me, sem mudar de expressão:

- Já não me lembrava do comprimento dele. Costumavas usá-lo entrançado. Parece seda.

- De vez em quando, juro a mim mesma cortá-lo, mas depois não chego a concretizar a idéia. - Acabei de me pentear, pousei a escova e fui para junto dele, ajoelhando-me sobre a cama para abrir a janela e ficar junto desta.

- Que cheiro delicioso - disse-lhe. - Úmido e outonal.

- A Califórnia não cheira assim?

- Na maioria das vezes cheira é a gasolina. Lembrei-me de Reef Point. - Quando não, a eucaliptos e ao Pacífico.

- E que tal é a vida junto dos Peles-Vermelhas? - Lancei-lhe um olhar pouco amigável, desafiando-o a ser ofensivo e Sinclair cedeu.

- Francamente, Jane, estava cheio de medo que voltasses a mascar pastilha, cheia de máquinas fotográficas e de filmar ao ombro e de cada vez que falasses comigo, começasses por "Caraças, sim...".

- Estás desatualizado - retorqui.

- E que passasses a vida a protestar com um cartaz dizendo "Faz Amor e não a Guerra".

Disse a frase imitando exageradamente o sotaque americano, o que achei tão entediante como nas alturas em que, na Califórnia, comentavam a minha maneira de falar terrivelmente britânica.

Foi o que lhe disse, acrescentando:

- Podes ter a certeza de que quando começar a protestar, serás o primeiro a saber.

Sinclair assimilou a observação com um brilho malicioso nos olhos.

- Como está o teu pai?

- Deixou crescer a barba e faz lembrar Hemingway.

- Posso imaginar.

Um par de patos bravos sulcou os céus e pousou na água, erguendo um pouco de espuma branca na superfície. Ficamos a observá-los até que, a certa altura, Sinclair bocejou, espreguiçou-se e deu-me uma palmadinha fraternal, dizendo que eram horas de irmos tomar o pequeno-almoço, de modo que fechamos novamente a janela, saímos de cima da cama e descemos ao piso térreo.

Descobri que estava faminta. Havia ovos, bacon, marmelada Cooper e pãezinhos redondos, de que me recordava chamarem-se baps, e enquanto comia Sinclair e a minha avó conversavam despreocupadamente - bate-papo de pequeno-almoço sobre notícias saídas no jornal da localidade, o resultado de uma exposição floral, uma carta que a minha avó recebera de um primo mais velho que fora morar para um lugar chamado Mortar.

- Por que diabo foi ele viver para lá?

- Bem, claro que é mais barato, e quente.

O desgraçado sofreu sempre terrivelmente de reumatismo.

- E como tenciona ele passar os dias? A levar turistas de barco pelo Grand Harbour?

Apercebi-me então de que falavam de Malta.

Mortar: Malta. Estava mais americanizada do que imaginara.

A minha avó serviu o café. Observei-a e calculei que estivesse na casa dos setenta, continuando, no entanto, tal qual eu a recordava. Era alta, com um porte digno e de aspecto muito agradável, com o seu cabelo branco sempre impecavelmente penteado, os olhos profundos encimados por sobrancelhas elegantemente arqueadas, de um azul vivo e penetrante. (No momento, tinham um aspecto deliciosamente juvenil, porém eu sabia bem que eram capazes de, com um franzir de testa e um olhar gélido, mostrar uma desaprovação imensa.) Também as roupas que usava não indicavam a idade que tinha, assentando-lhe impecavelmente: saias de tweed suavemente estampado e camisolas de caxemira ou casacos de malha de lã. Durante o dia, trazia sempre o seu colar de pérolas e uns brincos de coral em forma de gota. à noite, era habitual brilhar-lhe um diamante ou dois nos veludos azuis que usava, pois era suficientemente antiquada para todas as noites mudar de roupa para o jantar, mesmo que fosse domingo e não comêssemos mais que uns vulgarissimos ovos mexidos.

Ao vê-la sentada à cabeceira da mesa, recordava-me de que a tragédia já deixara marcas profundas nela. Enviuvara, a seguir perdera a filha e, recentemente, o filho, o misterioso Aylwyn que optara por viver e morrer no Canadá. Sinclair e eu éramos os únicos parentes que lhe restavam. E Elvie. No entanto, mantinha o seu ar empertigado e os seus modos autoritários, agradando-me particularmente não a ver transformar-se numa daquelas idosas nostálgicas que passavam a vida a recordar tempos idos. A minha avó era demasiado interessada pelo que a rodeava, demasiado ativa e inteligente. "Indestrutível", disse de mim para mim reconfortantemente. É o que ela é: indestrutível.

Terminado o pequeno-almoço, Sinclair e eu demos a volta habitual pela ilha, não perdendo nenhum pormenor. Saímos pelo portão que deitava para o cemitério. Ali chegados, demos uma vista de olhos por todas as lápides antigas, espreitamos pelas janelas estreitas da igreja em ruínas, trepamos pelo muro que deitava para o campo e passamos pelo gado, que nos mirou com olhos curiosos, descendo até à margem do lago. Perturbamos um casal de patos bravos e atiramos seixos achatados à água, tentando ver quem chegava mais longe. Sinclair ganhou. Caminhamos até ao molhe e fomos ver o velho bote que deixava entrar água e tanto custava a remar, com os nossos passos a ecoarem no velho palanque de madeira.

- Um dia - observei -, isto ainda cai.

- Não vale a pena mandar arranjá-lo, pois nunca é usado.

Prosseguimos, dando a volta ao lago, por baixo da faia onde construíramos a nossa casa na árvore, subindo depois por entre o grupo de vidoeiros, envolvidos por anéis de folhas mortas que iam caindo silenciosamente, voltando depois para casa por um aglomerado de velhos anexos - pocilgas e galinheiros abandonados, e também estábulos e uma antiga cavalariça que há muito passara a ser utilizada como garagem.

- Vem ver o meu carro - sugeriu Sinclair.

Abrimos, com dificuldade, o fecho e também a porta enorme e antiquada, que rangeu nos gonzos, deixando ver, ao lado do enorme e requintado Daimier da minha avó, um Lotus Elan amarelo-escuro, de capota preta, quase raso ao chão e de aparência infinitamente mortífera.

Perguntei:

- Há quanto tempo o tens?

- Oh, há cerca de seis meses.

Sentou-se ao volante e fez marcha-atrás, enquanto o motor rosnava como um tigre zangado e mostrou-me, fazendo lembrar um rapazinho com um brinquedo novo, os vários acessórios do automóvel: as janelas de controlo eletrônico, o excelente mecanismo que movimentava a capota, o alarme automático, as tampas móveis que protegiam os faróis, abrindo e fechando quais pálpebras monstruosas.

- Que velocidade atinge? - perguntei, nervosa.

Sinclair encolheu os ombros.

- Cento e vinte, cento e trinta.

- Comigo aqui dentro não, de certeza.

- Espera até seres convidada, minha medrosa.

- Nas estradas que vêm dar aqui não conseguias ultrapassar os sessenta sem te despistares. - Apeei-me. - Não voltas a guardá-lo na garagem?

- Não. - Consultou o relógio de pulso. Combinei ir fazer tiro ao alvo a pombos.

Tive então consciência de que me encontrava verdadeiramente na minha terra. Na Escócia, os homens andam sempre aos tiros a alguma coisa, perfeitamente indiferentes a quaisquer planos que as suas companheiras possam ter e que os inclua.

Perguntei:

- Quando voltas?

- Provavelmente à hora do chá. - Sorriu-me.

- Olha, fica combinado que depois vamos visitar os Gibson. Estão ansiosos por te ver e eu prometi levar-te.

Ao entrar em casa, senti-me percorrer por um arrepio de frio e percebi que começara já a sentir a falta do calor do sol da Califórnia e o aquecimento central tão vulgarizado na América. Elvie possuía paredes espessas e estava voltada para o sul. As lareiras estavam constantemente acesas e havia sempre muita fartura de água quente; no entanto, os quartos tinham indiscutivelmente tendência a estar mais frios. Guardei as minhas roupas nas gavetas vazias e cheguei à conclusão de que, apesar de gozarem de todos os requisitos modernos de agasalho, não eram quentes. Teria forçosamente de comprar outras para usar ali na Escócia. Quem sabe - que perspectiva agradável - a minha avó mas oferecesse.

Desci as escadas com esta idéia em mente, encontrando-a a sair da cozinha de botas de borracha, uma gabardina velha e um cesto na mão.

Disse-me:

- Ia precisamente ter contigo. Onde está Sinclair?

- Foi ao tiro aos pombos.

- Ah, é verdade, já me tinha dito que não almoçava em casa. Vem ajudar-me a apanhar couves.

A iniciativa sofreu um pequeno atraso pois tive de arranjar umas botas e um casaco velho, saindo depois de novo para a manhã tranqüila, mas daquela vez em direção à horta murada. Will, o jardineiro, já ali estava. Levantou a cabeça quando entramos, parou de cavar e aproximou-se, pisando cautelosamente a terra recém-revolvida, estendendo-me a mão enlameada.

- Olá - cumprimentou. - Há muito tempo que não a vemos aqui por Elvie. - Nem sempre se percebia muito bem o que dizia, pois só usava a dentadura aos domingos. - E que tal é a vida lá pela América?

Falei-lhe um pouco do país, ele perguntou-me pelo meu pai e eu por Mrs. Will, que, ao que ouvira, estava doente, como sempre, e por fim ele voltou às suas escavações enquanto a minha avó e eu íamos apanhar couves.

Depois de enchermos o cesto, voltamos para casa, mas a manhã mostrava-se tão límpida e suave que a minha avó disse que não lhe apetecia entrar imediatamente, portanto demos a volta até ao jardim e sentamo-nos num banco de ferro pintado de branco, espraiando o olhar pelo jardim, o lago e as montanhas, que ficavam ao fundo. As margens herbáceas estavam cheias de dias, zínias e malmequeres cor de púrpura, e viam-se as folhas vermelho-escuras secas de um bordo canadiano espalhadas sobre a erva nacarada que atapetava o solo.

A minha avó comentou:

- Sempre achei que o Outono é uma época perfeita. Há pessoas que a consideram triste, mas na verdade é demasiado bela para tal.

Citei:

- "Setembro chegou, e com ele a vitalidade que ressalta do Outono”.

- De quem é a autoria?

- Louis MacNeice. A tua vitalidade também ressalta?

- Bem, é possível que assim acontecesse aqui há uns vinte anos atrás. - Rimos e ela apertou-me a mão. - Oh, Jane, que bom é ter-te de novo aqui.

- Escrevias muitas vezes e, por minha vontade, teria voltado mais cedo... mas realmente não foi possível.

- Não, claro que não, eu compreendo. E fui egoísta em insistir tanto.

- E quanto àquelas... cartas que escreveste ao meu pai. Não tive conhecimento delas, caso contrário ter-te-ia respondido.

- Foi sempre um homem muito teimoso. - Lançou-me um olhar muito perscrutante e azul.

- Não concordou com a tua vinda?

- Eu já tinha tomado a decisão. Ele resignou-se. Além disso, como tinha David Stewart à minha espera para me acompanhar até aqui, dificilmente poderia levantar objeções.

- Receava que não tivesses coragem de o deixar.

- E não tinha. - Baixei-me para apanhar uma folha de bordo, esfiapando-a entre os dedos. - Mas ele agora arranjou uma amiga para lhe fazer companhia.

Novamente o olhar de viés.

- Uma amiga?

Fitei-a pesarosamente. Sempre se conduzira por princípios rígidos, mas nunca fora puritana. Retorqui-lhe:

- Linda Ransing. É atriz. E no momento é sua namorada.

Passado um bocado, disse-me:

- Compreendo.

- Não, não me parece que tenha muita facilidade em fazê-lo. Mas eu gosto dela e assim o meu pai terá quem cuide de si... seja como for, até eu voltar para junto dele.

- Não consigo perceber - observou a minha avó -, por que razão ele não voltou a casar.

- Talvez por não ficar tempo suficiente nos lugares por onde passa.

- Mas é egoísmo da parte dele. Não te deu hipótese para te vires embora, voltares a visitar-nos a todos ou iniciares mesmo algum tipo de carreira.

- Fazer carreira profissional é das tais hipóteses que nunca coloquei a mim mesma.

- Mas hoje em dia todas as raparigas devem arranjar meios para se tornarem economicamente independentes.

Retorqui que me sentia muito satisfeita por ser o meu pai a encarregar-se do meu sustento, ao que a minha avó respondeu que eu era tão teimosa quanto ele, perguntando-me se alguma vez pensara em arranjar um emprego.

Refleti cuidadosamente sobre o assunto. No entanto, a única lembrança que me veio à memória remontava aos meus oito anos, altura em que quisera ir para uma companhia de circo para ajudar a lavar os camelos. Como não achei que a minha avó gostasse de ouvir semelhante tolice, optei antes por dizer que não me recordava de nada em especial.

- Oh, minha pobre Jane.

Acorri em defesa do meu pai.

- Pobre não! De modo nenhum. Não acho que tenha perdido o que quer que seja.

Mas para atenuar a explosão, acrescentei:

- Exceto Elvie. Senti a falta de Elvie. E de ti. De tudo.

A minha avó decidiu não tecer mais comentários sobre a questão. Larguei a folha esfiapada e inclinei-me para apanhar outra. Enquanto o fazia, comentei:

- David falou-me do tio Aylwyn. Não disse nada a Sinclair... mas... fiquei com muita pena... quero dizer, por ele ter estado tão longe e tudo o mais.

- Sim - retorquiu inexpressivamente. - Mas enfim, foi opção dele... ficou a viver no Canadá e acabou por morrer lá. Sabes, Elvie nunca teve grande significado para Aylwyn. Era, intrinsecamente, uma pessoa irrequieta. Precisava, acima de tudo, da companhia de muita gente diferente. Gostava de variar em tudo o que fazia. E Elvie nunca foi o lugar mais indicado para esse tipo de vida.

- É estranho... um homem sentir-se aborrecido na Escócia... uma terra que lhe está tão adaptada.

- Sim, mas ele não gostava de caçar, nunca quis pescar, era um entretenimento que o entediava. Do que gostava era de cavalos e corridas. Montava muito bem.

Apercebi-me, com uma certa surpresa, de que era a primeira vez que falávamos sobre o meu tio Aylwyn. Não era o fato de o tema ter sido propriamente evitado; acontecia simplesmente que, até ali, pouco ou nada lhe tinham ligado. Mas naquele momento dava-me conta de que era pouco natural eu saber tão pouco acerca dele... Nem sequer sabia que aspecto tivera, pois a minha avó, ao contrário da maioria das mulheres da sua geração, não apreciava os retratos de família. Todos os que tinha encontravam-se muito bem arrumados em álbuns, não em exibição em cima do piano de cauda, em molduras de prata.

Perguntei:

- Que tipo de pessoa era? Que aspecto tinha?

- Aspecto? Era tal e qual como Sinclair é agora. E com uns modos encantadores... quando entrava numa sala, era ver todas as mulheres tentarem chamar-lhe a atenção, sorrirem-lhe e mostrarem-se sedutoras. Era extremamente encantador.

Estava prestes a perguntar-lhe por Silvia quando a minha avó me impediu de o fazer, consultando o relógio e retomando o seu ar atarefado.

- Bom, o melhor é ir entregar estas couves a Mistress Lumley, caso contrário não terá tempo de as preparar para o almoço. Obrigada por me teres ajudado a apanhá-las. E gostei muito deste nosso bate-papo.

Sinclair, tal como prometera, apareceu para o chá da tarde. Terminado o lanche, vestimos os casacos, assobiamos a chamar os cães e saímos para visitar os Gibson.

Estes viviam numa casinha destinada ao guarda, abrigada numa reentrância da colina que se erguia a norte de Elvie, de modo que tivemos de sair da ilha, atravessar a estrada principal e seguir pelo carreiro que se estendia, serpenteante, por entre a erva e a urze, atravessando, em vários pontos, o riacho que ia desaguar no lago Elvie, passando por baixo da estrada por meio de um aqueduto. Vinha das profundezas elevadas da montanha e o vale estreito por onde passava, assim como as colinas que o ladeavam, faziam parte da propriedade da minha avó.

Nos velhos tempos, tinham-se ali realizado grandes caçadas, onde as crianças faziam de batedores e pôneis da região levavam as pessoas de mais idade até às áreas mais elevadas; nos dias que corriam, porém, a zona de caça ficara à disposição de uma coletividade de comerciantes locais, que gostavam de passar pelo terreno durante dois ou três sábados de Agosto e pareciam igualmente felizes em levar as famílias a fazer piqueniques ou a pescar nas águas do riacho.

Quando nos aproximamos do casebre, ouvimos uma cacofonia de latidos proveniente dos canis e, a certa altura, Mrs. Gibson, perturbada pelo barulho, apareceu à entrada da porta. Sinclair acenou-lhe e chamou:

- Viva, ó de casa!

Mrs. Gibson retribuiu o gesto e, em seguida, desapareceu apressadamente dentro de casa!

- Terá ido pôr a chaleira ao lume? - lembrei-me eu.

- Ou então foi avisar Gibson para pôr a dentadura.

- Que observação pouco simpática.

- De fato. Mas realista.

Ao lado da casa, via-se um velho Land Rover estacionado, com uma meia dúzia de galinhas a debicar em redor dos pneus, e uma corda com roupa a secar à brisa. Quando nos íamos a aproximar da porta, Mrs. Gibson apareceu novamente, já sem o avental. Trazia um camafeu preso à gola da blusa e sorria esfuziantemente.

- Oh, Miss Jane, tê-la-ia conhecido onde quer que estivesse! Ainda agora o Will disse que está tal e qual na mesma. E Mister Sinclair... não sabia que estava por cá.

- Tirei uns dias de licença.

- Então, façam o favor de entrar, Gibson está a preparar o chá.

- Espero que não tenhamos chegado em má altura...

Sinclair afastou-se para me dar prioridade. Enfiei timidamente a cabeça pelo umbral e entrei na cozinha, onde ardia uma fogueira de lenha na lareira, e Gibson levantou-se da mesa atravancada de seones, bolos, manteiga e marmelada, chá e leite e um pote de mel. Também cheirava fortemente a eglefim.

- Oh, Gibson, estamos mesmo a incomodar...

- De maneira nenhuma, de maneira nenhuma...

Estendeu-me a mão, que eu apertei, sentindo-lhe a pele seca e áspera como casca de uma árvore com muitos anos. Sem o costumeiro chapéu de pano, tinha um ar estranho e desconhecido, qual polícia vulnerável sem o seu boné, a velha cabeça protegida apenas por umas quantas farripas de cabelo branco. Apercebi-me então que, de entre todos os amigos que eu tinha em Elvie, ele era o único que envelhecera verdadeiramente. Tinha os olhos esmaecidos e as pestanas brancas. Estava mais magro e encurvado, a sua voz soava agora sem profundidade.

- É verdade, cá ouvimos falar que estava de volta a casa. - Voltou-se para Sinclair, que nos seguira até à pequena sala excessivamente cheia. - E o Sinclair também.

- Como está, Gibson?

Mrs. Gibson seguiu-nos, toda atarefada, e dispôs-nos pela sala, a seu contento.

- Ele está apenas a tomar o seu chá, Sinclair, mas pode sentar-se à vontade ao lado dele. E a Jane acomode-se aqui, perto do fogo, onde está mais quentinho...

Obedeci, ficando tão perto do lume que receei assar.

- Quer uma chávena de chá?

- Sim, com muito gosto.

- E coma qualquer coisa.

Dirigiu-se para a cozinha, apoiando, de passagem, a mão no ombro do marido para o obrigar a sentar.

- Senta-te, querido e acaba o teu eglefim. Jane, não é cerimônia...

- Claro que não, faça favor de terminar.

Mas Gibson declarou que já estava cheio e a mulher tirou-lhe rapidamente o prato, como se contivesse algo de impróprio, indo, a seguir, encher a chaleira. Sinclair trouxe uma cadeira do outro lado da saleta e sentou-se no outro lado da mesa, voltado para Gibson, tendo na sua frente o prato de bolo aquecido eletricamente. Puxou dos cigarros, ofereceu um a Gibson, serviu-se a si próprio e depois inclinou-se para acender o primeiro.

- Como tem passado? - perguntou.

- Ora, não tenho estado mau de todo... o Verão é que tem sido quente e seco. Ouvi dizer que hoje andou aos pombos, que tal foi?

Conversaram e eu escutei o que diziam, e o vê-los assim, o homem jovem e forte e o idoso, era com dificuldade que me recordava de que, em tempos idos, Gibson fora o único homem que o gaiato Sinclair respeitava de verdade.

Mrs. Gibson voltou com duas chávenas na mão - as melhores que tinha, percebi - e, colocando-as em cima da mesa, serviu o chá, oferecendo-nos scones, biscoitos com cobertura de açúcar e bolos fofos e quebradiços, tudo delicadamente recusado. Depois, ela mesma instalou-se à mesa, no lado oposto ao da lareira, e tagarelamos tranqüilamente; perguntou, mais uma vez, pelo meu pai e eu respondi; depois, quando foi a minha vez de lhe pedir notícias dos filhos, disse-me que Hamish estava na tropa, mas George conseguira entrar para a Universidade de Aberdeen, onde estudava Direito.

Fiquei impressionada.

- Mas isso é maravilhoso! Nunca pensei que fosse tão inteligente!

- Foi sempre um rapaz muito trabalhador... com grande jeito para os livros.

- Quer dizer que nem Hamish nem George seguiram a profissão do pai.

- Ora, agora os novos querem outras coisas. Não estão para passar a vida nas colinas quer faça sol ou chuva... É demasiado pacato para eles. E repare, não os censuro. Hoje em dia, não é vida para um rapaz novo e, apesar de termos conseguido criá-los menos mal, hoje em dia o dinheiro que esta vida dá não chega. Não quando podem ganhar três vezes mais a trabalhar na cidade, numa fábrica ou num escritório.

- Gibson importa-se?

- Não - respondeu Mrs. Gibson, olhando enternecidamente para o marido que, no entanto, estava demasiado entretido com Sinclair para reparar.

- Não, ele quis sempre que os filhos fizessem o que tinham na vontade e se saíssem bem. Encorajou Georgie a ir até ao fim... e repare - acrescentou, citando inconscientemente Barrie -, não há nada que chegue a uma boa educação.

- Tem aí fotografias deles? Adoraria ver como estão agora.

Levantou-se apressadamente e ouvi-a subir as pequenas escadas com passos pesados e arrastados, em seguida atravessar o piso de madeira do quarto de cima. Atrás de mim, Gibson dizia:

- Repare, as cercas antigas não estão nada mal... foram construídas para durar... têm é um bocado de vegetação a mais.

- E os pássaros?

- Há-os com fartura. Olhe, na Primavera, apanhei um par de raposas mais as crias.

- E quanto às vacas?

- Tenho-as mantido boas. E a urze está ótima, foi bem queimada no princípio da temporada...

- Não acha que já é de mais para as suas forças?

- Ora, ainda estou suficientemente em forma.

- A minha avó disse que o Inverno passado esteve uma semana ou duas de cama.

- Foi só um ataque de gripe. O médico deu-me um xarope que me pôs logo fino... há que não dar ouvidos às mulheres...

Mrs. Gibson, que ia a entrar nesse instante com as fotografias, ouviu o final da frase.

- Que têm as mulheres?

- Não passam de um bando de galinhas velhas - retorquiu-lhe o marido. - A fazerem um chinfrim dos diabos por causa de uma gripe de nada...

- Ah, não foi assim tão leve como dizes... e tive de o obrigar a ficar na cama uns tempos - acrescentou, especialmente para Sinclair.

Entregou-me as fotografias e insistiu sobre o mesmo assunto.

- Queria que ele tirasse umas radiografias, mas ele nem quer ouvir falar nisso.

- Devia fazê-lo, Gibson.

- Ora, não tenho tempo para ir a Inverness por uma tolice dessas...

E, como que farto de tanta conversa sobre a sua saúde e desejando mudar de assunto, virou a cadeira na minha direção e espreitou por cima do meu ombro, olhando também para as fotografias dos filhos que eu segurava: Hamish, vestido de cabo, nos Camarões, de aspecto robusto, e George, em pose formal para um fotógrafo profissional.

- A minha mulher já lhe disse que Georgie está na universidade, não disse? Já vai no terceiro ano e será advogado. Lembra-se de quando ele a ajudou na construção da sua casa na árvore?

- Sim, ainda lá está. Conseguiu agüentar-se todo este tempo.

- Tudo aquilo em que Georgie ponha a mão fica bem feito. É um rapaz às direitas.

Ficamos a tagarelar mais um pouco até que, a certa altura, Sinclair empurrou a cadeira para trás e levantou-se, dizendo que eram horas de nos retirarmos. Os Gibson acompanharam-nos até à porta e os cães, ao ouvirem novamente vozes, desataram a ladrar, pelo que nos dirigimos ao canil a fim de vê-los. Eram duas cadelas, uma preta e a outra castanho-dourada. Esta última tinha uma pelagem macia, uma expressão meiga e os olhos amendoados.

Observei:

- Faz lembrar a Sofia Loren.

- Ah, é verdade - disse Gibson. - É esplêndida... Agora está com o cio, de modo que amanhã vou levá-la a Braemar. Há lá um indivíduo que também tem um belo cão. Pensei em arranjar uma ninhada jeitosa.

Sinclair ergueu os sobrolhos.

- Vai de manhã? A que horas?

- Devo sair daqui por volta das nove.

- Qual é a previsão do tempo? Que tipo de dia vamos ter?

- Parece que esta noite vai ser um bocado ventosa, vamos ver se leva toda esta sujidade. Anunciam bom tempo para o fim-de-semana.

Sinclair virou-se para mim, sorrindo.

- Que dizes?

Estivera a fazer festas aos cães e mal escutara a conversa.

- Hen?

- Gibson vai a Braemar amanhã de manhã. Podíamos apanhar boleia dele e depois voltarmos para casa a pé pelo Lairig... - Voltou-se novamente para Gibson. - Poderia passar por Rothiemurchus ao fim da tarde para nos trazer?

- Ah, mas claro que posso. A que horas lhes convinha?

Sinclair refletiu.

- Por volta das seis está bem? Nessa altura já lá devemos estar. - Olhou de novo para mim. - Que achas tu, Jane?

Nunca atravessara o Lairig Ghru. Nos velhos tempos, quando era Verão, havia sempre alguém de Elvie que o fazia e eu sempre sentira vontade de ir, mas nunca me incluíam no grupo porque as minhas pernas não eram consideradas suficientemente compridas. Mas agora...

Olhei para o céu. A manhã cheia de nuvens não chegara a clarear e, à medida que o dia ia caminhando para o fim, começara a pairar uma névoa ligeira.

- Irá mesmo fazer um dia bonito amanhã?

- Oh, sem dúvida, e muito quente.

A opinião de Gibson era quanto bastava.

- A idéia agrada-me. Adoraria.

- Bom, então está combinado. às nove horas lá em casa, está bem?

- Lá estarei - prometeu Gibson.

Agradecemos-lhe o chá e pusemo-nos a caminho, descendo a colina e seguindo pela estrada molhada em direção a Elvie. O ar estava pesado de tanta umidade e, por baixo das faias acobreadas, fazia muito escuro. De súbito, senti-me deprimida. Quisera que nada tivesse mudado... que Elvie permanecesse tal qual o recordava, mas ver Gibson tão envelhecido despertara-me desagradavelmente para a realidade. Disse que estivera doente. Um dia morreria. E a idéia da morte, naquele momento em que não era dia nem noite, fez-me estremecer.

Sinclair perguntou:

- Tens frio?

- Estou bem. Tem sido um dia cansativo.

- Tens a certeza de que queres ir amanhã? É muito tempo a pé.

- Sim, claro que quero ir. - Bocejei. - Teremos de pedir a Mistress Lumley que nos prepare o lanche para um piquenique.

Saímos de debaixo das faias e a fachada imponente da casa, voltada a norte, surgiu diante de nós, recortada contra o céu que se ia tornando progressivamente escuro. O lusco-fusco azulado deixava entrever uma única luz acesa, que lançava um brilho amarelado. E eu resolvi que, antes do jantar, tomaria um banho quente para afastar aquela sensação de frio e esmorecimento.

 

Tinha razão. Mergulhada na macia água escocesa, dormitei. Ainda era cedo e, portanto, fui buscar uma botija de água quente ao armário da casa de banho, enchi-a com a água da banheira e fui para a cama durante uma hora, deixando-me ficar deitada, no meio da escuridão, com as cortinas corridas para o lado e escutando o roncar e grasnar incessante dos gansos selvagens.

Depois, voltei a vestir-me e, com a idéia imprecisa de transformar a minha primeira noite em casa numa ocasião inesquecível, dei-me ao trabalho de levantar o cabelo e aplicar toda a espécie de artifício aos meus olhos. Então, tirei a única fatiota de maior cerimônia que tinha, uma túnica de seda pesada em preto e dourado, toda ela bordada e debruada neste último tom, que o meu pai descobrira numa obscura loja chinesa de uma artéria secundária de São Francisco e à qual fora incapaz de resistir.

Dava-me um aspecto extremamente régio. Pus os brincos, perfumei-me ao de leve e desci. Era cedo, mas eu fizera de propósito. Quando estivera deitada na cama, traçara um plano e queria ter o lugar por minha conta.

A sala de estar da minha avó, preparada para a noite, tinha o impacto visual encantador de um cenário de palco. Os cortinados de veludo tinham sido corridos para ocultar a escuridão que reinava no exterior, as almofadas ajeitadas, as revistas endireitadas e a lareira avivada. A divisão era suavemente iluminada por dois candeeiros e a luz projetada pelas chamas refletia-se no guarda-fogo e no recipiente do carvão, assim como nas superfícies de madeira delicadamente polidas que havia em profusão por toda a sala. Havia flores com fartura, cigarreiras cheias e a mesinha que fazia de bar encontrava-se equipada com garrafas e copos impecavelmente alinhados, um balde de gelo e um pratinho com nozes.

No outro extremo da sala, ao lado da lareira, erguia-se um armário arqueado, com prateleiras de livros atrás de portas de vidro e, em baixo, três pesadas gavetas. Aproximei-me dele e, afastando uma mesinha à minha frente, ajoelhei-me para abrir a última gaveta. Um dos puxadores quebrara-se e, como o peso era muito, tive de fazer muita força e precisamente no momento em que alguém abria a porta e entrava. Sentindo-me frustrada, praguejei de mim para mim, mas não tive tempo de me levantar antes de ouvir uma voz nas minhas costas:

- Boa noite.

Era David Stewart. Olhei para trás e vi-o perto de mim, achando-o inesperadamente romântico no seu smoking azul-escuro.

Fiquei demasiado surpreendida para me lembrar de delicadezas.

- Esqueci-me por completo de que vinha jantar.

- Receio ter chegado um pouco cedo de mais. Como não vi ninguém por perto, resolvi tomar a iniciativa de entrar. Que está a fazer? A procura de algum brinco ou a jogar às escondidas?

- Nem uma coisa nem outra. Estou a tentar abrir esta gaveta.

- Com que finalidade?

- Costumava estar cheia de álbuns de fotografias. A julgar pelo peso, ainda lá devem continuar.

- Deixe-me tentar.

Afastei-me obedientemente para o lado e vi-o dobrar os joelhos, pegar nos dois puxadores e puxar suavemente a gaveta.

- Não parece nada difícil - observei -, quando é outra pessoa a fazê-lo.

- Encontrou o que procurava?

- Precisamente. Eram três álbuns, velhos, supercheios e pesadíssimos.

- Tenciona iniciar uma longa sessão de nostalgia? Esta quantidade deve dar-lhe para o resto do serão.

- Não, claro que não. Mas quero ver se descubro uma fotografia do pai de Sinclair... creio que deverá estar numa de grupo, tirada num casamento.

Houve um pequeno silêncio. Depois:

- Porquê esse interesse súbito de encontrar uma fotografia de Aylwyn Bailey?

- Bem pode parecer ridículo, mas o certo é que nunca vi nenhuma. A minha avó nunca as tem por aí à vista. Creio que nem sequer no quarto tem alguma... não me lembro de a ver. Curioso, não acha?

- Não necessariamente. Não quando se sabe como ela é.

Resolvi fazer-lhe confidências.

- Hoje estivemos a falar dele. Ela disse que se parecia com Sinclair e que fora um encanto de pessoa. Afirmou que lhe bastava entrar numa sala para que as mulheres presentes lhe ficassem rendidas. Nunca lhe prestei grande atenção quando era pequena... ele era, simplesmente, o pai de Sinclair que estava no Canadá. Mas... não sei... de repente, senti curiosidade.

Peguei no primeiro álbum e abri-o, porém datava de apenas há dez anos e, portanto, fui até ao fundo da gaveta e tirei o último. Era um belo exemplar, encadernado a couro, e todas as fotografias - agora esbatidas e, na grande maioria, a preto e branco - tinham sido colocadas com precisão geométrica e rotuladas com tinta branca.

Folheei as páginas. Havia fotografias de caçadas e piqueniques em grupo, fotografias de estúdio, completadas com telas de fundo pintadas e palmeiras envasadas. Também encontrei uma rapariga enfeitada de plumas e uma menina de meias pretas (a minha mãe) mascarada de cigana.

Depois apareceu um grupo de casamento.

- Cá está - declarei.

Aparecia a minha avó, de turbante de veludo verde e vestido comprido; a minha mãe, a sorrir alegremente, como que decidida a parecer muito divertida; o meu pai, jovem e magro, de cara barbeada e com uma expressão sofrida, provavelmente por ter o colarinho demasiado apertado; uma criança que eu não conhecia a fazer de dama de honra e, por fim, os noivos. Tratava-se de Silvia e Aylwyn, de rostos roliços e curiosamente intocados por qualquer tipo de experiência. Silvia com a boca pequena pintada de vermelho-escuro e Aylwyn a sorrir, de forma especial, para a máquina fotográfica, os olhos amendoados a darem a entender que achava toda aquela situação a mais encantadora das brincadeiras.

- Então? - perguntou David finalmente.

- A minha avó tinha razão... é tal e qual Sinclair... tem apenas o cabelo mais curto e cortado de forma diferente e talvez não seja tão alto. E Silvia - não gostara muito dela - deixou-o ainda só estavam casados há um ano. Sabia?

- Sim, sabia.

- Foi por essa razão que Sinclair ficou em Elvie. Que está a fazer?

David enfiara a mão no fundo da gaveta e tateava mais para os cantos.

-Estão aqui mais algumas - observou, retirando uma pilha de fotografias que fora guardada bem no fundo, em recesso mais inacessível.

- De quem são? - inquiri, pousando o álbum que estivera a folhear.

David voltou-se ao contrário.

- É outro casamento. Diria que é da sua avó.

Aylwyn caiu no esquecimento.

- Oh, deixe-mas ver.

Voltávamos agora aos tempos da Primeira Guerra Mundial, às saias compridas e bem justas na barra e aos chapéus enormes. O grupo posava sentado em cadeiras colocadas em semicírculo, como se fossem membros da realeza; colarinhos altos, casacas com abas de grilo e expressões de grande solenidade nos rostos. A minha avó era a jovem noiva, de seios fartos, envolta em rendas, o novo marido pouco mais velho que ela e com o mesmo sorriso divertido e alegre que nem as roupas sombrias e o bigode farto conseguiam disfarçar.

Observei:

- Repare, ele parece feliz.

- Penso que devia ser assim que se sentia.

- E quem é este indivíduo de bigodes e saia escocesa?

David espreitou por cima do meu ombro.

- Provavelmente, o pai do noivo. Não tem um ar esplêndido?

- Quem era?

- Segundo creio, uma personalidade eminente.

Autodenominava-se de Bailey de Cairneyhall, uma família antiga das redondezas e consta que ele costumava dar-se grandes ares e refinamentos, apesar de não ter um tostão de seu.

- E o pai da minha avó?

- Imagino que seja esse senhor de aparência imponente. Mas era uma pessoa bem diferente. Trabalhava como corretor em Edimburgo. Fez muito dinheiro e morreu rico. E a sua avó - acrescentou em tom profissional - foi sua filha única.

- Quer dizer... herdou tudo.

- Pode dizê-lo.

Mirei novamente a fotografia, os rostos solenes e desconhecidos daqueles que tinham sido os meus antepassados, as pessoas que me tinham feito, com todos os meus defeitos e pequenos talentos, dando-me as feições que tinha, as sardas e o cabelo louro nórdico.

- Nunca ouvi sequer falar de Cairneyhall.

- Dificilmente ouviria. Foi tão negligenciado e estava de tal maneira em ruínas que acabou por ser deitado abaixo.

- Quer dizer que a minha avó nunca viveu lá?

- Penso que ainda o fez durante um ano ou dois, presumivelmente no maior desconforto. Mas quando o marido morreu, mudou-se para esta parte do mundo, comprou Elvie e trouxe os filhos para aqui.

- Portanto...

Calei-me. Dei-me então conta de que, sem sequer ter refletido muito no assunto, sempre achara que a minha avó, ainda que não tivesse herdado exatamente uma "grande fortuna", pelo menos ficara muito bem de vida. Mas, agora, parecia que não fora bem assim. Elvie, e tudo o que Elvie continha, chegara às suas mãos por via da sua própria família, pertencia-lhe exclusivamente. E que o fato não tivera a mínima relação com o seu casamento com o pai de Aylwyn.

David observava-me.

- E então? - perguntou suavemente.

- Nada.

Sentia-me embaraçada. Tudo quanto dizia respeito a dinheiro deixava-me constrangida, característica que herdara do meu pai, pelo que mudei rapidamente de assunto.

- Já agora, diga-me, por que motivo está tão a par da vida de todos eles?

- Porque cuido dos assuntos da família.

- Compreendo.

David fechou o álbum de fotografias.

- Talvez seja melhor guardarmos tudo...

- Sim, com certeza. E, David... não quero que a minha avó saiba que andei a dirigir-lhe todas estas perguntas.

- Não direi uma palavra.

Colocamos novamente os álbuns e as fotografias onde as tínhamos encontrado e fechamos a gaveta. Desviei a mesinha para o sítio onde estivera previamente, depois aproximei-me da lareira e puxei de um cigarro, que acendi com uma lasca de madeira incandescente. Ao endireitar-me, reparei que David observava-me. Sem mais nem porquê, disse-me:

- Está muito bonita. Não há dúvida de que se enquadra muito bem na Escócia.

Retorqui "Obrigada", como ensinam a fazer às meninas bem-educadas na América quando recebem um elogio. As inglesas dizem frases do gênero "Oh, não diga isso, estou uma desgraça", ou "Como pode gostar deste vestido? É um horror", que eu tenho a certeza de serem verdadeiramente desencorajantes.

Então, como tive um autêntico ataque de timidez e precisava de algo que desviasse a atenção, sugeri preparar-lhe uma bebida, ao que David respondeu que, na Escócia, serviam-se bebidas, não se preparavam.

- Com os Martinis não é assim - insisti. - Só se pode servir um Martini depois de preparado. Não faz sentido.

- Tem razão. Quer um Martini?

Fiquei indecisa.

- Sabe prepará-los?

- Penso que sim.

- O meu pai diz que na Grã-Bretanha só há dois homens capazes de preparar um Martini e que um deles é ele.

- Nesse caso, eu devo ser o outro. Acercou-se da mesinha que fazia de bar e serviu-se das garrafas, adicionando gelo e tiras de casca de limão. Perguntou:

- Com que se entreteve hoje? Contei-lhe tudo o que se passara até ao momento do banho quente e do bocado passado na cama, e a seguir observei:

- Mas nem lhe passa pela cabeça o que tenho combinado para amanhã.

- Não, não faço idéia. Diga-me.

- Sinclair e eu vamos atravessar o Lairig Ghrti a pé.

David mostrou-se gratificantemente impressionado.

- A sério?

- Sim, de verdade. Gibson dá-nos boleia até Braemar e depois vai buscar-nos a Rothiemurchus ao fim da tarde.

- Como vai estar o tempo amanhã?

- Gibson afiança que estará ótimo. Diz que o vento levará toda esta névoa e que fará "muito calor".

Observei-o, apreciando as mãos morenas, o cabelo impecavelmente penteado e os ombros largos que se adivinhavam por baixo do veludo azul macio. Obedecendo a um impulso, sugeri:

- Também podia vir...

David atravessou a sala, trazendo nas mãos os dois copos contendo as bebidas de tonalidade dourada, às quais juntara gelo.

- Teria imenso gosto, mas amanhã espera-me um dia cheio de trabalho.

Peguei no copo que me era destinado e retorqui:

- Então fica para outra ocasião.

- Sim, depois se verá.

Sorrimos, fizemos um brinde e bebemos. O Martini estava delicioso, gelado e suficientemente forte para subir à cabeça. Observei:

- Escreverei ao meu pai a dizer que encontrei o tal outro especialista na preparação de Martinis. - Depois lembrei-me de outra questão. - David, tenho de arranjar outro tipo de roupas o mais depressa possível...

David não mostrou dificuldade em se adaptar à mudança brusca de assunto.

- Que tipo de roupas?

- Das que são próprias para usar na Escócia, como camisolas, por exemplo. Tenho o dinheiro que o meu pai me deu, mas são notas de dólar. Seria possível cambiar-mas?

- Sim, com certeza, mas onde tenciona fazer as suas compras? Caple Bridge não é propriamente o centro da moda do Norte.

- Estou mais interessada em que aqueçam do que em estarem na moda.

- Nesse caso, penso que não haverá problema. Quando pretende fazer as suas compras?

- Pode ser no sábado?

- Sabe guiar o carro da sua avó?

- Sei, mas não estou autorizada a fazê-lo. A minha carta de condução não é inglesa... mas não importa. Apanharei a camioneta...

- Muito bem. Nesse caso, vá ter ao escritório - dou-lhe depois a morada - e entregar-lhe-ei então o dinheiro. E, depois de se munir de toda a lã de que precisa, se não tiver nada de mais interessante para fazer, convido-a para almoçar.

- Convida? - Fora apanhada de surpresa, mas sentia-me encantada. - Onde?

David coçou pensativamente a nuca.

- Na verdade, não temos muito por onde escolher. Ou no Crimond Arms ou em minha casa, onde a empregada não vai aos sábados.

Sugeri:

- Posso cozinhar. Você compra qualquer coisa e eu preparo tudo. Além disso, gostaria de conhecer o lugar onde vive.

- Não tem muito de interessante.

Mas eu apercebi-me de que, não obstante, sentia-me razoavelmente interessada. Sempre achara que só se poderia conhecer bem um homem depois de ver a sua casa, os seus livros, quadros e a maneira como dispunha a mobília. David, durante todo o tempo em que estivera na Califórnia e na viagem de regresso a Inglaterra que empreendêramos juntos, mostrara-se delicado e simpático, mas apresentara-me apenas a faceta correta e profissional da sua personalidade. Todavia, naquele instante, já me ajudara a encontrar a fotografia que eu procurava e respondera, com grande paciência, a todas as minhas perguntas, convidando-me, por fim, para almoçar. Compreendi que era uma pessoa com muito mais interesse do que eu calculara a princípio e era imensamente gratificante imaginar que talvez ele nutrisse os mesmos sentimentos em relação a mim.

Quando o jantar chegou ao fim, senti-me dominar, mais uma vez, pela fadiga, diferença de fusos horários ou o que quer que lhe chamem, de modo que, desculpando-me com a energia de que iria precisar no dia seguinte, dei as boas-noites aos presentes e fui para a cama, onde adormeci imediata e profundamente.

Acordei, algum tempo depois, com o som do vento que Gibson nos prometera, a cutucar a casa, assobiando por baixo da porta do meu quarto, agitando as águas do lago e levando-as a formar pequenas ondas que iam quebrar-se e morrer no cascalho das margens. Mas, sobrepondo-se aos ruídos da noite, ouvi vozes.

Peguei no relógio e vi que ainda não era meia-noite, voltando a ficar de ouvido à escuta. As vozes tornaram-se mais nítidas e percebi que eram da minha avó e de Sinclair e que estes se encontravam no relvado que se estendia mesmo por baixo do meu quarto, tendo saído, sem dúvida, para levar os cães a dar um passeio pelo jardim antes de fecharem a casa para a noite.

- Achei que envelheceu bastante.

Era a voz de Sinclair.

- Sim, mas que se há-de fazer?

- É despachá-lo com uma pensão. Arranjar outro homem.

- Mas para onde iriam? Não é como se tivessem um dos filhos casados, para casa de quem pudessem ir. Além disso, ele vive aqui há quase cinqüenta anos... tanto quanto eu. Não posso mandá-lo embora só porque envelheceu. Seja como for, sem nada que fazer não sobreviveria mais de dois meses.

Apercebi-me, com uma sensação desagradável, de que falavam de Gibson.

- Mas ele já não é capaz de dar conta deste trabalho específico.

- Mas em que te baseias para fazer semelhante afirmação?

- Salta à vista. Já não tem idade para a tarefa pela qual é responsável.

- Na minha opinião, Gibson ainda está perfeitamente capaz de cumprir as suas obrigações. Também não pretendemos que dirija uma série de coutadas de caça de grande envergadura. A associação é...

Sinclair interrompeu-a.

- Esse é outro dos problemas. É completamente impraticável deixar uma coutada de caça esplêndida como esta nas mãos de um ou dois comerciantes locais de Caple Bridge. O que eles pagam nem sequer chega para custear a manutenção de Gibson.

- Acontece, Sinclair, que esses comerciantes locais a que te referes são meus amigos.

- Isso não tem nada a ver com a questão. Na minha opinião, dá a impressão de que dirigimos uma espécie de instituição de caridade.

Houve uma pausa e, a seguir, a minha avó corrigiu-o friamente.

- Eu dirijo uma espécie de instituição de caridade. - A frieza que se notava na sua voz ter-me-ia calado, porém Sinclair pareceu ser-lhe indiferente e eu perguntei a mim mesma até que ponto a sua coragem não se deveria à sua costela holandesa, fortalecida pelos conhaques que se seguiram à sobremesa.

- Sendo assim - declarou Sinclair -, sugiro-lhe que acabe com essa situação. Imediatamente. Mande embora Gibson com uma pensão e venda a coutada de caça, ou, pelo menos, ceda-a a uma associação que possa pagar uma renda razoável...

- Já te disse que...

As vozes diluíram-se à distância. Haviam-se afastado no seu passeio, continuando a discutir acesamente; deram a volta à casa e deixei de os poder ouvir. Reparei que ficara rígida, na minha cama, infelicíssima por ter sido forçada a escutar o que, obviamente, não se destinava aos meus ouvidos. A idéia dos dois a discutir deixava-me doente, mas pior ainda era o motivo da divergência de opiniões.

Gibson. Lembrei-me dele como era antigamente, forte e incansável, além de ser um manancial de sabedoria e conhecimento de tudo o que se relacionava com a vida rural. Recordei-o, infinitamente paciente, ensinando Sinclair a atirar e a pescar, respondendo a perguntas, suportando-nos permanentemente atrás dos seus calcanhares como dois cachorros. E Mrs. Gibson, que tanto nos acarinhara e estragara de mimos, comprando-nos rebuçados e oferecendo-nos scones acabados de fazer no seu forno, ensopados pela excelente manteiga amarela que ela própria preparava.

Era impossível conciliar o passado com o presente - o Gibson de que me recordava e o velho que naquele dia vira. E ainda mais doloroso se tornava perceber que era o meu primo Sinclair que falava de maneira tão fria e desprendida do afastamento compulsivo de Gibson, como se este não passasse de um cão velho e fedorento e tivesse chegado o momento de o abater sem dó nem piedade.

 

Despertei novamente, arrancada das profundezas do sono por algum alarme do subconsciente. Sabia que o dia já nascera.

Espreguicei-me, abri os olhos e vi um homem aos pés da minha cama, a observar-me friamente. Deixei escapar um gemido de susto e ergui-me com o coração a bater violentamente. Mas era apenas Sinclair que fora acordar-me.

- São oito horas - disse ele. - Temos de sair às nove.

Sentei-me, esfregando os olhos para espantar o sono e ganhar tempo para que a adrenalina segregada pelo pânico sentido se diluísse nas minhas veias.

- Pregaste-me um susto pavoroso.

- Desculpa, não era minha intenção... queria apenas acordar-te...

Voltei a olhar para cima e dessa vez não vi qualquer ameaça, unicamente a figura familiar do meu primo, de braços cruzados aos pés da cama, com uma expressão divertida a dançar-lhe nos olhos amendoados. Envergava uma saia escocesa de tons esmaecidos e uma camisola canelada larga, tendo um lenço amarrado ao pescoço. Com uma aparência limpa e fresca, cheirava agradavelmente à loção para a barba que aplicara no rosto.

Pus-me de joelhos sobre a cama e abri a janela para ver como estava o dia. Estava perfeito, brilhante, límpido, frio, e no céu não se via uma nuvem. Observei, indecisa:

- Gibson tinha razão.

- Claro que tinha. Sempre acertou. Ouviste o vento ontem à noite? E caiu geada, não tarda que as árvores fiquem despidas.

O lago, refletindo o azul do céu, estava pontilhado de pequenas formações de espuma branca e as montanhas do outro lado, agora libertas da névoa que as envolvera, viam-se já com perfeita nitidez, exibindo vastas áreas de urze cor de púrpura, e o ar cristalino da manhã permitia-me detectar todas as rochas, fendas e concavidades que iam dar aos seus cumes proeminentes.

Era impossível não se ficar extasiado com tal dia. As incertezas da noite tinham desaparecido juntamente com a escuridão. Ouvira algo que não se destinava ao meu conhecimento. Mas, à luz límpida da manhã, parecia perfeitamente possível que tivesse ouvido mal, que fosse confusão minha. Afinal de contas, não escutara o princípio da discussão, nem o fim... E estando de posse apenas de parte dos fatos, era errado da minha parte tirar qualquer espécie de conclusão.

O alívio que senti por tão facilmente me ter libertado das minhas preocupações proporcionou-me uma sensação enorme de felicidade. Saltei para fora da cama e fui, em camisa de dormir, buscar a roupa, enquanto Sinclair, cumprida a sua missão, descia para começar a tomar o pequeno-almoço.

Comemos na cozinha que o fogão a lenha tornava quente e acolhedora. Mrs. Lumley fritara salsichas e eu comi quatro, bebendo também duas chávenas almoçadeiras de café; a seguir, fui à procura de uma mochila velha, que enchemos com o que iria ser o nosso almoço: sanduíches, chocolates, maçãs e queijo.

- Querem levar um termo? - perguntou Mrs. Lumley.

- Não - respondeu Sinclair, ainda a empanturrar-se de torradas com geléia. - Mas ponha duas chávenas de plástico, para podermos beber água do rio.

Ouvimos um carro apitar em frente da casa e, então, Gibson apareceu à porta das traseiras. Trazia o seu velho fato largueirão de tweed esverdeado e os calções enormes presos à altura dos joelhos, que deixavam ver as pernas escanzeladas. Na cabeça trazia o chapéu de pano que sempre lhe conhecêramos.

- Estão prontos? - perguntou, sem esperar, nitidamente, que assim fosse.

No entanto, estávamos. Agarramos nos blusões impermeáveis e na mochila de provisões, despedimo-nos de Mrs. Lumley e saímos para o meio daquela manhã gloriosa. Sentia o ar gelado penetrar-me nas narinas e abrir caminho até aos meus pulmões, dando-me uma sensação de vitalidade imensa.

- Mas não é que estamos cheios de sorte? - exclamei extasiada. - Está um dia magnífico!

E Gibson acrescentou:

- Não está mal.

O que, por se tratar de um escocês, era o comentário mais entusiástico que poderia tecer.

Subimos todos para o Land Rover. Havia lugar para os três no banco da frente, mas como a cadela de Gibson parecia nervosa e a precisar de companhia, preferi ir junto dela, no de trás. A princípio, ganiu e mostrou-se agitada e pouco à vontade, mas passado pouco tempo habituou-se aos solavancos do carro e deitou-se a dormir, com a cabeça macia e aveludada apoiada sobre um dos meus pés.

Gibson seguiu por Tomintoul para chegar a Braemar, virando para sul pelas montanhas e começando a descer pelo vale dourado e cheio de sol do Dee. Eram quase onze da manhã. O rio apresentava um caudal farto, profundo e límpido como vidro acastanhado, serpenteando por entre campos, terra cultivada e vastos aglomerados de altos pinheiros escoceses. Ao chegarmos a Braemar, atravessamos a vila saindo pelo outro extremo, seguindo em frente durante cerca de mais quatro quilômetros e meio, até chegarmos à ponte que atravessa o rio e vai dar ao mar Lodge.

Aí chegados, paramos e saímos todos; enquanto a cadela desentorpecia as pernas, Gibson foi buscar a chave dos portões que davam acesso à floresta.

Depois fomos todos até ao bar, onde Sinclair e Gibson tomaram uma cerveja e eu bebi um copo de sidra.

- Falta muito? - quis saber.

- Mais uns quatro quilômetros e tal - disse-me Gibson. Mas a estrada é muito má, mais vale que vá na frente conosco.

Portanto, deixei a cadela sozinha no banco traseiro e sentei-me à frente, entre os dois homens, verificando que a estrada mal merecia tal designação, parecendo-se antes com uma trilha aberta a buildozer, utilizada pela Guarda Florestal. De vez em quando, passávamos por um grupo de trabalhadores florestais, que utilizavam enormes serras de cadeia e tratores. Dissemos-lhes adeus e eles acenaram-nos em resposta, havendo mesmo alturas em que tiveram de fazer recuar os enormes caminhões para fora da trilha a fim de podermos passar. O ar tresandava a pinheiro e, finalmente, quando chegamos à pequena cabana que é utilizada por alpinistas e excursões de fim-de-semana e nos apeamos, com o corpo dorido da viagem, reinava a quietude mais completa. à nossa volta estendiam-se as florestas, a charneca e as montanhas, e o silêncio só era quebrado pelo marulhar de um modesto curso de água distante e pelo rumorejar das copas dos pinheiros lá no alto.

- Encontramo-nos em Loch Morlick - disse Gibson. - Acham que conseguem lá estar por volta das seis da tarde?

- Se não nos vir, espere por nós. E se a noite cair sem aparecermos, chame a Brigada de Salvamento da Montanha - respondeu Sinclair, sorrindo. - Não nos afastaremos do trilho, portanto não será difícil darem conosco.

- Não torça nenhum tornozelo - advertiu Gibson, dirigindo-se a mim. - E tenham um bom dia.

Retorquimos que faríamos por isso. Ficamos a vê-lo voltar para o carro, virar e afastar-se pelo mesmo caminho por onde viéramos. O som do motor morreu à distância, diluindo-se na imensidão da manhã. Ergui os olhos para o céu e pensei, não pela primeira vez, que a Escócia parece possuir mais céu do que lhe caberia em comparação com outros países... este estende-se, eleva-se e parece não ter fim. Um par de maçaricos voou por cima das nossas cabeças e chegou até nós, vindo de longe, o balir de carneiros. Sinclair fitou-me, sorrindo. Sugeriu:

- Vamos?

Pusemo-nos a caminho, indo Sinclair à frente, eu atrás, por um carreiro que se estendia paralelamente a um riacho que corria impetuosamente pelo leito profundamente escavado. Chegamos a um redil de gado isolado, que era delimitado por um cercado de madeira, e apareceu um cão a ladrar-nos; passamos pela quinta e continuamos em frente, pelo que o cão retirou-se para a sua casota e o silêncio fez-se sentir novamente. De vez em quando, apareciam-nos no caminho pequenas manchas coloridas, campainhas de flores azuis, enormes cardos purpurinos e a coloração escura mordente da urze, onde zumbiam abelhas. O sol subia no céu, de modo que despimos as camisolas e amarramo-las à cintura, começando a subir a colina por entre árvores, enquanto Sinclair, na minha frente, deitava a assobiar. Reconheci a toada: "Mairi's Wedding"; havíamo-la cantado em crianças, depois do lanche, na sala de estar, com a avó a acompanhar ao piano.

"Cá vamos, cantando e rindo, Pé a pé, passo a passo, De braço dado e em fila Todos ao casamento de Maria”.

Chegamos a uma ponte e a uma queda de água não sendo esta castanha mas sim verde, de um verde-jade, precipitando-se do cimo de uma altura de cerca de seis metros ou mais para uma reentrância rochosa clara. Detivemo-nos na ponte a observar o arco de água brilhante como uma jóia, que o sol tornava translúcido e plúmbeo, encurvando-se até ao receptáculo borbulhante e envolto num arco-íris em miniatura. Eu nunca vira nada tão belo. Tentando sobrepor a minha voz ao trovejar da água, perguntei:

- Por que tem aquela cor? Por que não é castanha?

Sinclair respondeu-me que era pelo fato de a água brotar a pique do cimo de rochas calcárias, não se maculando, deste modo, com a turfa. Ficamos ali durante um bocado, até eu dizer que não tínhamos tempo a perder e devíamos continuar o nosso caminho.

Para ajudar a caminhada, cantarolamos novamente, desafiando-nos um ao outro a relembrar as letras. Cantamos "The Road to the Isles", "Westering Home" e "Come Along", que é a melhor marcha de sempre; foi nessa altura que o nosso caminho começou a subir, passando pelo topo de uma saliência montanhosa alta, pelo que paramos de cantar porque necessitávamos de todo o nosso fôlego. O solo estava repleto de velhas raízes de urze e muito lamacento e cada passada minha fazia saltar lama escura. As pernas começaram a doer-me, assim como as costas; dei-me conta de que me custava a respirar e que, apesar de me ter proposto vencer o obstáculo representado por aquele cume e depois o seguinte, dava a impressão de que aparecia sempre mais um, à espera a seguir ao anterior. Era de esmorecer por completo.

Foi então que, quando começava já a desesperar de chegar a algum lado, apareceu diante de nós o pico negro de uma montanha, projetado para o alto e recortado no azul do céu, e uma vertente íngreme de cerca de trezentos metros ou mais que ia dar a um vale estreito e acastanhado.

Parei e apontei.

- Sinclair, que é aquilo?

- O Pico do Diabo.

Sinclair trouxera um mapa consigo. Sentamo-nos e abrimo-lo, espalmando-o contra o vento para identificar os picos circundantes: Ben Vrottan, Caim Toul, Ben Macdui e a extensa serrania que ia dar a Cairngorm.

- E este vale?

- É Glen Dee.

- E o pequeno riacho?

- O pequeno riacho, como lhe chamas, é nada mais nada menos que o próprio Dee, na fase inicial do seu curso.

E de fato era irônico relacionar aquela corrente insignificante com o rio majestoso que víramos ao princípio da manhã.

Comemos um pouco de chocolate e voltamos a seguir caminho, desta vez, felizmente, colina abaixo e, por aquela altura, chegáramos já ao longo carreiro que vai dar ao Lairig Ghru em si. Serpenteava à nossa frente, qual gatafunho branco traçado por entre a erva castanha, subindo suavemente rumo a um ponto distante no horizonte, onde as montanhas e o céu pareciam juntar-se. Caminhamos e o Pico do Diabo ergueu-se à nossa frente, sobre nós, e ficando depois para trás. Caminhamos e encontravam-nos sozinhos - verdadeiramente sozinhos. Não se viam coelhos, lebres, veados, galos silvestres. Nem águias. Nada quebrava o silêncio. Nenhuma criatura dava sinal de vida. Só se ouvia o som dos nossos próprios passos e o assobio de Sinclair.

"Muito arenque, muita comida, Muito carvão a encher o cesto, Muitas crianças bonitas também é o que desejamos a Maria”.

A certa altura apareceu uma casa, uma cabana de pedra aninhada no sopé da colina, na margem oposta do rio.

- Que é aquilo? - perguntei.

- É um refúgio para alpinistas utilizarem em caso de mau tempo.

- Que tipo de tempo estamos a ter?

- Do bom.

Pouco depois, disse-lhe:

- Tenho fome.

Sinclair voltou a cabeça para trás e sorriu-me.

- Prometo que assim que chegarmos à cabana comeremos.

Mais tarde, estendemo-nos indolentemente, almofadados pela erva abundante, Sinclair com a cabeça apoiada na camisola, eu com a minha em cima da sua barriga. Olhei para o céu azul e sem nuvens e pensei que estar com um primo era algo de estranho - umas vezes éramos chegados como irmãos, outras, gerava-se um certo mal-estar entre os dois. Disse de mim para mim que, provavelmente, era por termos deixado de ser crianças... além do fato de eu achar Sinclair tremendamente atraente, sem, no entanto, conseguir explicar totalmente um retraimento instintivo, como se, algures na minha mente, houvesse uma campainha a dar o alarme.

Uma mosca, mosquito ou escaravelho de qualquer tipo pousou na minha face e eu sacudi-o com um movimento brusco. O inseto insistiu. Exclamei:

- Maldita!

- Quem é que é maldita? - perguntou Sinclair com ar sonolento.

- A mosca.

- Que mosca?

- A que está no meu nariz.

Sinclair aproximou a mão para espantar a mosca. Foi parar à curva do meu maxilar e ali ficou, segurando-me no queixo com os dedos encurvados.

- Se adormecermos, quando acordarmos encontraremos Gibson e todo o grupo de salvamento da montanha a calcorrear ruidosamente a passagem à nossa procura.

- Não adormeceremos.

- Como podes estar tão segura disso?

Não respondi, não podia falar da tensão que sentia dentro de mim, do aperto no estômago e do toque da sua mão... o fato é que eu não sabia se aquela ansiedade era provocada por uma questão de sexo... ou medo. Parecia uma palavra extraordinária para ser utilizada em relação a Sinclair, no entanto, a conversa que escutara na noite anterior emergiu do meu subconsciente e voltou a preocupar-me, como um cão às voltas com um velho osso sem sabor. Disse de mim para mim que devia ter falado com a minha avó naquela manhã, antes de sair. Um olhar para o seu rosto bastar-me-ia para saber onde estava a verdade. Mas ela não aparecera antes da nossa partida e, se estivesse a dormir, eu não quereria incomodá-la.

Perturbada, agitei-me e Sinclair perguntou:

- Que se passa? Estás muito tensa. Deves ter alguma preocupação secreta, uma espécie de complexo de culpa.

- Que culpa poderia sentir?

- Tu é que tens de me dizer. Talvez por teres deixado o teu papá, não?

- O meu pai? Deves estar a brincar.

- Queres dizer que te sentes otimamente por estares livre da poeira de Reef Point, Califórnia?

- De forma alguma. Mas o meu pai neste momento está muito bem entregue e não merece que se tenha o menor sentimento de culpa em relação a ele.

- Então deve ser outro problema qualquer. - Passou ao de leve com a parte inferior mais saliente e macia do polegar pela minha face. - Já sei, é o pinga-amor do advogado.

- O quê?

Naquele momento, a minha estupefação era genuína.

- O advogado. Sabes de quem falo, daquele que é o velho e astucioso Rankeillour sem tirar nem pôr.

- Citar Robert Louis Stevenson não te levará a parte alguma... e continuo sem perceber do que estás a falar.

Mas, como era evidente, sabia.

- David Stewart, meu amor. Reparaste que ele não conseguiu tirar os olhos de cima de ti ontem à noite? Esteve a observar-te durante todo o jantar com um brilhozinho de luxúria no olhar. Não posso deixar de reconhecer que estavas realmente espetacularmente apetecível. Onde arranjaste aquela fatiota de estilo oriental?

- Em São Francisco, e tu estás a dizer disparates.

- São tudo menos disparates... a sério, notava-se à distância. Que tal te parece a idéia de um velho estar de amores por ti?

- Sinclair, David não é velho.

- Suponho que ande à volta dos trinta e cinco. Mas é de tão grande confiança, minha querida. - A sua voz assumiu o timbre adocicado de uma viúva bem conservada. - É tão bom rapaz.

- Estás a ser perverso.

- Pois que esteja.

E sem mudar minimamente de expressão, continuou:

- Quando voltas para a América?

Fui apanhada desprevenida.

- Porquê?

- Simples curiosidade.

- Talvez daqui a um mês...

- Tão cedo? Esperava que ficasses por cá. Que deixasses o teu pai e criasses raízes na tua terra natal.

- Gosto demasiado do meu pai para o deixar. E, seja como for, que faria eu?

- Arranjarias um emprego, por exemplo.

- Fazes-me lembrar a avó. Mas não posso procurar emprego porque não tenho nenhuma qualificação.

- Podias ser secretária.

- Não, não podia. Sempre que tento escrever à máquina, sai sempre a vermelho.

Sinclair alvitrou:

- Podias casar.

- Não conheço ninguém.

- Conheces-me a mim - disse Sinclair.

O polegar que me acariciava o queixo parou repentinamente. Quase a seguir, sentei-me e virei-me, baixando os olhos para Sinclair. O seu azul era mais intenso que o do próprio céu. No entanto, a sua limpidez não deixava transparecer qualquer sentimento.

- Que foi que disseste?

- Disse "Conheces-me a mim".

A mão dele moveu-se e pegou-me no pulso, rodeando-mo facilmente com os dedos.

- Não podes estar a falar a sério.

- Não posso? Está bem, façamos de conta que é assim. Qual seria a tua resposta?

- Bem, antes de mais nada, seria praticamente um incesto.

- Disparate.

- E porquê eu? - Apeguei-me à idéia. - Sabes perfeitamente que nunca me consideraste mais do que uma maria-rapaz desajeitada, estavas sempre a dizê-lo...

- Agora já não. Deixaste de ser desajeitada. Transformaste-te numa viking adorável...

-... e não tenho jeito para nada. Nem sequer sei cuidar de flores.

- E por que diabo quereria eu que cuidasses de flores?

- Além disso, não acredito que não saibas da existência de uma profusão de mulheres ardentes, espalhadas por todo o país, que suspiram de amor por ti e sonham com o dia em que as pedirás em casamento.

- Talvez - observou Sinclair com uma complacência de fazer perder a cabeça. - Mas quem não as quer sou eu.

Refleti sobre a idéia e, apesar de contrariada, achei-a curiosa.

- Onde moraríamos?

- Em Londres, evidentemente.

- Não quero viver em Londres.

- Estás louca. É o único sítio onde se pode viver. É o centro de todos os acontecimentos.

- Gosto do campo.

- Viríamos para o campo aos fins-de-semana - aliás, é o que já faço - e ficaremos em casa de amigos...

- A fazer o quê?

- Ora, entretendo-nos com o que calhar. A praticar vela, talvez. A ir às corridas...

Fiquei interessada.

- Corridas?

- Nunca foste a uma corrida? É o que de mais excitante há na terra. - Sentou-se, apoiando os cotovelos no chão de modo a que os seus olhos ficassem ao nível dos meus. - Comecei a persuadir-te?

Retorqui:

- Há um pequeno pormenor que ainda não referiste.

- E qual é?

- O amor.

- O amor? - Sorriu. - Mas Janey, é claro que nos amamos! Foi assim desde sempre.

- Mas não me refiro a esse tipo de amor.

- Então de qual falas?

- Se na verdade não sabes, não posso explicar.

- Experimenta.

Sentei-me, silenciosa e atrapalhada. Sabia que, de certa maneira, Sinclair tinha razão. Eu sempre o amara. Em criança, ele fora a pessoa mais importante da minha vida. Mas, agora, não estava bem certa de conhecer o homem em que ele se tornara. Ansiosa para que ele não lesse todos aqueles pensamentos no meu rosto, baixei o olhar e comecei a arrancar a erva rija, ficando-me nas mãos tufos presos às raízes, que depois soltava ao vento.

Por fim, respondi:

- Creio que é porque mudamos os dois. Tornaste-te uma pessoa diferente. E eu sou, virtualmente, uma americana...

- Oh, Janey...

- Não, é verdade. Fui criada aqui, educada lá... o fato de possuir passaporte inglês não altera essa realidade. Ou o modo como encaro as coisas.

- Estás com rodeios. Tens consciência do fato, não tens?

- Talvez tenha. Mas não te esqueças de que, seja como for, toda esta conversa é hipotética... estamos a falar em termos de suposição...

Sinclair respirou fundo, como se fosse continuar a falar, mas depois pareceu mudar de idéias e deu o assunto por encerrado com uma risada.

- Podíamos ficar aqui sentados o resto do dia a conversar até o Sol se pôr, não achas?

- Não é melhor irmos?

- Sim, ainda nos faltam pelo menos uns dezesseis quilômetros. Mas demos um grande passo em frente e, para teu conhecimento, esta informação é propositadamente ambígua.

Sorri. Sinclair rodeou-me o pescoço com a mão e puxou o meu rosto para o dele, beijando-me a boca aberta e sorridente.

Não foi propriamente uma surpresa para mim, mas não estava ainda preparada para a reação de pânico que senti. Fiz um esforço para me manter imóvel nos seus braços, aguardando que terminasse; quando, finalmente, se afastou, deixei-me ficar por momentos no mesmo sítio e, depois, com gestos lentos, comecei a meter na mochila o papel onde os nossos sanduíches tinham vindo embrulhados e as duas canecas de plástico por onde bebêramos... De repente, a nossa solidão tornou-se ameaçadora e eu tive a sensação de que não passávamos, ambos, de duas formigas minúsculas, das únicas criaturas vivas naquela imensidão desértica, perguntando a mim mesma se Sinclair não me teria atraído ali com a intenção de ter aquela conversa extraordinária ou se a idéia de casamento fora apenas um impulso, trazido do nada pelo vento.

Alertei:

- Sinclair, temos de ir. Está a fazer-se tarde.

O meu primo tinha um ar pensativo. No entanto, limitou-se a sorrir e a concordar:

- Tens razão.

Levantamo-nos, ele pegou na mochila e voltou-se para tomar a dianteira pelo carreiro que ia dar à garganta distante.

Chegamos a casa ao anoitecer. Eu percorrera os últimos quilômetros cegamente, limitando-me a colocar um pé em frente do outro, não me atrevendo a parar, pois, se o fizesse, arriscava-me a não conseguir continuar em frente. Quando, por fim, passamos a última curva do carreiro e avistamos, por entre as árvores, a ponte, o portão, Gibson e o Land Rover à espera na estrada em frente, mal pude acreditar na façanha que acabara de realizar. Atravessei os últimos metros sentindo todos os músculos do corpo a doer-me, trepei o portão e deixei-me cair no assento do carro; mas quando tentei acender um cigarro reparei que tinha as mãos a tremer.

Seguimos para casa por entre o lusco-fusco azulado. A leste, baixa no céu, pairava uma lua minúscula, pálida e delicada. Os faróis do jipe vasculhavam a estrada que se estendia à nossa frente, um coelho escapuliu-se para local seguro, os olhos de um cão vadio brilharam como contas gêmeas, antes de desaparecerem. Ao meu lado, os dois homens conversavam, porém eu ia no mais completo abatimento, calada e sentindo uma exaustão que não era apenas de origem física.

Nessa noite fui acordada pelo toque do telefone.

O seu tinir agudo cortou a direito pelos meus sonhos e arrancou-me ao sono qual peixe puxado para fora de água por um anzol. Não fazia idéia das horas que eram,mas ao virar a cabeça reparei que a lua pairava sobre o lago, traçando pequenas pinceladas prateadas sobre a superfície negra da água.

O telefone continuou a tocar. Entontecida, levantei-me tropegamente da cama, atravessei o quarto e saí para o patamar às escuras. O telefone encontrava-se no piso de baixo, na biblioteca, mas também havia uma extensão no andar de cima, num corredor que ia dar aos antigos quartos das crianças, portanto foi para aí que me dirigi.

O toque deve ter cessado a certa altura da minha caminhada semi-inconsciente, mas estava demasiado ensonada para reparar, pois, quando cheguei junto do aparelho e peguei no auscultador, já alguém atendera. Falava uma voz feminina, que eu não reconheci mas achei agradavelmente timbrada.

-... Claro que tenho a certeza. Fui ao médico hoje à tarde e ele afirma que não restam dúvidas. Olha, acho que devíamos falar sobre este assunto... seja como for, gostaria de te ver, mas não posso afastar-me...

Escutava apaticamente, imaginando que eram linhas cruzadas. A rapariga que trabalhava no posto de Caple Bridge enganara-se, adormecera no seu posto ou algo do gênero. Aquele telefonema não se destinava àquela casa. Ia a falar quando uma voz masculina interrompeu, deixando-me imediatamente bem desperta e consciente.

- É assim tão urgente, Tessa? Não pode esperar?

Tratava-se de Sinclair. Na outra linha.

- Claro que é urgente... não temos tempo a perder...

E, a seguir, menos calmamente, como se a histeria estivesse já prestes a manifestar-se:

- Sinclair, vou ter um bebê...

Pousei o auscultador suave, calmamente. O aparelho emitiu um pequeno dique e as vozes extinguiram-se. Fiquei no meio da escuridão, a tremer, e depois virei-me e voltei para o patamar, apoiando-me ao corrimão de ouvido à escuta. As escadas e o vestíbulo abriram-se diante de mim, igualmente envoltas no negrume da noite. Porém, do lado de lá da porta da biblioteca fechada, vinha o inconflundível murmúrio da voz de Sinclair.

Tinha os pés gelados. Toda encolhida por causa do frio, voltei para o meu quarto, fechei silenciosamente a porta e meti-me na cama. A certa altura, ouvi o tinido inconfundível do telefone a ser desligado e percebi que a conversa terminara; pouco depois, Sinclair subiu cuidadosamente as escadas. Foi para o seu quarto, fazendo ouvir sons de quem se movimentava, abrindo e fechando gavetas, e depois voltou a sair, descendo novamente as escadas. A porta da frente da casa foi aberta e fechada e, momentos depois, ouvi o ronronar de tigre do Lotus a sair e a afastar-se, caminho abaixo, em direção à estrada principal, até desaparecer à distância.

Dei comigo a tremer como já não me sucedia desde criança, quando por acaso despertava de um pesadelo e convencia-me de que havia fantasmas escondidos no meu guarda-fato.

 

Na manhã seguinte, desci ao piso térreo e encontrei a minha avó já sentada à mesa do pequeno-almoço. Ao inclinar-me para lhe dar um beijo, disse-me:

Sinclair foi a Londres.

- Como sabes?

- Deixou um bilhete no vestíbulo...

Procurou-o entre o correio acabado de abrir e entregou-mo. Sinclair utilizara o espesso papel que tinha o timbre Elvie no cabeçalho e a sua letra era pronunciada, em negro, e deixando transparecer nitidamente a sua personalidade.

“Lamento muito, mas tive de ir até ao Sul por um dia ou dois. Estarei de volta segunda-feira à noite ou terça de manhã. Portem-se as duas bem durante a minha ausência e não arranjem nenhum problema”.

Beijinhos

Sinclair ““.

Era tudo. Pousei o bilhete e a minha avó quis saber:

- Ontem à noite o telefone tocou, já passava da meia-noite, Ouviste?

Servi o café, grata por ter uma razão para não a olhar diretamente nos olhos.

- Sim, ouvi.

- Era minha intenção atender, mas tinha quase a certeza de que se destinava a Sinclair, portanto deixei-o tocar.

- Sim... - Pousei novamente o bule na mesa.

- Ele... sai assim com freqüência?

- Oh, de vez em quando.

Selecionou algumas faturas. Tive a impressão de que parecia tão ansiosa quanto eu por se manter ocupada.

- Leva uma vida muito preenchida e depois parece que o emprego lhe exige muito tempo... não é propriamente como estar num escritório das nove às cinco.

- Pois, imagino que não.

O café estava quente e forte, de modo que ajudou-me a desfazer o nó de tensão que sentia na nuca. Encorajada pelo alívio, alvitrei:

- Talvez seja a sua namorada.

A minha avó lançou-me um breve olhar penetrante com os seus olhos azuis. Mas limitou-se a retorquir:

- Sim, talvez.

Apoiei os cotovelos sobre a mesa e tentei parecer desprendida.

- Por mim diria que deve ter uma centena. Continua a ser dos homens mais bonitos que já vi.

Alguma vez as trouxe até aqui a casa? Já conheceu alguma delas...?

- Oh, já aconteceu algumas vezes, quando estive em Londres... sabes como é, trá-las para jantar, ou vamos ao teatro ou algo do gênero.

- Alguma vez teve a impressão de que tencionava casar com uma delas?

- Nunca se pode ter a certeza, não é? - Falava com voz fria, quase desinteressada. - A vida que ele leva em Londres é completamente diferente da que tem quando vem para aqui. Elvie é uma espécie de lugar regenerador para Sinclair... fica simplesmente por aí sem fazer nada. Penso que gosta muito de poder afastar-se das noitadas e dos almoços de representação.

- Quer então dizer que nunca houve ninguém de especial? Uma de quem gostasse especialmente?

A minha avó pousou a correspondência.

- Sim, houve. - Tirou os óculos e sentou-se, espraiando o olhar pela janela, para lá do jardim, até ao lago tornado azul brilhante por mais um dia perfeito de Outono. - Conheceu-a na Suíça, quando foi até lá praticar esqui. Creio que andaram muito tempo juntos quando ela voltou para Londres...

Inquiri:

- Esqui? Não foi a daquela fotografia que me mandaste?

- Mandei? Ah, é verdade, foi tirada na passagem do ano em Zermatt. Foi aí que se conheceram. Penso que ela estava lá para participar num campeonato, ou algo do gênero, sabes, essas corridas internacionais que costumam fazer...

- Deve ser exímia.

- Oh, sem dúvida. É bastante famosa...

- Chegaste a conhecê-la?

- Sim, Sinclair levou-a a almoçar ao Connaught numa altura em que fui à cidade, durante o Verão. Era uma jovem encantadora.

Peguei numa torrada e comecei a pôr-lhe manteiga.

- Como se chamava?

- Tessa Faraday... Provavelmente já ouviste falar dela...

Sim, já ouvira falar dela, porém não da maneira como a minha avó imaginava. Olhei para a torrada que me preparava para comer e de repente senti que, se o fizesse, vomitaria.

Terminado o pequeno-almoço, voltei ao andar de cima, peguei no meu álbum de família e retirei de dentro dele a fotografia de Sinclair que a minha avó me mandara e que eu compusera com a minha montagem, de maneira a só aparecer o meu primo, ficando a sua acompanhante escondida.

Naquele momento, no entanto, só ela me interessava. Vi uma rapariga baixa e morena, magra e de olhos escuros, a rir, com o cabelo afastado da testa e preso por uma fita e aros dourados grossos nas orelhas. Envergava uma espécie de fato-calça de veludo com a frente bordada, e apoiava-se no braço de Sinclair, ambos rodeados e envolvidos por uma profusão de serpentinas coloridas. A jovem tinha um ar alegre, saudável e muito feliz e, ao lembrar a voz temerosa que ouvira ao telefone a noite passada, senti subitamente medo por ela.

O fato de Sinclair ter seguido tão prontamente para o sul - presumivelmente para se encontrar com ela - devia ter-me reconfortado mas curiosamente assim não aconteceu. A sua partida fora demasiado rápida e fria, alheia a qualquer tipo de consideração pessoal pela minha avó ou por mim. Relutantemente, veio-me à lembrança a atitude de Sinclair em relação a Gibson, quando ele e a minha avó tinham discutido a possível reforma do velho guarda; apercebi-me nesse momento de que, subconscientemente, andara a tentar arranjar desculpas para Sinclair.

Mas agora era diferente e via-me forçada a ser honesta comigo própria. A palavra "implacável" veio-me inesperadamente à cabeça. Quando se tratava de pessoas vulgares, Sinclair era completamente implacável e, como me sentia dilacerada de ansiedade por causa da jovem em questão, só me restava esperar que ele se mostrasse compassivo.

Do vestíbulo, a minha avó chamou-me:

- Jane!

Voltei a colocar apressadamente a fotografia no álbum, que guardei novamente dentro da gaveta da minha mesinha-de-cabeceira, e saí para o patamar.

- Estou aqui.

- Que pensas fazer hoje?

Desci até meio das escadas e sentei-me num dos degraus, respondendo-lhe dali.

- Vou às compras. Preciso de arranjar umas camisolas, caso contrário ainda morro de frio.

- Onde tencionavas ir hoje?

- A Caple Bridge.

- Querida, Caple Bridge não é o sítio mais indicado para compras.

- Com certeza encontrarei uma camisola...

- Eu tenho de ir a Inverness para uma reunião da administração do hospital... que tal se te der boleia até lá?

- O problema é que David Stewart tem uns dinheiros meus. Cambiou os dólares que o pai me deu. E disse que me convidava para almoçar.

- Oh, que simpático... mas como irás para Caple Bridge?

- Apanharei uma camioneta. Mistress Lumley diz que ao fundo da estrada passa uma de hora a hora.

- Bem, se estás assim tão decidida.

Continuava, no entanto, a não se mostrar muito segura. Ficando no mesmo sítio, com uma das mãos apoiada à maçaneta do balaústre, tirou os óculos e mirou-me atentamente.

- Estás com um ar fatigado, Jane. O dia de ontem deve ter sido de mais para ti, depois de uma viagem tão longa.

- Não, não foi. Adorei.

- Devia ter dito a Sinclair para esperar um dia ou dois...

- Mas depois corríamos o risco de perder este tempo magnífico.

- É verdade. Possivelmente. Mas reparei que não comeste nada ao pequeno-almoço.

- É costume meu. Pode ter a certeza.

- Bem, deves certificar-te de que David te oferece um almoço como deve ser... - Voltou-se, mas logo a seguir ocorreu-lhe nova idéia, que a fez voltar para trás. - Olha, Jane... já que vais às compras, que tal deixares-me oferecer-te uma gabardina nova? Devias arranjar algo que te aquecesse verdadeiramente.

Apesar de não ter muitos motivos para sorrir, foi o que fiz. Adorava ver a minha avó tão preocupada com a apresentação das pessoas. Perguntei maliciosamente:

- Que há de mal com aquela que eu tenho?

- Já que queres saber, dá-te um ar desmazelado.

- Foi observação que nunca me fizeram durante os dez anos em que a usei.

A minha avó suspirou.

- Cada dia te pareces mais com o teu pai - comentou.

E sem sorrir com a minha modesta piada, foi à sua secretária e passou-me um cheque que me teria permitido comprar uma gabardina de capuz e debruada a pele até aos pés, se por acaso fosse essa a minha intenção.

Esperei, no fundo da estrada, por uma camioneta que me levasse a Caple Bridge. Não me lembrava de ter visto um dia tão brilhante, fresco e cheio de cor. Chovera um pouco durante a noite, fazendo com que tudo reluzisse agora com um ar lavado e as estradas lamacentas refletissem o azul do céu. As sebes estavam repletas de frutos de roseiras bravas, os fetos grandes tinham agora adquirido uma tonalidade dourada e cresciam-lhes folhas de todas as cores, desde o carmesim ao amarelo-torrado.

O vento, que soprava do norte, era frio e agradável como vinho gelado, sugerindo já, muito ao de leve, que, bem mais para norte, as primeiras neves do Inverno tinham já começado a cair.

A camioneta apareceu na curva da estrada e parou para eu entrar. Vinha cheia de camponeses, que seguiam rumo a Caple Bridge para as suas compras semanais: o único lugar que consegui encontrar vago foi ao lado de uma mulher gorda que levava um cesto ao colo. Envergava um chapéu de feltro e as suas dimensões físicas eram tão vastas que só me sobrava metade do banco que me competia, além de que, sempre que a camioneta fazia uma curva, via-me na contingência perigosa de ser, pura e simplesmente, atirada para o meio do corredor.

Dali a Caple Bridge eram oito quilômetros e eu conhecia a estrada tão bem como Elvie em si. Percorrera-a a pé, passeara por ela de bicicleta, vira os marcos passar celeremente da janela do carro da minha avó. Sabia como se chamavam as pessoas que viviam nos casebres à beira do percurso: Mrs. Dargie e Mrs. Thomson, e Mrs. Willie McCrae. E lá estava a casa que tinha o cão com mau feitio e também o campo onde o rebanho de cabras brancas pastava.

Chegamos ao rio, seguimos paralelamente a este durante cerca de três quilômetros e, a seguir, a estrada deu uma curva em "s" para poder atravessá-lo através de uma estreita ponte encurvada. Até ali, dava a impressão de que nada sofrera alterações no decorrer dos anos em que eu estivera ausente, no entanto, quando a camioneta ia na parte mais elevada da ponte, avistei, à nossa frente, obras de estrada e semáforos, apercebendo-me de que estavam em curso medidas para eliminar uma curva perigosa.

Por todo o lado se viam placas e sinais. As valetas tinham sido escavacadas, havendo agora no seu lugar valas enormes de terra revolta; homens trabalhavam com picaretas e enxadas, enormes escavadoras troavam quais monstros pré-históricos e, sobrepondo-se a tudo, pairava o higiênico e delicioso cheiro a alcatrão derretido.

O semáforo tinha a luz vermelha acesa no nosso sentido. Aguardamos, com os motores em ponto morto, e, quando a luz mudou para verde, a camioneta continuou em frente, descendo pela estreita passagem aberta entre os sinais luminosos, antes de enveredar novamente pela estrada. A mulher sentada ao meu lado começou a agitar-se, remexendo no conteúdo do seu cesto e olhando insistentemente para o porta-bagagens do teto.

Perguntei:

- Procura alguma coisa?

- Terei posto o meu guarda-chuva ali em cima?

Levantei-me e, depois de encontrar o dito acessório, entreguei-lho, assim como um enorme porta-ovos em cartão e um molho de ásteres emaranhados e desajeitadamente embrulhados em papel de jornal. Quando tudo isto foi retirado e entregue, já tínhamos chegado ao nosso destino. A camioneta deu uma volta larga ao edifício onde funcionava a câmara da cidade, rolou até ao mercado e, por fim, parou.

Como não levava cestos ou estorvos, fui uma das primeiras pessoas a apear-se. A minha avó explicara-me onde ficava o escritório de advogados e do sítio onde me encontrava via o edifício quadrado em pedra que me descrevera, mesmo à minha frente, do outro lado das bancas de venda montadas no pavimento de pedras arredondadas.

Esperando pela vez dos peões, atravessei a rua para o outro lado, entrei e vi na placa identificadora do vestíbulo que o Dr. Stewart ocupava a sala número 3. Subi uma escadaria sombria, elegantemente decorada em tons de verde-seco e castanho-escuro, passei por baixo de uma vidraça sombreada que não deixava passar qualquer luz e, por fim, bati a uma porta.

David disse:

- Entre.

Assim fiz e fiquei encantada por verificar que o seu gabinete, pelo menos, era claro, bem iluminado e tinha alcatifa. A janela deitava para a movimentada praça, havia uma jarra com malmequeres silvestres sobre a cornija em mármore da lareira e ele conseguira, de certa maneira, criar um ambiente profissional mas agradável. Envergava, imagino que por ser sábado, uma camisa às riscas de ar desportivo e um casaco de tweed; quando ergueu a cabeça e viu que era eu, sorriu-me e eu reparei que o nó que sentia no estômago desde aquela manhã não era, afinal de contas, tão forte.

Levantou-se e eu comentei:

- Está uma manhã encantadora.

- Também já reparei. Demasiado deliciosa para estar a trabalhar.

- Costuma aqui vir aos sábados?

- Nem sempre... depende do trabalho que há. Ficaria surpreendida em verificar o que se consegue fazer quando não se está constantemente a ser solicitado pelos telefonemas das outras pessoas. - Abriu uma das gavetas da secretária. - Troquei-lhe o dinheiro ao câmbio corrente... Tenho aqui o papel...

- Não se preocupe com isso.

- Pois devia preocupar-se, Jane; o natural seria o sangue escocês que lhe corre nas veias levá-la a verificar se eu não lhe fiquei com um vintém que seja.

- Bem, se ficou, pode considerá-lo como uma comissão pessoal.

Estendi-lhe a mão e ele entregou-me um maço de notas e alguns trocos.

- Agora já pode juntar-se aos grandes consumidores, embora eu não saiba muito bem o que poderá encontrar para comprar em Caple Bridge.

Enfiei o dinheiro num dos bolsos da minha gabardina coçada.

- Foi precisamente o que a minha avó disse. Queria levar-me a Inverness mas eu contei-lhe que tínhamos combinado almoçar juntos.

- Gosta de bifes?

-Já não como um bife desde que o meu pai me levou a jantar fora no dia dos meus anos. Em Reef Point, vivíamos de pizzas congeladas.

- Quanto tempo irá demorar?

- Meia hora...

David pareceu ficar surpreendido.

- Só?

- Na maior parte das ocasiões, detesto fazer compras. Nunca há nada que assente bem e quando esse problema não existe, sou eu que não gosto... enfim, o mais provável é que volte com uma série de peças de roupa inadequadas e com a pior das disposições.

- Eu direi que são encantadoras e assim voltará a ficar bem-disposta. - Olhou rapidamente para o relógio de pulso. - Meia hora... digamos, por volta do meio-dia? Aqui?

- Ótimo.

Voltei a sair, agora com o bolso cheio de dinheiro, e fui à procura de um sítio onde gastá-lo. Encontrei talhos, mercearias, alguns vendedores, um armeiro e uma garagem. Até que, entre a casa de gelados italianos que existe inevitavelmente na maioria das cidades escocesas pequenas e o posto dos Correios, descortinei a Isabel McKenzie Modes. Ou, mais precisamente, Isabel MODES McKenzie. Entrei por uma porta envidraçada, recatadamente protegida por uma pequena cortina, e vi-me dentro de uma sala de pequenas dimensões e repleta de prateleiras contendo roupas de aspecto pouco convidativo. Havia um balcão, em vidro, exibindo roupa interior em tons de pêssego e bege e, aqui e ali, camisolas às riscas, de ar modesto, graciosamente expostas.

Senti-me esmorecer, mas antes que pudesse fugir, abriu-se uma cortina ao fundo da sala e apareceu uma mulherzinha com ar de rato, envergando um fato de jersey que devia ser dois números acima do seu tamanho e exibindo um enorme distintivo de Cairngorm.

- Bom dia.

Calculei que tivesse começado a vida em Edimburgo e senti curiosidade em saber se se trataria de Isabel Modes McKenzie em pessoa e, caso fosse, o que porventura a levara até Caple Bridge. Quem sabe tinham-lhe dito que o pronto-a-vestir naquela área apresentava melhores perspectivas de desenvolvimento.

- Oh... bom dia. Queria... queria uma camisola. Mal pronunciei a palavra, percebi imediatamente que cometera o meu primeiro erro.

- Temos uns jersey muito bonitos. Deseja a camisola em lã ou bouclé?

- Retorqui que preferia a lã.

- E qual é o tamanho?

Disse que devia ser o médio.

A mulherzinha começou a esvaziar as prateleiras - não tardou que me visse rodeada de camisolas em rosa velho, verde-musgo e castanho-esverdeado.

- Não... não tem outras cores?

- Que outra cor tinha em mente?

- Bem... talvez o azul-marinho...

- Oh, este ano esse tom usa-se muito pouco.

- Onde teria ela obtido tal informação? Talvez de algum conhecimento ligado ao mundo da moda em Paris.

- Ora vejamos... tem aqui um lindo tom...

Era azul-petróleo, uma cor que, na minha opinião não dá com nada nem ninguém.

- Queria realmente algo mais simples... sabe, quente e espesso... talvez uma gola alta...

- Oh, não, não temos golas altas... as golas não estão a ser...

Interrompi-a indelicadamente, pois começara a desesperar-me:

- Não tem importância, levarei a camisola de jersey... Tem saias?

Começou tudo de novo.

- Deseja a saia em xadrez ou num tweed...?

- Talvez um tweed...

- E qual é a sua medida de cintura?

Disse-lhe qual era, começando a falar com secura. Verificou-se novo vasculhar, desta vez entre um amontoado de peças de aspecto ainda menos convidativo. Desencantou duas, que me apresentou com ar majestoso. Uma era indescritível. A outra não tão horrenda, mas com um padrão em ziguezague em castanho e branco. Concordei, debilmente, em experimentá-la, enfiei-me a custo num espaço pouco maior que o de um armário, ao qual servia de porta mais uma cortina, ficando entregue à execução do empreendimento. Despi, não sem uma certa dificuldade, a roupa que levava vestida e enverguei a saia. O tecido picava e pegou-se-me aos collants como se tivesse sido entretecida de espinhos. Apertei o fecho da cintura, puxei o zipe e mirei-me ao espelho. O efeito era espantoso. O ziguezague do tweed rodeava-me como um quadro de arte abstrata, as minhas ancas adquiriram dimensões elefantinas e o cós mergulhara completamente na minha cintura parca de carnes.

Isabel Modes McKenzie tossiu levemente e espreitou inquiridoramente pela cortina.

- Ah, mas que bem que lhe fica - declarou. O tweed assenta-lhe otimamente.

- Não acha que está... bem, um tudo-nada comprida de mais?

- Esta temporada as saias usam-se mais compridas, sabe...

- Sim, mas esta tapa-me quase os joelhos...

- Bem, se quiser, posso levantar ligeiramente a bainha... é muito bonita... não há nada com melhor aspecto que o tweed...

Para escapar àquela situação, talvez a tivesse mesmo comprado... no entanto, olhei mais uma vez para o espelho e tomei uma decisão firme.

- Não, não, de fato não gosto muito... não é exatamente o que tinha na idéia.

Abri o fecho e despi a saia antes que me convencesse a comprar aquele horror, que a senhora recebeu de volta com ar pesaroso, desviando recatadamente os olhos da minha saia de baixo.

- Talvez queira experimentar a de lã axadrezada, as cores antigas são tão suaves...

- Não...

Vesti novamente a minha velha saia americanizada e pouco quente, que me transmitiu a sensação de conforto já conhecida.

- Não, acho que desisto... era apenas uma idéia... muito obrigada.

Vesti a gabardina, peguei na bolsa e, ao lado uma da outra, dirigimo-nos para a porta protegida pela cortina. Ela chegou primeiro e abriu-ma relutantemente, como se estivesse a deixar escapar uma presa preciosa.

- Talvez queira fazer o favor de passar noutro dia...

- Sim... talvez...

- Para a semana recebo o meu novo stock.

Diretamente da Dior, sem dúvida, pensei.

- Obrigada... Desculpe... bom dia.

Ao apanhar-me cá fora, ao ar livre e em plena luz do dia, virei-me e afastei-me o mais depressa que pude. Passei pelo armeiro e, nessa altura, como que inspirada, voltei atrás, entrei e comprei, não levando mais de dois minutos, uma camisola azul-marinho concebida originalmente para homem. Infinitamente aliviada por a minha manhã não ter sido um fracasso total e agarrada ao embrulho toscamente feito, fui ter com David.

Enquanto ele empilhava documentos e fechava armários de arquivo, sentei-me na beira da secretária a relatar-lhe a saga da minha expedição desastrosa daquela manhã. Enriquecida com os seus comentários (David conseguia falar com um sotaque impecável de Edimburgo) a história ganhou foros tais que, no fim, já me doíam as costelas de tanto rir. Finalmente, conseguimos recompor-nos; David enfiou um monte de pastas de arquivo na sua maleta a rebentar pelas costuras, olhou em volta e depois fechou a porta do gabinete, descendo em seguida os dois a escadaria obscura e saindo para a rua apinhada de gente e cheia de sol.

Como David morava perto do centro da cidade, percorremos a pé o pequeno percurso. A velha pasta de David batia-lhe nas pernas compridas e, de vez em quando, via-se obrigado a desviar-se de algum transeunte parado ou de algum par de mulheres a falar da vida alheia. A casa onde vivia, quando chegamos junto dela, estava inserida numa correnteza de pequenas vivendas iguais, em pedra, de dois pisos, cada qual inserida na sua pequena parcela de terreno, com um modesto jardim na frente e um carreiro coberto de cascalho que ia do portão à porta de entrada. A de David diferia das outras porque ele acrescentara-lhe uma pequena garagem, construída no espaço entre a sua casa e a seguinte, com um caminho acimentado que deitava para a rua. E pintara a porta da frente de um amarelo claro e brilhante.

Abriu o portão e eu segui-o pelo carreiro, esperando depois que ele metesse a chave à porta. Desviou-se para o lado para me deixar entrar à sua frente. Havia um corredor estreito com uma escada que conduzia ao piso de cima, portas à direita e à esquerda e uma cozinha que era visível pela porta entreaberta ao fundo. David conseguira fazer de uma casa, que de contrário seria perfeitamente vulgar, um lugar agradavelmente acolhedor, com uma alcatifa espessa e as paredes forradas num papel primaveril e gravuras retratando cenas desportivas.

Ajudou-me a despir a gabardina, tirou-me o embrulho das mãos e atirou tudo, juntamente com a sua pasta, para cima da poltrona do vestíbulo, conduzindo-me, em seguida, a uma sala de estar comprida, com janelas em cada uma das extremidades. E foi só nessa altura que pude apreciar a localização privilegiada da pequena casa despretensiosa, pois as janelas que deitavam para sul tinham sido alargadas de modo a formarem um vão envidraçado, do qual podia avistar-se um jardim comprido e estreito que descia suavemente em direção ao rio.

A sala em si parecia muito bem equipada: viam-se estantes com livros, uma pilha de discos, revistas na mesinha em frente da lareira. Havia poltronas de ar convidativo e um sofá, um armário à moda antiga repleto de louça de porcelana Meissen e, sobre a cornija da lareira... aproximei-me para ver...

- É um quadro de Ben Nicholson...

David acenou afirmativamente com a cabeça.

- Mas não é um original - acrescentei.

- Pode crer que é. Foi a minha mãe que mo ofereceu pelo meu vigésimo primeiro aniversário.

- Faz-me lembrar o apartamento que a sua mãe tem em Londres... - transmite a mesma espécie de impressão...

- Provavelmente, a mobília veio, quase toda, da mesma casa. E claro que foi ela que me ajudou a escolher as cortinas, o papel de parede e Outros pormenores do gênero.

Secretamente satisfeita por ter sido a mãe e não outra pessoa qualquer, aproximei-me da janela.

- Quem diria que dispõe de um jardim como este...

Havia um pequeno terraço com uma mesa e cadeiras de madeira, seguindo-se-lhe um relvado onde se viam algumas folhas secas espalhadas, uns canteiros ainda repletos das últimas rosas, e ainda algumas moitas de margaridas silvestres cor de púrpura. Também se via um bebedouro para aves e uma velha macieira de tronco inclinado.

- É o David que cuida da jardinagem?

- Dificilmente se lhe poderia dar esse nome... como pode ver, não é muito grande.

- Mas tendo o rio e tudo...

- Foi o que me levou a comprar a casa. Digo a todos os meus amigos que costumo pescar no Caple e eles ficam impressionadíssimos. O que não lhes conto é que fica apenas a dezesseis metros...

No cimo da estante viam-se algumas fotografias emolduradas e eu senti-me irresistivelmente atraída para elas.

- É a sua mãe? E o seu pai? E o David?

Este deveria ter, naquela altura, uns doze anos.

- É mesmo o David?

- Sim, sou.

- Aqui ainda não usava óculos.

- Só comecei a usá-los aos dezesseis anos.

- Que aconteceu?

- Tive um acidente. Participei numa papel chase nos meus tempos de escola e o rapaz que ia na minha frente deixou que um ramo de árvore me batesse nos olhos. Não fez de propósito, podia ter acontecido com qualquer um. No entanto, perdi a visão parcial de uma vista e desde então passei a usar óculos.

- Oh, que azar!

- Não tem grande importância. Não preciso de me privar da maioria das atividades de que gosto... exceto jogar tênis.

- Por que não pode jogar tênis?

- Não sei exatamente porquê. Mas se consigo ver a bola, não sou capaz de lhe acertar, e se lhe dou com a raqueta, não a vejo. Não é muito agradável jogar com tal limitação.

Fomos até à cozinha, que era minúscula como a de um iate e tão esmeradamente arrumada que senti vergonha ao recordar-me das minhas próprias imperfeições. Espreitou para dentro do forno, onde deixara umas batatas a assar, arranjou uma frigideira, margarina e foi ao frigorífico buscar um embrulho de papel manchado de sangue, dentro do qual se encontravam dois belos bifes do lombo com cerca de dois centímetros e meio de espessura.

- Cozinha-os a Jane ou quer que eu o faça? - perguntou David.

- É melhor essa tarefa ficar para si... enquanto isso, eu ponho a mesa ou algo do gênero. - Abri a porta que deitava para o terraço, banhado pelo sol inusitadamente quente para a época. - Podemos almoçar aqui fora? Até parece que estamos no Mediterrâneo.

- Se quiser.

- Que maravilha... poderemos utilizar aquela mesa?

Falando, metendo-me no seu caminho, obrigada a perguntar-lhe onde estava tudo, lá consegui pôr a mesa. Enquanto eu o fazia, David preparou uma salada, desembrulhou um pão fresco e estaladiço e tirou uns pratinhos de manteiga do frigorífico. Terminadas todas estas operações e enquanto os bifes fritavam em lume brando na frigideira, David serviu dois copos de xerez e saímos para a luz do sol.

Despiu o casaco e recostou-se, estendendo as pernas compridas e voltando o rosto para o sol.

- Fale-me do dia de ontem - disse inesperadamente.

- De ontem?

- Atravessaram o Lairig Ghru a pé... - lançou-me um olhar de esguelha. - Ou não?

- Ah, é verdade, atravessamos.

- Que tal foi?

Tentei pensar nas impressões colhidas, porém não me ocorria nada além da conversa extraordinária que tivera com Sinclair depois de almoçarmos.

- Foi... agradável. Maravilhoso, dizendo melhor.

- Não parece muito entusiasmada.

- Bem, foi... maravilhoso.

Não conseguia pensar noutra palavra.

- Mas estafante, presumivelmente.

- Sim. Fiquei muito cansada.

- Quanto tempo levaram?

Mais uma vez, não fui capaz de me lembrar com exatidão.

- Bem, quando voltamos já tinha escurecido. Gibson foi esperar-nos ao Loch Morlich...

- Hum. - Pareceu refletir sobre o assunto. -        E em que anda o primo Sinclair ocupado hoje? -Inclinei-me e agarrei numa pedrinha, atirando-a de uma mão para a outra como numa brincadeira com que costumava entreter-me em criança.

- Foi a Londres.

- A Londres? Pensei que estava de férias.

- Sim, está. - Deixei cair a pedrinha e baixei-me para pegar noutra. - Mas recebeu um telefonema ontem à noite... não sei bem do que se trata... encontramos um bilhete quando descemos para o pequeno-almoço esta manhã.

- Foi de carro?

Veio-me à memória o ronronar felino do Lotus a romper a escuridão silenciosa.

- Sim, levou o carro. - Deixei cair a segunda pedra. - Ficará ausente um dia ou dois. Talvez volte segunda-feira de manhã, disse ele.

Não queria falar de Sinclair. Receava as perguntas de David, de modo que tentei, desajeitadamente, mudar de assunto.

- É verdade que pesca ao fundo do seu jardim? Não vejo bem como consegue arranjar espaço para atirar a linha... sem que fique emaranhada na sua macieira...

E, assim, a conversa derivou para o tema da pesca e eu falei-lhe do rio Clearwater, em Idaho, para junto do qual o meu pai me levara uma vez de férias.

-... está cheio de salmões... quase se podem tirar da água com um alfinete dobrado...

- Gosta da América, não gosta?

- Sim, sem dúvida.

David ficou em silêncio, indolentemente esticado ao sol e eu, encorajada pelo seu silêncio, agarrei-me ao assunto, focando o dilema em que, inevitavelmente, me encontrava.

- É estranho pertencer a dois países, tem-se dificuldade de adaptação quer a um quer a outro. Quando estava na Califórnia, apetecia-me voltar para Elvie. Mas agora que estou em Elvie...

- Gostaria de voltar para a Califórnia.

- Não exatamente. Mas sinto saudades de determinados aspectos.

- Como por exemplo?

- Bem, aspectos concretos. Do meu pai, evidentemente. De Rusty. E do som do Pacífico, às tantas da noite, quando as ondas vêm rebentar na praia.

- E quanto às questões que não são concretas?

- Aí é mais complicado. - Tentei definir o que me provocava verdadeiramente saudades. - Água gelada. E a Companhia de Telefones Bell. São Francisco. E o aquecimento central. E os centros de flores onde se pode ir comprar plantas e outras coisas e tudo cheira a flor de laranjeira.

Virei-me para David e reparei que este olhava para mim. Os nossos olhares cruzaram-se e ele sorriu. Acrescentei:

- Mas esta terra também tem aspectos muito agradáveis.

- Fale-me deles.

- Postos de correio. Têm de tudo - até selos. E a particularidade de o tempo estar em mutação constante, nunca haver dois dias iguais. É muito mais excitante. E o chá da tarde, com scones, biscoitos e pão de gengibre que se come depois de mergulhado na chávena...

- Está a lembrar-me, com esses seus modos subtis, que são horas de comermos os bifes?

- Conscientemente, não era essa a intenção.

- Bem, o certo é que se não o fizermos agora, deixarão de ser comestíveis. Venha daí.

Foi uma refeição perfeita, tomada em condições igualmente perfeitas. David abriu mesmo uma garrafa de vinho, tinto e forte, o complemento ideal para bifes e pão tostadiço; terminamos com queijo e biscoitos e uma taça de fruta fresca, no topo da qual havia um cacho de uvas brancas. Descobri que estava esfaimada e comi abundantemente, limpando os últimos restos do prato com um bom pedaço de côdea, descascando em seguida uma laranja que, de tão sumarenta, me fez escorrer o sumo pela ponta dos dedos. David, depois de terminar, entrou em casa para preparar o café.

- Tomamo-lo aí fora? - perguntou-me pela porta aberta.

- Sim, vamos até à beira do rio.

Entrei para o ajudar e passar as mãos besuntadas por água.

David sugeriu:

- Encontrará uma manta na cômoda do vestíbulo. Leve-a lá para baixo e instale-se que eu levo o café.

- E quanto à louça?

- Deixe-a estar... está um dia demasiado bonito para estarmos a perder tempo em frente de uma tina de água quente.

Reparei, agradavelmente surpreendida, que era o mesmo tipo de observação que o meu pai faria. Fui buscar a manta e levei-a para fora de casa, descendo o declive arrelvado e estendendo-a sobre a erva banhada pelo sol, a pouca distância da beira do rio. Depois de um Verão seco e prolongado, o Caple corria com fraco caudal e, entre a erva e a água castanho-escura, estendia-se um banco de seixos, fazendo lembrar uma praia em miniatura. A macieira estava carregada de fruta, alguma dela caída no chão devido ao vento. Fui abaná-la e caíram mais algumas maçãs, fazendo um ruído curioso ao tocarem no solo. Por baixo da árvore havia sombra, estava fresco e cheirava deliciosamente a mofo, como um celeiro antigo. Encostei-me ao tronco e fiquei a ver o rio ensolarado correr por entre um enredado de ramadas. Reinava a maior tranqüilidade.

Amenizada pelo que me rodeava, confortada pela comida esplêndida e a companhia agradável, senti que ficava mais otimista e disse de mim para mim que aquele era o momento adequado para começar a fazer frente a todos os meus receios semiconscientes. De que valia deixá-los pairar no meu subconsciente, incomodando-me como uma dor de dentes e provocando-me uma tensão permanente no estômago?

Encararia o problema de Sinclair com realismo. Não havia razão para supor que não aceitasse a responsabilidade do bebê que Tessa Faraday ia ter.

Quando regressasse a Elvie na segunda-feira certamente comunicar-nos-ia que ia casar, e a minha avó ficaria encantada (não me dissera ela que achara a jovem encantadora?) e eu também ficaria contente, sem nunca precisar de referir o fato de ter escutado o telefonema.

E quanto a Gibson, ele estava, de fato, a ficar velho. Talvez fosse melhor para todos que se reformasse. Mas se tivesse de o fazer, nessa altura com certeza a avó e Sinclair arranjar-lhe-iam uma casinha onde ficar, talvez com uma pequena horta onde ele pudesse cultivar uns legumes e criar algumas galinhas, para se manter e ocupar.

E quanto a mim... Esse ponto já não foi tão fácil de resolver com o mesmo desprendimento. Gostaria de saber o que o levara a, na véspera, me pedir em casamento. Quem sabe fora apenas uma idéia divertida para nos ajudar a passar a meia hora que se seguiu ao almoço do nosso piquenique. Se assim fosse, eu não teria dificuldade em não ligar ao assunto; no entanto, o beijo que Sinclair me dera não fora nem de primo para primo nem inocente... Só de o lembrar ficava incomodada, sendo precisamente por isso que me sentia tão profundamente confusa. Talvez o tivesse feito propositadamente, para me perturbar. Sempre fora um provocador inveterado. Talvez quisesse simplesmente analisar a minha reação...

- Jane.

- Hum?

Voltei-me e vi que David Stewart me observava da zona banhada pelo sol. Atrás de si vi o tabuleiro do café, colocado em cima da manta, apercebendo-me então de que já me devia ter chamado e que, porém, eu não o ouvira. Meteu a cabeça por baixo da fronde baixa e veio colocar-se à minha frente, apoiando-se ao tronco com uma das mãos.

Perguntou:

- Algum problema?

- Por que faz essa pergunta?

- Está com um ar preocupado. Também empalideceu.

- Ando sempre pálida.

- E preocupada?

- Não disse que estava preocupada.

- Ontem... aconteceu alguma coisa?

- Que quer dizer?

- Simplesmente que reparei que não tem grande vontade de tocar no assunto.

- Não aconteceu nada.

Tive vontade de me escapulir e, como o braço dele me impedia de o fazer, teria de me baixar propositadamente para passar por baixo dele. David virou a cabeça para me fitar de esguelha e o olhar desconcertante que já lhe conhecia fez-me corar até à raiz dos cabelos.

- Uma vez disse-me - observou David suavemente-, que quando mente, cora. Algo não está bem...

- Não, nada disso. Além do mais, não há nada.

- Se tivesse vontade de me contar, não hesitaria em fazê-lo, pois não? Talvez eu pudesse ajudar.

Pensei na jovem de Londres e em Gibson... e em mim, sentindo-me invadir novamente por todos os meus receios.

- Ninguém pode ajudar - disse-lhe. - Ninguém pode fazer o que quer que seja.

David não insistiu. Voltamos para o sol e reparei que estava cheia de frio, com a pele arrepiada. Sentei-me na manta aquecida a beber café e David deu-me um cigarro para manter os mosquitos afastados. Passado um bocado, estendi-me ao sol, apoiando a cabeça numa almofada. Estava fatigada e o vinho deixara-me sonolenta. Fechei os olhos, os sons do rio invadiram a minha mente e não tardei a adormecer.

Acordei cerca de uma hora depois. David encontrava-se a cerca de um metro de mim, igualmente estendido mas apoiado sobre um cotovelo, a ler um jornal. Espreguicei-me e bocejei e quando ele olhou para mim, disse-lhe:

- É a segunda vez que isto acontece.

- Que foi que aconteceu?

- Que eu acordo e encontro-o aí.

- Seja como for, tencionava não demorar muito mais a acordá-la. E depois levá-la a casa.

- Que horas são?

- Três e meia.

Fitei-o sonolentamente.

- Volta comigo para Elvie? A avó adorará vê-lo.

- Teria muito gosto, mas tenho de ir ver um velhote que mora longe. De vez em quando, fica

preocupado com o seu testamento e eu tenho de ir até lá tranqüilizá-lo.

- É muito parecido com o tempo na Escócia, não é?

- Que quer dizer?

- Uma semana está em Nova Iorque a fazer sabe Deus o quê. Na outra, atravessa uma ravina longínqua para sossegar o espírito de um velho. Gosta de ser advogado rural?

- Sim, na verdade gosto.

- Encaixa-se impecavelmente. Quero dizer... como se tivesse passado aqui toda a sua vida. E a sua casa e tudo o mais... e o jardim. Tudo se conjuga entre si, como se alguém tivesse combinado os vários aspectos consigo.

- A Jane também combina - observou David. Ansiei que se alargasse sobre o assunto e, por um instante, pareceu-me que o faria. No entanto, pareceu mudar de idéias e optou antes por pegar no tabuleiro com as chávenas de café e no jornal e levá-los para dentro de casa. Quando voltou, eu continuava deitada, olhando para o rio e ele deteve-se a meu lado, pondo-me as mãos nos ombros para me ajudar a levantar. Virei-me e dei comigo dentro do círculo formado pelos seus braços e observei:

- Também já não é a primeira vez que me acontece.

- Mas da outra vez - disse David -, tinha a cara toda inchada e lavada em lágrimas, mas hoje...

- Que há comigo hoje?

David riu.

- Hoje arranjou mais uma boa série de sardas. E grande fartura de folhas secas de macieira e erva no cabelo.

Levou-me a casa de carro. A capota ia descida, pelo que o cabelo ia-me todo para a cara; David descobriu um lenço velho no porta-luvas, que me entregou para eu atar à cabeça.

Quando chegamos às obras rodoviárias, as luzes estavam no vermelho, de modo que aguardamos com o motor do carro em ponto-morto, observando as luzes do trânsito que vinha no sentido contrário, pela única faixa aberta.

- Não consigo deixar de sentir - declarou David - que, em vez de arranjarem este trecho de estrada, teria sido melhor deitarem a velha ponte abaixo e construírem uma nova... ou mesmo fazerem algo naquela curva demoníaca que fica do outro lado.

- Mas a ponte é tão bonita...

- É perigosa, Jane.

- Mas todos sabem e tem limite de velocidade.

- Nem todos sabem - corrigiu-me David secamente. - No Verão aparecem por aqui muitos visitantes.

As luzes ficaram verdes e nós avançamos, passando por um letreiro enorme onde se lia a palavra ABRANDAR. Tive uma idéia engraçada.

- O David infringiu a lei.

- Porquê?

- O letreiro dizia "ABRANDAR". E o David não abrandou.

Fez-se um silêncio prolongado e eu pensei: "Santo Deus, como é meu costume disse uma piada que a outra pessoa não considerou como tal”.

- Não sei como fazê-lo - disse David finalmente.

- Quer dizer que nunca lhe ensinaram?

- A minha mãe era uma viúva pobre. Não podia pagar as lições.

- Mas todos deviam saber abrandar, é uma das virtudes sociais.

- Bem - disse David -, conduzindo o carro lentamente pela ponte arqueada - para lhe agradar, não descansarei enquanto não aprender.

Dito isto, pisou no acelerador com força e, com o vento a rugir-me nos ouvidos, levou-me até Elvie.

Mais tarde, mostrei à minha avó a única compra que fizera, a camisola azul-marinho adquirida no armeiro.

- Acho - observou ela - que foste muito habilidosa em conseguires encontrar algo em Caple Bridge. E não há dúvida de que parece muito quente - acrescentou delicadamente, mirando a peça de roupa largueirona e deselegante. - Vais usá-la com o quê?

-Calças... qualquer coisa. Na verdade, queria uma saia, mas não encontrei nada de jeito.

- Que tipo de saia?

- Uma que fosse quente... talvez da próxima vez em que fores a Inverness...

- Que tal um kilt? - perguntou a minha avó. Retorqui que não pensara na possibilidade. Parecia uma idéia esplêndida. As saias de xadrez às pregas são extremamente aconchegantes e as cores são sempre um encanto.

- Onde poderia comprar uma?

- Oh, minha querida, não precisas de gastar dinheiro numa, a casa está cheia delas. Sinclair usou kilts desde que aprendeu a andar e não se desfez de nenhum.

Esquecera-me do fato de que um kilt, ao contrário da bicicleta, serve para os dois sexos.

- Mas que idéia maravilhosa! Por que não nos lembramos há mais tempo? Vou já ver o que há por aí. Onde estão guardadas? No sótão?

- De forma alguma. Estão no quarto de Sinclair, no armário por cima do guarda-fatos. Guardei-as numa caixa juntamente com bolas de naftalina, mas, se escolheres alguma, poderemos arejá-la para o cheiro desaparecer e ficará como nova.

Sem querer perder mais um momento que fosse, fui imediatamente à procura de um kilt. O quarto de Sinclair, então sem a presença do seu ocupante, fora limpo e varrido, apresentando-se imaculadamente arrumado. Lembrei-me de que aquele gosto intrínseco pelo arranjo fora sempre um dos traços fortes do seu caráter. Em rapaz, não suportava a desarrumação e nunca foi preciso que lhe dobrassem as roupas nem arrumassem os brinquedos.

Puxei uma cadeira e acerquei-me do dito armário. Este fora construído de maneira a encaixar-se no nicho existente ao lado da lareira, e o espaço extra por cima do topo do guarda-fatos era utilizado para guardar malas e roupas fora de estação. Subi para cima da cadeira e abri as portas do armário, deparando com uma pilha impecavelmente arrumada de livros, algumas revistas desportivas, uma raqueta de squash e um par de barbatanas. Havia uma enorme caixa de roupa, bem amarrada com cordel, a cheirar fortemente a cânfora, e estendi as mãos para pegar nela e trazê-la para baixo. Era pesada e não dava jeito tirá-la e quando me esforçava por puxá-la, toquei com o cotovelo na pilha de livros, deitando-a abaixo. Com os movimentos dificultados como tinha, não pude fazer nada para impedir que se desmoronassem, pelo que me limitei a ficar na cadeira, ouvindo-os estatelarem-se ruidosamente no meio do chão.

Praguejei, agarrei com maior firmeza na caixa, tirei-a para baixo, pousei-a em cima da cama e baixei-me para apanhar os livros. Eram, na sua maioria, de estudo, um Thesaurus, Le Petit Larousse, uma biografia de Miguel Ángelo e, por baixo de tudo...

Era grosso e pesado, encadernado a couro, a capa enfeitada com um brasão particular, o título gravado em letras douradas na lombada carmesim: História da Terra e da Natureza Viva, volumes 1 e 2. Conhecia aquele livro. Voltei aos meus seis anos, altura em que o meu pai o comprara para levar para Elvie, numa das suas incursões ocasionais à casa de livros em segunda-mão de Mr. McFee, em Caple Bridge. O livreiro falecera ia para muito tempo e a loja era agora uma tabacaria. Todavia, nesse tempo, o meu pai passara muitas horas a conversar com Mr. McFee, um excêntrico bem-humorado e sem preconceitos chatos em relação à sujidade e ao pó, passando a vida a folhear os livros bolorentos que atravancavam as prateleiras do seu estabelecimento.

Descobrira a Natureza Viva, de Goldsmith, por acaso e levara-a para casa em triunfo, não só porque era um livro raro como também fora encadernado particularmente por algum proprietário nobre anterior, sendo, em si próprio, uma obra de arte. Encantado com ele, desejando partilhar o seu prazer, a primeira coisa que o meu pai fizera ao chegar a casa fora levá-lo até ao quarto das crianças para o mostrar a Sinclair e a mim. A minha reação fora, provavelmente, desanimadora, pois passara as mãos pelo couro bonito da encadernação, olhara para uma imagem ou duas de elefantes asiáticos e depois voltara ao meu puzzle de peças recortadas.

Mas, com Sinclair, as coisas tinham sido diferentes. Este adorara tudo, desde a impressão antiga ao papel grosso das páginas, das aquarelas ao pormenor dos desenhos minúsculos. Adorara o cheiro característico, os acabamentos em papel marmoreado, assim como o próprio peso do livro antigo.

A adição de tal preciosidade à coleção do meu pai parecera merecer algum tipo de cerimônia. Assim, ele fora buscar uma das suas etiquetas ex-líbris, uma xilogravura com as suas próprias iniciais decoradas com abundância de plantas, e afixara-a na Natureza Viva de Goldsmith. Sinclair e eu assistimos à operação em perfeito silêncio e, depois desta terminada, suspirei de satisfação pois fora executada de forma impecável e provava, sem qualquer espécie de dúvida, que o livro pertencia, a partir daquele momento, ao meu pai.

Em seguida, fora levado para a sala de estar, onde o colocaram em cima de uma mesa juntamente com algumas revistas e jornais diários, para poder ser admirado, manuseado e examinado com atenção por quem passasse. Só se voltou a falar dele dois ou três dias mais tarde, quando o meu pai deu pelo seu desaparecimento.

Ninguém se preocupou excessivamente, na crença de que a Natureza Viva tivesse sido, pura e simplesmente, arrumada noutro sítio. Talvez alguém o tivesse apenas levado para ver, esquecendo-se depois de o pôr no mesmo sítio. Mas ninguém se acusou. O meu pai começou a fazer perguntas mas não conseguiu esclarecer absolutamente nada. A minha avó procurou o livro diligentemente, porém este nunca mais apareceu.

Sinclair e eu entramos então na dança. Tínhamos visto o livro? Mas claro que afiançamos que não e a nossa inocência nunca foi posta em causa. A minha mãe começou a dizer "Talvez tenha sido um ladrão...", mas a minha avó não concordou com a hipótese. Que ladrão não daria pelas pratas georgianas, contentando-se em levar apenas um livro velho? Fez questão em afirmar que a Natureza Viva de Goldsmith fora, simplesmente, guardada noutro lugar. Voltaria a aparecer. Tal como seria de esperar, o misterioso assunto morreu naturalmente, mas o certo é que o livro nunca mais foi encontrado.

Até àquele momento. No armário de Sinclair, impecavelmente arrumado junto de outros pertences que não utilizava diariamente. Estava tão belo como sempre, com o couro avermelhado da encadernação macio e agradável ao toque, as letras douradas e brilhantes. Ao tê-lo ali nas mãos, pesado como chumbo, lembrei-me do ex-líbris que o meu pai lhe colocara, abri a capa e verifiquei que a guarda de papel marmoreado, assim como o ex-líbris, foram completamente retirados, delicada e cuidadosamente, bem junto à lombada, provavelmente com uma lâmina de barbear. E, na folha em branco que ficara por baixo, lia-se, pela letra firme e a tinta negra de Sinclair aos doze anos:

“Sinclair Bailey”,

Elvie.

ESTE LIVRO PERTENCE-LHE ““.

 

O tempo magnífico manteve-se. Segunda-feira à tarde, a minha avó, equipada com uma pá e luvas de jardinagem, foi plantar bolbos. Ofereci-me para ajudar, mas ela recusou. Se eu fosse, disse-me, ficaríamos a falar o tempo todo e nada se faria. Sozinha, seria mais rápida. Assim rejeitada, assobiei a clamar os cães e fui dar um passeio. De qualquer maneira, também não apreciava muito a jardinagem.

Percorri vários quilômetros, gastando duas horas ou mais. Quando voltei, o dia começara a declinar e já fazia frio. Por cima do pico da montanha tinham aparecido algumas nuvens, vindas do norte, e sobre o lago pairava uma névoa ligeira. Do interior do jardim murado, onde Will empilhava material para fazer uma fogueira, erguia-se um longo penacho de fumo esbranquiçado, reinando no ar um cheiro a detritos queimados. De mãos enfiadas nos bolsos e a sonhar com um chá em frente da lareira, atravessei o caminho e fui ter à estrada que passava sob as faias avermelhadas. Um dos cães começou a ladrar, chamando-me a atenção, e eu avistei, estacionado em frente de casa, o Lotus amarelo-escuro de Sinclair.

Sinclair voltara. Consultei o relógio. Eram cinco da tarde. Ainda era cedo. Continuei em frente, atravessei o relvado, cheio de folhas caídas, chegando ao carreiro de cascalho. Ao passar pelo automóvel, toquei ao de leve num dos pára-choques reluzentes, como que a certificar-me de que não se tratava de uma miragem. Entrei no vestíbulo aquecido e a cheirar a turfa, esperei pelos cães e depois fechei a porta.

Ouvi o murmúrio de vozes na sala de estar. Os cães foram beber água à sua bacia e depois deixaram-se cair, exaustos, em frente da lareira acesa do vestíbulo. Desapertei o cinto da minha gabardina, que despi, descalcei os sapatos enlameados e dei um jeito ao cabelo com as mãos. Atravessei o vestíbulo e abri a porta. Cumprimentei:

- Olá, Sinclair.

Os dois estavam sentados em frente da lareira, cada um na sua ponta e com a mesinha com o chá no meio. Mas quando entrei, Sinclair levantou-se e atravessou a sala para me cumprimentar.

- Janey... por onde tens andado? - perguntou, dando-me um beijo.

- Fui dar um passeio.

- É quase escuro, pensamos que te tinhas perdido.

Olhei para Sinclair. Imaginara encontrá-lo visivelmente diferente. Mais tranqüilo, cansado, talvez, da viagem longa, mais circunspecto, refletindo sobre as novas responsabilidades. Mas saltava à vista que me enganara. Parecia, pelo contrário, ainda mais alegre e jovial que nunca. Naquela noite havia nele uma animação... uma excitação exuberante, como a de uma criança em noite de Natal.

Pegou-me nas mãos.

- E estás gelada. Vem para junto da lareira e aquece-te. Tive a gentileza de te deixar uma torrada, mas tenho a certeza de que se quiseres mais, Mistress Lumley as preparará.

- Não, esta é suficiente.

Puxei um banquinho forrado a cabedal e sentei-me entre os dois, deixando que a minha avó me servisse o chá.

- Onde foste? - perguntou ela.

Esclareci-a.

- Os cães já beberam? Ficaram molhados e enlameados? Limpaste-os?

Assegurei-a de que estava tudo bem.

- Não fomos para nenhum sítio onde houvesse água e tirei-lhes toda a urze que traziam no pêlo antes de entrarmos em casa.

Passou-me a chávena, que envolvi com as mãos frias, olhando em seguida Sinclair.

- Como estava Londres?

- Oh, quente e apinhada - retorquiu Sinclair com um brilho divertido nos olhos. - Atravancada de homens de negócios em fatos de Inverno.

- Concretizaste... o que levavas em mente?

- Que pergunta tão pomposa. Concretizar. Onde aprendeste uma palavra tão comprida como essa?

- Mas responde à minha pergunta.

- Sim, claro que fiz o que tinha a fazer, caso contrário não estaria aqui.

- Quando... quando é que saíste de Londres?

- Ao princípio desta manhã... por volta das seis... Avó, ainda há chá nesse bule?

A minha avó pegou no bule, levantou a tampa e espreitou.

- Já resta muito pouco. Irei preparar mais.

- Peça a Mistress Lumley...

- Não, custa-lhe muito a andar. Eu própria o farei. Seja como for, quero falar com ela acerca do jantar, temos de meter o faisão no forno.

Depois de a minha avó se retirar, Sinclair observou:

- Que bom, faisão no forno...

Rodeou-me o pulso com os dedos. Senti-os frios e leves. Disse-me:

- Preciso de falar contigo.

Pronto, ia contar-me o sucedido.

- Sobre o quê?

- Aqui, não, quero-te toda só para mim. Pensei em irmos dar uma volta de carro depois do chá. Até ao cimo de Bengaim, ver a lua nascer. Queres vir?

Se ele desejava falar-me sobre Tessa, achei que o interior do Lotus servia perfeitamente. Retorqui:

- Está bem.

Andar no Lotus foi, para mim, uma experiência nova. Presa ao meu banco pelo cinto de segurança, tive a sensação de que seguia em direção à lua e a velocidade a que Sinclair arrancou nada fez para desfazer essa impressão. Atravessamos ruidosamente o relvado, paramos por um momento na estrada principal e depois enfiamos por ela, enquanto o ponteiro do conta-quilômetros subia até aos cem numa questão de segundos, e os campos, veredas e marcos conhecidos passavam ao nosso lado voando, ficando para trás numa sucessão entontecedora.

Perguntei:

- Conduzes sempre assim tão depressa?

- Querida, isto não é conduzir depressa.

Não insisti. Vimo-nos, num ápice, na ponte arqueada, abrandamos ligeiramente para, em seguida, a atravessarmos num rompante - o que me deu a volta ao estômago - e depois descermos em direção às obras rodoviárias. As luzes estavam verdes e Sinclair acelerou, pelo que depressa as ultrapassamos, antes que mudassem novamente para o vermelho.

Num instante, chegamos a Caple Bridge e ao limite de velocidade de quarenta quilômetros horários. Em consideração para com o chefe da polícia local e grande alívio meu, Sinclair abrandou e atravessamos a cidade com o Lotus a velocidade moderada, mas assim que a última casa ficou para trás, lá nos lançamos novamente estrada fora. Naquela altura não havia trânsito. A estrada, ligeiramente abaulada, curvava diante de nós, e o carro saltou em frente, fazendo lembrar um cavalo que tivesse tomado o freio nos dentes.

Chegamos ao local onde era suposto voltarmos, a pequena estrada lateral que seguia para sul, subindo em curvas sucessivas a ladeira íngreme que passava pelo topo de Bengaim. Para trás, ao fundo, ficaram campos, cultivados ou não; com os pneus a chiar, atravessamos o cercado do gado e vimo-nos então na coutada de caça onde somente havia rebanhos de carneiros de focinho escuro a pastarem indolentemente a erva vergastada pelo vento e entremeada de urze. O ar frio que entrava a rodos pela janela aberta cheirava a turfa e à nossa frente pairava uma névoa, mas, antes de mergulharmos no meio desta, Sinclair virou o Lotus e conduziu-o até um acostamento para veículos, desligando o motor em seguida.

A paisagem espraiava-se à nossa frente, com o vale tranqüilo sob um céu azul-turquesa claro, mais verde que azul, e banhado, a leste, pelo tom rosa do pôr do sol. Mais abaixo, o lago Elvie estendia-se em toda a sua magnitude, de águas lisas e brilhante como uma pedra preciosa, e o Caple parecia lembrar uma fita serpenteante e prateada. Reinava a maior das tranqüilidades; só o vento ciciava de encontro ao carro e ouvia-se o pipilar dos maçaricos.

Ao meu lado, Sinclair desapertou o cinto de segurança e, depois, ao ver que eu não me mexia para seguir o seu exemplo, inclinou-se para mim para me desprender o meu. Voltei-me então para o fitar e Sinclair, sem proferir uma palavra, pegou-me no rosto com as mãos enluvadas e beijou-me. Passado um bocado, afastei-o suavemente e perguntei-lhe:

- Querias falar comigo, não era?

Sorriu, de modo algum desarmado, e soergueu-se ligeiramente para meter a mão no bolso.

- Tenho aqui uma coisa para ti...

Tirou uma caixinha, que abriu; de repente, todo o céu pareceu refletir-se no fulgor estrelado dos diamantes.

Tive a sensação de que resvalava por um abismo, rolando por uma ravina íngreme e interminável. Voltei à realidade vacilante e estupidificada. Quando fui capaz de falar, só consegui dizer:

- Mas, Sinclair, esse anel não é para mim.

- Claro que é. Toma...

Pegou na jóia, atirou a caixinha para cima do tablier com um gesto displicente e, antes que eu pudesse impedi-lo, pegou-me na mão esquerda e enfiou-me o anel no dedo. Tentei retirá-la, mas ele não ma largou, fechando-ma e apertando-ma ao ponto de os diamantes mergulharem na minha carne, magoando-me.

- Mas, não pode ser para mim...

- É só para ti. Somente para ti.

- Sinclair, temos de falar.

- Foi para isso que te trouxe até aqui.

- Não, não é sobre nada disto. É acerca de Tessa Faraday.

Se me tivesse passado pela cabeça que o iria ver chocado, enganei-me.

- Que sabes tu sobre Tessa Faraday? - perguntou-me em tom complacente, sem se mostrar minimamente preocupado com o assunto.

- Sei que vai ter um bebê. Teu filho.

- E como foi que descobriste?

- Porque, na noite em que ela telefonou, eu ouvi tocar e levantei-me para ir atender, na extensão do piso de cima. Mas tu chegaste primeiro e eu ouvi-a... a dizer-te...

- Então eras tu... - observou Sinclair como que aliviado por ter resolvido um dilema aparentemente insignificante. - Bem me pareceu ouvir desligar na outra linha. Tiveste muito tato em não escutar o final da conversa.

- Mas que tencionas fazer acerca desse problema?

- Fazer? Nada.

- Mas aquela rapariga vai ter um filho teu.

- Querida Janey, não sabemos se a criança é minha ou não.

- Mas poderá ser tua.

- Oh, sem dúvida. Mas isso não significa que seja. E eu não tenciono assumir responsabilidades pelo descuido de outro homem.

Pensei em Tessa Faraday e na imagem que construíra em redor da sua pessoa: uma rapariga alegre e bonita, apoiada, sorridente, ao braço de Sinclair. A praticante dedicada e de sucesso de esqui, com o mundo que escolhera a seus pés; a jovem apreciada e admirada, a almoçar no Connaught com a minha avó. "É uma rapariga encantadora", dissera-me ela, que raramente se enganava acerca das pessoas. Nada daquilo tinha a ver com a impressão que Sinclair estava a tentar transmitir-me.

Cautelosamente, perguntei:

- Já lhe falaste no assunto?

- Precisamente.

- E que foi que ela disse?

Sinclair encolheu os ombros com indiferença.

- Respondeu que, se tivesse sabido da minha opinião, teria tomado outras providências.

- E consideraste o assunto arrumado?

- Sem dúvida. Deixamos tudo muito bem esclarecido. Não sejas demasiado ingênua, Janey, ela é uma rapariga vivida e sensata.

Durante todo aquele tempo, não atenuara um só momento a força com que me agarrava na mão, mas por fim largou-ma e eu pude então abri-la e esticar os dedos entorpecidos. Sinclair começou a rodar o anel de um lado para o outro entre o polegar e o indicador, como que a aparafusá-lo.

- Seja como for - continuou -, disse-lhe que tencionava casar contigo.

- Disseste-lhe o quê?

- Ora, querida, vê se me ouves logo à primeira. Disse-lhe que ia casar contigo...

- Mas não tinhas o direito de o fazer... nem sequer me pediste em casamento.

- Claro que te pedi. Sobre que pensas tu que estávamos a falar no outro dia? Que imaginaste que eu estivesse a fazer?

- A brincar.

- Pois bem... não estava. E mais, tu sabes que não estava.

- Não estás apaixonado por mim.

- Mas é evidente que estou. - Parecia falar com lógica. - E estar contigo, ter-te de volta a Elvie, é o melhor que alguma vez me aconteceu. Há uma frescura tão grande em ti, Janey... Umas vezes és ingênua como uma criança, outras, tens tiradas espantosamente ponderadas. E fazes-me rir; e acho-te deliciosamente atraente. E conheces-me quase melhor do que eu a mim próprio. Não achas que tudo isto é bem melhor do que estar simplesmente apaixonado?

Retorqui:

- Mas se casares com alguém, será para sempre.

- E então?

- Devias estar apaixonado por Tessa Faraday e agora já não queres saber dela para nada...

- Janey, essa situação foi completamente diferente...

- Diferente em que aspecto? Não vejo em quê.

- Tessa é atraente e alegre, uma companhia que apreciei muito... mas para o resto da vida... não.

- Ela vai ficar com aquele filho para o resto da vida.

- Já te disse que quase de certeza não é meu. - Saltava à vista que, no que dizia respeito àquele aspecto, Sinclair considerava-se invulnerável. Tentei outra perspectiva.

- Imagina, Sinclair, imagina apenas, que eu não queria casar contigo. Como te disse no outro dia, somos primos direitos...

- Já não é a primeira vez que acontece...

- Somos demasiado chegados... eu não gostaria de arriscar.

- Amo-te - declarou Sinclair.

Era a primeira vez que alguém me fazia semelhante declaração. Nos meus sonhos de adolescente, imaginara secretamente como seria. Mas nunca daquele modo.

- Mas... mas eu não te amo...

Sinclair sorriu.

- Falas com pouca convicção.

- Mas tenho a certeza. A certeza absoluta.

- Nem sequer o suficiente para... me ajudares?

- Oh, Sinclair, tu não precisas de ajuda.

- Mas aí é que te enganas. Se não casares comigo, cairei na maior das desgraças.

Era uma declaração de amor, no entanto não acreditei que fosse dita com esse sentimento.

- Falas em sentido literal, não é?

- Que perceptiva consegues ser, Janey. Sim, falo.

- Porquê?

Sinclair mostrou-se inesperadamente impaciente, largando-me a mão como se estivesse farto de segurar nela, procurando distração num cigarro. Tinha um maço num dos bolsos do casaco. Tirou um e acendeu-o com o isqueiro do painel de instrumentos.

- Ora, porque sim - respondeu finalmente.

Incentivei-o a que me explicasse do que se tratava.

Sinclair respirou fundo antes de começar a falar.

- Porque estou metido em dívidas até à ponta dos cabelos. Porque ou arranjo dinheiro para as pagar ou um empréstimo seguro, e não tenho possibilidades de conseguir nenhuma das duas hipóteses. E se tudo vier a lume, o que é bem provável que aconteça em breve, tenho a certeza absoluta de que o meu diretor me mandará chamar para me informar, relutantemente, que está muito grato, mas que pode passar muito bem sem os meus serviços.

- Queres dizer que ficarás desempregado?

- Não só és perceptiva como também de compreensão rápida.

- Como foi que arranjaste todas essas dívidas?

- Como é que achas que terá sido? A apostar em cavalos, na jogatina...

Dava a impressão de ser tudo muito inofensivo.

- Mas a quanto montam?

Sinclair disse-me. Custava-me acreditar que alguém tivesse tanto dinheiro, muito menos que o devesse.

- Deves estar louco. Queres dizer que simples jogos de cartas...

- Oh, por amor de Deus, Janey, basta uma única noite para perder tal quantia nalguns cassinos de Londres. E já lá vão uns bons dois anos.

Precisei de algum tempo para aceitar o fato de qualquer homem poder ser tão irresponsável. Sempre considerara o meu pai perfeitamente irrealista em relação ao dinheiro, mas o caso de Sinclair...

- A avó não podia ajudar-te? Emprestar-te o dinheiro?

- Já o fez anteriormente... sem grande entusiasmo, devo acrescentar.

- Portanto, já não é a primeira vez.

- Não, não é a primeira vez e tu podes tirar essa expressão chocada e confundida da cara. Além disso, a nossa avó não dispõe de tal quantidade de dinheiro assim à mão. Pertence a uma geração que acredita na aplicação segura do capital, no caso dela foram ações, investimentos e terrenos.

Terrenos. Aparentando indiferença, alvitrei:

- Mas então, por que não vender uma parte das terras? A... coutada de caça, por exemplo?

Sinclair lançou-me um olhar de relance, cheio de respeito relutante.

- A idéia já me tinha ocorrido. Arranjara, inclusivamente, um grupo de americanos mais do que ansiosos por comprar a coutada de caça ou, no caso de tal não ser possível, começarem por arrendá-la por uma quantia substancial. Para ser franco, Janey, foi com esse objetivo que tirei férias e vim aqui ao Norte para colocar a questão à avó. Mas, como não podia deixar de ser, ela nem sequer deseja pensar no assunto... apesar de eu não conseguir perceber que proveito lhe pode advir do fato.

- Já está arrendada...

- Por uma bagatela. A renda que essa associação paga mal dá para cobrir os gastos com as cartucheiras de Gibson.

- E quanto a Gibson?

- Ora, ele que vá para o diabo. De qualquer maneira, deu tudo o que tinha a dar, é altura de despachá-lo com uma reforma.

Ficamos em silêncio mais uma vez. Sinclair ia filmando e eu, a seu lado, tentava desesperadamente raciocinar com clareza. Concluí que o que me espantava não só era a sua atitude fria e indiferente - da qual já desconfiara -, nem o fato de se ter metido em tão grande trapalhada; era, simplesmente, o ter-se mostrado tão franco comigo. Ou desistira completamente da idéia de casarmos e portanto não tinha nada a perder, ou então tinha a sua pessoa em tão elevado conceito que se imaginava incólume a qualquer vicissitude.

Ia-me sentindo invadir por uma sensação de fúria. Raramente perco a calma e é preciso muito para chegar a esse ponto, mas quando tal acontece, perco a coerência por completo. Por ter consciência deste fato e ansiosa por evitá-lo, fiz por reprimir os meus sentimentos mais nobres e concentrar-me numa aparência fria e desprendida.

- Não percebo por que deverá ser mais uma decisão da avó do que tua. No final de contas, Elvie um dia pertencer-te-á. Se agora quiseres vender parcelas de terreno importantes, na minha opinião esse será um problema teu.

- O que te leva a dizer que Elvie um dia será propriedade minha?

- Claro que será. És seu neto. Não tem mais nenhum descendente direto.

- Falas como se a questão estivesse toda interligada, como se a propriedade tivesse passado de geração em geração, de pai para filho. Mas não é assim. Nunca foi. Pertence à nossa avó e, se ela preferir, pode deixá-la a um albergue para gatos.

- Mas porque não fazê-lo a ti?

- Porque, minha querida, sou filho do meu pai.

- E que quer isso dizer?

- Quer dizer que não presto, que sou um zé-ninguém, a ovelha negra da família. Um autêntico Bailey, se preferires.

Fitei-o sem compreender e, de repente, Sinclair riu desagradavelmente.

- Nunca ninguém te falou, querida e inocente Jane, do teu tio Aylwyn? O teu pai não te contou?

Sacudi a cabeça.

- Pois a mim contaram-me quando cheguei aos dezoito anos... como uma espécie de presente de aniversário indesejado. É que, sabes, Aylwyn Bailey não só era desonesto como também incompetente. Cinco dos anos em que esteve no Canadá foram passados na prisão. Por fraude, desfalques e Deus sabe que mais. Nunca te apercebeste de que parecia tudo um tanto artificial? Nada de visitas. Muito poucas cartas. E nem uma única fotografia em toda a casa? Ficou tudo tão óbvio que perguntei a mim mesma se, no fundo, eu não teria suspeitado sempre da verdade. Lembrei-me então da conversa que tivera com a minha avó há poucos dias e dos ligeiros vislumbres que ela me deixara entrever do seu filho único:

- Preferiu viver no Canadá e acabou por morrer lá. Elvie nunca teve grande significado para Aylwyn... Parecia-se imenso com Sinclair. E era extremamente encantador.

Perguntei, estupidamente:

- Mas porque foi que ele nunca mais voltou?

- Creio que vivia de uma espécie de mesada que recebia da sua terra... provavelmente, a avó pensava que eu ficaria muito melhor longe da sua influência. - Carregou no botão que baixava a janela do seu lado e deitou fora o cigarro meio consumido. - Mas a evolução dos acontecimentos levou a que o problema deixasse de ter qualquer importância. Eu simplesmente herdei a doença da família. - Sorriu-me. - E o que não tem remédio, remediado está.

- Queres dizer que todos os outros têm de remediar.

- Ora, também não é fácil para mim. Sabes, Janey, é estranho que tenhas tocado na questão de Elvie poder um dia vir a pertencer-me porque numa noite destas, quando eu e a avó falávamos em vender a coutada de caça e no que fazer com Gibson, essa era a minha última carta, a que tinha guardada na manga. "Elvie será minha um dia. Mais cedo ou mais tarde. Portanto, porque não poderia agora decidir o que fazer com ela?”.

Voltou-se para mim e sorriu... com o seu sorriso encantador e desarmante. - E tu sabes o que a nossa avó respondeu?

- Não.

- Disse: "Mas, Sinclair, aí é que tu te enganas. Para ti, Elvie não tem outro significado que não seja o de uma fonte de rendimento. Tu fizeste vida em Londres e nunca quererás vir para aqui. Elvie será para Jane”.

Então, era ali que estava o busilis da questão. A última peça do puzzle. Agora, o quadro estava completo.

- Portanto, é por essa razão que queres casar comigo. Para poderes dispor de Elvie.

- Dito assim não soa muito bem...

- Não soa bem!

-. . mas creio que não estás muito longe da verdade. Para além de todas as outras razões que já te apresentei. E que são verdadeiras e completamente sinceras.

A utilização que ele dava às palavras é que acabou por me fazer perder a cabeça, levando-me a dizer o que não queria.

- Verdadeiras e completamente sinceras! Sinclair, tu nem sequer sabes o significado dessas palavras e, no entanto, tens a coragem para as usar dessa maneira... dizendo-me tudo isto...

- Referes-te ao meu pai?

- Não, não falo do teu pai. Não quero saber do teu pai e tu também não. E também não me importo com Elvie. Nem sequer a quero e, se a avó ma deixar, recusa-la-ei, lançar-lhe-ei fogo ou da-la-ei, só para tu não lhe deitares essas tuas mãos gananciosas.

- É muito pouco caridoso da tua parte.

- Não pretendo ser caridosa. Tu não o mereces. Estás obcecado pelos bens, foste sempre assim. Tiveste sempre a mania de possuir as coisas... e se não podias tê-las, tirava-las. Comboios e barcos elétricos, raquetas de críquete e pastilhas elásticas quando eras criança. E agora carros sofisticados, um apartamento em Londres e dinheiro a rodos. Nunca estarás satisfeito. Mesmo que eu casasse contigo e te entregasse Elvie e tudo o resto, não seria suficiente...

- Estás a ser fantasiosa.

- Não acho. Não é esse o adjetivo adequado. Trata-se simplesmente de ter as prioridades corretas e saber que as pessoas são mais importantes do que os bens materiais.

- As pessoas?

- Sim, as pessoas. Sabes, seres humanos, com sentimentos e emoções e tudo o mais de que pareces ter-te esquecido, se é que alguma vez te apercebeste da sua existência. Pessoas como a nossa avó, Gibson e Tessa, essa jovem que poderá estar à espera de um filho teu... e não voltes a dizer-me que não és o pai porque eu sei que sim e, mais, tu também. Elas serviram os teus objetivos e tornaram-se excedentárias, portanto limitas-te a afastá-las do teu caminho.

- Tu, não - ripostou Sinclair. - Eu não estou a afastar-te do meu caminho, pelo contrário, quero levar-te comigo.

- Mas não levas.

O anel estava demasiado apertado. Arranquei-o à força do dedo, arranhando-o ligeiramente, mas consegui conter a vontade de lho atirar à cara. Peguei na caixinha de joalharia, coloquei-o sobre o veludo, fechei-a com um ruído seco e voltei a atirá-la para cima do tablier.

- Tinhas razão quando dizias que nos amávamos. Era verdade e eu sempre te considerei a pessoa mais maravilhosa do mundo. Mas acabei por descobrir que não só és uma pessoa desprezível como também estúpida. Se pensas que simplesmente aceitaria entrar no teu jogo como se nada tivesse acontecido, deves estar fora de ti. Deves ter-me na conta da maior das idiotas.

Para meu horror, ouvi a minha voz começar a vacilar. Afastei-me violentamente dele e fiquei sentada, a tremer, desejando estar ao ar livre ou numa sala enorme onde pudesse gritar, atirar objetos e entregar-me às mais variadas expressões de histeria. Mas não era assim. Encontrava-me presa no interior do espaço diminuto do carro de Sinclair e mal havia lugar para as nossas emoções em turbulência, quanto mais para nós.

Ouvi-o suspirar, a meu lado. Observou:

- Quem diria que voltarias da América tão cheia desses princípios tão sublimes.

- Não têm nada a ver com a América. Acontece simplesmente que é assim que eu sou e sempre serei. - Sentia-me à beira de um ataque de choro. - E agora quero voltar para casa.

Mas era demasiado tarde. Apesar dos meus esforços, comecei a chorar violentamente. Procurei um lenço meu, mas como não tinha nenhum acabei por ter de aceitar o que Sinclair me ofereceu, sem proferir palavra.

Limpei as lágrimas, assoei o nariz e, não se sabe por que razão ridícula, aquele ato terra-a-terra quebrou a tensão que pairava entre nós. Sinclair tirou dois cigarros do bolso, acendeu-os e passou-me um. A vida continuava. Reparei que, enquanto falávamos, começara a escurecer. A lua, que já deixara a fase de lua nova, mas que continuava a exibir uma curvatura graciosa, começava a despontar a leste. No entanto, a sua claridade era obscurecida pela névoa que caíra do pico da montanha e agora rodeava-nos.

Voltei a assoar-me. Perguntei:

- Que tencionas fazer?

- Sei lá.

- Talvez devêssemos falar com David Stewart...

- Não.

- Ou com o meu pai. Ele poderá não ter um espírito muito prático, mas é bastante ponderado. Podíamos telefonar-lhe...

- Não.

- Mas, Sinclair...

- Tens razão. São horas de voltarmos para casa.

- Ligou o motor, que começou a ronronar, sobrepondo-se a todos os outros sons. - Mas no caminho pararemos em Caple Bridge para tomarmos uma bebida. Penso que estamos os dois a precisar... pelo meu lado, não tenho dúvidas e, quanto a ti, dar-te-á tempo para ficares com a cara recomposta antes de a avó te ver.

- Que tem a minha cara de errado?

- Está inchada. Exatamente como quando tiveste sarampo. Faz-te parecer novamente uma menina.

 

O problema que enfrenta quem deseja tomar uma bebida na Escócia é o de tal iniciativa, tal como ir a funerais, ser uma prerrogativa masculina. Nenhuma mulher é bem-vinda a um bar público e, se um homem cometer o erro de levar a mulher ou namorada a um pub, não poderá deixar de levar a cabo tal divertimento num canto discreto, bem afastado dos olhares e ruídos dos outros clientes barulhentos.

Crimond Arms, em Caple Bridge, não era uma exceção a esta regra. Nesse princípio de noite, deparamos com uma sala fria e pouco hospitaleira, forrada a papel cor de laranja, mobiliada com mesas e cadeiras de palhinha e decorada com fiadas de patos de plástico e, aqui e ali, um vaso com flores de plástico poeirentas. Havia um aquecedor a gás, apagado, enormes cinzeiros de cervejaria e um piano vertical que, depois de um exame mais pormenorizado, viu-se estar firmemente fechado à chave. Teríamos de nos contentar em retirar proveito do que havia.

Deprimida e enregelada pela sala, pelos temores indefinidos que Sinclair me provocava e por tudo o que acontecera, sentei-me sozinha, aguardando que este se viesse juntar a mim. Finalmente chegou, trazendo consigo um pequeno cálice de xerez claro para mim e um uísque bem servido para ele. Perguntou imediatamente:

- Porque não acendeste o fogão?

Pensando no piano fechado à chave e no ambiente geral de rejeição, retorqui:

- Possivelmente não podemos fazê-lo.

- Não sejas tola - disse Sinclair, pegando num fósforo e ajoelhando-se para acender o fogão a gás.

Houve uma pequena explosão, no ar pairou um cheiro forte e depois um clarão provocado por chamas diminutas, e eu senti uma vaga de calor rodear-me os joelhos.

- Está melhor?

Não estava, já que o frio que eu sentia provinha de dentro de mim e calor algum me poderia aquecer; contudo, respondi afirmativamente. Satisfeito, Sinclair sentou-se numa pequena cadeira de palhinha colocada em cima do espalhafatoso tapete peludo, pegou num cigarro e acendeu-o, erguendo o copo de uísque na minha direção.

- A tua saúde - disse.

Era a saudação antiga e, naquele caso, reconhecida como uma bandeira de tréguas. Competia-me retribuir, respondendo da mesma maneira, mas não o fiz porque não sabia se alguma vez poderíamos voltar a ser amigos.

Depois disso, Sinclair não voltou a falar. Terminei o meu xerez, pousei o cálice vazio e, vendo que ele ainda ia a meio do seu uísque, disse que iria à procura dos lavabos das senhoras para me compor antes de encarar a minha avó. Sinclair retorquiu que ficaria ali à espera, de modo que me afastei, atravessando com dificuldade um pequeno corredor e depois subindo um lanço de escadas até deparar com o dito compartimento, que não era mais convidativo ou agradável que o do piso de baixo. Olhei-me ao espelho e vi que tinha o rosto manchado e entumescido, além da maquiagem dos olhos borrada. Lavei as mãos e a cara com água fria, encontrei um pente no bolso e desemaranhei o cabelo com a sensação constante de que tratava de um corpo sem vida, como nas histórias macabras sobre os agentes funerários americanos.

Demorei algum tempo e, quando voltei a descer, encontrei a sala lúgubre vazia, mas ouvi, por detrás da porta que deitava para o bar em si, a voz de Sinclair, que falava com o empregado, calculando que aquele tivesse aproveitado a oportunidade para se servir de nova dose e bebê-la em companhia mais animada.

Não me apetecendo ficar por ali, saí e fui para o carro esperar por Sinclair. Começara a chover e o local onde se realizava o mercado apresentava-se luzidio e escuro como um lago, tremeluzindo com o reflexo alaranjado das luzes dos candeeiros de rua. Sentei-me, encolhida e cheia de frio, faltando-me até mesmo a energia para acender um cigarro, até que ouvi a porta do Crimond Arms abrir-se e a silhueta de Sinclair recortar-se no umbral por momentos, indistinta, antes daquela se fechar e ele atravessar o pavimento molhado na minha direção. Trazia um jornal na mão.

Entrou no Lotus, sentou-se ao volante, fechou violentamente a porta e limitou-se a ficar ali sentado, respirando pesadamente. Cheirava a uísque e imaginei quantos não teria tido tempo para beber enquanto eu fora ao piso de cima passar o rosto por água. Passado um bocado, ao ver que ele não fazia menção de ligar o motor, perguntei:

- Há algum problema?

Sinclair não respondeu. Ficou, simplesmente, sentado de olhos baixos, notando-se-lhe a palidez no perfil e a sombra escura e densa das pestanas recortada nas maçãs do rosto.

Fiquei subitamente preocupada.

- Sinclair...

Entregou-me o jornal. Reparei que era o vespertino local, que Sinclair trouxera, provavelmente, do bar à luz dos candeeiros, li os cabeçalhos, que faziam referência a um acidente de camioneta, havia uma fotografia de um vereador da cidade recém-eleito, um artigo sobre não sabia que jovem de Thrumbo que alcançara êxito na Nova Zelândia...

Foi então que dei com a notícia, minúscula, ao fundo da página.

MORTE DE ESQUIADORA FAMOSA

Ontem de manhã, o corpo de Tessa Faraday foi encontrado no seu apartamento em Crawley Court, S. WI, Londres. A falecida tinha 22 anos e ganhara o Campeonato de Esqui Feminino do Inverno passado...

As letras começaram a dançar diante dos meus olhos e perderam-se. Cerrei as pálpebras, como que para afastar o horror que sentia, porém a escuridão só piorou a situação; nesse momento, percebi que a minha mente não podia fugir-lhe. Ela disse que tomaria outras providências, declarara-me Sinclair. É uma rapariga vivida. Sensata.

Estupidamente, disse:

- Mas ela matou-se...

Abri os olhos. Sinclair não se mexera. Ouvi-me a mim mesma dizer:

- Sabias de que outras providências se tratava?

Sinclair respondeu sombriamente:

- Pensei que ela tencionasse desfazer-se da criança.

De repente, tornei-me muito ponderada. Já não tinha dúvidas. Observei:

- Não era rapariga para ter medo de deixar vir o bebê. Não era desse gênero. Matou-se porque sabia que já não a amavas. Que ias casar com outra pessoa.

De repente, num acesso de raiva, Sinclair voltou-se para mim.

- Cala essa boca e não fales nada sobre ela, ouviste? Não fales dela, acerca dela, nem uma única palavra. Não a conheceste, portanto não faças de conta que sim. Não compreendes nem nunca seria de esperar que assim fosse.

E dizendo isto, ligou o motor, destravou o carro e, com um chiar violento dos pneus molhados no pavimento de pedras arredondadas, fez o Lotus dar a volta, atravessar a praça e seguir pela rua que conduzia ao exterior da cidade e, portanto, a Elvie.

Estava embriagado, assustado ou emocionalmente destroçado. Ou quem sabe os três estados ao mesmo tempo. Naquele momento, não havia lugar a regras de conduta ou até mesmo às precauções mais rudimentares. Sinclair fugia, perseguido por mil demônios, e a velocidade era a sua única defesa.

Atravessamos ruidosamente as ruas estreitas da pequena cidade, seguindo a grande velocidade rumo ao campo mergulhado nas trevas que se estendia em frente. A realidade ficou reduzida apenas à estrada que se desenrolava diante de nós, enquanto os pequenos sinais luminosos do centro da estrada passavam celeremente, a ponto de parecerem formarem uma entidade única. Nunca, até ali, me sentira verdadeiramente assustada em termos físicos na minha vida, mas naquele momento reparava que tinha os dentes de tal maneira cerrados que me doíam e o meu pé carregava tão fortemente num travão imaginário que tinha a impressão de que não tardaria a sofrer uma fratura da coluna. Demos a volta à última curva, não encontrando ninguém à nossa frente, até às obras rodoviárias em curso mais adiante. A luz do semáforo estava verde e, para passar antes que mudasse para amarelo Sinclair acelerou ainda mais o Lotus, que nos impeliu para a frente mais velozmente que nunca. Dei comigo a implorar fervorosamente: Oxalá a luz mude. Agora. Por favor, que a luz mude para vermelho.

Então, apenas a cerca de uma centena de metros, o milagre aconteceu e o semáforo mudou para o vermelho. Sinclair começou a travar e eu, nesse momento, soube o que devia fazer. O Lotus finalmente parou, no meio de um intenso chiar dos travões e eu, tremendo, abri a porta do carro do meu lado e saí.

Sinclair perguntou:

- Que estás a fazer?

Fiquei de pé, à chuva e no meio da escuridão, qual traça apanhada pelos feixes de luz do tráfego que se aproximava lentamente de nós, vindo do sentido oposto.

- Estou assustada - retorqui-lhe.

Sinclair ordenou muito suavemente:

- Volta para dentro do carro. Ficas toda molhada.

- Irei a pé.

- Mas estás a quilômetros de...

- Quero ir a pé.

- Janey...

Inclinou-se como que para me puxar para dentro do automóvel, porém eu afastei-me do seu alcance.

- Porquê? - quis saber.

- Já te disse, estou assustada. - E as luzes voltaram novamente ao verde... - tens de seguir ou ainda provocas um engarrafamento.

Como que para fortalecer as minhas palavras, uma carrinha buzinou atrás do carro de Sinclair. Fez um som rude e atrevido, daqueles que, noutras ocasiões e noutros lugares, ter-nos-iam dado vontade de rir.

Por fim, Sinclair disse:

- Está bem.

Pegou no manípulo da porta para a fechar, mas depois hesitou.

- Tinhas razão relativamente a um pormenor, Janey - disse.

- Qual?

- O bebê de Tessa era meu.

Comecei a chorar. No meu rosto, as lágrimas misturaram-se com a chuva e eu não fui capaz de as conter, de saber o que dizer-lhe, de descortinar maneira de o ajudar. Depois a porta fechou-se violentamente, interpondo-se entre nós, e eu deixei de o ver pois o carro afastou-se por entre os obstáculos e os sinais luminosos, cada vez mais velozmente, em direção à ponte.

Como num pesadelo, sem razão aparente, reparei que a minha cabeça ficava cheia de música, desafinada como a de um realejo, e a toada era a que Sinclair cantara no outro dia; nesse momento, quando já era demasiado tarde, arrependi-me de não ter ido com ele.

“Cá vamos, cantando e rindo, Pé a pé, passo a passo”.

De braço dado e em fila... ““.

Ao chegar à ponte, o Lotus subiu a lomba pronunciada como se estivesse numa corrida. As luzes traseiras desapareceram do outro lado da curva e no instante seguinte a noite tranqüila foi rasgada pelo chiar de travões e de pneus a derraparem no alcatrão escorregadio. Logo a seguir, o troar de metal despedaçado, de vidros estilhaçados. Comecei a correr, em vão, como acontece nos sonhos, tropeçando e fazendo saltar a água das poças, rodeada por avisos luminosos e marcos de sinalização mostrando a palavra PERIGO, mas ainda mal percorrera uma centena de metros sobre a ponte, quando chegou até mim o ruído surdo de uma explosão, ao mesmo tempo que, diante dos meus olhos, a noite era iluminada com o clarão avermelhado de chamas.

Só depois do funeral de Sinclair é que tive oportunidade para falar com a minha avó. Antes disso, qualquer tipo de conversa teria sido impraticável. Estávamos ambas em estado de choque e fugíamos instintivamente à menção do nome de Sinclair, como se o simples fato de falarmos dele pudesse abrir as comportas da nossa dor cuidadosamente controlada. Para além disto, havia imenso que fazer, inúmeras providências a tomar e numerosas pessoas a receber. Especialmente esta última parte. Velhos amigos, como os Gibson, Will, o jardineiro, o ministro, Jamie Drysdale, o assistente social de Thrumbo, que umas roupas sóbrias e uma adequada expressão de pesar piedoso transformaram em agente funerário. Houve que responder a um inquérito da polícia e aos telefonemas da imprensa. Chegaram flores e cartas, dezenas de cartas. Começamos a responder-lhes até que, a certa altura, desistimos, deixando-as amontoar-se no tabuleiro de bronze do vestíbulo.

A minha avó, que pertencia a uma geração que não receia a idéia da morte, portanto não se deixa perturbar pela sua aparência exterior, fizera questão num funeral à moda antiga, assistindo ao mesmo sem vacilação visível, mesmo quando Hamish Gibson, de partida para o seu regimento, tocou "As Flores da Floresta" na sua gaita de foles... Cantara os hinos na igreja, mantendo-se de pé durante cerca de hora e meia, a receber os cumprimentos dos presentes; não se esqueceu de agradecer mesmo àqueles que tinham desempenhado as tarefas mais humildes.

Mas naquele momento estava fatigada. Mrs. Lumley, que a emoção e a necessidade de estar de pé deixaram exausta, fora para o seu quarto descansar um pouco os pés inchados, de modo que eu, depois de acender a lareira da sala de estar, instalei a minha avó junto desta e fui à cozinha preparar um pouco de chá.

Em frente do fogão, aproveitando o calor que este emitia à espera de que a água fervesse, espraiei distraidamente o olhar para o panorama acinzentado que se vislumbrava do lado de lá da janela. Estava-se já em Outubro e a tarde apresentava-se fria e tranqüila. Nem uma brisa agitava as poucas folhas que restavam nas árvores. O lago, refletindo o céu cinzento, estava pardo e parecia uma folha de alumínio, as colinas ao fundo exibiam suavemente as suas florescências, que faziam lembrar pedras preciosas. No dia seguinte, ou talvez no outro, quem sabe ficariam queimadas pelas primeiras neves - já estava suficientemente frio para tal - e entraríamos no Inverno.

A água da chaleira começou a ferver, pelo que preparei o chá e levei-o para a sala de estar, onde o entrechocalhar da louça e o estralejar da lenha a arder foi reconfortante, como o são as pequenas coisas em face de grandes tragédias.

A minha avó tricotava um barrete de criança em tons escarlate e branco que se destinava, calculei, à venda de Natal da igreja. Imaginando que tivesse vontade de ficar em sossego, pousei a minha chávena vazia, acendi um cigarro e estava a ler o jornal, meio-perdida numa crítica a uma peça recém-estreada, quando, de súbito, ela falou.

- Tenho-me sentido muito culpada, Jane. No outro dia, quando estávamos sentadas no jardim e começaste a fazer-me perguntas acerca de Aylwyn, devia ter-te falado nele. Estive quase a fazê-lo, mas depois algo me fez mudar de idéias. Foi uma grande estupidez minha.

Eu baixara o jornal e dobrara-o. As agulhas dela tiniam suavemente de encontro uma à outra, mas continuava de olhos fixos no trabalho.

Disse-lhe:

- Sinclair contou-me...

- Ah, sim? Sempre pensei que o fizesse. Era muito importante para ele. Teria gostado que tu soubesses. Ficaste muito chocada?

- Porque haveria de ficar?

- Por uma série de razões. Por um lado, por ele ser desonesto. Por ter sido preso. Por eu ter tentado ocultar tudo isso de vocês os dois.

- Provavelmente, terá sido melhor. Saber não nos trouxe nenhum benefício. Nem a ele.

- Sempre imaginei que o teu pai chegasse a falar-te do assunto.

- Não o fez.

- Fez bem. Ele sabia como tu gostavas de Sinclair.

Pousei o jornal e sentei-me no tapete - um lugar ótimo para confidências.

- Mas porque seria Aylwyn assim? Porque não se parecia contigo?

- Era um Bailey - retorquiu a minha avó com simplicidade. - E os Bailey nunca foram nada de jeito, apesar de serem as pessoas mais encantadoras do mundo. Não valiam um tostão e não havia quem menos se preocupasse em ganhar a vida decentemente.

- O seu marido era assim?

- Oh, sem dúvida. - Sorriu de si para si, como quem lembra uma graça passada. - Sabes qual foi a primeira peripécia que sucedeu depois de casarmos? O meu pai pagou-lhe todas as dívidas. Mas ele não precisou de muito tempo para arranjar mais algumas.

- A avó amava-o?

- Loucamente. Mas depressa percebi que casara com um irresponsável que não tinha a menor intenção de se modificar.

- Mas foi feliz.

- Ele morreu pouco depois do casamento, não tive tempo para me sentir de alguma outra maneira. Mas nessa altura apercebi-me de que estava entregue a mim mesma e decidi que seria melhor para os meus filhos eu começar tudo de novo bem longe dos Bailey. Portanto, comprei Elvie e trouxe-os para aqui. Achei que tudo seria diferente. Mas tu sabes que o meio ambiente não produz grandes alterações na hereditariedade, independentemente do que Os psicólogos infantis possam dizer. Já te contei o que aconteceu a Aylwyn. Vi-o crescer e transformar-se numa segunda versão do pai, sem que eu pudesse fazer nada para o impedir. Cresceu, foi para Londres e arranjou emprego, mas não tardou que se metesse em complicações financeiras. Claro que o ajudei, vezes sem conta, até que um dia, como não podia deixar de ser, não tive possibilidades para tal. Movimentara umas ações ou cometera uma fraude qualquer, pelo que o diretor da firma declarou, com toda a razão, que se tratava de um caso de polícia. Mas eu acabei por convencê-lo a não apresentar queixa e ele acedeu, desde que Aylwyn se comprometesse a nunca mais exercer em Londres. Por isso, partiu para o Canadá. Mas, como é evidente, tudo voltou a repetir-se de novo e dessa vez o pobre Aylwyn já não teve tanta sorte. Sabes, Jane, tudo teria sido diferente se ele tivesse casado com uma rapariga sensata, com os pés assentes no chão e personalidade forte para aí também manter os de Aylwyn. Mas Silvia era tão "cabeça no ar" quanto ele, não passavam de um par de crianças. Deus sabe por que terá ela, antes de mais nada, decidido casar com ele, talvez imaginasse que tinha dinheiro; dificilmente se poderia acreditar que estivesse apaixonada, tal foi a ligeireza com que abandonou Aylwyn e a criança.

- Por que razão Aylwyn nunca mais voltou do Canadá?

- Por causa de Sinclair. Às vezes, vale mais ter a imagem de um pai do que... o próprio pai. Sinclair é... - corrigiu-se, mal se lhe notando um tremor na voz. - Sinclair era outro Bailey. É espantoso como um único traço de caráter se pode transmitir de geração em geração.

- Refere-se à questão do jogo e do resto.

- Sinclair falou contigo, não foi?

- Um pouco.

- Ele não tinha necessidade de enveredar por aquele caminho, sabes. Dispunha de um bom emprego, de um salário compensador e, no entanto, não conseguia levar uma vida normal. Mas o fato de não compreendermos os motivos nunca nos tornaria incompatíveis, embora às vezes me pareça que Sinclair não tinha outros interesses na vida.

- Mas ele adorava vir a Elvie.

- Somente de tempos a tempos. Não sentia por este lugar o mesmo que a tua mãe... ou tu. A propósito... - trocou a posição das agulhas e começou nova fiada. - Achei, já faz algum tempo, que seria boa idéia deixar Elvie para ti. Que tal te parece a idéia?

- Não sei...

- Foi sobretudo por essa razão que eu andava tão ansiosa para que o teu pai te deixasse cá vir e o bombardeava com cartas às quais o malandro se recusava a responder. Queria falar contigo acerca de Elvie.

Observei:

- É uma idéia maravilhosa, mas eu tenho medo de possuir coisas... não sei se gostaria de ficar presa a todas as responsabilidades a que um lugar como Elvie me obrigaria. E deixaria de ter liberdade de movimentos.

- Pareces uma fraca e falas muito à maneira do teu pai. Se ele fosse mais realista em relação aos bens terrenos, nesta altura já talvez tivesse lançado algumas raízes, o que também é bom. Não queres ter raízes, Jane? Não tens vontade de casar e criar uma família?

Olhei para o fogo e passaram-me pela cabeça várias idéias.

Lembrei-me de Sinclair e do meu pai... e de David. Também pensei no mundo que já vira, nos seus caminhos imensos que ansiava um dia poder percorrer. E depois imaginei Elvie cheia de crianças, os meus filhos, a serem criados naquele lugar perfeito e a repetirem as mesmas brincadeiras que Sinclair e eu tivéramos...

Finalmente, retorqui:

- Não sei o que quero. A verdade é essa.

- Não me pareceu que soubesses. Além disso, hoje nenhuma de nós está com cabeça para pensar ponderadamente sobre o que quer que seja, portanto a ocasião não é a mais propícia para falarmos deste assunto. Mas devias ir refletindo sobre ele, Jane. Pesa os prós e os contras. Temos todo o tempo do mundo para falar nele.

Um dos toros quebrou-se, caindo sobre as brasas incandescentes. Levantei-me para o substituir por outro, e como já estava de pé aproveitei a ocasião para pegar no tabuleiro do chá e levá-lo para a cozinha. Quando ia a chegar à porta, equilibrando o que levava nas mãos de maneira a alcançar a maçaneta, a minha avó voltou a falar, chamando-me.

- Jane.

- Sim?

Voltei-me para ela, com o tabuleiro nas mãos. Reparei que parara de tricotar e tirara os óculos, permitindo-me ver o azul dos seus olhos, que sobressaíam na palidez do seu rosto. Nunca a vira tão esvaecida. Nem os anos pesarem-lhe tanto.

- Jane... lembras-te de termos falado em Tessa Faraday, a amiga de Sinclair, no outro dia?

Cerrei os punhos com força em volta das pegas do tabuleiro, ficando com os nós dos dedos brancos. Sabia o que estava para vir e rezei para que não acontecesse.

- Sim.

- Li no jornal que morreu. Algo relacionado com uma dose excessiva de comprimidos. Soubeste?

- Sim, soube.

- Nunca disseste nada.

- Pois não.

- Teve... teve algo a ver com Sinclair?

Os nossos olhares entrecruzaram-se, fixando-se um no outro. Naquele momento, teria dado a alma para ser capaz de mentir sem me trair. Mas era algo superior a mim e a minha avó conhecia-me muito bem. Nunca teria conseguido enganá-la.

Respondi:

- Sim, teve.

E a seguir:

- Ia ter um filho dele.

Os olhos da minha avó encheram-se de lágrimas e foi a única vez que a vi chorar.

 

David apareceu na tarde seguinte. A minha avó estava a escrever cartas e eu retirara-me para o jardim, entretendo-me a apanhar folhas do chão, já que certa vez me tinham dito que o trabalho físico é a melhor forma de terapia que existe para curar os males do espírito. Já fizera um pequeno monte e estava prestes a removê-lo para um carrinho de mão quando as portas envidraçadas se abriram e David saiu para vir para junto de mim. Endireitei-me e observei-o enquanto atravessava o relvado, alto e magro, com o cabelo despenteado pelo vento, e nesse momento apercebi-me de que dificilmente poderia ter passado aqueles últimos dias sem ele. Encarregara-se de todas as providências, arranjando mesmo tempo para telefonar diretamente ao meu pai a fim de o informar do falecimento de Sinclair. E nesse momento tive a certeza de que, fosse qual fosse o destino que nos esperava, eu nunca mais deixaria de lhe estar grata.

Percorreu a última parcela de terreno com uma passada larga e deteve-se ao meu lado.

- Jane, que tenciona fazer com esse punhado de folhas?

- Pô-las no carrinho de mão - respondi, assim fazendo. Escusado será dizer que as ditas folhas ficaram a pairar no ar, acabando por se espalhar de novo.

- Se conseguir juntar-lhes umas lascas de madeira, acelerará consideravelmente o processo. Trouxe-lhe uma carta...

Tirou-a do bolso amplo e eu vi que era do meu pai.

- Como foi que chegou às suas mãos?

- Vinha junto de outra que me escreveu. Pediu-me que lha entregasse.

Deixamos o carrinho de mão e a vassoura, descemos até ao jardim, saltando o valado que deitava para o campo e seguindo até ao velho bote, em cujas tábuas pouco seguras nos sentamos; abri a carta e li-a em voz alta a David.

“Minha querida Jane”:

Lamento profundamente o que aconteceu a Sinclair e o teu envolvimento na sua morte. Porém, estou satisfeito por poderes estar junto da tua avó, que deve precisar bastante de ti neste momento. Sinto-me culpado - já desde que te foste embora - por te ter deixado voltar a Elvie sem te pôr ao corrente do que se passou com o teu tio Aylwyn. Mas por uma razão ou outra, a que acresce a forma inesperada com que te foste embora, nunca houve oportunidade para tal. No entanto, falei da questão a David Stewart, que me prometeu olhar por ti e pela situação em geral.”“.

Observei:

- Mas o David nunca me falou de nada.

- Não era da minha conta.

- Mas estava a par de tudo.

- Claro que estava.

- E também sabia da situação de Sinclair?

- Sabia que andava a gastar muito dinheiro à sua avó.

- O pior ainda está para vir, David.

- Que quer dizer?

- Sinclair morreu, mas deixou uma dívida enorme.

- Era o que eu receava que acontecesse. Como foi que soube?

- Ele contou-me. Isso e muitas outras coisas. - Prossegui a leitura da carta.

"A razão que me levava a encarar o teu regresso a Elvie com tanta ansiedade não tinha tanto a ver com o que o teu tio fora, mas com o que tinha a certeza absoluta de o teu primo Sinclair ser. Quando a tua mãe morreu, a tua avó sugeriu-me que te deixasse ao seu cargo, o que realmente teria sido o mais razoável. Mas havia o problema de Sinclair. Eu sabia como gostavas dele e o que ele significava para ti, e estava seguro de que, se continuasses a vê-lo com tanta regularidade, mais tarde ou mais cedo terias um grande desgosto ou apanharias uma grande desilusão. Qualquer das duas hipóteses seria penosa, se não mesmo desastrosa, de modo que optei antes por trazer-te comigo e criar-te na América...”

David interrompeu-me.

- Gostaria de saber por que tinha tanta certeza em relação a Sinclair.

Lembrei-me do livro de Goldsmith, a Natureza Viva, e ainda pensei em contar toda a história a David. Mas depois decidi não o fazer. O livro já não existia. No dia a seguir à morte de Sinclair, fora buscá-lo ao armário deste, levara-o para baixo e enfiara-o no fogão a lenha, ficando a vê-lo arder. Agora já não restavam vestígios dele. Era melhor votá-lo ao esquecimento, por uma questão de lealdade para com Sinclair.

- Não sei... Imagino que por instinto. O meu pai foi sempre muito perspicaz e é impossível alguém levá-lo ao engano.

Continuei a ler.

“Foi também por esta razão que tive tanta relutância em responder aos pedidos que a tua avó me fazia para que regressasses a Elvie. Se Sinclair tivesse casado, seria diferente; mas eu sabia que não era o caso, o que me deixava profundamente apreensivo”.

Imagino que pretendas permanecer em Elvie por uns tempos, mas por aqui os negócios têm andado muito bem. Sam Carter tem-me arranjado bons trabalhos, portanto estou cheio de gaita, como se costuma dizer, e poderei comprar-te um bilhete de volta a esta Califórnia ensolarada assim que quiseres. Sinto muito a tua falta e Rusty também. Mitzi, a cadelinha-d'água, não consegue preencher convenientemente o teu lugar, embora Linda esteja decidida a que os dois se apaixonem loucamente e formem família quando for a altura adequada e a lua estiver no quarto certo; mas eu sou de opinião de que nem sequer é bom pensar em semelhante possibilidade.

Linda está bem, adora Reef Point e o que chama de vida simples, e começou, surpreendentemente, a dedicar-se à pintura. Não sei se o meu instinto está certo ou errado, mas tenho a impressão de que o trabalho dela não é nada de se deitar fora. Quem sabe ainda venha a poder sustentar-me no estilo a que gostaria de me habituar. O que é mais do que alguma vez poderia dizer para ti.

Beijinhos do pai amigo.”“.

Dobrei a carta em silêncio, meti-a dentro do envelope, que depois guardei no bolso do casaco. Pouco depois, observei:

- Parece-me que ele está a tentar convencê-la a casarem. Ou então é o contrário. Não sei de qual das duas situações se trata.

- Quem sabe, se calhar é mútuo. Era idéia que lhe agradasse a si?

- Sim, creio que sim. Assim, já deixaria de me sentir responsável por ele. Estaria livre.

A palavra tinha um sabor tristemente vazio. Começara a fazer muito frio e de repente estremeci; David rodeou-me os ombros com um dos braços e chegou-me a si, de maneira a aquecer-me com o calor do seu próprio corpo, enquanto eu apoiava a cabeça no ombro forte protegido pelo tecido de tweed.

- Nesse caso - disse -, talvez seja uma boa altura para eu a convencer a casar com um simples advogado de província que se apaixonou por si no primeiro instante em que a viu.

Retorqui:

- Ele não precisaria de muito trabalho.

O braço dele tornou-se mais forte e senti-lhe os lábios roçarem-me pela testa.

- Não se importaria de viver na Escócia?

- Não. Desde que arranje muita clientela em Nova Iorque e na Califórnia e quem sabe ainda mais longe, e prometa seriamente levar-me consigo sempre que for visitá-los.

- Não parece objetivo muito difícil de alcançar.

- E gostaria de ter um cão.

- Claro que sim. Não outro Rusty, evidentemente, esse é único. Mas talvez algum com antepassados semelhantes e igual esperteza e encanto.

Virei-me para ele e enterrei o rosto no seu peito. Por um instante pavoroso, pensei que ia chorar, mas tal seria ridículo, as pessoas não choram quando estão felizes, só nos livros.

Disse:

- Amo-te.

David apertou-me fortemente de encontro a si e acabei por chorar, o que, afinal de contas, não teve importância.

Ali ficamos sentados, protegidos pelo casaco de David, a traçar planos irrealistas - como, por exemplo, casarmos na Missão de Reef Point e pedirmos a Isabel McKenzie que me tricotasse um vestido de noiva - o que, inevitavelmente, nos fez rir a bom rir. Portanto, pusemos aqueles de lado e fizemos outros, e tão entretidos estávamos que nem reparamos que a noite caíra e o ar começara a tornar-se cada vez mais gélido. Por fim, fomos obrigados a voltar à realidade pela minha avó, que abrira a janela e chamara-nos, dizendo que o chá estava pronto; Levantamo-nos então, entorpecidos e enregelados, e voltamos para casa.

O jardim mergulhara numa obscuridade repleta de sombras. Não voltáramos a falar de Sinclair, mas senti-o imediatamente em todo o lado, não o homem, mas o menino de quem me recordava. Vi-o correr, ligeiro, por cima do relvado, e das sombras traçadas pelas árvores chegou-nos o restolhar suave de folhas caídas. E duvidei de que Elvie se libertasse alguma vez da sua lembrança, o que me entristeceu pois, acontecesse o que acontecesse e fosse quem fosse que ali vivesse, não gostaria de que aquele lugar ficasse assombrado.

David, que seguia à minha frente, parara para pegar na minha vassoura e no carrinho de mão, colocando ambos de lado, para não impedirem a passagem. Depois ficou à espera, com a sua silhueta alta tendo por fundo as luzes que iluminavam a casa.

- Que se passa, Jane?

Respondi-lhe:

- Fantasmas.

- Não existem - disse-me David.

Olhei com mais cuidado e verifiquei que ele tinha razão. Havia somente o céu, a água e o vento a agitar as folhas. Não havia fantasmas. Aproximei-me dele e demos as mãos, dirigindo-nos, juntos, para dentro de casa, onde nos esperava o chá da tarde.

 

                                                                                            Rosamunde Pilcher  

 

                      

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