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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FIM / Fernanda Torres
FIM / Fernanda Torres

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

F I M

 

         ÁLVARO

         26 de setembro de 1929 a 30 de abril de 2014

Morte lenta ao luso infame que inventou a calçada portuguesa. Maldito d. Manuel I e sua corja de tenentes Eusébios. Quadrados de pedregulho irregular socados à mão. À mão! É claro que ia soltar, ninguém reparou que ia soltar? Branco, preto, branco, preto, as ondas do mar de Copacabana. De que me servem as ondas do mar de Copacabana? Me deem chão liso, sem protuberâncias calcárias. Mosaico estúpido. Mania de mosaico. Joga concreto em cima e aplaina. Buraco, cratera, pedra solta, bueiro-bomba. Depois dos setenta a vida se transforma numa interminável corrida de obstáculos.

A queda é a maior ameaça para o idoso. “Idoso”, palavra odienta. Pior, só “terceira idade”. A queda separa a velhice da senilidade extrema. O tombo destrói a cadeia que liga a cabeça aos pés. Adeus, corpo. Em casa, vou de corrimão em corrimão, tateio móveis e paredes, e tomo banho sentado. Da poltrona para a janela, da janela para a cama, da cama para a poltrona, da poltrona para a janela.

Olha aí, outra vez, a pedrinha traiçoeira atrás de me pegar. Um dia eu caio, hoje não.

Um dia. Um dia já foi tão longe. Cruzei com o Ribeiro na Francisco Sá, não nos víamos há tempos, ele disse para a gente se encontrar “um dia desses”. Morreu no seguinte. Que horror estava o Caju, aquele forno de Auschwitz. As tumbas pareciam derreter. Passei mal no crematório, acharam que era emoção. Não deixava de ser. Estava ótimo, o Ribeiro. Jogou vôlei até o último entardecer, saiu da praia e apagou no banho, infarto fulminante. Não tenho mais amigos vivos, o Ribeiro era o último. Eu tinha certeza de que ele ia me enterrar, corria, nadava, parou de fumar aos quarenta e se recusou a ficar brocha. A irmã acha que foi o Viagra. Comeu muita gente o Ribeiro, ele dava muita importância para isso.

Antes dele foi o Sílvio. Ou o Ciro? Não, o Ciro foi o primeiro, de câncer, antes do Neto e da mulher do Neto. O Neto não aguentava a Célia, mas morreu um ano depois dela. Vai entender. Era insuportável a Célia, depois de velha, então, virou uma mulher amarga, ranzinza, feia. O Neto não suportou a paz.

Pensar que a Célia foi uma noiva gostosíssima. Devia ter morrido ali, no auge. Se o Neto soubesse, não tinha chorado o que chorou no altar. Homem é um bicho muito bobo.

O Sílvio partiu num fevereiro de Carnaval. Ele abriu os trabalhos na sexta e emendou dez dias virado. No domingo da outra semana, deixou três vadias de prontidão no apartamento e saiu para comprar mais pó, misturou com tudo e o coração não segurou. Encontraram o Sílvio emborcado na Lapa, perto da Mem de Sá, com um lança-perfume na mão e cinco gramas de cocaína no bolso. O Sílvio bebia, normal, mas quando veio a menopausa, eu sei que é andropausa, mas não gosto de andropausa; é que nem siririca, que é um nome repugnante, melhor punheta, independente do gênero; enfim, veio a menopausa e o Sílvio despirocou. Ele conheceu umas gurias novinhas do Sul, libidinosas, traficas, e virou escravo das duas. A gente parou de se ver com as gaúchas, elas tiraram ele de circuito. Deus mandou duas diabas frígidas para acabar com a raça dele. Foi castigo. Que ano foi isso? Não sei, já foram tantos: os anos e os amigos.

 

Não faz muito tempo, ir da minha casa até o consultório do Mattos, Mattos é o meu clínico geral, me custava dez minutos a pé. Hoje, levo quarenta. Andar deixou de ser um ato inconsciente. Vigio os passos, os joelhos, mantenho a atenção na rota. Tudo dói, pelas razões mais diversas, todas condizentes com a velhice. O Mattos me mandou para mais de dez especialistas. Um quer operar a catarata, o outro, a vesícula, todos me entopem de remédios. O dr. Rudolf acha que minhas veias já não seguram a pressão do sangue, planeja meter canículas na femoral, na aorta. Fico quieto, finjo que não estão falando comigo. São uns neuróticos esses médicos, vaidosos, brutais. Queria ver um deles encarar a faca.

Opa! Fezes caninas. Como se não bastasse. No meu prédio tem uma senhora que cria uns minicães histéricos e de latido fino. Todo fim de semana ela viaja e deixa as bestas trancadas na área de serviço. Eles ganem de solidão. Ainda denuncio a bruxa do 704 por maus-tratos. Considero humilhante recolher cocô com saquinho. Entendo os que deixam para lá, só não aceito o sujeito mofar com um cachorro dentro do apartamento.

Me arrependo de todos os bichos de estimação que tive. Infelizes, carentes, sujos. Quatro cachorros e um gato. O primeiro morreu de velho, cego, manco e fedido. O gato foi esquartejado pelo pai, tinha um complexo de Édipo retumbante, era fissurado na mãe. Os outros cachorros definharam por motivos diversos, todos horrendos: cinomose, tumor e veneno. Minha mãe espalhou mata-rato pelo jardim e esqueceu de prender o Bóris. Nunca mais confiei nela. Coitada, limpava o jornal, trocava a água, levava no veterinário, chorou como se tivesse perdido um filho, e mesmo assim não perdoei.

Não há nada mais egoísta do que criança. Não suporto meus netos. Moram longe, melhor para eles. São barulhentos, interesseiros. Amei minha filha até ela completar cinco anos, depois não aguentei a histeria dela, da minha mulher com ela, dela com as empregadas. Eu fazia qualquer coisa para não ter que voltar para casa. Acho que só tive um caso com a Marília para ter para onde ir depois do trabalho. Eu adorava o apartamento da Marília, ficava lá fazendo hora até umas dez, bebendo e ouvindo sem escutar a conversinha mole dela.

Eu não fazia questão de sexo, me empenhava mais por ela. Gostava era da casa pequena, mas muito agradável, no Jardim Botânico, com uma área no térreo onde ela criava uns cágados.

Nunca fui chegado a taras. Gostava na hora, mas tinha preguiça de começar. E as mulheres, invariavelmente, transferem para o homem a obrigação de estar a fim. Como eu nunca estava, os casos amorosos duravam o tempo da sedução.

O casamento é o estado civil mais indicado para homens que, como eu, não gostam de conviver com os outros. Nada mais exaustivo do que administrar encontros e expectativas. Um mau casamento pode ser ótimo para ambas as partes, e o meu foi assim. A Irene abstraiu das tentações e eu também, vivíamos confortavelmente em dois quartos, tudo muito triste e civilizado. Um dia, ela se deu conta de que estava envelhecendo, que aquela era a última chance de foder, e gozar, e amar loucamente, aquelas coisas que mulher acredita que existem. Desconfio que foi a adolescência da Rita que tirou a Irene do prumo. Ela entrou para uma análise de grupo e deu para o Jairo, o gerente do clube, foi chato. Nenhum homem convive bem com a cornidão. Tive que parar de nadar na piscina, eu gostava muito daquela piscina, mas a titular era ela.

A Irene se arrependeu, só que já era tarde. Eu me descobri sozinho, sem culpa, porque foi ela que me deixou, e ainda me interessei por umas duas outras moças, bem ao contrário da Irene, que deu com os burros n’água e nunca mais teve ninguém depois do remador do clube. Ele era casado e, em um mês, já não atendia os telefonemas dela. Toda mulher é ingênua. Não nos vemos há trinta anos, passamos quinze juntos. Comecei a ficar brocha com a Aurora, a segunda mulher que arrumei depois da Irene. Minto, a coisa já não ia bem com a Irene, mas com a Aurora foi definitivo. Sofri uns bons anos, até que relaxei. Adeus, hormônios, adeus, garotas, adeus, silêncio penoso no quarto, adeus, olhos piedosos. Serei franciscano. Sátiro e franciscano.

Meu pai era igual ao Ribeiro, não aceitava a própria brochura. Me lembro de uma Páscoa, ele e minha mãe radiantes, eu perguntei qual era o segredo. Meu pai bateu com a mão na coxa dela e disse que a vitamina dele era “essa mulher aqui”. Fiquei com orgulho deles. No aniversário de setenta e cinco anos da minha mãe, ela me chamou num canto e disse que não aguentava mais tentar fazer o pau do meu pai ficar duro. Dava muito trabalho, ela estava cansada, se sentia obrigada, não queria mais. Chegou a dizer para ele procurar outra, que não se importava, mas ele fechou o tempo. Fiquei muito constrangido com aquela conversa, a Irene estava no pico da crise, e eu sempre fui contra pai e mãe ficarem falando de sexo com os filhos. Ela queria que eu o convencesse a deixar ela quieta.

Abri a porta do quarto, tudo fechado, ele na cama de mau humor. Perguntei como iam as coisas e ele respondeu que mal, muito mal: a minha mãe tinha um caso com o corretor de seguro. Endoidara. A esclerose fez do meu pai um homem paranoico, ciumento e delirante, que acusava a mulher de ter pulado a cerca com uma lista extensa de homens que conviveram com eles desde o casamento. Logo ela, que guardou a virgindade e nunca se atreveu a querer ninguém. Ele tinha uma arma em casa e veio com uma história de que ia dar um tiro na minha mãe e depois se matar. Joguei a pistola no mar.

Eu a trouxe para morar comigo, o que agravou ainda mais a insatisfação da Irene. Virei um para-raios de problemas familiares, a Rita repetiu de ano, a cozinheira foi embora, o último cachorro estrebuchou, deu um vazamento no banheiro, tudo contra. Internamos o velho num asilo em Maricá, onde ele morreu convencido de que havia passado cinquenta e nove anos com uma adúltera compulsiva. A Irene devia ter casado com ele. Estariam trepando até hoje.

Olha a bicicleta! Todo ciclista é assassino, suicida e assassino.

Me olho no espelho e vejo a tia Suzel. Culpa do estrogênio, me explicou o Mattos, que deixa os velhos com cara de velhas e as velhas com cara de velhos. Tia Suzel morreu solteira e virgem, com oitenta e seis anos. Desses, vinte e seis ela passou abanando o bafo quente do Andaraí com a ventarola, repetindo que queria morrer. Dava vontade de fazer a vontade dela. Uma tarde, Suzel caiu da escada — a queda — e nunca mais rejuntou. Ela morava com a sobrinha num prédio de três andares sem elevador. Hoje, me visita no espelho.

O sinal está fechado, não vem carro, mas não arrisco um tropeço. Espero o verde como um alemão educado. Calor sudanês. Fritei muito ovo no paralelepípedo da Penha da minha infância. O Rio sempre foi quente, não é novidade, não tem nada a ver com essa besteirada de Greenpeace. Desde que eu me conheço por gente que o mundo vai acabar.

Guardo uma lembrança embaçada dos efeitos da testosterona. Não sei mais o que é ser jovem, é como falar de outra pessoa. Nunca fui muito ativo. Eu e o Ribeiro saíamos muito, bebíamos demais, demais. Troquei o dia pela noite, engordei, criei uma barriga dura, sustentada por dois gambitos e um pescoço curto que equilibra a careca lustrosa.

O Ribeiro não, esse saía da boate e ia direto para a praia, só dormia depois de correr do Posto 1 ao 6, ida e volta, non-stop. Ele demorou muito para perder cabelo, o que lhe deu alguns anos extras de vida ativa como Don Juan do Calçadão. O Ribeiro não casou, dava aulas de educação física e tinha fixação nas alunas de dezessete, chegou a apanhar de um pai. Hoje, estaria preso. Sempre achei que o Ribeiro fosse imortal. Ninguém é.

Quem irá ao meu enterro?

Casei depois do Ciro e fui um dos últimos a me separar. Em dez anos todos fizeram o mesmo. O Neto não. O Neto encarou a Célia até o fim. Coitado, nunca soube o que é ficar no banheiro de porta aberta, dormir com a televisão ligada, fumar no quarto, comer na cama, e não ter que conversar e nem que assistir novela.

Sou da opinião que o Neto ficou casado porque era mulato. Eu tenho medo de dar palpite sobre a cor da pele das pessoas. Até Monteiro Lobato, que é o Monteiro Lobato, foi tachado de racista. Mas o Neto, por ser mulato, me queimem na fogueira junto com o Visconde de Sabugosa, sempre correu atrás de parecer distinto. Ele achava que o casamento conferia status. Não condeno, até entendo. É racismo? Que seja, dane-se Zumbi. O Sílvio, que era polaco e calvo louro, não estava nem aí para o que os outros pensavam dele. Acho que tem a ver.

Me acostumei rápido com a vida de solteiro, mudei para um pardieiro de fundos na Hilário de Gouveia. A Irene ficou com a casa e eu com o carro. Eu comia a Aurora e a outra no Chevette azul-metálico. Lá na Barra da Tijuca, quando aquilo ainda era um areal. Na volta, a gente parava num daqueles motéis e via um filme pornô. Quando eu conseguia, repetia o feito. Eu ainda gostava de sacanagem naquela época, mesmo brochando.

Foram as mulheres que me fizeram perder o interesse. Chatas, chorosas, carentes, adoram botar a culpa da infelicidade delas em quem está do lado. Eu nunca dei trela. Mulher fica esperando que você diga meio ai para descarregar três páginas de folhetim na sua orelha. Como falam, meu Deus, não cansam de tagarelar. Depois, abrem o berreiro para o otário ter pena delas. Não gosto de mulher. Aliás, não gosto de ninguém.

Gostava do Neto, do Ciro, do Sílvio e do Ribeiro. Homem não fala, cada um diz uma imbecilidade qualquer, a gente ri, entorna, e pronto, foi uma noite extraordinária. Mulher está sempre no encalço da grande ocasião.

Opa, abriu. Esse sinal demora uma eternidade para abrir e dois segundos para fechar. Lá vou eu, ágil como os cágados da Marília. Não acredito, já está piscando?… Fechou! Não estou dizendo? Ainda falta um terço de faixa e essa porcaria fecha? Calcularam com quem esse tempo? Com o Ligeirinho? O que é? Vai passar por cima? Passa, desgraçado, parte o meu joelho ao meio com o seu farol de milha. Eu já entendi que você quer passar, filhinho! Um dia você vai envelhecer, se tiver sorte você vai envelhecer, e um guri com pressa vai quebrar a sua perna em vários pedacinhos e você vai passar o resto dos seus dias de fraldão, com pânico de atravessar a esquina. Bueiro, calçada alta, fedentina, argentinos.

Não leio jornal, não leio revista, não leio. Também não enxergo. Só vejo televisão. Futebol, o dia inteiro. Adoro mesa-redonda.

Parei no videocassete, minto, tenho um DVD que veio de brinde com a TV de quarenta polegadas, mas nunca me entendi com o controle remoto. Antes, eu alugava um filme ou outro no caminho do consultório do Mattos, mas fecharam a locadora. Não senti falta.

Tive a sorte de envelhecer fumando.

Não separo lixo, não reciclo, jogo guimba no vaso, uso aerossol, tomo longos banhos quentes e escovo os dentes com a torneira aberta. Dane-se a humanidade. Não vou estar aqui para assistir.

Não voto há treze anos, não tenho culpa da tragédia em volta.

Desvio de obra. Como gostam de obra. Os cones sujos no meio da pista, esses carros a toda tirando fino, não veem que eu estou aqui? Britadeira. Britadeira. Britadeira. Como é que esse pobre aguenta? Vai morrer cedo. Não perde nada, mentira, deve perder alguma coisa; não sei o quê, mas deve. Eu nunca encarei a morte como uma possibilidade. Não que fosse apegado a nada de especial na vida, mas é que a morte não existe. A morte é uma doença crônica.

Me lembro, ainda novo, de ver a mão do Sílvio tremendo e achar que era ressaca. Mas o Ribeiro ouviu do filho no enterro que já era Parkinson. O Inácio contou que o pai continuou torturando as vítimas dele por aí, penando na mão das gaúchas, mas deu pra trocar a hora do remédio, os nomes, o número do apartamento. O Sílvio era magro, elegante e mau. Muito mau. Escroto. Ele se suicidou naquele Carnaval. Tem muitos jeitos de o sujeito fazer isso.

As mulheres não ligavam para ele. Mas era só trocar duas frases com o Sílvio para elas gamarem à loucura. E ele jogava com elas, ligava muito, depois parava de telefonar, fingia ter outras, tratava mal no dia do aniversário. Mulher adora ser maltratada.

Isso foi no início. Com trinta e dois, o Sílvio casou com a Norma e a batida acalmou. Só que vieram os filhos, a Norma teve depressão pós-parto na segunda gravidez e ficou chatíssima. Para piorar, a sogra do Sílvio foi morar com eles. A casa virou um Muro das Lamentações. Era choramingo, novela à noite e criança enchendo o dia inteiro: banho de criança, purê de criança, brinquedo de criança, meleca de criança, escola de criança, cocô de criança. Ele perdeu a paciência, enfiou o mais velho num internato em Petrópolis, de onde o menino só saía para dar uma pinta no Natal, botou a sogra para cuidar do menor, se despediu da Norma e se mandou para a garçonnière que mantinha na Glória. O Sílvio não era rico, mas também não era pobre. Nem desfez as malas e já marcou com três garotas, isso no dia da mudança. O Sílvio era da orgia.

Ele enlouqueceu pelas gaúchas e foi embora para o Sul. Bebemos à partida. Bebemos muito, numa festa no Leme, e tomamos umas bolas, também, que o Sílvio apresentou. Ele queria ensinar a gente a viver. Quando amanheceu, fomos expulsos, eu, o Ribeiro, o Neto, o Ciro e o Sílvio. Cinco zumbis e uma penca de donzelas fáceis. O Sílvio propôs uma esticada na batcaverna dele. Comemoramos a sugestão. Ele entrou e já foi tirando a roupa, disse que estava com calor. O Ciro se trancou no quarto com a argentina, o Ciro sempre soube fazer as coisas. Acho que o Neto foi embora, e o Ribeiro não sei onde foi parar. Sobramos eu e o Sílvio de cueca, na sala, mais a moça que eu arrastei, a que sobrou do Neto e a mulata do Sílvio que, quando vi, já estava atracada com ele na poltrona de pé palito. As outras duas vieram para cima de mim sem nem perguntar se eu queria, o Ciro começou a gemer atrás da parede, enquanto a argentina gritava: Más rápido, más rápido! Brochei gloriosamente. Uma das meninas, a lourinha do interior, tentou reverter a situação, mas dei um dinheiro pra ela e mandei andar. O Sílvio capotou da poltrona com a morena e não levantou mais. O Ciro também deve ter dormido, porque não ouvi sinal dele no quarto. Saí de lá onze da manhã, a enxaqueca latejando. Tomei um café preto na padaria e desabei no tapete do corredor. Fiquei vinte e uma horas fora do ar.

Talvez o Ciro e o Sílvio fizessem isso habitualmente, mas eu não. Aquela foi a primeira e última vez que estive perto de participar de uma suruba entre amigos. Toda amizade masculina carrega um quê de veadagem. Comer as mesmas mulheres não deixa de ser um jeito de se comer entre si. No mesmo ambiente, então, é um passo. Mas não concebo, nem de brincadeira, nem de porre, nem de nada, a ideia de beijar na boca o Neto, o Sílvio, o Ribeiro ou o Ciro. Talvez o Ciro. O Ciro, definitivamente. Depois dos quarenta, o tesão migra.

O Ciro passava o rodo. As mulheres só faltavam esfregar a xoxota na cara dele. O Ciro conheceu a Ruth na festa do Juliano e botou na cabeça que ia casar na igreja, com bolo, madrinha, véu e grinalda. Ele ficou alucinado com a Ruth. Ela era bonita mesmo, e inteligente, e sexy. O Ciro acreditou que o grande amor lhe abriria as portas da monogamia.

Levou uns dez anos para o casamento acabar com o tesão do Ciro. E o Ciro sem tesão não era o Ciro. Ele entrou num dilema terrível, falava nisso o tempo todo, não queria trair a Ruth porque sabia que era um caminho sem volta, mas a Ruth virou mãe, esposa, companheira, irmã, tudo, menos amante.

Foi aí que ele começou a brigar com ela, briga feia, sem motivo. Não sei se ele planejou, ou se foi o desespero, mas o Ciro, de uma hora para outra, deu para se irritar por causa de uma frase, um copo, um desodorante. Por coisa nenhuma fazia as malas e saía batendo a porta. A Ruth enlouquecia, faltava ao emprego, emagrecia, e ele também. Dava uma semana, ele voltava e os dois fodiam como se tivessem acabado de se conhecer. Funcionou por uns anos, ele voltou a ficar corado, até que as discussões viraram uma rotina mais destruidora do que o antigo ramerrame doméstico. Ele primeiro se engraçou com a Marta, ou foi a Cinira? Não lembro. Ele comeu uma das duas, ou as duas juntas, enfim, eu sei que, depois que a porteira abriu, o Ciro traçou metade do Rio de Janeiro em pouco menos de um ano. A Ruth definhou. As mulheres cultivam a fantasia de que o verdadeiro amor é capaz de transformar os homens. Quando isso não acontece, e isso nunca acontece, elas perdem o orgulho e viram esses farrapos que a gente vê por aí.

O Ciro conseguiu ser pior que o Sílvio, porque o Sílvio nunca amou ninguém, mas o Ciro amava muito a Ruth. Ela ficou tão chocada com a destrambelhada do marido, o desrespeito dele por ela, a falta de paciência com a família, que desenvolveu uma apatia estranha. Começou no dia em que ela flagrou o Ciro na garçonnière do Sílvio com a mulher de um cliente dele. A Ruth arrombou a porta aos gritos, a amante se escondeu no lençol e o Ciro correu para as calças. Depois disso o Sílvio foi proibido pelo condomínio de emprestar o apartamento. O Ciro ficou frio, se vestiu e saiu sem dar satisfação. A Ruth continuou gritando no corredor, enquanto o elevador descia. Ele pegou o primeiro táxi e zuniu para casa, olha o sangue-frio deste homem. Chegou, tomou banho, botou o pijama, sentou no sofá e ligou a televisão. A Ruth ainda demorou uns vinte minutos para aparecer, possessa, parada na soleira, pronta para o quebra-pau. Só que o Ciro, gênio, um canalha mas gênio, era só carinho. A Ruth contou do apartamento, da vagabunda, e ele, na cara dura, disse que não sabia do que ela estava falando, jurou que chegou em casa, estranhou que ela não estivesse e sentou para ver TV. Aos poucos, foi ensaiando uma indignação contida por ela ter soltado os cachorros em cima de um casal que nem conhecia, e mais, no apartamento do Sílvio! E fingiu preocupação com a saúde mental da esposa. Não deu uma semana, internaram a Ruth num sanatório. O Ciro nunca mais se perdoou, mas também não fez nada para mudar. Deixou o que sobrava da Ruth na casa da irmã dela e se mudou para um apartamento pequeno, uma cobertura na Santa Clara onde não cabia nada que não fosse ele. E continuou riscando o nome das moças do caderninho. Era uma base de três por semana, quatro, dependendo da carência que batia nele.

Jamais achei que o Ciro pudesse ser tão brutal. Do Sílvio, eu esperava tudo, mas a frieza do Ciro com a Ruth foi chocante. Invejei o Ciro a vida inteira. Ele era muito bonito, daqueles caras que sabem jogar sinuca, futebol, peteca, pôquer, e ganham todas sem se esforçar. E mesmo nas horas mais condenáveis, como a daquela quase bacanal na casa do Sílvio, o Ciro sabia ser cortês. Arrastou a argentina para o quarto, foi cavalheiro.

Eu me casei por causa dele. Como era solteiro, fui ficando de fora dos almoços de domingo. Ia o Neto e o Sílvio com as esposas e eu e o Ribeiro sobrávamos. A Irene era amiga da Ruth, elas armaram um encontro, eu achei que melhor não podia ficar. Depois, as duas dedicaram anos a falar mal de nós dois.

Pensei que ele estava emagrecendo daquele jeito por causa das noitadas e do excesso de tudo. Numa terça-feira de sol, o Ciro me chamou para tomar um café e me contou que estava com câncer, no pâncreas, sem solução. Ele tinha acabado de fazer cinquenta anos. Fiquei mudo, não sabia o que dizer. Pensei no dia em que ele conheceu a Ruth na festa do Juliano, no casal bonito que eles formavam. O Ciro era o nosso Kennedy. Partiu seis meses depois desse encontro. Eu fugi dele, fiquei apavorado, não queria ver. Mas carreguei o caixão. A Ruth não apareceu.

Tem uns trombadinhas vindo na direção contrária. Já perdi a conta do número de vezes que fui assaltado. Foram tantas, que eu só saía de casa com a roupa do corpo. Aí, numa tarde besta, saindo da ressonância lá em Botafogo, dois pivetes me cercaram. Quando descobriram que eu não tinha dinheiro, nem celular, nem porcaria nenhuma, me deram uma surra. Agora, carrego sempre um trocado para o assalto. Passaram. Vai ver eram honestos. Pretos, de short, chinelo e sem camisa, mas honestos. Bota a culpa no Monteiro Lobato.

Ganhei do meu pai, de Natal, a coleção completa do Sítio do Picapau Amarelo. Eu tinha doze anos. Ela sobreviveu e eu dei para a Rita, achando que estava apresentando o céu para ela, mas a Rita amarrou a tromba porque queria uma Barbie. Tentei ensinar matemática com o Visconde, história com Dona Benta, gramática com a Emília, mas ela criou aversão ao Sítio, reclamava que não tinha figura. A Rita cresceu ignorante e fútil. Na adolescência, torci muito para ela não engordar, porque, com o QI da minha filha, o melhor que podia acontecer era ela arranjar um bom casamento.

Arranjou um médio, com um radiologista de Uberaba. O pai tinha uma clínica de imagem e o filho entrou para o ramo. Eles se conheceram numas férias dela em Ouro Preto. Meu genro é uma besta quadrada, do tipo que afirma que todo mal provém do stress. Então tá, do stress. Sou acometido de um sono hipnótico toda vez que converso com ele. Pode ser em pé, sentado, no carro, numa festa horrorosa, dessas de fim de ano. O Felipinho e o Marcelinho relincham alto para me acordar e cantam com voz de débil mental que o vovô está gagá. Mal sabem eles que só estou me protegendo da chatice do ignóbil do pai deles. Pai esse que lhes deu metade dos genes medíocres, sendo que a outra metade quem deu foi a mãe deles, que herdou de mim os piores genes, aqueles que não gostam de Monteiro Lobato. Os galhos estão podres, Felipinho e Marcelinho. Os seus filhos vão ser gordinhos que nem vocês, vão apanhar na escola, vão ser filhinhos de mamãe, riam bem alto, vocês nem sabem o que vem por aí: acne, pau pequeno, calvície, pressão alta, colesterol, tosse, mau hálito, pelo no ouvido, falta de ar, incontinência urinária, derrame, eu vou assistir de camarote. Qualquer garoto de rua tem uma genética melhor que a de vocês. Agora vão pro quarto porque eu quero voltar a cochilar ouvindo a ladainha do seu pai.

A Rita me visita no Rio duas vezes por ano, quer que eu mude para Uberaba, imagina. Como se eu fosse resistir a Uberaba, e ela a mim, e eu aos filhos dela. Melhor o asilo, muito melhor o asilo; em Maricá. Quando ela vem, procuro ser gentil, o idiota do marido sempre a tiracolo. Eu marco deles virem à noite, na hora da insônia, para ver se durmo no embalo da cantilena. Poderoso sonífero, o papo do meu genro.

Meu quarteirão! Mais cinquenta e sete passos e chego. Adoro contar os passos. Não saio muito, não tenho aonde ir, não trabalho há dezoito anos. Outro dia, me dei conta de que sou funcionário da minha saúde, trabalho full time por ela. Todo mês faço os exames mensais, todo ano os anuais, todo semestre os semestrais, quando acaba um, já é hora de fazer o outro. E tem que agendar, e tem que trazer o protocolo, e guardar a via, e entrar na fila. Plano é igual INPS. O consultório do Mattos fica num edifício comercial aqui de Copacabana lotado de médicos senis. De vez em quando, um bate as botas. Vou lá toda semana, sei a distância, o tempo, as passadas do trajeto completo e a parcial dos blocos, o ritmo dos sinais, os canteiros, os postes e as pedras do caminho.

Agora que o Ribeiro morreu, não tem ninguém que eu vá encontrar, mesmo que por acaso, no cruzamento. Só visito os médicos e não gosto deles. Não gasto nada. Uma loja alugada, que herdei do meu pai em Copacabana, paga o seguro-saúde, e o resto vem da aposentadoria. Como embutido, porco, coxinha e cupim, bebo água da torneira e não preciso de ninguém.

Que sirene é essa? É bombeiro, achei que era ambulância. O bom da sirene é que eu paro de escutar o zumbido, o enxame de abelhas que apareceu há uns cinco anos no ouvido esquerdo, depois foi para o direito, em estéreo, e só faz piorar. Estou ficando surdo. Amanhã tenho uma consulta para medir de novo a audição. Acho que meus óculos ficaram em casa.

Que sirene é essa agora? Ah! É garagem. A garagem do meu prédio. Cheguei. Nem contei direito, vim conversando. Com quem? Conversando com quem? Comigo mesmo, que é com quem eu gosto de conversar. Tem um carro subindo a rampa, vem no embalo, melhor acelerar as pernas. É a desnaturada do 704, está fugindo dos cachorros, vai viajar, covarde. Acho que ela não me viu. Não, ela não me viu. O carro deu aquele voo no fim da subida, ela vem descacetada, está no celular, não notou que eu estou aqui. Larga essa porcaria e presta atenção no que está na sua frente! Eu! Eu estou na sua frente! Ah! Finalmente, reparou, vai frear, se atrapalhou. Como assim, se atrapalhou? Está nervosa, é bom mesmo ficar nervosa. Quantos anos tem essa incapaz? Ela fez exame psicotécnico? Pode dirigir com essa idade? E os cachorros da área de serviço? Freou! Achou o freio, estou ouvindo o cantar dos pneus. O carro continua andando; como assim, continua andando? Derrapou? Não vai parar? Está fora do alcance dela? Ela me encara com ar de pena e fecha os olhos pra não ver o que vai fazer comigo. Abre o olho, desgraçada, vem ver o que você aprontou. Por que é que eu não te denunciei para a Associação Protetora dos Animais? Eu devia ter desconfiado que alguém que trata assim o próprio cachorro não tem respeito à vida humana. Já sinto a lataria roçar o tergal da calça.

Um pulo. Há quantos anos não dou um pulo? Dobro a perna direita, estico a esquerda e me jogo pra frente. Anda, a lataria no tergal! Andar deixou de ser um ato inconsciente. Aciono os comandos. Dobro, estico, estou no ar, me preparo para a aterrissagem, a ponta do pé toca a pedrinha, relaxo o peso… está solta? Como assim, está solta? Eu jogo o meu esqueleto em cima do pedregulho e ele solta? Quem foi o relapso que socou isso aqui? Cadê o empreiteiro? Cadê o prefeito, que não aparece? Não tem mais volta, o pé torceu, estou caindo, o carro passa raspando, mas a gravidade já me puxa em direção ao paralelepípedo. A queda. A minha queda, aquela que vai me fazer ter saudade do dia em que eu contava os passos no caminho do consultório do Mattos. De uma hora para outra serei tia Suzel. A mão arranha o chão, tenta amparar, não consegue. O cotovelo esfola, o quadril sai do lugar e a cabeça se precipita no granito bruto do meio-fio e bate, como um badalo de sino de igreja.

 

Preto, preto, preto, preto, preto, cadê branco? Cadê as ondas do mar? A bruaca do 704 é uma loura tingida, dessas que cheiram a água-de-colônia com pó de arroz e usam tailleur com a saia igual ao casaquinho.

O meu anjo da morte. Quem diria?

Uma vez, perguntei a um budista que acreditava em reencarnação o que, afinal, reencarna. Ele disse que era uma parte tão ínfima, mas tão ínfima que, nela, não há vestígio do indivíduo de outrora. Tem sangue saindo da minha cabeça. A perua do 704 saiu do carro aparvalhada, o porteiro vem correndo. Não sinto nada, nem dor, nem pena. Estou bem, aqui. Foi bom lembrar dos amigos, nada é por acaso. Se houvesse outra vida, seria bom encontrar com eles, visitar o Ciro e o Sílvio no inferno, ia ser bom. Mas não há. A morte não existe. Nem o budista reencarnacionista acha que vai voltar igual ao que foi. Vou estar na planta, na baba da lagarta que devora a planta, na mosca que lambe a baba da lagarta que devora a planta. Estarei por ali. Foi de bom tamanho, eu estava cansado. A indiferença daqui me cai bem.

Falei muito mal das mulheres, elas merecem. Os homens também não prestam para nada. E um não foi feito para o outro.

Desintegro no ar sobre Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais.

 

IRENE recebeu com frieza a notícia da morte do homem com quem vivera quinze anos de sua juventude. A filha telefonou aflita de Uberaba, estava no aeroporto, o pai jazia numa geladeira no IML. Ela havia deixado as crianças com o marido e não conseguiria fazer a conexão em São Paulo, passar na delegacia e ainda tratar com a funerária a tempo de sepultá-lo à tarde. Rita reclamou da falta de irmãos e pediu que a mãe fosse à morgue reconhecer o corpo. Eu sei que você detesta o meu pai, mas não tenho ninguém. Eu não detesto o seu pai. Ia dizer que não sentia nada por ele, mas lhe pareceu pior do que a aversão de que era acusada. Detestar. Irene detestava as chantagens da filha, como aquela, agora, de obrigá-la a se mandar para o Centro, debaixo do sol quente, para encarar, ainda, uma última vez, o Equívoco. Era assim que se referia a ele, o Equívoco. Irene relutava em ser mãe, não queria ir, já o tinha sepultado havia tempos, mas achou por bem cumprir o ritual da perda. Às dez e meia desceu do táxi na avenida Mem de Sá, em frente ao Instituto Médico Legal.

O prédio exalava podridão. O cheiro ardia nas ventas, penetrando nos poros mesmo com as narinas tapadas. O bafo pútrido de fora piorou do lado de dentro. Não podia ter escolhido um dia mais fresco? Irene se dirigiu à recepção, pegou a senha e sentou-se para aguardar na cadeira de plástico. O assento rachado beliscou a coxa, obrigando-a a manter a perna sob vigília. Intermináveis minutos se sucederam. O pesar rondava o rosto dos que, como ela, esperavam a vez. Irene cogitou se servir de água, mas deu com os olhos numa barata escura que cruzou a tomada para se esconder no bebedouro; preferiu a sede. Leu os avisos no quadro, as mensagens de fé, e anotou o telefone de dois agentes funerários, Rita talvez precisasse. Absorta no limbo, assustou-se com um guincho agudo vindo do corredor. Uma senhora obesa surgiu carregada por dois funcionários de branco; sofria golfadas de horror e berrava como uma besta-fera. O cortejo atravessou a sala de espera em direção a um grupo de familiares a quem foi delegado o desvario da pobre. Levaram-na pra fora. Os funcionários continuaram seu serviço moroso e Irene compartilhou com eles a mesma apatia. Pensou no alívio de estar ali por alguém tão insignificante para ela. Os urros na calçada a fizeram comparar o seu estado com o da gorda. Apaziguou-a o fato de sofrer menos do que os que estavam ali, sentiu-se em vantagem; uma mesquinhez desculpável pela estranheza da situação. Cento e dezessete, chamaram. Era o seu número.

Depois de se apresentar no guichê, foi conduzida por um rapaz de jaleco encardido até o elevador; subiram em silêncio, evitando o olhar. Saltaram no terceiro andar. Uma comprida galeria de portas fechadas se estendia a perder de vista. Irene seguiu o guia até a penúltima da direita e esperou enquanto ele experimentava o molho de chaves. Entraram. O ar funcionava melhor ali dentro, mas o fedor se agravara. A luz fria piscou na parede dividida em quadrados e, somente então, vendo o legista cumprir a rotina de comparar os números das etiquetas com os do protocolo, Irene se deu conta do que estava prestes a ocorrer. Numa daquelas gavetas escondia-se o fantasma, o seu fantasma.

O doutor, esse sim, era indiferente; ela não. Irene descobria assombrada, à beira de rever o corpo do ex congelado numa repartição pública, que mentiu todas as vezes em que menosprezou a importância dele na vida dela. Álvaro ainda lhe revirava o estômago. A náusea nada tinha a ver com o bodum do ambiente, era a sombra de arrependimentos nunca aplacados. Teve vontade de vomitar.

Parado diante do segundo quadrado, no canto oposto à entrada, o rapaz fez sinal para que Irene se aproximasse. Protegidas por luvas, as mãos do perito puxaram a estreita cama de metal. Sobre ela, o Equívoco. Nunca mais o vira. Aos poucos, a luz descortinou o nariz ainda mais adunco e as bochechas murchas. A papada e a calva unidas formavam uma moldura de pele enrijecida em volta do rosto. O cinza-pedra das feições. O trilho se estendeu até o final, permitindo enxergar os ombros mirrados, os braços finos, a barriga de sempre e os pelos embranquecidos. Não quis olhar o resto. Constrangeu-a vê-lo nu. Parou pensativa, admirando o contraste das nádegas com o alumínio da maca. Como era pequeno. Álvaro estava sujo de sangue, mas não era o vermelho, a idade e nem os resquícios do acidente que intrigavam Irene. Álvaro não se parecia em nada consigo mesmo. A boca arqueada se juntara ao sulco que partia das abas das narinas, criando um aspecto maligno que jamais tivera. A passividade cômica de antes cedera lugar a uma carranca tensa. Sempre fora infeliz, mas não amargo. Teria se tornado um homem mau? Os mortos nunca se parecem com os vivos, pensou. Álvaro nasceu velho, mas não morto, concluiu.

Quando estivera com ele pela última vez? No casamento da filha? Enterro da Célia? De Neto? Não lembrava. O exercício consciente que fizera para eliminá-lo da memória surtira efeito. A pergunta puxou uma segunda indagação. Quando fora a última vez com ele? Na cama, com ele? Reflexos involuntários dos quinze longínquos anos correram à solta. Os quartos separados, o desconforto do par, a careca evidente, a raiva, a pança, o cansaço, a inércia e a brochura daquele homem. A única imagem que guardara era dos dois nus, entre os lençóis de uma pousada na serra, onde foram passar um fim de semana nos primórdios da tragédia que se seguiria. Do casamento, nenhum afeto sobreviveu.

 

O Álvaro não gosta de mulher, garantia, estendida nas almofadas do chão de madeira escura do casarão da Visconde de Caravelas. Ele devia ter virado padre. Por que continuava fechada num casamento branco, tratada como uma cidadã de segunda pela filha adolescente, enquanto todas as amigas pediam o desquite e partiam para outra? O que a prendia a ele? Aquela garota? O cachorro asmático? O décimo terceiro da empregada? Queria viver, trepar, amar, e nem sabia se ainda restava tempo para aprender a fazer tudo isso. Casais bem mais realizados enfrentavam o seu fim. O Ciro e a Ruth. Ele é um zero, um nulo, um nada, como eu posso sofrer por um nada?

Vera foi dura. Esperou Irene terminar o rosário de queixas e, perto do fim da sessão, disse que tinham chegado a um impasse. Não acreditava que fariam progresso sozinhas. A questão não se referia apenas a Irene, mas a toda a sua prática terapêutica. Vera estava convencida de que a análise de grupo seria a única maneira de libertar Irene da capa de racionalidade que a aprisionava. Ela tinha todo o direito de não aceitar, mas, caso achasse melhor continuar com um tratamento convencional, pediria que procurasse outro profissional para atendê-la. A paciente ouviu ofendida. O exibicionismo com que Vera proferiu o termo “capa de racionalidade” deveria tê-la feito ir embora, mas, aos quarenta anos, era jovem demais, burra demais, perdida demais, desesperada demais para dizer não. Aceitou o grupo.

 

O pensamento vagara sem que se desse conta. Por que recordar daquela tarde? Quando aceitou servir de cobaia para uma corrente experimental da psicanálise, tão em voga naquele período mas cujas técnicas, todas aposentadas no presente momento, são como os procedimentos ultrapassados da cirurgia plástica, um criadouro de deformações neuróticas das gerações que lhe serviram de pasto. Irene não gostou de revisitar a mágoa antiga. Até morto, pensou, Álvaro evoca más recordações.

Foi objetiva.

Assinou o termo assegurando que o cadáver daquele sujeito enfezado era de Álvaro Pereira Gomes Soares, morador de Copacabana, oitenta e cinco anos, branco, velho e infeliz. Assinava a ex-esposa, mãe de sua única filha, Rita da Costa Soares. Sem mais, Irene Azevedo da Costa. Havia muito, para seu regozijo, o desquite, seguido de divórcio, extirpara o Soares de seu nome completo.

Quando botou os pés na rua, o asfalto fervia. Uma da tarde. A operação toda lhe custara três horas e meia de calvário. Queria voltar para a toca, tomar um banho e jogar a roupa e os sapatos no incinerador. Considerava paga a dívida moral com a cria, não iria ao enterro nem morta. Tinha o direito de retornar ao paraíso da sua solidão.

 

Apesar das juras, Irene compareceu ao adeus de Álvaro. A filha insistiu, vertendo lágrimas via Embratel. Rita repetiu a lamúria pela falta de irmãos. Irmãos, cogitou Irene, não se comete o mesmo erro duas vezes.

Ela havia acabado de limpar a craca do IML no longo banho de chuveiro. A ideia de se vestir de novo e encarar a sauna do lado de fora, a decrepitude, as baratas, eu sou uma mulher de idade, essa menina não tem compaixão? Cresça! Enterre seu pai sem autopiedade. Ele tinha mais de oitenta anos! Eu não tenho pena de ninguém, muito menos dela, que é nova, que pode fazer o que bem entender da vida. Não vou jogar outro vestido no lixo, outro par de sapato. Não vou botar poeira de cemitério pra dentro de casa. Eu tenho setenta e três anos, mocinha! Eu é que devia te chantagear!

Mas não disse nada. Marcou de se encontrar com Rita às duas e meia no São João Batista. O cortejo sairia às quatro. A contragosto, escolheu uma saia velha, uma blusa preta que não lhe caía bem e uma sandália apertada. Pelo menos limpo o armário, pensou. Na calçada, fez sinal para o primeiro táxi. Era um Corsa velho, sem ar, com a marcha solta e um futum exasperante de odorizador de ambiente com sovaco de trabalhador. Quis saltar, inventar uma desculpa, mas teve pena do motorista. Mandou seguir. Mesmo respirando pela boca, o perfume azedo subia pelo paladar. Aquele não era um bom dia.

Capela 10. Galgou as escadas, entrou, não havia ninguém. Achou que estivesse enganada, chegou a dar meia-volta, mas resolveu checar o defunto. Caminhou em direção ao féretro o suficiente para conferir a expressão de zanga; era ele mesmo, a careca, a papada, a boca envergada, era tudo dele. Evitou revê-lo. Desviou para sentar-se nas cadeiras alinhadas em fila, encostadas na parede. Irene contava os segundos que a separavam da ducha que tomaria ao chegar em casa.

Ninguém mandou flores, notou. Só uma coroa de lírios-brancos trazia o dizer: “Saudades, Rita, Cézar, Marcelo e Felipe”. Quem arrumou o Álvaro? Devia ter trazido uma revista. Não, não devia, não pegaria bem. Cadê a Rita? Por que não diz alguma coisa, Álvaro? Irene riu da besteira. Depois, o silêncio apossou-se dela.

Da mudez, veio a lembrança. O dia em que ajudara o marido a embrulhar a velha coleção de Monteiro Lobato para dar de presente a Rita no seu aniversário de sete anos. A expressão de menino, antecipando a alegria da filha, revivendo a infância através dela. Os olhos de Irene marejaram. Foi um bom pai, pensou, e se enterneceu dele. Sentiu respeito e até saudade do homem deitado imóvel na sua frente. Foi assaltada pela viuvez. Estava viúva. Era viúva. Viúva, repetiu. Algo que desejara muitas vezes na época em que eram casados, que ele desaparecesse de vez, agora era fato e não lhe servia de coisa nenhuma. Pelo contrário, sentia falta e não sabia do quê.

Humilde e respeitoso, um senhor abriu a porta. Cumprimentou-a de longe e foi dar atenção ao morto. Ficou em pé, rezando, apoiado na madeira do esquife por largos minutos. Quando terminou, fez o sinal da cruz e se virou para a sala. A falta de quórum o constrangeu. Precisava dividir o momento com alguém, mas a única carpideira presente não parecia a fim de conversa. Ignorando a reserva de Irene, avançou até a cadeira vizinha à dela. Irene estremeceu, fingiu não notá-lo. Que coisa…, balbuciou o homem. Pois é, que coisa, respondeu Irene. Uma hora a gente está aqui, na outra desaparece, mas Deus sabe o que faz. Não. Não era possível que ainda fosse obrigada a escutar a seleção de lugares-comuns de alguém que nunca vira antes. Melhor interrompê-lo. O senhor era amigo do Álvaro? Fui eu que prestei socorro, sou porteiro no prédio há mais de quinze anos. O tempo voa. A gente se acostuma a ver uma pessoa todo dia e, de repente… Por isso é que eu vivo cada segundo como se fosse o último, não se conhece o dia de amanhã, a vida é um fósforo que a gente risca e não sabe a hora que apaga. Irene cogitou gritar por ajuda, tinha horror a clichês. É pra frente que se anda. Não tem como voltar atrás. Não se controla a vontade de Deus. O porteiro era uma metralhadora giratória de frases feitas. De uma hora pra outra, interrompeu o discurso. Deve ter cansado, pensou Irene, e deu graças por isso. O homem levantou a cabeça e olhou para o caixão. Eu perdi minha mulher faz um mês. Ela… ela…, a voz embargou. Apesar das tentativas, foi impossível seguir adiante. Irene assistiu à pantomima de dor, ao vai e vem do pranto, aos espasmos e soluços, aos gestos desconexos. Eu não me conformo, não me conformo, repetia trêmulo, e desabou num choro convulso. Eu pedi tanto a Deus… Irene pôs a mão no ombro do viúvo para não dizer que não fez nada. Ansiosa, olhou para a porta. Cadê a Rita? Rita! Achei alguém para chorar o teu pai com você!

E a senhora?, indagou o pobre. Eu sou a mãe da filha dele. Ah…, e se recompôs diante da objetividade da interlocutora. Não nos víamos há muitos anos, estou aqui mais por ela. O porteiro percebeu que desperdiçara a comoção inutilmente e se desculpou pelo incômodo. Irene o perdoou pelo transtorno e o assunto acabou subitamente. Ficaram calados, olhando o infinito. A praticidade da ex-mulher do condômino ajudou-o a voltar aos eixos. Não chorou mais, nem na sepultura.

Rita chegou quase uma hora depois do porteiro. Seu luto se transformara numa burocracia infernal de carimbos, vias e assinaturas. Um problema com a papelada fez com que o enterro do pai fosse adiado para o fim do dia. Seria o último. Quase passa para amanhã, explicou Rita, enxugando o suor. Irene controlou o desespero. Ficar ali ainda uma hora. Se o Álvaro tivesse amigos, parentes, ela poderia sair de fininho. Se o inútil do marido da filha tivesse deixado os meninos com a mãe e vindo ajudar, ela não estaria presa àquele purgatório. Não vem mais ninguém?, perguntou. Acho que não, não sei, disse a filha, os amigos faleceram, ele só saía para ir ao médico, mas médico não vai a enterro, é contra os princípios deles.

Rita agradeceu a presença do funcionário do prédio, ele narrou em detalhes o atropelamento, fez a mímica completa do acidente e condenou a demora da assistência. Sem pausar, descreveu a aflição da vizinha cardíaca. Ela está em choque, contou ele, o filho levou a mãe pra casa e botou o apartamento à venda. Os cachorros ainda estão lá. Foi uma fatalidade. Eu sei, concordava Rita. Irene ouvia entediada, tinha sono. Quando o sol se esconder atrás daquele prédio, prometeu a si mesma, eu me levanto daqui.

Ainda faltavam uns bons palmos de azul para o entardecer. Sendo assim, Irene se voltou para ouvir o papo arrastado de Rita com o grilo falante. A luminosidade da janela dilatara as pupilas, o que fez com que seus olhos demorassem a se ajustar à pouca claridade do interior. O teto empreteceu, Irene sentiu vertigem e se amparou no espaldar do assento. Recostou a cabeça na parede, teve calma e aguardou a cegueira passar. Rita e o porteiro haviam saído. Num reflexo natural, checou o caixão para ver se ainda estava lá. Estava. Mas o cadáver, com meio corpo para fora, apoiava as mãos nas laterais, dando ao féretro um aspecto de barquinho de pesca. Álvaro estava sentado e olhava para ela com um sorriso.

— Que bom que você veio, Irene — disse ele com doçura.

O pânico travou-lhe a glote, quis gritar, não conseguiu; retesou as mãos e fez força para abrir a boca. Pedia socorro. Acordou com um sobressalto.

Mãe?! Você está bem? Irene demorou a focar. Quando recobrou a razão, lembrou-se de checar o defunto. A ponta do nariz, único pedaço de carne visível de onde estava, assegurou-lhe que Álvaro continuava deitado. Que horas são? Quatro e meia. Eu estou cansada, preciso ir. Não falta muito, insistiu a filha. Irene se levantou para tomar água no corredor, deu um gole, mas lembrou da barata do bebedouro do IML e desistiu da sede. Também não quis ir ao banheiro, evitava tocar em qualquer coisa, tinha nojo até do ar. Voltou para o velório.

Estava em pé, em frente à entrada, quando alguém entrou chutando a porta. Era o capelão, todo vestido a caráter, com uma bíblia na mão. Tenso, fez uma pausa e gritou:

— QUEM SERÁ O PRÓXIMO?

Rita, Irene e o porteiro se voltaram surpresos. Não satisfeito, o padre repetiu a pergunta:

— QUEM SERÁ O PRÓXIMO?!

As testemunhas admiraram boquiabertas o pároco contratado pelo cemitério rogar a abominável praga. Quem chamou este palhaço? Rita, foi você? Irene encarou-o indignada. Se a natureza fosse justa, a próxima seria ela.

 

PADRE GRAÇA acordou de madrugada. Rezou, fez a higiene matinal, comeu pouco, como de hábito, e preparou a pequena mala com os objetos litúrgicos. O São João Batista o aguardava. Havia vinte e quatro anos cumpria a função de levar a palavra de Deus para famílias que perderam seus entes queridos. No início, via sentido em ser capelão, não mais. Preferia ser transferido para uma comunidade pequena, onde ainda houvesse fiéis. Via o quanto os seres urbanos eram hostis e descrentes da paz eterna. O entusiasmo de seminarista cedera espaço a um isolamento estéril, sem saída. Sonhava em celebrar casamentos, batismos, tudo menos aquilo. O convívio excessivo com a morte o tornara insensível. Não se adequava mais ao cargo. O pedido de transferência fora enviado meses antes, mas os superiores não demonstravam pressa para encontrar um substituto. Padre Graça esperava resignado. Por isso, a perspectiva de enfrentar a sequência de velórios, no longo dia quente que se anunciava, lhe consumia os sentidos. Teria perdido a fé?

Quem o visse entrar no 136, em Botafogo, não suspeitaria da batalha que travava no silêncio do espírito. A ideia de abandonar a batina o seduzia especialmente à noite, como um demônio insistente. O padre lhe dava as costas, mas, de uns tempos pra cá, gastava as horas a se revirar, sem conseguir espantar a vontade traiçoeira. Seria professor, enfermeiro, bancário, cuidaria ele mesmo de Deus, sem ter que impô-Lo a ninguém. Estava cansado da cruzada contra o fogo amigo dos evangélicos e o inimigo dos ateus. Perdemos a luta.

E foi dominado por dúvidas que padre Graça abriu os trabalhos naquela manhã, encomendando a alma de uma bisavó de sete, avó de quinze, mãe de quatro e viúva de um. Apesar da tristeza, os parentes se mostraram resignados com a partida da matriarca. Católicos praticantes, se empenharam na missa. O santo homem chegou a esquecer, por breves instantes, a atual rejeição que nutria pela própria função. No final, agradeceu aos presentes e confessou: Entrei aqui sem esperança, saio com ela redobrada.

As visitas seguintes reduziram a cinzas a comunhão da manhã. Um adolescente, uma mãe ainda jovem e um pai atencioso. De um total de cinco, apenas a anciã da manhã e um velho ao cair da tarde seguiam a lógica natural, a ordem que deveria impedir que as mães enterrassem os rebentos, que os bebês se vissem privados do carinho materno e que os pais faltassem na hora de necessidade. Novamente abalado pela quantidade de vezes em que Deus parecia dormir, padre Graça se deixou arrastar pelo pessimismo. Sou um coveiro de Deus, desabafou em voz baixa.

No estertor do dia, subiu amargurado as escadas da capela a caminho do salão de número 10. Chegou a reduzir a marcha, certo da incapacidade de oferecer conforto. Preciso eu de consolo. Quem me dará? Foi quando surgiu o ensejo, a ideia, a tentação. Cabia ao pároco ser firme no justo instante em que o rebanho se mostra mais vulnerável. A fragilidade diante da morte torna propícia a revelação. O engano residia na benevolência passiva do sacerdote. De que serve a misericórdia? O catolicismo deve eleger a firmeza como aliada. Sou um pastor, percebeu, mas me castro na pele de ovelha. Afaste de mim a bondade. Serei impiedoso, viril, romano, bélico e voraz. O lado terrível do ser divino. O Antigo Testamento é meu guia.

E, certo da recente convicção, adentrou o salão de número 10 às quatro e quarenta e cinco da tarde daquela terça-feira, estancou na soleira e bradou a cruel pergunta:

— Quem será o próximo?

Padre Graça calou-se, parado, segurando a porta entreaberta, sem saber se aquele era o início ou o grand finale da missa. A questão do fim iminente deveria despertar a consciência dos vivos, mas não havia sinal de elevação. A estupefação dos ouvintes exprimia apenas reprovação. Padre Graça pousou os olhos numa velha dama elegante que o mirava assombrada. Era Irene. A próxima. Graça arrependeu-se da bravata, ensaiou uma reverência acanhada e partiu sem fechar a porta. Desceu a escadaria, foi até a secretaria; não havia mais ninguém por quem orar. O dia estava encerrado. Sua carreira também.

 

Era a gota d’água. Irene não tinha por que ficar ali, ouvindo as ofensas de um reza-defunto, perdendo minutos preciosos de vida para sepultar um homem que já havia nascido caduco. Eu tenho que ir, Rita! Cadê o Cézar? Por que é que ele não veio te ajudar? Que casamento é esse que não vale o sacrifício?

Mas, antes que soltasse o desabafo, os coveiros chegaram para dar a saída. Irene foi junto. Caminhou pelas alamedas até o alto do cemitério e enterrou Álvaro numa cova simples.

Na saída, ao cruzar os portões do Tártaro, correu para um táxi. Desabou no banco de trás, virou a cabeça para o lado e se pôs a admirar o trânsito pela janela, o vai e vem dos vivos. Observou as próprias mãos, mãos de velha, as veias à mostra e a pele enrugada. Tinha mais de setenta anos, mas não se via assim. Sentia saudade dos mimos do pai, do rosto da mãe, da casa do Cosme Velho. Como era bom se sentir segura, e como foi duro perder as certezas. A adolescência destruiu-lhe a graça, a escola a inocência e os homens a delicadeza. Ninguém reconhecia mais nela a princesa, só ela, ali, no engarrafamento da São Clemente.

O enterro, o velório, tudo veio inteiro e de uma vez.

Quanto tempo tinha ainda? Não precisava de muito. Estava cansada, não alimentava mais planos, não se importaria de partir. Nem a filha precisava mais dela, a verdade é que mal se viam. Os últimos trinta anos haviam sido dedicados à solidão absoluta, à ausência de qualquer expectativa amorosa, à não dependência. Conseguiu. Não sofria mais da ânsia do par, da angústia de vencer as etapas: namoro, estudo, trabalho, família, filhos, cumprira tudo da maneira possível.

Naquela noite, sonhou.

Estava na praia. O sol se deitava atrás dos Dois Irmãos, clima ameno, mar calmo. Álvaro vestia uma sunga, ajoelhado em frente a ela, as costas recortadas pelo laranja do céu. Era magro, forte e bonito. Sorriu para Irene.

— Que bom que você foi. Que bom, Irene.

E a beijou. Depois, ficaram assim, enlaçados. Um pouco adiante, em frente ao muro do Country, uma roda observava o casal, era o grupo de análise. Falavam de Irene, mas ela não conseguia saber o quê. Álvaro perguntou se estava tudo bem e virou a cabeça da esposa para que ela respondesse olhando para ele. Álvaro havia se transformado em Álvaro. Era flácido, careca, mirrado e brocha.

Irene abriu os olhos e não dormiu mais. No dia seguinte, levou a filha até o aeroporto.

 

RITA parecia orgulhosa de ter dado conta da tarefa hercúlea. Falou do pai como os filhos costumam falar após as exéquias, com cerimônia. Nas suas palavras, Álvaro vinha ungido de uma grandeza que jamais possuíra. Napoleão coroado em derrotas. Irene ouviu, era seu papel ouvir. Os filhos têm pouco interesse pelo sofrimento dos pais, são ciosos do lugar de vítima, não gostam de abrir mão por ninguém. Era a hora de Rita contabilizar seus feitos e de Irene dar valor à maturidade da filha. Fingiu dar. Na despedida, abraçou a cria, lembrou dela neném, do futuro que projetara para ela, do choro, das aflições, das brigas, depois olhou para a mulher na sua frente. Rita havia crescido, aceitara uma existência modesta no interior, com um homem medíocre, mas sólido, fiel e presente. Não arriscou e não perdeu tempo. Possuía o bastante da passividade bovina do pai para se contentar com a vitória dos meninos no futebol, com a novela das nove e o Carnaval no clube. Era feliz, bem mais do que Irene. E de Irene havia herdado o brio. Era submissa à vida doméstica, mas nunca ao marido. Conseguira a vitória onde Irene falhara, soubera controlar os impulsos e se satisfazer nas insatisfações. Rita cumpria com mestria as duas grandes obrigações do mundo moderno, ser jovem e ativa. Ia à academia diariamente, comia direito e passava cremes à noite. Cuidava da contabilidade da clínica de exames do sogro. Era boa de contas, sólida, reta e pragmática, como a mãe; e simplória, como o pai. Eliminara a dúvida. Não tinha desejos, a não ser os de trocar o carro, organizar o aniversário do Felipe e do Marcelinho e o churrasco no sítio. Irene acumulava desprezo e admiração pelos feitos da filha. De qualquer maneira, era um presente melhor do que o que prometera a nefanda adolescência.

A pele de Rita estourou de espinhas, os quadris alargaram e a barriga, engraçada aos quatro, preocupava aos doze. No fim do quarto ano primário, o colégio chamou, queriam que repetisse de ano. A mesma rotina ocorreu nos anos seguintes. Os dezembros gastos na expectativa de salvar o boletim, berros e chás de cadeira ao lado dela, martelando equações e os verbos irregulares. Rita gostava de não fazer nada, de ver TV e comer biscoito com requeijão. Queria ser como as heroínas das novelas, Lucélias e Lídias, Reginas e Glórias, ser beijada pelos galãs. O pior veio depois, quando passou a desdenhar dos folhetins e deixou de tomar banho. Só comprava roupas usadas, andava de chinelo e não raspava debaixo do braço. Botava Led Zeppelin para a vizinhança ouvir e respondia com raiva a qualquer pergunta que lhe fizessem. Agredia a mãe, ridicularizava as roupas e as opiniões dela. Irene era a sua inimiga figadal. Depois de repetir duas vezes o primeiro científico, concluiu os estudos num cursinho supletivo, o Fast, onde não precisou nem marcar presença. Pagou e passou. Não tentou o vestibular. Tudo parecia perdido. Depois de quitada a última prestação do Fast, para comemorar não se sabia bem o quê, os pais financiaram uma viagem de Rita para Minas Gerais. Quinze dias em Ouro Preto na companhia de umas amigas igualmente bizarras. Irene achou que estava louca quando deixou as três na rodoviária.

Rita perdeu a virgindade em Ouro Preto, tinha dezoito anos, e voltou outra. O namoro com o Cézar engatou e tudo nela amainou. Rita, diferente da mãe, era dona de um romantismo terreno, saciável. Casou-se com vinte e um, depois de um longo noivado, e se mandou para Uberaba. Teve dois filhos homens e acabara de perder o pai. A mãe ainda estava viva e, graças a Deus, com saúde. Rita não alimentava hipóteses. Vai morrer em paz, pensou Irene, é uma qualidade e tanto. E abraçou a filha, dessa vez, com o merecido respeito.

A cria desapareceu no portão e Irene se viu perdida no aeroporto. Fazia tempo que não viajava. Será que voltaria a fazê-lo? Ficaram a sós, ela e as suas frustrações. Preferiu usufruir da companhia em público. Sentou-se no balcão e pediu um café, esperaria até o avião confirmar a partida.

 

— E por que você acha que bateu na sua filha?

— Eu não sei. Ela apareceu bêbada. Chegou dizendo que precisava de dinheiro e se arrumou para sair. Tinha acabado de escurecer. Eu falei que não ia dar, mas ela abriu a minha bolsa e pegou um bolo de notas sem pedir. Fez isso na minha frente e saiu andando pelo corredor. Eu achei demais aquilo, barrei a porta e mandei ela botar o dinheiro de volta. A Rita me empurrou com força e tentou virar a chave, eu puxei ela pelo cabelo, a cabeça bateu na quina do batente. Eu não sei o que eu fiz. Eu chutei a chave da mão dela e dei um tapa, acho que no rosto… não lembro… não lembro. Ela sempre foi difícil.

— E você, Irene? Você é difícil?

Irene encarou a Santa Inquisição. Havia um prazer explícito no rosto dos presentes pelo fato de ela aceitar o papel de ré com tamanha abnegação. O regozijo do grupo crescia a cada fracasso seu. Irene havia tomado para si a posição da falha, da fraca, exorcizando a consciência dos demais. A pergunta de Vera era uma acusação clara de que a fonte da histeria da filha provinha dela. Todos aguardavam a expiação, o mea-culpa que, segundo a teoria, romperia com as mazelas psíquicas que lhe mantinham fechadas as portas da felicidade. A bolha. Mas era preciso que Irene admitisse, perante o tribunal, que a agressividade de Rita tinha origem na mãe neurótica que ela era, na frigidez sexual de que sofria e na inveja do mundo que não confessava.

— O problema é esse seu casamento.

— Ela precisa trepar.

— Quem? A filha ou a mãe? — Roberta disse rindo. Logo ela, que apanhava em casa e tinha um filho drogado. Está rindo do quê?, pensou Irene.

— Será que o Álvaro não brochou com você porque você brochou com ele primeiro?

— Está todo mundo brocha na sua casa. É por isso que essa menina está desse jeito.

— Você tem que dar, Irene. E pra alguém que te coma direito.

A última sentença foi proferida pelo macho alfa do grupo, um homem atraente, alcoólatra e sedutor. Havia a suspeita de que ele estivesse tendo um caso com Vera. A analista sofrera grandes transformações, emagrecera, passara a usar saia, salto alto e batom. A mudança coincidira com a chegada de Paulo, que nunca falava dele e se divertia com o psicodrama dos outros. Paulo gostava de concluir os ataques endereçados a Irene com frases irônicas, sempre machistas, tiradas sobre a carência feminina e as glórias do pênis.

— Você é um caso clássico de mulher mal-amada — dizia ele, sugerindo que saberia resolver o problema, embora não tivesse nenhuma intenção de fazê-lo.

Irene terminava as sessões massacrada, Vera mal intercedia. Era como se a doutora a houvesse abandonado nua, em meio à savana, para ser devorada por lagartos carnívoros.

Saiu do elevador escondendo o rosto inchado de choro. Resolveu caminhar. Como é feio Botafogo. Não era, mas é, ficou. Não queria ir para casa. A mãe do Álvaro estava lá por causa do marido caduco que a acusava de adultério e alimentava planos de meter uma bala na cabeça da esposa. Era uma boa sogra, silenciosa, discreta, mas havia um mês dormia no escritório. Passava o dia entre a cozinha e a sala, pilotando o forno e vendo televisão. Gostava do fogão, o que foi a salvação quando a cozinheira pediu as contas, o único alívio, pequeno alívio, em meio a tantas debacles. Rita seguia firme em direção a uma terceira reprovação e até o cachorro estava nas últimas, internado numa clínica veterinária de Copacabana. Era velho, fora o presente de aniversário dos oito anos de Rita, depois do fracasso de Monteiro Lobato. O bicho já não enxergava; cheirava mal, mancava e sofria de complicações intestinais. Vivia num canto da área de serviço e seria mesmo uma bênção se alguém ligasse dizendo que ele passara dessa para a melhor. Na noite em que teve que pular da cama para levar o animal desmaiado para o pronto-socorro, Irene pensou em sugerir uma injeção, mas os pudores católicos frearam o impulso. Que bom seria escutar que o Major não retornaria. Mas ele voltou. Só para morrer perto da gente, disse a sogra emocionada. Velho se emociona à toa. Irene cogitou jogá-lo pela janela, adoraria fazê-lo, mas limitou-se a sorrir e fingir alegria com a sobrevida do cão.

Agora, caminhava a esmo por Botafogo, sem lugar. Se pudesse, trocaria de pele, sairia de si, mudaria de nome, começaria tudo outra vez. Até completar trinta, Irene achou que atravessava um período de teste, vendo o que acontecia, jogando por jogar, mas, depois que a filha deixou de ser bebê, percebeu que o futuro se define cedo. Rita era insegura, chata e gorda, além de pouco dotada intelectualmente. Irene jamais pensara que o seu ideal de mãe pudesse não se realizar, não com ela, não com seus filhos. Admitia ter errado de homem, de profissão, de amigos, mas carregava a prepotência de que faria de Rita um exemplo. Fracassara.

A menina foi matriculada num colégio tradicional, católico e exigente. Seria advogada ou economista, previa a mãe. Já na alfabetização, no entanto, a letra em garranchos, a dificuldade na leitura, a falta de compreensão das noções básicas de matemática, denunciaram que algo não sairia como o previsto. Os pequenos problemas de aprendizado tomaram proporções catastróficas. Para evitar a repetência, a família achou por bem trocar de escola. Optaram por Piaget. Irene fez a matrícula numa instituição experimental do Jardim Botânico, foi às reuniões de pais, às palestras sobre a liberdade e a criatividade da criança, entendeu a importância da descoberta e do prazer de aprender em oposição a um ensino ditatorial, feito de cima para baixo, empurrando a matéria goela abaixo dos alunos. No primeiro dia de aula, deixou Rita no colégio convencida de que o problema não se encontrava na filha, mas no sistema. A certeza não durou um semestre. Em junho, Rita recebeu uma péssima avaliação do corpo de psicólogas e professores. Se houvesse boletim, teria levado um D. E mais, tornou-se agitada, rebelde, parou de comer sentada, pulava, desenhava peitos e perus compulsivamente. Os intermináveis deveres de casa do antigo educandário, com Piaget, deram chá de sumiço. Aflita, Irene marcou uma reunião na escola. A psicóloga explicou que a criança deveria fazer o dever caso se sentisse motivada. As redações também não eram obrigatórias. Irene expôs seus argumentos favoráveis à disciplina e a sua preocupação com a leniência de Rita, mas nada disso tinha relevância para a terapeuta, o que a preocupava era outra questão. Esta aqui, disse, tirando uma folha de papel de uma pilha de desenhos. Era um rabisco de Rita, um peru enforcado pela glande com um “papai” escrito embaixo. Ao lado, uma criatura espinhuda, semelhante a um ouriço rosado, exibia dois olhos raivosos e uma boca com dentes pontiagudos. Um “mamae”, sem til, sublinhava a composição.

— Talvez seja indicada uma terapia familiar — ela disse, e concluiu a reunião.

Vagando pela São Clemente, Irene procurava aceitar que havia perdido o controle. Esforçava-se para separar a própria vaidade do destino da filha, mas era difícil. Media o desenvolvimento de Rita pelo dos colegas, pelo dos filhos de amigos, todos sãos, fortes, saudáveis, e sofria com a inferioridade uterina. Procriei mal, pensava. O nó na garganta obrigou Irene a parar. Ela sentou numa mureta, arfava de agonia, sentiu tontura e sufocamento. Para onde fugir? Lembrou-se do clube, ainda tinha força de vontade suficiente para aliviar os nervos na natação.

Cumpriu dois mil metros sem pensar em coisa nenhuma. Saiu melhor da piscina e tomou banho no vestiário. Como havia esquecido a carteira em casa, foi obrigada a dar um pulo na secretaria para carimbar uma autorização e entregar ao guarda-vidas. Implorou para cuidar da burocracia depois do descarrego, foi atendida. Por isso subia as escadas da administração agora, feliz de cumprir a tarefa, era mais uma razão para adiar a sua volta ao lar. Um homem atlético, aparentando cinquenta anos, bronzeado e atencioso, cuidou dos trâmites. Era o Jairo. Ele protestou contra a rigidez do clube, uma mulher bonita como Irene não merecia ser tratada assim. Irene corou com o comentário. Poucas vezes ouvira elogios, já nem se lembrava da existência deles, mas aquele “bonita” fez suas pernas bambearem e o coração palpitar. Sorriu, vermelha, e baixou os olhos. Tinha quinze anos. Passou a frequentar o clube todos os dias, sempre sem a carteira. Subia as escadas logo que passava a roleta, pegava sua autorização com o Jairo e rumava para as raias, onde cadenciava braçadas, enquanto fantasiava encontros com seu raro fetiche. O cargo de gerente dava ares de rei a Jairo, que passou a acompanhá-la até a piscina. Depois, começaram a marcar uma hora certa na portaria, para que Irene não precisasse subir. Ele a conduzia até a catraca e dava ordem para que liberassem a entrada. Na terceira semana de vai e vem, Jairo pediu que Irene regularizasse a situação, estava sofrendo pressão da chefia. E também não via sentido em se valer de desculpas bobas para esconder o desejo de estar com ela. Irene quase desfaleceu. Não sabia mais o que era ser cortejada, havia dado as costas ao romantismo. Jairo tinha tudo o que Álvaro lhe negava. Era macho e direto. Na tarde em que regularizou a carteira, ele fez questão de levá-la até o carro. Estava debruçado na janela, Irene se preparava para ligar o motor, quando, sem avisar, ele roçou a mão no pescoço de Irene e segurou seus cabelos pela nuca. Pediu que ela o encontrasse num bar da Farme de Amoedo às seis. Irene não respondeu. Encabulada, deu marcha a ré e quase levou a cancela.

O Agris era um predinho vagabundo no fim da Farme, quase na boca do lixão da favela do Cantagalo. Os dois se encontraram num bar com varanda a uns três quarteirões do hotel. A conversa não durou muito. Jairo virou o primeiro uísque, sacou uma nota da carteira e pôs sobre a mesa com uma gorjeta gorda. Saíram abraçados, ela ansiosa, ele focado, ambos lascivos. Entraram no 304, fundos. O lençol com perfume de desinfetante, o sabonetinho do banheiro apertado, nada se assemelhava à fantasia de Irene, mas era um passo, uma atitude, um começo. Ele chegou aos finalmentes, ela não, apesar do esforço; mas não se frustrou, pelo contrário, assistiu encantada ao rosto contorcido de Jairo sobre ela, por causa dela, nela, e saiu aérea pela Visconde. Jairo se pôs do lado do meio-fio para protegê-la dos carros e chamou um táxi. Antes de abrir a porta, deu um longo beijo na amante. Antes de deixá-la partir, pediu cuidado ao motorista. Ele sabia ser homem.

Irene foi aplaudida na sessão de análise.

 

Os quartos separados encobriram o constrangimento. Quando chegava dos encontros com Jairo, Irene não era obrigada a se deitar com Álvaro; de manhã, bastava monitorar o som do chuveiro e as batidas de portas para não ter que cruzar com ele. Viam-se raramente. O marido, assolado por problemas familiares, aliviou-se com o inesperado bom humor da mulher. Se estava bom pra ela, estava bom pra ele.

Dormiam em camas distintas havia dois anos. Aconteceu por acaso, depois de uma briga, mais uma, causada pelos comentários jocosos de Sílvio num almoço de domingo na casa do Ciro. Sílvio bebeu e escolheu Álvaro para cristo. Destilando acidez, sentenciou que Irene tinha escolhido o pior entre eles. Falou das manias de Álvaro, do ronco, da falta de ambição. O Álvaro não ganha da gente nem na porrinha, soltou ele, e riu até não poder mais. Ciro o mandou calar a boca, o que só aumentou a falastrice de Sílvio. O amigo da onça listou as mulheres que haviam rejeitado Álvaro. Teve a Bete, a Cláudia, a Mina, a Sandra, a Paula, a Maureen… Até a doida da Dora disse não. Me espanta você, Irene, ter dito sim. Você merecia coisa melhor.

O discurso morreria com o bêbado, se não refletisse de maneira tão precisa as insatisfações secretas de Irene. Ela vestiu a camisola e se deitou furiosa. Álvaro veio do banheiro, botou o pijama e se meteu debaixo da coberta como se a tarde não houvesse existido. Irene explodiu. Queria entender o porquê de ele ter aguentado a humilhação sem revidar. Perguntou se ele desconfiava do que se passava com ela. Da vergonha que tinha dele. Da falta que sentia de tudo. Álvaro pediu desculpas por existir, disse que aceitaria o que ela quisesse, da maneira que quisesse, quando quisesse. A resposta a enfureceu ainda mais. Irene catou um lençol na despensa, um travesseiro, fez a cama no quarto de hóspedes e mandou que ele dormisse lá naquela noite. Álvaro obedeceu e nunca mais retornou para o quarto do casal. Só não terminaram porque Irene tinha mais medo da solidão que da frustração afetiva. Gostava de ouvir o barulho da chave na porta quando Álvaro chegava de noite, da presença do pai, das contas divididas igualmente. E não alimentava nenhuma ilusão quanto às chances de arrumar algo melhor no futuro. Ao contrário de Ruth, Irene nunca soube o que significava ser feminina. Os rapazes morriam por Ruth, desde sempre foi assim, no primário, no ginásio e, sobretudo, na faculdade. Cursaram letras juntas. Ruth se casara com o melhor dos cinco, ela, com o pior, embora fosse uma mulher desejável. Jamais entendeu.

 

Álvaro era amigo do Ciro. Ruth cantou loas sobre ele, encheu a cabeça de Irene. Ela estava cansada de estar só, não engatava com ninguém havia mais de um ano. O último namorado se mudara para a Espanha. Cogitou ir com ele, mas teria que abrir mão das aulas que começava a ministrar, da vida aqui. Prometeram se falar à distância. A correspondência durou alguns meses, mas, de repente, minguou. Ele se casou com uma andaluza no verão seguinte e nunca mais deu as caras. Álvaro era troncho, torto, mas dono de um senso de humor atravessado, autodestrutivo, que cativou Irene. Por que não? Ela jamais o amou, continuou com ele como se esperasse o bonde seguinte que a livraria do pequeno desvio; mas o bonde nunca passou. Os amigos em comum, o tempo, o acaso, os enlaçaram. Álvaro escolheu o anel, Ciro ajudou, e num domingo de sol, tendo Ruth e Ciro como testemunhas, Álvaro pediu Irene em casamento. O vinho era bom, a tarde de outono, que importava o noivo? Vou aceitar, decidiu, depois separo, vou ver no que dá. Treze anos se foram e ela continuava na expectativa de alguém que a arrancasse dali. O Jairo, o Jairo a libertaria do Álvaro.

Como era boba, pensou, enquanto admirava o jato alçar voo sobre a baía de Guanabara. Seria bom estar nele.

 

SÍLVIO não conseguiu esconder a alegria de dar as más novas.

— Um passarinho me contou que a sua senhora planeja o abandono do lar com um sujeito do clube onde ela nada. Abre o olho, Alvarozinho, que elas estão com a corda toda. Willing and able!

O passarinho era o Paulo, ele mesmo, o da terapia. Um dos passatempos prediletos do Casanova era entregar as mazelas dos analisandos para o pessoal da praia. Vera gostava de discutir as sessões com ele, nos frequentes encontros íntimos que andavam tendo, muitas vezes no consultório. Ela adorava a franqueza de Paulo, a segurança, o amor-próprio. Era alcoólatra, é verdade, mas, fora isso, era perfeito. Estava apaixonada, perdera a compostura. Falavam mal do grupo, riam do desespero alheio e eram felizes como ninguém.

Bastava uma dose no quiosque do Coqueirão para Paulo descarregar os podres das últimas sessões de análise. As horas extras com a terapeuta enriqueciam o vocabulário de certezas do difamador. Desde que o caso com Jairo pegara fogo, a intimidade de Irene se transformara na sua novela de predileção. Paulo farejava de longe o igual. O Jairo? É um cafajeste completo, profetizava, agarrado à oportunidade de acompanhar de camarote a queda de Irene na teia do garanhão.

— A idiota vai jogar a toalha na semana que vem, escreve o que eu estou dizendo. Em um mês, esse Jairo vai parar de responder os telefonemas dela; em dois, ela vai implorar para voltar para o corno brocha do marido. — Promulgado o decreto, virou o resto da cerveja e partiu para a rede de vôlei.

Ribeiro conhecia Paulo de nome. Tinham um amigo em comum, também bombeiro. Ribeiro preferia a turma da Miguel Lemos, mas calhou de nesse dia aceitar o convite de fechar uma dupla no Coqueirão. Dividiram a quadra com o Paulo. Antes do jogo, tomaram a gelada que soltou a língua do fofoqueiro. A menção do nome de Irene foi o que primeiro chamou a atenção de Ribeiro; o marido brocha, a filha histérica e o cachorro moribundo o fizeram ter certeza de que se tratava da mulher do Álvaro, o seu Álvaro. Ribeiro detestou saber do imbróglio, teria que tomar uma atitude, mas qual? Precisava dividir com alguém. O Ciro era padrinho do casal, preferiu uma opinião mais isenta e escolheu Sílvio como alcoviteiro.

Sílvio delirou, cogitou se embrenhar no grupo, iniciar terapia, conhecer “aquela tal de Vera”, uma analista tão aberta a experiências. Ribeiro vivia o dilema de contar, ou não, da traição. Lembrou-se da vez que desancou a ex-namorada de um primo, sem pensar que os dois poderiam reatar no fim de semana seguinte. Acabaram casados, pais de três filhos. Quem dançou foi o Ribeiro. Sílvio encarnou o conselheiro, argumentou que não teria condição de encontrar o Álvaro sem lhe dizer a verdade e quase implorou para assumir o papel de Cassandra. Ribeiro delegou a missão e se livrou de bom grado do peso.

 

Álvaro não gostava de praia, ia porque todo mundo ia, mas ficava debaixo da barraca, sentado numa cadeira dobrável, lendo o jornal e tomando mate. Raramente dava um mergulho, e carregava um balde d’água para limpar a areia dos pés na retirada. Luminosa manhã, lá estava ele, folheando o caderno de esportes. Sílvio se aproximou com ar de preocupação e sentou-se para aproveitar a sombra. Consternado, contou da infidelidade de Irene e encerrou com o “willing and able”, ele gostava de pavonear seu protoinglês. Álvaro odiou Sílvio por se deleitar com algo tão triste quanto ver as suas dores lavadas na mixórdia do Posto 9. Compreendeu a recente alegria da esposa, o porquê da leveza dela, Irene estava indo embora. Paulo acertara na mosca, em um mês ela retornaria aturdida, pediria para voltar; em um ano, entraria no climatério e enfrentaria uma depressão abissal. Sairia bem, dois anos depois, mas nunca mais teria outro homem. Aquele era o começo do fim da vida sexual de Irene. Não teria sido muito diferente se tivesse permanecido casada.

Sério, Álvaro recolheu a barraca de praia, a esteira, a cadeira, guardou o jornal na sacola, catou os chinelos, o chapéu, o balde d’água, e se voltou para o Calçadão. Antes de enfrentar a travessia escaldante, olhou para Sílvio com gravidade e desejou que ele estivesse morto.

Mas isso ainda demoraria vinte e cinco anos para acontecer.

 

         SÍLVIO

         13 de junho de 1933 a 20 de fevereiro de 2009

 

Me dá três de cinco. E a lança também. Quanto?… Aceita cheque? Não tenho. Cem… sessenta… duzentos e cinco… duzentos e dezessete… me perdi. Quanto? Dois de cinco por isso? E a lança? Inclui a lança aí, porra… É Carnaval!

Sai logo desse muquifo, rei. Odeio buraco quente, sempre acho que vão me matar. Aqui. Não vem ninguém. Que pó cortado da porra é esse? Vidro moído. Foda-se. Onde é que eu estou? Evaristo da Veiga. Evaristo da Veiga… Evaristo da Veiga… Onde fica a Evaristo da Veiga? Quem foi o sádico que batizou o filho com um nome desses? O mundo está perdido. Cadê os Arcos? Cadê a porra do mar?

Olha a cabeleira do Zezé… Será que ele é?… Será que ele é?… Bicha! Adoro essa música. Cadê a lança? Uuuuuuuuuóóóóóóóóó… Caceta! Caí e continuo em pé… estou doido pra caralho. Preciso pegar um táxi e voltar pra Suzana… Ela está lá com a… a… ou não?… Não, a Suzana… a Su… zzzz…

 

Eu estava casado com a Norma há um ano e meio. Fazia um ano e meio que ela não era mais virgem. A Norma não dava o cu, me chupava por obrigação e perdeu aquele medo de abrir as pernas que tanto me alucinou no começo. Era um beco sem saída, eu sabia, mas ainda não tinha decidido o que fazer. Eu estava no jardim da casa do Ciro, pensando na cara de pedinte que a Norma fez com o bebê do Neto no colo, quando a doida apareceu. Sorriu que nem criança, acendeu um baseado e virou o rosto para tomar sol.

Suzana. Sílvio. Sílvio também começa com “s”, ela disse. É, começa, respondi. E me ofereceu o charro, eu aceitei. Você é amigo do Ribeiro?, perguntou. Muito, eu disse. E ficamos mudos, olhando para a frente.

Você faz o quê? Sou funcionário do Banco do Brasil. Nossa. Meu pai queria o Itamaraty, mas eu não aguentei a frescura. Frescura? Tem muito veado no Itamaraty. Eu gosto de veado, ela disse. Eu também, respondi. E rimos cúmplices. E você? Devolvi o cigarro para ela. Eu o quê? Você faz o quê? Ela deu uma baforada e respondeu: Eu namoro o Ribeiro.

Sempre tive desprezo pelo Ribeiro. Primeiro vinha o Ciro, depois o Neto, o Álvaro e, muito depois, o Ribeiro. O Ciro era heroico, o Neto conservador, o Álvaro trágico e o Ribeiro burro. Simples assim. Um bronco comedor de virgens. Que vantagem há nas virgens?, eu perguntava. Ele dizia que era escolha, mas a verdade é que nenhuma mulher com mais de um neurônio suportaria a companhia do Ribeiro.

Por que será que essa menina está com ele?

Chamou pelo nome, o diabo aparece. Veio pedir para apagar o cigarrinho porque a Ruth não estava gostando. Eu ri, era ridículo demais, o jeito como o queixo dele caiu quando viu nós dois juntos. A Suzana também se escangalhou, me entregou a ponta e saiu colada nele. O Ribeiro foi andando com a cara virada pra trás, um símio raivoso. Ai, que meda!

Onze e meia da noite, eu já estava na cama, o telefone tocou. A Norma atendeu e disse que era do banco. Estranhei. Era a Suzana. Contou que o Ribeiro estava infernizando ela por minha causa e que não tinha aonde ir. Inventei uma transferência do Japão, um telex que ia chegar no escritório, e combinei com a Suzana, ali, nas barbas da Norma, de me encontrar na agência da Primeiro de Março. A Norma engoliu e eu sumi pelo corredor. Voei pelo túnel em direção à Presidente Vargas.

A Suzana estava na esquina em frente à Candelária, vestida com uma minissaia que dava pra ver a cor da calcinha. Verde. Eu parei do lado, ela abriu a porta tomada de raiva, sentou no carona e me deu um beijo de língua que me fez ver estrelas. Eu não esperava. Olhei bem para a cara dela sem conseguir pensar em nada que não fosse revirar a Suzana por dentro e rumei para a Glória. Nos agarramos no carro, no elevador, e trepamos na porta do apartamento, oito horas depois do jardim da casa do Ciro.

Repetimos a dose até ela cair para o lado, já era bem tarde. Vesti o terno e sacudi a Suzana forte, disse que era para ela voltar para o Ribeiro porque eu não queria confusão para o meu lado. Passamos a nos ver regularmente, o Ribeiro cada vez mais enciumado, a Suzana cada vez mais Suzana e eu cada vez mais entediado com a vida de casado.

Foi quando a Norma engravidou pela segunda vez.

Apaguei. Emborquei na calçada. Que fedor de mijo. Acho que sou eu. Não, é o bueiro. Não, sou eu e o bueiro. Eu estou todo anestesiado. Levanta, Sílvio, toma teu rumo. Eu tenho que pegar um táxi. Angústia filha da puta. Vai ser ruim de aterrissar dessa vez. Eu tenho um Dormonid no apartamento. Eu tenho que chegar no apartamento. Cadê o táxi? A estrela-d’alva no céu desponta… Estrela-d’alva é fim de festa. Está ficando azul… o céu… anil. Odeio o amanhecer. Angústia filha da putíssima. Cadê o pó de vidro? Mais uma, só para chegar em casa. Vêm vindo uns pivetes, foda-se.

Na Cinelândia tem táxi, na Cinelândia tem táxi, na Cinelândia tem táxi. Na Cinelândia. Pra que lado é a Cinelândia? Tu não tens pena de mim… que vivo tonto… Vivo tonto. Eu vivo tonto, me sinto em transe nos estados alterados, desde sempre foi assim. Comecei a fumar aos doze, a beber aos treze, e me viciei em bolinha aos quinze. Perdi a virgindade com uma puta, um primo me levou, meu pau não estava nem formado. Adoro sacanagem. Tinha a coleção do Carlos Zéfiro e ia à zona toda semana com esse primo, o Valdir. Fiz muita meia com o Valdir. O coitado morreu cedo, de tuberculose, tinha só dezoito anos.

Eu era bom aluno e o meu pai encasquetou com o Itamaraty. No curso, conheci uns garotos finos que se divertiam que nem gente grande. Rico é muito mais pervertido do que pobre. Rico não tem moral. Aqueles meninos não tinham. Fui aceito por causa de um anestesista, herança do Valdir, que fornecia os tarja-preta; eles entravam com o uísque e cada um ficava incumbido de trazer duas acompanhantes para as festas.

Uma delas, a Miranda, era de menor. Quem trouxe foi o Fausto, disse que era prima dele. Ninguém questionou se a guria tinha mais ou menos anos, para estar ali com o Fausto boa bisca ela não era. Foi a primeira vez que vi dois caras darem cabo de uma garota. O Fausto e o Bernstein. Fiquei doido. Um tesão que não passou nem na delegacia. Os pais da Miranda botaram a polícia para seguir o Fausto e fomos todos parar na cadeia.

Fui expulso do Itamaraty. Meu pai, desesperado, conseguiu uma prova no Banco do Brasil com um diretor conhecido, deram um jeito de esconder a ocorrência, eu passei e resolvi os próximos cinquenta anos da minha vida. A única exigência era comparecer em dia, o resto — aposentadoria, décimo terceiro, férias e bonificação — viria de mão beijada com o tempo de serviço. Longe da aristocracia diplomática, a vida ficou bem mais entediante. As caixas queriam casar, as gerentes constituir família e os homens só ejaculavam quando o time fazia um gol. Melhor pastar longe do serviço, pensei.

Tem um pessoal saltando de um táxi na esquina do Municipal. Mais uma. Mármore dos diabos. Última lança antes de chegar em casa. Uuuuuuóóóó… Uuuuuuóóóó… Caceta! Caceta! Cacet…

 

A Norma era lindinha, pequenininha e ingênua; filha de um tio fazendeiro. Moravam todos em Ribeirão Preto. Ela veio passar as férias no Rio e minha mãe pediu para eu servir de cicerone. Fui ao Bondinho, ao Cristo, à praia, levei para tomar sorvete, apresentei aos amigos, demorou semanas para ela me dar um beijo, sem língua. Eu inventei um tipo romântico, fiz parecer que não esperava nada dela, que estava doente de amor, deprimia com a ideia de vê-la partir. Eu andava entediado com as pilantras que davam fácil. Eram vulgares, desbocadas, e a grande maioria já tinha passado pela cama de todos os marmanjos que eu conhecia. A pureza da Norma se transformou num fetiche pra mim.

Era impossível, naquela época, existir sem cumprir certos rituais. O casamento era o principal deles. Percebi na Norma a vocação de gueixa. Ela seria tão agradecida por eu ter tirado ela do mato, que engoliria qualquer ofensa para manter o matrimônio em dia. A Norma era a minha libertação.

Minha mãe chorou com a notícia.

Quando eu levantei a saia do vestido de noiva, alucinado de bêbado por conta das comemorações, a Norma tremia que nem vara verde. Eu virei um bicho e possuí a pobre como um touro pagão. Depois, caí duro para o lado, roncando. Na vigília, ouvi a Norma chorar. Deixa pra lá, pensei, amanhã eu vejo isso. Sóbrio, tratei melhor dela e a vida caminhou sem dificuldades. A rotina com os amigos era um direito sacramentado. O horário incerto do fim do expediente, também. Eu não nasci para Cristo. Meu pai morreu e me deixou umas economias. Comprei o refúgio da Glória.

A Norma saía muito para levar o Inácio no parquinho, na praia, no médico; eu chegava de manhã, dormia até tarde e, mal acabava a janta, já ganhava a rua. Vivemos assim por dois anos sem que ela notasse a minha ausência. Mulheres como a Norma só têm olho para filho pequeno. Estava tudo em ordem, até a Suzana aparecer.

Alguém contou para a mãe da Norma que eu estava de caso com uma hippie de Bauru e ela bateu o relatório para a filha. A Norma estava no nono mês. Com uma mãe assim… Ela entrou em trabalho de parto e quase perdeu a menina. A Vanda nasceu roxa, foi um pesadelo. Quando voltou do hospital, a Norma estava liquidada. Minha sogra se mudou para dentro de casa, veio cuidar da retaguarda. Quando me via, desviava os olhos de indignação. Eu suportei por um bom tempo aquele inferno, até que não deu mais. Mandei o Inácio para o internato, contratei uma enfermeira para cuidar da Vanda, bati continência para a sogra e parti em direção à Glória.

Na Glória…

Suzana de manhã, Suzana de tarde, Suzana de noite. Ela me fez tirar o atraso. O Valdir, os diplomatas, a esbórnia, tudo voltou com força total. E melhor, porque eu não era mais criança. No dia da mudança, a Suzana preparou uma surpresa, chamou duas amigas da Bahia que me ajudaram a arrumar a bagunça. Depois, tiraram a roupa e ficaram se alisando no sofá para eu ver. A Suzana montou em mim e me desejou boas-vindas. O Ribeiro não tinha nobreza para dar conta daquela mulher. O aristocrata da turma era o Silvinho aqui.

 

Calor da porra, palpitação, tremedeira. Parkinson. Tenho que tomar o remédio. O veneno daquele remédio. Está juntando gente. Afasta, porra! Eu não sei o meu nome. Não me chateia que eu não vou dizer meu nome! Um filho da puta vestido de zebra querendo me levantar. Me deixa em paz, quadrúpede! Estou bem aqui. Onde? Onde eu estou? Por que tem um cara vestido de zebra tentando me levantar? Colombina… traveca… onde é que eu fui parar, cacete? Por que faz tão frio? Zebra! Ô zebra! Alguém! Chama uma ambulância e pede para me apagar com Propofol. Só serve Propofol! O do Michael! Jackson… Five… Foram embora. Graças a Deus me deixaram em paz.

 

Meu filho me arrastou para o hospital no dia em que eu apareci pelado na portaria perguntando por fogo. Eu queria acender um cigarro. Não esbocei reação, dei a mão para ele e me deixei levar. O Parkinson acaba com a iniciativa da gente. Não sei como o Inácio ainda consegue ter carinho por mim, eu fiz tudo para ele me odiar, nunca entendi. Na clínica, me viraram de cima a baixo e deram o veredito: dali pra frente, eu teria dificuldade para andar, falar, comer, pensar, dormir e trepar. Grande notícia. E ainda se paga para ouvir uma merda dessas. Me arrependi de não ter baixado hospital mais cedo, alguns exames pediam anestesia, daquelas que só se experimentam nas melhores enfermarias do ramo.

O tratamento do Parkinson é muito pior do que o Parkinson. E não existe cura. As bombas aceleram a cabeça, dão suor frio e um medo do caralho. O médico carimba a receita e te manda para casa de mãos dadas com o Incrível Hulk. São uns tarados, esses doutores. Carbidopa 25 mg, Levodopa 250 mg, Cloridrato de benzerazida 25 mg. Para o farmacêutico te entregar o pacote, você tem que apresentar CPF, carteira de identidade, título de eleitor, bons antecedentes, foto. É mais fácil comprar uma arma e se matar. Sem contar os antidepressivos, antiespasmódicos, antiácidos e associados. Me viciei em todos eles. Deu um mês, vieram as alucinações; delírios extenuantes de carros andando pra trás, cortes no tempo e passamentos. A whole new world. Ah, se o Valdir estivesse aqui! Coitado, só conheceu a anfetamina e o álcool, perdeu o melhor da festa.

 

Sai, bêbado! Bafo dos diabos. Sai, sai! Vai te catar! Cadê a zebra? Esse ano não vai ser… igual àquele que passou… Meu Deus, estão botando os foliões pra correr. E você, Sílvio? Vai ficar aí? Pelo menos senta, seja digno. Zonzeira, nariz sangrando, pó de vidro do cacete. Chão molhado, melhor assim, com a cabeça em pé. Sentado não amontoa gente. Como fede o Rio de Janeiro. Sempre fedeu. Sai, cachorro pestilento, vai fazer xixi noutro poste, eu cheguei primeiro.

 

Larguei tudo pela Suzana, os amigos, o serviço, perdi dinheiro, tudo. O Ribeiro e ela viviam às turras, a Suzana passava os dias se escondendo na Glória, comigo inventando desculpas para abandonar a noite. Quando perguntavam se eu ia botar a mulher na roda, eu desconversava, o Ribeiro só faltava subir pelas paredes. E a Suzana não era de ficar trancada à espera de ninguém; saía sem avisar, dizia que ia me encontrar e não aparecia, ameaçava fazer as pazes com o Ribeiro, inventava que estava esperando um filho dele só para me atazanar. A Suzana era igual a mim.

Quando o Ribeiro finalmente botou ela pra correr, a Suzana pegou um táxi e foi direto para a Glória. A Brites veio a reboque. Era uma gaúcha lourinha e cheinha que chegou de ônibus com um carregamento de maconha que pretendia vender no Rio de Janeiro. Eu disse que ela podia ficar se deixasse a metade para o aluguel. Sem opção, as duas venderam a parte delas. O Ciro quis comprar um terço do que ficou comigo. Rachamos a cama em três, eu, a Suzana e a Brites. Inventei para o Ciro, o Ribeiro, o Álvaro e o Neto que eu estava enrolado com duas gaúchas e que tinha planos de me mudar para o Sul. O Ribeiro me fuzilou do outro lado da mesa, fazia seis meses que ele não via a Suzana, estava na cara que a gaúcha era ela.

A Suzana e a Brites conheciam muita gente. Todos bi de carteirinha, donos de um discurso chatíssimo de que o mundo se dividia entre os bi e os reprimidos. Os comunistas não gastavam o tempo deles com sexo, ao contrário dos bi, que fodiam adoidado. A Brites era apaixonada por uma bicha dos Dzi Croquettes, acho que também se chamava Ciro. Assisti aquela porcaria mais de dez vezes. As duas gostavam de colocar “Dois pra lá, dois pra cá”, com a Elis, pra tocar na vitrola, e de dançar agarradas, imitando o Lennie Dale. Era uma marginália cabeluda, não se distinguia homem de mulher.

Um dia, a Brites apareceu com um convite para uma festa chique numa cobertura na praia do Flamengo. Eu achei que era mentira, mas ela explicou que ia levar uma encomenda e que o dono, um pintor milionário, liberou dela entrar. Fomos os três e mais trinta gramas de pó.

Subimos no elevador social, tocamos a campainha do um por andar, o som a toda, ninguém atendeu. Dez minutos de expectativa, nada, viramos a maçaneta e descobrimos a porta aberta. Atravessamos o hall imponente, seguindo a música e o vozerio. Ao virar à direita no corredor principal, por trás de uma coluna de mármore, os janelões do salão descortinaram a Guanabara. Nele, cem pessoas nuas se entretinham majestosamente. Adentramos a corte do Rei-Sol, o esplendor de Versalhes. Saímos de lá de manhã e fomos caminhando pelo Aterro. Trepamos a tarde inteira. Agradeci por ter nascido quando nasci, a tempo de usufruir daquela libertinagem. Nunca mais fui o mesmo. Mandei o sofrimento cristão às favas e restituí a glória, Na Glória… do antigo Império Romano.

 

O Império Romano. O que esse homem de toga está fazendo, parado na minha frente? Ele está vestido de quê? Do que é que você está vestido? De Hércules, diz ele. Cadê a clava? Hércules me pergunta se eu tenho fogo. Bafo horroroso. Tenho, Hércules, tenho fogo. Você tem um cigarro? Trocamos gentilezas. Que bênção esse Marlborão. Tenho pó, aceita? Não, eu não… Hércules não completa a frase. E lança, quer? Lança ele quer. Hércules cheira e devolve o frasco, depois sai imitando uma sirene pela Evaristo da Veiga. Evaristo. Que nome besta do diabo.

Não tenho mais pernas, nem braços, nem cabeça eu tenho mais, perdi as extremidades. Vou pegar táxi porra nenhuma. Vou ficar aqui, amanhã a Suzana me recolhe. Será que ela já foi embora? Não era ela, Sílvio, era outra, outras. A Suzana nunca mais apareceu. Chora. Pode chorar. Você trancou três bocetas no apartamento e saiu para comprar mais pó. A Suzana nunca mais deu o ar da graça. Que falta de tudo, meu Deus.

 

Eu tive uma epifania na cobertura do Flamengo. E devo isso a ela. Foi a Suzana que me fez entender que o homem nasceu para ser livre, e gozar, e foder, e se fundir com outros braços, outras bundas, e peitos, e coxas e paus. Não lembro bem do que aconteceu, só do êxtase, da realização. Aquela noite foi um divisor de águas, o auge de alguma coisa que me separava em definitivo do Ciro, do Neto, do Álvaro e do Ribeiro. Foi o fim da juventude. Naquela sala neoclássica, com a boca enfiada na boceta da Brites, que se ocupava de beijar a Suzana, que dava para um alemão barbudo, que sarrava os peitos da japonesa de São Paulo, que admirava o aglomerado de corpos enroscados no sofá da frente, eu pensei: Esse é o pico, o ápice da minha existência. Decidi, ali, abandonar de vez o manual do bom comportamento, que te impede de comer o amigo, a mulher do amigo, a mãe e o pai do amigo. Uns cornos mansos que desconhecem o deleite da amoralidade.

Me deu vontade de seduzir a Ruth, a Irene e a Célia. E também o Ribeiro, o Álvaro, o Neto e, é claro, o Ciro. A Irene eu cheguei a tentar. Ela tinha levado um pé na bunda do Jairo, o gerente do clube com quem ela corneou o Álvaro. Farejei a presa, liguei perguntando, engatei um papo mole, chamei para um café. Quando esfreguei o meu pé no pé dela debaixo da mesa, a Irene me deu um tapa, levantou e se retirou ofendida. Burguesa idiota.

 

Ela e todos eles. Uma classe média cafona, travada, vivendo em prisão domiciliar, com os periquitos, os cachorros e os gatos castrados. Lamentável. Pior, só os do banco. Esses conseguiam superar a bovinice dos outros. O Ricardinho. Ricardinho galgou a gerência da agência do Centro. Encarnava um novo tipo, o economista recém-desmamado, lavadinho, com a camisa passada, abotoada até o pescoço, óculos de tartaruga e uma ambição do tamanho da crise financeira do país. Ricardinho foi empossado junto com o cruzado novo. Entrou com o pé na porta, nem pentelho devia ter. Exigiu rendimento. Que rendimento?! O dinheiro não valia lhufas. Estamos falidos, Ricardinho! O governo laçando boi no pasto para encher o supermercado, e me aparece um fedelho de fralda querendo ser produtivo, cobrando balanço, projeção, metas de um funcionalismo que jurou, perante a bandeira, jamais se esforçar. Será que ele não via que a ideia era justamente essa? Arrumar um emprego público e não ser obrigado a correr atrás de porcaria nenhuma? Ricardinho dava pitis no corredor, rodava as mãozinhas insatisfeito, eu era tudo o que o impedia de chegar a Brasília, de participar daqueles planos de merda que terminavam sempre em ruína. A minha morosidade era inimiga direta da eficiência dele, o meu cumpre-horas, o meu não se importar com o futuro brilhante que ele tinha pela frente. Vai dar esse cu de ferro, Ricardinho, tenho certeza que você vai gostar.

O terno, o Centro, as conversas do cafezinho, as noitadas com os quatro, tudo parecia condenado ao fracasso. Só existia a Suzana, só ela sabia de mim. Por que insistir no resto? Por que não fazer com eles o que fiz com a Norma? Com o Inácio, a Vanda? Largá-los na mão.

De três em três meses, por aí, nunca era certo, a Brites ia a Porto Alegre se abastecer com um boliviano. Suzana propôs que viajássemos com ela na próxima vez, iríamos a Gramado, tomaríamos chimarrão, cavalgaríamos os pampas. Topei no ato. No desânimo que eu estava, era a minha salvação. Inventei para o Ricardinho que um tio meu, gaúcho, estava à beira da morte. Em breve, eu teria que fazer uma viagem de urgência. A perspectiva de se ver livre de mim o deixou até comovido. Para os companheiros, inventei uma mentira baseada na pequena verdade de que iria viajar, disse que estava de mudança para o Sul. Até eu fiquei surpreso com a falácia, por que dissera aquilo? Por que a necessidade de romper dessa maneira com meus comparsas? Era ódio. Eu tinha ódio deles preferirem ser o que eu execrava. Nada de novo viria dali. Era o fim. Outro. De muitos. Fui, voltei escondido e pedi transferência da agência da Presidente Vargas. Ricardinho mal escondeu a alegria. Me ofereceu Niterói. Perfeito, todos os dias eu atravessaria a ponte e não arriscaria cruzar com eles. Eu não queria deixar o Rio. Niterói era o mais distante que eu pretendia chegar.

O boliviano demorou para fazer contato. A espera me deu tempo para refletir. Eu não poderia simplesmente ir embora, minha saída exigia que eu deixasse uma marca, a prova do quanto eles perdiam ao optar pela normalidade. A chance apareceu no aniversário de uma grã-fina do Leme. A oportunidade de ouro para eu sair de cena em grande estilo, deixando uma lição para aquela plebe ignara, escravos de uma vidinha de merda, mal dividida entre o casamento, o trabalho e o uísque do fim de semana. A festa seria o começo daquilo que culminaria numa bacanal, na Glória, ao amanhecer.

A Brites preparou o arsenal e combinaram de dormir fora, ela e a Suzana sabiam o quanto aquela noite era importante pra mim. Eu queria muito que a Suzana estivesse comigo, mas o Ribeiro não iria aguentar. Eu cuidei deles todos, distribuí os destilados, as ilegais e os speeds aperitivos. Administrei o estoque até sermos expulsos pelos seguranças. O Neto tirou a roupa para homenagear a aniversariante. Mulato, não fazia praça do que carregava entre as pernas, mas, quando bebia, fazia questão de exibir o prêmio.

Na calçada, acabei com o que tinha no bolso e sugeri a esticada na Glória. Na Glória… Fui saudado como herói. As vagabundas se dividiram nos carros e, não lembro como, o Ribeiro acabou no meu banco do carona. Só reparei que ele estava ali no retorno em frente ao Hotel Glória; eu vinha concentrado no volante, com a mulata de cílio postiço me enfiando a língua na orelha. O Ribeiro perguntou de bate-pronto se eu tinha comido a Suzana. Falou ríspido, irritado. Eu ri. Que mais eu podia fazer? Eu rumava para o momento culminante da minha cerimônia do adeus, íamos todos nos lamber na Glória, e ele me vem com o “você comeu a Suzana?”. Até a Norma aproveitaria melhor a ocasião. O Ribeiro abriu a porta com o carro em movimento, a morena gritou e ele se atirou para fora, eu vinha devagar. Saí com a porta batendo e não gastei mais dois segundos com o idiota.

No apartamento, o Ciro traçou a argentina no quarto. Achei grosseiro. Era a minha despedida, porra, o mínimo que ele podia fazer era me convidar para assistir o feito. O Neto deve ter desistido no caminho. Ele era, de longe, o mais culpado. Monogâmico assíduo, incurável. O Álvaro, é óbvio, brochou. O Ciro foi o único a me telefonar no dia seguinte para desejar boa viagem.

Andei a cavalo, tomei ácido, me empapucei de churrasco, virei noites na base do chimarrão e comprei três ponchos, um pra mim e dois para as meninas. Trepamos muito debaixo deles, fazia frio, foi muito bom. Foi a infância da minha velhice.

Como ninguém frequentava a Glória, eu não tive que mudar a rotina. Cruzava a baía de segunda a sexta e convivia com a bicharada do teatro, os conhecidos da Brites, de sexta a domingo. Os quatro morreram pra mim, junto com meus verdes anos.

 

E aqui, é aonde? Evaristo da Veiga. Que porra de nome é esse? Esse bate-queixo é frio ou é Parkinson? É Parkinson. Fui intimado pelos médicos a parar com os excessos. O fígado, o pâncreas, a vesícula, os pulmões, o cérebro, está tudo pela bola sete. Mefisto cobrando a conta. Que diabinha linda… Me chifra! Me chifra! Não ouviu.

 

A Brites acabou presa numa das tantas idas e vindas de Porto Alegre. Ela encheu duas malas de cocaína com o boliviano e achou mais seguro vir de ônibus; passara dois apertos no Galeão e não pretendia mais arriscar. Não adiantou nada. Rodou catorze horas num semileito para acabar detida num posto policial na divisa do Paraná com São Paulo. Teria sofrido menos de avião. Cumpriria a pena no Rio e a Suzana não teria ido atrás dela. A Brites foi transferida para um presídio no interior do Rio Grande do Sul. A notícia deixou a Suzana transtornada. Na mesma noite, fez as malas e se mandou para Pelotas. Ela amava a Brites. Eu fiquei só. Alone again, naturally.

O incidente da portaria fez meu filho desejar ser o pai que eu nunca fui pra ele. Contratou psiquiatra, fisioterapeuta, fonoaudióloga, foi um horror. Eu disse que preferia o dinheiro àquela sabatina sem fim, mas ele negou, pagava direto os especialistas, um dinheirão jogado fora. O Inácio tentou me controlar de tudo quanto foi jeito, até que eu dei um basta. Expliquei para o santo do meu filho que nós dois éramos feitos de matérias distintas. Que a vida regrada que ele sonhava pra ele era a morte pra mim. Que eu tinha sustentado ele, trabalhando naquele banco a vida inteira, e que agora ele tinha a obrigação de me ajudar com os meus vícios. Que eu agradecia pelo seguro-saúde, mas que eu não era ninguém sem o meu pó, meu uísque e meu baseado. Que, se fosse pra viver sóbrio, eu preferia que ele me desse um tiro ali, na hora, e me despachasse para o inferno. Ou você tem alguma ilusão de que o céu está à espera do seu tão amado pai, Inácio?

Porra, eu internei o Inácio por dez anos num colégio de padres, até hoje não sei como ele não virou veado, e agora ele vem me tratar que nem filho?! Tem maluco pra tudo. Culpa da mãe beata. Vai ver é vingança, deve ser. Esses remédios, os exames, é tudo vingança. Não têm nada a ver com compaixão. O ser humano não é movido a bons sentimentos.

A Norma eu esqueci que existe, ela e a Vanda. Estão lá pra Ribeirão. O Inácio comenta uma coisa ou outra. Que a mãe casou com um parente e a Vanda com um engenheiro, tem um filho. Engenheiro, profissãozinha. Minha dinastia nasce e morre comigo. Ninguém vai seguir os meus passos.

 

Passos. Voltou a amontoar gente. Abre a roda, caralho, não vê que está abafado aqui? Tombei, não vi que tombei. Eu não estava sentado? Quando foi que eu tombei? Vou mandar mais uma linha. Uma lança e uma linha. Uma linha e uma lança. Para a viagem. Que viagem, Sílvio? A sua termina aqui. Estou sem coragem. Eu devo estar muito mal, para juntar gente assim. Sai, filho da puta, me dá essa lança aqui! Dá! É minha! Eu fui até o buraco quente atrás dela. Vou cheirar essa porra, sim, filho da puta, aqui, na sua frente. Uuuuuuuuó…

 

De novo, aconteceu de novo. Caído e de pé, tudo ao mesmo tempo. É uma cena poética, eu e os foliões: piratas, bacos e vampiras. Gostei. Que alívio, meu Deus, que leveza, que brilho, que sol lindo nascendo na Guanabara. É o que eu sempre procurei, esse não se importar com o que me cerca, não sofrer, não sentir. Como é bom, meu Deus.

Acredito no castigo. Que é um jeito de crer em Deus. Torto, mas é. Venho de uma linhagem antiga e perversa, de dráculas, crápulas e afins. O paraíso não me serve de nada, prefiro a companhia dos que praticaram violência contra o próximo, contra si próprios, contra Deus, contra a arte e contra a natureza. Os meus. A divina morte é o meu império. É o que eu busquei a vida inteira. Consegui. Mas por que, agora, no delírio dos meus últimos momentos, sou tomado por devaneios de danação? Masoquismo. Talvez. Quem diria que você, Sílvio, se revelaria um cristão arraigado? Não existe perdão.

Padre Roque me patolou durante os anos de ginásio. Ele gostava de punir com Dante. Líamos e relíamos os ciclos durante o recreio, no calor da biblioteca. Ele nem imagina o valor da remota tortura nessa hora que se apresenta. Devo a ele o imaginário que me acompanha agora, enquanto pairo acima do Corcovado em direção à abóbada celestial. Não há querubins nem serafins, não há raios, pombas ou brancas nuvens. Avisto a floresta dos suicidas e o rio de sangue fervente, vejo bestas, centauros e sodomitas. “Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada…”

Entrei como saí. O homem não muda, transmuta, sempre igual. Até a próxima eternidade.

 

INÁCIO cuidou do velório do pai. Norma e a irmã, Vanda, não compareceram. As três garotas que Sílvio deixou no apartamento vieram prestar seus sentimentos, as três juntas, sem desgrudar. Não era a primeira vez que atendiam ao chamado do Tarado da Glória. Um travesti e mais alguns habitantes da sarjeta fechavam o pequeno grupo, Ribeiro não conhecia ninguém. O filho se manteve de pé ao lado do morto e fez questão de agradecer a presença de cada louco, cada bêbado, cada mendigo e puta que apareceu. Inácio foi de uma altivez admirável, mas quando viu Ribeiro se aproximar, abraçou o antigo conhecido e desabou em prantos. Ribeiro procurou retribuir o gesto, se lembrou de Inácio criança, dos domingos na casa do Ciro e da pena que sentiu do garoto quando Sílvio o despachou para o colégio alemão em Petrópolis. Solidário, apertou-o em seus braços.

 

Inácio se preparava para levar a filha menor no bloco mirim do Carnaval da rua quando recebeu o telefonema. Desde segunda andava atrás do pai, mais de vinte ligações ignoradas, chegou a deixar recado com o porteiro na Glória, mas Sílvio desaparecera. Acontecia às vezes, mas a piora do Parkinson, a pestilência do vício e a bandalheira condenavam o único parente ainda interessado a viver em permanente estado de preocupação.

— Lá vem o chato do meu filho querendo me controlar. Bate mais uma gorda aí pro santo Inácio, Maritza! — bradava o insano cada vez que o 9634-5888 acendia no visor do aparelho.

Uma voz desconhecida queria saber o nome do dono do celular. Indagou se ele estava sozinho ou havia mais alguém na casa. Inácio suspeitou do questionário sinistro, teve medo de que fosse sequestro e ameaçou chamar a polícia. Foi quando o interlocutor se apresentou como paramédico. Ligava de um celular encontrado no bolso do paletó de um homem branco, sem identificação, de aparentes setenta anos, calvo, magro e de estatura mediana. O indigente apresentava sinais de embriaguez, era portador de drogas ilícitas e fora encontrado por foliões na Cinelândia, perto do Theatro Municipal.

— Ligamos para o primeiro número de chamada não atendida. O senhor conhece alguém com essa descrição?

— Conheço. É o meu pai.

Inútil narrar a peregrinação jurídica para recuperar o corpo de um drogado que empacota na esquina de uma cidade grande. Nem Antígona. Inácio enfrentou a truculência da polícia, a ironia dos legistas e a tristeza de não ter motivos para se orgulhar do pai. Lutou para não sucumbir à letargia. Enquanto esperava para retirar o que restou de Sílvio da geladeira — na mesma repartição onde, anos mais tarde, Irene reconheceria Álvaro —, Inácio, para se agarrar em alguma coisa concreta, passou os olhos nos panfletos da recepção. Um deles trazia sugestões para os anúncios fúnebres, cruzes medievais, estrelas de davi, palavras enaltecedoras de amor e união. A esposa, as filhas, os genros e a querida mãe de fulano de tal agradecem as manifestações de pesar. Inácio não sabia o que era ter uma família assim. Ali, na recepção do IML, a mesma onde Irene se sentiria aliviada por sofrer menos do que a mãe obesa, enojado com o mesmo fedor nauseabundo, Inácio tomou uma resolução. Mandaria publicar um anúncio grande de meia página, se fosse possível, o que o dinheiro desse, informando do falecimento de Sílvio. Nele, pediria desculpas pelo pai.

Arranjou uma caneta e uma folha de papel pautado na recepção e esboçou um rascunho solene. O coração de Maria ao lado do nome do morto em negrito, seguido de um texto copiado das referências que viu nos modelos. Não achou bom. Manteve o coração, o nome, mas percebeu que o adeus ao monstruoso pai deveria fazer jus aos atos perpetuados por ele em vida. Foi franco. E vingativo.

 

No obituário do jornal O Globo do dia 23 de fevereiro de 2009, um aviso grande, de quase um quarto de página, chamou a atenção de Ribeiro. Ele costumava passar os olhos nos anúncios fúnebres, não raro cruzava com um conhecido, mas o nome de Inácio e, sobretudo, o conteúdo do enunciado causaram-lhe espanto. Não havia dúvida, o Sílvio do impresso era o Sílvio, aquele Sílvio, o famigerado Sílvio.

 

O filho de

Sílvio Motta Cardoso Filho,

Inácio, comunica o falecimento de seu malquisto pai,

infiel marido, abominável avô e desleal amigo.

“Peço perdão a todos os que, como eu, sofreram ultrajes

e ofensas, e os convido para o tão aguardado sepultamento

que terá lugar no dia 23 de fevereiro de 2009,

no Cemitério São Francisco Xavier,

à rua Monsenhor Manuel Gomes, 155,

nesta cidade do Rio de Janeiro, às 4 horas da tarde.

 

O ressentimento de outrora, a birra, a traição, tudo de novo, a jorrar pela têmpora. O asco súbito fez Ribeiro largar o jornal. Atravessou a areia e se jogou no mar imundo, chovera a cântaros no dia anterior. O choque com a água gelada provocou um estado de paralisia no banhista, que se pôs a boiar entre cascas de laranja, copos e sacos plásticos. Valão maravilhoso. Refeito da notícia, deixou a consciência agir. Concluiu que gostaria de atender ao chamado de Inácio e comemorar o fim de Sílvio. Queria ter certeza de que o enterrariam sete palmos abaixo da terra numa tumba bem lacrada.

Ribeiro jamais perdoou Sílvio. Na ordem moral de sua mentalidade tacanha, não roubar a mulher do próximo era o primeiro mandamento a ser seguido por homens que se diziam irmãos. Mas havia uma segunda razão reclusa e inconfessável, que impelia Ribeiro ao Caju: saber se Suzana estaria lá. Agora que Sílvio se fora, e Neto e Ciro antes dele, sobrava Álvaro, que já garantira não saber de nada. Suzana era a única resposta para a questão que o corroía havia trinta e três anos. Ocorrera, ou não, a traição?

 

SUZANA chegou fugida de Bauru, a família queria interná-la porque a menina assumira o namoro com uma coleguinha do segundo científico. As duas se beijavam na escola, no cinema, na sorveteria, e dormiram na delegacia mais de uma vez. O pai vociferava com sotaque do interior: Isso não é norrrmal! E ela respondia com o mesmo “r” enrolado: É norrrmal, pai! É norrrmal! Uma noite, depois de uma surra de cinto, Suzana pulou a janela, andou até a estrada e entrou de carona num caminhão que vinha para o Rio. Tinha dezessete anos.

 

A praia lotou de bichas. Bichas tímidas, bichas magras, bichas finas, bichas grossas, bichas gordas. Suzana frequentava várias rodinhas, do Posto 9 ao Arpoador. O Coqueirão era o limite do seu país das maravilhas. Foi Deus que me trouxe aqui, repetia rindo, com o sol de abril a se pôr atrás do píer, iluminando os dentes alvos da caipirinha prafrentex. Suzana amava os gays de Ipanema, tinha o mesmo entendimento de vida que eles. Cresceu hippie e marginal, no meio de uma gente que olhava torto para ela. Por isso foi aceita de imediato, virou confidente, discípula, irmã e filha de vários deles. Era uma igual. Trabalhou como garçonete, recepcionista, atendente, caixa, tentou ser atriz, cantora, era muito eclética a Suzana, mas nunca vingou em coisa nenhuma.

A transformista Lana Ley alugava um sala e quarto de fundos, em cima da Galeria Alaska. Ela tinha saudade da irmã que deixou em Maceió e fez de Suzana a sua queridinha no Rio. Gostava de caminhar com a garota pela Joaquim Nabuco e lhe dar conselhos de etiqueta. Copacabana, para Lana, era praia de bicha pobre. Havia mesmo algo de diferente acontecendo na Farme, no culto hedonista dos meninos do Rio, na felicidade alucinada das pessoas, no topless e no sexo desimpedido.

Ribeiro marcou um vôlei para cá do Coqueirão com o Ciro e o Neto. O rei da Miguel se rendia à nova era, embora lamentasse o triunfo do unissex. Eu sou do tempo em que homem gostava de mulher, dizia ele, deprimido com os corpinhos esquálidos da macrobiótica. Uma cortada mais violenta zuniu a bola no meio dos cabeludos. Ribeiro chegou pedindo desculpas, não era bonito, mas tinha um corpo que impressionava. A bicharada aplaudiu. Suzana se levantou para devolver a bola, veio com um baseado na mão e ofereceu a Ribeiro. O atleta recusou o agrado. Não gosto de maconha, não gosto de pó, só gosto de destilados. Ela riu e perguntou se podia ser útil em mais alguma coisa. Safada, safada, safada. Os dois se deram muito bem na cama e o fisiculturista trintão se apegou à Baby Consuelo de Bauru.

Ciro e Sílvio se casaram, Neto e Célia estavam grávidos, e Álvaro, o único que continuou na bagunça com o Ribeiro, resolveu se engraçar com uma amiga da Ruth, mulher do Ciro, a tal da Irene que, tempos depois, o coroaria com uma galhada de alce. Foi quando Lana Ley botou Suzana para fora do cubículo da Nossa Senhora. A guria não catava um papel do chão, comia o que via pela frente, não lavava a louça, não coçava o bolso e ainda vivia colada numa tal de Brites. Folgada!, comentava Lana, nas noites da Boate Sandalus. Suzana se mudou para a Pompeu Loureiro sem que Ribeiro se desse conta. Quando viu, ela já estava lá.

Murilo, filho do Neto, nasceu em março. Ciro deu um almoço para brindar a chegada do primeiro herdeiro da turma. Ribeiro pensou que seria bom levar a Suzana, assumir para os amigos que estava com alguém. Levou. Ela acendeu um baseado no jardim. Célia reagiu chocada, Neto era casado com uma mulher muito careta. Ciro lançou um olhar irônico, Ruth fez sinal para Ribeiro dar um toque de que não estava pegando bem e Irene sumiu com Norma, mulher do Sílvio, para dentro da cozinha. Álvaro não havia chegado.

Ribeiro foi tirar satisfação com Suzana. Surpreso, deu de cara com Sílvio dividindo o cigarrinho com ela no meio das samambaias. Sílvio nunca foi confiável. Ribeiro pediu para Suzana se livrar do charro. A dupla riu cúmplice, como se o namorado da moça fosse um bedel de colégio. Ele catou Suzana pelo braço e se retirou ofendido. Desde aquela tarde, a certeza de que Sílvio estava tendo um caso com Suzana passou a atormentar Ribeiro como uma enxaqueca aguda e recorrente. Suzana odiava ser posta contra a parede. Ah! Então tá!, respondia possessa, eu comi o Sílvio, o Ciro, o Neto, até o Álvaro eu comi, tá bom pra você?! Mas a filha da mãe não desmentia.

Demorou até Ribeiro ter coragem de fazer a pergunta a Sílvio. Aproveitou a última chance, antes da partida do imoral, no notório fim de festa do Leme.

 

Eram homens maduros e desesperados. Viviam o apogeu do macho e o pressentimento da inevitável queda. Preparavam-se para se despedir de Sílvio, o devasso, único desquitado dos cinco. Sílvio se divorciara havia dois anos de Norma e gozava da liberdade de fazer as malas e partir para onde bem entendesse. A reunião era um adeus. No dia seguinte, Sílvio se mudaria para Porto Alegre na companhia de, segundo ele, duas gaúchas a quem devia o seu retorno à mocidade. Fiquem vocês com os seus casamentinhos, provocava, a sua vidinha ideal, porque o Silvinho aqui zarpa amanhã para nunca mais! As harpias o roubariam dos quatro. Ribeiro desconfiava que uma delas fosse Suzana. Tinha quase certeza. Quase, não o suficiente. Por isso relutava em confrontar o inimigo. Temia parecer ridículo.

Sílvio planejara a epopeia com precisão estratégica. Levantariam voo de seu apartamento na Glória, misturando uísque, pó, maconha e anfetamina, e cadenciariam a adrenalina, alternando os aceleradores com Mandrix, ou Lorax, ao gosto do freguês. Soltariam a franga na festa comemorativa dos cinquenta anos de Gorete Campos do Amaral, ex-madame Juneau, nos mil metros quadrados da exuberante cobertura do Leme, fruto da separação recente do dono de uma rede de hipermercados francesa, o magnata Gilles Juneau.

A boca-livre teria início às nove. Combinaram de se concentrar às dez, na Glória, e seguir para o rega-bofe entre onze e meia-noite. O cumpre-anos de Gorete prometia. A grã-fina, trocada pelo milionário por uma russa trinta anos mais jovem do que ela, decidira sepultar o papel de esposa exemplar com uma festa de arromba. Por vinte e cinco anos cuidara dos outros, mas os filhos cresceram e Gilles abandonou o lar. Ela amargara um ano de barbitúricos e precisava provar a si mesma que dera a volta por cima. Dona de uma conta bancária proporcional à culpa do marido, cobriu de riqueza a sua reentrada no society carioca. Entre os convidados, uma mescla de altas esferas, jet sets, starlets, esportistas, intelectuais e ídolos da contracultura, não estavam incluídos os cinco cariocas de classe média, com empregos medíocres e nenhum voo artístico ou econômico. Brites os infiltrara a pedido de Suzana. O disc jockey, encarregado de fornecer os aditivos do convescote, encomendou trinta gramas de cocaína com Brites e fez a fina de colocar os nomes de Sílvio, Ciro, Neto, Álvaro e Ribeiro na lista.

Os Cavaleiros do Apocalipse já chegaram em alfa. Ciro foi o primeiro a se descolar da célula-mãe, atendendo aos apelos de uma portenha que o comia com os olhos na biblioteca. Sílvio se desgarrou ao bel-prazer, adentrando a pista com passos de John Travolta. Álvaro encostou-se no bar, Ribeiro pediu uma vodca e foi olhar a vista do terraço, estava difícil para ele. Neto, ninguém mais viu. Sílvio mantinha a atenção nos amigos, se percebia sinais de esmorecimento, corria com a bolinha certa, e pronto!, lá estava o boneco de volta à ativa. Caso notasse uma aceleração desmedida, acalmava o monstro com um relaxante. E assim se esvaíram as horas, entre altos e baixos cada vez mais confusos. Sábados alucinantes. Sílvio tomou conta dos outros até a hora em que não conseguiu mais tomar conta de si mesmo. Os de tendência masoquista afundaram no sofá italiano, os maníacos atingiram a estratosfera. Neto foi à lua. O núcleo já não se encontrava havia algum tempo, quando Neto abriu a porta do lavabo com a braguilha aberta e, entoando o refrão de “Stayin’ alive”, dos Bee Gees, avançou até o centro do dancing executando, em homenagem à anfitriã, a dança do gira-pau. Álvaro descolou do assento. Ciro largou a argentina, Ribeiro, a varanda, e ambos correram para controlar o fauno. Sílvio viu que estava na hora de encerrar a fase um da esbórnia, mas não teve tempo de reagir. Quatro agentes treinados em Israel imobilizaram Neto com uma chave de braço e o arrastaram para a porta dos fundos, junto com Ciro e Ribeiro. Chutados para dentro do elevador, foram recebidos por um segundo batalhão dos Mossad na garagem e ejetados no canteiro de iúcas, em frente ao endereço chique. Álvaro, Sílvio e uma coleção de picanhas de primeiro corte desceram pelo social. Sílvio distribuiu a última rodada de alucinógenos e sugeriu o arrastão para o seu domínio na Glória. Todos comemoraram entusiasmados, menos Ribeiro, que fazia as contas. Havia um par de peitos a menos do que o necessário para cada um chegar em casa e conseguir se olhar no espelho. A possibilidade de dividir uma daquelas com o Sílvio, logo quem?, o Sílvio, lhe dava ânsias de vômito. Mesmo assim, apressou-se para entrar no carro do rival, vai entender… A mulata se acomodou no banco de trás e os outros se dividiram nos automóveis com as suas respectivas ladies. Hoje tiro a limpo, jurou Ribeiro, e seguiu em silêncio pelo Aterro.

A morena lambia a orelha do Sílvio, que tentava manter os pneus em linha reta. Na altura do aeroporto, Ribeiro disparou:

— Sílvio, você comeu a Suzana?

Como bom torturador que era, Sílvio abriu um sorrisinho debochado.

— A gaúcha é a Suzana? Eu sei que é! Diz, diz na minha cara!

O rosto do motorista se contorceu num esgar, a boca abriu e os dentes vieram para a frente, Sílvio gargalhava. Ribeiro teve um ímpeto de agarrar o volante, bater no primeiro poste, morrer e matar o facínora junto com a messalina do assento traseiro. Preferiu investir contra si mesmo. Abriu a porta com o carro andando, saltou, ralando o joelho no asfalto, e foi para casa se martirizar. Fazia seis meses que ele e Suzana não estavam mais juntos.

O ciúme do almoço do baseado nunca mais abrandou. Tudo, em Suzana, passou a incomodá-lo. A mania de querer beijar sem escovar os dentes, o cê-cê do sovaco peludo, as calcinhas espalhadas pelo chão, o Fagner e o cemitério de baganas que fazia a casa recender a patchuli com cannabis, a ponto de o síndico vir reclamar. O apartamento se transformou em ponto de encontro de figuras suspeitas, um entra e sai de tipos estranhos que o fez invejar a ordem de despejo de Lana Ley. Fez o mesmo, despachou Suzana. Depois, se arrependeu.

 

Ribeiro desconhecia a subjetividade. Não tinha humor. Era burro e companheiro. Morreu adolescente, sem filhos e sem mulher, meio primo do sobrinho e filho da irmã. A mãe morreu jovem, do coração, e Celeste ocupou o lugar. Lembrava de cenas esparsas do calor materno, dos olhos grandes, de um caldo na espuma do mar do qual foi salvo pelas mãos dela, não mais. O pai, milico, era um sergipano soturno. Ambicionava ver seu varão formado nas Agulhas Negras, com direito a patentes muito acima da sua. O velho nunca escondeu a frustração com o rendimento escolar do filho. Falava da decepção com os amigos, os parentes. Ribeiro não contava com ele, confiava na irmã, só nela, o arrimo, o colo, o lar.

A praia era a sua razão de ser. Cada fim de tarde rosado, cada tempestade ou noite de lua cheia confirmava a escolha correta. Ribeiro não fez faculdade, terminou os estudos num colégio público ruim, mas conseguiu tirar seu sustento da geografia que idolatrava. Mal cumpriu o secundário, esmerou-se para tirar um certificado de bombeiro e salva-vidas e, com ele, começou a dar aulas de natação no Posto 6. Ganhava pouco, mas o suficiente para se livrar da pressão paterna. No mais, seduzia as virgens que passavam no teste do biquíni. Ao contrário de Sílvio, não o fazia por perversão, era sincero. Ribeiro jamais encarou a própria tara como pecado, e muito menos como tara, era amor verdadeiro. Envelheceu sem se dar conta. A idade serviu de trunfo por um bom tempo, até que Ribeiro passou do ponto.

Cinquentão recente, arrumou um emprego na Impact, uma academia de ginástica na subida da Tabajaras. A Impact preparava as coxas e tríceps para o Carnaval, era o forte dela. Marinara, Monique, Marininha, todas passaram por lá. Os instrutores traficavam os anabolizantes e os Conans se aplicavam no banheiro. Ribeiro odiava o ambiente, mas não tinha escolha, só os discípulos de Schwarzenegger pagavam salário. Vivia abismado. As meninas não queriam mais ser como Leila, Danuza, Florinda, Norma… a Norma, não a do Sílvio, a Bengell.

Ribeiro descobriu Norma Bengell adolescente. Um tio boêmio teve um caso com uma corista e infiltrou o sobrinho na coxia de uma revista do Carlos Machado. Ribeiro assistiu, ao vivo, à Bardot de Norma. Tinha dezesseis anos. Bateu punheta até o fim dos dias pensando naquela imagem. Fixou-a à perfeição. As lembranças da mãe se misturaram com as da vedete.

As mulheres perderam a graça, deixaram de ser mulher, comentava. Para que tanto músculo? Ribeiro tinha tesão em pouquíssimas, a conversa não fluía, era muito entediante. Pior, todas o tratavam como se fosse inofensivo. Um dia, surgiu Lucíola. O professor passou a primeira sequência de exercícios, mas a novata não acompanhou a turma no agachamento do Jairzinho. Remem, remem!, se esgoelou Ribeiro, para dar um incentivo, mas não adiantou. Ele deu água pra ela e aconselhou aulas particulares, Lucíola corria risco de sofrer lesão, caso tentasse acompanhar o grupo. Ofereceu seus serviços fora da academia, a praia seria o lugar mais indicado. A moça topou, não ia mesmo sobreviver na Impact por muito tempo.

Manhã esplendorosa. Os dois se encontraram na Colônia dos Pescadores e iniciaram a caminhada em direção ao Leme. Ela era bonita, muito bonita, bonitíssima, Ribeiro só reparou ali. As bochechas vermelhas contrastavam com a pele branca e o rosto, muito delicado, era cortado por sobrancelhas negras e grossas que davam um ar masculino às feições dela. Quando chegaram ao Posto 1, estavam apaixonados. O pai não podia saber, era muito severo, Lucíola era virgem. Talvez por medo de enfrentar um brutamontes qualquer, impossível saber, Ribeiro caiu como uma luva para os desejos dela. Siderado com a possibilidade de arrancar a virgindade da moça, Ribeiro soube ser hábil, avançou aos poucos, até que, no fim de uma aula, Lucíola cortou o pé num caco de vidro e ele a carregou até o seu apartamento para fazer um curativo. Não foi preciso nem uma fração de segundo para a mão dele esquecer do machucado e se meter no meio das pernas dela. Lucíola ficou quieta e Ribeiro fez o que tinha que fazer. Depois, deixou-a na esquina de casa e voltou para a dele, para rememorar.

Meia-noite, por aí, o deflorador acordou sobressaltado com alguém derrubando a porta. Correu para o olho mágico. Um senhor, acompanhado de um rapaz muito forte, o encarava pelo buraco. Era o pai da Lucíola, disse que queria falar com ele. Mal virou a chave, levou uma portada na cara. O rapaz emendou com uma sequência de murros e chutes, enquanto o xingava de velho safado. Era o irmão da Lucíola, veio a saber depois. Foi a primeira vez que chamaram Ribeiro de velho. A coisa toda durou cinco minutos, nem isso, mas pareceu não ter fim. Quando cansaram, o pai exigiu que o instrutorzinho, sob risco de morte, nunca mais se aproximasse da filha. E sumiu, arrastando o troglodita do filho com ele. Ribeiro sofreu um bocado, uma mistura de humilhação e falta dela. Não se come uma virgem uma vez só. A largada nem conta, o segredo é o desenrolar da trama, as descobertas, a maneira como elas vão se soltando. Depois, até perde a graça, dizia. Lucíola ficou na promessa, e ainda deixou nele a consciência da idade e do ridículo.

Adeus, garotas, era preciso avançar. Tentou as de vinte e nove, as de trinta e um, e dois, e três, todas complexas, chatas e exigentes. As virgens eram como ele, simplórias. Sonhavam em trepar com delicadeza, só. Existe algo melhor? E Ribeiro sabia detectar os problemas, abortar investidas, desistir das que não relaxavam em duas semanas. Ao dobrar o cabo dos trinta e cinco, cansou do papai e mamãe. Por isso endoideceu com Suzana, porque ela era a união perfeita entre a ingênua e a mulher da vida. Ela o deixava constrangido com as obscenidades que propunha sem perder o ar infantil. Lucíola foi o apagar das luzes, a última virgem que o amou, a derradeira tentativa de voltar a ser quem era. Suzana foi o mais longe que esteve de si mesmo, a única com quem dividiu o teto, o mais próximo de uma esposa que chegou a ter. Trinta anos depois do incidente no jardim das samambaias, Ribeiro ainda remoía o ciúme. Sílvio não podia ter feito o que fez.

 

O caixão desceu sem lágrimas ou palavras de louvor ao morto. Inácio permaneceu estático, pálido e impávido. Que queime no inferno, augurou baixinho. Os coveiros lacraram a cova com as pás besuntadas de cimento, dando um inusitado toque de reforma de banheiro à cerimônia. O cortejo se retirou em fila indiana, com o travesti à frente, desviando das tumbas para retornar à alameda principal. Ribeiro fingiu seguir o grupo, mas virou à esquerda, escolhendo um ponto remoto, escondido entre as lápides. Vigiava o sepulcro. Tinha certeza de que ela viria, sozinha, depois de todo mundo, para velar o amante. Antevia o olhar de Suzana, finalmente saberia a verdade. Quando foi expulso pelo segurança, já era tarde da noite. Suzana não apareceu. Vai ver estivera errado. Sofrera inutilmente. Na rua, de costas para a grade do cemitério, admirando as luzes da favela do Dona Marta, entendeu: não amava Suzana, nunca a amou. No seu delírio ciumento, ela o teria traído com Sílvio e reapareceria ali para dar fim à sua incerteza. Suzana não cumpriu o trato. Ela nada tinha a ver com ele, ou com os amigos dele, era uma estranha, uma desculpa para não pensar em Ruth.

Olhando as luzes da encosta do Dona Marta, Ribeiro deu adeus às tormentas. Seus últimos sete anos de vida correram sem arrebatamentos, febres, ciúmes ou rancores. Estava curado. Foi bom, e ruim, porque, de certa forma, já estava morto. Morrera ali, na porta do cemitério.

 

         RIBEIRO

         4 de setembro de 1933 a 13 de novembro de 2013

 

— E aí, Sampaio? Tudo azul?

— Tudo, Ribeiro, tudo azul. Mas só estou com três caixas no estoque. Te aconselho a levar porque não tem previsão de entrega.

Que seria de mim sem o meu personal farmacêutico?

— Embrulha aí o que tiver.

 

O Viagra é tão revolucionário quanto a pílula, mas ninguém tem coragem de dizer isso. Com esse negócio de ter que botar camisinha, então, só com um empurrãozinho. Aí, alguém inventa esse milagre, à venda em qualquer farmácia do ramo, para quem tem o Sampaio, sem receita médica! É a libertação! Eu nem lembro mais o que é viver sem ele.

Não notei a velhice chegar. É traiçoeira, a danada. Aos trinta, não se aparenta mais quinze, aos quarenta, desaparecem os sinais dos vinte, aos cinquenta, os dos trinta, leva uma década para realizar as perdas. Eu não percebi, me sentia o mesmo, vigoroso, maduro, em cima do lance. Foi ali, na separação da Suzana, que sofri o baque. Passei mais de um ano morando com ela, obcecado com o suposto caso com o Sílvio, esqueci de mim. Parei de me pesar, de medir a cintura, o bíceps, burlei a dieta, dormi pouco, bebi mais que o normal e experimentei umas bobagens, também; culpa da Suzana, tudo culpa dela.

Na manhã em que eu voltei arruinado com o papelão de marido traído que havia feito, entrei em casa com o joelho sangrando e a gargalhada do Sílvio ainda a ecoar na cabeça. Tirei a roupa, corri para o banho e, sem querer, me olhei no espelho. Eu estava nu, de pé, em frente à minha imagem refletida de corpo inteiro. Era um homem velho. Chocado, me aproximei para investigar. O cabelo grisalho, as bolsas debaixo dos olhos, as bochechas caídas, a flacidez do pescoço, a papada. Os mamilos tinham aumentado, o estômago estufara, anunciando uma barriga em breve. Meu pau mediano e os braços e as pernas ainda fortes exibiam óbvios indícios de decadência. Meu bem-estar se baseava em coisas simples, rotineiras, tirá-las de mim, como Suzana havia feito, era destruir um equilíbrio delicado. Minha mãe sorrindo, o caldo na praia, as mãos dela, a boca da Suzana, a risada solta, a minha orfandade. Sentei no vaso e chorei. Liguei para a Celeste.

O Carlinhos ajudou muito, estava levando o vôlei a sério e minha irmã me obrigou a treinar o moleque. Foi o que me tirou da fossa. Ele e o Frank Sinatra. Nunca fui à América, era meu sonho, conhecer a América. A minha coleção de vinil do Sinatra já comeu muita gente, hoje eu a escondo para não afugentar.

 

— Manda no fundo, no fundo!… Isso é o meu garoto! De virada! Dezessete a quinze! É o triunfo da experiência.

Marquei na praia com o Carlos uma melhor de três com o filho dele, mais um colega da faculdade. Esses moleques não têm nem pelo no corpo e acham que vão jantar o leão aqui.

— A deixadinha, a levantada precisa, a cortada indefensável, podem se ajoelhar, falta manha! Deve ser essas porcarias que vocês comem.

Cansei.

Acordei cedo para dar uma aula para a terceira idade. Umas senhoras que torraram no sol a vida inteira e agora estão que nem vampiro, sem poder ver luz. Melanoma é brabo, já removi umas pintas, não aguento protetor solar.

É duro aceitar que aquelas velhas já dançaram a valsa dos quinze anos. Todas obrigadas a se levantar de madrugada, mas também não dormem, melhor ter o que fazer. Elas reclamam muito de insônia. Elas reclamam muito, ponto. E quem é o herói que acorda antes do sol para encontrar um coletivo de zumbis de setenta? O Ribeiro aqui. Mas é bom, porque, às nove, metade do dia já está ganho, eu jogo meu vôlei, cochilo até umas quatro, encontro com o pessoal da rede e vejo o que a vida reserva.

Não tem reservado muito, mas hoje promete.

Eu ia recusar esse horário das velhinhas. Fui até o prédio em que todas moram, na República do Peru, para dizer que não podia. Mas desceu a sobrinha da do 401, cinquenta e sete, cinquenta e oito, por aí, enxuta, cabelo comprido, calça justa, a tia estava indisposta. Foi bater o olho nela para eu desviar o rumo da conversa. Disse que tinha vindo para saber dos objetivos de cada uma, embromei uns quinze minutos e sugeri uma visita aos apartamentos para conhecê-las melhor. Fiz a via crucis pelos onze andares. O tempo é mesmo cruel com as mulheres. Deixei o da sobrinha para o fim.

A tia dormia no quarto.

Aconselhei barras no banheiro e lancei mão de umas perguntas inofensivas: se ela morava ali, se estava a passeio. Alda acabara de se separar e preferiu não voltar para a casa da mãe. Ela agradeceu o interesse e retribuiu com um elogio, disse que eu era um professor atencioso. Sugeri um encontro. Ela saía da loja às seis. Bingo!

 

Como é bom cair no mar gelado de Copacabana. Tenho horror à sopa de mijo do Nordeste. Está sujo, a corrente virou, ninguém se aventurou a nadar. Espuma marrom gordurosa. Uma das vantagens da idade é parar de se importar com o futuro longínquo. Agora é sentar na areia com os pombos e arriscar um câncer de pele, não tem hipótese de me besuntar de creme. Que deusa passando, meu Deus, elas ainda existem. Não pra mim, não mais, nunca mais. Fui obrigado a me conformar com as putas e as direitas com mais de cinquenta. Neuróticas, todas, como essa Alda, do 401. Está na cara que ela está desesperada.

 

— Tchau, Carlos, diz pra sua mãe que amanhã eu passo lá. Eu tenho um compromisso. É, o leão não está morto, não! Pode ir tranquilo que eu não vou sujar o nome da família, já passei no Sampaio!

Eu não quis ter filhos. Meu sobrinho foi o mais perto que cheguei dessa possibilidade, com a vantagem de devolver para minha irmã sempre que desse defeito. Todo homem vira escravo da mãe de seus filhos, mesmo depois que separa. Eu nunca encontrei uma mãe, nem para mim e nem para os meus. Pensei em fazer vasectomia, mas e o medo daquilo me brochar?

Esses chuveirinhos são regados a água de esgoto. E daí? Como é bom tirar o sal! O Álvaro toma água da bica e continua vivo. Cadê meu coco? E me dá, aí, a minha pochete. Conheço esse garoto desde criança, agora herdou o quiosque do pai. Cadê meu comprimido? Aqui! O diamante azul-niágara.

 

Logo depois da surra do pai da Lucíola, e do “velho safado” que o irmão dela me deixou de lembrança, decidi virar monge, parei de fumar, fiquei casto. Passei a ter vergonha de me aproximar das meninas, temia o não, parecia um bobo, desisti de arriscar. Acordava de madrugada, corria a praia, treinava o Carlinhos e nadava no fim da tarde, depois de encerradas as aulas. Virei uma máquina, um Adônis sem libido. Não tinha vontade e não sabia muito no que aquilo ia dar. O Álvaro só falava em pau mole, corri dele. O Sílvio abandonara o barco em prol da putaria, o Neto era casado e o Ciro morrera há pouco. Casei com a minha irmã.

A Celeste era muito prática. Decidira arriscar viver só, gostava do marido mas quis separar. Era muito corajosa, ela, numa hora em que as mulheres penam de medo de perder seus pares, a Celeste me veio com essa. Foi bom, porque eu não tive mais que fazer cerimônia para entrar e sair da casa da minha irmã e ainda supri a falta da presença de homem da entressafra conjugal dela. Eu dormia no meu apartamento, mas passava o dia lá, fomos felizes assim. Não durou. A Celeste se engraçou com um engenheiro de produção que foi trabalhar na firma dela. Eu perguntava o que fazia um engenheiro de produção, a Celeste nunca soube explicar. Tem a ver com planejamento, não sei, um dia você pergunta pra ele. Não perguntei. Tive um ciúme louco do cara. Eu não trepava há quase um ano, andava tensíssimo, inventei que o Carlinhos não podia ficar sozinho e dei para esperar ela na sala, com cara de maus amigos. Era a Celeste virar a chave para eu partir para o interrogatório, queria saber de onde ela vinha, com quem havia estado, se tinha comido. No começo, ela achou graça, dizia que eu estava maluco e me tocava de lá a vassourada; mas quando eu me tornei agressivo, a Celeste achou melhor partir para um papo reto. Seríssima, me aconselhou a comer alguém, a primeira que aparecesse, Ribeiro, faz sem pensar, depois me diz como foi. E proibiu visitas depois das sete.

Como se não bastasse, o Neto faleceu.

Ciro costumava aliviar a tragédia do Álvaro garantindo que todo homem brochava, menos eu. Não mais. Obrigado pela Celeste a voltar à caça após um longo período sabático, e assustado com a brevidade da vida, retomei do ponto em que me encontrava quando saí de circulação. As que me queriam, eu não queria nem por decreto, e as que eu queria não me queriam de jeito nenhum. As jovens amantes, agora ariscas, torciam os narizinhos para mim. A Solange foi a menos ruim que apareceu.

Nos conhecemos no elevador do meu dentista, ela trabalhava num escritório de contabilidade no mesmo prédio da Figueiredo de Magalhães. Eu tinha acabado de fazer a limpeza, estava com a boca tinindo, deve ter ajudado. Ela era uma ruiva tingida, socada, olhuda, mas passável no conjunto. Fomos ao La Mole. Ela comeu o escalopinho com arroz à piemontesa, e eu, o camarão à grega, tomamos vinho, sorvete, café, e devoramos os petits-fours. Durante o jantar, Solange confessou que economizava dinheiro para colocar silicone. Será que ela tem algum problema no peito?, pensei. Não me importo de serem pequenos, até gosto, se não forem murchos. Pegamos um táxi até o Catete e saltamos em frente à portaria dela. A Solange deu toda a condição. Eu já estava no terceiro degrau, com o pé no hall de entrada, quando um pensamento surgiu de relâmpago. E se eu falhar? Foi terminar a frase para o suor frio descer pela nuca. Disfarcei, ela não reparou, dei meia-volta, desejei um boa-noite de cinema, combinei um segundo encontro, beijei-lhe as mãos e saí fora rapidinho. Não queria que ela me visse inseguro, não há nada que espante mais o sexo oposto.

O Sampaio vendia uns energéticos, umas vitaminas importadas, eu gostava dele. Numa gripe mais forte, me aplicou um antibiótico que me levantou da cama em um dia. Virou meu clínico geral. O Sampaio era muito discreto, se falou do Viagra, foi pelo nome bíblico: sildenafila. Ainda não existia a tadalafila do Cialis e nem a vardenafila, do Levitra. Não preguei o olho na noite que antecedeu a consumação com a Solange, me imaginava tentando meter sem conseguir, sonhei que a xoxota dela era uma estátua de bronze. Amanheceu e eu desci para comprar um calmante. O fim do caso com a Suzana foi todo à base de Lexotan, receita do Sampaio, eu era muito agradecido a ele. Cheguei cedo, ele, atrasado. Quando viu as minhas olheiras no balcão, perguntou se tinha morrido mais alguém. Eu implorei por um ansiolítico. Sampaio me olhou desconfiado. Ansiolítico pra quê? Você quer relaxar? Mais ou menos, respondi cabisbaixo. Desculpa a liberdade, Ribeiro, mas qual é o problema? Minha irmã arrumou um cara… Sei… Ela mandou eu ir atrás de alguém… Estou entendendo… Eu tenho um jantar, hoje à noite, e acho que vai ter sobremesa. Não precisa dizer mais nada, ele interrompeu, e me arrastou para o fundo da drogaria, até um cubículo apertado onde eram ministradas as injeções. O Sampaio fechou a cortininha e tirou o aparelho de pressão da parede. Você tem histórico de pressão alta? Não, eu disse. Esqueci de mencionar o infarto da minha mãe, ele também não perguntou, só bombeou o ar, olhando sério para o medidor. Doze por sete, sem perigo, e sumiu para o estoque. Voltou rápido, com uma caixa na mão.

— Ribeiro, eu só não comparo essa maravilha com o Nosso Senhor Jesus Cristo porque é pecado capital. Mas é, Ribeiro, isso aqui é o Nosso Senhor Jesus Cristo.

Segurei a caixinha. Viagra, dizia o rótulo. Aconselho tomar com umas três horas de antecedência, para não ter surpresas e já chegar calibrado. Você experimentou?, perguntei. Logo que chegou, ele disse, e não larguei mais.

O mesmo aconteceu comigo.

Furei a Solange que nem britadeira. Achei pouco. O Viagra desassociou o sexo do amor. Eu era um amante ciumento, tapado, carente, a sildenafila suprimiu a expectativa amorosa, caí na tentação. Sílvio teria orgulho de mim. Eu trepava como um ginasta, gastei o que não tinha com as gurias de vinte dos bas-fonds da Prado Júnior e me apeguei ao roupão descartável da Centauro, onde quase fui à bancarrota por causa de duas profissionais que se trancaram comigo num dos quartinhos. Começaram desanimadas, meio enrolando o freguês, mas, perto de acender a luz vermelha, a que avisava do término da sessão, as canalhas saíram se esfregando que nem polvas. Me deu um tesão filho da puta, mandei dobrar o prazo. Tripliquei, quadrupliquei. Na hora de pagar, me explicaram que, com duas, tudo era dobrado. Saí rapado e tive que pedir dinheiro para a Celeste. Disse que era para um tratamento de canal.

 

Botei o comprimido na boca e virei. A Alda que me aguarde. Faz tempo que eu não como uma mulher decente. Vai ser bom, pra variar. Quanto é? E em quanto está a pendura? Fecha, então, que eu não gosto de dever nada a ninguém. Encontrei com o Álvaro ontem, por acaso, na Francisco Sá. Eu estava saindo da farmácia do Sampaio e dei de cara com ele. A gente não se via há muitos anos, desde o velório do Neto, eu acho. Está acabado, benza Deus, com a cabeça toda trocada, me chamou de Ciro umas três vezes e tropeçou outras dez. Eu tentei ajudar, mas ele ficou ofendido, tive pudor de perguntar se era isquemia.

Copacabana mudou muito, são esses ônibus com essa fumaça preta. Me dá aí uma cerveja. Adoro pé-sujo. Adoro olhar os bêbados.

O Álvaro insiste que o Sílvio morreu na Lapa, mas ele está enganado. Foi na Cinelândia, em frente ao Bola Preta. Eu fui no enterro, Álvaro! Eu sei pelo Inácio. O desacordo ameaçou virar briga e eu cortei com um “deixa disso”. Que diferença faz? O Sílvio mentiu, disse que foi para Porto Alegre, mas acabou em Niterói, nunca mais telefonou. Lembra do Sílvio cheirado? Com mau hálito, fumando e falando sem parar? Foi e já foi tarde. O Álvaro achou graça, combinamos de nos ver um dia desses. Quem sabe? Saudade do meu clube. Do Álvaro, do Neto, do Sílvio e do Ciro.

 

Eu era louco pelo Ciro. O Ciro era o melhor de todos nós. A gente comia as sobras do que vinha para ele. As mulheres pressentiam a presença do Ciro até de costas. Pelo cheiro. Era ele chegar para elas se virarem que nem robozinhas. As casadas, as solteiras, as noivas, as debutantes. E o Ciro era um ganhador divertido, cheio de histórias, e politizado à beça, inteligente, leitor compulsivo, romântico e bem-dotado até para tocar violão. Não tinha pra ninguém. A gente brincava que ele era o tubarão, e nós, os peixes-piloto. A verdade é que disputávamos a atenção do Ciro com o mesmo ardor das moçoilas.

Ele passava as férias em Búzios, numa casinha de pescador. A beleza mais sonhada das areias de Ipanema dirigiu quatro horas o fusca dela, na madruga, só para encontrar com ele no paraíso. Quando chegou, o Ciro disse que ia buscar a janta e mergulhou no mar com uma faca na mão. Voltou com uma lagosta viva. Depois da ceia, os dois partiram para o prato principal e a felizarda espalhou o mito do caçador de crustáceos pelo Rio de Janeiro. Para garantir o número, o Ciro passou a deixar um engradado com as bichas presas amarrado no fundo do mar. Era a candidata aparecer, qualquer uma, porque formou fila, pra ele ressurgir das ondas com o aperitivo em punho.

A gente amava o Ciro.

Eu estava lá, do lado dele, no dia em que ele conheceu a Ruth. Chegamos juntos na festa do Juliano, prontos para mais uma madrugada inesquecível. O Sílvio trouxe o arsenal, o Álvaro e o Neto nos encontraram na porta, tudo nos conformes. As fêmeas viraram o pescoço para ver o Ciro entrar, nós avaliamos a rebarba, mas uma não se virou. A Ruth não se virou. Nem notou a nossa presença. Ela riu alto, empenhada na roda de violão, e emendou cantando aquela… Hoje eu quero a rosa mais linda que houver… “A noite do meu bem”! “A noite do meu bem”. Da Dolores Duran. Ela tinha voz de cantora de inferninho, grave, sensual demais, era uma princesa de se ver. A sala inteira parou para ouvir. Eu fiquei louco com a Ruth, foi amor à primeira vista. Quando olhei para o lado, percebi que o mesmo havia acontecido com o Ciro. Eu nunca tinha visto ele daquele jeito. O Ciro tomou a dianteira, avançou até o sarau, pediu o instrumento e puxou uma música linda, de matar, do Vinicius, que a Odete Lara cantava… Eu sem você... sou só desamor… A Ruth atacou a voz da mulher, o Ciro a do homem, e os dois terminaram juntos, aplaudidos de pé, para sempre apaixonados.

Meu mundo caiu.

Como competir? Os dois sumiram e alguém puxou “Lígia”. “Lígia”, o tema da minha dor de corno. Eu ouvia “Lígia” sem parar, pensando nela, e no Ciro. Era duro sair com os dois, conviver com a alegria deles. A Ruth já não era menina, mas e daí? Se ela tivesse me escolhido, eu teria tido filhos, família, eu nunca mais olharia para essas fedelhas, eu ia ser só dela. Mas ela escolheu o Ciro, claro que ela escolheu o Ciro, eu também escolheria o Ciro. Eu cuidaria dela. Jamais faria o que ele fez, o horror que ele fez com ela.

Por isso me agarrei na Suzana; por isso eu não perdoo o Sílvio, porque eu amei a Ruth a vida inteira mas nunca avancei o sinal. Eu assisti o Ciro fazer ela feliz, muito feliz, e depois matar ela, internar ela, cuspir nela. Bem feito, Ciro. Esse câncer foi bem feito.

 

O bicho bateu forte. Suadouro. O negócio é pensar na Alda. Trânsito infernal. Essas roupas de lycra, meu Deus. O mundo enlouqueceu. As mulheres se vestem de puta até para ir na padaria. Olha a bunda dessa! Espremida a vácuo no legging. Aprendi o que é legging na Impact.

Cheguei. Estou meio tonto. Parei na portaria para respirar. O porteiro reparou, veio me oferecer ajuda. Senti a mesma irritação do Álvaro e respondi que não precisava. Fui grosseiro à toa, pensei. Perguntei se tinha correspondência e ele, antes de checar, comentou que eu estava corado. Foi o mormaço, eu disse. Mas não tinha mormaço, estava até fresco. Vão fechar a água? Agora? Não, espera eu tomar meu banho. Avisa que eu já estou subindo, segura lá pra mim! Consegui me arrastar até o elevador. Há uns trinta anos que o condomínio não queima lixo, mas o cheiro não sai. Primeiro… segundo… esse elevador vai cair. Quinto… sexto, meu andar. A vizinha do 610 está cozinhando feijão. Todo dia ela cozinha feijão. O corredor recende a sulfa. Não suporto feijão. Que embrulho no estômago. Cadê a chave? Vou morrer aqui com esse futum.

Meu santuário. Corre pro banho. Ui… teto preto, o que é que há, leão? Baixa a cabeça, respira fundo. Melhorou. Enxaqueca à vista. Só tiro a sunga no boxe, senão é areia pra todo canto. Como demora a esquentar essa joça. Vou trocar para elétrico. Chuveiro elétrico evoluiu muito. Começou… Vai, desgraça, vão fechar o registro. Esquentou. Bênção. Estou suando até debaixo d’água, acho que vou vomitar. Agora está pelando, essa ducha é um inferno.

Quando avancei para a torneira fria, senti o formigamento subir pela mão direita e, através do braço, invadir o peito. O peito. Esse apertou, como se um gigante me estrangulasse com os dedos. A pontada fisgou o plexo, paralisando o pulmão, a mandíbula travou e senti falta de ar. Procurei me acalmar, cogitei chamar o porteiro, a polícia. Qual é o telefone da Celeste? 97… 9756… 753… 75… tentei lembrar. Saí do boxe amparado pela cortina, o plástico não segurou o peso e eu beijei a lona. Fiquei melhor que de pé. Deita, deita, põe as pernas para o alto. Chão frio como o capeta. Outra pontada, não acredito. Sossega, leão. Meu Deus, não estou enxergando mais nada. Tem que tossir, ouvi na televisão que tem que tossir se achar que está infartando. Eu estou infartando. Não tem a menor chance de eu tossir com o sufoco que estou passando.

 

Preciso achar o Carlos. Ele vem com o meu sobrinho… como é o nome dele? Não importa. O Carlinhos me arrasta até um táxi, me deixa num pronto-socorro… Cadê o celular? Deixei na sala. Danou-se. Não vou mais levantar daqui. Meu coração vai sair pela boca. Vai sair, vai sair… vai sair… vai… saiu.

 

Fica tranquilo, Ribeiro, você não vai ter derrame, Alzheimer ou Parkinson. A sua cadeira de rodas não vai ser empurrada por uma enfermeira feia, você não vai babar como o Álvaro, e nem sair de um hospital perfurado como o Ciro. Você é um sujeito de sorte. Acabou a água. É assim. É assim? É assim. Vai ser assim. Eu não devia ter tomado aquela bomba de barriga vazia. Esquece a barriga vazia, ia acontecer. Eu andava na base de quatro, cinco por semana. O Viagra me deu dez anos de vida útil. É justo. Mais do que justo. Troco os dez que teria pela frente pelos sete que tive pra trás. Viva a tropa da Centauro, as travecas da Xouxoteca, a Erotika e o sexo via internet. Aproveitei até o talo. Agora, é abrir mão.

 

Eu não aproveitei coisa nenhuma. Nada disso valia a Ruth.

Fui vê-la na casa da irmã, uns dez anos depois da separação. A Ruth se transformou numa mulher ausente, amarga. Quando me viu, desdenhou de nós todos, do Sílvio, do Neto, do Álvaro e de mim. Não tocou no nome do Ciro. Não podia, não conseguia. Fui até lá na esperança de me confessar pra ela, de propor o que fosse, o que ela quisesse, mas não tive coragem. Ela perguntou como ia a corriola. Assim mesmo, a corriola… Eu disse que não os via há um tempo. Isso foi um pouco depois da surra que eu levei por causa da Lucíola, quando eu tentei mudar o rumo das coisas e encontrar uma mulher de verdade. A Ruth pediu para eu ir embora, disse que nós estávamos todos mortos pra ela e foi para o quarto sem se despedir. A irmã me levou até a porta e me fez jurar que não voltaria. O Ciro não deixou nem o bagaço da Ruth. Um egoísta. Sempre foi.

Parei de fazer planos. O futuro acabou ali.

Desde então, aceitei comer senhoras cada vez mais distantes da minha vontade. Como essa Alda, que eu fiz parecer a Miss Universo mas que é um fim de linha que não tem tamanho. Perdão, Alda, não vou poder estar com você.

 

ALDA esperou por Ribeiro na saída do trabalho por mais de uma hora. Voltou para casa humilhada, rejeitada até por um velho. No dia seguinte, a notícia correu no prédio: o professor não dera as caras na aula das seis e nem no vôlei das dez. Carlos ligou, tocou a campainha e o porteiro deu um jeito de arrombar a porta. Ribeiro estava caído no banheiro encharcado. Quando religaram a água, o chuveiro ensopou o chão. O corpo rígido, quase entrando em decomposição, não foi uma visão agradável. Carlos chamou o rabecão, tentou secar o piso com a toalha de banho, ligou para Celeste e contou o que havia ocorrido. Alda sorriu sem querer, não desejava o fim de ninguém, mas o alívio de não ter sido esnobada por um septuagenário era maior do que a perda. E ainda achou romântica a ideia de que fora a última esperança amorosa do senhor de Copa, não deixava de ser um idílio. Foi ao Caju prestar sentimentos ao morto.

O enterro caíra em desuso. Com a inauguração do crematório São Francisco Xavier, as famílias preferiram as cinzas aos ossos. Celeste tomou a frente dos preparativos. Seus homens a ajudaram imenso, mas ela fez questão de cuidar dos detalhes sozinha, encomendar as coroas, escolher o caixão, o terno do irmão. Carlos cobriu o tio com a bandeira do Botafogo e pôs a bola de vôlei da derradeira partida nas mãos dele. O discurso ficou por conta do sobrinho. Carlos foi sincero e carinhoso. A mãe não quis falar, mas se manteve abraçada ao filho, aprovando com a cabeça os fins de frase. Coube a ela dar a ordem para o forno andar. A melodia fúnebre acompanhou a travessia do esquife pela esteira de rolos de metal, até sumir por um túnel baixo e escuro, como fazem as malas no raio X dos aeroportos. O produto final só foi liberado no dia seguinte. Celeste mostrou o papelzinho com a senha, recebeu a caixa na administração e seguiu para a Pedra do Leme. Meu irmão quer praia, justificou, desembrulhando o conteúdo da urna entre os pescadores, as varas e os anzóis. Carlos e o filho apanharam um punhado do parente, Celeste fez o mesmo, e os três jogaram Ribeiro ao vento, repetindo o gesto até não sobrar mais nada. Ele revoou ao redor da família, antes de ser sugado com os urubus por uma corrente ascendente. Algumas partículas lamberam o rosto dos que testemunhavam o culto. Não houve reclamação, a fileira de pescadores respeitou a liberdade da família, sem deixar de se enojar com a nuvem de poeira orgânica.

Celeste era uma mulher terrena, via grandeza na morte tanto quanto na vida. As meninas amadurecem cedo, na falta da mãe, Celeste virou mulher cedíssimo. A dona da casa, a esposa do pai, a mãe do irmão. A despedida de Ribeiro era algo muito tocante para ela, mas não a ponto de lhe tirar o orgulho do filho feito, do neto saudável, dos homens bons que teve e tinha. Havia muito vivia sozinha, mas o neto tomou o lugar do filho, o novo amor do antigo, de forma que nunca enfrentou o vazio das perdas. Não tinha temperamento para isso. Sempre viveu cercada, nunca acreditou na solidão. Ribeiro não andava bem, havia perdido a inocência que preservara por tanto tempo. Preferia-o dissipado no espaço a vê-lo perambulando em Copacabana, gastando dinheiro com prostituta, tomando estimulante, arriscando apanhar, ser roubado, ou preso. Foi bom pra ele ter parado agora, pensou, enquanto abotoava o vestido preto.

 

Era a primeira vez que Álvaro assistia a uma cremação. Achou detestável e indigno, meter um morto numa fábrica de cinzas, misturado aos restos de outros mortos. Ninguém limpa essa joça. A placidez da irmã chocou o último amigo vivo. Celeste deveria esconder melhor a aceitação. Chorava, é certo, mas sorria, sorria de mostrar os dentes, não era direito. O filho e o neto foram mais discretos, os maridos também. Toda mulher é espalhafatosa, decretou, na sua inarredável misoginia. Álvaro esperou que alguém se rasgasse pelo amigo, mas todos pareciam conformados, ele inclusive. Preocupava o fato de ter restado sozinho, com cem por cento de chance de ser a bola da vez. No mais, entediava-se. Culpa da cerimônia ou do calor? Por que o tempo abafa sempre que morre alguém? Sem ar, preferiu sentar no fundo da pequena plateia. Ouviu as palavras de Carlos, achou bonito o discurso, mas chocou-se com a naturalidade dos presentes. A morte nada tem de natural. Faltava a revolta, o desamparo, o luto de antigamente. Faltava o morrer de amor.

 

RUTH era Oxum, Maria e Madalena. O feminino pleno, sempre foi assim. Orgulho do pai, espelho da mãe, uma mulher para casar. Seria feliz em qualquer tempo, era ou lugar. Serviria ao burguês e ao guerreiro, era Afrodite encarnada, o feminino em pessoa. Futura esposa exemplar, despertou para a vida no apogeu final dos anos 50, embalada pela elegância de Tom e Vinicius. Amar estava na ordem do dia. Os adultos tomavam porres de dor de cotovelo e Ruth ansiava pelo seu dia de fossa. Prenda rara, e ciente da prenda rara que era, guardava-se para o ideal. Alimentava um romantismo pueril, se bem que cumprisse as exigências da nova era.

Foi das primeiras a conhecer a liberdade de beber e fumar, de cantar nas viradas, usar biquíni, ser cortejada e rir sem ser vulgar. Era culta e inteligente, não seria completa se não fosse assim. Lia Nietzsche e fazia crochê. A boa educação do Sion refreava qualquer exagero, era solta na dose certa, e boa moça em igual medida. De família. As amigas revelaram-se bem mais atiradas. Diferentes de Ruth, não tinham escolha. Aproveitaram a brecha do despertar da revolução dos costumes e, tocadas a pílula, foram pioneiras na arte de dar sem pensar se valia a pena. Ruth não, esperou paciente. Enquanto a hora não vinha, ouvia Dolores Duran.

Virgem, ingressou na faculdade de letras. Os rapazes logo notaram o andar gracioso, o sorriso largo, a voz afinada e a maneira sedutora de pôr as mãos na cintura quando arriscava o samba no pé. Ruth desfilava pelos pilotis, embriagada pelo convívio diário com a testosterona dos moços. Sua natureza respondeu aos estímulos, os cabelos cresceram fartos, a pele rosou, o peito vivia eriçado; tudo nela amadureceu à espera do momento que insistia em não vir. Leu Platão, O banquete, com o grupo de estudos, e descobriu-se andrógina. Algum deus maldito havia cortado ao meio seu corpo de origem, separando-a do homem dela. Queria encontrá-lo, reavê-lo. À noite, fantasiou ser costurada de volta, ponto por ponto, pele com pele, sentiu calafrios e dormiu excitada. Ruth só esqueceu de prestar atenção no alerta do sábio: “Só se ama aquilo que não se tem”.

Sérgio era um rapaz sensível, sério e atencioso. Cursava filosofia e pretendia ser professor. As amigas torciam por Beto, o Alain Delon da turma de economia, mas Ruth preferiu o outro, com quem descobrira O banquete. A virgindade era praxe, mas deixara de ser dogma. As colegas mais prafrentex faziam coro e, inconformadas com as reservas de Ruth, tachavam a princesa de esnobe.

A libido retesada ameaçava romper o dique. Ruth pensava em amar dia e noite, de nada interessava a política, a guerra, Cuba, o porvir e a bomba. Resolveu que seria com Sérgio. Aceitou terminar um trabalho na casa do rapaz e, numa tarde de sol, na primavera de 62, se deitou na cama dele e, com um beijo, fez o convite. Pego de surpresa, Sérgio se esmerou na missão. Tímido, escondeu a pouca prática; foi respeitoso, técnico e amador. Ruth deixou o quarto com a impressão incômoda de que continuava a mesma. Ainda era casta. A frustração a fez refugar, se guardar ainda mais; se continuasse tentando, pensou, arriscaria perder o impacto do grande acontecimento. Sérgio lhe levara o hímen, é certo, mas não arranhara em nada a inquietação. É a paixão que deflora as mulheres, é ela que desperta os sentidos, o olfato, o tato, o paladar, a visão, o arrepiar dos ouvidos. Ruth permanecia intocada. Quem a iria resgatar?

Ciro, era de Ciro que falava Aristófanes.

Foi o acaso que os uniu. O aniversariante era primo de Irene, e Irene, unha e carne de Ruth. Juliano notou que as amigas da prima haviam atingido o ponto do abate e organizou com ela a roda de violão. Essa era a razão de Ruth estar presente quando Ciro, Neto, Álvaro, Ribeiro e Sílvio cruzaram o salão. Poderia não estar, mas estava. E mesmo que não estivesse, de alguma maneira Ciro e Ruth se encontrariam um dia. Estava escrito, seria assim.

 

         Hoje eu quero a rosa mais linda que houver

 

Fez-se silêncio para ouvir a cantora, mais que cantora, intérprete. Ruth era intérprete. As longas horas gastas ao lado da vitrola, o disco furado de tanto tocar, a compreensão cristalina da letra, a identificação com o lamento de Dolores, de Maysa, a gravidade da voz, o conjunto da obra dava mesmo vontade de parar e prestar atenção. Perto do fim, ao confessar que como o seu bem demorou a chegar, ela, talvez, já não tivesse no olhar toda a pureza que gostaria de dar, fitou os ouvintes e viu Ciro de pé, no fundo da sala. O chão cedeu, a parede recuou e a imagem daquele homem bonito tornou-se gigantesca, luminosa, na frente dela. Entonteceu. Sentiu o sangue correr nas veias, as artérias estreitarem, a injeção de hormônios a eriçar os pelos, estrangular as vísceras e acelerar o coração. Era o começo do envenenamento. Encerrou a canção sob aplausos, fingiu calma, sorriu, tentou, como pôde, controlar o turbilhão, até que percebeu, pelo canto do olho, que Ciro se aproximava. Tremeu da cabeça aos pés. Ele tomou o violão das mãos de um dos seresteiros, sentou-se diante de Ruth e, sem tirar os olhos dela, fez soar os primeiros acordes. Cantou.

 

         Eu sem você não tenho porquê

 

O prelúdio. Ruth corou, todos notaram. Ciro sorriu, era irresistível. Com uma mesura, pediu que Ruth o acompanhasse na segunda voz. A musa aceitou o desafio. Passearam pelas notas, serviram-se do poeta.

 

         Sem você meu amor eu não sou ninguém

 

Não houve respiro. Completado o dueto, Ciro devolveu a viola para o dono, levantou-se sob a ovação da plateia, bradou que Ruth era dele e a arrastou para longe da plebe. Apesar da revolta, nenhum conviva ousou contrariar o herói. Senhor absoluto da cena, Ciro raptou a rainha com a perícia de Eros. Muitos casais se formaram naquela noite, atiçados pelo testemunho do encontro.

 

A palma da mão de Ciro a apertar a dela, a calma que aquilo lhe trouxe. Não lembra o que fez, só do desespero de abrir os botões e encostar o rosto na pele de alguém que não conhecia. Ficou assim, com os olhos fechados, respirando o mesmo ar, ouvindo o bater ritmado. Queria ser costurada para sempre. As mãos grandes seguraram seu rosto, Ruth teve coragem de olhar. Ciro aproximou a boca dele da dela e a abriu com os lábios, os dentes, a língua. Ruth o agarrou pelo pescoço, sentiu a aspereza da barba, o cheiro de cigarro, de homem, que ele tinha. O amor nada tem de etéreo, é carne, é físico, e brutal. Ciro subiu as mãos pelas pernas de Ruth e, sem pensar se devia, meteu os dedos por dentro dela. O gesto despertou censura. Pela primeira vez, desde que dera com Ciro, Ruth conseguiu ponderar. Quem é ele?, pensou, enquanto segurava a mão intrusa com firmeza. Ciro entendeu. Também refletia, pela primeira vez, sobre o que se passara desde o instante em que a vira.

— Meu nome é Ciro, eu me formei em direito e isso nunca me aconteceu assim.

Foi o que pôde dizer. Não havia truque, como fazê-la entender? Ciro desconhecia o terreno em que pisava, mas a resposta sincera surtiu efeito. Ruth aceitou a inocência do réu e consentiu.

Um vulto surgiu na varanda e apressou o que pedia para ser apressado. Debandaram sem dar boa-noite. No hall, Ciro apertou o botão do elevador com insistência, enquanto Ruth mirava o assoalho. Não iria para a casa dele e não podia ir para a dela, não havia lugar, seria ali. Sérios, contavam os segundos. Quem os visse de fora juraria estarem brigados. Ao entrar no cubículo espelhado, Ciro, maquinalmente, esperou passar dois andares e pressionou a emergência. A porta abriu, exibindo a laje feia de concreto. Ruth aguardou sem se mexer. Ele a imprensou contra a parede com um beijo fundo e tudo rodou novamente. Ciro escorregou pelos peitos, pelo ventre dela e se ajoelhou, levantando a saia de Ruth até revelar o umbigo; afundou o rosto no meio dela e a cheirou.

— O meu nome é Ruth — ela disse.

Ciro se ergueu para admirá-la. As mãos passearam até a nuca da eleita, ela enganchou as pernas nas pernas dele para não cair, ele abriu o cinto, afoito, e levantou o rosto para mirá-la ainda uma vez. Sério, pressionou o quadril e se forçou para dentro. Estava feito. Alguém berrou no fosso para liberar o elevador. Não havia tempo. Ele a ajustou no canto do pequeno quadrado e violou sua menina até terminar. Ruth não era mais virgem. Encontrara a sua razão de ser.

— Eu vi Jesus — confidenciou às amigas.

 

Gostava de Jango porque Ciro gostava de Jango; de Che, Dylan e Noel Rosa. Ruth assumiu o papel da primeira-dama, foi a Maria Tereza, a Jacqueline de Ciro, fez as honras da vida do amado. Voltou à política, debateu sobre a bomba, ficou amiga de Célia, casou Irene com Álvaro, riu dos excessos de Sílvio e nunca entendeu a solteirice de Ribeiro. Tinha pena dele, não sabia por quê. Apaixonou-se por tudo o que orbitava em torno de seu sol. Marcharam contra o golpe, assistiram ao Opinião com Nara e Bethânia, esconderam amigos perseguidos, saíram na Banda de Ipanema, foram à praia e se amaram demais. A lua de mel foi em Búzios. Ciro a levou para caçar a lagosta da janta; mergulharam entre as pedras, treparam na areia, no cais, no quarto, nos cômodos. Ruth só conhecia o orgasmo de sonho, Ciro tornou-o palpável, foi um desbravador.

 

Mas é justamente aqui, no ápice da realização amorosa, que a perdição feminina acontece. Na embriaguez afetiva. Ruth não era mais ela, era Ciro, era o filho, a casa, a união. Dizia-se completa. Esquecera o alerta do filósofo. Não suspeitou que os dez anos de felicidade eram o samba do prelúdio da Tosca, o acúmulo de tudo o que lhe faltaria a partir daquele momento.

Acordou cedo, Ciro a observava taciturno. Não era normal que despertasse antes dela. Ruth sorriu, ele seguiu para o banho sem devolver a graça. Tudo bem?, perguntou. Tudo bem, foi a resposta.

Por anos a fio, Ruth repassaria aquela manhã na cabeça. Tinha certeza de que Ciro ainda a amava quando fora dormir, mas acordou mudado, casmurro, seco. Voltou tarde da noite, tinha bebido, Ruth quis conversar, mas ele, irritado, se trancou no banheiro. No dia seguinte, continuou arredio, ela exigiu explicação e acabou por ouvir o que jamais pensou escutar: o problema era o casamento dos dois. Ruth se petrificou. Ele não quis se alongar, pediu desculpas, abotoou o terno e seguiu para o escritório. Assustada, entregou João para a cozinheira e se recolheu no quarto; faltou ao serviço, disse estar indisposta. A empregada reparou na palidez da patroa, notou os olhos esbugalhados, a respiração curta, mas não comentou nada. Catou o menino e honrou o emprego de mãe.

 

Ruth não comeu, não dormiu, não saiu do claustro. A madrugada chegou e Ciro teimou em não vir. Entrou em pânico. Dormiu exausta, os olhos inchados, acordou suada e se pôs a rodar pelo tapete. Checava o movimento da rua minuto a minuto. Falou sozinha, soluçou, ia e vinha na insônia. O sol já ameaçava nascer quando ouviu a porta. Como um cão treinado, carente do dono, ficou de pé, na expectativa, ao lado da cama. Os passos pelo corredor, era ele, teve certeza. A porta abriu e Ciro surgiu transtornado.

Ruth não quis saber das marcas de batom nem dos restos de purpurina grudados na camisa do companheiro. Treparam como cães. Ruth chorou, atracada ao marido, e ele jurou ser fiel.

 

Os meses correram calmos, Ciro se mostrou curado e Ruth recuperou o orgulho delicado de antes. Os reclames de Natal invadiram a TV, anunciando o funil de comemorações. Ciro avisou que ficaria até mais tarde para o arrasta-pé de fim de ano da firma. Ruth não se importou, atarantada que estava com os presentes, a árvore, o peru, a rabanada e os fios d’ovos das efemérides. Deu meia-noite, nenhum sinal de Ciro. Ela foi se deitar preocupada, pressentia o retorno do pesadelo. Às quatro e quarenta e sete, ouviu a chave e correu para o corredor abanando o rabinho. Ciro tomara um porre, como costumava fazer vez por outra. A braguilha aberta, a camisa para fora da calça e os vestígios de um batom cereja dos mais ordinários o denunciavam. Ciro não mostrou culpa ou arrependimento, pelo contrário, riu e a chamou de meu bem. Nojento. Empurrou-o pra longe e gritou, para que os vizinhos soubessem do ser hediondo que dividia a cama com ela. Deu asas à histeria. Ciro encheu o saco, estava virado, precisava dormir; catou uma troca de roupa e sumiu pela porta dos fundos. Ruth perdeu a fala assim que o viu descer pelo elevador, passou a noite de pé na área de serviço, vigiando a porta. A diarista chegou às sete, ela correu e se trancou no quarto. A doméstica deu conta do menino, da cozinha, da roupa para passar e só incomodou a madame no fim da tarde, para avisar que precisava ir. Era dia 23, antevéspera do Natal. Ruth não respondeu. A pobre ligou para Raquel, a tia do menino, para que assumisse o drama. Raquel mandou João para os primos e tentou convencer Ruth a abandonar o refúgio. Foi uma negociação demorada. Ruth repetiu que só deixaria o aposento se Ciro viesse até ela. Raquel reiterou que deixaria um bilhete na sala, caso Ciro retornasse, mas que era preciso levantar a cabeça e se amparar na família.

— Você tem que pensar no João, Ruth. Ele não tem culpa do desencontro de vocês. O João é mais importante do que o Ciro, pensa bem.

Ruth amava João, mas Ciro ocupava um altar. Por isso não quisera mais filhos, não carecia deles. Era um desvio de caráter, um excesso irracional, a enfermidade de Ruth. Deixou o esconderijo depois de muita insistência, saiu lívida, quase morta. Raquel se assustou com o desterro da irmã. Colocou-a no carro com o cuidado de quem carrega um cristal e tocou para o Humaitá. Ruth não desceu para a ceia, não quis abrir os presentes e nem ver os parentes. Parou de comer no dia 29 e definhou até o 31; deu entrada na Clínica São Vicente em 1o de janeiro de 1981.

Ciro apareceu só à tarde. Aflito, implorou para ficar a sós com a mulher. Embora relutante, Raquel concordou. Carecia de descanso e achava que o cunhado tinha mesmo obrigação de dar conta da sujeira que deixara para trás. Ruth só acordou horas depois. Quando viu Ciro, pensou ser delírio do sedativo. Ele se deitou ao lado dela e jurou, mais uma vez, nunca mais repetir a desfeita. Ruth acatou a promessa, não tinha opção, faria o que fosse preciso para não perdê-lo outra vez. Ruth era posse de Ciro. E quanto mais se provava dele, mais difícil era, para Ciro, amar o que lhe pertencia.

 

Mais seis meses de calmaria e uma desatenção boba, um dentista de João que Ciro deixou passar, fez Ruth ligar as antenas. E tinha motivos para tanto. Ciro, de fato, arrumara um caso com a mulher de um cliente, para quem ele havia ganhado uma causa. O pavor a fez esquecer a dignidade. Seguiu-o num táxi, desceu na Glória, subiu na alcova, flagrou os dois em pleno ato e fez o escândalo. Ciro agiu como se estivesse a sós, levantou, vestiu-se com calma e saiu pelo corredor. Ruth gritou até perder a voz, despencou pelos nove andares de escada, foi até a esquina, procurou por ele em círculos, voltou a si, morreu de vergonha e rumou para casa. Ciro já estava lá, de banho tomado e pijama. Quando a viu, sorriu como se nada tivesse acontecido. Estupefata, Ruth narrou o ocorrido, Ciro se indignou. Lamentou o papelão, preocupou-se com o Sílvio, o dono do apê, e garantiu que importunara o casal errado. Estivera ali todo o tempo, à espera dela. Meu amor, será que não é melhor procurar um médico?

Ruth se amparou para sentar. Pediu um copo d’água. Se não era ele, pensou, quem era aquele, na Glória? E, se era ele na Glória, quem era esse homem em frente a ela, agora, de pijama, na sala de jantar? A questão a consumiu de tal forma que outra vez se esqueceu de comer e dormir. Foi internada três dias após o flagra.

Retornou mudada. Falava pouco, mantinha uma vida em segredo. Entendia que viam nela a louca, mas não se importava. A decepção com Ciro serviu de medida para o resto da humanidade, não quis mais saber de ninguém. Só se ama o que não se tem. Levara uma década para se ater ao alerta. Fizera tudo errado, jamais resistira a Ciro. Cedera de imediato, para todo o sempre, perdera o poder de barganha. Era preciso privá-lo dela. Ruth parou de se dirigir ao cônjuge.

Ruth se enganou ao crer que a paixão se dobraria à vontade. Quem sofria era ela. A falta era dela. Foi masoquista onde Ciro a queria sádica. Destruiu a libido. Ciro reagiu com igual violência. Comeu meio mundo, enquanto Ruth assistia calada.

 

O ato supremo do romantismo é o suicídio. Ruth nasceu com o defeito de ser feminina ao extremo e, por consequência, romântica em excesso. Sempre viu nisso vantagem, mas, agora que descobria a fragilidade de sua natureza, daria tudo para se livrar de si mesma. Se possuísse a audácia de Bovary, tomaria cicuta, a nobreza de Sônia, enfrentaria a Sibéria, se miserável, como Fantine, arrancaria os dentes. Mas não, era uma mortal carioca, classe média, como tantas. Célia, Irene, Raquel, todas tratavam seu sofrimento como algo vulgar, um mero desquite. O talho nos pulsos, a forca, o gás, eram fins grandiosos demais para alguém como ela. Decidiu ser humilde, matou o amor com discrição de vestal, fez do lar um convento. Já não planejava reconquistar o marido, queria, sim, se isolar do barulho lá fora, não se importar, não querer, não precisar, não sofrer. Morrer. Exercitou a indiferença até se tornar insensível ao cheiro, ao rosto e à voz da cara-metade. Os objetos foram desaparecendo da casa, os discos, os livros, Ciro preparava a mudança. Ele baixou a cabeça e saiu com as malas cheias. Ruth entendeu que não voltaria. Sentiu alívio, estava livre para ser infeliz à sua maneira.

 

— Ruth, o Ciro morreu, ontem, no Silvestre. Há três meses, descobriram um tumor muito agressivo, o Ciro não resistiu. Acabou, Ruth — disse Raquel. — Você quer ir ao enterro? Eu tenho que levar o João. Achei que deveria te perguntar.

Ruth teve ódio da irmã. O amor recalcado ameaçou vir à tona e transbordar. Nunca mais o veria. Só sobraram os desacertos, pensou. Ciro jamais saberia que os dez anos de casamento continuavam a significar a sua vida inteira. Por que Raquel não lhe contara antes? Quis bater na irmã. Culpá-la do assassinato. O longo treino de clausura, o autocontrole conquistado a duras penas, trouxe de volta a frieza. Foi melhor assim, ponderou. Não teria coragem de vê-lo, de arriscar perder, mais uma vez, a sanidade. Respondeu que preferia ficar em casa.

Raquel deixou o quarto sem contestar. Aprendera a respeitar a vontade soberana da irmã. Adotou João como filho e manteve a empregada. Ruth exigia o mínimo, em troca pedia que não a importunassem, que não tecessem considerações sobre seus atos, que a deixassem em paz. Raquel cresceu com ciúme dos encantos da irmã, mas, agora, dava graças a Deus por não ter sido ungida com nenhum dom divino. Aprendeu, desde cedo, que o mundo é injusto e que toda grande alegria antecede uma tragédia maior. Pensou em desistir do São João Batista, tinha desprezo pela fraqueza do cunhado, mas a responsabilidade sobre o sobrinho a demoveu da ideia.

 

Ruth abriu o armário da sala que não via luz desde a partida de Ciro. Retirou dali uma caixa de papelão empoeirada, pôs sobre a mesa e procurou, na pilha de discos, o velho LP de Dolores Duran. A vitrola, herança do equipamento de som comprado por Ciro em 78, continuava intacta na estante. A diarista cuidava dos cômodos vazios com o mesmo zelo de antes. Ruth vivia no quarto, mas, nesse dia, depois que Raquel bateu a porta, decidiu sair da toca. Caminhou pelo corredor até a sala de estar, abriu a cortina para o sol entrar e deixou a memória agir. Ela, tão diferente de quem era agora, sentada no mesmo sofá, Ciro a tirando para dançar, João pulando pelas almofadas, os quadros, a mesa viva. O momento pedia música. Tirou o vinil da capa, limpou com cuidado e o colocou no prato. A agulha ainda resistia, o chiado que antecede a melodia, a introdução da orquestra, Dolores.

 

         Não deixe o mundo mau levá-lo outra vez

 

Ruth aumentou o volume, cantou, dançou, se deixou levar. Caiu arfante na poltrona, calou-se, refletiu. Sentia-se grata. Havia dez anos enfrentava a ausência de Ciro. A morte dele era o fim da tortura de, um dia, sabê-lo vivo e feliz, ao lado de outra mulher. Morto, permanecia seu, imaterial, eterno.

 

De todos da geração, Ruth foi a mais longeva. Resistiu por longos anos, trancada em casa, ao lado de seu parceiro imaginário. Bem cedo, desconectou-se do real, existindo entre lá e cá, mais lá do que cá. Alzheimer, abulia, demência, esclerose, nomes diversos para sintomas tão semelhantes. Ruth extinguiu-se amparada pela irmã e faleceu numa manhã chuvosa, aos oitenta e três anos, feliz com seu dono.

 

CÉLIA foi solidária com o drama de Ruth, disse as últimas de Ciro, esteve presente em todas as internações, até que chegou à conclusão de que a neurose da outra não tinha jeito.

Depois da separação, as visitas ao apartamento de térreo da rua Maria Angélica puseram um ponto final na amizade. A sala ampla, que dava para um jardim bem cuidado, lugar das feijoadas de sábado, das Copas do Mundo, de largar as crianças soltas, jogar e beber à vontade, virou um mausoléu sombrio. Ruth não abria as janelas nem acendia a luz. Habitava o último quarto, onde não permitia que ninguém entrasse. Só a doméstica cruzava o umbral. Mas ela não é considerada gente, suspeitava Célia, pela maneira como Ruth se dirigia à empregada.

— Sinhá, Irene. A Ruth é sinhá. Trata a coitada como se fosse escrava, gosta de café na cama. Se pendurasse a roupa no cabide, se lavasse os pratos, não ia ficar do jeito que ficou, desesperada por causa de um vagabundo. Eu sei que incomodo, não vou mais lá. Pra quê? Pra aturar chilique de grã-fina?

Irene não discordava, embora achasse exagerada a afronta. Via-se mais em Ruth do que em Célia, a Margaret Thatcher de São Cristóvão. Irene evitava falar da sua insatisfação matrimonial por receio das reprimendas.

 

Célia estudou em escola pública, foi campeã de natação no ginásio e nunca levou desaforo pra casa. Era filha de pai português, abandonado pela mãe, que ficou viúva cedo e preferiu a companhia do filho mais velho, internando o mais novo num educandário. A rejeição deu ao pequeno um ofício. Interno, aprendeu carpintaria e, crescido, formado e livre, progrediu no ramo da movelaria. Casou-se com a faxineira da loja, uma negra bonita de dentes branquíssimos, que se revelou uma gerente esplêndida dos negócios. Célia foi vizinha do Campo de São Cristóvão até a maioridade. Gostava de ir à Quinta da Boa Vista, depois da missa de domingo, aos jogos do Maracanã, de tomar sorvete e ir ao cinema na praça Saens Peña. A Zona Norte era o seu domínio. Mas a prosperidade e a compra de uma loja grande no Catete fizeram a família se mudar para o Flamengo. A ascensão social foi uma lástima para a garota. Célia não se reconhecia naquele paraíso amoral, fazia parte da classe trabalhadora. Terminado o curso normal, nem cogitou em seguir faculdade, desdenhava do orgulho acadêmico. Eles gostam é de esfregar aquele anel na cara da gente, dizia. Célia queria emprego, salário e independência. Fez datilografia e arrumou uma vaga de estagiária numa secretaria do Detran. Prosperou no antro burocrático, cercada de esquemas escusos, compras de carteira, mamatas, despachantes, poeira e falta de ar condicionado. Tratava com igual dureza os bacanas e os populares. Fazia justiça. Não entregava os colegas, tinha horror a dedo-duro, mas não participava da ladroagem. No fundo, ninguém presta, garantia.

Nunca confiou em homem. Foi educada assim. Alta e atlética, só não foi mais cortejada porque os rapazes se intimidavam com aquele De Gaulle de saia. Via no sexo oposto um inimigo em potencial, encarava-o de cima para baixo, do alto de sua fortaleza. Só um santo para transpô-la. O santo, no caso, foi o Neto.

Célia atravessava a praia de Copacabana a nado regularmente. Da areia do Forte, Neto viu surgir Calipso em meio às ondas. Mulata, como ele, gigante, homérica. Gamou no ato.

 

O apaixonado era formado em administração. O pai, funcionário público, criara o filho para ser alguém. Bom rapaz, bebia com moderação, era bem-humorado e craque no futebol. Álvaro creditava a normalidade excessiva de Neto ao fato de ele ser mulato. Havia fundamento na teoria. Sempre que um festejo mais animado acabava com a polícia na porta, Neto era convidado a seguir na viatura até a delegacia. O racismo velado o fez perseguir uma vida sem falhas. Casou cedo, teve filhos cedo e morreu cedo.

Conheceu Ciro e Álvaro na universidade, algumas matérias de administração se cruzavam com as de direito e contabilidade. Juntos, formaram um grupo de samba-jazz, com Neto na bateria e Ciro no violão. Álvaro tentou o pandeiro, mas desistiu e acabou só com o chocalho.

A cumplicidade masculina, as mulheres e a praia os uniram, nessa ordem. A Princesinha do Mar acolhia muitas tribos. Álvaro conhecia Ribeiro de infância, moravam ambos na Ministro Rocha Azevedo e iam à praia na Miguel Lemos. Ribeiro cultivava amizade com a turma da Miguel, um pessoal barra-pesada que barbarizava o bairro nobre. Vivia rodeado de meninas, ao contrário de Álvaro, que espantava as mulheres desde o tempo em que tinha cabelo. Sílvio entrou para o bando atraído pelos encantos de Ciro e tirou a virgindade de todos nos psicoativos. Sílvio era um mito entre os jovens da praia. Corria a lenda de que fora o mais novo membro aceito pelo Clube dos Cafajestes, e que teria participado da covardia de pendurar um travesti pelo pé na janela do décimo andar de um edifício na Barata Ribeiro.

O primeiro Carnaval da década de 60 foi o grande divisor de águas da união dos cinco. Sílvio contou de uns italianos que conheceu no Itamaraty, que fingiam ser gays para quebrar a resistência de madonas e prima-donas. Elas vêm soltas porque acham que estão seguras, depois de dois tragos é só partir para o abraço, garantiu. Propôs que usassem os dotes musicais para fundar um bloco de sujos travestidos de mulher. A ideia foi acatada com entusiasmo incondicional. Dedicaram todo fevereiro à confecção das fantasias. Ciro, a mais linda, lançou a minissaia muito antes de Mary Quant, com botas e peruca de franja. Fez um tipo sexy-intelectual. Álvaro compôs uma dona de casa com peitos de melancia e Neto deixou brotar a cabrocha que existia nele, num belíssimo biquíni de lantejoulas douradas, farto de penas nos ombros e na cabeça. Sílvio encarnou Carmen Miranda e Ribeiro homenageou a Bardot de Norma Bengell. Comeram deus e o mundo. Viraram irmãos.

Os amigos de Neto eram seu único pecado.

 

Estavam os cinco refestelados na areia, quando a deusa emergiu das ondas e caminhou com firmeza até a sombra da barraca vizinha. A pele fixada nos músculos, a cadência dos quadris e a dureza das coxas, a flecha no coração do mancebo. Os amigos perceberam e caíram em cima, Neto arriscou a aproximação. Célia foi duríssima e deixou-o meses na geladeira. Não dava conversa, mas, também, não o fazia desistir. A prova de amor era a paciência extrema do candidato. Célia o torturou com um namoro de um ano e um noivado de três. Virgem. Os pais da noiva só deram permissão para o casamento depois de o noivo ser promovido na empresa de material hospitalar em que foi trabalhar. Neto segurou com bravura a vontade de engolir Célia viva, de vê-la a sós, sem a sogra, as sobrinhas, os primos e os tios de Cascadura. Sem roupa. Mal podia esperar. Na cerimônia, estava tão ansioso, tão agradecido por, enfim, ter direitos sobre a própria mulher, que chorou copiosamente no altar. A longa espera influenciou no seu desempenho nulo da primeira noite. A pressão baixou e Neto foi obrigado a deitar. Acabou dormindo, exausto que estava da expectativa. Célia não se importou de deixar o principal para a manhã seguinte, abraçou o troféu de marido que conquistara e demorou a apagar. Era adulta. Só o seria depois de casada. E era. Casada e adulta.

 

O pai passou mal na igreja. Começou balbuciando algumas palavras inaudíveis na sacristia. Depois, passou a revirar a cabeça, gesticulando com os braços abertos.

— Esse canalha… esse canalha vai roubar minha filha…

Os familiares tentaram acalmá-lo, mas o português entrou em surto, repetindo que estavam levando a pequena dele. A mãe, receosa de que o ciúme atávico comprometesse o andamento da festa, ministrou-lhe um sossega-leão, mandou o velho passar uma água no rosto e voltou para usufruir do seu dia de glória. Nascera na Mangueira, ficara órfã menina e ajudara a criar os irmãos. Jamais imaginou que pudesse dar à filha um casório daqueles. Mandou enquadrar a foto dos noivos e pendurou na sala, em cima do sofá. A pobreza, a miséria, a morte dos pais e de muitos parentes, tudo ficara pra trás. Agora, era sentar e esperar os netos.

Eles demorariam a vir. Um menino e uma menina, Murilo e Dalva. Célia organizou uma planilha de gastos e calculou que só seria ajuizado aumentar a família dali a três anos. Todo mês, separava parte dos ganhos para a futura empreitada e, enquanto a maternidade não vinha, curtia o príncipe consorte.

Foram muito felizes juntos.

Célia aturou as safadezas dos amigos do Neto até o nascimento das crias. Depois, enxotou todos para fora do seu círculo de confiança. Suspeitava muito das taras de Sílvio e da pedofilia de Ribeiro. O pai morreu pedindo que a filha não baixasse a guarda. Genro não é parente, insistia. A mãe ralhava, defendia a escolha da filha, mas achava bom não descuidar.

Os desquites em série, a juventude drogada, os hippies de calças sujas, Célia detestou as novas modas. Nunca esqueceu do dia em que viu Ney Matogrosso na TV pela primeira vez. De início, admirou a cantora típica muito afinada, com o esplendor de penas nos ombros e uma máscara de urubu na cabeça. Achou-a peluda, mas a agudeza da voz não deixava dúvidas: era fêmea. Num passo mais corajoso, o pavão misterioso sacudiu as cadeiras para lá, os balangandãs do peito vieram pra cá e revelaram a ausência de seios. É homem!, gritou. Santo Pai! É homem! Célia tirou as crianças da sala. O mundo enlouqueceu, comentou com Neto, à noitinha, e triplicou a vigilância sobre os filhos.

Foi admiradora de Médici e do general Geisel, comungava com eles do horror aos comunistas. Querem tomar o Brasil, tinha certeza. Imagina, dividir minha casa com os outros? Acho ótimo, lá neles! E virava as costas, sem dar chance a ponderações. Seus dois maiores receios eram os de que Dalva perdesse a virgindade e que Murilo não fosse homem. A paranoia com as ameaças externas acabou por moldar-lhe a fisionomia. Tornou-se sisuda. A boca tensa enrugou a face, as preocupações cavaram-lhe sulcos na testa e vincos entre as sobrancelhas. Célia enfeou. Neto não percebeu. Para ele, seria sempre Calipso.

Brigaram, é certo, muitas vezes, saíram no tapa, mas nunca aventaram a possibilidade do fim. Célia foi o cão pastor da família. Faleceu sem gozar a velhice, aos sessenta anos, de um AVC. Seria uma morte exemplar, não tivesse ocorrido tão cedo. Deu boa-noite ao marido, foi para o quarto e não acordou mais.

 

O desespero no velório da esposa foi um prenúncio do que viria mais tarde. Neto contorcia-se de angústia. Ajoelhou no chão, tentou arrancar as roupas, mordeu, gritou, bateu; os filhos correram para abraçá-lo. O pai diminuiu os ganidos, aplacou a fúria, Murilo e Dalva o sentaram de volta na cadeira junto à mãe, mas a calmaria durou pouco. Mal a fila de condolências retomou o ritmo, Neto foi assolado por outro descontrole bestial. Agarrou Célia nos braços, quis tirá-la de lá, levá-la para casa, foi preciso ajuda para fazê-lo largar a defunta. Álvaro e Ribeiro atenderam ao pedido de Murilo e o arrastaram até a enfermaria. Sedado, participou do cortejo escorado pelos dois comparsas que a mulher tanto rejeitava.

Neto nunca mais se acertou. Por conta própria, continuou a tomar o ansiolítico receitado no São João Batista. Sóbrio, nem pensar, dizia. Quando a língua enrolada não permitiu mais que se entendesse o que o pai dizia, Murilo o levou a um psiquiatra. Neto enveredou na ciranda de tentativa e erro dos reguladores de humor. Nenhum funcionou a contento. O coquetel o transformou num efeito colateral ambulante. Vivia entre o eufórico e o deprimido, mais deprimido do que eufórico. Murilo tentou homeopatia, massagem, acupuntura, insistiu na psicanálise, mas nada demoveu Neto da fixação em Célia.

Tratava-se de um luto perpétuo.

 

         NETO

         27 de dezembro de 1929 a 30 de abril de 1992

 

A Célia assistiu o jornal e foi deitar. Está cedo, argumentei, mas ela estava indisposta. Vi um filme de guerra e fui dormir. No dia seguinte, estranhei que ela ainda estivesse na cama quando acordei. A Célia tinha por hábito levantar antes de mim para fazer o café. Tomei banho, me vesti, mas ela não se mexeu. Quando tentei acordá-la, percebi a rigidez. A Célia morreu de madrugada, do meu lado; um aneurisma a levou sem que eu notasse. No mesmo instante, todos os momentos ruins desapareceram, os maus humores dela, o pavor dos amigos, a implicância com a nora, a ranhetice com o genro, a infelicidade crônica, os rachas, os tabefes. Fui invadido por um amor incondicional por nós dois, pelos nossos anos juntos. Fiquei paralisado, sentado na cama, passando o tempo em revista, sem ter coragem de ser prático.

Meu filho cuidou dos trâmites: funerária, missa, capela, escolheu um caixão bonito, eu não tinha condição de nada. Sentei ao lado dela no velório, as pessoas vinham até mim, mas eu não estava ali, eu não estava em nenhum lugar. Meu desejo era sair da pele, sair de mim. Vociferei, gritei, blasfemei, não aliviou, até hoje não botei os pés no chão. Sóbrio, nunca mais. Me recuso a começar tudo de novo, perdi a ilusão necessária para reinventar os dias.

Fui carregado no enterro. O Álvaro e o Ribeiro me ampararam. O sino anunciou a saída do cortejo e nos arrastamos pelo cemitério; como é triste, meu Deus. No fim, abracei meus filhos, meus netos, e rumei para o apartamento que dividi com a Célia por mais de trinta anos. O silêncio cortou o ar, corri para ligar a TV. O Murilo achou melhor dormir comigo na primeira noite, foi tão esquisito pra ele quanto foi pra mim. No dia seguinte, mandei-o embora. Dali pra frente, eu teria que aprender a ser só, concluí, olhando no olho dele, fingindo ter recobrado a razão.

Faz um ano que me esforço, mas tudo parece artificial: sair, ir a um cinema, jantar. Não tenho mais com quem comentar as notícias, é como se os fatos não existissem. O sol nasce e morre numa sucessão de horas iguais. A Célia era a ponte, a casa existia graças a ela. Paranoica, desconfiada, falou mal do Ciro, do Sílvio, do Álvaro e do Ribeiro desde o dia em que os conheceu. Que importa? Eu não sabia, até ver o corpo dela estendido sobre a cama, eu não sabia, mas a Célia era o esteio, o mastro, o prumo.

Fecho as janelas, checo se deixei a porta aberta, a geladeira, o gás, sou metódico. Apago as luzes e me tranco no quarto; tento ler, não consigo. Sempre gostei de ler, mas não consigo mais. Me tornei alheio ao drama de terceiros.

Como é possível prosseguir sem planos? Aos vinte, assassinam-se amores, amizades, vai-se em frente como uma flecha afiada; só mais tarde se aprende quão raros são os reais afetos. Não acredito em paixões tardias, não se ama mais depois dos quarenta. É mentira. No máximo, faz-se um acordo formal, finge-se saudade, apreço, mas a biologia não precisa dos arroubos juvenis de um velho.

Meus amigos jamais entenderam minha ligação com a Célia. E ela também não ajudava, detestava todos eles, o Sílvio em especial. No dia em que a Suzana fumou maconha no jardim do Ciro, chegamos em casa e ela partiu para cima de mim com uma conversa séria. Disse que não queria o filho metido com aquela cambada, que tinha medo do Sílvio abusar do Murilo, que conhecia milhões de casos de assédio com conhecidos íntimos. Falou do sobrinho da Irene, uma moça, coitada da mãe dele, iniciado por um tio na garagem de casa. Eu revidei violento, disse que o Murilo não tinha nem um ano de idade e que nenhum pedófilo disfarçado de amigo iria atacar o nosso bebê, muito menos o Álvaro, o Ciro, o Sílvio e o Ribeiro, porque eles gostavam de mim. O Ciro queria comemorar o fato de eu ser pai e o Ribeiro é um infeliz, que vive atrás dessas gurias. Hoje em dia, todo mundo fuma essas drogas e o que você não pode, Célia, é me proibir de ensinar o Murilo a ser homem. Bicha ele corre o perigo de ser, Célia, se você, que é mãe, sufocar o coitado com um anormal em cada esquina. Não vou afastar meu filho dos meus amigos para satisfazer a mania persecutória de uma mãe de primeira viagem. Ela abaixou a cabeça, ofendida. O Murilo abriu o berreiro e a Célia, com os olhos cheios d’água, disse que tinha que dar de mamar. Nunca mais tocamos no assunto.

Essa era a nossa rotina: picuinhas, discussões, mágoas e reconciliações. Eu me viciei nisso, não sabia mais viver sem. O fato de discordar da Célia me mantinha ativo. E sabíamos varrer tudo para debaixo do tapete, o que é fundamental para a saúde de qualquer casamento. Deve-se virar a página, esquecer, zerar, perdoar, passar por cima. As mulheres se negam a entender, insistem em expor as suas razões estúpidas, querem mudar quem está do lado, obrigá-lo a cumprir o papel de príncipe. Os homens assistem, esperando que elas cansem, enquanto repetem os mesmos erros. Elas agridem, xingam, gritam, choram, mas, depois, vão cuidar da janta. Até as feministas vão cuidar da janta. E seguimos juntos, para um dia faltar e deixar o outro aqui, na cova.

Estou sentado na poltrona da sala. Ia deitar, mas dei meia-volta e estanquei aqui. Minha casa é a mesma, não troquei os móveis de lugar nem doei as roupas dela. Estou diferente. Hoje cedo acordei diferente. Fui tomado por uma paz mórbida, uma distância que jamais havia sentido. Foi quando ouvi a voz dela. Já tinha me acontecido uma vez, no hall de entrada, para nunca mais. Hoje voltou. É mais como um respiro, um hálito, o bafo dela. Foi de manhã, quando me aproximei da cômoda para pegar o dinheiro da padaria. Por isso estou sentado aqui, pensando nisso, na brisa que me atravessou.

A Célia era branca, considerada branca, porque tinha traços finos, mas era mulata, como eu, e costumava alisar o cabelo, pixaim como o meu. Os quatro eram brancos. Eles não sabiam da cobrança por trás da cor, do espanto de não se parecer com nenhum colega da turma, do prédio, do bairro, e de ser tão semelhante aos faxineiros, garis e pedreiros que servem a brancos como eles. Quando a revolução de costumes aportou na Guanabara, o Ciro, o Sílvio e o Ribeiro, e também o Álvaro, por culpa da Irene, que começou a fazer análise, todos eles se perderam naquela libertinagem sem freio. Rio Babilônia. O desquite virou obrigação. Eu via o desprezo com que eles me olhavam, enquanto jogavam seus casamentos no lixo, um após outro, numa ganância desenfreada, suicida, solitária, estéril. Eu não. A leviandade não fazia parte de mim. Tirei as melhores notas, passei nos piores testes, estudei até ferver os miolos, trabalhei como um corno e não traí. Fui honesto até dizer chega.

Chega.

Quero escrever uma nota. Cadê a caneta? Na estante. E o papel? Na gaveta. Nada fora do lugar. Só eu. Vou sentar para escrever. O que quero mesmo escrever? Uma nota. Retiro a tampa da Bic, deposito ao lado da folha em branco, toco a ponta da esferográfica na superfície lisa e rabisco: “Não contem a ninguém”. Por que escrevi isso? É para os meus filhos, pensei. Dobro o papel e guardo no bolso. Agora posso deitar. Caminho pelo longo corredor de portas fechadas. Não gosto desse funil estreito, ele me lembra a bagunça, as toalhas pelo chão, as calcinhas dependuradas na torneira e a ausência deles, e dela. Dobro à direita no banheiro próximo ao quarto. Quando nos mudamos para esse apartamento, não se falava em suíte, varanda, play ou vaga de garagem. Os cômodos eram amplos e isso bastava. Vivíamos uns com os cheiros dos outros, os vapores, os restos de cabelo e as poças d’água.

A escova de dentes dela me olha do copo sobre a prateleira de louça. Ainda está lá. Abro o armário atrás do espelho e me atenho com a porta entreaberta. É o mesmo espelho do dia em que entramos aqui pela primeira vez. Está trincado. Procuro o antigo rosto, sou eu, ali, e não sou; também não lembro como eu era. Abro. Ritalina, Lexapro, Frontal, Valium, Haldol, Seroquel, o resto do Pondera do ano passado e o Aropax, que o dr. Péricles planeja experimentar nos próximos meses. Os rótulos me encaram do buraco da parede. O Murilo insistiu que eu me tratasse. Por um ano respondi aos intermináveis questionários sobre os efeitos dos benzodiazepínicos no meu organismo. O dr. Péricles queria saber da compulsão, da ansiedade, do desânimo matinal; de acordo com as respostas, alterava as doses, o que provocava novas indagações. Um melhora, outro piora, eu respondia, como um aluno bem-comportado, até que, num rompante, me transformei numa cobaia arisca. Decidi não mais colaborar com os laboratórios, me vinguei de forma sistemática, atrapalhando a preciosa pesquisa deles. Fornecia dados fraudulentos, alegava tonturas, dores no peito que não existiam. Me revelei um rato anárquico, perigoso, que planejava destruir a megalomania científica dos reguladores de humor, frustrar o delírio dos que pretendiam controlar meu desespero. Tive uma melhora considerável nesse período, gostava de ver a surpresa do doutor diante do quadro que eu descrevia. Estava na cara que o Péricles estava perdido. E, mesmo antes, quando eu ainda não blefava sintomas, ele também estava perdido. Um clínico saberia diagnosticar uma pancreatite fingida, mas o psico Péricles seguia à risca as estatísticas americanas, as tabelas de comportamento da Pfizer, da Roche, sem perceber que eu fazia o que o homem faz desde que se entendeu por gente: eu mentia e me divertia. Não há remédio pra isso. Cheguei a ter pena dele. Eu era grato ao Péricles. Foi ele quem demoveu da cabeça do Murilo a ideia de apelar para a psicanálise. Cheguei a frequentar algumas sessões, mas não passou do primeiro mês. Era um chato de Laranjeiras que cobrava uma fortuna para ficar calado, comigo de costas pra ele, remoendo neuroses em alto e bom som. Encenação ridícula. Quem inventou essa porcaria? Não se devem fuçar frustrações, eu e a Célia somos o melhor exemplo disso.

Minha alegria de acabar com as certezas do Péricles perdeu a graça recentemente, há duas consultas. Ele me entregou a receita, eu passei na farmácia e trouxe o carregamento pra casa. Guardei lacrado no armário trincado do banheiro. Desisti de tomar. Faz três semanas que meus humores agem livres. E eles têm tomado conta de mim.

Recolho os tarja-preta e ponho no bolso, encho o copo com água da bica. Pra que filtrar? Me dirijo ao quarto. Olho para a sala escura, tudo apagado. Entro na porta à direita, a do fundo do corredor, acendo a luz, o facho ilumina a passagem. Tranco a porta por puro hábito, ninguém vai entrar de surpresa; sento na cama e deposito os medicamentos e o copo sobre o criado-mudo. Tiro o paletó, a camisa, a calça, dobro tudo e penduro no cabide de pé. Volto a sentar.

A diferença entre um tarja-preta e um tarja-vermelha, me explicou o balconista da Droga Raia, é que se você tomar uma caixa inteira da preta, você empacota; da vermelha, não. Ele soltou essa e riu, colocando as três caixinhas na cesta. Qual é a graça?, pensei.

Qual é a graça?

O ar pesou de repente. Notei que não estava a sós. Havia alguém, além de mim, ali, naquela cama. Era possível ouvir a respiração. Não tive coragem de virar para ver quem era. Escorreguei os dedos sobre o lençol, tateei às cegas, até que uma mão conhecida segurou a minha.

Você não vem deitar? A voz ecoou limpa no quarto vazio. Demorei a responder, temendo que a ilusão se desfizesse. Já vou. Que horas são? Tarde, eu disse. Você não vem deitar? Fechei os olhos e me inclinei devagar, segurando a mão dela para que não se soltasse da minha. Voltado para o teto, sem coragem de me mexer, senti o volume de um corpo se aconchegar no meu. O dela. Achei que já era dia, comentou. Não, ainda está escuro, você dormiu pesado. Ficamos abraçados, quietos. Aconteceu alguma coisa? Não consigo dormir. É o trabalho? Não, Célia, não tem nada a ver com o trabalho. Sou eu mesmo.

Cerrei ainda mais os olhos e a afastei de mim. Toquei os cabelos, o colo, a cintura, a barriga, as ancas, eu queria muito que fosse verdade. Movi as pálpebras receoso, a claridade invadiu a retina e imprimiu o rosto da Célia. Ela estava neutra. Não era jovem, mas também não carregava os vincos da rabugice final. Era uma mulher bonita. Uma mulher. A minha mulher. O que é que você tem?, perguntou ela, abrindo um leve sorriso. Nada, respondi.

Sempre invejei a paixão do Ciro pela Ruth. Ele apareceu na praia no dia seguinte da festa do Juliano e me chamou para um mergulho, estava bonito como nunca. Passamos a arrebentação e o Ciro confessou estar apaixonado pela cantora da última noitada. Ruth era o nome dela. Haviam passado a noite juntos e o Cupido o flechara. Eu não pensei que isso existisse, Neto, você sabe do que eu estou falando? Não, não sei. O amor é muito mais violento do que eu imaginava. Comer alguém com essa gravidade, meter numa mulher que te pertence, que é sua por destino, direito, por vidas passadas, sei lá. Eu não esperava que me acontecesse, achei que era invenção. Eu não existo mais sem ela, Neto. Quero casar, ter filhos, comer, morrer, matar por ela. Senti pena de mim. As ondas cresceram atrás de nós dois e ele desceu uma de peito, a maior, até a areia, soltando um grito de Tarzan.

Existia mesmo uma aura em torno dos dois. Não era assim comigo e a Célia. Eu gostava dela, mas não era daquele jeito. A Ruth e o Ciro se extinguiram num incêndio, viraram unha e carne do outro, e pele, e osso; mas o Ciro, apesar de amar a Ruth à loucura, continuava atrás de sentir aquele fogo poético, romântico, aquela ânsia amorosa que ele me revelou na praia, nos primórdios da vida deles. O Ciro brigava e voltava, só para criar a expectativa de que a Ruth o abandonaria. Mas ele sabia que ela era incapaz de fazer isso. E ele precisava que ela fizesse, para conquistá-la de novo, para foder a mulher como se fosse a primeira vez. A Ruth nunca entendeu, sofria, escravizada pelo erotismo dele. A paixão é uma doença grave. O Ciro precisava que ela fosse mais forte do que ele, mas ela definhou como a mais comum das mulheres. Ele desesperou de tal jeito que saiu seduzindo a porta, o rodapé. A tragédia era que nenhuma das outras era a Ruth, a do início, a que ainda não pertencia a ele, embora já pertencesse. A moderação do meu casamento foi sempre frustrante, mas agora, mirando a Célia deitada ao meu lado, sou invadido pelo mesmo ardor do Ciro e da Ruth. A comoção de ser de alguém. Minha descoberta não veio de estalo, na aurora da vida, só a percebo agora, depois da morte dela. Aqui, na nossa cama de mogno, entendo o que o Ciro quis me dizer naquela tarde, quando passamos a arrebentação.

Você não vai dormir?, ela insiste. Não sei. Por que não toma um remédio? Emudeci pensando na possibilidade. Você sonha, Célia? Não. E não sente falta de sonhar? Não. E você, sonha? Às vezes, com você. Toma o remédio, vai te fazer bem. Você quer que eu pegue?, ela se ofereceu. Quero, eu disse.

A Célia se levantou, como sempre fez, o dia amanhecia lá fora, calçou o chinelo, deu a volta no tapete, escolheu uma das caixas na mesinha e sentou ao meu lado. Quantas é pra tomar? Não sei, quantas você acha que eu devo tomar? Você leu a bula? Ela desdobrou a folha, pegou os meus óculos para enxergar as letras miúdas. Quem te receitou isso? Dr. Péricles, o psiquiatra. Você leu as reações? Li, são de apavorar. Constipação, sudorese, pânico, reações alérgicas, disfunção hepática… Quem te levou nesse médico? O Murilo. Ah… ele está bem? Está, sim. Nós criamos um filho e tanto. Dois, ele e a Dalva. Ela sorriu satisfeita. Você quer tomar quantos? Não sei, eu queria dormir, só isso. Um vidro? Acho que sim, qualquer coisa eu tomo o outro. Tem água no copo. É melhor deixar o bilhete à vista, ela sugeriu. Está no paletó. Ela foi até o cabide, tirou a folha dobrada do bolso e ficou na dúvida de onde colocar. Você acha ruim deixar na roupa? Tenho medo que eles não vejam. E na cabeceira? Tira o copo para não molhar o papel.

Ela despeja metade do conteúdo do frasco na palma da minha mão e aguarda com a tampa aberta. Engulo a primeira leva de comprimidos. Só mais uma e termina. Ela me dá o restante e eu mando para dentro com o finzinho da água; me deito para esperar. A Célia me cobre até o pescoço, me beija e volta para o seu lado da cama. Permaneço olhando o teto.

Sou dominado por uma embriaguez sonolenta, cochilo, desperto, cochilo novamente, não sei quanto tempo me arrasto nesse vai e vem. De súbito, uma pontada na barriga me tira do transe. O estômago revira, o intestino aperta, o coração acelera, cólicas anunciam o horror. Suor frio, cãibras, vômito incontrolável. Ergo-me às pressas e me arrasto até a privada. Vomito de quatro e me sento para respirar no chão frio. Vai vir mais. Ou não? Me amparo nas paredes para levantar, bochecho pasta de dentes e tento voltar para o quarto. Paro na porta, outra golfada me cola ao piso. E mais outra, e outra. Bílis. Nada mais pra sair. Fico ereto, respiro, acalmo. Entro no quarto. Percebo a cama vazia. Ela deveria estar lá. Ela não está mais lá. Chamo pelo nome, ninguém responde. Reviro os lençóis, abro e fecho o armário embutido, olho debaixo da cama. Foi-se. Esqueço o mal-estar, a azia, a queimação, e saio pelo corredor. Escancaro as portas fechadas do quarto do Murilo, da Dalva, do escritório, entro na cozinha, na área de serviço, reviro a sala toda, nenhum sinal dela. Desabo na poltrona.

Na mão oposta, um rancor insidioso, mero impulso agressivo, pequeno mas concreto o suficiente para se fazer presente, brota em mim até atingir a razão. O ódio dela, do sadismo dela de me largar sozinho antes de terminar o que veio fazer aqui. Some, filha da puta, desaparece. Trinta anos de desentendimentos e, agora, a estocada final. Eu amei muito você, Célia, depois que você sumiu, eu amei você como nunca achei que fosse amar ninguém. Eu achei que você tivesse entendido isso ali, na cama, no jeito que eu te olhei, abracei e festejei a sua presença. É vingança? É isso? Trinta anos enfrentando a sua carranca para te ver desaparecer outra vez? Belo troco, Célia, belo troco.

Nem o prazer de te largar você me deu. Nem isso. No dia em que eu cheguei de manhã, atordoado, depois da despedida do Sílvio, ali, naquele dia, eu deveria ter abandonado você. Eu nunca contei o que aconteceu nas doze horas que antecederam aquela manhã, e você também não quis saber. Eu esqueci de você naquela noite, Célia, tomei tudo o que o Sílvio me deu pra tomar, bebi o que pude, dancei, cantei, abracei meus amigos malcomportados, fui deles, só deles. Arrastei uma lourinha para o lavabo e, quando ela meteu a mão no meu zíper, levou um choque com o que encontrou. Você tinha que ver a alegria dela, o valor que ela deu para aquilo. Você nunca mencionou o fato, nem nas nossas fantasias, você nunca me elogiou como ela fez. Eu não sou um homem qualquer, Célia, você sabe disso. Como é possível não ter gratidão? Vai perguntar para a Irene o que é conviver com um brocha. Você fingiu a vida toda que aquilo não era importante. Dissimulou tanto que eu acabei esquecendo. Mas, naquela festa de bacana do Leme, que o Sílvio escolheu para nos dizer adeus, com a lourinha de joelhos, devota, incrédula com a boca metida na minha braguilha, eu lembrei do que eu tinha entre as pernas. Arranquei a roupa e fui dançar no salão. Queria exibi-lo ao mundo. Fui posto pra fora a pedradas. Resisti na calçada e ainda virei a última bolinha que o Sílvio me deu. Quando todos concordaram em esticar na Glória, vi que eu jamais seria um deles. Tive vergonha do que havia feito. Quis voltar para casa, dormir, apagar. O resto da minha vida: vocês, o lar, o escritório, os contratos, tudo era incompatível com a sarjeta, as rameiras e os quatro rapazes de quem eu gostava tanto. Eu não tinha a coragem deles. Eu voltei, Célia, e você me bateu com a mão fechada, me bateu na cara, nas costas. Eu me deixei apanhar. Eu devia ter desaparecido pra sempre, mas só fui até o elevador. Eu precisava dormir. E não apareci em casa porque te amava, Célia, voltei porque não podia ser igual aos meus. Por mais que eu quisesse, ou tentasse, eu não seria um deles.

Passei o último ano achando que eu sofria de amor, mas era raiva. Eu não perdoo a sua mesquinhez. Eu fui um marido extraordinário, paciente, bom pai. O que você queria mais? A sua acidez se chama vaidade, Célia. Eu sou melhor do que você. Mais humano, com certeza. Eu teria te deixado quieta, não passaria um ano rondando a sua cabeça, te azucrinando, não viria aqui cometer eutanásia. Vai se foder, Célia. Tira as tuas coisas daqui, some e não me procure mais. Ataco o armário embutido, arranco as roupas dela de lá, jogo no buraco da área de serviço, retorno ao banheiro, atiro a escova de dentes na privada, tento dar descarga. Remexo as tralhas, rasgo as fotos, chuto as caixas, atiro os sapatos longe. Outra fisgada, a lembrança da dor me faz curvar. Regurgito pílulas. Vomito nas dependências de empregada. Me arrasto até a cama e relaxo a cabeça no travesseiro. Daqui não saio mais.

A ira, finalmente, a ira. Eu passei os últimos meses esquecido do quanto eu detestava a Célia. Pena, agora me deu vontade de continuar sem ela. Não vai ser possível. Teria sido bom. Que estupidez eu fiz. A dormência domina as extremidades, nada se move, nem reflexos tenho mais. Só resta a cabeça pensante, os olhos embaçados e a boca amarga e seca.

Enfim só.

 

PADRE GRAÇA acordou de madrugada. Rezou, fez a higiene matinal, comeu pouco, como era treinado a fazer, e acomodou os objetos litúrgicos na mala pequena. O São João Batista estava à espera.

 

Recém assumira a posição de capelão do mais tradicional cemitério do Rio de Janeiro. Era pecado, sabia, mas não conseguia refrear o orgulho. Sem desmerecer Batista, identificava-se mais com Pedro, o guardião da eterna morada. Padre Graça abria as portas na Terra, para que o santo terminasse o serviço no céu. Antes de iniciar os trabalhos, costumava caminhar pelas alamedas, admirando os mausoléus rebuscados e as placas em homenagem aos finados. Vez por outra, trocava as flores mortas. Na volta para a capela, depois de orar na quadra das Irmãs de São Vicente de Paulo, visitava Carmen Miranda, Villa-Lobos e Prestes. Comoveu-se ao descobrir Bento Ribeiro e Ary Barroso. Vivia no paraíso.

Na secretaria, foi informado de que não havia quase nenhuma encomenda para o dia. Pela manhã, um homem jovem, vítima de um tumor maligno e, à tarde, um senhor idoso. Paramentou-se e subiu a escadaria para o carpe diem. Pretendia aproveitar o pouco movimento para se esmerar na prece. No corredor, cruzou com os encarregados da funerária, o defunto acabara de ser despachado na capela 10. Padre Graça olhou pela fresta, não queria intrometer-se em hora imprópria, três homens se ocupavam de decorar o salão. O mais alto esticava o pregueado de renda do tablado, enquanto o careca e o bronzeado discutiam a melhor posição para as duas coroas atrás do féretro. Numa delas, lia-se a curta inscrição: “Saudades, João”. Na outra: “Amigos para sempre, Álvaro, Neto e Ribeiro”. Era deles, dos três. Satisfeitos com a angulação do arranjo, contemplaram a composição fúnebre. Sofriam.

Achando o momento propício, padre Graça apresentou-se e pediu detalhes de Ciro. A cerimônia exigia o resumo da vida do falecido, o pároco gostaria de preparar algo especial para a ocasião. Descreveram o básico: local de nascimento, idade, estado civil, profissão, deram o nome do filho, João, e concluíram com a moléstia. Não durou nem seis meses, informou Neto, sem conter a comoção. Não puderam ir além. Padre Graça tentou extrair novos dados, formulou frases, deu sugestões. Um bom amigo? Concordaram que sim, que Ciro era um grande amigo. Bom pai? Sim, bom pai, garantiram. Mas nada o definia à altura.

 

Ciro era a luxúria, a beleza, o irracional, era o amor virginal, a adolescência, o macho por excelência. A sequência de “bom isso e bom aquilo” não curaria a saudade das bebedeiras, das badernas de rua, da atração pelas mulheres que ele comeu. Ciro, seu padre, era o amante latino, o campeão de boxe, o Orfeu do Carnaval, o fauno, o Cupido em pessoa. Ciro era um deus para os três. Um deus bonito pra cacete, e falho, por ser mortal. Sem nada a acrescentar, baixaram os olhos e se consolaram mutuamente. Algum de vocês deseja participar da homilia?, perguntou Graça às lacônicas ovelhas. A recusa foi unânime. Reagiram como se fossem um só, calaram-se ao mesmo tempo, acometidos de uma sobrenatural telepatia.

Se o Sílvio estivesse aqui…, murmurou Álvaro com timidez. O padre teve a impressão de que riam. Riam. Se o embaixador estivesse presente, pensavam, sem coragem de confessar ao ministro, seria dele o discurso de adeus. Com a habitual frieza e a aristocracia herdada do Itamaraty, Sílvio desafiaria a moral vigente, chocaria os parentes próximos e faria corar as infinitas amantes que, é fato, compareceram às exéquias. Ressaltaria a ausência de Ruth, narraria a paixão e a danação do casal. Condenaria a monogamia. Citaria, uma a uma, as conquistas do guerreiro e confessaria sua atração carnal pelo amigo. Dirigindo-se a Álvaro, Neto e Ribeiro, professaria o fim daquela união e concluiria propondo uma bacanal na Glória, em memória do ausente. Caíram em si pesarosos. Não podiam contar com a eloquência de Sílvio. A essa altura, se o conheciam bem, o louro calvo, escoltado pelas mercenárias gaúchas, já estaria a caminho da Bolívia a cavalo, mascando coca e praticando o Kama Sutra com as cholas do Império Inca.

Caso mudem de ideia, insistiu o padre, me procurem para combinarmos a hora. E se retirou, concentrado nas anotações, ensaiando em voz baixa o sermão que faria. Padre Graça carregava a convicção de que meia dúzia de frases colhidas a esmo aliviaria o coração dos saudosos. Pela dificuldade que enfrentara com o trio, percebeu que “pai prestimoso”, “marido exemplar” e “companheiro fiel” não serviriam de modelo para Ciro. Preferiu se ater à morte prematura. Achou indicado falar sobre a conformação e a aceitação do que parece injusto.

 

— Meditemos sobre a eternidade, e procedamos na realização daquilo que Deus colocou em nossas mãos. Façamos o que é bom e correto.

Findou a passagem imbuído da fé. Era crente. Ainda noviço, auxiliara uma das missas celebradas pelo Santo Padre, durante a visita de João Paulo II ao Brasil. Confirmara, ali, a vocação. Dez anos depois, padre Graça vivia o apogeu de seu entusiasmo católico, a ponto de sofrer delírios de santa Teresinha ao se trancar sozinho, à noite, no claustro de um mosteiro no Centro. Enlevado, não percebeu a desatenção dos ouvintes. Com exceção de Célia, e mais uma ou duas senhoras de idade, rodeava o cadáver uma frente de ateus praticantes. Gente que, no desespero do agora, perdera a noção do bem, do bom e do reto.

Álvaro se vingava de Irene, ao revê-la acabada, preterida pelo galã do clube de remo. Neto e a esposa chegaram brigados. Ela desdenhou de Ciro, logo antes de sair, e Neto lhe devolveu com um tapa na cara. Ribeiro amaldiçoava o defunto pela ruína de Ruth. João preferiu sentar-se longe do corpo do pai, Raquel, se pudesse, cuspiria no ex-cunhado, por deixar o sobrinho viver a reboque do amor egoísta que ele e a maluca da irmã dela nutriam um pelo outro. Ninguém pensava em Jesus, muito menos na eternidade. Cinira, a gordinha do escritório, carpia o fim dos sarros com o chefe no cafezinho. Lílian enterrava a dor do passa-fora que levara de Ciro, no domingo do frango assado, e Milena mancava com o apoio de uma bengala, resultado dos tiros que recebera do ex.

Uma coleção admirável de adúlteras lotava a sessão com decotes, meias de seda e salto agulha. Martas, Clarices e Gogoyas desfilando o olhar pudico, assoladas por lembranças pecaminosas. Deus não estava presente, mas padre Graça não reparou.

Na falta de Ruth, Álvaro, Neto e Ribeiro aceitaram, eles mesmos, os pêsames do pessoal do vôlei, da faculdade, da praia, dos colegas do escritório, de clientes antigos e do mulherio lastimoso que não cessava de brotar da porta. Os enterros de meia-idade são os mais concorridos.

 

Em meio a tantas viúvas, a morte entrou sem ser notada. No momento da meditação, quando o sacerdote pediu um minuto de silêncio para que todos refletissem sobre a correção, uma morena de pele alva, não muito alta, abriu passagem no meio do aperto e só sossegou quando se debruçou sobre Ciro. Álvaro, Neto e Ribeiro seguiram a aparição. Não conheciam aquela, pensaram. Vestia um modelo cinturado de veludo negro brilhante que salientava as ancas largas e generosas. Ela olhava o morto com um amor indecente, superior, consumado. Irresistível visão. Sentiram, pela última vez, inveja do conquistador.

 

Ela mal reconheceu o rosto da vítima à luz da capela, longe do hospital, do quarto e dos tubos na veia. Está mais bonito assim do que na cama, pensou. Tinha loucura por homens de terno. O cadáver de Ciro não era exceção. Os três continuaram atentos. A moça reparou na presença maciça de enlutadas. Mediu-se com todas. Nenhuma fora tão importante. A viúva era ela. Continuou a passar em revista o recinto, até dar com Álvaro, Neto e Ribeiro, olhando-a fixamente da lateral oposta do caixão. Padre Graça atacou o pai-nosso, mas nenhum deles prestou atenção. A morte admirou a elegância do trio, o nó esmerado das gravatas. Seriam irmãos? Não, eram diferentes demais para terem saído da mesma barriga. Teve ganas de dar para os três. E de matá-los, na devida hora. Fazer o quê? Acordara assim, dadivosa. Se pudesse escolher, se encarregaria de Neto primeiro e, depois, dos outros. Imaginou-o acamado, recebendo dela a extrema-unção. Neto enrubesceu com o olhar perverso da misteriosa figura, os dois consortes notaram. Célia também notou. Não tirara os olhos do marido, convencida de que os cinco compartilhavam seus casos furtivos. A insinuação lhe custara a bofetada na cara, mas, agora, a viuvinha oferecida justificava o porquê de querer vê-lo longe dali. Tomou uma reta, enganchou-se no braço do marido e encarou a rival com cara feia. A deusa teve desdém pelo ciúme tosco da megera. Rezou para que Célia empacotasse antes de todos os presentes. Coincidência ou não, Neto perderia a mulher no ano seguinte, e morreria um ano depois.

— Amém, disse o padre, e mandou seguir o cortejo.

 

Álvaro, Neto e Ribeiro dividiram as alças com o pessoal do escritório. A amante que ninguém conhecia fez questão de ir à frente do séquito. O anjo exterminador, a Samotrácia, espreguiçando as asas negras da procissão.

Aglomeraram-se numa sepultura na subida da ladeira, no fundo do terreno, de onde se via o mar de túmulos do cemitério. Ciro foi depositado ao pé da cova.

Padre Graça colheu a pá de terra e prosseguiu com as duras palavras:

— Separa deste mundo a alma deste irmão. Entregamos seu corpo à terra. Terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó. O espírito pertence a Deus. Este é o ponto final de uma vida. No sepulcro não há obras, nem conhecimento, nem sabedoria, e a ele chegaremos cedo ou tarde.

 

Quando? Faltou dizer. De que importa o marasmo eterno? Todos, ali, trocariam mil anos da paz do Senhor por cinco minutos a mais de tortura terrena. Álvaro, Neto e Ribeiro aprendiam com Ciro que seria a qualquer hora, em qualquer lugar, com qualquer um. Faziam contas, calculavam a distância que os separava do fim. Padre Graça levaria mais tempo para externar a revolta pela indiferença celeste.

— Quem será o próximo? — bradaria no velório de Álvaro, vinte e quatro anos depois, para indignação de Irene, que não lembrava daquele idiota no enterro de Ciro.

Álvaro, Neto e Ribeiro acompanharam a descida. A finitude de Ciro pairando ameaçadora sobre a consciência dos três. Quem será o próximo? O simples fato de não quererem o pior para si mesmos implicava desejar o pior para os outros dois. Evitavam o olhar. Saíram em fila com o resto do grupo, atravessaram os portões, deram adeus aos conhecidos. Irene não se dirigiu a Álvaro e Célia foi buscar o carro no estacionamento. Sobraram os três.

Nenhum deles visitou o amigo nas semanas que precederam a morte. Eu jurei que o Ciro ia sair disso, confessou Neto quando ligou para Álvaro e Ribeiro dando a notícia. Apesar do sumiço, Neto manteve contato com a enfermeira-chefe e sabia da piora do quadro. Álvaro e Ribeiro permaneceram mudos no telefone. Neto propôs que cuidassem do enterro. É o mínimo que podemos fazer, disse. Martirizava-se pela covardia, por não ter suportado o convívio com a derrocada de Ciro. Chegava do hospital com ataques de pânico, tonturas, tremedeiras, foi convencido pela mulher a se afastar. Se Neto se sentia culpado, Álvaro era um poço de arrependimentos. Remoía a frieza do último almoço, no Lucas, e a promessa não cumprida de visitá-lo no hospital. Teve horror de si mesmo. Ribeiro foi o último a desistir. Viu Ciro até que o sedaram. Por duas vezes, permaneceu mais de hora no quarto, ouvindo a respiração compassada e os bips dos aparelhos. Achou inútil insistir, preferiu refletir sobre a tragédia do companheiro ao ar livre, olhando o mar e o voo das gaivotas.

Abraçaram-se envergonhados. Haviam traído o companheiro. Tentavam se redimir agora, cuidando do que restou dele. Iriam se encontrar uma semana depois, na missa de sétimo dia, mas já não existia sinal da velha intimidade.

Acabara ali.

Neto, não suportando a ausência da esposa, entraria em depressão no ano seguinte. Álvaro e Ribeiro ainda arriscariam um cineminha a dois com resultados patéticos. No velório de Neto, trocariam acenos formais. Uma competição velada, iniciada no adeus de Ciro e agravada com a partida de Neto, os colocara em lados opostos. A pura existência de um era ameaça para a sobrevida do outro. Álvaro tinha certeza de que iria primeiro, Ribeiro, nenhuma dúvida. A superioridade física lhe dava vantagem e ele revelava uma arrogância que jamais tivera. Ambos erraram na previsão. Décadas depois, ao se cruzarem na Francisco Sá, esquecidos da rivalidade, pensaram em reatar, mas Ribeiro morreria de infarto no dia seguinte.

 

Despediram-se com um abraço envergonhado e se afastaram cabisbaixos. Neto fez sinal para um táxi, mas desistiu da corrida. Álvaro e Ribeiro também pararam para olhar a dama de negro deixar o cemitério. Haviam se esquecido dela, que ficara mais tempo que os outros, para velar a sós o cadáver. A aparição virou à direita, em direção ao Centro, e caminhou a passos firmes, banhada pela luz entrecortada do gradil.

 

A diva continuou o estirão até a Venceslau Brás, cruzando a faixa em frente ao Pinel. Quando sentiu o cheiro do mar, hesitou entre o Aterro e a Urca. Preferiu a Urca, estava leve, queria voar. Subiu o Bondinho. Avistou a cidade do alto, o zigue-zague dos carros, o formigueiro de pedestres e os aviões rumo a São Paulo. Nenhuma morte, nunca mais, ocorreria sem o seu consentimento. A barca solar se escondeu atrás do Cristo Redentor, levando a alma de Ciro para o submundo de Apopis. Maria Clara esperou que o astro completasse o arco celestial. Era dela a encomenda.

 

         CIRO

         2 de fevereiro de 1940 a 4 de agosto de 1990

 

O Júlio ofereceu a cadeira e me pediu calma para ouvir o que tinha a dizer. Fiquei quieto, enquanto ele pendurava as chapas na contraluz. Está vendo aqui? Essa mancha entre o fígado e o intestino? Fiz que sim com a cabeça. Não dá para saber se é maligno ou benigno, mas o aspecto não é bom. Vê? A extremidade estrelada. Nós vamos ter que abrir, Ciro. O quanto antes. Eu já conversei com o Cézar Fialho, ele tem muita prática com esse tipo de cirurgia. Amanhã de manhã a equipe está disponível. Amanhã? É, Ciro, amanhã. Nós temos que tirar isso de dentro de você o mais depressa possível. E depois?, perguntei. Depois vem a químio e a rádio, vai ser longo, Ciro, mas isso é para depois, primeiro você tem que passar pela cirurgia. É de risco? É, é de risco. Vamos extrair uma área grande, para garantir. Quanto tempo eu tenho? Não vamos pensar nisso agora, ele respondeu.

Saí do consultório e caminhei uma boa hora sem direção, os pés mal tocando a calçada. A última vez em Copacabana. O muque do Maciste no neon da academia, o Roxy, o Lido, o Copa e o Calçadão. Não lembro como cheguei em casa. O jornal da manhã ainda sobre a cama, a toalha molhada, o fim do café, restos de uma vida que não me pertencia mais. Arrumei a bagunça e lavei a louça como se limpasse os vestígios do velho inquilino. Preparei a mala pequena do hospital, fui até a janela, acendi um cigarro e me debrucei para ver a nesga de mar. Eu devia dar um mergulho, pensei, o último mergulho. Não tive ânimo, não mais. Nunca mais o mar. Qual foi a última vez? Arpoador, quinta passada, antes da dor persistente me empurrar para a ciranda de médicos e exames clínicos. Água gelada, céu azul, sol quente, o último sol.

O Júlio explicou que eu não podia ficar sozinho, alguém teria que me acompanhar no hospital. Meu filho era pequeno, meu pai falecido e minha mãe frágil demais para enfrentar a notícia, não tenho irmãos. Pensei no Álvaro. Ele vivia deprimido, talvez lhe fizesse bem saber que eu me encontrava em situação pior. Marquei um café. Insisti que tinha que ser na hora do almoço, eu tenho uma coisa pra te contar. Arrependido, botei o telefone no gancho. O Álvaro era de um egoísmo único, mesquinho, medroso, jamais faria nada por mim, muito menos dormir no sofá apertado, ao lado de um doente terminal. Eu precisava da Ruth.

 

Não sei por que fiz o que fiz. Foi o instinto, o pau, a cabeça, a cabeça do pau. Não sei. Mas na hora que o Júlio decretou a sentença, percebi que eu comecei a morrer lá atrás, na festa do primo da Irene, quando cruzei o meu olhar com o da Ruth e fomos tragados pela tempestade.

Disquei o antigo número, a sequência que eu conhecia de cor. Há quatro anos não me aventurava a marcá-la. Raquel atendeu. Desliguei. Saí para encontrar com o Álvaro. O Lucas estava vazio, era fim de almoço. Sentei na mesa colada à vidraça e aguardei. Aproveitei para me despedir da praia e do cheiro de maresia. Minha última visão do mar. O Álvaro chegou logo em seguida, estava sem tempo, era março, o mês do leão. Contou que havia deixado uma pilha de declarações esperando por ele no escritório e reclamou do salário apertado. Tanta gente a depender de mim, argumentou, deviam pagar melhor, vai que um dia me vingo? Ri social. Lembrei do formulário que, em meio às novas, tinha ficado esquecido em alguma gaveta. E se eu sair vivo?, pensei. A malha fina me pega. Melhor morrer no hospital. Abri a conversa por aí, pelo fisco, que era a única realidade que lhe importava:

— Não vou conseguir entregar esse ano.

Ele me olhou espantado, como se o imposto de renda fosse algo da dimensão do sagrado. Eu me atrapalhei no último mês. O problema é que vocês deixam para a última hora, ele interrompeu trivial. Você quer uma ajuda? Foi por isso que você me ligou? Não, Álvaro. Eu não vou declarar os meus ganhos porque não sei se vou estar aqui amanhã. Ele me olhou confuso. Descobriram um tumor, vão me meter a faca para arrancar o bicho de lá. Eu me interno hoje e não tenho com quem ir.

Não tive por onde prosseguir, perguntar se ele viria comigo. O pânico do Álvaro foi quase obsceno. Ele se afastou da mesa como se temesse o contágio. Câncer não pega, filho da puta. Depois, olhou para os lados, queria se escafeder dali, não conseguia esconder; mal disfarçou o desconforto. Não é melhor ouvir uma segunda opinião? Não tenho mais tempo, Álvaro. Vim me despedir, menti. Não contei a ninguém, você é o primeiro. Ele não demonstrou a menor lisonja com o fato, preferia não saber. E eles disseram o motivo? Cigarro, álcool, tem casos na família?, insistiu, medindo os próprios riscos, preocupado com ele mesmo, como todos nós. Não tem lógica, é uma roleta-russa. Eu puxei o gatilho com a bala dentro. O café chegou, esperamos o garçom se afastar. Você vai contar para a Ruth? Não, respondi. Uma falta de assunto constrangedora seguida de um “tenho que ir” dele deram fim ao encontro. Claro, eu não quero tomar o seu tempo. De jeito nenhum, Ciro, de jeito nenhum. É que eu não sabia. Você podia ter me avisado, eu teria desmarcado, dado um jeito. Mentira. Estava aliviado de ter uma desculpa para sumir dali. Eu vou te ver, pode visita? Qual o hospital? Foi a última vez com o Álvaro. Ele nunca apareceu. Logo depois de pagar o café, ele fez questão de pagar o café, pôs a mão no meu ombro, me deu um abraço desajeitado e pediu desculpas pela pergunta que queria fazer. Posso? Espero que sim. Você acha que foi castigo?

O Álvaro parecia imbecil, mas era um sujeito profundo, trágico. Senti um amor incondicional por ele. Eu tinha certeza que era castigo. E isso me trazia conforto, dava ordem à confusa sequência de acasos que me levaram até ali. Ou é castigo, Álvaro, ou Deus não sabe o que faz. Lamentei que não viesse comigo. Rumei na mesma tarde para o Silvestre. Subi a ladeira de Santa Teresa, o mato molhado, o Rio do alto pela última vez.

 

Faz três meses.

Arrancaram um terço do fígado, um metro de intestino, o pâncreas e a vesícula, tudo de uma vez, costuraram e me deitaram aqui. O Júlio finge otimismo e eu faço de conta que confio nele. O Fialho eu não vejo desde o pós-operatório. Minto, de vez em quando ele me presta visita, a caminho de uma das suas carnificinas. O Fialho é de uma vaidade revoltante, gosta de mostrar as tomografias das vísceras dos penitentes, enquanto descreve os detalhes das torturas que pratica. Merecia cadeia. E é dono de uma prepotência esnobe, ariana, um ser desumano, detestável. Ele sumiu depois que os oncologistas tomaram o poder. O Fialho não suporta a concorrência, tem complexo de inferioridade, sabe que não passa de um bombeiro hidráulico. Sobrevivi ao Fialho e, agora, o Júlio está livre para me matar com radiação.

Você entra no hospital com uma doença e contrai outras, muito piores, oportunistas, crônicas e agonizantes. Fui vítima de fungo, vírus, bactéria, ameba, germes e derivados. A cistite me faz urinar sangue, já usei sonda no pinto, cateter no peito e dreno no pulmão; meus cabelos caíram e não como há uma semana. Estou bem fraco. Me arrasto pelo corredor, para fazer exercício, dizem. Preciso de ajuda para ir ao banheiro e vivo agarrado à torre. A torre, minha amante fiel. O varal de sacos plásticos a me injetar veneno. Antifúngicos, antibióticos, antivirais, antis, antis, antis, nada a favor. Expliquei ao Júlio que não tinha ninguém para ficar comigo e ele contratou um serviço de acompanhante. Nunca soube o que era pagar por companhia, agora sei. São três que se revezam. A Eneida, a Gisa e a Maria Clara. A Eneida é uma senhora bem-humorada que sabe ser dura nos dias de desespero. A Gisa é muito distante, não ligo pra ela, e a Maria Clara acabou de entrar, no lugar da Lívia, que engravidou e não pode mais frequentar o ambiente hospitalar. Eu gostava da Lívia.

Não sei nada da Maria Clara, não tivemos tempo de nos conhecer. É mocinha, bonitinha, deve ter namorado. Ando fora do ar. O fungo tomou o pulmão, a cistite alcançou os rins e ainda faltam dezenas de sessões de químio. Aumentaram a morfina essa semana. O Júlio não me disse nada, e nem precisa, porque sei quando estou doido. E doído. E por isso doido, porque doído. O Sílvio ia gostar. Aguardo ansiosamente a próxima dose e pioro o quadro, para ver se eles dobram. Nada mais apavorante do que um dia inteiro de cama pela frente seguido de uma noite maldormida. Santa morfina, alívio para a dor e a lerdeza das horas.

Por que a demora? Quero apagar, esquecer, sair daqui.

 

Eu acordei do lado dela, era um dia igual aos outros. Mas despertei antes da Ruth, o que não era comum. Fiquei deitado, olhando para ela. Não havia centímetro quadrado daquela mulher que eu não conhecesse. Eu visitara cada dobra e orifício dela. Por dez anos conquistamos as terras vizinhas em infinitas primeiras vezes. O elevador foi só o começo da extensa invasão. Quando nos transformamos em amantes maduros, casados e desinibidos, a vontade de procriar nos trouxe um novo alento. Trepamos solenes, emocionados. E os peitos dela de leite, e a felicidade de ter feito alguém que era metade ela, metade eu, tudo isso nos varreu como uma onda quente por quase dez anos. Mas, nesse dia, olhando para ela na cama, percebi que não havia mais nada a ser conquistado. Ela ainda era bonita, não tinha a ver com beleza. Minha surpresa era perceber que nada em mim, nem um pelo, nem um poro, nem uma mísera célula ansiava por um pouco daquela mulher. A Ruth abriu os olhos e se surpreendeu ao me ver acordado. Sorriu. Eu me levantei para o dia. Aconteceu alguma coisa? Não, nada. Eu conheço você. Esse era o problema, Ruth, nos conhecíamos demais.

No fim do expediente, liguei para o Neto, nos encontramos no Amarelinho. O Sílvio tinha acabado de se separar e o Álvaro ainda estava com a Irene, confidente da Ruth, eu não queria que nada chegasse na Ruth. Você ainda gosta de trepar com a Célia?, perguntei. O Neto ficou surpreso com a crueza da questão, riu, refletiu e devolveu sincero: Não penso nisso, acho que sim, não sei. É a minha vida, não tenho outra. Mas você não sente falta do desconhecido, Neto? Da corte? Do perigo? Do sexo anônimo? Da incerteza quanto à próxima vez? Ele explicou que sentia pela Célia um carinho familiar, gostava da casa arrumada, de ver os filhos saírem para a escola e de ter alguém para deitar do lado. Trepamos bem. Ainda trepamos bem. É um pouco metódico, é verdade, mecânico, mas sempre foi assim. A Célia é bastante moderada. Executamos o mesmo rito, que serve bem a ambos, gozamos juntos, eu sei esperar por ela, acho que estou satisfeito. Devo estar, porque não penso nisso.

A doença era minha. Desconfiei que a fúria amorosa que me devorou no elevador vinha cobrar a conta agora, dez anos depois. Eu não sobreviveria com a mesma resignação do Neto.

 

Abri a porta de casa, não era mais eu, era outro. Ela notou e perguntou se eu estava bem. Respondi que eu estava bem, que já tinha dito que estava bem, e o que não me deixava bem era o fato dela querer saber se eu estava bem. Entrei no banheiro, bati a porta, liguei o chuveiro. Tomei um banho demorado. Quando saí, a Ruth estava na sala vendo TV. O João já tinha ido pra cama. Eu me meti no quarto, entrei debaixo do lençol, apaguei a luz e virei para o lado, irritado comigo mesmo. Por que fizera aquilo?

Não sonhei. Despertei com ela do lado, olhava o teto. Estava esperando você acordar, disse. Um manto pesado havia caído sobre nós dois, tão inesperado e intenso quanto o amor de antes, mas diferente, sombrio, desolador. Sentei de costas pra ela, pensei em dizer alguma coisa, mas continuei calado. Fui escovar os dentes. Ela me esperou voltar, exigiu uma explicação. Não é nada, Ruth. Como, nada, Ciro? Eu te fiz alguma coisa? Não, você não fez nada. Então, qual é o problema? O problema, Ruth, é o nosso casamento. Ela empalideceu, como se tivesse recebido a notícia da morte de alguém. Se ficássemos ali chafurdando, seria pior, já estava pior. O pequeno desconforto de ontem dera frutos, frases, brigas e indagações, era preciso estancar a sangria. Eu vou trabalhar, Ruth, e acho que você deve fazer o mesmo, não sei o que há comigo. Me perdoa, eu tenho hora na cidade, vamos conversar à noite.

Ela não foi trabalhar.

Atendi os clientes, resolvi uns problemas no fórum, a tarde caiu, a noite chegou. Saí pela rua como se não houvesse ninguém. E se fosse assim? Dez anos depois do furacão eu voltava a ser eu, como sempre fora, antes de ser tragado por ela. Vaguei pela Ouvidor, Cinelândia, e fiz sinal para um táxi quase chegando ao Aterro. Princesa Isabel, ordenei. Saltei no Frank’s Bar. Sentei no sofá do fundo, duas meninas nuas se contorciam no palco, pedi um uísque e me deixei estar. Era livre. Uma garota pediu licença para sentar, preferi ficar a sós, ela deu meia-volta e foi para a mesa perto do palco, onde um barbudo bebia um Campari. As strippers terminaram o número e um casal entrou em cena segurando um lençol desbotado. Eram casados, estava na cara que eram casados, via-se pela passividade com que esticaram o pano e se deitaram no assoalho. Triste cena. Ele estava meio lá, meio cá, o que o obrigava a apertar a base do pau para mantê-lo ereto. Ela não era bonita e possuía um corpo pequeno, banal, igual a tantos outros. Devia ser a enésima vez que fornicavam naquele dia. E, mesmo pagos para ficar de sacanagem, mesmo assim, faziam cara de paisagem, entediados, frios. A intimidade destrói a libido, tive certeza. Éramos eu e a Ruth. Nós dois. O que o casamento havia feito de nós dois. Não tem mais volta, pensei. Deixei uma nota de mil na mesinha, levantei e saí da boate inquieto. Bendito fumacê dos carros. Corri até o orelhão e liguei para o Sílvio. Marcamos no Antonio’s. Cheguei antes. A velha cafajestagem. Homens livres, como eu gostaria de voltar a ser. Um deles, vermelho pelo excesso de malte, narrava eufórico a cantada do Tarso na Candice Bergen. Onde é que eu me enterrei esses anos todos? Todo mundo comendo todo mundo, e eu metido naquela fidelidade sem solução.

O Sílvio chegou animado, tinha um compromisso para mais tarde. Estava radiante como há tempos eu não via. Conta aí, Ciro. Conta você, como anda a vida de solteiro? Se melhorar, estraga. E deu uma risada solta, chamando o maître. Um Black Label, pediu. E aquele amor de romance? Fala para eu ter inveja. Vai bem, respondi. Eu não queria falar da Ruth. A sua vida é tão perfeita, Ciro, que, às vezes, me dá vontade de cuspir na tua cara. E riu irmão, chacoalhando o gelo no copo, até dar um gole e mudar de tom. Sílvio debruçou sobre a mesa e sinalizou para que eu fizesse o mesmo. Segredou. Se eu te confessar uma coisa, você jura que não conta pra ninguém? Jurei. O Sílvio abriu um sorriso maroto, vê lá, hein? Vê lá! Olha a responsabilidade! Pois o Silvinho aqui está vivendo a primavera, Ciro, sobrevivi ao tortuoso inverno. Depois de aguentar a cara feia da minha sogra, as rezas da Norma, a chatice daquelas crianças, o cheiro de alho no café da manhã, eu voltei a ser eu, Ciro. Aquele casamento, se eu continuasse ali, eu ia me transformar num eunuco, Ciro, meu pau ia diminuir, murchar até virar uva-passa. O Neto aguenta porque ele tem de sobra, mas eu não posso desperdiçar. Você tem sorte, casou com a Ruth, mas a Norma esgotou em um mês. Eu me segurei porque ela não dava defeito, mas não temos picas em comum. E agora vem o segredo. Atento? Atento. O balde entornou porque uma madame de Ribeirão bateu os dentes para a mãe da Norma que eu estava de caso com uma hippie de Bauru. Pois sabe quem é a hippie de Bauru, Ciro? Não, Sílvio, eu não sei quem é a hippie de Bauru. Segredo? Segredo. Não quer adivinhar? Não. É a Suzana. Que Suzana? Como, que Suzana? A do baseado, a do Ribeiro, porra!

A revelação não foi surpresa. Do Sílvio, se esperava tudo, e daquela guria, nada menos do que isso. A parte do eunuco, no entanto, me acertou em cheio. A visão do castrado.

É ela que eu vou encontrar. Ela e uma amiga dela, a Brites. E fez um movimento de cobra repugnante com a língua, para dizer que comia as duas. Eu sempre achei asquerosa a maneira como o Sílvio falava de sexo. Quando bebia, saía beliscando os outros, uma coisa suspeitíssima. Meu ideal de felicidade era bem diferente do dele. Certamente mais conservador que o dele. Nunca humilhei meus amigos por ser o que eu era. Nasci bonito pra cacete, boa-praça pra cacete, as mulheres tremiam de antecipação. Era assim sem que eu fizesse força. Me tranquei dez anos num estábulo, não mais, o Sílvio está coberto de razão. À primavera, brindamos.

Altos, deixamos o Antonio’s e descemos a pé pela Bartolomeu Mitre. O Sílvio querendo me arrastar para o Shirley, onde a Suzana chupava frutos do mar com a Brites. Mexilhão…, insinuou, abrindo uma concha imaginária, repetindo a língua de réptil. Eu entendi, Sílvio. De lá, elas vão para uma festa de um pessoal de teatro. Hoje você não vai pra casa, Ciro, eu proíbo. Amanhã manda a Ruth me telefonar que eu explico pra ela que um patrimônio que nem você tem que ser dividido com o resto da humanidade. Explica, Sílvio, explica isso pra ela. Pegamos as duas no Shirley e nos mandamos para um casarão velho em Santa Teresa.

 

O mundo mudou muito desde a última vez que eu saí, constatei. Uma androginia alarmante. Uns bichos fêmeas. Todo mundo passando a mão na bunda de quem chegasse perto. Recusei o Mandrix do Sílvio, achei melhor ficar sóbrio. Logo na chegada, duas bibas que viviam de fazer pochetes se chegaram com os olhos lânguidos, perguntaram se de onde eu vim tinha mais. Eu ri e elas deram um gritinho. Uma revoada de amigas parrudas ouviu o chamado e veio admirar o pitéu. O enxame pousou em torno de mim num não acabar de mãos-bobas. Quem me salvou foi o Sílvio, enxotou a passarada dizendo que eu tinha que respirar. Fomos para a pista. Lança, menina… lança todo esse perfume… ridículo acompanhar. Fui para um canto olhar a vista. Pensei na Ruth, lá embaixo, louca sem mim. Parado próximo à amurada do sobradão decadente de Santa Teresa, cogitei a possibilidade de voltar, pedir desculpas e ignorar aquela manhã fatídica em que eu acordei antes dela. O Sílvio reapareceu com uma vodca. Se divertindo, Ciro? Tentando. Eu larguei a Ruth, Sílvio, deixei ela em casa e saí batendo a porta. Não tenho como ir pra casa. Ele arregalou os olhos. Largou, largou mesmo? Ou largou mais ou menos? Não, acho que não, ainda não. Não sei. Meu querido, o não sei é a fase mais exaustiva de qualquer desquite, o resto vem naturalmente. Estou desconcertado, achei que você e a Ruth eram imunes às tentações. Pensa bem, Cirinho, vai ter fila de mulher para dar pra você, exclamou profético, mas você vai aguentar ver a Ruth solta, Cirinho? Pensa bem. Você vai entregar aquilo tudo de mão beijada para outro? Cuidado com o Ribeiro! O que tem o Ribeiro? Sei não, mas tenho o palpite que o Ribeiro sempre quis comer a tua mulher. E me carregou para dentro. Não vamos desperdiçar a sua crise! A Suzana e a Brites surgiram do nada e adentramos o interior abafado. Um cheiro de maconha empesteava o ambiente escuro. Algumas pessoas se agarravam no sofá, rodando o baseado de boca em boca. Minha cabeça não parava de dar voltas com a revelação do Sílvio. O Ribeiro queria comer a Ruth. O Ribeiro ia comer a Ruth, o Ribeiro podia estar comendo a Ruth naquele exato momento, enquanto eu perambulava no comes e bebes alternativo. Desviamos da fila do banheiro e subimos uma escada tomada de mulheres e homens maquiados de strass. Atingimos o segundo andar, onde um corredor curto terminava em várias portas. Escolhe, disse o Sílvio. O quê? Como, o quê? Escolhe a porta, porra. É hoje, Ciro! A Suzana e a Brites riram cúmplices. Eu escolhi a do meio, só por escolher, concentrado no ciúme da Ruth. As duas viraram a maçaneta e o Sílvio, antes de atravessar o batente, me mandou um tchauzinho sacana, te vejo já, já, disse. Entramos. Breu total, gemidos e o tranco do ar-condicionado. Alguém segurou meu saco, uma língua me furou a orelha e uma mão insistente tentou baixar a calça. Impedi, como pude, que um bigode me violasse a boca. Nojo do cheiro azedo daquele quarto, do incenso tântrico, daquela falta de macho e fêmea, da Ruth. Saí me debatendo com as ventosas sedentas, torci a mão que insistia em me bolinar. Desci desabalado a ladeira até a rua dos bondes, atravessei o túnel num táxi caindo aos pedaços. O prédio que não chegava nunca. Subi correndo, quase derrubei a porta, cruzei o corredor chamando pelo nome dela. O quarto. A Ruth em pé. O meu nome é Ciro, eu disse, sou advogado, casado, tenho um filho e ninguém vai tirar você de mim. E me agarrei a ela como da primeira vez. Passou, pensei. Passou. Me perdoa, Ruth. Não vai acontecer mais.

 

Ela era tapada e baixinha. Medíocre, servil e assanhada. Não valia uma pestana da Ruth. A firma pegou fogo no arrasta-pé de fim de ano, eu bebi muito, não lembro direito. A Cinira veio gulosa, eu achei graça naquela porquinha trôpega abrindo o meu cinto e me chamando de doutor. Não tinha nada a ver com amor, era só baixaria. Eu ri, enquanto ela lutava para se livrar da roupa apertada. A Cinira entalou na blusa de lastex, eu saquei ela de dentro aos solavancos, trocamos uns beijos melados com a cabeça dela ainda presa na manga e tivemos um frouxo na hora de arrancar o último tufo de cabelo preso no botão da gola. Quando olhei para aquela tampinha pelada, ansiosa de excitação, me atraquei no corpinho de barril e não levei meio segundo para terminar. Uma porcaria de uma trepada de bêbado custou uma noite inteira de lamúrias e acusações. Não adiantou eu dizer que a Cinira era ninguém, era uma cachaça, um deslize, que nada tinha a ver conosco, que morria ali. A Ruth ensaiou outro acesso. Eu não aguentava aquilo. Ela devia se dar ao respeito, demonstrar algum amor-próprio, me dar um corno corretivo, ir procurar o Ribeiro, mas não, ela preferia se fazer de coitada, uma chata. Ruth, eu disse, você é uma chaaaaaaata! E dei-lhe as costas, precisava dormir. Cochilei umas duas horas no sofá do escritório e acordei com torcicolo. Ainda estava irritado com ela. Levantei como pude, catei uma muda de roupa e fui embora sem avisar pra onde. Não apareci no Natal e nem no Ano-Novo.

A Ruth foi internada na manhã do dia 1o.

O Sílvio me deu abrigo. Passei o réveillon com ele, a Suzana e a Brites. Elas me apresentaram a Marta e, à meia-noite de 80 para 81, pulamos sete ondinhas no Leme. Ela quis porque quis dar pra mim na água, disse que era superstição, eu fiz a vontade dela, pelo menos uma mulher eu deixo feliz, pensei. Depois, voltamos todos para a Glória. Acordei de ressaca, culpado com o que havia feito. Bati em casa no fim da tarde, a empregada avisou que o João estava com os avós e que d. Ruth tinha ido para o hospital com a irmã.

Fui tocado pra fora pela Raquel. A Ruth estava sedada. Aguardei na recepção perdido, subi de volta e convenci a minha cunhada a sair. A Ruth só acordou de manhã, estava com sede. Quando me viu, começou a chorar. Eu a abracei, deitei na cama, jurei que nunca mais faria aquilo. Ela dormiu recostada em mim. Quando voltamos para o nosso apartamento, fiz questão de carregá-la no colo até o quarto. Nos amamos como noivos. Cinira… imagina, a Cinira, como a Ruth era tola de se comparar à toupeira da administração.

 

Em maio, o mês das noivas, peguei um caso de desapropriação de um terreno em Ipanema. Os especuladores avançaram pelo bairro que nem enxame de abelhas. O dono de uma construtora de grande porte estava com uma obra embargada, a prefeitura descobrira uma fraude nas certidões do lote de trinta por cinquenta da Nascimento Silva. Eu desenrolei o processo e o bate-estaca voltou a atormentar a redondeza. Em retribuição, me foi oferecido um jantar. Não levei a Ruth, disse que era trabalho, e era. O apartamento metido a chique, com vista para a Lagoa, era muito apertado e sem ventilação. Pé-direito baixo, quartos de dois por dois, esquadria de alumínio, vidro fumê, lavabo sem janela e bancada de granito na cozinha. O novo padrão de moradia do qual aquela gente tanto se orgulhava. Cada pombal erguido recebia o nome de um europeu célebre: Vivaldi, Monet, Rimbaud, aquele se chamava Voltaire. Milena veio até a porta para me receber com o marido. Ela era bonita pra cacete. Fui apresentado à fina flor do mercado imobiliário, ricos gordos, de Rolex, apinhados no conjunto estofado de couro do living. Ouvi elogios, fingi modéstia, colecionei contatos. Na segunda, a secretária avisou que a d. Milena, mulher do construtor, estava marcada para terça. Falou o assunto? Não, não falou o assunto.

Afastei a cadeira para ela sentar, dei a volta na escrivaninha e me acomodei para ouvi-la. A Milena se superava à luz do dia.

— Eu quero me separar — me disse ela. — Você acha difícil?

Eu fiquei tão sem ação que devolvi a pergunta:

— Difícil em que sentido?

— Você acha arriscado pedir o desquite?

— Ele é um homem bem-sucedido, não deve ser fácil abrir mão de um casamento assim. Suponho que não.

— Ele fala muito bem de você.

Que conversa era aquela? Procurei manter a fleuma.

— Milena… Posso te chamar de Milena?

Ela consentiu.

— Eu advoguei para a outra parte, raramente atuo em vara de família, só quando tenho um imóvel preso em litígio, e só assim. Não seria ético e, muito menos, honesto aceitar…

— Você entendeu errado. Eu não quero a sua ajuda profissional.

E me olhou séria. Demorei um bom minuto para processar. Tratava-se de uma cantada de gente grande, com hora marcada. A Milena era muito mais agressiva do que eu. Deus é testemunha, não trocamos duas frases naquele jantar, nos ignoramos por completo, eu passei a madrugada ouvindo os planos da nata do boom imobiliário para destruir o Rio de Janeiro. Eu não estava atrás, mas ela veio, caiu do céu igual manga madura. Como dizer não? Uma mulher daquelas pedindo que eu a livrasse do carnossauro do marido dela, dos banquetes de engenheiro, das viagens à Disney. Por que a Ruth não fazia o mesmo com o Ribeiro? O casamento não pode matar a aventura de cada um. Aquilo estava acontecendo comigo, só comigo, a Ruth era livre para ter o que fosse dela. Ou isso ou aquilo é o cacete! Isso e aquilo. Disquei o número do Sílvio no banco sem tirar os olhos da lenhadora. Pedi a chave da Glória, ele cedeu de imediato, o Sílvio era muito solidário nesse tipo de situação. Escrevi o endereço e o horário, meio-dia e quinze, num papel timbrado.

— Talvez eu possa ajudar — eu disse, e entreguei a nota na mão dela.

Milena guardou na bolsa, se levantou e saiu como entrou.

 

Nos encontrávamos na hora do almoço, depois eu engolia um sanduíche e voltava para a realidade. Mantínhamos a rotina de casados, cada qual com o seu cônjuge. A Milena era um colosso, criativa, fina. Me deu um terno importado de presente para que eu a comesse a caráter. Não fosse a Ruth, eu teria me casado com ela. Mentira, eu não faria isso. A Milena levou cinco tiros do marido em Búzios, sete meses depois do nosso caso. Duas balas atravessaram a coxa direita e as outras fincaram na parede da casa colonial Cabo Frio que ele construiu para ela na Ferradura. A Milena colecionava histórias, eu não sabia. Logo depois de mim, emendou o romance tórrido com o sócio da construtora. Ela odiava a mulher dele. Nós ainda estávamos juntos quando a Milena telefonou para o coitado dizendo que o amava à loucura. Ele caiu, não tinha como não cair. Milena combinou de passar o fim de semana com ele no Maksoud, mas exigiu que trouxesse a cacatua. A cacatua? É, a cacatua. Era um capricho dela, ele teria que levar a cacatua de estimação, que o casal mantinha numa gaiola gigante na sala, para São Paulo. Ele riu do absurdo, tentou negociar, mas não teve jeito, já estava decidido. Na sexta à tarde, rumou para o aeroporto com o bicho apertado num engradado para gatos, para ser flagrado pela mulher com a ave rara e a Milena no portão de embarque. A amante arrumou um jeito de fazer com que a outra ficasse sabendo, a cacatua era a prova da submissão do esposo. O outro tomou conhecimento da traição e ensandeceu, havia precedentes, Milena nunca foi fácil. Mas atacar o sócio, irmão dele, era inaceitável. Um homem não aceitaria. Cego de ciúme, botou o revólver no bolso, rumou para a Ferradura e descarregou o cartucho na Milena.

Terminamos bem antes de tudo isso e de forma não menos desastrosa. Ruth não desconfiava de nada. Eu era presente, companheiro, andava feliz, feliz pra cacete. Um dia, eu esqueci que tinha marcado de ir com ela ao dentista do João, meu filho, que ia botar aparelho num consultório no Centro. Eu não estava no escritório quando ela passou para me pegar. Descuidei da hora, a Milena gostava de me fazer perder a hora. Meu esquecimento disparou os alarmes da Ruth, ela deprimiu e levou o lar para o buraco com ela. Milena virou o meu sol. Fiquei obcecado por ela. Um dia, a Ruth, louca, foi para a porta do escritório me vigiar. Eu saí sozinho e peguei um táxi para a Glória, onde a Milena me aguardava. A Ruth foi atrás e deu um jeito de subir. Eu não sei se eu não tranquei a porta, ou se foi a Milena, não sei, só lembro do rosto da Ruth materializado no meio do quarto, gritando comigo como uma gralha eriçada. Eram tantos impropérios que eu parei de ouvir, anestesiei. Levantei da cama, vesti a calça, a camisa, recolhi o que pude e saí a caminho do elevador. Ela veio berrando no meu ouvido. Desci ao som dos urros dela. O elevador de outrora, o antigo veludo da voz dela, a última vez como estranhos. Como pode o mundo girar tão rápido?

O rugido da rua foi um alento aos sentidos. A voz estridente ficara pra trás. Peguei um táxi, tudo normal, tarde de sol, Rio de Janeiro, o Aterro, o túnel, Copacabana, drama nenhum, cheguei a me convencer disso. Tomei um banho, liguei a TV, comi uma besteira, até que ela chegou transfigurada. Neguei, neguei tudo, neguei completamente, considerei absurdo o que a Ruth contava. Reafirmei que estivera em casa todo aquele tempo e, num misto de diversão, doença e falta de caráter, não sei, insinuei que, talvez, ela estivesse perdendo o juízo. A Ruth comprou a ideia, parou, sentou-se à mesa de jantar e pediu um copo d’água. Suas mãos tremeram para levá-lo à boca. O olhar ficou vago, vazio, os gestos lentos, como se toda ela pudesse quebrar. A Ruth levantou, apoiando-se nos móveis, foi até o quarto e se deitou vestida. Passou a noite em claro, calada, pupilas fixas no lustre. Não comeu no dia seguinte, não se levantou, não tomou banho, não se moveu. No terceiro dia, chamei o médico e ele achou melhor internar. Voltei para casa sozinho, o João chegou da escola, jantamos, ele perguntou quando a mãe voltaria, eu disse que não sabia. Ela recebeu alta um mês depois, mas foi diferente da primeira vez. A Ruth chegou apática, bolada, parecia um espectro dela mesma. Não houve reconciliação, não celebramos coisa alguma. Era um pesar tão negro, tão fundo, que não permitia gozo nem dentro e nem fora do lar. Eu disse adeus à Milena, ela já estava focada no sócio, além de ter ficado horrorizada com o chilique da Ruth. Milena não lamentou o nosso fim. Ela tinha desprezo pela minha vida conjugal. A minha e a de qualquer um.

Enfrentei a convalescença da Ruth por meses, até que a comichão voltou a me importunar. Ela deixou de ser mulher, não se cuidava mais, não guardava nenhuma cerimônia comigo, mal nos falávamos. Eu esperei passar, sem saber o que era esperado de mim. Só mais tarde entendi. A Ruth aguardava a traição, o bote, só assim recuperaria a razão. Não havia nada de frágil nela, era uma emboscada.

Não demorei a cair. As mulheres abstraem facilmente do sexo, os homens não. Eu não. Depois de três meses culpado pelo desacerto da Ruth, voltei a sair com a turma e as mulheres não tardaram a me cercar. Eu não queria nenhuma e queria todas. Sempre pela primeira vez. Três com a mesma era raro. E foi assim que comi a Bete, a Marga, a Clara, a Ana, a Sônia, a Cláudia, a Andrea Marques, a Andrea Souza, a Maria João, a Claude, a Cristine, a Gabriela, a Amora, a Paula, a Lu, a Paula Saldanha, a Ana Cristina e a Cristina; a Roberta, na escada de incêndio, a Mirela da farmácia, a Gorete da praia, a Rita e a Brenda, de Nova Jersey; a Cora em Recife, a Úrsula do Paraná, a Brígida do 306; a Marina, a Ana Luísa e a Míriam… a Biba e a Marcela. A Marcela. Eu lia Machado para ela, “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. Ela ria e não entendia nada. E nem deu tempo de explicar, porque surgiu a Adriana, e depois a Celina, e depois a Simone, a Aline, a Mônica e a Luciana. Não sei quem veio antes e quem veio depois, só lembro do milagre da multiplicação de peitos.

 

Eu dormia raramente em casa, passava para pegar a correspondência, comer alguma coisa e ver o João. A Ruth parou de falar comigo. Só me olhava de longe, como um juiz, soberana na certeza de que eu não valia nada.

Foi quando conheci a Lílian. A Lílian era professora de literatura da PUC, o caso mais sério que me aconteceu. Eu sentia falta de ter uma conversa decente com uma mulher decente. Algo além da fornicação e do voto de silêncio que a Ruth me impôs. A Lílian era culta, ao contrário das outras, além de uma amante dedicada. Passei a dormir no apartamento dela com frequência. Dava um pulo para deixar a roupa suja em casa e já tomava o meu rumo, cada vez mais magoado com a Ruth. Eu fui responsável pelo horror que estávamos vivendo, mas ela tomou as rédeas da carroça e apontou para o desfiladeiro. Cortou qualquer possibilidade de amor, me expulsou da sua intimidade e se fechou como uma ostra. A Ruth foi de uma passividade assustadora. Não queria mais ser minha, mas também não abria mão de mim. Ela esperava que eu a largasse. A prova cabal da minha incapacidade de amar.

Se é assim, pensei, que seja. Arrumei um canto, um lugar para poder estar com a Lílian, com os meus discos, meus livros. Vagou uma cobertura pequena, na Santa Clara, um colega casou e quis passar o contrato. Fechei. Não disse nada. Devagar, fui levando as poucas coisas que me cabiam: o que sobrava da infância, os livros da universidade, os LPs do Grappelli, do João, dos Beatles e do Cat Stevens.

A Lílian ajudou a arrumar tudo, escolheu o fogão novo, ela gostava de culinária. Um dia, me dei conta de que caminhávamos para uma união estável. Foi num domingo de sol, depois da praia, tomamos banho, trepamos, eu liguei a TV no futebol e sentei para comer. A Lílian surgiu da cozinha com um frango assado recém-tirado do forno e o serviu na mesa bem posta, fez meu prato, o dela, e se pôs a mastigar. Travei. Não toquei na comida, não ousei, jamais trairia a Ruth daquela maneira. A Lílian foi até a sobremesa sem perceber minha irritação. Quando se levantou para pegar o café, segurei o braço dela e disse que não precisava. Ela me olhou espantada. Eu não quero começar de novo, Lílian, mal larguei minha família e já estou aqui, com você coando café pra mim. Você não vai gostar de me conhecer. Eu matei a minha mulher. Talvez você seja menos frágil do que ela, mas, se esse é o caso, você não serve pra mim. Amo a doença que a Ruth tem por mim, e te amaria, se você sentisse o mesmo. Mas algo me diz que você, no lugar da Ruth, já teria me mandado andar. Então, mando eu, você andar. Não vou cair nessa arapuca de frango assado, no delírio da cara-metade, da alma gêmea, dessas idiotices que inventam para nos arruinar. O sexo vai piorar, depois virá o mau humor, o tédio, as agressões, as brigas. Melhor parar por aqui.

Lílian catou a bolsa e me fitou chocada, ainda era muito jovem para enxergar o breu do poço, mas levou a sério o aviso de se afastar. Foi o que fez, nunca mais a vi. Sozinho, na sala da cobertura da Santa Clara, com o frango assado da Lílian me olhando do pirex refratário, percebi o quanto a morte estava à espreita. O nó górdio do tumor de origem, no lado direito do pâncreas, desatou, tenho certeza, naquele exato momento, e se dividiu em mil células podres, que se espalharam pelos meus órgãos e fizeram a festa.

Caí na gandaia.

Do João, eu falava com a Raquel, ou com os advogados. Pagava pensão, tudo em dia. A Ruth parou de existir. Não deixou de ser um alívio. Eu sonhava com ela, conversávamos, fodíamos, brigávamos, era bom, a única forma de aliviar a saudade. Várias vezes, eu quis ligar para ela e dizer que havíamos passado a noite juntos, mas não liguei.

Preferi a companhia do Sílvio. Perambulei pelas baladas mais loucas, cheirei o que não devia e me empenhei naquelas surubas brochas. Quando o Sílvio confessou que estava de partida para o Sul, achei até bom ter um descanso. O sonho dele era ver todos juntos, numa bacanal de comparsas. Ele conversava muito sobre isso comigo. Afirmava que a experiência curaria o Álvaro da impotência, o Neto da monogamia e o Ribeiro da infantilidade. O Sílvio tinha uma teoria séria a esse respeito. Mas o plano não saiu como previsto. Na prática, a teoria é outra. Acho que ele ficou chateado de eu ter levado a argentina para o quarto, chegou a comentar comigo no telefonema do dia seguinte. Estava frustrado. Neto e Ribeiro passaram a vez, Álvaro falhou, como esperado, e ele dormiu nos braços da Xica da Silva. Foi um anticlímax, reclamou, antes de partir para sempre. Um ano depois, por aí, senti uma pontada no lado direito do abdome. Minha pele ganhou um colorido amarelo-xixi, o xixi ficou preto e trataram como se fosse hepatite, mas era muito pior. Agora, estou aqui.

 

Que horas são? Anoiteceu. Eu dormi. Devo ter dormido. Já me aplicaram? Certamente que sim. Cadê a outra dose? Quero voltar para onde eu estava.

Tem alguém no quarto.

A falta de privacidade é o grande abuso da rotina hospitalar. As portas não têm tranca. Os enfermeiros, os faxineiros, os médicos, qualquer um entra a hora que bem entende, falam alto, mexem em tudo. Limpam o chão, trocam sonda, futucam, apalpam, furam, é um pesadelo. A letargia me impede de perguntar quem é. Não tenho força, sou só pensamento. É uma mulher. Nova. Não é a Eneida. Não. Não é a Eneida. Não é a Gisa. Quem é? Quem é? Tento balbuciar um som audível, mas os lábios não mexem. Ela checa a veia, tira a temperatura e injeta veneno no soro. Minha mão escorrega para fora da grade da cama e pousa nas ancas dela. São firmes, como as da Ruth. Que dia é hoje? Sexta, ela responde. Sexta que dia? Quatro de agosto, ela fala. De que ano? Mil novecentos e noventa. É uma bela data, pensei. Eu estou dormindo há muito tempo? Há uma semana, ela responde. Uma semana. Uma semana que eu não vi passar. Bênção. Se eu estivesse preso, denunciaria todos eles por tortura. Preso, pagaria a pena e sairia vivo. Não é o caso. Não, não o meu caso. Estou na boca do corredor, amarrado à cadeira elétrica, de pé, em frente ao pelotão. Me dá outra dose. Só está prescrito para daqui a três horas. Três horas… que eternidade. Então, chega aqui, pedi, apertando como podia a minha mão contra o traseiro dela, queria trazê-lo para perto de mim. Seu Ciro…, ela falou. Quê? Chega aqui perto, insisti. Ela chegou. Escalei com os dedos a cintura dela. Seu Ciro…, ela repetiu. Sobe em cima de mim, roguei. Ela tentou tirar a minha mão do peito dela, mas eu enganchei no decote e não soltei mais. Você tem medo do quê? Eu sou inofensivo, não vê? Que mal tem? Não se nega a vontade de um condenado. Ela olhou para a porta, tinha medo que entrasse alguém. Eu a puxei pra mim. O rosto em foco veio acompanhado do nome, Maria Clara. A sua amiga não mentiu, eu disse, você é mesmo bonita, Maria Clara. O colo arfou debaixo dos meus dedos. Vem, repeti, senta em mim. Seja santa, é o meu tiro de misericórdia. Seu Ciro… deixa eu ir. Não, me deixa ir você. Me deixa ir. Me deixa. Deixa. Ela ergueu o olhar pra mim, pensava algo, não disse o quê, depois checou mais uma vez a entrada e, sem dizer uma palavra, baixou a proteção lateral da cama, puxou a escadinha de três degraus para perto do leito e sentou ao meu lado. Eu ri agradecido. Ela tinha um cheiro bom. Esperei que continuasse, mas não, parou onde estava. Só isso?, perguntei. Ela corou. Seu Ciro… por favor. Monta em cima de mim. Eu te chamo de outro nome, não vai ser você. Não, seu Ciro, pelo amor de Deus. Você é casada? Não, eu não sou casada. Mas quer casar. Então, você finge que eu sou ele e eu finjo que você é a minha mulher. Que mal faz? Não é direito, murmurou séria. Nada nessa vida é direito, respondi, com absoluto conhecimento de causa. Depois de uma longa pausa, ela deu início a uma complexa coreografia de subir na minha bacia sem desplugar as trocentas tubulações que me ligavam ao poste. A cicatriz da barriga já estava fechada, mas não era prudente colocar peso sobre o abdome. Maria Clara tentou ser rápida. Apoiada nos joelhos, comigo entre as pernas dela, foi aumentando a pressão com cuidado, até relaxar em cima de mim. Há quanto tempo o meu corpo não me dava alegria, pensei. Alisei as coxas dela. Eu amava as mulheres.

Viu?, não custou nada, eu disse, para acalmá-la. Não, não custou nada, ela confirmou. Perguntei o que tinha na bandeja. O antibiótico. O antibiótico sozinho não vai chegar aonde eu quero, pensei. Mais nada? Tem mais duas prescrições, para dar espaçadas, ela informou. Eu tinha tempo. Propus que brincássemos de médico e ri. Ela quis descer. Irritado, respondi que ela já ia descer, mas que, antes, eu queria um favor. Maria Clara me olhou assustada, receosa de sequer imaginar o que eu estava prestes a sugerir. Fui direto. Injeta tudo de uma vez, eu disse, e aguardei a reação dela. Maria Clara recuou, ameaçou voltar para o sofá-cama, mas eu apertei o seu pulso e desatei a falar dos horrores da UTI, das máquinas de prolongar a vida, do meu avô que morreu dezessete dias antes de falecer, do caixão dele pingando sangue, do corpo furado por todos os tipos de intervenção de emergência. Você tem que me ajudar. Eles vão me entubar, eu vou morrer agoniado, você sabe disso, vocês conversam sobre os pacientes, eu não vou sair daqui. Você é o meu anjo, Maria Clara. Eu te escolhi. Me deixa ir assim, no meio das suas pernas, faz o que eu estou pedindo. Ela me olhou apavorada. Eu dei sequência à súplica, enquanto me ouvisse, não sairia de perto de mim. Se você descer dessa cama, mesmo que você me visite todos os dias, e se sente sobre mim todos os dias, eu nunca mais vou sentir o prazer que senti agora, nesse gesto que você fez. Seja santa, tenha misericórdia.

Um silêncio sepulcral tomou o quarto. Maria Clara me olhou fundo, como era bonita, meu Deus. Sem avisar, esticou o braço até a mesinha e puxou para si a bandeja de metal com três injeções. Eu não sei se vai funcionar, disse. Indescritível alegria. Preocupado com o baixo teor letal do coquetel, quis saber se ela não carregava mais nada na bolsa. Só Neosaldina. Mistura tudo, ordenei. Errei o tom e emendei com o argumento desastroso de que, vivo, eu me tornaria um problema para ela. A morte é o mínimo que esperam de mim. Ninguém vai achar que não foi natural. Mas se eu estiver aqui amanhã, eles vão me testar, me abrir, até chegar em você. A lembrança do ato criminoso, da possível investigação, fez retroceder nela a decisão de me ajudar. Maria Clara entrou em parafuso. Com a voz abafada, respondeu que não faria aquilo. Pode descer, eu disse seco. Não é para ser assim. E não precisa vir amanhã, eu converso com a Eneida e ela arruma alguém para o seu lugar. Desapontado, virei para o lado e fingi dormir.

 

Maria Clara saiu de cima de mim. Um frio petrificante se espalhou pelos meus ossos. Ela se recompôs e subiu a grade de proteção. Saiu calada. Fiquei a sós, na tumba. Nada me veio à cabeça, nem para a frente e nem para trás. Só me restava a agoniada espera. Fechei os olhos, devo ter apagado, não sei se dormi. Acordei com o barulho metálico da cama. Alguém mexia na trava para baixá-la. Ouvi o arrastar da escada e um vulto surgiu sobre a minha cabeça. Era ela. Maria Clara montou sobre mim novamente, eu senti o calor do sangue dela esquentar o meu. Como antes, esticou o braço para pegar a bandeja de medicamentos e falou calma:

— Está na hora da sua dose.

Maria Clara suspendeu a seringa e se apoiou sobre os joelhos para alcançar a torre. O ventre dela se aproximou do meu rosto. Meti a mão por debaixo da saia e puxei a calcinha, queria cheirá-la. Ela deixou, enquanto injetava o conteúdo no soro. Uma onda morna correu-me as veias, a raiz do cabelo a arrepiar, a pele dela na minha, o veludo. Morfina. A minha dose. A última.

— Eu te amo, Maria Clara.

Imprensei ela contra o elevador, as vozes ecoando no fosso, ela é minha, eu gritei, e saí arrastando a Ruth para fora da roda. Na varanda, nos beijamos com uma necessidade idêntica. Um raio me atravessando a espinha. Deslizei uma das mãos por entre as pernas de Maria Clara até tocar o meio dela. Os dedos escorreram para dentro.

— O meu nome é Ciro, sou advogado, separado e isso nunca me aconteceu assim.

 

         O PRÓXIMO

 

MARIA CLARA saiu do hospital já era de manhã, o sol quente rachando a pele. Detestava plantão, morre-se muito de madrugada, dizia, toda vez que se via obrigada a encarar o serão.

Caminhou até o ponto de ônibus, estava cansada. Não queria pensar no que havia feito, estava feito, que descanse em paz. Ninguém levantou suspeita, ele não recebeu visitas nas duas semanas em que trabalhou lá. Era esperado, vagaria um leito, quem se preocuparia? Foi melhor pra ele, concluiu, com a enxaqueca fisgando a cabeça como um anzol. Tirou da bolsa a cartela de Neosaldina, tinha salvado uma pra si. Destacou a bola preta, botou na boca e engoliu a seco. Foi bom subir no ônibus e se pôr em movimento. A manhã, límpida como a tarde anterior, agiu nos sentidos junto com o comprimido. Lembrou da ansiedade com que descera no ponto na véspera, da pressa nas escadarias, refez o percurso até o quarto. Por que queria tanto vê-lo? A atenção vagou pela paisagem de tirar o fôlego, o Pão de Açúcar acordando para mais um dia de calor na Guanabara. A eutanásia, a morte, a pena de prisão. Ciro. A imagem de Ciro, as mãos dele na cintura dela. Maria Clara adormeceu recostada na janela da condução.

 

Era enfermeira, mas poderia ter sido aeromoça; queria usar uniforme, servir de fetiche para os homens. Quando perguntavam, jurava sonhar com a medicina, em conhecer o mundo, tudo mentira. Maria Clara gostava era de se sentir atraente. Escolheu errado. A aviação, talvez, tivesse lhe dado mais alguns anos de ilusão. A rotina hospitalar revelou-se brutal desde o princípio; as comadres com xixi, as lavagens, o cheiro de peido nos quartos. Já estava a ponto de jogar a toalha, quando Lívia propôs que tomasse seu lugar como acompanhante de um paciente terminal.

— Ele não é velho — confidenciou a amiga —, ainda é bonito, galante, cita uns filósofos para elogiar a gente, você vai gostar. Só tem que dar os remédios e escovar os dentes, o resto é com a enfermagem.

Lívia cumpria o destino que Maria Clara ansiava para si. Casara-se com um médico de tradição de família e engravidara quatro meses depois. Proibida de frequentar o hospital e feliz com a proibição, pois pretendia ser mãe e esposa em tempo integral, salvou a amiga do horror da emergência.

Nas duas semanas em que a substituta zelou pelo enfermo, Ciro não deu o ar da graça. Balbuciava palavras incompreensíveis, parecia escutar, mas nunca abriu os olhos. Fria e profissional, Maria Clara não desenvolveu nenhum apego, não trocou um bom-dia, ignorou aquele homem deitado sobre a cama durante a maior parte do tempo que passou ao lado dele. Dava banho, fazia a higiene bucal, penteava o cabelo, sempre indiferente, isenta, nula. Gastava as horas nas palavras cruzadas, folheava revistas, tirava a pressão, via TV, cochilava e, dez horas depois de bater o ponto, deixava o emprego com a vida ganha.

Passou a gostar dos turnos noturnos. Saía às sete e aproveitava para tomar café com o namorado no Centro. Ao contrário do que acontecia no antigo pronto-socorro, dormia bem no serviço e chegava fresca aos encontros, pronta para combinar com Nélson o futuro próspero que teriam.

O uniforme de enfermeira foi a flecha do Cupido. Cruzaram-se na padaria, como virou costume, ele chegando no banco e ela saindo do plantão. As curvas de Maria Clara apertadas na roupa branca, o escarpim claro, o joelho à mostra. Nélson alucinou com a morena branquinha de quadris largos, metida numa fantasia erótica em pleno desjejum. Chamou pra sair, deu telefone, endereço, pediu pra casar. Não havia nada que tocasse mais o coração de Maria Clara do que ver um homem de terno atraído por ela. Foi direita e acessível. Combinaram um jantar. Nélson gastou para impressionar, ela se impressionou, mas, depois, aceitou a realidade contada do pretendente, que vivia do magro soldo de bancário e da esperança de uma promoção. À moça, incomodava que ele não dispusesse de um carro para passear por aí. Nélson pegava ônibus, o que, aos olhos dela, roubava muito da virilidade dele.

Melhor do que nada.

Maria Clara deixou a família em Friburgo para se formar na capital. Tios, primos, pai, mãe, irmãos, avós. Conseguiu se manter no Rio a duras penas; topou os piores horários, dobrou jornada, se virou em mil. Agora, arrependida da profissão que escolhera, sofria da urgência de arrumar alguém que se responsabilizasse por ela, dividisse as contas e a deixasse perto do mar. Nélson não era bonito nem feio, não fumava, não bebia, era fiel e demonstrava devoção por Maria Clara. Não era o partidão que Lívia arrumara pra si, mas ela também não era a Lívia. Cada um com o seu cada qual. Agarrou-se à única oportunidade que apareceu e deu para Nélson assim que achou seguro. Quis garantir a culpa dele, caso desejasse se livrar dela. Não tinha arroubos pelo noivo, tê-lo bastava, ou quase bastava. Nélson, mais empenhado, juntava dinheiro e fazia planos para a vida eterna dos dois.

 

Eneida instruiu a novata na maneira correta de se dirigir a um paciente em coma induzido:

— Fale claro, perto da orelha. Não direcione a boca para o canal auditivo, pode provocar surdez. Fale forte e pausado. Eles escutam. — E demonstrou a técnica.

Ninguém avisou da mudança na medicação. Maria Clara passava a toalha úmida no rosto de Ciro para fazer a barba, quando o morto arregalou os olhos e a fitou com uma fisionomia confusa. Ao vê-lo desperto, quase desfaleceu. Acostumara-se com a ideia de que Ciro não existia. Perdeu o ar, ao ver a maçaroca de carne transformar-se num homenzarrão indignado, mirando reto na direção dela. Apavorada, agarrou-se ao tatibitate estereofônico de Eneida:

 

— O MEU NOME É MARIA CLARA, EU SUBSTITUÍ A LÍVIA. ELA VEIO AQUI ME APRESENTAR, QUERIA SE DESPEDIR, MAS O SENHOR ESTAVA DORMINDO. A LÍVIA DEIXOU UM ABRA…

 

— Você é surda? — Ciro indagou severo, com a pouca força que lhe restava. — Por que grita tanto? Morreu alguém? Quem morreu? Alguém morreu, eu me lembro do funeral. — Entendeu que foi delírio. Pediu água, a boca seca, Maria Clara foi buscar. — Vocês não dão água para um moribundo? — Já se sentia capaz de gracejos.

Ela veio com o copo, tremia. Ciro bebeu e a olhou de cima a baixo.

— A Lívia jurou que não ia me decepcionar. Deixa eu ver. Qual é o seu nome?

— Eu disse o meu nome.

— Eu não me lembro.

— Maria Clara.

— Maria Clara. Bonito.

— Você acha?

— Acho. Você não?

— Não.

— Você é casada?

— Não, eu não sou casada.

— E pretende casar?

— Pretendo, se Deus quiser.

— Reza para ele não querer. Quantos anos você tem?

— Vinte e quatro.

— Vinte e quatro. Isso passa. Aproveita que passa rápido.

Cansado da esgrima, Ciro permitiu-se uma pausa.

— Você quer casar por quê?

— Porque é o que tem pra fazer.

— Isso não é resposta. Por que você quer casar?

— Porque eu não quero voltar para Friburgo.

— Já é uma razão concreta. Mesmo assim, não faça isso. Você gosta dele?

— Mais ou menos.

— Então, não tem problema.

— Por que não tem problema?

— Porque casamento com amor termina sempre em tragédia.

Maria Clara o olhou abismada.

— Eu posso comer alguma coisa?

— Acho que sim.

Ela apertou o botão de socorro. Em segundos, o quarto lotou de enfermeiros para tirar a pressão, o sangue, e checar os reflexos do ressuscitado. Maria Clara sumiu atrás do mutirão, sentou-se no sofá e repassou o curto diálogo. Não era todo dia que encontrava alguém curioso pela vida dela. Sempre lamentara o amor interesseiro que sentia por Nélson. Decidira abrir mão da sorte, ser realista e se casar com a frustração. Agora, aquela entidade surgia do além para dizer que o matrimônio era uma desgraça certa. Falou em tragédia. Condenou a paixão. Garantiu que a falta de afeto poderia ser vantajosa. Em quê?, pensava. Teve vontade de lhe contar o que ninguém sabia, que durante uma fase apertada, para quitar o aluguel atrasado, aceitou os favores de um senhor da Tijuca. Viveu dele um tempo. Desconfiava que o que sentia por Nélson não era diferente do vazio de tirar a roupa no quarto do apartamento mofado da Conde de Bonfim. O que há de bom nisso? Ciro só lhe deu uma ordem certeira: Aproveita, ele disse, aproveita que passa rápido. De fato. No último ano, Maria Clara se dera conta de que, apesar de jovem, não tinha mais tempo para guinadas drásticas, ou grandes mudanças na vida. Tarde demais para desistir da carreira, ou procurar um homem melhor. Passa rápido. Ele tem razão.

A junta pediu eletro, ultrassonografia e raio X do tórax. Removeram o corpo para exames. Quando Gisa apareceu para rendê-la, Ciro ainda não havia chegado. Maria Clara maldisse a pontualidade da colega e puxou conversa para atrasar a saída. Gisa ouviu sobre o acontecido, riu do susto da outra e entregou intimidades do patrão:

— O filho veio aqui poucas vezes, com uma tia. É separado. No começo, ainda apareciam uns amigos, depois sumiu todo mundo. Faz duas semanas que botaram pra dormir. Foi logo antes de você entrar. Vão apagar de novo, você vai ver.

— Será?

— Tenho certeza.

A notícia entristeceu Maria Clara. Gisa assumiu um ar vago.

— Por que não deixam ir em paz?

— Como assim?

— Você não vê a tortura? Furam, reviram, tiram chapas, acordam para fazer testes; depois, desligam de novo. É crueldade. A medicina nega direitos básicos ao cidadão. É anticonstitucional.

Maria Clara estarreceu. Já estava ali havia mais de dez dias, e jamais formulara nenhum pensamento relevante a respeito do interno. O que ele tomava, ou deixava de tomar, era responsabilidade dos médicos. Jamais discutira as decisões do alto-comando, quanto mais naqueles termos de advogado. Olhou pasma para a colega, achou-se burra e superficial. Gisa era de esquerda, politizadíssima, prestava serviço social, lia livros que pesavam mais de quilo e fumava na varanda do segundo andar.

Ciro não retornou. Maria Clara se despediu desolada. Seria bom ter a chance de estar a sós, mais uma vez, com um homem mais velho e experiente interessado nos problemas dela. Sentiu falta da família. Entrou no lotação com medo de que Ciro não resistisse até o encontro seguinte. Ainda tinha um dia inteiro pela frente.

Encontrou com Nélson na saída do banco. Ele havia feito uma extravagância, comprara dois ingressos para a pré-estreia de Dias de trovão, no São Luiz do largo do Machado. Maria Clara era fã de Tom Cruise. Jantaram na casa dela, um ravióli congelado e um pudim de caixinha. Como sempre, o assunto terminou no casório. Maria Clara não fingiu o entusiasmo de sempre, se limitou a observar a alegria do namorado. Ele notou a frieza, achou que era indisposição. Hospital não faz bem a ninguém, pensou, certo de que, um dia, libertaria a amada da escravidão da saúde. Ganharia o suficiente para deixá-la em casa, indo e vindo do cabeleireiro, levando a vida mansa das esposas da diretoria, com cozinheira, governanta e babá à disposição. Teriam direito a um carro executivo, cujo motorista dispensaria, só para ter o prazer de dirigir pra ela.

Nélson dormiu na quitinete da noiva e saiu cedo para trabalhar. O dia amanheceu fresco. Maria Clara demorou a largar os lençóis, passou o dia em casa, rondando o telefone, com receio do recado funesto. Saiu uma hora antes do horário, não aguentou esperar. Na subida para o Silvestre, a baía pintou o fundo de azul-escuro e a contraluz do poente acendeu as montanhas com um tom alaranjado, o céu sem névoa, a maravilha do Rio. Maria Clara não suportaria voltar para a serra, ter que dar adeus àquilo tudo. Lembrou-se de Ciro e repassou as perguntas que planejava fazer. Tinha urgência, precisava ouvi-lo. Dependia disso. A falta de notícias era a melhor notícia. Estava segura de que havia resistido à madrugada. Apressou o passo, estaria desperto?

 

Ciro dormia, ainda mais magro do que no dia anterior. Maria Clara lavou as mãos e sentou-se para esperar. Esqueceu-se das palavras cruzadas, das revistas, da TV. Quando o sol se escondeu atrás da copa das árvores, a melancolia tomou conta da moça. Permanecera no mesmo lugar por mais de três horas, atenta a qualquer movimento, mas nada de diferente se deu. Levantou-se para vestir o casaco. Fazia frio. Os insetos zumbiram do lado de fora, ela fechou a janela, mas o silêncio foi mais irritante do que a zoeira do mato; abriu-a novamente. Quando a arrumadeira chegou para fazer a cama, Maria Clara aproveitou para tomar um banho e colocar um uniforme passado. Não costumava vesti-lo com Ciro, queria lhe fazer um agrado. Saiu do banho, checou o belo adormecido e deitou-se na cama feita. Mirou o teto. E se ele não acordar? Não conseguiria sair dali sem vê-lo. Deu-se conta de que não pensava no noivo desde cedo. Não vou mais casar, decidiu, algo nela decidiu por ela. Queria que Ciro fosse o primeiro a saber.

Às nove, a enfermagem passou para entregar o prontuário da noite. Eneida, Gisa, Lívia e Maria Clara tinham competência para ministrar as doses. Dr. Júlio armara um esquema com o hospital, onde parte das diárias das acompanhantes entrava no custo do tratamento coberto pelo seguro. A manobra possibilitou a Ciro continuar cercado de mulheres até a última hora.

Maria Clara tirou a pressão, a temperatura, trocou o soro, injetou o antibiótico e o anti-inflamatório. Ciro imóvel. Terminada a tarefa, pôs-se a admirá-lo. Que deselegante é o coma, pensou. Os músculos, relaxados ao extremo, largam a boca aberta, pressionam o queixo contra o pescoço e despregam a pele da bochecha dos ossos. Deus me livre de ficar assim. A indiferença de antes aflorou de repente. Mirou-o distante, viu-se diante de um cadáver. Recuou por instinto. Como era idiota. Alimentara a esperança de que um morto teria algo de importante a dizer. Uma luz para dar. Imbecil. Virou as costas para Ciro enervada, sentou-se e ligou a TV. Bruce Willis, descalço, pisava nos cacos de uma recente explosão. Duro de matar. Tiro pra todo lado. Maria Clara descarregou na fita o ódio de ter um destino tão vagabundo. Por que não optou pela Varig?

Vou casar com o Nélson, acalmou-se. Vou casar, ter filhos, largar essa porcaria de emprego e ficar no Rio de Janeiro. Não esperou o mocinho terminar o serviço, sumiu com o astro americano da tela, pôs o despertador para as duas, recostou-se no sofá-cama, apagou a luz e fez força para dormir. Não pensava mais em Ciro, não estava nem aí pra ele. Amanhã, procuraria alguém para o lugar dela. Lívia calculara errado, aquilo não lhe servia. Seria aeromoça, ainda tinha tempo, largaria Nélson, poria o pé na estrada, almoçaria em Paris, jantaria em Londres, visitaria as Pirâmides, a Disney e o Nordeste. Lutou contra a insônia. Dormiu sem perceber.

 

A campainha apitou. Maria Clara emergiu contrafeita das trevas, não sonhara com coisa nenhuma. Demorou a focar. Os remédios, lembrou, hora de dar os remédios. Acendeu a luminária da mesinha de canto, caminhou até o leito, tirou a pressão do corpo, ajustou o termômetro sob a axila, se concentrou na gaze, no álcool e na seringa. Descartou a agulha. Quando terminou de injetar a receita, sentiu que uma mão lhe apalpava as nádegas. Virou-se para trás, era Ciro.

Nada dos olhos esbugalhados ou da fúria do dia anterior. Ele parecia exausto, menor e mais frágil. A voz débil arriscou uma pergunta. Queria saber o dia. Quatro de agosto de 90, ela respondeu. É uma bela data. Maria Clara havia feito um esforço tão grande para se livrar da expectativa que depositara no moribundo, que, agora, nenhuma questão importante lhe vinha à cabeça. E Ciro, também, perdera a autoridade, já não inspirava a mesma confiança. A mão voltou a alisar a carne. O espírito despertara lascivo. Seu Ciro…, não sabia como chamá-lo. Achou ridículo o “seu”, seguido do nome Ciro. Mas Ciro, puro, era íntimo demais. Senhor, muito severo. Usou “seu Ciro”, mesmo sabendo que não era bom. Sentiu a mão escalar pela cintura até a divisa com o braço. Seu Ciro…, repetiu sem jeito, não queria rejeitá-lo, mas não esperava aquilo. Maria Clara enrubesceu, tentou tirar a mão que lhe apertava o peito, mas Ciro se enganchou no decote e não soltou mais.

— A Lívia não mentiu. Você é mesmo bonita, Maria Clara.

Nunca resistiu a elogios, mas descobrir que Ciro não esquecera seu nome fez o calor subir pelo rosto, as pernas dobrarem e o pulmão bombear ar pelas ventas. Vem, senta em mim, ele pediu. Maria Clara quis fazer o desejo dele. Gostava de realizar a vontade dos homens. Aquele era um pedido especial, não aconteceria outra vez. Muda, baixou a proteção lateral da cama, puxou a escadinha de três degraus para perto e sentou-se na beira do leito. O que tinha a perder? Amanhã, estaria longe, nunca mais o veria. Em dois dias, estaria morto de qualquer jeito. Por que negar? Tomada pela necessidade de ser especial para alguém, fantasiou que Ciro morreria pensando nela. Seria a última, a definitiva. Nunca mais lhe seria oferecido algo assim. Com um movimento brusco, ergueu o corpo e passou uma das pernas sobre as pernas dele, estabilizou os dois joelhos no colchão. Enamoraram-se. Foi quando Ciro propôs o assassinato. Maria Clara se afastou assustada.

— Seja santa — ele disse —, tenha misericórdia de mim.

Ser santa. Esquecer a Tijuca. Que proposta. Faria qualquer coisa por ele. Mas Ciro a lembrou das suspeitas, falou em investigação, e a consciência do crime interrompeu o ato de bondade. Não queria aquilo pra si. Ele não argumentou, mandou-a descer, foi ríspido e impessoal:

— Não precisa vir amanhã, eu converso com a Eneida e ela arruma alguém para o seu lugar.

Maria Clara fez o que Ciro mandou, pôs os pés no chão humilhada. Arrastou a escada para o canto com a cabeça baixa, ajeitou o uniforme, subiu a grade de proteção e se refugiou no sofá-cama. Ciro dormiu. Entrara ali sem saber se devia, ou não, casar; seis horas depois, cogitava em acabar, ou não, com a vida de alguém. Não se conformava com a secura de Ciro. Pede que eu seja santa e depois me trata como uma qualquer. Eu não sou uma qualquer. Posso não ser educada, não leio jornal, e nem esses livros que a Gisa lê, mas eu sei que é crime. É crime. Não vou fazer. Já fiz muita coisa errada, mas essa eu não vou fazer. Eu quis que ele gostasse de mim, eu sei deixar um homem feliz, isso é uma grande qualidade que eu tenho, mas ele vem com um pedido desses… E ainda se ofende de eu não querer. Por que não cortou os pulsos quando ainda estava em tempo? Continuou sentada, sem conseguir frear o pensamento em lugar algum.

Levantou-se e saiu.

Caminhou até a sala de enfermagem. Não gostou do que encontrou. Três rapazes truculentos e uma chefe feia. Ciro merecia algo melhor. Ciro merecia que fosse com ela. Um dos rapazes perguntou se Maria Clara precisava de ajuda, ela respondeu que não, que havia saído para arejar. Ele continua desacordado, mentiu, e voltou para o quarto disposta a conquistar a sua santidade.

Ciro dormia um sono leve. Maria Clara recolheu o que pôde de medicamento, juntou com a morfina, fez um coquetel, deixou de lado a seringa e escalou a cama mais uma vez. Chamou por Ciro, ele abriu os olhos.

— Está na hora da sua dose — avisou.

Sentada sobre ele, testemunhou a dança da morte. Quando voltava ao presente, Ciro a fitava e abria um sorriso, depois mergulhava novamente no insuspeitável. Parecia feliz, Maria Clara foi um bom anjo.

Espantada com o próprio feito, desmontou com cuidado, arrumou o quarto, colocou os remédios na bandeja e traçou um plano de ação. Cumpriu-o à risca. Esperou o dia clarear, apertou o botão e disse que, ao dormir, Ciro não apresentava nenhum sinal preocupante, mas que, agora de manhã, quando foi checar, viu que não respirava. Ninguém pôs em dúvida a narrativa. A aceitação dos presentes afastou o medo de ser descoberta. Segura, telefonou para as companheiras. Eneida chorou, Gisa ficou aliviada e Lívia reagiu indiferente. Eneida disse que não iria ao enterro. Se eu for me despedir de cada baixa do hospital, não saio mais do cemitério. Gisa não via sentido em chorar a morte de um burguês. Maria Clara informou que marcaria presença em nome delas. As duas reagiram surpresas. A última a entrar, que só vira Ciro de olho aberto uma vez, fazia questão de prestar condolências. Tem maluco pra tudo, pensou Eneida.

Maria Clara não demorou a ser liberada. Assinou papéis, deu cabo das formalidades, trocou de roupa e desceu a rampa até o ponto. Dormiu no trajeto pra casa. Dormiu em casa, dormiu a tarde toda. Guardava um segredo. Sonhou com Ciro. Trepava com ele, olhava-o dormir, conversavam, eram amantes. Acordou bem, diferente. Havia matado alguém. Executara o ato heroico, dera o tiro de misericórdia, algo da dimensão do sagrado, do divino. Era uma mulher especial. Casar ou não, ser isso ou aquilo, servir café nas alturas, ou cuidar de feridas aqui embaixo, que diferença fazia? Maria Clara não se guiava mais pelo cotidiano, sua medida era o eterno.

No dia seguinte, vestiu o melhor luto, subiu no salto, se esmerou na maquiagem suave e foi dar adeus ao maior acontecimento de sua vida.

 

PADRE GRAÇA arrastou por um bom tempo o peso por ter largado a batina. Encontrou na penitência a única forma de se expiar da culpa. Jejuou, se autoinfligiu privações, mas continuava preso aos mesmos códigos do sacerdócio. Decidiu peregrinar. Enterrou a batina e os objetos litúrgicos no quintal de casa e traçou uma reta para o noroeste. Aos cinquenta e quatro anos, viraria outro.

Levou mais de ano mapa acima, comendo asfalto e muitos pares de sapatos. Deus se transmutando no próprio planeta, nas correntes de ar, nas nuvens densas, no sol inclemente, na lua e nos temporais. Dormiu ao relento, teve medo de bicho, de gente, foi assaltado mais de uma vez na estrada. Trabalhou como peão de fazenda, sentiu febre, frio, fome e sede. Tinha como único objetivo seguir adiante. A vida é o caminho, disse Tirésias a Odisseu. Trezentos e oitenta e dois dias depois de iniciar o périplo, se viu perdido no centro de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Entrou numa galeria refrigerada para se proteger do calor e deu com os olhos numa porta de madeira com uma placa pequena: MATA. Era uma ONG ambientalista. Entrou e foi informado de que não precisavam de ninguém na cidade, mas que a organização trabalhava com dezenas de postos avançados carentes de voluntários. Graça observou a lista de localidades espalhadas por lugares tão longínquos quanto Oiapoque, Boca do Acre, Lábrea, Manicoré, Aripuanã, Parecis, Jaciara. Interessou-se por Manicoré, no sul do Amazonas. Leu os nomes das etnias locais, tenharins, parintintins, diahois, torás, apurinãs. Recebera a missão.

Por vinte e quatro anos cultivara lápides floridas e mausoléus frondosos no seu jardim de cimento armado, agora era hora de zelar pelo real paraíso. O monomotor sobrevoou por horas as monoculturas de soja e o capim careca do gado, até atingir a parede verde da floresta imemorial. Acostumou-se com o mormaço, os insetos graúdos e as cobras, com os barulhos da noite e as brincadeiras truculentas dos nativos. Gostava de visitar as aldeias, ver o sol refletido na clareira das ocas e de ser cercado por cunhãs novas, com risos diáfanos e cabelos negros. Casou-se com uma delas, a quem ensinou o evangelho.

Longe da metafísica do além, Graça se ateve a problemas urgentes: crimes contra a natureza, serras elétricas, tratores, correntes e venenos de praga. Combatia um demônio chamado civilização.

 

Acordou antes do nascente, lavou o rosto com água fria, vestiu-se. A mulher fez o café. Caminharia por três horas em trilha fechada até a tribo dos torás. Um acampamento ilegal de extração de madeira invadira a reserva indígena e Graça fora designado para intermediar o conflito. O curió cantou na gaiola ao vê-lo abrir a porta da frente, lembrou-se de que havia esquecido o alpiste. Pegou o pequeno saco de ração na prateleira da varanda e despejou com cuidado no comedouro. Notou que a forração estava suja, quis trocá-la. Catou um papel de embrulho, abriu a portinhola, retirou a sujeira e esticou o forro novo. Assobiou um aceno, passando o dedo pelas barras finas para tocar o animal. Tinha amor por ele. Foi quando ouviu o estampido seco no mato. O tiro. Sentiu a pontada na costela, a ardência, a brasa acesa por dentro. Dobrou-se, caiu, desmontou olhando o teto. Um calor morno se espalhou por todo o corpo, a partir do centro, em direção às extremidades. Já não ardia. Sentiu o ventre inchar, pressionando os pulmões e a glote, os tímpanos e o cerebelo; a falta de ar, o sangue pulsando nas orelhas, o formigamento, o sono, o túnel, o desligar. Estou vivendo a minha morte, pensou.

Parou para assistir.

Viu-se tragado, puxado para o assoalho por uma gravidade descomunal, precisava agir. Em que pensar? Uma profusão de rostos imóveis surgiu num repente. A varanda, o teto, a gaiola vista de baixo, tudo continuava ali, envolto em véu, enquanto os mortos, perfilados no interior dele, tornavam-se cada vez mais nítidos. As mulheres, os homens, as crianças e os velhos; as mães, os filhos, os jovens e doentes que encomendou. O Hades. Voltava à capela do São João Batista, era o papa, benzia um caixão. O último. Álvaro. Não tinha consciência do nome, desconhecia a fisionomia, mas sabia ser dele aquele último velório. Separa deste mundo a alma deste irmão, terra à terra, cinza à cinza, pó ao pó. Uma senhora distinta o encarava à distância, jamais esquecera o olhar de reprovação. Irene lhe devolvia a pergunta, séculos depois de tê-la ouvido. Quem será o próximo? Graça voltou a atenção para o féretro e descobriu-se nele, inerte, deitado, finito. Teve medo. Retornou ao teto, à gaiola, à casa de madeira e à floresta. Amanhecia. Teve a impressão de ouvir alguém berrar. Uma mulher morena surgiu no campo de visão estreito, o rosto contorcido gritava. Já não ouvia. Onde estava? Quem era? Um morto. Mil mortes em uma. Arrastaria todas consigo. Ainda não. Enterrou a batina no quintal de casa, refez a marcha, tomou o avião, se embrenhou na mata, ficou de tocaia, à espreita. Viu-se na varanda, dando comida ao curió. Teve a certeza de que seria o próximo.

 

                                                                                Fernanda Torres  

 

 

 

FERNANDA TORRES nasceu no Rio de Janeiro, em 1965. Há 35 anos mantém uma carreira de sucesso no teatro, no cinema e na televisão. É colunista da Folha de S.Paulo, da Veja Rio e colaboradora da Piauí.

 

 

                      

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