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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FINAL PARA TRÊS / Rex Stout
FINAL PARA TRÊS / Rex Stout

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Final para três é um "tríptico", reunindo três novelas curtas, gênero ao qual Rex Stout muito se dedicou.

   Na primeira (O Revólver Voador) temos um interessantíssimo caso de uma arma mortal que, teimosamente, se recusava a estar onde deveria. E um suicídio que, só por um pequeno pormenor, não poderia ter acontecido...

   A segunda (Morte no Parque) conta uma história de um homem que não deveria, nunca, cavalgar no Central Park, às 6 horas da manhã.

   A última (Disfarce para Matar), finalmente, é um caso de um ousado assassino que mata sua vítima na própria casa de Nero Wolfe!

   Trata-se de um conjunto de três histórias em que Wolfe e Archie se envolvem com cantores de ópera, lãs de orquídeas, gente de negócios e muita emoção.

 

 

                                                 O Revólver Voador

  

   A jovem tirou o papelucho cor-de-rosa de sua bolsa, levantou-se da poltrona de couro vermelho, colocou-o sobre a mesa de Nero Wolfe e voltou a sentar-se.

   Sentindo que era meu dever manter-me informado - além de poupar a Wolfe o supremo esforço de inclinar-se para alcançá-lo - levantei-me e apressei-me em entregar-lhe o papel, não sem dar, antes, uma espiada nele... Era um cheque de cinco mil dólares, datado daquele mesmo dia, quatorze de agosto, a seu favor e assinado por Margaret Mion! Nero deu uma olhada e o deixou na mesa.

   "Penso que seja esta a melhor forma de começar uma conversa", falou ela.

   Sentado em minha cadeira favorita, diante da escrivaninha onde tomava as anotações - e observando-a melhor - comecei a reformular minha atitude. Quando, naquele domingo à tarde, ela havia telefonado para marcar uma entrevista, lembrara-me, vagamente, de algumas fotografias publicadas nos jornais, a alguns meses atrás, e concluíra não haver o menor interesse em conhecê-la pessoalmente. Mas agora via que estava errado. A impressão que dela se irradiava nada tinha de excepcional - mas o efeito do conjunto era magnífico! Não digo que fossem poses estudadas. Não! Sua boca, por exemplo, não era especialmente atraente - mesmo quando sorria...

Mas seu sorriso era encantador!

   Seus olhos nada tinham de extraordinário - mas dava prazer vê-los olharem ao redor, de Wolfe para mim e para o homem que viera com ela, sentado à sua esquerda.

Imagino que estivesse próxima dos trinta anos.

   "Não acha", perguntou-lhe o seu acompanhante "que deveríamos, antes, obter algumas respostas?"

   Seu tom era áspero e um tanto forçado e sua face bem demonstrava isso. Estava bastante preocupado e não se incomodava nem um pouco se alguém o notasse. Com seus olhos cinza-escuro e feições bem torneadas, ele poderia, em dias melhores, ter passado por um líder; mas não agora, como estava sentado. Alguma coisa o estava remoendo.

Quando a Sra. Mion o apresentou como Sr. Frederick Weppler, reconheci o nome do crítico de música do Gazette, mas não consegui me lembrar onde ele se encaixava nos acontecimentos que foram a causa da publicação da fotografia da Sra. Mion.

   Ela sacudiu a cabeça negativamente: "Realmente, isso não iria ajudar, Fred. Temos, só que contar tudo e ver o que ele diz", e sorriu para Wolfe - ou talvez não fosse propriamente um sorriso, mas somente o jeito de mexer seus lábios. "O Sr. Weppler não estava muito certo se deveríamos vir ver o senhor e tive de convencê-lo.

Os homens são mais cautelosos que as mulheres, não é mesmo?"

   "Sim", concordou Wolfe - e acrescentou: "Graças a Deus!"

Ela assentiu - "suponho que sim" - e prosseguiu: "Trouxe este cheque para provar o que realmente queremos. Estamos em apuros e precisamos que o senhor nos ajude.

Queremos nos casar e não podemos. É isto - se pudesse falar só por mim... eu quero me casar com ele". Olhou para Weppler, e desta vez era, sem dúvida, um sorriso.

"Quer se casar comigo, Fred?"

   "Quero", ele respondeu, meio embaraçado. Então, de repente, ele levantou o rosto e olhou desafiadoramente para Wolfe. "O senhor entende. Tudo isto é muito ridículo!

Isto não é de sua conta... mas viemos procurar sua ajuda. Estou com trinta e quatro anos e esta é a primeira vez que estou..." Ele parou. Depois de um momento continuou firmemente: "Amo a Sra. Mion e a coisa que mais quero em minha vida é casar-me com ela". Os olhos dele voltaram-se para ela e murmurou suplicante: "Peggy!"

   Wolfe resmungou: "Aceito isto como ponto pacífico. Vocês querem se casar. Então, porque não o fazem?"

   "Porque não podemos", respondeu Peggy. "Simplesmente não podemos. Isto porque... o senhor deve se lembrar de ter lido a respeito da morte de meu marido, há quatro

meses atrás, em abril. Lembra-se? Alberto Mion; o cantor de ópera?"

   "Vagamente. É melhor a senhora avivar minha lembrança".

   "Bem, ele morreu... ele se suicidou". Agora não havia sinal de sorriso. "Fred - o Sr. Weppler - e eu o encontramos. Eram sete horas, quase noite, de uma terça-feira

de abril, em nosso apartamento na Avenida East End. Exatamente naquela tarde Fred e eu tínhamos descoberto que nos amávamos, e..."

   "Peggy!" falou Weppler, rispidamente.

   Os olhos da moça moveram-se, rapidamente, na direção dele e voltaram-se para Wolfe. "Talvez eu lhe deva perguntar, Sr. Wolfe. Ele pensa que nós deveríamos lhe contar somente o necessário para que o senhor entenda o problema, mas eu creio que o senhor não o pode entender a menos que lhe contemos tudo. O que o senhor acha?"

   "Não posso dizer nada até ouvir tudo. Continue. Se eu tiver dúvidas, a senhora verá".

   Ela concordou. "Imagino que o senhor tenha um colosso de perguntas. Alguma vez o senhor já esteve apaixonado, mas precisou escondê-lo, para que ninguém o percebesse?"

   "Nunca", disse Wolfe enfaticamente. "Estas coisas sempre trazem complicações".

   Eu ouvi sua resposta sem me mover.

   "Bem, eu estava apaixonada e admito isto. Mas ninguém sabia, nem mesmo ele. Você sabia, Fred?"

   "Não". Weppler também foi enfático.

   "Até aquela tarde", disse Peggy a Wolfe. "Ele estava no apartamento para almoçar conosco, e tudo aconteceu logo depois do almoço. Todos tinham saído e, de repente, estávamos olhando um para o outro e então ele disse... ou fui eu... nem sei mais quem foi". Ela olhou suplicante para Weppler: "sei que acha isto constrangedor, Fred mas se ele não souber o que aconteceu, não poderá entender porque você subiu para ver Alberto".

   "E ele precisa saber?" perguntou Weppler.

   "É claro que precisa". Ela voltou-se para Wolfe. "Parece que eu não posso dizer exatamente como foi. Estávamos completamente... bem, estávamos apaixonados, isto é tudo, e penso que demoramos muito para perceber isto. Assim as coisas se tornaram mais... mais envolventes. Fred queria ver meu marido imediatamente, contar-lhe tudo a respeito e decidir o que poderíamos fazer. Concordei. E então, fomos para cima..."

   "Para cima?"

   "Sim, é um duplex e em cima fica a sala à prova de som onde meu marido ensaiava. Então fomos..."

   "Por favor, Peggy", Weppler a interrompeu. Seus olhos fitaram Wolfe diretamente. "O senhor saberá disto em primeira mão. Subi para dizer a Mion que amava Peggy e ela também me amava e pedir-lhe que tentasse ser compreensivo conosco; mas ele podia ser tudo, menos compreensivo. Não foi violento mas ficou furioso! Depois de algum tempo fiquei com medo de acabar fazendo com ele. o que Gif James tinha feito e, então, saí. Não queria me encontrar novamente com Peggy naquele estado de ânimo; assim, deixei o estúdio pela porta do hall de cima e lá tomei o elevador". Weppler parou.

   "E então?" Wolfe o estimulou.

   "Saí. Andei através do parque e pouco depois, quando já tinha me acalmado, liguei para a Sra. Mion e ela foi me encontrar lá. Contei-lhe qual fora a atitude de Mion e pedi-lhe que o deixasse e ficasse comigo. Ela, porém, não queria fazer isto". Weppler parou um pouco e então continuou. "Há duas dificuldades que a gente tem que enfrentar quando se quer ter tudo".

   "Se isso for importante", disse Wolfe.

   "Isso é, realmente, importante! Primeiro a Sra. Mion tinha, e tem, recursos próprios. Esta era uma atração a mais para Mion. Para mim não o era. Estou somente

lhe informando". Obrigado. E a segunda?"

   "A segunda era a razão que a Sra. Mion tinha para não deixar o marido imediatamente. Creio que o senhor sabe que ele havia sido o tenor principal do Metropolitan nestes últimos cinco ou seis anos, quando perdeu sua voz por algum tempo, Gifford James, o barítono, bateu com o punho em seu pescoço, ferindo sua laringe, no começo de março e Mion não pôde terminar a temporada. Foi operado, mas não recobrou sua voz e, naturalmente ficou desesperado. Portanto a Sra. Mion não o queria abandonar nestas circunstâncias. Tentei persuadi-la a fazê-lo, mas ela não o quis. Eu estava bem naquele dia, a despeito do que me acontecera, pela primeira vez na vida, e do que Mion me havia dito. Então fui razoável; deixei-a no parque e fui para o centro, para um bar, e comecei a beber. Apesar de ter ficado lá durante muito tempo, e bebido bastante, não estava embriagado. Por volta das sete horas achei melhor vê-la novamente e convencê-la de que ela não poderia passar outra noite em sua casa.

Aquela resolução me levou de novo à Avenida East End e, lá, ao 12? andar do edifício onde morava. Então fiquei parado no hall de entrada, durante uns dez minutos, antes de apertar o botão da campainha. Finalmente, quando o fiz, a empregada me introduziu e foi chamar a Sra. Mion. Eu já estava calmo e tudo o que fiz foi sugerir termos, juntos, uma conversa com Mion. Ela concordou. Subimos...

   "Pelo elevador?"

   "Não, pela escada interna. Entramos no estúdio. Mion estava no chão. Corremos para ele. Havia um grande buraco em sua cabeça. Estava morto! Fiz com que a Sra. Mion saísse e, na escada, muito estreita para duas pessoas descerem ao mesmo tempo, ela caiu e rolou quase até a metade. Carreguei-a até o seu quarto e a coloquei sobre a cama; quando fui para o hall, em busca do telefone, pensei em algo que deveria fazer antes. Saí, peguei o elevador para o andar térreo, encontrei o porteiro e o ascensorista juntos e perguntei-lhes quem tinha estado no apartamento de Mion naquela tarde. Disse-lhes que precisava estar absolutamente seguros, sem esquecerem de ninguém. Eles me deram os nomes e eu os anotei. Então, voltei ao apartamento e telefonei para a polícia. Depois de fazer aquilo ainda me lembrei que um leigo não é a pessoa mais indicada para decidir se um homem está morto; telefonei para o Dr. Lloyd, que mora no mesmo prédio. Ele veio imediatamente e eu o levei ao estúdio.

Estávamos lá há três ou quatro minutos quando chegou o primeiro policial e é claro..."

   "Por favor", Wolfe aparteou. "Às vezes tudo, é demais. O senhor ainda não tem uma idéia da dificuldade em que se encontra".

   "Vou chegar nela..."

   "Mais rápido, espero, se puder ajudar. Minha memória está treinada. O médico e a polícia atestaram que ele estava morto. O cano do revólver fora enfiado em sua boca, e a bala tinha estraçalhado uma parte de seu crânio. O revólver encontrado no chão ao lado do corpo, pertencia a ele e era guardado lá no estúdio. Não havia sinal de luta e nenhum outro ferimento em seu corpo. A perda da voz era um excelente motivo para o suicídio. A conclusão, depois de uma investigação rotineira, baseada na impossibilidade de se introduzir o cano de uma arma, carregada na boca de um homem, sem que ele protestasse, foi de suicídio. Não foi assim?"

   Ambos concordaram.

   "A polícia reabriu o caso? Ou estão comentando a respeito?"

   Os dois negaram.

   "Então vamos prosseguir. Onde está o problema?"

   "Somos nós", falou Peggy.

   "Por quê? O que há de errado com vocês?"

   "Tudo". Ela sacudiu a cabeça. "Não, eu não quero dizer tudo; somente uma coisa. Depois da morte de meu marido e da investigação rotineira, saí, viajei um pouco.

Quando voltei, há dois meses atrás, Fred e eu estivemos juntos durante algum tempo, mais isto não era certo, quero dizer que nós não nos sentíamos bem. Anteontem, sexta-feira, fui passar o fim de semana com uns amigos, em Connecticut e ele estava lá. Nenhum de nós sabia que o outro iria. Conversamos muito nestes dois dias e decidimos vir pedir sua ajuda... Na verdade, eu decidi vir vê-lo, e ele não quis que eu viesse sozinha.

   Peggy inclinou-se para frente e foi extremamente enérgica: "O senhor precisa nos ajudar, Sr. Wolfe. Eu amo Fred tanto, tanto! E ele diz que também me ama muito - e eu sei que é verdade! Ontem à tarde decidimos que iríamos nos casar em outubro, mas à noite começamos a conversar... mas não é o que falamos, é o que há em nossos olhos quando olhamos um para o outro. Não podemos nos casar com esta sensação de desconfiança em nosso olhar, lutando para disfarçá-la".

   Um ligeiro tremor tomou conta dela. "Durante anos - para sempre? Não podemos! Sabemos que não podemos - seria terrível! O que é? É uma dúvida terrível: quem matou Alberto? Foi ele? Fui eu? Não penso realmente que ele o tenha feito, e o mesmo acontece com ele - assim espero, mas permanece uma desconfiança em nossos olhares, e sabemos que ela existe!"

   Estendendo ambas as mãos ela falou: "queremos descobrir isto!"

   "Absurdo", resmungou Wolfe. Vocês precisam de uns tapas ou de um psicanalista. A polícia pode ter algumas deficiências, mas não é tão incompetente. Se eles estão satisfeitos se..."

   "Aí é que está! Eles não estariam satisfeitos se tivéssemos dito a verdade!"

"Ah"! As sobrancelhas de Wolfe se levantaram. "Vocês mentiram a eles?"

   "Sim. Ou se não mentimos, de qualquer maneira não lhes dissemos a verdade. Não lhes contamos que quando o vimos, juntos, pela primeira vez, não havia arma lá.

Não havia nenhuma arma à vista.

   "É verdade? Vocês têm certeza?"

   "Absoluta! Nunca vi nada tão claro quanto aquilo... aquela cena. Não havia nenhuma arma".

   Wolfe virou-se para Weppler. "O senhor concorda com isto?"

   "Sim, ela está certa".

   Wolfe suspirou fundo. "Bem", concordou ele, "agora posso ver que estão realmente em dificuldade. Os tapas não iriam ajudá-los muito..."

   Mudei de posição em minha cadeira por causa de um formigamento que sentia no fim da espinha.

   A antiga casa de pedras de Nero Wolfe na Rua 35 - Oeste, era um lugar interessante para se viver e trabalhar - para Fritz Brenner, o cozinheiro e copeiro e para Theodore Horstmann, que cuidava e cultivava as dez mil orquídeas da estufa, em cima, no telhado, e para mim, Archie Goodwin, cujo principal campo de operações ficava no grande escritório do andar térreo. Naturalmente eu achava que meu trabalho era o mais interessante, visto que o assistente de confiança de um famoso detetive particular está tendo constantemente uma porção de problemas difíceis, de todos os tipos, desde um colar desaparecido até uma nova chantagem. Realmente, muito poucos clientes me aborreciam. Mas somente uma espécie de caso me provocava aquele formigamento na espinha: homicídio. E se este casal de pombinhos estava falando sério, aquilo era verdade!

  

   Eu preenchera dois cadernos de apontamentos quando eles se foram, mais de duas horas depois.

   Se tivessem pensado nisto antes de terem telefonado para marcar um encontro com Wolfe, provavelmente não teriam ligado. Tudo que pretendiam, como disse Wolfe, era o impossível. Queriam Wolfe, primeiro, para investigar um crime ocorrido há quatro meses atrás; segundo, para provar que nenhum dos dois assassinara Alberto Mion, o que podia ser feito somente se achassem quem o matara; terceiro, no caso de ele descobrir que um deles era o culpado, arquivar o caso e esquecer-se. Não que tivessem colocado a coisa dessa maneira, desde que a história deles induzia que ambos eram, absolutamente, inocentes. Mas aquilo era, em resumo, o que queriam.

   Wolfe tornou tudo claro e simples. "Se eu pegar o caso", disse-lhes, "e achar provas para acusar alguém de homicídio, não importa quem, o uso que farei delas dependerá somente do meu critério. Não sou nenhuma Astréia nem sádico, porém não pretendo me amarrar em nenhum compromisso. Por isso, se quiserem sair agora, aqui está o seu cheque, e o Sr. Goodwin destruirá o caderno de notas. Podemos terminar tudo e esquecer que estiveram aqui".

   Aquele foi um dos momentos em que eles estiveram a ponto de se levantar e sair, principalmente Fred Weppler, mas não o fizeram. Olharam um para o outro e seus olhares diziam tudo. Naquela altura eu já estava a ponto de gostar deles e até começando a admirá-los; estavam realmente decididos a se livrarem daquela armadilha

em que se encontravam! Quando se olharam era como se seus olhos dissessem: "vamos embora juntos, meu amor, vamos esquecer tudo - vamos, vamos". Então eles enunciaram:

"Seria tão maravilhoso! Seria, mas... não queremos essa maravilha durante um dia ou uma semana; queremos que seja sempre maravilhoso - e sabemos que..."

   Era preciso coragem e senso prático para pensar assim, e por diversas vezes me senti emocionado com aquilo. Além de tudo, é claro, havia o cheque de cinco mil dólares sobre a mesa de Wolfe...

   As anotações estavam cheias das questões mais variadas. Havia muitos indícios que podiam ou não se tornar pertinentes, tais como a antipatia mútua entre Peggy Mion e Rupert Grove, o empresário de seu marido, ou a ocasião em que Gifford James agrediu Alberto Mion diante de testemunhas, ou as atitudes de várias pessoas em relação às demandas de Mion por perdas e danos; mas não se podia usar tudo, e mesmo Wolfe nunca precisaria mais do que uma parte daquilo; portanto, eu selecionaria e escolheria as anotações. É claro que o revólver era a prova A. Era novo, e tinha sido comprado por Mion no dia seguinte em que Gifford James o havia agredido e machucado sua laringe - ele afirmara que não era para se vingar de James, mas para se proteger no futuro... Mion o carregava no bolso sempre que saía e em casa o guardava no estúdio, na base de um busto de Caruso. Portanto, até onde sabíamos, aquele revólver nunca tinha dado um tiro, a não ser aquele que o matara.

   Quando o Dr. Lloyd chegara e Weppler o conduzira ao estúdio a arma estava no chão, não muito distante do joelho de Mion. O Dr. Lloyd estirara a mão em sua direção, mas a tinha encolhido sem que a tivesse tocado; portanto ela estivera ali até a hora em que a polícia chegou. Peggy fora positiva: a arma não estava lá quando ela e Fred tinham entrado - e ele concordava com ela. Os policiais não encontraram impressões digitais, o que não era de surpreender porque as que são achadas em um revólver quase nunca são boas. Contudo, do começo ao fim das duas horas e meia, Wolfe ficou voltando sempre a falar do revólver inconstante - que voava de um lado para o outro - apesar de que, ao que eu saiba, um revólver não tem asas!

   Uma descrição do dia e do que cada um fizera nesse dia tinha sido elaborada. A manhã parecia irrelevante, portanto tudo começava na hora do almoço, com cinco pessoas: Mion, Peggy, Fred Weppler, uma tal Adele Bosley e o Dr. Lloyd. Fora um almoço mais de negócios do que social. Fred fora convidado porque Mion queria lhe vender a idéia de escrever um artigo para o Gazette dizendo que os rumores de que ele não poderia mais cantar eram absurdos e maldosos. Adele Bosley, encarregada de relações públicas do Metropolitan Opera tinha ido para ajudar Fred. O Dr. Lloyd fora consultado, e podia assegurar a Weppler que a operação feita em Mion resultará num sucesso e podia apostar que por ocasião da abertura da temporada da ópera, em novembro, o grande tenor estaria tão bom como nunca. Nada de especial sucedera, exceto que Fred concordara em escrever o artigo. Adele Bosley e Lloyd tinham saído, Mion subira para o estúdio à prova de som, e Fred e Peggy depois de se entreolharem, de repente, tinham descoberto a coisa mais importante da vida desde o jardim do Paraíso...

   Depois de pouco mais de uma hora ocorrera um outro encontro, desta vez, lá em cima, no estúdio; era cerca de três e meia, mas nem Fred nem Peggy estiveram presentes.

A esta hora Fred, depois de ter andado sozinho e se acalmado, telefonou para Peggy e ela fora se encontrar com ele no parque; portanto a informação deles sobre o encontro no estúdio era por ouvir contar. Além de Mion e do Dr. Lloyd, havia quatro pessoas: Adele Bosley funcionando como relações públicas; o Sr. Rupert Grove, empresário de Mion; o Sr. Gifford James, o barítono que agredira Mion no pescoço há seis semanas atrás e o Juiz Henry Arnold, advogado de James. Este encontro bem menos social do que o almoço, fora marcado para discutir o pedido formal que Mion fizera a Gifford para o pagamento de um quarto de milhão de dólares pelos danos causados em sua laringe!

   Fred e Peggy souberam que a reunião resultará quente em certos momentos, com a temperatura elevada desde o princípio pela atitude de Mion pegando o revólver do busto de Caruso e o colocando sobre a mesa, junto a seu braço. Quanto aos pormenores eles foram superficiais, desde que não tinham estado lá, mas de qualquer modo sabiam que a arma não fora usada. Havia também provas de que Mion estava vivo e bem - exceto por sua laringe - quando a reunião acabou.

   Ele fez dois telefonemas depois da reunião ter terminado, um ao seu barbeiro e outro a uma abastada benfeitora da ópera; seu empresário, Rupert Grove, lhe telefonara pouco depois e por volta das cinco e meia ele tinha telefonado para baixo para que a empregada lhe trouxesse uma garrafa de vermute e um pouco de gelo. Quando ela levou a bandeja para o estúdio ele estava de pé e em plena forma.

   Eu fui cuidadoso em tomar nota corretamente de todos os nomes, desde que parecia provável que o trabalho seria descobrir se um deles estava ligado ao crime; e fui especialmente cuidadoso com o último que anotei: Clara James, a filha de Gifford. Havia três razões para isto. Primeiro, a principal causa da agressão de James contra Mion fora o conhecimento, ou a suspeita - Fred e Peggy não tinham certeza a este respeito - de que Mion tinha ultrapassado a linha de conveniência com a filha de James. Segundo, seu nome era o último da lista obtida por Fred, com o porteiro e o ascensorista, das pessoas que estiveram lá, naquela tarde. Eles afirmaram que ela chegara por volta das seis e um quarto, descido do elevador no décimo terceiro andar, onde ficava o estúdio, chamando-o, novamente, desta vez no décimo segundo andar, pouco depois, talvez uns dez minutos, e, então, deixara o prédio. A terceira razão foi dada por Peggy que ficara no parque até um pouco depois de Fred ter ido embora, quando voltou para casa, chegando lá cerca das cinco horas. Ela não fora ao estúdio, nem visto seu marido. Pouco depois das seis horas, lá pelas seis e meia, atendera a campainha da porta porque a empregada estava ocupada com o jantar. Era Clara James. Estava pálida e tensa como sempre. Perguntou por Alberto e Peggy lhe respondeu que pensava que ele estava em cima, no estúdio. Clara lhe disse que não, que ele não estava lá, mas que não tinha importância. Quando Clara se encaminhou para o elevador, Peggy fechou a porta, não querendo mais visitas, particularmente a de Clara James.

   Pouco depois de meia hora Fred voltou e eles foram, juntos, ao estúdio, encontrando Alberto - não mais de pé, nem em forma...

   Aquele quadro deixou lugar para uma noite inteira de perguntas, mas Wolfe concentrou-se no que ele considerava como questões essenciais. Ainda assim, entramos na terceira hora e no terceiro caderno de notas. Ele ignorou completamente alguns pontos que eu pensava que deviam ser completados: por exemplo Alberto tinha o hábito de conquistar as filhas ou esposas de outros homens e, se assim fosse, quem eram? Pelas coisas que eles tinham dito eu concluí que Alberto fora ousado com as esposas de outros homens, porém, aparentemente, Wolfe não estava interessado naquilo. De tempos em tempos, até o fim, ele estava de volta à arma, e quando eles não tinham nada de novo a acrescentar ele se aborrecia e se tornava sarcástico. Quando ficavam indecisos ele os interpelava, "Qual dos dois está mentindo?"

   Eles pareciam cansados, "Isto não o vai levar a nada", Fred Weppler disse amargamente, "nem a nós tampouco".

   "Seria uma bobagem", protestou Peggy Mion, "vir aqui, dar-lhe este cheque e mentir ao senhor."

   "Então vocês são bobos", respondeu Wolfe friamente. Apontou um dedo em direção a ela e falou "Olhe aqui. Tudo isto poderia ser resolvido, nada disto seria absurdo, exceto por uma coisa: quem pôs o revólver no chão ao lado do corpo? Quando vocês entraram no estúdio ele não estava lá; os dois juram isto, e eu acredito. Vocês saíram e começaram a descer a escada; a senhora caiu e ele a carregou para seu quarto. A senhora não estava inconsciente, estava?"

   "Não". Peggy o encarava. "Eu poderia ter caminhado, mas ele quis me carregar".

   "Não tem problema. Ele a carregou. A senhora ficou em seu quarto. Ele desceu até o andar térreo para conseguir a lista dos possíveis suspeitos - mostrando com isto uma admirável prudência - subiu novamente, chamou a polícia e depois o médico, que chegou sem demora, desde que morava no mesmo prédio. Não se passaram mais de quinze minutos de intervalo entre o momento em que a senhora e o Sr. Weppler deixaram o estúdio e o momento em que ele e o doutor entraram novamente. A porta do estúdio que dá para o hall de entrada do décimo terceiro andar tem uma fechadura automática e estava fechada. Provavelmente ninguém poderia ter entrado durante aqueles quinze minutos. A senhora diz que deixou sua cama e foi para a sala de estar e que ninguém poderia ter passado por lá sem ter sido visto pela senhora. A empregada e a cozinheira estavam na cozinha, sem saber o que estava acontecendo. Portanto ninguém entrou no estúdio e colocou a arma no chão".

   "Alguém o fez", disse Fred obstinadamente.

   "Não sabemos se alguém tem uma chave", insistiu Peggy.

   "Já disse isso antes". Wolfe agora estava contra eles. "Mesmo que todo mundo tivesse uma chave, não acredito nisto e ninguém mais acreditaria".

   Seu olhar voltou-se para mim: "Archie, você acreditaria?"

   "Teria que ver muito mais para isto", admiti.

   "Estão vendo?" perguntou-lhes ele. "O Sr. Goodwin não tem preconceitos contra vocês - muito pelo contrário. Ele está pronto a defendê-los; vejam como ele se apoia em suas anotações pelo prazer de ver vocês se entreolharem. Porém ele concorda comigo que estão mentindo. Desde que ninguém mais poderia ter posto a arma no chão, um de vocês o fez. Preciso saber a este respeito. Talvez certas circunstâncias tenham obrigado vocês a fazê-lo, ou poderiam achar que isso fosse necessário".

   Wolfe olhou para Fred. "Suponha que o senhor abriu a gaveta da penteadeira da Sra. Mion para pegar um remédio, e o revolver estava lá, com o cheiro característico de que tinha sido disparado recentemente... guardado lá, o senhor imediatamente suspeitaria dela. E, naturalmente, o que faria? Exatamente o que deveria fazer: levá-lo para cima e colocá-lo ao lado do corpo sem que ela soubesse disto. Ou..."

   "Absurdo", disse Fred asperamente "Absolutamente absurdo".

   Wolfe olhou para Peggy.

   "Ou suponha que fosse a senhora que tivesse achado a arma em seu quarto depois dele ter descido. Naturalmente a senhora teria..."

   "Isto é uma loucura", respondeu Peggy com vivacidade. "Como poderia a arma ter estado em meu quarto a menos que eu a tivesse colocado lá? Às cinco e meia meu marido estava vivo, eu voltei para casa antes disto e estava ali mesmo, na sala de visitas e em meu quarto, até Fred chegar às sete horas. Portanto a menos que o senhor admita..."

   "Muito bem", concordou Wolfe, "Não no quarto, mas em algum outro lugar. Não posso prosseguir até conseguir isto de um de vocês. Pensem nisto, a arma não podia voar! Aceito uma porção de mentiras de outros, pelo menos de muitos deles, mas de vocês eu quero a verdade".

   "E o senhor a teve", falou Fred.

   "Não, não tive".

   "Então estamos num beco sem saída" Fred levantou-se. "Bem, Peggy?"

   Eles se entreolharam e seus olhos caíram sobre as notas novamente. Quando chegaram ao lugar em que dizia "precisa ser maravilhoso para sempre", Fred sentou-se.

   Mas Wolfe, não tendo participação nas anotações, intrometeu-se: "Um beco sem saída", disse secamente, "que, eu acredito, acaba com o jogo".

   Para mim já estava acabado. Se Wolfe claramente encerra com o jogo de dados nada pode demovê-lo. Levantei-me, apanhei o lindo cheque cor-de-rosa de sua mesa, coloquei-o sobre a minha, pus um peso de papel sobre ele, sentei-me e sorri ironicamente para ele...

   "Concordo que o senhor está absolutamente certo", observei, "pois isto é o que se pode chamar de irrefutável; qualquer dia deveríamos fazer uma lista de clientes que se sentaram aqui e mentiram para nós. Houve Mike Walsh, Calida Frost e aquele sujeito do café, Pratt - ora, dúzias. Mas seu dinheiro era bom e eu não tinha ido tão longe com minhas anotações. Tudo isso por nada?"

   "A respeito destas anotações", falou Fred Weppler firmemente, "Quero que isto fique bem claro..." Wolfe olhou-o firmemente.

   "Viemos aqui", prosseguiu, "contar-lhe um problema, confidencialmente, e pedir-lhe que o investigasse. Sua acusação de que estamos mentindo, me faz pensar se devemos continuar, porém se a Sra. Mion quiser, eu também quero. Mas quero deixar claro que se o senhor contar à polícia ou a alguém mais que falamos que não havia nenhuma arma lá quando entramos, negaremos tudo, a despeito de suas malditas notas! Negaremos tudo!" Olhou para Peggy. "Temos que fazer isto Peggy! Certo?"

   "Ele não contaria à polícia", declarou Peggy com convicção.

   "Talvez não. Mas se o fizer você nega comigo, não nega?"

   "Certamente que sim", prometeu ela, como se ele tivesse lhe pedido para ajudá-lo a matar uma cascavel.

   Wolfe os observava com os lábios cerrados. Obviamente, com o cheque em minha mesa, a caminho do banco, ele decidira somá-los à lista dos Clientes que contavam mentiras e continuar dali. Abriu os olhos largamente para descansá-los, semicerrou-os novamente e falou: "Temos que estabelecer outras coisas antes de continuarmos.

Vocês percebem, é claro, que estou aceitando sua inocência, mas tenho feito milhares de suposições erradas, portanto isto não significa muito. Algum de vocês tem idéia de quem matou o Sr. Mion?"

   Ambos responderam que não...

   "Eu tenho", resmungou ele.

   Eles arregalaram os olhos em sua direção.

   Wolfe concordou. "É somente uma suposição, mas gosto dela. Vai dar trabalho para se tornar válida. Para começar preciso ver as pessoas que vocês mencionaram todos os seis - e seria preferível não forçá-los. Desde que vocês não querem que eles saibam que estou investigando um crime, precisamos criar uma estratégia. Seu marido deixou testamento, Sra. Mion?"

   Ela concordou com a cabeça.

   "A senhora é a herdeira?"

   "Sim, eu...", ela movimentou-se na cadeira. "Eu não preciso dele e não quero".

   "Mas ele é seu. Este testamento faz bem. Um item da herança é o pagamento dos danos devidos pelo Sr. James por sua agressão ao Sr. Mion. A senhora pode perfeitamente reclamar este item. As seis pessoas que quero ver estavam todas, de um modo ou de outro, ligadas a este caso. Vou lhes escrever imediatamente, enviando as cartas esta noite pela Entrega Especial, dizendo-lhes que eu a represento no caso e que gostaria de vê-los em meu escritório amanhã a noite".

   "Isto é impossível!" gritou Peggy chocada. "Eu não poderia! Eu não sonharia em pedir a Gif para pagar os danos... "

   Wolfe bateu com o punho em sua mesa. "Com os diabos!" rugiu ele... "Saiam daqui! Vão! Pensam que assassinos são descobertos recortando bonecos de papel? Primeiro mentem para mim e agora a senhora se recusa a aborrecer as pessoas, inclusive o assassino! Archie, ponha-os para fora!"

   "Ótimo", murmurei. Eu também estava ficando aborrecido. Olhei para os ex-futuros clientes. "Tentem o Exército da Salvação", sugeri. "Eles têm experiência em ajudar gente com problemas.

   Podem levar os cadernos para continuar... pelo preço de custo; seis centavos. Não cobro nada pelo conteúdo".

   Eles estavam se entreolhando.

   "Penso que de algum modo ele tem que vê-los", concordou Fred.. "Ele deve ter uma razão e devo admitir que é uma boa razão. Você não deve nada a eles - a nenhum deles".

   Peggy convenceu-se.

   Depois de acertar alguns pormenores, sendo que o mais importante deles era ter os endereços, eles se foram. A maneira como saíram e a pressa com que os despachamos foi tão longe de ser cordial que dava para pensar em lugar deles serem os clientes eram os suspeitos. Mas o cheque estava sobre a minha mesa! Quando, depois de despedi-los voltei ao escritório, Wolfe estava inclinado para trás com os olhos fechados e uma expressão de desagrado.

   Eu me espreguicei e bocejei. "Isto deveria ser divertido", falei encorajadoramente. "Fazer isto somente para conseguir recuperar os danos. Se o assassino estiver entre os convidados, imagina quanto tempo vai demorar para apanhá-lo? Aposto que ele vai ser agarrado antes que o inquérito chegue a uma decisão".

   "Cale a boca", resmungou ele. "Cabeças duras..."

   "Oh! tenha coração", protestei. "Pessoas apaixonadas não pensam, por isto é que eles têm que contratar pensadores profissionais. O senhor deveria estar alegre e orgulhoso deles o terem escolhido. O que são algumas mentiras quando se está amando? Quando vi..."

   "Fique quieto", repetiu ele. Seus olhos se abriram. "Suas notas... Estas cartas precisam seguir já".

  

   A reunião de segunda-feira à noite durou três horas e o crime não foi mencionado nenhuma vez. Mesmo assim não esteve nem um pouco animada. As cartas tinham sido enviadas de maneira a parecer que Wolfe, como procurador da Sra. Mion, queria verificar se uma soma razoável poderia ser conseguida de Gifford James sem recorrer aos advogados e aos tribunais, e que quantia seria "razoável". De maneira que cada um deles, naturalmente, estava curioso: Gifford James, sua filha Clara, o advogado dele, o juiz Henri Arnold, Adele Bosley, a relações públicas, o Dr. Nicholas Lloyd, como conhecedor do problema e Rupert Grove, que tinha sido o empresário de Mion.

Assim eram seis, o que dava para ficar perfeitamente confortável em nosso espaçoso escritório. Fred e Peggy não tinham sido convidados.

   O trio James chegou junto - e foram tão pontuais que chegaram exatamente quando o relógio marcava nove horas e Wolfe e eu ainda não tínhamos terminado o café, depois do jantar. Eu estava tão curioso para dar uma olhada, que fui abrir a porta ao invés de deixar que Fritz o fizesse. Fritz era o cozinheiro e o supervisor da casa, e como eu, ajudava a fazer mais alegres os dias e os anos de Wolfe. A primeira coisa que me impressionou foi que o barítono tomou a dianteira ao cruzar a porta deixando sua filha e seu advogado para trás. Desde quando eu tinha me sentado, ocasionalmente, ao lado do Lili Rowan, que cantava com James, sua altura e corpulência não me eram desconhecidas, porém fiquei surpreso de que parecesse tão jovem, apesar dele dever estar próximo dos cinqüenta anos. Entregou-me seu chapéu, como se cuidar dele na noite de segunda-feira, 15 de agosto, fosse a única coisa para qual eu tivesse nascido. Infelizmente eu o deixei cair...

   Clara apanhou-o olhando-me. Aquilo mostrava que ela era extremamente observadora, desde que, normalmente, as pessoas não prestam atenção às falhas alheias. Mas ela me viu derrubar o chapéu de seu pai e deu-me um olhar que se prolongou até que praticamente dissesse, "o que você está disfarçando? Mais tarde eu o verei". Aquilo me fez sentir amistoso, mas com alguma reserva. Ela não era somente pálida e tensa, como Peggy o tinha dito, mas seus olhos azuis brilhavam como não deveriam brilhar em uma, moça de sua idade. Todavia eu lhe sorri para mostrar que eu tinha gostado daquele olhar prolongado.

   Enquanto isto o advogado, o Juiz Henry Arnold, tinha pendurado o seu chapéu. Durante o dia eu tinha, é claro, feito perguntas sobre todos eles, e soubera que ele usava o "juiz", só porque, tempos atrás, havia sido juiz do tribunal. Era por isto que todos o chamavam de juiz, apesar da sua aparência ser um desapontamento.

Era franzino, com uma careca tão grande e plana que dava para colocar uma bandeja em cima, e seu nariz era achatado. Ele devia ser melhor por dentro do que por fora, desde que possuía em sua lista de clientes alguns dos mais importantes nomes da Broadway.

   Levando-os ao escritório e apresentando-os a Wolfe, eu lhes indiquei algumas das cadeiras amarelas, mas assim que o barítono avistou a cadeira de couro vermelho se apossou dela. Eu estava ajudando Fritz a preparar as bebidas quando a campainha soou e fui para a frente. Era o Dr. Nicholas Lloyd. Ele não tinha chapéu, e eu achei que o olhar curioso que ele me dirigiu era meramente profissional e automático, para ver se eu estava anêmico, diabético ou qualquer outra coisa. Seu rosto era simpático, com todo comportamento de um médico, ou mesmo de um cirurgião, exatamente à altura da classe que eu tinha descoberto em minhas pesquisas. Quando o encaminhei ao escritório, seus olhos se iluminaram com a visão da mesa cheia de bebidas, e ele foi o melhor freguês - uísque com água e hortelã durante toda a noite.

   Os dois últimos chegaram juntos - pelo menos estavam juntos na varanda quando abri a porta. Provavelmente eu teria dado a cadeira vermelha a Adele Bosley se James não a tivesse ocupado. Ela apertou minha mão e disse que há anos estava esperando conhecer Archie Goodwin, mas aquilo, eu sabia, era somente relações públicas que entravam por um ouvido e saíam por outro...

   O importante é que da minha mesa eu enxergava a maior parte dos perfis ou parte do rosto de todos os presentes; mas a que devia estar na cadeira vermelha, eu via totalmente, e gostava da visão. Adele Bosley era interessante: já devia estar no quinto ou sexto ano primário quando Clara James nasceu, mas sua pele macia e morena, sua boca bem feita sem muito batom e seus belos olhos castanhos formavam um bonito cenário.

   Rupert Grove não apertou minha mão, o que não me desagradou. Ele podia ter sido um ótimo empresário para Alberto Mion, porém não por seu físico. Um homem pode

ser gordo e conservar sua integridade, como por exemplo Falstaff ou, mesmo, Nero Wolfe... Mas aquele sujeito tinha perdido o senso da proporção. Suas pernas curtas,

eram um terço de seu corpo. Se a gente quisesse ser gentil e olhar o seu rosto tinha que se esforçar. Eu assim o fiz, desde que precisava examiná-lo de alto a baixo, e não vi nada que valesse a pena ser lembrado a não ser um par de sagazes e astutos olhos negros.

   Quando os dois últimos se sentaram e se muniram de bebidas, Wolfe começou a disparar as suas armas. Ele disse que sentia muito ter sido necessário pedir-lhes que se sacrificassem em uma noite quente como aquela, mas que a questão em debate só poderia ser respondida justa e eqüitativamente se todos os interessados tivessem a mesma opinião. Os murmúrios de reação foram desde aquiescência à extrema irritação. O juiz Arnold disse, beligerantemente, que não havia questão judicial em debate porque Alberto Mion estava morto.

   "Bobagem", disse Wolfe asperamente. "Se isso fosse verdade o senhor, um advogado, não teria se incomodado em vir. De qualquer maneira, o propósito deste encontro é exatamente evitar que isto se torne uma questão judicial. Quatro dos senhores telefonaram hoje à Sra. Mion para perguntar-lhe se estou trabalhando para ela, e lhes foi respondido que sim. Para o interesse dela quero coletar os fatos. Posso também lhes dizer, sem que isto a prejudique, que ela vai aceitar meus conselhos.

Se eu decidir que uma determinada importância lhe for devida, é claro que os senhores podem discordar; mas se eu for de opinião que ela não tem direito a reclamar nada, ela concordará com isto. Com esta responsabilidade preciso de todos os fatos. Antes de mais nada..."

   "Não estamos em um tribunal", interrompeu Arnold.

   "Não, senhor, não estamos. Mas se preferir discutir isto em um tribunal poderemos fazê-lo".

   Os olhos de Wolfe se moveram pela sala: "Srta. Bosley, seus patrões receberiam bem esta espécie de publicidade? Dr. Lloyd, gostaria de aparecer no banco das testemunhas

ou prefere falar sobre isto, aqui? Sr. Grove como reagiria seu cliente a esse respeito se ele estivesse vivo? Sr. James, o que acha o senhor? O senhor não apreciaria esta publicidade também, apreciaria? Particularmente porque o nome de sua filha iria aparecer..."

   "Por que o nome dela iria aparecer?" perguntou James com sua voz treinada de barítono.

   Wolfe levantou uma mão. "Seria evidente. Ficou estabelecido que exatamente antes de o senhor atacar o Sr. Mion o senhor lhe disse: "Deixe minha filha em paz, seu bastardo".

   Pus a mão em meu bolso. Eu tinha uma regra, justificada pela experiência: sempre que um assassino esteja entre os presentes, ou possa estar, um revólver deve estar à mão. Sem considerar a terceira gaveta de minha mesa, onde eles são guardados, suficientemente à mão, o costume é guardar um em meu bolso, antes de os convidados

se reunirem. Aquele foi o bolso onde enfiei minha mão, sabendo o quanto James era esquentado. No entanto ele não saiu de sua cadeira. "Isto é mentira!" deixou escapar simplesmente.

   Wolfe replicou. "Dez pessoas ouviram o senhor dizer isto. Seria realmente extraordinária publicidade se o senhor negasse isto, sob juramento, e todos os dez se propusessem a testemunhar, contradizendo-o... Honestamente, penso que seria melhor discutir, aqui, comigo".

   "O que quer saber?" perguntou o juiz Arnold.

   "Os fatos. Primeiro, sobre a primeira discussão. Quando falo, gosto de saber o que digo. Sr. Grove, o senhor estava presente quando aconteceu aquela famosa cena.

Citei as palavras do Sr. James corretamente?"

   "Sim". A voz de Grove era de tenor alto, o que me agradava.

   "O senhor o ouviu dizer aquilo?"

   "Sim".

   "Srta. Bosley, a senhora também?"

   Ela parecia constrangida. "Não seria melhor..."

   "Por favor a senhora não está sob juramento; eu estou simplesmente coletando fatos, e foi dito aqui que eu tinha mentido. A senhora o ouviu dizer aquilo?"

   "Sim, ouvi". Os olhos de Adele se dirigiram para James: "sinto muito Gif..."

   "Mas isto não é verdade!" gritou Clara James.

   "Então nós todos estamos mentindo?" perguntou-lhe Wolfe, rispidamente.

   Eu devia tê-la prevenido, quando ela me deu aquele olhar no hall, que tomasse cuidado com ele. Ela não era apenas uma jovem sofisticada e atraente, mas sua esbelteza era do tipo que se consegue não comendo o suficiente, e Wolfe absolutamente não suportava pessoas que não comiam o necessário só para manter a linha... Eu sabia desde o começo, que ele não iria gostar dela...

   Clara voltou-se para ele: "Eu não quis dizer isto", respondeu com desprezo. "Não seja tão sensível! Quero dizer que eu tinha mentido a meu pai. O que ele pensava a respeito de Alberto e eu, não era verdade. Eu só estava blefando com ele porque... não importa por que. De qualquer maneira o que eu disse a ele não era verdade,

e eu então lhe contei tudo naquela noite!"

   "Que noite?"

   "Quando voltamos para casa, depois da festa que fizeram no palco, após a apresentação do Rigoletto. Foi lá, o senhor sabe, que meu pai agrediu Alberto, exatamente lá no palco. Quando chegamos em casa eu lhe contei que o que eu lhe havia dito, antes, a respeito de Alberto e eu, não era verdade".

   "Quando é que estava mentindo? da primeira ou da segunda vez?"

   "Não responda isto, querida", interrompeu o juiz Arnold, profissionalmente, olhando friamente para Wolfe. "Tudo isto é irrelevante. O senhor precisa de fatos, porém de fatos importantes. O que a Srta. James disse a seu pai é secundário".

   Wolfe sacudiu a cabeça. "Oh não". Seus olhos foram da direita para a esquerda e retornaram novamente. "Aparentemente não tornei tudo bem claro. A Sra. Mion quer que eu decida por ela se ela tem direito à indenização, não apenas legalmente, como moralmente. Se se tornar claro que a agressão do Sr. James ao Sr. Mion foi moralmente justificável isto será um fator importante em minha decisão". Ele encarou Clara. "Se minha pergunta é relevante ou não, Srta. James, eu admito que ela foi embaraçosa e antes de tudo convida a falsear a verdade. Eu retiro e proponho outra: a Srta. antes da festa, no palco deu a entender a seu pai que o Sr. Mion a tinha seduzido?"

   "Bem..." Clara riu. Era um riso de soprano, quase atraente. "Que maneira mais linda e antiga de dizer isto! Sim, eu falei. Mas não era verdade!"

   "O senhor acreditava nisto, Sr. James?"

   Gifford James estava tendo dificuldade em conter-se, e eu concordo que aquelas perguntas indiretas a respeito da honra de sua filha, feitas por um estranho, deviam ser difíceis de agüentar. Porém depois de todo aquele tempo não se havia chegado a nada de novo e, de qualquer modo, aquilo era importante. Então ele se esforçou para falar com dignidade e calma: "Sim, eu acreditei no que minha filha me disse".

   Wolfe concordou. "Tanta coisa só por isto", disse ele em tom aliviado. "Estou contente por esta parte estar acabada". Seus olhos se moveram. "Agora, Sr. Grove, fale-me a respeito da reunião no estúdio do Sr. Mion, poucas horas antes dele morrer".

   Rupert, o Gordo, estava com a cabeça inclinada para um lado, com seus olhos negros e sagazes encarando os de Wolfe. "Foi com o propósito", disse ele com sua voz de tenor, "de discutir a exigência que o Sr. Mion tinha feito para o pagamento dos prejuízos".

   "O senhor estava lá?"

   "Naturalmente que estava. Eu era o conselheiro e empresário de Mion. A Sita. Bosley, o Dr. Lloyd, o Sr. James e o juiz Arnold também estavam lá".

   "Quem convocou a reunião? O senhor?"

   "De certo modo, sim. Arnold a sugeriu, e eu falei com Mion e telefonei ao Dr. Lloyd e a Srta. Bosley".

   "O que foi decidido?"

   "Nada. É isto. Nada de definitivo. Havia o problema da extensão do prejuízo... de quando Mion poderia cantar novamente".

   "Qual era sua opinião?"

   Os olhos de Grove se apertaram. "Eu não disse que era o empresário de Mion?"

   "Certamente. Quero dizer que posição o senhor tomou em relação ao pagamento dos prejuízos?"

   "Pensei que um primeiro pagamento de cinqüenta mil dólares deveria ser feito imediatamente. Mesmo que a voz de Mion ficasse boa logo, ele já tinha perdido mais do que aquilo. Sua tournée pela América do Sul tinha sido cancelada e ele não pudera cumprir uma série de contratos para gravações, bem como propostas de espetáculos".

   "Nunca chegaria a cinqüenta mil dólares", afirmou agressivamente o juiz Arnold. "Não havia nada de mal com a sua laringe, mesquinho como ele era! Eu mostrei cálculos..."

   "Vá para o inferno com seus cálculos! Qualquer um pode... "

   "Por favor!" Wolfe bateu na mesa com o punho. "Qual era a opinião do Sr. Mion?"

   "A mesma que a minha, é claro". Grove olhava aborrecido para Arnold enquanto falava com Wolfe. "Já tínhamos discutido isto".

   "Naturalmente". Wolfe olhou para a esquerda. "Como se sentia em relação a isto, Sr. James?"

   "Eu penso", interrompeu Arnold, "que eu deveria falar por meu cliente. Concorda comigo Gif?"

   "Continue", o barítono resmungou.

   Arnold prosseguiu, e tomou mais de uma, das três horas que durou a reunião. Eu estava surpreso que Wolfe não o interrompesse e, afinal, permitisse deixá-lo vaguear a esmo, somente para obter uma prova a mais que confirmasse sua antiga opinião sobre os advogados. Se foi isto, ele o conseguiu. Arnold falou sobre tudo. Tinha uma porção de coisas para dizer a respeito de delitos e crimes, começando por vários séculos atrás, e falando com ênfase sobre a mente de um criminoso. Outro item de que ele falou, mas de passagem, era de interesse atual: abordou realmente as causas imediatas do caso, mas estava tudo tão emaranhado que eu perdi a seqüência e me distraí...

   De vez em quando ele dizia alguma coisa que fazia sentido. A certa hora ele disse: "a idéia de um pagamento antecipado, como eles o chamavam era claramente inadmissível.

Não é razoável esperar que um homem, mesmo que ele tenha estipulado uma obrigação, faça um pagamento antecipado até quase a importância total de dívida, se um método exato de calculá-la já não tenha sido acordado".

   Em outro ponto ele disse: "a exigência de uma soma tão grande pode, de fato, ser caracterizada, certamente, como chantagem. Eles sabiam que se a ação fosse proposta e se nós demonstrássemos que a atitude de meu cliente fora conseqüência do conhecimento de que sua filha tinha sido enganada, o júri provavelmente não concederia a indenização. Mas sabiam, também, que seríamos contrários a apresentar esta defesa".

   "Não seu conhecimento", objetou Wolfe. "Simplesmente sua crença. Sua filha diz que ela o informou erradamente".

   "Nós poderíamos provar que ele tinha conhecimento", Arnold insistiu.

   Olhei para Clara com curiosidade. Ela estava sendo contraditada diretamente na ordem cronológica de suas mentiras e suas verdades, porém, ou nem ela nem seu pai perceberam a implicação daquilo, ou não queriam começar tudo novamente.

   Em outro ponto Arnold disse: "se a atitude de meu cliente foi danosa e os prejuízos exigíveis, a soma não poderia ser calculada até que a extensão do prejuízo fosse conhecida. Nós oferecemos vinte mil dólares, em um só pagamento, para uma quitação geral. Eles recusaram. Queriam um pagamento imediato mas por conta. A princípio recusamos aquilo. Finalmente concordamos somente em uma coisa: que seria feito um esforço para se chegar ao valor do prejuízo. É claro que o Dr. Lloyd estava lá por causa disto. Pediram-lhe que fizesse um prognóstico e ele afirmou que... mas não tenho necessidade de falar. Ele está aqui e o senhor pode obter isto diretamente dele".

   Wolfe concordou: "se o senhor quiser, Doutor?"

   Eu pensei - meu Deus! aqui vamos nós outra vez com um especialista...

   Mas Lloyd teve pena de nós. Conservou-se em nosso nível e não tomou nem uma hora. Antes de falar tomou outro gole de seu (terceiro) uísque com soda e hortelã, que tinha aliviado algumas das linhas de seu simpático rosto e diminuído um pouco a preocupação de seus olhos.

   "Vou tentar me lembrar", falou ele vagarosamente, "exatamente o que eu disse a eles. Primeiro descrevi os danos que o ataque tinha causado. As cartilagens da tiróide e da aritenóide do lado esquerdo tinham sido grandemente prejudicadas, e em menor extensão o cricóide". Ele sorriu - um sorriso superior, mas não arrogante.

"Aguardei duas semanas que com o tratamento indicado uma operação pudesse ser evitada, mas não foi possível. Quando a fizemos, confesso, fiquei aliviado; não era tão mal como tinha pensado. Foi uma operação simples e ele a suportou admiravelmente. Eu não teria arriscado muito se naquele dia tivesse afirmado que a voz dele, em dois meses, estaria tão boa como sempre. No máximo três. A laringe, porém, é um órgão extremamente delicado, e um tenor como Mion é um verdadeiro fenômeno; portanto, fui bastante cauteloso quando disse que ficaria surpreso e desapontado se ele não estivesse bom, completamente bom, para a abertura da próxima temporada da ópera, nos próximos sete meses. Eu acrescentei que minhas esperanças, na verdade, eram um pouco mais otimistas". Lloyd apertou os lábios. "Isto foi tudo, penso. Entretanto, recebi com prazer a sugestão de que meu diagnóstico deveria ser reforçado por Rentner. Aparentemente seria um fator a mais na decisão a respeito da quantia a ser paga pelos prejuízos e eu não queria assumir a responsabilidade sozinho".

   "Rentner? Quem era ele?" perguntou Wolfe.

   "Dr. Abraham Rentner, do Hospital Monte Sinai", replicou Lloyd, em um tom que eu usaria se alguém me perguntasse quem era Sherlock Holmes... "Telefonei a ele e marquei uma consulta para a manhã seguinte".

   "Insisti nela", falou presunçosamente Rupert, o Gordo. Mion tinha o direito de receber, não em um futuro distante, mas imediatamente. Eles não pagariam a menos que um total fosse combinado e se nós tivéssemos que dar um total eu queria estar absolutamente certo que ele seria.suficiente. Não se esqueça que naquele dia Mion não conseguia cantar uma nota!"

   "Ele não seria capaz, de entoar um pianíssimo pelo menos nos próximos dois meses", confirmou Lloyd. "Dei este prazo, como mínimo".

   "Parece", ajuntou o juiz Arnold, "ser uma implicância que nos opuséssemos à sugestão de que fosse ouvida a opinião de um segundo profissional. Devo protestar...

   "O senhor o fez!" gritou Grove.

   "Não o fizemos!" grunhiu Gifford James. "Nós simplesmente..."

   Os três então começaram a vociferar confusamente. Pareceu-me que eles poderiam ter economizado suas energias para o ponto principal da questão. A Sra. Mion iria receber alguma coisa e, se assim fosse, quanto; mas não com aquela atitude infantil. A maior preocupação deles era evitar o menor risco, comprometer-se com qualquer coisa. Wolfe, pacientemente, deixou-os chegar para onde foram conduzidos - nenhum lugar - e então introduziu uma nova voz na discussão. Virou-se para Adele e disse:

   "Srta. Bosley, não ouvimos nada da senhora. De que lado estava?"

  

   Adele Bosley estivera sentada, prestando atenção, bebericando ocasionalmente seu rum Collins - agora o seu segundo - e olhando, penso eu, com uma aparência tremendamente inteligente. Embora estivéssemos no fim de agosto, ela era a única dos seis que estava realmente bronzeada. Suas relações públicas com o sol eram excelentes!

   Ela sacudiu a cabeça. "Eu não estava de nenhum lado, Sr. Wolfe. Meu único interesse era meu patrão, a Associação do Metropolitan Ópera. Naturalmente queríamos tudo acertado reservada-mente, sem nenhum escândalo. Eu não tinha opinião de quanto e quando deveria ser pago".

   "E não disse nada?"

   "Não, eu simplesmente lhes pedi que estabelecessem isto o mais rápido possível".

   "O suficiente!" Clara James deixou escapar com sarcasmo. "Você poderia ter ajudado um pouco meu pai, desde que foi ele que lhe arranjou seu emprego. Ou você..."

   "Fique quieta, Clara!" disse-lhe James com autoridade.

   Mas ela o ignorou e terminou "...ou você já o pagou por isto?"

   Eu estava chocado! O juiz Arnold parecia aflito. Rupert, o Gordo sorria... O Dr. Lloyd tomou um gole do bourbom com água.

   Em vista da atitude indulgente e amistosa que eu estava desenvolvendo em relação a Adele, esperava que ela respondesse alguma coisa à esbelta e glamurosa Srta.

James, porém tudo que ela fez foi apelar ao pai dela. "Você não pode conter essa pirralha, Gif?"

   Então, sem esperar por uma resposta, ela se voltou para Wolfe. "A Srta. James gosta de usar sua imaginação. O que ela insinuou não está no relatório. Em nenhum relatório".

   Wolfe concordou. "Não vai fazer parte deste também". Ele tornou-se sério. "Para voltar aos nossos interesses, a que horas terminou aquela reunião?"

   "Por quê?...o Sr. James e o juiz Arnold saíram primeiro, por volta das quatro e meia. O Dr. Lloyd saiu logo depois. Fiquei uns minutos com Mion e o Sr. Grove, e então saí." "Para onde a senhora foi?" "Para meu escritório, na Broadway".

   "Durante quanto tempo a senhora ficou em seu escritório?' Ela parecia surpresa. "Não sei - sim eu sei, é claro. Até pouco depois das sete horas. Tinha algumas coisas a fazer e datilografei um relatório confidencial sobre a reunião na casa de Mion".

   "A senhora viu Mion outra vez antes dele morrer? Ou telefonou a ele?"

   "Vê-lo?" Ela ainda estava mais surpreendida. "Como eu poderia? O senhor não sabe que ele foi encontrado morto às sete horas? Isto foi antes de eu ter saído do escritório".

   "A senhora telefonou para ele? Entre quatro e meia e sete horas?"

   "Não". Adele estava intrigada e levemente irritada. Fiquei impressionado como Wolfe estava, temerariamente, pisando sobre gelo fino, extremamente perto do perigoso assunto do crime. Adele acrescentou, "Não sei onde o senhor está querendo chegar".

   "Nem eu", disse o juiz Arnold enfaticamente. E sorriu sarcástico. "A menos que seja por força do hábito do senhor estar sempre inquirindo gente onde eles estavam na hora da morte ocorrida violentamente. Por que o senhor não pergunta a todos nós?"

   "Isto é exatamente o que pretendo fazer," respondeu Wolfe imperturbavelmente. "Gostaria de saber por que Mion decidiu se matar, porque esta é a opinião que eu terei que dar à sua viúva. Acredito no que dois ou três de vocês disseram, que ele estava excitado quando aquela reunião terminou, mas não desesperado ou perturbado.

Sei que ele se suicidou; a polícia não pode ter se confundido em uma coisa como esta; mas por quê?"

   "Eu duvido", Adele afirmou. "Se o senhor conhecesse um cantor especialmente um grande artista como Mion - imaginaria o que ele sente quando não consegue nem mesmo falar, exceto em voz. baixa, em sussurros. É horrível".

   "De qualquer modo, o senhor nunca o conheceu", completou Rupert Grove. "Em um ensaio eu o ouvi cantar uma ária como um anjo e então romper em choro porque pensou que tinha pronunciado inarticuladamente uma parte. Num minuto ele estava lá em cima, no céu, e, em seguida, estava desesperado".

   Wolfe resmungou. "De qualquer maneira, nada do que lhe foi dito por alguém nas duas horas antes de seu suicídio é importante para este inquérito, para estabelecer a situação moral da Sra. Mion. Quero saber onde os senhores estavam naquele dia depois da reunião, até as sete horas da noite, e o que fizeram".

   "Meu Deus!" - o juiz Arnold levantou as mãos. Daí baixou-as novamente. "Certo, está ficando tarde. Como a Srta. Bosley lhe disse, meu cliente e eu deixamos juntos o estúdio do Sr. Mion. Fomos ao bar do Churchill, bebemos e conversamos. Pouco depois a Srta. James se juntou a nós, ficou o bastante para um drinque, suponho que meia hora, e saiu. O Sr. James e eu ficamos juntos até depois das sete. Durante aquele tempo nenhum de nós se comunicou com Mion, nem combinou para que alguém mais o fizesse. Acho que disse tudo?"

   "Obrigado", agradeceu Wolfe educadamente. "Naturalmente o senhor concorda, Sr. James?"

   "Sim", respondeu o barítono asperamente. "Isto é uma porção de absurdos violentos".

   "Está começando a parecer assim", concordou Wolfe. "Dr. Lloyd? Se não se importa?"

   Ele não podia estar melhor, desde que tinha sido abrandado por quatro grandes doses de nosso melhor uísque. "Não há problema", respondeu ele prestativamente.

"Visitei cinco clientes, dois na parte superior da 5? Avenida, um no lado Leste e dois no hospital. Fui para casa pouco depois das seis e tinha acabado de me vestir, depois de ter tomado um banho, quando Fred Weppler me telefonou a respeito de Mion. É claro que fui imediatamente".

   "O senhor não viu nem telefonou a Mion?"

   "Não, desde que deixei a reunião. Talvez eu devesse, mas não tive idéia - não sou psiquiatra, mas era seu médico".

   "Ele era instável, não era?"

   "Sim, era". Lloyd apertou os lábios. "É claro que essa opinião não é dada como médico".

   "Longe disto", concordou Wolfe. Ele fixou seu olhar. "Sr. Grove, não preciso lhe perguntar se telefonou a Mion, desde que consta no relato que fez. Por volta das cinco horas?"

   Rupert, o Gordo, tinha sua cabeça inclinada novamente. Aparentemente aquela era a sua posição favorita para conversar. Ele corrigiu Wolfe: "Eram mais de cinco horas. Acho que cinco e um quarto".

   "De onde o senhor telefonou?"

   "Do Clube Harvard".

   Pensei comigo mesmo (que Deus me perdoe) que neste clube aceitam qualquer espécie de pessoas...

   "O que foi dito?"

   "Não muito". Os lábios de Grove se curvaram. "Não é da sua maldita conta, o senhor bem sabe disso. Mas os outros concordaram em falar e por isso eu vou me esforçar.

Eu tinha esquecido de perguntar a ele se iria anunciar um certo produto por um milhão de dólares, e a agência queria uma resposta. Falamos menos de três minutos.

Primeiro ele respondeu que não iria, depois então disse que iria. Isto foi tudo".

   "Ele se parecia com um homem que está pronto para se matar?'

   "Nem de leve. Ele estava mal humorado, mas isso era natural, desde que ele ainda não podia cantar e não esperava poder fazê-lo pelo menos durante os próximos dois meses".

   "Depois que telefonou a Mion o que fez o senhor?"

   "Fiquei no clube. Jantei lá e mal tinha terminado quando chegou a notícia que Mion tinha se suicidado. Eu estava, ainda, entre o sorvete e o café".

   "Isto é muito mau... Quando o senhor telefonou a Mion, tentou novamente persuadi-lo a não apresentar sua queixa contra James?"

   A cabeça de Grove levantou-se.

   "O que é que eu fiz?" perguntou ele.

   "O senhor me ouviu", disse Wolfe secamente. "O que há de surpreendente nisto? Naturalmente a Sra. Mion me informou, desde que eu estou trabalhando para ela. O senhor se opunha primeiramente ao pedido de Mion e tentou demovê-lo disto. O senhor afirmou que a publicidade seria tão prejudicial que não valeria a pena. Ele exigiu que o senhor mantivesse a reinvindicação e ameaçou cancelar seu contrato se assim não o fizesse. Isto não está certo?"

   "Não está". Os olhos negros de Grove estavam brilhando. "Não foi nada deste jeito! Eu simplesmente lhe dei minha opinião. Quando ficou decidido prosseguir com a queixa eu concordei". Sua voz se elevou uma nota mais alta, embora eu não pudesse pensar que isto fosse possível. "É claro que eu concordei!"

   "Certo". Wolfe não estava inquirindo. "Agora, qual é sua opinião a respeito da reclamação da Sra. Mion?"

   "Não acho que ela tenha alguma. Não acredito que ela possa cobrar. Se eu estivesse no lugar de James eu não pagaria um centavo a ela".

   Wolfe assentiu: "O senhor não gosta dela, gosta?"

   "Francamente, não. Não, nunca. Eu sou obrigado a gostar dela?"

   "Na verdade, não. Especialmente desde que ela, também, não goste do senhor". Wolfe virou-se em sua cadeira e inclinou-se para trás. Eu podia dizer, pela linha de seus lábios apertados, que o próximo item da agenda não o agradava, e entendi porque, quando vi que seus olhos se dirigiam para Clara James. Eu podia apostar que se ele pudesse prever que tinha que tratar com aquele tipo de moça, não aceitaria o caso.

   Falou, com ela, então, determinadamente. "Srta. James, a senhora ouviu o que foi dito?"

   "Eu estive imaginando", queixou-se ela, como se tivesse sofrendo uma injustiça, "se o senhor continuaria me ignorando. Eu também estava por perto".

   "Eu sei. Não me esqueci da senhora". No tom dele estava implícito que ele fazia somente o que queria. "Quando a senhora tomou um drinque, no bar do Churchill, com seu pai e o juiz Arnold, por que eles a mandaram ao estúdio de Mion para vê-lo? Para quê?"

   Arnold e James protestaram, imediata e simultaneamente, em voz alta. Wolfe não prestando atenção a eles, esperou pela resposta de Clara falando por eles.

   "...não tem nada com eles", ela estava dizendo. "Eu fui por minha conta".

   "A idéia foi sua?"

   "Completamente. Eu pensei nisso sozinha".

   "Por que a senhora foi lá?"

   "Você não precisa responder, meu bem", disse-lhe Arnold.

   Ela o ignorou. "Eles me contaram o que aconteceu durante a reunião e eu fiquei louca. Pensei que era um roubo - mas eu não diria isto a Alberto. Pensei que pudesse convencê-lo a desistir daquilo".

   "A senhora ia apelar em nome dos velhos tempos?"

   Ela olhou satisfeita. "O senhor tem a maneira mais linda de dizer as coisas! Imagine uma moça da minha idade tendo "velhos tempos!"

   "Fico contente em saber que gosta do meu modo de dizer as coisas, Srta. James". Wolfe estava furioso. "De qualquer modo a senhora foi, chegando às seis e um quarto,

não foi?"

   "Sim, por ai".

   "A senhora viu Mion?"

   "Não".

   "Por que não?"

   "Ele não estava lá. Pelo menos..." ela parou. Seus olhos brilhavam demasiadamente. Então prosseguiu: "Isso, então, foi o que pensei. Fui até o décimo terceiro andar e toquei a campainha da porta do estúdio. É uma campainha forte - ele a mandara colocar alta para que pudesse ouvi-la apesar do som de sua voz e do piano, quando estava ensaiando - mas não pude ouvi-la no hall porque a porta também é à prova de som. Depois de eu ter apertado o botão algumas vezes, como não estava certa que a campainha estivesse funcionando, então bati na porta. Gosto de terminar qualquer coisa que eu tenha começado, e eu achava que ele devia estar lá, então toquei mais algumas vezes, tirei meu sapato e bati com o salto na porta. Daí, desci para o décimo segundo andar pela escada e toquei a campainha da porta do apartamento.

Aquilo foi realmente uma estupidez, porque sei o quanto a Sra. Mion me odeia, mas de qualquer modo eu o fiz. Ela atendeu à porta e disse que pensava que Alberto estivesse lá em cima no estúdio; eu lhe disse que não estava e ela bateu a porta em minha cara. Fui para casa e fiz um drinque - isto me lembra, preciso admitir que este uísque é muito bom embora eu nunca tenha ouvido falar dessa marca".

   Ela levantou o seu copo e o mexeu para misturar o gelo. "Alguma pergunta?'

   "Não", resmungou Wolfe, olhando para o relógio na parede e depois para o rosto dos presentes, um a um. "Certamente eu comunicarei à Sra. Mion," disse-lhes ele, "que os senhores não têm relação com os fatos".

   "E que mais?" perguntou Arnold.

   "Não sei. Verei isto depois".

   Eles não gostaram daquilo. Eu não podia imaginar que alguém pudesse falar sobre algum assunto sobre o qual aqueles seis personagens estivessem, unanimemente, de acordo, mas Wolfe resolveu o problema com apenas cinco palavras! Eles queriam uma decisão, uma opinião; na falta disto pelo menos um palpite. Adele Bosley estava inflexível; Rupert, o Gordo, tão indignado que guinchava e o juiz Arnold estava próximo de ser malcriado. Wolfe foi paciente até certo ponto, mas finalmente levantou-se e lhes desejou uma boa noite - como se realmente lhes desejasse aquilo! O modo como terminou foi tal, que antes de saírem, nenhum deles pronunciou uma palavra de agradecimento pelas bebidas, nem mesmo Adele, a especialista em relações públicas, ou o Dr. Lloyd que praticamente tinha esvaziado a garrafa de bourbon.

   Depois de ter fechado e trancado a porta da rua, voltei para o escritório. Para meu espanto Wolfe ainda estava de pé, próximo da estante, examinando os volumes.

   "Inquieto?" perguntei cortesmente.

   Ele voltou-se e disse agressivamente: "quero outra garrafa de cerveja".

   "Bolas. O senhor já tomou cinco desde o jantar". Eu não me preocupava em ter muito tato, porque a rotina era conhecida. Ele tinha se imposto uma quota de cinco garrafas entre o jantar e a hora de dormir, e normalmente se contentava com aquilo. Porém quando alguma coisa fazia seu humor cair mais para baixo do que de costume ele gostava de descarregar sua responsabilidade e, então, podia desabafar também em mim.

   Aquilo era apenas parte do meu trabalho. "Nada feito", falei com firmeza. "Eu as contei. Cinco! Qual é o problema? passou-se uma noite inteira e nada ainda do assassino?"

   "Ora..." Ele apertou os lábios. "Não é por isso. Se fosse assim nós podíamos encerrar o caso antes de ir dormir. É aquele desconcertante revólver a voar de um lado para o outro". Ele me olhou com os olhos apertados, como se suspeitasse que eu também tinha asas. "É claro que eu poderia simplesmente ignorar isto... Não!

Não, em relação à dificuldade em que estão nossos clientes. Seria irresponsabilidade. Temos que esclarecer isto. Não há outra alternativa". "Isto é bobagem. Posso ajudar em alguma coisa?" "Sim; a primeira coisa a fazer, amanhã de manhã, é telefonar ao Sr. Cramer. Peça-lhe que esteja aqui às onze horas".

   Minhas sobrancelhas se levantaram. "Mas ele está somente interessado em homicídios. Devo dizer-lhe que temos um para lhe contar?"

   "Não. Diga-lhe que eu lhe garanto que valerá a pena o trabalho". Wolfe deu um passo em minha direção. "Archie".

   "Sim senhor".

   "Tive uma péssima noite e vou beber outra garrafa".

   "Não senhor. Não tem nenhuma chance". Fritz tinha entrado e nós estávamos começando a limpar tudo. "Já é mais de meia-noite e o senhor está no caminho certo.

Vá para a cama".

   "Uma só não lhe faria mal", murmurou Fritz.

   "Você é uma grande ajuda", respondi com azedume. "Estou prevenindo a ambos, tenho um revólver em meu bolso. Que bela responsabilidade você tem!"

  

   Durante nove meses por ano o inspetor Cramer, de Homicídios, grande, forte e levemente grisalho, tinha uma bela aparência. No tempo de verão, porém, ficava com o rosto tão corado que chegava a ficar cômico. Ele sabia disto e, como não gostasse desta reação, o resultado é que em agosto era muito mais difícil tratar com ele do que em janeiro. Se me aparecesse uma ocasião de cometer um crime em Manhattan, desejaria que isto acontecesse durante o inverno...

   Terça-feira, pelo meio-dia, ele se sentou na cadeira de couro vermelho e olhou para Wolfe sem muita simpatia. Detido por outro compromisso ele não tinha podido chegar às onze horas, hora em que Wolfe interrompia a seção com suas orquídeas nas estufas. Wolfe também não estava exatamente radiante e eu estava na expectativa

de um espetáculo de teatro de revista. Eu também estava curioso para saber como é que Wolfe iria fazer para extrair alguma coisa de Cramer, falando em um crime, sem espalhar a notícia de que tinha havido um, no caso de que o inspetor não era, de modo nenhum, um idiota.

   "Estou no meu caminho para o centro", resmungou ele, "e não tenho muito tempo".

   Aquela com certeza era uma mentira lavada. Ele simplesmente não queria admitir que um inspetor do Distrito Policial de New York aceitaria o convite de um detetive particular, mesmo que este fosse Nero Wolfe, e eu lhe tivesse dito que tínhamos alguma coisa "quente".

   "O que é", grunhiu ele, "o negócio do Dickinson? Quem lhe falou sobre isto?"

   Wolfe sacudiu a cabeça. "Ninguém", graças a Deus. É sobre o assassínio de Alberto Mion".

   Eu arregalei os olhos para ele. Aquilo ia além do que eu podia ter imaginado. Ele conseguira deixar aquele presunçoso perdido.

   "Mion?" Cramer não estava interessado. "Não tenho nada com isso".

   "Logo terá". Alberto Mion, o famoso cantor de ópera. Quatro meses atrás, em dezenove de abril. No seu estúdio na Avenida East End, baleado.

   "Oh!", concordou Cramer. "Certo, eu me lembro. Mas você está exagerando um pouco. Foi suicídio".

   "Não! Foi crime e com uma agravante: premeditado".

   Cramer observou-o atentamente durante uns segundos. Então sem pressa, tirou um charuto do bolso, examinou-o e colocou-o na boca. No mesmo instante porém o tirou novamente.

   "Nunca soube que você tivesse estado tão por fora", comentou ele, "que se deixasse levar por uma dor de cabeça. Quem disse que foi crime?"

   "Eu cheguei a esta conclusão".

   "Ah! Então está certo..." O sarcasmo de Cramer geralmente era um pouco violento. "E você possui alguma evidência?"

   "Nenhuma".

   "Ótimo! Evidências somente confundem um crime". Cramer colocou o charuto na boca e explodiu: "desde quando você começou a guardar as suas malditas opiniões? Então, vá em frente e fale de uma vez!"

   "Bem", concordou Wolfe, "é um pouco difícil. Provavelmente você está pouco familiarizado com os detalhes, desde que ocorreu há tanto tempo atrás e foi considerado como suicídio".

   "Eu me lembro dele muito bem. Como você diz, ele era famoso. Vá em frente".

   Wolfe inclinou-se para trás e cerrou os olhos. "Interrompa-me se precisar. A noite passada eu tinha aqui seis pessoas conversando". Citou seus nomes e as identificou.

Cinco delas estavam presentes na reunião, no estúdio de Mion, que terminou duas horas antes dele ter sido encontrado morto. A sexta, a Srta. James, bateu na porta do estúdio às seis e um quarto e não obteve resposta, presumivelmente por que àquela hora ele já estivesse morto. Minha conclusão de que Mion foi assassinado é baseada em coisas que ouvi dizer. Não vou repeti-las a você, porque isto demoraria muito tempo, além de ser urna questão de ênfase e interpretação, e porque você já deve tê-las ouvido".

   "Eu não estava aqui ontem a noite", disse Cramer secamente.

   "Certo, não estava. Quando falei em "você", eu deveria ter dito o Departamento de Polícia. Tudo deve estar nos arquivos. Eles foram interrogados quando aconteceu, e contaram suas estórias como agora contaram a mim. Pode obtê-las lá. Você alguma vez soube que eu tive que engolir minhas palavras?"

   "Tenho tido vezes em que gostaria de enfiá-las por sua garganta abaixo".

   "Porém você nunca o fez... Pois aqui estão mais três que eu não engolirei: Mion foi assassinado. Não vou lhe dizer, agora, como cheguei a esta conclusão; estude em seus arquivos".

   Cramer estava tentando se controlar. "Não tenho que estudá-los", replicou ele, "por um único detalhe - o modo como ele foi morto. Você está dizendo que ele disparou a arma, ele mesmo, mas foi levado a isto?"

   "Não. O assassino disparou a arma".

   "Deve ter sido um assassino brilhante. É extraordinário pedir a um sujeito para abrira boca, enfiar uma arma nela sem nem mesmo levar uma mordida. Você se importaria de me dizer o nome dele?"

   Wolfe sacudiu a cabeça. "Ainda não fui tão longe. Mas não é este problema que está me preocupando; este pode ser resolvido. É alguma coisa mais". Ele inclinou-se para a frente e falou honestamente. "Olhe aqui, Cramer. Não me seria impossível descobrir tudo sozinho, entregar o assassino e as evidências à Polícia, bater minhas asas e voar. Porém, primeiro, não tenho intenção de expô-lo ao ridículo, como um palhaço, desde que não o é; e segundo, preciso de sua ajuda. Eu ainda não estou preparado para provar a você que Mion foi assassinado; só posso lhe assegurar que ele o foi e repito que não vou ter que engolir isto - e nem tam pouco você. Isto não é o suficiente pelo menos para despertar o interesse?"

   Cramer parou de mastigar o charuto. Ele nunca os acendia. "Claro", disse ele sobriamente. "Com os infernos, eu estou interessado. Outra dor de cabeça de primeira classe. Estou lisonjeado que queira que eu o ajude. Mas como?"

   "Quero que você prenda duas pessoas como testemunhas materiais, as interrogue e as deixe em liberdade sob fiança".

   "Duas? E por que não as seis?" Posso assegurar-lhes que o sarcasmo de Cramer era dos grandes...

   "Mas" - Wolfe ignorou aquilo - "sob condições claramente definidas. Eles não podem saber que sou eu o responsável; não devem nem mesmo saber que eu falei com você. As prisões precisam ser feitas ainda no fim da tarde ou logo amanhã cedo; então serão mantidos sob custódia durante toda a noite até que eles consigam a fiança pela manhã. Esta fiança não precisa ser alta; isto não é importante. O interrogatório deverá ser minucioso, prolongado e severo, não simplesmente uma rotina e se eles dormirem pouco, ou mesmo não dormirem, melhor. É claro que este tipo de coisa é rotineira para vocês".

   "Sim, fazemos isto constantemente". O tom de Cramer era monótono. "Porém quando for pedir uma ordem de prisão gostaria de ter uma boa razão. Não queria colocar embaixo que era para fazer um favor especial a Nero Wolfe. Não posso ser contraditório".

   "Há boas razões para estas ordens. Eles são testemunhas materiais. Realmente o são".

   "Você não me disse seus nomes. Quem são eles?"

   "O homem e a mulher-que acharam o corpo: o Sr. Frederick Weppler, o crítico de música e a Sra. Mion, a viúva".

   Desta vez não arregalei os olhos, mas tive de me refazer rápido. Sempre havia desse tipo de coisas em minha situação. Muitas vezes tinha visto Wolfe ir bem longe, em algumas ocasiões, longe até demais; por exemplo, evitar que um cliente fosse detido. Ele considerava isto como situação muito penosa. E aqui estava ele, praticamente implorando à Polícia para deter Fred e Peggy, quando eu tinha depositado o cheque dela, de cinco mil dólares, exatamente no dia anterior!"

   "Oh", disse Cramer. "Eles?"

   "Sim senhor", Wolfe assegurou-lhe compreensivamente. "Como você sabe, ou pode saber pelos arquivos, há uma porção de coisas para serem perguntadas a eles. O Sr. Weppler almoçou em casa de Mion naquele dia, juntamente com várias outras pessoas. Depois que os outros foram embora, ele permaneceu lá, com a Sra. Mion. O que conversaram?

O que fizeram naquela tarde; onde eles estiveram? Por que o Sr. Weppler voltou ao apartamento de Mion às sete horas? Por que ele e a Sra. Mion subiram juntos ao estúdio? Depois de achar o corpo, por que o Sr. Weppler desceu as escadas antes de comunicar-se com a polícia, para obter uma lista de nomes com o porteiro e com o ascensorista? Uma atuação incomum. Era hábito de Mion tirar um cochilo durante a tarde? Ele costumava dormir com a boca aberta?"

   "Muito agradecido", falou Cramer ironicamente. "Você é maravilhoso, pensar até nas perguntas a serem feitas. Mas mesmo que Mion tirasse sonecas com a boca aberta, duvido que ele o fizesse em pé. E depois da bala sair de sua cabeça, alojou-se no teto, se bem me recordo. Agora", e Cramer colocou as mãos sobre os braços da cadeira, com o charuto preso entre os dentes, mais ou menos no ângulo em que o revólver provavelmente teria ficado na boca de Mion, "quem é o seu cliente?"

   "Não", respondeu Wolfe com certo constrangimento. "Não estou pronto para revelar isto".

   "Eu sabia disto. De fato não há o diabo de uma única coisa que você tenha revelado. Não tem provas, ou se tem alguma, a está guardando muito bem guardada. Você chegou a uma conclusão que lhe agrada, que vai ajudar a um cliente que não revela, e quer que eu a teste para si prendendo dois respeitáveis cidadãos e dando-lhes muito trabalho. Tenho visto esquisitices de sua parte, mas esta, é o máximo, pelo amor de Deus!"

   "Eu lhe disse que não ia engolir isto, e nem você. Se..."

   "Você vai engolir é uma de suas orquídeas se tiver que pagar uma indenização!"

   Aquilo iniciou o tiroteio. Eu já me sentei muitas vezes para assistir aqueles dois numa luta cerrada - e tenho me divertido em cada minuto dela. Mas aquela tornou-se tão violenta que já não estava muito certo de estar me divertindo.

Às 12:40 Cramer estava de pé, preparando-se para sair. As 12:45 estava de volta à cadeira vermelha, sacudindo os punhos e vociferando. Às 12:48 Wolfe estava inclinado para trás em sua cadeira, com os olhos fechados, fingindo-se de surdo. Às 12:52 ele estava esmurrando sua mesa e urrando. À uma e dez tudo estava terminado: Cramer tinha concordado e partido. Ele tinha imposto uma condição: que houvesse primeiro um exame dos relatórios e uma conversa com o seu pessoal. Mas aquilo não tinha importância desde que as prisões fossem adiadas para depois que os juízes tivessem encerrado o expediente. Ele aceitou a condição de que as vítimas não ficassem sabendo que Wolfe interferira no caso. Poderia ter dito que ele estava simplesmente usando o bom senso. Não importava o quanto ele não levasse em conta as três palavras que não eram para ser engolidas - apesar de saber, por experiência, como era arriscado não levar Wolfe em conta, exatamente pelo inferno que isso poderia dar - elas faziam a coisa provavelmente possível, e não havia mal nenhum dar uma outra olhada na morte de Mion;e naquele caso uma sessão com o casal que tinha achado o corpo era um começo tão bom corno qualquer outro. Realmente, a única coisa que aborrecia Cramer era a recusa de Wolfe em dizer quem era o seu cliente.

   Enquanto eu seguia Wolfe até a sala de jantar, para o almoço, comentei sobre seu estouro anterior: "já existem oitocentas e nove pessoas na área metropolitana que gostariam de envenená-lo. Isto vai fazer com que se tornem oitocentas e onze. Não pense que mais cedo ou mais tarde eles não vão encontrar um meio".

   "É claro que vão", respondeu ele, puxando sua cadeira para trás. "Porém, tarde demais".

   Até onde soubemos durante o resto do dia e da noite não aconteceu mais nada.

  

   Eu estava em minha mesa, no escritório, às 10:40 da manhã seguinte, quando o telefone tocou. Atendi dizendo "Escritório de Nero Wolfe, Archie Goodwin falando".

   "Quero falar com o Sr. Wolfe".

   "Ele não estará disponível até às onze horas. Posso ajudá-lo?"

   "Isto é urgente. Aqui é Weppler, Frederick Weppler. Estou numa cabine telefônica em uma drogaria na 9ª Avenida próximo da Rua 20. A Sra. Mion está comigo. Nós fomos detidos".

   "Deus do céu!" Eu fingi que estava apavorado."Por quê?"

   "Para nos interrogarem sobre a morte de Mion. Eles tinham ordem de prisão. Detiveram-nos toda a noite e acabamos de sermos soltos sob fiança. Eu arranjei um advogado para a fiança, mas não quero que ele saiba a respeito... do que tratamos com Wolfe. Ele não está conosco. Queremos ver Wolfe".

   "Certamente", concordei. "É o cúmulo da ousadia. Venham para cá imediatamente. Ele descerá das suas estufas a tempo de vocês chegarem. Tomem um táxi".

   "Não podemos. Por isto estou ligando. Estamos sendo seguidos por dois detetives e não queremos que eles saibam que vamos ver Wolfe. Como podemos nos livrar deles?"

   Muito tempo e energia seriam economizados se eu lhe dissesse que não se importasse com aqueles dois, porém achei que seria melhor continuar com a encenação.

   "Pelo amor de Deus", enunciei, muito aborrecido. "Tiras me dão frio no pescoço. Ouça... Está me ouvindo?"

   "Sim, estou".

   "Vá até a Feder Paper Company, na Rua 17 - Oeste, trinta e cinco. Pergunte no escritório pelo Sr. Sol Feder. Diga-lhe que seu nome é Montgomery. Ele o conduzirá a uma passagem que sai na Rua 18. Exatamente lá, haverá, estacionado junto à guia, ou no estacionamento duplo, um táxi com um lenço no trinco da porta. Eu estarei nele. Não se demorem para tomá-lo. Entendeu tudo?"

   "Penso que sim. É melhor o senhor repetir o endereço".

   Eu o fiz, e mandei que ele esperasse dez minutos antes de começar, para me dar tempo de chegar lá. Então, depois de desligar, telefonei a Sol Feder para instruí-lo, falei com Wolfe no orquidário para informá-lo e saí.

   Eu deveria ter-lhes dito para que esperassem quinze ou vinte minutos em lugar de dez, porque mal pude chegar a tempo. Meu táxi tinha acabado de parar e eu estava saindo para amarrar meu lenço no trinco da porta, quando eles vieram pela calçada como dois fugitivos do inferno. Abri a porta e Fred praticamente atirou Peggy para dentro e mergulhou atrás dela.

   "Okay", eu disse positivamente ao motorista, "o senhor sabe para onde", e partimos.

   Enquanto corríamos na 10ª Avenida, perguntei-lhes se tinham tomado café ao que responderam afirmativamente, porém sem muito entusiasmo. O fato é que pareciam inteiramente desanimados. O casaco verde que Peggy usava, sobre um vestido marrom de algodão, estava amarrotado, não muito limpo e seu rosto descuidado. O cabelo de Fred parecia não ter sido penteado há um mês e seu terno tropical marrom tinha algo de sujo. Eles se sentaram de mãos dadas e um minuto depois Fred se virou para olhar através do vidro traseiro.

   "Está tudo bem", eu lhe assegurei. "Tenho Sol Feder reservado exatamente para uma emergência como esta".

   Foi uma corrida de apenas cinco minutos. Quando eu os conduzi para o escritório, Wolfe estava lá em sua grande poltrona, atrás de sua mesa. Levantou-se para cumprimentá-los, convidou-os a sentar, perguntou-lhes se tinham tomado café e disse-lhes que a notícia de sua prisão tinha sido um choque muito desagradável.

   "Uma coisa", Fred deixou escapar ainda de pé. "Viemos vê-lo e consultá-lo confidencialmente, e menos de quarenta e oito horas depois fomos detidos. Isto foi pura coincidência?"

   Wolfe ajeitou-se em sua cadeira. "Isto não vai nos ajudar em nada Weppler", respondeu sem ressentimento. "Se o senhor está exaltado, é melhor que se acalme. O Sr. e a Sra. Mion são meus clientes. Uma insinuação de que eu sou capaz de agir contra o interesse de um cliente é muito pueril para ser discutida. O que a polícia lhes perguntou?"

   Mas Fred ainda não estava satisfeito. "O senhor não é um delator", falou ele, "Eu sei disto, mas a respeito de Goodwin? Ele também pode não ser um delator, mas pode não ter tido cuidado ao falar com alguém".

   Os olhos de Wolfe se moveram. "Archie. Por favor, responda".

   "O senhor me conhece, sabe que não faria isto. Mas ele pode deixar para me pedir desculpas mais tarde. Tiveram uma noite dura". Olhei para Fred. "Sente-se e relaxe.

Se eu tivesse uma língua comprida assim, não ficaria com este emprego nem uma semana".

   "É muito estranho", insistiu Fred, sentando-se. " A Sra. Mion concorda comigo. Não concorda Peggy?"

   Peggy sentada na cadeira vermelha deu-lhe um olhar e voltou a olhar para Wolfe. "Acho que sim", confessou. "Pensei nisto. Mas agora que estou aqui, olhando para o senhor..." Ela se mexeu na cadeira. "Oh, esqueça isto! Não há mais ninguém para nos ajudar. Conhecemos muitos advogados, é claro, mas não queremos contar a um advogado o que sabemos a respeito do revólver. Já tínhamos falado com o senhor. Agora, porém, a polícia suspeita de alguma coisa; estamos soltos sob fiança e o senhor tem que fazer qualquer coisa!"

   "O que o senhor descobriu segunda-feira à noite?" perguntou Fred. "O senhor falou evasivamente quando lhe telefonei ontem. O que eles lhe disseram?"

   "Repetiram fatos", replicou Wolfe. "Como lhe falei pelo telefone, fiz algum progresso. Agora... não tenho nada a acrescentar. Mas quero saber, preciso saber, que atitude tomou a polícia com vocês. Eles sabiam o que tinham me contado a respeito da arma?"

   Ambos responderam que não. Wolfe resmungou. "Então eu teria o direito de pedir-lhe que retirassem a insinuação de que eu ou o Sr. Goodwin os traímos. A respeito do que eles os interrogaram?"

   As respostas a isto levaram uma boa meia hora. Os tiras não tinham se esquecido de nada que estava incluído nos registros policiais e com as instruções de Cramer não tinham deixado escapar nada. Além do que se referia ao dia da morte de Mion, tinham sido particularmente curiosos a respeito dos sentimentos entre Peggy e Fred e seu comportamento durante os meses antecedentes e subseqüentes àquele dia. Diversas vezes precisei morder a língua para evitar perguntar a nossos clientes por que eles não haviam mandado os tiras pentear macacos, mas no fundo eu sabia a razão: eles estavam assustados, e um homem assustado não sabe bem o que deve fazer.

Na hora em que acabaram de falar eu estava sentindo uma grande simpatia por eles e ao mesmo tempo um pouco culpado pelo que Wolfe estava fazendo, quando de repente ele me assustou. Ele estava sentado, enquanto tamborilava com os dedos o braço de sua cadeira, quando então olhou-me e disse abruptamente, "Archie, preencha um cheque de cinco mil dólares em nome da Sra. Mion".

   Eles olharam estupefatos. Eu levantei e me aproximei dele. Enquanto eles queriam saber o que significava aquilo, fiquei perto do cofre.

   "Estou me demitindo", disse Wolfe secamente. "Não agüento vocês. No domingo eu lhes disse que um de vocês, ou ambos estavam mentindo; vocês negaram obstinadamente.

Aceitei trabalhar apesar de sua mentira e fiz o melhor que pude. Mas agora que a polícia está curiosa a respeito da morte de Mion e especificamente com vocês, eu me recuso a continuar arriscando.Estou querendo bancar o Dom Quixote, mas não um estúpido. Desligando-me de vocês, devo dizer-lhes que vou informar imediatamente ao inspetor Cramer tudo o que me disseram e preveni-los, também, de que ele me conhece muito bem e por isto vai acreditar em mim. Se, quando a polícia começara próxima etapa, vocês forem suficientemente tolos para tentar me contradizer, Deus sabe o que vai acontecer. A melhor coisa será contar-lhes a verdade e deixar que eles prossigam a investigação para a qual vocês tinham me contratado; mas também devo lhes prevenir que eles não são idiotas e também vão saber que estão mentindo - pelo menos um de vocês. Archie o que está aí esperando? Pegue o talão de cheques".

   Abri o cofre.

   Nenhum deles tinha dado um pio. Pensei que estavam cansados demais para reagirem normalmente. Quando voltei à minha mesa eles estavam sentados somente olhando um para o outro. Quando comecei a preencher o canhoto do cheque, a voz de Fred saiu.

   "Não pode fazer isto. Não é ético".

   "Bah!" replicou Wolfe com um ronco. "Vocês me contrataram para os tirar de uma encrenca, mentem a mim a este respeito e vêem falar em ética! Por acaso fiz algum sucesso na segunda-feira à noite. Esclareci tudo a respeito de dois casos, mas o diabo é que um deles depende de vocês. Tenho que saber quem pôs aquela arma no chão ao lado do cadáver. Estou convencido de que foi um de vocês dois, mas não querem admitir isto. Portanto não tenho remédio, e isto é uma pena, por que também estou convencido que nenhum de vocês está envolvido na morte de Mion. Se houvesse..."

   "Que quer dizer?", perguntou Fred. Agora sua reação era perfeitamente normal. "O senhor está convencido de que nenhum de nós está envolvido?"

   "Estou".

   Fred tinha se levantado de sua cadeira. Caminhou para a mesa de Wolfe, colocou as mãos sobre ela e inclinando-se para frente disse asperamente: "O senhor quer dizer isto mesmo? Abra os olhos e olhe para mim! É exatamente isto que quer dizer'?"

   "Sim", disse-lhe Wolfe. "E exatamente isto que quero dizer".

   Fred encarou-o por mais um momento e então endireitou-se. "Está bem..." falou. Sua rudeza tinha desaparecido. "Eu coloquei o revólver sobre o chão".

   Um gemido de dor veio de Peggy. Ela saltou de sua cadeira em sua direção e segurou seus braços com as mãos. "Fred! Não! Fred!" suplicou ela. Eu não imaginava que ela fosse capaz de suplicar, mas acho que estava muito cansada para evitar isto. Ele colocou uma das mãos ao seu redor, mas penso que achou que não seria conveniente tomá-la nos braços. Por um minuto ele a segurou. Finalmente virou-se para Wolfe e falou.

   "Posso me arrepender disto, mas se o fizer o senhor Também se arrependerá, por Deus!" Ele falava com segurança. "Está certo, eu menti. Eu, pus a arma no chão.

Agora dependo do senhor". Ele segurava Peggy fortemente. "Eu o fiz, Peggy. Não me diga que deveria ter-lhe dito talvez eu o devesse - mas não pude. Teria sido melhor, querida, realmente teria...".

   "Sentem-se", interrompeu Wolfe. Depois de um minuto ele ordenou.

   "Parem com isto e sentem-se!"

   Peggy afastou-se e Fred deixou que ela voltasse à sua cadeira e caísse sobre ela, enquanto ele sentava-se no braço desta, colocando a mão sobre os ombros de Peggy.

Seus olhares desconfiados, assustados, desafiadores, mas, ao mesmo tempo, esperançosos estavam em Wolfe. Este então prosseguiu: "Presumo que o senhor entenda como é. O senhor não me impressionou. Eu já sabia que um de vocês tinha posto o revólver lá. Como é que alguém mais poderia ter entrado no estúdio naqueles poucos minutos?

O que o senhor me contou vai ser melhor e mais útil, a menos que não continue dizendo a verdade, lente outra mentira e não sei o que vai acontecer; eu poderei não ser capaz de salvá-lo. Onde o encontrou?"

"Não se preocupe", falou Fred calmamente. "O senhor me arrancou isto e vai ter o resto exatamente como foi. Quando entramos e achamos o corpo, vi que a arma estava onde Mion sempre a guardava, na base do busto de Caruso. A Sra. Mion, não a viu, nem olhou naquela direção. Quando eu a deixei em seu quarto, voltei lá para cima.

Apanhei o revólver pelo gatilho e o cheirei; ele tinha sido disparado. Coloquei-o no chão, perto do corpo, retornei ao apartamento, saí e tomei o elevador para o andar térreo. O resto foi exatamente como lhe contei no domingo".

   "Vocês podiam estar apaixonados", resmungou Wolfe, "porém você não pensou muito na inteligência dela. Você presumiu que depois de matá-lo ela não teria a sagacidade de deixar a arma onde Mion deveria tê-la deixado cair..."

   "Não fiz isto, vá para o inferno!"

   "Tolice. É claro que fez. Quem mais você poderia ter querido proteger? Além do mais aquilo o tinha colocado em apuros. Quando tivesse que concordar com ela que a arma não estava lá, quando vocês entraram, estaria em dificuldades. Você não ousaria contar a ela o que tinha feito, pela implicação que isto teria em dizer que suspeitava dela, principalmente quando parecia que ela estava suspeitando de você. Não podia estar certo se realmente ela desconfiava de você, ou se somente...".

   "Eu nunca suspeitei dele", disse Peggy com firmeza. Foi difícil ela fazer que sua voz soasse firme, mas o conseguiu. "E ele nunca suspeitou de mim, não realmente.

Nós só não estávamos certos... certos do caminho a tomar... e quando se está amando e se quer que coisas durem tem que se estar certo".

   "Foi isto", concordou Fred. Estavam se olhando. "Foi isto exatamente".

   "Certo, vou aceitar". Wolfe falou rapidamente. "Penso que o senhor disse a verdade".

   "O senhor sabe muito bem disso".

   Wolfe concordou. "Suas palavras soam como verdadeiras, e eu tenho bom ouvido para perceber este tipo de coisa. Agora leve a Sra. Mion para casa. Tenho que trabalhar, mas primeiro preciso pensar um pouco. Como eu disse, havia dois pormenores e o senhor esclareceu só um; não pode me ajudar com o outro. Vão para casa e comam alguma coisa".

   "Quem quer comer?" perguntou Fred ferozmente. "Queremos saber o que senhor vai fazer!"

   "Tenho que escovar os dentes", declarou Peggy. Lancei-lhe um olhar de admiração e simpatia. As mulheres às vezes dizem coisas como estas, em horas como estas, e esta é uma das razões pelas quais eu gosto de sua companhia. Nenhum homem, naquelas circunstâncias, pensaria em ter que escovar os dentes e diria isto!

   Além de tudo, aquilo tornou mais fácil ficar livre deles sem ter que ser rude. Fred tentou insistir em que eles tinham o direito de saber qual era o programa, e ajudar a julgar as perspectivas, mas finalmente foi obrigado a aceitar a ordem de Wolfe de que quando alguém contrata um especialista a única autoridade que se tem sobre ele é o direito de demiti-lo. Isto, somado com o desejo de Peggy. de escovar os dentes, e a promessa de Wolfe de que os manteria informados, fez com que eles saíssem sem mais tumultos.

   Quando, depois de acompanhá-los até a saída, eu voltei ao escritório, Wolfe estava tamborilando o mata-borrão com a faca de papel, carrancudo, embora eu já lhe tivesse dito uma centena de vezes que aquilo estragava o mata-borrão. Guardei o talão de cheques no cofre, sem que tivesse escrito no canhoto nada mais além da data; portanto não houvera prejuízo...

   "Vinte minutos até o almoço", anunciei, girando minha cadeira e sentando. "Será que este tempo é suficiente para discutir o segundo pormenor?"

   Nenhuma resposta.

   Fiz de conta que não tinha entendido. "Se não se importa", perguntei delicadamente, "qual é o segundo pormenor?"

   Nenhuma resposta novamente, mas depois de um momento ele deixou cair a faca de papel que tinha na mão, inclinou-se para trás e respirou profundamente.

   "Aquele maldito revólver", resmungou ele. "Como é que foi parar do chão no busto? Quem o colocou lá?"

   Olhei para ele. "Meu Deus", queixei-me, "o senhor é difícil de se contentar. Já teve dois clientes presos e trabalhou que nem um cão para descobrir como é que o revólver foi parar do busto no chão. Agora quer que ele vá do chão ao busto outra vez? Que inferno!"

   "Não outra vez. Antes disso".

   "Antes do quê?"

   "Antes de o corpo ser descoberto". Seus olhos me fixaram. "O que você pensa disto? Um homem - ou uma mulher, não importa quem - entrou no estúdio e matou Mion de um modo que levasse à forte suposição de que tinha sido suicídio. Isto foi deliberadamente planejado desta maneira; e não seria nada difícil que a polícia aceitasse o fato. Então ele colocou a arma na base do busto, vinte passos distante do corpo e fugiu. Que pensa disto?"

   "Eu não penso; eu sei. Isto não aconteceu daquele jeito, a menos que ele de repente ficasse doido depois que tivesse puxado o gatilho, o que parece muito estranho".

   "Precisamente. Tendo planejado para parecer suicídio, ele colocou a arma no chão, perto do corpo. Isto não se discute. Porém o Sr. Weppler a achou na base do busto. Quem a pegou do chão e a colocou lá, quando e por quê?

   "Certo". Esfreguei o nariz. "Isto é terrível. Admito que a questão é importante e objetiva, mas por que diabos o senhor se preocupa com ela? Por que não a deixa de lado? Deixe que ele, ou ela, atormente-se, acuse-se ou aflija-se. Os tiras vão testemunhar que a arma estava lá no chão e isto vai servir para o inquérito desde que foi considerado suicídio. O veredicto, só poderia ser outro se o senhor arranjasse as coisas como motivos e oportunidades". Sacudi a mão. "Simples. Por que então levantar isto tudo a respeito da arma andar de um lado para o outro?"

   Wolfe resmungou. "Os clientes. Tenho que merecer meu salário. Eles querem esclarecer suas mentes e sabem que a arma não estava no chão na hora em que descobriram o corpo. Não posso dizer para o juiz que a arma estava no busto e para os clientes, que estava no chão onde o assassino a colocou. Tendo ela, devido ao Sr. Weppler, ido do busto parar no chão, agora preciso voltar e descobrir como foi parar do chão no busto. Entende isto?"

   "Claramente. Vou assobiar para pedir ajuda. Estou ficando louco. Como está o senhor?"

   "Estou só no começo". Ele endireitou-se. "Mas preciso aliviar minha cabeça para o almoço. Por favor dê-me o catálogo de orquídeas do Sr. Shanks".

   Aquilo era tudo por hora, porque durante as refeições Wolfe excluía negócios não só da conversa como também do ambiente. Depois do almoço ele voltou ao escritório e sentou-se confortavelmente em sua cadeira. Por um tempo ele ficou só sentado, então depois começou a apertar os lábios para dentro e para fora, e eu sabia que ele assim estava trabalhando duro. Não tendo idéia de como ele se propunha a mover a arma do chão para o busto, eu imaginava quanto tempo ia demorar e se ele ia querer que Cramer detivesse mais alguém, e, caso quisesse, quem seria. Já tinha visto sentar-se daquele jeito, trabalhando, durante horas a fio, mas desta vez durou só vinte minutos. Ainda não eram três horas quando ele pronunciou meu nome asperamente e abriu os olhos.

   "Archie".

   "Sim senhor".

   "Não posso fazer isto. Você vai ter que fazer".

   "Quer dizer: resolver o caso? Sinto muito, estou ocupado..."

   "Quero dizer executar". Ele fez uma cara! Não vou encarregar-me de controlar aquela mocinha. Seria uma provação e eu poderia estragar tudo. É exatamente a coisa própria para você. Seu caderno de notas. Vou ditar um documento e depois vamos discuti-lo".

   "Sim, senhor. Mas eu não chamaria a Srta. Bosley de "mocinha".

   "Não é a Srta. Bosley. É a Srta. James".

   "Ah!..." peguei o caderno de notas.

  

Às quatro e quinze, Wolfe estava no orquidário para sua sessão da tarde Com suas orquídeas. Eu me sentei em minha mesa, olhando o telefone e imaginando a reação que um bom boxeador tinha quando levava um golpe duro que o derrubasse. Eu havia telefonado para Clara James para convidá-la para dar uma volta no meu conversível e levara um contra.

   Aquilo me fazia pensar que eu não tinha sido razoável. Sei muito bem, porém, que tive sucesso com uma centena de moças - só porque não convido nenhuma delas a não ser que as circunstâncias indiquem com certeza que vou ser aceito. Portanto isto me acostumou a ouvir sempre sim e desta forma foi um rude choque ouvir aquele injustificável não. Além disto eu tivera o trabalho de mudar de roupa e me vestir com todo o esmero...

   Eu havia arquitetado três planos mas os tinha rejeitado; tramei um quarto e o executei: Peguei o telefone e disquei o número novamente. Clara mesmo o atendeu como já o tinha feito antes. Logo que percebeu que era eu, ficou impaciente.

   "Já lhe disse que tenho um compromisso para um coquetel! Por favor não..."

   "Espere aí", falei rapidamente. "Cometi um erro. Eu estava querendo ser bonzinho. Quero encontrar-me com você em um lugar aberto e bonito antes de lhe dar as más notícias. Eu..."

   "Que más notícias?"

   "Uma mulher acabou de dizer a mim e ao Sr. Wolfe que há, além dela, mais cinco pessoas ou talvez mais, que sabem que você tinha uma chave do estúdio de Mion".

   Silêncio. Há vezes em que o silêncio me irrita, mas aquele não me irritou. Finalmente ela falou, mas sua voz era totalmente diferente.

   "É uma mentira idiota. Quem lhe disse isto?"

   "Esqueci. E não vou discutir isto pelo telefone. Duas coisas, e somente duas. Primeira, se isto correr por aí, o que você- fazia batendo na porta durante dez minutos tentando entrar, enquanto ele estava lá, morto? Quando você tinha a chave? Isto faria até um tira pensar. Segundo, me encontre no bardo Churchill às cinco em ponto e então vamos falar sobre isto. Sim ou não?"

   "Mas isto é tão... você é tão..."

   "Pare. Isto não é bom. Sim ou não?"

   Outro silêncio, porém mais curto; então, "certo", e ela desligou.

   Nunca deixei uma mulher esperando e não via razão para fazer uma exceção desta vez. Então cheguei ao bar oito minutos antes da hora. Era espaçoso, com ar condicionado, confortável sob todos os aspectos mesmo em pleno agosto, e era agradável também em relação aos freqüentadores. Eu o atravessei olhando ao redor, não esperando que ela estivesse lá e fiquei muito surpreso quando ouvi me chamarem e a vi em um reservado.

   É claro que não tinha chegado há muito, mas mesmo assim ela não perdera tempo. Já pedira um drinque, que já estava quase terminado. Sentei-me e imediatamente um garçom se aproximou.

   "Que está bebendo?" perguntei-lhe.

   "Scotch com gelo".

   Pedi ao garçom que trouxesse dois, e ele se foi.

   Ela inclinou-se para mim e começou em um fôlego. "Ouça, isto é absolutamente idiota! Me diga somente quem lhe disse aquilo e porque, é totalmente absurdo..."

   "Um momento". Eu fiz com que ela parasse mais com meu olhar do que com minhas palavras. Os olhos dela brilhavam muito. "Este não é o modo de começar, por que assim não vamos chegar a nada". Tirei um papel do meu bolso e o desdobrei. Era uma cópia datilografada do documento que Wolfe tinha ditado.

   "O modo mais fácil e rápido será você primeiro ler isto e então vai ficar sabendo o que é".

   Entreguei-lhe o papel. Estava datado daquele dia:

  

   Eu, Clara James por meio deste declaro que no dia 19 de abril, quinta feira, entrei no edifício da Avenida East End, em Nova York, por volta das seis e quinze da tarde e tomei o elevador para o décimo terceiro andar. Toquei a campainha da porta do estúdio de Alberto Mion. Ninguém atendeu à porta e não havia ruído nenhum lá dentro. A porta estava fechada, mas não estava trancada, por dentro. Abria porta e entrei.

   O corpo de Alberto Mion estava estirado no chão próximo do piano. Estava morto. Havia um buraco em sua cabeça. Não tinha dúvida de que estava morto. Senti uma tontura e tive que me sentar no chão e abaixar minha cabeça para evitar um desmaio. Não toquei no corpo. Havia um revólver no chão, não muito longe do corpo e eu peguei. Penso que fiquei sentada durante cinco minutos, mas pode ter sido por um pouco mais de tempo. Quando me levantei e me dirigi para a porta, percebi que o revólver ainda estava em minha mão. Eu o coloquei no busto de Caruso. Mais tarde percebi que não devia ter feito aquilo, mas naquela hora estava muito chocada e assustada para saber o que estava fazendo.

   Deixei o estúdio, fechando a porta atrás de mim, desci a escada até o décimo segundo andar e toquei a campainha da porta do apartamento de Mion. Pretendia contar à Sra. Mion o que tinha visto, mas quando ela apareceu na porta, isto me foi impossível. Não podia dizer a ela que seu marido estava lá no estúdio, morto. Depois lamentei isto, mas agora não vejo razão para me lamentar ou me desculpar; eu simplesmente não consegui pronunciar aquelas palavras. Eu lhe disse que queria ver seu marido, tinha tocado a campainha do estúdio e ninguém tinha me respondido. Então chamei o elevador, saí do edifício e fui para casa.

   Não tendo sido capaz de contar à Sra. Mion, não contei a mais ninguém. Deveria ter dito a meu pai, mas ele não estava em casa. Decidi esperar até que ele chegasse para então lhe contar, mas antes disto um amigo me telefonou e me disse que Mion tinha se suicidado, então resolvi não contar a mais ninguém, nem mesmo a meu pai, que eu estivera no estúdio, mas dizer que eu tinha tocado a campainha, balido na porta e não obtido resposta. Pensei que não faria diferença, mas agora me foi explicado que faz e por isto estou declarando exatamente como aconteceu.

  

   Quando ela chegou ao fim o garçom veio com as bebidas e ela segurou o documento contra o peito como se estivesse jogando pôquer. Segurando-o com a mão esquerda, ela apanhou o copo com a direita e tomou um grande gole de uísque. Tomei um pouco do meu para ser educado.

   "Isto é um punhado de mentiras", disse ela indignada.

   "É claro que é", concordei. "Tenho bons ouvidos, por isto fale baixo. O Sr. Wolfe sabe perfeitamente que está lhe dando uma chance, e de qualquer maneira seria muito difícil conseguir que você assinasse este documento se ele contivesse a verdade. Sabemos perfeitamente que a porta do estúdio estava trancada e você a abriu com sua chave. Sabemos também que... não escute um minuto... também que você pegou a arma propositadamente e a colocou no busto porque pensou que a Sra. Mion o tivesse matado e tivesse deixado a arma lá para que parecesse um suicídio, e você queria complicar as coisas para ela. Você não poderia..."

   "Onde você estava?" perguntou ela sarcasticamente. "Escondido atrás do sofá?"

   "Bolas. Se você não tivesse uma chave, por que faltaria a um compromisso para se encontrar comigo só pelo que eu lhe disse pelo telefone? Quanto ao revólver, não poderia ter sido tão estúpida mesmo que você tivesse trabalhado ano inteiro nisso. Quem iria acreditar que alguém tinha atirado nele de modo que parecesse suicídio e então ser idiota bastante para colocar o revólver no busto? Estúpido demais para acreditar, porém você fez isto".

   Ela estava tão preocupada, que não dava para se ofender de ser chamada de estúpida. Sua sobrancelha estava franzida em sua testa pálida e seu olhar sem brilho.

"De qualquer maneira", protestou ela, "o que isto diz não somente é mentira, como é impossível! Eles acharam o revólver no chão perto do corpo! Então isto não pode ser verdade!"

   "Certo". Sorri para ela. "Deve ter sido um choque para você ler aquilo nos jornais. Desde que você tinha pessoalmente posto o revólver no busto, como eles o tinham achado no chão? Obviamente alguém o tinha posto de novo no chão. Suponho que tenha imaginado que a Sra. Mion tenha feito também isto. Deve ter sido duro ficar de boca fechada, mas era preciso. Agora é um pouco diferente. O Sr. Wolfe sabe quem colocou a arma no chão e pode prová-lo. Além disso sabe que Mion foi assassinado e pode provar isto também. O que o detém é a questão de explicar como o revólver foi parar do chão no busto". Peguei minha caneta. "Assine seu nome, eu testemunho isto e tudo fica acertado".

   "Você quer que eu assine isto?" ela falou com desprezo. "Eu não sou estúpida a este ponto".

   Chamei o garçom e pedi duas novas doses e então, para segurar sua companhia, esvaziei meu copo.

   Encontrei seu olhar com a testa franzida. "Escute, olhos azuis", eu lhe disse. "Não estou pretendendo fazer-lhe uma tortura chinesa. Não estou dizendo que podemos provar que você entrou no estúdio - se com sua chave ou porque a porta do estúdio não estava trancada, não importa - e mexeu na arma. Sabemos que o fez, desde que ninguém mais podia ter feito e você estava lá na hora exata, más admito que não podemos provar isto. Entretanto estamos lhe oferecendo uma ótima troca".

   Apontei a caneta para ela. "Agora ouça. Todos nós queremos isto acertado e guardado em segredo no caso de que a pessoa que pôs o revólver de volta no chão seja suficientemente idiota para falar sobre isto, o que não é muito provável. Ele seria somente..."

   "Você disse ele?" perguntou ela.

   "Não faz diferença se é ele ou ela. Como diz o Sr. Wolfe a gramática poderia usar um outro pronome. Ele só estaria criando problemas para si mesmo. Se ele não espalhar isto, e creio que não vai fazê-lo, sua declaração não vai ser utilizada, mas temos que tê-la preparada caso ele o faça. Outra coisa; se tivermos esta declaração não somos obrigados a contar aos tiras que você tinha uma chave da porta do estúdio. Não estamos interessados em chaves. Ainda mais, você vai evitar a seu pai uma grande despesa. Se assinar esta declaração podemos esclarecer o problema da morte de Mion e se o fizermos garanto que a Sra. Mion vai ficar em tal estado de ânimo que não mais exigirá nenhuma indenização de seu pai. Ela vai estar muito ocupada com um certo problema".

   Ofereci-lhe a caneta. "Vá em frente, assine isto".

   Ela sacudiu a cabeça, porém sem muita energia porque seu cérebro estava trabalhando novamente. Reconhecendo o fato de que seu pensamento não estava acostumado àquele tipo de situação, fui paciente. Então as bebidas vieram e houve um recesso, desde que eu não podia esperar que ela pudesse pensar e beber ao mesmo tempo.

Mas finalmente ela chegou ao ponto que eu tinha mirado.

   "Então vocês sabem", declarou ela com satisfação.

   "Sabemos o bastante", falei obscuramente.

   "Vocês sabem que ela o matou. Sabem que ela pôs a arma de volta no chão. Eu também sabia disto, sabia que tinha sido ela. E agora podem provar isto? Se eu assinar vocês podem prová-lo?"

   Certamente eu podia ter desconversado, mas pensei que não valia a pena. "Certamente que podemos", assegurei a ela. "Com esta declaração estamos prontos para fazê-lo.

Este é o elo perdido. Aqui está a caneta".

   Ela levantou o copo e o esvaziou, colocando-o sobre a mesa, sacudiu a cabeça novamente, desta vez com energia. "Não", falou secamente, "não vou fazer isto". Ela me estendeu a mão com o documento. "Admito que tudo é verdade e quando a levarem ao tribunal, se ela disser que pôs o revólver de volta no chão eu vou e juro que eu o pus no busto, mas não vou assinar nada porque uma vez assinei uma coisa a respeito de um acidente e meu pai me fez prometer que eu nunca mais assinaria mais nada sem mostrar a ele primeiro. Eu poderia pegar isto para mostrar a ele e então assinar e você iria buscá-lo esta noite ou amanhã". Ela franziu a testa. "O problema é que ele não sabe que eu tinha uma chave, mas posso lhe explicar isto".

   Entretanto ela já não estava mais com o documento. Eu o tinha pegado de volta. Alguém poderia pensar que eu deveria ter continuado a insistir e brigar, mas quem pensar assim não estava lá vendo-a e ouvindo-a, e eu estava. Desisti. Tirei do bolso o meu caderno de anotações, rasguei uma página e comecei a escrever nela.

   "Quero tomar outro drinque" declarou ela.

   "Em um minuto", resmunguei e continuei escrevendo o que se segue:

  

              A Nero Wolfe

   Por meio desta declaro que Ar chie Goodwin tentou, da melhor maneira, me persuadir a assinar o documento que o senhor escreveu, me explicou o propósito deste e eu lhe disse por que me recusei a assiná-lo.

  

   "Aqui está", eu lhe disse. "Isto não é assinar alguma coisa, é apenas declarar que se recusou a assinar alguma coisa. A razão de eu lhe pedir isto é que o Sr. Wolfe sabe como as garotas bonitas me atraem, especialmente garotas sofisticadas como você, e se eu lhe devolver aquele documento sem assinar ele vai pensar que eu nem mesmo tentei. Ele pode até me despedir. Escreva só o seu nome aqui embaixo".

   Ela o leu novamente e pegou minha caneta. Sorriu para mim, resplandecente. "Não está brincando comigo", falou amistosamente. "Sei quando estou atraindo um homem.

Você pensa que eu sou fria e calculista".

   "Certo?" falei um pouco magoado, porém não muito. "De qualquer modo o problema não é se você me atrai ou não, mas sim o que o Sr. Wolfe vai pensar. Vai ajudar muito se eu tiver isto. Muito obrigado". Peguei o papel de sua mão, dobrei e o guardei.

   "Eu sei quando atraio um homem", declarou ela.

   Não havia ali outra coisa que eu quisesse, mas como eu tinha lhe prometido outro drinque eu o pedi.

   Já eram mais de seis horas quando voltei para a Rua 35-Oeste. Wolfe então, já encerrara sua visita ao orquidário e estava embaixo, no escritório. Entrei e coloquei o documento sem assinatura em sua frente sobre a mesa.

   Ele resmungou. "Bem?"

   Eu sentei e lhe contei exatamente o que tinha acontecido até o ponto em que ela se oferecera para levar o documento para a casa e mostrá-lo a seu pai.

   "Sinto muito", eu lhe disse, "mas muito da sua teimosia não foi notada naquela reunião da outra noite. Não digo isto como desculpa mas simplesmente como um fato.

Sua capacidade de pensar podia carregada dentro de um grão de ervilha. Sabendo o que o senhor pensa de afirmações feitas e querendo convencê-lo da verdade desta, eu lhe trouxe uma prova. Aqui está um papel que ela assinou".

   Entreguei-lhe a página que tinha rasgado do meu caderno. Ele deu uma olhada nela e então me olhou.

   "Ela assinou isto?"

   "Sim, senhor, na minha frente".

   "Verdade? Bom. Satisfatório".

   Eu recebi o elogio com simplicidade. Não feria meus sentimentos aquele "satisfatório".

   "Um golpe bem dado", disse ele. "Ela usou sua caneta?"

   "Sim senhor".

   "posso vê-la, por favor?"

   Eu me levantei e a entreguei a ele, com uma cópia das páginas datilografadas e fiquei olhando interessado enquanto ele escrevia "Clara James" muitas e muitas vezes, comparando cada tentativa com o original que eu segurava. Enquanto isto, de tempos em tempos, ele falava.

   "É pouco provável que alguém venha a ver isto - exceto nossos clientes... Esta está melhor... Ainda há tempo para telefonara todos eles antes do jantar... primeiro a Sra. Mion e o Sr. Weppler... depois os outros... Diga-lhes que minha conclusão está pronta a respeito da indenização da Sra. Mion contra o Sr. James... Se eles puderem vir às nove horas esta noite. Se isto for impossível amanhã às onze horas da manhã eu farei... Então chame o Sr. Cramer... Diga-lhe que ele pode trazer um de seus homens com ele..."

   Ele estendeu a declaração datilografada sob o mata-borrão de sua mesa, falsificou a assinatura de Clara James embaixo e a comparou com a que eu tinha conseguido.

   "Falho para um profissional", murmurou ele, "mas nenhum profissional nunca vai vê-lo. Para nossos clientes, mesmo que eles a vejam, vai funcionar muito bem.

  

   Demorei bem uma hora no telefone para combinar a reunião Para aquela noite, mas finalmente o consegui. Só faltou encontrar Gifford James, mas sua filha se encarregou de contratá-lo e falar com ele. Com os outros eu mesmo falei.

   Os únicos que criaram dificuldades foram nossos clientes, especialmente Peggy Mion. Ela se recusava a ter um encontro com James com o único propósito de cobrar-lhe a indenização e eu tive que apelar para Wolfe. Fred e Peggy foram convidados a chegarem antes dos outros para terem uma reunião particular e, então decidirem se ficariam ou não. Aquilo ela aceitou.

   Chegaram a tempo de nos acompanharem no café, após o jantar. Peggy com certeza, além de ter escovado os dentes, tinha também descansado, tomado um banho e mudado de roupa; apesar disto não parecia muito entusiasmada. Estava ressabiada, aborrecida, distante e cética. Ela não disse, com palavras, que desejava nunca ter chegado perto de Nero Wolfe, porém era o que deixava perceber. Eu tinha a impressão de que Fred Weppler sentia o mesmo, mas ele estava sendo corajoso e persistente. Tinha sido Peggy que tinha insistido para procurar Wolfe e Fred não queria que ela pensasse que ele achava que ela tinha piorado ainda mais as coisas em lugar de melhorá-las.

   Eles não se animaram nem mesmo quando Wolfe lhes mostrou a declaração assinada por Clara James. Eles a leram juntos, ela sentada na poltrona vermelha.

   Ambos olharam para Wolfe.

   "E então?" perguntou Fred.

   "Meu caro senhor", Wolfe empurrou sua xícara, "minha cara senhora. Por que os senhores me procuraram? Porque o fato de o revólver não estar no chão quando entraram no estúdio, os convenceu de que Mion não tinha se suicidado mas que tinha sido morto. Se as circunstâncias lhes tivessem permitido acreditar que tinha sido assim, agora já estariam casados e nunca teriam precisado de mim. Muito bem. Agora são estas, precisamente as circunstâncias. O que querem mais? Suas mentes esclarecidas?

Eu as esclareci".

   Fred apertou firmemente os lábios.

   "Não acredito nisto", disse Peggy sombriamente.

   "Não acredita nesta declaração?' Wolfe alcançou o documento e o colocou na gaveta da mesa - o que me soou como uma sábia precaução, desde que já eram quase nove horas - "A senhora pensa que a Srta. James assinaria uma coisa como esta se não fosse verdade? Por que faria..."

   "Não é isto que eu quero dizer", falou Peggy. "Quero dizer que não acredito que meu marido tenha se suicidado, não importa onde estivesse o revólver. Eu o conhecia muito bem. Ele nunca se mataria - nunca!" Ela girou a cabeça para olhar para Fred. "Ele faria isto, Fred?"

   "É difícil acreditar", admitiu Fred sem muita convicção.

   "Certo", Wolfe foi cáustico. "Então o trabalho para o qual vocês me contrataram não foi como vocês me descreveram. Pelo menos têm Que concordar que os satisfiz a respeito do revólver; vocês não podem mais divagar a este respeito. Portanto, o trabalho está feito, mas agora querem mais. Querem um crime solucionado, o que aplica a necessidade de prender um criminoso. Querem..."

   "Só quero dizer", insistiu Peggy desesperadamente, "que não acredito que ele tenha se suicidado e nada me fará acreditar nisto. Vejo agora o que realmente..."

   A campainha da porta tocou e eu saí para atendê-la.

  

   Assim, nossos clientes ficaram para a festa...

   Havia dez convidados ao todo: os seis que compareceram na segunda-feira à noite, os dois clientes, o inspetor Cramer e meu velho amigo e rival, o sargento Purley Stebbins. O que tornava a festinha diferente é que a mais silenciosa de todos, Clara James, era a única que tinha uma idéia do que ia acontecer, a menos que ela tivesse contado a seu pai, o que eu duvidava. Tinha a vantagem da sugestão que eu lhe dera no bar. Adele Bosley, o Dr. Lloyd, Rupert Grove, o juiz Arnold e Gifford James não tinham razão para supor que houvesse alguma coisa a mais, em pauta, além do pedido de indenização contra James, até que chegaram e foram apresentados ao inspetor Cramer e ao sargento Stebbins. Só Deus sabe o que eles pensaram então; um rápido olhar em suas expressões era suficiente para saber que eles nem sequer imaginavam. Quanto a Cramer e Stebbins, tinham suficiente experiência em relação a Nero Wolfe para saberem que certamente muita coisa ia ser revelada, mas sobre quem, como e quando? Peggy e Fred, mesmo depois da chegada da autoridade, provavelmente pensaram que Wolfe iria desfazer a idéia de suicídio de Mion motivada pela

declaração de Clara e revelando 0 que Fred nos contara a respeito de ter tirado a arma do busto e colocado no chão, a se julgar pela expressão assustada, quase desesperada de seus rostos. Agora, porém, estavam mais confiantes.

   Wolfe olhou fixamente para o inspetor Cramer, que estava sentado próximo ao grande globo, com Purley ao lado. "Se não se importa, Sr. Cramer, primeiro eu vou esclarecer um pequeno problema que está fora de seu interesse".

   Cramer assentiu e trocou a posição do charuto entre seus lábios. Ele acompanhava os movimentos todos com olhos atentos.

   Wolfe olhou então ao redor. "Estou certo que os senhores vão ficar contentes em ouvir isto. Não que eu tenha tomado minha decisão para agradá-los; considerei só os méritos do caso. Sem entrar no mérito da situação legal, sinto que moralmente a Sra. Mion não agiria contra o Sr. James. Como disse, ela não está obrigada a aceitar meu julgamento, mas acredito que não fará a queixa e não pedirá a indenização. A senhora confirma isto perante estas testemunhas, Sra. Mion?"

   "Certamente". Peggy ia acrescentando alguma coisa, mas parou na hora.

   "Isto é maravilhoso!" Adele Bosley estava fora de sua cadeira. "Posso usar o telefone?"

   "Mais tarde", Wolfe respondeu-lhe secamente. "Por favor sente-se".

   "Parece-me", observou o juiz Arnold, "que isto poderia nos ter sido dito pelo telefone. Tive que cancelar um encontro importante". Advogados nunca estão satisfeitos...

   "Perfeitamente certo", concordou Wolfe suavemente, "se isto fosse tudo. Mas existe o problema da morte de Mion. Quando eu..."

   "O que tem uma coisa a ver com a outra?"

   "Estou pronto para lhe dizer. Certamente uma coisa está ligada à outra, desde que a morte dele resultou, embora indiretamente, de uma agressão do Sr. James. Porém meu interesse vai além disto. A Sra. Mion me contratou não somente para decidir a respeito da indenização de seu marido contra o Sr. James - isto agora está resolvido - mas também para investigar a morte dele. Ela estava convencida de que ele não tinha se suicidado. Investiguei isso e estou preparado para informar a ela".

   "O senhor não precisa da nossa presença aqui para isto", Rupert, o Gordo, falou num grunhido agudo.

   "Preciso de um de vocês. Preciso do assassino".

   "Então não precisa de um de nós", Arnold disse asperamente.

   "Parado!" cortou Wolfe. "Então vão! Todos, menos um de vocês. Vão!"

   Ninguém fez um movimento.

   Wolfe deu a eles cinco segundos. "Então eu vou prosseguir", falou ele secamente. "Como disse, estou preparado para informar, mas a investigação ainda não está concluída. Um detalhe vital vai requerer uma autoridade oficial e é por isto que o inspetor Cramer está presente. Também vai ser necessária ajuda da Sra. Mion; também penso que é bom consultar o Dr. Lloyd, desde que foi ele quem assinou o atestado de óbito". Seus olhos dirigiram-se para Peggy. "Primeiro a senhora".

   "A senhora dará seu consentimento para a autópsia de seu marido?"

   Ela olhou espantada para ele. "Para quê?"

   "Para se ter a prova que foi assassinado, e por quem. É um motivo razoável".

   Ela se acalmou. "Sim, não me importo". Ela pensou que ele estivesse só falando para impressionar.

   Wolfe voltou-se para a esquerda. "O senhor não faz objeção, Dr. Lloyd?"

   Lloyd estava confuso. "Não tenho idéia", respondeu vagarosa e distintamente, "onde o senhor está querendo chegar, mas de qualquer maneira eu não tenho autoridade no caso. Eu simplesmente assinei o atestado".

   "Então o senhor não se opõe a isto. Sr. Cramer: a razão para o pedido de uma autoridade oficial vai surgir em um momento, más deverá saber que o que vai ser requerido é uma autópsia e um relatório feitos pelo Dr. Abraham Rentner do Hospital Monte Sinai".

   "Não se consegue uma autópsia só por curiosidade", resmungou Cramer.

   "Sei disso. Sou mais que um curioso". Os olhos de Wolfe circularam entre todos. "Suponho que todos saibam que uma das principais razões, a maior provavelmente, para a polícia ter decidido que Mion tinha se suicidado foi a maneira de sua morte. É claro que há outros detalhes - como por exemplo a presença da arma ao lado do corpo - e ela os levou em conta. O fator determinante, porém, foi a suposição de que um homem não pode ser assassinado enfiando-se o cano de um revólver em sua boca e puxando-se o gatilho a menos que esteja inconsciente; e não havia sinais de que Mion tivesse sido drogado ou estivesse desmaiado; além disso, a bala atravessou sua cabeça e foi se projetar no teto. Entretanto, embora esta suposição pareça simples, este caso é certamente uma exceção. Isto me veio à cabeça imediatamente na primeira vez que a Sra. Mion veio me consultar. Por que era evidente... mas vou lhes fazer uma simples demonstração. Archie. Pegue um revólver".

   Abri a terceira gaveta de minha mesa e peguei um.

   "Está carregado?"

   Rodei o tambor aberto para verificar. "Não senhor".

   Wolfe retornou aos presentes.

   "O senhor, Sr. James. Como um cantor de ópera penso que seria capaz de obedecer às ordens em um palco. Por favor, levante-se. Este caso é sério, portanto, faça-o com atenção. O senhor é um paciente com dor de garganta e o Sr. Goodwin é o seu médico. Ele vai lhe pedir para abrir a boca para que ele possa examiná-lo. O senhor tem que fazer exatamente como faria nestas circunstâncias. Fará isto?"

   "Mas é óbvio". James, levantando-se, parecia aborrecido. "Não vejo porque isto".

   "Não vem ao caso, faça-me este favor. Mas há um detalhe, faça-o com a maior naturalidade possível".

   "Certo".

   "Bom. Os senhores todos por favor olhem para o rosto do Sr. James. Mais próximos. Vá em frente, Archie".

   Com o revólver em meu bolso caminhei para o Sr. James e lhe disse para abrir bem a boca. Ele o fez. Por um momento seus olhos se cruzaram com os meus enquanto eu espiava sua garganta, então inclinei seu rosto para cima. Sem pressa, tirei o revólver do meu bolso e o enfiei na sua boca até que tocasse no céu da boca. Ele cambaleou e caiu em sua cadeira.

   "O senhor viu o revólver?" perguntou-lhe Wolfe.

   "Não, meus olhos estavam olhando para cima".

   "É só isto". Wolfe olhou para os outros. "Os senhores viram os olhos dele olharem para cima?" Eles sempre olham. Experimentem isto alguma vez. Eu experimentei domingo à noite. Portanto não é impossível, de maneira nenhuma, matar-se um homem deste jeito. Não é mesmo nem difícil, se se for seu médico e houver algum problema em sua garganta. O senhor concorda Dr. Lloyd?"

   Lloyd não tinha se juntado aos outros para olhar o rosto de James. Não tinha sequer movido nenhum músculo. Agora seus lábios tremiam um pouco, mas era tudo.

   Deu o seu melhor sorriso. "Mostrar que uma coisa poderia acontecer", disse ele com voz firme, "não é o mesmo que provar que realmente aconteceu".

   "Certamente que não", concordou Wolfe. "Embora tenhamos alguns fatos: o senhor não tem, realmente, nenhum álibi. Mion o deixaria entrar no estúdio a qualquer hora, sem desconfiar de nada. O senhor conseguiria, facilmente, pegar o revólver da base do busto de Caruso e guardá-lo em seu bolso sem ser visto. Para o senhor, como para ninguém mais, ele atenderia ao pedido de ficar com a boca aberta, sem estranheza nenhuma. Ele foi assassinado logo depois de o senhor ter sido obrigado a marcar uma consulta com Dr. Rentner para examiná-lo também. Esses fatos nós temos, não é?"

   "Mas eles não provam nada", insistiu Lloyd. Sua voz já não era tão segura. Levantou-se de sua cadeira ficando de pé. Não parecia que este movimento tivesse algum propósito; aparentemente não parecia querer continuar sentado como se seus músculos precisassem se movimentar. Isto foi um erro porque endireitando seu corpo, ele começou a tremer.

   "Mas eles vão ajudar", disse-lhe Wolfe, "se conseguirmos mais um - e acho que o temos, se não por que o senhor estaria tremendo tanto? O que foi isto, doutor?

Algum erro infeliz? O senhor teria estragado a operação e arruinado a voz dele para sempre? Suponho que foi isto, desde que a ameaça à sua carreira e à sua reputação eram motivos suficientemente graves para torná-lo um assassino. De qualquer modo logo saberemos, quando o Dr. Rentner fizer autópsia. Não espero que o senhor nos

forneça...".

   "Não fui um desastrado!" Lloyd gritou. "Poderia ter acontecido com qualquer um...".

   Depois disto ele foi realmente desastrado. Penso que o que o fez perder completamente a cabeça foi ouvir sua própria voz, perceber que estava histérica, sem que pudesse evitá-lo. Correu em direção à porta. Derrubei o juiz Arnold enquanto atravessava a sala, o que foi desnecessário, porque quando cheguei, Stebbins já havia agarrado Lloyd pelo pescoço e Cramer estava junto. Ouvindo uma agitação atrás de mim, voltei-me. Clara James tinha se precipitado sobre Peggy Mion guinchando qualquer coisa que não consegui entender, mas seu pai e Adele Bosley a tinham segurado e a estavam acalmando. O juiz Arnold e Rupert, o Gordo, estavam excitados dizendo a

Wolfe o quanto ele era extraordinário. Aparentemente Peggy estava soluçando pela maneira como seus ombros estavam sacudindo, mas não pude ver o seu rosto porque

ele estava enterrado no ombro de Fred, que a abraçava fortemente.

   Ninguém me queria, nem tinha necessidade de mim. Então, fui para a cozinha tomar um copo de leite...

  

                                             Morte No Parque

 

   Era sua aparência que tornava difícil acreditar que estivesse tão nervosa quanto dizia estar.

   "Talvez eu não tenha deixado claro", insistiu ela, torcendo ainda mais os dedos, embora eu já tivesse pedido para parar com aquilo. "Não estou ajudando nada, realmente nada... Se eles já me incriminaram uma vez, isto não é uma boa razão para pensar que eles possam fazê-lo novamente?"

   Se o corado de seu rosto fosse causado por maquiagem e não porque, em virtude do medo seu coração estivesse pulsando mais rápido do que o normal, provavelmente eu teria ficado melhor impressionado. Minha primeira impressão, dela porém, era de uma daquelas figuras penduradas na parede do Sam's Diner na 11ª Avenue o retrato de uma moça de cara redonda com uma mão segurando um balde e a outra apoiada no flanco de uma vaca que ela acabara de - ou ia ordenhar.

   Era ela exatamente, com o mesmo colorido, constituição e candura. Ela parou de torcer os dedos e começou a estalá-los produzindo, com isto, rápidos tlocs.

   "Eles estarão aqui em vinte minutos e eu tenho que vê-lo primeiro!" De repente ela estava fora de sua cadeira, em pé. "Onde está ele? Lá em cima?"

   Tendo suspeitado que ela era impulsiva, eu ficara entre ela e a porta em vez de me sentar em minha mesa.

   "Calma", eu falei. "Quando a senhora fica em pé, começo a tremer, percebi isso quando entrou, por isso sente-se". Já tentara explicar que ao mesmo tempo que aquela sala era o escritório do Sr. Wolfe, o resto era sua casa. Das nove às onze da manhã e das quatro às seis da tarde ele ficava em casa, no orquidário, com suas plantas e não havia o que mudasse isto.

   "Pelo que vi da senhora, penso que é compreensiva, então vou lhe pedir um favor".

   "Qual?"

   "Sente-se e pare de tremer".

   Ela se sentou.

   "Vou lá em cima falar com ele sobre a senhora".

   "O que vai dizer a ele?"

   "Vou lembrar a ele que um homem chamado Ferdinand Pohl telefonou esta manhã marcando uma reunião, para ele e mais outras quatro pessoas, às seis horas, isto é, daqui a quinze minutos. Vou lhe dizer que seu nome é Audrey Rooney e que é uma das quatro, que é bonita e que pode ser simpática, e está apavorada, como a senhora mesmo disse, porque eles estão fingindo que pensam que foi Talbott mas realmente estão tentando incriminar a senhora, e..."

   "Não são todos eles".

   "Alguns deles, de qualquer maneira. Vou dizer a ele que a senhora chegou antes da hora para vê-lo sozinho e informá-lo de que não matou ninguém, principalmente Sigmund Keys e preveni-lo de que ele precisa olhar estes miseráveis como um falcão".

   "Assim desse jeito... parece uma loucura!"

   "Então vou tentar pôr mais sentimento nisto..."

   Ela levantou-se novamente. Caminhou alguns passos em minha direção, apoiou a palma de suas mãos em meus ombros e inclinou a cabeça para trás, olhando-me nos olhos.

   "Você também pode ser simpático", disse ela, esperançosamente.

   "Isto seria esperar demais..." respondi, enquanto me encaminhava para a escada no hall.

   Ferdinand Pohl estava falando.

   Sentado ali, no escritório, com minha cadeira virada, eu estava de costas para minha mesa, com Wolfe na sua, à minha esquerda, e de frente para Pohl. Ele tinha quase o dobro da minha idade. Sentado na poltrona vermelha, na frente de Wolfe, com as pernas cruzadas, sua calça estava levantada de modo que sua perna aparecia até acima da liga da meia. Não havia nada nele que chamasse a atenção além de uma exagerada quantidade de rugas, nada atraentes.

   "O que nos reuniu", ele estava dizendo em um tom agudo e irritante "e nos fez vir aqui, foi nossa opinião unânime de que Sigmund Keys foi assassinado por Victor Talbott, e também nossa convicção..."

   "Unânime não", uma outra voz objetou.

   A voz era macia e agradável aos ouvidos, e sua dona agradável ao olhar. Seu queixo, principalmente, era do tipo que podia ser visto sob qualquer ângulo. A única razão pela qual eu não a tinha feito sentar-se ao meu lado, foi que ao chegar tinha respondido ao meu sorriso de boas vindas com um simples erguer de sobrancelhas.

Decidi então ignorá-la até que aprendesse boas maneiras.

   "Não unânime, Ferdy", repetiu ela.

   "Você disse", Pohl lhe respondeu, com uma voz mais irritante ainda, "que simpatizava com o nosso propósito, queria se juntar a nós e vir aqui conosco".

   Vendo-os e ouvindo-os anotei que eles se odiavam uns aos outros. Ela devia conhecê-lo melhor que eu, desde que o chamava Ferdy, mas evidentemente concordava que não havia nele nada que se pudesse admirar. Eu estava a ponto de começar a pensar que tinha sido muito exigente com ela, quando vi que ela também estava levantando a sobrancelha para ele.

   "Isto", falou, "é muito diferente de ter a opinião de que Vic matou meu pai. Não tenho opinião porque não sei a verdade".

   "Então o que é que você quer?"

"Quero descobrir. Assim como você. E certamente eu concordo que a polícia está sendo completamente imperita".

   "Quem pensa que o matou, se não foi Vic?"

   "Não sei". As sobrancelhas se ergueram novamente. "Porém, desde que herdei os negócios de meu pai, desde que estou noiva de Vic, e algumas coisas mais, preciso muito saber isto. É por isto que estou aqui."

   "Então não devia estar aqui!"

   "Mas estou, Ferdy".

   "Acho que não devia estar!"

   As rugas de Pohl estavam mais profundas. "Eu disse isto e ainda repito. Viemos, então quatro de nós, com um propósito definido; deixar que Nero Wolfe consiga provas de que Vic matou seu pai!" Repentinamente Pohl descruzou as pernas, inclinando-se para frente e encarando Dorothy Keys perguntou abaixando a voz, "e que tal se você o ajudasse?"

   Outras três vozes falaram ao mesmo tempo. Uma disse, "eles estão por fora novamente". "Deixe o Sr. Broadyke contar o caso", falou outra. "Deixe um deles fora disto", disse a terceira.

   Então Wolfe falou: "Se o caso está limitado a estes termos, Sr. Pohl, provar que um homem determinado pelo senhor, foi o assassino, perderam seu tempo. E se não foi ele?"

  

   Muitas coisas já sucederam naquele escritório do andar térreo da antiga casa de pedra escura, de propriedade de Nero Wolfe, durante todos estes anos que tenho trabalhado para ele.

   Esta reunião, em uma tarde de uma terça-feira de outubro, teve um interesse especial. Sigmund Keys, dono de uma empresa de desenho industrial, fora assassinado na terça-feira anterior, exatamente há uma semana. Eu lera a respeito nos jornais e também tivera a oportunidade de, particularmente, ouvir falar sobre o caso, pelo meu amigo e ao mesmo tempo adversário, sargento Purley Stebbins da delegacia de homicídios. A interpretação do profissional chocou-me profundamente.

   Era costume de Keys, de segunda a sexta-feira, às seis e meia da manhã, dar um passeio no parque, e o fazia da maneira mais difícil e estranha: a cavalo, em um animal que ele possuía, chamado Casa-nova e que ficava e era cuidado na Academia de Equitação Stillwell na Rua 98, no lado oeste do parque. Naquela manhã ele montou Casanova como sempre, exatamente às seis e meia, e cavalgou pelo parque. Quarenta minutos depois, às sete e dez, ele foi visto por um polícia-montado, que patrulhava o parque próximo à Rua 66. Em seu percurso costumeiro era exatamente ali que ele costumava passar àquela hora. Vinte e cinco minutos depois, às sete e trinta e cinco, Casanova, com a sela vazia, saiu do parque, rumo ao centro, caminhando pela rua em direção à Academia. O fato provocou curiosidade que depois de quarenta e cinco minutos foi satisfeita quando um guarda achou o corpo de Keys atrás de um arbusto, a vinte metros do caminho para cavaleiros, na altura da Rua 95. Mais tarde uma bala de revólver, calibre 38, foi retirada de seu peito. A polícia tinha concluído, pelas marcas no caminho e pelos rastros deixados através da cerca, que ele fora atirado da sua sela e se arrastara, com dificuldade, pelo pequeno declive em direção ao passeio asfaltado, para pedestres, porém não teve forças para prosseguir.

   Um cavaleiro baleado em sua sela, à vista do Empire State Building, era, evidentemente, manchete para os noticiários e jornais. Nenhuma arma tinha sido achada, nem havia testemunhas. Ninguém tinha nem mesmo informado ter visto algum mascarado escondido atrás de alguma árvore, provavelmente porque muito poucos nova-iorquinos estariam levantados e cavalgando no parque àquela hora da manhã.

   A polícia teve então que começar sua investigação por outro lado pesquisando motivos e circunstâncias. Durante a semana que decorreu, uma série de nomes foi mencionada e várias pessoas intimadas e como resultado as buscas estavam concentradas em seis pessoas. Era o que os jornais diziam e o que apurei com Stebbins. O que deu maior.interesse

àquela reunião de terça-feira à tarde, em nosso escritório, foi o fato de que, daquelas seis pessoas, cinco estavam sentadas ali e aparentemente o que queriam é que Wolfe não se preocupasse com elas para se concentrar única e exclusivamente na tal sexta pessoa, não presente.

  

   "Permita-me dizer", disse Frank Broadyke, uma voz educada, "que o Sr. Pohl colocou mal a coisa. A situação é esta, Sr. Wolfe: o Sr. Pohl nos reuniu e descobrimos, que cada um de nós está sendo objeto de suspeitas totalmente desarrazoadas. E não somente estamos sendo acusados injustamente, de um crime que não cometemos como durante toda a semana a polícia não só não concluiu nada como parece também que não vai chegar a lugar nenhum, enquanto somos deixados com esta suspeita permanentemente pesando sobre nós".

   Broadyke gesticulava com a mão. Não somente sua voz era educada; ele era todo educado. Era um pouco mais jovem do que Pohl e dez vezes mais elegante. Seus modos davam a impressão de que ele estava tendo dificuldade em ser ele mesmo porque (a) estava no escritório de um detetive particular, o que era vulgar, (b) ele tinha vindo ali com pessoas com quem não se dava comumente, o que era embaraçoso, e (c) o objeto da discussão era sua relação com um crime, o que era ridículo.

   No entanto ele continuava falando. O Sr. Pohl sugeriu que o consultássemos e contratássemos seus serviços. Como alguém que vai pagar minha parte da conta, permita-me dizer que o que eu quero é o afastamento desta injusta suspeita. Se o senhor concluir que tem que descobrir o criminoso e as provas contra ele, muito bem. Se for provado que o culpado é Victor Talbott, melhor".

   "Não há se a esse respeito!" explodiu Pohl. "Talbott fez aquilo e o negócio é prová-lo!"

   "Com a minha ajuda, Ferdy, não se esqueça", falou Dorothy Keys com sua voz macia.

   "Como pode ser isto?"

   Os olhos se voltaram para quem até aquela hora só tinha falado, "Eles estão por fora novamente". As cabeças tiveram que girar completamente porque ele estava sentado atrás do arco da sala. O timbre alto de sua voz combinava bem com seu nome, Wayne Safford, porém não com sua forte aparência e os ossos largos de seu rosto.

De acordo com os jornais ele tinha vinte e oito anos, mas aparentava um pouco mais; parecia regular comigo.

   Wolfe assentiu para ele. "Concordo plenamente, Sr. Safford". Os olhos de Wolfe afastaram-se do arco. "O Sr. Pohl quer demais por seu dinheiro. Os senhores podem me contratar para apanhar um cara, senhoras e senhores, mas não podem me dizer qual "cara". Os senhores podem me dizer o que tenho que descobrir - um assassino - mas não podem me dizer quem é ele, a menos que possuam provas. E se for assim por que me pagar? Os senhores têm alguma prova?

   Ninguém disse nada.

   "Tem algum indício, Sr. Pohl?"

   "Não".

   "Como sabe então que foi o Sr. Talbott?"

   "Eu sei, isto é tudo. Todos nós o sabemos! Até a Srta. Keys sabe disto. Mas é muito teimosa para admitir".

   Wolfe olhou ao redor. "Isto é verdade? Todos os senhores estão de acordo?"

   Nenhuma palavra. Nem sim, nem não. Nem assentimentos nem discordâncias.

   "Então, a descoberta do cara fica por minha conta. Está entendido?"

   "Sim".

   "Sr. Safford?"

   "Sim".

   "Srta. Rooney?"

   "Sim. Só que penso que foi Vic Talbott".

   "A senhora está resolvida, Srta. Keys?"

   "Sim".

   "Sr. Pohl?"

   Nenhuma resposta.

   "Preciso ter um compromisso neste caso, Sr. Pohl. Se ficar provado ser o Sr. Talbott o senhor pode pagar um acréscimo. Mas de qualquer forma estou contratado para obter fatos?"

   "Certo, os fatos reais".

   "Não existe outro jeito. Garanto não entregar nenhuma prova que não seja real". Wolfe inclinou-se para frente para apertar um botão em sua mesa. "Esta é realmente a única garantia que lhes posso dar. Devo tornar claro que o senhor fica responsável, coletiva e individualmente, por este compromisso comigo. Agora se..."

   A porta do hall se abriu e Fritz Brenner entrando, aproximou-se.

   "Fritz", disse-lhe Wolfe, "vamos ter cinco convidados para o jantar".

   "Sim senhor", Fritz lhe respondeu sem pestanejar e voltou-se para sair. Isto é o que era ótimo nele, levando-se em conta que ele, além de tudo, não era do tipo que apresentasse um jantar improvisado. Enquanto estava abrindo a porta, ouviu-se um protesto vindo de Frank Broadyke:

   "É melhor preparar para quatro. Vou ter que sair cedo, já tenho um compromisso para jantar".

   "Cancele-o", cortou Wolfe.

   "Creio que não posso, realmente".

   "Então não posso pegar este caso". Wolfe foi ríspido. "O que o senhor espera com este negócio já com uma semana de atraso?" Olhou para o relógio da parede. "Vou precisar dos senhores, de todos os senhores, certamente durante o fim da tarde e provavelmente parte da noite. Preciso conhecer tudo o que sabem sobre o Sr. Keys e o Sr. Talbott. Além disso se eu tenho que retirar esta suspeita injusta da polícia e do público, preciso começar retirando-a de suas próprias cabeças. Isto vai durar muitas horas de trabalho árduo".

   "O senhor suspeita de nós? "suspirou Dorothy Keys, levantando as sobrancelhas.

   Wolfe, ignorando-a, perguntou a Broadyke: "Então?"

   "Tenho que telefonar", resmungou ele.

   "Pois não", respondeu Wolfe como se estivesse cedendo um ponto. Seus olhos se moveram da esquerda para a direita e novamente para a esquerda e se fixaram em Audrey Rooney, cuja cadeira estava um pouco mais para trás, ao lado de Wayne Safford. "Srta. Rooney", ele falou repentinamente, "a senhora parece ser a mais vulnerável, desde que estava mais próxima. Quando foi que o Sr. Keys a despediu do emprego e por quê?"

   Audrey tinha estado sentada rígida e imóvel com os lábios apertados. "Bem, foi..." ela começou, mas parou para limpar a garganta e então não continuou por causa de uma interrupção.

   A campainha da porta tocou e eu tinha deixado que Fritz a atendesse, como era costume quando estava ocupado com Wolfe e convidados, a menos que ordens contrárias fossem dadas. Naquele momento então a porta que dava para o hall se abriu, Fritz entrou e fechando-a atrás de si anunciou, "Um senhor deseja vê-lo; é o Sr. Victor Talbott".

   O nome espalhou-se no meio da sala como formigas num Piquenique.

   "Meu Deus!" exclamou Wayne Safford.

   "Por que diabos?..." começou Frank Broadyke e parou.

   "Então você contou a ele!" Pohl falou com violência a Dorothy Keys, ela simplesmente ergueu as sobrancelhas...

   Eu estava ficando cansado daquele gesto e queria que ela tentasse alguma outra coisa para variar...

   A boca de Audrey Rooney ainda estava aberta!

   "Faça-o entrar", Wolfe ordenou a Fritz.

  

   Como milhares de outras pessoas, eu formara um conceito de Victor Talbott por suas fotografias publicadas nos jornais e dez segundos depois dele se ter juntado a nós, no escritório, eu já concluíra que a idéia que formara estava certa. Ele era o camarada que, em um coquetel, ou antes de um jantar, agarra a bandeja de aperitivos e a passa entre os convidados olhando-os nos olhos e fazendo piadas.

   Com exceção de mim, evidentemente ele era, fácil, o homem mais simpático da sala...

   Entrando deu um rápido olhar e um sorriso a Dorothy, ignorando os outros, foi diretamente à mesa de Wolfe e disse agradavelmente: "O senhor, naturalmente, é Nero Wolfe. Eu sou Vic Talbott. Suponho que o senhor não vai apertar minha mão nestas circunstâncias - isto é, se está aceitando o trabalho que esta gente veio lhe oferecer".

   "Como vai o senhor?" Wolfe respondeu apertando-lhe a mão. "Já apertei a mão de quantos assassinos, Archie?"

   "Uns... quarenta", calculei.

   "Pelo menos. Este é o Sr. Goodwin, Sr. Talbott".

   Evidentemente Vic imaginou que eu podia ser meio esquisito porque me acenou a cabeça mas não me estendeu a mão. Então voltou-se para olhar os convidados. "Como vão vocês, companheiros? Contrataram o grande detetive?"

   "Idiota", Wayne Safford falou com desprezo. "Veio aqui fazer farol?"

   Ferdinand Pohl tinha se levantado da cadeira e vinha avançando sobre o penetra. Eu já estava de pé, pronto para agir. Havia muita agitação naquela sala e eu não queria nenhum de nossos clientes machucados. Porém tudo que Pohl fez foi dar uma palmada no peito de Talbott e falar-lhe: "Escute, rapaz, você não vai atrapalhar nada aqui. Já criou problemas demais". E virando-se para Wolfe perguntou "Por que deixou que ele entrasse?"

   "Permita-me dizer-me", Broadyke colocou, "isto me parece um excesso de hospitalidade".

   "A propósito, Vic" - era a voz macia de Dorothy que falava - "Ferdy diz que eu fui sua cúmplice".

   As considerações dos outros não causaram visível impressão nele, mas com Dorothy foi diferente. Ele voltou-se para ela e o olhar He seu rosto era suficiente para todo um capítulo de sua biografia. Ele era todo dela (a menos que eu precisasse de um oculista). Ela podia levantar suas adoráveis sobrancelhas um milhão de vezes por dia, sem que isto o aborrecesse. Ele deixou que seus olhos falassem com ela e então usou sua língua para falar com Pohl: "Sabe o que eu penso de você Ferdy?

Imagino que saiba!"

   "Querem fazer o favor", disse Wolfe asperamente. "Não precisam de meu escritório para trocar de opiniões que têm uns dos outros; podem fazer isto em qualquer outro lugar. Temos um trabalho a fazer. Sr. Talbott, o senhor perguntou se eu tinha aceitado a tarefa que me foi oferecida. Aceitei. Assumi o compromisso de investigar a morte de Sigmund Keys. Mas como ainda ninguém me fez nenhuma confidencia, posso decliná-lo. Tem coisa melhor a oferecer? Por que o senhor veio aqui?"

   Talbott sorriu para ele. "Este é o jeito certo de se falar", disse admirado. "Não, não tenho nada para dizer em relação ao trabalho, mais sinto que devo participar dele. Calculo que seja desta maneira: eles o estão contratando para que me prenda por homicídio; então é muito natural que o senhor queira me conhecer e me fazer perguntas - e aqui estou eu".

   "Alegando não ser o culpado, é claro... Archie: uma cadeira para o Sr. Talbott".

   "Naturalmente", concordou ele, agradecendo, com um sorriso, a cadeira que eu lhe trouxera, e sentando-se nela. "De outro modo o senhor não terá trabalho... muito bem, mande fogo...". De repente ele corou. "Nestas circunstâncias, penso que não deveria falar em mandar fogo..."

   "Deveria ter dito mande bala", acrescentou Wayne Safford, lá do fundo.

   "Fique quieto, Wayne", repreendeu Audrey.

   "Permita-me", começou Broadyke, mas Wolfe o interrompeu.

   "Não, o Sr. Talbott se prontificou a responder perguntas." Encarando Talbott perguntou: "Estas outras pessoas pensam que a polícia está conduzindo o caso estúpida e ineficientemente. O senhor concorda com isto, Sr. Talbott?"

   Vic pensou durante um momento e, então aquiesceu. "De modo geral, sim".

   "Por quê?'

   "Bem - o senhor vê, eles estão parados com o caso. Estão acostumados a trabalhar com pistas e conquanto achem uma porção delas para mostrar o que aconteceu, como por exemplo marcas no caminho que levam aos arbustos etc, eles não têm nada que os ajude a identificar o assassino. Absolutamente nada, ainda. Então eles têm que recorrer a um motivo - e acharam exatamente um homem com o melhor motivo do mundo".

   Talbott bateu em seu próprio peito. "Eu. Então descobriram que este homem - eu - possivelmente não podia ter feito aquilo porque estava em outro lugar. Acharam que eu tinha um álibi, eu estava..."

   "Impostor!" reagiu Wayne Safford.

   "Elaborado", falou Broadyke.

   "Cabeças duras!" exclamou Pohl. "Se eles tivessem inteligência bastante para dar àquela telefonista..."

   "Por favor!" Wolfe os calou. "Continue, Sr. Talbott. Seu álibi... mas primeiro o motivo. Qual é o melhor motivo do mundo?"

   Vic parecia surpreso. "Saiu nos jornais uma porção de vezes!"

   "Eu sei. Mas não quero conjeturas de jornalistas quando tenho o senhor - a menos, que não queira falar sobre isto".

   O sorriso de Talbott tinha um quê de amargura. "Se eu não quisesse", declarou "a semana passada certamente me curaria. Penso que dez milhões de pessoas leram que estou profundamente apaixonado por Dorothy Keys, ou alguma outra forma de dizer a mesma coisa. Certo, estou! Querem um juramento - querem uma fotografia minha afirmando isto?" Ele virou o rosto para encarar sua noiva. "Eu a amo Dorothy, mais que tudo no mundo, profunda e loucamente, de todo o meu coração". Virou-se para Wolfe. "Aqui está o seu motivo".

   "Vic querido," disse-lhe Dorothy, "você é um perfeito idiota e é tremendamente fascinante. Estou realmente feliz por você ter um bom álibi".

   "Demonstra amor", disse Wolfe secamente, "matando o único parente de sua amada... É isto?"

   "Sim," declarou Talbott. "Sob certas condições. Esta é a situação: Sigmund Keys era o mais célebre e bem sucedido desenhista industrial da América e..."

   "Bobagem!" explodiu Broadyke, sem pedir permissão para fazê-lo.

   Talbott sorriu. "Algumas vezes", disse ele, como se sugerisse aquilo para ser considerado, "um homem ciumento é pior do que qualquer mulher ciumenta. Os senhores sabem, é claro, que o Sr. Broadyke é também um desenhista industrial - de fato ele, praticamente, criou a profissão. Poucos fabricantes podiam sonhar em produzir novos modelos - barco a vapor, estrada de ferro, trem, avião, refrigerador, lavadeira elétrica, relógio despertador, não importa o que - sem consultar Broadyke, até que eu chegasse a tomar conta das vendas da firma de Sigmund Keys. Conseqüentemente é por isto que duvido que Broadyke tenha assassinado Keys. Se ele tivesse ficado desesperado por causa disto ele não teria matado Keys, ele teria matado a mim!"

   "O senhor estava falando", Wolfe o lembrou, "de amor como motivo para matar sob certas circunstâncias".

   "Sim, e Broadyke me afastou". Talbott balançou sua cabeça. "Deixe ver ah! sim, e eu estava fazendo as vendas para Keys. Ele não podia suportar o comentário geral de que eu era o maior responsável pelo sucesso que ele estava tendo, mas ao mesmo tempo tinha medo de se livrar de mim. Eu amava sua filha - e sempre vou amá-la - e queria que ela se casasse comigo, porém ele exercia grande influência sobre ela, o que nunca consegui entender - de qualquer maneira, se ela me amasse como eu a amo, isto não teria importância, mas ela não...

   "Meu Deus, Vic", protestou Dorothy, "já não lhe disse uma dúzia de vezes que eu me casaria com você sem pensar... se não fosse por papai? Realmente sou louca por você!"

   "Certo", Talbott disse a Wolfe, "está aqui o seu motivo. Certamente está fora de moda, não tem um desenho industrial moderno, mas é absolutamente verdadeiro.

Naturalmente foi isto que a polícia pensou até que eles toparam com o fato de que eu estava em outro lugar. Isto os tornou confusos e os atrapalhou e eles não puderam recuperar suas testemunhas; portanto, penso que meus bons amigos aqui estão certos quando dizem que eles estão sendo estúpidos e ineficientes. Não que eles tenham acabado comigo completamente. Penso que eles têm um exército de detetives e espiões caçando o pistoleiro que eu empreguei para fazer o trabalho. O senhor ouviu a Srta. Keys me chamar de idiota, mas não sou tão idiota assim para contratar um criminoso para assassinar alguém por mim".

   "Espero que não", Wolfe suspirou. "Não há nada melhor que um bom motivo? E a respeito do álibi? A polícia aceitou?"

   "Sim,. os idiotas do inferno", Pohl explodiu. "Aquela telefonista..."

   "Perguntei ao senhor Talbott", interrompeu Wolfe.

   "Não sei", admitiu Talbott. "Mas suponho que sim. Ainda estou assustado com a sorte que tive de ter ido tarde para a cama naquela segunda-feira, na semana passada, na noite anterior à morte de Keys. Se eu estivesse cavalgando com ele, agora estaria preso. Foi uma questão de tempo".

   Talbott comprimiu e depois entreabriu os lábios. "Oh! rapaz!... 0 polícia montado viu Keys cavalgando no parque perto da Rua 66 as sete e dez. Keys foi morto próximo da Rua 96. Mesmo que ele tivesse galopado durante todo caminho ele não poderia ter chegado lá, com as curvas do caminho, antes das sete e vinte. E ele não galopou, porque se o tivesse feito o cavalo teria demonstrado isto e não o fez". Talbott olhou ao redor. "Você é autoridade nisso, Wayne. Casanova não estava suado, estava?"

   "É você que está dizendo isto", foi tudo que consegui de Wayne.

   "Bem, ele não estava", Talbott disse a Wolfe. "Wayne sabe disto. Portanto Keys não poderia ter chegado ao local onde foi morto, antes das sete e vinte e cinco.

É o tempo que deveria levar".

   "E o senhor?" inquiriu Wolfe.

   "Eu? Eu tive sorte, tive muita sorte. Freqüentemente eu cavalgava no parque com Keys, a esta hora maluca - duas ou três vezes por semana. Ele queria que eu o acompanhasse todos os dias, mas a maior parte das vezes eu tirava o corpo fora. Não havia nada de social ou amigável naquilo. Cavalgávamos lado a lado falando sobre negócios, exceto quando ele queria trotar. Moro no Hotel Churchill. Segunda-feira à noite cheguei tarde ao hotel, porém, mesmo assim, deixei ordem para me acordarem às seis horas, porque fazia muitos dias que eu não o acompanhava e não queria que ele se aborrecesse comigo. Mas quando a moça tocou meu telefone de manhã, eu estava com tanto sono que lhe pedi para telefonar para a Academia de Equitação e dizer que eu não iria lá, e me chamar de novo às sete e meia. Ela assim o fez e, apesar de eu ainda estar com muito sono, tive que levantar porque tinha um encontro para o café com um cliente do interior.

   Então eu pedi a ela que mandasse os cafés para o quarto. Poucos minutos depois um garçom os levou. Aí está a minha sorte! Keys foi morto na parte alta da cidade às sete e vinte e cinco da manhã, talvez um pouco mais tarde. A esta hora eu estava em meu quarto no Hotel Churchill, a quase quinze quilômetros de distância. O senhor pode imaginar o quanto eu fiquei contente de ter tido aquele chamado às sete e meia!"

   Wolfe concordou: "O senhor deveria dar um desconto ao cliente do interior. Com esta defesa, porque se deu ao trabalho de vir aqui, a este encontro?"

   "Uma telefonista e um garçom, pelo amor de Deus!" Pohl bufou sarcasticamente.

   "Pessoas boas e honestas, Ferdy", Talbott retrucou e respondeu a Wolfe: "Não sei".

   "Não? Mas o senhor não está aqui?"

   "Claro que estou aqui, mas não para me juntar a nenhum encontro. Vim para ficar com Dorothy. Não considero isto como uma obrigação, como para com o resto deles, com exceção de Broadyke talvez...

   A campainha da porta tocou novamente e desde que algum penetra poderia ser ou não desejável, levantei-me rapidamente, atravessei o hall e interceptei Fritz exatamente na hora, fui para a porta da frente e dei uma olhada. A porta da casa de Nero Wolfe era provida desses vidros espelhados que deixam a gente ver quem está lá enquanto a pessoa pensa que está na frente de um espelho.

   Vendo quem estava lá fora na entrada, destranquei a porta e a entreabri, conservando a corrente, e falei através da fresta: Não quero pegar um resfriado".

   "Nem eu" falou uma voz áspera. "Abra esta maldita porta de uma vez".

   "O Sr. Wolfe está ocupado", respondi educadamente. "Posso ajudá-lo?"

   "Não. Você nunca o fez, nem nunca o fará."

   "Então espere um minuto".

   Fechei a porta, fui para o escritório e falei com Wolfe, "O homem a respeito da cadeira". Wolfe sabia que se tratava do Inspetor Cramer, de homicídios.

   Wolfe resmungou e sacudiu a cabeça. "Vou estar ocupado por horas e não posso ser interrompido".

   Voltei para o hall entreabri a porta novamente e falei pesarosamente, "Desculpe mas ele está fazendo suas lições de casa".

   "Claro," disse Cramer sarcasticamente, "é claro que sim. Agora que Talbott está aí também, vocês vão ter a casa cheia. Seis deles. Abra a porta!"

   Ora, a quem está tentando impressionar? Vocês desconfiam de um ou de mais de um - possivelmente de todos - e espero que não se esqueçam de Talbott só porque gostamos dele. De qualquer modo a telefonista e o garçom do Hotel Churchill... qual é mesmo o nome deles?"

   "Eu vou entrar, Goodwin".

   "Tente, esta porta nunca foi forçada assim antes; quero ver até onde vai agüentar".

   "Em nome da lei, abra esta porta!"

   Eu estava tão espantado que quase abri a porta para poder vê-lo melhor. Através da fresta eu só podia usar um olho. "Bem, ouça aqui, é a mim que vem dizer isto?

Sabe muito bem que é a lei que me garante fazer você ficar aí fora. Se está preparado para fazer uma prisão é só me dizer o nome, que eu vou ver se ele ou ela não vão querer escapar. Além de tudo você não tem monopólio. Já os teve durante toda a semana, dia e noite, enquanto Wolfe só está com eles há mais ou menos uma hora, e você não pode suportar isto! Conseqüentemente não são eles que estão se recusando a vê-lo, nem sabem que está aqui, portanto não os acuse por isto. É o senhor Wolfe que não quer ser perturbado. Vou lhe dar mais uma informação: ele ainda não descobriu nada e isto pode demorar muitas horas. Vai economizar tempo se me der os nomes..."

   "Cale a boca", Cramer estrilou. "Vim aqui amigavelmente. Não há nenhuma lei contra Wolfe ter gente em seu escritório. E também não há nada contra eu estar lá com eles".

   "Certamente que não", concordei calorosamente, "se estivesse lá dentro, mas e esta porta? É uma porta perfeitamente dentro da lei, com um homem que não tem ordem de abri-la de um lado e do outro alguém que não quer, de acordo com os estatutos..."

   "Archie!" Escutei uma gritaria no escritório, o grito de Wolfe mal dava para se ouvir, havia também barulho de outros sons. "Archie", novamente.

   "Desculpe", falei batendo a porta. Atravessei o hall correndo, girei a maçaneta da porta e entrei rapidamente.

   Não havia nada de gravemente alarmante. Wolfe estava sentado em sua cadeira atrás da mesa. A cadeira que Talbott tinha ocupado estava derrubada. Dorothy estava de pé, de costas para Wolfe, com as sobrancelhas exageradamente erguidas. Audrey Rooney estava parada no canto, perto do grande globo com os punhos cerrados contra o rosto olhando espantada. Pohl e Broadyke também estavam fora de suas cadeiras olhando para o centro da sala. Pela atitude dos espectadores, a gente poderia esperar ver alguma coisa realmente assustadora, porém eram só dois camaradas trocando socos.Quando entrei Talbott acertou um direto no lado do pescoço de Safford e quando fechei a porta que dava para o hall, atrás de mim, Safford replicou com um forte murro no lado esquerdo do rim. O único barulho, além dos punhos e dos pés, era um tenso murmurar de Audrey em seu canto. "Bata nele, Wayne, bata nele".

   "Quanto eu perdi?" perguntei.

"Separe-os!" Wolfe me ordenou.

   A direita de Talbott resvalou pelo rosto de Safford enquanto este socava novamente o rim de Vic. Eles até que estavam lutando razoavelmente bem e de maneira apropriada...

mas Wolfe era o patrão e odiava violências em seu escritório; então tive que intervir. Agarrei Talbott pela gola e puxei-o com tanta força que ele caiu sobre uma cadeira, enquanto eu olhava para Safford para controlá-lo. Por um segundo pensei que Safford ia me bater com a mão que estava levantada, mas ele a abaixou. "Como é que isto começou tão de repente?" quis saber.

   Audrey estava lá, puxando minha manga, protestando ferozmente, "você não devia tê-lo segurado. Wayne o teria derrubado! Ele já fez isto antes!" Ela parecia mais sanguinária que ninguém ali.

   "Ele fez um comentário a respeito da Srta. Rooney", Broadyke se permitiu falar.

   "Tire-o daqui!" ordenou Wolfe.

   "Qual deles?' perguntei olhando para ambos.

   "O Sr. Talbott!"

   "Você foi muito bem, Vic", Dorothy estava dizendo. "Fica fantasticamente simpático com o brilho da raiva em seus olhos". Ela pôs suas mãos sobre as faces de Talbott, inclinou sua cabeça para baixo e esticou o pescoço para beijá-lo nos lábios - um beijo rápido. "Pronto!"

   "Vic agora tem que sair", eu disse a ela. "Vamos Talbott, eu o acompanho".

   Antes de sair ele enlaçou Dorothy em seus braços. Olhei para Safford, esperando que, como desforra, abraçasse Audrey, mas ele estava parado com os punhos ainda fechados.

   Então tangi Talbott para fora da sala. No hall enquanto ele pegava seu casaco e seu chapéu, dei uma olhada pelo falso espelho e vi que a varanda estava vazia; então abri a porta. Enquanto cruzava a soleira eu lhe disse, "Você é muito impulsivo. Qualquer dia vai quebrar a cabeça".

   De volta ao escritório, alguém havia endireitado a cadeira e estavam todos sentados novamente. Aparentemente, embora seu cavaleiro tivesse sido convidado a sair, Dorothy estava muito calma. Quando atravessei a sala para alcançar minha mesa, Wolfe estava dizendo: "fomos interrompidos, Srta. Rooney. Como falei, a Sita. parece ser a mais vulnerável, desde que estava no local. Por favor pode chegar mais perto - aquela cadeira ali? Archie, seu caderno de notas".

  

   As dez e cinqüenta e cinco da manhã seguinte eu estava sentado no escritório - não ainda, mas novamente - esperando que Wolfe descesse das estufas no telhado, onde ele guarda suas dez mil orquídeas e uma coleção de outras espécies de plantas. Estava jogando cartas com Saul Panzer e Orrie Carther, que tinham sido convidados para fazer um trabalho. Saul usava sempre um velho boné marrom; era um tipo miúdo e calmo. Com seu grande nariz, era o melhor homem de campo do mundo para qualquer coisa que pudesse ser feita sem um smoking. Orrie estava melhorando dia a dia, porém não era, de nenhum modo igual a Saul; mas, mesmo assim, era um bom espião.

   Àquela hora eu já tinha perdido três dólares.

   Em uma gaveta de minha mesa havia dois cadernos cheios de anotações. Wolfe não tinha prendido os clientes durante toda a noite - mas não faltou muito para isto.

Mas quando ele os deixou sair, sabíamos muito mais a respeito de todos, do que qualquer jornal tinha publicado.

   Sob alguns aspectos eles eram muito parecidos. Por exemplo, nenhum deles tinha assassinado Sigmund Keys; nenhum estava sentindo sua morte, nem mesmo sua filha; ninguém nunca possuíra um revólver ou entendia muito de atirar em alguém; ninguém poderia apresentar nenhuma prova que pudesse condenar Talbott ou mesmo levá-lo à prisão; ninguém tinha um álibi incontestável; e cada um tinha um motivo próprio, que podia não ser o melhor do mundo, como o de Talbott, mas não era para se desprezar.

   Então eles falaram.

   Ferdinand Pohl ficara indignado. Não podia entender porque se deveria perder tempo com eles, desde que o único objetivo era destruir o álibi de Talbott e apanhá-lo.

Mas contou muitos fatos. Há dez anos passados ele tinha fornecido os cem mil dólares que Sigmund Keyes precisava para se iniciar convenientemente, no estilo apropriado a um importante desenhista industrial. Nos últimos dois anos os lucros de Keyes tinham aumentado vertiginosamente e Pohl tinha querido uma parte deles mas não a tinha obtido. Keyes lhe concedera a desprezível quantia de cinco por cento anuais sobre o empréstimo. Cinco por cento ao ano embora a metade dos lucros tivesse sido dez vezes maior! E Pohl não podia propor-lhe a clássica alternativa, compre a minha parte ou me venda a sua, porque tinha feito maus negócios em outras áreas e estava profundamente endividado. A lei não podia ajudar desde que o contrato de empréstimo garantia a Pohl somente os cinco por cento e Keyes tinha ajeitado para retirar seus lucros como se fossem honorários, alegando que era sua habilidade como desenhista que tinha dado tão bons resultados.. Aquele tinha sido, disse Pohl, um caso típico de falta de caráter. Agora que Keyes estava morto, a História ia ser diferente, com os contratos na mão e a garantia do recebimento de royalties por um período de mais de vinte anos. Se Pohl e Dorothy, que tinham herdado tudo, não chegassem a um entendimento, caberia a um juiz estipular os dividendos e Pohl conseguiria, pensava ele, pelo menos duzentos mil e talvez, provavelmente, muito mais. Negou que tivesse tido motivo para matar Keyes - não por ele, mas de qualquer maneira seria tolice discutir aquilo mesmo porque naquela terça-feira de manhã, às sete e vinte e oito, embarcara no trem para Larchmont para velejar em seu barco. Ele tinha apanhado o trem na Grand Central ou na Rua 125? Na Grand Central, disse ele. Estava sozinho? Sim. Tinha deixado seu apartamento na Rua 84-Leste às sete horas e tomado o metrô.

Ele sempre tomava o metrô? Sim, freqüentemente, quando não era hora de grande movimento. E assim por diante, por quatorze páginas de um caderno. Eu dei a ele um menos, mesmo concedendo que poderia provar que chegou a Larchmont naquele trem, desde que tivesse parado na Rua 125, às sete e trinta e oito, dez minutos depois de ter deixado a Grand Central.

   Com Dorothy Keyes a grande questão foi: quanto dos lucros de Keyes ela ia receber? Durante algum tempo ela parecia ter idéia de que seu pai tinha sido liberal e justo em matéria de dinheiro, mas de repente ela mudou de idéia, com um comentário que indicava que ele fora tão egoísta quanto uma criança segurando um brinquedo para outra não poder pegar. Foi meio difícil, porque ela não tinha cabeça para números. A conclusão que eu cheguei foi que a parte dela poderia variar de uns quinhentos a vinte mil dólares por ano - o que representava uma diferença meio grande... O ponto era: de que modo seria melhor para ela; com seu pai vivo fazendo, mas economizando, muito dinheiro, ou com ele morto e tudo para ela, depois que Pohl fosse atendido? Ela entendeu a questão muito bem, e preciso dizer que isto tudo não parecia chocá-la muito, mesmo porque ela nem mesmo se preocupou em levantar as sobrancelhas!

   Se aquilo tudo foi interpretação, foi muito boa. Em lugar de ficar no grande princípio moral de que "filhas não matam pais", sua principal fundamentação era a absurda hora do crime - sete e meia da manhã! Ela não podia nem mesmo ter matado uma mosca, quanto mais seu pai... Nunca saía da cama antes das onze horas, exceto em uma emergência, como por exemplo na terça-feira de manhã, sob protesto, quando recebeu a notícia entre nove e dez horas, de que ele estava morto. Aquilo a tinha feito levantar-se. Ela vivia com ele em um apartamento do lado Sul do Central Park. Empregadas? Duas. Wolfe então perguntou a ela: seria possível para ela, antes da sete horas da manhã, sair do apartamento e do edifício e depois entrar novamente sem ser vista? Não, respondeu ela, a menos que alguém tivesse lhe dado um banho para acordá-la; feito aquilo, o resto possivelmente podia ser conseguido, mas ela realmente não poderia dizer porque nunca tinha tentado...

   Não lhe dei nota nenhuma, porque naquela hora eu estava de espírito prevenido e não podia confiar em meu julgamento.

   Frank Broadyke foi uma atração. Tinha adotado entusiasticamente a sugestão de Talbott de que se ele, Broadyke, tivesse intenção de matar alguém, esse alguém seria Talbott e não Keyes, desde que isto implicava que a prosperidade de Keyes e sua profissão tinha sido devida mais ao sucesso de Talbott, como chefe, de vendas do que à habilidade de Keyes como desenhista. Broadyke tinha gostado muito daquela teoria e ficava sempre retornando a ela. Ele admitiu que a piora crescente de seu próprio volume de negócios tinha coincidido com a melhoria dos de Keyes, e admitiu, ainda, quando a questão foi mencionada por Dorothy, que somente três dias antes de sua morte, Keyes, tinha proposto uma ação na justiça contra ele, por prejuízos, exigindo uma indenização de cem mil dólares, queixando-se de que Broadyke tinha roubado projetos do seu escritório que lhe valeram contratos para uma misturadora de concreto e uma máquina de lavar elétrica. Mas por que diabos Keyes manteria o homem de que ele naturalmente não precisava se era Vic Talbott, quem tinha expandido o negócio com seus métodos especializados de venda - e sua personalidade.

Pergunte a qualquer desenhista industrial de reputação, continuou ele; pergunte a todos eles. Keyes tinha sido um medíocre e insignificante desenhista industrial, sem nenhuma compreensão da complexa e íntima relação entre função e desenho. Posso ver pelas minhas anotações que ele repetiu isto quatro vezes.

   Tinha feito o melhor possível para tentar recuperar o terreno perdido. Participou, disse ele, da essência da trama; o amanhecer o animava e inspirava; aquela era a sua hora do dia. Todos os seus mais brilhantes sucessos tinham sido concebidos antes do amanhecer, enquanto ainda havia orvalho nos lugares sombreados. Durante a tarde e à noite ele era um verdadeiro cabeça-oca. Mas ultimamente tinha se tornado preguiçoso e descuidado, deitando e acordando muito tarde e foi então que sua estrela começou a se ofuscar. Recentemente, muito recentemente, ele se dispusera a acender a chama novamente, e somente no último mês tinha começado a ir para seu escritório antes das sete horas da manhã, três horas antes da chegada dos funcionários. Para sua alegria e satisfação aquilo estava começando a dar resultado. Os momentos de inspiração estavam voltando. Naquela manhã de terça-feira mesmo, manhã em que Keyes foi assassinado, tinha cumprimentado seus funcionários quando chegaram mostrando-lhes um revolucionário e irresistível desenho para uma batedeira elétrica de ovos.

   Alguém o visitara, Wolfe quis saber, em seu escritório durante a criação, isto é entre seis e meia e oito horas? Não. Ninguém.

   Se dependesse de um álibi, Broadyke, entre aquelas três pessoas, estava perto de ser acusado.

   Desde que eu gostava de Audrey Rooney e teria me casado com ela a qualquer momento - não fosse por não querer que minha mulher fosse comentada publicamente, e havia uma fotografia dela no calendário pendurado na parede do Sam's Diner - era meio desagradável saber que os pais dela, em Vermont, a tinham realmente registrado como Annie e ela mesma havia mudado seu nome. Claro que isto não tinha nenhum problema se ela não apreciasse o Annie com Rooney, mas meu Deus! por que Audrey? Aquilo demonstrava uma grande falha dela!...

   É claro que isso não a tornava mais culpada, porém sua história, sim, colaborava muito para aquilo. Ela havia trabalhado no escritório de Keyes, como secretária de Victor Talbott. Mas há um mês Keyes a despedira porque suspeitava que ela estava desviando desenhos e os vendendo a Broadyke. Quando ela exigiu provas daquilo e Keyes não pôde obtê-las ela provocara um escândalo, no que eu podia acreditar facilmente. Ela começou então a invadir seu escritório particular com tanta freqüência que ele fora o brigado a contratar uma pessoa para conservá-la lá fora. Ela tentara convencer o resto dos funcionários, quarenta deles, a se insurgirem contra ele até que lhe fosse feito justiça - e quase obteve sucesso. Tentou pegá-lo em casa mas não conseguiu. Oito dias antes de sua morte, na segunda-feira pela manhã, ele a encontrara esperando quando chegou à Academia de Equitação para pegar seu cavalo. Com a ajuda do cavalariço, Wayne Safford, Keyes montou e saiu ruidosamente em direção ao parque.

   Na manhã seguinte, porém, Annie Audrey estava lá, outra vez, e na seguinte também. O que a aborrecia mais, como ela explicou a Wolfe no princípio, é que Keyes tinha se recusado a ouvi-la, nunca escutou sua explicação; tendo sido mais mesquinho e inflexível do que nunca. Ela pensava que ele deveria tê-la ouvido. Mas não disse, tão claramente, que a outra razão para que ela continuasse aparecendo na Academia fora de que o cavalariço parecia não se importar, mas isto poderia ser acrescentado na conversa. Na quarta manhã, quinta-feira, Vic Talbott também tinha chegado para acompanhar Keyes em seu passeio. Keyes, importunado por Audrey, a empurrara com seu chicote; então Wayne Safford tinha sacudido Keyes com força suficiente a ponto de fazê-lo perder o equilíbrio e cair; Talbott interveio e deu um empurrão em Wayne; Wayne revidara com um soco que derrubou Talbott no chão da cocheira. Ah!, ia me esquecendo... a cocheira ainda não tinha sido limpa...

   Evidentemente, pensei eu, Wayne teve a desforra quando estava lutando em um escritório belamente mobiliado sobre um tapete Kerman; também pensei que se eu fosse Keyes teria tentado desenhar um cavalo elétrico para meu uso pessoal... No dia seguinte, porém, ele ouviu mais censuras de Audrey. E aquilo foi ainda mais longe; três dias depois, segunda-feira, foi a mesma coisa. Talbott não estivera lá nos dois dias seguintes.

   Terça-feira de manhã Audrey chegou lá às quinze para as seis; a vantagem de sua chegada tão cedo era que ela podia tomar café enquanto Wayne limpava os cavalos.

Eles comeram rosca de canela com café (Wolfe torceu 0 nariz com aquilo porque detestava aquelas roscas). Pouco depois das seis um telefonema do hotel Churchill dizia para não selarem o cavalo de Talbott e para dizerem a Keyes que ele, Talbott, não iria lá. As seis e meia em ponto Keyes chegou, como de costume, respondeu com um sombrio apertar de lábios à provocação de Audrey e saiu cavalgando. Audrey ficou na Academia por mais uma hora e ainda estava lá, às sete e trinta e cinco, quando o cavalo de Keyes retornou com a sela vazia.

   Wayne Safford permanecera também lá o tempo todo? Sim, eles estiveram juntos o tempo todo.

   Audrey e Wayne, portanto, estavam bem ajustados. Quando chegou a vez de Wayne ele não a contradisse em nenhum ponto, o que eu pensei que era um comportamento muito civilizado para um simples cavalariço. Ele também cometeu o erro de mencionar as roscas de canela, porém, de qualquer maneira tinha sido uma reconstituição perfeitamente igual.

   Quando eles se foram, depois das duas horas da manhã, eu bocejando e espreguiçando disse a Wolfe "cinco possíveis bons clientes, heim?"

   Ele resmungou aborrecido e pôs sua mão na beirada da mesa para empurrar sua cadeira para trás.

   "Eu poderia pensar nisto com melhores resultados", declarei "se você sugerisse alguma coisa". Não Talbott, este não precisa. Sou melhor juiz em olhares amorosos do que você e eu o vi olhando para Dorothy e neste ponto, ele não vai lá muito bem. Mas os clientes? E Pohl?"

   "Ele precisa de dinheiro, talvez desesperadamente, e agora vai consegui-lo".

   "E Broadyke?"

   "Sua vaidade foi mortalmente ferida, seus negócios estavam indo por água abaixo e ele estava sendo processado por uma grande soma de dinheiro".

   "Dorothy?"

   "Uma filha. Uma mulher. Isso a deve ter levado de volta à infância e hoje, poderia levá-la a pensar em um brinquedo proibido".

   "Safford?"

   "Um idiota romântico que, três dias depois de conhecer uma moça, o tonto estava comendo roscas de canela com ela, às seis horas da manhã".

   Concordei.

   "E ele viu Keyes bater na moça com o chicote".

   "Não bater, empurrar".

   "Pior ainda, mais humilhante. Além disso ela o convenceu de que o Sr. Keyes estava cometendo uma grande injustiça contra ela".

   "Certo, disso eu sei. E a respeito dela?"

   "Uma mulher sendo enganada ou tendo sido apanhada enganando alguém. Em ambos os casos, perturbada".

   "Também ele a empurrou com seu chicote!"

   "Não", discordou Wolfe. "Exceto em casos de desforra imediata e premente, nenhuma' mulher recorre à violência física contra alguém. Isto nunca seria feminino.

Ela planeja engenhosamente". Ele se levantou. "Estou com sono", disse e encaminhou-se para a porta.

   Seguindo-o, falei, "só sei de uma coisa: por mim eu já escolheria alguém. Não posso entender por que Cramer queria vê-los outra vez, inclusive Talbott, depois de passar uma semana toda com eles! Por que ele não os joga fora e escolhe cinco cartas novas? Ele está sofrendo que nem uma criança... Devo telefonar-lhe?"

   "Não". Estávamos no hall. Wolfe dirigindo-se para o elevador para subir ao seu quarto, no segundo andar, voltou-se. "O que ele queria?"

   "Ele não disse, mas posso adivinhar. Ele está completamente parado no escuro, no meio de seis becos sem saída, e veio para verse o senhor tinha o mapa da mina".

   Subi pela escada, já que o elevador dava somente para quatro pessoas e só Wolfe dentro dele já ficava meio apertado...

  

   "Xeque-mate" disse Orrie Carther às dez e cinqüenta e cinco, na quarta-feira de manhã.

   Eu tinha lhes dito que o caso Keyes bateu em nossa porta, que tínhamos cinco suspeitos como clientes e isto era tudo. Wolfe não parecia inclinado a me dizer qual seria a tarefa deles e então eu os estava entretendo com cartas em lugar de resumir-lhes minhas anotações. As onze horas em ponto, terminamos o jogo, e Orrie e eu puxamos a carteira para Saul, como de costume. Poucos minutos depois a porta da sala se abriu e Wolfe entrou. Cumprimentou os dois, instalou-se atrás de sua mesa, pediu cerveja e me perguntou, "você explicou as coisas a Saul e Orrie?"

   "Certamente que não. Tudo que eu sabia era confidencial".

   Ele grunhiu e me mandou chamar o inspetor Cramer. Disquei o número e tive mais dificuldade do que o normal, em conseguir falar com ele. Finalmente Cramer atendeu e eu fiz sinal a Wolfe e como ele não me mandou deixar a sala, fiquei. Aquilo não foi bem uma conversa.

   "Sr. Cramer? Nero Wolfe".

   "Certo, o que o senhor quer?"

   "Sinto muito mas estava ocupado ontem à noite. Sempre é um prazer vê-lo. Estou comprometido com o problema da morte de Keyes e creio que será do nosso interesse o senhor me dar algumas pequenas informações de rotina".

   "Como o quê?"

   "Para começar, o nome e o número do polícia montada que viu o Sr. Keyes no parque às sete e dez daquela manhã. Quero mandar Archie..."

   "Vá para o inferno!" a ligação foi cortada.

   Wolfe desligou, alcançou a bandeja de cerveja que Fritz tinha trazido e me disse, "chame o Sr. Skinner no escritório da Procuradoria do Distrito".

   Assim o fiz e ele pegou novamente o telefone. Em tempos passados Skinner tinha tido sua parte nos momentos de irritação de Wolfe, mas agora ele não tivera uma porta batida em sua cara na noite anterior e além disso não estava aborrecido. Quando soube que Wolfe estava com o caso Keyes quis saber de tudo, mas Wolfe. o despistou, sem ser muito rude e logo conseguiu o que estava querendo saber. Com a promessa de que o manteria informado dos acontecimentos até o fim, o que ambos sabiam que era uma deslavada mentira, o procurador-assistente, chegou até a se oferecer para conseguir do quartel que eu me avistasse com o guarda. E assim foi. Menos de dez minutos depois de terem terminado, um telefonema do Center Street informava que o oficial Hefferam me encontraria às onze e quarenta e cinco na esquina da Rua 66, na parte oeste do Central Park.

   Durante menos de dez minutos, Wolfe tinha bebido sua cerveja, perguntado ao Saul sobre sua família e me dito o que eu devia descobrir por meio do guarda. Aquilo me aborreceu, porém, mais que isto, me deixou curioso. Quando estávamos com algum caso, às vezes acontecia que Wolfe temia que eu me deixasse envolver por algum

acontecimento ou algum participante e aquilo fazia com que ele achasse necessário me colocar temporariamente de lado. Eu já concluíra que era uma perda de tempo ficar nervoso e sentido com aquilo. Mas daquela vez o que estaria acontecendo? Eu não tinha me influenciado pela versão de ninguém e estava absolutamente imparcial.

Por que então, ele me mandava sair. para fazer uma coisa tão sem importância e ficava com Saul e Orrie para funções mais importantes? Aquilo era demais para mim!

Estava olhando para ele a ponto de estourar quando o telefone tocou novamente.

   Era Ferdinand Pohl perguntando por Wolfe. Eu já estava saindo para me conservar fora daquilo, desde que a principal tarefa já fora encomendada, mas Wolfe fez menção para que eu ficasse.

   "Estou no escritório de Keyes", disse ele, na Rua 47 com a Madison. Pode vir aqui, agora?"

   "Claro que não", Wolfe respondeu em um tom ofendido. Ele sempre se irritava se qualquer pessoa do mundo não soubesse que ele nunca saía de casa a serviço, e muito raramente para qualquer outra coisa. "Trabalho somente em casa. Qual é o problema?"

   "Há alguém aqui de quem quero falar com senhor. Dois funcionários. Com o testemunho deles posso provar que Talbott pegou aqueles desenhos e os vendeu a Broadyke.

Este é o argumento conclusivo que foi Talbott que matou Keyes. De nós cinco, os únicos que possivelmente poderiam ser suspeitos eram a Srta. Rooney e aquele cavalariço com aquele álibi combinado que tinham e isto a inocenta, é claro, e a ele também".

   "Bobagem. Isto não tem nada a ver com a coisa. Só prova que ela foi acusada injustamente de roubo e uma acusação injusta machuca mais do que uma justa. Agora, finalmente, o senhor pode ter o Sr. Talbott acusado de apropriação indébita. Estou extremamente ocupado. Agradeço-lhe muito por ter telefonado. Vou precisar da colaboração de todos".

   Pohl queria prolongar a conversa, mas Wolfe se livrou dele, bebeu mais cerveja e virou-se para mim. "Você é esperado em vinte minutos, Archie, e considerando sua tendência, a ser multado por alta velocidade..."

   Eu sofrerá uma única multa, por correr muito, em oito anos! Dirigi-me para a porta, mas voltei para dizer-lhe aborrecido, "se pensa que está me mandando sair só para brincar, tente novamente. Quem foi o último a ver Keyes vivo? O guarda. E a quem eu devo falar sobre o que ele disser? Ao senhor? Não! Ao inspetor Cramer!"

   Estava ensolarado e quente para outubro e guiar pela parte baixa da cidade teria sido agradável se eu não estivesse aborrecido com sensação de que estava sendo enganado.Estacionando na Rua 66, dei a volta na esquina e no quarteirão e cruzei a parte Oeste do Central Park até onde um homem fardado estava brincando com as rédeas de seu cavalo. Eu já tinha visto uma porção de guardas em minha volta, mas este, de rosto forte e másculo, com um nariz adunco e grandes olhos brilhantes era novo para mim. Apresentei-me, mostrei-lhe minhas credenciais, e disse-lhe que era muito simpático de sua parte, ocupado como devia ser, dar-me um pouco de seu tempo. É claro que aquilo foi uma estupidez, mas tenho que admitir que eu estava mal-humorado.

   "Ah!" disse ele, "um dos nossos mais notáveis garotos, hein?"

   "Quanto a ser notável", revidei a ironia, "posso parecer uma ova de peixe em uma tigela de caviar".

   "Ah! você come caviar?"

   "Vá p'ro inferno", resmunguei, "vamos começar tudo de novo". Caminhei alguns passos, até um poste, dei uma volta nele e aproximei-me do guarda novamente e falei:

"meu nome é Goodwin e trabalho para Nero Wolfe. O quartel-general, me disse que eu poderia lhe fazer algumas perguntas e eu lhe ficaria muito grato por isto".

   "Amm...Um amigo meu do décimo quinto esquadrão tinha me falado a seu respeito. Você esteve a ponto de mandá-lo para o brejo..."

   "Então você também já veio prevenido. Eu também, mas não contra você, nem mesmo contra o seu cavalo. Por falar em cavalo, naquela manhã você viu Keyes em seu cavalo, não muito antes da hora em que foi morto; a que horas foi isto?"

   "Sete e dez".

   "Exatamente?"

   "Exatamente. Dez minutos depois das sete. Eu estava então na primeira ronda e devia inspecionar novamente às oito. Mas, como diz, sou tão ocupado que não tenho tempo, então eu estava andando ao redor esperando ver Keyes passar, como de costume. Gostava de ver seu cavalo - um lindo alazão com um belo salto".

   "E como lhe pareceu o cavalo naquela manhã - como de costume? Feliz e saudável?" Vendo o espanto em seu rosto, acrescentei rudemente: "tinha prometido não fazer mais piadas. Desculpe. Quero saber realmente é se era mesmo o seu cavalo?"

   "Claro que era, talvez você não conheça bem cavalos, mas eu sim!"

   "Certo, eu conhecia também quando era um garoto em uma fazenda em Ohio. Mas não nos correspondemos mais. E a respeito de Keyes naquela manhã, ele parecia estar como? bem, doente, aborrecido, alegre, ou o quê?"

   "Parecia como de costume, nada de especial".

   "Vocês se falaram?"

   "Não".

   "Ele estava barbeado?"

   "Claro que estava". O oficial Hefferam estava se controlando. "Ele tinha usado duas lâminas, uma no lado direito e outra no lado esquerdo, queria saber qual das duas funcionava melhor, então me mandou esfregar seu rosto para lhe dizer o que eu pensava."

   "Você me disse que não se falaram".

   "Bolas!"

   "Concordo. Vamos deixar de hostilidade. Eu não deveria ter-lhe perguntado isto, devia ter ido direto ao assunto e perguntado a que distância estava ele?"

   "Uns noventa ou cem metros".

   "Você mediu?"

   "Medi com passos. Quando começou o problema".

   "Importar-se-ia de me mostrar o local? Onde vocês estavam?" "Sim, eu me importo, mas recebi ordens!"

   O mais delicado seria ele ter caminhado comigo, puxando seu cavalo, mas não foi assim que o fez. Montou seu grande cavalo baio e cavalgou pelo parque, comigo seguindo-o atrás; e não foi só isto, ele deve ter dado disfarçadamente ao animal algum sinal para que não demorassem. Nunca vi um cavalo andar tão depressa. Ele teria adorado que eu o perdesse e certamente me culparia disto, ou pelo menos ter-me-ia feito correr, mas eu fiz o maior esforço possível, curvando meus cotovelos e enchendo meus pulmões e não fiquei mais que trinta passos atrás quando, finalmente, ele parou no topo de uma pequena colina. Havia uma porção de árvores, pequenas e grandes, no lado direito do declive e moitas de arbustos à esquerda, porém dali havia uma boa vista de toda a extensão do caminho para cavalgar. Estava quase num ângulo reto na nossa linha de visão e parecia ter cerca de cem metros de distância.

   Ele não desceu do cavalo. Não há meio mais fácil no mundo de se sentir superior a um homem do que falar com ele de cima de um cavalo!

   Falando, fiz esforço para não parecer cansado. "Você estava aqui?"

   "Exatamente aqui".

   "E ele ia indo para o norte?"

   "Certo", mostrou, "naquela direção".

   "Você o viu, ele viu você?"

   "Sim, ele levantou seu chicote para mim e eu acenei para ele. Sempre fazíamos isto".

   "Mas ele não parou, ou olhou direto para você?"

   "Ele nunca olhava direto ou fazia piadas. Estava cavalgando. Escute irmão". O tom do guarda indicava que ele estava decidido a me gozar e a tirar vantagem de mim. "Já falei sobre tudo isto com os caras da seção de homicídios. Se está perguntando se era Keyes, era. Era seu cavalo, eram suas ancas brilhantes e claras, as únicas daquela cor por estas redondezas. E era também sua jaqueta azul e seu chapéu preto. Era o jeito dele se sentar com seus ombros curvados e seus estribos muito baixos. Era Keyes".

   "Bem. Posso agradecer a seu cavalo?"

   "Não".

   "Então não agradecerei. Seria agradável se algum dia eu pudesse agradecer a você. Quando eu estiver jantando com o inspetor, esta noite, direi a ele umas palavras sobre você - não sei bem que palavras..."

   Caminhei raivosamente até a saída do parque e ao longo da Rua 66 até a Broadway. Achei uma cabina telefônica, sentei-me no banquinho e disquei meu número favorito.

Foi Orrie Carther quem atendeu. Então - pensei comigo mesmo - ele ainda está lá... Provavelmente sentado na minha mesa; as instruções de Wolfe, para ele, deviam ser tremendamente complicadas. Perguntei por Wolfe e este atendeu.

   "Sim, Archie?"

   "Estou telefonando como mandou. O oficial Hefferam é um convencido terrível, mas eu engoli meu orgulho. Como testemunha ele juraria, de pés juntos,que viu Keyes no lugar e na hora ditos, e acredito mesmo que o tenha visto, mas um bom advogado poderia arrasar com seus ses e mas".

   "Por quê? Hefferam é um chutador?"

   "De modo nenhum. Ele conhece bem o caso. Mas a cena não foi vista muito de perto".

   "É melhor você me contar tudo palavra por palavra".

   Foi assim que eu fiz. Com anos de prática tinha alcançado o ponto de que podia me lembrar de uma conversa de duas horas, sem ter tomado notas, praticamente palavra por palavra e a curta discussão que eu tivera não iria me dar trabalho nenhum. Quando terminei Wolfe comentou, "certo".

   Silêncio.

   Esperei durante mais de dois minutos e então falei educadamente, "Por favor peça à Orrie que não ponha os pés sobre minha mesa".

   Depois de mais de um minuto Wolfe falou. "O Sr. Pohl telefonou mais de uma vez do escritório de Keyes. Ele é um imbecil. Vá lá vê-lo. O endereço..."

   "Sei o endereço. Ao que devo dar mais atenção?" "Diga-lhe para parar de me telefonar. Quero que ele pare com isto".

   "Certo. Vou cortar os cabos. E depois, o que devo fazer?' "Me telefone novamente e então veremos".

   Desligou. Levantei-me, saí da cabina e fiquei resmungando comigo mesmo até que percebi que uma porção de meninas sentadas na beirada da fonte, especialmente uma delas, de covinhas e olhos azuis, me olhavam fixamente. Então eu disse a ela, "me encontre as duas horas no balcão de anéis da Tiffany", e saí rápido. Como eu não tinha conseguido estacionar a menos de mil e quinhentos metros da Rua 47 com a Rua Madison, resolvi deixar meu carro onde estava e caçar um táxi.

  

   Um rápido olhar no escritório de Keyes, no décimo segundo andar, foi suficiente para perceber onde uma boa parte dos lucros tinha sido empregada, a menos que o investimento de Pohl tivesse sido aplicado, ali. Revestimento de quatro espécies diferentes de madeira clara, tanto nas paredes como no teto e nos móveis. Os assentos das cadeiras da sala de espera, eram estofados em azul e preto, e a gente tinha que se cuidar para não tropeçar e torcer o tornozelo nos grossos tapetes. Por todos os lados, em caixas de vidro presas à parede, em suportes espalhados pela sala e sobre as mesas, estavam modelos de quase tudo o que se podia imaginar, desde canetas-tinteiro até aviões.

   Quando uma mulher com brincos cor-de-rosa soube que eu procurava o Sr. Pohl deu-me um olhar curioso e ao mesmo tempo acusador, porém foi eficiente. Depois de uma pequena espera, fui encaminhado através de uma porta e me encontrei no fim de um largo corredor. Não havia ninguém à vista e não tinham me dado instruções, então parecia o caso de brincar de esconde-esconde. A melhor saída parecia ser atravessar o corredor. Comecei espiando dentro das portas dos dois lados onde eu passava.

A mesma seqüência de decoração parecia prevalecer em tudo, com algumas variações de cor e estilo. Na quarta porta à direita eu o vi e ele me chamou no mesmo instante.

   "Entre, Goodwin!"

   Entrei. Era uma grande sala com três grandes janelas e com um rápido olhar me pareceu ser o lugar onde eles tinham realmente decidido se expandir. Os tapetes eram brancos e as paredes negras; uma mesa de ébano enorme, tomava toda uma parede. A cadeira atrás dela, na qual Pohl estava sentado, era do mesmo estilo.

   "Onde está Wolfe?'

   "Onde ele sempre está", repliquei me controlando. "Em casa, sentado".

   Ele olhava zangado para mim. "Pensei que ele estivesse com o senhor. Quando eu lhe telefonei, agora há pouco, ele me deu a entender que podia vir. Ele não está vindo?"

   "Não, nunca! Fiquei contente que tenha lhe telefonado novamente porque como ele lhe disse esta manhã, vai precisar da cooperação de todos".

   "Ele vai ter a minha", declarou Pohl sombriamente. "Desde que ele não veio, suponho que devo entregar isto ao senhor". Tirou uns papéis do bolso de seu paletó, olhou-os, escolheu um e me entregou. Aproximei-me da mesa para pegá-lo.

   Era uma única página encimada com um texto elegantemente impresso: "Memorandum de Sigmund Keyes". Rabiscada à tinta, seguia-se uma lista de cidades:

  

   Dayton, Ohio, 11 e 12 de agosto

   Boston, 21 de agosto

   Los Angeles, 27 de agosto a 5 de setembro

   Meadville, Pa., 15 de setembro

   Pittsburgh, 16 e 17 de setembro

   Chicago, 24 a 26 de setembro

   Philadelphia, 1 de outubro

  

   "Muito obrigado", agradeci-lhe, e guardei o papel em meu bolso. "Cobre uma porção de cidades".

   Pohl concordou. "Talbott não pára, é um bom vendedor, admito isto. Diga a Wolfe que fiz exatamente como ele disse, e consegui isto de uma anotação que estava aqui na mesa de Keyes, portanto ninguém mais sabe de nada a este respeito. Estas são todas as viagens que Talbott fez desde 1 de agosto. Não tenho idéia para que Wolfe quer isto mas, por Deus! isto mostra que ele está trabalhando, e quem é que pode saber o que um detetive está procurando? Não me importa o quanto,possa ser misterioso desde que possa ajudá-lo a pegar Talbott".

   Eu estava de olho nele, tentando descobrir se ele era mesmo tão ingênuo quanto aparentava ser. Isto então me fez entender porque Wolfe tinha tentado manter Pohl afastado do telefone dando-lhe algum trabalho para fazer. Mas ele esclarecera aquilo suficientemente rápido e já estava pronto, para pedir mais coisas. Porém em lugar de Wolfe, ele pediu a mim. E me bombardeou com este: "Vá me comprar uns sanduíches e café. Há um bom lugar na Rua 46, o Perrine".

   Eu me sentei. "Isto é gozado, eu estava para lhe sugerir a mesma coisa. Estou cansado e com fome. Então vamos juntos".

   "Com os diabos, como é que eu posso fazer isto?" perguntou ele.

   "Por que não?"

   "Porque eu poderia não ser capaz de entrar aqui novamente. Esta é a sala de Keyes, mas ele está-morto, eu possuo parte deste negócio e tenho o direito de estar aqui! Mas Dorothy está tentando me tirar da jogada - a danada, costumava sentar-se em meu colo! Eu queria uma informação e ela ordenou ao pessoal do escritório que não me desse nenhuma. Ameaçou chamar a polícia para me pôr para fora, mas ela não fará isto. A semana passada já teve o suficiente com a polícia para não querer mais nada com ela". Pohl estava novamente olhando aborrecido para mim. "Prefiro de carne, com café preto sem açúcar".

   Sorri à sua zanga, "Então o senhor está invadindo esta sala. Onde está Dorothy?"

   "Na entrada do hall, na sala de Talbott".

   "Ele está lá?"

   "Não, não esteve lá durante o dia todo".

   Olhei para meu pulso, e vi que era uma e vinte. Levantei-me. "Centeio com mostarda?"

   "Não. Pão branco sem mais nada - nem manteiga".

   "Certo. Mas com uma condição! Que me prometa não telefonar para o Sr. Wolfe. Se o fizer pode estar certo que vai lhe dizer que conseguiu o que ele estava procurando e eu quero fazer uma surpresa a ele".

   Ele me prometeu e disse que queria dois sanduíches e bastante café; eu saí. Dois homens e uma mulher que estavam de pé no corredor conversando me examinaram da cabeça aos pés enquanto eu passava mas não tentaram me parar. Caminhei até os elevadores, desci e me dirigi diretamente a uma cabina telefônica no hall da entrada.

   Orrie Carther atendeu novamente e eu comecei a suspeitar que ele e Saul tinham continuado o jogo de cartas com Wolfe.

   "Estou fazendo o que mandou", disse a Wolfe quando este atendeu.

   "Vou comprar sanduíches de carne para Pohl e para mim, mas arranjarei um plano.

   Ele me prometeu não ligar para o senhor enquanto eu saísse, e enquanto eu não voltar ele ficará sob controle. Está instalado na sala de Keyes - que o senhor deveria ver - apesar dos protestos de Dorothy, e pretende ficar lá durante o dia todo. O que devo fazer? Voltar para casa ou ir a um cinema?"

   "O Sr. Pohl tem almoço?"

   "Claro que não. É por isto que ele pediu os sanduíches".

   "Então você tem que lhe levar". Fiquei calmo porque sabia que ele fazia aquilo por bondade ou pelo menos por seu estômago. Não suportava a idéia de alguém ficar sem uma refeição, mesmo o seu pior inimigo.

   "Certo", concordei, "posso ganhar uma gorjeta. De qualquer maneira, aquele truque que o senhor tentou não funcionou. Ele logo achou uma anotação das viagens de Talbott, na mesa de Keyes, e a copiou em uma página do bloco de papéis dele. Eu estou com ela em meu bolso".

   "Leia-a para mim".

   "Oh, não pode esperar!" Peguei o papel e li a lista de cidades e datas. Duas vezes ele disse que eu estava indo muito depressa, portanto, aparentemente, estava tomando nota. Quando aquela farsa acabou perguntei: "e depois de alimentá-lo, o que vou fazer?'

   "Telefone novamente quando tiverem acabado de almoçar".

   Bati com o fone no gancho.

  

   Os sanduíches estavam muito bons. A carne macia e no ponto, com a quantidade certa de gordura e o pão de boa qualidade. Eu estava com um pouco menos de leite, porque tinha trazido, para mim só um copo, mas tomei-o mais devagar para ter mais tempo. Entre os bocados discutimos o assunto e cometi um erro. Não deveria, é claro, ter dito nada que fosse a Pohl, principalmente porque quanto mais eu o conhecia menos eu gostava dele, porém os sanduíches estavam tão bons que eu me descuidei e deixei escapar que, pelo que eu sabia, nenhuma pressão tinha sido feita nem sobre a telefonista nem sobre o garçom do hotel Churchill. Pohl estava resolvido a telefonar imediatamente a Wolfe para dizer uns desaforos e para evitar isto eu tive que lhe dizer que Wolfe estava com um outro homem no caso e eu não sabia quem ou o que eles estavam protegendo.

   Estava quase a ponto de telefonar, eu mesmo, quando a porta se abriu e Dorothy Keyes e Victor Talbott entraram.

   Eu me levantei. Pohl continuou sentado.

   "Alô", falei alegremente. "Lindo local o que vocês têm aqui".

   Nenhum deles, nem mesmo me cumprimentou. Dorothy caiu em uma cadeira em frente à parede, cruzou as pernas e olhou para Pohl fixamente com o queixo erguido.

   Talbott marchou sobre nós, parou próximo a mim e disse a Pohl, "sabe muito bem que você não tem o direito de estar aqui, remexendo as coisas e tentando dar ordens aos funcionários. Não tem este direito de modo nenhum. Vou lhe dar um minuto para sair daqui".

   "Você vai me dar?" Pohl parecia aborrecido. "De fato estava aborrecido. "Você é pago como empregado - e você é que não vai continuar aqui por mais tempo. Eu sou em parte proprietário e você é que vem me dizer p'ra sair? Eu é que estou tentando dar ordens aos funcionários? Estou dando aos funcionários a chance de dizerem a verdade e eles vão fazer isto! Dois deles passaram uma hora no escritório do advogado, colocando tudo no papel. Foi feita uma queixa contra Broadyke por recebimento de material roubado e agora ele vai ser preso".

   "Saia daqui", disse Talbott sem levantar a voz.

   Sem se mover, Pohl falou, "E também posso acrescentar que foi feita uma queixa contra você por roubar materiais. Os desenhos que vendia a Broadyke. Vai tentar arranjar um álibi para isto também?"

   A mandíbula de Talbott abriu-se e fechou-se durante alguns segundos antes que abrisse seus lábios para falar. Seus dentes permaneceram fechados enquanto ele disse, "agora pode sair".

   "Ou posso ficar. E vou ficar". Pohl estava zombando, e aquilo fez com que seu rosto se vincasse ainda mais. "Deve ter notado que não estou sozinho".

   Eu não me incomodei com aquilo. "Um momento", falei, "eu vou segurar seus paletós, e é tudo. Não conte comigo Sr. Pohl. Sou simplesmente um espectador, exceto por uma coisa: o senhor ainda não me pagou seus sanduíches e seu café. Um dólar, antes que se vá, se está saindo".

   "Não estou saindo. Aqui é diferente do que foi no parque aquela manhã, Vic. Há uma testemunha".

   Talbott deu dois passos rápidos, usou um pé para afastar a grande cadeira de ébano da mesa, agarrou a garganta de Pohl, pegou sua gravata e arrancou-o da cadeira.

Pohl inclinou-se para frente tentando ao mesmo tempo se levantar, mas Talbott, movendo-se rápido, continuou agarrando-o e arrastando-o pelo canto da mesa.

   Eu tive que me afastar para não ficar no caminho.

   De repente Talbott caiu para trás, levantando violentamente o braço cuja mão agarrava um pedaço da gravata. Pohl não pôde saltar com muita agilidade, com a sua idade, mas tentava fazer o melhor que podia. Endireitou-se em seus pés e começou a gritar "Socorro! Polícia! Socorro!" o mais alto que podia e agarrou a cadeira, onde eu estivera sentado, e levantou-a bem alto. Sua idéia era atirá-la em seu inimigo enfraquecido. Os músculos de minha perna se prepararam para agir prontamente, mas Talbott levantou-se rapidamente e arrancou a cadeira dele. Pohl correu, fugindo para trás da mesa, com Talbott o perseguindo. Pohl, gritando novamente por socorro, encaminhou-se para a outra ponta da mesa, correu através da sala na direção de uma mesa onde estavam colocados vários objetos, agarrou um ferro elétrico e atirou-o.

Errando seu alvo, este espatifou-se contra a mesa de ébano e derrubou o telefone no chão. Talbott parece que ficou louco quando percebeu que tinha sido alvo de um ferro elétrico, porque quando alcançou Pohl, em vez de tentar agarrá-lo por alguma coisa mais forte que uma gravata, esticou-se e prendeu-se em sua mandíbula, apesar do conselho que eu lhe tinha dado na véspera.

   "Parem com isto!" gritou uma voz.

   Olhando para a direita, vi duas coisas: primeiro, que Dorothy, ainda em sua cadeira, não tinha nem mesmo descruzado suas pernas, e, segundo, que o homem da lei

que entrou não era o vigia do andar mas um guarda que eu conhecia de vista. Evidentemente ele devia estar de prontidão em algum lugar por perto, mas era a primeira vez que o estava vendo ali.

   Ele separou os gladiadores. "Isso não é modo de se comportarem", esbravejou.

   Dorothy, movendo-se rapidamente, já estava ao seu lado. "Este homem", disse ela, indicando Pohl, "forçou sua entrada aqui e foi mandado embora, mas não saiu.

Este lugar está sob meus cuidados e ele não tem direito de estar aqui. Quero que ele seja acusado de invasão de propriedade e perturbação da ordem, ou qualquer coisa assim. Tentou também matar o Sr. Talbott com uma cadeira e depois com aquele ferro que atirou sobre ele".

   Tendo recolocado o telefone sobre a mesa eu estava por perto e o polícia me deu uma olhada.

   "O que estava fazendo Goodwin, lixando as unhas?"

   "Não senhor", respondi respeitosamente, "só que eu não queria me intrometer".

   Talbott e Pohl estavam ambos falando ao mesmo tempo.

   "Eu sei, eu sei", disse o tira zangado. "Normalmente com pessoas como vocês, penso que o melhor seria sentar e discutir o assunto, mas depois do que aconteceu com Keyes as coisas estão diferentes do costume. Então perguntou a Dorothy, "a senhorita diz que está fazendo uma acusação?'

   "Certamente que estou":

   "Eu também estou", declarou Talbott.

   "Então é isto. Venha comigo, Sr. Pohl".

   "Vou ficar aqui". Pohl ainda teimava. "Tenho direito de estar aqui e vou ficar aqui".

   "Não, não vai. O senhor ouviu o que a moça disse".

   "Sim, mas o senhor não ouviu o que eu disse. Eu fui atacado.

   Ela faz uma acusação. Eu também. Eu estava sentado calmamente na cadeira, sem me mexer, quando Talbott tentou primeiro me estrangular e depois bater em mim. O senhor não o viu batendo em mim?"

   "Foi em defesa própria", declarou Dorothy. "Você atirou um ferro".

   "Para salvar minha vida! Ele me atacou..."

   "Tudo que fiz..."

   "Parado", o tira falou rudemente. Nestas circunstâncias não adianta falar nada comigo. Os senhores querem me acompanhar, ambos? Onde estão os seus casacos e chapéus?"

   Eles se foram. Primeiro discutiram e gesticularam, mas acabaram indo, Pohl na frente, só com metade da gravata, seguido por Talbott e o guarda na retaguarda.

   Pensando que eu podia arrumar um pouco as coisas, entrei e endireitei a cadeira que Pohl tinha tentado usar, peguei o ferro colocando-o novamente no lugar e então examinei a superfície da mesa para ver o estrago que tinha sido feito nela.

   "Acho que você é um covarde", replicou Dorothy.

   Ela sentara-se novamente e cruzara as pernas. Elas estavam quietas, eu não precisava temer algum pontapé.

   "Isto é discutível", afirmei. "Mas com..." Uma campainha tocou.

   "O telefone", disse Dorothy. Eu o atendi.

   "A srta. Keyes está aí?"

"Sim", respondi. Ela está muito ocupada - sentada. Algum recado?"

   "Diga-lhe que o Sr. Donaldson está aqui para vê-la".

   Assim o fiz e pela primeira vez vi uma expressão inquestionavelmente humana no rosto de Dorothy. Ao som deste nome todos os traços de desprezo se desvaneceram.

Os músculos se comprimiram e ela empalideceu. Pode ser que fosse ou não que acabara de me chamar, eu não sabia, porque, nunca tinha visto ou ouvido nada a respeito de Donaldson. Mas certamente ela estava muito assustada!

   Fiquei cansado de esperar e repeti novamente. "O Sr. Donaldson.está aqui para vê-la".

   "Eu..." ela umedeceu os lábios e engoliu em seco. Daí a um momento levantou-se e disse em uma voz nada delicada.

   "Diga a ela que o mande para a sala do Sr. Talbott", e saiu.

   Repeti a ordem, pedi uma linha externa e quando ouvi o sinal de discar, liguei para casa. Eram três e cinco em meu relógio. Fiquei mudo por um momento quando mais uma vez ouvi a voz de Orrie.

   "Archie", falei rapidamente. "Deixe-me falar com Saul".

   "Saul? Ele não está aqui. Saiu há muito tempo".

   "Ah! pensei que fosse uma festa... Então chame Wolfe".

   "Sim, Archie?" atendeu Wolfe.

   "Estou sozinho no escritório de Keyes, sentado em sua mesa.

   Trouxe o almoço de Pohl e ele está me devendo um dólar. Simplesmente me ocorreu que o Sr. terá que andar rápido para evitar que seus clientes sejam todos presos.

Lembra-se do tempo em que enterrou Clara Fox em uma caixa de madeira com tubo de borracha para respirar? Ou do tempo..."

   "O que aconteceu?"

   "Eles estão agarrando todos os seus clientes, é tudo. Broadyke está sendo acusado por receber materiais roubados - os desenhos que ele comprou de Talbott. Pohl foi levado por perturbar a paz e Talbott por agressão e ofensa física. Para não dizer que a Srta. Keyes acabou de sair daqui apavorada".

   "A respeito do que está falando? O que aconteceu?"

   Contei-lhe tudo e como sabia que ele não tinha nada para fazer além de ficar sentado e deixar que Orrie atendesse o telefone não omiti nada. Enquanto contava sugeri que poderia ser um bom plano ficar por perto e descobrir o que estava acontecendo com o Sr. Donaldson, que tinha feito a moça tremer e empalidecer só com o som do seu nome.

   "Não, penso que não", disse Wolfe, "a menos que seja um alfaiate. Verifique apenas se ele é um alfaiate, mas discretamente. Não deixe que percebam. Se for, consiga seu endereço. Então ache a Sita. Rooney - espere, vou lhe dar seu endereço..."

   "Eu sei onde ela mora".

   "Ache-a. Consiga sua simpatia. Fique sozinho com ela. Faça com que solte a língua".

   "Atrás de que eu vou?...não, eu sei atrás de que eu estou. E o senhor está em busca do que?..."

   "Não sei. Qualquer coisa que consiga. Descubra você. Sabe que num caso desta importância, não há nada a fazer senão tentativa e erros..."

   Um movimento da porta me chamou a atenção e eu me voltei. Alguém tinha entrado e se aproximava de mim.

   "Certo", disse a Wolfe. "Não tenho idéia de onde ela possa estar mas vou encontrá-la nem que demore o dia e a noite inteira". Desliguei e sorri à recém-chegada cumprimentando-a.

   "Olá, Srta. Rooney. Procurando por mim?"

  

   Annie Audrey estava bem arrumada com um vestido marrom de lã com pespontos vermelhos e pequenos nós. Porém não parecia satisfeita consigo mesma ou com mais ninguém.

Nunca se poderia pensar que um rosto com aquela pele tão corada poderia parecer tão triste. Sem me cumprimentar, nem mesmo com um aceno, ela perguntou rudemente, enquanto se aproximava, "como é que se consegue ver um homem que está preso?"

   "Isto depende", eu lhe respondi. "Não adianta estrilar comigo desta maneira. Não fui eu quem o prendeu. Quem é que quer ver? Broadyke?"

   "Não". Ela caiu sobre uma cadeira como se precisasse se apoiar rapidamente. "Wayne Safford".

   "Preso? Por quê?"

   "Eu não sei. Eu o vi no estábulo hoje de manhã, e fui para o centro da cidade para ver um trabalho. Há pouco telefonei a Lucy, minha melhor amiga aqui, e ela me disse que estava correndo a notícia a respeito de que foi Vic Talbott quem teria vendido aqueles desenhos a Broadyke. Então eu vim para descobrir o que estava acontecendo e quando soube que Talbott e Pohl tinham sido presos, telefonei a Wayne para contar a ele. E, então, o homem que atendeu disse que um polícia tinha estado lá e o levara".

   "Por que motivo?"

   "O homem não sabia. O que preciso fazer para vê-lo?"

   "Você, provavelmente nada".

   "Mas tenho que vê-lo!"

   Sacudi a cabeça. "Você acredita que tem que vê-lo, eu também, mas os tiras, não. Isto depende do que diz o convite dele. Se eles só querem consultá-lo a respeito do suor de cavalos, poderá estar em casa dentro de uma hora. Se eles tiverem alguma coisa contra ele, ou pensarem que têm, só Deus sabe! Você não é nem advogada, nem parente".

   Ela sentou-se e me olhou mais triste que nunca. Depois de um minuto declarou amargamente. "Ontem você disse que eu podia ser simpática".

   "Está achando que eu devia pegar um trator e remover céus e terras?" Sacudi a cabeça novamente. "Mesmo que você fosse tão linda que fizesse minha cabeça rodar, o melhor que eu podia fazer por você, agora, seria segurar sua mão e julgar por sua expressão que não é isto que tem em mente. Se importaria de me contar o que tem em sua cabeça além de curiosidade?"

   Ela levantou-se, circundou dois lados da mesa para alcançar o telefone, colocou-o no ouvido e depois de um minuto disse à telefonista, "aqui é Audrey, Helen.

Pode me ligar com... não. Esqueça".

   Desligou, apoiou-se em um canto da mesa e me olhou novamente com indiferença.

   "Sou eu", falou.

   "O quê?"

   "Este problema. Onde quer que eu vá existem problemas".

   "Certo, o mundo está cheio deles. Onde quer que alguém vá há sempre problemas. Você é instável. Ontem estava assustada porque pensava que eles podiam acusá-la de assassínio, e nenhum deles nem mesmo mencionou isto. Talvez esteja enganada novamente".

   "Não, não estou", ela parecia inflexível. "Havia aquele negócio de me acusarem de ter roubado aqueles desenhos. Eles não me pegaram por aquilo, mas percebeu que tentaram. Agora, de repente, tudo se esclarece, estou fora disto, e o que acontece? Wayne está preso por homicídio. Próxima coisa..."

   "Pensei que não sabia por que ele tinha sido preso".

   "Não sei. Mas vai ver. Ele estava comigo, não estava?" Ela empurrou a mesa e levantou-se. "Penso - não, tenho certeza - vou ver Dorothy Keyes".

   "Ela está ocupada com uma visita".

   "Sei disto, mas talvez ela já se tenha ido".

   "É um homem chamado Donaldson, estou imaginando a respeito dele. Tenho palpite que a Srta. Keyes está começando uma investigaçãozinha por conta própria. Por acaso sabe se ele é detetive?"

   "Não, não é. É amigo e advogado do Sr. Keyes. Eu o vi aqui muitas vezes. Você..."

   O que a interrompeu foi um homem entrando pela porta e se dirigindo a nós.

   Era um homem que eu conhecia há anos. "Estamos ocupados", disse-lhe bruscamente, "volte amanhã".

   Eu devia ter juízo suficiente para parar de brincar com o sargento Purley Stebbins, há muitos anos da Seção de Homicídios, porque sempre eu fazia asneiras e me complicava. O que o aborrecia, o que sempre acontecia, não eram as minhas brincadeiras, mas o que ele considerava minha interferência com o cumprimento de seu dever.

   "Então você está aqui", ele declarou.

   "Certo. Srta. Rooney, este é o sargento..."

   "Eu já o conheço". O rosto dela estava tão irritado com ele, quanto tinha estado comigo.

   "É verdade, já nos conhecemos", concordou Purley. Seus olhos castanhos e francos a estavam fixando. "Tenho estado à sua procura, Srta. Rooney".

   "Oh! Deus! mais perguntas?"

   "As mesmas. Estou só conferindo. Lembra-se da declaração que assinou, onde dizia que naquela terça-feira de manhã estava na Academia de Equitação, com Safford, desde um quarto para as seis até depois das sete e meia e vocês dois estiveram lá, todo o tempo? Lembra-se disto?"

   "Claro que lembro".

   "Quer mudá-lo agora?"

   Audrey zangou-se. "Mudar o quê?"

   "Sua declaração".

   "Claro que não, por que haveria de querer'?"

   "Então qual é sua explicação para o fato de ter sido vista a cavalo, no parque, durante aquele período? E Safford, em outro cavalo, estava com a senhora, ele já admitiu isto".

   "Conte até dez", eu disse a ela, "antes de responder. Ou mesmo até cem..."

   "Cale a boca", resmungou Purley. "Qual é sua explicação para isto, Srta. Rooney? Devia ter imaginado que isto podia acontecer e já ter arranjado uma. Qual é a resposta?"

   Audrey tinha se levantado da mesa e estava de pé encarando seu inquisidor. "Talvez", sugeriu ela "alguém não tenha enxergado bem. Quem disse que nos viu?"

   "Certo". Purley puxou um papel de seu bolso e desdobrou-o. Olhou-me e disse "somos cuidadosos a respeito destes pormenores quando seu gordo patrão mete seu nariz no meio". Segurou o papel de modo que Audrey pudesse vê-lo também. "É uma ordem de prisão como testemunha material. Seu amigo Safford quis ler cuidadosamente. Também quer?"

Ela ignorou sua generosa oferta. "O que significa isto?" perguntou.

   "Isto significa que a senhorita vai rodar comigo para o Centro".

   "Isto também quer dizer..." comecei.

   "Cale a boca". Purley deu um passo à frente para pegá-la pelo braço, mas não conseguiu porque ela se afastou, deu volta na mesa e escapou. Ele a seguiu de perto enquanto ela saía pela porta. Aparentemente parecia que Audrey tinha encontrado um meio para se encontrar com seu Wayne.

   Eu me sentei um pouco enquanto franzia os lábios olhando para o cinzeiro sobre a mesa. Sacudi minha cabeça, para nada em particular, só pelo jeito que as coisas iam indo. Alcancei o telefone, pedi uma linha externa e disquei novamente.

   Wolfe atendeu.

   "Onde está Orrie?" perguntei. "Tirando uma soneca em minha cama?"

   "Onde você está?' inquiriu Wolfe calmamente.

   "Ainda no escritório de Keyes. A coisa continua. Foram-se mais dois".

   "Mais dois o quê? P'ra onde?"

   "Mais dois clientes. P'ro xadrez. Estamos ficando tremendamente por baixo".

"Quem e por quê?"

   "Wayne Safford e Audrey Rooney". Contei a ele o que tinha acontecido, sem me preocupar em explicar o que ela tinha dito antes de nossa conversa terminar. No fim eu acrescentei: "portanto, quatro dos cinco foram agarrados, e também Talbott. Estamos em uma bela posição, que nos deixa só com uma cliente, Dorothy Keyes. E eu não ficaria surpreso se ela também, à sua maneira, e a julgar pelo olhar de seu rosto quando soube quem estava... espere um minuto".

   O que me interrompeu foi a entrada de um outro visitante na sala. Era Dorothy Keyes. "Eu chamo depois", falei desligando e deixando minha cadeira.

   Dorothy encaminhou-se para mim. Ela estava parecendo, mais do que nunca, humana. Sua arrogância tinha desaparecido completamente, a cor de sua pele era acinzentada e seus olhos estavam cheios de preocupação.

   "O Sr. Donaldson se foi?" perguntei a ela.

   "Sim".

   "Hoje o dia não foi nada bom. A Srta. Rooney e Wayne Safford foram presos. Parece que a polícia pensa que eles deixaram de contar alguma coisa a respeito daquela manhã de terça-feira. Eu estava justamente contando ao Sr. Wolfe quando você entrou..."

   "Eu quero vê-lo", disse ela.

   "Quem? O Sr. Wolfe?"

   "Sim. Imediatamente".

   "A respeito do quê?"

   Eu ficaria espantado se suas sobrancelhas não se levantassem. A humanidade, ou o que eu pensava que tinha vislumbrado era só superficial. Mas não era.

   "Quero dizer a ele", declarou, "que estou sendo caluniada. Preciso vê-lo agora".

   "No momento não dá", eu lhe respondi. "Poderia sair correndo, pegar um táxi e ir para lá, como poderia também esperar até eu ir à Rua 65 e pegar o meu carro.

Mas são pouco mais que quatro horas e ele está lá em cima, com suas orquídeas. Não a veria antes das seis horas, apesar de você ser a única cliente que ainda não foi presa".

   "Mas isto é urgente!"

   "Não para ele... não até as seis horas. A menos que me queira contar a respeito. A mim ele deixa subir. Quer?"

   "Não".

   "Então devo ir buscar meu carro?"

   "Sim".

   Eu saí.

  

   Três minutos depois das seis Wolfe desceu do orquidário e reuniu-se a nós no escritório.

   Desde a hora em que Dorothy e eu havíamos chegado ela deixara bem claro que, até onde me interessava, já tinha falado. Nossa prosa durante o trajeto, na cidade, consistiu em ela dizer a certa altura, "olhe lá aquele caminhão!" ao que repliquei "estou olhando!" Portanto durante a hora de espera nem mesmo lhe perguntei se queria beber alguma coisa. Quando Wolfe entrou e a cumprimentou, ajustando seu volumoso corpo na cadeira atrás de sua mesa, a primeira coisa que ela disse foi, "Quero

falar com o senhor em particular".

   Wolfe sacudiu a cabeça. "O Sr. Goodwin é meu assistente de confiança e se ele não ouvir da senhora logo o ouvirá de mim. Do que se trata?"

   "Mas é muito pessoal".

   "A maior parte das coisas ditas nesta sala o são. O que é?"

   "Não há mais ninguém a quem eu possa recorrer além do senhor". Dorothy estava em uma das cadeiras amarelas, olhando-o, inclinada em sua direção. "Não sei onde vou me apoiar, tenho que descobrir. Um homem vai dizer à polícia amanhã de manhã que eu falsifiquei a assinatura de meu pai em um cheque".

   Seu rosto estava humano novamente, com um olhar aflito.

   "A senhora falsificou?" perguntou Wolfe.

   "Sim".

   Aí, eu ergui minhas sobrancelhas...

   "Fale-me a respeito disto", disse Wolfe.

   Ela contou tudo - e era realmente simples. Seu pai não lhe dava dinheiro suficiente para manter o estilo de vida a que estava acostumada. Há um ano atrás tinha falsificado um cheque de três mil dólares e, é claro, ele tinha descoberto e a tinha feito prometer que aquilo nunca mais se repetiria. Recentemente ela tinha falsificado outro, desta vez de cinco mil dólares e seu pai tinha sido muito duro, mas não tinha pensado, de maneira nenhuma, em uma solução tão drástica como a de ver a filha na cadeia.

   Dois dias depois da descoberta desta segunda falta, ele foi morto. Tinha deixado tudo para sua filha, mas nomeara Donaldson seu testamenteiro, não sabendo, de acordo com Dorothy, que Donaldson a odiava. Agora este descobrira o cheque entre os papéis de Keyes, com uma nota presa a ele escrita com sua própria letra. Donaldson então a tinha chamado naquela tarde para lhe dizer que era seu dever, tanto como cidadão como advogado, considerando a maneira como Keyes havia morrido, levar o fato ao conhecimento da polícia. Era um dever extremamente doloroso, afirmou ele, mas tinha que fazer das tripas coração...

   Não vou dizer que tenha sorrido com sarcasmo quando reli estes fatos, escritos em meu caderno de notas, mas admito também que não tive vontade de chorar.

   Wolfe tendo obtido respostas a todas as perguntas que lhe ocorreram, inclinou-se para trás e suspirou profundamente. "Posso entender", murmurou ele " que se sinta impelida a se livrar deste problema passando-o a alguém. Mas mesmo que eu o tomasse da senhora, e então? O que faria eu com ele?"

   "Não sei".

   Supõe-se, que contar a outros nossos problemas, nos faz sentir melhor; mas, aparentemente, isto fez com que Dorothy se sentisse pior ainda. Ela parecia tão desamparada como no começo.

   "Além de tudo", prosseguiu Wolfe, "do que está com medo? A fortuna, incluindo, a conta no banco, agora pertence à senhora. Seria uma perda de tempo e dinheiro, para o escritório do Procurador do Distrito, tentar indiciá-la e levá-la a julgamento se isto nem mesmo seria considerado. A menos que o Sr. Donaldson seja tolo, ele deve saber disto. Diga-lhe isto. Diga-lhe que eu o julgo, um idiota". Wolfe apontou o dedo para ela. "A menos que ele pense que a senhora matou seu pai e quer ajudá-la a ser eletrocutada. Ele a odeia a tal ponto?"

   "Ele me odeia!" disse Dorothy amargamente, "o mais que pode!"

   "Por quê?"

   Porque uma vez deixei que pensasse que eu queria me casar com ele. Anunciou a muita gente e, então, eu mudei de idéia. É um homem de sentimentos profundos. Era profundo o amor que sentia por mim e agora também é profundo o ódio que me tem. De qualquer maneira pode usar daquele cheque para me prejudicar e vai fazer isto".

   "Então não pode detê-lo, nem eu. O cheque falsificado e a nota de seu pai estão legalmente em sua posse e nada pode evitar que ele os mostre à polícia. Ele anda a cavalo?"

   "Ó, meu Deus!" disse Dorothy desesperada. Levantou-se. "Pensei que o senhor fosse esperto! Pensei que saberia o que fazer!" Ela dirigiu-se à porta, mas na soleira, voltou-se "O senhor é também um rábula barato! Vou cuidar daquele rato sujo, eu mesma!"

   Levantei-me e fui para o hall para deixá-la sair e ter certeza de que a porta estava bem fechada. Quando voltei ao escritório sentei-me e atirei o caderno dentro da gaveta e comentei: "Agora ela nos têm todos classificados. Eu sou um covarde, o senhor um rábula e o executor da fortuna de seu pai um rato. Aquela pobre garota precisa de novas amizades".

   Wolfe simplesmente resmungou, mas era um resmungo de bom humor, porque a hora do jantar estava próxima e ele nunca se permitia ficar irritado pouco antes das horas de refeição.

   "Então", falei, "a menos que imagine algum jeito bem rápido, ela vai se juntar aos outros antes de amanhã à tarde e ela era a última que nos restava. Todos os cinco e também o suspeito que tínhamos foram apanhados. Espero que Saul e Orrie estejam indo melhor que nós. Tenho um compromisso com uma amiga para jantar e depois ir a um show, mas posso suspender se houver alguma coisa que eu possa fazer...".

   "Não há nada, obrigado".

   Olhei para ele. "Já sei, Orrie e Saul já o estão fazendo?"

   "Não há nada para você esta noite. Vou ficar aqui resolvendo alguns problemas".

   Sim, ele ficaria. Ele estaria lá, lendo, bebendo cerveja, com Fritz para dizer, a qualquer um que telefonasse, que ele estava ocupado. Não era a primeira vez que ele decidia que um caso não valia o esforço e o mandava para o inferno. Nestas ocasiões minha missão era tomar conta dele até que se livrasse do conflito, mas desta vez minha posição era diferente. Já que Orrie Carther podia ficar toda uma tarde em minha cadeira, podia também fazer meu trabalho. Portanto deixei as coisas como estavam e subi para meu quarto para me preparar para sair.

   Foi uma noite muito agradável sob todos os aspectos. O jantar de Lily Rowan, apesar de não ter a qualidade do de Fritz, ao qual eu já estava acostumado, sempre era bom. Bons também foram o show e a orquestra no Flamingo Club, aonde fomos depois para nos conhecermos melhor, já que eu a conhecia somente há sete anos. Apesar de tudo isto não cheguei depois das três horas, e como de costume dei uma olhada no escritório, girei o segredo do cofre e olhei ao redor. Se houvesse algum recado

para mim, Wolfe sempre o deixava sob um peso de papéis. E realmente, havia um, em uma folha de seu bloco, escrito com sua letra fina e regular que era tão fácil de ler como se fosse escrito à máquina.

  

   Archie: Seu trabalho no caso Keyes foi muito bom. Agora que já está tudo resolvido, pode ir, amanhã de manhã, como estava combinado, a Long Island buscar aquelas

plantas. Teodore terá as caixas de papelão preparadas para você. Não se esqueça de controlar a ventilação. N. W.

  

   Li a nota novamente e virei a folha de papel para ver se havia alguma informação, mas estava em branco.

   Sentei-me em minha mesa e disquei um número. Nenhum de meus amigos mais próximos, ou mesmo dos inimigos, estava lá! Encontrei um sargento que conhecia, chamado

Rowley, e lhe perguntei, "no caso Keyes, precisa de algo que ainda não tenha?"

   "O quê?" Ele sempre parecia áspero. "Precisamos de tudo. Mande pela entrega postal".

   "Um cara me disse que vocês não tinham mais nada com isto!"

   "Ah! Vá p'ra cama".

   Ele deve ter ido. Fiquei um momento sentado e então disquei novamente; o número do escritório do Gazette. Lon Cohen tinha ido para casa, mas um dos jornalistas me disse que pelo que sabia, o caso Keyes ainda estava na prateleira de trás, cobrindo-se de poeira.

   Amassei o recado de Wolfe e o atirei no cesto de papéis, resmungando, "aquele maldito gordo tapeador", e subi para dormir.

  

   Nos jornais de quinta-feira cedo não havia uma só palavra sobre a cobertura do caso Keyes que indicasse que alguém tinha avançado um milímetro que fosse na difícil descoberta do assassino.

   Gastei o dia inteiro, das dez da manhã às seis da tarde, na casa de Lewis Hewett, em Long Island, ajudando a escolher, limpar e acondicionar dez dúzias de mudas de plantas para levá-las para casa. Eu não estourei, mas podem imaginar meu estado de ânimo, quando em meu caminho de volta, um guarda me parou, quando me aproximava da Ponte de Queensboro - e eu ia realmente devagar - para me perguntar onde era o incêndio. Tive que morder a língua para evitar um desabafo.

   Enquanto carregava a última caixa de plantas para a varanda tive uma surpresa. Um carro que já tinha visto muitas vezes, comum P. D. inscrito, aproximou-se da guia e parou atrás do meu carro e o inspetor Cramer saiu dele.

   "O que é que Wolfe arranjou agora?" perguntou ele, caminhando em minha direção.

   "Uma dúzia de zigopetalum, uma de Renanthera, uma Odontoglossum", eu lhe respondi com frieza.

   "Deixe-me passar", disse-me ele rudemente.

   Assim o fiz.

   O que é que eu deveria ter feito, fazê-lo entrar? Já que agora eu era um garoto de entregas e não um detetive, tinha que continuar ajudando Theodore a levar as orquídeas para cima e sorrir ao fazer aquilo. Mas isto não foi por muito tempo, porque Wolfe chamou-me do seu escritório: "Archie!"

   Entrei. Cramer estava na poltrona de couro vermelho com um charuto apagado na boca, inclinado na direção do teto e apertado entre seus dentes. Wolfe, com os lábios apertados, significando que estava se contendo, olhava-o com o cenho franzido.

   "Estou fazendo um trabalho importante", falei rispidamente.

   "Isto pode esperar. Chame o Sr. Skinner no telefone. Seja tiver saído do escritório ligue para a casa dele".

   Eu teria ido muito mais longe se Cramer não estivesse lá. Mas assim, tudo que fiz foi bufar enquanto me encaminhei para minha mesa, sentar-me, e começar a discar.

   "Corte isto!" Cramer gritou como um selvagem.

   Continuei a discar.

   "Eu disse, pare com isto!"

   "Faça isso, Archie", assentiu Wolfe. Virei-me do telefone e vi que ele continuava com a testa franzida, mas seus lábios tinham se relaxado. Então ele falou. "Não vejo, Sr. Cramer, o que mais pode pedir do que a escolha que lhe propus. Quando lhe falei pelo telefone, me deu sua palavra de que iria cooperar comigo, nas minhas condições, e eu lhe contaria tudo a respeito, e com todas as minúcias, incluindo é claro todas as justificativas. Ou, se se recusasse a me dar sua palavra, que era a outra alternativa, eu perguntaria ao Sr. Skinner se a Promotoria do Distrito gostaria de cooperar comigo. Garanto que não vai haver nenhum perigo, mas minha esperança é de que o caso seja encerrado logo. Isto não é bastante justo?"

   Cramer rugia como um tigre em um jaula tendo uma cadeira a empurrá-lo.

   "Não entendo", declarou Wolfe, "por que diabo eu o aborreço. O Sr. Skinner pularia de alegria com isto".

   Os rugidos de Cramer transformaram-se em palavras. "Quando será... hoje à noite?"

   "Eu disse que daria os pormenores depois que eu tivesse sua promessa. Mas vou lhe adiantar. Será amanhã cedo, dependendo da entrega de um pacote que estou esperando - a propósito, Archie, você não pôs o carro na garagem?"

   "Não senhor".

   "Bom. Tenho que sair mais tarde, provavelmente por volta da meia-noite para esperar um avião. Tudo isto depende do avião, Sr. Cramer. Se chegar amanhã em vez de hoje à noite, vamos ter que adiar tudo até sábado de manhã".

   "Onde? Aqui em seu escritório?"

   Wolfe sacudiu a cabeça. "Este é um dos pormenores que vai ter. Com a breca, não faço sempre o que digo?"

   "Não diga isto. Nunca sei. Diz que vai tomar minha palavra. Por que não acredita também que não vou fazer nada ou que esqueci o que ouvi?"

   "Não. Archie, chame o Sr. Skinner".

   Cramer pronunciou uma palavra que não posso repetir. "Você e suas malditas charadas", falou amargamente. "Por que só me aborrece? Sabe muito bem que não vou deixar soprar isto ao procurador, porque pode muito bem ser verdade. Já foi assim outras vezes... Certo. Sob as suas condições".

   Wolfe assentiu. O brilho, em seus olhos, foi e voltou tão rápido que quase escaparam até a mim.

   "Seu caderno de notas, Archie. É um tanto complicado e duvido que possamos acabar antes do jantar".

  

   "Explicarei com muito prazer", disse eu ao oficial Hefferan, "se descer desse cavalo e ficar no mesmo nível que eu. Este é o modo mais democrático. Quer que eu torça o pescoço de tanto incliná-lo para falar com você?"

   Sorri largamente sem disfarçar isto, desde que não havia nada ali além de um simples guarda montado. Estar de pé, vestido e pronto, trabalhando às sete horas da manhã não era nada de extraordinário para mim, mas também não era o comum, e eu ficara acordado até tarde três noites seguidas: terça-feira com a reunião dos clientes, quarta com Lily Rowan e quinta dirigindo até o aeroporto de La Guardiã para encontrar o avião, que estava no horário.

   Hefferan desceu de seu cavalo. Estávamos postados no cimo da pequena colina, no Central Park, onde ele me havia levado no dia em que nos conhecemos. Parecia que íamos ter um dia quente de outubro. Uma pequena brisa estava brincando com as folhas das árvores e arbustos, e pássaros voavam ao redor, discutindo seus planos para a manhã.

   "Tudo que estou fazendo", disse Hefferan, para tornar as coisas bem claras, "é obedecer ordens. Me mandaram encontrá-lo aqui e ouvi-lo".

   Concordei. "E você não precisa se preocupar quanto a isto. Nem eu. Você pode ser um cara durão p'ra cumprir suas ordens. Mas eu também recebi ordens. O jeito é este. Como sabe lá embaixo, atrás daquelas árvores" - apontei - "há um barracão de ferramentas. Do outro lado, o alazão de Keyes, selado e arreado está sendo seguro por um de seus colegas. Dentro do abrigo há duas mulheres chamadas Keyes e Rooney e quatro homens chamados Pohl, Talbott, Safford e Broadyke. O inspetor Cramer também está lá com um destacamento de seu Pelotão. Um dos seis civis, homem ou mulher, escolhidos secretamente, está neste momento trocando suas roupas, vestindo umas calças amarelas brilhantes e uma jaqueta azul, exatamente iguais à que Keyes usava. Aqui entre eu, você e o seu cavalo, a escolha é uma encenação dirigida pelo inspetor Cramer. Vestido como Keyes, o escolhido número um vai montar o cavalo de Keyes e cavalgar ao longo do caminho, com os ombros curvados e os selins bem baixos, vai dar uma olhada p'ra você, levantar seu chicote saudando-o. Sua parte é ser um homem honesto. Faça-de-conta que não foi eu quem lhe disse tudo isto, mas o seu muito amado e adorado comissário de polícia. Estamos pedindo que se lembre de que o que estava interessado em ver era o cavalo, não o cavaleiro, e colocar-se esta questão: você realmente reconheceu Keyes naquela manhã, ou só o cavalo e a vestimenta?"

   Apelei para ele energicamente. "E pelo amor de Deus não me diga uma palavra. Você não tem que me contar absolutamente nada, portanto conserve sua boca fechada e guarde tudo para mais tarde, para seus superiores. Muito está dependendo de você - o que pode ser lastimável - mas agora nada mais pode ser feito... Se não se ofender vou lhe explicar a teoria da coisa: o assassino, vestido como Keyes, mas disfarçado por um sobretudo, estava esperando na parte superior do.parque, atrás daqueles arbustos, às seis e meia, quando Keyes cavalgou entrando no parque e se dirigindo ao caminho para cavaleiros. Se ele tivesse atirado em Keyes de uma certa distância, mesmo que fosse pequena, o cavalo teria disparado; portanto ele saiu, parou Keyes e segurou firme a rédea antes de puxar o gatilho. Uma bala somente.

Então puxou o corpo para trás do arbusto, de modo que não pudesse ser visto do caminho, mesmo que outro cavaleiro madrugador pudesse passar por ali, tirou seu sobretudo - ou talvez uma capa de chuva - e enfiou-a dentro de sua jaqueta, montou o cavalo e saiu para o passeio no parque. Ele controlou o tempo de modo a obedecer o horário de Keyes. Trinta minutos mais tarde, aproximando-se daquele ponto" - apontei para onde o caminho emergia de trás das árvores - "ele viu você aqui, ou esperou até

que o visse aqui, então cavalgou ao longo do atalho, saudando-o como de costume levantando seu chicote. Mas no segundo que saiu de sua vista, no outro lado do atalho, ele agiu rápido. Desceu do cavalo e o deixou lá, sabendo que ele faria seu caminho de volta até a saída do parque e bateu em retirada, apressadamente, ou à 5? Avenida para pegar um ônibus ou ao metrô, dependendo para onde ele queria ir. A idéia era arranjar um álibi o mais cedo possível, desde que ele não podia estar certo da hora em que o cavalo seria visto e a busca de Keyes iria começar. Mas por pior que fosse ele tinha previsto que Keyes ainda estava vivo às sete e dez, lá embaixo naquele atalho e o corpo seria achado distante no lado oposto".

   "Acredito", disse Hefferan firmemente, "eu estou reproduzindo fielmente a verdade quando digo que vi Keyes".

   "Cancele isto", pedi-lhe. "Apague. Faça sua cabeça ficar vazia - o que não deve ser..." Engoli em tempo o que ia dizer, concluindo que não iria contribuir para obter sua boa vontade, e olhei para o meu pulso. "São sete horas e nove minutos. Como estava você naquela manhã, montado ou a pé?"

   "Montado".

   "Então é melhor montar para ser exatamente igual. Faça o mesmo - monte. Lá vem ele!"

   Admito que o camarada sabia como montar um cavalo. Ele estava ereto sobre a sela mais rapidamente do que eu teria enfiado meu pé no estribo, e tinha seus olhos dirigidos para o fim do atalho do caminho dos cavaleiros, no lugar onde ele saía das árvores. Admito também que o alazão era lindo visto dali de cima. Ele era alto, magro e de pernas longas, mas não desajeitado, com uma curva orgulhosa no pescoço e, como Hefferan tinha dito, tinha um belo andar. Forcei meu olhar para fixar os traços do rosto do cavaleiro, mas àquela distância era impossível. O azul da jaqueta, o amarelo da calça, e os ombros arqueados sim, mas o rosto não.

   Nenhum som veio de Hefferan. Como o cavaleiro na senda dos cavaleiros aproximou-se do fim do caminho, forcei meus olhos novamente, esperando que pudesse acontecer alguma coisa, sabendo, como eu sabia, o que ele iria defrontar quando circundasse a curva fechada no fim do atalho - ou sejam, quatro policiais montados à sua frente.

   Certamente alguma coisa aconteceu, rápido e fora da minha lista de expectativas. O alazão estava fora da vista, atrás da curva, há menos de meio segundo e então ele se voltou num pulo. A curva desapareceu de seu pescoço, porém ele, ou seu cavaleiro, já tinha caminhado o bastante na senda. A dez passos deste lado da curva o cavalo desviou abruptamente e disparou em direção à esquerda, sobre a grama em um belo galope, e então seguiu em frente, em direção ao Leste da 5ª Avenida, dando-nos as costas. Simultaneamente entrou o quarteto de guardas montados, como uma carga de cavalaria. Quando viram o que o alazão tinha feito, as pernas de seus cavalos de repente pararam, escorregando três metros na lama suja, para o lado da grama e caíram.

   Gritos vinham do pequeno grupo que tinha saído de trás das árvores que escondia o barracão de ferramentas. Hefferan me deixou. A coxa de seu cavalo chocou-se contra meu ombro quando ele partiu para a ação e torrões de terra voaram para o ar enquanto ele descia a encosta para juntar-se à caçada. O barulho de tiros de revólver vieram do leste, e aquilo era o fim para mim. Eu teria dado um ano do meu ordenado, qualquer coisa, como um reino, por um cavalo, mas não tendo nenhum... saí correndo.

   Colina abaixo, para a senda dos cavaleiros, eu bati todos os recordes, mas do outro lado havia uma elevação e eu tive também que desviar de árvores e arbustos e pular trilhos. Não parava para achar os cruzamentos, mas me dirigia em linha reta para os ruídos que vinham do leste, inclusive outra série de tiros. Uma coisa engraçada: mesmo preocupado como estava tentando correr o mais depressa possível, eu pensava e esperava que eles não machucassem aquele alazão. Finalmente avistei a cerca do parque mas não podia ver nada se movendo, embora os ruídos parecessem ser mais altos e mais próximos. Direto na minha frente estava o muro que circundava o parque, e indeciso quanto ao caminho a tomar para a entrada mais próxima, dirigi-me para o muro, escalei-o, parei arquejante e examinei ao redor.

   Eu estava na esquina da rua 65 com a 5ª Avenida. Um quarteirão acima da entrada do parque, a Avenida estava tão atravancada que ninguém saía do lugar. Carros, na maioria táxis, estavam parados em ambos os lados do cruzamento e os pedestres que ainda não tinham chegado estavam a caminho vindos de todas as direções. Um ônibus tinha parada e os passageiros estavam descendo. As coisas mais altas eram os cavalos. Tive a impressão que havia um número infernal deles, mas provavelmente não eram mais do que seis ou sete. Eram todos baios, mas um era alazão e eu fiquei contente em ver que ele parecia bem, enquanto subia pelo asfalto em direção da multidão.

A sela do alazão estava vazia.

   Eu estava tomando meu caminho através do centro quando um guarda agarrou meu braço, mas quero ir para o inferno se não foi verdade que o oficial Hefferan disse:

" deixe-o ir, é o homem de Nero Wolfe, Goodwin!" Eu ficaria contente em poder lhe agradecer cordialmente, mas ainda não tinha ar suficiente para falar. Então simplesmente dei uns empurrões e usando somente meus olhos tive minha curiosidade satisfeita.

   Victor Talbott, com jaqueta azul e calças amarelas, aparentemente tão a salvo quanto o alazão, estava parado lá, com um guarda segurando-o por um braço. Seu rosto estava sujo e ele parecia muito cansado.

  

   "Vai ficar contente em saber", eu disse a Wolfe depois, naquela tarde, "que nenhuma destas contas que estamos enviando a nossos clientes vai ser endereçada aos cuidados da prisão. Isto seria embaraçoso".

   Era pouco mais de seis horas, ele tinha descido do orquidário e estava com uma cerveja em sua frente. Eu, em minha máquina de escrever, fa/ia as contas.

   "Broadyke", continuei, "afirma que simplesmente comprou os desenhos que lhe foram oferecidos, sem saber de onde vieram e pode provavelmente se firmar nisto. Dorothy aceitou o acordo com Pohl, e não vai insistir na acusação. De qualquer modo agora é tudo dela. Safford e Audrey não podem ser acusados só por estar cavalgando no parque, mesmo que tenham omitido isto em seu depoimento somente para evitar complicações. De qualquer modo, se quiser saber por que eles destinaram quinze por cento dos nossos honorários a um cavalariço, ele não é cavalariço. Ele é dono daquela Academia de Equitação, portanto Audrey não perdeu nada. Provavelmente eles vão se casar a cavalo."

   Wolfe resmungou, "isto não vai melhorar suas chances".

   "O senhor tem preconceitos contra o casamento", eu o reprovei. "Qualquer dia eu posso tentar a experiência. Olhe para Saul, fixado que nem uma barraca mas absolutamente feliz. Por falarem Saul, por que o senhor gastou seu dinheiro fazendo com que ele e Orrie telefonassem para todos os alfaiates de New York?"

   "Não foi perdido", Wolfe cortou. Ele não suporta ser acusado de desperdiçar dinheiro. "Havia uma vaga chance de que o Sr. Talbott fosse suficientemente burro para ter mandado fazer sua roupa aqui mesmo. O menor risco, é claro, era ter mandado fazer em uma das cidades que ele tinha visitado recentemente; e, melhor ainda, seria ter mandado fazer o mais distante possível. Portanto eu primeiro telefonei a Los Angeles e a Agência Southwest me deu cinco nomes. Saul e Orrie fizeram outras coisas também. Saul descobriu, por exemplo, que o quarto do Sr. Talbott, no hotel, estava situado de modo que se ele usasse a escada ou a entrada lateral, poderia facilmente sair e voltar àquela hora do dia sem ser reconhecido". Wolfe bufou. "Eu duvido que o Sr. Cramer tenha ao menos pensado nisto. Por que haveria? Ele tinha aceitado as palavras daquele policial de que tinha visto o Sr. Keyes a cavalo, vivo e saudável, às sete e dez".

   "Muito bem", concordei. "Mas aceitando que podia ter sido o assassino e não Keyes que o guarda podia ter visto vivo, em um cavalo, por que o senhor escolheu imediatamente Talbott?"

   "Não fui eu. Foram os fatos. O disfarce, se tivesse havido algum, não teria ajudado a ninguém a não ser Talbott, desde que um álibi para aquela hora e naquele local só seria útil para ele. Mesmo o cumprimento trocado à distância com o policial era essencial para o plano e só Talbott, que freqüentemente cavalgava com Keyes, podia saber deste detalhe".

   "Certo", concordei. "E o senhor telefonou a Pohl para descobrir onde Talbott tinha estado recentemente. Meu Deus, Pohl realmente ajudou nisto! Ah! a propósito.

A Agência Southwest mandou um envelope selado dentro do envelope que continha sua conta. É provável que eles estejam sugerindo sutilmente que o senhor lhes deve um cheque. Da parte da agência a conta é até bastante razoável, mas aquele alfaiate quer três mil dólares pelo feitio de uma jaqueta azul e de uma calça amarela!"

   "Que os nossos clientes vão pagar", disse Wolfe calmamente. "Não é nada exorbitante. Eram cinco horas da tarde quando eles o acharam e tiveram que convencê-lo a passar a noite para fazê-los novamente..."

   "Certo", concordei ainda uma vez. "Admito que tinha que ser uma duplicata perfeita, com a etiqueta e tudo mais, para poder amedrontar aquele sujeito. Ele tem coragem. Recebeu seu chamado às seis horas, no hotel, mandou que o acordassem novamente às sete e meia, correu para a rua sem ser visto, agiu e voltou ao seu quarto a tempo de atender o chamado das sete e meia. E não se esqueça que seu único ponto de referência era o começo de tudo: às seis e meia, devia acertar em Keyes. Daí em diante ele teve que fazer o seu horário. Que calma!"

   Levantei-me e entreguei as contas a Wolfe, inclusive as listas pormenorizadas das despesas para sua verificação.

   "O senhor sabe", considerei, sentando-me novamente, "que ele esteve a ponto de ter um colapso nervoso, esta manhã. Quando foi escolhido para dublar Keyes, isto deve ter feito com que se sentisse apavorado em começar tudo novamente. Então ele se viu levado ao outro quarto para trocar de roupa e lhe foi entregue uma caixa com um rótulo: Cleever de Hollywood. Ele a abriu e havia uma roupa exatamente igual àquela que tinha mandado fazer, e da qual tinha se livrado em boa hora, em algum lugar, juntamente com o revólver, e novamente na roupa a etiqueta Cleever de Hollywood. Fiquei surpreso de como ele foi capaz de vesti-la, abotoá-la, andar até o cavalo e montara sela. Realmente ele tem coragem. Suponho que pretendia prosseguir caminhando mas quando virou a curva e lá estavam os quatros policiais, seus nervos vieram abaixo... e eu não o culpo por isso. Admito que não tive a menor idéia quando lhe telefonei para lhe dar aquela lista de cidades, que Pohl tinha me dado...

Oh! Meu Deus!"

   Wolfe levantou os olhos. "Qual é o problema?"

   "Me dê de volta a lista de despesas! Esqueci de cobrar o dólar que Pohl me deve pelos sanduíches!..."

  

                                 Disfarce Para Matar

   Eu me sentia tão aborrecido que só um passeio me faria bem, porém como isto não era possível simplesmente desci para o escritório e fechando a porta que dava para o hall, sentei-me diante de minha mesa, colocando os pés sobre ela, inclinei-me para trás, fechei os olhos e respirei profundamente.

   Tinha cometido dois erros. Quando Bill McNab, editor da seção de jardinagem do Gazette sugeriu a Nero Wolfe que os membros do Clube Manhattan Flower fossem convidados a irem uma tarde olhar as orquídeas, eu devia ter evitado aquilo. E quando a data foi estabelecida, os convites enviados, Wolfe combinado para que Fritz e Saul ficassem recebendo os convidados na porta da frente e eu ficasse com ele e Theodore entre os convidados, nas estufas de plantas se eu tivesse tido um mínimo de juízo devia ter saído da jogada. Mas não tinha sido assim e o resultado é que permanecera lá em cima por quase duas horas, sorrindo, fingindo estar muito feliz e contente. "Não senhor, isto não é um brasso é uma laelia." "Não, senhora, não acredito que possa criar uma miltonia em uma sala de visitas... sinto muito". "Não tem importância, minha senhora... sua manga arrancou a flor... ela brotará novamente no ano que vem."

   Não seria tão mau se houvesse algo de bom para os olhos. Fora sido combinado que o Clube Manhattan Flower selecionaria quem iria ser convidado, mas, obviamente os critérios deles eram totalmente diferentes dos meus. Os homens eram simplesmente homens; certo, como homens, vá lá; mas a mulheres! Era uma coisa maravilhosa que elas escolhessem flores para amar, porque as flores não têm que retribuir. Eu não faço objeção ao fato delas estarem vivas e bem, desde que eu também tive uma mãe e três tias e gostava muito delas, mas teria sido um alívio encontrar uma só que pudesse ter feito meu sorriso ser um pouco menos forçado.

   De fato tinha havido uma - somente uma. Eu tive uma visão dela do outro lado do corredor cheio de gente, quando eu saía da sala refrigerada para a mais moderada, depois de ter mostrado a dois sujeitos como uma planta de osmundina podia sofrer em vaso de barro. A dez passos de distância ela parecia absolutamente tentadora e quando me aproximei o suficiente para me oferecer para responder à alguma pergunta que quisesse, não houve mais dúvida a este respeito, ao primeiro olhar que me deu percebi claramente que ela sabia perfeitamente a diferença entre uma flor e um homem. Mas ela simplesmente sorriu, sacudiu a cabeça e aproximou-se de seus companheiros, uma senhora idosa e dois homens. Mais tarde fiz outra tentativa para receber outro sorriso, e ainda mais tarde, muito mais tarde, pensando que o maldito sorriso pudesse me congelar, se eu não parasse de insistir, caminhei até o fim da sala aquecida e me aproximando, disfarçadamente, da porta, escapei.

   Nos três lances das escadas outros convidados estavam subindo, embora fossem quase quatro horas. A velha casa de pedras cinzentas de Nero Wolfe, na Rua 35-Oeste, nunca tinha recebido tanta gente, que eu pudesse me recordar. Um andar abaixo parei, para pegar em" meu quarto um maço de cigarros, e no primeiro andar dei outra parada para me certificar de que a porta do quarto de Wolfe estava trancada. No hall central, no andar térreo, parei um momento para olhar Fritz Brenner, ocupado

na porta com as chegadas e saídas, e para ver Saul Panzer saindo da sala da frente, que estava sendo usada como vestiário, com o chapéu e o casaco de alguém. Então, como disse acima, entrei no escritório e, fechando a porta do hall atrás de mim, sentei-me na minha mesa com os pés para cima, inclinei-me, fechei os olhos e respirei profundamente.

   Estava lá talvez, há oito ou dez minutos, e estava começando a esquecer a minha amargura, quando a porta se abriu e ela entrou. Seus companheiros não estavam mais com ela. Fechou a porta e virou-se para mim, que a esta altura já estava de pé, com um olhar amigável, e começando a falar "...eu só estava sentado aqui pensando...".

   O olhar em seu rosto me fez parar. Basicamente não havia nada de errado nele, mas alguma coisa o tinha perturbado. Ela aproximou-se de mim, chegou até o meio, parou, afundou-se em uma das cadeiras amarelas e balbuciou, "posso tomar alguma coisa?"

   "Scotch, rye, burbom, gim?..." perguntei-lhe.

   Ela simplesmente sacudiu a mão. Fui ao bar e peguei uma dose de Old Woody. Sua mão estava tremendo quando pegou o copo, mas não derrubou nada, e o tomou em dois goles, como se aquilo fosse leite, o que não era lá muito feminino. Ela estremeceu-se toda e fechou os olhos. Depois de um minuto os abriu e disse roucamente - o tremor tinha-se ido - "eu precisava disto".

   "Mais?"

   Ela sacudiu a cabeça. Seus olhos castanhos estavam anuviados pelo uísque quando ela me olhou diretamente com a cabeça erguida. "Você é Archie Goodwin", declarou.

   Concordei. "E você, é a rainha do Egito?"

   "Eu sou uma babuína", declarou ela. "Não sei como é que eles me ensinaram a falar". Olhou para os lados procurando algum lugar para colocar o copo, adiantei-me e o peguei. "Veja como minha mão está tremendo" se queixou. "Estou toda em pedaços".

   Ficou com a mão levantada, olhando-a, então eu a tomei entre as minhas e a apertei gentilmente. "Você parece realmente um tanto perturbada", concordei. "Duvido que suas mãos sejam sempre tão frias. Quando eu a vi lá em cima..."

   Ela retirou a mão rapidamente e deixou escapar, "quero ver Nero Wolfe. Quero vê-lo imediatamente antes que mude de idéia". Ela estava me olhando fixamente com os olhos castanhos e anuviados. "Meu Deus, eu estou em uma bela encrenca! Sou uma babuína apavorada! Tenho de me resolver, vou ter que conseguir que Nero Wolfe me ajude a sair disto - por que ele não o faria? Ele resolveu um problema para Dazy Perrit, não resolveu? Então, eu estou no meio. Vou arranjar um emprego no Macy's

ou me casar com um chofer de caminhão! Quero ver Nero Wolfe!"

   Eu disse a ela que isto não seria possível até que a reunião acabasse.

   Olhando ao redor ela perguntou: "As pessoas vão entrar aqui?"

   Assegurei-lhe que não.

   "Posso tomar outra dose, por favor?"

   Eu ponderei a ela que devia dar tempo à primeira dose para que se assentasse. Em vez de responder, levantou-se, pegou o copo que estava sobre a mesa de Wolfe, dirigiu-se para o bar e se serviu sozinha. Sentei-me e fiquei olhando para ela. Sua aparência parecia muito estranha para um membro do Clube Manhattan Flower ou mesmo para ser filha de algum deles. Ela voltou à sua cadeira, sentou-se e me olhou nos olhos. Olhar para ela, diretamente, daquele jeito, podia ser uma maneira agradável de passar o tempo se não houvesse o perigo de descobrir seus pensamentos, mas era fácil perceber que sua mente estava lutando contra o que estava relacionado comigo ainda que acidentalmente.

   "Posso falar com você", disse ela, roucamente.

   "Muitas pessoas o fazem", respondi modestamente.

   "É o que vou fazer".

   "Ótimo, então pode falar".

   "Tenho medo de mudar de idéia e não quero que isto aconteça".

   "Certo. Pode começar".

   "Sou uma vigarista".

   "Não parece", objetei. "O que é que fez, roubou no jogo de canastra?"

   "Não disse que sou uma ladra". Ela tossiu para limpar a garganta. "Eu disse que sou uma trapaceira. Me lembre, qualquer dia de lhe contar a história da minha vida, como meu marido foi morto durante a guerra e eu escapei das grades. Não lhe parece interessante?"

   "Certamente que sim. Qual é a sua especialidade: ladra de orquídeas?"

   "Não. Eu não seria tão mesquinha nem tão desprezível - isto é o que eu pensava, mas um vez começada a coisa não é assim tão simples. A gente encontra certas pessoas e acaba se envolvendo. Daí não se pode continuar só. Há dois anos atrás quatro de nós levou um milhão de dólares de uma certa ricaça, casada com um milionário. Posso lhe falar sobre ela, até lhe dar os nomes, porque de qualquer maneira ela não pode fazer nada contra nós".

   Concordei. "Clientes de chantagistas raramente o podem. O que..."

   "Eu não sou uma chantagista!" Os olhos dela estavam queimando.

   "Desculpe. O Sr. Wolfe sempre diz que tiro conclusões precipitadas".

   "Desta vez você o fez". Ela ainda estava indignada. "Um chantagista não é um vigarista, é uma víbora! Não que isto realmente tenha importância. O que há de errado em se ser trapaceiro são os outros trapaceiros - eles fazem sujeira quer você queira ou não. Eu já estive enterrada nisto até o pescoço. Isto nos torna covardes, também. E isto é que é o pior. Uma vez eu tive uma amiga - tão amiga quanto uma vigarista pode ser - e um homem a matou, estrangulou-a. Se eu tivesse contado o que sabia sobre o caso, eles o teriam agarrado; mas tive medo de procurar os tiras, então, e ele ainda está livre. E ela era minha amiga! Isto é que é se chegar até o fundo, não é?"

   "Realmente", concordei, olhando-a. "É claro que não a conheço bem. Não sei como pode reagir com duas doses de uísque. Talvez sua distração seja enganar detetives particulares. Se for assim, por que não espera o Sr. Wolfe? Seria muito mais divertido se fizesse isto com nós dois".

   Ela simplesmente ignorou o que eu disse. "Percebi há muito tempo atrás", continuou, como se estivesse falando sozinha, "que tinha cometido um erro. Eu não era o que pensava ser - uma fora-da-lei romântica e indiferente. Não se pode fazer a coisa assim, ou, de qualquer maneira, eu não podia. Eu era só uma vigarista, e sabia disto, e há cerca de um ano decidi romper com aquilo tudo. Um bom jeito de fazer isto teria sido conversar com alguém do modo como estou falando com você agora, mas não tive juízo suficiente para pensar nisto. E também havia muita gente envolvida. Era tudo tão envolvente! Você sabe..."

   "Sim, eu sei", concordei.

   "Então continuei a protelar a decisão. Tivemos um bom negócio em dezembro e fui para a Flórida para umas férias e lá conheci um homem, que tinha um plano que executamos até a semana passada. É no que estou trabalhando agora. Isto é o que me trouxe aqui hoje. Este homem..."

   Parou repentinamente.

   "Bem?" eu a incentivei.

   Ela parecia profundamente alarmada, não amedrontada, mas de um modo diferente. "Não estou esperando nada dele, não lhe devo nada e não gosto dele, mas isto diz respeito estritamente a mim e a ninguém mais - só que tenho que explicar por que estou aqui. Por Deus eu queria nunca ter vindo!"

   Não havia dúvida que aquilo era sincero, a menos que ela tivesse ensaiado muito em frente do espelho.

   "Isto a levou a vir falar comigo", eu a ajudei.

   Ela estava olhando,para um ponto distante, através de mim. "Se ao menos eu não tivesse vindo! Se eu não o tivesse visto!"

   Inclinou-se em minha direção dizendo, "Eu não sou nem tão inteligente nem tão imbecil, esse é o meu problema. Eu deveria ter me afastado dele, rapidamente quando descobri quem ele era, antes dele ter se virado e percebido isto em meu olhar. Mas eu estava tão chocada que não pude evitar! Por um segundo não pude me mover. Céus!

eu estava paralisada! Fiquei lá olhando para ele, pensando se eu realmente o reconheceria se não estivesse com chapéu, quando ele olhou para mim e percebeu o que estava acontecendo. Vi então o quanto eu tinha sido idiota. Virei e me afastei, mas era muito tarde. Sei como conseguir controlar minha expressão com quase todo mundo e em qualquer lugar, mas aquilo era muito para mim. Foi tão visível que a Sra. Orwin me perguntou o que estava acontecendo comigo; eu sabia que tinha que tentar disfarçar... então vendo Nero Wolfe tive a idéia de lhe contar, só que, é claro, não podia ser lá, no meio daquela multidão - daí vi você saindo, e então, assim

que pude escapar, desci para achá-lo".

   "Ela tentou sorrir para mim, o que não conseguiu muito bem. "Agora me sinto um pouco melhor", disse ela mais aliviada.

   "É um bom uísque", concordei. "É segredo? Não vai me dizer quem você reconheceu?"

   "Não, vou dizer a Nero Wolfe".

   "Mas tinha se resolvido a me contar". Sacudi a mão. "Faça como quiser. Conte a quem contar, que bem isto lhe vai fazer?"

   "Porque... então ele não vai poder fazer nada contra mim!"

   "Por que não?"

   "Porque ele não ousaria. Nero Wolfe dirá a ele que eu já tinha falado a respeito dele, e portanto se me acontecesse alguma coisa ele saberia quem foi, e ficaria sabendo também que ele é... Quero dizer Nero Wolfe ficaria sabendo - e você também".

   "Isto se soubéssemos o nome e o endereço dele". Eu a estava sondando. "Ele deve ser realmente muito esquisito, para assustá-la tanto. E por falar em nome, qual é o seu?"

   Ela emitiu um pequeno ruído que podia ser interpretado como uma risada. "Gosta de Marjorie?"

   "Assim, assim".

   "Uma vez em Paris eu usei Evelyn Carter. Gosta desse?"

   "Não é mau. Qual é o que está usando agora?"

   Ela hesitou aborrecida.

   "Santo Deus", protestei, "você não está num interrogatório e eu sou um detetive que costuma tomar nota dos nomes logo na porta da entrada".

   "Cynthia Brown", disse ela.

   "Desse eu gosto mais. Aquela senhora com quem veio é a Sra. Orwin?"

   "É".

   "Ela é atualmente uma cliente! O plano que você achou na Flórida?"

   "Sim. Só que..." Ela se mexeu na cadeira. "Está acabado. Agora está terminado, desde que estou contando a você e a Nero Wolfe. Estou acabada".

   "Já sei. Um emprego no Macy's ou o casamento com um chofer de caminhão. Há uma coisa que não me contou, embora... quem foi que reconheceu?"

   Ela virou sua cabeça para olhar a porta e então virou-se ainda mais para olhar atrás dela. Quando seu rosto se voltou estava assustado de novo, com o lábio inferior comprimido pelos dentes.

   "Alguém pode nos ouvir? perguntou.

   "Não. Aquela porta dá para a sala da frente - hoje transformada em vestiário. De qualquer modo esta sala é a prova de som, inclusive as portas".

   Ela olhou para a porta do hall novamente, virou-se para mim e baixou sua voz.

   "Isto tem que ser feito do jeito que eu disser".

   "Claro, por que não?"

   "Não estava sendo honesta com você".

   "Não esperava isto de uma vigarista. Comece de novo".

   "Quero dizer..." Ela apertou os lábios novamente. "Quero dizer que não estou assustada somente por mim. Estou assustada, é certo, mas não quero Nero Wolfe só pelo que eu disse. Eu o quero para o prender por assassínio, mas tenho que ficar fora disto. Não quero nada com os tiras - especialmente agora! Estou saindo. Se ele não fizer deste jeito... pensa que o fará?"

   Eu sentia um leve tremor na base da espinha. Só sentia isto em ocasiões especiais, mas aquilo era indiscutivelmente alguma coisa especial, se Marjorie-Evelyn-Carter-Cynthia-Brow não estivesse me enrolando...

   Dei a ela um olhar rude e não deixei que o tremor passasse para minha voz. "Ele poderia, por você, se o pagar. Que tipo de evidência você tem? Tem alguma?"

   "Eu o vi".

   "Quer dizer, hoje?"

   "Quero dizer que o vi naquela vez". Ela tinha as mãos fortemente apertadas. "Eu já lhe disse - eu tinha uma amiga. Fui ao seu apartamento naquela tarde. Já ia saindo - Dóris estava no fundo, no banheiro - e quando eu cheguei perto da porta de entrada ouvi uma chave girando na fechadura, do lado de fora. Parei e a porta se abriu e um homem entrou. Quando me viu, parou e me olhou. Eu nunca tinha visto o protetor de Dóris e sabia que ela não queria que eu o visse, mas desde que tinha a chave pensei que certamente seria ele, e que estava lhe fazendo uma visita inesperada. Então comentei alguma coisa sobre Dóris estar no banheiro e saí, passando por ele".

   Ela parou. Afrouxou as mãos e depois as apertou novamente. "Estou queimando meus trunfos", falou, "mas posso negar tudo se for preciso. Saí e fui confirmar um compromisso para um coquetel e depois telefonei a Dóris para perguntar se o nosso encontro para o jantar ainda estava de pé, considerando a visita daquele homem.

Não tive resposta. Voltei então ao apartamento dela e toquei a campainha, mas também não atenderam. Não havia nem porteiro, nem ascensorista, portanto não havia ninguém para perguntar. A empregada encontrou seu corpo no dia seguinte. Os jornais disseram que ela tinha sido assassinada no dia anterior. Aquele homem a matou.

Não havia uma palavra sobre ele - ninguém o havia visto entrando ou saindo. Eu não abri minha boca! Fui uma miserável covarde"

   "E hoje, de repente, lá estava ele, olhando as orquídeas?"

   "Sim".

   "É uma linda estória", admiti. "Está certa...?"

   "Não é uma estória! Por Deus, eu queria que fosse..."

   "Certo. Está certa que ele sabe que o reconheceu?"

   "Sim. Ele olhou fixamente para mim e seus olhos..."

   Ela parou porque o telefone interno tocou. Aproximando-mede minha mesa eu o atendi. "Alô".

   A voz de Wolfe estava irritada. "Archie".

   "Sim, senhor".

   "Que diabo está fazendo aí? Suba até aqui!"

   "Logo mais. Estou conversando com uma provável cliente..."

   "Agora não é hora para clientes! Venha imediatamente!" A ligação foi cortada. Ele tinha batido com o fone no gancho. Desliguei e voltei à futura cliente. "O Sr.

Wolfe me quer lá em cima. Ele não tinha imaginado que no Club Manhattan Flower havia tanto mulheres quanto homens. Quer esperar aqui?"

   "Sim".

   "Se a Sra. Orwin perguntar por você?"

   "Eu não me sentia bem e fui para casa".

   "Certo. Eu não devo demorar... Os convites diziam: até às cinco horas. Se quiser tomar alguma coisa, pode se servir. Que nome este homem usou para vir ver as orquídeas?"

   Ela ficou pálida. E eu impaciente.

   "Diabos, como é o nome dele?"

   "Eu não sei".

   "Não sabe?"

   "Não".

   "Como é a aparência dele?"

   Ela pensou durante um certo tempo olhando para mim e então sacudiu a cabeça. "Não posso" falou pensativamente. Balançou a cabeça novamente, positivamente. "Agora não. Quero antes saber o que Nero Wolfe diz de tudo isto". Ela deve ter notado alguma coisa em meus olhos, ou penso que o tenha, porque de repente levantou-se de sua cadeira e andando em minha direção colocou uma mão sobre meu braço. "É isto que eu quero", falou sinceramente. "Não é nada contra você... sei que é bom". A pressão de seus dedos aumentou. "Eu poderia muito bem falar com você... sei que certamente você nunca iria me prejudicar... esta é a primeira vez, em muito anos, não sei quanto tempo, que falei com um homem tão francamente - sabe como é, humanamente? Sem ser calculista, de uma maneira ou de outra. Eu..." ela parou por um instante, e um leve colorido apareceu em seu rosto - só então encontrou a palavra - "...apreciei muito tudo isso".

   "Muito bem. Eu também. Pode me chamar de Archie. Mas tenho que ir. Quer descrevê-lo? Só em linhas gerais".

   Ela porém não gostou muito da idéia. "Não, até que Nero Wolfe diga o que vai fazer", falou firmemente.

   Tive que deixar a coisa como estava, sabendo, como sabia, que se demorasse mais um pouco Wolfe iria ter um ataque. Fora, no hall, tive a idéia de dizer a Saul e Fritz que dessem, aos convidados que estavam saindo, uma boa olhada; mas rejeitei a idéia porque a) eles não estavam lá; provavelmente estavam ocupados no vestiário; b) podia ser que ele já tivesse ido embora; e c) eu não tinha, de jeito nenhum, engolido uma só palavra da estória de Cynthia, muito menos a encenação toda. Então me dirigi para a escada, esbarrando com a onda de convidados que estava saindo.

   Em cima, nas estufas, ainda havia uma multidão deles. Quando me aproximei da fúria de Wolfe ele me dirigiu um olhar gelado de ódio, que retribuí com um sorriso.

De qualquer maneira, era um quarto para as cinco e se aquelas pessoas tivessem dado uma olhada no convite, não se demorariam muito mais.

  

   Eles porém não levaram o horário muito a sério, mas isto não me aborreceu muito porque minha cabeça estava ocupada. Agora, eu estava realmente interessado neles - ou pelo menos em um deles, se ele efetivamente estivera lá e ainda não tivesse ido embora.

   Primeiro havia um pequeno trabalho a ser feito. Achei as três pessoas com quem Cynthia viera, a senhora e os dois homens, próximos da coleção de odontoglossum, na sala refrigerada. Aproximando-me deles, perguntei cortesmente: "Sra. Orwin?"

   Ela assentiu e disse. "Sim?" Não muito alta, porém bem gorda, com um rosto redondo, os olhos pequenos e apertados, que poderiam ser mais bonitos se se abrissem um pouco mais. Chamou-me a atenção sua aparência dominadora. Somente as pérolas ao redor de seu pescoço e a estola de mink sobre seu braço melhoravam um pouco a sua aparência, embora eu duvidasse que aquele fosse o tipo de presa em que Cynthia era especialista.

   "Eu sou Archie Goodwin", falei, "trabalho aqui".

   Teria prosseguido se soubesse como, mas tinha que me controlar desde que não sabia o que dizer a respeito da Srta. Brown ou Sra. Brown. Felizmente um dos homens interferiu.

   "Minha irmã?" perguntou ansiosamente.

   Então eram irmão e irmã agindo juntos! Até onde podia perceber, ele não era de todo um mau irmão. Talvez um pouco mais velho que eu, era alto, forte, com boca e queixo enérgicos e penetrantes, olhos acinzentados. "Minha irmã?" repetiu ele.

   "Penso, que o senhor é..."

   "Coronel Brown. Percy Brown".

   "Certo". Voltei-me à Sra. Orwin. "A Srta. Brown pediu-me para lhe dizer que foi para casa. Eu lhe preparei um pequeno drinque e parece que lhe fez bem, mas ela resolveu ir embora. Ela me pediu que eu lhe apresentasse as suas desculpas".

   "Ela é muito saudável", afirmou o coronel. Ele parecia um tanto magoado. "Não há nada de errado com ela".

   "Ela está bem?" perguntou a Sra. Orwin.

   "Para ela", acrescentou o outro homem "devia ter preparado três drinques. Dos grandes. Ou simplesmente ter lhe dado a garrafa".

   Seu tom, como sua voz, eram significativos, e de qualquer maneira, me parecia que aquele não era o jeito de se falar sobre alguém, ainda mais em uma casa estranha.

Ele era um pouco mais moço que o Coronel Brown, mas se parecia muito com a Sra. Orwin, especialmente os olhos, o que fazia com que se parecessem muito mais mãe e filho do que simplesmente conhecidos. Este ponto ficou confirmado quando ela lhe ordenou. "Fique quieto, Gene!" e virando-se para o coronel " talvez você devesse ir e saber dela".

   Ele sacudiu a cabeça, com um sorriso carinhoso para ela.

   "Não é preciso, Mimi. Realmente".

   "Ela está bem", assegurei-lhes e me afastei, pensando que havia um porção de apelidos neste mundo que deviam ser reexaminados. Chamar aquela corpulenta senhora, dona de olhos pequenos, pérolas e mink, de Mimi, era um paradoxo.

   Circulei entre os convidados, para ser agradável. Perfeitamente consciente de que não estava equipado com um contador Geiger, que acendesse uma luz se, e quando, eu estabelecesse contato com um estrangulador. O fato que permanecia é que eu costumava ter palpites e que haveria alguma coisa para o meu álbum de recortes se eu apanhasse alguém como o assassino de Dóris Hatten e aquilo mais tarde se transformasse em manchete.

   Cynthia Brown não tinha mencionado o Hatten, só o Dóris, mas dentro do contexto aquilo foi suficiente. No tempo em que a coisa se passou, cinco meses atrás, no princípio de outubro, é claro que os jornais tinham dado ao caso muita importância. Ela tinha sido estrangulada com a sua própria écharpe de seda branca e com a declaração da independência impressa, em seu pequeno apartamento no quinto andar lá para os lados das Ruas setenta e tanto, Oeste, e a écharpe tinha sido deixada ao redor de seu pescoço, amarrada atrás. Os tiras não conseguiram responsabilizar ninguém. O sargento Purley Stebbins, de Homicídios, me havia dito que eles nunca tinham descoberto quem pagava o aluguel, porém não havia lei nenhuma contra Purley ser "discreto".

   Prossegui em meu passeio através das estufas, com todas as antenas ligadas para algum palpite. Alguns deles foram francamente absurdos, porém com algumas pessoas tive oportunidade de trocar algumas palavras, encarar e examiná-las bem. Aquilo tomou tempo e não ajudou em nada o julgamento e a campanha crônica e inveterada para um aumento de salário, uma vez que era das mulheres e não dos homens que Wolfe queria se afastar. De qualquer modo eu continuei com aquilo. Era verdade que se Cynthia estivesse sendo correta, e se não mudasse de idéia até a hora em que eu levasse Wolfe até ela, logo nós teríamos descrições mais minuciosas; mas como eu tivera aquele tremor no fim da espinha, estava determinado.

   Como disse, aquilo levou tempo e por volta das cinco e meia o grupo de remanescentes parecia ter se apercebido, todos ao mesmo tempo, que a hora havia terminado, e se dirigiram todos para a saída da escada. Eu estava na sala de temperatura moderada quando aquilo aconteceu e a primeira coisa que notei foi que estava ali sozinho, com exceção de um sujeito na ala norte examinando uma série de dowianas. Ele não me interessava porque já o havia estudado e riscado como suspeito do tipo de estrangulador, mas quando olhei novamente em sua direção, ele, de repente, se curvou para frente para apanhar um vaso com uma planta e quando fez aquilo senti minhas costas se enrijecerem. O enrijecimento era um reflexo e eu sabia o que tinha causado aquilo: o modo como seus dedos pegaram o vaso, especialmente os polegares. Não importa o quanto se seja cuidadoso com as coisas dos outros, mas não se levanta um vaso de dez centímetros como se se fosse extrair tudo o que há de vivo nele.

   Aproximei-me. Quando cheguei, ele estava segurando o vaso de modo que as flores estavam somente a poucos centímetros de seus olhos.

   "Linda flor", falei alegremente.

   Concordou. "De que cor o senhor chamaria as sépalas?"

   "Amarelo nanquim".

   Ele se inclinou e recolocou o vaso no lugar, ainda admirando-o. Girei minha cabeça. As únicas pessoas à vista, do outro lado da divisão de vidro, entre nós e a sala refrigerada, eram Nero Wolfe e um pequeno grupo de convidados entre os quais o trio Orwin, e Bill MacNab, o editor de jardinagem do Gazette. Quando voltei minha cabeça novamente para o meu homem, ele se endireitou, girou nos calcanhares e saiu sem uma palavra. O fato de que ele pudesse ou não ter sido culpado, não era certo, porém mal-educado certamente ele o era.

   Eu o segui através da estufa aquecida, até o corredor e depois nos três lances da escada. No hall de entrada fui suficientemente cuidadoso para não pisar em seus calcanhares, mas com uma passada maior eu o teria alcançado. O hall estava quase vazio. uma mulher, com um casaco de peles estava pronta para sair, ali parada, enquanto junto à porta Saul Panzer estava de pé, sem nada para fazer. Segui o homem até a sala da frente, o vestiário, onde Fritz Brenner ajudava um convidado a vestir seu casaco. Evidentemente as prateleiras estavam praticamente nuas e com uma só olhada ele localizou seu casaco e se dirigiu a ele. Era um casaco de lã marrom e já devia ter agüentado muitos e muitos invernos. Adiantei-me para ajudá-lo mas ele me ignorou sem mesmo se preocupar em acenar a cabeça. Estava começando a me irritar. Quando foi para o hall eu estava ao seu lado e quando se dirigiu para a porta da frente, falei:

   "Perdão, mas estamos conferindo as saídas dos convidados como fizemos com as entradas. Seu nome, por favor?"

   "Ridículo", falou rispidamente e procurou a maçaneta, abriu a porta e cruzou a soleira. Saul, percebendo que eu devia ter alguma razão para ter perguntado aquilo já estava ao meu lado e assim ficamos olhando suas costas enquanto descia os sete degraus da varanda.

   "Sigo-o?" murmurou Saul.

   Sacudi minha cabeça e estava abrindo os lábios para responder, quando ouvimos um ruído atrás de nós que nos fez voltar a ambos - um grito de mulher, não muito alto, porém cheio de pavor. Quando nos viramos, Fritz e o convidado que estava atendendo saíram da sala da frente, e vimos a mulher de casaco de pele sair correndo "do escritório. Ela continuou se aproximando, agarrando alguma coisa e o convidado, fazendo um barulho como um animal assustado, correu na direção dela. Eu me movi rápido, precisando somente de oito pulos para chegar à porta do escritório e dois para entrar. Lá parei.

   É claro que sabia que a coisa sobre o chão era Cynthia, porém somente porque eu a tinha deixado lá e com aquelas roupas. Com o rosto azulado e contorcido, a língua meio para fora, e os olhos esbugalhados, não podia, quase, ser reconhecida. Ajoelhei-me e enfiei minha mão no seu casaco, conservei-a ali durante dez segundos sem sentir nada.

   Ouvi a voz de Saul atrás de mim. "Estou aqui".

   Levantando-me fui para o telefone em minha mesa e comecei a discar, dizendo a Saul, "Não sai ninguém. Temos que preservar o que ainda temos. Só abra a porta para o Dr. Vollmer". Em poucos segundos a enfermeira atendeu e pôs o médico na linha. Eu então falei rapidamente: "Doutor, é Archie Goodwin. Venha correndo. Uma mulher foi estrangulada... certo, estrangulada".

   Coloquei o fone no gancho e alcancei o telefone interno, discando para a estufa; esperei a voz irritada de Wolfe chegar aos meus ouvidos: "Sim?"

   "Estou no escritório. É melhor descer. Aquela possível cliente que mencionei está aqui no chão, estrangulada, penso que esteja morta. Já chamei o Dr. Vollmer".

   "Que brincadeira é essa?" rugiu ele.

   "Não senhor, desça, veja e então vai me dizer".

   A ligação foi cortada. Ele tinha batido o fone. Peguei uma folha de papel de seda fino, de uma gaveta, rasguei um canto e o coloquei sobre a boca de Cynthia, durante uns dez segundos; a folha não se mexeu.

   Vindo do hall ouviam-se ruídos de vozes. Agora uma delas se aproximava do escritório. Seu dono era o convidado que estava no vestiário com Fritz quando ouvimos o grito. Era um sujeito entroncado, com ombros largos, olhos escuros e arrogantes e braços como de um gorila. Sua voz estava se elevando, enquanto se dirigia para a porta, porém calou-se quando se aproximou o suficiente para olhar o corpo no chão.

   "Meu Deus", disse roucamente.

   "Sim senhor", concordei.

   "Como aconteceu isto?"

   "Não sei".

   "Quem é ela?"

   "Não sei".

   Ele levantou vagarosamente seus olhos do corpo até que encontrassem os meus e eu lhe dei uma nota "A" por seu controle. Foi realmente um espetáculo.

   "O homem que está na porta não quer nos deixar sair",declarou ele.

   "Não senhor. E pode ver por que".

   "Certamente que posso". Entretanto seus olhos ainda estavam fixos em mim. "Mas não sabemos nada a esse respeito. Meu nome é Carlisle, Hommer N. Carlisle. Sou o vice-presidente executivo da North American Foods Company. Minha mulher agiu simplesmente por curiosidade; queria ver o escritório de Nero Wolfe, então abriu a porta e entrou. Ela está muito aborrecida por ter feito isto e eu também. Temos um compromisso e não há razão para sermos detidos".

   "Também sinto muito", eu lhe disse, mas há uma coisa, mesmo que não houvesse mais nada - sua esposa descobriu o corpo. Estamos em pior situação que a dos senhores, com um cadáver aqui em nosso escritório e não temos nem mesmo uma esposa que tenha sido curiosa. Estamos nisto por nada. Portanto penso... alô doutor".

   Vollmer, entrando e acenando para mim de passagem, estava um pouco ofegante quando colocou sua maleta preta no chão e ajoelhou-se ao lado do corpo. Sua casa ficava abaixo, na mesma rua, e ele teve que correr somente duzentos metros, mas estava ficando gordo! Abriu a maleta e pegou o estetoscópio. Hommer Carlisle parado, em pé, olhava com os lábios apertados, enquanto eu fazia o mesmo, até ouvir o barulho do elevador de Wolfe. Passando pela porta e entrando no hall, sondei o ambiente.

Na frente Saul e Fritz tentavam acalmar a mulher de casaco de peles, para mim, agora, Sra. Carlisle. Nero Wolfe e a Sra. Mimi Orwin estavam saindo do elevador. Quatro convidados estavam descendo a escada: Gene Orwin, Coronel Percy Brown, Bill MacNab e um senhor de meia idade com um topete de cabelos escuros.

   Fiquei na porta do escritório para impedir que o quarteto entrasse. Assim que Wolfe se dirigiu a mim, a Sra. Carlisle precipitou-se sobre ele agarrando seu braço.

"Eu só queria ver o seu escritório! Quero ir embora! Não sou uma..."

   Enquanto ela o puxava falando excitadamente, notei um pormenor. O casaco de peles estava desabotoado e dava para se ver as pontas de um écharpe de seda estampada e colorida. Mas como pelo menos a metade das convidadas estavam usando écharpes, menciono o fato, somente para ser mais minucioso e porque, admito, tenho uma certa implicância com esse objeto.

   Wolfe, que naquele dia já tinha estado próximo de mais de muitas mulheres para seu gosto, tentou se desprender dela, mas ela o continuou segurando. Era do tipo atlético, de ossos e ombros largos, e teria quase se transformado em uma luta, na qual ele pesava quase duas vezes mais que ela, e tinha quatro vezes sua circunferência, se Saul não o tivesse socorrido enfiando-se entre eles e libertando-o. Isto porém, não calou sua língua, mas Wolfe ignorando aquilo veio em minha direção.

   "O Dr. Vollmer veio?"

   "Sim, senhor".

   O vice-presidente executivo saiu do escritório. "Sr. Wolfe, meu nome é Hommer N. Carlisle e insisto..."

   "Cale a boca", rosnou Wolfe. Na soleira da porta, olhou os presentes.

   "Amantes de flores", falou com amargo desdém. "O senhor me disse, Sr. McNab, um distinto grupo de sinceros e devotados amantes de jardinagem. Bah! Saul!"

   "Sim, senhor".

   "Está armado?"

   "Sim senhor".

   "Ponha todos eles na sala de jantar e faça com que fiquem lá. Não deixe que ninguém toque em nada perto desta porta, especialmente no trinco. Archie, venha comigo".

   Virou-se e entrou no escritório. Seguindo-o, usei meu pé para empurrar a porta quase a fechando sem trancá-la. Porém, quando me voltei Vollmer estava de pé, encarando o rosto carrancudo de Wolfe.

   "Bem?" perguntou ele.

   "Morta", respondeu-lhe o médico. "Com asfixia por estrangulamento, às vezes se pode fazer alguma coisa, mas aqui não valeu a pena nem tentar."

   "Há quanto tempo?"

   "Não sei, porém não mais que uma ou duas horas. Duas horas no máximo, provavelmente menos".

   Wolfe olhou para o corpo no chão sem que isto modificasse seu mau humor. E voltando-se para o médico: "Estrangulada. Há marcas de dedos?"

   "Não. Uma contração de alguma coisa com pressão abaixo do osso hióide. Nada duro ou estreito; alguma coisa macia como uma tira de pano - digamos uma écharpe".

   Wolfe virou-se para mim. "Não avisou a polícia?"

   "Não senhor". Dei uma olhada a Wollmer e voltei-me. "Preciso lhe dar uma informação".

   "Suponho que sim". Falou então com o médico: "Se nos deixar por uns momentos? A sala da frente?"

   Vollmer hesitou, constrangido. "Como médico convocado para constatar uma morte violenta chega a ser engraçada esta sugestão. Eu diria, é claro..."

   "Então fique em um canto e feche os ouvidos."

   Assim ele o fez. Dirigiu-se ao canto mais distante da sala, no ângulo formado pela divisão do banheiro e ficou nos olhando.

   Então comecei a falar com Wolfe em voz baixa:"Eu estava aqui quando ela entrou. Estava muito assustada ou fingia estar. Aparentemente não era encenação e penso agora que devia ter prevenido Saul e Fritz, mas agora não vem ao caso o que devia ter feito. Em outubro uma mulher chamada Dóris Hatten foi morta - estrangulada - em seu apartamento. Ninguém foi acusado. Lembra-se?"

   "Sim".

   "Ela disse que era amiga de Dóris Hatten e esteve em seu apartamento naquele dia e viu o homem que a estrangulou; ele estava aqui nesta tarde. Falou que sabia que ele a tinha reconhecido e era por isto que estava apavorada; queria conseguir que o senhor a ajudasse, dizendo-lhe que éramos espertos e que era melhor que ele ficasse de fora, embora eu não engolisse bem toda a história. Sei que o senhor detesta complicações e poderia não querer se envolver nisto, mas, no fim, ela me convenceu dizendo que tinha gostado da minha companhia. Acho então que é melhor falar com os tiras".

   "Então fale. Caramba!"

   Peguei o telefone e disquei WAtkins 9-8241. O médico saiu de seu canto e veio pegar sua maleta preta do chão e a colocou sobre uma cadeira. Wolfe estava perturbado.

Movia-se ao redor de sua mesa, e remexia-se dentro de seu terno feito sob medida no único lugar do mundo onde ele se sentia sempre completamente à vontade: seu escritório.

Mas aquele corpo em sua frente, sobre o chão, o aborrecia. Então, depois de um momento, tomou uma decisão; levantou-se, rosnou como um porco enraivecido, caminhou em direção ao outro lado da sala, até às estantes e examinou as lombadas dos livros.

   Mas mesmo aquela dolorosa operação foi interrompida. Quando terminei minha ligação e desliguei o telefone de repente; ruídos de comoção foram ouvidos no hall.

Com passos apressados, agarrando a beirada da porta, empurrando-a e atravessando-a, vi o problema. Um grupo estava reunido na porta da sala de jantar que dava para o hall. Saul Panzer saiu curvado e passou por mim em direção da frente. Na porta de entrada o coronel Percy Brown estava afastando Fritz Brenner com uma mão e com a outra alcançando a maçaneta da porta. Fritz que é nosso mordomo e cozinheiro e não se supunha que fosse dado a acrobacias, saía-se muito bem. Atirando-se no chão, agarrou os tornozelos do coronel e o atirou ao chão. Naquela hora eu já estava lá e Saul também, com sua arma na mão; e lá conosco, estava o convidado de topete preto.

   "Seu cretino idiota", eu disse ao coronel quando este se endireitou. "Se tivesse saído, Saul poderia tê-lo machucado".

   "Culpado", falou o convidado do topete, enfaticamente. "A pressão tornou-se insuportável e ele explodiu. Eu o estava observando. Sou psiquiatra".

   "Muito bem". Tomei o braço dele: "Volte e observe todos eles. Com aquele espelho pode incluir-se também".

   "Isto é ilegal", declarou o coronel Brown, que se tinha levantado com dificuldade e estava ofegante.

   Saul os acompanhou de perto. Fritz segurou minha manga. "Archie, tenho que perguntar ao Sr. Wolfe a respeito do jantar".

   "Doido!" falei meio furioso. "À hora do jantar este lugar vai estar mais cheio do que estava à tarde. Os tiras estão chegando. Vai ser uma boa coisa termos o vestiário preparado".

   "Mas ele tem que comer: sabe disso. Eu já devia estar com os patos no forno. Se tiver que ficar aqui na porta, agarrando pessoas quando tentarem sair, o que ele vai comer?"

   "Bolas", falei batendo em seu ombro. "Desculpe meu jeito, Fritz, estou chateado. Acabei de estrangular uma moça".

   "Claro", disse ele zombando.

   "Eu bem podia ter feito isto", declarei.

   A campainha da porta tocou. Alcancei o interruptor e acendi a luz da varanda e olhei pelo vidro-espelhado da porta. Era o primeiro batalhão de tiras.

  

   Em minha opinião o inspetor Cramer cometeu um erro. Opinião? Bolas! É evidente que cometeu! É verdade que em uma sala onde aconteceu um crime os "cientistas" da polícia - calculadores, farejadores, peritos em impressões digitais, fotógrafos, médicos - executam seu trabalho rapidamente, e assim o fizeram. Exceto em raras ocasiões, o trabalho não leva nunca uma semana, e no caso do nosso escritório, um par de horas já era demais. E assim foi. Lá pelas oito horas os peritos tinham terminado. Mas Cramer, muito "meticuloso", deu ordens, bem na frente de Wolfe, para fechar o escritório até maiores notícias. O inspetor sabiá muito bem que Wolfe passava pelo menos, trezentas tardes por ano, ali, na única cadeira e sob a única luz que realmente gostava e foi por isto que deu aquela ordem. Foi um erro. Se ele não tivesse feito aquilo, Wolfe poderia ter chamado sua atenção para um certo fato assim que o notou e Cramer teria evitado uma porção de problemas.

   Ambos obtiveram o fato, de mim, ao mesmo tempo. Estávamos na sala de jantar - isto foi pouco depois de os peritos terem estado ocupados no escritório e os convidados, sob guarda, terem sido conduzidos para a sala da frente - e eu estava descrevendo minha conversa com Cynthia Brown. Eles queriam saber de tudo, ou Cramer queria, e eles o souberam. Mesmo porque, meus ouvidos, como assistente de Wolfe, me tinham transformado num verdadeiro gravador; assim sendo, Wolfe e Cramer não tiveram um simples relato daquela conversa, mas tiveram a conversa real, palavra por palavra. Souberam, também, do resto da minha tarde completa. Quando terminei, Cramer fez uma série de perguntas mas Wolfe não perguntou nada. Talvez eleja tivesse apanhado o fato referido acima, porém nem eu nem Cramer o tínhamos percebido. O escrivão, sentado em um dos cantos da mesa, também tinha o fato anotado em seu caderno de notas, mas não se esperava que ele o percebesse.

   Cramer fez uma parada nas perguntas para ordenar as idéias. Chamou um dos homens e deu algumas ordens. O coronel Brown devia ser fotografado e suas impressões digitais deviam ser tomadas. A delegacia devia investigar o passado de Cynthia. Os arquivos sobre a morte de Dóris Hatten, deviam, também, serem trazidos imediatamente.

Os resultados dos exames de laboratório deviam ser apressados. Saul Panzer e Fritz Brenner deviam ser introduzidos na sala.

   Eles entraram. Fritz ficou como um soldado em posição de sentido - sério e inflexível. Saul, com sua baixa estatura, olhos perscrutadores, um dos maiores narizes que já vi, com seu impecável terno marrom e sua gravata torta... permaneceu como Saul mesmo, nem em posição de sentido nem à vontade. Ele só ficaria naquela posição se estivesse sendo premiado com uma Medalha de Honra ou se estivesse no front, em um batalhão, num ataque.

   É claro que Cramer conhecia a ambos. Perguntou então a Saul: "Você e Fritz estavam no hall durante toda a tarde?"

   Saul assentiu. "No hall e na sala da frente".

   "Quem viu entrar ou sair do escritório?"

   "Vi Archie entrar por volta das quatro horas, mais ou menos - eu estava exatamente saindo da sala da frente com o chapéu e o casaco de alguém. Vi a Sra. Carlisle entrar e na mesma hora começar a gritar. Entre estas duas pessoas não vi mais ninguém entrar ou sair. Estávamos ocupados a maior parte do tempo, na sala da frente ou no hall.

   Cramer resmungou. "E quanto a você, Fritz?"

   "Não vi ninguém", falou Fritz mais alto que o normal. "Não vi nem mesmo quando Archie entrou". Deu um passo à frente, ainda como um soldado. "Gostaria de dizer alguma coisa".

   "Vá em frente".

   "Penso que grande parte de toda esta confusão é desnecessária. Meus deveres hoje aqui eram de um criado e não de um profissional, mas não posso evitar de ouvir o que chega aos meus ouvidos, e sei de muitas vezes que o Sr. Wolfe achou a resposta de problemas que eram muito difíceis para o senhor. O caso aconteceu aqui na sua própria casa e penso, por isto, que deveria ser deixado inteiramente por conta dele".

   "Fritz, não sei que aconteceu com você!" comentei assustado.

   "Toda esta confusão", insistiu ele firmemente.

   "Vá para o inferno!" Cramer o estava comendo com os olhos. "Wolfe lhe disse para que falasse isto?"

   "Bah!" Wolfe falou com desdém. "Isto não pode ajudar, Fritz. Temos bastante presunto?"

   "Sim senhor".

   "Esturjão?"

   "Sim senhor".

   "Mais tarde, provavelmente. Para os convidados da sala da frente, mas não para a polícia. O senhor sabe o que fazer com eles, Sr. Cramer?"

   "Não". Cramer voltou-se para Saul. "Conferiu os convidados que entraram?"

   "Sim".

   "Como?"

   "Eu tinha uma lista dos membros do Clube Manhattan Flower. Eles tinham que mostrar seus cartões de identidade do Clube. Conferia aqueles que vieram com a lista de nomes. Se trouxeram esposa, marido ou qualquer outro convidado, tomei nota dos nomes".

   "Então tem uma relação de todas as pessoas que vieram?"

   "Sim".

   "Está completa?"

   "Completa e perfeita".

   "Quantos nomes, aproximadamente?"

   "Duzentos e dezenove".

   "Este lugar não comporta tanta gente".

   Saul concordou. "Eles entravam e saíam. Não havia mais do que cem ao mesmo tempo".

   "Isto não ajuda muito". Cramer estava ficando cada vez mais aborrecido e eu não o culpava por isto. "Goodwin diz que estava na porta com você quando aquela mulher gritou e saiu correndo do escritório, mas vocês não a viram entrando lá. Por que não?"

   "Porque estávamos de costas, olhando um homem que estava descendo as escadas. Archie tinha lhe perguntado seu nome e ele tinha respondido que aquilo era ridículo.

Se quiser saber, o nome é Malcolm Vedder".

   "Como, diabos, você sabe disto?"

   "Eu o tinha conferido com o resto da lista".

   Cramer olhou espantado. "Está querendo me dizer que pode guardar os nomes de tantas pessoas depois de vê-los só uma vez?"

   Saul encolheu os ombros: "Há mais coisas nas pessoas além dos rostos. Posso errar com uns poucos, porém, não muitos. Estava naquela porta para fazer um serviço e eu o fiz".

   "A esta hora", rosnou Wolfe, "já devia saber que o Sr. Panzer é um homem excepcional".

   Cramer então falou com um detetive de pé ao lado da porta: "Levy, já ouviu este nome Malcolm Vedder? Diga a Stebbins que o confira com aquela lista e mande algum

homem trazê-lo aqui".

   O detetive saiu. Cramer voltou-se para Saul. "Ponha as coisas nestes termos. Digamos que eu sente você aqui com aquela lista, e um homem ou uma mulher seja trazido aqui e eu aponte um nome na lista e lhe pergunte se aquela pessoa veio aqui esta tarde com este nome. Pode me responder afirmativamente?"

   "Eu poderia lhe dizer positivamente se a pessoa esteve aqui ou não, especialmente se ele estiver usando a mesma roupa e não estiver disfarçado. Posso errar em alguns casos, mas duvido".

   "Não acredito em você".

   "O Sr. Wolfe acredita", falou Saul complacentemente. "Archie também. Desenvolvi minhas faculdades".

   "Certamente que sim. Certo, isto é tudo por agora. Fique por perto".

   Saul e Fritz saíram. Wolfe, em sua própria cadeira no fim da mesa, onde normalmente a esta hora ele se sentava para uma finalidade completamente diferente desta, puxou um profundo suspiro e fechou os olhos. Eu, sentado ao lado de Cramer, no lado da mesa que avistava a porta do hall, estava começando a entender o tipo de problema com que estávamos nos defrontando. Uma olhada no rosto de Cramer indicava que ele também o estava.

   O olhar cruzava minha frente, e se fixava diretamente em Wolfe.

   "A história de Goodwin", resmungou Cramer. "Quero dizer, a história dela. O que pensa?"

   Os olhos de Wolfe se abriram um pouco. "O que se seguiu parece apoiar isto. Duvido que ela tivesse inventado aquilo" - ele apontou uma mão na direção do escritório através do hall - "só para confirmar um conto. Aceito e acredito nisto".

   "Certo. Não preciso lembrar-lhes que os conheço muito bem. Portanto quero saber que chances existem de que em um dia, ou mais, os senhores se lembrem, de repente, que ela já tinha estado aqui, antes de hoje, ou um ou mais deles também tinham estado aqui, e que ela era uma cliente e havia alguma coisa já encaminhada".

   "Bah!" resmungou Wolfe secamente. "Mesmo que fosse como diz, e não é, você estaria perdendo tempo. Desde que nos conhece, você sabe que nós não nos lembraríamos de nada até que tivéssemos tudo resolvido".

   Cramer olhou furioso. Dois peritos entraram, vindos do hall, para trazer um relatório. Stebbins entrou, também, para avisar"da chegada de um assistente do Procurador do Distrito. Um detetive veio relatar um telefonema de um delegado encarregado. Outro entrou para dizer que Hommer Carlisle estava fazendo um inferno na sala da frente. Enquanto Wolfe continuava sentado com os olhos fechados, mas eu fazia uma idéia do seu estado de ânimo pelo fato de que seu polegar estava, intermitentemente, fazendo pequenos círculos na superfície polida da mesa.

   Cramer olhou para ele. "O que o senhor sabe sobre a morte de Dóris Hatten?" perguntou abruptamente.

   "Notícias dos jornais", resmungou Wolfe. "Além do que o Sr. Stebbins contou, casualmente, ao Sr. Goodwin".

   "Casual, é o certo". Cramer pegou um charuto, colocou-o na boca e mergulhou seus dentes nele. Nunca os acendia. "Estes malditos prédios com elevadores sem ascensoristas, são piores que ladeiras para se fazer um trabalho. Ninguém vê ninguém indo ou vindo. Se não está interessado, estou falando comigo mesmo!"

   "Estou interessado". Os olhos de Wolfe continuaram fechados.

   "Ótimo. Agradeço isto. Mesmo assim, com ascensorista ou não, o homem que pagava o aluguel daquele apartamento teve sorte. Ele deve ter sido esperto e cuidadoso, mas além disso teve muita sorte. Nunca ter encontrado ninguém que o visse para que pudesse descrevê-lo - isto demanda muita sorte".

   "Provavelmente a Srta. Hatten pagava ela mesma o aluguel".

   "Claro", admitiu Cramer, "ela pagava tudo certo, mas onde arranjava o dinheiro? Não havia meios visíveis de sustento - "ele" certamente não era visível. Três homens eficientes passaram um mês tentando encontrar uma pista, e um deles ainda está nesse caso.Não havia dúvidas a respeito de ter havido aquele tipo de sustento.

Levamos esta procura muito a fundo. Ela apenas estava morando lá há dois meses, e quando descobrimos quão bem, o homem que pagava o aluguel, tinha se ocultado, assim tão perfeitamente, concluímos que talvez ele a tivesse instalado lá exatamente com aquele propósito. Foi por isto que demos tudo o que tínhamos. Outra razão foi que os jornais começaram a dar palpites dizendo que sabíamos quem ele era, e que era um sujeito muito importante, e que por isto nos acomodamos".

   Cramer rolou seu charuto um dente à esquerda. "Este tipo de coisa costuma me deixar aborrecido, mas por que diabos para os jornais é só rotina? Importante ou não, ele não precisava de nós para o encobrirmos - ele já tinha feito, sozinho, um trabalho muito bom. Agora, se tivermos que tomar a coisa do modo que Cynthia Brown falou com Goodwin, poderia ou não ter sido o homem que pagava o aluguel.Isto confunde tudo. Eu ficaria muito aborrecido se tivesse de lhe dizer o que penso do fato de que Goodwin sentou-se ali em seu escritório e ficou escutando todos estes fatos e tudo o que fez depois foi subir e olhar se alguém espremia um vaso de flores!"

   "Você está irritado", falei indulgentemente. "Não disse que ele estava lá com todos os fatos, mas que tinha estado. E também que eu estava sendo informado com restrições. E também que ela reservava as maiores informações para o Sr. Wolfe. E também..."

   "Também eu conheço você. Quantos dessas duzentas e dezenove pessoas eram homens?"

   "Diria que pouco mais da metade".

   "Então o que acha disso?"

   "Eu? detesto isto..."

   Wolfe rugiu. "A julgar por sua atitude, Sr. Cramer, algo que me veio à mente parece que não lhe ocorreu".

   "Naturalmente. O senhor é um gênio. O que é?"

   "Alguma coisa que o Sr. Goodwin nos disse. Quero considerar um pouco mais".

   "Podemos pensar juntos".

   "Mais tarde. Aquelas pessoas na sala da frente são meus convidados. Não pode ouvi-los logo, para os dispensar?"

   "Um de seus convidados", Cramer estrilou, "é uma beleza, certo". Falou então com o detetive na porta. "Traga aquela mulher... como é mesmo o nome dela?... Carlisle".

  

   A Sra. Hommer Carlisle entrou com todos os seus pertences: seu casaco de peles, sua écharpe colorida e seu marido. Talvez eu devesse dizer que seu marido a trouxera.

Porque assim que ela atravessou a porta, ele transpôs a sala, com passos largos, em direção à mesa de jantar e começou a falar que nem um orador público. Suponho que Cramer já tivesse ouvido aquele discurso, com algumas variações, mais de mil vezes. Daquela vez foi realmente eficiente. Robusto e de ombros largos, o Sr. Carlisle

parecia uma peça rara. Seus agudos olhos negros brilhavam, e seus braços compridos como de um gorila eram ótimos para gesticular. Logo a princípio, Cramer, controlando-se, disse que sentia muito e convidou-os a se sentar.

   A Sr. Carlisle sentou-se, mas seu marido não.

   "Estamos atrasados quase duas horas", declarou ele. "Sei que tem que cumprir seu dever, mas os cidadãos têm alguns direitos, graças a Deus. Nossa presença aqui é puramente acidental". Eu mesmo teria ficado impressionado pelo recém-chegado se ele não tivesse tido tanto tempo para pensar naquilo. "Eu lhes previno que se meu nome for publicado relacionado com este terrível caso, um crime na casa de um detetive particular, vou fazer barulho. Tenho condições para isto. Por que isto tinha que acontecer? Por que temos que ser detidos? O que teria acontecido se tivéssemos saído cinco ou dez minutos mais cedo, como os outros?"

   "Isto não tem lógica", objetou Cramer.

   "Por que não?"

   "Não importa quando saiu, teria dado na mesma se sua mulher tivesse agido da mesma maneira. Ela descobriu o corpo".

   "Por acidente!"

   "Posso falar uma coisa, Hommer?" pediu sua mulher.

   "Depende do que quer dizer".

   "Ah", disse Cramer significantemente.

   "O que significa este "Ah"?" perguntou Carlisle.

   "Quero dizer que mandei chamar sua mulher, não o senhor, mas veio com ela, e isto me diz porque. O senhor quer ver então se ela não está sendo indiscreta..."

   "Por que diabos ela teria que ser indiscreta?"

   "Não sei. Aparentemente o senhor é que sabe. Se ela não o for, por que não se senta e relaxa enquanto eu faço a ela algumas perguntas?"

   "Eu faria isto, senhor", advertiu Wolfe. "O senhor entrou aqui furioso e falou irrefletidamente. Um homem com raiva não sabe o que está fazendo".

   Foi um esforço para o vice-presidente executivo, mas ele o conseguiu. Cerrou suas mandíbulas e sentou-se. Cramer dirigiu-se então a sua mulher.

   "A senhora quer dizer alguma coisa, Sra. Carlisle?"

   "Somente que estou muito aborrecida". Suas mãos, de dedos esguios, se contorciam, sobre a mesa. "Pelo problema que causei".

   "Eu não diria exatamente que foi a senhora que o causou - exceto pela dificuldade que criou para a senhora e para seu marido". Cramer estava indulgente! "A mulher estava morta, a despeito da senhora entrar lá ou não. Mas, somente por uma questão de formalidade, é essencial para mim, vê-la e falar-lhe, desde que foi a senhora que descobriu o corpo. Isto é tudo o que se sabe e eu preciso saber tudo que se relacione com isto. Não é questão da senhora estar mais envolvida ou não".

   "Por que diabos haveria de estar?" explodiu Carlisle.

   Cramer o ignorou. "Goodwin viu a senhora parada no hall não mais que dois minutos, provavelmente menos, antes da hora em que gritou e saiu correndo do escritório.

Durante quanto tempo então esteve aqui embaixo?"

   "Tínhamos apenas acabado de descer. Eu estava esperando meu marido pegar nossas coisas".

   "Já tinha estado antes, aqui embaixo?"

   "Não - só quando entramos".

   "A que horas a senhora chegou?"

   "Pouco depois das três, acho..."

   "Três e vinte", acrescentou seu marido.

   "A senhora e seu marido estiveram juntos, o tempo todo? Permanentemente?"

   "É claro. Bem - o senhor sabe como é - às vezes ele queria olhar mais tempo alguma coisa e eu me distanciava um pouco..."

   "Certamente que estivemos", Carlisle falou irritadamente. "O senhor agora pode ver porque eu fiz aquela consideração a respeito de depender do que ela ia dizer.

Ela tem o costume de ser confusa. Esta não é hora para se ser confusa".

   "Não sou confusa", protestou ela sem entusiasmo, não a seu marido mas a Cramer. "É somente que tudo é relativo. Não haveria presença se não houvesse ausência.

Não haveria inocência se não houvesse pecado. Nada pode ser cortado abruptamente de qualquer coisa. Quem pensaria que meu desejo de ver o escritório de Nero Wolfe me ligaria a um crime terrível?"

   "Meu Deus!" explodiu Carlisle. "Ouça isto! Ligar. Ligar!"

   "Por que a senhora queria ver o escritório de Wolfe?" inquiriu Cramer.

   "Por quê? Para ver o globo".

   Olhei assustado para ela. Supunha que naturalmente ela iria dizer que era por curiosidade a respeito do escritório de um grande e famoso detetive. Aparentemente Cramer reagiu da mesma maneira. "O globo?" perguntou ele.

   "Sim, eu tinha lido a esse respeito e queria ver como era. Pensava que um globo daquele tamanho, um metro e meio de diâmetro, seria fantástico em uma sala comum...

Oh!"

   "Oh, o quê?"

   "Eu não o vi!"

   Cramer concordou. "Em vez disto viu outra coisa. De qualquer modo, esqueci de perguntar; a senhora a conhecia? Já a tinha visto antes alguma vez?"

   "Quer dizer... ela?"

   "Sim. O nome dela era Cynthia Brown".

   "Nós nunca a conhecemos, vimos ou ouvimos falar dela", declarou seu marido.

   "A senhora conhecia, Sra. Carlisle?"

   "Não".

   "Ela veio como convidada da Sra. Orwin; não era sócia do Clube de Flores. A senhora é sócia?"

   "Meu marido é que é".

   "Nós dois o somos", declarou Carlisle. "Confusa outra vez. É sócia-adjunta. Em minha estufa na casa de campo, tenho mais de quatro mil plantas, incluindo algumas centenas de orquídeas". Olhou para seu relógio. "Isto já não é suficiente?"

   "O bastante", concordou Cramer. "Agradeço a ambos. Não os aborreceremos mais a menos que seja necessário. Levy, deixe-os sair".

   A Sra. Carlisle levantou-se e dirigiu-se para a porta, mas no meio do caminho voltou-se. "Suponho que seria impossível agora dar uma olhada no globo? Só uma espiada?"

   "Pelo amor de Deus! "seu marido a pegou pelo braço. "Vamos. Vamos!"

   Quando a porta se fechou atrás deles Cramer olhou para mim e depois para Wolfe. "Isto é realmente uma doçura", disse com ironia. "Diga, qual é o grau de probabilidade de Carlisle estar nisto; e do modo que as coisas vão agora, por que não? Assim podemos estudá-lo com cuidado. Nós podemos saber o que ele fez nos últimos seis meses, e tentar conseguir isto sem que ele o perceba - um homem como ele, com a sua posição! No entanto isto pode ser feito por três ou quatro homens, em duas ou três semanas.

Multiplique isto por quanto? Quantos homens estiveram aqui?"

   "Cerca de cento e vinte", eu lhe disse. "Dez dúzias. Mas o senhor vai descobrir que pelo menos a metade deles está excluída de um jeito ou de outro. Como lhe disse, fiz uma avaliação. Digamos sessenta".

   "Certo, multiplique isto por sessenta. O senhor cuida disto?"

   "Não".

   "Nem eu". Cramer tirou o charuto da boca, cortou a parte mais mordida com os dedos, colocando-a no cinzeiro, e o pôs na boca novamente para uma nova mastigação.

"É claro", disse sarcasticamente, "que quando a moça se sentou ali falando com você a respeito do cara a situação era diferente. Mas você queria que ela se divertisse enquanto estava consigo. Não podia ter pegado o telefone e ter-nos dito que tinha aqui uma vigarista confessa que podia apontar com precisão um assassino e nos deixar vir tomar conta do caso - com os diabos! Tinha que esconder isto, para Wolfe receber uma gratificação. Você tinha que se sentar e ficar admirando as pernas dela!"

   "Não seja vulgar", falei zangado.

   "Tinha que ter subido para fazer uma inspeção. Tinha que... bem?"

   O tenente Rowcliff tinha aberto a porta e entrado. Havia alguns tiras de quem eu gostava, alguns eu até admirava. Por outros eu não sentia nada a respeito; alguns com quem não me dava bem - e um cujas orelhas eu ia torcer qualquer dia. Era Rowcliff. Era alto, forte, bonito e intragável.

   "Já vimos tudo lá senhor", falou enfaticamente. "Cobrimos tudo. Nada foi levado e está tudo em ordem. Fomos especialmente cuidadosos com as coisas dentro das gavetas da mesa do senhor Wolfe e também..."

   "Minha mesa!" rugiu Wolfe.

   "Sim, sua mesa", respondeu Rowcliff formalmente com um sorriso afetado.

   O sangue estava afluindo ao rosto de Wolfe.

   "Ela foi morta lá", disse Cramer asperamente. "Ela foi estrangulada com alguma coisa e assassinos sabem onde esconder "certas" coisas. Achou alguma?"

   "Penso que não", admitiu Rowcliff. "É claro que as impressões digitais têm que ser selecionadas e haverá informações do laboratório. Como vamos deixar o escritório?"

   "Tranque-o e amanhã vamos ver. Fique aqui com um fotógrafo. Os outros podem ir embora. Diga a Stebbins para mandar aquela mulher entrar, a Sra. Irwin".

   "Orwin, senhor".

   "Quero vê-la".

   "Sim senhor". Rowcliff voltou-se para sair.

   "Espere um minuto", objetei. "Trancar o quê? O escritório?"

   "Certamente", zombou Rowcliff.

   Então falei decididamente a Cramer e não ao outro: "O senhor não pode fazer isto. Trabalhamos lá. Vivemos lá. Todo o nosso material está lá".

   "Vá em frente, tenente", disse Cramer a Rowcliff. Este virou-se e saiu.

   Cerrei meus dentes. Estava sentindo e pensando uma porção de coisas, mas sabia que tinha que me conter. Esta tinha sido a pior coisa que Cramer tinha conseguido nos fazer. Era demais para Wolfe. Olhei para ele. O sangue já tinha sumido de seu rosto que estava branco de raiva e sua boca estava tão apertada, que seus lábios formavam uma só linha.

   "É a rotina", disse Cramer agressivamente.

   "Isto é mentira. Não é rotina", falou Wolfe gelidamente.

   "É a minha rotina - em um caso como este. Seu escritório não é somente um escritório. É o local onde mais do que qualquer outro lugar de Nova York os truques mais extravagantes são executados. Quando uma mulher é assassinada ali, logo depois de uma conversa com Goodwin, da qual só sabemos o que ele nos disse, eu digo que trancá-lo faz parte da rotina".

   A cabeça de Wolfe se aproximou um pouco, com o queixo erguido. "Não, Sr. Cramer. Eu lhe digo o que é. Isto é o espírito maléfico de uma mente obstinada, estreita, rabugenta e invejosa. É o rancor infantil de um indivíduo preeminente constantemente desafiado e derrotado. É a sinuosidade de um fraco..."

   A porta se abriu para deixar a Sra. Orwin entrar.

  

   Com a Sra. Carlisle, o marido tinha entrado junto. Com a Sra. Orwin veio o filho. Sua aparência e suas maneiras eram tão diferentes que eu dificilmente o teria reconhecido. Lá em cima tanto o seu tom de voz, como seu comportamento, eram insignificantes. Agora, porém, seus olhos pequenos e estreitos, estavam fazendo um esforço tremendo para parecerem francos e cordiais. Inclinou-se sobre a mesa na direção de Cramer estendendo a mão.

   "Inspetor Cramer? tenho ouvido falar a seu respeito durante muitos anos! Sou Eugene Orwin". Olhou para a direita. "Já tive o prazer de encontrar o Sr. Wolfe e o Sr. Goodwin hoje, antes desta coisa terrível ter acontecido. Isto foi horrível".

   "Sim", concordou Cramer, "Sente-se".

   "Sim, em um minuto. Eu falo melhor quando estou de pé. Gostaria de fazer uma declaração no interesse de minha mãe e de mim mesmo e espero que me permita. Sou um membro do tribunal. Minha mãe não está se sentindo muito bem. Atendendo a um pedido de seus homens ela foi comigo identificar o corpo da Srta. Brown; isto foi um choque terrível e estamos aqui detidos há mais de duas horas".

   A aparência de sua mãe corroborava suas palavras. Sentada com a cabeça apoiada em uma mão, com os olhos fechados, obviamente não se importando com seu filho e com a impressão que dava ao inspetor.

   Era duvidoso que ela estivesse prestando atenção no que seu filho estava dizendo.

   "Uma declaração seria bem-vinda", Cramer lhe disse "se for relevante".

   "Foi isto que pensei", disse Gene aprovadoramente. "Muitas pessoas têm uma idéia completamente errada dos métodos da polícia! É claro que sabem que a Srta. Brown veio aqui hoje como convidada de minha mãe e é possível que possam supor que minha mãe a conhecesse bem. Mas realmente não era assim. É isto que eu quero esclarecer".

   "Continue".

   Gene olhou para o detetive taquígrafo. "Se isto está sendo tomado nota gostaria de poder examinar quando achasse conveniente".

   "Pode".

   "Então aqui estão os fatos. Em janeiro minha mãe estava na Flórida. Lá conheceu um homem que se dizia chamar coronel Percy Brown - um coronel inglês da reserva, como disse ele. Mais tarde apresentou sua irmã Cynthia a ela. Minha mãe pensou em fazer negócio com eles. Meu pai está morto e a herança, razoavelmente grande, está sob controle dela. Emprestou-lhes então algum dinheiro - não muito; aquilo era somente uma entrada. Uma semana depois..."

   A cabeça da Sra. Orwin endireitou-se. "Eram somente cinco mil dólares e não prometi nada a ele", falou ela fracamente, apoiando novamente a cabeça sobre a mão.

   "Certo, mamãe", Gene bateu sobre seus ombros, "na semana passada ela voltou a Nova York e eles a procuraram. Na primeira vez que os vi, suspeitei que fossem impostores.

Ele não parecia ser inglês e ela certamente não o era. Não eram muito ligados a pormenores de família, mas por eles, e principalmente por minha mãe, obtive o suficiente para investigar e enviar um telegrama a Londres. Obtive uma resposta no sábado e outra esta manhã e havia mais do que o suficiente para confirmar minhas suspeitas, porém não o bastante para convencer minha mãe. Quando ela gosta das pessoas chega a ser até meio obstinada a respeito delas - não que seja um defeito, de modo nenhum; não quero ser mal interpretado e não quero também que ela o seja. Por isto estava pensando melhor nisto tudo e em que atitude tomar. Enquanto isto, pensei que o melhor seria não os deixar sozinhos com ela, se isto fosse possível - como estão vendo estou sendo absolutamente franco. Foi por isto que vim hoje com eles - minha mãe é sócia do Clube de Flores; eu por mim não sou muito ligado a elas".

   Seu tom deixava implícito a péssima impressão que ele fazia de homens ligados à jardinagem, o que não era uma idéia muito brilhante para ser externada nem para Wolfe bem como para Cramer.

   Levantou as mãos para cima. "Foi isto que me trouxe aqui. Minha mãe veio ver as orquídeas e convidou Brown e sua irmã para virem também, simplesmente porque tem bom coração. Mas realmente não os conhece, não sabe nada a respeito deles, por que o que eles lhes disseram é uma coisa, e o que realmente são é completamente diferente.

Então aconteceu isto, e durante a última hora, depois que ela se recuperou um pouco do choque de ter que identificar o corpo, tive que explicar a ela qual era a situação".

   Colocou as mãos sobre a mesa e inclinou-se sobre elas na direção de Cramer. "Vou ser completamente sincero, Inspetor. Sob estas circunstâncias, não posso ver qual a utilidade em tornar público que aquela mulher veio aqui com minha mãe. Que bem faria isto? No que isto ajudaria a Justiça? Quero deixar perfeitamente claro que não temos intenção de fugir da nossa responsabilidade de cidadãos. Mas que ajuda poderia trazer ter o nome de minha mãe nas manchetes dos jornais?"

   Ele endireitou-se, deu um passo atrás e olhou carinhosamente para a mãe.

   "Nomes em manchetes, não é o que estamos procurando", Cramer lhe disse, "mas eu não imprimo os jornais. Se eles já obtiveram a notícia não posso impedi-los. Gostaria de dizer que aprecio sua franqueza. Então o senhor só conheceu a Srta. Brown a semana passada. Quantas vezes ao todo o senhor a viu?"

   "Três vezes", falou Gene. Cramer tinha uma porção de perguntas tanto para a mãe quanto para o filho. Foi enquanto estavam sendo feitas que Wolfe me passou um pedaço de papel no qual havia rabiscado:

  

   "Diga a Fritz para trazer sanduíches para você e para mim. Também para os que estão na sala da frente. Para ninguém mais. É claro que também para Saul e Theodore."

  

   Saí da sala, achei Fritz na cozinha, entreguei o bilhete e retornei.

   Gene continuou cooperando até o fim e a Sra. Orwin tentou, embora isso representasse um grande esforço. Disseram que tinham estado juntos durante todo o tempo, o que eu sabia que não era verdade, porque os tinha visto separados pelo menos duas vezes durante a tarde - e Cramer também sabia, desde que eu lhe havia dito. Disseram uma porção de outras coisas, entre as quais que não tinham deixado as estufas de plantas desde sua chegada até sua saída com Wolfe; que tinham ficado até que a maior parte dos outros já se tinham ido embora, porque a Sra. Orwin queria persuadir o Sr. Wolfe a vender-lhe algumas plantas; que o Coronel Brown se distanciara sozinho por uma ou duas vezes; que não se preocuparam muito com a ausência de Cynthia porque tanto o Coronel como eu mesmo os tinham acalmado a respeito dela estar passando bem; e assim por diante. Antes de saírem, Gene fez nova tentativa para obter uma promessa de deixar o nome de sua mãe fora de tudo aquilo; Cramer agradeceu muito sua franqueza e prometeu fazer o possível. Eu não podia culpá-lo; pessoas como aquelas estavam em posição de chamar quase todo mundo, mesmo o comissário e ò prefeito, pelos seus primeiros nomes.

   Fritz trouxera bandejas para Wolfe e para mim, e estávamos fazendo progressos com elas. No silêncio que se seguiu à partida dos Orwins, Wolfe podia perfeitamente ser ouvido mastigando um bocado de salada mista.

   Cramer sentou-se olhando aborrecido para nós. Falou comigo e não com Wolfe. "Este presunto é importado?".

   Sacudi minha cabeça e engoli antes de responder. "Não, é da Geórgia. Porcos alimentados com amendoins e frutos de carvalho; processo sob as especificações do Sr. Wolfe. Cheira bem e tem gosto ainda melhor. Vou copiar a receita para o senhor - não, mas que inferno! - não posso porque a máquina de escrever está no escritório.

Sinto muito". Coloquei o sanduíche no prato e peguei outro. "Gosto de alternar - primeiro uma mordida no de presunto, depois uma no de esturjão, então um de presunto e um de esturjão..."

   Eu podia vê-lo se controlando. Virou a cabeça. "Levy! Mande entrar o coronel Brown".

   "Sim senhor. Aquele homem que o senhor queria - Vedder - está aqui".

   "Então vou falar com ele primeiro".

  

   Lá em cima, nas estufas, Malcolm Vedder tinha chamado minha atenção pelo modo com que levantava e segurava o vaso de flores. Quando ele pegou uma cadeira e sentou-se à mesa, entre eu e Cramer, eu ainda pensava que valia a pena ele ser examinado novamente. Porém depois de sua resposta à terceira pergunta de Cramer, relaxei e concentrei minha atenção em meus sanduíches. Ele era um artista e participara de três peças da Broadway. Claro que aquilo explicava tudo. Nenhum ator pegaria um vaso de flores normalmente, como você ou eu. De algum modo ele teria que dramatizar aquilo, e Vedder escolhera um modo que parecia a mim como dedos envolvendo e apertando uma garganta.

   Agora, lá estava ele dramatizando isto, fingindo estar indignado porque os tiras o tinham arrastado à investigação de um crime sensacional. Ele permaneceu, o tempo todo, passando os longos dedos, de suas elegantes mãos, entre seus cabelos, de um modo que me parecia conhecido, então me lembrei que o tinha visto no ano passado como o astro em Os Primitivos.

   "Típico!"disse ele a Cramer, com os olhos flamejantes e a voz carregada de sentimento. "Típico da falta de tato da polícia! Envolvendo-me nisto! É claro que os repórteres lá em frente me reconheceram, e os diabos dos fotógrafos também! Oh! Meu Deus!"

   "Certo", falou Cramer complacentemente. "Deve ser duro para um artista ter sua fotografia nos jornais. Mas precisamos de ajuda, nós da polícia sem tato, e o senhor estava entre os presentes. Faz parte do Clube de Flores?"

   "Não", disse Vedder. Tinha vindo com uma amiga, a Sra. Beauchamp, e quando ela saiu, para atender a um compromisso, ele ficara para olhar melhor as orquídeas.

Se pelo menos tivesse ido embora com ela teria evitado esta terrível publicidade. Chegaram lá pelas três e meia e ele permanecera no orquidário o tempo todo até quando saiu comigo atrás de seus calcanhares. Não tinha visto ninguém a quem conhecesse ou tivesse visto antes, exceto a Sra. Beauchamp. Não sabia nada a respeito de Cynthia Brown ou do Coronel Percy Brown. Cramer passou por todas as perguntas comuns e recebeu todas as esperadas respostas negativas, até que de repente perguntou, "Conhecia Dóris Hatten?"

   Vedder franziu a testa: "Quem?..."

   "Dóris Hatten. Ela também..."

   "Ah!" Vedder gritou. "Ela também foi estrangulada! Eu me lembro!"

   "Certo".

   Vedder fechou os punhos, descansou-os sobre a mesa e se inclinou para a frente. Seus olhos brilharam e depois se apagaram novamente, "O senhor sabe", falou nervosamente, "isto é o pior de tudo, estrangulada - especialmente uma mulher". Seus punhos se abriram, os dedos se separaram e ele olhou para eles. "Imagine, estrangulada! uma mulher bonita!"

   "Conhecia Dóris Hatten?"

   "Otelo", falou Vedder em um tom profundo e ressonante. Seus olhos se levantaram para Cramer e sua voz se elevou também. "Não, eu não a conhecia; só li a respeito dela". Ele se encolheu todo e então subitamente ergueu-se da cadeira e ficou de pé. "Para o inferno com tudo isto", protestou estridentemente, "só vim aqui para ver as orquídeas! Deus!"

   Correu os dedos por seus cabelos, virou-se e dirigiu-se para a porta. Levy olhou para Cramer com as sombrancelhas levantadas e este sacudiu sua cabeça com impaciência.

   "Talvez ele tenha inventado isto tudo?" resmunguei a Wolfe.

   Porém ele não estava interessado.

   O próximo foi Bill McNab, editor de jardinagem do Gazette. Eu o conhecia um pouco, mas não muito bem. A maioria dos meus amigos, repórteres, não estavam em jardinagem.

Ele parecia mais infeliz que todos eles - mais infeliz até do que a Sra. Orwin enquanto se encaminhava em direção do fim da mesa onde Wolfe estava sentado.

   "Não posso lhe dizer o quanto lamento isto, Sr. Wolfe", falou tristemente.

   "Nem tente", resmungou Wolfe.

   "Eu queria poder fazer alguma coisa. Que coisa realmente terrível! Nunca poderia ter sonhado que uma coisa assim pudesse acontecer - o Clube de Flores de Manhattan!

É certo que ela não pertencia ao nosso Clube, mas isto só torna as coisas piores". Virou-se para Cramer, dizendo "sou responsável por isto".

   "O senhor?"

   "Sim, a idéia foi minha. Eu convenci o Sr. Wolfe a programar isto. Ele me deixou fazer os convites. E eu estava me congratulando pelo grande sucesso! O Clube só tem cento e oitenta e nove membros, e havia mais de duzentas pessoas aqui. E então isto! O que posso fazer?" Ele se virou. "Quero que saiba disto, Sr. Wolfe.

Recebi um recado de meu jornal; eles querem que eu escreva uma estória para o noticiário e eu me recusei absolutamente. Mesmo que eu fosse despedido - acho que não o faria".

   "Sente-se um minuto", Cramer o convidou.

   Pelo menos McNab tinha alterado a monotonia em um detalhe. Admitiu que tinha saído da estufa três vezes durante a tarde; uma vez, desceu até o hall para acompanhar um convidado que estava de saída e outras duas vezes desceu sozinho para controlar quem tinha e quem não tinha vindo. Nunca ouvira falar a respeito de Cynthia Brown.

Agora estava começando a parecer não somente inútil mas estúpido desperdiçar tempo com sete ou oito deles, simplesmente porque aconteceu de eles serem os últimos a saírem e portanto estarem à mão. Aquilo também, era algo novo para mim, do ponto de vista técnico. Eu nunca ouvira uma desculpa como aquela. Qualquer detetive do distrito sabe que toda a pergunta que se faz a alguém é apontada para um dos três objetivos a serem atingidos: motivo, meios e oportunidade. Neste caso não havia questões a serem feitas porque todas elas já tinham sido respondidas. Motivo: o camarada que a tinha seguido até embaixo, sabendo que ela o reconhecera, vira-a entrar no escritório de Wolfe e pensou que ela estava fazendo exatamente o que fez, tentando falar com Wolfe, e decidira evitar aquilo da maneira mais rápida e melhor que ele podia. Meios: qualquer pedaço de pano; mesmo seu lenço serviria. Oportunidade: ele estava lá - todos da lista de Saul estavam.

   Portanto, se se quisesse saber quem estrangulou Cynthia Brown, primeiro tinha que se descobrir quem estrangulou Dóris Hatten - e os tiras já haviam trabalhado naquilo durante cinco meses.

   Assim que Bill McNab saiu, o coronel Percy Brown foi introduzido na sala.

   Brown não estava propriamente tranqüilo, porém se controlava bem. Ele nunca poderia ser tomado por uma pessoa de confiança por ninguém - muito menos por mim.

Sua boca e seu queixo eram fortes e atraentes e quando se sentou dirigiu seus perspicazes olhos cinzas a Cramer e permaneceu assim. Não estava interessado nem em Wolfe nem em mim. Disse que seu nome era Coronel Percy Brown e Cramer lhe perguntou a que arma pertencia.

   "Penso", falou ele em um tom até meio apático, "que até vou economizar tempo se eu declarar minha posição. Vou responder completa e abertamente todas as perguntas relacionadas com o que eu vi, ouvi ou fiz desde que cheguei aqui esta tarde. Neste sentido eu o ajudarei em tudo o que puder. Para responder a qualquer outra pergunta vou ter que esperar até consultar meu advogado".

   Cramer concordou. "Esperava por isto. O problema é que estou absolutamente certo que não dou a menor importância para o que viu ou ouviu esta tarde. Vamos voltar a isto. Quero adiantar alguma coisa para o senhor. Como vê, não estou nem querendo saber por que o senhor tentou fugir antes de chegarmos aqui".

   "Eu simplesmente queria telefonar..."

   "Esqueça isto". Cramer colocou os restos de seu segundo charuto, nada mais que um pedaço enrugado e amassado, no cinzeiro. "Com as informações que recebi, penso que a verdade é esta: a mulher, que se chamava a si mesma de Cynthia Brown, a assassinada aqui, hoje, não era sua irmã. O senhor a encontrou na Flórida, seis ou oito semanas atrás. Ela entrou com o senhor em uma operação da qual a Sra. Orwin seria a vítima e o senhor a apresentou a ela como sua irmã. Vocês dois chegaram a Nova York, com a Sra. Orwin, na semana passada, com a operação muito bem encaminhada. Até onde eu saiba, este é o único motivo. Por outro lado não estou interessado nisto. Meu trabalho é homicídio, e é nisto que estou trabalhando agora".

   Brown estava ouvindo educadamente.

   "Por mim", prosseguiu Cramer, "o caso é que por algum tempo o senhor manteve estreitas ligações com a Srta. Brown, associando-se com ela em uma operação confidencial.

O senhor a apresentava como sua irmã, quando não era verdade, e agora ela foi assassinada. Podíamos lhe arranjar um verdadeiro inferno só por este motivo".

   Brown ficou mudo. Seu rosto imóvel.

   "Nunca será muito tarde para lhe arranjar um inferno", lhe assegurou Cramer, "mas primeiro eu queria lhe dar uma chance. Durante dois meses o senhor esteve intimamente ligado com Cynthia Brown. Certamente ela deve ter mencionado uma experiência que teve em outubro passado. Uma amiga dela, chamada Dóris Hatten, foi morta - estrangulada.

Cynthia Brown tinha informações sobre o assassino, que ela guardou para si mesma; se ela tivesse contado, provavelmente, agora estaria viva. Ela deve ter lhe falado sobre isto; não me diga que não. Deve ter-lhe contado tudo sobre o caso. Agora pode me dizer. Se o fizer, podemos agarrar o homem pelo que ele fez hoje aqui, e isto poderia tornar as coisas um pouco mais fáceis para o senhor. Bem?"

   Brown tinha franzido os lábios. Agora ele os tinha endireitado novamente e sua mão se levantou para esfregar o queixo.

   "Sinto muito", falou.

   "Sente muito, o quê?"

   "Por não poder ajudar".

   "Espera que eu acredite que durante todas estas semanas ela nunca lhe tenha mencionado a morte de sua amiga Dóris Hatten?"

   "Sinto muito mas não posso ajudar".

   Cramer pegou outro charuto e o rolou entre suas mãos, o que era uma perda de energia, desde que ele não pretendia fumá-lo, realmente. Já o tendo visto fazer aquilo antes, sabia o que significava. Ele ainda pensava que podia obter algo deste "freguês" e então estava arranjando tempo para se controlar.

   "Eu também sinto muito", falou, tentando dizer aquilo sem que parecesse um grunhido. "Mas ela deve ter lhe dito algo sobre sua carreira anterior, não disse?"

   "Sinto muito". O tom de Brown era firme e determinado.

   "Certo. Vamos voltar então a esta tarde. Sobre ela, o senhor disse que responderia tudo e com sinceridade. Lembra-se de um momento quando algo a respeito da aparência de Cynthia - algum movimento ou alguma expressão de seu rosto - fez com que a Sra. Orwin lhe perguntasse qual era o problema com ela?"

   Um vinco estava aparecendo na testa de Brown. "Não acredito que tenha percebido", declarou.

   "Estou lhe pedindo que tente. Tente fortemente".

   Silêncio. Brown franziu os lábios e a ruga em sua testa se aprofundou. Finalmente falou, "Pode ser que eu não estivesse lá naquele momento. Naquelas passagens - com uma multidão como aquela - estávamos nos comprimindo continuamente".

   "O senhor se lembra quando ela se desculpou porque não estava se sentindo bem?"

   "Sim, é claro."

   "Bem, este momento a que estou me referindo passou-se pouco antes disto. Ela encontrou o olhar de um homem que estava próximo e foi sua reação que fez com que a Sra. Orwin lhe perguntasse qual era o problema. O que eu estou interessado é nesta troca de olhares. Se o senhor viu isto e pode se lembrar, pode descrever o homem que ela avistou. Eu não daria um níquel nem me importaria se o senhor limpasse a Sra. Orwin e mais dez iguais a ela".

   "Não vi isto".

   "Não viu?"

   "Não".

   "Não diga que sente muito".

   "É claro que sinto, se pudesse ajudar..."

   "Vá para o inferno!" Cramer bateu seu punho sobre a mesa, tão fortemente, que as bandejas dançaram. "Levy, leve-o para fora e diga a Stebbins para que o leve para baixo e o tranque. Testemunha material. Ponha mais homens sobre ele. Ele deve saber alguma coisa! Descubra o quê!"

   "Quero telefonar para meu advogado", falou Brown, calma, porém, enfaticamente.

   "Há um telefone lá em baixo, para onde você está indo..." disse-lhe Levy. "Se não estiver com defeito. Por aqui coronel".

   Quando a porta se fechou atrás dele, Cramer olhou-me como se estivesse com medo que eu lhe dissesse que eu também sentia muito... Deixando transparecer em meu rosto o quanto eu também estava amolado comentei casualmente, "Se eu pudesse entrar no escritório lhe mostraria um excelente livro sobre disfarces. Esqueci o nome.

O recorde mundial é de dezesseis anos - um camarada na Itália enganou um irmão e dois primos que o conheciam muito bem. Portanto talvez o senhor devesse..."

   Cramer desviou-se de mim rudemente e ordenou, "Junte tudo, Murphy. Estamos de saída". Empurrou sua cadeira para trás, levantou-se e sacudiu os tornozelos para fazer com que as pernas de sua calça se abaixassem. Levy retornou e Cramer se dirigiu a ele. "Estamos de saída. Todo mundo fora. Para meu escritório. Diga a Stebbins que um homem só, lá fora, é o suficiente - não, eu vou dizer a ele".

   "Ainda há mais um, senhor".

   "Mais um o quê?"

   "Na sala da frente. Um homem!"

   "Quem?"

   "O nome dele é Nicholson Morley. É um psiquiatra".

   "Deixe-o ir. Isto é uma piada infernal".

   "Sim senhor".

   Levy saiu. O taquígrafo tinha juntado os livros e outros papéis e os estava colocando dentro de uma velha maleta. Cramer olhou para Wolfe e este lhe retribuiu o olhar.

   "Um pouco antes", falou Cramer com voz irritada, "O senhor disse que alguma coisa lhe havia ocorrido".

   "Eu lhe disse?" perguntou Wolfe friamente.

   Seus olhos continuaram se desafiando até que Cramer quebrou a hostilidade virando-se para sair. Eu contive o impulso de bater suas cabeças uma contra a outra.

Ambos estavam sendo infantis. Se Wolfe realmente tinha alguma coisa, sabia perfeitamente bem que Cramer negociaria muito alegremente a interdição do escritório por uma pista. E Cramer também sabia muito bem que ele poderia fazer a proposta sem que tivesse nada a perder. Mas os dois eram muito irritáveis e cabeçudos para que pudessem mostrar algum bom senso.

   Cramer tinha dado a volta ao fim da mesa, em seu caminho para sair, quando Levy entrou novamente para informar, que "aquele homem, o Sr. Morley, insiste em ver o senhor. Ele diz que é vital".

   Cramer parou, indignado. "O que ele é, doido?"

   "Não sei, não senhor. Talvez seja".

   "Está certo, faça-o entrar". Cramer circundou a mesa e tomou seu lugar novamente.

  

   Aquela era primeira vez que eu observava bem aquele senhor com o topete de cabelos escuros. Seus olhos rápidos e penetrantes eram tão pretos quanto seus cabelos e a aparência de seu queixo e de seu rosto tornava evidente que sua barba seria igual se ele desse oportunidade para crescer. Sentou-se e começou dizendo a Cramer quem e o quê era.

   Cramer assentiu impacientemente. "Eu sei. O senhor tem alguma coisa para dizer, Dr. Morley?"

   "Tenho. Algo muito importante".

   "Então vamos ouvir".

   Morley ajeitou-se em sua cadeira. "Eu suponho que ninguém foi preso. Estou certo?"

   "Sim... pelo menos ninguém foi preso por acusação de homicídio".

   "O senhor tem alguma acusação de suspeita definida, com ou sem prova evidente?"

   "Se quer dizer que estou pronto a dizer o nome do assassino, não. O senhor está?"

   "Talvez esteja".

   O queixo de Cramer se levantou. "Bem, estou encarregado disto".

   O Dr. Morley sorriu. "Não tão rápido. A sugestão que tenho para oferecer dependeria fundamentalmente de certas suposições". Ele colocou a ponta de seu indicador direito sobre a ponta do seu dedo mínimo esquerdo. "Primeiro: que o senhor não tem idéia de quem cometeu este crime, e aparentemente o senhor não tem". Ele passou para o dedo seguinte. "Segundo: que este não é um crime comum com um motivo comum". Passou para o dedo do meio. "Terceiro: que não se sabe nada que desacredite a hipótese de que esta moça - que pelo que eu soube pela Sra. Orwin, se chamava Cynthya Brown - fosse estrangulada pelo mesmo homem que estrangulou Dóris Hatten no dia dezessete de outubro do ano passado. Posso fazer estas suposições?"

   "Pode tentar. Por que quer fazer isto?"

   Morley sacudiu a cabeça. "Não que eu queira. O caso é que se me permitirem tenho uma sugestão. Quero que fique bem claro que tenho grande respeito pela capacidade da polícia, dentro dos seus próprios limites. Se o homem que matou Dóris Hatten fosse vulnerável às técnicas e pesquisas da polícia, provavelmente eleja teria sido preso. Porém ele não o era. O senhor fracassou completamente. Por quê?"

   "O senhor mesmo está me dizendo".

   "Por que ele estava fora de seus limites. Porque sua investigação do motivo está restringida por seus preconceitos". Os olhos escuros de Morley brilharam. "O senhor é um homem da lei, portanto eu não vou usar termos técnicos. Os motivos mais poderosos sobre a terra são os da personalidade, que não podem ser expostos por nenhuma investigação puramente objetiva. Se a personalidade for torcida, corrompida, como o é num caso de um psicótico, então os motivos também são distorcidos.

Como psiquiatra, eu estava profundamente interessado nas reportagens publicadas sobre a morte de Dóris Hatten - especialmente quanto ao pormenor de que ela foi estrangulada com sua própria écharpe. Quando seus esforços para achar o culpado - sem dúvida cuidadosos e até mesmo brilhantes - terminaram em um completo fracasso, eu teria ficado satisfeito em lhe dar uma sugestão, mas eu estava tão sem apoio quanto o senhor".

   "Vamos direto com isto", resmungou Cramer.

   "Sim". Morley apoiou seus cotovelos sobre a mesa e juntou todas as pontas de seus dedos. "Agora, hoje. Com base nas suposições com que comecei, uma teoria convincente, que vale a pena ser examinada, é a de que foi o mesmo homem. Se foi assim, ele cometeu um erro. Aparentemente ninguém entrou aqui, hoje, sem ter seu nome conferido; o homem que ficou na porta era muito eficiente. Portanto não é mais uma questão de descobri-lo entre centenas ou milhares: são simplesmente cem, ou pouco mais, e me ofereço para contribuir com meus conhecimentos. Não penso que existam mais que três ou quatro homens em Nova York qualificados para este trabalho, e eu sou um deles. O senhor pode verificar isto".

   Os olhos negros faiscaram. "Admito que para um psiquiatra esta é uma rara oportunidade. Nada poderia ser mais dramático do que uma psicose explodindo em um crime.

Não quero fingir que meu interesse é puramente idealista. Todos teriam que ir ao meu consultório - um de cada vez, é claro. Com alguns, dez minutos seriam suficientes, mas com outros poderia levar horas. Quando eu tiver..."

   "Um momento", falou Cramer. "Está sugerindo que entreguemos todos os que estiveram hoje aqui em seu escritório para que o senhor os examine?"

   "Não, não todo mundo, só os homens. Quando eu tiver terminado, posso não ter nada que possa ser usado como prova, mas há uma excelente chance de eu poder lhe dizer quem é o estrangulador e quando o senhor souber isto..."

   "Perdão", disse Cramer. Ele estava de pé. "Sinto muito ter que interrompê-lo Doutor, mas preciso ir para o centro da cidade". Isto era bem próprio dele. "Receio que sua sugestão não funcione. Farei com que saiba..."

   Saiu seguido por Levy e Murphy.

O Dr. Morley girou sua cabeça para vê-los sair, conservou-a assim por um momento e então voltou-se para nós. Parecia desapontado mas não derrotado. Os olhos negros, depois de me olharem rapidamente voltaram-se para Wolfe.

   "O senhor", falou ele, "é inteligente e preparado. Eu deveria ter pensado primeiro no senhor. Posso contar consigo para explicar àquele policial porque minha sugestão é a única esperança para ele?"

   "Não", respondeu Wolfe abruptamente.

   "Ele teve um dia difícil", falei a Morley. "Eu também. O senhor se importaria de fechar a porta quando sair?"

   Parecia que ele agora tinha intenção de recorrer a mim como último recurso, por isto, levantei-me, circundei a mesa em direção à porta, que tinha sido deixada aberta e lhe disse: "por aqui, por favor".

   Ele levantou-se e saiu sem dizer uma palavra. Fechei a porta, espreguicei-me com força, bocejei, atravessei a sala, abri a janela, estiquei minha cabeça para fora para respirar um pouco de ar fresco, fechei-a novamente e olhei para meu relógio.

   "Vinte para as dez", comentei.

   Wolfe resmungou, "Vá olhar a porta do escritório".

   "Acabei de fazê-lo, quando acompanhei Morley. Está trancada. Espírito mesquinho".

   "Veja se eles se foram e trancaram a porta. Mande Saul para casa e diga-lhe para voltar às nove da manhã. Diga a Fritz que me traga uma cerveja".

   Obedeci. O hall e a sala da frente estavam vazios. Saul, a quem eu encontrei na cozinha com Fritz me disse que tinha feito uma revista completa lá em cima e que tudo estava em ordem. Fiquei conversando um pouco com ele enquanto Fritz levou uma bandeja para a sala de jantar. Quando eu o deixei e voltei, Wolfe, abrindo uma garrafa de cerveja com o abridor que Fritz tinha trazido na bandeja, estava fazendo uma cara que eu entendia perfeitamente. O abridor que ele sempre usava, um de ouro, que um cliente e admirador lhe havia dado há muitos anos atrás, estava no escritório. Sentei-me e o observei enquanto despejava a cerveja.

   Esta sala não é de todo má para se ficar", comentei alegremente.

   "Bah! Quero lhe perguntar algo".

   "Fale".

   "Quero sua opinião sobre isto. Suponha que aceitemos, sem reservas, a história que a Srta. Brown lhe contou. Antes de mais nada, você acreditou nela?"

   "Em vista do que aconteceu, sim".

   "Então aceite. Aceite também que o homem, que ela havia reconhecido, sabendo que ela o reconhecera, a seguiu aqui para baixo e a viu entrar no escritório; então concluiu que ela pretendia me consultar; suponha que ele tenha adiado encontrar-se com ela no escritório ou porque ele sabia que você estava lá com ela ou por qualquer outra razão; que ele o viu sair e subir as escadas; aproveitou a oportunidade para entrar sem ser visto, pegou-a desprevenida e a matou e depois voltou para cima.

Todas estas suposições parecem possíveis, a menos que nos descartemos de tudo isto e procuremos uma outra saída".

   "Concordo plenamente".

   "Muito bem. Então temos indicações significativas do caráter dele. Considere isto. Ela a matou e voltou para cima, sabendo que ela tinha estado no escritório conversando com você, durante algum tempo. Ele gostaria de saber o que ela lhe revelara. Especificamente, ele gostaria de saber se ela lhe falara sobre ele, e se assim o fez, o quanto lhe contou. Se ela teria ou não dito o seu nome e se o teria descrito em sua atual aparência. Com aquela dúvida, sem resposta, poderia um homem, com o caráter dele, deixar a casa? Ou preferiria o desafio e o risco de permanecer até que o corpo fosse descoberto para ver o que você faria - e eu também, é claro, depois de você ter falado comigo e com a polícia?"

   "Certo". Apertei meus lábios. Houve um grande silêncio. "Então é nisto que está pensando. Eu também poderia fazer uma suposição?"

   "Prefiro uma sugestão do que uma suposição. Para isso é preciso ter uma base e já temos muitas suposições. Conhecemos a situação, como nós a aceitamos, e sabemos alguma coisa sobre o caráter dele".

   "Certo", concordei, "uma sugestão. Estou perdido. A resposta que eu tinha era que se ele tivesse ficado por perto até que o corpo fosse encontrado, então ele seria um dos do grupo com que Cramer esteve falando. "Então foi isto que lhe ocorreu?"

   "Não, de modo nenhum. O problema é diferente. Esta é simplesmente uma tentativa de suposição para um começo. Se isto valer, eu sei quem é o assassino".

   Dei-lhe uma olhada. Algumas vezes posso dizer quando ele está blefando, mas às vezes não. Decidi topar a parada. Com o escritório trancado pela rabugenta e invejosamente do inspetor Cramer, Wolfe certamente não estava em condições de se divertir tentando me enganar.

   "Isto é interessante", comentei admirado. "Se quer que eu o chame ao telefone, vou ter que usar o da cozinha".

   "Quero testar as suposições".

   "Eu também".

   "Porém há um problema. O teste que tenho em mente, o único que pude planejar - para minha tranqüilidade - só você pode executar. E fazendo isto você teria que se expor a um grande risco pessoal".

   "Pelo amor de Deus". Olhei estupidamente para ele. "Esta é uma qualidade nova. As missões que me tem dado! Desde quando o senhor tem vacilado ou hesitado em me fazer enfrentar o perigo?"

   "Mas trata-se de um perigo extremamente sério!"

   "A sua posição também o é. O escritório está trancado, e nele estão o livro que está lendo e a televisão. Vamos ouvir o teste. Descreva-o. Tudo que eu peço é ter noventa e nove chances em cem".

   "Muito bem". Ele levantou uma das mãos. "A decisão será sua. A máquina de escrever do escritório está inacessível. Aquela antiga do seu quarto está funcionando bem?"

   "Está".

   "Traga-a aqui, com algumas folhas de papel em branco - qualquer um. Vou precisar também de um envelope em branco.

   "Tenho alguns".

   "Traga-me um. A lista telefônica de Manhattan, também, do meu quarto".

   Fui para o hall e subi dois andares. Depois de pegar os três primeiros itens no meu quarto,desci um andar e encontrei aportado quarto de Wolfe ainda trancada: tive então que colocar a máquina de escrever no chão para pegar meu chaveiro. Com tudo que me fora pedido, voltei para a sala de jantar, sobrecarregado e estava pondo a máquina de escrever sobre a mesa quando Wolfe falou:

   "Não; traga-a aqui. Eu mesmo vou usá-la".

   Levantei meus olhos para ele. "Para escrever uma página vai levar uma hora".

   "Não vai ser uma página. Ponha uma folha de papel nela".

   Assim o fiz arrumei o papel, preparei a máquina e a coloquei em sua frente. Ele se sentou e a olhou carrancudo por um longo tempo, então começou a dedilhar. Virei-me de costas para ele, para evitar mais facilmente críticas sobre sua técnica de dois dedos. Passei o tempo tentando calcular, sua média de velocidade porque em um momento ele demorava cerca de doze palavras por minuto e então lhe dava de repente uma explosão de rapidez e esta média subia para vinte palavras ou mais. Depois de um pouco, ouvi o barulho da alavanca girando enquanto ele puxava o papel. Pensei que ele tinha errado e ia começar tudo novamente, mas quando me voltei para olhar, sua mão estava estendida para mim segurando a folha de papel.

   "Penso que isto vai funcionar", disse ele.

   Peguei-a e li o que tinha datilografado:

   Ela me contou o suficiente, durante a tarde, de maneira que sei a quem devo enviar esta; e mais: guardei tudo comigo porque não decidi o que é melhor fazer. Gostaria de ter uma conversa primeiro. Se concordar me telefone amanhã, terça-feira, poderemos marcar um encontro; por favor não despreze esta chance ou terei que decidir eu mesmo.

   Eu reli o bilhete três vezes. Olhei para Wolfe. Tinha colocado um envelope na máquina de escrever e estava consultando a lista telefônica.

   "Está tudo certo", falei, "exceto por aquele ponto e vírgula depois do encontro. Eu teria posto um ponto e começado uma nova sentença".

   Ele começou a dedilhar, endereçando o envelope.

   "Só assim?" perguntei. "Nem nome nem iniciais assinadas?".

   "Não".

   "Admito que é estiloso... Inferno, poderíamos esquecer as suposições e enviar isto a todos os camaradas daquela lista e esperar para ver quem iria telefonar.

Ele teria só que ir ao telefone - e também marcar um encontro".

   "Prefiro enviar somente a uma pessoa - a única indicada por sua informação daquela conversa. Isto vai testar a suposição.

   "E economizar selos". Dei uma olhada no papel. "O perigo maior, suponho, é eu ser estrangulado. Ou, é claro, em uma emergência como esta ele poderia tentar alguma outra coisa. Ele poderia até arranjar ajuda. Se quer que eu entregue isto, preciso do envelope".

   "Não quero minimizar o risco disto, Archie".

   "Nem eu. Vou ter que emprestar um revólver de Saul, os nossos estão no escritório. Posso pegar o envelope? Tenho que ir até Times Square para colocar no correio.

   "Certo. Antes de fazer isto, copie esta nota; devemos ficar com uma cópia. Faça Saul ficar aqui amanhã. Se, e quando, o telefonema vier você vai ter que usar seu bom senso para marcar o encontro o mais vantajosamente possível. A discussão dos planos vai ter que esperar até depois disto".

   "Certo. O envelope, por favor?"

   Então, ele o entregou a mim.

  

   Para Wolfe, o fechamento do escritório não fazia diferença durante a manhã, até as onze horas, desde que, pelo seu horário, ele ficava no orquidário até as onze da manhã. Para mim sim, fazia. Depois do café da manhã, era a melhor hora para funções lá, incluindo a correspondência da manhã.

   Naquela terça-feira de manhã, entretanto, aquilo não importava muito desde que eu estava ocupado desde as oito da manhã com o telefone e com a campainha da porta.

Depois das nove Saul estava lá para ajudar, mas não com o telefone porque as ordens era para que eu atendesse as chamadas. Elas eram na maioria de jornais, porém houve duas da polícia - uma de Rowcliff e outra de Purley Stebbins - e umas poucas dispersas, incluindo uma com uma cômica desculpa do presidente do Clube de Flores de Manhattan. Eu a atendi na extensão da cozinha. Todas as vezes que eu levantava o fone e dizia, "Escritório de Nero Wolfe, Archie Goodwin falando", minha pulsação subia e depois baixava novamente. Tive também uma discussão com um sujeito do escritório do Procurador do Distrito que teve a estranha idéia de que ele podia me obrigar a uma entrevista, para dar informações, às onze e meia em ponto. A discussão só terminou quando concordei em telefonar, depois, para marcar uma hora.

   Pouco antes das onze horas, eu estava na cozinha com Saul - que, de acordo com as instruções de Wolfe ficara meio calado até então - tentando um acordo sobre uma aposta. Eu estava lhe oferecendo um bom dinheiro para que apostasse comigo, que a ligação seria lá pelo meio-dia, mas ele insistia em pedir cinco contra três, quando, no princípio, tinha proposto valer dois contra um. Eu estava sarcasticamente sugerindo que trocássemos de lugar quando o telefone tocou e atendendo, falei:

"escritório de Nero Wolfe, Archie Goodwin falando".

   "Sr. Goodwin?"

   "Certo".

   "O senhor me mandou uma nota".

   Minha mão queria agarrar o fone do mesmo modo que Vedder tinha agarrado o vaso de planta, mas não o fiz.

   "Eu o fiz? Sobre o quê?"

   "O senhor sugeriu que marcássemos um encontro. O senhor tem possibilidade de discutir isto?"

   "Claro. Estou sozinho e não há extensões. Mas não estou reconhecendo sua voz. Quem está falando?"

   Estava só ganhando tempo. Saul, a um sinal meu, tinha corrido para cima, para a extensão no quarto de Wolfe. O cara poderia ser um completo lunático. Mas não.

   "Tenho duas vozes, esta é a outra. Já tomou uma decisão?"

   "Não. Estava esperando que você a fizesse".

   "Isto é ser esperto, parece-me. Estou querendo discutir o problema. Está livre esta noite?"

   "Posso dar um jeito".

   "Com um carro para guiar?"

   "Sim, tenho carro".

   "Então dirija-se a uma lanchonete a nordeste da esquina da Rua 51 com ali? Avenida. Chegue lá as oito horas. Estacione seu carro na Rua 51, mas não na esquina.

Entendeu?"

   "Sim".

   "O senhor vai estar sozinho, é claro. Entre na lanchonete e peça alguma coisa para comer. Não vou estar lá, mas receberá uma mensagem. Estará lá às oito horas?"

   "Sim. Mas ainda não reconheci sua voz. Não acho que seja a pessoa a quem enviei a nota".

   "Sou eu. Está bom assim, não está?"

   A ligação foi cortada.

   Desliguei, disse a Fritz que agora ele podia atender os chamados e apressei-me para as escadas em um pulo. Saul estava lá, entre os dois lances.

   "De quem era aquela voz?" perguntei.

   "Reconheça para mim. Você ouviu tudo que eu ouvi". Seus olhos tinham um brilho que suponho era o mesmo que tinham os meus.

   "Seja quem for", afirmei, "tenho um encontro. Vamos subir e dizer isto ao gênio. Tenho que admitir que ele economizou muitos selos".

   Subimos os outros dois lances e encontrei Wolfe na sala refrigerada examinando um ramo de dendrobiums que tinha sido danificado durante a invasão do dia anterior.

Quando eu lhe contei a respeito do telefonema, simplesmente acenou a cabeça, nem mesmo se dando ao trabalho de sorrir, como se apanhar um assassino na primeira tentativa, entre cento e vinte homens, fosse o tipo de coisa que ele fazia entre dois bocejos.

   "Aquela chamada", disse ele, "valida nossas suposições e comprova nossos cálculos, mas isto é tudo. Se tivesse sido feito mais que isto, o trabalho não valeria a pena. Alguém apareceu para destrancar aquela porta?"

   Eu lhe disse que não. "Perguntei a Stebbins a respeito disto e ele respondeu que ia falar com Cramer".

   "Não peça mais", ele retorquiu. "Vamos descer para o meu quarto".

   Se o estrangulador se encontrasse na casa de Wolfe o resto daquele dia se sentiria honrado - ou de qualquer modo poderia se sentir assim. Mesmo durante as horas que Wolfe passou no orquidário, das quatro às seis, seu pensamento se fixava no meu encontro, como ficou provado pela coleção de novas idéias e planos que ele despejou quando desceu à cozinha. Exceto por uma ida à Rua Leonard para responder durante uma valiosa hora às perguntas de um assistente do Procurador do Distrito, meu dia também foi dedicado àquele encontro. Minha incumbência mais importante, embora naquela hora me parecesse uma perda de tempo e dinheiro, era a de procurar o Dr. Vollmer para obter uma receita e então ir a uma farmácia com as instruções de Wolfe.

   Quando voltei do escritório do Procurador, Saul e eu pegamos o carro para fazer um reconhecimento. Não paramos na esquina da Rua 51 com ali? Avenida, mas passamos por lá quatro vezes. A idéia principal era descobrir um lugar para Saul. Ele e Wolfe insistiam que ele deveria estar lá com os olhos e os ouvidos bem atentos, enquanto eu achava que teria que estar suficientemente disfarçado para não afugentar do meu encontro quem poderia farejar a uma milha de distância. Finalmente optamos por um ponto na rua, em frete da lanchonete. Saul estaria sentado em um táxi parado enquanto o chofer tentava consertar o carburador. Havia tantos detalhes para serem combinados que se fosse outra pessoa, e não Saul, eu não esperaria que ele se lembrasse nem da metade. Por exemplo, no caso de que eu saísse da lanchonete, pegasse meu carro e começasse a dirigir, não era para Saul me seguir, a menos que eu abrisse minha janela.

   As providências para precauções contra contingências estavam previstas. Porém às sete horas quando nós três estávamos sentados na sala de jantar, terminando o pato assado, tive o pressentimento de que podíamos muito bem ter gasto o dia inteiro bancando os tolos. Realmente isto se aplicava estritamente a mim, desde que eu tinha que deixar o outro camarada ditar as regras até o ponto que eu chegasse a sentir que podia tomar as rédeas e vencer. E com outro camarada ditando as leis ninguém consegue ir muito longe, nem mesmo Nero Wolfe, preparando-se para contingências antes da hora; a gente deve enfrentá-las à medida que cheguem e se a gente encontra uma muito difícil a coisa pode sair muito mal.

   Saul saiu antes de mim para achar o chofer de táxi que ele gostava. Quando fui para o hall para pegar meu chapéu e minha capa de chuva, Wolfe me acompanhou. Fiquei realmente, comovido, desde que ele ainda não tinha nem tomado seu café!

   "Ainda não gosto da idéia", insistiu ele, "de estar com aquela -coisa em seu bolso. Penso que deveria esconder dentro de sua meia".

   "Não". Eu estava vestindo minha capa. "Se eu for revistado, é mais fácil de perceber em uma meia do que em um bolso".

   "Está certo de que o revólver está carregado?"

   "Pelo amor de Deus. Nunca vi o senhor tão ansioso. Daqui a pouco vai me dizer para calçar minhas galochas".

   Ele até abriu a porta para mim!...

   Não estava chovendo realmente, só garoando, mas depois de uns quarteirões eu tive que ligar o limpador de pára-brisa. Quando me virei para ir para o centro na 10? Avenida o relógio marcava 7,47; quando tomei a direita, na Rua 51, eram só 7,51. Naquela hora da noite, naquela região, havia bastante lugar para estacionar.

Dirigi-me para o meio-fio e parei a cerca de vinte metros da esquina, desliguei o motor e as luzes e baixei minha janela para enxergar melhor o ponto de parada do outro lado da rua. Não havia nenhum táxi lá. Olhei o meu relógio e relaxei. Às 7,59 um táxi apareceu e parou aos arrancos. O chofer saiu, levantou o capo e começou a espiar o motor. Levantei minha janela, travei as três portas, peguei as chaves, saí do carro, tranquei minha porta, caminhei para a lanchonete e entrei.

   Havia um único garçom atrás do balcão e cinco fregueses espalhados nos bancos. Escolhi um que dava lugar para apoiar meu cotovelo, sentei e pedi um sorvete e café. Aquilo me tornava um pouco suspeito naquele lugar, mas eu me recusava a insultar o pato assado de Fritz, do qual eu ainda sentia o gosto. O garçom me serviu e eu consultei meu relógio. Às 8,12 o sorvete já tinha acabado e minha xícara estava vazia, eu então mandei que renovasse a dose. Já estava quase no fim quando entrou um rapaz, olhou o balcão, veio direto em minha direção e perguntou meu nome. Eu lhe disse e ele me entregou um pedaço de papel dobrado, virou-se e saiu.

   Tinha idade, quando muito para estar no colegial, por isso não fiz esforço nenhum para segurá-lo, pensando que aquele sujeito com quem eu tinha um encontro marcado não poderia absolutamente ser aquele menino com cara de aluno aplicado. Desdobrando o papel, vi claramente escrito à mão:

  

   Vá para seu carro e pegue a nota sobre o limpador de pára-brisa. Sente-se no carro e leia.

  

   Paguei o que devia, caminhei até meu carro, peguei a nota como me mandaram, abri a porta, entrei, acendi a luz e li a nota com a mesma letra a lápis.

  

   Não faça nenhum sinal. Siga precisamente as instruções. Vire à direita na 17? Avenida e dirija lentamente para a Rua 56. Vire à direita na Rua 56 e vá até a 9?

Avenida. Vire à direita na 9? Avenida, à direita novamente na Rua 45, à esquerda na 11ª Avenida. À esquerda na Rua 38. À direita na 7? Avenida. À direita na Rua

27, estacione ali, entre a 9? e a 70? Avenidas. Vá ao número 814 e bata cinco vezes na porta. Entregue ao homem que abrir esta nota junto com a primeira. Ele lhe dirá onde deve ir.

 

   Não gostei muito daquilo, mas tinha que admitir que era uma maneira hábil de fazer com que eu fosse ao encontro sozinho ou não haveria encontro nenhum. Agora tinha começado a chover. Liguei o motor, podia ver com dificuldade através da janela embaçada que o motorista do táxi de Saul ainda estava mexendo no carburador, mas é claro que eu tinha que resistir ao impulso de baixar janela e lhe acenar um adeus. Segurando as instruções em minha mão esquerda, rodei para a esquina, esperei o farol abrir e virei à direita na 11? Avenida. Desde que não tinham me proibido de ficar com meus olhos abertos, assim eu o fiz. Quando parei na Rua 52, por causa do sinal, vi um seda preto ou azul-escuro se aproximar da guia atrás de mim e mover-se lentamente em minha direção. Compreendi que aquele era o meu guia, porém, mesmo assim, segui as instruções até alcançar a Rua 56 e virei à direita.

   A despeito de todas aquelas voltas e viradas, dos faróis, onde tivemos de parar, eu não tinha conseguido pegar o número da chapa do seda preto até a parada na rua 38 com a 7? Avenida. Não que aquilo me preocupasse, porque números de chapas não significavam muito.

   Mas que diabo, eu era ou não era um detetive? Foi na mesma esquina, vendo um policial na calçada, que eu tive a idéia de saltar,chamá-lo e agarrar o chofer do seda. Se ele fosse o estrangula-dor eu tinha as duas notas escritas em minha posse e poderia pelo menos valer-me delas para que fosse acompanhado a uma viagem à delegacia para uma conversinha. Mas desisti da idéia, e fiquei contente por isto.

   O camarada do seda não era o estrangulador, como logo constatei. Na Rua 27 havia um lugar bem na frente do número 814 e não vi nenhuma razão para não ocupá-lo.

O seda se aproximou da guia bem atrás de mim. Depois de trancar meu carro, parei um momento na calçada, porém o meu guia permaneceu sentado; então eu continuei seguindo as instruções. Subi as escadas até a varanda da velha e judiada casa de tijolos escuros, cheguei ao saguão e bati cinco vezes na porta. Através da janela o hall escuro parecia vazio. Enquanto espiava para dentro, pensando se eu deveria ter batido um pouco mais alto, ou ignorar as instruções e tocar a campainha, ouvi passos atrás de mim e me voltei. Era o meu guia.

   "Muito bem, aqui estamos", falei alegremente.

   "Quase me perdeu em um dos sinais; me dê as notas".

   Entreguei-as a ele - todas as provas que eu tinha! Enquanto ele as desdobrava para as conferir, eu o examinava. Ele tinha aproximadamente a minha idade e altura, magriço porém musculoso, com orelhas abanadas e uma verruga vermelha em sua mandíbula direita. Se fosse com ele que eu tivesse um encontro eu certamente teria hesitado.

   "Parece que são estas", falou ele e guardou os papéis em um bolso. De outro tirou uma chave, abriu a porta e empurrou-a. "Siga-me".

   Assim o fez até a escada para cima. Enquanto subíamos os dois lances, com ele na frente, teria sido fácil para mim alcançar e agarrar o revólver de sua cintura se tivesse um, mas não estava lá. Ele devia ter preferido usá-lo preso no peito que nem eu. Os degraus da escada eram de madeira nua e gasta e as paredes estavam precisando muito de uma pintura nova. O cheiro era uma mistura que eu não queria nem analisar. No segundo andar ele se dirigiu para o hall e de lá para uma porta nos fundos, abriu e me fez. sinal com a cabeça para entrar.

   Lá, havia outro homem, mas ainda não era a pessoa que me interessava - de qualquer modo, eu esperava que não. Seria um exagero dizer que a sala era mobiliada, mas admito que havia uma mesa, uma cama e três cadeiras, uma delas estofada. O homem, que estava deitado sobre a cama, levantou-se quando entramos e quando ele se virou para se sentar seus pés mal alcançavam o chão. Ele tinha os ombros e o torso de um lutador peso-pesado e as pernas de um jóquei de peso leve. Seus olhos inchados piscavam na luz de uma lâmpada brilhante, como se ele estivesse dormindo.

   "É ele?" perguntou bocejando.

   O Magriço disse que era. O jóquei-lutador, J-L para encurtar, levantou-se e foi até a mesa, apanhou um rolo de corda grossa, aproximou-se de mim e disse: "Tire seu chapéu e seu casaco e sente-se aqui". Apontou para uma das cadeiras.

   "Espere aí", o Magriço ordenou-lhe. "Não expliquei nada ainda". Ele me olhou. "A idéia é simples. O homem que vem ver você não quer ter nenhum problema. Ele só quer conversar. Então vamos amarrar você naquela cadeira e vamos embora; ele vem, vocês tem uma conversa, depois ele sai, nós entramos, cortamos a corda e você pode sair. Tá tudo claro?"

   Sorri para ele. "Claro que está, irmão. Infernalmente claro. O que vai acontecer se eu não quiser me sentar? Se eu reagir quando vocês começarem a me amarrar?"

   "Então ele não vem e você não vai ter a conversa".

   "E se eu for embora agora?"

   "Vá em frente. Nós vamos ganhar o dinheiro do mesmo jeito. Se quer ver este sujeito, só há um meio: amarrarmos você na cadeira".

   "Mas vamos receber mais se nós amarramos ele", objetou J-L. "Deixe que eu convenço ele".

   "Cai fora", ordenou-lhe o Magriço.

   "Eu também não quero ter nenhum problema", disse eu. "Que tal se fizermos assim? Eu sento na cadeira e vocês me amarram fazendo com que pareça que estou preso, mas me deixam livre o suficiente para me mexer no caso de sair algum tiro. Tem cem dólares na carteira no bolso do meu casaco. Antes de vocês saírem podem se servir".

   "Maldito do inferno", J-L falou zombando. "Pela salvação de cristo cale a boca e sente".

   "Ele pode escolher", o Magriço disse reprovadoramente.

   Realmente eu podia... Era uma boa ilustração do quanto é bom se pensar nas situações antecipadamente. Durante todas as nossas discussões naquele dia, nenhum de nós tinha colocado esta possibilidade: o que fazer se um par de malandros me propusesse escolher: ou me amarrar em uma cadeira, ou ir para casa dormir. Até onde eu podia ver, ficar ali, olhando para eles, era tudo o que eu tinha para fazer, mesmo porque era muito cedo para ir para a cama.

   Pensando que ajudaria saber se eles eram realmente malandros ou simplesmente um par de sujeitos esquisitos na folha de pagamento de alguma agência "papa-moscas", decidi tentar alguma coisa. Não deixando que percebessem qual era minha intenção, de repente, alcancei meu revólver dentro do meu casaco e então eles tiveram algo mais interessante que minha cara para olhar: o brilhante automático de Saul.

   O jóquei-lutador levantou os braços para o alto e emudeceu. Magriço olhou irritado.

   "Por que isto?" perguntou ele?

   "Pensei que poderíamos sair para dar uma volta no meu carro. Talvez até à 14ª Delegacia, que é a que fica mais perto".

   "E o que é que íamos fazer lá?"

   Ali ele me pegou.

   "Você quer ou não quer ver este sujeito?" explicou o Magriço pacientemente. "Vendo como você pegou este revólver, penso que ele deve conhecer você muito bem.

Não culpo por ele querer ver você com as mãos amarradas". Virou as mãos para cima. "Resolva como quiser".

   Coloquei o revólver no peito novamente, tirei meu chapéu e minha capa de chuva, pendurei-os em um gancho na parede e dirigi-me direto para uma das cadeiras, de modo que a luz não me incomodasse, e me sentei.

   "Certo", lhes falei. "Mas, por Deus, não exagerem. Conheço tudo por aqui e posso achá-los assim que quiser, e não duvidem disso".

   Eles desenrolaram a corda, cortando-a em pedaços e começaram a trabalhar. J-L amarrou meu punho esquerdo na perna de trás da cadeira enquanto o Magriço fazia o mesmo com o direito. Ambos tinham terminado, mas para minha surpresa o Magriço tinha apertado menos, mesmo assim insisti que estava muito apertado e ele afrouxou

ainda um pouco mais. Fizeram o mesmo com os tornozelos, amarrando-os nas pernas da cadeira, então eu reclamei que teria câimbras sentado daquela maneira, que já estava suficientemente amarrado àquela cadeira e que seria justo e melhor se os amarrassem juntos. Discutiram o caso e fizeram como pedi. O Magriço fez uma inspeção final nos nós e se aproximou de mim. Tirou o revólver do meu peito e atirou-o sobre a cama e, depois, certificando-se de que eu não tinha outro, saiu do quarto.

   J-L pegou o revólver e olhou zangado para ele. "Estas malditas coisas", resmungou, "só criam mais problemas". Aproximou-se da mesa e o colocou sobre ela, docemente como se fosse alguma coisa que pudesse quebrar. Então dirigiu-se para a cama e estirou-se nela.

   "Quanto tempo vamos ter que esperar?" perguntei.

   "Não muito. Não dormi a noite passada". Fechou os olhos.

   Não teve tempo. Seu peito largo não tinha se baixado e levantado mais que uma dúzia de vezes até que a porta se abriu e o Magriço entrou. Com ele estava um homem com terno cinza-escuro listrado e um sobretudo no braço. Estava com luvas. J-L pulou da cama sobre suas curtas pernas. O Magriço ficou parado com a porta aberta.

O estranho colocou o chapéu e o casaco sobre a cama, aproximou-se, deu uma olhada nas amarras e disse ao Magriço: "Muito bem, eu procuro vocês". Os dois malandros partiram, fechando a porta. O homem ficou me olhando pela frente e por trás.

   Sorriu. "Você teria me conhecido?"

   "Não, por Deus que não", tanto para diverti-lo, como era verdade...

  

   Não gostaria de exagerar minha coragem. Mas também não era o caso de eu ser tão corajoso que o fato de estar ali amarrado, com um estrangulador sorrindo para mim, não me perturbasse; é que simplesmente eu estava atônito. Era um disfarce surpreendente. As duas principais mudanças eram os cílios e as sobrancelhas; estes olhos tinham sobrancelhas cerradas com cílios longos e espessos, o que não se encontrava em nenhum dos convidados da tarde anterior. A grande, mudança realmente, entretanto, era interior. Não tinha visto nenhum convidado sorrindo, durante a exposição, mas mesmo que o tivesse, garanto que não teria sido como este. O cabelo, também, fazia muita diferença, é claro, dividido assim do lado e esticado para baixo.

   Ele puxou a outra cadeira e sentou-se. Observei a maneira como se movia. Aquilo em si poderia não revelar nada, porém os movimentos se encaixavam tão perfeitamente!

Achando que a luz incidia direto nos seus olhos, ele trocou um pouco a posição de sua cadeira.

   "Então ela falou, ao senhor, a meu respeito?" disse ele fazendo daquela frase uma pergunta.

   Aquela era a voz que tinha usado no telefone. Era realmente diferente, mais grave, mas além disso o rosto e os movimentos! A grande diferença vinha mesmo de dentro.

A voz era tensa e as palmas de suas mãos enluvadas, estavam fortemente apertadas sobre os joelhos.

   Respondi que sim, e acrescentei, casualmente, "quando a viu entrando no escritório, porque não a seguiu? Por que esperou?"

   "Não foi isto..." começou ele e parou.

   Esperei pacientemente.

   Prosseguiu então. "Eu o tinha visto descer, então suspeitei que estivesse lá".

   "Por que ela não gritou nem lutou?"

   "Eu falei com ela! Antes de tudo eu falei um pouco com ela".

   Sua cabeça deu uma pequena sacudidela, como se uma mosca o tivesse incomodando e suas mãos estivessem muito ocupadas para espantá-la. "O que ela lhe contou?"

   "A respeito daquele dia no apartamento de Dóris Hatten - quando entrou e ela estava saindo. E é claro, sobre o fato dela o haver reconhecido ontem".

   "Ela está morta. Não há provas. O senhor não pode provar nada".

   Sorri. "Então está perdendo uma porção de tempo, energia e o melhor disfarce que eu já vi. Porque simplesmente não joga meu recado no meu cesto de papel? Deixe-me

responder: não ousaria! Tentar arranjar provas, sabendo exatamente o que e quem procurar, faz muita diferença. E sabia que eu sabia!"

   "E não disse à polícia?"

   "Não".

   "Nem a Nero Wolfe?"

   "Não".

   "Por que não?"

   Encolhi o ombro não por indiferença, mas pela minha situação. "Poderia não fazê-lo muito bem", falei. "Esta é a primeira vez que falo com as mãos e os pés amarrados e penso que isto me atrapalha. Este não é o tipo de situação que me acontece muito freqüentemente. Estou farto com o negócio de ser detetive e gostaria de parar com isto. Tenho uma coisa que tem um grande valor para si - digamos que vale cinqüenta mil dólares. Poderíamos combinar pagar o que merece. Eu iria até o fim com o negócio, mas teria que ser acertado logo. Se não concordar só vou ter que pensar um pouco para me explicar porque não me lembrei antes, do que ela me falou. Vinte e quatro horas a partir de agora, é o limite máximo de tempo".

   "Eu não poderia arranjar, portanto vou obter o que eu mereço".

   "Claro que poderia arranjar. Se não me quiser atrás de si pelo resto de sua vida, acredite-me, eu também não o quero atrás de mim".

   "Suponho que não". Ele sorriu, ou pelo menos, aparentemente, pensou que estivesse sorrindo. "Parece que vou ter que pagar".

   Ouvi de repente, um barulho em sua garganta como se ele tivesse começado a se asfixiar. Levantou-se. "Está tentando livrar sua mão", falou roucamente aproximando-se de mim.

   Eu devia ter adivinhado por sua voz, grave e rouca, que o sangue estava subindo à sua cabeça. Estava claro como o dia, em seus olhos, subitamente fixos e parados, como os olhos de um cego. A intenção de me matar tinha se completado e ele agora pensava em como fazer aquilo. Senti um impulso maluco de rir. Me matar com o quê?

   "Fique onde está!" gritei para ele.

   Ele parou, resmungando, "você está se soltando" e caminhou novamente, passando ao meu lado e ficando atrás de mim.

   Com esforço consegui alcançar o chão com meus pés amarrados, e inclinando violentamente meu corpo e a cadeira para o lado consegui fazer com que ele ficasse novamente à minha frente.

   "Assim não vai bem", eu lhe disse. "Eles só desceram um andar.

   Eu ouvi. Mas não vai adiantar nada. Tenho outro recado para o senhor - de Nero Wolfe - aqui no meu bolso do paletó. Pegue o senhor mesmo, mas não saia da minha frente. Seus olhos ficaram fixos em mim.

   "Não quer saber do que se trata?" perguntei. "Pode pegar!" Ele estava a somente dois passos de mim. Mas precisou dar quatro vagarosos passos para me alcançar.

Sua mão enluvada enfiou-se dentro do meu bolso e saiu com uma folha de papel amarelo dobrada - uma folha de um dos próprios blocos de Wolfe. Da maneira que estavam os seus olhos, duvidei que ele pudesse ler, mas conseguiu. Examinei seu rosto enquanto lia a letra uniforme de Wolfe:

  

   Se o Sr. Goodwin não estiver em casa, até a meia noite, a informação dada a ele por Cynthia Brown será comunicada à polícia e eu me encarrego de que eles ajam imediatamente.

              Nero Wolfe

  

   Ele olhou para mim e vagarosamente seus olhos mudaram. Não estavam mais vidrados e começaram a brilhar novamente. Há pouco estava a ponto de me matar. Agora me odiava.

   Fiquei aliviado, "Vê, isto não é bom! Ele fez a coisa desta maneira porque se o senhor tivesse sabido que eu lhe tinha contado não teria ficado aqui. Wolfe calculou que o senhor me manteria amarrado e admito, que o fez muito bem. Ele quer cinqüenta mil dólares até amanhã às seis horas no máximo. O senhor diz que não poderá arranjar, então terá o que merece. Porém achamos que dará um jeito. Acha que não temos provas, mas podemos arranjar - não pense que não. Quanto a mim, previno que não deve tocar nem no meu cabelo. Isto faria com que Wolfe se aborrecesse consigo, e até agora ele está calmo: só quer os cinqüenta mil dólares".

   O estranho tinha começado a tremer. Sabia disto e estava tentando se controlar.

   "Talvez não possa arranjar tudo tão depressa", falei. "Neste caso pode lhe fazer uma proposta de pagamento. Pode escrever nas costas da nota que ele lhe enviou.

Minha caneta está aqui no meu sobretudo. Ele será compreensivo, pode acreditar".

   "Não sou assim tão idiota", retrucou asperamente. Tinha parado de tremer.

   "Quem disse que era?" Fui rápido e direto, pensei que o havia perdido.

   "É tudo uma questão de usar a cabeça. Ou nós o cercamos, ou não! Se não o estamos pressionando, o que é que está fazendo aqui? Se nós o pegamos, uma coisa à toa, como o seu nome assinado numa promessa de pagamento, não vai piorar nada. Não o pressionaríamos demais. Vamos pegue minha caneta bem aqui".

   Eu continuava pensando que o tinha perdido. Eram os seus olhos e o modo como estava titubeando. Se minhas mãos estivessem livres, eu poderia pegar a caneta, eu mesmo, abri-la e colocá-la entre seus dedos... e então eu o pegaria. Talvez estivesse a ponto de escrever e assinar, mas não de pegar a caneta em meu bolso. Também é claro, que se minhas mãos estivessem livres eu não estaria preocupado com uma nota e uma caneta.

   Então, ele respirou profundamente. Sacudiu a cabeça e seus ombros se endireitaram. O ódio que enchia seus olhos estava também em sua voz. "O senhor disse vinte e quatro horas. Isto me dá até amanhã. Tenho que decidir. Diga a Nero Wolfe que vou decidir".

   Caminhou até a porta e a abriu. Saiu, fechando-a. Ouvi seus passos descendo a escada; porém não tinha pegado nem seu chapéu nem seu casaco! Eu quase arrebentei os miolos tentando usar a cabeça. Não tinha chegado a nada quando ouvi, novamente, passos subindo a escada e eles entraram, os três. J-L estava piscando novamente; aparentemente havia uma cama onde eles estiveram esperando. Meu anfitrião ignorando-o falou com o Magriço.

   "Que horas são?"

   Ele olhou para o relógio: "Nove e trinta e dois".

   "Às dez e meia, não antes disto, desamarre sua mão esquerda. Se ele tiver uma faca poderá alcançá-la. Não, não faça isto. Deixe-o aqui como está e saia. Ele levará cinco minutos ou mais para conseguir livrar suas mãos e seus pés. Tem alguma dificuldade?'

   "Claro que não. Não temos nada com ele".

   "Então vão fazer como mandei?"

   "Certo. Dez e meia em ponto".

   O estrangulador tirou um punhado de notas de seu bolso, com certa dificuldade por causa de suas luvas, separou duas notas de vinte, foi para a mesa, alisou-as, esfregando-as dos dois lados com seu lenço.

   Entregou-as ao Magriço. "Já paguei o combinado, como sabe. Este extra é para que não fiquem impacientes e o deixem sair antes das dez e meia".

   "Não peguem isso!" falei asperamente.

   O Magriço, com as notas na mão se virou para mim. "Qual é o problema, elas estão contaminadas?"

   "Não, mas é muito pouco, seu idiota. Ele vale dez mil dólares para vocês. É isto! Dez mil!"

   "Absurdo", disse o estrangulador, desdenhosamente, e se dirigiu à cama para pegar seu chapéu e seu casaco.

   "Dá meus vinte", J-L retrucou. O Magriço ficou parado, pensando e me olhando. Parecia interessado, porém meio cético. Percebi que precisava mais que palavras.

Quando o estrangulador pegou seu casaco e seu chapéu e virou-se, sacudi meu corpo violentamente para a esquerda e saltei com cadeira e tudo. Não tenho idéia de como consegui chegar até a porta. Não podia simplesmente ter rolado por causa da cadeira e nem mesmo tinha tentado pular. Porém consegui e rápido. E ali estava eu apoiado sobre meu lado direito, a cadeira contra a porta antes que algum deles tivesse podido evitar.

   "Você pensa", ameacei o Magriço, "que isto é só um trabalho? Deixe ele sair e vai perceber tudo! Quer saber o seu nome? Sra. Carlisle... Sra. Homer N. Carlisle.

Quer o seu endereço?"

   O estrangulador que se aproximava de mim, parou assustado. Ele - ou deveria dizer ela - ficou imóvel como uma barra de aço, os olhos com os cílios longos presos em mim.

   "Uma dona?" perguntou o Magriço incredulamente. "Você disse senhora?"

   "Sim, ela é uma mulher. Eu estou amarrado, mas você pode apanhá-la. Estou preso, pode se certificar. Você então me dá uma parte dos dez mil". O estrangulador fez um movimento. "Olhe ela!"

   J-L, que estava se adiantando parou e virou-se para examiná-la.

   Eu tinha batido com a cabeça na porta e estava doendo.

   O Magriço aproximou-se dela abrindo seu casaco, olhou e deu um passo para trás: "Certo, pode ser que seja uma mulher", falou.

   "Diabo, podíamos ter descoberto isto... Mesmo um estúpido como eu podia ter visto isto", falou J-L movendo-se lentamente.

"Vá em frente", gritei. "Isto confirma o que eu disse. Vá em frente!"

   Ela emitiu um ruído em sua garganta. J-L alcançou-a com uma de suas mãos. Ela se encolheu toda gritando: "Não me toque!"

   "Estou desgraçado", disse J-L espantado.

   "Qual é o papo", perguntou o Magriço, "a respeito desses dez mil pacotes?'

   "É uma longa estória", falei, mas se quiser saber, você me desamarra e então vai ser canja. Se ela conseguir sair daqui e chegar a salvo em casa, não vamos mais poder fazer nada contra ela. Tudo que temos de fazer é poder pegá-la como está - aqui, agora - disfarçada e compará-la com a Sra. Homer N. Carlisle, que vai ser quando chegar em casa. Se fizermos isto nós a teremos. Como ela está aqui, agora, ela vale muito. Se chegar em casa, vocês não vão conseguir mais nada".

   Eu tinha que fazer aquele jogo. Só não tive coragem de dizer: "Chamem a polícia", porque se eles pensassem o que a maioria dos vigaristas pensa a respeito dos tiras, eles podiam me arrancar da porta e deixar que ela se fosse.

   "Como é então que vamos fazer?" perguntou o Magriço. "Não trouxe minha câmara".

   "Tenho algo melhor. Me solte que eu lhe mostro".

   O Magriço não gostou da idéia. Me olhou durante uns segundos e virou-se para olhar para os outros. A Sra. Carlisle estava apoiada contra a cama e J-L continuava observando-a, com as mãos apoiadas nos quadris. O Magriço voltou-se para mim: "Vou fazer isto. Talvez... como é a coisa?"

   "Diabos", praguejei, "pelo menos endireite minha cadeira. Estas cordas estão cortando os meus pulsos".

   Ele aproximou-se e levantou a cadeira com uma mão e com a outra no meu braço. Apoiei meus pés no chão para me equilibrar. Ele era mais forte do que parecia. Com a cadeira de pé novamente eu continuava, ainda, bloqueando a porta.

   "Pegue uma garrafa", falei "no meu bolso direito - não, aqui,-no bolso do meu casaco. Espero em Deus, que não tenha se quebrado".

   Ele a pescou. Estava intacta. Aproximou-a da luz para ler o rótulo.

   "O que é isto?"

   "Nitrato de prata. Provoca manchas pretas indeléveis na maior parte das coisas, inclusive na pele. Levante a perna da calça dela e passe isto".

   "E então?"

   "Deixe-a ir embora. Nós a pegaremos. Se nós três pudermos explicar como e onde ela arranjou as marcas, ela está perdida".

   "Como é que pensou nisto?"

   "Estava esperando ter chance de marcá-la eu mesmo".

   "Isto vai doer?"

   "Não muito. Ponha um pouco em mim - em qualquer lugar onde não apareça..."

   "É melhor primeiro me contar toda a estória - porque ela está perdida? Não me importo com o tempo que vai demorar".

   "Não até que ela esteja marcada". Fui firme. "Vou contar assim que passar o líquido nela".

   Ele examinou o rótulo novamente. Eu observava sua expressão, esperando que ele não me perguntasse se a mancha era permanente, porque não saberia que resposta seria mais conveniente e eu tinha que convencê-lo de qualquer maneira.

   "Uma mulher!" resmungou. "Por Deus, uma mulher!"

   "Certo", concordei simpaticamente. "Ela tapeou vocês completamente".

   Ele girou a cabeça e chamou, "Hei!"

   J-L se virou. O Magriço ordenou, "Levante ela, mas não machuque".

   J-L tentou alcançá-la. Mas enquanto isto, de repente ela não era mais, nem homem, nem mulher, era um ciclone. No primeiro pulo, escapou da mão dele, indo para o lado e quando ele percebeu ela já tinha alcançado a mesa e agarrado o revólver. Ele aproximou-se dela que puxou o gatilho e, assim, ele caiu a seus pés. Nesta hora o Magriço quase a tinha alcançado quando,ela disparou novamente Ele prosseguiu, e pela força do baque em meu ombro esquerdo devia ter calculado, se estivesse em condições de calcular alguma coisa que a bala passou pelo Magriço vindo me atingir. Ela puxou o gatilho pela terceira vez, mas aí o Magriço já havia agarrado seu pulso e lhe torcia o braço.

   "Ela me pegou!" J-L estava gritando indignado. "Ela me pegou na perna!"

   O Magriço a tinha forçado a se ajoelhar.

   "Corte estas cordas", gritei a ele, "me dê aquele revólver e vá achar um telefone".

   Exceto por meus pulsos, tornozelos, ombro e cabeça, eu me sentia maravilhoso.

  

   "Espero que esteja satisfeito", disse o inspetor Cramer amargamente. "O senhor e Goodwin têm novamente seus retratos nos jornais. Não recebeu nada, mas teve bastante publicidade grátis. Eu recebi meu puxão de orelha!"

   Wolfe resmungou satisfeito.

   Eram sete horas da noite do dia seguinte e nós três estávamos no escritório, eu em minha mesa com o braço em uma tipóia, Cramer na poltrona de couro vermelho e Wolfe em seu trono, atrás de sua mesa, com um copo de cerveja na mão e uma segunda garrafa, ainda fechada, sobre a bandeja, à sua frente. As trancas tinham sido removidas pelo sargento Stebbins pouco antes do meio-dia, em meio a outras tarefas. Toda a turma estivera ocupada: visitando J-L no hospital, conversando com o casal Carlisle no Distrito de Polícia, começando a levantar as provas circunstanciais para provar que o Sr. Carlisle tinha fornecido o necessário para o aluguel de Dóris Hatten, que a Sra. Carlisle sabia disto, que tinha contratado o Magriço, além de outras coisas.

   Eu tinha ficado satisfeito em testemunhar que o Magriço, cujo nome era Herbert Marvil e que dirigia uma pequena agência no centro da cidade, era uma das centenas de provas. E que assim que eu o convenci de que o seu cliente, aquele cavalheiro bem vestido, era uma mulher e uma criminosa, ele foi absolutamente esplêndido. É claro, que quando voltou ao quarto, depois de ter telefonado, ele e eu tivemos alguns minutos para ordenar nossas idéias antes que os tiras chegassem. Gastei uns segundos para satisfazer minha curiosidade. Na mão direita do casaco da Sra. Carlisle havia um laço corrediço feito com uma corda forte. Portanto era essa a idéia dela quando se dirigiu para minhas costas. Algum dia, quando o julgamento estiver terminado e Cramer tiver se acalmado, vou tentar obtê-lo como lembrança.

   Cramer recusara a cerveja que Wolfe lhe oferecera gentilmente. "O que me trouxe aqui principalmente", prosseguiu ele, "foi para que o senhor soubesse que eu percebo que não há mais nada que eu possa fazer.Sei muito bem que Cynthia Brown a descreveu a Goodwin e provavelmente deu também o nome dela e que ele lhe contou. E o senhor queria abocanhar tudo. Suponho que pensou que poderia conseguir algum dinheiro de alguém. Os dois esconderam provas".

   Ele mexeu-se na cadeira. "Certo, não posso provar isto. Mas sei disto muito bem e queria que soubessem também que não vou me esquecer à toa".

   Wolfe tomou um gole, molhou os lábios e colocou o copo sobre a mesa. "O problema é que" resmungou ele "se o senhor não pode provar nada e está certo, é claro que não pode - eu também não posso provar que está errado".

   "Oh, claro que pode. Mas não quer!"

   "Eu tentaria alegremente. Como?"

   Cramer inclinou-se para a frente. "Assim. Se ela não tivesse descrito a Goodwin, como saberia a quem enviar aquela nota de chantagem?'

   Wolfe se encolheu. "Foi questão de cálculo, como já lhe disse. Concluí que o assassino estava entre aqueles que ficaram até que o corpo fosse descoberto. O problema era tentar. Se não houvesse um telefonema respondendo à nota de Goodwin o cálculo estaria errado, e eu teria..."

   "Certo, mas por que ela?"

   "Só duas mulheres tinham ficado. Obviamente não poderia ser a Sra. Orwin; com o físico dela, seria muito difícil passar por um homem. Além disso, ela era viúva, e eu tinha o pressentimento que Dóris Hatten tinha sido assassinada por uma esposa ciumenta, que..."

   "Mas por que uma mulher? Por que não um homem?"

   "Ah! Isto?" Wolfe levantou o copo e o esvaziou com mais prazer do que o costume, limpou os lábios cuidadosamente e colocou o copo na mesa. Ele estava vivendo um momento delicioso! "Eu lhe disse na minha sala de jantar" - apontou um dedo - "que algo tinha me ocorrido e que queria considerar o fato. Mais tarde eu teria me alegrado em lhe contar tudo se o senhor não tivesse agido tão irresponsável e maldosamente mandando trancar este escritório. Aquilo me fez duvidar que fosse capaz de agir com propriedade diante de uma sugestão vinda de mim. Portanto decidi agir por mim mesmo. O que me ocorrera foi simplesmente isto: que a Srta. Brown tinha dito ao Sr. Goodwin que ela não "o" teria reconhecido se ele não estivesse usando chapéu. Ela usou o pronome masculino naturalmente, durante toda a conversa, porque tinha sido um homem que estivera no apartamento de Dóris Hatten, naquele dia, em outubro E ela o tinha guardado na lembrança como um homem. Mas foi no meu orquidário que ela o tinha visto naquela tarde e lá nenhum homem estava usando chapéu. Os homens deixaram seus chapéus aqui embaixo". Wolfe abriu as mãos. "Portanto era uma mulher!"

   Cramer o olhava. "Não posso acreditar", falou espantado.

   "O senhor tem as notas taquigráficas das informações do Sr. Goodwin. Consulte-as".

   "Assim mesmo eu não acreditaria".

   "Ainda há outros pequenos itens", Wolfe sacudiu o dedo. "Por exemplo: o estrangulador de Dóris Hatten tinha uma chave da porta. Mas quem a sustentava, e, tão cuidadosamente, evitava se revelar, não iria entrar no apartamento numa hora tão inesperada arriscando-se a encontrar estranhos. E quem melhor que uma esposa enciumada para achar uma oportunidade, ou arranjar uma, e para conseguir uma duplicata da chave?"

   "Pode falar durante um dia inteiro. Continuo não acreditando".

   Bem, pensei comigo mesmo, observando o sorriso malicioso de Wolfe e pela primeira vez aprovando-o completamente: Cramer, o profissional, poderia escolher acreditar ou não - e que fosse para o inferno!

   Quanto a mim, não tinha escolha...

 

                                                                                Rex Stout 

 

                      

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