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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FIO DA MEADA / Marcia Ribeiro Malucelli
FIO DA MEADA / Marcia Ribeiro Malucelli

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

— Qua lé Mel? Ele não teria descoberto se a inteligência do Fê não fosse ‘tão’ aflorada — gesticulava Eduardo. — E não tivesse entregado que era eu quem escrevia aqueles bilhetes de amor... — e caiu na risada.
— Sei... — Melissa olhou para Mariana, as duas balançaram a cabeça o achando um verdadeiro palhaço.
Eduardo tinha 16 anos e uma rala barbicha despontando. Cínico, era o tipo de garoto que agradava a uma menina. Tinha uma bela moto, um belo sorriso e uma maneira nada saudável de gozar da cara das pessoas.
Filho único, descendente de portugueses, gostava de ter muitos amigos. Seus cabelos pretos, cacheados, balançavam de um lado para outro.
Melissa olhou para Mariana outra vez e piscou. As duas irmãs observavam o belo bumbum de Eduardo marcado pela calça jeans justa.
Havia uma velada disputa de olhares entre as irmãs.
— Ulalá! E sabe o que mais? — continuava Eduardo a gargalhar, absorto em suas ideias. — O babaca achou que tava abafando com aquela ‘gatinha secreta’.
Melissa roeu a unha, esqueceu que as havia pintado de manhã.
— Droga! — praguejou baixinho, gostava de roer unhas com a mesma frequência que as pintava de marrom.
Marrons eram, também, os longos e lisos cabelos herdados da família japonesa da mãe, que iam até a cintura. Melissa achava que cabelos longos, ajudavam a disfarçar o que considerava um defeito: seus quadris.
Tinha 15 anos, e estudava no primeiro ano do Ensino Médio.
Melissa era dark, oposto da delicada irmã Mariana, que era doce até quando pensava.
Com cabelos loiros, olhos menos amendoados que a irmã e azuis, herdados da família alemã de seu pai, Mariana vestia cores suaves, falava manso e educadamente. Tinha 13 anos e estudava no nono ano do Ensino Fundamental II junto com Eduardo, repetente nato.
Foi ela quem cutucou Melissa; as duas observaram quem se aproximava.
— Oi! Como vão as gatas do pedaço? — Fernando da Silva aproximou-se do pequeno grupo que ainda teimava em conversar do lado de fora da classe.
Mariana foi a primeira a responder:
— Tamos nos preparando pra festinha do Artur, Fê — falou para provocar.
— Ah! Vocês também descolaram um bico naquela social? — sorriu o desligadão Fernando.
Eduardo agora ficou bravo. Fuzilou Fernando com os olhos e entrou para a classe arrastando Mariana com ele.
— Não liga não, Fê — Melissa ria. — O Dudu não foi convidado pra social do Artur. Ele tá uma fera porque não consta na lista.
— Que pena! E por que ele não tá na lista?
— É! Por que né Fê?
Mas Fernando ou Fê nem se tocou, com 14 anos, primeiro ano do Ensino Médio, era ‘dez’ em todas as matérias, mas um zero a esquerda no quesito ‘pegar as coisas no ar’.
Tinha a pele jambo, bonita e brilhante, como os dentes que apresentava; e Fernando era bonito.
Vivia na academia, malhando.
Melissa o olhou, riu de novo ao se lembrar da cara de Artur quando Fernando comentou que Eduardo estava sacaneando um babaca, sem se tocar que era ele, o Artur, o tal babaca.
Artur ficou furioso. Prometeu vingança se não fosse o fato de Eduardo ser campeão de capoeira, e ter o dobro do seu tamanho.
— E a Pati? Vai no rolo? — continuava Fernando, sem nada entender.
Melissa respirou profundamente antes de responder:
— Não sei Fê. A Pati anda muito esquisita desde que arranjou aquele namorado virtual.
— Vir... O quê? — disse, arregalando os olhos.
— Virtual Fê. Chiii! Eu sei que tudo isso vai ‘além das nossas capacidades computacionais’ como diz o Dudu, mas quer dizer que ela conheceu um cara numa sala de Chat, sabe?
E eu que pensei que essas coisas não existissem mais — riu. — Com tanto App de relacionamento no cel… — deu de ombros indo para a classe. — Só sei que tão ‘namorando’ há uns dois meses — Melissa viu Fernando piscar centenas de vezes tentando compreender.
— Ué! Ela não me disse nada quando a gente ficou na festa junina.
— É... Eu sei... — continuou Melissa. — Mas ela anda estranha, desde que o pai dela começou a viajar muito a Brasília. E foi após as eleições, que a Pati mudou.
— Todas as meninas mudam Mel.
Melissa girou os olhos 360 graus.
— Fê! Não tô falando ‘dessa’ mudança. Falo de humor, mudança de humor. Ela tá mais fria comigo. Não me liga, não faz compras no shopping... Só se preocupa com aquele computador.
— O Dudu também. Quero jogar bola e toda vez que interfono ele tá no computador.
— É outra coisa estranha. Dudu é tão lento na matemática e um nerd nos computadores. Acredita que ele deu um jeito no computador super ‘NASA’ do papai?
Fernando estava absorto demais para entender que dar um jeito no computador hoje em dia todo mundo dava, mesmo que no similar da Agência Espacial Americana, que também não era tudo isso. Porém, era difícil encontrar o Fernando dentro dele próprio, quando se propunha a pensar.
Fernando da Silva era muito desligado.
Fernando estudava na mesma classe de Melissa e Patrícia de Moura, de 15 anos, e que junto a Eduardo e Mariana, formavam a animada galera dos cinco amigos que estudava na mesma escola, frequentava o mesmo clube, e morava no mesmo Condomínio Jardim das Flores.
Melissa ouviu o último sinal de entrada. Todos se dirigiram para suas salas de aula.
A coisa parecia se acalmar nos corredores.
— Vou falar com ela — prometeu Melissa. — Agora vamos pra aula.

 

 

 


 

 

 


Capítulo 1
Junho.
Brasília, Distrito Federal.
Uma pancada forte se fez ouvir na porta de nogueira maciça.
— Quem é? — perguntou uma voz cansada e rouca.
— Com licença, Excelência. Aquele homem estranho está aí, de novo.
— Pode mandar entrar, Osmar.
— Sim, Excelência — e o secretário saiu fechando a porta. Retornou pouco tempo depois, sem dessa vez anunciar trazendo um homem de aspecto desengonçado e um tanto marginal,
de barba malfeita causando uma péssima impressão.
O secretário Osmar fez uma careta enojada quando o homem passou por ele. Já o Senador da República Ângelo Antônio de Moura sentiu um aperto no peito. Passou a mão pela camisa,
discretamente. Tinha se enervado no último plenário. Estava defendo com unhas e dentes, a nova lei que proibia navios sem bandeiras navegarem pela costa brasileira.
Havia gritado por duas horas pedindo que contêineres sem carga definida não mais fossem trazidos ao Brasil.
Lutava, há muito tempo, por leis que permitissem maior autonomia aos portos brasileiros.
Seus amigos, juízes e desembargadores o apoiavam totalmente.
O Senador era um homem de bem.
— Sente-se! — ordenou ao estranho.
— Excelência! — disse o homem com uma mesura e certa irreverência.
Parecia rir do Senador toda vez que lhe dirigia a palavra.
— Vamos direto ao assunto — o Senador esperou o secretário sair a contragosto, o que não se importava tanto já que estava acostumado a ouvir por detrás das portas. — Já disse
que não quero que venha até Brasília — irritou-se o Senador. — Conversaremos quando estivermos em São Paulo.
— Mas tua mulher tá aqui. Pensei que era pra segui-la a todos os lugares...
— Eu sei... Eu sei… — falou impaciente. — Tem os resultados?
— Olha! Acho que temos que rever nosso preço.
— O quê?! — gritou o Senador ao se levantar num rompante. A idade avançada não permitia mais atitudes como aquela. Voltou a pôr a mão no peito. Sentiu algo se estrangulando
lá dentro. — Qual é o seu novo preço? — falou por fim.
— Quero 13 mil.
— Treze mil? Por algumas fotos?
— Quer provar pra tua filha que tua jovem e bela esposa te trai? — desafiou-o.
— Cale a boca, infeliz!
— Vou embora — e se levantou.
— Não! Espere! — suplicou o Senador.
— Tá me ofendendo desse jeito, Excelência. Até parece que não dá o devido valor ao meu trabalho...
— Está bem! — e abriu o cofre que se escondia atrás de um Volpi.
— Sabe o quanto me custa fazer esse tipo de coisa? — falava o homem sentado na cadeira forrada de vaqueta marrom.
— É! Imagino! Posso imaginar... — falava o Senador descontrolado. Pegou um pouco de dinheiro e suas mãos tremeram ao assinar o cheque.
O detetive sorriu por entre a boca cerrada. Deliciava-se com aquele desespero.
“Idiota!”, pensou sem dizer.
— Aqui está!
— Cheque nominal? Era só que faltava. Não tá pensando em cancelar quando eu chegar ao banco?
— Não seja ridículo. Não vou me colocar em riscos com você. Não tenho todo esse dinheiro. E o cheque é de nove mil. O resto leva em dinheiro. Sou um homem de palavra...
— Um político? De palavra? — falava debochado.
— Sou… — se perdeu no ar, vinha se descontrolando cada vez mais.
Sempre fora um homem honesto. Por toda a sua carreira.
— Então aqui tá teu presentinho — disse o detetive ao entregar um pequeno envelope.
— Vá embora e esqueça que me conheceu.
— Pode acreditar — riu ao sair e bater a porta.
O Senador chorou feito uma criança. Olhou a foto da filha no porta-retrato, ao lado da mesa.
— Eu não posso Patrícia. Minha pequena Pati. Não posso decepcionar você — chorava o velho Senador da República. — Foi um erro. Desde o começo... Um erro.
A menina no porta-retrato sorria alegremente para a máquina.
O Senador pegou sua maleta, arrumou seus pertences dentro dela, se levantou da cadeira, foi até a lareira e queimou o envelope antes mesmo de abri-lo.
Capítulo 2
Junho.
São Paulo, capital.
O apartamento do casal Sandra Pii Jung e Paulo Jung estava abarrotado de plantas. O casal de engenheiros havia transferido seu escritório para a sala de estar temporariamente.
Aquele projeto era muito importante para a carreira deles. Iam aproveitar a saída das duas filhas, Mariana e Melissa, para resolverem problemas de trabalho.
As filhas, contudo, discutiu a tarde toda por causa de um mesmo vestidinho preto.
Após tal definição, Melissa foi atrás da amiga Patrícia, mas o telefone cansou de tocar até ser atendido.
— Pati? Por que demorou pra atender? Fiquei preocupada.
— Por quê?
— Porque sei que teus pais ainda tão em Brasília. Tua empregada nunca atende o telefone! Isso é incrível! Tua mãe falou pra minha que já quis despedi-la, mas teu pai não deixou.
— Papai se preocupa comigo. Mamãe sai toda hora e fico muito sozinha. Maria me faz companhia.
— Puxa! Maria é? E nós?
— Ah, Mel! Desculpa, não quis dizer isso.
— Tá! Tá bom! E então? Com que roupa vai?
— Não vou.
— Não vai? A social do ano e você não vai? Chiii! O que tá acontecendo?
— Nada! Só não quero ir à festa do Artur. Aquele cara é um chato.
— Tudo bem. Concordo em gênero, número e grau, mas ele dá festas da hora. E agora é você que tá sendo chata.
— É que eu marquei com o Ricardo às nove horas e além do mais, meus pais voltam hoje.
— Teu pai chega as sete como sempre e nós só vamos à festa às dez. Já deu até tempo pra falar com o tal ‘Ricardo Virtual’. Não tem desculpas.
— Não fala assim dele! — falou num estranho tom.
— Chiii! Não precisa ficar brava. Eu não conheço o cara mesmo. Então? Vamos? Vai amiga... Por mim, vai?
— Tá bom. Mas não vou ser figurinha fácil.
— Pati, você nunca foi figurinha fácil. O Fê que o diga.
— Ahhh! Já falei pro Fê, desencanar. A gente ‘ficou’ na festa junina e ele agora não larga do meu pé.
— Ele tá apaixonado, Pati.
— Paixão? E a inteligência ‘dez em todas as matérias’ dele permite saber o que é isso? Ele dá um fora atrás do outro. Pisou no meu pé três vezes na festa junina. Além do mais,
não namoro babaca.
— Tudo bem! A gente não olha pro Fê nem pro Dudu. Ok?
— Você não olha pro Dudu? Bebeu?
— Puxa Pati. Tô tentando esquecer e é assim que você me apoia?
— Ah, Mel! Dudu é um crianção. E o Fê é um idiota.
— É! Todos os homens da terra são lixo. E o ‘Ricardo Virtual’?
— Eu vou desligar Mel. Não me torra hoje.
Melissa riu e mudou de assunto rapidinho.
— Sabia que a mãe do Fê vai nos levar de Mustang?
— Tá! Tá bom! — e desligou.
Patrícia olhou para o porta-retrato na mesinha do telefone e viu seu pai triste na mais recente foto tirada.
“Pobre papai”; pensou.
Capítulo 3
Enfim, já estava na hora, e juntos, no hall de entrada do condomínio, Eduardo, Fernando e Patrícia, que estava com a cara mais irritada do mundo, esperavam Melissa e Mariana.
— Vai, Pati. Tenta! Não dói nada ser feliz! — debochou Eduardo rindo.
— Ah! Não torra Dudu — alterava-se Patrícia.
Eduardo se contorcia todo de rir, sentado no sofá do hall de entrada. Olhou para o relógio, depois para o elevador, e se levantou:
— Que coisa horrível que ficaram esses toldos nas sacadas. Laranja? Não podia ter sido algo mais... Light? — falava Eduardo, sozinho, agora do lado de fora.
— Sai desse frio, Dudu! — reclamava a empregada Berenice.
— Sai você daqui, Berê. Acha que preciso de babá no hall?
— Seu pai me pediu pra descer. Sabia que ocê ia tomar frio.
— Ser filho de pai médico é mesmo um saco — falou para o elevador que chegava. — Que demora! — exclamou para Melissa e Mariana, abrindo os longos braços.
— Calma! — exclamou Melissa. — Ainda são dez horas. Quer o quê? Arrumar a casa?
— Não! Quero ver se sobrevivo à chata da minha empregada e... Cuidado!!! — gritou Dudu. Mariana e Melissa deram um pulo do chão. Olharam para baixo, olharam para Eduardo que
ria. — Vão pisar na baba de ódio que a Pati espuma — falou debochado.
— Ah! Não torra! — falou Patrícia se virando para ir para a garagem.
— Você, hein! Tem que animar a festa — repreendeu Melissa.
— Ulalá! Estou desagradando às meninas? Além do mais a Pati tá um saco.
— Ela tá com problemas. Tá preocupada que o pai não chegou. Deixa ela — respondeu Melissa, agora se irritando, indo atrás de Patrícia na garagem.
— Espera! — agarrou o braço dela. — A Berê tem que subir ou conta pro meu pai que sou quem vai dirigir.
E Berenice sumiu das vistas.
— Ué! Não ia ser a mãe do Fê?
Eduardo só piscou.
— Fica fria — gargalhou.
— Vamos! Vamos! — dizia Mariana tentando colocar a turma dentro do carro.
A casa do Artur não ficava além de dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Como o condomínio, também não ficava longe da escola. A noite estava escura e as ruas,
desertas. O inverno de São Paulo prendiam as pessoas dentro de casa.
As luzes começavam a ficar forte, já no fim da alameda e a casa iluminada de Artur se fez.
A festa rolava solta lá dentro e o som estava ensurdecedor.
— Puxa! Nem a campainha do celular se esgoelando a gente escuta — reclamou Mariana. — Mel! Tira do modo avião ok? Pati! Deixe no vibracall.
Melissa e Patrícia fizeram uma careta pela ordem dada, mas acabaram obedecendo.
— Vou beber uma cerveja. Quem quer? — perguntou Fernando se dispersando.
— Eu quero! — falou Melissa.
— Vai com calma! — disparou Mariana outra vez a controlá-la.
— Olha aqui... A menininha aqui é você — respondeu Melissa. — Não se esqueça.
Mariana só fez bico e dispersou.
— Vou ficar por aqui — falou Eduardo, baixinho, só para Melissa ouvir. — Não vou querer aquele emplumado me barrando na frente de todo mundo.
— Mas tá frio...
— Você também? — reclamou ao se separarem.
Melissa arranjou um copo e logo se pôs a bebericar. Achava o máximo beber. Sabia do erro, mas pensava que aquilo a fazia sentir-se mulher. Sua mãe controlava-a como podia.
E Mariana era sempre a encarregada do fato.
Melissa foi ao encontro de Patrícia. Estava ‘babando fel’ como dizia Eduardo.
— Algum problema? — perguntou ao se chacoalhar ao som de uma das antigas The Chemical Brother.
— Por que acha que tenho? — respondeu Patrícia com uma pergunta.
— Por nada. Dá pra ver sua irresistível sede de felicidade.
— Ah! Não me torra, Mel.
— Hei?! — disse Melissa agarrando-a pelo braço quando ela ameaçou sair. — Somos ou não somos amigas?
— Hoje não tô pra conversa.
— Brigou com o Ricardo? — Melissa viu Patrícia a fuzilar com seus olhos verdes. Seus cabelos loiros se agitaram nervosamente. Astuta, Melissa leu a linha de seu pensamento
já que Patrícia não se deu ao trabalho de abrir a boca. — Chiii! Brigou! — respondeu ela mesma.
— Tô com problemas, Mel. Não me torra.
— Eu sei. Não precisa ser grossa.
— Desculpa tá? É que não sei como resolver.
— Quem é Ricardo, Pati?
Patrícia de Moura se esticou toda.
— Não sei! — e Patrícia só escutou o abrir de boca da amiga que ficou aberta por bons segundos. — Tô falando sério. Não sei. Eu nem preciso contar nada porque ele conhece
todas as minhas encanações, sabe tudo sobre mim. Mas ele pouco ou nada fala dele. Eu nada sei sobre ele, Mel.
— Você conversa com um cara totalmente estranho através do teu computador que sabe toda a tua vida, e não se preocupa em saber quem ele é? — e se propôs a roer as grandes
unhas pretas. — Droga! — lembrou-se que estavam pintadas.
— Você não entende. Ricardo é delicado; sutil. Ele me entende, me conhece como ninguém. E eu já não consigo viver sem ele.
— Cruzes! Você conheceu o cara há dois meses e tá desse jeito? É sexo virtual?
— Não tô falando de sexo.
— Não? Achei que sua vida se resumia nessas quatro letras.
— Não debocha tá? Se não quer me entender, então vai embora.
— Te entender? Como pode dizer que não sabe mais viver sem um cara que nunca viu? Já viu? Ele te mostrou alguma foto? Dizem que o que não falta é caras fake…
— Ele não é fake, Mel. Disse que é ruivo, tem 1.70m, tem 38 anos e tá apaixonado por mim.
— 38 anos?! — gritou Melissa.
— Não grita! Que droga! Quer que todos escutem? — olhava para todos os lados.
— Desculpe! Puxa, não esperava que ele fosse tão velho. E... Ele sabe sobre você? Tipo... Que você tem 15 anos?
— Já disse que ele sabe tudo sobre mim. Até o que eu não contei.
— Nossa! Que legal... Quer dizer... Puxa... Que loucura... E o que você quer dizer com ‘o que não contou’?
— É disso que tô com medo. Ele me entende, conhece meus desejos como se me conhecesse.
— Ai, Pati. Já contou isso pra sua mãe? — estranhou a amiga.
— Minha mãe só sabe dela. Meu pai trabalha demais. Quem se importa? — deu de ombros.
— Puxa Pati. Você tá com problemas mesmo e... Chiii! Seu celular tocou?
— Não vibrou — respondeu fria.
— Não! Ele tocou. Tá tocando.
— Ninguém vai ligar pra mim sabendo que tô numa festa, querida Mel.
— Mas ele tá tocando. Daqui... — e esticou a mão que ficou no ar.
— Não! — e desligou o aparelho.
— O Ricardo tem teu número?
— Tem! Eu dei a ele.
— Então por que tá fugindo dele se deu o número pra ele ligar?
— Não tô fugindo. Tô dando um tempo... Tô assustada. — e voltou a ligá-lo. A campainha do celular disparou. — Puxa o celular tá tocando outra vez. Estranho... Alô?
— Patrícia?! — gritava uma voz do outro lado.
— Alô! Maria? É você? — tentou reconhecer. — Que tá acontecendo? Espera Maria... Espera... Para de gritar, Maria. Não escuto direito. O quê? Sangue? Maria? Alô! Alô! — e ficou
estática a olhar o aparelho.
— Sangue? — Melissa arregalou os olhos. — Liga pra lá.
— Maria não atende o telefone, lembra?
— Liga Pati!
Patrícia digitou.
— Droga! — errou seu próprio número. — Aquela empregada bebeu.
— Liga Pati! — insistiu.
— Calma Mel! Tá me assustando. Alô! Maria... Maria o que tá acontecendo?
— Patrícia!!! Socorro!!! — gritava Maria desesperada, desligando de novo.
— Desligou! Ai Mel! Tô assustada. Parecia o telefone sem fio. Ele range quando andamos. Acho que ela tava correndo.
— Correndo do que? — olhou Patrícia assustada. — Calma! Vamos procurar o Dudu.
Melissa arrastou Patrícia para fora da casa. Encontraram Eduardo ao lado da piscina, conversando animado com uma bela loira.
— Dudu, vem cá! — Melissa o puxou.
— Hei?! Calma lá. Não vê que tô ocupado? — sorriu maroto para a loira que estava ao seu lado.
— Vem cá! — arrastou-o.
Eduardo quase deslocou o pescoço com a força de Melissa ao segurar na gola da camisa dele para puxá-lo.
— Ficou louca?
— A Maria ligou gritando da casa da Pati.
— Viu uma barata?
— Não debocha seu palhaço — esbravejou Patrícia. — Não vê que é sério?
— Você? Séria? — gargalhava. — Com quem?
— Dudu! — exclamou Mel.
— Que foi? Tá! Tá bom! Que quer que eu faça? Que ligue insinuando como ficar em cima da cadeira até nós voltarmos, ou quer que eu saia da festa e vá lá matar a barata?
— Que você vá lá matar a barata! — falou Patrícia, furiosa.
— Patrícia! Baratas não sangram — falou Melissa com voz estranha.
As duas se olharam.
— Ulalá! — Eduardo achou graça. — Do que tão falando?
— Precisamos ver o que tá acontecendo com a Maria.
— Por favor, Dudu — suplicou Melissa. — Ela falava sobre sangue.
— Sangue? Tá! Tá bom! Esperem aqui! — exclamou Eduardo ao correr atrás de Fernando. — Precisamos sair daqui… — falou para si mesmo. Encontrou Fernando na sala de música, ele
estava absorto como sempre. Não conversava com ninguém. — Vem Fê! — agarrou-o.
Fernando levou um banho da cerveja que segurava. A décima desde que chegara.
— Quê? Que foi? — falou meio aéreo, vendo-se todo molhado.
— Preciso de você... É... Pensando bem... Não! Preciso do seu carro.
— Malandrinho, hein?
— Como é que é?
— Tá aqui. Cuidado com os arranhões no couro do banco. Minha mãe me mata.
— Aranhões? Ah! Não... Quer dizer... Tá! Tá! Deixa pra lá! — e correu para encontrar Melissa e Patrícia sem cogitar o que ouviu. — Vamos! — exclamou ao encontrá-las novamente.
— É você quem vai dirigir?
— Ulalá! Quem trouxe vocês?
— Você bebeu.
— Eu não bebi.
— Ah! Claro! Depois de toda aquela conversa com aquela loira oxigenada na... — e Melissa parou no que Eduardo só arregalou os olhos para o assunto. — Tem razão! Você dirige!
Entraram no carro e partiram.
Os três chegaram ao portão norte do Condomínio Jardim das Flores e Eduardo recuou.
— Por que parou? — perguntou Patrícia.
— Tô pensando se... Ou se vou... Não... Acho que vou... — Eduardo olhou as duas se olhando. — Eu não bebi tá? — ele as viu voltarem a se olhar. — É que vou colocar o carro
pelo outro portão porque conheço o Zé, e ele tá acostumado a me deixar entrar sem perguntar — olhou as duas se olhando outra vez. — Ahhh! Não vou falar mais nada.
Elas também não perguntaram.
Como de costume, Zé estava na guarita. Sorriu para Eduardo e deixou-o entrar em outra garagem. O Condomínio possuía três blocos separados. O edifício dos cinco amigos era
o Bloco Jardim Azaleia com entrada e saída pelo portão norte, o Bloco Jardim Girassol tinha entrada e saída pelo portão sul, e o terceiro bloco era o Jardim Margarida com
entrada e saída pelo portão oeste, mas as garagens ficavam no mesmo pavimento, se misturando.
— Também nem vou perguntar o que tá acostumado a fazer nessas garagens — falou Melissa.
Foi a vez de Eduardo só a olhar pelo retrovisor. Agora estava tenso demais para brincar.
— Vamos até o jardim central e de lá pegamos o elevador do nosso bloco.
— Certo! — concordaram as duas.
— Droga! — exclamou Melissa.
— O que foi?
— Esqueci a Mari na festa.
— Depois a gente volta pra lá. Vamos ter que trazer o Fê também.
— Mas meus pais não podem nos ver.
— Ok! Tomaremos cuidado — e Eduardo e elas se dirigiram para o hall do elevador.
Fazia muito frio.
O jardim central ligava os três blocos, e as câmeras de circuito fechado giraram para o outro lado enquanto os três corriam desesperadamente para não serem pegos.
Alcançaram o salão de festas que ficava logo na entrada. Abriram à porta envidraçada e chegaram ao hall correndo para o elevador.
Fernando da Silva morava com o pai Marco da Silva e a mãe Adriana da Silva e a empregada Amália Alves no segundo andar. Marco era um eminente Adido Cultural africano, que
veio morar no Brasil e aqui fez família. Mariana Pii Jung e Melissa Pii Jung moravam com o pai Paulo Jung e a mãe Sandra Pii Jung no sétimo andar. Eduardo morava com o pai,
o Dr. João Vitor Ferreira, e a empregada Berenice de Oliva no décimo primeiro andar. Patrícia morava com o pai, o Senador Ângelo Antônio de Moura, e a mãe Cibele. Ainda moravam
com eles a empregada Maria dos santos e o motorista Juvenal Amorim na cobertura duplex, do Bloco Jardim Azaleia.
Os 23 andares a serem percorridos pelo elevador nunca demoraram tanto para serem atingidos. Quando chegou, Eduardo, na frente das duas, recuou quase as derrubando dentro do
elevador.
— O que foi? — falou Patrícia, receosa.
— Cepá! Não tenho certeza se devemos entrar.
— Por quê? — desesperou-se Patrícia.
Ela correu na frente dele e Eduardo a puxou pelos cabelos. Estava tão atordoado que usou mais força do que queria. Patrícia recuou na marra, com os cabelos ainda nas mãos
dele.
A porta estava aberta. A mala da mãe dela jogada logo na entrada, toda desfeita, com roupas espalhadas para todos os lados.
— Ladrão? — questionou Melissa, assustada.
— Não sei — respondeu Patrícia.
— Calma! Se não podemos avisar a portaria, vamos com calma — falou Eduardo. — Onde tá a escandalosa da empregada?
— Percebeu? — falou Melissa, baixinho.
— O quê? — perguntou Eduardo.
— O silêncio.
Os três se olharam.
Eduardo cerrou os olhos, abriu-os novamente, e criou coragem, empurrado por Melissa, que o cutucava.
Entraram e a cena não poderia ser mais assustadora. As paredes brancas estavam pintadas de vermelho. Pareciam ainda estar quentes.
Eduardo colocou sua mão e arregalou os olhos. Ficou boquiaberto. Já as meninas se calaram; parecia ser para sempre.
A sala era muito grande e bem decorada. Bem no meio, uma colossal escada de mármore de Carrara.
Eduardo sentiu o som sob seus pés. Olhou para baixo. O fino cristal guardado há séculos em caríssimas cristaleiras tinha virado pó aos seus passos; quadros arrancados da parede,
porcelanas chinesas quebradas, tapetes persas rasgados por fina lâmina.
Eduardo sentiu seu coração disparar. Olhou para Melissa e Patrícia confuso, mas subiu a escada sozinho. Dirigiu-se para o quarto da mãe de Patrícia. Foi automático. O sangue
fazia uma trilha até lá.
A porta havia sido arrombada e a chave ainda pendia na fechadura, pelo lado de dentro quando Eduardo entrou.
Os lençóis da cama estavam jogados a esmo e um corpo jazia no chão. Eduardo se aproximou e viu que cabelos loiros cobriam o rosto deformado. O sangue, enegrecido, não permitia
uma identificação precisa, mas um som estridente se fez por trás dele.
Eduardo se virou rapidamente.
O quarto grande e espaçoso estava pouco iluminado. Suas janelas, abertas, traziam o forte vento de fora para dentro. As cortinas de fino voile balançavam, e a luz da Lua incidia
seus poucos raios no quarto, confundindo seus contornos.
Eduardo se virou outra vez. Girou 360 graus dentro do grande e espaçoso quarto sentindo a presença de alguém. Apavorou-se com o corpo morto aos seus pés e a porta agora distante.
— Mel? — chamou. — Pode vir até aqui? — e um novo movimento. — Quem tá aí?! — gritou descontrolado.
Algo estalou e Eduardo olhou para o chão. Ia pegar a lâmina que se achava ao lado do corpo quando Melissa entrou naquele momento.
— Não faça isso!!! — gritou desesperada.
Eduardo parou e se voltou para ela. Ia colocar suas digitais na arma do crime.
“Tem alguém aqui”, falou como que para si mesmo.
— Minha nossa!!! — gritou Melissa ao ver a mulher morta caída no chão.
— Não!!! — desesperou-se Patrícia ainda na porta. — Mãezinha!!!
— Saiam daqui!!! — gritou Eduardo para elas. — Vão!!! — e olhou outra vez em volta. — Muito esperto. Muito mesmo — e recuou.
Não sabia o que fazia nem o que falava, mas enrolou a mão na manga do suéter que usava, olhou o quarto mais uma vez e fechou a porta trancando-a por fora. A fechadura, porém
estava muito danificada e Eduardo ficou na incerteza se havia conseguido trancar a porta.
Um grito mais dolorido ainda se fez.
— Paizinho!!!
Eduardo correu. Não conhecia o caminho, mas seguiu o estrondo que Patrícia fez, ao cair desmaiada no chão.
— Ai! Meu Deus, Dudu! Socorre a gente! — falava Melissa, nervosa, ao tentar segurar o corpo de Patrícia que havia caído em cima dela.
Eduardo se aproximou. Olhou para dentro do quarto onde só o Senador dormia, separado da esposa. Ficou paralisado pela cena. Seus olhos se arregalaram para o chão ensanguentado
e ameaçaram mesmo soltar das órbitas; o pai de Patrícia, o Senador Ângelo Antônio de Moura estava sem a têmpora, estourada pelo tiro certeiro da arma que ainda segurava nas
mãos e a metade de seus miolos se espalhara pelo chão.
Eduardo vomitou. Contorceu-se e tossiu perante tamanha atrocidade.
— Não... Não posso…
— Pelo amor de Deus, Dudu. Ajuda!
— Não, posso... Cadê meu pai? Vou chamar meu pai...
— Não!!! Não pode Dudu. Vai ter que explicar nossa presença aqui.
— Pai... Pai... Não posso — voltou a vomitar, caindo no carpete sujo de sangue, vendo tudo escurecer, desmaiando.
Melissa largou Patrícia no chão e correu.
— Meu Deus, Dudu!!! — chacoalhava-o. — Acorda!!! — gritava Melissa para o amigo desmaiado.
Capítulo 4
— Acorda! Vamos! — falava uma voz com acentuado sotaque português ao longe, muito longe para Eduardo que tinha viajado pelo seu inconsciente.
— Pai? — tentou enxergar na névoa que se transformara sua vista.
— O que estava fazendo longe da festa? Não consegue parar de se meter em encrencas? — questionou o Dr. João Vitor vendo que Eduardo enfim acordara. — Você me deixa ‘krililik’
da vida! — e deixou o filho ainda sob efeito do calmante que lhe havia injetado após ser chamado por Melissa pelo interfone.
Saiu do quarto para encontrar o Delegado na sala.
— Posso interrogá-lo agora, Doutor? — perguntou o homem que se identificou como Delegado José Liberato.
Era de grande estatura, barriga proeminente e cabelos ralos, sem, porém, serem brancos. Carregava uma arma e um semblante duro.
— Precisa mesmo? — disse o Dr. João Vitor, convidando-o a sentar-se.
— Seu filho foi encontrado na cena de um crime, Doutor. O assassino e pós-suicida é um Senador da República. E ainda pergunta?
— Ele para nós não era um Senador. Era só um vizinho. Pai da amiguinha de meu filho. E ele apenas havia dado uma carona de volta para elas.
— A menina a que se refere veio com uma amiga, que largou sua irmã mais nova na festa aos prantos.
— Percebe então que foi só uma carona? — tentou um sorriso que não convenceu muito.
— Carona? Seu filho dirigiu o carro emprestado de outro amigo. Nem ele nem o amigo tinham carteira e nem idade para dirigir.
— Já sei que vou responder por isto, Delegado — tentou Dr. João Vitor se acalmar. E nem sorrir iria mais adiantar. — Mas ainda não vejo a necessidade de meu filho ser interrogado.
Ele não bebeu, a Melissa me garantiu isso.
— Isso é bom saber… — sabendo que sabia não ser aquilo, não jovens como eram. —, mas a menina Melissa também falou que eles voltaram da festa mais cedo por causa da menina
Patrícia, que não estava se sentindo bem. Encontraram a porta aberta e na curiosidade própria da idade, entraram encontrando a mãe da menina Patrícia, morta, com uma adaga
ao lado. Adaga é uma arma tão incomum, não?
— O Senador era um colecionador famoso. Qualquer um que leu sobre ele nos jornais sabe de sua famosa coleção de armas raras.
O Delegado José Liberato apertou os lábios; estava pensando.
— O Senador matou a esposa e se suicidou depois com um tiro na cabeça, deixando uma carta onde se despedia da filha e explicava o crime. E ainda não quer que o interrogue?
— Não sei. Foi tudo tão repentino... E a pobre menina — falou o Dr. João Vitor, pai de Eduardo. — Ela está em estado de choque.
— Sinto informar que o apartamento ficará lacrado até terminar o inquérito ou até ordens contrárias do juiz. Pedi para uma policial feminina reunir algumas roupas da menina
Patrícia. Uma vez lacrado, qualquer abertura no apartamento será considerada invasão.
— Compreendo.
— O quarto da menina fica no fim do corredor do segundo andar, não?
— Não conheço a planta da cobertura. É diferente dos ‘apartamentos - tipo’.
— Tudo bem, isso é de menos. Todas as fotos já foram tiradas pela criminalística. Serão reveladas na delegacia. Agora vamos esperar o legista terminar as autópsias preliminares
para retirarmos os corpos. Sabe se a menina Patrícia tem parentes aqui em São Paulo?
— Parece que tem uma tia, irmã da mãe. Ela não vinha muito aqui. Não a conheço pessoalmente. Ouvi falar. Sabe como é um condomínio. Acho que ela mora no Espírito Santo, se
não me engano. O Senador vinha de uma família muito pequena, tinha muita idade, nada sei sobre a família dele — o médico sentou-se precisando realmente sentar-se.
— Já ouvi falar muito do Senador. Era um homem honesto, não? Digo um desses políticos acertados. Soube que defendia os portos brasileiros — e o Delegado olhou em volta. O
apartamento do Dr. João Vitor era um apartamento muito bem decorado. A falecida mãe de Eduardo era mulher de muito bom gosto. — Por que ele matou a empregada e o motorista?
— O que disse? — perguntou o Dr. João Vitor voltando à realidade.
— Perguntei... Deixa para lá. Estava só pensando alto — concluiu o Delegado José Liberato. — Vamos fazer o seguinte: Vocês não viajam sem me avisar e deixo o depoimento do
menino para depois de amanhã. Está bem assim?
— Sim. Obrigado, Delegado.
— Aproveite e vá também, Doutor. Vai responder por seu filho ter pegado o carro.
— Está bem — suspirou irritado ao olhar a porta do quarto do filho.
A polícia havia cercado o condomínio depois de o Dr. João Vitor ter telefonado para a delegacia. Achavam ter sido assalto seguido de morte. A bomba veio mesmo quando a polícia
chegou e encontrou a carta do Senador em cima da mesa.
O médico despediu-se do Delegado e voltou ao quarto de Eduardo que ainda tinha aspecto meio verde. Tinha vomitado mais duas vezes desde que foi encontrado pelo pai.
E Melissa não estava muito diferente. Tinha uma bolsa de gelo na cabeça. Parecia que ia explodir. Levou bronca do pai de Eduardo, do próprio pai, da mãe e da irmã Mariana
também. Ainda teve de contar ao pai de Fernando que ele havia ficado na festa, bêbado.
O edifício veio abaixo.
Já Patrícia havia sido levada para a casa da amiga Melissa. Dormia no quarto de Mariana, que chocada, chorava o tempo todo. Ninguém conseguiu esconder o fato dela.
Fernando também estava em estado de choque. Não conseguia falar. Era um rapaz de saúde delicada apesar da aparência abrutalhada e saudável. O coração de Fernando não pulsava
na mesma intensidade que a inesgotável energia da juventude.
Eduardo se levantou e foi até a cozinha arriscar-se a comer alguma coisa. Era hora do almoço, e sentiu o estômago pedindo ajuda. A empregada Berenice, Berê para os garotos,
estava com um lenço na mão. Era muito amiga da Maria, a empregada do Senador.
— Oi, Dudu. Ocê tá com fome? Quer que eu prepare um prato?
— Não sei Berê. Tenho medo de vomitar outra vez — sentou-se depois de ter vindo se arrastando pela sala. — Meu estômago sempre foi uma caca — olhou para a empregada. — Onde
tá meu pai?
— Seu pai saiu. Foi verificar a tal pressão da mãe do Fernando. A mulher tá tendo um ataque atrás do outro desde que soube que o filho emprestou o carro cavalo.
— Mustang.
— Esse aí.
— Perua idiota! — exclamou Eduardo para o lado da parede que olhava.
— O que você viu?
Eduardo ergueu a cabeça tão rápida que sentiu o repuxo.
— Como assim, Berê?
— O Delegado tava falando na cozinha, pro outro policial, que ocê delirava que falava sobre alguém no quarto.
Eduardo gelou. Sentiu o chão abrir aos seus pés. Arrepiou-se todo.
— Ahhh... Não me lembro de nada depois de ver o corpo do Senador... Ai! Que coisa horrível — e segurou a cabeça como se ela fosse cair.
— É, foi sim. Aquele político que todo mundo falava retalhou a cara da mulher, retalhou a pobre da Maria, retalhou aquele motorista metido e depois deu um tiro nos miolos.
Eduardo arregalou os olhos. Algo chacoalhou dentro dele.
— O que você di... disse? — gaguejou.
— Que o político retalhou a mulher... — e foi cortada pelo desespero de Eduardo.
— Não! Não, foi. Foi o final.
— Final? Ãh! Não entendi?
— Nada! Nada! Esquece! — e se levantou. — Preciso sair.
— Hei?! Aonde vai? Teu pai te proibiu de sair...
— Só vou à casa da Mel. Vê se ela tá bem — e saiu.
— Êita! Teu pai não vai gostar!!! — gritou Berenice para Eduardo, mas o elevador já havia partido.
Eduardo respirava descontrolado. Tinha o coração acelerado em descompasso e suas ideias se embaralhavam.
Tocou a campainha e foi a própria Sandra quem abriu a porta:
— Sim? Ah! É você!
— Posso falar com a Mel?
— Não sei se deveria deixar você entrar. Foi muita confusão ontem.
— Por favor, dona Sandra.
— Sabe que não gostei nada disso de pegarem carro, Eduardo. A gente não é rico Eduardo, passa muita dificuldade. Não somos ricos como vocês que fazem o que querem Eduardo.
Eduardo se encolheu. Era muito nome próprio para uma noite só.
— Por favor! É rapidinho.
— Rápido, então — apontou furiosa para o fim do corredor. — Ela está no quarto dela.
Eduardo agradeceu. Bateu na porta do quarto de Melissa.
— Mel? Posso entrar? — falou da porta.
— Dudu? — abriu a porta. — Que faz aqui? — Melissa não teve respostas. Eduardo entrou e fechou a porta com a chave. Melissa estranhou. — O que houve?
— Sua mãe tá uma fera com nós ‘ricos’.
— Nós quem? Ah... Ela falou da dificuldade de como chegaram até aqui, que o Mustang é caro, que se tivesse que pagar danos no...
— Ela tá certa, Mel — Eduardo cortou a fala de Melissa. — A gente meio que abusou da sorte.
— Meio? — sentou na beirada da cama. — A gente abusou.
— Tem uma coisa pior que isso — também se sentou na beirada da cama dela. — Ontem, quando tava no quarto da mãe da Pati... Olha, pode parecer maluquice, mas... Tinha alguém
lá dentro.
— O quê?! — berrou se erguendo.
— Não grita! Que mania! — também se levantou. — Por favor! Tô falando a verdade.
— Você é um palhaço Dudu, mas agora não é hora.
— Não! Falo a verdade. Juro!
— A polícia não viu ninguém. Eu não vi ninguém...
— Eu vi! — exclamou cortando a fala de Melissa outra vez. — E tenho provas.
— Como?
— Por que o pai da Pati mataria a mãe dela com uma adaga? A empregada? O motorista? Pra depois se matar com um tiro?
Melissa ia responder, mas não sabia o quê.
Ficou estática.
— Como sabe tudo isso?
— A Berê ouviu os policiais falando. Então por que não a matou com a arma?
— Por que não a matou com a arma?
— Porque foi outra pessoa.
— Como assim?
— Assim como, Mel? Você tá me confundindo — pulava descontrolado.
— Eu? Eu confundindo você? Você me diz que o Senador matou a mulher com uma adaga e se matou com um revolver... É isso?
— Isso mesmo.
— Vem aqui no banheiro, Dudu. A Mari tem a mania de ouvir minhas conversas. E destranca a porta, pelo amor de Deus, se não minha mãe vai pensar outra coisa, né?
— Tá bem — e se dirigiram para o banheiro.
— Você se apoia em muito pouco, Dudu. Acho que tá vendo muito filme.
— Acha que tô louco?
— Acho, não. Tenho certeza! Foi muita emoção pra você. Já comentou isso com seu pai?
— E falar pra ele que estivemos lá por outros motivos? Lembra? Fomos ver o porquê da empregada tava gritando — Eduardo viu Melissa pensando. — Por que a empregada telefonou
pra Pati, afinal? — Eduardo voltou a perguntar.
— Não sei. Ela só gritava ‘Patrícia!’, ‘Sangue!’, não sei ao certo.
— Então a mãe da Pati já tava morta?
— Eu já falei que não sei Dudu. Chegamos juntos, lembra?
— O pai da Pati ia voltar naquela noite. Vinha com a mulher de Brasília?
— É.
— E espera pra matá-la dentro da própria casa e ainda ‘liquida’, como diria meu pai, a empregada e o motorista?
— Acha que havia ladrão lá?
— Claro que havia. E foi ele quem matou todos.
— Temos que contar pra polícia.
— É. Acho que sim. Ou...
— Ou?
— Dar uma fuçada.
— Em quê?
— No crime, ora.
— Não acho certo.
— Vamos fazer isso mesmo — falou uma voz por trás, ainda parada no meio do quarto de Melissa.
— Pati? Você tava escutando?
— O necessário! Dudu... Quero pegar o desgraçado que matou meus pais.
— A polícia vai fazer isso. Era só o que faltava a gente se meter — Melissa tentava argumentar.
— Mas e se a polícia não conseguir provar que havia alguém lá? — dizia Eduardo.
— Então é porque não havia ninguém lá — disse Melissa, que balançava a cabeça nervosa.
— Mas eu vi — insistiu Eduardo.
— Então prove!
— Não posso. Nem sei como — deu de ombros.
— Olha Dudu, é legal o que você tá fazendo, mas pensando melhor, acho que a Mel tem razão. Temos que contar pra polícia e deixá-los trabalhar, se não o cara vai fugir.
Eduardo respirou profundamente:
— Ulalá! Vou levar uma bronca pior da que levei da tua mãe, mas vamos pegar o desgraçado, tá bem? Vou ligar pro meu pai e contar tudo — e saiu depois de beijar Patrícia e
Melissa na testa.
Eduardo voltou para sua casa já imaginado a cena.
Capítulo 5
Eduardo não sabia se a delegacia assustava mais do que a cena que presenciara na cobertura de Patrícia, na noite anterior. O Delegado José Liberato não poderia ter sido o
mais condescendente. Foi até gentil. Mas Eduardo estava apavorado com o barulho da delegacia. Nunca havia estado em uma antes. As ideias que fazia de um distrito policial
não iam além dos filmes de televisão.
O rapaz sentado ao seu lado era da sua idade. Parecia um office-boy daqueles que já tinha visto tantas vezes na Praça da Sé. Ele datilografava numa máquina de escrever, tudo
o que Eduardo falava e até o que o pai de Eduardo resmungava.
João Vitor Ferreira estava uma fera com o filho. Eduardo se limitava a olhá-lo por debaixo dos cílios. Nada no mundo o fazia encará-lo.
O Delegado José Liberato fez todas as perguntas possíveis e impossíveis. A única coisa a acrescentar era o verdadeiro motivo pelo qual saíram da festa, e a sensação de Eduardo
ter sido observado no escuro do quarto da mulher morta. Eduardo também contou sobre o celular de Patrícia e o escândalo da empregada Maria.
O Delegado José Liberato marcou uma ‘entrevista’, como preferiu chamar, com Melissa e Patrícia, apesar do estado delicado da menina.
Mas Eduardo nada soube sobre o conteúdo da carta do suicida. Ficou curioso, chegando mesmo a perguntar, mas seu pai lhe deu um pisão tão forte que teve que engolir o grito.
Engoliu também a curiosidade.
— Pronto! Aqui está seu depoimento — disse o Delegado estendendo o papel e a caneta para Eduardo. — Agora os dois assinam e estão livres.
— Livres... — escapou da boca de João Vitor.
Eduardo voltou a se encolher.
— O Doutor também terá que prestar depoimento. O Código de Trânsito Brasileiro prevê que ao condutor do veículo, cabe a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos
praticados na direção do veículo. No caso de filho menor, os pais são responsabilizados pela infração pagando a multa e sendo penalizado com perda de pontuação em sua Carteira
Nacional de Habilitação.
— Que inferno! — exclamou nervoso. — Sou um cardiologista. Como posso perder pontos assim?
— Isso não é problema nosso. Sinto muito, Doutor.
João Vitor não se conteve. Beliscou o braço de Eduardo, que outra vez engoliu o grito. Era um cara legal; sabia que tinha errado. Os dois se levantaram e saíram da delegacia.
— Vou colocar você num táxi e mandá-lo para casa. Não pare pelo caminho, entendeu?
— Sim! — foi só o que falou.
— Hoje, as aulas foram suspensas por causa do pai da Patrícia. Ele era muito amigo do diretor da escola. Mas amanhã você tem prova. Trate de esquecer toda essa baboseira e
estude, pelo amor de Deus. Se não vai passar a vida inteira no Ensino Fundamental — e fez chamou um carro pelo aplicativo.
Encaminhou Eduardo e tomou outro carro, agora para o consultório. Estava atrasado para uma cirurgia de emergência.
— Saco! — esbravejou Eduardo no carro.
O motorista o observou pelo retrovisor. Eduardo se encolheu. O carro parou na frente do condomínio. Já eram oito horas. A noite caíra rapidamente. O frio estava de lascar
naquele inverno paulistano.
— Boa noite, Eduardo! — exclamou o zelador Almeida.
— Oi! — respondeu se apertando ao casaco.
— Que frio, não?
— É! — e entrou.
O caminho até o Bloco Jardim Azaleia era distante. Quinze mil metros quadrados de jardins cuidadosamente trabalhados cercavam o condomínio, um dos mais belos do bairro.
As câmeras de circuito fechado giravam em busca de algo fora do comum, mas foi Eduardo quem encontrou algo. O som de uma pisada em falso o fez parar de andar. As nuvens, carregadas,
escondiam a luz da Lua. A noite estava escura. Eduardo se virou. Já havia percorrido um bom caminho desde a portaria quando teve a sensação de estar sendo seguido.
Balançou a cabeça.
“Estou ficando louco”, pensou.
E um novo estalar se fez.
— Quem tá aí?! — gritou Eduardo não esperando a resposta. Correu o máximo que pôde. Alguém corria também. — Sr. Almeida?! — gritava ele, correndo sem olhar para trás. — Socorro!!!
— berrava descontrolado, em pânico quando um zumbido se fez nos seus ouvidos. — O quê...? — se perguntou aproximando do jardim central que unia os três blocos.
A câmera parecia não o acompanhar. Seu Almeida, na portaria, nada viu nem ouviu e Eduardo pisou em algo novamente. Lembrou-se da cobertura de Patrícia, o quarto dela ficava
daquele lado.
Instintivamente olhou para cima. Viu as sacadas envidraçadas. Vinte e três andares de janelas, todas fechadas. Olhou para o chão e viu cacos de vidro.
“Vidros?”, estranhou quando novo zunido o obrigou virar-se rapidamente para trás.
Algo caiu ao seu lado, assustando-o. Olhou para o outro lado. Tentou localizar de onde viera o som em meio às luzes que pareciam estar perdendo luminosidade.
Estava tudo vazio; somente plantas, chafariz, escuridão.
Eduardo entrou em pânico outra vez. Correu e aproximou-se de seu bloco. Olhou para dentro do salão de festas. Batia com força nos vidros, mas não havia ninguém.
— Alguém aí? Por que estão trancadas? Oi? Quero entrar... — do lado de fora, o jardim, o chafariz e outro pequeno estalo debaixo dos pés de Eduardo que voltou a procurar o
que era. Seu tênis grudou em alguma coisa. Viu um reflexo de vidro no chão. — Vidros? — perguntou-se agora atônito. O chão estava cheio de pequenos cacos de vidro. — De onde?
— e Eduardo ouviu um novo zunido.
Mais forte, mais próximo, diferente.
Esse zunido o fez parar de vez. Caiu de joelhos na porta do salão de festas no meio do belo jardim que o rodeava; Eduardo, as plantas, o chafariz, e algo que o acertou na
perna esquerda.
Eduardo levantou-se por puro instinto de sobrevivência. Correu percebendo que não corria que sua perna esquerda estava ferida que algo o adormecia. Corria pelo jardim quando
caiu num arbusto. Rolou para o outro lado, ouviu passos, não sabiam onde Eduardo estava. Eduardo também não sabia. Ficava cada vez mais tonto, não se lembrando do que fazia
ali.
Olhou para si mesmo. Estava molhado, gelado. Suas mãos, ensanguentadas, mostravam que havia mais um corte em seu corpo.
Chacoalhou a cabeça e olhou para cima quando mais vidros despencaram e um novo dardo o acertou agora na perna direita.
Eduardo dessa vez caiu e não conseguiu se levantar. Tentou se arrastar, mas a cabeça girou. Sentiu ânsia. Vomitou até engasgar. Algo embrulhava seu estômago para presente
quando viu sua mão cheia de sangue.
“Pai?!”, mas o grito não saiu.
“Berê?!”, e suas forças se extinguiam.
Mais vidros caíam no chão.
— Outro dardo... — balbuciou ao desmaiar no impecável jardim de azaleias, girassóis e margaridas com as passadas pesadas do zelador que corria para socorrê-lo.
Capítulo 6
— Eduardo? Consegue me ouvir? — falava com calma, o Delegado José Liberato.
O menino abriu os olhos. Suspirou até.
A visão não poderia ser melhor. Viu Melissa chorando ao lado de sua cama.
— Ulalá! Morri? — brincou sarcástico.
— Ahhh! — exclamou Patrícia que estava logo atrás. — Ele já tá bom — e saiu do quarto.
— Oh! Dudu, como pode brincar com coisas tão sérias? — reclamou Melissa.
— Você está bem, meu filho? — falou o pai, Dr. João Vitor.
— Não sei pai... Ainda sinto sono, cãibra, dor — e passou a mão no ouvido. — Dói muito.
— Tem de ter dores mesmo. Dormiu quase dois dias — concluiu Berenice no outro lado da cama.
O quarto de Eduardo estava lotado. Além do Dr. João Vitor, de Melissa e Patrícia, e do Delegado, chegaram Fernando e Mariana, que vieram assim que souberam pela empregada,
que Eduardo havia começado a resmungar.
— Agora, acho que seria melhor todos saírem, para o Eduardo se recuperar mais rápido. O quarto está cheio e abafado e ela ainda está com um pequeno princípio de pneumonia.
— Pneumonia? Do que tá falando, pai?
— Você foi achado desmaiado no jardim pelo zelador. Estava todo molhado no meio das flores.
— Molhado? Flores? Ai... — se mexeu na cama. — Agora me lembro.
— Poderia conversar com seu filho, Doutor?
— Pode sim, Delegado.
Todos começaram a sair.
— Eu fico! — exclamou Melissa.
— Por favor, querida. Chamo você depois, está bem? — afirmou o pai de Eduardo.
— Tá bem — saiu desgostosa. — Chiii! Tem alguma coisa errada. Sei que tem — falou Melissa ao ouvido da irmã.
Mariana apenas a olhou. Não disse nada. A porta foi fechada.
Lá dentro, o Dr. João Vitor adiantou a conversa:
— Meu filho não estava drogado...
— Está bem! Está bem!
— Não, não está nada bem. Ontem o Senhor insinuou que ele havia se drogado. Fiz todos os exames. Era uma espécie de tranquilizante usado em animais. Gente de circo usa muito;
é suficiente para derrubar um elefante de uma tonelada por vinte e quatro horas.
— Não imagino por que alguém adormeceria seu filho no meio do jardim de seu edifício — insinuou o Delegado.
— Pois também não tenho a mínima ideia, Delegado. Poderia você, o profissional aqui, me responder?
— Não precisa se descontrolar Doutor. Não apresentei queixa-crime contra seu filho. Só quero entender.
— Posso falar? — perguntou Eduardo ao conseguir uma chance. Os dois o olharam. — Foi ele... O ladrão.
— O quê? — perguntaram em uníssono.
— Só ele pra querer me matar. Isso prova que existia alguém no quarto da morta.
— Está escondendo mais alguma coisa, menino?
— Não! Claro que não! Juro pai — olho um. —, juro Delegado — olhou outro.
João Vitor andou para um lado, o Delegado para o outro. Os dois se encontraram no meio do quarto.
— Não compreendo a entrada deste ladrão na história. O Senador chegou a São Paulo e quebrou o pau com a mulher. A empregada se intrometeu e foi morta. O motorista deve ter
entrado no rolo por encobrir as saídas da esposa traidora, e foi morto. O Senador matou a esposa e depois se matou. Deixou uma carta em que explicava tudo. O caso do Senador
foi encaminhado ao Ministério Público, que designou um juiz. As provas foram aceitas e o caso encerrado. Não conseguimos provar que a casa foi assaltada.
— Mas e as roupas jogadas? — perguntou Eduardo.
— Prova de que houve discussão. É o que eu disse: os empregados entraram no rolo e foram mortos.
— Incrível! Não consigo ver aquele homem tão calmo e cordial como um assassino dotado de tanta frieza — o Dr. João Vitor ainda tentava deglutir a coisa.
— É assim mesmo que são os assassinos, Doutor — disse o Delegado olhando em volta. — Bom, o caso foi encerrado por falta de provas contrárias.
— Mas meu filho sofreu um atentado, não?
— Não tem cabimento um ladrão naquela hora, Doutor.
— Ele podia estar assaltando a casa e se viu no meio da cena quando foi interrompido. Acabou não conseguindo fugir.
— É! É viável! — coçou o queixo. — Bem... Vamos colocar um carro com dois policiais em cada portão. São três portões, não são?
— Sim. São três entradas independentes — confirmou o Dr. João Vitor. — Isso já foi levado em questão nas reuniões de condomínio, mas ninguém toma uma decisão quanto ao controle.
Cada bloco de apartamentos tem sua entrada equipada com uma câmera de circuito fechado, que só permite ver quem entra ou sai daquele bloco.
Eduardo se encolheu. Ficou com medo de saberem que entrava e saía com o carro dos amigos e até do próprio pai pelo portão norte, para não ser visto pelas câmeras do portão
sul.
— Vamos iniciar outra investigação para não desvirtuar o caso do Senador. Não acredito mesmo numa ligação. Até mais! — e se dirigiu para a porta do quarto.
— Acompanho-o Delegado — disse o pai de Eduardo.
— Quanto tempo ainda vou ficar de cama? — falou Eduardo com o pouco de voz que saía da garganta.
— O Dr. Alfredo acha melhor você se restabelecer por mais um dia. Você já perdeu mesmo a prova de matemática.
— Ulalá! — exclamou Eduardo. O pai o encarou. — Desculpe pai. Foi mal — sorriu feliz.
— Não fique tão feliz assim, Eduardo. Vai repor a prova quando melhorar.
Eduardo sorriu morno. Esperou o pai e o Delegado saírem e se arriscou a ligar na casa de Melissa, já que imaginava que o celular de ambas havia sido confiscado pela mãe.
— Alô! — atendeu dona Sandra.
— Por favor, a Melissa — tentou disfarçar.
— Dudu? É você?
— Não! — disfarçou mais uma vez. — É o professor de música da Patrícia.
— Patrícia tem professor de música?
Eduardo fez uma careta:
— Sim, Senhora.
— Está bem. Vou chamá-la.
— Quem é mãe? — perguntou Melissa que vinha de encontro com a mãe. Estranhou o telefonema. — Alô? Quem é?
— Eu, Dudu, mas disfarça.
— Oh! Obrigada, então. Claro, eu falo pra ela.
— Preciso falar com você antes que morra de vez.
— Cruzes! Ah... Claro, o Senhor tá sendo muito gentil. Passarei seu recado. Claro! Claro!
— Para com essa baboseira, Melissa, que eu não consigo me lembrar do que vou falar. Que saco!
— Pediu pra dis... Oh! Claro, claro — dizia, olhando para a mãe que não desgrudava dela.
Melissa tentava a todo custo disfarçar.
— Cê tá sem cel?
— Sim.
— Droga! Então vai por aqui mesmo.
— Sim… — Melissa ainda sorria para a mãe.
— O Delegado José Liberato falou que não podia ter ninguém lá dentro na hora da morte da mãe da Pati, mas eu vi. E ele me viu e tentou me matar.
— Cruzes!
— Cuidado, Melissa. Disfarça! Que saco! Presta atenção. Meu pai falou que o cara podia estar assaltando e foi envolvido no crime sem querer. Tem duas coisas que não entendo...
Uma era que a Maria gritava sobre sangue pra Pati, e o Delegado falou que a empregada morreu primeiro... Sabe quem morreu primeiro? — perguntou franzindo a testa.
— Chiii! Como vou saber?! — quase gritou.
— É! Tem razão! Outra coisa; eu não vi aquela carta. Tô com uma impressão... Cepá.
— E agora?
— Agora que tive pensando... — coçou a cabeça.
— Você? Pensando? — riu. Olhou para trás. Viu o olhar de sua mãe e engoliu o sorriso. — O professor tem toda razão.
— Vou matar você quando te vir. Vou sim, viu Mel?
— O que quer afinal? — sussurrou.
— Você sabe o número do telefone daquele cara que namorou a Pati?
— Qual deles?
— Essa é boa. Um entre os cem — falou irritado. — Aquele Mel. Que faz direito e é filho de um grandão no Judiciário.
— O Carlos Alberto? Filho do desembargador Pereira?
— Eu não sei o nome dele. Só quero saber se é ele. Lembra? A Pati falou que os pais eram amigos... Será esse?
— E como vou saber? Tá! Vou perguntar... Tá! — e Melissa desligou.
— Era o Dudu?
— Não, né mãe? Se fosse ele ligava no meu cel.
— Seu celular está comigo.
— Pra cê vê...
Sandra se virou para ir embora.
— Era o professor de música da Pati — correu Melissa a emendar. — Ele tá tão chateado, coitado.
— Mais um namorado? — parou de andar.
— Chiii mãe, que coisa feia.
— A sua amiga já namorou meia cidade, e eu sou a coisa feia?
— A Pati é carente, mãe. Só isso.
— Sem-vergonhice mudou de nome?
— Chiii! — e se foi.
O juiz encarregado iria decidir o destino de Patrícia que tomava calmante. Nem a polícia, nem os amigos sabiam onde estava a tia dela. Patrícia estava dormindo no quarto de
Mariana enquanto Mariana estava no quarto de Melissa.
As irmãs Jung dormiam juntas desde a morte do pai de Patrícia.
E Melissa não entendia o que Patrícia fazia para ocupar o tempo. Não lia, não assistia televisão, não ia à escola. Não queria mais se arrumar, nem tomar banho. Vivia abandonada
arrastando-se pela casa da amiga. Também não queria de jeito nenhum falar sobre a tia. O pai de Melissa, Paulo Jung, insistiu com ela. Estava preocupado com a menina, órfã.
Mas nada a fazia falar.
Melissa aproveitou o silêncio no apartamento. Entrou e encarou Mariana.
— O Dudu tá com problemas. Vou te contar tudo e você vai me provar que cresceu Ok?
Mariana levou um susto.
Ficou mais assustada depois que ouviu o relato da irmã.
Capítulo 7
O Sol mal raiou e a polícia agira como o esperado. Colocou, discretamente, na frente de cada portão do condomínio, um carro com dois homens vestindo roupas civis. Eduardo
não foi à aula naquele dia. Patrícia também não.
Na bem a verdade, Patrícia não tinha mais ânimo para nada. Seu caso havia sido encaminhado para o Juizado de Menores, e a juíza responsável designou que, na falta da tia que
não conseguia ser localizada, ou ainda na falta de qualquer parente vivo, com condições para criá-la, a Corregedoria do Menor tomaria sua tutela e elegeria uma tutora fixa.
Patrícia corria o risco de estudar em um colégio interno.
Aliás, era o que sua mãe vinha tentando fazer. Era do gosto de Cibele Garcia de Moura que sua filha única estudasse na Suíça, numa renomada escola para moças, e de lá saísse
com a Faculdade de Administração, concluída.
Depois de muito custo, Melissa conseguiu o nome do ex-namorado da amiga. Patrícia não queria se lembrar dele e nem que seus pais haviam sido grandes amigos no passado. Melissa,
por sua vez, queria muito mais. Pediu uma ficha completa. Patrícia andava tão desligada da realidade que, no final das contas, acabou por responder sem contestar.
Fernando, Mariana e Melissa foram para a escola que ficava a dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Dava para ir a pé e numa corrida, chegava-se em lá em cinco
minutos. As aulas se desenvolviam, normalmente; era período de provas bimestrais. Mas Mariana estava avisada, iria mentir sobre uma repentina gripe de Melissa.
A assinatura da mãe, facilmente copiada pelas duas, foi arranjada em um bilhete falso. O diretor da escola estava tão consternado com os últimos acontecimentos que não ligou
para confirmar. Acreditou ter sido uma fraqueza de saúde da menina depois daquela noite fatídica.
Melissa estava livre para agir.
O portão da escola fechou e Melissa estava fora. Ela olhou para os lados. Tentou ver se a mãe não estava mais por lá, pois costumava parar para conversar com as amigas. Mas
a rua estava deserta. Só os carros estacionados e um homem ao lado de um carro branco, na última vaga do estacionamento, em frente ao portão da Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
Melissa respirou, profundamente, e tomou coragem. Seguiu à risca o pedido de Eduardo. Foi atrás do ex-namorado de Patrícia; um deles, como dizia sua mãe.
Carlos Alberto era um jovem de cabelos avermelhados e muitas sardas no rosto. Era o terceiro filho do respeitado desembargador Sílvio Pereira. Estudava direito no Largo São
Francisco e fazia esportes no campus da USP. Reconheceu Melissa quando esta se aproximou.
— Oi! Te conheço, não?
— Sim! Eu sou Melissa, amiga da Patrícia.
— Tudo bem? Como vai a Pati? Eu li nos jornais o que aconteceu. Puxa! Fiquei sem jeito de telefonar pra ela.
— Tudo bem! Tá todo mundo sentindo isso.
— Você entrou pra universidade? — olhou Carlos Alberto em volta, meio na dúvida.
— Não... Na verdade vim falar com você. Eu sabia que costumava vir ao campus.
— Olha, é muito chato, meu, mas não vou falar com a Pati, se é isso. Sabe, a gente terminou tudo muito mal. Ela ficou com ódio de mim por causa...
— É! — Melissa cortou sua fala. — Foi duro pra ela que soube que você tava namorando duas ao mesmo tempo... Mas não é isso que eu quero.
— Não é?
— Sabe, é até uma coisa meio estranha. Tenho um amigo que tá com problemas, ele não quer e nem pode pagar um advogado. Queria falar com você. Pode ser?
— Sei não, meu! Tô no sexto semestre. Não posso falar muita coisa. Sabe, é meio complicado — sorriu; era alto e forte, do tipo que chama atenção.
— Qualquer coisa será bem-vinda — sorriu Melissa.
— Tudo bem. Quer que eu ligue quando?
— Agora! — e esticou o celular emprestado de uma amiga. — Dá pra ser?
O estudante de direito sorriu assustado. Melissa ligou o número desejado e entregou o aparelho para o futuro advogado.
O celular de Eduardo tocou.
— Alô? Oi! Você é o Carlos Alberto? Ulalá! A Mel é terrível mesmo. Ela te encontrou.
— É, parece que sim. O quer de mim?
— Queria penetrar no sistema de computadores do Judiciário.
O cara ficou vermelho. Foi à impressão que Melissa teve.
— Quer o quê?
— Preciso ler algo sobre um processo antes que ele suma de vez em Brasília.
— Brasília? Quer dizer... Brasília? A federal?
— Temos outra?
— Cê tá me gozando, meu?
— Pareço estar?
— Tem algo haver com a Pati? — arqueou as sobrancelhas.
— E se tiver?
Carlos Alberto demorou a responder.
— Não sei como penetrar...
— Só tem que estar lá na hora certa, e eu aqui, na mesma hora. Entendeu, não?
— Meu! Tu é hacker?
— Não. Ainda não. Mas tô ficando bom.
— Meu! Isso é ilegal. Meu pai me mata se sabe. Sei não! Acho que nem pela Pati...
— Não vai fazer nada. É só abrir o canal pra eu entrar. E isso só pode ser feito quando alguém abre o arquivo certo, entendeu? Com a senha do teu pai, entendeu? Que eu sei
que dá aula na USP; entendeu?
— Entendi? Meu… Como é? Tenho que tá mexendo no computador da facul com a senha de professor do meu pai, pra você abrir um canal no judiciário? É isso?
— É! Você entendeu! Uma vez a senha do banco de dados do Judiciário aberta você vai sair do modo seguro, pra desligar os firewalls e os antivírus da USP, e aceitar instalar
o B.O., um programa Trojan Horse que eu vou te mandar. Então eu penetro nos arquivos pela porta aberta do teu computador. Rápido! Ninguém vê! Não vou deixar rastro. Juro que
é só isso que vou fazer.
— Não sei, meu! Preciso pensar. Um ‘Cavalo de Tróia’ enviado pela senha do meu...
— Tem três segundos.
— O quê?
— Esgotou o tempo. Você deve isso a Pati que eu sei.
— Você sabe? Cê tá brincando? Isso é piada?
— Piada vai achar teu pai quando eu contar o que você fazia com certas fotos da Pati na Net.
— Tá bem! Tá bem! — ficou furioso. — Não vou querer saber como você sabe, né?
— Não vai! — Eduardo também não estava a fim de contar o que a Patrícia contou para Fernando, que contou a ele. Uma rede de informações para lá de complicada. — Fica frio!
Não vou apagar arquivo algum. Nem copiá-lo. Só vou ler. Isso se chama hackear.
— Tá bom. Pela Pati... — olhou em volta, nervoso —, que tá sofrendo — e Carlos Alberto se afastou de Melissa. — Sei lá onde vai parar isso. Pô, meu, ninguém mais saberá, Ok?
— Ok!
— Esta noite vou fazer pesquisa e... — e olhou para os lados, se afastando cada vez mais.
O pátio do campus da Universidade de São Paulo estava lotado, mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Melissa olhava para todos os lados. Estava tensa e apavorada com
as ideias de Eduardo. Tentava ver um rosto conhecido. Alguns carros parados em cima da grama. Umas poucas árvores para fazer sombra e alguns alunos em volta, só observando.
O tal Carlos Alberto desligou o celular. Passou a mão pelo cabelo avermelhado agora molhado de suor, e entregou o aparelho para Melissa se despedindo sem nada comentar. Melissa
ficou sem ouvir o resto da conversa. Ele havia se afastado demais no final.
Melissa guardou o celular na bolsa e correu. Tinha de esperar Mariana na saída da escola e juntas, irem para o portão para esperar a carona da mãe.
Os alunos já estavam saindo quando o ônibus que trouxe Melissa parou e ela saltou um ponto antes da escola. Estava tudo como havia deixado antes. Até mesmo o homem no carro
branco. Quando a mãe aportou, Melissa se juntou a Mariana.
Fernando levou um susto.
— Não tava doente?
— Melhorou — sacaneou Mariana.
— Cala boca, Mari. E você, vê se não dá outro fora, tá, Fê? — pediu Melissa.
— Eu? Fora? Vocês é que me colocaram no rolo. Minha mãe tá furiosa comigo até agora. Não me deixa tirar o carro da garagem e sou obrigado a pegar carona com sua mãe, que me
olha atravessado.
— O olhar dela é assim mesmo, bobinho. Mamãe é estrábica — riu Mariana.
Melissa ia rir, mas se controlou. Fernando nem ligou. Não queria andar a pé.
Os três entraram no carro e partiram para o Condomínio Jardim das Flores.
Capítulo 8
Eduardo deu a última mordida no hambúrguer e fez uma cara de satisfação. Seu pai estava de plantão no hospital e Berenice via novelas enquanto ele navegava pela Internet.
— Sites preferidos... Uhm! Deixe me ver. Últimas risadas do YouTube — músicas e vídeos eram armazenadas enquanto ele ria com a última do bebe engraçadinho ou o tombo fenomenal,
ou ainda os memes de políticos.
E o computador parecia pular ao som do bom e velho Massive Attack enquanto Eduardo olhava o relógio, enquanto cantava junto ao clipe que assistia; estava em seu mundo, os
computadores.
Eduardo perdera a mãe muito cedo. Seu pai se preocupava com sua estabilidade emocional. Criou-o mais como um pai amigo do que como um pai severo. Eduardo adorava o pai, com
o qual tinha toda liberdade do mundo para conversar, pegar a moto de vez em quando, e é claro, falar de garotas. Mas o Dr. João Vitor não conseguia fazer Eduardo estudar.
Isso era pedir demais. Eduardo já estava com dezesseis anos, o mais velho da turma e o mais atrasado, com risco de não mais acompanhar os amigos no Monsenhor Hipólito Ibi
já que fazia o nono ano pela terceira vez. Então quando o filho se interessou pelos computadores aos oito anos, o Dr. João Vitor viu uma possibilidade de alcançá-lo, perdido
no tempo e nos fundamentais da vida.
Incentivou-o a fazer todos os cursos, mas não precisou.
Eduardo era um autodidata.
Ele olhou mais uma vez a hora, tinha marcado com Carlos Alberto às nove horas em ponto. As nove, o futuro advogado acessaria os computadores do Judiciário, uma rede interna
chamada Intranet.
Carlos Alberto então abriu os arquivos enviados por Eduardo, um Trojan horse, um Cavalo de Tróia que permitia total controle do computador onde estivesse instalado. Eduardo
penetrou os arquivos e Carlos Alberto perdeu o controle total do computador da USP para o programa de invasão hacker.
O programa rastreava informações, palavras digitadas pelo computador. As informações confidenciais iam e vinham. Trafegavam pela rede sem que o firewall as brecasse.
Eduardo procurou pela data do assassinato; a hora, as conclusões finais e achou o que queria: o arquivamento do processo feito pelo Juiz de Alçada. Era tudo o que Eduardo
queria ver.
Já Carlos Alberto olhou para os lados. A biblioteca da USP, onde estavam instalados os computadores, estava quase vazia se não por meia dúzia de ‘gatos pingados’, que estudavam
e um ou dois computadores funcionando. Carlos Alberto ficou à espreita, à espera de não ser interrompido.
Ficou lá a ler as mesmas informações.
Eduardo também lia com cuidado. Estranhou o fato de o quarto de Patrícia não ter sido mencionado no inquérito. Entre outras coisas que Eduardo já sabia, estava a carta.
Leu em voz alta, para si mesmo:
— ‘Eu, Senador Blá blá blá, de livre e plena vontade, me mato. Deixo esta carta para minha querida filha, Patrícia, luz da minha existência. Isto é uma despedida. Não fui
capaz de enfrentar o problema. Você precisava saber que sua mãe me traía… Blá blá blá, é o fim. Pequena criatura, ser do meu ser, eu… Blá blá blá Seu pai!’ — Eduardo parou
de ler. — Cruzes! Que coisa macabra! — Eduardo leu mais algumas linhas. O processo descrevia as autópsias; falava que a empregada fora a primeira a morrer. Seguida pelo motorista
e pela mãe de Patrícia. — Como ela pode ter morrido primeiro? De que sangue Maria falava, afinal? — leu mais e mais alguma coisa. — Também não falam que tipo sanguíneo estava
nas paredes... Estranho! — e Eduardo estranhou outro fato. Ninguém tinha averiguado a autenticidade da letra do Senador. — Cruzes! Concordaram com tudo? — fez um bico. — Ok!
Já vi o que queria — e iniciou o processo para liberar a página que estava sob seu controle.
Fechou a conexão com seu provedor de acesso e a conexão não fechou. O computador não respondeu e Eduardo insistiu.
‘FECHAR CONEXÃO’; clicou com o mouse.
O computador não obedeceu. Ainda na tela, o Trojan horse que havia instalado no Judiciário.
— Meu pai do céu! — exclamou nervoso ao ver que seu computador ainda estava on-line, e arrancou o fio de conexão com o modem fazendo a rede cair.
Tentou fechar o programa outra vez.
“COMPUTADOR SEM RESPOSTA”; avisava a tela.
Eduardo chacoalhou a cabeça. Tentou entender o que acontecia. Reconectou o modem e conectou-se ao provedor outra vez. Entrou na Internet, tentando voltar ao Judiciário e apagar
do banco de dados o Trojan Horse. Chamou o site e percebeu que seu programa hacker estava on-line. Eduardo não acreditou no que via, só ele podia comandar tal invasão.
Ou seria um hacker invadindo outro hacker durante o ataque.
— Coisa de cinema… — escapou dele teclando desesperado sem que o computador respondesse. Tentou o mouse, mas também não funcionava. A gaveta do CD-ROM abria e fechava e seu
HD consumia memória; era alguém invadindo seu computador. Sua tela ficou preta. — Ai!!! — gritou. — Mas que saco! Vírus! — arrancou o fio de conexão com o modem outra vez
e tentou resetar a máquina. A tela pirou. Cores foram manchadas, arquivos ficaram em crise, páginas apresentadas pela metade. Eduardo acionou o programa antivírus. Foi rápido.
O Trojan Horse, um tipo de vírus, foi brecado. — Mas que saco! Eu instalo um programa hacker e eles me devolvem o mesmo vírus? Não, não pode ser... — o computador avisou que
o vírus destrutivo foi deletado da máquina. — Cepá! — suspirou. — O que foi isso afinal?
Eduardo entrou em seus próprios arquivos. Deletou de sua memória de arquivamento, o arquivo infectado. Entrou de novo na Internet. Foi até a página do Judiciário.
‘ERRO 404’, o navegador avisou.
‘SITE NÃO ENCONTRADO’.
Eduardo entrou em pânico. Levantou as grossas e negras sobrancelhas e seus olhos castanhos brilharam.
— Fui descoberto! — falou para si mesmo.
Saiu do quarto voando. Atravessou todo o apartamento. Abriu a porta da cozinha e se lançou escada abaixo. Desceu todos os degraus que podia. Estancou na porta da cozinha de
Melissa tocando a campainha desesperadamente.
Sandra deu um pulo do sofá.
— Calma! — pedia ela ao chegar à cozinha após ouvir a campainha disparar. — O que foi...? Ah! É você?
— Pelo meu pai do céu! — e se jogou de joelhos ao chão. — Me deixa falar com a Mel?
Sandra piscou. Ficou sem entender a gracinha de Eduardo.
— Não temos mais telefone ‘professor de musica’?
— Temos, não, quer dizer, tá com problemas. Por favor! Por favor! Por favor! Deixa vê-la — se arrastava de joelhos.
— Eduardo? — fez uma careta. — Ah! Está bem. Mas vou contar para seu pai que não está no seu apartamento após uma recuperação deli…
— Tá! Tá! Tá! — Eduardo não esperou o resto da bronca.
Até quis ter dito ‘Blá! Blá! Blá!’, mas correu para dentro da casa e invadiu o quarto de Melissa.
— Ahhh... — Mariana fez uma espécie de gemido; estava de camisola. Eduardo paralisou. — Ahhh?! — agora gritou mais alto e Eduardo recuou rapidamente.
Fechou a porta.
— Desculpa! — exclamou do lado de fora em choque. Não sabia que Mariana era tão bonita. Bateu na porta outra vez. Estava nervoso que nem viu Melissa atrás dele, de baby-doll.
— Ai! Que susto, Mel... — e paralisou outra vez.
‘Perder a voz’ teria explicado melhor o que aconteceu. Não sabia que as irmãs Jung eram tão bonitas.
Mas dessa vez Eduardo fez mais que ficar paralisado e estudou Melissa. Quase se perdeu em tantas curvas. Voltou estático, nunca tinha visto Melissa sem roupas que lembrassem
algo grande, comprido e preto.
E Melissa usava uma pequena camisola rosa e tinha lindos laços na cabeça.
— Perdeu alguma coisa? — falou irritada.
— Perdi? — respondeu confuso com uma pergunta. — Ulalá! — olhou-a de cima a baixo. — Acho que perdi tempo.
— Do que você tá falando?
Eduardo acordou. Conseguiu nem soube como.
— Eu... — balbuciou. — Vim te contar... — e a puxou para longe, quase no fim do corredor, em frente à porta do quarto dos pais de Melissa. —, fui interceptado.
— Como assim?
— Alguém entrou no meu computador na mesma hora que eu tava lendo a página do Judiciário.
— Como assim?
— Assim, como, Mel? Não tá entendendo? Alguém tava lá, lia o que eu lia, não sei por quê.
— Como alguém podia saber?
— Não sei, cepá, usando cookie, spyware ou até adware pra gravar dados. Isso se não fizeram phishing...
— Chega Dudu! — cortou-o. — Como assim ‘dados’?
— O cookie ou qualquer outro programa adware, spyware, espião entende? Ele pode gravar o IP do meu provedor, minhas preferências de sites, e até senhas. Depois alguns sites
inescrupulosos vendem no mercado essas informações.
— Acha que tavam te vigiando pra vender informações?
— Não sei, não sei — Eduardo divagava. — Devia ter navegado com o anonymizer.
— O anony... o quê? Cruzes! Como você fala complicado, Dudu — sorriu.
— O anonymizer é um aplicativo que faz com você navegue anônimo e ele ‘maqueia’ teu IP — Eduardo suspirou. — Falou pra alguém o que ia fazer? Alguém te ouviu quando tava com
o Carlos Alberto?
— Alguém me seguia, Dudu — apavorou-se Mel. — Um carro branco... Tinha um carro branco no portão da escola quando eu cheguei de manhã, e tenho certeza que era o mesmo carro
que estava em frente da USP. Claro que um carro branco é sempre igual, e tem a tal coincidência, mas... E se não for?
— Tô com medo, Mel. Muito mesmo.
— Boa noite, Herr Eduardo — falou uma voz grossa por trás dos dois.
Eduardo engoliu a fala, Melissa se encolheu para dentro do curto baby-doll e o grande, e loiro, e robusto, e alemão, pai de Melissa e Mariana não estava com cara de bons amigos.
— Oi! Pai! O Dudu veio mostrar que melhorou — apontou.
— É, deu para ver que ele está mesmo muuuito, melhor.
— Eu acho que tá na hora de ir embora. Boa noite, seu Paulo — falou Eduardo sentindo seu estômago embrulhar perante o grande pai das belas mestiças Jung.
— Boa noite — concordou o Engenheiro Paulo Jung.
— Amanhã te vejo na escola?
— Tá bem — falou Melissa, sem graça.
— Até! — insistiu o pai, num aceno.
Eduardo se foi. Agora, com a certeza de que tinha entrado numa enrascada bem pior. Seria escalpelado pelo pai se contasse para ele; seria preso se contasse para o Delegado;
seria morto se não contasse para alguém.
Capítulo 9
— ‘Estranho, é a morte’, falava o poeta. Como se morrêssemos todos os dias — explicava a professora de literatura. — Já pensaram nisso? A morte? A perda? O fim de algo?
A classe estava estática. Mergulhada em pensamentos. Os mais bizarros possíveis.
Melissa pensou duas vezes naquelas palavras. Lembrou-se de Patrícia em sua casa, entupida de calmantes, sem pai nem mãe. Teve pena. Não queria sentir isso. Achava pena um
sentimento muito complicado, nem sempre correto.
— Estranha a morte, o assassino, a perda… — Melissa quase se esquecia de que estava em aula. Nem tudo que era falado assimilava.
Fernando estava mais a frente. Era alto, ele a encobria sempre.
Melissa viu Eduardo no pequeno vidro da porta. Ele a observava, melhor. Era verdade que algo acontecera com ele em relação à Melissa, talvez em relação às duas irmãs. E nunca
havia prestado muito atenção às duas. Mariana era loira de olhos azuis com olhos levemente puxados o que a fazia uma cópia do grande e loiro alemão Paulo. Já Melissa havia
puxado a mãe e a sua família oriental; tinha longos e lisos cabelos negros que enegrecia mais todo mês com xampus tonalizantes, e que ficavam mais escuros com as roupas ‘dark’
que ela usava.
Eduardo até achava Mariana mais bonita, mais feminina, mas Melissa tinha mexido com ele. Sentiu isso como nunca havia sentido antes.
Melissa olhou para o vidro mais uma vez e viu que Eduardo ainda olhava para ela. Levantou a mão, chamando atenção. Demorou em que a professora a visse.
— Posso sair?
— Rápido Melissa, por favor.
— Sim — e saiu. — Oi, Dudu. Não o vi na entrada. Chegou atrasado? — Eduardo não respondia. — O que foi? — insistia ela.
— Por que fez aquilo ontem? — falou confuso, aproximando-se de Melissa.
— Aquilo o quê? — sorriu interessada.
— Se vestiu... diferente.
— Fala do baby-doll? Não tem irmãs, né?
— Não — Eduardo não conseguia entender o magnetismo exercido pela amiga. Melissa começou a falar da aula. Contava sobre a professora de literatura e a dissertação sobre a
morte. Eduardo não ouvia nada se aproximando cada vez mais dela, embarcando no movimento dos lábios de Melissa até tocá-los. Ela arregalou os olhos. Eduardo também. Sentiu
seus lábios presos aos dela e recuou. — Eu…
— Você?
— Des... desculpa. Não sei o que me deu — e Eduardo correu.
Melissa achou que ia desmaiar. Desejou, até. Sorriu satisfeita logo após. O sinal tocou. Os corredores começaram a ser invadidos.
Melissa não conseguia se mover.
— Que delícia — foi só o que falou.
— O que foi tão gostoso? — falou Mariana ao se aproximar.
Fernando chegou também.
— Nada! Tava chupando uma bala.
— Tava roendo unhas, que eu sei.
— Mari... — Melissa girou os olhos. —, você não se cansa?
— Do quê? — perguntou irritada.
— De ser pentelha.
— Pentelha agora, né? Mas ontem bem que te ajudei...
Mas Melissa não ficou lá por muito tempo. Foi atrás de Eduardo, encontrando-o na classe dele.
Ele olhava para o caderno vazio quando foi interrompido.
— O que quis dizer com a tal página ontem?
Eduardo teve um sobressalto. Percebeu que Melissa não tinha comentado nada. Agradeceu calado o fora e o beijo que dera.
— Eu não tenho certeza, sabe... Mas cepá, acho que alguém entrou naquele computador.
— Como assim?
Eduardo suspirou. Sentia-se cansado.
— Eu sei que você não manja nada de computadores, mas esse cara é muito bom. Ele tava lendo tudo o que eu lia, sabia onde eu tava, sabia quem eu era. Não acredito que a página
do Judiciário, tivesse algum mecanismo que explodisse um vírus na hora do acesso, nem que instalasse Trojans nos computadores que rodam na sua Intranet. Mesmo que os dados
fossem tão secretos, sei que é possível... Mas entende? Não acredito que eles fizessem essa caca com os caras.
— Entendi foi nada. Se não foi a própria página, quem?
— Não sei. Pode ser o ladrão...
— Não vai querer que eu acredite que um ladrãozinho entenda de computadores assim, né?
— É esse o ponto. Muito esperto, muito mesmo.
— Vamos comer alguma coisa na lanchonete?
— Não tô com fome. Eu vou pra praia amanhã. Não venho dormindo direito. Meu pai falou que essa semana que passou foi muito desgastante, e que merecemos um final de semana
sossegado.
— É! Tem razão. Vai ser bom — falava ainda em pé, sem ver o rosto de Eduardo, abaixado. — Meu pai vai viajar também. Ele decidiu ir, ele mesmo, ao Espírito Santo, atrás da
tal tia que a Pati falou.
— A Polícia ainda não a achou?
— Não! Estranho, né?
— Cepá. Não sei mais nada. Tô tão confuso... — passou as mãos pela testa suada. — Tá calor aqui — e se levantou, caminhando até a janela.
Melissa percebeu que Eduardo estava sem graça. Outra vez, nada comentou. Nem sabia como fazê-lo. Gostava tanto de Eduardo.
Desde pequenos, Eduardo era seu namorado nas brincadeiras de criança. O tempo passou. Melissa cresceu mais rápido que Eduardo. Ele, por sua vez, continuava um crianção. Melissa
olhava para meninos mais velhos, mas continuava a pensar em Eduardo, o vizinho.
O sinal tocou duas vezes. As aulas recomeçaram.
Melissa havia deixado Eduardo na classe. Ele estava estranho, ela sentiu. Nem saberia mais como puxar assunto.
O resto da manhã não foi diferente. A última aula do dia terminou e eles se preparam para partir. Eduardo ia direto para a praia, com o pai. Foi uma surpresa para ele quando
chegou ao portão da escola, e a empregada Berenice já esperava no carro, com a mala pronta.
Melissa o viu de longe. Quis se despedir, mas ficou sem graça. Aquele projeto de beijo a deixou balançada. A mãe dela também já esperava no portão. Iam dar carona a Fernando,
que reclamava um bocado.
Mariana entrou primeira no carro. Foi atrás com Fernando, que entrou logo em seguida. Melissa entrou na frente. Arrumou o cinto, jogou os cadernos para trás e o viu. Não queria
ter visto, mas o viu; o mesmo carro branco, o mesmo homem de óculos escuros, na mesma posição. Voltou para frente apavorada. Perdeu a cor. Tentou disfarçar.
A mãe arrancou.
O carro de Eduardo ainda estava na frente, parado no sinal fechado.
“Grito ou não grito?”, desesperava-se Melissa.
Eduardo não percebia nada. Dr. João Vitor, ao volante, olhou para o lado. Viu Sandra, sua vizinha, à sua esquerda. Cumprimentou-a com um aceno de cabeça. Depois olhou a filha
dela, Melissa; ela se espremia no vidro.
Estava roxa de tanto que se agitava.
— A Melissa está bem? — perguntou o pai de Eduardo.
Eduardo olhou para o lado. Seguiu o movimento do pai. Viu Melissa apontando para trás, fazendo mímica com as mãos. Imitava um carro, um homem, óculos no rosto. Eduardo olhou
para trás. Só teve tempo de ver a cor do cabelo do homem que entrava no carro branco, o único ainda estacionado na frente da escola.
Era vermelho, cor de fogo.
Capítulo 10
Melissa insistiu tanto que a empregada de Fernando acabou cedendo; Amália deu a ela o número do telefone da casa da praia de Eduardo. Melissa também sabia que Eduardo estava
sem celular. Não conseguia mesmo entender como podiam viver sem aqueles aparelhos.
O telefone tocou. Dr. João Vitor atendeu. Melissa desligou. Deu um tempo e tocou de novo. Outra vez o Dr. João Vitor atendeu, e outra vez levou o telefone na cara.
Na terceira tentativa, Berenice atendeu.
— Quem? Dudu? Tá! Vou chamar.
Dr. João Vitor ficou curioso. Queria saber quem desligava na cara dele já que não reconheceu de imediato o número gravado no identificador de chamadas.
Pensou duas vezes e cedeu à tentação ficando a escutar na extensão.
— Alô! — falou Eduardo.
— Dudu? É Mel.
— Mel? Como sabia meu número da praia?
— A empregada do Fê deu pra Berê que me deu. Não conta pro teu pai. Eu desliguei na cara dele.
— Por quê?
— Não queria que ele soubesse.
— Ah! Então tá.
— Me explica melhor sobre a carta... Você leu?
— Sim. O Senador se despedia, apenas. Sei lá. Coisa esquisita. Não parecia um cara louco que ia matar até os empregados.
Os dois ficaram em silêncio. Alguns segundos correram.
— Entendeu o que eu queria naquela hora, no carro, no portão da escola?
— Ulalá! Achei que você tava se transformando num monstro espacial. Toda de preto, pra variar.
Mas Melissa não ligou para as gracinhas de Eduardo.
— Viu o cara?
— Meu pai achou que você tava doente — riu. — Tá! Tá bom! Eu vi. O ruivo, né?
— Sim.
— Vi. Quem era?
— Era ele. O mesmo homem do carro branco.
— Mas o cara deve ser namorado ou amigo de alguém. Já faz tempo que ele vai à escola.
— Desde quando?
— Deixa ver... Cepá, já o vi algumas vezes por lá. Foi... Já lembrei! O cara tava com a Pati.
Um silêncio se instalou. Nenhum dos dois conseguiu mais falar.
Melissa quebrou o silêncio.
— Com a Pati?
— Será o tal que te seguiu? Tem certeza que ele tava na USP? — perguntou Eduardo.
— Muita certeza, não. Mas ele tava no colégio. Na ida e na volta.
— Cepá, tenha levado alguém e ido lá buscar.
— Mas não falou que ele tava com a Pati?
— Pô, Mel. Falei que vi os dois conversando, uma vez, não me lembro de quando. A gata também não namora tudo que vê pela frente, eu acho.
— Como era o ladrão, Dudu? — insistia Mel.
— Como vou saber? Não vi.
— Mas você não falou que viu?
O pai de Eduardo teve um sobressalto na escuta. Aquela palavra o balançou de vez. Desligou o telefone. Um pequeno estalo se fez no aparelho.
Eduardo se assustou.
— Mel? Alguém tá escutando?
— Não sei. Acho que aqui, não.
Eduardo ia falar. Só enxergou os chinelos do pai refletidos no piso ladrilhado da cozinha.
— Acho que temos que ter uma conversa, Eduardo. Adulta, de preferência — o médico viu Eduardo desligar na cara de Melissa, sentindo que o chão se abrira, a terra tremera.
O Dr. João Vitor tirou o telefone do gancho, e foram os dois para o quarto dele. — Vai me contar tudo? — perguntou logo ao fechar da porta.
— Não tenho nada pra contar, pai. Juro!
— Agora deu para jurar em vão?
— Não...
— Pensei que fôssemos amigos?
— Somos amigos, pai. Somos sim. Mas não tenho nada pra falar. Nada que possa falar, eu acho — espremeu o rosto.
— Está com problemas? Drogas?
— Não, pai. Não faria isso comigo, nem com você, nem pela memória da mamãe. Sei como ela sofria por ver o primo Tadeu, sempre com os olhos vermelhos, e como ela e a tia Bia
ficavam.
— Bom! Muito bom mesmo. Isso só vai te levar a uma porta sem saída.
— Não, pai. Não tem nada haver com drogas.
— Mas gosta de fumar, não é?
— De vez em quando... — Eduardo riu.
— Então, quando quiser fumar, por mais que isso lhe faça mal ao pulmão, porque faz, porque dá câncer, porque para teu coração cara, mas faça com o meu consentimento. Peça-me
dinheiro. Não aceite cigarro de ninguém.
— Eu já sei pai. Você me fala isso desde os 10 anos — falava ao balançar a cabeça.
— É para o seu próprio bem.
— Eu sei pai. Só não gosto de ficar escutando o tempo todo o que já sei pai.
— Ok, então. Se tiver realmente problemas lembre-se, Eduardo, só eu posso ser seu amigo.
— Tá bem — ia saindo.
— Eduardo?
— Que é?
— Esqueça essa história de ladrão. Não houve nenhum. Foi brincadeira de criança, aqueles dardos. Garanto que será para seu próprio bem.
— Mas e se realmente havia um ladrão? E se foi ele quem matou a mulher? E se foi ele quem tentou me dopar?
— A polícia cuida disso.
— Tem tanta certeza, pai? Tomara que sim — e saiu do quarto. — Afinal, sou eu quem corro os riscos — falou para consigo.
Mas o Dr. João Vitor não tinha tanta certeza assim. Sentia no ar a mesma insegurança de Eduardo. Observou-o pela janela do quarto. Viu o filho sair da casa e andar pela praia
e ligou para o Delegado José Liberato.
Confiava nele.
— Delega… — perguntou o policial Rocha, seu ajudante, do outro lado da sala. —, o telefone tocou, não ouviu?
— Não… — respondeu atordoado. Há muito tempo não conseguia se concentrar no trabalho, no trânsito, no que fosse. Sua mulher vinha estranhando suas atitudes. Andava disperso.
Não ouvia direito o que ela falava. Falava sozinho. Ele, tão prestativo, tão minucioso, tão dedicado. — Quem é? — perguntou enfim.
— É o tal Doutor, pai daquele menino.
— Ajudou bastante, Rocha — sorriu morno. — Consegui localizá-lo na minha memória.
— Desculpa, delega. É o pai do menino, lá do assassinato do Senador.
O Delegado se ligou.
— Passa a ligação.
— Tá bem — e Rocha saiu.
— Alô? Dr. João Vitor?
— Boa tarde, Delegado. Poderia conversar com o Senhor pessoalmente? Não gosto de falar ao telefone.
— Está me assustando, Doutor.
— É importante. Estou na praia e volto amanhã para São Paulo. Gostaria que fosse ao meu consultório pela manhã. Sei que é domingo, mas é realmente muito importante. Além do
mais, não me sinto muito à vontade na delegacia.
— Ninguém, Doutor, pode acreditar. Nem eu. Mas está bem. As dez; pode ser?
— Está ótimo. Aguardo. Um bom final de sábado. E obrigado! — desligou. — Berenice? — chamou-a. — Prepare as malas. Vamos voltar amanhã de manhã, bem cedo.
— Eu, hein... Mal chegamos — pensou em voz alta.
Amanheceu um dia frio e chuvoso. Foi a desculpa que o Dr. João Vitor encontrou para subir mais cedo. Chegou atrasado ao consultório por causa do trânsito.
Antes deixou o filho e a empregada em casa.
O Delegado José Liberato estava esperando na porta do consultório. Era uma clínica que pertencia ao Dr. João Vitor e mais dois amigos médicos, um deles Dr. Alfredo, clínico
geral.
Não havia ninguém fazendo plantão naquele domingo.
— Oh! Desculpe o atraso. A estrada estava uma loucura por causa da chuva — e entrou.
— São Paulo também consegue ter trânsito até aos domingos — o seguiu.
— Sim, basta chover. Sente-se, por favor. Aceita um café solúvel? Não tenho nada mais a oferecer. Minha enfermeira é quem faz o café.
— Não se incomode. Quero saber o que faço aqui num domingo de chuva.
— Meu filho disse à amiguinha, pelo telefone, que estão sendo observados. Um cara ruivo dentro de carro branco no portão da escola. Muito antes do assassinato.
— Estão sendo seguidos?
— Não sei. O que me preocupa é que eles ainda insistem no assunto do ladrão. Sei que não vou arrancar de Eduardo nada que ele não queira realmente contar, mas tenho certeza
de que há algo muito maior.
— Está falando do quê?
— O ouvi falar que leu a carta do Senador. Pergunto-me... Como poderia?
— Não sei. Ninguém teve acesso a ela.
— Pois é. Passei ontem, a noite inteira, a pensar como.
O Delegado nada falou. Seus olhos arregalados encaravam o carpete do consultório. Coçou a cabeça. Tentou falar duas vezes. Não conseguiu. Tentou outra vez:
— Estou com alguns problemas, Dr. João Vitor. Sabe... Está acontecendo alguma coisa dentro daquela delegacia. Posso pressentir. São buchichos, informações atravessadas, pequenas
fofocas lá dentro. A verdade é que não consegui ver a carta depois que foi levada para a delegacia — levantou-se dando voltas em torno da cadeira.
— Não a leu naquela noite?
— Sim. Ler, eu li, mas achei que depois pudesse lê-la com calma, compreende? E o depoimento que fiz com as meninas, depois que Eduardo me contou a verdade, teve que ser feito
na presença da dona Sandra. Já havia passado um tempo, as informações pareciam ‘meio’ esquecidas, confusas. Dona Sandra estava nervosa, e isso atrapalhou. Não sei realmente
o que a menina Patrícia ouviu a empregada gritar no telefone. Suas informações não batiam com a da menina Melissa — o Delegado falava e andava pela sala. De repente sentou-se
e recomeçou a falar. — A carta saiu das minhas mãos, no dia seguinte ao do assassinato, direto para o Poder Judiciário. Gostaria de ter passado a carta para um perito em caligrafia,
amigo meu, para verificar a autenticidade da letra do Senador. Depois, ninguém me autorizou a retirá-la. Está arquivada, é o que sei.
— O que quer dizer?
— Já me perguntei. Sabe, tenho me feito muitas perguntas. Outra questão é a morte dos empregados...
— Acha que devo forçar Eduardo a falar?
— Não sei. Ele poderia mentir e acabar por confundir mais ainda.
— Eu... Não sei se devo falar. É uma coisa que aconteceu — sorriu sem graça. — A Berenice, minha empregada, reclamou um bocado — sorriu outra vez. O Dr. João Vitor também
não conseguia se comunicar como devia. — Vou explicar melhor. Quando o zelador, o seu Almeida, me ligou dizendo que Eduardo estava caído no meio do jardim, em frente ao salão
de festas do nosso bloco, aconselhei-o a levar Eduardo para o quarto dele, pois era mais perto. Quando eu cheguei, ele já estava sendo tratado pela Berê. Santa Berenice! —
jogou as mãos para o alto. — Ela reclama assim mesmo. É dela, eu sei. Berenice falou que Eduardo era irresponsável e estava todo molhado. Ele estava com os lábios roxos e
fiquei muito assustado ao vê-lo. Eduardo não respondia a um estímulo psicotrópico — e explicou. —, que é uma cápsula a base de amônia que estouramos próximo às narinas para
forçar uma pessoa a acordar. Sabe como é... Não podemos medicar ninguém sem saber se está ou não em coma. Eduardo não respondia. Estava sob efeito de algo muito forte. Fiquei
com o coração na mão. Minha cunhada, Bia, sofreu muito com meu sobrinho, que era viciado. O menino morreu por overdose.
— Sinto muito! — exclamou o Delegado consternado. — Essa juventude... Não sei, não... — divagou.
— É! Foi um baque. Mas o Eduardo estava sob ação de tranquilizantes. Chamei meu amigo farmacologista que me assegurou. Foi dos mais pesados, não sei por que alguém faria isso
— ao dizer isso, o Dr. João Vitor olhou para os lados. Procurou com os olhos a mãe de Eduardo nas fotos. — Mas não é esse o ponto. Eduardo tinha cacos de vidro enterrados
no tênis. Veja! — levantou-se para tirar do armário o tênis que o filho usava no dia do ataque. — Eu trouxe para cá com medo que Berenice tentasse limpá-lo. O tênis era novo,
como pode notar. Berenice ia reclamar; cuida de Eduardo como um filho. A mãe dele teve uma parada cardíaca nos braços dela e faleceu. Ela se acha responsável por ele.
O Delegado observou o tênis de Eduardo enquanto Dr. João Vitor desenterrava o passado.
— São cacos de vidros blindados?
— Exatamente! Não achei nenhuma vidraça quebrada, nenhum caco de vidro no jardim que houvesse sido retirado dali de perto. Mas, se olhar para cima, Delegado, muito para cima,
mesmo, vai ver a sacada envidraçada do Senador. Eu subi até lá. Não pude entrar por causa da faixa na porta da entrada social. Mas a porta de serviço estava com a faixa forçada.
— O quê? E o policial que coloquei lá?
— Colocou-o no portão de entrada, se bem me lembro. Acho que ele nunca subiu.
— É! É, verdade! Que loucura a minha. Estou tão confuso. Não entendo por que não posso mexer nesses documentos. Bem... Compreenda Dr. João Vitor, o caso foi arquivado, e a
menos que consiga uma liminar do Juiz, não posso reabrir o caso. E sem reabri-lo, não posso levantar questões. Tenho que ter provas, Doutor.
— Se entrar lá, vai ver o vidro quebrado, Delegado. Alguém atirou aqueles dardos no meu filho, da sacada envidraçada da cobertura do Senador e a quebrou. Isso não é uma prova?
O Delegado arregalou os olhos.
Foi só isso que conseguiu fazer até sair do consultório do Dr. João Vitor Ferreira, que nada mais tinha a acrescentar.
Capítulo 11
A Polícia nem sempre era compreendida. Nem tampouco usava métodos convencionais. Era cada um por si, à sua maneira. O Delegado José Liberato era um homem metódico. Daqueles
que podem até se entregar aos anos que passam e criar uma barriga saliente, mas que nunca perdem a sua técnica.
Ao contrário, aprimoram-na.
Respeitado por todos com quem trabalhava, trazia uma imagem de homem perfeccionista. Temido, porém honesto. Aos 60 anos de idade, o Delegado, casado, não tinha filhos. Eles
até fizeram falta, mas o trabalho sempre fora prioridade. E aquele caso, envolvendo jovens, o perturbava. Dizia sempre à esposa que ‘quando crianças, jovens almas, estão em
jogo, poderiam ser nossos filhos’. E esse caso não era diferente. José Liberato estava muito envolvido.
Preocupava-se com a segurança dos cinco amigos.
Havia dado uma maior atenção àquela garota que tinha ficado órfã. Não conseguia encontrar a tia, e isso o deixava descontrolado. Não conseguia provas de que houvesse um ladrão
na cobertura na hora dos assassinatos. Não encontrou nada nem ninguém que tivesse visto aqueles dardos apesar de confirmada a invasão à cobertura lacrada. Isso também o descontrolava.
Mas havia outra ponta naquele novelo, um fio da meada que se desenrolava desenfreadamente ladeira abaixo, e ele precisava retomar esse fio, esse fio da meada de um grande
novelo que lhe dizia que um estranho no portão da escola levava a algo maior: drogas.
José Liberato estava lá parado, discretamente, junto a seu fiel ajudante, o policial Rocha. Os dois observavam o carro branco. Ele parecia mais pontual que alunos e professores.
Chegava sempre antes deles e estacionava, como sempre, na última vaga do estacionamento em frente à Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
O Delegado José Liberato acompanhava a entrada dos alunos. Disfarçou quando o pai do Eduardo o deixou na escola. Estranhou Fernando que chegava a pé. Patrícia de Moura era
de se esperar que faltasse, mas não entendeu por que as meninas Jung não apareceram. Chamou seus oficiais pelo comunicador do rádio; comunicou-se com a central. Era experiente
e inteligente. Pediu reforço. Viu o que realmente aquele cara, alto e ruivo, vinha fazer na escola.
Estava traficando drogas para os alunos.
José Liberato viu um ou dois atravessarem a rua e discretamente, comprar pacotinhos. Imaginou o que continham. Agora tinha de provar.
— Ponto de venda — resmungou baixinho. — E os pais achando ser seguro, o ‘lar’ escolar.
— Em frente à escola e nem tão nem aí? Esses caras perderam o medo, delega. Já não escondem o que fazem. Vê se pode!
— Por muito pouco tempo, Rocha. O dia final dele chegou.
O Delegado José Liberato havia dado uma ordem especifica: três de seus policiais, de preferência jovens, deveriam entrar pelo portão lateral da escola, vestidos com o uniforme
da escola, atravessar a rua e comprar drogas.
— Eles já chegaram, delega.
José Liberato ergueu o cavanhaque.
— Vamos esperar! — ordenou.
A escola silenciava. Todos os alunos já haviam entrado. O ruivo se preparava para ir embora.
— Hei?! — gritou um jovem bonito, usando camiseta da escola, jeans e tênis último modelo. — O Joca me falou que tem entradas pro jogo de futebol!
— Quem é Joca? — assustou-se o ruivo.
— Joca Andrade! Ele me passou a dica...
— Ah! Quantas ‘entradas’ quer? — perguntou desconfiado, olhando os outros dois rapazes atrás do primeiro.
— Sei lá, cara, bastante. Tô a fim de assistir a uma boa jogada — riu ao gingar os quadris e olhar para os dois amigos.
Os três riram, pareciam já muito embalados, numa alegria peculiar.
O ruivo prosseguiu sério. Olhou para os lados; não viu nada.
— Não é muito normal, sabe? Sempre trago certa quantia... — e olhou o garoto de cima a baixo.
O falso estudante, policial Fabrício Bernardes, mostrou cinco notas. Eram todas de valor muito alto. O ruivo sorriu. Aquela linguagem ele conhecia. Entrou no carro. Abriu
uma sacola de nylon. Dessas que os esportistas usam. Tirou de dentro uma caixa de acrílico. Guardou as cinco notas de dinheiro. Abriu uma parte da sacola. O zíper atravessou
toda a sua extensão. Tirou de dentro dois papelotes. Era a quantidade que dava para aquelas notas pagarem. Saiu do carro e entregou o material.
Olhou para trás de Fabrício e só viu um dos amigos.
— Cadê o outro? — perguntou.
Foi só isso que fez. Uma arma calibre .32 estacionava na sua têmpora.
— Está preso! — anunciou Fabrício. — Por porte e tráfico de drogas! E por vender para jovens, sua prisão é inafiançável.
O ruivo ia falar. O Delegado José Liberato apareceu.
— Seja bem-vindo a dura realidade! — sorriu cínico. — Levem-no! Cuidarei pessoalmente do caso na delegacia.
Fabrício mandou os dois ajudantes levarem o ruivo. Rocha acompanhou-os.
— Fabrício? — e José Liberato chamou o rapaz que se preparava para entrar no carro branco e levá-lo para a delegacia.
— Sim, Doutor Delegado?
— Preciso de uma ajuda sua. Pode ser? Extraoficialmente?
Fabrício Bernardes se esticou todo. Há anos que ouvia seu pai, grande advogado criminalista, falar do Delegado José Liberato. Seu sonho passou a ser acompanhá-lo após se formar
em Direito. Quando a oportunidade de pegar um traficante apareceu de manhã, por ordem do Delegado José Liberato, ofereceu-se imediatamente.
Era a chance de estar mais próximo de seu ídolo.
— Claro! — sorriu o loiro e jovem policial de 22 anos.
Com sua aparência juvenil e saudável, passava por 16 anos brincando. Era sempre chamado para investigações que requeriam juventude.
— Sabe... Não precisa que faça amizade com a menina, apenas vigie cada um de seus passos, e se for necessário, tente entrar naquela turma. Ela se chama Patrícia de Moura.
— A filha do Senador assassinado? — assustou-se. — Há um boato na delegacia.
— Eu sei — respondeu cansado. —, ninguém fala sobre o assassinato.
— Isso mesmo. Tem certeza que quer isso mesmo, Delegado?
— Posso confiar em você?
— Claro! — respondeu com brilho nos olhos.
— Quero que alugue um apartamento no mesmo prédio daquela turma. Vou conversar com um dos proprietários; descobri certas falcatruas dele. Acho que não vai ser difícil um desconto
— riu. Ficou observando o jovem policial. — Vou falar mais sobre esses cinco amigos para você, lá na delegacia. Quero que se aproxime dela, mas discretamente.
— Está bem — e se preparou para ir embora mais uma vez.
— Mais uma coisa — José Liberato viu Fabrício voltar a olhá-lo. — Na primeira oportunidade, entre na cobertura do Senador. Quero que faça uma limpa lá dentro. Quero saber
quem está entrando lá. Tenho a impressão de que é a tal Patrícia mesmo, mas não imagino o que vai fazer lá tantas vezes — falou o Delegado, agora dispensando Fabrício.
O rapaz, porém, não foi. Ficou a pensar se deveria perguntar ou não.
Votou pelo sim.
— Delegado? — chamou-o.
— Sim?
— Por quê?
— Porque cinco jovens correm perigo de vida. Preciso falar mais?
— Não! É claro, que não!
Capítulo 12
— Mãe? — chamou Mariana. — O avião chegou. O papai não tá nele.
— Como não está? — falou Sandra, furiosa.
— Não desceu.
— Você não prestou atenção — e afastou Mariana para trás a fim de olhar ela mesma.
— Ah, é? Não reconheço mais meu pai?
— Falei que não prestou atenção — Sandra estranhou. Seu marido, o engenheiro Dr. Paulo Jung, havia ligado pela manhã dizendo que partiria naquele voo. — Por favor, Senhorita
— questionou para a comissária de terra. — Aquele era o voo vindo do Espírito Santo? — apontou para a janela.
— Sim, acabou de aterrissar.
— Obrigada — mas na dúvida, chamou o marido pelo celular. Ele atendeu. — Onde você está?
— Nossa! Tentei ligar, mas essas linhas celulares e nada são a mesma coisa. Não consegui embarcar.
— O que houve?
— Não sei. Comprei a passagem e meu nome, na última hora, ficou para o voo das quatro horas da tarde. Esses terminais...
— Voo da tarde? E agora? Não consegue outro?
— Não! Estão todos lotados. Vá para casa e eu pego um táxi quando chegar a São Paulo, Ok?
— Está bem... Que jeito! Depois de enfrentar um trânsito de segunda-feira, tudo bem.
— Oh, meine Liebe Sandra! Não tenho culpa. Não fui eu quem trocou meu nome de voo.
— Está bem. A Mariana está comigo. Vamos até em casa pegar as outras meninas para ir à escola. Elas já perderam a primeira aula e vão perder a segunda. Entrarão na terceira.
— Está bem — e o engenheiro desligou.
— Vamos, Mariana. Seu pai perdeu o voo. Só conseguirá chegar de tarde. Não vou ficar até às quatro horas esperando — falou, enciumada com a repentina mudança de horários dos
voos.
— Nossa mãe. Mas ele não confirmou?
— Deixa para lá. Quer ver que seu pai gostou de ficar por lá. Vamos embora. Ainda preciso passar no supermercado. Temos mais quilômetros de congestionamento até em casa.
Mariana acompanhava a mãe. Estava triste pela demora do pai. Chegaram até o estacionamento.
— Hei?! — gritou Sandra e correu.
— Mãe?! — correu atrás dela. Corriam como loucas pelo estacionamento do aeroporto. Sandra na frente, sendo seguida por Mariana. — Mãe?! — gritava Mariana em disparada. — O
que aconteceu? — questionou ao chegar ao carro.
— Um moleque... Mexendo no carro.
— Mãe! Que perigo! Papai já falou que não se deve enfrentar os trombadinhas. Já não falou?
Sandra não prestava atenção.
— Ele estava mexendo no carro — divagou. — Vamos embora. A vida está sem segurança, mesmo — e entrou no carro.
Mas Sandra derrapou na primeira curva, ao sair do estacionamento.
— Mãe?
— Está tudo bem... — o volante travou por um instante. — Ou não...
— Ou não?
— Ouviu esse barulho? — perguntou assustada.
— Não sei. Vamos, mãe. Vou perder todas as aulas.
Sandra continuou a guiar apesar de ainda estar impressionada.
— Seu pai falou que o nome dele foi trocado de voo. Liga para casa. Avisa tua irmã e a Patrícia que vamos pegá-las para ir à escola.
Mariana obedeceu. Começou a discar. Olhou para o lado. O carro verde estava muito próximo.
— Mãe?! — gritou Mariana.
O carro encostou-se à lateral de Sandra que puxou o volante para o lado. E quase não conseguiu fazê-lo porque a direção hidráulica travou outra vez.
— Está dura!
— Mãe! — desesperava-se Mariana. — Ele tá encostando outra vez!
— Por que isso?! — perguntava-se Sandra aos gritos.
— Mãe?! — e o carro foi atingido de novo.
Sandra perdeu o controle. Subiu em cima do canteiro que separava as duas pistas. Caiu na contramão. Bateu em dois carros. Rodopiou na pista. Subiu na calçada oposta. Riscou
a parede. Perdeu toda a lateral esquerda do carro. Pisou no freio. Mais dois carros vinham na sua direção e chocaram-se.
Sandra não controlava o carro com a direção travada.
— Meu Deus!!! — gritava desesperada.
O carro trepidou sobre os olhos de gato. Girou outra vez. Subiu e desceu da ilha de separação. Girou 360 graus. Subiu outra vez. Bateu no poste.
As duas foram lançadas para frente.
Os air-bags, porém, dispararam.
Foram salvas Sandra e Mariana.
Capítulo 13
— Nossa que demora! — reclamava Melissa. — O celular da mamãe tá ocupado. Deve ser a Mariana. Ahhh! E quando eu gasto toda bateria ela não empresta o dela pra mim, né? — Melissa
não parava de reclamar. — Anda Pati, você não pode faltar mais na escola.
— Não me torra, Mel.
— Não te torra? Aquela Juíza vai te mandar pra Suíça se não mostrar a ela que pode ficar aqui e estudar, né?
— Não quero saber de nada. Hoje não tô pra conversa.
— Pati, você tem a vida toda pela frente. O que vai fazer?
— Ainda não sei. Não tô a fim de falar nisso.
— Chiii Pati, eu sei que é difícil, tá difícil até de falar, mas teus pais morreram você não. Vamos sair... Dar uma volta, sei lá.
— Quero ficar em casa.
— Fazendo o quê?
— Nada!
— Como nada? Onde você tava ontem quando eu te procurei? Achei que tava dormindo, revirei a casa e não te achei.
— Eu... Ãh... Eu desci um pouco — disfarçou. — Seu Paulo falou se achou minha tia?
— A mamãe foi buscá-lo no aeroporto, mas ele não falou nada... Ai! — se contorceu. — Que dor na boca do estômago. Que coisa ruim!
— Que foi Mel? — Patrícia olhou-a assustada.
— Não sei. Uma coisa... Sei lá.
— Acho que você comeu muito bombom ontem.
— É... Pode ser — passou a mão pela barriga. — Vou esperar mais cinco minutos.
— O telefone tá tocando!
— Eu atendo. Alô, Dudu? De onde tá falando?
— Da escola — respondeu do meio do corredor. — E se a orientação nos pega, tamos ferrados.
— E por que tá falando do telefone da escola?
— Não sei, mas a direção mandou recolher todos os cel hoje na entrada. Além do que, o meu tá com meu pai.
E um ruído de gente falando alertou Melissa.
— Quem tá aí com você?
— O Fê. Eu contei pra ele o que tava acontecendo. Pensei que ele ia ter um treco, mas achei que ele precisava participar. Afinal, tá no rolo também.
— Puxa Dudu. O Fê é tão complicado. Nunca soube guardar segredos... Não é arriscado?
Eduardo pensou, mas não respondeu.
Mudou de assunto.
— Por que não vieram pra aula?
— Não sei. Minha mãe falou que ia com a Mari no aeroporto pegar meu pai, e que só íamos perder a primeira aula. Não tô entendendo a demora.
— Meu pai conversou comigo, no sábado. Acha que tô com problemas de drogas. Não pude contar sobre os computadores... Mel? Você tá aí? Mel? Mel?
Melissa estava paralisada. Uma sombra se projetava na porta de seu quarto.
O coração veio à boca.
— Dudu… — falou baixinho.
— Mel? Tudo bem? Que houve? — desesperava-se no meio do corredor da escola. — Mel?
— Tem alguém...
— Quê?! Mel?! — gritou para a linha que caiu.
Melissa colocou o telefone no gancho, suavemente. Ficou paralisada. A sombra era de alguém estranho, podia pressentir. Não tinha empregada. A faxineira não vinha às segundas-feiras.
Mariana era escandalosa demais para entrar em silêncio. Patrícia estava no banheiro.
A sombra se mexeu, parecia se aproximar, parecia se afastar; estava indecisa.
Melissa quis correr e trancar a porta. Teve medo. Não tirava os olhos da sombra. A sombra dava voltas mexendo em algo. Patrícia acabava de entrar no chuveiro e Melissa ouviu
o barulho. Viu-se sozinha.
Sentiu tonturas.
Voltou a olhar para a porta. A sombra havia sumido. Ouviu o som de passos indo para os outros quartos. Melissa ia se arriscar, ia trancar a porta, mas desistiu outra vez.
Ouviu também que o som de passos se encaminhava para o quarto de Mariana, ao lado do seu.
Alguém estava mexendo nas gavetas de Mariana.
Melissa saiu e olhou pela fresta da porta. Pôde ver a mão envolta em luva, mas não o corpo. Recuou sem conseguir falar. Saiu e passou direto pelo quarto de Mariana sem ser
vista, correndo para dentro do quarto dos pais atrás de algum celular há muito desativado, tentando encontrar um com bateria, chip.
— Droga... — soou baixinho quando um dos celulares tocou. Melissa teve um sobressalto.
Os olhos do invasor, dentro da máscara de lã, também brilharam no outro quarto.
Melissa abriu o celular velho que tocava e não acreditou na voz que se seguiu.
— Mel? Tá tudo bem? — Eduardo corria com o celular do faxineiro, após ter invadido as gavetas da diretoria e roubado o celular dele.
— Dudu... — sussurrou ela. — Como tá ligando pra esse número desativado? — olhou o aparelho; era um celular com números fixos, sem chip.
— O Fê tinha arquivado na memória dele. E nem me pergunte como — ria.
— Meu... — e Melissa voltou a ver que era o primeiro celular dela, ganho as doze anos. — Mas como você sabia que...
— Agora não é hora pra explicar, mas o cel do faxineiro é pra lá de bom, tá pegando todos os Wi-Fi sem senha da rua.
— Wi-Fi? Do que tá falando?
— Tô falando que acessei as câmeras do seu pai; droga!
— Câmeras de quem? — ela olhou em volta totalmente atordoada.
— Droga, Mel. Escuta! Seu pai instalou câmeras no seu apê. Eu sabia que ele usava senhas de aniversários em tudo e então acessei — falava ofegante enquanto corria.
Melissa voltou a olhar em volta não acreditando naquilo, que Eduardo podia invadir sua privacidade.
— Você tá louco? Você não...
— Chega Mel. Eu e o Fê tamos correndo até aí. Segura firme.
— Segurar o que?
— Alguém desligou a câmera do quarto da Mari. Acho que tem alguém lá, e que também sabia sobre as câmeras.
Melissa sentiu todo seu corpo arrepiar, cada poro abrir pelo medo.
— Você tá dizendo que alguém mais sabia das câmeras e... — e Melissa desligou no que ouviu Patrícia gritar.
— Mel?! — gritava Patrícia do chuveiro. — Mel?! — gritava sem parar. — Tá me ouvindo?! — e desligou o chuveiro. Patrícia se enrolou numa toalha. Saiu do banheiro e Dudu viu
aquilo pelo cel do faxineiro.
Ligou para o telefone fixo da casa de Melissa para chamar a atenção dos intrusos que se alertaram outra vez.
Patrícia enrolada na toalha se aproximou do telefone e ele parou de tocar.
— Que tá fazendo cara? — perguntou Fernando correndo com toda sua musculatura para lá de estável. — Essa é a minha Pati no chuveiro?
— É! Essa é a ‘sua’ Pati.
— Cê tá...
— Não tô nada Fê. Não encuca tá? Corre! Só corre! — já Eduardo sentia que a goela estava bloqueada pelo coração que parecia bater ali.
Eduardo aumentou o passo para alcançar Fernando que disparou, enquanto Melissa no apartamento viu que a sombra voltou atrás e parou.
Jogou-se no chão tentando enxergar alguma coisa. Viu um par de botas marrom. O invasor colocou a mão na maçaneta. Tentou abrir a porta e Melissa pensou em gritar.
O invasor desistiu.
“Mãe... Mãezinha... Chega...”, pensava em pânico.
O invasor, porém voltou ao quarto de Mariana. Mexia incessantemente nas gavetas. Procurava algo com certeza. Melissa passou pela porta do escritório, foi até a sala. Deu a
volta, aproximou-se da parede do quarto de Mariana e colou o ouvido.
Ouviu o farfalhar de papel sendo tocado, sendo jogado, sendo amassado e destruído.
“Os projetos do papai? No quarto da Mari? Não, não pode ser isso”, pensou Melissa, aturdida.
Um silêncio se seguiu por mais cinco minutos.
Parecia uma eternidade para ela.
— Socorro!!! — gritou Patrícia.
Melissa nem soube por que fez aquilo. Mas saiu correndo e se lançou para dentro de seu próprio quarto.
— Larga ela!!! — berrou Melissa, quase sem voz com um sapato de salto na mão, mas foi Eduardo quem virou para trás.
Já Fernando teve um sobressalto muito maior. Estava suado da corrida ao ver um sapato quase ser arremessado nele.
— Dudu? Fê?
— Ah… É que o Dudu entrou no banheiro e meu viu de toalha — justificava Patrícia toda molhada, parada na porta, sem nada entender, tentando evitar o ataque da amiga.
— Onde tá ele? — falava Eduardo, alterado.
— Como chegaram tão rápido? Teletransporte?
— Não tenho tempo pra responder. Onde tá ele, Mel? — agitava-se Eduardo.
Fernando não falava nada. Estava atônito com tudo aquilo. Só olhava para o sapato ainda na mão de Melissa e a ideia de que aquilo iria machucar se o tivesse acertado.
— Não sei. Achei que a Pati tinha gritado por causa dele — e olhou para Patrícia que perguntava algo na careta que fez. — Acho que tem uma pessoa no quarto da Mari.
Fernando ficou com Patrícia enquanto Melissa correu atrás de Eduardo, que saiu do quarto.
Alcançou-o na sala.
— Fica aqui! — ordenou ele. — Entendeu? Quando a tua mãe chegar, grita por socorro.
— Aonde vai? — perguntou Melissa vendo Eduardo saindo do apartamento.
— Procurá-lo!
— Mas ele não tá no quarto da Mari?
— Não! Mas acho que sei aonde ele foi — e Eduardo correu para fora do apartamento de Melissa que ficava no sétimo andar. Pensou em pegar o elevador, mas desistiu. — As escadas!
— concluiu correndo atrás do intruso sem pensar em consequências. — Desgraçado! Agora te pego!
Parou ao ver a sombra fazer a curva, quatro andares acima. Estavam na escada de serviço. Eduardo tinha a respiração acelerada. Parou para engolir a saliva.
Balançou a cabeça. Tirou o tênis. Não queria fazer barulho. Correu escada acima. Ainda estava muito longe do invasor.
Sabia que era ele.
Melissa alcançou a porta de serviço, seguida por Fernando.
— Dudu?! — gritou Fernando.
Eduardo parou.
— Saco! — esbravejou. Os passos, acima dele, pararam também. Aceleraram logo depois. — Saco! Saco! Saco! — Eduardo corria atrás do intruso que agora sabia que estava sendo
seguido.
Encaminhava-se para a cobertura.
— Dudu?! — insistia Fernando, agora junto a Melissa.
— Volta idiota!!! — gritou Eduardo para Fernando.
— Não!!! Vamos com você!!! — berrava Melissa para cima.
— Não!!! Volta!!!
Melissa ficou na dúvida. Deixou Fernando e desceu. Deu de cara com Fabrício Bernardes no hall de entrada do prédio.
— Nossa!
— Desculpe! Te assustei?
Melissa não ficou para responder se homens bonitos a assustavam, precisava chegar à portaria.
Lembrou-se do carro da polícia. Dirigiu-se para lá. Fabrício acompanhou-a apenas com os olhos.
Já Eduardo subia. Estava cansado, ofegante. Mal conseguia respirar. Nem todas as suas horas de treino na capoeira ajudaram naquele exercício. Já estava cansado da corrida
a pé da escola até o condomínio, porque como sempre, Eduardo e Fernando haviam entrado pelo portão sul.
Os policiais não viram os dois amigos chegarem, e Zé, acostumado, abriu sem nada perguntar.
Eduardo alcançou, enfim, o vigésimo terceiro andar. Olhou para a porta da cozinha. A fita estava dilacerada, a porta escancarada. Um som de destruição vinha lá de dentro.
Entrou no apartamento, atravessou as salas, subiu a grande escada de mármore de Carrara. Dessa vez não havia trilha de sangue. O apartamento havia sido limpo.
Um grande estrondo partiu do último quarto. Eduardo parou, não sabia como agir. Lembrou que estava sem uma arma. Recuou e desceu. Entrou na cozinha, abriu todas as gavetas.
— Uma faca... Uma faca… Saco!
Achou o que queria. Criou coragem e subiu ao segundo andar da cobertura, agora armado.
Dois quartos ficavam à esquerda da escada. Eram os quartos de hóspedes. Depois vinham mais três portas em grandes intervalos.
O primeiro quarto pertencia a Cibele. O segundo pertencia ao Senador. O terceiro pertencia a Patrícia. De lá saía o som ensurdecedor. Tudo estava sendo jogado. Era essa a
impressão.
Eduardo se aproximou com cuidado e o som extinguiu-se. Eduardo ficou apavorado, teve a sensação de que alguém havia passado por trás dele. E teve a sensação de não ser apenas
um.
“Entrar? Sair? Voltar? Gritar?”; foram as suas dúvidas. Seus olhos se arregalavam cada vez mais.
Pânico geral.
Eduardo se arriscou e entrou. O quarto de Patrícia estava de pernas para o ar, literalmente. Os lençóis arrancados tal qual os da mãe; a cama revirada, roupas arrancadas do
guarda-roupa, gavetas lançadas contra a parede, o computador no chão e um novo movimento.
Eduardo olhou para trás. Ouviu um gemido.
“Mel?”, pensou apavorado.
“Ela subiu?”; correu para o quarto de onde ouvira o som.
Era o quarto de Cibele. Estava bagunçado também, com marcas de sangue ainda se encontrando no carpete de pelo alto. Sentiu enjoo. Achou que ia vomitar. Conseguiu se controlar.
Gritos vinham de fora, do lado de fora. Eduardo se aproximou da janela. Olhou para baixo e os terríveis toldos cor de laranja obstruíram uma visão melhor.
— Não!!! — gritou ao ser puxado pelos pés. O invasor ia lançar o corpo de Eduardo pela janela abaixo. — Socorro!!!
Apenas uma risada sarcástica como resposta. Eduardo se agarrou nele. Tentou arrancar-lhe a máscara que usava. Os cabelos apareceram. Eram ruivos. Eduardo se apavorou. Perdeu
a força e o equilíbrio. Quase caiu.
Fernando entrou no quarto.
— Dudu?! — gritou ao ver a cena.
Eduardo olhou para a porta do quarto. Viu uma sombra sair de trás da porta. Um segundo invasor carregava um grande vaso.
— Cuidado!!! — tentou avisar.
O vaso se quebrou em vários pedaços na cabeça de Fernando, que foi ao chão desmaiado. O primeiro invasor aproveitou a distração de Eduardo e empregou mais força ainda.
Eduardo puxou a faca e cortou-lhe o braço.
— Ai!!! — gritou o primeiro invasor.
Eduardo se agarrou às cortinas. Tentava voltar a se equilibrar, mas o primeiro invasor era mais forte. Enrolou-o no extenso tecido de voile. Eduardo lutava contra a cortina
enquanto tentava arrancar a máscara. O segundo invasor se juntou ao primeiro, e com mais força empregada levantaram os pés descalços de Eduardo que deslizaram no carpete.
Eduardo estava pendurado no parapeito, estava do lado de fora da janela. Agarrava-se ao que restava dos metros de tecido.
— Socorro!!! — berrava Eduardo.
O segundo invasor escorregou no voile, Eduardo na distração conseguiu enfiar a faca no braço forte do primeiro invasor que nada sentiu. Num último jogo de corpo, Eduardo tentou
lançar seus pés contra o segundo invasor que caiu no chão reclamando.
— Saco! — exclamou o segundo invasor fugindo do quarto, deixando para trás Eduardo e o primeiro invasor.
Eduardo tentou outra vez mover-se, mas a cortina tinha muito tecido, e o prendia. Estava cada vez mais enrolado para poder se mover. Tentava entrar, e o primeiro invasor o
empurrava cada vez mais para fora. Eduardo olhou para baixo e viu imagens distorcidas.
Ia ser jogado do vigésimo terceiro andar.
— Melissa?! Socorro!!! — e a parede escapou das suas mãos. Eduardo se segurou no batente da janela e foi a vez da faca escapar de suas mãos caindo vinte e três andares. —
Droga!
A faca parou junto aos pés de seu Almeida.
Almeida e Melissa olharam para cima.
— Eduardo?! — gritava Melissa, atônita.
Seu Almeida voltou correndo para a portaria. Foi chamar a polícia. Eduardo sentiu tonturas. Agarrava-se como podia ao fino tecido de voile da janela que cedeu.
— Não!!! — não aguentou mais.
Eduardo foi lançado no ar, passando por todos os toldos horrivelmente alaranjados, parando no décimo oitavo andar. O corpo, feito elástico, voltou um andar para cima e caiu
novamente.
Aos poucos os parafusos se soltavam.
Eduardo desceu mais cinco andares. Parou no toldo do décimo terceiro, pendurado pelos pés no aramado do toldo destruído.
Sua cabeça girou. Enxergava São Paulo de cabeça para baixo.
— Vamos! — o primeiro invasor aproveitou para fugir. Juntaram-se mais quatro invasores comparsas que esperavam por ele na porta.
Já Eduardo caiu novamente. O tecido de lona rasgou e ele foi lançado no vácuo. Dilacerou mais dois toldos e parou no décimo primeiro andar.
O resto de cortina se emaranhava, era o que segurava o corpo do jovem.
Mais dois toldos, e mais dois toldos, e mais dois toldos, chegando ao quinto andar. As lonas dos toldos o mantinham no ar.
Eduardo tentava raciocinar. Chacoalhou a cabeça e caiu novamente.
— Não!!!
E mais um toldo, e mais um, e mais um e mais um. Os toldos ruíam com o peso do corpo de Eduardo que parou no primeiro andar. Para então cair de novo e parar no toldo maior,
aberto no hall de entrada.
Melissa estancou pelo susto. Olhou para o lado. Viu Fabrício, que chegava. Olharam para cima, os dois, e acompanharam com a cabeça a descida final do corpo que se estatelou
no piso da entrada do Bloco Jardim das Azaleias.
— Tudo bem? — tentou Melissa falar ao ver o amigo.
A língua de Eduardo não descolou do céu da boca, mas chegou vivo ninguém soube como.
Capítulo 14
— Pro-fis-si-o-nal! — repetia o Dr. João Vitor cada sílaba. — O cara é um profissional! Eduardo já tinha dito!
O Delegado José Liberato estava atônito. Andava a percorrer de lá para cá o estreito corredor do Hospital das Clínicas. Não sabia o que falar para o pai de Eduardo.
Ele estivera certo o tempo todo.
Eduardo estava em observação. Havia passado por uma ressonância magnética. Os médicos que o socorreram levantaram a hipótese de algumas vértebras quebradas, mas Eduardo escapara
graças à cortina amarrada a seu corpo. Chegou aos pés de Melissa e Fabrício ainda emaranhado parecendo um paraquedista.
Do outro lado do corredor do hospital, os médicos acalmavam o grande e choroso Paulo Jung ainda em choque. Quando o desastre com sua mulher Sandra e a filha Mariana foi anunciado
pelo rádio da polícia, o Policial Rocha já havia corrido até o local. Fez, sem ordens superiores, sua própria inspeção. O volante hidráulico havia sido mexido, danificado
até. A bomba de óleo havia sido perfurada com uma lâmina experiente.
— Coisa de profissional! — concluiu também.
A coisa havia chegado a seu limite máximo, José Liberato sabia. Sandra havia quebrado o fêmur. Mariana havia batido a cabeça no vidro lateral depois do impacto com o air-bag
que havia salvado a vida das duas.
Melissa chorava muito. Não acreditava no que sua vida tinha se transformado; sua mãe, sua irmã e Eduardo, seu grande amor.
O mundo tinha acabado para ela.
O médico que assistia Eduardo apareceu. Era o Dr. Alfredo, sócio do pai de Eduardo na clínica. Eduardo estava sendo transferido para a semi UTI.
— Não é nada grave, João Vitor, acalme-se. Ele fez rubber jump, mais nada — brincou o amigo tentando aliviar a pressão do momento. — Já virou até esporte, sabia? — sorriu.
— A cortina parece que segurou o peso na queda se enroscando nos toldos. Foi muita sorte a cortina ter um tecido tão resistente. Ele agora vai ficar em observação por mais
essa noite — comunicou o Dr. Alfredo.
— Mas eu quero vê-lo. Preciso! — tentava o pai, em vão.
— Sinto. Acho que deve deixá-lo descansar. Não quero que ele se emocione — sorriu o Dr. Alfredo. — Sabe me dizer o porquê dos policiais nas portas? — apontou.
— É para a própria segurança deles — chegou o Delegado por trás dos dois médicos.
— Segurança? — disse João Vitor virando-se para encarar José Liberato. — Desculpe Delegado, mas meu filho não conhece essa palavra — e foi se sentar no mesmo banco em que
estava Paulo.
Os dois vizinhos se abraçaram. Tentavam se confortar. Melissa olhava o fim do corredor. Uma plaqueta na porta estava escrito: ‘Centro Cirúrgico’. Lembrou-se o quanto brigava
com Mariana, sua irmã.
— Me perdoa... — pedia ela aos prantos. — Nós brigávamos por tantas baboseiras, por tão pouco... Deus…
Uma cara apareceu. Melissa tentava se lembrar de onde o conhecia.
— Oi! Meu nome é Fabrício Bernardes. Sou seu novo vizinho, no condomínio.
Melissa ergueu a cabeça para vê-lo melhor. De homens bonitos ela lembrava; no hall de entrada, depois no jardim, na hora da queda final de Eduardo.
— Oi! — disse ela enxugando as lágrimas.
Fabrício achou-a uma garota muito bonita, olhou-a com ternura. Melissa sentiu a sinceridade. Ele ofereceu um lenço. Ela aceitou.
Melissa limpou o rosto inchado. Sorriu em retribuição. Devolveu o lenço molhado.
— Eu sinto muito por seu amigo, por sua mãe, por sua irmã.
— Como soube?
— Estava lá na hora que a polícia chamou a ambulância.
— Perguntei como soube da minha irmã?
Fabrício gelou:
— Comentaram...
— Entendi — falou por falar.
Fabrício arrumou as costas. Fazia isso quando estava nervoso.
— Como elas estão? — tentou novamente se comunicar.
— Bem! A Mari é que preocupa. Ela bateu o olho direito no vidro, na hora do impacto. O médico disse que houve deslocamento da retina. Teve de operar de emergência, mas foi
só laser. Ela vai se recuperar rápido — e chorou. — Eu brigava tanto com ela.
— Não se lembre disso. É coisa de irmã.
— É! Pode ser!
— O rapaz?
— Dudu? Esse é gato! Escapou outra vez.
— O que quer dizer com outra vez?
— Nada! — e Melissa se levantou.
Fabrício viu que não era hora de insistências, era esperto. Despediu-se de Melissa e se aproximou do pai de Eduardo, se apresentando como o novo vizinho. Contou que estava
lá na hora do acidente e ofereceu ajuda.
Dr. João Vitor agradeceu.
Fabrício olhou o Delegado por debaixo dos cílios grossos e se afastou. Não demorou muito para que o Delegado viesse atrás dele.
— Entrei na cobertura na hora da confusão da ambulância — Fabrício foi logo disparando as informações. — O apartamento estava todo destruído, além do que já havia sido feito.
Aliás, estava tudo diferente, para dizer a verdade.
— Não compreendi.
— Bem, o que deveria estar como foi deixado não estava. Li o relatório quando chegou à delegacia naquela noite. Havia certos detalhes que chamaram muito a minha atenção —
olhou para os lados. — Esteve na cobertura depois do assassinato Dr. Delegado?
— Sim, uma vez, depois que o Dr. João Vitor me falou que a vidraça da sacada estava quebrada.
— Pois é... As roupas não se encontravam mais jogadas no hall da sala. Reparou?
— Não. Só verifiquei que a fita havia sido rompida. Olhei em volta, mas até aquele dia, ninguém havia mexido em nada.
— Ah! Mexeram, sim. As paredes foram lavadas assim como os carpetes. Com exceção do quarto da Sra. Cibele, que tem o pelo do carpete, muito alto, o resto foi limpo com esmero.
— “Esmero”?
— Sim, foi a minha impressão. Não havia mais sinal de sangue. Nem vidros no chão. Parecia que o apartamento foi varrido.
— O quê? Varrido? Eu dei ordens para não se tocar em nada! Nem limpar, nem varrer — José Liberato estava, agora, mais descontrolado ainda.
Bufava feito touro irritado, acossado pela espada do toureiro.
— Compreendo! — falou, abismado com a mudança de humor do Delegado.
— Ele está me desafiando. Sei que está.
— O Rocha ouviu no rádio sobre o acidente. Sabe como é o Rocha... — Fabrício sorriu maroto.
— Um bisbilhoteiro nato.
— Exatamente! Ele se deitou debaixo do carro da dona Sandra.
— Ele fez o quê?
— Em plena confusão, e ninguém o viu. E ele me disse pelo telefone que a bomba de óleo da direção hidráulica foi rasgada por uma ferramenta pontiaguda. Isso deve ter travado
o volante. Rocha acha até que o cara que mexeu deve ter sido interrompido, porque havia indícios de que tinha começado a mexer em mais coisas.
— Acha que o desastre foi provocado? Queriam matar a mãe da Melissa?
— Posso dar minha opinião? — e não esperou pela ordem. Falou assim mesmo. — Não era a mãe; era a filha.
— A filha? A tal Mariana?
— Sim! Eduardo, Melissa, Mariana, Patrícia e Fernando. Os cinco amigos... — olhou um lado e outro. — Posso dar outra opinião?
— Vá em frente!
— Se não pegar o fio da meada, Delegado José Liberato, vão todos se enrolar de vez nesse novelo. E ele vai matar os cinco. Juntos ainda irão, família e empregados.
— ‘Ele’? Quem é ele, Fabrício?
— Tem certeza que não sabe quem é o fio da meada? Pois eu acho que é o tal ladrão que o garoto fala no relatório. E ‘ele’ acredita ter sido visto por Eduardo na cena do crime
e está tentando eliminá-lo, numa chance após a outra.
— O menino Eduardo tinha razão!
— Mas… — e Fabrício esperou ter a atenção de José Liberato. —, apesar de concordar com o garoto, não acredito num ladrão, não num ladrão comum. Não tenho tanta experiência
assim. Venho conversando muito com meu pai, pois ele é muito mais experiente. Mas acho que todos eles estão mesmo correndo risco de vida.
— Vou mandar colocar um policial na porta de cada apartamento. Dos dois meninos e das três meninas. E vigiá-los quando saírem. Mandei Rocha para Brasília. Quero uma limpa
na vida do Senador. Quero saber o que fazia antes de morrer, e no que trabalhava atualmente. Também quero uma vasculhada na vida dos cinco amigos, também. Isso pode cuidar
disso você mesmo. Acho que depois desse atentado consigo falar com meu amigo. Tenho que convencer o Judiciário a reabrir o caso. Então ‘ele’ vai se apavorar e nós o pegaremos
— concluiu.
Fabrício Bernardes ficou contente em ver o Delegado com aquele brilho nos olhos.
Ficou feliz por estar ao lado de seu ídolo.
Capítulo 15
Patrícia havia chorado a noite toda. Estava temporariamente no apartamento de Eduardo. Contudo, queria por que queria sair, e Berenice não deixava.
— Não posso. Tá sob minhas ordens. O Dr. João Vitor mandou.
— Ele não é meu pai, Berê. Só vou dar uma volta.
— Ocê me ouviu? Ele ligou do hospital e disse que o Delegado vai pôr um policial na nossa porta. Não pode sair sem avisá-lo.
— Droga! — praguejou irritada.
Berenice não ficou para olhar a raiva dela, foi arrumar o resto do apartamento após servir o café da manhã. Ninguém havia voltado ainda do hospital. Todos haviam passado a
noite por lá. Berenice deixou Patrícia sozinha na cozinha e ela aproveitou a chance e saiu pela porta de serviço.
— Minha Santa Aparecida, não sei se faço almoço ou... — falava enquanto se encaminhava de novo para a cozinha. — Ué? Cadê ela? Pati? — olhou para a porta. — Que droga! Onde
tá essa garota? Pati?! — gritou no corredor. — Minha Santíssima, o Doutor vai ficar uma fera comigo.
Patrícia estava nas escadarias. Subia correndo, com medo de ser pega. Ouviu barulho no corredor da cobertura. Alguém estava na porta de serviço do seu apartamento.
Abriu devagar a porta corta-incêndio.
— Você? — falou Patrícia para alguém que tentava abrir a porta com uma chave falsa. Ele sorriu apenas. — Ia mandar um e-mail pra você. Senti tantas saudades, Cacá.
O cara continuava nada a falar. Patrícia se jogou em seus braços. Beijou-o intensamente.
Ninguém os viu.
Capítulo 16
O avião aterrissou no Aeroporto Brigadeiro Eduardo Gomes, em Brasília, na Asa sul. O Policial Rocha quase beijou o chão.
Fazia calor em Brasília e o dia estava seco e nublado.
O gabinete do Senador estava lacrado. Rocha precisou da autorização do Congresso para abri-lo. Perdeu quase a manhã toda naquela investida. Antes de sair de São Paulo, porém,
telefonou para o ex-secretário particular do Senador, para estar lá para recebê-lo.
Osmar foi pontual. Caminhava agora a seu lado depois da permissão concedida. Rocha atravessou a sala que Osmar costumava usar. Abriu a grande porta de nogueira maciça. A sala
do Senador estava intacta. Recebera ordens de não abrir as janelas e o gabinete todo cheirava umidade, a coisa fechada.
Rocha era detalhista. Tinha aprendido com José Liberato depois de 20 anos de trabalho em conjunto.
— A sala foi fechada por ele?
— Sim. Ele a fechou e partiu para São Paulo. Ninguém mais entrou aqui.
— Ninguém? Ninguém teve curiosidade de olhar a sala de um morto?
— Nossa! — a face de Osmar endureceu, na dúvida se havia sido uma indireta. Estava acostumado a elas, trabalhando tanto tempo no Senado.
Osmar era robusto sem ser gordo. Seus cabelos embranqueciam rapidamente. Estava tenso com aquela visita.
— Desculpe. Empolguei-me… — desculpou-se Rocha ao ver o lobista e ex-secretário ainda de olhos arregalados.
— Tudo bem...
O policial abriu todas as gavetas e fotografou algumas anotações contidas na agenda do gabinete, guardada dentro de uma pasta de couro.
— Ele tem uma carteirinha de telefones, não? — Rocha olhou um lado e outro. — Do jeito que a sala é antiquada… não acredito numa agenda eletrônica… — e percebeu o susto do
homem. — Aconteceu alguma coisa Sr. Osmar?
— Eu falei para minha mulher... Eu precisava ter falado, mas ela não deixou — disse envergonhado.
— Hei? Calma lá. O que você precisava falar?
— Um homem, um bem estranho.
— Que homem? — interessou-se Rocha.
— Um tipinho que vinha aqui. Não sei para quê, mas ele sempre trazia um envelope. Desses comuns, pardos, de papelaria. E sempre saía sorrindo, contando dinheiro. Parecia fazer
de propósito, para que eu visse que o Senador lhe havia dado dinheiro.
— O Senador havia contratado esse homem?
— Era o que parecia.
— Que tipo de serviço acha que ele prestava se era um tipo tão estranho?
— Coisas do tipo... erradas.
— Seja mais claro, por favor. Poderemos deixar isso fora do relatório se quiser — insinuou com certo tato.
— Ninguém vai saber que eu falei? Tenho medo, minha mulher disse... Sabe... Meu emprego como lobista é delicado. Eu fico em volta de muita gente influente. Minha mulher disse...
— Não se importe com que sua mulher disse Sr. Osmar… — cortou o drama de uma vez. —, seu emprego não correrá riscos se é isso que o preocupa.
— Está bem. Eu acho que o cara era um detetive. Li nos jornais que o Senador matou sua mulher porque ela o traía. Eu também achava isso. Ela era uma perua bonita, jovem, chamava
a atenção de todos aqui no Senado. Uma modelo, ex-atriz, sei lá. Usava saias curtas e muito, muito decote. Acho até que fazia de propósito porque o Senador não gostava quando
ela vinha.
— Ele tinha muito ciúme dela?
— Que pergunta... Ele tinha mais de 60 anos, ela trinta e poucos. Dizem até que ele precisou usar de amigos da lei para poder casar com ela que era de menor na época do enlace;
um abismo. Além do mais, comentava-se que ela gostava de meninos jovens, muito jovens — piscou com malícia. — Ela só vinha aqui buscar dinheiro, cada vez mais. O Senador ficava
nervoso. Eles gritavam bastante dentro da sala. Uma vez ela atirou um vaso em cima dele e saiu num rompante. Ele ficou todo sem graça comigo e mandou repor com urgência porque
o vaso era do gabinete.
— Sabe se ela esteve naquela última vez?
— Não, aqui não. Mas ela estava em Brasília com ele. Eu sei por que ela ligou no final da tarde, quando o Senador estava com o tipinho estranho lá dentro. E ela falou para
mim: ‘Mande meu recado. Mande-o depositar dinheiro na minha conta’.
— Para que ela precisava de tanto dinheiro ultimamente?
— Não sei.
‘Chantagem?’, pensou Rocha.
— Depois que o tipinho saiu, o que o Senador fez?
— Nada! Imagino que não demorou a arrumar as coisas e ir embora. Eu não o vi sair. Tinha ido antes. Logo depois de atender o telefonema da mulher dele.
— Se ele trazia envelopes tão importantes para o Senador, onde os guardava? Isso aqui é um cofre? — falou apontando para o quadro.
— Sim — e Osmar o abriu. — Vê? Não deve ter nada importante dele aqui. Eu o abria constantemente.
— Estranho! — falou. — O que faria então com os envelopes se não os guardava no cofre e nem os levava para sua casa? Vamos Rocha... Pense… — falava sozinho. Olhou para os
lados. — Para que uma lareira de verdade em uma Brasília sempre abafada?
— Coisas de decorador, suponho.
— Ah! Já sei o que fazia com os envelopes... Destruía! — exclamou ao olhar para a lareira elétrica, cheia de papéis queimados. — Pode me conseguir um saco plástico?
— Sim. Vou buscar.
Rocha recolheu e guardou tudo o que tinha por lá. Ia levar direto para a equipe de cientistas forenses de José Liberato averiguarem.
Voltou para São Paulo quase no mesmo avião em que havia chegado.
Capítulo 17
O Dr. Alfredo apareceu na sala de espera naquela manhã nublada. O Dr. João Vitor passou a noite acordado, aguardando notícias. Eduardo dormiu o tempo todo. De manhã cedo partira
para uma batelada de exames. Deram todos negativos. Eduardo estava bem. Ia usar um colete de aço para aliviar a coluna. O Dr. Alfredo liberou o garoto para voltar para casa.
Liberados também foram Sandra, com a perna engessada e Mariana, que se recuperaria em casa após a cirurgia oftalmológica.
Depois de deixarem Sandra e Mariana em casa, Melissa e seu pai foram ao décimo primeiro andar, ao apartamento de Eduardo. Agradeceram Berenice por cuidar de Patrícia. Berenice
respirou aliviada. Nada falou sobre o sumiço da garota uma vez que Patrícia não sumira por mais de meia hora. Mas a intenção de contar a verdade não saíra da cabeça da empregada.
A polícia mudava-se, literalmente, para o condomínio. Iriam revezar, sem trégua, as vinte e quatro horas do dia.
Cada apartamento teria um policial na porta social e um policial na porta de serviço e quem saísse, seria acompanhado. Duas policiais femininas, jovens como Fabrício, entrariam
na escola e assistiriam às aulas que fossem necessárias para acompanhar as meninas.
Somente Melissa, Fernando e Patrícia iriam para a escola.
Eduardo queria ir, mas tinha sido dispensado. O pai não acreditou no que ouviu.
— Dudu querendo ir para a escola? — comentou. — Vai ver que o acidente o modificou — torcia para que aquilo tivesse acontecido.
E Melissa não acreditou quando Patrícia se preparou para ir à aula. Ela estava diferente; podia sentir. Sua atenção havia sido chamada diversas vezes pelos professores. Estava
sorrindo apesar de tanta desgraça, e não prestava atenção às aulas. Nada perguntou sobre o acidente, nada questionou sobre Mariana, se esqueceu até de perguntar sobre sua
tia.
Estava dispersa; dispersa e feliz.
Fernando, que teve uma pequena luxação por causa do vaso quebrado na cabeça, frequentava a aula junto a Melissa e Patrícia. Agora era Adriana, a mãe de Fernando, que levava
e trazia os três amigos da escola. E ela até quis saber mais detalhes sobre a queda de Eduardo, mas a falta de respostas da turma foi geral.
Melissa agradeceu o silêncio de Fernando, mas não iria agradecer o silêncio de Patrícia.
— Você mudou — falou Melissa de repente.
— Quê? — perguntou Patrícia no banco de trás do carro. Olhava para fora, sem prestar muita atenção ao caminho. — Não sei do que tá falando.
— Tá diferente, sim — e Melissa desistiu.
Patrícia olhou-a por baixo dos óculos escuros. Chegou ao apartamento de Melissa e foi direto para o quarto de Mariana, que o cedera de vez para ela.
— Mãe? — chamou Melissa ainda na porta.
Sandra se apoiou na bengala.
— O que foi?
— Posso ir até a casa do Dudu?
A mãe sorriu para ela. Foi tão sincera que Melissa perdeu a ação.
— Gosta dele, não?
— Ai. Mãe... Que pergunta!
— Gosta, eu sei. Estive pensando muito depois do acidente. Vocês duas são tudo o que tenho na vida. Seu pai, sua irmã e você são minhas verdadeiras riquezas. Não a quero machucada
e nem magoada, Melissa.
— Não vou me machucar, mãe. Prometo!
— Vou confiar em você, como sempre. Mas vou dobrar a atenção.
— Ok! Posso ir agora?
— Pode! Deve até, se te faz feliz.
— Oh, mãe! Obrigada — e a abraçou.
— Eu sei que você é uma gracinha, mas me faça um favor antes?
— O quê?
— Troque a cor da sua roupa, minha filha.
Melissa riu.
Correu para o quarto e colocou um jeans azul que há muito tempo não usava. Subiu até o apartamento de Eduardo, tendo que pedir autorização dos policiais.
Eduardo estava sonolento. Estava deitado quando Melissa entrou. Era a primeira vez que o via desde a queda.
— Oi? Tudo bem?
— Oi, Mel. Tô todo dolorido — riu. — Acho que dói mais que as surras que levava da minha mãe quando comia terra.
— Oh, Dudu! Você não toma jeito mesmo. Eu fiquei preocupada.
— Não esperava nada diferente de você.
— Como assim? — perguntou curiosa.
— Eu tive pensando... Lá na UTI não se faz outra coisa. Então pensei que... Ulalá! Não havia percebido... — mudou de repente o assunto.
— O que foi?
— Suas pernas... Estão azuis.
Melissa riu demoradamente.
— Foi pra você — balançou-se dentro do jeans.
— Gosto!
— Do jeans?
— Da cor... Do tecido... De como desenha suas curvas.
Melissa levantou a sobrancelha. Gostou do que ouviu.
— É? — brincou.
— Vou me jogar mais vezes da cobertura da Pati.
— Ai! Dudu! Não fala besteira. Você não vai crescer?
— E perder você no passado?
— Nossa! Virou poeta?
— Não é isso. Tô gostando de você.
— De quem? — o coração e a língua se encontraram.
— Você... Eu... Nunca tinha te visto de baby-doll. Não dormi direito, aquela noite; tive sonhos esquisitos. Não consegui parar de pensar em você. Você teve sempre tão perto
que não te via.
— É! Eu percebia.
— Posso te beijar?
— Beijar? — ficou vermelha. — Aqui? Agora?
Eduardo olhou para os lados.
— Tamos sozinho. Quê que tem? Posso? — e Eduardo viu Melissa se aproximar dele. — Não! — falou afastando Melissa, que se aproximava. — Não é você quem vai me beijar... Sou
eu quem vou beijar você, Mel — e se ergueu.
Melissa sorriu, acanhada. Abaixou a cabeça, que Eduardo levantou em seguida. Os dois se aproximaram. Melissa preferiu fechar os olhos, sentindo o coração bater na boca outra
vez.
Já Eduardo sentiu todo seu corpo de homem tremer. Encostou seus lábios nos dela, sem, porém beijá-los. Ficou segundos a observá-la.
Melissa abriu os olhos. Nunca havia visto Eduardo de tão perto.
Os lábios tremiam; sentiam prazer de estarem juntos. Melissa sentiu tonturas. Eduardo começou a tirar o colete de aço. Melissa percebeu. Não entendeu o porquê; não quis perguntar.
Eduardo a encarava, com seus olhos falando uma linguagem desconhecida.
Os dois ainda se encaravam de perto. Ele podia sentir o perfume que ela usava. Doce, sutil, tremendamente perigoso.
Tocou seu pescoço, afastando seus cabelos, aproximando sua boca grande.
Mordeu-o.
— Ah! — exclamou Melissa sentindo a corrente elétrica passar.
Mil volts de carga.
Eduardo ainda a via de modo estranho, passando seus lábios na boca de Melissa, insinuando-se, voltando a se aproximar, erguendo a cabeça, o supercílio, a mão esquerda, tocando
os cabelos dela novamente, puxando-os com força.
Ela ia gritar, mas não teve tempo. Eduardo engolia seu pescoço, experimentando o gosto, o aroma que exalava do corpo dela.
Melissa nem respirava mais sentindo o quarto girar, e Eduardo foi em frente, com o tocar de seus lábios; para baixo, para o lado, em sentido contrário, começando a descer
os olhos, alcançar a blusa do uniforme da escola. Subindo e descendo montanhas, se perdendo nas curvas sinuosas.
— Dudu... — tentou falar. — Não! — o afastou.
— Por quê?
— Não... Ainda não… — e Melissa mal teve tempo de falar no que Eduardo fez mais que olhar. Ela sentiu-se tonta no que a barba roçou-lhe o tecido, agora sem proteção. — Não
posso... — mas Eduardo já se inclinava novamente. — Não Dudu!
— Desculpa... Eu... Eu não consigo me controlar.
— Então é mais que não! — desvencilhou-se dele e saiu correndo.
— Saco! — exclamou Eduardo arrependido.
Melissa atravessou o apartamento. Quase tropeçou no policial na porta. Entrou no elevador. Não conseguia tocar os botões certos. Estava tonta, confusa, totalmente apaixonada.
Acabou descendo até as garagens até dar de cara com Fabrício.
— Oi! — exclamou ao vê-la levando um susto. — Te assustei novamente?
— Sim... Um pouco. Não sabia que o elevador ia descer.
— Ah… — Fabrício sorriu, a achava tão bonitinha.
Tocou o quarto andar.
— Já se mudou? — disse ela tentando recuperar o fôlego.
— Ainda não totalmente. Faltam detalhes, mas vim ver o apartamento.
Melissa estava tão atordoada que ficou sem graça e riu. Fabrício riu também. Ele desceu no andar tocado após se despedir. Entrou na sala quase vazia de móveis. Tirou da mala
o notebook que havia trazido pela manhã.
Tirou do bolso uma chave de fenda e abriu o compartimento debaixo do computador. Tirou uma placa e a colocou ao contrário. Fechou o notebook, pegou o casaco e se dirigiu para
o elevador.
— Berê?! — gritou Eduardo. — Tão tocando a campainha.
Berenice saiu correndo da cozinha e foi atender.
— Oi! Sou o vizinho do quarto andar. Meu nome é Fabrício Bernardes, já falei com o policial aqui na porta — e apontou para trás. — Posso falar com o Eduardo?
— São amigos?
— Conheci o pai dele, Dr. João Vitor, ontem no hospital.
— Tá bom. Pode entrar. É o segundo quarto do corredor.
— Obrigado! — Fabrício entrou e se encaminhou para o local indicado. — Posso entrar? — falou após ter bater e abrir a porta do quarto de Eduardo.
Eduardo estava estressado:
— Quem é você?
— Sou Fabrício, o novo vizinho. Encontrei sua amiga no elevador, a tal de Melissa — Fabrício viu Eduardo apenas o olhar. — Uma graça ela, não? — agora Eduardo prestou atenção
nele; e não gostou do que ouviu. Fabrício prosseguiu: — O porteiro disse que consertava computadores... É verdade?
— Puxa cara! Tô num estado ruim demais.
— Meu... É que preciso entregar um trabalho na faculdade. Tô ferrado! — brincou. — É só dar uma olhada... Pode ser?
— Tá! Tá bom! Dá aqui! — e tentou ligar o notebook.
A máquina não funcionou. Eduardo abriu a gaveta ao seu lado. Pegou um estojo de pequenas ferramentas. Fabrício se deslocou do local onde estava parado e Eduardo nem percebeu.
O policial fechou a porta à chave e Eduardo ouviu o clique da chave quando girou.
Levantou os olhos calmamente e encarou Fabrício parado diante da porta.
— Se virar a placa do outro lado, ela funciona — falou Fabrício com voz séria,
Eduardo olhou para o notebook que acabara de abrir. Viu a peça trocada. Sabia que nenhum profissional a colocaria daquele jeito. Percebeu que tinha sido mexida. Olhou para
o vizinho, assustado.
— Você…
— O que te perturba, Eduardo? A menina bonita ou a queda? — Fabrício viu os olhos de Eduardo brilhar e ele não conseguir falar, achando que ia morrer. — Sabe... O dia vai
ser longo, Eduardo. Avise a empregada para fazer sanduíches. Temos muito que conversar...
Eduardo engoliu tudo aquilo a seco.
Capítulo 18
As celas estavam abarrotadas de gente depois que o ruivo, o Vermelhão, como era chamado no submundo das drogas, havia chegado. Preso no portão da Escola Monsenhor Hipólito
Ibi, três dias depois que chegou ao distrito e já estava abrindo o bico.
Decidiu que não ia em cana, sozinho.
Foi um derrame de informações há muito procurado pelos agentes especiais do Delegado José Liberato. Naqueles dias que se seguiram após a prisão feita em flagrante, a equipe
já havia desbaratado oito gangues de traficantes, estourado cinco bocas de fumo e prendido vinte e cinco envolvidos, entre eles um perigosíssimo bandido, o famoso Juca Fumaça.
Sua especialidade era tráfico e desmanche. Sua gangue desmanchava um carro em quinze minutos; eram os melhores do ramo.
Vermelhão havia contado à polícia que vendia cocaína e maconha para alguns alunos da Escola Monsenhor Hipólito Ibi e de outras também. Tinha freguesia certa. Uma delas era
Patrícia de Moura, dizia Vermelhão, que comprava cocaína dele dizendo sempre ser para a mãe. José Liberato e Rocha descobriram que era para manter seu vício, cada vez mais
constante, que Cibele de Moura pedia tanto dinheiro ao Senador.
Rocha ainda acreditava em um amante sedento de grana.
José Liberato havia conseguido reabrir o caso mandando exumar o corpo de Cibele, no Cemitério da Paz, a fim de uma nova autópsia, agora nas vísceras da morta. Aquele tipo
de exame não havia sido pedido antes, mas agora as evidências da dependência de drogas, levavam a isso, e abriam mais possibilidades para os investigadores.
Eduardo tinha razão quando contou a Fabrício ter visto Patrícia no portão da escola com o tal ruivo. Fabrício achou sua conversa com o garoto proveitosa, apesar do susto inicial
dele imaginando que ia ser assassinado ali, naquela hora.
Fabrício riu, disse que ele assistia filme demais.
Eduardo não achou tanta graça assim, mas contou a ele tudo o que vinha acontecendo, despejando tudo sobre o policial, depois que Fabrício se identificou, o que tinha averiguado
durante o período. Contou até sobre os computadores do Judiciário, sob a promessa de que seu pai nada ficasse sabendo. Pediu também que mantivessem Melissa por dentro de tudo.
Assim poderia falar tudo o que ela também tinha descoberto.
Fabrício sorria e erguia o sobrolho toda vez que o nome dela era falado e Eduardo começou a sentir ciúme do jovem policial loiro. Mesmo assim, concordou que Fabrício visitasse
Melissa, que também levou um susto quando este se apresentou como policial.
Nas próximas horas, somente Eduardo e ela saberiam da verdadeira identidade dele.
Melissa se achou o máximo, depois se lembrou dos riscos que corria. Contudo não deixou de fora nenhum detalhe. Fabrício anotava tudo em seu notebook, agora com a placa na
posição certa. Fez um relatório minucioso, estranhando saber que Patrícia tinha um namorado ‘virtual’. Outro detalhe que não compreendeu foram os gritos da empregada Maria.
— O que ela tinha visto para estar tão apavorada? E se morrera antes de todos, a que sangue se referia? — Fabrício progredia nas investigações.
Pediu à delegacia, além das ordens do Delegado, um minucioso estudo da morte dos envolvidos. Dessa vez incluiu o corpo do Senador, também retirado do Cemitério da Paz e o
corpo do motorista e o da empregada, Maria.
O Delegado José Liberato estava cada vez mais impressionando com o jovem policial Fabrício, que conseguiu com amigos de seu pai influente, autorização para todas aquelas autópsias.
Rocha chamou um especialista da Polícia Federal e pediu que Osmar fizesse um retrato falado do detetive a partir do depoimento, agora oficial, do lobista e ex-secretário do
Senador.
E outra vez precisou assegurar a Osmar, sua segurança pessoal.
— Delega? — chamou Rocha, que estava no final da grande sala dos policiais ainda no Distrito Policial. — A perícia chegou a uma conclusão — e entregou um envelope. — Eles
disseram que a maioria do material encontrado na lareira do Senador estava muito danificada pelo fogo, mas pelo tipo de material, é acetato.
— Fotos?
— Sim, fotos. Todos os papéis queimados naquela lareira eram fotos. Não há nenhum outro tipo de papel, portanto o que o tipinho estranho levava para o Senador só podia ser
fotografias.
— Tem alguma maneira de se identificar quem está na foto?
— Interessante falar nisso, delega. A perícia criminalista falou que tem algumas fotos das quais apenas uma parte fora queimada.
— Como assim?
— Eles falaram que não podem dar cem por cento de certeza, mas parece que o Senador rasgava a foto, retirando dela ‘alguém’, e as queimava depois. As fotos jogadas diretamente
no fogo, então, tinham a dona Cibele e eram totalmente destruídas. A perícia acha que ele a excluía, separando-a da fotografia, e depois as queimava. As fotos contendo outra
pessoa ele simplesmente, jogava na lareira, ficando mais por cima e não sendo totalmente destruídas.
— Estranho! Muito estranho!
— Mas isso vira o jogo delega — Rocha abriu o pacote. —, porque isso permitiu que algumas fotos fossem reconstituídas e retocadas — e entregou três fotos. — Sabe delega, esse
pessoal é bom no que faz. Eles têm um computador que conserta as imagens. Veja! — coçou a cabeça. — Eles conseguiram arrumar uma imagem de dona Cibele. É ela mesma — e entregou
para José Liberato que ficou impressionado com o trabalho de sua equipe forense. Rocha prosseguiu. — Agora, veja essas duas fotos do cara com ela.
— A perícia tem certeza de que as cores não foram alteradas?
— Papel de primeira, delega, importado, não se destrói totalmente no fogo — e Rocha esperou a análise do delegado. — Vê o corpo do homem ao lado da Cibele fotografado no motel?
Jovem, atlético, e ruivo.
E José Liberato ficou matutando algo antes de dizer.
— Desde que entrei em contato com o mundo do Senador… — e parou de falar para tomar fôlego. —, descobri que ele era um homem muito bom. E todos o dizem; bom demais para existir
na política... — riu. — Bom pai, bom marido, bom vizinho. Acredita que também fosse um bom assassino?
Os dois se olharam.
Capítulo 19
— Mel? Pode vir até aqui? — perguntou Eduardo, pelo interfone da cozinha.
— Não sei se devo. Ontem foi tudo tão esquisito...
— Olha! Desculpe. Eu precisava falar com você. Não pode ser pelo interfone.
— Tá! Tá bom! Tô subindo.
Eduardo ficou olhando o interfone desligado. Percebeu o quanto gostava dela.
Não demorou em que sua campainha tocasse. Eduardo abriu a porta e viu que o policial não estava na porta dele.
— Vamos até meu quarto? Se eu ficar perambulando pela casa, a Berê me mata. Já disse que tô bem... Mas não adianta — abriu a porta para ela entrar. Melissa usava um vestido
curto. — Ulalá! Quer me matar? De novo? — brincou Eduardo, mas ela mantinha a seriedade. — Então tá... Não vamos falar nisso, Ok? Amigos outra vez?
— Não deixei de ser sua amiga, Dudu. Só acho melhor dá um tempo.
— Tá! Também acho — e se aproximava. — Posso te contar uma coisa? — Melissa se encolheu toda. — Teu cheiro, sabe? Me dá até azia.
— Azia? — riu.
— Dá um frio na barriga, enjoo, não me controlo — e a beijou.
Eduardo entrava cada vez mais em sua boca, engolindo-a por completo. Estava apaixonado.
Melissa esperou o beijo acabar para falar.
— Vai ter que ser à minha maneira.
— Aceito! — quase gritou. — Só não quero dá tempo nenhum.
— Mas vai ser devagarzinho. Com juízo.
Eduardo achou graça.
— O que entende por juízo, Mel?
— Isso mesmo que pensou.
— Tá bom — riu. — Eu topo.
— Então vamos ‘ficar’. Vamos ver no que vai dar.
— Ulalá!!! — gritou de felicidade a balançar os cachos negros. — Mas antes da gente se perder de novo... — brincou. —, tenho uma coisa pra te contar. Fecha a porta.
Melissa olhou para fora e agora deu de cara com Berenice.
— Ahhh! Querem sanduíches? — falou sem graça pelo flagra.
— Dudu? Quer sanduíches? — perguntou Melissa com calma.
— Sim! — respondeu ele no disfarce.
Riram a beça depois que Berenice foi embora.
— Acho que a Berê ouviu, né?
— Com certeza. Mas não esquenta, Mel. Eu quero te falar algo importante. Conversei muito com o policial Fabrício. Ele acha que o que eu fiz no Judiciário foi errado, a tal
ida aos computadores sem autorização e tal, mas disse também que o Delegado vem enfrentando problemas por causa da reabertura do caso. Ele queria uma cópia daquela carta.
Parece que o pai da Pati morreu primeiro. Saco! Naquela noite esqueci e não imprimi. Vou precisar ir lá.
— Não pode sair de casa. Teu pai proibiu.
— Eu sei. Por isso preciso de você.
— Quer que eu vá até o Judiciário?
— Não, você não vai conseguir. Preciso do Carlos Alberto outra vez.
— Não acredito que ele vá se envolver. É filho de um desembargador.
— Vai ter que convencê-lo. Sabe como? Fica bem de jeans... — Dudu foi pura insinuação.
— Dudu! — reclamou. — Cê é mesmo um louco.
— Tô brincando. Agora tenho até ciúme de você — piscou. — Ciúme até do policial.
— Do policial Fabrício? Ah! Imagine!
E ambos se calaram.
— Sabe se a Pati pode cooperar? — mudou de assunto.
— Não acredito nisso.
— Mas é o pai dela, Mel.
— Pati tá diferente. Não é mais a mesma. Sabe o que eu acho Dudu? Ela tá se encontrando com aquele Ricardo.
— O virtual?
— É... E não é pelo computador. Pati tinha um montão de camisinha na bolsa e anda sumindo demais.
— Mexeu na bolsa dela? — falou, horrorizado. — Mel... Que coisa feia!
— Ah! Não enche, Dudu.
— Por que mexeu?
— Não me conformo daqueles caras terem invadido nosso apartamento bem no dia do acidente da mamãe. Por que foram mexer nas gavetas da Mariana, que na verdade estavam cheias
de roupas da Pati? Ela tava dormindo no quarto da Mari já algum tempo. Agora se mudou de vez... Então diz? Como é que eles sabiam?
— Sabiam do quê?
— Das gavetas! Da Pati no quarto da Mariana!
— Mas eles tavam procurando algo, não é isso? Não tô te entendendo, Mel?
— Dudu, preste atenção. Raciocine comigo. A Pati falou que o cara do computador conhecia tudo sobre ela, até o que ela não falava. Falou que era meigo e atencioso, e dava
conselhos. Mas a Pati de repente passou a ter medo dele. Achava que era atenção demais. Aí o pai e a mãe morrem e você falou que tinha alguém lá no quarto da mãe dela morta,
né?
— E tinha. Agora sabemos.
— Pois é. O Fabrício falou que você contou pra ele, que tentou tirar a máscara do cara que te empurrou da janela e viu cabelos vermelhos, né? Bom... A Pati falou que o tal
Ricardo pensou que ela tinha ‘saído’ da sala de Chat e continuou a conversar com outra garota. Só que ela saiu e entrou de novo, mas com outro nickname, pra vigiá-lo sem ele
ver. Sei lá como isso funciona, mas aí o cara falou que era ruivo e tinha 23 anos. Só que pra Pati ele falou que tinha 38... E não falou de jeito nenhum como ele era. Foi
aí que ela falou que ele era ruivo.
— Meu... Quantos ‘falou’ — e Eduardo viu a cara que ela fez. — Tá. Tá bom. Tá querendo dizer que o cara de cabelo vermelho é o cara da Pati?! — gritou no que a ‘ficha caiu’.
— Ai! — sentiu dores nas costas no que se levantou rápido.
— Calma! Não pode se levantar tão rápido — disse Melissa, ajudando-o a sentar de novo. — E se for verdade, Dudu? Isso explica tudo. Inclusive o fato dele saber que você o
tinha visto e por isso tentou te dopar com os dardos no jardim.
— Meu... Já pensou se a casa da Pati tinha câmeras?
— Como é que é?
— Câmeras Mel... Como as do seu pai.
— Acho que o meu pai sempre foi encanado com essa coisa de segurança. E a Pati dizia que o Senador nem fechava a porta do carro. Daí...
— É... Pode ser que tudo isso tenha contribuído, sei lá, cepá, pro cara entrar sem ser visto todas essas vezes.
— Ou o cara é hacker como você — Melissa viu que Eduardo se assustou com o que ouviu. — E também soube que você tava procurando a tal carta... Aí o tal Ricardo virtual tava
naquele computador quando o Carlos Alberto abriu a página pra você Dudu...
— A Pati sabia? Sobre minha ida ao computador do Judiciário?
— Ah! É! Acho que não. Mas se sabe, não fui eu quem contou. Achei que você tivesse contado pra ela...
— Que confusão, Mel!
— É! Uma baita confusão...
E Eduardo deu um salto da cama.
— Mas que cara esperto... Muito esperto…
— Por quê? — mas ela não ouviu resposta. Eduardo estava eufórico. — Por que Dudu?
— Preciso ir até a cobertura.
— Por quê?
— O computador da Pati... Preciso vê-lo.
— Não vai adiantar. A Pati me falou que deletava todos os e-mails para que nem a mãe, nem o pai soubessem.
— Isso não é problema.
— Como não?
— Posso recuperá-los. Acredite!
— Acabei de falar que ela deletou tudo.
— Teria que ter deletado o sistema todo... Ou por fogo no bicho...
— Fogo aonde?
— Mel… meu doce Mel… Se for um programa interno tipo Outlook e tal, ela poderia ficar desinstalando e instalando o programa de e-mails toda vez que quisesse usá-lo — Eduardo
fez uma careta. —, mas não acredito que a Pati saiba fazer isso. De qualquer forma isso também deixa rastros que posso ler...
— E se o cara que é inteligente como você, tiver ensinado ela a deletar os rastros?
— Então o cara pode ensinar a ela escrever por dentro da Internet, sob falsos IPs, também mascarar o provedor, fazer miséria — Eduardo olhou-a. — Temos que forçá-la a escrever
pra ele.
— Como?
— O computador dela tá na cobertura. O Delegado vai ter que dar um jeito de descê-lo e colocá-lo no quarto dela. A tentação vai ser maior e ela vai escrever pro tal Ricardo.
— Que adianta ela escrever se não vamos ler?
— Aí que se engana. Vou ler sim. Eu posso fazer isso.
— Isso é tema de filme, Dudu. ‘Invasão de privacidade’.
— Chame como quiser, vou ler cada correspondência dela. Cada marquinha que a trilha deixar.
Melissa não pensou duas vezes. Abandonou o quarto no momento que Berenice trazia as bandejas. A empregada ficou sem entender por que ela tinha saído tão rápido. Eduardo também
não comeu, tinha muito que fazer e muita gente para quem ligar. Telefonou também para a delegacia, mesmo tendo receios de sua linha ter escutas.
Achou-se o próprio James Bond.
Fabrício recebeu o telefonema. Providenciou a descida do computador. Em uma hora o computador estava conectado no quarto de Patrícia, antigo quarto de Mariana. A desculpa
foi dada por Melissa, que disse ao pai que Patrícia deveria se ocupar com alguma coisa, e sugeriu o computador.
A demora realmente não foi grande, como previra Eduardo. Melissa estava de antena ligada. Ouviu as teclas do computador sendo digitadas. Correu para o apartamento de Eduardo.
Não perderia por nada, aquele momento histórico: o seu grande amor, fazendo algo realmente importante.
Eduardo digitava rapidamente. Tentava conexão com o seu provedor de acesso, do provedor para o backbone próximo, e para outro, e para outro, e um mundo todo aberto a ele.
Eduardo acessava a Deep Web, uma internet que poucos conseguiam acessar.
— O que tá fazendo?
— Visitando as Marianas.
— Quem?
— Não ‘quem’! Isso é uma alusão às fossas marianas, no Oceano Pacífico, para chamar as camadas profundas de uma Internet proibida, onde crackers, criminosos, piratas digitais
e vendedores de todo tipo de coisa e gente, bolaram para esconder seus domínios virtuais de olhares curiosos.
— E você tá aí por quê?
— Porque se até o mundo dos bons tem um ponto cego, imagina o que o inferno não seria capaz de ter.
— Traduz!
— Tô indo até o provedor da Pati através de camadas, para não ser visto pelos ditos, roteadores normais.
— Ahhh... — e Melissa desistiu.
Eduardo riu do ‘Ahhh’ dela.
— Sabe o que é um guru, Mel? Não, também não sabe né? São os mestres dos hackers, mentes privilegiadas; hackers do bem que trabalham na maioria como segurança em bancos e
financeiras. E não falo dos caras de uniforme e arma na entrada, falo de gente que fica horas no computador atrás de erros que provoquem invasões. Só quem sabe como invadir
sabe prevenir invasões, cepá. E eu conheço um hacker legal chamado Pedro. Ele tem amigos que passam um scanner, uma espécie de malha e leem tudo... Até e-mail. O Pedro trabalha
no provedor da Pati. Vai me ajudar a entrar lá depois que o Fabrício deu carta branca, e as policias internacionais que vasculham as Marianas, liberaram.
— Ahhh… — voltou a soar dela.
Ambos esperavam calmamente quando um sinal foi ouvido.
— Que legal! O Pedro já me conectou lá. Agora liga pra tua casa, Mel. Pede pra Mari ver se o roteador do quarto dela tá piscando — Melissa pegou o celular e confirmou com
a irmã. Acenou positivo com a cabeça. — Ulalá! Ela se conectou e tá escrevendo pra ele… — o computador de Eduardo apitou e um sinal sonoro avisou que havia novas correspondências
na caixa de entrada. O espelhamento do e-mail de Patrícia chegava ao computador de Eduardo na mesma hora que ele entrava no banco de dados do provedor do namorado, Ricardo.
“Te amo! Te amo! Te amo! Sua Pati”, estava escrito na tela que Melissa e Eduardo leram.
Eduardo desligou o computador.
Ficou extasiado recostando-se nos travesseiros.
— Sabe Mel, quando a gente manda um e-mail precisa de um endereço, assim como fazemos com uma carta comum. Então temos um nome de usuário, uma senha e um endereço eletrônico
— e deu uma parada na explicação. — Calcula quem seja esse tal Ricardo?
— Não!
— Aqui tá escrito. Seu nome é Cacá! Deve ter dado seu nickname como nome de usuário. Agora, chuta pra onde foi postada a ‘carta de amor’ da Pati, Mel!
— Não tenho ideia! — respondeu outra vez.
— Pra USP!
Melissa quase caiu da cadeira com o susto.
Capítulo 20
José Liberato estava cansado, a idade chegava rápido. Tinha cãibras, dores na coluna, nos braços. Sentiu que até os dentes postiços doíam, tão tenso ele estava.
Anoiteceu muito rápido, e a delegacia estava quase vazia. Poucos ainda trabalhavam lá.
O delegado José Liberato telefonou para casa, e avisou sua esposa que deixasse o prato no forno e que fosse dormir. Levantou-se, arrumou seus documentos na velha pasta de
couro e saiu.
Olhou para o céu.
— Que Lua feia — pensou em voz alta, caminhando pelo estacionamento quase deserto.
Colocou a mão nos bolsos e não encontrou a chave do carro. Havia deixado na delegacia.
“Velho burro!” xingou-se voltando para a delegacia.
Ia continuar se não tivesse ouvido um barulho.
Algo estalou atrás dele.
— Quem está aí? — perguntou ao vento. Ninguém respondeu. José Liberato balançou a cabeça. Achou ter sido uma impressão. Ouviu um novo estalar. Algo caiu ao lado dele. José
Liberato viu o brilho que fez. Abaixou-se conforme o cansaço permitia e pegou o objeto do chão arregalando os olhos. — Um dardo? — perguntou-se no que algo penetrou seu pescoço.
— Ahhh... Um dardo — desmaiou mais rápido que Eduardo.
Foi arrastado pelo chão do estacionamento e jogado no porta-malas de um carro muito caro.
Capítulo 21
— Não sei Fabrício.
— Mas Rocha... A mulher dele falou que ele ligou dizendo que ia demorar, mas o policial de plantão o viu sair. Só que ele não chegou em casa. São duas da madrugada.
— Já falei... Não sei.
— Pode me fazer um favor?
— De que tipo?
— Consegue uma foto do tal Juca Fumaça e outra do Vermelhão? — Fabrício perguntou para Rocha na delegacia. — Me manda via Whatsapp, que eu sei que você usa. Vou estar aqui
no condomínio. E Rocha... Seja rápido!
— Está bem — concordou o policial coçando a cabeça, tentando saber se o que andava postando na Internet também chegou aos olhos do Delegado.
Fabrício se levantou. Subiu até o sétimo andar do condomínio e foi visitar Mariana. Seu Paulo olhou-o arisco. Fabrício carregava seu computador pessoal.
— Boa noite. Poderia conversar com suas filhas?
— Só vai encontrar minha tochter, minha filha Mariana; minha tochter Melissa tá na casa do namorado. Veja se isso é possível.
— Paulo! — repreendeu Sandra se aproximando deles. — Melissa já é uma mocinha. Estava na hora de namorar.
Fabrício sorriu apenas.
— Dá para chamar as três?
— Por quê? — estranhou Sandra.
— Acho que temos que conversar Senhora... Em família.
O casal encarou Fabrício. Chamaram Mariana, que descansava no quarto. Chamaram Patrícia, mas ela não estava em casa.
Paulo ficou assustado.
— Ela sumiu!
— O quê? — perguntaram uníssonos, Sandra, Fabrício e Mariana que entrava na sala.
Patrícia estava no cemitério. Havia conseguido entrar sem ser vista. Chorava desesperadamente em frente à lápide de seus pais. O túmulo havia sido aberto e fechado recentemente.
Chorava tal qual a criança que ainda era.
Colocou algumas flores na lápide do pai. Sentia falta dele, mais do que da mãe, sempre ausente.
Mas alguém estava atrás dela.
— Ahhh?! — Patrícia deu um grito, que foi abafado pela mão que lhe segurou a boca. — Você me assustou… — falou Patrícia para o rapaz atrás dela. — Por que tá aqui? Tava me
seguindo? — mas ele não respondeu. Ainda a olhava sem se mexer. Patrícia voltou a olhar para a lápide. — Sabia que seus corpos foram tocados pela polícia? Eles descobriram
que meu pai morreu primeiro. Não entendo. Quem matou minha mãe? Por que, Cacá? Por que a mataram afinal? — continuou sem responder. — Por que me olha desse jeito estranho?
Não!!! — gritou para a mão que se levantara contra ela.
Patrícia foi atingida com o vaso de flores que havia trazido.
Capítulo 22
O policial que vigiava o apartamento de Eduardo saiu correndo para o apartamento de Fabrício. Precisava avisá-lo de algo. Não o encontrou, mas foi achá-lo no apartamento dos
Jung, ainda chocados com a notícia que era um policial disfarçado, e ainda mais chocados quando Mariana identificou Juca Fumaça, como o motorista do carro verde que as atingira
no acidente.
Contudo Fabrício ficou cabreiro com a foto de Vermelhão. Tinha fé de que Mariana o reconheceria, mas ela nunca o havia visto, nem mesmo em frente à escola.
Chamaram Fernando, no segundo andar. Fernando foi pior ainda. Não reconheceu nenhum deles. Havia sido atingido por trás quando entrou no quarto de Cibele, e não viu o cara
que empurrou Eduardo pela janela, pois estava de máscara.
Estava tudo na mesma, a não ser a prisão decretada para o tal detetive de Brasília. A Polícia Federal não demorou a localizá-lo. Encontraram-no numa espelunca, assistindo
a um show de strip-tease, nas bocas de Brasília. Foi levado para a delegacia e preso após Osmar, por trás de um espelho falso, ter confirmado ser ele o detetive que prestava
serviços ao Senador.
Ele não demorou a falar o que Fabrício e Rocha já sabiam: que o Senador não queria matar sua mulher. Fabrício leria isso mais tarde, num e-mail enviado a ele. Disse que o
próprio Senador queria chantagear a mulher com as fotos dela e do amante. Queria ameaçá-la de mostrar as fotos a Patrícia, para assim forçá-la a largar o vício. Mas nunca
teve coragem de magoar a filha com a imagem de uma mãe promíscua.
O policial chegou quase sem voz.
— O menino fugiu!
— O quê? — Fabrício levantou-se da cadeira da sala dos Jung.
— O menino e a menina me pediram para pegar uma caixa de leite no alto da dispensa. Quando me virei... Eles não estavam mais lá.
— Mel?! — gritou dona Sandra ao desmaiar.
— Mãe? — descontrolou-se Mariana.
— E a empregada?
— Estava no banho.
— E o pai do garoto?
— No hospital.
— Droga! Mas que droga. Você não podia segurar os dois meninos?
— Eu interfonei para o seu Almeida, mas ele me disse que por lá não saíram.
— Dudu sai sempre pelo portão sul. O Zé abre pra ele o tempo todo — falou Mariana sob protestos de Fernando.
Fabrício correu até o apartamento de Eduardo. Pensou em ligar seu computador, mas não precisava ser tão bom quanto Eduardo nos computadores, para hackear algo.
Eduardo havia deixado na tela de seu computador três letras bem grandes: ‘USP’.
— Meu Deus… — foi só o que falou o policial Fabrício, indo atrás deles.
Capítulo 23
A Universidade de São Paulo estava deserta àquela hora da madrugada. Fabrício entrou silenciosamente. Um verdadeiro massacre o esperava. Ele encontrou cadeiras quebradas no
meio dos corredores, vidros espalhados por todos os lados, um rastro de sangue no chão.
— Meu! — exclamou ao passar a mão e verificar ser isso mesmo. — Mas quem? — se perguntou.
O jovem policial havia pedido reforço no caminho, mas chegou lá primeiro e chegou à Cidade Universitária mais rápido que a turma da delegacia. Caminhava naquele momento por
salas vazias e destruídas quando tropeçou.
“Droga!” esbravejou um silêncio.
Parecia ter havido muita luta por lá.
Fabrício ouviu vozes ao longe, tentou se localizar naquele espaço quase escuro. Nunca havia estado naquele lugar.
Chegou mais próximo do som e encontrou Eduardo caído ao chão.
— Eduardo? — chamou o rapaz quando foi atingido por trás.
Fabrício caiu ao chão. Tentou se erguer, mas foi atingido outra vez, por um chute perfeito.
Foi ao chão novamente, dessa vez fingindo ter desmaiado de olhos fechados.
Pôde perceber a respiração se afastar.
‘Estará sozinho?’, pensou Fabrício.
Esticou o braço lentamente e puxou Eduardo pela gola da blusa. Ele estava desmaiado, mas respirava.
— Eduardo? — chamou outra vez, agora perto dele.
Eduardo abriu os olhos. Estava atordoado, quase não enxergava naquela escuridão. Sua boca sangrava; havia apanhado muito.
— Ele pegou Mel... Pati... — e desmaiou de vez.
— Desgraçado!!! — gritou Fabrício atingindo o estranho que não esperava aquela reação.
— Ahhh... — de máscara, o estranho caiu no chão.
O estranho mascarado tentou se levantar, mas Fabrício girou outra vez; 360 graus de perfeição. Outra vez o estranho mascarado foi ao chão. Fabrício sobre ele. Seus corpos
rolaram de um lado para o outro.
Tentavam se socar.
— Sei quem você é — desafiou-o. Mas o estranho mascarado gargalhou. Fabrício tentou tirar-lhe a máscara e o estranho desviou atingindo-o. Seu estômago entrou centímetros para
dentro.
O policial estava ao chão, contorcido.
O estranho mascarado se levantou e acendeu as luzes. Fabrício abriu os olhos e viu-se num enorme tablado, que parecia ser um palco.
— Voilà! — foi o que Fabrício ouviu.
— Gosta de representar, Ricardo? — foi o que Fabrício falou.
O estranho mascarado riu demoradamente.
— Meu nome não é Ricardo.
— Não. É ‘Cacá’, o ator.
— Exato! Escolhi a profissão errada; gosto de ser teatral — ria Carlos Alberto ‘Cacá’ com ironia ao arrancar a máscara. — Sabe... Desde pequeno que o mundo realiza minhas
vontades. Nada mais justo que um cenário pra representar, não acha? — respondeu com uma pergunta.
— Você é ridículo, Cacá... — Fabrício falava debochado. — Ninguém se vangloria de misérias e é só isso que construiu.
— Não foi não! E o pai de Patrícia sabia disso. Vinha me combatendo durante esses anos. Ia a plenário me desmoralizar. Eu... Logo eu... O melhor, o filho do desembargador.
— E quem é você? Filho de um corrupto?
— Cale-se! Meu pai não é corrupto — e voltou a bater nele.
— Não... Ele não... — tossiu pela dor, pelo sangue na boca. — Que pena que não puxou a ele, não ‘Cacá’? — e Fabrício levou outro chute quando sacou a arma do coldre, e ficou
apontando sem saber ao certo para onde, com a vista embaçada e todas suas forças esvaecendo.
— Parado aí, meu!!! — gritou com a arma também em punho. — Devagar. Vai soltando devagar — ele viu o jovem policial largar a arma que carregava ao ver que ele apontava a arma
agora para a cabeça de Melissa.
Mas Fabrício sorriu calmamente, com o sangue frio a correr-lhe nas veias.
— Você não tem estômago para isso.
— O que? Acha que não? — Carlos Alberto caminhou para o lado dele arrastando o corpo desmaiado de Melissa com ele.
Fabrício não gostou daquilo e Carlos Alberto percebeu o interesse dele por Melissa.
— Ah! Veja só… O metido a tira americano tá com dózinha da garotinha?
— Você não tem estômago para isso — repetiu Fabrício com cinismo na voz.
— Acha que não sou capaz? Pois sua amiguinha vai morrer por sua causa, policial babaca.
Melissa se espremeu por dentro da fita adesiva que colava seus lábios. Também estava amarrada a um pedaço de tecido.
Fabrício olhou para os lados, para cima, para o chão:
— Já ouviu falar em Notre Dame? — perguntou.
Carlos Alberto se assustou com a pergunta.
— Do que tá falando, meu? — perguntou, ainda perto de Melissa.
— Da igreja. Igreja de Notre Dame.
— Já fui lá, e daí? — começou a se aproximar, agora de Fabrício, que sem sua arma se esticou na parede fria às suas costas.
— Há muito tempo dizia-se que havia demônios na igreja. Homens defeituosos, bruxos, feiticeiros... Paris era uma cidade infectada pela peste.
— É mesmo? — ironizava Carlos Alberto, que encostou o cano frio na testa do policial.
Deliciava-se com o suor que corria do rosto dele.
— Havia um homem na cidade que se chamava Father X. Era um exorcista.
— Que policial babaca, meu. Ah! Vai... Tá bom... Continua... Tô gostando da historinha pra boi dormir — ria.
Melissa olhou para Eduardo. Ele sangrava, jogado do outro lado da sala. Tinha as mãos amarradas, tal qual ela. Já Patrícia acordou, ficou encarando Carlos Alberto ‘Cacá’ ou
Ricardo virtual com lágrimas a escorrer dos olhos, percebendo o engano que fizera, percebendo o quanto havia errado.
Melissa voltou a prestar atenção no policial Fabrício que tentava, a todo custo, chamar a atenção de Carlos Alberto.
— Vamos idiota... Continua! Tô começando a gostar.
— Um dia, Father X foi chamado para exorcizar a Igreja de Notre Dame — falava Fabrício compassado, sem se preocupar com o tom irônico do agressor. — O rei não queria mais
frequentá-la, e a plebe não entrava mais lá. Father X passou uma semana sozinho dentro da igreja, e quando saiu, encarou o povo dizendo: ‘Libertei seus bruxos, seus piores
pesadelos!’.
— Eu sou seu pior pesadelo, policial babaca!!!
Fabrício, porém não se descontrolou, continuando a falar.
— ‘Não!!!’; gritava o povo ensandecido. ‘Não fizemos nada a Deus!!!’; Father X riu e disse: ‘If you believe in the light it’s because of obscurity; If you believe in happiness
it’s because of unhappiness; If you believe in God, then you have believe in the devil’* — e Cacá caiu no chão pelo tiro certeiro da arma do Delegado José Liberato. Fabrício
sorriu com gosto. — E que você seja bem-vindo no inferno! — completou para o rapaz ferido.
Todos se olharam.
* Se você acredita na luz é por causa da escuridão. Se você acredita na felicidade é por causa da infelicidade. Se você acredita em Deus então vai ter que acreditar no diabo.
Final
— Sabia quem era o fio da meada esse tempo todo? — questionou o Delegado José Liberato para Fabrício na saída da USP, logo após a chegada do reforço pedido por ele.
José Liberato tentava extinguir um fio de sangue que escorria de seu pescoço. O dardo com tranquilizantes havia rasgado a sua pele envelhecida.
— Não! — respondeu Fabrício, olhando Eduardo ao seu lado. — Foi o expert em computadores, aqui — e Fabrício o abraçou.
Eduardo sentiu dores nas costas.
— Ai — contorceu-se todo.
— Então foi você! — falou José Liberato todo sorrisos depois de dormir muito tempo no porta-malas do assassino.
— Não foi tão difícil assim, depois que cismei que o cara tinha que ser alguém muito perto da gente. Quando a Mel falou sobre o namorado virtual da Pati e o quanto sabia sobre
ela, fiquei lembrando umas coisas que ouvi a Berê falar, algo tipo, a mãe da Pati namorava todos os namorados dela, que tinha fissura por moleque e tal. Acredita que ela deu
em cima do Fê só porque namorou a Pati? — chacoalhou a cabeça. — Então pensei... É isso, o cara que transava com ela era o namorado da Pati. Só não imaginava que fosse ex
e atual ao mesmo tempo.
— Como assim Eduardo?
— Cacá é apelido de Carlos e não de Ricardo, e a Pati havia namorado o tal de Carlos Alberto, filho do desembargador. O cara errou ao usá-lo como nickname. Além do mais, era
a única pessoa que poderia mandar o Trojan Horse de volta para mim, na mesma hora que eu acessei a página do Judiciário...
— E você acessou o judiciário? — a voz de José Liberato foi mais para provocar medo que outra coisa.
— É que eu... Eu... — olhou um e outro. — Sim... E era pouco provável, mesmo que um cara estranho estivesse na mesma rede, e não tivesse aparecido pro Carlos Alberto. O vírus
tinha que ter vindo do mesmo computador. Foi uma coincidência e um azar muito grande eu pedir ajuda logo pro assassino, né? — balançou a cabeça, descorçoado.
— Coincidência ou não isso o deixou descontrolado — falou Fabrício. — Ele achou que você era um empecilho e partiu para o ataque.
— É! Ele cismou comigo desde a hora que o senti naquele quarto — Eduardo respirou bem fundo. — Mas, afinal, por que ele matou o Senador?
— Carlos Alberto era um menino mimado, acostumado a ter suas vontades. Só que se envolveu com amigos errados, e o pai não percebeu — disse o Delegado.
— Acontece muito! — exclamou Fabrício.
— O pai, um desembargador, sempre dentro da mais perfeita ordem, não percebeu que um dos carneiros de seu rebanho escapava ao seu controle e ordem. Carlos Alberto era viciado,
já havia sido preso por ter agredido uma namorada e quase matado um menino num simples jogo de futebol. Era um rapaz com problemas sérios de adaptação social e o pai sempre
abafava tudo — e José Liberato tentou secar o sangue que voltava a escorrer. — As boas notas na faculdade pareciam ser ‘borracha’ para o pai.
— A dificuldade de adaptação social para um indivíduo nos dias atuais não é muito diferente da dificuldade de adaptação séculos atrás. Port isso o bullying se infestou tanto
na nossa sociedade. Pais e mestres vêm muitas vezes esses jovens como excêntricos, cheios de mania, mas que transbordam problemas de ética.
— Nosso professor disse que o critério da ética não pode ter fundação na adaptação social.
— Exato menino Eduardo. Muito exato!
— Mas nem sempre a adaptação num grupo social é uma falha do cara.
— Exato menina Melissa — sorriu o delegado. — Será que deveríamos realmente nos adaptar a uma sociedade doente?
— Mas afinal, por que ele matou o Senador?
— Sabe, menino Eduardo, com certeza, certeza mesmo nada pode afirmar, a menos que o tal Carlos Alberto conte. Mas podemos fazer uma pequena retrospectiva.
— Consegue visualizar o que aconteceu realmente naquela noite, Delegado?
— A minha experiência permite, como você disse, ‘visualizar’, mas será só isso. Veja bem, o Senador contratou um detetive particular. Esse detetive tirou fotos comprometedoras
da esposa e o menino Carlos Alberto para ele chantagear a esposa.
— Aí veio a festa...
— Aí veio a festa que a menina Patrícia avisou o pai que iria. Eu imagino que o Senador queria dar um basta naquilo e chamou o menino Carlos ‘Cacá’ Alberto para uma conversinha,
quando chegasse a São Paulo, aproveitando a saída da filha. Deve ter inventado alguma história para arrastá-lo até a cobertura. Mas o menino, porém, estava arisco. Tinha medo
de Cibele se denunciar ao vê-lo lá. Isso já vinha deixando-o descontrolado. A empregada deve ter aberto a porta para ele e se retirado. Quando o Senador chegou, levou-o para
a biblioteca e entregou-lhe um documento qualquer que provava sua participação no crime, que vinha investigando nos portos, ou talvez algumas fotos, não sei. Tentou mostrar-se
decidido a entregá-lo à polícia. Deve ter havido discussão, e alta. Muita gente ouviu gritos nos andares abaixo da cobertura. Contudo o Senador quando viu que de nada adiantaria,
se dirigiu ao quarto brigando, não sei, e que numa distração de Carlos Alberto, aproveitou e sacou a arma que sempre guardava na gaveta da mesinha de cabeceira. Mas a ideia
do Senador era outra: queria culpar o Carlos Alberto de sua morte e assim afastá-lo de vez. Meus policiais são bons, disseram-me que a arma foi disparada pelo punho do próprio
Senador. O menino deve ter ficado em pânico quando viu ele se matar, não sei. Correu e escreveu a tal carta que estava um tanto ilegível, tentando parecer um suicídio. Iria
atestar aquilo até o fim. Mas o tiro foi ouvido pela empregada, que desmanchava as malas da patroa que sempre as abandonava à porta da entrada, para que as roupas fossem lavadas
e passadas. A menina Patrícia disse que ela sempre fazia isso após cada viagem. A empregada viu a cena do Senador morto e correu. Carlos Alberto deve ter ido atrás dela e
no caminho, arrebentou a caixa de vidro onde o Senador colecionava as armas, tirando a adaga. A empregada pegou o telefone, ligou para o único número que lembrava, o do celular
da menina Patrícia, e saiu em disparada. Ele a alcançou, e ela foi a segunda a ser morta, mas a primeira pela adaga. Percebe aí o erro? — José Liberato viu Fabrício e Eduardo
se olharem.
— Eu disse a Mel que se um ladrão tivesse entrado pra roubar ou matar, levaria sua própria arma.
— Sim. Carlos Alberto não estava preparado para aquilo, foi coisa de momento — pigarreou, coçou o cavanhaque. — Bom... O motorista ouviu os gritos, os mesmos que a menina
Patrícia e a menina Melissa ouviram ao telefone, e correu atrás sendo surpreendido pela fúria de Carlos Alberto que, talvez meio dopado, tinha de estar, atacou o motorista
na cabeça e arrastou-a por toda a sala. Era o sangue do motorista que pintava as paredes de vermelho. Depois subiu e matou Cibele, que devia estar gostando de tudo aquilo,
no resto de cólera que sobrava — o Delegado viu Eduardo se espremer.
— Então eles se conheciam?
— Sim! O Senador e o pai de Carlos Alberto eram amigos e trabalhavam num projeto de lei que proibia a entrada de pequenos navios estrangeiros nos portos brasileiros. Esses
navios traziam sempre contêineres que não eram abertos por política interna do porto. O Senador desconfiava que os contêineres carregassem drogas pesadas e pediu ajuda a seu
amigo. O Desembargador, pai de Carlos Alberto, investigou e chegou em Juca Fumaça, líder do bando e dono do barco Lili, que costumava navegar sem bandeira de origem. O garoto
sempre estava por perto e tinha acesso a essas informações. Foi atrás de Juca Fumaça pensando em ter drogas à hora que quisesse. Juca Fumaça confirmou na delegacia que havia
sido procurado pelo filho de um grandão, mas não disse quem, e em troca das informações de como andavam as investigações, receberia drogas. Nem o pai nem o Senador sabiam
do envolvimento de Carlos Alberto.
— Que cara esperto, não? Tinha a faca e o queijo na mão, e soube usar — falou Fabrício. — Então, através da Internet, mostrou-se para Patrícia como outro apaixonado, mudando
o nome para Ricardo, a fim de sacanear o Senador e sua família.
— Cacá! Cabelos vermelhos! — lembrou-se Eduardo. — O que vai acontecer com a Pati?
— Ela vai estudar na Suíça. Estava tudo programado e já pago pela mãe, que queria se livrar dela e ficar com o menino Carlos Alberto só para ela. Ele era jovem, tinha fogo,
e a drogava o tempo todo.
— Cruzes! — exclamou Eduardo. — E a tia? Seu Paulo disse que não a convenceu!
— A tia estava foragida. Tinha dado muitos cheques sem fundo na praça. Quando soube que a polícia estava atrás dela, sumiu. O pai da menina Melissa a encontrou trabalhando
numa lanchonete, e prometeu pagar todas as suas contas se ela assumisse a menina. Acho que agora que ela sabe que a Patrícia vai morar na Suíça, talvez aceite.
Os três deram de ombros e os dois policiais deixaram Eduardo entregue em seus devaneios. Eduardo imaginava o futuro sombrio de Patrícia de Moura. Olhou para frente e viu Melissa
abraçada ao pai. Teve vontade de abraçá-la também.
Sentia dores, sono, paixão. Melissa o viu observando-a. Ele desviou o olhar quando percebeu ter sido pego.
Eduardo estava feliz ao todo, por ter seus amigos seguros, fora de perigo. Mas mais ainda, por saber que era apaixonado por sua melhor amiga.
Melissa largou o pai e foi ao seu encontro.
— Ainda quer me namorar?
— Não te defendi como o Fabrício fez. Não sei se mereço você...
Melissa riu:
— Sabe que eu acho?
— Não.
— Acho que você não vai crescer nunca, né Dudu? — e o beijou.
Um beijo fadado a não terminar.

“A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz”.
George Eliot.

— Qua lé Mel? Ele não teria descoberto se a inteligência do Fê não fosse ‘tão’ aflorada — gesticulava Eduardo. — E não tivesse entregado que era eu quem escrevia aqueles bilhetes de amor... — e caiu na risada.
— Sei... — Melissa olhou para Mariana, as duas balançaram a cabeça o achando um verdadeiro palhaço.
Eduardo tinha 16 anos e uma rala barbicha despontando. Cínico, era o tipo de garoto que agradava a uma menina. Tinha uma bela moto, um belo sorriso e uma maneira nada saudável de gozar da cara das pessoas.
Filho único, descendente de portugueses, gostava de ter muitos amigos. Seus cabelos pretos, cacheados, balançavam de um lado para outro.
Melissa olhou para Mariana outra vez e piscou. As duas irmãs observavam o belo bumbum de Eduardo marcado pela calça jeans justa.
Havia uma velada disputa de olhares entre as irmãs.
— Ulalá! E sabe o que mais? — continuava Eduardo a gargalhar, absorto em suas ideias. — O babaca achou que tava abafando com aquela ‘gatinha secreta’.
Melissa roeu a unha, esqueceu que as havia pintado de manhã.
— Droga! — praguejou baixinho, gostava de roer unhas com a mesma frequência que as pintava de marrom.
Marrons eram, também, os longos e lisos cabelos herdados da família japonesa da mãe, que iam até a cintura. Melissa achava que cabelos longos, ajudavam a disfarçar o que considerava um defeito: seus quadris.
Tinha 15 anos, e estudava no primeiro ano do Ensino Médio.
Melissa era dark, oposto da delicada irmã Mariana, que era doce até quando pensava.
Com cabelos loiros, olhos menos amendoados que a irmã e azuis, herdados da família alemã de seu pai, Mariana vestia cores suaves, falava manso e educadamente. Tinha 13 anos e estudava no nono ano do Ensino Fundamental II junto com Eduardo, repetente nato.
Foi ela quem cutucou Melissa; as duas observaram quem se aproximava.
— Oi! Como vão as gatas do pedaço? — Fernando da Silva aproximou-se do pequeno grupo que ainda teimava em conversar do lado de fora da classe.
Mariana foi a primeira a responder:
— Tamos nos preparando pra festinha do Artur, Fê — falou para provocar.
— Ah! Vocês também descolaram um bico naquela social? — sorriu o desligadão Fernando.
Eduardo agora ficou bravo. Fuzilou Fernando com os olhos e entrou para a classe arrastando Mariana com ele.
— Não liga não, Fê — Melissa ria. — O Dudu não foi convidado pra social do Artur. Ele tá uma fera porque não consta na lista.
— Que pena! E por que ele não tá na lista?
— É! Por que né Fê?
Mas Fernando ou Fê nem se tocou, com 14 anos, primeiro ano do Ensino Médio, era ‘dez’ em todas as matérias, mas um zero a esquerda no quesito ‘pegar as coisas no ar’.
Tinha a pele jambo, bonita e brilhante, como os dentes que apresentava; e Fernando era bonito.
Vivia na academia, malhando.
Melissa o olhou, riu de novo ao se lembrar da cara de Artur quando Fernando comentou que Eduardo estava sacaneando um babaca, sem se tocar que era ele, o Artur, o tal babaca.
Artur ficou furioso. Prometeu vingança se não fosse o fato de Eduardo ser campeão de capoeira, e ter o dobro do seu tamanho.
— E a Pati? Vai no rolo? — continuava Fernando, sem nada entender.
Melissa respirou profundamente antes de responder:
— Não sei Fê. A Pati anda muito esquisita desde que arranjou aquele namorado virtual.
— Vir... O quê? — disse, arregalando os olhos.
— Virtual Fê. Chiii! Eu sei que tudo isso vai ‘além das nossas capacidades computacionais’ como diz o Dudu, mas quer dizer que ela conheceu um cara numa sala de Chat, sabe?
E eu que pensei que essas coisas não existissem mais — riu. — Com tanto App de relacionamento no cel… — deu de ombros indo para a classe. — Só sei que tão ‘namorando’ há uns dois meses — Melissa viu Fernando piscar centenas de vezes tentando compreender.
— Ué! Ela não me disse nada quando a gente ficou na festa junina.
— É... Eu sei... — continuou Melissa. — Mas ela anda estranha, desde que o pai dela começou a viajar muito a Brasília. E foi após as eleições, que a Pati mudou.
— Todas as meninas mudam Mel.
Melissa girou os olhos 360 graus.
— Fê! Não tô falando ‘dessa’ mudança. Falo de humor, mudança de humor. Ela tá mais fria comigo. Não me liga, não faz compras no shopping... Só se preocupa com aquele computador.
— O Dudu também. Quero jogar bola e toda vez que interfono ele tá no computador.
— É outra coisa estranha. Dudu é tão lento na matemática e um nerd nos computadores. Acredita que ele deu um jeito no computador super ‘NASA’ do papai?
Fernando estava absorto demais para entender que dar um jeito no computador hoje em dia todo mundo dava, mesmo que no similar da Agência Espacial Americana, que também não era tudo isso. Porém, era difícil encontrar o Fernando dentro dele próprio, quando se propunha a pensar.
Fernando da Silva era muito desligado.
Fernando estudava na mesma classe de Melissa e Patrícia de Moura, de 15 anos, e que junto a Eduardo e Mariana, formavam a animada galera dos cinco amigos que estudava na mesma escola, frequentava o mesmo clube, e morava no mesmo Condomínio Jardim das Flores.
Melissa ouviu o último sinal de entrada. Todos se dirigiram para suas salas de aula.
A coisa parecia se acalmar nos corredores.
— Vou falar com ela — prometeu Melissa. — Agora vamos pra aula.

 


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Capítulo 1
Junho.
Brasília, Distrito Federal.
Uma pancada forte se fez ouvir na porta de nogueira maciça.
— Quem é? — perguntou uma voz cansada e rouca.
— Com licença, Excelência. Aquele homem estranho está aí, de novo.
— Pode mandar entrar, Osmar.
— Sim, Excelência — e o secretário saiu fechando a porta. Retornou pouco tempo depois, sem dessa vez anunciar trazendo um homem de aspecto desengonçado e um tanto marginal,
de barba malfeita causando uma péssima impressão.
O secretário Osmar fez uma careta enojada quando o homem passou por ele. Já o Senador da República Ângelo Antônio de Moura sentiu um aperto no peito. Passou a mão pela camisa,
discretamente. Tinha se enervado no último plenário. Estava defendo com unhas e dentes, a nova lei que proibia navios sem bandeiras navegarem pela costa brasileira.
Havia gritado por duas horas pedindo que contêineres sem carga definida não mais fossem trazidos ao Brasil.
Lutava, há muito tempo, por leis que permitissem maior autonomia aos portos brasileiros.
Seus amigos, juízes e desembargadores o apoiavam totalmente.
O Senador era um homem de bem.
— Sente-se! — ordenou ao estranho.
— Excelência! — disse o homem com uma mesura e certa irreverência.
Parecia rir do Senador toda vez que lhe dirigia a palavra.
— Vamos direto ao assunto — o Senador esperou o secretário sair a contragosto, o que não se importava tanto já que estava acostumado a ouvir por detrás das portas. — Já disse
que não quero que venha até Brasília — irritou-se o Senador. — Conversaremos quando estivermos em São Paulo.
— Mas tua mulher tá aqui. Pensei que era pra segui-la a todos os lugares...
— Eu sei... Eu sei… — falou impaciente. — Tem os resultados?
— Olha! Acho que temos que rever nosso preço.
— O quê?! — gritou o Senador ao se levantar num rompante. A idade avançada não permitia mais atitudes como aquela. Voltou a pôr a mão no peito. Sentiu algo se estrangulando
lá dentro. — Qual é o seu novo preço? — falou por fim.
— Quero 13 mil.
— Treze mil? Por algumas fotos?
— Quer provar pra tua filha que tua jovem e bela esposa te trai? — desafiou-o.
— Cale a boca, infeliz!
— Vou embora — e se levantou.
— Não! Espere! — suplicou o Senador.
— Tá me ofendendo desse jeito, Excelência. Até parece que não dá o devido valor ao meu trabalho...
— Está bem! — e abriu o cofre que se escondia atrás de um Volpi.
— Sabe o quanto me custa fazer esse tipo de coisa? — falava o homem sentado na cadeira forrada de vaqueta marrom.
— É! Imagino! Posso imaginar... — falava o Senador descontrolado. Pegou um pouco de dinheiro e suas mãos tremeram ao assinar o cheque.
O detetive sorriu por entre a boca cerrada. Deliciava-se com aquele desespero.
“Idiota!”, pensou sem dizer.
— Aqui está!
— Cheque nominal? Era só que faltava. Não tá pensando em cancelar quando eu chegar ao banco?
— Não seja ridículo. Não vou me colocar em riscos com você. Não tenho todo esse dinheiro. E o cheque é de nove mil. O resto leva em dinheiro. Sou um homem de palavra...
— Um político? De palavra? — falava debochado.
— Sou… — se perdeu no ar, vinha se descontrolando cada vez mais.
Sempre fora um homem honesto. Por toda a sua carreira.
— Então aqui tá teu presentinho — disse o detetive ao entregar um pequeno envelope.
— Vá embora e esqueça que me conheceu.
— Pode acreditar — riu ao sair e bater a porta.
O Senador chorou feito uma criança. Olhou a foto da filha no porta-retrato, ao lado da mesa.
— Eu não posso Patrícia. Minha pequena Pati. Não posso decepcionar você — chorava o velho Senador da República. — Foi um erro. Desde o começo... Um erro.
A menina no porta-retrato sorria alegremente para a máquina.
O Senador pegou sua maleta, arrumou seus pertences dentro dela, se levantou da cadeira, foi até a lareira e queimou o envelope antes mesmo de abri-lo.
Capítulo 2
Junho.
São Paulo, capital.
O apartamento do casal Sandra Pii Jung e Paulo Jung estava abarrotado de plantas. O casal de engenheiros havia transferido seu escritório para a sala de estar temporariamente.
Aquele projeto era muito importante para a carreira deles. Iam aproveitar a saída das duas filhas, Mariana e Melissa, para resolverem problemas de trabalho.
As filhas, contudo, discutiu a tarde toda por causa de um mesmo vestidinho preto.
Após tal definição, Melissa foi atrás da amiga Patrícia, mas o telefone cansou de tocar até ser atendido.
— Pati? Por que demorou pra atender? Fiquei preocupada.
— Por quê?
— Porque sei que teus pais ainda tão em Brasília. Tua empregada nunca atende o telefone! Isso é incrível! Tua mãe falou pra minha que já quis despedi-la, mas teu pai não deixou.
— Papai se preocupa comigo. Mamãe sai toda hora e fico muito sozinha. Maria me faz companhia.
— Puxa! Maria é? E nós?
— Ah, Mel! Desculpa, não quis dizer isso.
— Tá! Tá bom! E então? Com que roupa vai?
— Não vou.
— Não vai? A social do ano e você não vai? Chiii! O que tá acontecendo?
— Nada! Só não quero ir à festa do Artur. Aquele cara é um chato.
— Tudo bem. Concordo em gênero, número e grau, mas ele dá festas da hora. E agora é você que tá sendo chata.
— É que eu marquei com o Ricardo às nove horas e além do mais, meus pais voltam hoje.
— Teu pai chega as sete como sempre e nós só vamos à festa às dez. Já deu até tempo pra falar com o tal ‘Ricardo Virtual’. Não tem desculpas.
— Não fala assim dele! — falou num estranho tom.
— Chiii! Não precisa ficar brava. Eu não conheço o cara mesmo. Então? Vamos? Vai amiga... Por mim, vai?
— Tá bom. Mas não vou ser figurinha fácil.
— Pati, você nunca foi figurinha fácil. O Fê que o diga.
— Ahhh! Já falei pro Fê, desencanar. A gente ‘ficou’ na festa junina e ele agora não larga do meu pé.
— Ele tá apaixonado, Pati.
— Paixão? E a inteligência ‘dez em todas as matérias’ dele permite saber o que é isso? Ele dá um fora atrás do outro. Pisou no meu pé três vezes na festa junina. Além do mais,
não namoro babaca.
— Tudo bem! A gente não olha pro Fê nem pro Dudu. Ok?
— Você não olha pro Dudu? Bebeu?
— Puxa Pati. Tô tentando esquecer e é assim que você me apoia?
— Ah, Mel! Dudu é um crianção. E o Fê é um idiota.
— É! Todos os homens da terra são lixo. E o ‘Ricardo Virtual’?
— Eu vou desligar Mel. Não me torra hoje.
Melissa riu e mudou de assunto rapidinho.
— Sabia que a mãe do Fê vai nos levar de Mustang?
— Tá! Tá bom! — e desligou.
Patrícia olhou para o porta-retrato na mesinha do telefone e viu seu pai triste na mais recente foto tirada.
“Pobre papai”; pensou.
Capítulo 3
Enfim, já estava na hora, e juntos, no hall de entrada do condomínio, Eduardo, Fernando e Patrícia, que estava com a cara mais irritada do mundo, esperavam Melissa e Mariana.
— Vai, Pati. Tenta! Não dói nada ser feliz! — debochou Eduardo rindo.
— Ah! Não torra Dudu — alterava-se Patrícia.
Eduardo se contorcia todo de rir, sentado no sofá do hall de entrada. Olhou para o relógio, depois para o elevador, e se levantou:
— Que coisa horrível que ficaram esses toldos nas sacadas. Laranja? Não podia ter sido algo mais... Light? — falava Eduardo, sozinho, agora do lado de fora.
— Sai desse frio, Dudu! — reclamava a empregada Berenice.
— Sai você daqui, Berê. Acha que preciso de babá no hall?
— Seu pai me pediu pra descer. Sabia que ocê ia tomar frio.
— Ser filho de pai médico é mesmo um saco — falou para o elevador que chegava. — Que demora! — exclamou para Melissa e Mariana, abrindo os longos braços.
— Calma! — exclamou Melissa. — Ainda são dez horas. Quer o quê? Arrumar a casa?
— Não! Quero ver se sobrevivo à chata da minha empregada e... Cuidado!!! — gritou Dudu. Mariana e Melissa deram um pulo do chão. Olharam para baixo, olharam para Eduardo que
ria. — Vão pisar na baba de ódio que a Pati espuma — falou debochado.
— Ah! Não torra! — falou Patrícia se virando para ir para a garagem.
— Você, hein! Tem que animar a festa — repreendeu Melissa.
— Ulalá! Estou desagradando às meninas? Além do mais a Pati tá um saco.
— Ela tá com problemas. Tá preocupada que o pai não chegou. Deixa ela — respondeu Melissa, agora se irritando, indo atrás de Patrícia na garagem.
— Espera! — agarrou o braço dela. — A Berê tem que subir ou conta pro meu pai que sou quem vai dirigir.
E Berenice sumiu das vistas.
— Ué! Não ia ser a mãe do Fê?
Eduardo só piscou.
— Fica fria — gargalhou.
— Vamos! Vamos! — dizia Mariana tentando colocar a turma dentro do carro.
A casa do Artur não ficava além de dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Como o condomínio, também não ficava longe da escola. A noite estava escura e as ruas,
desertas. O inverno de São Paulo prendiam as pessoas dentro de casa.
As luzes começavam a ficar forte, já no fim da alameda e a casa iluminada de Artur se fez.
A festa rolava solta lá dentro e o som estava ensurdecedor.
— Puxa! Nem a campainha do celular se esgoelando a gente escuta — reclamou Mariana. — Mel! Tira do modo avião ok? Pati! Deixe no vibracall.
Melissa e Patrícia fizeram uma careta pela ordem dada, mas acabaram obedecendo.
— Vou beber uma cerveja. Quem quer? — perguntou Fernando se dispersando.
— Eu quero! — falou Melissa.
— Vai com calma! — disparou Mariana outra vez a controlá-la.
— Olha aqui... A menininha aqui é você — respondeu Melissa. — Não se esqueça.
Mariana só fez bico e dispersou.
— Vou ficar por aqui — falou Eduardo, baixinho, só para Melissa ouvir. — Não vou querer aquele emplumado me barrando na frente de todo mundo.
— Mas tá frio...
— Você também? — reclamou ao se separarem.
Melissa arranjou um copo e logo se pôs a bebericar. Achava o máximo beber. Sabia do erro, mas pensava que aquilo a fazia sentir-se mulher. Sua mãe controlava-a como podia.
E Mariana era sempre a encarregada do fato.
Melissa foi ao encontro de Patrícia. Estava ‘babando fel’ como dizia Eduardo.
— Algum problema? — perguntou ao se chacoalhar ao som de uma das antigas The Chemical Brother.
— Por que acha que tenho? — respondeu Patrícia com uma pergunta.
— Por nada. Dá pra ver sua irresistível sede de felicidade.
— Ah! Não me torra, Mel.
— Hei?! — disse Melissa agarrando-a pelo braço quando ela ameaçou sair. — Somos ou não somos amigas?
— Hoje não tô pra conversa.
— Brigou com o Ricardo? — Melissa viu Patrícia a fuzilar com seus olhos verdes. Seus cabelos loiros se agitaram nervosamente. Astuta, Melissa leu a linha de seu pensamento
já que Patrícia não se deu ao trabalho de abrir a boca. — Chiii! Brigou! — respondeu ela mesma.
— Tô com problemas, Mel. Não me torra.
— Eu sei. Não precisa ser grossa.
— Desculpa tá? É que não sei como resolver.
— Quem é Ricardo, Pati?
Patrícia de Moura se esticou toda.
— Não sei! — e Patrícia só escutou o abrir de boca da amiga que ficou aberta por bons segundos. — Tô falando sério. Não sei. Eu nem preciso contar nada porque ele conhece
todas as minhas encanações, sabe tudo sobre mim. Mas ele pouco ou nada fala dele. Eu nada sei sobre ele, Mel.
— Você conversa com um cara totalmente estranho através do teu computador que sabe toda a tua vida, e não se preocupa em saber quem ele é? — e se propôs a roer as grandes
unhas pretas. — Droga! — lembrou-se que estavam pintadas.
— Você não entende. Ricardo é delicado; sutil. Ele me entende, me conhece como ninguém. E eu já não consigo viver sem ele.
— Cruzes! Você conheceu o cara há dois meses e tá desse jeito? É sexo virtual?
— Não tô falando de sexo.
— Não? Achei que sua vida se resumia nessas quatro letras.
— Não debocha tá? Se não quer me entender, então vai embora.
— Te entender? Como pode dizer que não sabe mais viver sem um cara que nunca viu? Já viu? Ele te mostrou alguma foto? Dizem que o que não falta é caras fake…
— Ele não é fake, Mel. Disse que é ruivo, tem 1.70m, tem 38 anos e tá apaixonado por mim.
— 38 anos?! — gritou Melissa.
— Não grita! Que droga! Quer que todos escutem? — olhava para todos os lados.
— Desculpe! Puxa, não esperava que ele fosse tão velho. E... Ele sabe sobre você? Tipo... Que você tem 15 anos?
— Já disse que ele sabe tudo sobre mim. Até o que eu não contei.
— Nossa! Que legal... Quer dizer... Puxa... Que loucura... E o que você quer dizer com ‘o que não contou’?
— É disso que tô com medo. Ele me entende, conhece meus desejos como se me conhecesse.
— Ai, Pati. Já contou isso pra sua mãe? — estranhou a amiga.
— Minha mãe só sabe dela. Meu pai trabalha demais. Quem se importa? — deu de ombros.
— Puxa Pati. Você tá com problemas mesmo e... Chiii! Seu celular tocou?
— Não vibrou — respondeu fria.
— Não! Ele tocou. Tá tocando.
— Ninguém vai ligar pra mim sabendo que tô numa festa, querida Mel.
— Mas ele tá tocando. Daqui... — e esticou a mão que ficou no ar.
— Não! — e desligou o aparelho.
— O Ricardo tem teu número?
— Tem! Eu dei a ele.
— Então por que tá fugindo dele se deu o número pra ele ligar?
— Não tô fugindo. Tô dando um tempo... Tô assustada. — e voltou a ligá-lo. A campainha do celular disparou. — Puxa o celular tá tocando outra vez. Estranho... Alô?
— Patrícia?! — gritava uma voz do outro lado.
— Alô! Maria? É você? — tentou reconhecer. — Que tá acontecendo? Espera Maria... Espera... Para de gritar, Maria. Não escuto direito. O quê? Sangue? Maria? Alô! Alô! — e ficou
estática a olhar o aparelho.
— Sangue? — Melissa arregalou os olhos. — Liga pra lá.
— Maria não atende o telefone, lembra?
— Liga Pati!
Patrícia digitou.
— Droga! — errou seu próprio número. — Aquela empregada bebeu.
— Liga Pati! — insistiu.
— Calma Mel! Tá me assustando. Alô! Maria... Maria o que tá acontecendo?
— Patrícia!!! Socorro!!! — gritava Maria desesperada, desligando de novo.
— Desligou! Ai Mel! Tô assustada. Parecia o telefone sem fio. Ele range quando andamos. Acho que ela tava correndo.
— Correndo do que? — olhou Patrícia assustada. — Calma! Vamos procurar o Dudu.
Melissa arrastou Patrícia para fora da casa. Encontraram Eduardo ao lado da piscina, conversando animado com uma bela loira.
— Dudu, vem cá! — Melissa o puxou.
— Hei?! Calma lá. Não vê que tô ocupado? — sorriu maroto para a loira que estava ao seu lado.
— Vem cá! — arrastou-o.
Eduardo quase deslocou o pescoço com a força de Melissa ao segurar na gola da camisa dele para puxá-lo.
— Ficou louca?
— A Maria ligou gritando da casa da Pati.
— Viu uma barata?
— Não debocha seu palhaço — esbravejou Patrícia. — Não vê que é sério?
— Você? Séria? — gargalhava. — Com quem?
— Dudu! — exclamou Mel.
— Que foi? Tá! Tá bom! Que quer que eu faça? Que ligue insinuando como ficar em cima da cadeira até nós voltarmos, ou quer que eu saia da festa e vá lá matar a barata?
— Que você vá lá matar a barata! — falou Patrícia, furiosa.
— Patrícia! Baratas não sangram — falou Melissa com voz estranha.
As duas se olharam.
— Ulalá! — Eduardo achou graça. — Do que tão falando?
— Precisamos ver o que tá acontecendo com a Maria.
— Por favor, Dudu — suplicou Melissa. — Ela falava sobre sangue.
— Sangue? Tá! Tá bom! Esperem aqui! — exclamou Eduardo ao correr atrás de Fernando. — Precisamos sair daqui… — falou para si mesmo. Encontrou Fernando na sala de música, ele
estava absorto como sempre. Não conversava com ninguém. — Vem Fê! — agarrou-o.
Fernando levou um banho da cerveja que segurava. A décima desde que chegara.
— Quê? Que foi? — falou meio aéreo, vendo-se todo molhado.
— Preciso de você... É... Pensando bem... Não! Preciso do seu carro.
— Malandrinho, hein?
— Como é que é?
— Tá aqui. Cuidado com os arranhões no couro do banco. Minha mãe me mata.
— Aranhões? Ah! Não... Quer dizer... Tá! Tá! Deixa pra lá! — e correu para encontrar Melissa e Patrícia sem cogitar o que ouviu. — Vamos! — exclamou ao encontrá-las novamente.
— É você quem vai dirigir?
— Ulalá! Quem trouxe vocês?
— Você bebeu.
— Eu não bebi.
— Ah! Claro! Depois de toda aquela conversa com aquela loira oxigenada na... — e Melissa parou no que Eduardo só arregalou os olhos para o assunto. — Tem razão! Você dirige!
Entraram no carro e partiram.
Os três chegaram ao portão norte do Condomínio Jardim das Flores e Eduardo recuou.
— Por que parou? — perguntou Patrícia.
— Tô pensando se... Ou se vou... Não... Acho que vou... — Eduardo olhou as duas se olhando. — Eu não bebi tá? — ele as viu voltarem a se olhar. — É que vou colocar o carro
pelo outro portão porque conheço o Zé, e ele tá acostumado a me deixar entrar sem perguntar — olhou as duas se olhando outra vez. — Ahhh! Não vou falar mais nada.
Elas também não perguntaram.
Como de costume, Zé estava na guarita. Sorriu para Eduardo e deixou-o entrar em outra garagem. O Condomínio possuía três blocos separados. O edifício dos cinco amigos era
o Bloco Jardim Azaleia com entrada e saída pelo portão norte, o Bloco Jardim Girassol tinha entrada e saída pelo portão sul, e o terceiro bloco era o Jardim Margarida com
entrada e saída pelo portão oeste, mas as garagens ficavam no mesmo pavimento, se misturando.
— Também nem vou perguntar o que tá acostumado a fazer nessas garagens — falou Melissa.
Foi a vez de Eduardo só a olhar pelo retrovisor. Agora estava tenso demais para brincar.
— Vamos até o jardim central e de lá pegamos o elevador do nosso bloco.
— Certo! — concordaram as duas.
— Droga! — exclamou Melissa.
— O que foi?
— Esqueci a Mari na festa.
— Depois a gente volta pra lá. Vamos ter que trazer o Fê também.
— Mas meus pais não podem nos ver.
— Ok! Tomaremos cuidado — e Eduardo e elas se dirigiram para o hall do elevador.
Fazia muito frio.
O jardim central ligava os três blocos, e as câmeras de circuito fechado giraram para o outro lado enquanto os três corriam desesperadamente para não serem pegos.
Alcançaram o salão de festas que ficava logo na entrada. Abriram à porta envidraçada e chegaram ao hall correndo para o elevador.
Fernando da Silva morava com o pai Marco da Silva e a mãe Adriana da Silva e a empregada Amália Alves no segundo andar. Marco era um eminente Adido Cultural africano, que
veio morar no Brasil e aqui fez família. Mariana Pii Jung e Melissa Pii Jung moravam com o pai Paulo Jung e a mãe Sandra Pii Jung no sétimo andar. Eduardo morava com o pai,
o Dr. João Vitor Ferreira, e a empregada Berenice de Oliva no décimo primeiro andar. Patrícia morava com o pai, o Senador Ângelo Antônio de Moura, e a mãe Cibele. Ainda moravam
com eles a empregada Maria dos santos e o motorista Juvenal Amorim na cobertura duplex, do Bloco Jardim Azaleia.
Os 23 andares a serem percorridos pelo elevador nunca demoraram tanto para serem atingidos. Quando chegou, Eduardo, na frente das duas, recuou quase as derrubando dentro do
elevador.
— O que foi? — falou Patrícia, receosa.
— Cepá! Não tenho certeza se devemos entrar.
— Por quê? — desesperou-se Patrícia.
Ela correu na frente dele e Eduardo a puxou pelos cabelos. Estava tão atordoado que usou mais força do que queria. Patrícia recuou na marra, com os cabelos ainda nas mãos
dele.
A porta estava aberta. A mala da mãe dela jogada logo na entrada, toda desfeita, com roupas espalhadas para todos os lados.
— Ladrão? — questionou Melissa, assustada.
— Não sei — respondeu Patrícia.
— Calma! Se não podemos avisar a portaria, vamos com calma — falou Eduardo. — Onde tá a escandalosa da empregada?
— Percebeu? — falou Melissa, baixinho.
— O quê? — perguntou Eduardo.
— O silêncio.
Os três se olharam.
Eduardo cerrou os olhos, abriu-os novamente, e criou coragem, empurrado por Melissa, que o cutucava.
Entraram e a cena não poderia ser mais assustadora. As paredes brancas estavam pintadas de vermelho. Pareciam ainda estar quentes.
Eduardo colocou sua mão e arregalou os olhos. Ficou boquiaberto. Já as meninas se calaram; parecia ser para sempre.
A sala era muito grande e bem decorada. Bem no meio, uma colossal escada de mármore de Carrara.
Eduardo sentiu o som sob seus pés. Olhou para baixo. O fino cristal guardado há séculos em caríssimas cristaleiras tinha virado pó aos seus passos; quadros arrancados da parede,
porcelanas chinesas quebradas, tapetes persas rasgados por fina lâmina.
Eduardo sentiu seu coração disparar. Olhou para Melissa e Patrícia confuso, mas subiu a escada sozinho. Dirigiu-se para o quarto da mãe de Patrícia. Foi automático. O sangue
fazia uma trilha até lá.
A porta havia sido arrombada e a chave ainda pendia na fechadura, pelo lado de dentro quando Eduardo entrou.
Os lençóis da cama estavam jogados a esmo e um corpo jazia no chão. Eduardo se aproximou e viu que cabelos loiros cobriam o rosto deformado. O sangue, enegrecido, não permitia
uma identificação precisa, mas um som estridente se fez por trás dele.
Eduardo se virou rapidamente.
O quarto grande e espaçoso estava pouco iluminado. Suas janelas, abertas, traziam o forte vento de fora para dentro. As cortinas de fino voile balançavam, e a luz da Lua incidia
seus poucos raios no quarto, confundindo seus contornos.
Eduardo se virou outra vez. Girou 360 graus dentro do grande e espaçoso quarto sentindo a presença de alguém. Apavorou-se com o corpo morto aos seus pés e a porta agora distante.
— Mel? — chamou. — Pode vir até aqui? — e um novo movimento. — Quem tá aí?! — gritou descontrolado.
Algo estalou e Eduardo olhou para o chão. Ia pegar a lâmina que se achava ao lado do corpo quando Melissa entrou naquele momento.
— Não faça isso!!! — gritou desesperada.
Eduardo parou e se voltou para ela. Ia colocar suas digitais na arma do crime.
“Tem alguém aqui”, falou como que para si mesmo.
— Minha nossa!!! — gritou Melissa ao ver a mulher morta caída no chão.
— Não!!! — desesperou-se Patrícia ainda na porta. — Mãezinha!!!
— Saiam daqui!!! — gritou Eduardo para elas. — Vão!!! — e olhou outra vez em volta. — Muito esperto. Muito mesmo — e recuou.
Não sabia o que fazia nem o que falava, mas enrolou a mão na manga do suéter que usava, olhou o quarto mais uma vez e fechou a porta trancando-a por fora. A fechadura, porém
estava muito danificada e Eduardo ficou na incerteza se havia conseguido trancar a porta.
Um grito mais dolorido ainda se fez.
— Paizinho!!!
Eduardo correu. Não conhecia o caminho, mas seguiu o estrondo que Patrícia fez, ao cair desmaiada no chão.
— Ai! Meu Deus, Dudu! Socorre a gente! — falava Melissa, nervosa, ao tentar segurar o corpo de Patrícia que havia caído em cima dela.
Eduardo se aproximou. Olhou para dentro do quarto onde só o Senador dormia, separado da esposa. Ficou paralisado pela cena. Seus olhos se arregalaram para o chão ensanguentado
e ameaçaram mesmo soltar das órbitas; o pai de Patrícia, o Senador Ângelo Antônio de Moura estava sem a têmpora, estourada pelo tiro certeiro da arma que ainda segurava nas
mãos e a metade de seus miolos se espalhara pelo chão.
Eduardo vomitou. Contorceu-se e tossiu perante tamanha atrocidade.
— Não... Não posso…
— Pelo amor de Deus, Dudu. Ajuda!
— Não, posso... Cadê meu pai? Vou chamar meu pai...
— Não!!! Não pode Dudu. Vai ter que explicar nossa presença aqui.
— Pai... Pai... Não posso — voltou a vomitar, caindo no carpete sujo de sangue, vendo tudo escurecer, desmaiando.
Melissa largou Patrícia no chão e correu.
— Meu Deus, Dudu!!! — chacoalhava-o. — Acorda!!! — gritava Melissa para o amigo desmaiado.
Capítulo 4
— Acorda! Vamos! — falava uma voz com acentuado sotaque português ao longe, muito longe para Eduardo que tinha viajado pelo seu inconsciente.
— Pai? — tentou enxergar na névoa que se transformara sua vista.
— O que estava fazendo longe da festa? Não consegue parar de se meter em encrencas? — questionou o Dr. João Vitor vendo que Eduardo enfim acordara. — Você me deixa ‘krililik’
da vida! — e deixou o filho ainda sob efeito do calmante que lhe havia injetado após ser chamado por Melissa pelo interfone.
Saiu do quarto para encontrar o Delegado na sala.
— Posso interrogá-lo agora, Doutor? — perguntou o homem que se identificou como Delegado José Liberato.
Era de grande estatura, barriga proeminente e cabelos ralos, sem, porém, serem brancos. Carregava uma arma e um semblante duro.
— Precisa mesmo? — disse o Dr. João Vitor, convidando-o a sentar-se.
— Seu filho foi encontrado na cena de um crime, Doutor. O assassino e pós-suicida é um Senador da República. E ainda pergunta?
— Ele para nós não era um Senador. Era só um vizinho. Pai da amiguinha de meu filho. E ele apenas havia dado uma carona de volta para elas.
— A menina a que se refere veio com uma amiga, que largou sua irmã mais nova na festa aos prantos.
— Percebe então que foi só uma carona? — tentou um sorriso que não convenceu muito.
— Carona? Seu filho dirigiu o carro emprestado de outro amigo. Nem ele nem o amigo tinham carteira e nem idade para dirigir.
— Já sei que vou responder por isto, Delegado — tentou Dr. João Vitor se acalmar. E nem sorrir iria mais adiantar. — Mas ainda não vejo a necessidade de meu filho ser interrogado.
Ele não bebeu, a Melissa me garantiu isso.
— Isso é bom saber… — sabendo que sabia não ser aquilo, não jovens como eram. —, mas a menina Melissa também falou que eles voltaram da festa mais cedo por causa da menina
Patrícia, que não estava se sentindo bem. Encontraram a porta aberta e na curiosidade própria da idade, entraram encontrando a mãe da menina Patrícia, morta, com uma adaga
ao lado. Adaga é uma arma tão incomum, não?
— O Senador era um colecionador famoso. Qualquer um que leu sobre ele nos jornais sabe de sua famosa coleção de armas raras.
O Delegado José Liberato apertou os lábios; estava pensando.
— O Senador matou a esposa e se suicidou depois com um tiro na cabeça, deixando uma carta onde se despedia da filha e explicava o crime. E ainda não quer que o interrogue?
— Não sei. Foi tudo tão repentino... E a pobre menina — falou o Dr. João Vitor, pai de Eduardo. — Ela está em estado de choque.
— Sinto informar que o apartamento ficará lacrado até terminar o inquérito ou até ordens contrárias do juiz. Pedi para uma policial feminina reunir algumas roupas da menina
Patrícia. Uma vez lacrado, qualquer abertura no apartamento será considerada invasão.
— Compreendo.
— O quarto da menina fica no fim do corredor do segundo andar, não?
— Não conheço a planta da cobertura. É diferente dos ‘apartamentos - tipo’.
— Tudo bem, isso é de menos. Todas as fotos já foram tiradas pela criminalística. Serão reveladas na delegacia. Agora vamos esperar o legista terminar as autópsias preliminares
para retirarmos os corpos. Sabe se a menina Patrícia tem parentes aqui em São Paulo?
— Parece que tem uma tia, irmã da mãe. Ela não vinha muito aqui. Não a conheço pessoalmente. Ouvi falar. Sabe como é um condomínio. Acho que ela mora no Espírito Santo, se
não me engano. O Senador vinha de uma família muito pequena, tinha muita idade, nada sei sobre a família dele — o médico sentou-se precisando realmente sentar-se.
— Já ouvi falar muito do Senador. Era um homem honesto, não? Digo um desses políticos acertados. Soube que defendia os portos brasileiros — e o Delegado olhou em volta. O
apartamento do Dr. João Vitor era um apartamento muito bem decorado. A falecida mãe de Eduardo era mulher de muito bom gosto. — Por que ele matou a empregada e o motorista?
— O que disse? — perguntou o Dr. João Vitor voltando à realidade.
— Perguntei... Deixa para lá. Estava só pensando alto — concluiu o Delegado José Liberato. — Vamos fazer o seguinte: Vocês não viajam sem me avisar e deixo o depoimento do
menino para depois de amanhã. Está bem assim?
— Sim. Obrigado, Delegado.
— Aproveite e vá também, Doutor. Vai responder por seu filho ter pegado o carro.
— Está bem — suspirou irritado ao olhar a porta do quarto do filho.
A polícia havia cercado o condomínio depois de o Dr. João Vitor ter telefonado para a delegacia. Achavam ter sido assalto seguido de morte. A bomba veio mesmo quando a polícia
chegou e encontrou a carta do Senador em cima da mesa.
O médico despediu-se do Delegado e voltou ao quarto de Eduardo que ainda tinha aspecto meio verde. Tinha vomitado mais duas vezes desde que foi encontrado pelo pai.
E Melissa não estava muito diferente. Tinha uma bolsa de gelo na cabeça. Parecia que ia explodir. Levou bronca do pai de Eduardo, do próprio pai, da mãe e da irmã Mariana
também. Ainda teve de contar ao pai de Fernando que ele havia ficado na festa, bêbado.
O edifício veio abaixo.
Já Patrícia havia sido levada para a casa da amiga Melissa. Dormia no quarto de Mariana, que chocada, chorava o tempo todo. Ninguém conseguiu esconder o fato dela.
Fernando também estava em estado de choque. Não conseguia falar. Era um rapaz de saúde delicada apesar da aparência abrutalhada e saudável. O coração de Fernando não pulsava
na mesma intensidade que a inesgotável energia da juventude.
Eduardo se levantou e foi até a cozinha arriscar-se a comer alguma coisa. Era hora do almoço, e sentiu o estômago pedindo ajuda. A empregada Berenice, Berê para os garotos,
estava com um lenço na mão. Era muito amiga da Maria, a empregada do Senador.
— Oi, Dudu. Ocê tá com fome? Quer que eu prepare um prato?
— Não sei Berê. Tenho medo de vomitar outra vez — sentou-se depois de ter vindo se arrastando pela sala. — Meu estômago sempre foi uma caca — olhou para a empregada. — Onde
tá meu pai?
— Seu pai saiu. Foi verificar a tal pressão da mãe do Fernando. A mulher tá tendo um ataque atrás do outro desde que soube que o filho emprestou o carro cavalo.
— Mustang.
— Esse aí.
— Perua idiota! — exclamou Eduardo para o lado da parede que olhava.
— O que você viu?
Eduardo ergueu a cabeça tão rápida que sentiu o repuxo.
— Como assim, Berê?
— O Delegado tava falando na cozinha, pro outro policial, que ocê delirava que falava sobre alguém no quarto.
Eduardo gelou. Sentiu o chão abrir aos seus pés. Arrepiou-se todo.
— Ahhh... Não me lembro de nada depois de ver o corpo do Senador... Ai! Que coisa horrível — e segurou a cabeça como se ela fosse cair.
— É, foi sim. Aquele político que todo mundo falava retalhou a cara da mulher, retalhou a pobre da Maria, retalhou aquele motorista metido e depois deu um tiro nos miolos.
Eduardo arregalou os olhos. Algo chacoalhou dentro dele.
— O que você di... disse? — gaguejou.
— Que o político retalhou a mulher... — e foi cortada pelo desespero de Eduardo.
— Não! Não, foi. Foi o final.
— Final? Ãh! Não entendi?
— Nada! Nada! Esquece! — e se levantou. — Preciso sair.
— Hei?! Aonde vai? Teu pai te proibiu de sair...
— Só vou à casa da Mel. Vê se ela tá bem — e saiu.
— Êita! Teu pai não vai gostar!!! — gritou Berenice para Eduardo, mas o elevador já havia partido.
Eduardo respirava descontrolado. Tinha o coração acelerado em descompasso e suas ideias se embaralhavam.
Tocou a campainha e foi a própria Sandra quem abriu a porta:
— Sim? Ah! É você!
— Posso falar com a Mel?
— Não sei se deveria deixar você entrar. Foi muita confusão ontem.
— Por favor, dona Sandra.
— Sabe que não gostei nada disso de pegarem carro, Eduardo. A gente não é rico Eduardo, passa muita dificuldade. Não somos ricos como vocês que fazem o que querem Eduardo.
Eduardo se encolheu. Era muito nome próprio para uma noite só.
— Por favor! É rapidinho.
— Rápido, então — apontou furiosa para o fim do corredor. — Ela está no quarto dela.
Eduardo agradeceu. Bateu na porta do quarto de Melissa.
— Mel? Posso entrar? — falou da porta.
— Dudu? — abriu a porta. — Que faz aqui? — Melissa não teve respostas. Eduardo entrou e fechou a porta com a chave. Melissa estranhou. — O que houve?
— Sua mãe tá uma fera com nós ‘ricos’.
— Nós quem? Ah... Ela falou da dificuldade de como chegaram até aqui, que o Mustang é caro, que se tivesse que pagar danos no...
— Ela tá certa, Mel — Eduardo cortou a fala de Melissa. — A gente meio que abusou da sorte.
— Meio? — sentou na beirada da cama. — A gente abusou.
— Tem uma coisa pior que isso — também se sentou na beirada da cama dela. — Ontem, quando tava no quarto da mãe da Pati... Olha, pode parecer maluquice, mas... Tinha alguém
lá dentro.
— O quê?! — berrou se erguendo.
— Não grita! Que mania! — também se levantou. — Por favor! Tô falando a verdade.
— Você é um palhaço Dudu, mas agora não é hora.
— Não! Falo a verdade. Juro!
— A polícia não viu ninguém. Eu não vi ninguém...
— Eu vi! — exclamou cortando a fala de Melissa outra vez. — E tenho provas.
— Como?
— Por que o pai da Pati mataria a mãe dela com uma adaga? A empregada? O motorista? Pra depois se matar com um tiro?
Melissa ia responder, mas não sabia o quê.
Ficou estática.
— Como sabe tudo isso?
— A Berê ouviu os policiais falando. Então por que não a matou com a arma?
— Por que não a matou com a arma?
— Porque foi outra pessoa.
— Como assim?
— Assim como, Mel? Você tá me confundindo — pulava descontrolado.
— Eu? Eu confundindo você? Você me diz que o Senador matou a mulher com uma adaga e se matou com um revolver... É isso?
— Isso mesmo.
— Vem aqui no banheiro, Dudu. A Mari tem a mania de ouvir minhas conversas. E destranca a porta, pelo amor de Deus, se não minha mãe vai pensar outra coisa, né?
— Tá bem — e se dirigiram para o banheiro.
— Você se apoia em muito pouco, Dudu. Acho que tá vendo muito filme.
— Acha que tô louco?
— Acho, não. Tenho certeza! Foi muita emoção pra você. Já comentou isso com seu pai?
— E falar pra ele que estivemos lá por outros motivos? Lembra? Fomos ver o porquê da empregada tava gritando — Eduardo viu Melissa pensando. — Por que a empregada telefonou
pra Pati, afinal? — Eduardo voltou a perguntar.
— Não sei. Ela só gritava ‘Patrícia!’, ‘Sangue!’, não sei ao certo.
— Então a mãe da Pati já tava morta?
— Eu já falei que não sei Dudu. Chegamos juntos, lembra?
— O pai da Pati ia voltar naquela noite. Vinha com a mulher de Brasília?
— É.
— E espera pra matá-la dentro da própria casa e ainda ‘liquida’, como diria meu pai, a empregada e o motorista?
— Acha que havia ladrão lá?
— Claro que havia. E foi ele quem matou todos.
— Temos que contar pra polícia.
— É. Acho que sim. Ou...
— Ou?
— Dar uma fuçada.
— Em quê?
— No crime, ora.
— Não acho certo.
— Vamos fazer isso mesmo — falou uma voz por trás, ainda parada no meio do quarto de Melissa.
— Pati? Você tava escutando?
— O necessário! Dudu... Quero pegar o desgraçado que matou meus pais.
— A polícia vai fazer isso. Era só o que faltava a gente se meter — Melissa tentava argumentar.
— Mas e se a polícia não conseguir provar que havia alguém lá? — dizia Eduardo.
— Então é porque não havia ninguém lá — disse Melissa, que balançava a cabeça nervosa.
— Mas eu vi — insistiu Eduardo.
— Então prove!
— Não posso. Nem sei como — deu de ombros.
— Olha Dudu, é legal o que você tá fazendo, mas pensando melhor, acho que a Mel tem razão. Temos que contar pra polícia e deixá-los trabalhar, se não o cara vai fugir.
Eduardo respirou profundamente:
— Ulalá! Vou levar uma bronca pior da que levei da tua mãe, mas vamos pegar o desgraçado, tá bem? Vou ligar pro meu pai e contar tudo — e saiu depois de beijar Patrícia e
Melissa na testa.
Eduardo voltou para sua casa já imaginado a cena.
Capítulo 5
Eduardo não sabia se a delegacia assustava mais do que a cena que presenciara na cobertura de Patrícia, na noite anterior. O Delegado José Liberato não poderia ter sido o
mais condescendente. Foi até gentil. Mas Eduardo estava apavorado com o barulho da delegacia. Nunca havia estado em uma antes. As ideias que fazia de um distrito policial
não iam além dos filmes de televisão.
O rapaz sentado ao seu lado era da sua idade. Parecia um office-boy daqueles que já tinha visto tantas vezes na Praça da Sé. Ele datilografava numa máquina de escrever, tudo
o que Eduardo falava e até o que o pai de Eduardo resmungava.
João Vitor Ferreira estava uma fera com o filho. Eduardo se limitava a olhá-lo por debaixo dos cílios. Nada no mundo o fazia encará-lo.
O Delegado José Liberato fez todas as perguntas possíveis e impossíveis. A única coisa a acrescentar era o verdadeiro motivo pelo qual saíram da festa, e a sensação de Eduardo
ter sido observado no escuro do quarto da mulher morta. Eduardo também contou sobre o celular de Patrícia e o escândalo da empregada Maria.
O Delegado José Liberato marcou uma ‘entrevista’, como preferiu chamar, com Melissa e Patrícia, apesar do estado delicado da menina.
Mas Eduardo nada soube sobre o conteúdo da carta do suicida. Ficou curioso, chegando mesmo a perguntar, mas seu pai lhe deu um pisão tão forte que teve que engolir o grito.
Engoliu também a curiosidade.
— Pronto! Aqui está seu depoimento — disse o Delegado estendendo o papel e a caneta para Eduardo. — Agora os dois assinam e estão livres.
— Livres... — escapou da boca de João Vitor.
Eduardo voltou a se encolher.
— O Doutor também terá que prestar depoimento. O Código de Trânsito Brasileiro prevê que ao condutor do veículo, cabe a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos
praticados na direção do veículo. No caso de filho menor, os pais são responsabilizados pela infração pagando a multa e sendo penalizado com perda de pontuação em sua Carteira
Nacional de Habilitação.
— Que inferno! — exclamou nervoso. — Sou um cardiologista. Como posso perder pontos assim?
— Isso não é problema nosso. Sinto muito, Doutor.
João Vitor não se conteve. Beliscou o braço de Eduardo, que outra vez engoliu o grito. Era um cara legal; sabia que tinha errado. Os dois se levantaram e saíram da delegacia.
— Vou colocar você num táxi e mandá-lo para casa. Não pare pelo caminho, entendeu?
— Sim! — foi só o que falou.
— Hoje, as aulas foram suspensas por causa do pai da Patrícia. Ele era muito amigo do diretor da escola. Mas amanhã você tem prova. Trate de esquecer toda essa baboseira e
estude, pelo amor de Deus. Se não vai passar a vida inteira no Ensino Fundamental — e fez chamou um carro pelo aplicativo.
Encaminhou Eduardo e tomou outro carro, agora para o consultório. Estava atrasado para uma cirurgia de emergência.
— Saco! — esbravejou Eduardo no carro.
O motorista o observou pelo retrovisor. Eduardo se encolheu. O carro parou na frente do condomínio. Já eram oito horas. A noite caíra rapidamente. O frio estava de lascar
naquele inverno paulistano.
— Boa noite, Eduardo! — exclamou o zelador Almeida.
— Oi! — respondeu se apertando ao casaco.
— Que frio, não?
— É! — e entrou.
O caminho até o Bloco Jardim Azaleia era distante. Quinze mil metros quadrados de jardins cuidadosamente trabalhados cercavam o condomínio, um dos mais belos do bairro.
As câmeras de circuito fechado giravam em busca de algo fora do comum, mas foi Eduardo quem encontrou algo. O som de uma pisada em falso o fez parar de andar. As nuvens, carregadas,
escondiam a luz da Lua. A noite estava escura. Eduardo se virou. Já havia percorrido um bom caminho desde a portaria quando teve a sensação de estar sendo seguido.
Balançou a cabeça.
“Estou ficando louco”, pensou.
E um novo estalar se fez.
— Quem tá aí?! — gritou Eduardo não esperando a resposta. Correu o máximo que pôde. Alguém corria também. — Sr. Almeida?! — gritava ele, correndo sem olhar para trás. — Socorro!!!
— berrava descontrolado, em pânico quando um zumbido se fez nos seus ouvidos. — O quê...? — se perguntou aproximando do jardim central que unia os três blocos.
A câmera parecia não o acompanhar. Seu Almeida, na portaria, nada viu nem ouviu e Eduardo pisou em algo novamente. Lembrou-se da cobertura de Patrícia, o quarto dela ficava
daquele lado.
Instintivamente olhou para cima. Viu as sacadas envidraçadas. Vinte e três andares de janelas, todas fechadas. Olhou para o chão e viu cacos de vidro.
“Vidros?”, estranhou quando novo zunido o obrigou virar-se rapidamente para trás.
Algo caiu ao seu lado, assustando-o. Olhou para o outro lado. Tentou localizar de onde viera o som em meio às luzes que pareciam estar perdendo luminosidade.
Estava tudo vazio; somente plantas, chafariz, escuridão.
Eduardo entrou em pânico outra vez. Correu e aproximou-se de seu bloco. Olhou para dentro do salão de festas. Batia com força nos vidros, mas não havia ninguém.
— Alguém aí? Por que estão trancadas? Oi? Quero entrar... — do lado de fora, o jardim, o chafariz e outro pequeno estalo debaixo dos pés de Eduardo que voltou a procurar o
que era. Seu tênis grudou em alguma coisa. Viu um reflexo de vidro no chão. — Vidros? — perguntou-se agora atônito. O chão estava cheio de pequenos cacos de vidro. — De onde?
— e Eduardo ouviu um novo zunido.
Mais forte, mais próximo, diferente.
Esse zunido o fez parar de vez. Caiu de joelhos na porta do salão de festas no meio do belo jardim que o rodeava; Eduardo, as plantas, o chafariz, e algo que o acertou na
perna esquerda.
Eduardo levantou-se por puro instinto de sobrevivência. Correu percebendo que não corria que sua perna esquerda estava ferida que algo o adormecia. Corria pelo jardim quando
caiu num arbusto. Rolou para o outro lado, ouviu passos, não sabiam onde Eduardo estava. Eduardo também não sabia. Ficava cada vez mais tonto, não se lembrando do que fazia
ali.
Olhou para si mesmo. Estava molhado, gelado. Suas mãos, ensanguentadas, mostravam que havia mais um corte em seu corpo.
Chacoalhou a cabeça e olhou para cima quando mais vidros despencaram e um novo dardo o acertou agora na perna direita.
Eduardo dessa vez caiu e não conseguiu se levantar. Tentou se arrastar, mas a cabeça girou. Sentiu ânsia. Vomitou até engasgar. Algo embrulhava seu estômago para presente
quando viu sua mão cheia de sangue.
“Pai?!”, mas o grito não saiu.
“Berê?!”, e suas forças se extinguiam.
Mais vidros caíam no chão.
— Outro dardo... — balbuciou ao desmaiar no impecável jardim de azaleias, girassóis e margaridas com as passadas pesadas do zelador que corria para socorrê-lo.
Capítulo 6
— Eduardo? Consegue me ouvir? — falava com calma, o Delegado José Liberato.
O menino abriu os olhos. Suspirou até.
A visão não poderia ser melhor. Viu Melissa chorando ao lado de sua cama.
— Ulalá! Morri? — brincou sarcástico.
— Ahhh! — exclamou Patrícia que estava logo atrás. — Ele já tá bom — e saiu do quarto.
— Oh! Dudu, como pode brincar com coisas tão sérias? — reclamou Melissa.
— Você está bem, meu filho? — falou o pai, Dr. João Vitor.
— Não sei pai... Ainda sinto sono, cãibra, dor — e passou a mão no ouvido. — Dói muito.
— Tem de ter dores mesmo. Dormiu quase dois dias — concluiu Berenice no outro lado da cama.
O quarto de Eduardo estava lotado. Além do Dr. João Vitor, de Melissa e Patrícia, e do Delegado, chegaram Fernando e Mariana, que vieram assim que souberam pela empregada,
que Eduardo havia começado a resmungar.
— Agora, acho que seria melhor todos saírem, para o Eduardo se recuperar mais rápido. O quarto está cheio e abafado e ela ainda está com um pequeno princípio de pneumonia.
— Pneumonia? Do que tá falando, pai?
— Você foi achado desmaiado no jardim pelo zelador. Estava todo molhado no meio das flores.
— Molhado? Flores? Ai... — se mexeu na cama. — Agora me lembro.
— Poderia conversar com seu filho, Doutor?
— Pode sim, Delegado.
Todos começaram a sair.
— Eu fico! — exclamou Melissa.
— Por favor, querida. Chamo você depois, está bem? — afirmou o pai de Eduardo.
— Tá bem — saiu desgostosa. — Chiii! Tem alguma coisa errada. Sei que tem — falou Melissa ao ouvido da irmã.
Mariana apenas a olhou. Não disse nada. A porta foi fechada.
Lá dentro, o Dr. João Vitor adiantou a conversa:
— Meu filho não estava drogado...
— Está bem! Está bem!
— Não, não está nada bem. Ontem o Senhor insinuou que ele havia se drogado. Fiz todos os exames. Era uma espécie de tranquilizante usado em animais. Gente de circo usa muito;
é suficiente para derrubar um elefante de uma tonelada por vinte e quatro horas.
— Não imagino por que alguém adormeceria seu filho no meio do jardim de seu edifício — insinuou o Delegado.
— Pois também não tenho a mínima ideia, Delegado. Poderia você, o profissional aqui, me responder?
— Não precisa se descontrolar Doutor. Não apresentei queixa-crime contra seu filho. Só quero entender.
— Posso falar? — perguntou Eduardo ao conseguir uma chance. Os dois o olharam. — Foi ele... O ladrão.
— O quê? — perguntaram em uníssono.
— Só ele pra querer me matar. Isso prova que existia alguém no quarto da morta.
— Está escondendo mais alguma coisa, menino?
— Não! Claro que não! Juro pai — olho um. —, juro Delegado — olhou outro.
João Vitor andou para um lado, o Delegado para o outro. Os dois se encontraram no meio do quarto.
— Não compreendo a entrada deste ladrão na história. O Senador chegou a São Paulo e quebrou o pau com a mulher. A empregada se intrometeu e foi morta. O motorista deve ter
entrado no rolo por encobrir as saídas da esposa traidora, e foi morto. O Senador matou a esposa e depois se matou. Deixou uma carta em que explicava tudo. O caso do Senador
foi encaminhado ao Ministério Público, que designou um juiz. As provas foram aceitas e o caso encerrado. Não conseguimos provar que a casa foi assaltada.
— Mas e as roupas jogadas? — perguntou Eduardo.
— Prova de que houve discussão. É o que eu disse: os empregados entraram no rolo e foram mortos.
— Incrível! Não consigo ver aquele homem tão calmo e cordial como um assassino dotado de tanta frieza — o Dr. João Vitor ainda tentava deglutir a coisa.
— É assim mesmo que são os assassinos, Doutor — disse o Delegado olhando em volta. — Bom, o caso foi encerrado por falta de provas contrárias.
— Mas meu filho sofreu um atentado, não?
— Não tem cabimento um ladrão naquela hora, Doutor.
— Ele podia estar assaltando a casa e se viu no meio da cena quando foi interrompido. Acabou não conseguindo fugir.
— É! É viável! — coçou o queixo. — Bem... Vamos colocar um carro com dois policiais em cada portão. São três portões, não são?
— Sim. São três entradas independentes — confirmou o Dr. João Vitor. — Isso já foi levado em questão nas reuniões de condomínio, mas ninguém toma uma decisão quanto ao controle.
Cada bloco de apartamentos tem sua entrada equipada com uma câmera de circuito fechado, que só permite ver quem entra ou sai daquele bloco.
Eduardo se encolheu. Ficou com medo de saberem que entrava e saía com o carro dos amigos e até do próprio pai pelo portão norte, para não ser visto pelas câmeras do portão
sul.
— Vamos iniciar outra investigação para não desvirtuar o caso do Senador. Não acredito mesmo numa ligação. Até mais! — e se dirigiu para a porta do quarto.
— Acompanho-o Delegado — disse o pai de Eduardo.
— Quanto tempo ainda vou ficar de cama? — falou Eduardo com o pouco de voz que saía da garganta.
— O Dr. Alfredo acha melhor você se restabelecer por mais um dia. Você já perdeu mesmo a prova de matemática.
— Ulalá! — exclamou Eduardo. O pai o encarou. — Desculpe pai. Foi mal — sorriu feliz.
— Não fique tão feliz assim, Eduardo. Vai repor a prova quando melhorar.
Eduardo sorriu morno. Esperou o pai e o Delegado saírem e se arriscou a ligar na casa de Melissa, já que imaginava que o celular de ambas havia sido confiscado pela mãe.
— Alô! — atendeu dona Sandra.
— Por favor, a Melissa — tentou disfarçar.
— Dudu? É você?
— Não! — disfarçou mais uma vez. — É o professor de música da Patrícia.
— Patrícia tem professor de música?
Eduardo fez uma careta:
— Sim, Senhora.
— Está bem. Vou chamá-la.
— Quem é mãe? — perguntou Melissa que vinha de encontro com a mãe. Estranhou o telefonema. — Alô? Quem é?
— Eu, Dudu, mas disfarça.
— Oh! Obrigada, então. Claro, eu falo pra ela.
— Preciso falar com você antes que morra de vez.
— Cruzes! Ah... Claro, o Senhor tá sendo muito gentil. Passarei seu recado. Claro! Claro!
— Para com essa baboseira, Melissa, que eu não consigo me lembrar do que vou falar. Que saco!
— Pediu pra dis... Oh! Claro, claro — dizia, olhando para a mãe que não desgrudava dela.
Melissa tentava a todo custo disfarçar.
— Cê tá sem cel?
— Sim.
— Droga! Então vai por aqui mesmo.
— Sim… — Melissa ainda sorria para a mãe.
— O Delegado José Liberato falou que não podia ter ninguém lá dentro na hora da morte da mãe da Pati, mas eu vi. E ele me viu e tentou me matar.
— Cruzes!
— Cuidado, Melissa. Disfarça! Que saco! Presta atenção. Meu pai falou que o cara podia estar assaltando e foi envolvido no crime sem querer. Tem duas coisas que não entendo...
Uma era que a Maria gritava sobre sangue pra Pati, e o Delegado falou que a empregada morreu primeiro... Sabe quem morreu primeiro? — perguntou franzindo a testa.
— Chiii! Como vou saber?! — quase gritou.
— É! Tem razão! Outra coisa; eu não vi aquela carta. Tô com uma impressão... Cepá.
— E agora?
— Agora que tive pensando... — coçou a cabeça.
— Você? Pensando? — riu. Olhou para trás. Viu o olhar de sua mãe e engoliu o sorriso. — O professor tem toda razão.
— Vou matar você quando te vir. Vou sim, viu Mel?
— O que quer afinal? — sussurrou.
— Você sabe o número do telefone daquele cara que namorou a Pati?
— Qual deles?
— Essa é boa. Um entre os cem — falou irritado. — Aquele Mel. Que faz direito e é filho de um grandão no Judiciário.
— O Carlos Alberto? Filho do desembargador Pereira?
— Eu não sei o nome dele. Só quero saber se é ele. Lembra? A Pati falou que os pais eram amigos... Será esse?
— E como vou saber? Tá! Vou perguntar... Tá! — e Melissa desligou.
— Era o Dudu?
— Não, né mãe? Se fosse ele ligava no meu cel.
— Seu celular está comigo.
— Pra cê vê...
Sandra se virou para ir embora.
— Era o professor de música da Pati — correu Melissa a emendar. — Ele tá tão chateado, coitado.
— Mais um namorado? — parou de andar.
— Chiii mãe, que coisa feia.
— A sua amiga já namorou meia cidade, e eu sou a coisa feia?
— A Pati é carente, mãe. Só isso.
— Sem-vergonhice mudou de nome?
— Chiii! — e se foi.
O juiz encarregado iria decidir o destino de Patrícia que tomava calmante. Nem a polícia, nem os amigos sabiam onde estava a tia dela. Patrícia estava dormindo no quarto de
Mariana enquanto Mariana estava no quarto de Melissa.
As irmãs Jung dormiam juntas desde a morte do pai de Patrícia.
E Melissa não entendia o que Patrícia fazia para ocupar o tempo. Não lia, não assistia televisão, não ia à escola. Não queria mais se arrumar, nem tomar banho. Vivia abandonada
arrastando-se pela casa da amiga. Também não queria de jeito nenhum falar sobre a tia. O pai de Melissa, Paulo Jung, insistiu com ela. Estava preocupado com a menina, órfã.
Mas nada a fazia falar.
Melissa aproveitou o silêncio no apartamento. Entrou e encarou Mariana.
— O Dudu tá com problemas. Vou te contar tudo e você vai me provar que cresceu Ok?
Mariana levou um susto.
Ficou mais assustada depois que ouviu o relato da irmã.
Capítulo 7
O Sol mal raiou e a polícia agira como o esperado. Colocou, discretamente, na frente de cada portão do condomínio, um carro com dois homens vestindo roupas civis. Eduardo
não foi à aula naquele dia. Patrícia também não.
Na bem a verdade, Patrícia não tinha mais ânimo para nada. Seu caso havia sido encaminhado para o Juizado de Menores, e a juíza responsável designou que, na falta da tia que
não conseguia ser localizada, ou ainda na falta de qualquer parente vivo, com condições para criá-la, a Corregedoria do Menor tomaria sua tutela e elegeria uma tutora fixa.
Patrícia corria o risco de estudar em um colégio interno.
Aliás, era o que sua mãe vinha tentando fazer. Era do gosto de Cibele Garcia de Moura que sua filha única estudasse na Suíça, numa renomada escola para moças, e de lá saísse
com a Faculdade de Administração, concluída.
Depois de muito custo, Melissa conseguiu o nome do ex-namorado da amiga. Patrícia não queria se lembrar dele e nem que seus pais haviam sido grandes amigos no passado. Melissa,
por sua vez, queria muito mais. Pediu uma ficha completa. Patrícia andava tão desligada da realidade que, no final das contas, acabou por responder sem contestar.
Fernando, Mariana e Melissa foram para a escola que ficava a dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Dava para ir a pé e numa corrida, chegava-se em lá em cinco
minutos. As aulas se desenvolviam, normalmente; era período de provas bimestrais. Mas Mariana estava avisada, iria mentir sobre uma repentina gripe de Melissa.
A assinatura da mãe, facilmente copiada pelas duas, foi arranjada em um bilhete falso. O diretor da escola estava tão consternado com os últimos acontecimentos que não ligou
para confirmar. Acreditou ter sido uma fraqueza de saúde da menina depois daquela noite fatídica.
Melissa estava livre para agir.
O portão da escola fechou e Melissa estava fora. Ela olhou para os lados. Tentou ver se a mãe não estava mais por lá, pois costumava parar para conversar com as amigas. Mas
a rua estava deserta. Só os carros estacionados e um homem ao lado de um carro branco, na última vaga do estacionamento, em frente ao portão da Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
Melissa respirou, profundamente, e tomou coragem. Seguiu à risca o pedido de Eduardo. Foi atrás do ex-namorado de Patrícia; um deles, como dizia sua mãe.
Carlos Alberto era um jovem de cabelos avermelhados e muitas sardas no rosto. Era o terceiro filho do respeitado desembargador Sílvio Pereira. Estudava direito no Largo São
Francisco e fazia esportes no campus da USP. Reconheceu Melissa quando esta se aproximou.
— Oi! Te conheço, não?
— Sim! Eu sou Melissa, amiga da Patrícia.
— Tudo bem? Como vai a Pati? Eu li nos jornais o que aconteceu. Puxa! Fiquei sem jeito de telefonar pra ela.
— Tudo bem! Tá todo mundo sentindo isso.
— Você entrou pra universidade? — olhou Carlos Alberto em volta, meio na dúvida.
— Não... Na verdade vim falar com você. Eu sabia que costumava vir ao campus.
— Olha, é muito chato, meu, mas não vou falar com a Pati, se é isso. Sabe, a gente terminou tudo muito mal. Ela ficou com ódio de mim por causa...
— É! — Melissa cortou sua fala. — Foi duro pra ela que soube que você tava namorando duas ao mesmo tempo... Mas não é isso que eu quero.
— Não é?
— Sabe, é até uma coisa meio estranha. Tenho um amigo que tá com problemas, ele não quer e nem pode pagar um advogado. Queria falar com você. Pode ser?
— Sei não, meu! Tô no sexto semestre. Não posso falar muita coisa. Sabe, é meio complicado — sorriu; era alto e forte, do tipo que chama atenção.
— Qualquer coisa será bem-vinda — sorriu Melissa.
— Tudo bem. Quer que eu ligue quando?
— Agora! — e esticou o celular emprestado de uma amiga. — Dá pra ser?
O estudante de direito sorriu assustado. Melissa ligou o número desejado e entregou o aparelho para o futuro advogado.
O celular de Eduardo tocou.
— Alô? Oi! Você é o Carlos Alberto? Ulalá! A Mel é terrível mesmo. Ela te encontrou.
— É, parece que sim. O quer de mim?
— Queria penetrar no sistema de computadores do Judiciário.
O cara ficou vermelho. Foi à impressão que Melissa teve.
— Quer o quê?
— Preciso ler algo sobre um processo antes que ele suma de vez em Brasília.
— Brasília? Quer dizer... Brasília? A federal?
— Temos outra?
— Cê tá me gozando, meu?
— Pareço estar?
— Tem algo haver com a Pati? — arqueou as sobrancelhas.
— E se tiver?
Carlos Alberto demorou a responder.
— Não sei como penetrar...
— Só tem que estar lá na hora certa, e eu aqui, na mesma hora. Entendeu, não?
— Meu! Tu é hacker?
— Não. Ainda não. Mas tô ficando bom.
— Meu! Isso é ilegal. Meu pai me mata se sabe. Sei não! Acho que nem pela Pati...
— Não vai fazer nada. É só abrir o canal pra eu entrar. E isso só pode ser feito quando alguém abre o arquivo certo, entendeu? Com a senha do teu pai, entendeu? Que eu sei
que dá aula na USP; entendeu?
— Entendi? Meu… Como é? Tenho que tá mexendo no computador da facul com a senha de professor do meu pai, pra você abrir um canal no judiciário? É isso?
— É! Você entendeu! Uma vez a senha do banco de dados do Judiciário aberta você vai sair do modo seguro, pra desligar os firewalls e os antivírus da USP, e aceitar instalar
o B.O., um programa Trojan Horse que eu vou te mandar. Então eu penetro nos arquivos pela porta aberta do teu computador. Rápido! Ninguém vê! Não vou deixar rastro. Juro que
é só isso que vou fazer.
— Não sei, meu! Preciso pensar. Um ‘Cavalo de Tróia’ enviado pela senha do meu...
— Tem três segundos.
— O quê?
— Esgotou o tempo. Você deve isso a Pati que eu sei.
— Você sabe? Cê tá brincando? Isso é piada?
— Piada vai achar teu pai quando eu contar o que você fazia com certas fotos da Pati na Net.
— Tá bem! Tá bem! — ficou furioso. — Não vou querer saber como você sabe, né?
— Não vai! — Eduardo também não estava a fim de contar o que a Patrícia contou para Fernando, que contou a ele. Uma rede de informações para lá de complicada. — Fica frio!
Não vou apagar arquivo algum. Nem copiá-lo. Só vou ler. Isso se chama hackear.
— Tá bom. Pela Pati... — olhou em volta, nervoso —, que tá sofrendo — e Carlos Alberto se afastou de Melissa. — Sei lá onde vai parar isso. Pô, meu, ninguém mais saberá, Ok?
— Ok!
— Esta noite vou fazer pesquisa e... — e olhou para os lados, se afastando cada vez mais.
O pátio do campus da Universidade de São Paulo estava lotado, mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Melissa olhava para todos os lados. Estava tensa e apavorada com
as ideias de Eduardo. Tentava ver um rosto conhecido. Alguns carros parados em cima da grama. Umas poucas árvores para fazer sombra e alguns alunos em volta, só observando.
O tal Carlos Alberto desligou o celular. Passou a mão pelo cabelo avermelhado agora molhado de suor, e entregou o aparelho para Melissa se despedindo sem nada comentar. Melissa
ficou sem ouvir o resto da conversa. Ele havia se afastado demais no final.
Melissa guardou o celular na bolsa e correu. Tinha de esperar Mariana na saída da escola e juntas, irem para o portão para esperar a carona da mãe.
Os alunos já estavam saindo quando o ônibus que trouxe Melissa parou e ela saltou um ponto antes da escola. Estava tudo como havia deixado antes. Até mesmo o homem no carro
branco. Quando a mãe aportou, Melissa se juntou a Mariana.
Fernando levou um susto.
— Não tava doente?
— Melhorou — sacaneou Mariana.
— Cala boca, Mari. E você, vê se não dá outro fora, tá, Fê? — pediu Melissa.
— Eu? Fora? Vocês é que me colocaram no rolo. Minha mãe tá furiosa comigo até agora. Não me deixa tirar o carro da garagem e sou obrigado a pegar carona com sua mãe, que me
olha atravessado.
— O olhar dela é assim mesmo, bobinho. Mamãe é estrábica — riu Mariana.
Melissa ia rir, mas se controlou. Fernando nem ligou. Não queria andar a pé.
Os três entraram no carro e partiram para o Condomínio Jardim das Flores.
Capítulo 8
Eduardo deu a última mordida no hambúrguer e fez uma cara de satisfação. Seu pai estava de plantão no hospital e Berenice via novelas enquanto ele navegava pela Internet.
— Sites preferidos... Uhm! Deixe me ver. Últimas risadas do YouTube — músicas e vídeos eram armazenadas enquanto ele ria com a última do bebe engraçadinho ou o tombo fenomenal,
ou ainda os memes de políticos.
E o computador parecia pular ao som do bom e velho Massive Attack enquanto Eduardo olhava o relógio, enquanto cantava junto ao clipe que assistia; estava em seu mundo, os
computadores.
Eduardo perdera a mãe muito cedo. Seu pai se preocupava com sua estabilidade emocional. Criou-o mais como um pai amigo do que como um pai severo. Eduardo adorava o pai, com
o qual tinha toda liberdade do mundo para conversar, pegar a moto de vez em quando, e é claro, falar de garotas. Mas o Dr. João Vitor não conseguia fazer Eduardo estudar.
Isso era pedir demais. Eduardo já estava com dezesseis anos, o mais velho da turma e o mais atrasado, com risco de não mais acompanhar os amigos no Monsenhor Hipólito Ibi
já que fazia o nono ano pela terceira vez. Então quando o filho se interessou pelos computadores aos oito anos, o Dr. João Vitor viu uma possibilidade de alcançá-lo, perdido
no tempo e nos fundamentais da vida.
Incentivou-o a fazer todos os cursos, mas não precisou.
Eduardo era um autodidata.
Ele olhou mais uma vez a hora, tinha marcado com Carlos Alberto às nove horas em ponto. As nove, o futuro advogado acessaria os computadores do Judiciário, uma rede interna
chamada Intranet.
Carlos Alberto então abriu os arquivos enviados por Eduardo, um Trojan horse, um Cavalo de Tróia que permitia total controle do computador onde estivesse instalado. Eduardo
penetrou os arquivos e Carlos Alberto perdeu o controle total do computador da USP para o programa de invasão hacker.
O programa rastreava informações, palavras digitadas pelo computador. As informações confidenciais iam e vinham. Trafegavam pela rede sem que o firewall as brecasse.
Eduardo procurou pela data do assassinato; a hora, as conclusões finais e achou o que queria: o arquivamento do processo feito pelo Juiz de Alçada. Era tudo o que Eduardo
queria ver.
Já Carlos Alberto olhou para os lados. A biblioteca da USP, onde estavam instalados os computadores, estava quase vazia se não por meia dúzia de ‘gatos pingados’, que estudavam
e um ou dois computadores funcionando. Carlos Alberto ficou à espreita, à espera de não ser interrompido.
Ficou lá a ler as mesmas informações.
Eduardo também lia com cuidado. Estranhou o fato de o quarto de Patrícia não ter sido mencionado no inquérito. Entre outras coisas que Eduardo já sabia, estava a carta.
Leu em voz alta, para si mesmo:
— ‘Eu, Senador Blá blá blá, de livre e plena vontade, me mato. Deixo esta carta para minha querida filha, Patrícia, luz da minha existência. Isto é uma despedida. Não fui
capaz de enfrentar o problema. Você precisava saber que sua mãe me traía… Blá blá blá, é o fim. Pequena criatura, ser do meu ser, eu… Blá blá blá Seu pai!’ — Eduardo parou
de ler. — Cruzes! Que coisa macabra! — Eduardo leu mais algumas linhas. O processo descrevia as autópsias; falava que a empregada fora a primeira a morrer. Seguida pelo motorista
e pela mãe de Patrícia. — Como ela pode ter morrido primeiro? De que sangue Maria falava, afinal? — leu mais e mais alguma coisa. — Também não falam que tipo sanguíneo estava
nas paredes... Estranho! — e Eduardo estranhou outro fato. Ninguém tinha averiguado a autenticidade da letra do Senador. — Cruzes! Concordaram com tudo? — fez um bico. — Ok!
Já vi o que queria — e iniciou o processo para liberar a página que estava sob seu controle.
Fechou a conexão com seu provedor de acesso e a conexão não fechou. O computador não respondeu e Eduardo insistiu.
‘FECHAR CONEXÃO’; clicou com o mouse.
O computador não obedeceu. Ainda na tela, o Trojan horse que havia instalado no Judiciário.
— Meu pai do céu! — exclamou nervoso ao ver que seu computador ainda estava on-line, e arrancou o fio de conexão com o modem fazendo a rede cair.
Tentou fechar o programa outra vez.
“COMPUTADOR SEM RESPOSTA”; avisava a tela.
Eduardo chacoalhou a cabeça. Tentou entender o que acontecia. Reconectou o modem e conectou-se ao provedor outra vez. Entrou na Internet, tentando voltar ao Judiciário e apagar
do banco de dados o Trojan Horse. Chamou o site e percebeu que seu programa hacker estava on-line. Eduardo não acreditou no que via, só ele podia comandar tal invasão.
Ou seria um hacker invadindo outro hacker durante o ataque.
— Coisa de cinema… — escapou dele teclando desesperado sem que o computador respondesse. Tentou o mouse, mas também não funcionava. A gaveta do CD-ROM abria e fechava e seu
HD consumia memória; era alguém invadindo seu computador. Sua tela ficou preta. — Ai!!! — gritou. — Mas que saco! Vírus! — arrancou o fio de conexão com o modem outra vez
e tentou resetar a máquina. A tela pirou. Cores foram manchadas, arquivos ficaram em crise, páginas apresentadas pela metade. Eduardo acionou o programa antivírus. Foi rápido.
O Trojan Horse, um tipo de vírus, foi brecado. — Mas que saco! Eu instalo um programa hacker e eles me devolvem o mesmo vírus? Não, não pode ser... — o computador avisou que
o vírus destrutivo foi deletado da máquina. — Cepá! — suspirou. — O que foi isso afinal?
Eduardo entrou em seus próprios arquivos. Deletou de sua memória de arquivamento, o arquivo infectado. Entrou de novo na Internet. Foi até a página do Judiciário.
‘ERRO 404’, o navegador avisou.
‘SITE NÃO ENCONTRADO’.
Eduardo entrou em pânico. Levantou as grossas e negras sobrancelhas e seus olhos castanhos brilharam.
— Fui descoberto! — falou para si mesmo.
Saiu do quarto voando. Atravessou todo o apartamento. Abriu a porta da cozinha e se lançou escada abaixo. Desceu todos os degraus que podia. Estancou na porta da cozinha de
Melissa tocando a campainha desesperadamente.
Sandra deu um pulo do sofá.
— Calma! — pedia ela ao chegar à cozinha após ouvir a campainha disparar. — O que foi...? Ah! É você?
— Pelo meu pai do céu! — e se jogou de joelhos ao chão. — Me deixa falar com a Mel?
Sandra piscou. Ficou sem entender a gracinha de Eduardo.
— Não temos mais telefone ‘professor de musica’?
— Temos, não, quer dizer, tá com problemas. Por favor! Por favor! Por favor! Deixa vê-la — se arrastava de joelhos.
— Eduardo? — fez uma careta. — Ah! Está bem. Mas vou contar para seu pai que não está no seu apartamento após uma recuperação deli…
— Tá! Tá! Tá! — Eduardo não esperou o resto da bronca.
Até quis ter dito ‘Blá! Blá! Blá!’, mas correu para dentro da casa e invadiu o quarto de Melissa.
— Ahhh... — Mariana fez uma espécie de gemido; estava de camisola. Eduardo paralisou. — Ahhh?! — agora gritou mais alto e Eduardo recuou rapidamente.
Fechou a porta.
— Desculpa! — exclamou do lado de fora em choque. Não sabia que Mariana era tão bonita. Bateu na porta outra vez. Estava nervoso que nem viu Melissa atrás dele, de baby-doll.
— Ai! Que susto, Mel... — e paralisou outra vez.
‘Perder a voz’ teria explicado melhor o que aconteceu. Não sabia que as irmãs Jung eram tão bonitas.
Mas dessa vez Eduardo fez mais que ficar paralisado e estudou Melissa. Quase se perdeu em tantas curvas. Voltou estático, nunca tinha visto Melissa sem roupas que lembrassem
algo grande, comprido e preto.
E Melissa usava uma pequena camisola rosa e tinha lindos laços na cabeça.
— Perdeu alguma coisa? — falou irritada.
— Perdi? — respondeu confuso com uma pergunta. — Ulalá! — olhou-a de cima a baixo. — Acho que perdi tempo.
— Do que você tá falando?
Eduardo acordou. Conseguiu nem soube como.
— Eu... — balbuciou. — Vim te contar... — e a puxou para longe, quase no fim do corredor, em frente à porta do quarto dos pais de Melissa. —, fui interceptado.
— Como assim?
— Alguém entrou no meu computador na mesma hora que eu tava lendo a página do Judiciário.
— Como assim?
— Assim, como, Mel? Não tá entendendo? Alguém tava lá, lia o que eu lia, não sei por quê.
— Como alguém podia saber?
— Não sei, cepá, usando cookie, spyware ou até adware pra gravar dados. Isso se não fizeram phishing...
— Chega Dudu! — cortou-o. — Como assim ‘dados’?
— O cookie ou qualquer outro programa adware, spyware, espião entende? Ele pode gravar o IP do meu provedor, minhas preferências de sites, e até senhas. Depois alguns sites
inescrupulosos vendem no mercado essas informações.
— Acha que tavam te vigiando pra vender informações?
— Não sei, não sei — Eduardo divagava. — Devia ter navegado com o anonymizer.
— O anony... o quê? Cruzes! Como você fala complicado, Dudu — sorriu.
— O anonymizer é um aplicativo que faz com você navegue anônimo e ele ‘maqueia’ teu IP — Eduardo suspirou. — Falou pra alguém o que ia fazer? Alguém te ouviu quando tava com
o Carlos Alberto?
— Alguém me seguia, Dudu — apavorou-se Mel. — Um carro branco... Tinha um carro branco no portão da escola quando eu cheguei de manhã, e tenho certeza que era o mesmo carro
que estava em frente da USP. Claro que um carro branco é sempre igual, e tem a tal coincidência, mas... E se não for?
— Tô com medo, Mel. Muito mesmo.
— Boa noite, Herr Eduardo — falou uma voz grossa por trás dos dois.
Eduardo engoliu a fala, Melissa se encolheu para dentro do curto baby-doll e o grande, e loiro, e robusto, e alemão, pai de Melissa e Mariana não estava com cara de bons amigos.
— Oi! Pai! O Dudu veio mostrar que melhorou — apontou.
— É, deu para ver que ele está mesmo muuuito, melhor.
— Eu acho que tá na hora de ir embora. Boa noite, seu Paulo — falou Eduardo sentindo seu estômago embrulhar perante o grande pai das belas mestiças Jung.
— Boa noite — concordou o Engenheiro Paulo Jung.
— Amanhã te vejo na escola?
— Tá bem — falou Melissa, sem graça.
— Até! — insistiu o pai, num aceno.
Eduardo se foi. Agora, com a certeza de que tinha entrado numa enrascada bem pior. Seria escalpelado pelo pai se contasse para ele; seria preso se contasse para o Delegado;
seria morto se não contasse para alguém.
Capítulo 9
— ‘Estranho, é a morte’, falava o poeta. Como se morrêssemos todos os dias — explicava a professora de literatura. — Já pensaram nisso? A morte? A perda? O fim de algo?
A classe estava estática. Mergulhada em pensamentos. Os mais bizarros possíveis.
Melissa pensou duas vezes naquelas palavras. Lembrou-se de Patrícia em sua casa, entupida de calmantes, sem pai nem mãe. Teve pena. Não queria sentir isso. Achava pena um
sentimento muito complicado, nem sempre correto.
— Estranha a morte, o assassino, a perda… — Melissa quase se esquecia de que estava em aula. Nem tudo que era falado assimilava.
Fernando estava mais a frente. Era alto, ele a encobria sempre.
Melissa viu Eduardo no pequeno vidro da porta. Ele a observava, melhor. Era verdade que algo acontecera com ele em relação à Melissa, talvez em relação às duas irmãs. E nunca
havia prestado muito atenção às duas. Mariana era loira de olhos azuis com olhos levemente puxados o que a fazia uma cópia do grande e loiro alemão Paulo. Já Melissa havia
puxado a mãe e a sua família oriental; tinha longos e lisos cabelos negros que enegrecia mais todo mês com xampus tonalizantes, e que ficavam mais escuros com as roupas ‘dark’
que ela usava.
Eduardo até achava Mariana mais bonita, mais feminina, mas Melissa tinha mexido com ele. Sentiu isso como nunca havia sentido antes.
Melissa olhou para o vidro mais uma vez e viu que Eduardo ainda olhava para ela. Levantou a mão, chamando atenção. Demorou em que a professora a visse.
— Posso sair?
— Rápido Melissa, por favor.
— Sim — e saiu. — Oi, Dudu. Não o vi na entrada. Chegou atrasado? — Eduardo não respondia. — O que foi? — insistia ela.
— Por que fez aquilo ontem? — falou confuso, aproximando-se de Melissa.
— Aquilo o quê? — sorriu interessada.
— Se vestiu... diferente.
— Fala do baby-doll? Não tem irmãs, né?
— Não — Eduardo não conseguia entender o magnetismo exercido pela amiga. Melissa começou a falar da aula. Contava sobre a professora de literatura e a dissertação sobre a
morte. Eduardo não ouvia nada se aproximando cada vez mais dela, embarcando no movimento dos lábios de Melissa até tocá-los. Ela arregalou os olhos. Eduardo também. Sentiu
seus lábios presos aos dela e recuou. — Eu…
— Você?
— Des... desculpa. Não sei o que me deu — e Eduardo correu.
Melissa achou que ia desmaiar. Desejou, até. Sorriu satisfeita logo após. O sinal tocou. Os corredores começaram a ser invadidos.
Melissa não conseguia se mover.
— Que delícia — foi só o que falou.
— O que foi tão gostoso? — falou Mariana ao se aproximar.
Fernando chegou também.
— Nada! Tava chupando uma bala.
— Tava roendo unhas, que eu sei.
— Mari... — Melissa girou os olhos. —, você não se cansa?
— Do quê? — perguntou irritada.
— De ser pentelha.
— Pentelha agora, né? Mas ontem bem que te ajudei...
Mas Melissa não ficou lá por muito tempo. Foi atrás de Eduardo, encontrando-o na classe dele.
Ele olhava para o caderno vazio quando foi interrompido.
— O que quis dizer com a tal página ontem?
Eduardo teve um sobressalto. Percebeu que Melissa não tinha comentado nada. Agradeceu calado o fora e o beijo que dera.
— Eu não tenho certeza, sabe... Mas cepá, acho que alguém entrou naquele computador.
— Como assim?
Eduardo suspirou. Sentia-se cansado.
— Eu sei que você não manja nada de computadores, mas esse cara é muito bom. Ele tava lendo tudo o que eu lia, sabia onde eu tava, sabia quem eu era. Não acredito que a página
do Judiciário, tivesse algum mecanismo que explodisse um vírus na hora do acesso, nem que instalasse Trojans nos computadores que rodam na sua Intranet. Mesmo que os dados
fossem tão secretos, sei que é possível... Mas entende? Não acredito que eles fizessem essa caca com os caras.
— Entendi foi nada. Se não foi a própria página, quem?
— Não sei. Pode ser o ladrão...
— Não vai querer que eu acredite que um ladrãozinho entenda de computadores assim, né?
— É esse o ponto. Muito esperto, muito mesmo.
— Vamos comer alguma coisa na lanchonete?
— Não tô com fome. Eu vou pra praia amanhã. Não venho dormindo direito. Meu pai falou que essa semana que passou foi muito desgastante, e que merecemos um final de semana
sossegado.
— É! Tem razão. Vai ser bom — falava ainda em pé, sem ver o rosto de Eduardo, abaixado. — Meu pai vai viajar também. Ele decidiu ir, ele mesmo, ao Espírito Santo, atrás da
tal tia que a Pati falou.
— A Polícia ainda não a achou?
— Não! Estranho, né?
— Cepá. Não sei mais nada. Tô tão confuso... — passou as mãos pela testa suada. — Tá calor aqui — e se levantou, caminhando até a janela.
Melissa percebeu que Eduardo estava sem graça. Outra vez, nada comentou. Nem sabia como fazê-lo. Gostava tanto de Eduardo.
Desde pequenos, Eduardo era seu namorado nas brincadeiras de criança. O tempo passou. Melissa cresceu mais rápido que Eduardo. Ele, por sua vez, continuava um crianção. Melissa
olhava para meninos mais velhos, mas continuava a pensar em Eduardo, o vizinho.
O sinal tocou duas vezes. As aulas recomeçaram.
Melissa havia deixado Eduardo na classe. Ele estava estranho, ela sentiu. Nem saberia mais como puxar assunto.
O resto da manhã não foi diferente. A última aula do dia terminou e eles se preparam para partir. Eduardo ia direto para a praia, com o pai. Foi uma surpresa para ele quando
chegou ao portão da escola, e a empregada Berenice já esperava no carro, com a mala pronta.
Melissa o viu de longe. Quis se despedir, mas ficou sem graça. Aquele projeto de beijo a deixou balançada. A mãe dela também já esperava no portão. Iam dar carona a Fernando,
que reclamava um bocado.
Mariana entrou primeira no carro. Foi atrás com Fernando, que entrou logo em seguida. Melissa entrou na frente. Arrumou o cinto, jogou os cadernos para trás e o viu. Não queria
ter visto, mas o viu; o mesmo carro branco, o mesmo homem de óculos escuros, na mesma posição. Voltou para frente apavorada. Perdeu a cor. Tentou disfarçar.
A mãe arrancou.
O carro de Eduardo ainda estava na frente, parado no sinal fechado.
“Grito ou não grito?”, desesperava-se Melissa.
Eduardo não percebia nada. Dr. João Vitor, ao volante, olhou para o lado. Viu Sandra, sua vizinha, à sua esquerda. Cumprimentou-a com um aceno de cabeça. Depois olhou a filha
dela, Melissa; ela se espremia no vidro.
Estava roxa de tanto que se agitava.
— A Melissa está bem? — perguntou o pai de Eduardo.
Eduardo olhou para o lado. Seguiu o movimento do pai. Viu Melissa apontando para trás, fazendo mímica com as mãos. Imitava um carro, um homem, óculos no rosto. Eduardo olhou
para trás. Só teve tempo de ver a cor do cabelo do homem que entrava no carro branco, o único ainda estacionado na frente da escola.
Era vermelho, cor de fogo.
Capítulo 10
Melissa insistiu tanto que a empregada de Fernando acabou cedendo; Amália deu a ela o número do telefone da casa da praia de Eduardo. Melissa também sabia que Eduardo estava
sem celular. Não conseguia mesmo entender como podiam viver sem aqueles aparelhos.
O telefone tocou. Dr. João Vitor atendeu. Melissa desligou. Deu um tempo e tocou de novo. Outra vez o Dr. João Vitor atendeu, e outra vez levou o telefone na cara.
Na terceira tentativa, Berenice atendeu.
— Quem? Dudu? Tá! Vou chamar.
Dr. João Vitor ficou curioso. Queria saber quem desligava na cara dele já que não reconheceu de imediato o número gravado no identificador de chamadas.
Pensou duas vezes e cedeu à tentação ficando a escutar na extensão.
— Alô! — falou Eduardo.
— Dudu? É Mel.
— Mel? Como sabia meu número da praia?
— A empregada do Fê deu pra Berê que me deu. Não conta pro teu pai. Eu desliguei na cara dele.
— Por quê?
— Não queria que ele soubesse.
— Ah! Então tá.
— Me explica melhor sobre a carta... Você leu?
— Sim. O Senador se despedia, apenas. Sei lá. Coisa esquisita. Não parecia um cara louco que ia matar até os empregados.
Os dois ficaram em silêncio. Alguns segundos correram.
— Entendeu o que eu queria naquela hora, no carro, no portão da escola?
— Ulalá! Achei que você tava se transformando num monstro espacial. Toda de preto, pra variar.
Mas Melissa não ligou para as gracinhas de Eduardo.
— Viu o cara?
— Meu pai achou que você tava doente — riu. — Tá! Tá bom! Eu vi. O ruivo, né?
— Sim.
— Vi. Quem era?
— Era ele. O mesmo homem do carro branco.
— Mas o cara deve ser namorado ou amigo de alguém. Já faz tempo que ele vai à escola.
— Desde quando?
— Deixa ver... Cepá, já o vi algumas vezes por lá. Foi... Já lembrei! O cara tava com a Pati.
Um silêncio se instalou. Nenhum dos dois conseguiu mais falar.
Melissa quebrou o silêncio.
— Com a Pati?
— Será o tal que te seguiu? Tem certeza que ele tava na USP? — perguntou Eduardo.
— Muita certeza, não. Mas ele tava no colégio. Na ida e na volta.
— Cepá, tenha levado alguém e ido lá buscar.
— Mas não falou que ele tava com a Pati?
— Pô, Mel. Falei que vi os dois conversando, uma vez, não me lembro de quando. A gata também não namora tudo que vê pela frente, eu acho.
— Como era o ladrão, Dudu? — insistia Mel.
— Como vou saber? Não vi.
— Mas você não falou que viu?
O pai de Eduardo teve um sobressalto na escuta. Aquela palavra o balançou de vez. Desligou o telefone. Um pequeno estalo se fez no aparelho.
Eduardo se assustou.
— Mel? Alguém tá escutando?
— Não sei. Acho que aqui, não.
Eduardo ia falar. Só enxergou os chinelos do pai refletidos no piso ladrilhado da cozinha.
— Acho que temos que ter uma conversa, Eduardo. Adulta, de preferência — o médico viu Eduardo desligar na cara de Melissa, sentindo que o chão se abrira, a terra tremera.
O Dr. João Vitor tirou o telefone do gancho, e foram os dois para o quarto dele. — Vai me contar tudo? — perguntou logo ao fechar da porta.
— Não tenho nada pra contar, pai. Juro!
— Agora deu para jurar em vão?
— Não...
— Pensei que fôssemos amigos?
— Somos amigos, pai. Somos sim. Mas não tenho nada pra falar. Nada que possa falar, eu acho — espremeu o rosto.
— Está com problemas? Drogas?
— Não, pai. Não faria isso comigo, nem com você, nem pela memória da mamãe. Sei como ela sofria por ver o primo Tadeu, sempre com os olhos vermelhos, e como ela e a tia Bia
ficavam.
— Bom! Muito bom mesmo. Isso só vai te levar a uma porta sem saída.
— Não, pai. Não tem nada haver com drogas.
— Mas gosta de fumar, não é?
— De vez em quando... — Eduardo riu.
— Então, quando quiser fumar, por mais que isso lhe faça mal ao pulmão, porque faz, porque dá câncer, porque para teu coração cara, mas faça com o meu consentimento. Peça-me
dinheiro. Não aceite cigarro de ninguém.
— Eu já sei pai. Você me fala isso desde os 10 anos — falava ao balançar a cabeça.
— É para o seu próprio bem.
— Eu sei pai. Só não gosto de ficar escutando o tempo todo o que já sei pai.
— Ok, então. Se tiver realmente problemas lembre-se, Eduardo, só eu posso ser seu amigo.
— Tá bem — ia saindo.
— Eduardo?
— Que é?
— Esqueça essa história de ladrão. Não houve nenhum. Foi brincadeira de criança, aqueles dardos. Garanto que será para seu próprio bem.
— Mas e se realmente havia um ladrão? E se foi ele quem matou a mulher? E se foi ele quem tentou me dopar?
— A polícia cuida disso.
— Tem tanta certeza, pai? Tomara que sim — e saiu do quarto. — Afinal, sou eu quem corro os riscos — falou para consigo.
Mas o Dr. João Vitor não tinha tanta certeza assim. Sentia no ar a mesma insegurança de Eduardo. Observou-o pela janela do quarto. Viu o filho sair da casa e andar pela praia
e ligou para o Delegado José Liberato.
Confiava nele.
— Delega… — perguntou o policial Rocha, seu ajudante, do outro lado da sala. —, o telefone tocou, não ouviu?
— Não… — respondeu atordoado. Há muito tempo não conseguia se concentrar no trabalho, no trânsito, no que fosse. Sua mulher vinha estranhando suas atitudes. Andava disperso.
Não ouvia direito o que ela falava. Falava sozinho. Ele, tão prestativo, tão minucioso, tão dedicado. — Quem é? — perguntou enfim.
— É o tal Doutor, pai daquele menino.
— Ajudou bastante, Rocha — sorriu morno. — Consegui localizá-lo na minha memória.
— Desculpa, delega. É o pai do menino, lá do assassinato do Senador.
O Delegado se ligou.
— Passa a ligação.
— Tá bem — e Rocha saiu.
— Alô? Dr. João Vitor?
— Boa tarde, Delegado. Poderia conversar com o Senhor pessoalmente? Não gosto de falar ao telefone.
— Está me assustando, Doutor.
— É importante. Estou na praia e volto amanhã para São Paulo. Gostaria que fosse ao meu consultório pela manhã. Sei que é domingo, mas é realmente muito importante. Além do
mais, não me sinto muito à vontade na delegacia.
— Ninguém, Doutor, pode acreditar. Nem eu. Mas está bem. As dez; pode ser?
— Está ótimo. Aguardo. Um bom final de sábado. E obrigado! — desligou. — Berenice? — chamou-a. — Prepare as malas. Vamos voltar amanhã de manhã, bem cedo.
— Eu, hein... Mal chegamos — pensou em voz alta.
Amanheceu um dia frio e chuvoso. Foi a desculpa que o Dr. João Vitor encontrou para subir mais cedo. Chegou atrasado ao consultório por causa do trânsito.
Antes deixou o filho e a empregada em casa.
O Delegado José Liberato estava esperando na porta do consultório. Era uma clínica que pertencia ao Dr. João Vitor e mais dois amigos médicos, um deles Dr. Alfredo, clínico
geral.
Não havia ninguém fazendo plantão naquele domingo.
— Oh! Desculpe o atraso. A estrada estava uma loucura por causa da chuva — e entrou.
— São Paulo também consegue ter trânsito até aos domingos — o seguiu.
— Sim, basta chover. Sente-se, por favor. Aceita um café solúvel? Não tenho nada mais a oferecer. Minha enfermeira é quem faz o café.
— Não se incomode. Quero saber o que faço aqui num domingo de chuva.
— Meu filho disse à amiguinha, pelo telefone, que estão sendo observados. Um cara ruivo dentro de carro branco no portão da escola. Muito antes do assassinato.
— Estão sendo seguidos?
— Não sei. O que me preocupa é que eles ainda insistem no assunto do ladrão. Sei que não vou arrancar de Eduardo nada que ele não queira realmente contar, mas tenho certeza
de que há algo muito maior.
— Está falando do quê?
— O ouvi falar que leu a carta do Senador. Pergunto-me... Como poderia?
— Não sei. Ninguém teve acesso a ela.
— Pois é. Passei ontem, a noite inteira, a pensar como.
O Delegado nada falou. Seus olhos arregalados encaravam o carpete do consultório. Coçou a cabeça. Tentou falar duas vezes. Não conseguiu. Tentou outra vez:
— Estou com alguns problemas, Dr. João Vitor. Sabe... Está acontecendo alguma coisa dentro daquela delegacia. Posso pressentir. São buchichos, informações atravessadas, pequenas
fofocas lá dentro. A verdade é que não consegui ver a carta depois que foi levada para a delegacia — levantou-se dando voltas em torno da cadeira.
— Não a leu naquela noite?
— Sim. Ler, eu li, mas achei que depois pudesse lê-la com calma, compreende? E o depoimento que fiz com as meninas, depois que Eduardo me contou a verdade, teve que ser feito
na presença da dona Sandra. Já havia passado um tempo, as informações pareciam ‘meio’ esquecidas, confusas. Dona Sandra estava nervosa, e isso atrapalhou. Não sei realmente
o que a menina Patrícia ouviu a empregada gritar no telefone. Suas informações não batiam com a da menina Melissa — o Delegado falava e andava pela sala. De repente sentou-se
e recomeçou a falar. — A carta saiu das minhas mãos, no dia seguinte ao do assassinato, direto para o Poder Judiciário. Gostaria de ter passado a carta para um perito em caligrafia,
amigo meu, para verificar a autenticidade da letra do Senador. Depois, ninguém me autorizou a retirá-la. Está arquivada, é o que sei.
— O que quer dizer?
— Já me perguntei. Sabe, tenho me feito muitas perguntas. Outra questão é a morte dos empregados...
— Acha que devo forçar Eduardo a falar?
— Não sei. Ele poderia mentir e acabar por confundir mais ainda.
— Eu... Não sei se devo falar. É uma coisa que aconteceu — sorriu sem graça. — A Berenice, minha empregada, reclamou um bocado — sorriu outra vez. O Dr. João Vitor também
não conseguia se comunicar como devia. — Vou explicar melhor. Quando o zelador, o seu Almeida, me ligou dizendo que Eduardo estava caído no meio do jardim, em frente ao salão
de festas do nosso bloco, aconselhei-o a levar Eduardo para o quarto dele, pois era mais perto. Quando eu cheguei, ele já estava sendo tratado pela Berê. Santa Berenice! —
jogou as mãos para o alto. — Ela reclama assim mesmo. É dela, eu sei. Berenice falou que Eduardo era irresponsável e estava todo molhado. Ele estava com os lábios roxos e
fiquei muito assustado ao vê-lo. Eduardo não respondia a um estímulo psicotrópico — e explicou. —, que é uma cápsula a base de amônia que estouramos próximo às narinas para
forçar uma pessoa a acordar. Sabe como é... Não podemos medicar ninguém sem saber se está ou não em coma. Eduardo não respondia. Estava sob efeito de algo muito forte. Fiquei
com o coração na mão. Minha cunhada, Bia, sofreu muito com meu sobrinho, que era viciado. O menino morreu por overdose.
— Sinto muito! — exclamou o Delegado consternado. — Essa juventude... Não sei, não... — divagou.
— É! Foi um baque. Mas o Eduardo estava sob ação de tranquilizantes. Chamei meu amigo farmacologista que me assegurou. Foi dos mais pesados, não sei por que alguém faria isso
— ao dizer isso, o Dr. João Vitor olhou para os lados. Procurou com os olhos a mãe de Eduardo nas fotos. — Mas não é esse o ponto. Eduardo tinha cacos de vidro enterrados
no tênis. Veja! — levantou-se para tirar do armário o tênis que o filho usava no dia do ataque. — Eu trouxe para cá com medo que Berenice tentasse limpá-lo. O tênis era novo,
como pode notar. Berenice ia reclamar; cuida de Eduardo como um filho. A mãe dele teve uma parada cardíaca nos braços dela e faleceu. Ela se acha responsável por ele.
O Delegado observou o tênis de Eduardo enquanto Dr. João Vitor desenterrava o passado.
— São cacos de vidros blindados?
— Exatamente! Não achei nenhuma vidraça quebrada, nenhum caco de vidro no jardim que houvesse sido retirado dali de perto. Mas, se olhar para cima, Delegado, muito para cima,
mesmo, vai ver a sacada envidraçada do Senador. Eu subi até lá. Não pude entrar por causa da faixa na porta da entrada social. Mas a porta de serviço estava com a faixa forçada.
— O quê? E o policial que coloquei lá?
— Colocou-o no portão de entrada, se bem me lembro. Acho que ele nunca subiu.
— É! É, verdade! Que loucura a minha. Estou tão confuso. Não entendo por que não posso mexer nesses documentos. Bem... Compreenda Dr. João Vitor, o caso foi arquivado, e a
menos que consiga uma liminar do Juiz, não posso reabrir o caso. E sem reabri-lo, não posso levantar questões. Tenho que ter provas, Doutor.
— Se entrar lá, vai ver o vidro quebrado, Delegado. Alguém atirou aqueles dardos no meu filho, da sacada envidraçada da cobertura do Senador e a quebrou. Isso não é uma prova?
O Delegado arregalou os olhos.
Foi só isso que conseguiu fazer até sair do consultório do Dr. João Vitor Ferreira, que nada mais tinha a acrescentar.
Capítulo 11
A Polícia nem sempre era compreendida. Nem tampouco usava métodos convencionais. Era cada um por si, à sua maneira. O Delegado José Liberato era um homem metódico. Daqueles
que podem até se entregar aos anos que passam e criar uma barriga saliente, mas que nunca perdem a sua técnica.
Ao contrário, aprimoram-na.
Respeitado por todos com quem trabalhava, trazia uma imagem de homem perfeccionista. Temido, porém honesto. Aos 60 anos de idade, o Delegado, casado, não tinha filhos. Eles
até fizeram falta, mas o trabalho sempre fora prioridade. E aquele caso, envolvendo jovens, o perturbava. Dizia sempre à esposa que ‘quando crianças, jovens almas, estão em
jogo, poderiam ser nossos filhos’. E esse caso não era diferente. José Liberato estava muito envolvido.
Preocupava-se com a segurança dos cinco amigos.
Havia dado uma maior atenção àquela garota que tinha ficado órfã. Não conseguia encontrar a tia, e isso o deixava descontrolado. Não conseguia provas de que houvesse um ladrão
na cobertura na hora dos assassinatos. Não encontrou nada nem ninguém que tivesse visto aqueles dardos apesar de confirmada a invasão à cobertura lacrada. Isso também o descontrolava.
Mas havia outra ponta naquele novelo, um fio da meada que se desenrolava desenfreadamente ladeira abaixo, e ele precisava retomar esse fio, esse fio da meada de um grande
novelo que lhe dizia que um estranho no portão da escola levava a algo maior: drogas.
José Liberato estava lá parado, discretamente, junto a seu fiel ajudante, o policial Rocha. Os dois observavam o carro branco. Ele parecia mais pontual que alunos e professores.
Chegava sempre antes deles e estacionava, como sempre, na última vaga do estacionamento em frente à Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
O Delegado José Liberato acompanhava a entrada dos alunos. Disfarçou quando o pai do Eduardo o deixou na escola. Estranhou Fernando que chegava a pé. Patrícia de Moura era
de se esperar que faltasse, mas não entendeu por que as meninas Jung não apareceram. Chamou seus oficiais pelo comunicador do rádio; comunicou-se com a central. Era experiente
e inteligente. Pediu reforço. Viu o que realmente aquele cara, alto e ruivo, vinha fazer na escola.
Estava traficando drogas para os alunos.
José Liberato viu um ou dois atravessarem a rua e discretamente, comprar pacotinhos. Imaginou o que continham. Agora tinha de provar.
— Ponto de venda — resmungou baixinho. — E os pais achando ser seguro, o ‘lar’ escolar.
— Em frente à escola e nem tão nem aí? Esses caras perderam o medo, delega. Já não escondem o que fazem. Vê se pode!
— Por muito pouco tempo, Rocha. O dia final dele chegou.
O Delegado José Liberato havia dado uma ordem especifica: três de seus policiais, de preferência jovens, deveriam entrar pelo portão lateral da escola, vestidos com o uniforme
da escola, atravessar a rua e comprar drogas.
— Eles já chegaram, delega.
José Liberato ergueu o cavanhaque.
— Vamos esperar! — ordenou.
A escola silenciava. Todos os alunos já haviam entrado. O ruivo se preparava para ir embora.
— Hei?! — gritou um jovem bonito, usando camiseta da escola, jeans e tênis último modelo. — O Joca me falou que tem entradas pro jogo de futebol!
— Quem é Joca? — assustou-se o ruivo.
— Joca Andrade! Ele me passou a dica...
— Ah! Quantas ‘entradas’ quer? — perguntou desconfiado, olhando os outros dois rapazes atrás do primeiro.
— Sei lá, cara, bastante. Tô a fim de assistir a uma boa jogada — riu ao gingar os quadris e olhar para os dois amigos.
Os três riram, pareciam já muito embalados, numa alegria peculiar.
O ruivo prosseguiu sério. Olhou para os lados; não viu nada.
— Não é muito normal, sabe? Sempre trago certa quantia... — e olhou o garoto de cima a baixo.
O falso estudante, policial Fabrício Bernardes, mostrou cinco notas. Eram todas de valor muito alto. O ruivo sorriu. Aquela linguagem ele conhecia. Entrou no carro. Abriu
uma sacola de nylon. Dessas que os esportistas usam. Tirou de dentro uma caixa de acrílico. Guardou as cinco notas de dinheiro. Abriu uma parte da sacola. O zíper atravessou
toda a sua extensão. Tirou de dentro dois papelotes. Era a quantidade que dava para aquelas notas pagarem. Saiu do carro e entregou o material.
Olhou para trás de Fabrício e só viu um dos amigos.
— Cadê o outro? — perguntou.
Foi só isso que fez. Uma arma calibre .32 estacionava na sua têmpora.
— Está preso! — anunciou Fabrício. — Por porte e tráfico de drogas! E por vender para jovens, sua prisão é inafiançável.
O ruivo ia falar. O Delegado José Liberato apareceu.
— Seja bem-vindo a dura realidade! — sorriu cínico. — Levem-no! Cuidarei pessoalmente do caso na delegacia.
Fabrício mandou os dois ajudantes levarem o ruivo. Rocha acompanhou-os.
— Fabrício? — e José Liberato chamou o rapaz que se preparava para entrar no carro branco e levá-lo para a delegacia.
— Sim, Doutor Delegado?
— Preciso de uma ajuda sua. Pode ser? Extraoficialmente?
Fabrício Bernardes se esticou todo. Há anos que ouvia seu pai, grande advogado criminalista, falar do Delegado José Liberato. Seu sonho passou a ser acompanhá-lo após se formar
em Direito. Quando a oportunidade de pegar um traficante apareceu de manhã, por ordem do Delegado José Liberato, ofereceu-se imediatamente.
Era a chance de estar mais próximo de seu ídolo.
— Claro! — sorriu o loiro e jovem policial de 22 anos.
Com sua aparência juvenil e saudável, passava por 16 anos brincando. Era sempre chamado para investigações que requeriam juventude.
— Sabe... Não precisa que faça amizade com a menina, apenas vigie cada um de seus passos, e se for necessário, tente entrar naquela turma. Ela se chama Patrícia de Moura.
— A filha do Senador assassinado? — assustou-se. — Há um boato na delegacia.
— Eu sei — respondeu cansado. —, ninguém fala sobre o assassinato.
— Isso mesmo. Tem certeza que quer isso mesmo, Delegado?
— Posso confiar em você?
— Claro! — respondeu com brilho nos olhos.
— Quero que alugue um apartamento no mesmo prédio daquela turma. Vou conversar com um dos proprietários; descobri certas falcatruas dele. Acho que não vai ser difícil um desconto
— riu. Ficou observando o jovem policial. — Vou falar mais sobre esses cinco amigos para você, lá na delegacia. Quero que se aproxime dela, mas discretamente.
— Está bem — e se preparou para ir embora mais uma vez.
— Mais uma coisa — José Liberato viu Fabrício voltar a olhá-lo. — Na primeira oportunidade, entre na cobertura do Senador. Quero que faça uma limpa lá dentro. Quero saber
quem está entrando lá. Tenho a impressão de que é a tal Patrícia mesmo, mas não imagino o que vai fazer lá tantas vezes — falou o Delegado, agora dispensando Fabrício.
O rapaz, porém, não foi. Ficou a pensar se deveria perguntar ou não.
Votou pelo sim.
— Delegado? — chamou-o.
— Sim?
— Por quê?
— Porque cinco jovens correm perigo de vida. Preciso falar mais?
— Não! É claro, que não!
Capítulo 12
— Mãe? — chamou Mariana. — O avião chegou. O papai não tá nele.
— Como não está? — falou Sandra, furiosa.
— Não desceu.
— Você não prestou atenção — e afastou Mariana para trás a fim de olhar ela mesma.
— Ah, é? Não reconheço mais meu pai?
— Falei que não prestou atenção — Sandra estranhou. Seu marido, o engenheiro Dr. Paulo Jung, havia ligado pela manhã dizendo que partiria naquele voo. — Por favor, Senhorita
— questionou para a comissária de terra. — Aquele era o voo vindo do Espírito Santo? — apontou para a janela.
— Sim, acabou de aterrissar.
— Obrigada — mas na dúvida, chamou o marido pelo celular. Ele atendeu. — Onde você está?
— Nossa! Tentei ligar, mas essas linhas celulares e nada são a mesma coisa. Não consegui embarcar.
— O que houve?
— Não sei. Comprei a passagem e meu nome, na última hora, ficou para o voo das quatro horas da tarde. Esses terminais...
— Voo da tarde? E agora? Não consegue outro?
— Não! Estão todos lotados. Vá para casa e eu pego um táxi quando chegar a São Paulo, Ok?
— Está bem... Que jeito! Depois de enfrentar um trânsito de segunda-feira, tudo bem.
— Oh, meine Liebe Sandra! Não tenho culpa. Não fui eu quem trocou meu nome de voo.
— Está bem. A Mariana está comigo. Vamos até em casa pegar as outras meninas para ir à escola. Elas já perderam a primeira aula e vão perder a segunda. Entrarão na terceira.
— Está bem — e o engenheiro desligou.
— Vamos, Mariana. Seu pai perdeu o voo. Só conseguirá chegar de tarde. Não vou ficar até às quatro horas esperando — falou, enciumada com a repentina mudança de horários dos
voos.
— Nossa mãe. Mas ele não confirmou?
— Deixa para lá. Quer ver que seu pai gostou de ficar por lá. Vamos embora. Ainda preciso passar no supermercado. Temos mais quilômetros de congestionamento até em casa.
Mariana acompanhava a mãe. Estava triste pela demora do pai. Chegaram até o estacionamento.
— Hei?! — gritou Sandra e correu.
— Mãe?! — correu atrás dela. Corriam como loucas pelo estacionamento do aeroporto. Sandra na frente, sendo seguida por Mariana. — Mãe?! — gritava Mariana em disparada. — O
que aconteceu? — questionou ao chegar ao carro.
— Um moleque... Mexendo no carro.
— Mãe! Que perigo! Papai já falou que não se deve enfrentar os trombadinhas. Já não falou?
Sandra não prestava atenção.
— Ele estava mexendo no carro — divagou. — Vamos embora. A vida está sem segurança, mesmo — e entrou no carro.
Mas Sandra derrapou na primeira curva, ao sair do estacionamento.
— Mãe?
— Está tudo bem... — o volante travou por um instante. — Ou não...
— Ou não?
— Ouviu esse barulho? — perguntou assustada.
— Não sei. Vamos, mãe. Vou perder todas as aulas.
Sandra continuou a guiar apesar de ainda estar impressionada.
— Seu pai falou que o nome dele foi trocado de voo. Liga para casa. Avisa tua irmã e a Patrícia que vamos pegá-las para ir à escola.
Mariana obedeceu. Começou a discar. Olhou para o lado. O carro verde estava muito próximo.
— Mãe?! — gritou Mariana.
O carro encostou-se à lateral de Sandra que puxou o volante para o lado. E quase não conseguiu fazê-lo porque a direção hidráulica travou outra vez.
— Está dura!
— Mãe! — desesperava-se Mariana. — Ele tá encostando outra vez!
— Por que isso?! — perguntava-se Sandra aos gritos.
— Mãe?! — e o carro foi atingido de novo.
Sandra perdeu o controle. Subiu em cima do canteiro que separava as duas pistas. Caiu na contramão. Bateu em dois carros. Rodopiou na pista. Subiu na calçada oposta. Riscou
a parede. Perdeu toda a lateral esquerda do carro. Pisou no freio. Mais dois carros vinham na sua direção e chocaram-se.
Sandra não controlava o carro com a direção travada.
— Meu Deus!!! — gritava desesperada.
O carro trepidou sobre os olhos de gato. Girou outra vez. Subiu e desceu da ilha de separação. Girou 360 graus. Subiu outra vez. Bateu no poste.
As duas foram lançadas para frente.
Os air-bags, porém, dispararam.
Foram salvas Sandra e Mariana.
Capítulo 13
— Nossa que demora! — reclamava Melissa. — O celular da mamãe tá ocupado. Deve ser a Mariana. Ahhh! E quando eu gasto toda bateria ela não empresta o dela pra mim, né? — Melissa
não parava de reclamar. — Anda Pati, você não pode faltar mais na escola.
— Não me torra, Mel.
— Não te torra? Aquela Juíza vai te mandar pra Suíça se não mostrar a ela que pode ficar aqui e estudar, né?
— Não quero saber de nada. Hoje não tô pra conversa.
— Pati, você tem a vida toda pela frente. O que vai fazer?
— Ainda não sei. Não tô a fim de falar nisso.
— Chiii Pati, eu sei que é difícil, tá difícil até de falar, mas teus pais morreram você não. Vamos sair... Dar uma volta, sei lá.
— Quero ficar em casa.
— Fazendo o quê?
— Nada!
— Como nada? Onde você tava ontem quando eu te procurei? Achei que tava dormindo, revirei a casa e não te achei.
— Eu... Ãh... Eu desci um pouco — disfarçou. — Seu Paulo falou se achou minha tia?
— A mamãe foi buscá-lo no aeroporto, mas ele não falou nada... Ai! — se contorceu. — Que dor na boca do estômago. Que coisa ruim!
— Que foi Mel? — Patrícia olhou-a assustada.
— Não sei. Uma coisa... Sei lá.
— Acho que você comeu muito bombom ontem.
— É... Pode ser — passou a mão pela barriga. — Vou esperar mais cinco minutos.
— O telefone tá tocando!
— Eu atendo. Alô, Dudu? De onde tá falando?
— Da escola — respondeu do meio do corredor. — E se a orientação nos pega, tamos ferrados.
— E por que tá falando do telefone da escola?
— Não sei, mas a direção mandou recolher todos os cel hoje na entrada. Além do que, o meu tá com meu pai.
E um ruído de gente falando alertou Melissa.
— Quem tá aí com você?
— O Fê. Eu contei pra ele o que tava acontecendo. Pensei que ele ia ter um treco, mas achei que ele precisava participar. Afinal, tá no rolo também.
— Puxa Dudu. O Fê é tão complicado. Nunca soube guardar segredos... Não é arriscado?
Eduardo pensou, mas não respondeu.
Mudou de assunto.
— Por que não vieram pra aula?
— Não sei. Minha mãe falou que ia com a Mari no aeroporto pegar meu pai, e que só íamos perder a primeira aula. Não tô entendendo a demora.
— Meu pai conversou comigo, no sábado. Acha que tô com problemas de drogas. Não pude contar sobre os computadores... Mel? Você tá aí? Mel? Mel?
Melissa estava paralisada. Uma sombra se projetava na porta de seu quarto.
O coração veio à boca.
— Dudu… — falou baixinho.
— Mel? Tudo bem? Que houve? — desesperava-se no meio do corredor da escola. — Mel?
— Tem alguém...
— Quê?! Mel?! — gritou para a linha que caiu.
Melissa colocou o telefone no gancho, suavemente. Ficou paralisada. A sombra era de alguém estranho, podia pressentir. Não tinha empregada. A faxineira não vinha às segundas-feiras.
Mariana era escandalosa demais para entrar em silêncio. Patrícia estava no banheiro.
A sombra se mexeu, parecia se aproximar, parecia se afastar; estava indecisa.
Melissa quis correr e trancar a porta. Teve medo. Não tirava os olhos da sombra. A sombra dava voltas mexendo em algo. Patrícia acabava de entrar no chuveiro e Melissa ouviu
o barulho. Viu-se sozinha.
Sentiu tonturas.
Voltou a olhar para a porta. A sombra havia sumido. Ouviu o som de passos indo para os outros quartos. Melissa ia se arriscar, ia trancar a porta, mas desistiu outra vez.
Ouviu também que o som de passos se encaminhava para o quarto de Mariana, ao lado do seu.
Alguém estava mexendo nas gavetas de Mariana.
Melissa saiu e olhou pela fresta da porta. Pôde ver a mão envolta em luva, mas não o corpo. Recuou sem conseguir falar. Saiu e passou direto pelo quarto de Mariana sem ser
vista, correndo para dentro do quarto dos pais atrás de algum celular há muito desativado, tentando encontrar um com bateria, chip.
— Droga... — soou baixinho quando um dos celulares tocou. Melissa teve um sobressalto.
Os olhos do invasor, dentro da máscara de lã, também brilharam no outro quarto.
Melissa abriu o celular velho que tocava e não acreditou na voz que se seguiu.
— Mel? Tá tudo bem? — Eduardo corria com o celular do faxineiro, após ter invadido as gavetas da diretoria e roubado o celular dele.
— Dudu... — sussurrou ela. — Como tá ligando pra esse número desativado? — olhou o aparelho; era um celular com números fixos, sem chip.
— O Fê tinha arquivado na memória dele. E nem me pergunte como — ria.
— Meu... — e Melissa voltou a ver que era o primeiro celular dela, ganho as doze anos. — Mas como você sabia que...
— Agora não é hora pra explicar, mas o cel do faxineiro é pra lá de bom, tá pegando todos os Wi-Fi sem senha da rua.
— Wi-Fi? Do que tá falando?
— Tô falando que acessei as câmeras do seu pai; droga!
— Câmeras de quem? — ela olhou em volta totalmente atordoada.
— Droga, Mel. Escuta! Seu pai instalou câmeras no seu apê. Eu sabia que ele usava senhas de aniversários em tudo e então acessei — falava ofegante enquanto corria.
Melissa voltou a olhar em volta não acreditando naquilo, que Eduardo podia invadir sua privacidade.
— Você tá louco? Você não...
— Chega Mel. Eu e o Fê tamos correndo até aí. Segura firme.
— Segurar o que?
— Alguém desligou a câmera do quarto da Mari. Acho que tem alguém lá, e que também sabia sobre as câmeras.
Melissa sentiu todo seu corpo arrepiar, cada poro abrir pelo medo.
— Você tá dizendo que alguém mais sabia das câmeras e... — e Melissa desligou no que ouviu Patrícia gritar.
— Mel?! — gritava Patrícia do chuveiro. — Mel?! — gritava sem parar. — Tá me ouvindo?! — e desligou o chuveiro. Patrícia se enrolou numa toalha. Saiu do banheiro e Dudu viu
aquilo pelo cel do faxineiro.
Ligou para o telefone fixo da casa de Melissa para chamar a atenção dos intrusos que se alertaram outra vez.
Patrícia enrolada na toalha se aproximou do telefone e ele parou de tocar.
— Que tá fazendo cara? — perguntou Fernando correndo com toda sua musculatura para lá de estável. — Essa é a minha Pati no chuveiro?
— É! Essa é a ‘sua’ Pati.
— Cê tá...
— Não tô nada Fê. Não encuca tá? Corre! Só corre! — já Eduardo sentia que a goela estava bloqueada pelo coração que parecia bater ali.
Eduardo aumentou o passo para alcançar Fernando que disparou, enquanto Melissa no apartamento viu que a sombra voltou atrás e parou.
Jogou-se no chão tentando enxergar alguma coisa. Viu um par de botas marrom. O invasor colocou a mão na maçaneta. Tentou abrir a porta e Melissa pensou em gritar.
O invasor desistiu.
“Mãe... Mãezinha... Chega...”, pensava em pânico.
O invasor, porém voltou ao quarto de Mariana. Mexia incessantemente nas gavetas. Procurava algo com certeza. Melissa passou pela porta do escritório, foi até a sala. Deu a
volta, aproximou-se da parede do quarto de Mariana e colou o ouvido.
Ouviu o farfalhar de papel sendo tocado, sendo jogado, sendo amassado e destruído.
“Os projetos do papai? No quarto da Mari? Não, não pode ser isso”, pensou Melissa, aturdida.
Um silêncio se seguiu por mais cinco minutos.
Parecia uma eternidade para ela.
— Socorro!!! — gritou Patrícia.
Melissa nem soube por que fez aquilo. Mas saiu correndo e se lançou para dentro de seu próprio quarto.
— Larga ela!!! — berrou Melissa, quase sem voz com um sapato de salto na mão, mas foi Eduardo quem virou para trás.
Já Fernando teve um sobressalto muito maior. Estava suado da corrida ao ver um sapato quase ser arremessado nele.
— Dudu? Fê?
— Ah… É que o Dudu entrou no banheiro e meu viu de toalha — justificava Patrícia toda molhada, parada na porta, sem nada entender, tentando evitar o ataque da amiga.
— Onde tá ele? — falava Eduardo, alterado.
— Como chegaram tão rápido? Teletransporte?
— Não tenho tempo pra responder. Onde tá ele, Mel? — agitava-se Eduardo.
Fernando não falava nada. Estava atônito com tudo aquilo. Só olhava para o sapato ainda na mão de Melissa e a ideia de que aquilo iria machucar se o tivesse acertado.
— Não sei. Achei que a Pati tinha gritado por causa dele — e olhou para Patrícia que perguntava algo na careta que fez. — Acho que tem uma pessoa no quarto da Mari.
Fernando ficou com Patrícia enquanto Melissa correu atrás de Eduardo, que saiu do quarto.
Alcançou-o na sala.
— Fica aqui! — ordenou ele. — Entendeu? Quando a tua mãe chegar, grita por socorro.
— Aonde vai? — perguntou Melissa vendo Eduardo saindo do apartamento.
— Procurá-lo!
— Mas ele não tá no quarto da Mari?
— Não! Mas acho que sei aonde ele foi — e Eduardo correu para fora do apartamento de Melissa que ficava no sétimo andar. Pensou em pegar o elevador, mas desistiu. — As escadas!
— concluiu correndo atrás do intruso sem pensar em consequências. — Desgraçado! Agora te pego!
Parou ao ver a sombra fazer a curva, quatro andares acima. Estavam na escada de serviço. Eduardo tinha a respiração acelerada. Parou para engolir a saliva.
Balançou a cabeça. Tirou o tênis. Não queria fazer barulho. Correu escada acima. Ainda estava muito longe do invasor.
Sabia que era ele.
Melissa alcançou a porta de serviço, seguida por Fernando.
— Dudu?! — gritou Fernando.
Eduardo parou.
— Saco! — esbravejou. Os passos, acima dele, pararam também. Aceleraram logo depois. — Saco! Saco! Saco! — Eduardo corria atrás do intruso que agora sabia que estava sendo
seguido.
Encaminhava-se para a cobertura.
— Dudu?! — insistia Fernando, agora junto a Melissa.
— Volta idiota!!! — gritou Eduardo para Fernando.
— Não!!! Vamos com você!!! — berrava Melissa para cima.
— Não!!! Volta!!!
Melissa ficou na dúvida. Deixou Fernando e desceu. Deu de cara com Fabrício Bernardes no hall de entrada do prédio.
— Nossa!
— Desculpe! Te assustei?
Melissa não ficou para responder se homens bonitos a assustavam, precisava chegar à portaria.
Lembrou-se do carro da polícia. Dirigiu-se para lá. Fabrício acompanhou-a apenas com os olhos.
Já Eduardo subia. Estava cansado, ofegante. Mal conseguia respirar. Nem todas as suas horas de treino na capoeira ajudaram naquele exercício. Já estava cansado da corrida
a pé da escola até o condomínio, porque como sempre, Eduardo e Fernando haviam entrado pelo portão sul.
Os policiais não viram os dois amigos chegarem, e Zé, acostumado, abriu sem nada perguntar.
Eduardo alcançou, enfim, o vigésimo terceiro andar. Olhou para a porta da cozinha. A fita estava dilacerada, a porta escancarada. Um som de destruição vinha lá de dentro.
Entrou no apartamento, atravessou as salas, subiu a grande escada de mármore de Carrara. Dessa vez não havia trilha de sangue. O apartamento havia sido limpo.
Um grande estrondo partiu do último quarto. Eduardo parou, não sabia como agir. Lembrou que estava sem uma arma. Recuou e desceu. Entrou na cozinha, abriu todas as gavetas.
— Uma faca... Uma faca… Saco!
Achou o que queria. Criou coragem e subiu ao segundo andar da cobertura, agora armado.
Dois quartos ficavam à esquerda da escada. Eram os quartos de hóspedes. Depois vinham mais três portas em grandes intervalos.
O primeiro quarto pertencia a Cibele. O segundo pertencia ao Senador. O terceiro pertencia a Patrícia. De lá saía o som ensurdecedor. Tudo estava sendo jogado. Era essa a
impressão.
Eduardo se aproximou com cuidado e o som extinguiu-se. Eduardo ficou apavorado, teve a sensação de que alguém havia passado por trás dele. E teve a sensação de não ser apenas
um.
“Entrar? Sair? Voltar? Gritar?”; foram as suas dúvidas. Seus olhos se arregalavam cada vez mais.
Pânico geral.
Eduardo se arriscou e entrou. O quarto de Patrícia estava de pernas para o ar, literalmente. Os lençóis arrancados tal qual os da mãe; a cama revirada, roupas arrancadas do
guarda-roupa, gavetas lançadas contra a parede, o computador no chão e um novo movimento.
Eduardo olhou para trás. Ouviu um gemido.
“Mel?”, pensou apavorado.
“Ela subiu?”; correu para o quarto de onde ouvira o som.
Era o quarto de Cibele. Estava bagunçado também, com marcas de sangue ainda se encontrando no carpete de pelo alto. Sentiu enjoo. Achou que ia vomitar. Conseguiu se controlar.
Gritos vinham de fora, do lado de fora. Eduardo se aproximou da janela. Olhou para baixo e os terríveis toldos cor de laranja obstruíram uma visão melhor.
— Não!!! — gritou ao ser puxado pelos pés. O invasor ia lançar o corpo de Eduardo pela janela abaixo. — Socorro!!!
Apenas uma risada sarcástica como resposta. Eduardo se agarrou nele. Tentou arrancar-lhe a máscara que usava. Os cabelos apareceram. Eram ruivos. Eduardo se apavorou. Perdeu
a força e o equilíbrio. Quase caiu.
Fernando entrou no quarto.
— Dudu?! — gritou ao ver a cena.
Eduardo olhou para a porta do quarto. Viu uma sombra sair de trás da porta. Um segundo invasor carregava um grande vaso.
— Cuidado!!! — tentou avisar.
O vaso se quebrou em vários pedaços na cabeça de Fernando, que foi ao chão desmaiado. O primeiro invasor aproveitou a distração de Eduardo e empregou mais força ainda.
Eduardo puxou a faca e cortou-lhe o braço.
— Ai!!! — gritou o primeiro invasor.
Eduardo se agarrou às cortinas. Tentava voltar a se equilibrar, mas o primeiro invasor era mais forte. Enrolou-o no extenso tecido de voile. Eduardo lutava contra a cortina
enquanto tentava arrancar a máscara. O segundo invasor se juntou ao primeiro, e com mais força empregada levantaram os pés descalços de Eduardo que deslizaram no carpete.
Eduardo estava pendurado no parapeito, estava do lado de fora da janela. Agarrava-se ao que restava dos metros de tecido.
— Socorro!!! — berrava Eduardo.
O segundo invasor escorregou no voile, Eduardo na distração conseguiu enfiar a faca no braço forte do primeiro invasor que nada sentiu. Num último jogo de corpo, Eduardo tentou
lançar seus pés contra o segundo invasor que caiu no chão reclamando.
— Saco! — exclamou o segundo invasor fugindo do quarto, deixando para trás Eduardo e o primeiro invasor.
Eduardo tentou outra vez mover-se, mas a cortina tinha muito tecido, e o prendia. Estava cada vez mais enrolado para poder se mover. Tentava entrar, e o primeiro invasor o
empurrava cada vez mais para fora. Eduardo olhou para baixo e viu imagens distorcidas.
Ia ser jogado do vigésimo terceiro andar.
— Melissa?! Socorro!!! — e a parede escapou das suas mãos. Eduardo se segurou no batente da janela e foi a vez da faca escapar de suas mãos caindo vinte e três andares. —
Droga!
A faca parou junto aos pés de seu Almeida.
Almeida e Melissa olharam para cima.
— Eduardo?! — gritava Melissa, atônita.
Seu Almeida voltou correndo para a portaria. Foi chamar a polícia. Eduardo sentiu tonturas. Agarrava-se como podia ao fino tecido de voile da janela que cedeu.
— Não!!! — não aguentou mais.
Eduardo foi lançado no ar, passando por todos os toldos horrivelmente alaranjados, parando no décimo oitavo andar. O corpo, feito elástico, voltou um andar para cima e caiu
novamente.
Aos poucos os parafusos se soltavam.
Eduardo desceu mais cinco andares. Parou no toldo do décimo terceiro, pendurado pelos pés no aramado do toldo destruído.
Sua cabeça girou. Enxergava São Paulo de cabeça para baixo.
— Vamos! — o primeiro invasor aproveitou para fugir. Juntaram-se mais quatro invasores comparsas que esperavam por ele na porta.
Já Eduardo caiu novamente. O tecido de lona rasgou e ele foi lançado no vácuo. Dilacerou mais dois toldos e parou no décimo primeiro andar.
O resto de cortina se emaranhava, era o que segurava o corpo do jovem.
Mais dois toldos, e mais dois toldos, e mais dois toldos, chegando ao quinto andar. As lonas dos toldos o mantinham no ar.
Eduardo tentava raciocinar. Chacoalhou a cabeça e caiu novamente.
— Não!!!
E mais um toldo, e mais um, e mais um e mais um. Os toldos ruíam com o peso do corpo de Eduardo que parou no primeiro andar. Para então cair de novo e parar no toldo maior,
aberto no hall de entrada.
Melissa estancou pelo susto. Olhou para o lado. Viu Fabrício, que chegava. Olharam para cima, os dois, e acompanharam com a cabeça a descida final do corpo que se estatelou
no piso da entrada do Bloco Jardim das Azaleias.
— Tudo bem? — tentou Melissa falar ao ver o amigo.
A língua de Eduardo não descolou do céu da boca, mas chegou vivo ninguém soube como.
Capítulo 14
— Pro-fis-si-o-nal! — repetia o Dr. João Vitor cada sílaba. — O cara é um profissional! Eduardo já tinha dito!
O Delegado José Liberato estava atônito. Andava a percorrer de lá para cá o estreito corredor do Hospital das Clínicas. Não sabia o que falar para o pai de Eduardo.
Ele estivera certo o tempo todo.
Eduardo estava em observação. Havia passado por uma ressonância magnética. Os médicos que o socorreram levantaram a hipótese de algumas vértebras quebradas, mas Eduardo escapara
graças à cortina amarrada a seu corpo. Chegou aos pés de Melissa e Fabrício ainda emaranhado parecendo um paraquedista.
Do outro lado do corredor do hospital, os médicos acalmavam o grande e choroso Paulo Jung ainda em choque. Quando o desastre com sua mulher Sandra e a filha Mariana foi anunciado
pelo rádio da polícia, o Policial Rocha já havia corrido até o local. Fez, sem ordens superiores, sua própria inspeção. O volante hidráulico havia sido mexido, danificado
até. A bomba de óleo havia sido perfurada com uma lâmina experiente.
— Coisa de profissional! — concluiu também.
A coisa havia chegado a seu limite máximo, José Liberato sabia. Sandra havia quebrado o fêmur. Mariana havia batido a cabeça no vidro lateral depois do impacto com o air-bag
que havia salvado a vida das duas.
Melissa chorava muito. Não acreditava no que sua vida tinha se transformado; sua mãe, sua irmã e Eduardo, seu grande amor.
O mundo tinha acabado para ela.
O médico que assistia Eduardo apareceu. Era o Dr. Alfredo, sócio do pai de Eduardo na clínica. Eduardo estava sendo transferido para a semi UTI.
— Não é nada grave, João Vitor, acalme-se. Ele fez rubber jump, mais nada — brincou o amigo tentando aliviar a pressão do momento. — Já virou até esporte, sabia? — sorriu.
— A cortina parece que segurou o peso na queda se enroscando nos toldos. Foi muita sorte a cortina ter um tecido tão resistente. Ele agora vai ficar em observação por mais
essa noite — comunicou o Dr. Alfredo.
— Mas eu quero vê-lo. Preciso! — tentava o pai, em vão.
— Sinto. Acho que deve deixá-lo descansar. Não quero que ele se emocione — sorriu o Dr. Alfredo. — Sabe me dizer o porquê dos policiais nas portas? — apontou.
— É para a própria segurança deles — chegou o Delegado por trás dos dois médicos.
— Segurança? — disse João Vitor virando-se para encarar José Liberato. — Desculpe Delegado, mas meu filho não conhece essa palavra — e foi se sentar no mesmo banco em que
estava Paulo.
Os dois vizinhos se abraçaram. Tentavam se confortar. Melissa olhava o fim do corredor. Uma plaqueta na porta estava escrito: ‘Centro Cirúrgico’. Lembrou-se o quanto brigava
com Mariana, sua irmã.
— Me perdoa... — pedia ela aos prantos. — Nós brigávamos por tantas baboseiras, por tão pouco... Deus…
Uma cara apareceu. Melissa tentava se lembrar de onde o conhecia.
— Oi! Meu nome é Fabrício Bernardes. Sou seu novo vizinho, no condomínio.
Melissa ergueu a cabeça para vê-lo melhor. De homens bonitos ela lembrava; no hall de entrada, depois no jardim, na hora da queda final de Eduardo.
— Oi! — disse ela enxugando as lágrimas.
Fabrício achou-a uma garota muito bonita, olhou-a com ternura. Melissa sentiu a sinceridade. Ele ofereceu um lenço. Ela aceitou.
Melissa limpou o rosto inchado. Sorriu em retribuição. Devolveu o lenço molhado.
— Eu sinto muito por seu amigo, por sua mãe, por sua irmã.
— Como soube?
— Estava lá na hora que a polícia chamou a ambulância.
— Perguntei como soube da minha irmã?
Fabrício gelou:
— Comentaram...
— Entendi — falou por falar.
Fabrício arrumou as costas. Fazia isso quando estava nervoso.
— Como elas estão? — tentou novamente se comunicar.
— Bem! A Mari é que preocupa. Ela bateu o olho direito no vidro, na hora do impacto. O médico disse que houve deslocamento da retina. Teve de operar de emergência, mas foi
só laser. Ela vai se recuperar rápido — e chorou. — Eu brigava tanto com ela.
— Não se lembre disso. É coisa de irmã.
— É! Pode ser!
— O rapaz?
— Dudu? Esse é gato! Escapou outra vez.
— O que quer dizer com outra vez?
— Nada! — e Melissa se levantou.
Fabrício viu que não era hora de insistências, era esperto. Despediu-se de Melissa e se aproximou do pai de Eduardo, se apresentando como o novo vizinho. Contou que estava
lá na hora do acidente e ofereceu ajuda.
Dr. João Vitor agradeceu.
Fabrício olhou o Delegado por debaixo dos cílios grossos e se afastou. Não demorou muito para que o Delegado viesse atrás dele.
— Entrei na cobertura na hora da confusão da ambulância — Fabrício foi logo disparando as informações. — O apartamento estava todo destruído, além do que já havia sido feito.
Aliás, estava tudo diferente, para dizer a verdade.
— Não compreendi.
— Bem, o que deveria estar como foi deixado não estava. Li o relatório quando chegou à delegacia naquela noite. Havia certos detalhes que chamaram muito a minha atenção —
olhou para os lados. — Esteve na cobertura depois do assassinato Dr. Delegado?
— Sim, uma vez, depois que o Dr. João Vitor me falou que a vidraça da sacada estava quebrada.
— Pois é... As roupas não se encontravam mais jogadas no hall da sala. Reparou?
— Não. Só verifiquei que a fita havia sido rompida. Olhei em volta, mas até aquele dia, ninguém havia mexido em nada.
— Ah! Mexeram, sim. As paredes foram lavadas assim como os carpetes. Com exceção do quarto da Sra. Cibele, que tem o pelo do carpete, muito alto, o resto foi limpo com esmero.
— “Esmero”?
— Sim, foi a minha impressão. Não havia mais sinal de sangue. Nem vidros no chão. Parecia que o apartamento foi varrido.
— O quê? Varrido? Eu dei ordens para não se tocar em nada! Nem limpar, nem varrer — José Liberato estava, agora, mais descontrolado ainda.
Bufava feito touro irritado, acossado pela espada do toureiro.
— Compreendo! — falou, abismado com a mudança de humor do Delegado.
— Ele está me desafiando. Sei que está.
— O Rocha ouviu no rádio sobre o acidente. Sabe como é o Rocha... — Fabrício sorriu maroto.
— Um bisbilhoteiro nato.
— Exatamente! Ele se deitou debaixo do carro da dona Sandra.
— Ele fez o quê?
— Em plena confusão, e ninguém o viu. E ele me disse pelo telefone que a bomba de óleo da direção hidráulica foi rasgada por uma ferramenta pontiaguda. Isso deve ter travado
o volante. Rocha acha até que o cara que mexeu deve ter sido interrompido, porque havia indícios de que tinha começado a mexer em mais coisas.
— Acha que o desastre foi provocado? Queriam matar a mãe da Melissa?
— Posso dar minha opinião? — e não esperou pela ordem. Falou assim mesmo. — Não era a mãe; era a filha.
— A filha? A tal Mariana?
— Sim! Eduardo, Melissa, Mariana, Patrícia e Fernando. Os cinco amigos... — olhou um lado e outro. — Posso dar outra opinião?
— Vá em frente!
— Se não pegar o fio da meada, Delegado José Liberato, vão todos se enrolar de vez nesse novelo. E ele vai matar os cinco. Juntos ainda irão, família e empregados.
— ‘Ele’? Quem é ele, Fabrício?
— Tem certeza que não sabe quem é o fio da meada? Pois eu acho que é o tal ladrão que o garoto fala no relatório. E ‘ele’ acredita ter sido visto por Eduardo na cena do crime
e está tentando eliminá-lo, numa chance após a outra.
— O menino Eduardo tinha razão!
— Mas… — e Fabrício esperou ter a atenção de José Liberato. —, apesar de concordar com o garoto, não acredito num ladrão, não num ladrão comum. Não tenho tanta experiência
assim. Venho conversando muito com meu pai, pois ele é muito mais experiente. Mas acho que todos eles estão mesmo correndo risco de vida.
— Vou mandar colocar um policial na porta de cada apartamento. Dos dois meninos e das três meninas. E vigiá-los quando saírem. Mandei Rocha para Brasília. Quero uma limpa
na vida do Senador. Quero saber o que fazia antes de morrer, e no que trabalhava atualmente. Também quero uma vasculhada na vida dos cinco amigos, também. Isso pode cuidar
disso você mesmo. Acho que depois desse atentado consigo falar com meu amigo. Tenho que convencer o Judiciário a reabrir o caso. Então ‘ele’ vai se apavorar e nós o pegaremos
— concluiu.
Fabrício Bernardes ficou contente em ver o Delegado com aquele brilho nos olhos.
Ficou feliz por estar ao lado de seu ídolo.
Capítulo 15
Patrícia havia chorado a noite toda. Estava temporariamente no apartamento de Eduardo. Contudo, queria por que queria sair, e Berenice não deixava.
— Não posso. Tá sob minhas ordens. O Dr. João Vitor mandou.
— Ele não é meu pai, Berê. Só vou dar uma volta.
— Ocê me ouviu? Ele ligou do hospital e disse que o Delegado vai pôr um policial na nossa porta. Não pode sair sem avisá-lo.
— Droga! — praguejou irritada.
Berenice não ficou para olhar a raiva dela, foi arrumar o resto do apartamento após servir o café da manhã. Ninguém havia voltado ainda do hospital. Todos haviam passado a
noite por lá. Berenice deixou Patrícia sozinha na cozinha e ela aproveitou a chance e saiu pela porta de serviço.
— Minha Santa Aparecida, não sei se faço almoço ou... — falava enquanto se encaminhava de novo para a cozinha. — Ué? Cadê ela? Pati? — olhou para a porta. — Que droga! Onde
tá essa garota? Pati?! — gritou no corredor. — Minha Santíssima, o Doutor vai ficar uma fera comigo.
Patrícia estava nas escadarias. Subia correndo, com medo de ser pega. Ouviu barulho no corredor da cobertura. Alguém estava na porta de serviço do seu apartamento.
Abriu devagar a porta corta-incêndio.
— Você? — falou Patrícia para alguém que tentava abrir a porta com uma chave falsa. Ele sorriu apenas. — Ia mandar um e-mail pra você. Senti tantas saudades, Cacá.
O cara continuava nada a falar. Patrícia se jogou em seus braços. Beijou-o intensamente.
Ninguém os viu.
Capítulo 16
O avião aterrissou no Aeroporto Brigadeiro Eduardo Gomes, em Brasília, na Asa sul. O Policial Rocha quase beijou o chão.
Fazia calor em Brasília e o dia estava seco e nublado.
O gabinete do Senador estava lacrado. Rocha precisou da autorização do Congresso para abri-lo. Perdeu quase a manhã toda naquela investida. Antes de sair de São Paulo, porém,
telefonou para o ex-secretário particular do Senador, para estar lá para recebê-lo.
Osmar foi pontual. Caminhava agora a seu lado depois da permissão concedida. Rocha atravessou a sala que Osmar costumava usar. Abriu a grande porta de nogueira maciça. A sala
do Senador estava intacta. Recebera ordens de não abrir as janelas e o gabinete todo cheirava umidade, a coisa fechada.
Rocha era detalhista. Tinha aprendido com José Liberato depois de 20 anos de trabalho em conjunto.
— A sala foi fechada por ele?
— Sim. Ele a fechou e partiu para São Paulo. Ninguém mais entrou aqui.
— Ninguém? Ninguém teve curiosidade de olhar a sala de um morto?
— Nossa! — a face de Osmar endureceu, na dúvida se havia sido uma indireta. Estava acostumado a elas, trabalhando tanto tempo no Senado.
Osmar era robusto sem ser gordo. Seus cabelos embranqueciam rapidamente. Estava tenso com aquela visita.
— Desculpe. Empolguei-me… — desculpou-se Rocha ao ver o lobista e ex-secretário ainda de olhos arregalados.
— Tudo bem...
O policial abriu todas as gavetas e fotografou algumas anotações contidas na agenda do gabinete, guardada dentro de uma pasta de couro.
— Ele tem uma carteirinha de telefones, não? — Rocha olhou um lado e outro. — Do jeito que a sala é antiquada… não acredito numa agenda eletrônica… — e percebeu o susto do
homem. — Aconteceu alguma coisa Sr. Osmar?
— Eu falei para minha mulher... Eu precisava ter falado, mas ela não deixou — disse envergonhado.
— Hei? Calma lá. O que você precisava falar?
— Um homem, um bem estranho.
— Que homem? — interessou-se Rocha.
— Um tipinho que vinha aqui. Não sei para quê, mas ele sempre trazia um envelope. Desses comuns, pardos, de papelaria. E sempre saía sorrindo, contando dinheiro. Parecia fazer
de propósito, para que eu visse que o Senador lhe havia dado dinheiro.
— O Senador havia contratado esse homem?
— Era o que parecia.
— Que tipo de serviço acha que ele prestava se era um tipo tão estranho?
— Coisas do tipo... erradas.
— Seja mais claro, por favor. Poderemos deixar isso fora do relatório se quiser — insinuou com certo tato.
— Ninguém vai saber que eu falei? Tenho medo, minha mulher disse... Sabe... Meu emprego como lobista é delicado. Eu fico em volta de muita gente influente. Minha mulher disse...
— Não se importe com que sua mulher disse Sr. Osmar… — cortou o drama de uma vez. —, seu emprego não correrá riscos se é isso que o preocupa.
— Está bem. Eu acho que o cara era um detetive. Li nos jornais que o Senador matou sua mulher porque ela o traía. Eu também achava isso. Ela era uma perua bonita, jovem, chamava
a atenção de todos aqui no Senado. Uma modelo, ex-atriz, sei lá. Usava saias curtas e muito, muito decote. Acho até que fazia de propósito porque o Senador não gostava quando
ela vinha.
— Ele tinha muito ciúme dela?
— Que pergunta... Ele tinha mais de 60 anos, ela trinta e poucos. Dizem até que ele precisou usar de amigos da lei para poder casar com ela que era de menor na época do enlace;
um abismo. Além do mais, comentava-se que ela gostava de meninos jovens, muito jovens — piscou com malícia. — Ela só vinha aqui buscar dinheiro, cada vez mais. O Senador ficava
nervoso. Eles gritavam bastante dentro da sala. Uma vez ela atirou um vaso em cima dele e saiu num rompante. Ele ficou todo sem graça comigo e mandou repor com urgência porque
o vaso era do gabinete.
— Sabe se ela esteve naquela última vez?
— Não, aqui não. Mas ela estava em Brasília com ele. Eu sei por que ela ligou no final da tarde, quando o Senador estava com o tipinho estranho lá dentro. E ela falou para
mim: ‘Mande meu recado. Mande-o depositar dinheiro na minha conta’.
— Para que ela precisava de tanto dinheiro ultimamente?
— Não sei.
‘Chantagem?’, pensou Rocha.
— Depois que o tipinho saiu, o que o Senador fez?
— Nada! Imagino que não demorou a arrumar as coisas e ir embora. Eu não o vi sair. Tinha ido antes. Logo depois de atender o telefonema da mulher dele.
— Se ele trazia envelopes tão importantes para o Senador, onde os guardava? Isso aqui é um cofre? — falou apontando para o quadro.
— Sim — e Osmar o abriu. — Vê? Não deve ter nada importante dele aqui. Eu o abria constantemente.
— Estranho! — falou. — O que faria então com os envelopes se não os guardava no cofre e nem os levava para sua casa? Vamos Rocha... Pense… — falava sozinho. Olhou para os
lados. — Para que uma lareira de verdade em uma Brasília sempre abafada?
— Coisas de decorador, suponho.
— Ah! Já sei o que fazia com os envelopes... Destruía! — exclamou ao olhar para a lareira elétrica, cheia de papéis queimados. — Pode me conseguir um saco plástico?
— Sim. Vou buscar.
Rocha recolheu e guardou tudo o que tinha por lá. Ia levar direto para a equipe de cientistas forenses de José Liberato averiguarem.
Voltou para São Paulo quase no mesmo avião em que havia chegado.
Capítulo 17
O Dr. Alfredo apareceu na sala de espera naquela manhã nublada. O Dr. João Vitor passou a noite acordado, aguardando notícias. Eduardo dormiu o tempo todo. De manhã cedo partira
para uma batelada de exames. Deram todos negativos. Eduardo estava bem. Ia usar um colete de aço para aliviar a coluna. O Dr. Alfredo liberou o garoto para voltar para casa.
Liberados também foram Sandra, com a perna engessada e Mariana, que se recuperaria em casa após a cirurgia oftalmológica.
Depois de deixarem Sandra e Mariana em casa, Melissa e seu pai foram ao décimo primeiro andar, ao apartamento de Eduardo. Agradeceram Berenice por cuidar de Patrícia. Berenice
respirou aliviada. Nada falou sobre o sumiço da garota uma vez que Patrícia não sumira por mais de meia hora. Mas a intenção de contar a verdade não saíra da cabeça da empregada.
A polícia mudava-se, literalmente, para o condomínio. Iriam revezar, sem trégua, as vinte e quatro horas do dia.
Cada apartamento teria um policial na porta social e um policial na porta de serviço e quem saísse, seria acompanhado. Duas policiais femininas, jovens como Fabrício, entrariam
na escola e assistiriam às aulas que fossem necessárias para acompanhar as meninas.
Somente Melissa, Fernando e Patrícia iriam para a escola.
Eduardo queria ir, mas tinha sido dispensado. O pai não acreditou no que ouviu.
— Dudu querendo ir para a escola? — comentou. — Vai ver que o acidente o modificou — torcia para que aquilo tivesse acontecido.
E Melissa não acreditou quando Patrícia se preparou para ir à aula. Ela estava diferente; podia sentir. Sua atenção havia sido chamada diversas vezes pelos professores. Estava
sorrindo apesar de tanta desgraça, e não prestava atenção às aulas. Nada perguntou sobre o acidente, nada questionou sobre Mariana, se esqueceu até de perguntar sobre sua
tia.
Estava dispersa; dispersa e feliz.
Fernando, que teve uma pequena luxação por causa do vaso quebrado na cabeça, frequentava a aula junto a Melissa e Patrícia. Agora era Adriana, a mãe de Fernando, que levava
e trazia os três amigos da escola. E ela até quis saber mais detalhes sobre a queda de Eduardo, mas a falta de respostas da turma foi geral.
Melissa agradeceu o silêncio de Fernando, mas não iria agradecer o silêncio de Patrícia.
— Você mudou — falou Melissa de repente.
— Quê? — perguntou Patrícia no banco de trás do carro. Olhava para fora, sem prestar muita atenção ao caminho. — Não sei do que tá falando.
— Tá diferente, sim — e Melissa desistiu.
Patrícia olhou-a por baixo dos óculos escuros. Chegou ao apartamento de Melissa e foi direto para o quarto de Mariana, que o cedera de vez para ela.
— Mãe? — chamou Melissa ainda na porta.
Sandra se apoiou na bengala.
— O que foi?
— Posso ir até a casa do Dudu?
A mãe sorriu para ela. Foi tão sincera que Melissa perdeu a ação.
— Gosta dele, não?
— Ai. Mãe... Que pergunta!
— Gosta, eu sei. Estive pensando muito depois do acidente. Vocês duas são tudo o que tenho na vida. Seu pai, sua irmã e você são minhas verdadeiras riquezas. Não a quero machucada
e nem magoada, Melissa.
— Não vou me machucar, mãe. Prometo!
— Vou confiar em você, como sempre. Mas vou dobrar a atenção.
— Ok! Posso ir agora?
— Pode! Deve até, se te faz feliz.
— Oh, mãe! Obrigada — e a abraçou.
— Eu sei que você é uma gracinha, mas me faça um favor antes?
— O quê?
— Troque a cor da sua roupa, minha filha.
Melissa riu.
Correu para o quarto e colocou um jeans azul que há muito tempo não usava. Subiu até o apartamento de Eduardo, tendo que pedir autorização dos policiais.
Eduardo estava sonolento. Estava deitado quando Melissa entrou. Era a primeira vez que o via desde a queda.
— Oi? Tudo bem?
— Oi, Mel. Tô todo dolorido — riu. — Acho que dói mais que as surras que levava da minha mãe quando comia terra.
— Oh, Dudu! Você não toma jeito mesmo. Eu fiquei preocupada.
— Não esperava nada diferente de você.
— Como assim? — perguntou curiosa.
— Eu tive pensando... Lá na UTI não se faz outra coisa. Então pensei que... Ulalá! Não havia percebido... — mudou de repente o assunto.
— O que foi?
— Suas pernas... Estão azuis.
Melissa riu demoradamente.
— Foi pra você — balançou-se dentro do jeans.
— Gosto!
— Do jeans?
— Da cor... Do tecido... De como desenha suas curvas.
Melissa levantou a sobrancelha. Gostou do que ouviu.
— É? — brincou.
— Vou me jogar mais vezes da cobertura da Pati.
— Ai! Dudu! Não fala besteira. Você não vai crescer?
— E perder você no passado?
— Nossa! Virou poeta?
— Não é isso. Tô gostando de você.
— De quem? — o coração e a língua se encontraram.
— Você... Eu... Nunca tinha te visto de baby-doll. Não dormi direito, aquela noite; tive sonhos esquisitos. Não consegui parar de pensar em você. Você teve sempre tão perto
que não te via.
— É! Eu percebia.
— Posso te beijar?
— Beijar? — ficou vermelha. — Aqui? Agora?
Eduardo olhou para os lados.
— Tamos sozinho. Quê que tem? Posso? — e Eduardo viu Melissa se aproximar dele. — Não! — falou afastando Melissa, que se aproximava. — Não é você quem vai me beijar... Sou
eu quem vou beijar você, Mel — e se ergueu.
Melissa sorriu, acanhada. Abaixou a cabeça, que Eduardo levantou em seguida. Os dois se aproximaram. Melissa preferiu fechar os olhos, sentindo o coração bater na boca outra
vez.
Já Eduardo sentiu todo seu corpo de homem tremer. Encostou seus lábios nos dela, sem, porém beijá-los. Ficou segundos a observá-la.
Melissa abriu os olhos. Nunca havia visto Eduardo de tão perto.
Os lábios tremiam; sentiam prazer de estarem juntos. Melissa sentiu tonturas. Eduardo começou a tirar o colete de aço. Melissa percebeu. Não entendeu o porquê; não quis perguntar.
Eduardo a encarava, com seus olhos falando uma linguagem desconhecida.
Os dois ainda se encaravam de perto. Ele podia sentir o perfume que ela usava. Doce, sutil, tremendamente perigoso.
Tocou seu pescoço, afastando seus cabelos, aproximando sua boca grande.
Mordeu-o.
— Ah! — exclamou Melissa sentindo a corrente elétrica passar.
Mil volts de carga.
Eduardo ainda a via de modo estranho, passando seus lábios na boca de Melissa, insinuando-se, voltando a se aproximar, erguendo a cabeça, o supercílio, a mão esquerda, tocando
os cabelos dela novamente, puxando-os com força.
Ela ia gritar, mas não teve tempo. Eduardo engolia seu pescoço, experimentando o gosto, o aroma que exalava do corpo dela.
Melissa nem respirava mais sentindo o quarto girar, e Eduardo foi em frente, com o tocar de seus lábios; para baixo, para o lado, em sentido contrário, começando a descer
os olhos, alcançar a blusa do uniforme da escola. Subindo e descendo montanhas, se perdendo nas curvas sinuosas.
— Dudu... — tentou falar. — Não! — o afastou.
— Por quê?
— Não... Ainda não… — e Melissa mal teve tempo de falar no que Eduardo fez mais que olhar. Ela sentiu-se tonta no que a barba roçou-lhe o tecido, agora sem proteção. — Não
posso... — mas Eduardo já se inclinava novamente. — Não Dudu!
— Desculpa... Eu... Eu não consigo me controlar.
— Então é mais que não! — desvencilhou-se dele e saiu correndo.
— Saco! — exclamou Eduardo arrependido.
Melissa atravessou o apartamento. Quase tropeçou no policial na porta. Entrou no elevador. Não conseguia tocar os botões certos. Estava tonta, confusa, totalmente apaixonada.
Acabou descendo até as garagens até dar de cara com Fabrício.
— Oi! — exclamou ao vê-la levando um susto. — Te assustei novamente?
— Sim... Um pouco. Não sabia que o elevador ia descer.
— Ah… — Fabrício sorriu, a achava tão bonitinha.
Tocou o quarto andar.
— Já se mudou? — disse ela tentando recuperar o fôlego.
— Ainda não totalmente. Faltam detalhes, mas vim ver o apartamento.
Melissa estava tão atordoada que ficou sem graça e riu. Fabrício riu também. Ele desceu no andar tocado após se despedir. Entrou na sala quase vazia de móveis. Tirou da mala
o notebook que havia trazido pela manhã.
Tirou do bolso uma chave de fenda e abriu o compartimento debaixo do computador. Tirou uma placa e a colocou ao contrário. Fechou o notebook, pegou o casaco e se dirigiu para
o elevador.
— Berê?! — gritou Eduardo. — Tão tocando a campainha.
Berenice saiu correndo da cozinha e foi atender.
— Oi! Sou o vizinho do quarto andar. Meu nome é Fabrício Bernardes, já falei com o policial aqui na porta — e apontou para trás. — Posso falar com o Eduardo?
— São amigos?
— Conheci o pai dele, Dr. João Vitor, ontem no hospital.
— Tá bom. Pode entrar. É o segundo quarto do corredor.
— Obrigado! — Fabrício entrou e se encaminhou para o local indicado. — Posso entrar? — falou após ter bater e abrir a porta do quarto de Eduardo.
Eduardo estava estressado:
— Quem é você?
— Sou Fabrício, o novo vizinho. Encontrei sua amiga no elevador, a tal de Melissa — Fabrício viu Eduardo apenas o olhar. — Uma graça ela, não? — agora Eduardo prestou atenção
nele; e não gostou do que ouviu. Fabrício prosseguiu: — O porteiro disse que consertava computadores... É verdade?
— Puxa cara! Tô num estado ruim demais.
— Meu... É que preciso entregar um trabalho na faculdade. Tô ferrado! — brincou. — É só dar uma olhada... Pode ser?
— Tá! Tá bom! Dá aqui! — e tentou ligar o notebook.
A máquina não funcionou. Eduardo abriu a gaveta ao seu lado. Pegou um estojo de pequenas ferramentas. Fabrício se deslocou do local onde estava parado e Eduardo nem percebeu.
O policial fechou a porta à chave e Eduardo ouviu o clique da chave quando girou.
Levantou os olhos calmamente e encarou Fabrício parado diante da porta.
— Se virar a placa do outro lado, ela funciona — falou Fabrício com voz séria,
Eduardo olhou para o notebook que acabara de abrir. Viu a peça trocada. Sabia que nenhum profissional a colocaria daquele jeito. Percebeu que tinha sido mexida. Olhou para
o vizinho, assustado.
— Você…
— O que te perturba, Eduardo? A menina bonita ou a queda? — Fabrício viu os olhos de Eduardo brilhar e ele não conseguir falar, achando que ia morrer. — Sabe... O dia vai
ser longo, Eduardo. Avise a empregada para fazer sanduíches. Temos muito que conversar...
Eduardo engoliu tudo aquilo a seco.
Capítulo 18
As celas estavam abarrotadas de gente depois que o ruivo, o Vermelhão, como era chamado no submundo das drogas, havia chegado. Preso no portão da Escola Monsenhor Hipólito
Ibi, três dias depois que chegou ao distrito e já estava abrindo o bico.
Decidiu que não ia em cana, sozinho.
Foi um derrame de informações há muito procurado pelos agentes especiais do Delegado José Liberato. Naqueles dias que se seguiram após a prisão feita em flagrante, a equipe
já havia desbaratado oito gangues de traficantes, estourado cinco bocas de fumo e prendido vinte e cinco envolvidos, entre eles um perigosíssimo bandido, o famoso Juca Fumaça.
Sua especialidade era tráfico e desmanche. Sua gangue desmanchava um carro em quinze minutos; eram os melhores do ramo.
Vermelhão havia contado à polícia que vendia cocaína e maconha para alguns alunos da Escola Monsenhor Hipólito Ibi e de outras também. Tinha freguesia certa. Uma delas era
Patrícia de Moura, dizia Vermelhão, que comprava cocaína dele dizendo sempre ser para a mãe. José Liberato e Rocha descobriram que era para manter seu vício, cada vez mais
constante, que Cibele de Moura pedia tanto dinheiro ao Senador.
Rocha ainda acreditava em um amante sedento de grana.
José Liberato havia conseguido reabrir o caso mandando exumar o corpo de Cibele, no Cemitério da Paz, a fim de uma nova autópsia, agora nas vísceras da morta. Aquele tipo
de exame não havia sido pedido antes, mas agora as evidências da dependência de drogas, levavam a isso, e abriam mais possibilidades para os investigadores.
Eduardo tinha razão quando contou a Fabrício ter visto Patrícia no portão da escola com o tal ruivo. Fabrício achou sua conversa com o garoto proveitosa, apesar do susto inicial
dele imaginando que ia ser assassinado ali, naquela hora.
Fabrício riu, disse que ele assistia filme demais.
Eduardo não achou tanta graça assim, mas contou a ele tudo o que vinha acontecendo, despejando tudo sobre o policial, depois que Fabrício se identificou, o que tinha averiguado
durante o período. Contou até sobre os computadores do Judiciário, sob a promessa de que seu pai nada ficasse sabendo. Pediu também que mantivessem Melissa por dentro de tudo.
Assim poderia falar tudo o que ela também tinha descoberto.
Fabrício sorria e erguia o sobrolho toda vez que o nome dela era falado e Eduardo começou a sentir ciúme do jovem policial loiro. Mesmo assim, concordou que Fabrício visitasse
Melissa, que também levou um susto quando este se apresentou como policial.
Nas próximas horas, somente Eduardo e ela saberiam da verdadeira identidade dele.
Melissa se achou o máximo, depois se lembrou dos riscos que corria. Contudo não deixou de fora nenhum detalhe. Fabrício anotava tudo em seu notebook, agora com a placa na
posição certa. Fez um relatório minucioso, estranhando saber que Patrícia tinha um namorado ‘virtual’. Outro detalhe que não compreendeu foram os gritos da empregada Maria.
— O que ela tinha visto para estar tão apavorada? E se morrera antes de todos, a que sangue se referia? — Fabrício progredia nas investigações.
Pediu à delegacia, além das ordens do Delegado, um minucioso estudo da morte dos envolvidos. Dessa vez incluiu o corpo do Senador, também retirado do Cemitério da Paz e o
corpo do motorista e o da empregada, Maria.
O Delegado José Liberato estava cada vez mais impressionando com o jovem policial Fabrício, que conseguiu com amigos de seu pai influente, autorização para todas aquelas autópsias.
Rocha chamou um especialista da Polícia Federal e pediu que Osmar fizesse um retrato falado do detetive a partir do depoimento, agora oficial, do lobista e ex-secretário do
Senador.
E outra vez precisou assegurar a Osmar, sua segurança pessoal.
— Delega? — chamou Rocha, que estava no final da grande sala dos policiais ainda no Distrito Policial. — A perícia chegou a uma conclusão — e entregou um envelope. — Eles
disseram que a maioria do material encontrado na lareira do Senador estava muito danificada pelo fogo, mas pelo tipo de material, é acetato.
— Fotos?
— Sim, fotos. Todos os papéis queimados naquela lareira eram fotos. Não há nenhum outro tipo de papel, portanto o que o tipinho estranho levava para o Senador só podia ser
fotografias.
— Tem alguma maneira de se identificar quem está na foto?
— Interessante falar nisso, delega. A perícia criminalista falou que tem algumas fotos das quais apenas uma parte fora queimada.
— Como assim?
— Eles falaram que não podem dar cem por cento de certeza, mas parece que o Senador rasgava a foto, retirando dela ‘alguém’, e as queimava depois. As fotos jogadas diretamente
no fogo, então, tinham a dona Cibele e eram totalmente destruídas. A perícia acha que ele a excluía, separando-a da fotografia, e depois as queimava. As fotos contendo outra
pessoa ele simplesmente, jogava na lareira, ficando mais por cima e não sendo totalmente destruídas.
— Estranho! Muito estranho!
— Mas isso vira o jogo delega — Rocha abriu o pacote. —, porque isso permitiu que algumas fotos fossem reconstituídas e retocadas — e entregou três fotos. — Sabe delega, esse
pessoal é bom no que faz. Eles têm um computador que conserta as imagens. Veja! — coçou a cabeça. — Eles conseguiram arrumar uma imagem de dona Cibele. É ela mesma — e entregou
para José Liberato que ficou impressionado com o trabalho de sua equipe forense. Rocha prosseguiu. — Agora, veja essas duas fotos do cara com ela.
— A perícia tem certeza de que as cores não foram alteradas?
— Papel de primeira, delega, importado, não se destrói totalmente no fogo — e Rocha esperou a análise do delegado. — Vê o corpo do homem ao lado da Cibele fotografado no motel?
Jovem, atlético, e ruivo.
E José Liberato ficou matutando algo antes de dizer.
— Desde que entrei em contato com o mundo do Senador… — e parou de falar para tomar fôlego. —, descobri que ele era um homem muito bom. E todos o dizem; bom demais para existir
na política... — riu. — Bom pai, bom marido, bom vizinho. Acredita que também fosse um bom assassino?
Os dois se olharam.
Capítulo 19
— Mel? Pode vir até aqui? — perguntou Eduardo, pelo interfone da cozinha.
— Não sei se devo. Ontem foi tudo tão esquisito...
— Olha! Desculpe. Eu precisava falar com você. Não pode ser pelo interfone.
— Tá! Tá bom! Tô subindo.
Eduardo ficou olhando o interfone desligado. Percebeu o quanto gostava dela.
Não demorou em que sua campainha tocasse. Eduardo abriu a porta e viu que o policial não estava na porta dele.
— Vamos até meu quarto? Se eu ficar perambulando pela casa, a Berê me mata. Já disse que tô bem... Mas não adianta — abriu a porta para ela entrar. Melissa usava um vestido
curto. — Ulalá! Quer me matar? De novo? — brincou Eduardo, mas ela mantinha a seriedade. — Então tá... Não vamos falar nisso, Ok? Amigos outra vez?
— Não deixei de ser sua amiga, Dudu. Só acho melhor dá um tempo.
— Tá! Também acho — e se aproximava. — Posso te contar uma coisa? — Melissa se encolheu toda. — Teu cheiro, sabe? Me dá até azia.
— Azia? — riu.
— Dá um frio na barriga, enjoo, não me controlo — e a beijou.
Eduardo entrava cada vez mais em sua boca, engolindo-a por completo. Estava apaixonado.
Melissa esperou o beijo acabar para falar.
— Vai ter que ser à minha maneira.
— Aceito! — quase gritou. — Só não quero dá tempo nenhum.
— Mas vai ser devagarzinho. Com juízo.
Eduardo achou graça.
— O que entende por juízo, Mel?
— Isso mesmo que pensou.
— Tá bom — riu. — Eu topo.
— Então vamos ‘ficar’. Vamos ver no que vai dar.
— Ulalá!!! — gritou de felicidade a balançar os cachos negros. — Mas antes da gente se perder de novo... — brincou. —, tenho uma coisa pra te contar. Fecha a porta.
Melissa olhou para fora e agora deu de cara com Berenice.
— Ahhh! Querem sanduíches? — falou sem graça pelo flagra.
— Dudu? Quer sanduíches? — perguntou Melissa com calma.
— Sim! — respondeu ele no disfarce.
Riram a beça depois que Berenice foi embora.
— Acho que a Berê ouviu, né?
— Com certeza. Mas não esquenta, Mel. Eu quero te falar algo importante. Conversei muito com o policial Fabrício. Ele acha que o que eu fiz no Judiciário foi errado, a tal
ida aos computadores sem autorização e tal, mas disse também que o Delegado vem enfrentando problemas por causa da reabertura do caso. Ele queria uma cópia daquela carta.
Parece que o pai da Pati morreu primeiro. Saco! Naquela noite esqueci e não imprimi. Vou precisar ir lá.
— Não pode sair de casa. Teu pai proibiu.
— Eu sei. Por isso preciso de você.
— Quer que eu vá até o Judiciário?
— Não, você não vai conseguir. Preciso do Carlos Alberto outra vez.
— Não acredito que ele vá se envolver. É filho de um desembargador.
— Vai ter que convencê-lo. Sabe como? Fica bem de jeans... — Dudu foi pura insinuação.
— Dudu! — reclamou. — Cê é mesmo um louco.
— Tô brincando. Agora tenho até ciúme de você — piscou. — Ciúme até do policial.
— Do policial Fabrício? Ah! Imagine!
E ambos se calaram.
— Sabe se a Pati pode cooperar? — mudou de assunto.
— Não acredito nisso.
— Mas é o pai dela, Mel.
— Pati tá diferente. Não é mais a mesma. Sabe o que eu acho Dudu? Ela tá se encontrando com aquele Ricardo.
— O virtual?
— É... E não é pelo computador. Pati tinha um montão de camisinha na bolsa e anda sumindo demais.
— Mexeu na bolsa dela? — falou, horrorizado. — Mel... Que coisa feia!
— Ah! Não enche, Dudu.
— Por que mexeu?
— Não me conformo daqueles caras terem invadido nosso apartamento bem no dia do acidente da mamãe. Por que foram mexer nas gavetas da Mariana, que na verdade estavam cheias
de roupas da Pati? Ela tava dormindo no quarto da Mari já algum tempo. Agora se mudou de vez... Então diz? Como é que eles sabiam?
— Sabiam do quê?
— Das gavetas! Da Pati no quarto da Mariana!
— Mas eles tavam procurando algo, não é isso? Não tô te entendendo, Mel?
— Dudu, preste atenção. Raciocine comigo. A Pati falou que o cara do computador conhecia tudo sobre ela, até o que ela não falava. Falou que era meigo e atencioso, e dava
conselhos. Mas a Pati de repente passou a ter medo dele. Achava que era atenção demais. Aí o pai e a mãe morrem e você falou que tinha alguém lá no quarto da mãe dela morta,
né?
— E tinha. Agora sabemos.
— Pois é. O Fabrício falou que você contou pra ele, que tentou tirar a máscara do cara que te empurrou da janela e viu cabelos vermelhos, né? Bom... A Pati falou que o tal
Ricardo pensou que ela tinha ‘saído’ da sala de Chat e continuou a conversar com outra garota. Só que ela saiu e entrou de novo, mas com outro nickname, pra vigiá-lo sem ele
ver. Sei lá como isso funciona, mas aí o cara falou que era ruivo e tinha 23 anos. Só que pra Pati ele falou que tinha 38... E não falou de jeito nenhum como ele era. Foi
aí que ela falou que ele era ruivo.
— Meu... Quantos ‘falou’ — e Eduardo viu a cara que ela fez. — Tá. Tá bom. Tá querendo dizer que o cara de cabelo vermelho é o cara da Pati?! — gritou no que a ‘ficha caiu’.
— Ai! — sentiu dores nas costas no que se levantou rápido.
— Calma! Não pode se levantar tão rápido — disse Melissa, ajudando-o a sentar de novo. — E se for verdade, Dudu? Isso explica tudo. Inclusive o fato dele saber que você o
tinha visto e por isso tentou te dopar com os dardos no jardim.
— Meu... Já pensou se a casa da Pati tinha câmeras?
— Como é que é?
— Câmeras Mel... Como as do seu pai.
— Acho que o meu pai sempre foi encanado com essa coisa de segurança. E a Pati dizia que o Senador nem fechava a porta do carro. Daí...
— É... Pode ser que tudo isso tenha contribuído, sei lá, cepá, pro cara entrar sem ser visto todas essas vezes.
— Ou o cara é hacker como você — Melissa viu que Eduardo se assustou com o que ouviu. — E também soube que você tava procurando a tal carta... Aí o tal Ricardo virtual tava
naquele computador quando o Carlos Alberto abriu a página pra você Dudu...
— A Pati sabia? Sobre minha ida ao computador do Judiciário?
— Ah! É! Acho que não. Mas se sabe, não fui eu quem contou. Achei que você tivesse contado pra ela...
— Que confusão, Mel!
— É! Uma baita confusão...
E Eduardo deu um salto da cama.
— Mas que cara esperto... Muito esperto…
— Por quê? — mas ela não ouviu resposta. Eduardo estava eufórico. — Por que Dudu?
— Preciso ir até a cobertura.
— Por quê?
— O computador da Pati... Preciso vê-lo.
— Não vai adiantar. A Pati me falou que deletava todos os e-mails para que nem a mãe, nem o pai soubessem.
— Isso não é problema.
— Como não?
— Posso recuperá-los. Acredite!
— Acabei de falar que ela deletou tudo.
— Teria que ter deletado o sistema todo... Ou por fogo no bicho...
— Fogo aonde?
— Mel… meu doce Mel… Se for um programa interno tipo Outlook e tal, ela poderia ficar desinstalando e instalando o programa de e-mails toda vez que quisesse usá-lo — Eduardo
fez uma careta. —, mas não acredito que a Pati saiba fazer isso. De qualquer forma isso também deixa rastros que posso ler...
— E se o cara que é inteligente como você, tiver ensinado ela a deletar os rastros?
— Então o cara pode ensinar a ela escrever por dentro da Internet, sob falsos IPs, também mascarar o provedor, fazer miséria — Eduardo olhou-a. — Temos que forçá-la a escrever
pra ele.
— Como?
— O computador dela tá na cobertura. O Delegado vai ter que dar um jeito de descê-lo e colocá-lo no quarto dela. A tentação vai ser maior e ela vai escrever pro tal Ricardo.
— Que adianta ela escrever se não vamos ler?
— Aí que se engana. Vou ler sim. Eu posso fazer isso.
— Isso é tema de filme, Dudu. ‘Invasão de privacidade’.
— Chame como quiser, vou ler cada correspondência dela. Cada marquinha que a trilha deixar.
Melissa não pensou duas vezes. Abandonou o quarto no momento que Berenice trazia as bandejas. A empregada ficou sem entender por que ela tinha saído tão rápido. Eduardo também
não comeu, tinha muito que fazer e muita gente para quem ligar. Telefonou também para a delegacia, mesmo tendo receios de sua linha ter escutas.
Achou-se o próprio James Bond.
Fabrício recebeu o telefonema. Providenciou a descida do computador. Em uma hora o computador estava conectado no quarto de Patrícia, antigo quarto de Mariana. A desculpa
foi dada por Melissa, que disse ao pai que Patrícia deveria se ocupar com alguma coisa, e sugeriu o computador.
A demora realmente não foi grande, como previra Eduardo. Melissa estava de antena ligada. Ouviu as teclas do computador sendo digitadas. Correu para o apartamento de Eduardo.
Não perderia por nada, aquele momento histórico: o seu grande amor, fazendo algo realmente importante.
Eduardo digitava rapidamente. Tentava conexão com o seu provedor de acesso, do provedor para o backbone próximo, e para outro, e para outro, e um mundo todo aberto a ele.
Eduardo acessava a Deep Web, uma internet que poucos conseguiam acessar.
— O que tá fazendo?
— Visitando as Marianas.
— Quem?
— Não ‘quem’! Isso é uma alusão às fossas marianas, no Oceano Pacífico, para chamar as camadas profundas de uma Internet proibida, onde crackers, criminosos, piratas digitais
e vendedores de todo tipo de coisa e gente, bolaram para esconder seus domínios virtuais de olhares curiosos.
— E você tá aí por quê?
— Porque se até o mundo dos bons tem um ponto cego, imagina o que o inferno não seria capaz de ter.
— Traduz!
— Tô indo até o provedor da Pati através de camadas, para não ser visto pelos ditos, roteadores normais.
— Ahhh... — e Melissa desistiu.
Eduardo riu do ‘Ahhh’ dela.
— Sabe o que é um guru, Mel? Não, também não sabe né? São os mestres dos hackers, mentes privilegiadas; hackers do bem que trabalham na maioria como segurança em bancos e
financeiras. E não falo dos caras de uniforme e arma na entrada, falo de gente que fica horas no computador atrás de erros que provoquem invasões. Só quem sabe como invadir
sabe prevenir invasões, cepá. E eu conheço um hacker legal chamado Pedro. Ele tem amigos que passam um scanner, uma espécie de malha e leem tudo... Até e-mail. O Pedro trabalha
no provedor da Pati. Vai me ajudar a entrar lá depois que o Fabrício deu carta branca, e as policias internacionais que vasculham as Marianas, liberaram.
— Ahhh… — voltou a soar dela.
Ambos esperavam calmamente quando um sinal foi ouvido.
— Que legal! O Pedro já me conectou lá. Agora liga pra tua casa, Mel. Pede pra Mari ver se o roteador do quarto dela tá piscando — Melissa pegou o celular e confirmou com
a irmã. Acenou positivo com a cabeça. — Ulalá! Ela se conectou e tá escrevendo pra ele… — o computador de Eduardo apitou e um sinal sonoro avisou que havia novas correspondências
na caixa de entrada. O espelhamento do e-mail de Patrícia chegava ao computador de Eduardo na mesma hora que ele entrava no banco de dados do provedor do namorado, Ricardo.
“Te amo! Te amo! Te amo! Sua Pati”, estava escrito na tela que Melissa e Eduardo leram.
Eduardo desligou o computador.
Ficou extasiado recostando-se nos travesseiros.
— Sabe Mel, quando a gente manda um e-mail precisa de um endereço, assim como fazemos com uma carta comum. Então temos um nome de usuário, uma senha e um endereço eletrônico
— e deu uma parada na explicação. — Calcula quem seja esse tal Ricardo?
— Não!
— Aqui tá escrito. Seu nome é Cacá! Deve ter dado seu nickname como nome de usuário. Agora, chuta pra onde foi postada a ‘carta de amor’ da Pati, Mel!
— Não tenho ideia! — respondeu outra vez.
— Pra USP!
Melissa quase caiu da cadeira com o susto.
Capítulo 20
José Liberato estava cansado, a idade chegava rápido. Tinha cãibras, dores na coluna, nos braços. Sentiu que até os dentes postiços doíam, tão tenso ele estava.
Anoiteceu muito rápido, e a delegacia estava quase vazia. Poucos ainda trabalhavam lá.
O delegado José Liberato telefonou para casa, e avisou sua esposa que deixasse o prato no forno e que fosse dormir. Levantou-se, arrumou seus documentos na velha pasta de
couro e saiu.
Olhou para o céu.
— Que Lua feia — pensou em voz alta, caminhando pelo estacionamento quase deserto.
Colocou a mão nos bolsos e não encontrou a chave do carro. Havia deixado na delegacia.
“Velho burro!” xingou-se voltando para a delegacia.
Ia continuar se não tivesse ouvido um barulho.
Algo estalou atrás dele.
— Quem está aí? — perguntou ao vento. Ninguém respondeu. José Liberato balançou a cabeça. Achou ter sido uma impressão. Ouviu um novo estalar. Algo caiu ao lado dele. José
Liberato viu o brilho que fez. Abaixou-se conforme o cansaço permitia e pegou o objeto do chão arregalando os olhos. — Um dardo? — perguntou-se no que algo penetrou seu pescoço.
— Ahhh... Um dardo — desmaiou mais rápido que Eduardo.
Foi arrastado pelo chão do estacionamento e jogado no porta-malas de um carro muito caro.
Capítulo 21
— Não sei Fabrício.
— Mas Rocha... A mulher dele falou que ele ligou dizendo que ia demorar, mas o policial de plantão o viu sair. Só que ele não chegou em casa. São duas da madrugada.
— Já falei... Não sei.
— Pode me fazer um favor?
— De que tipo?
— Consegue uma foto do tal Juca Fumaça e outra do Vermelhão? — Fabrício perguntou para Rocha na delegacia. — Me manda via Whatsapp, que eu sei que você usa. Vou estar aqui
no condomínio. E Rocha... Seja rápido!
— Está bem — concordou o policial coçando a cabeça, tentando saber se o que andava postando na Internet também chegou aos olhos do Delegado.
Fabrício se levantou. Subiu até o sétimo andar do condomínio e foi visitar Mariana. Seu Paulo olhou-o arisco. Fabrício carregava seu computador pessoal.
— Boa noite. Poderia conversar com suas filhas?
— Só vai encontrar minha tochter, minha filha Mariana; minha tochter Melissa tá na casa do namorado. Veja se isso é possível.
— Paulo! — repreendeu Sandra se aproximando deles. — Melissa já é uma mocinha. Estava na hora de namorar.
Fabrício sorriu apenas.
— Dá para chamar as três?
— Por quê? — estranhou Sandra.
— Acho que temos que conversar Senhora... Em família.
O casal encarou Fabrício. Chamaram Mariana, que descansava no quarto. Chamaram Patrícia, mas ela não estava em casa.
Paulo ficou assustado.
— Ela sumiu!
— O quê? — perguntaram uníssonos, Sandra, Fabrício e Mariana que entrava na sala.
Patrícia estava no cemitério. Havia conseguido entrar sem ser vista. Chorava desesperadamente em frente à lápide de seus pais. O túmulo havia sido aberto e fechado recentemente.
Chorava tal qual a criança que ainda era.
Colocou algumas flores na lápide do pai. Sentia falta dele, mais do que da mãe, sempre ausente.
Mas alguém estava atrás dela.
— Ahhh?! — Patrícia deu um grito, que foi abafado pela mão que lhe segurou a boca. — Você me assustou… — falou Patrícia para o rapaz atrás dela. — Por que tá aqui? Tava me
seguindo? — mas ele não respondeu. Ainda a olhava sem se mexer. Patrícia voltou a olhar para a lápide. — Sabia que seus corpos foram tocados pela polícia? Eles descobriram
que meu pai morreu primeiro. Não entendo. Quem matou minha mãe? Por que, Cacá? Por que a mataram afinal? — continuou sem responder. — Por que me olha desse jeito estranho?
Não!!! — gritou para a mão que se levantara contra ela.
Patrícia foi atingida com o vaso de flores que havia trazido.
Capítulo 22
O policial que vigiava o apartamento de Eduardo saiu correndo para o apartamento de Fabrício. Precisava avisá-lo de algo. Não o encontrou, mas foi achá-lo no apartamento dos
Jung, ainda chocados com a notícia que era um policial disfarçado, e ainda mais chocados quando Mariana identificou Juca Fumaça, como o motorista do carro verde que as atingira
no acidente.
Contudo Fabrício ficou cabreiro com a foto de Vermelhão. Tinha fé de que Mariana o reconheceria, mas ela nunca o havia visto, nem mesmo em frente à escola.
Chamaram Fernando, no segundo andar. Fernando foi pior ainda. Não reconheceu nenhum deles. Havia sido atingido por trás quando entrou no quarto de Cibele, e não viu o cara
que empurrou Eduardo pela janela, pois estava de máscara.
Estava tudo na mesma, a não ser a prisão decretada para o tal detetive de Brasília. A Polícia Federal não demorou a localizá-lo. Encontraram-no numa espelunca, assistindo
a um show de strip-tease, nas bocas de Brasília. Foi levado para a delegacia e preso após Osmar, por trás de um espelho falso, ter confirmado ser ele o detetive que prestava
serviços ao Senador.
Ele não demorou a falar o que Fabrício e Rocha já sabiam: que o Senador não queria matar sua mulher. Fabrício leria isso mais tarde, num e-mail enviado a ele. Disse que o
próprio Senador queria chantagear a mulher com as fotos dela e do amante. Queria ameaçá-la de mostrar as fotos a Patrícia, para assim forçá-la a largar o vício. Mas nunca
teve coragem de magoar a filha com a imagem de uma mãe promíscua.
O policial chegou quase sem voz.
— O menino fugiu!
— O quê? — Fabrício levantou-se da cadeira da sala dos Jung.
— O menino e a menina me pediram para pegar uma caixa de leite no alto da dispensa. Quando me virei... Eles não estavam mais lá.
— Mel?! — gritou dona Sandra ao desmaiar.
— Mãe? — descontrolou-se Mariana.
— E a empregada?
— Estava no banho.
— E o pai do garoto?
— No hospital.
— Droga! Mas que droga. Você não podia segurar os dois meninos?
— Eu interfonei para o seu Almeida, mas ele me disse que por lá não saíram.
— Dudu sai sempre pelo portão sul. O Zé abre pra ele o tempo todo — falou Mariana sob protestos de Fernando.
Fabrício correu até o apartamento de Eduardo. Pensou em ligar seu computador, mas não precisava ser tão bom quanto Eduardo nos computadores, para hackear algo.
Eduardo havia deixado na tela de seu computador três letras bem grandes: ‘USP’.
— Meu Deus… — foi só o que falou o policial Fabrício, indo atrás deles.
Capítulo 23
A Universidade de São Paulo estava deserta àquela hora da madrugada. Fabrício entrou silenciosamente. Um verdadeiro massacre o esperava. Ele encontrou cadeiras quebradas no
meio dos corredores, vidros espalhados por todos os lados, um rastro de sangue no chão.
— Meu! — exclamou ao passar a mão e verificar ser isso mesmo. — Mas quem? — se perguntou.
O jovem policial havia pedido reforço no caminho, mas chegou lá primeiro e chegou à Cidade Universitária mais rápido que a turma da delegacia. Caminhava naquele momento por
salas vazias e destruídas quando tropeçou.
“Droga!” esbravejou um silêncio.
Parecia ter havido muita luta por lá.
Fabrício ouviu vozes ao longe, tentou se localizar naquele espaço quase escuro. Nunca havia estado naquele lugar.
Chegou mais próximo do som e encontrou Eduardo caído ao chão.
— Eduardo? — chamou o rapaz quando foi atingido por trás.
Fabrício caiu ao chão. Tentou se erguer, mas foi atingido outra vez, por um chute perfeito.
Foi ao chão novamente, dessa vez fingindo ter desmaiado de olhos fechados.
Pôde perceber a respiração se afastar.
‘Estará sozinho?’, pensou Fabrício.
Esticou o braço lentamente e puxou Eduardo pela gola da blusa. Ele estava desmaiado, mas respirava.
— Eduardo? — chamou outra vez, agora perto dele.
Eduardo abriu os olhos. Estava atordoado, quase não enxergava naquela escuridão. Sua boca sangrava; havia apanhado muito.
— Ele pegou Mel... Pati... — e desmaiou de vez.
— Desgraçado!!! — gritou Fabrício atingindo o estranho que não esperava aquela reação.
— Ahhh... — de máscara, o estranho caiu no chão.
O estranho mascarado tentou se levantar, mas Fabrício girou outra vez; 360 graus de perfeição. Outra vez o estranho mascarado foi ao chão. Fabrício sobre ele. Seus corpos
rolaram de um lado para o outro.
Tentavam se socar.
— Sei quem você é — desafiou-o. Mas o estranho mascarado gargalhou. Fabrício tentou tirar-lhe a máscara e o estranho desviou atingindo-o. Seu estômago entrou centímetros para
dentro.
O policial estava ao chão, contorcido.
O estranho mascarado se levantou e acendeu as luzes. Fabrício abriu os olhos e viu-se num enorme tablado, que parecia ser um palco.
— Voilà! — foi o que Fabrício ouviu.
— Gosta de representar, Ricardo? — foi o que Fabrício falou.
O estranho mascarado riu demoradamente.
— Meu nome não é Ricardo.
— Não. É ‘Cacá’, o ator.
— Exato! Escolhi a profissão errada; gosto de ser teatral — ria Carlos Alberto ‘Cacá’ com ironia ao arrancar a máscara. — Sabe... Desde pequeno que o mundo realiza minhas
vontades. Nada mais justo que um cenário pra representar, não acha? — respondeu com uma pergunta.
— Você é ridículo, Cacá... — Fabrício falava debochado. — Ninguém se vangloria de misérias e é só isso que construiu.
— Não foi não! E o pai de Patrícia sabia disso. Vinha me combatendo durante esses anos. Ia a plenário me desmoralizar. Eu... Logo eu... O melhor, o filho do desembargador.
— E quem é você? Filho de um corrupto?
— Cale-se! Meu pai não é corrupto — e voltou a bater nele.
— Não... Ele não... — tossiu pela dor, pelo sangue na boca. — Que pena que não puxou a ele, não ‘Cacá’? — e Fabrício levou outro chute quando sacou a arma do coldre, e ficou
apontando sem saber ao certo para onde, com a vista embaçada e todas suas forças esvaecendo.
— Parado aí, meu!!! — gritou com a arma também em punho. — Devagar. Vai soltando devagar — ele viu o jovem policial largar a arma que carregava ao ver que ele apontava a arma
agora para a cabeça de Melissa.
Mas Fabrício sorriu calmamente, com o sangue frio a correr-lhe nas veias.
— Você não tem estômago para isso.
— O que? Acha que não? — Carlos Alberto caminhou para o lado dele arrastando o corpo desmaiado de Melissa com ele.
Fabrício não gostou daquilo e Carlos Alberto percebeu o interesse dele por Melissa.
— Ah! Veja só… O metido a tira americano tá com dózinha da garotinha?
— Você não tem estômago para isso — repetiu Fabrício com cinismo na voz.
— Acha que não sou capaz? Pois sua amiguinha vai morrer por sua causa, policial babaca.
Melissa se espremeu por dentro da fita adesiva que colava seus lábios. Também estava amarrada a um pedaço de tecido.
Fabrício olhou para os lados, para cima, para o chão:
— Já ouviu falar em Notre Dame? — perguntou.
Carlos Alberto se assustou com a pergunta.
— Do que tá falando, meu? — perguntou, ainda perto de Melissa.
— Da igreja. Igreja de Notre Dame.
— Já fui lá, e daí? — começou a se aproximar, agora de Fabrício, que sem sua arma se esticou na parede fria às suas costas.
— Há muito tempo dizia-se que havia demônios na igreja. Homens defeituosos, bruxos, feiticeiros... Paris era uma cidade infectada pela peste.
— É mesmo? — ironizava Carlos Alberto, que encostou o cano frio na testa do policial.
Deliciava-se com o suor que corria do rosto dele.
— Havia um homem na cidade que se chamava Father X. Era um exorcista.
— Que policial babaca, meu. Ah! Vai... Tá bom... Continua... Tô gostando da historinha pra boi dormir — ria.
Melissa olhou para Eduardo. Ele sangrava, jogado do outro lado da sala. Tinha as mãos amarradas, tal qual ela. Já Patrícia acordou, ficou encarando Carlos Alberto ‘Cacá’ ou
Ricardo virtual com lágrimas a escorrer dos olhos, percebendo o engano que fizera, percebendo o quanto havia errado.
Melissa voltou a prestar atenção no policial Fabrício que tentava, a todo custo, chamar a atenção de Carlos Alberto.
— Vamos idiota... Continua! Tô começando a gostar.
— Um dia, Father X foi chamado para exorcizar a Igreja de Notre Dame — falava Fabrício compassado, sem se preocupar com o tom irônico do agressor. — O rei não queria mais
frequentá-la, e a plebe não entrava mais lá. Father X passou uma semana sozinho dentro da igreja, e quando saiu, encarou o povo dizendo: ‘Libertei seus bruxos, seus piores
pesadelos!’.
— Eu sou seu pior pesadelo, policial babaca!!!
Fabrício, porém não se descontrolou, continuando a falar.
— ‘Não!!!’; gritava o povo ensandecido. ‘Não fizemos nada a Deus!!!’; Father X riu e disse: ‘If you believe in the light it’s because of obscurity; If you believe in happiness
it’s because of unhappiness; If you believe in God, then you have believe in the devil’* — e Cacá caiu no chão pelo tiro certeiro da arma do Delegado José Liberato. Fabrício
sorriu com gosto. — E que você seja bem-vindo no inferno! — completou para o rapaz ferido.
Todos se olharam.
* Se você acredita na luz é por causa da escuridão. Se você acredita na felicidade é por causa da infelicidade. Se você acredita em Deus então vai ter que acreditar no diabo.
Final
— Sabia quem era o fio da meada esse tempo todo? — questionou o Delegado José Liberato para Fabrício na saída da USP, logo após a chegada do reforço pedido por ele.
José Liberato tentava extinguir um fio de sangue que escorria de seu pescoço. O dardo com tranquilizantes havia rasgado a sua pele envelhecida.
— Não! — respondeu Fabrício, olhando Eduardo ao seu lado. — Foi o expert em computadores, aqui — e Fabrício o abraçou.
Eduardo sentiu dores nas costas.
— Ai — contorceu-se todo.
— Então foi você! — falou José Liberato todo sorrisos depois de dormir muito tempo no porta-malas do assassino.
— Não foi tão difícil assim, depois que cismei que o cara tinha que ser alguém muito perto da gente. Quando a Mel falou sobre o namorado virtual da Pati e o quanto sabia sobre
ela, fiquei lembrando umas coisas que ouvi a Berê falar, algo tipo, a mãe da Pati namorava todos os namorados dela, que tinha fissura por moleque e tal. Acredita que ela deu
em cima do Fê só porque namorou a Pati? — chacoalhou a cabeça. — Então pensei... É isso, o cara que transava com ela era o namorado da Pati. Só não imaginava que fosse ex
e atual ao mesmo tempo.
— Como assim Eduardo?
— Cacá é apelido de Carlos e não de Ricardo, e a Pati havia namorado o tal de Carlos Alberto, filho do desembargador. O cara errou ao usá-lo como nickname. Além do mais, era
a única pessoa que poderia mandar o Trojan Horse de volta para mim, na mesma hora que eu acessei a página do Judiciário...
— E você acessou o judiciário? — a voz de José Liberato foi mais para provocar medo que outra coisa.
— É que eu... Eu... — olhou um e outro. — Sim... E era pouco provável, mesmo que um cara estranho estivesse na mesma rede, e não tivesse aparecido pro Carlos Alberto. O vírus
tinha que ter vindo do mesmo computador. Foi uma coincidência e um azar muito grande eu pedir ajuda logo pro assassino, né? — balançou a cabeça, descorçoado.
— Coincidência ou não isso o deixou descontrolado — falou Fabrício. — Ele achou que você era um empecilho e partiu para o ataque.
— É! Ele cismou comigo desde a hora que o senti naquele quarto — Eduardo respirou bem fundo. — Mas, afinal, por que ele matou o Senador?
— Carlos Alberto era um menino mimado, acostumado a ter suas vontades. Só que se envolveu com amigos errados, e o pai não percebeu — disse o Delegado.
— Acontece muito! — exclamou Fabrício.
— O pai, um desembargador, sempre dentro da mais perfeita ordem, não percebeu que um dos carneiros de seu rebanho escapava ao seu controle e ordem. Carlos Alberto era viciado,
já havia sido preso por ter agredido uma namorada e quase matado um menino num simples jogo de futebol. Era um rapaz com problemas sérios de adaptação social e o pai sempre
abafava tudo — e José Liberato tentou secar o sangue que voltava a escorrer. — As boas notas na faculdade pareciam ser ‘borracha’ para o pai.
— A dificuldade de adaptação social para um indivíduo nos dias atuais não é muito diferente da dificuldade de adaptação séculos atrás. Port isso o bullying se infestou tanto
na nossa sociedade. Pais e mestres vêm muitas vezes esses jovens como excêntricos, cheios de mania, mas que transbordam problemas de ética.
— Nosso professor disse que o critério da ética não pode ter fundação na adaptação social.
— Exato menino Eduardo. Muito exato!
— Mas nem sempre a adaptação num grupo social é uma falha do cara.
— Exato menina Melissa — sorriu o delegado. — Será que deveríamos realmente nos adaptar a uma sociedade doente?
— Mas afinal, por que ele matou o Senador?
— Sabe, menino Eduardo, com certeza, certeza mesmo nada pode afirmar, a menos que o tal Carlos Alberto conte. Mas podemos fazer uma pequena retrospectiva.
— Consegue visualizar o que aconteceu realmente naquela noite, Delegado?
— A minha experiência permite, como você disse, ‘visualizar’, mas será só isso. Veja bem, o Senador contratou um detetive particular. Esse detetive tirou fotos comprometedoras
da esposa e o menino Carlos Alberto para ele chantagear a esposa.
— Aí veio a festa...
— Aí veio a festa que a menina Patrícia avisou o pai que iria. Eu imagino que o Senador queria dar um basta naquilo e chamou o menino Carlos ‘Cacá’ Alberto para uma conversinha,
quando chegasse a São Paulo, aproveitando a saída da filha. Deve ter inventado alguma história para arrastá-lo até a cobertura. Mas o menino, porém, estava arisco. Tinha medo
de Cibele se denunciar ao vê-lo lá. Isso já vinha deixando-o descontrolado. A empregada deve ter aberto a porta para ele e se retirado. Quando o Senador chegou, levou-o para
a biblioteca e entregou-lhe um documento qualquer que provava sua participação no crime, que vinha investigando nos portos, ou talvez algumas fotos, não sei. Tentou mostrar-se
decidido a entregá-lo à polícia. Deve ter havido discussão, e alta. Muita gente ouviu gritos nos andares abaixo da cobertura. Contudo o Senador quando viu que de nada adiantaria,
se dirigiu ao quarto brigando, não sei, e que numa distração de Carlos Alberto, aproveitou e sacou a arma que sempre guardava na gaveta da mesinha de cabeceira. Mas a ideia
do Senador era outra: queria culpar o Carlos Alberto de sua morte e assim afastá-lo de vez. Meus policiais são bons, disseram-me que a arma foi disparada pelo punho do próprio
Senador. O menino deve ter ficado em pânico quando viu ele se matar, não sei. Correu e escreveu a tal carta que estava um tanto ilegível, tentando parecer um suicídio. Iria
atestar aquilo até o fim. Mas o tiro foi ouvido pela empregada, que desmanchava as malas da patroa que sempre as abandonava à porta da entrada, para que as roupas fossem lavadas
e passadas. A menina Patrícia disse que ela sempre fazia isso após cada viagem. A empregada viu a cena do Senador morto e correu. Carlos Alberto deve ter ido atrás dela e
no caminho, arrebentou a caixa de vidro onde o Senador colecionava as armas, tirando a adaga. A empregada pegou o telefone, ligou para o único número que lembrava, o do celular
da menina Patrícia, e saiu em disparada. Ele a alcançou, e ela foi a segunda a ser morta, mas a primeira pela adaga. Percebe aí o erro? — José Liberato viu Fabrício e Eduardo
se olharem.
— Eu disse a Mel que se um ladrão tivesse entrado pra roubar ou matar, levaria sua própria arma.
— Sim. Carlos Alberto não estava preparado para aquilo, foi coisa de momento — pigarreou, coçou o cavanhaque. — Bom... O motorista ouviu os gritos, os mesmos que a menina
Patrícia e a menina Melissa ouviram ao telefone, e correu atrás sendo surpreendido pela fúria de Carlos Alberto que, talvez meio dopado, tinha de estar, atacou o motorista
na cabeça e arrastou-a por toda a sala. Era o sangue do motorista que pintava as paredes de vermelho. Depois subiu e matou Cibele, que devia estar gostando de tudo aquilo,
no resto de cólera que sobrava — o Delegado viu Eduardo se espremer.
— Então eles se conheciam?
— Sim! O Senador e o pai de Carlos Alberto eram amigos e trabalhavam num projeto de lei que proibia a entrada de pequenos navios estrangeiros nos portos brasileiros. Esses
navios traziam sempre contêineres que não eram abertos por política interna do porto. O Senador desconfiava que os contêineres carregassem drogas pesadas e pediu ajuda a seu
amigo. O Desembargador, pai de Carlos Alberto, investigou e chegou em Juca Fumaça, líder do bando e dono do barco Lili, que costumava navegar sem bandeira de origem. O garoto
sempre estava por perto e tinha acesso a essas informações. Foi atrás de Juca Fumaça pensando em ter drogas à hora que quisesse. Juca Fumaça confirmou na delegacia que havia
sido procurado pelo filho de um grandão, mas não disse quem, e em troca das informações de como andavam as investigações, receberia drogas. Nem o pai nem o Senador sabiam
do envolvimento de Carlos Alberto.
— Que cara esperto, não? Tinha a faca e o queijo na mão, e soube usar — falou Fabrício. — Então, através da Internet, mostrou-se para Patrícia como outro apaixonado, mudando
o nome para Ricardo, a fim de sacanear o Senador e sua família.
— Cacá! Cabelos vermelhos! — lembrou-se Eduardo. — O que vai acontecer com a Pati?
— Ela vai estudar na Suíça. Estava tudo programado e já pago pela mãe, que queria se livrar dela e ficar com o menino Carlos Alberto só para ela. Ele era jovem, tinha fogo,
e a drogava o tempo todo.
— Cruzes! — exclamou Eduardo. — E a tia? Seu Paulo disse que não a convenceu!
— A tia estava foragida. Tinha dado muitos cheques sem fundo na praça. Quando soube que a polícia estava atrás dela, sumiu. O pai da menina Melissa a encontrou trabalhando
numa lanchonete, e prometeu pagar todas as suas contas se ela assumisse a menina. Acho que agora que ela sabe que a Patrícia vai morar na Suíça, talvez aceite.
Os três deram de ombros e os dois policiais deixaram Eduardo entregue em seus devaneios. Eduardo imaginava o futuro sombrio de Patrícia de Moura. Olhou para frente e viu Melissa
abraçada ao pai. Teve vontade de abraçá-la também.
Sentia dores, sono, paixão. Melissa o viu observando-a. Ele desviou o olhar quando percebeu ter sido pego.
Eduardo estava feliz ao todo, por ter seus amigos seguros, fora de perigo. Mas mais ainda, por saber que era apaixonado por sua melhor amiga.
Melissa largou o pai e foi ao seu encontro.
— Ainda quer me namorar?
— Não te defendi como o Fabrício fez. Não sei se mereço você...
Melissa riu:
— Sabe que eu acho?
— Não.
— Acho que você não vai crescer nunca, né Dudu? — e o beijou.
Um beijo fadado a não terminar.

“A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz”.
George Eliot.

— Qua lé Mel? Ele não teria descoberto se a inteligência do Fê não fosse ‘tão’ aflorada — gesticulava Eduardo. — E não tivesse entregado que era eu quem escrevia aqueles bilhetes de amor... — e caiu na risada.
— Sei... — Melissa olhou para Mariana, as duas balançaram a cabeça o achando um verdadeiro palhaço.
Eduardo tinha 16 anos e uma rala barbicha despontando. Cínico, era o tipo de garoto que agradava a uma menina. Tinha uma bela moto, um belo sorriso e uma maneira nada saudável de gozar da cara das pessoas.
Filho único, descendente de portugueses, gostava de ter muitos amigos. Seus cabelos pretos, cacheados, balançavam de um lado para outro.
Melissa olhou para Mariana outra vez e piscou. As duas irmãs observavam o belo bumbum de Eduardo marcado pela calça jeans justa.
Havia uma velada disputa de olhares entre as irmãs.
— Ulalá! E sabe o que mais? — continuava Eduardo a gargalhar, absorto em suas ideias. — O babaca achou que tava abafando com aquela ‘gatinha secreta’.
Melissa roeu a unha, esqueceu que as havia pintado de manhã.
— Droga! — praguejou baixinho, gostava de roer unhas com a mesma frequência que as pintava de marrom.
Marrons eram, também, os longos e lisos cabelos herdados da família japonesa da mãe, que iam até a cintura. Melissa achava que cabelos longos, ajudavam a disfarçar o que considerava um defeito: seus quadris.
Tinha 15 anos, e estudava no primeiro ano do Ensino Médio.
Melissa era dark, oposto da delicada irmã Mariana, que era doce até quando pensava.
Com cabelos loiros, olhos menos amendoados que a irmã e azuis, herdados da família alemã de seu pai, Mariana vestia cores suaves, falava manso e educadamente. Tinha 13 anos e estudava no nono ano do Ensino Fundamental II junto com Eduardo, repetente nato.
Foi ela quem cutucou Melissa; as duas observaram quem se aproximava.
— Oi! Como vão as gatas do pedaço? — Fernando da Silva aproximou-se do pequeno grupo que ainda teimava em conversar do lado de fora da classe.
Mariana foi a primeira a responder:
— Tamos nos preparando pra festinha do Artur, Fê — falou para provocar.
— Ah! Vocês também descolaram um bico naquela social? — sorriu o desligadão Fernando.
Eduardo agora ficou bravo. Fuzilou Fernando com os olhos e entrou para a classe arrastando Mariana com ele.
— Não liga não, Fê — Melissa ria. — O Dudu não foi convidado pra social do Artur. Ele tá uma fera porque não consta na lista.
— Que pena! E por que ele não tá na lista?
— É! Por que né Fê?
Mas Fernando ou Fê nem se tocou, com 14 anos, primeiro ano do Ensino Médio, era ‘dez’ em todas as matérias, mas um zero a esquerda no quesito ‘pegar as coisas no ar’.
Tinha a pele jambo, bonita e brilhante, como os dentes que apresentava; e Fernando era bonito.
Vivia na academia, malhando.
Melissa o olhou, riu de novo ao se lembrar da cara de Artur quando Fernando comentou que Eduardo estava sacaneando um babaca, sem se tocar que era ele, o Artur, o tal babaca.
Artur ficou furioso. Prometeu vingança se não fosse o fato de Eduardo ser campeão de capoeira, e ter o dobro do seu tamanho.
— E a Pati? Vai no rolo? — continuava Fernando, sem nada entender.
Melissa respirou profundamente antes de responder:
— Não sei Fê. A Pati anda muito esquisita desde que arranjou aquele namorado virtual.
— Vir... O quê? — disse, arregalando os olhos.
— Virtual Fê. Chiii! Eu sei que tudo isso vai ‘além das nossas capacidades computacionais’ como diz o Dudu, mas quer dizer que ela conheceu um cara numa sala de Chat, sabe?
E eu que pensei que essas coisas não existissem mais — riu. — Com tanto App de relacionamento no cel… — deu de ombros indo para a classe. — Só sei que tão ‘namorando’ há uns dois meses — Melissa viu Fernando piscar centenas de vezes tentando compreender.
— Ué! Ela não me disse nada quando a gente ficou na festa junina.
— É... Eu sei... — continuou Melissa. — Mas ela anda estranha, desde que o pai dela começou a viajar muito a Brasília. E foi após as eleições, que a Pati mudou.
— Todas as meninas mudam Mel.
Melissa girou os olhos 360 graus.
— Fê! Não tô falando ‘dessa’ mudança. Falo de humor, mudança de humor. Ela tá mais fria comigo. Não me liga, não faz compras no shopping... Só se preocupa com aquele computador.
— O Dudu também. Quero jogar bola e toda vez que interfono ele tá no computador.
— É outra coisa estranha. Dudu é tão lento na matemática e um nerd nos computadores. Acredita que ele deu um jeito no computador super ‘NASA’ do papai?
Fernando estava absorto demais para entender que dar um jeito no computador hoje em dia todo mundo dava, mesmo que no similar da Agência Espacial Americana, que também não era tudo isso. Porém, era difícil encontrar o Fernando dentro dele próprio, quando se propunha a pensar.
Fernando da Silva era muito desligado.
Fernando estudava na mesma classe de Melissa e Patrícia de Moura, de 15 anos, e que junto a Eduardo e Mariana, formavam a animada galera dos cinco amigos que estudava na mesma escola, frequentava o mesmo clube, e morava no mesmo Condomínio Jardim das Flores.
Melissa ouviu o último sinal de entrada. Todos se dirigiram para suas salas de aula.
A coisa parecia se acalmar nos corredores.
— Vou falar com ela — prometeu Melissa. — Agora vamos pra aula.

 


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Capítulo 1
Junho.
Brasília, Distrito Federal.
Uma pancada forte se fez ouvir na porta de nogueira maciça.
— Quem é? — perguntou uma voz cansada e rouca.
— Com licença, Excelência. Aquele homem estranho está aí, de novo.
— Pode mandar entrar, Osmar.
— Sim, Excelência — e o secretário saiu fechando a porta. Retornou pouco tempo depois, sem dessa vez anunciar trazendo um homem de aspecto desengonçado e um tanto marginal,
de barba malfeita causando uma péssima impressão.
O secretário Osmar fez uma careta enojada quando o homem passou por ele. Já o Senador da República Ângelo Antônio de Moura sentiu um aperto no peito. Passou a mão pela camisa,
discretamente. Tinha se enervado no último plenário. Estava defendo com unhas e dentes, a nova lei que proibia navios sem bandeiras navegarem pela costa brasileira.
Havia gritado por duas horas pedindo que contêineres sem carga definida não mais fossem trazidos ao Brasil.
Lutava, há muito tempo, por leis que permitissem maior autonomia aos portos brasileiros.
Seus amigos, juízes e desembargadores o apoiavam totalmente.
O Senador era um homem de bem.
— Sente-se! — ordenou ao estranho.
— Excelência! — disse o homem com uma mesura e certa irreverência.
Parecia rir do Senador toda vez que lhe dirigia a palavra.
— Vamos direto ao assunto — o Senador esperou o secretário sair a contragosto, o que não se importava tanto já que estava acostumado a ouvir por detrás das portas. — Já disse
que não quero que venha até Brasília — irritou-se o Senador. — Conversaremos quando estivermos em São Paulo.
— Mas tua mulher tá aqui. Pensei que era pra segui-la a todos os lugares...
— Eu sei... Eu sei… — falou impaciente. — Tem os resultados?
— Olha! Acho que temos que rever nosso preço.
— O quê?! — gritou o Senador ao se levantar num rompante. A idade avançada não permitia mais atitudes como aquela. Voltou a pôr a mão no peito. Sentiu algo se estrangulando
lá dentro. — Qual é o seu novo preço? — falou por fim.
— Quero 13 mil.
— Treze mil? Por algumas fotos?
— Quer provar pra tua filha que tua jovem e bela esposa te trai? — desafiou-o.
— Cale a boca, infeliz!
— Vou embora — e se levantou.
— Não! Espere! — suplicou o Senador.
— Tá me ofendendo desse jeito, Excelência. Até parece que não dá o devido valor ao meu trabalho...
— Está bem! — e abriu o cofre que se escondia atrás de um Volpi.
— Sabe o quanto me custa fazer esse tipo de coisa? — falava o homem sentado na cadeira forrada de vaqueta marrom.
— É! Imagino! Posso imaginar... — falava o Senador descontrolado. Pegou um pouco de dinheiro e suas mãos tremeram ao assinar o cheque.
O detetive sorriu por entre a boca cerrada. Deliciava-se com aquele desespero.
“Idiota!”, pensou sem dizer.
— Aqui está!
— Cheque nominal? Era só que faltava. Não tá pensando em cancelar quando eu chegar ao banco?
— Não seja ridículo. Não vou me colocar em riscos com você. Não tenho todo esse dinheiro. E o cheque é de nove mil. O resto leva em dinheiro. Sou um homem de palavra...
— Um político? De palavra? — falava debochado.
— Sou… — se perdeu no ar, vinha se descontrolando cada vez mais.
Sempre fora um homem honesto. Por toda a sua carreira.
— Então aqui tá teu presentinho — disse o detetive ao entregar um pequeno envelope.
— Vá embora e esqueça que me conheceu.
— Pode acreditar — riu ao sair e bater a porta.
O Senador chorou feito uma criança. Olhou a foto da filha no porta-retrato, ao lado da mesa.
— Eu não posso Patrícia. Minha pequena Pati. Não posso decepcionar você — chorava o velho Senador da República. — Foi um erro. Desde o começo... Um erro.
A menina no porta-retrato sorria alegremente para a máquina.
O Senador pegou sua maleta, arrumou seus pertences dentro dela, se levantou da cadeira, foi até a lareira e queimou o envelope antes mesmo de abri-lo.
Capítulo 2
Junho.
São Paulo, capital.
O apartamento do casal Sandra Pii Jung e Paulo Jung estava abarrotado de plantas. O casal de engenheiros havia transferido seu escritório para a sala de estar temporariamente.
Aquele projeto era muito importante para a carreira deles. Iam aproveitar a saída das duas filhas, Mariana e Melissa, para resolverem problemas de trabalho.
As filhas, contudo, discutiu a tarde toda por causa de um mesmo vestidinho preto.
Após tal definição, Melissa foi atrás da amiga Patrícia, mas o telefone cansou de tocar até ser atendido.
— Pati? Por que demorou pra atender? Fiquei preocupada.
— Por quê?
— Porque sei que teus pais ainda tão em Brasília. Tua empregada nunca atende o telefone! Isso é incrível! Tua mãe falou pra minha que já quis despedi-la, mas teu pai não deixou.
— Papai se preocupa comigo. Mamãe sai toda hora e fico muito sozinha. Maria me faz companhia.
— Puxa! Maria é? E nós?
— Ah, Mel! Desculpa, não quis dizer isso.
— Tá! Tá bom! E então? Com que roupa vai?
— Não vou.
— Não vai? A social do ano e você não vai? Chiii! O que tá acontecendo?
— Nada! Só não quero ir à festa do Artur. Aquele cara é um chato.
— Tudo bem. Concordo em gênero, número e grau, mas ele dá festas da hora. E agora é você que tá sendo chata.
— É que eu marquei com o Ricardo às nove horas e além do mais, meus pais voltam hoje.
— Teu pai chega as sete como sempre e nós só vamos à festa às dez. Já deu até tempo pra falar com o tal ‘Ricardo Virtual’. Não tem desculpas.
— Não fala assim dele! — falou num estranho tom.
— Chiii! Não precisa ficar brava. Eu não conheço o cara mesmo. Então? Vamos? Vai amiga... Por mim, vai?
— Tá bom. Mas não vou ser figurinha fácil.
— Pati, você nunca foi figurinha fácil. O Fê que o diga.
— Ahhh! Já falei pro Fê, desencanar. A gente ‘ficou’ na festa junina e ele agora não larga do meu pé.
— Ele tá apaixonado, Pati.
— Paixão? E a inteligência ‘dez em todas as matérias’ dele permite saber o que é isso? Ele dá um fora atrás do outro. Pisou no meu pé três vezes na festa junina. Além do mais,
não namoro babaca.
— Tudo bem! A gente não olha pro Fê nem pro Dudu. Ok?
— Você não olha pro Dudu? Bebeu?
— Puxa Pati. Tô tentando esquecer e é assim que você me apoia?
— Ah, Mel! Dudu é um crianção. E o Fê é um idiota.
— É! Todos os homens da terra são lixo. E o ‘Ricardo Virtual’?
— Eu vou desligar Mel. Não me torra hoje.
Melissa riu e mudou de assunto rapidinho.
— Sabia que a mãe do Fê vai nos levar de Mustang?
— Tá! Tá bom! — e desligou.
Patrícia olhou para o porta-retrato na mesinha do telefone e viu seu pai triste na mais recente foto tirada.
“Pobre papai”; pensou.
Capítulo 3
Enfim, já estava na hora, e juntos, no hall de entrada do condomínio, Eduardo, Fernando e Patrícia, que estava com a cara mais irritada do mundo, esperavam Melissa e Mariana.
— Vai, Pati. Tenta! Não dói nada ser feliz! — debochou Eduardo rindo.
— Ah! Não torra Dudu — alterava-se Patrícia.
Eduardo se contorcia todo de rir, sentado no sofá do hall de entrada. Olhou para o relógio, depois para o elevador, e se levantou:
— Que coisa horrível que ficaram esses toldos nas sacadas. Laranja? Não podia ter sido algo mais... Light? — falava Eduardo, sozinho, agora do lado de fora.
— Sai desse frio, Dudu! — reclamava a empregada Berenice.
— Sai você daqui, Berê. Acha que preciso de babá no hall?
— Seu pai me pediu pra descer. Sabia que ocê ia tomar frio.
— Ser filho de pai médico é mesmo um saco — falou para o elevador que chegava. — Que demora! — exclamou para Melissa e Mariana, abrindo os longos braços.
— Calma! — exclamou Melissa. — Ainda são dez horas. Quer o quê? Arrumar a casa?
— Não! Quero ver se sobrevivo à chata da minha empregada e... Cuidado!!! — gritou Dudu. Mariana e Melissa deram um pulo do chão. Olharam para baixo, olharam para Eduardo que
ria. — Vão pisar na baba de ódio que a Pati espuma — falou debochado.
— Ah! Não torra! — falou Patrícia se virando para ir para a garagem.
— Você, hein! Tem que animar a festa — repreendeu Melissa.
— Ulalá! Estou desagradando às meninas? Além do mais a Pati tá um saco.
— Ela tá com problemas. Tá preocupada que o pai não chegou. Deixa ela — respondeu Melissa, agora se irritando, indo atrás de Patrícia na garagem.
— Espera! — agarrou o braço dela. — A Berê tem que subir ou conta pro meu pai que sou quem vai dirigir.
E Berenice sumiu das vistas.
— Ué! Não ia ser a mãe do Fê?
Eduardo só piscou.
— Fica fria — gargalhou.
— Vamos! Vamos! — dizia Mariana tentando colocar a turma dentro do carro.
A casa do Artur não ficava além de dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Como o condomínio, também não ficava longe da escola. A noite estava escura e as ruas,
desertas. O inverno de São Paulo prendiam as pessoas dentro de casa.
As luzes começavam a ficar forte, já no fim da alameda e a casa iluminada de Artur se fez.
A festa rolava solta lá dentro e o som estava ensurdecedor.
— Puxa! Nem a campainha do celular se esgoelando a gente escuta — reclamou Mariana. — Mel! Tira do modo avião ok? Pati! Deixe no vibracall.
Melissa e Patrícia fizeram uma careta pela ordem dada, mas acabaram obedecendo.
— Vou beber uma cerveja. Quem quer? — perguntou Fernando se dispersando.
— Eu quero! — falou Melissa.
— Vai com calma! — disparou Mariana outra vez a controlá-la.
— Olha aqui... A menininha aqui é você — respondeu Melissa. — Não se esqueça.
Mariana só fez bico e dispersou.
— Vou ficar por aqui — falou Eduardo, baixinho, só para Melissa ouvir. — Não vou querer aquele emplumado me barrando na frente de todo mundo.
— Mas tá frio...
— Você também? — reclamou ao se separarem.
Melissa arranjou um copo e logo se pôs a bebericar. Achava o máximo beber. Sabia do erro, mas pensava que aquilo a fazia sentir-se mulher. Sua mãe controlava-a como podia.
E Mariana era sempre a encarregada do fato.
Melissa foi ao encontro de Patrícia. Estava ‘babando fel’ como dizia Eduardo.
— Algum problema? — perguntou ao se chacoalhar ao som de uma das antigas The Chemical Brother.
— Por que acha que tenho? — respondeu Patrícia com uma pergunta.
— Por nada. Dá pra ver sua irresistível sede de felicidade.
— Ah! Não me torra, Mel.
— Hei?! — disse Melissa agarrando-a pelo braço quando ela ameaçou sair. — Somos ou não somos amigas?
— Hoje não tô pra conversa.
— Brigou com o Ricardo? — Melissa viu Patrícia a fuzilar com seus olhos verdes. Seus cabelos loiros se agitaram nervosamente. Astuta, Melissa leu a linha de seu pensamento
já que Patrícia não se deu ao trabalho de abrir a boca. — Chiii! Brigou! — respondeu ela mesma.
— Tô com problemas, Mel. Não me torra.
— Eu sei. Não precisa ser grossa.
— Desculpa tá? É que não sei como resolver.
— Quem é Ricardo, Pati?
Patrícia de Moura se esticou toda.
— Não sei! — e Patrícia só escutou o abrir de boca da amiga que ficou aberta por bons segundos. — Tô falando sério. Não sei. Eu nem preciso contar nada porque ele conhece
todas as minhas encanações, sabe tudo sobre mim. Mas ele pouco ou nada fala dele. Eu nada sei sobre ele, Mel.
— Você conversa com um cara totalmente estranho através do teu computador que sabe toda a tua vida, e não se preocupa em saber quem ele é? — e se propôs a roer as grandes
unhas pretas. — Droga! — lembrou-se que estavam pintadas.
— Você não entende. Ricardo é delicado; sutil. Ele me entende, me conhece como ninguém. E eu já não consigo viver sem ele.
— Cruzes! Você conheceu o cara há dois meses e tá desse jeito? É sexo virtual?
— Não tô falando de sexo.
— Não? Achei que sua vida se resumia nessas quatro letras.
— Não debocha tá? Se não quer me entender, então vai embora.
— Te entender? Como pode dizer que não sabe mais viver sem um cara que nunca viu? Já viu? Ele te mostrou alguma foto? Dizem que o que não falta é caras fake…
— Ele não é fake, Mel. Disse que é ruivo, tem 1.70m, tem 38 anos e tá apaixonado por mim.
— 38 anos?! — gritou Melissa.
— Não grita! Que droga! Quer que todos escutem? — olhava para todos os lados.
— Desculpe! Puxa, não esperava que ele fosse tão velho. E... Ele sabe sobre você? Tipo... Que você tem 15 anos?
— Já disse que ele sabe tudo sobre mim. Até o que eu não contei.
— Nossa! Que legal... Quer dizer... Puxa... Que loucura... E o que você quer dizer com ‘o que não contou’?
— É disso que tô com medo. Ele me entende, conhece meus desejos como se me conhecesse.
— Ai, Pati. Já contou isso pra sua mãe? — estranhou a amiga.
— Minha mãe só sabe dela. Meu pai trabalha demais. Quem se importa? — deu de ombros.
— Puxa Pati. Você tá com problemas mesmo e... Chiii! Seu celular tocou?
— Não vibrou — respondeu fria.
— Não! Ele tocou. Tá tocando.
— Ninguém vai ligar pra mim sabendo que tô numa festa, querida Mel.
— Mas ele tá tocando. Daqui... — e esticou a mão que ficou no ar.
— Não! — e desligou o aparelho.
— O Ricardo tem teu número?
— Tem! Eu dei a ele.
— Então por que tá fugindo dele se deu o número pra ele ligar?
— Não tô fugindo. Tô dando um tempo... Tô assustada. — e voltou a ligá-lo. A campainha do celular disparou. — Puxa o celular tá tocando outra vez. Estranho... Alô?
— Patrícia?! — gritava uma voz do outro lado.
— Alô! Maria? É você? — tentou reconhecer. — Que tá acontecendo? Espera Maria... Espera... Para de gritar, Maria. Não escuto direito. O quê? Sangue? Maria? Alô! Alô! — e ficou
estática a olhar o aparelho.
— Sangue? — Melissa arregalou os olhos. — Liga pra lá.
— Maria não atende o telefone, lembra?
— Liga Pati!
Patrícia digitou.
— Droga! — errou seu próprio número. — Aquela empregada bebeu.
— Liga Pati! — insistiu.
— Calma Mel! Tá me assustando. Alô! Maria... Maria o que tá acontecendo?
— Patrícia!!! Socorro!!! — gritava Maria desesperada, desligando de novo.
— Desligou! Ai Mel! Tô assustada. Parecia o telefone sem fio. Ele range quando andamos. Acho que ela tava correndo.
— Correndo do que? — olhou Patrícia assustada. — Calma! Vamos procurar o Dudu.
Melissa arrastou Patrícia para fora da casa. Encontraram Eduardo ao lado da piscina, conversando animado com uma bela loira.
— Dudu, vem cá! — Melissa o puxou.
— Hei?! Calma lá. Não vê que tô ocupado? — sorriu maroto para a loira que estava ao seu lado.
— Vem cá! — arrastou-o.
Eduardo quase deslocou o pescoço com a força de Melissa ao segurar na gola da camisa dele para puxá-lo.
— Ficou louca?
— A Maria ligou gritando da casa da Pati.
— Viu uma barata?
— Não debocha seu palhaço — esbravejou Patrícia. — Não vê que é sério?
— Você? Séria? — gargalhava. — Com quem?
— Dudu! — exclamou Mel.
— Que foi? Tá! Tá bom! Que quer que eu faça? Que ligue insinuando como ficar em cima da cadeira até nós voltarmos, ou quer que eu saia da festa e vá lá matar a barata?
— Que você vá lá matar a barata! — falou Patrícia, furiosa.
— Patrícia! Baratas não sangram — falou Melissa com voz estranha.
As duas se olharam.
— Ulalá! — Eduardo achou graça. — Do que tão falando?
— Precisamos ver o que tá acontecendo com a Maria.
— Por favor, Dudu — suplicou Melissa. — Ela falava sobre sangue.
— Sangue? Tá! Tá bom! Esperem aqui! — exclamou Eduardo ao correr atrás de Fernando. — Precisamos sair daqui… — falou para si mesmo. Encontrou Fernando na sala de música, ele
estava absorto como sempre. Não conversava com ninguém. — Vem Fê! — agarrou-o.
Fernando levou um banho da cerveja que segurava. A décima desde que chegara.
— Quê? Que foi? — falou meio aéreo, vendo-se todo molhado.
— Preciso de você... É... Pensando bem... Não! Preciso do seu carro.
— Malandrinho, hein?
— Como é que é?
— Tá aqui. Cuidado com os arranhões no couro do banco. Minha mãe me mata.
— Aranhões? Ah! Não... Quer dizer... Tá! Tá! Deixa pra lá! — e correu para encontrar Melissa e Patrícia sem cogitar o que ouviu. — Vamos! — exclamou ao encontrá-las novamente.
— É você quem vai dirigir?
— Ulalá! Quem trouxe vocês?
— Você bebeu.
— Eu não bebi.
— Ah! Claro! Depois de toda aquela conversa com aquela loira oxigenada na... — e Melissa parou no que Eduardo só arregalou os olhos para o assunto. — Tem razão! Você dirige!
Entraram no carro e partiram.
Os três chegaram ao portão norte do Condomínio Jardim das Flores e Eduardo recuou.
— Por que parou? — perguntou Patrícia.
— Tô pensando se... Ou se vou... Não... Acho que vou... — Eduardo olhou as duas se olhando. — Eu não bebi tá? — ele as viu voltarem a se olhar. — É que vou colocar o carro
pelo outro portão porque conheço o Zé, e ele tá acostumado a me deixar entrar sem perguntar — olhou as duas se olhando outra vez. — Ahhh! Não vou falar mais nada.
Elas também não perguntaram.
Como de costume, Zé estava na guarita. Sorriu para Eduardo e deixou-o entrar em outra garagem. O Condomínio possuía três blocos separados. O edifício dos cinco amigos era
o Bloco Jardim Azaleia com entrada e saída pelo portão norte, o Bloco Jardim Girassol tinha entrada e saída pelo portão sul, e o terceiro bloco era o Jardim Margarida com
entrada e saída pelo portão oeste, mas as garagens ficavam no mesmo pavimento, se misturando.
— Também nem vou perguntar o que tá acostumado a fazer nessas garagens — falou Melissa.
Foi a vez de Eduardo só a olhar pelo retrovisor. Agora estava tenso demais para brincar.
— Vamos até o jardim central e de lá pegamos o elevador do nosso bloco.
— Certo! — concordaram as duas.
— Droga! — exclamou Melissa.
— O que foi?
— Esqueci a Mari na festa.
— Depois a gente volta pra lá. Vamos ter que trazer o Fê também.
— Mas meus pais não podem nos ver.
— Ok! Tomaremos cuidado — e Eduardo e elas se dirigiram para o hall do elevador.
Fazia muito frio.
O jardim central ligava os três blocos, e as câmeras de circuito fechado giraram para o outro lado enquanto os três corriam desesperadamente para não serem pegos.
Alcançaram o salão de festas que ficava logo na entrada. Abriram à porta envidraçada e chegaram ao hall correndo para o elevador.
Fernando da Silva morava com o pai Marco da Silva e a mãe Adriana da Silva e a empregada Amália Alves no segundo andar. Marco era um eminente Adido Cultural africano, que
veio morar no Brasil e aqui fez família. Mariana Pii Jung e Melissa Pii Jung moravam com o pai Paulo Jung e a mãe Sandra Pii Jung no sétimo andar. Eduardo morava com o pai,
o Dr. João Vitor Ferreira, e a empregada Berenice de Oliva no décimo primeiro andar. Patrícia morava com o pai, o Senador Ângelo Antônio de Moura, e a mãe Cibele. Ainda moravam
com eles a empregada Maria dos santos e o motorista Juvenal Amorim na cobertura duplex, do Bloco Jardim Azaleia.
Os 23 andares a serem percorridos pelo elevador nunca demoraram tanto para serem atingidos. Quando chegou, Eduardo, na frente das duas, recuou quase as derrubando dentro do
elevador.
— O que foi? — falou Patrícia, receosa.
— Cepá! Não tenho certeza se devemos entrar.
— Por quê? — desesperou-se Patrícia.
Ela correu na frente dele e Eduardo a puxou pelos cabelos. Estava tão atordoado que usou mais força do que queria. Patrícia recuou na marra, com os cabelos ainda nas mãos
dele.
A porta estava aberta. A mala da mãe dela jogada logo na entrada, toda desfeita, com roupas espalhadas para todos os lados.
— Ladrão? — questionou Melissa, assustada.
— Não sei — respondeu Patrícia.
— Calma! Se não podemos avisar a portaria, vamos com calma — falou Eduardo. — Onde tá a escandalosa da empregada?
— Percebeu? — falou Melissa, baixinho.
— O quê? — perguntou Eduardo.
— O silêncio.
Os três se olharam.
Eduardo cerrou os olhos, abriu-os novamente, e criou coragem, empurrado por Melissa, que o cutucava.
Entraram e a cena não poderia ser mais assustadora. As paredes brancas estavam pintadas de vermelho. Pareciam ainda estar quentes.
Eduardo colocou sua mão e arregalou os olhos. Ficou boquiaberto. Já as meninas se calaram; parecia ser para sempre.
A sala era muito grande e bem decorada. Bem no meio, uma colossal escada de mármore de Carrara.
Eduardo sentiu o som sob seus pés. Olhou para baixo. O fino cristal guardado há séculos em caríssimas cristaleiras tinha virado pó aos seus passos; quadros arrancados da parede,
porcelanas chinesas quebradas, tapetes persas rasgados por fina lâmina.
Eduardo sentiu seu coração disparar. Olhou para Melissa e Patrícia confuso, mas subiu a escada sozinho. Dirigiu-se para o quarto da mãe de Patrícia. Foi automático. O sangue
fazia uma trilha até lá.
A porta havia sido arrombada e a chave ainda pendia na fechadura, pelo lado de dentro quando Eduardo entrou.
Os lençóis da cama estavam jogados a esmo e um corpo jazia no chão. Eduardo se aproximou e viu que cabelos loiros cobriam o rosto deformado. O sangue, enegrecido, não permitia
uma identificação precisa, mas um som estridente se fez por trás dele.
Eduardo se virou rapidamente.
O quarto grande e espaçoso estava pouco iluminado. Suas janelas, abertas, traziam o forte vento de fora para dentro. As cortinas de fino voile balançavam, e a luz da Lua incidia
seus poucos raios no quarto, confundindo seus contornos.
Eduardo se virou outra vez. Girou 360 graus dentro do grande e espaçoso quarto sentindo a presença de alguém. Apavorou-se com o corpo morto aos seus pés e a porta agora distante.
— Mel? — chamou. — Pode vir até aqui? — e um novo movimento. — Quem tá aí?! — gritou descontrolado.
Algo estalou e Eduardo olhou para o chão. Ia pegar a lâmina que se achava ao lado do corpo quando Melissa entrou naquele momento.
— Não faça isso!!! — gritou desesperada.
Eduardo parou e se voltou para ela. Ia colocar suas digitais na arma do crime.
“Tem alguém aqui”, falou como que para si mesmo.
— Minha nossa!!! — gritou Melissa ao ver a mulher morta caída no chão.
— Não!!! — desesperou-se Patrícia ainda na porta. — Mãezinha!!!
— Saiam daqui!!! — gritou Eduardo para elas. — Vão!!! — e olhou outra vez em volta. — Muito esperto. Muito mesmo — e recuou.
Não sabia o que fazia nem o que falava, mas enrolou a mão na manga do suéter que usava, olhou o quarto mais uma vez e fechou a porta trancando-a por fora. A fechadura, porém
estava muito danificada e Eduardo ficou na incerteza se havia conseguido trancar a porta.
Um grito mais dolorido ainda se fez.
— Paizinho!!!
Eduardo correu. Não conhecia o caminho, mas seguiu o estrondo que Patrícia fez, ao cair desmaiada no chão.
— Ai! Meu Deus, Dudu! Socorre a gente! — falava Melissa, nervosa, ao tentar segurar o corpo de Patrícia que havia caído em cima dela.
Eduardo se aproximou. Olhou para dentro do quarto onde só o Senador dormia, separado da esposa. Ficou paralisado pela cena. Seus olhos se arregalaram para o chão ensanguentado
e ameaçaram mesmo soltar das órbitas; o pai de Patrícia, o Senador Ângelo Antônio de Moura estava sem a têmpora, estourada pelo tiro certeiro da arma que ainda segurava nas
mãos e a metade de seus miolos se espalhara pelo chão.
Eduardo vomitou. Contorceu-se e tossiu perante tamanha atrocidade.
— Não... Não posso…
— Pelo amor de Deus, Dudu. Ajuda!
— Não, posso... Cadê meu pai? Vou chamar meu pai...
— Não!!! Não pode Dudu. Vai ter que explicar nossa presença aqui.
— Pai... Pai... Não posso — voltou a vomitar, caindo no carpete sujo de sangue, vendo tudo escurecer, desmaiando.
Melissa largou Patrícia no chão e correu.
— Meu Deus, Dudu!!! — chacoalhava-o. — Acorda!!! — gritava Melissa para o amigo desmaiado.
Capítulo 4
— Acorda! Vamos! — falava uma voz com acentuado sotaque português ao longe, muito longe para Eduardo que tinha viajado pelo seu inconsciente.
— Pai? — tentou enxergar na névoa que se transformara sua vista.
— O que estava fazendo longe da festa? Não consegue parar de se meter em encrencas? — questionou o Dr. João Vitor vendo que Eduardo enfim acordara. — Você me deixa ‘krililik’
da vida! — e deixou o filho ainda sob efeito do calmante que lhe havia injetado após ser chamado por Melissa pelo interfone.
Saiu do quarto para encontrar o Delegado na sala.
— Posso interrogá-lo agora, Doutor? — perguntou o homem que se identificou como Delegado José Liberato.
Era de grande estatura, barriga proeminente e cabelos ralos, sem, porém, serem brancos. Carregava uma arma e um semblante duro.
— Precisa mesmo? — disse o Dr. João Vitor, convidando-o a sentar-se.
— Seu filho foi encontrado na cena de um crime, Doutor. O assassino e pós-suicida é um Senador da República. E ainda pergunta?
— Ele para nós não era um Senador. Era só um vizinho. Pai da amiguinha de meu filho. E ele apenas havia dado uma carona de volta para elas.
— A menina a que se refere veio com uma amiga, que largou sua irmã mais nova na festa aos prantos.
— Percebe então que foi só uma carona? — tentou um sorriso que não convenceu muito.
— Carona? Seu filho dirigiu o carro emprestado de outro amigo. Nem ele nem o amigo tinham carteira e nem idade para dirigir.
— Já sei que vou responder por isto, Delegado — tentou Dr. João Vitor se acalmar. E nem sorrir iria mais adiantar. — Mas ainda não vejo a necessidade de meu filho ser interrogado.
Ele não bebeu, a Melissa me garantiu isso.
— Isso é bom saber… — sabendo que sabia não ser aquilo, não jovens como eram. —, mas a menina Melissa também falou que eles voltaram da festa mais cedo por causa da menina
Patrícia, que não estava se sentindo bem. Encontraram a porta aberta e na curiosidade própria da idade, entraram encontrando a mãe da menina Patrícia, morta, com uma adaga
ao lado. Adaga é uma arma tão incomum, não?
— O Senador era um colecionador famoso. Qualquer um que leu sobre ele nos jornais sabe de sua famosa coleção de armas raras.
O Delegado José Liberato apertou os lábios; estava pensando.
— O Senador matou a esposa e se suicidou depois com um tiro na cabeça, deixando uma carta onde se despedia da filha e explicava o crime. E ainda não quer que o interrogue?
— Não sei. Foi tudo tão repentino... E a pobre menina — falou o Dr. João Vitor, pai de Eduardo. — Ela está em estado de choque.
— Sinto informar que o apartamento ficará lacrado até terminar o inquérito ou até ordens contrárias do juiz. Pedi para uma policial feminina reunir algumas roupas da menina
Patrícia. Uma vez lacrado, qualquer abertura no apartamento será considerada invasão.
— Compreendo.
— O quarto da menina fica no fim do corredor do segundo andar, não?
— Não conheço a planta da cobertura. É diferente dos ‘apartamentos - tipo’.
— Tudo bem, isso é de menos. Todas as fotos já foram tiradas pela criminalística. Serão reveladas na delegacia. Agora vamos esperar o legista terminar as autópsias preliminares
para retirarmos os corpos. Sabe se a menina Patrícia tem parentes aqui em São Paulo?
— Parece que tem uma tia, irmã da mãe. Ela não vinha muito aqui. Não a conheço pessoalmente. Ouvi falar. Sabe como é um condomínio. Acho que ela mora no Espírito Santo, se
não me engano. O Senador vinha de uma família muito pequena, tinha muita idade, nada sei sobre a família dele — o médico sentou-se precisando realmente sentar-se.
— Já ouvi falar muito do Senador. Era um homem honesto, não? Digo um desses políticos acertados. Soube que defendia os portos brasileiros — e o Delegado olhou em volta. O
apartamento do Dr. João Vitor era um apartamento muito bem decorado. A falecida mãe de Eduardo era mulher de muito bom gosto. — Por que ele matou a empregada e o motorista?
— O que disse? — perguntou o Dr. João Vitor voltando à realidade.
— Perguntei... Deixa para lá. Estava só pensando alto — concluiu o Delegado José Liberato. — Vamos fazer o seguinte: Vocês não viajam sem me avisar e deixo o depoimento do
menino para depois de amanhã. Está bem assim?
— Sim. Obrigado, Delegado.
— Aproveite e vá também, Doutor. Vai responder por seu filho ter pegado o carro.
— Está bem — suspirou irritado ao olhar a porta do quarto do filho.
A polícia havia cercado o condomínio depois de o Dr. João Vitor ter telefonado para a delegacia. Achavam ter sido assalto seguido de morte. A bomba veio mesmo quando a polícia
chegou e encontrou a carta do Senador em cima da mesa.
O médico despediu-se do Delegado e voltou ao quarto de Eduardo que ainda tinha aspecto meio verde. Tinha vomitado mais duas vezes desde que foi encontrado pelo pai.
E Melissa não estava muito diferente. Tinha uma bolsa de gelo na cabeça. Parecia que ia explodir. Levou bronca do pai de Eduardo, do próprio pai, da mãe e da irmã Mariana
também. Ainda teve de contar ao pai de Fernando que ele havia ficado na festa, bêbado.
O edifício veio abaixo.
Já Patrícia havia sido levada para a casa da amiga Melissa. Dormia no quarto de Mariana, que chocada, chorava o tempo todo. Ninguém conseguiu esconder o fato dela.
Fernando também estava em estado de choque. Não conseguia falar. Era um rapaz de saúde delicada apesar da aparência abrutalhada e saudável. O coração de Fernando não pulsava
na mesma intensidade que a inesgotável energia da juventude.
Eduardo se levantou e foi até a cozinha arriscar-se a comer alguma coisa. Era hora do almoço, e sentiu o estômago pedindo ajuda. A empregada Berenice, Berê para os garotos,
estava com um lenço na mão. Era muito amiga da Maria, a empregada do Senador.
— Oi, Dudu. Ocê tá com fome? Quer que eu prepare um prato?
— Não sei Berê. Tenho medo de vomitar outra vez — sentou-se depois de ter vindo se arrastando pela sala. — Meu estômago sempre foi uma caca — olhou para a empregada. — Onde
tá meu pai?
— Seu pai saiu. Foi verificar a tal pressão da mãe do Fernando. A mulher tá tendo um ataque atrás do outro desde que soube que o filho emprestou o carro cavalo.
— Mustang.
— Esse aí.
— Perua idiota! — exclamou Eduardo para o lado da parede que olhava.
— O que você viu?
Eduardo ergueu a cabeça tão rápida que sentiu o repuxo.
— Como assim, Berê?
— O Delegado tava falando na cozinha, pro outro policial, que ocê delirava que falava sobre alguém no quarto.
Eduardo gelou. Sentiu o chão abrir aos seus pés. Arrepiou-se todo.
— Ahhh... Não me lembro de nada depois de ver o corpo do Senador... Ai! Que coisa horrível — e segurou a cabeça como se ela fosse cair.
— É, foi sim. Aquele político que todo mundo falava retalhou a cara da mulher, retalhou a pobre da Maria, retalhou aquele motorista metido e depois deu um tiro nos miolos.
Eduardo arregalou os olhos. Algo chacoalhou dentro dele.
— O que você di... disse? — gaguejou.
— Que o político retalhou a mulher... — e foi cortada pelo desespero de Eduardo.
— Não! Não, foi. Foi o final.
— Final? Ãh! Não entendi?
— Nada! Nada! Esquece! — e se levantou. — Preciso sair.
— Hei?! Aonde vai? Teu pai te proibiu de sair...
— Só vou à casa da Mel. Vê se ela tá bem — e saiu.
— Êita! Teu pai não vai gostar!!! — gritou Berenice para Eduardo, mas o elevador já havia partido.
Eduardo respirava descontrolado. Tinha o coração acelerado em descompasso e suas ideias se embaralhavam.
Tocou a campainha e foi a própria Sandra quem abriu a porta:
— Sim? Ah! É você!
— Posso falar com a Mel?
— Não sei se deveria deixar você entrar. Foi muita confusão ontem.
— Por favor, dona Sandra.
— Sabe que não gostei nada disso de pegarem carro, Eduardo. A gente não é rico Eduardo, passa muita dificuldade. Não somos ricos como vocês que fazem o que querem Eduardo.
Eduardo se encolheu. Era muito nome próprio para uma noite só.
— Por favor! É rapidinho.
— Rápido, então — apontou furiosa para o fim do corredor. — Ela está no quarto dela.
Eduardo agradeceu. Bateu na porta do quarto de Melissa.
— Mel? Posso entrar? — falou da porta.
— Dudu? — abriu a porta. — Que faz aqui? — Melissa não teve respostas. Eduardo entrou e fechou a porta com a chave. Melissa estranhou. — O que houve?
— Sua mãe tá uma fera com nós ‘ricos’.
— Nós quem? Ah... Ela falou da dificuldade de como chegaram até aqui, que o Mustang é caro, que se tivesse que pagar danos no...
— Ela tá certa, Mel — Eduardo cortou a fala de Melissa. — A gente meio que abusou da sorte.
— Meio? — sentou na beirada da cama. — A gente abusou.
— Tem uma coisa pior que isso — também se sentou na beirada da cama dela. — Ontem, quando tava no quarto da mãe da Pati... Olha, pode parecer maluquice, mas... Tinha alguém
lá dentro.
— O quê?! — berrou se erguendo.
— Não grita! Que mania! — também se levantou. — Por favor! Tô falando a verdade.
— Você é um palhaço Dudu, mas agora não é hora.
— Não! Falo a verdade. Juro!
— A polícia não viu ninguém. Eu não vi ninguém...
— Eu vi! — exclamou cortando a fala de Melissa outra vez. — E tenho provas.
— Como?
— Por que o pai da Pati mataria a mãe dela com uma adaga? A empregada? O motorista? Pra depois se matar com um tiro?
Melissa ia responder, mas não sabia o quê.
Ficou estática.
— Como sabe tudo isso?
— A Berê ouviu os policiais falando. Então por que não a matou com a arma?
— Por que não a matou com a arma?
— Porque foi outra pessoa.
— Como assim?
— Assim como, Mel? Você tá me confundindo — pulava descontrolado.
— Eu? Eu confundindo você? Você me diz que o Senador matou a mulher com uma adaga e se matou com um revolver... É isso?
— Isso mesmo.
— Vem aqui no banheiro, Dudu. A Mari tem a mania de ouvir minhas conversas. E destranca a porta, pelo amor de Deus, se não minha mãe vai pensar outra coisa, né?
— Tá bem — e se dirigiram para o banheiro.
— Você se apoia em muito pouco, Dudu. Acho que tá vendo muito filme.
— Acha que tô louco?
— Acho, não. Tenho certeza! Foi muita emoção pra você. Já comentou isso com seu pai?
— E falar pra ele que estivemos lá por outros motivos? Lembra? Fomos ver o porquê da empregada tava gritando — Eduardo viu Melissa pensando. — Por que a empregada telefonou
pra Pati, afinal? — Eduardo voltou a perguntar.
— Não sei. Ela só gritava ‘Patrícia!’, ‘Sangue!’, não sei ao certo.
— Então a mãe da Pati já tava morta?
— Eu já falei que não sei Dudu. Chegamos juntos, lembra?
— O pai da Pati ia voltar naquela noite. Vinha com a mulher de Brasília?
— É.
— E espera pra matá-la dentro da própria casa e ainda ‘liquida’, como diria meu pai, a empregada e o motorista?
— Acha que havia ladrão lá?
— Claro que havia. E foi ele quem matou todos.
— Temos que contar pra polícia.
— É. Acho que sim. Ou...
— Ou?
— Dar uma fuçada.
— Em quê?
— No crime, ora.
— Não acho certo.
— Vamos fazer isso mesmo — falou uma voz por trás, ainda parada no meio do quarto de Melissa.
— Pati? Você tava escutando?
— O necessário! Dudu... Quero pegar o desgraçado que matou meus pais.
— A polícia vai fazer isso. Era só o que faltava a gente se meter — Melissa tentava argumentar.
— Mas e se a polícia não conseguir provar que havia alguém lá? — dizia Eduardo.
— Então é porque não havia ninguém lá — disse Melissa, que balançava a cabeça nervosa.
— Mas eu vi — insistiu Eduardo.
— Então prove!
— Não posso. Nem sei como — deu de ombros.
— Olha Dudu, é legal o que você tá fazendo, mas pensando melhor, acho que a Mel tem razão. Temos que contar pra polícia e deixá-los trabalhar, se não o cara vai fugir.
Eduardo respirou profundamente:
— Ulalá! Vou levar uma bronca pior da que levei da tua mãe, mas vamos pegar o desgraçado, tá bem? Vou ligar pro meu pai e contar tudo — e saiu depois de beijar Patrícia e
Melissa na testa.
Eduardo voltou para sua casa já imaginado a cena.
Capítulo 5
Eduardo não sabia se a delegacia assustava mais do que a cena que presenciara na cobertura de Patrícia, na noite anterior. O Delegado José Liberato não poderia ter sido o
mais condescendente. Foi até gentil. Mas Eduardo estava apavorado com o barulho da delegacia. Nunca havia estado em uma antes. As ideias que fazia de um distrito policial
não iam além dos filmes de televisão.
O rapaz sentado ao seu lado era da sua idade. Parecia um office-boy daqueles que já tinha visto tantas vezes na Praça da Sé. Ele datilografava numa máquina de escrever, tudo
o que Eduardo falava e até o que o pai de Eduardo resmungava.
João Vitor Ferreira estava uma fera com o filho. Eduardo se limitava a olhá-lo por debaixo dos cílios. Nada no mundo o fazia encará-lo.
O Delegado José Liberato fez todas as perguntas possíveis e impossíveis. A única coisa a acrescentar era o verdadeiro motivo pelo qual saíram da festa, e a sensação de Eduardo
ter sido observado no escuro do quarto da mulher morta. Eduardo também contou sobre o celular de Patrícia e o escândalo da empregada Maria.
O Delegado José Liberato marcou uma ‘entrevista’, como preferiu chamar, com Melissa e Patrícia, apesar do estado delicado da menina.
Mas Eduardo nada soube sobre o conteúdo da carta do suicida. Ficou curioso, chegando mesmo a perguntar, mas seu pai lhe deu um pisão tão forte que teve que engolir o grito.
Engoliu também a curiosidade.
— Pronto! Aqui está seu depoimento — disse o Delegado estendendo o papel e a caneta para Eduardo. — Agora os dois assinam e estão livres.
— Livres... — escapou da boca de João Vitor.
Eduardo voltou a se encolher.
— O Doutor também terá que prestar depoimento. O Código de Trânsito Brasileiro prevê que ao condutor do veículo, cabe a responsabilidade pelas infrações decorrentes de atos
praticados na direção do veículo. No caso de filho menor, os pais são responsabilizados pela infração pagando a multa e sendo penalizado com perda de pontuação em sua Carteira
Nacional de Habilitação.
— Que inferno! — exclamou nervoso. — Sou um cardiologista. Como posso perder pontos assim?
— Isso não é problema nosso. Sinto muito, Doutor.
João Vitor não se conteve. Beliscou o braço de Eduardo, que outra vez engoliu o grito. Era um cara legal; sabia que tinha errado. Os dois se levantaram e saíram da delegacia.
— Vou colocar você num táxi e mandá-lo para casa. Não pare pelo caminho, entendeu?
— Sim! — foi só o que falou.
— Hoje, as aulas foram suspensas por causa do pai da Patrícia. Ele era muito amigo do diretor da escola. Mas amanhã você tem prova. Trate de esquecer toda essa baboseira e
estude, pelo amor de Deus. Se não vai passar a vida inteira no Ensino Fundamental — e fez chamou um carro pelo aplicativo.
Encaminhou Eduardo e tomou outro carro, agora para o consultório. Estava atrasado para uma cirurgia de emergência.
— Saco! — esbravejou Eduardo no carro.
O motorista o observou pelo retrovisor. Eduardo se encolheu. O carro parou na frente do condomínio. Já eram oito horas. A noite caíra rapidamente. O frio estava de lascar
naquele inverno paulistano.
— Boa noite, Eduardo! — exclamou o zelador Almeida.
— Oi! — respondeu se apertando ao casaco.
— Que frio, não?
— É! — e entrou.
O caminho até o Bloco Jardim Azaleia era distante. Quinze mil metros quadrados de jardins cuidadosamente trabalhados cercavam o condomínio, um dos mais belos do bairro.
As câmeras de circuito fechado giravam em busca de algo fora do comum, mas foi Eduardo quem encontrou algo. O som de uma pisada em falso o fez parar de andar. As nuvens, carregadas,
escondiam a luz da Lua. A noite estava escura. Eduardo se virou. Já havia percorrido um bom caminho desde a portaria quando teve a sensação de estar sendo seguido.
Balançou a cabeça.
“Estou ficando louco”, pensou.
E um novo estalar se fez.
— Quem tá aí?! — gritou Eduardo não esperando a resposta. Correu o máximo que pôde. Alguém corria também. — Sr. Almeida?! — gritava ele, correndo sem olhar para trás. — Socorro!!!
— berrava descontrolado, em pânico quando um zumbido se fez nos seus ouvidos. — O quê...? — se perguntou aproximando do jardim central que unia os três blocos.
A câmera parecia não o acompanhar. Seu Almeida, na portaria, nada viu nem ouviu e Eduardo pisou em algo novamente. Lembrou-se da cobertura de Patrícia, o quarto dela ficava
daquele lado.
Instintivamente olhou para cima. Viu as sacadas envidraçadas. Vinte e três andares de janelas, todas fechadas. Olhou para o chão e viu cacos de vidro.
“Vidros?”, estranhou quando novo zunido o obrigou virar-se rapidamente para trás.
Algo caiu ao seu lado, assustando-o. Olhou para o outro lado. Tentou localizar de onde viera o som em meio às luzes que pareciam estar perdendo luminosidade.
Estava tudo vazio; somente plantas, chafariz, escuridão.
Eduardo entrou em pânico outra vez. Correu e aproximou-se de seu bloco. Olhou para dentro do salão de festas. Batia com força nos vidros, mas não havia ninguém.
— Alguém aí? Por que estão trancadas? Oi? Quero entrar... — do lado de fora, o jardim, o chafariz e outro pequeno estalo debaixo dos pés de Eduardo que voltou a procurar o
que era. Seu tênis grudou em alguma coisa. Viu um reflexo de vidro no chão. — Vidros? — perguntou-se agora atônito. O chão estava cheio de pequenos cacos de vidro. — De onde?
— e Eduardo ouviu um novo zunido.
Mais forte, mais próximo, diferente.
Esse zunido o fez parar de vez. Caiu de joelhos na porta do salão de festas no meio do belo jardim que o rodeava; Eduardo, as plantas, o chafariz, e algo que o acertou na
perna esquerda.
Eduardo levantou-se por puro instinto de sobrevivência. Correu percebendo que não corria que sua perna esquerda estava ferida que algo o adormecia. Corria pelo jardim quando
caiu num arbusto. Rolou para o outro lado, ouviu passos, não sabiam onde Eduardo estava. Eduardo também não sabia. Ficava cada vez mais tonto, não se lembrando do que fazia
ali.
Olhou para si mesmo. Estava molhado, gelado. Suas mãos, ensanguentadas, mostravam que havia mais um corte em seu corpo.
Chacoalhou a cabeça e olhou para cima quando mais vidros despencaram e um novo dardo o acertou agora na perna direita.
Eduardo dessa vez caiu e não conseguiu se levantar. Tentou se arrastar, mas a cabeça girou. Sentiu ânsia. Vomitou até engasgar. Algo embrulhava seu estômago para presente
quando viu sua mão cheia de sangue.
“Pai?!”, mas o grito não saiu.
“Berê?!”, e suas forças se extinguiam.
Mais vidros caíam no chão.
— Outro dardo... — balbuciou ao desmaiar no impecável jardim de azaleias, girassóis e margaridas com as passadas pesadas do zelador que corria para socorrê-lo.
Capítulo 6
— Eduardo? Consegue me ouvir? — falava com calma, o Delegado José Liberato.
O menino abriu os olhos. Suspirou até.
A visão não poderia ser melhor. Viu Melissa chorando ao lado de sua cama.
— Ulalá! Morri? — brincou sarcástico.
— Ahhh! — exclamou Patrícia que estava logo atrás. — Ele já tá bom — e saiu do quarto.
— Oh! Dudu, como pode brincar com coisas tão sérias? — reclamou Melissa.
— Você está bem, meu filho? — falou o pai, Dr. João Vitor.
— Não sei pai... Ainda sinto sono, cãibra, dor — e passou a mão no ouvido. — Dói muito.
— Tem de ter dores mesmo. Dormiu quase dois dias — concluiu Berenice no outro lado da cama.
O quarto de Eduardo estava lotado. Além do Dr. João Vitor, de Melissa e Patrícia, e do Delegado, chegaram Fernando e Mariana, que vieram assim que souberam pela empregada,
que Eduardo havia começado a resmungar.
— Agora, acho que seria melhor todos saírem, para o Eduardo se recuperar mais rápido. O quarto está cheio e abafado e ela ainda está com um pequeno princípio de pneumonia.
— Pneumonia? Do que tá falando, pai?
— Você foi achado desmaiado no jardim pelo zelador. Estava todo molhado no meio das flores.
— Molhado? Flores? Ai... — se mexeu na cama. — Agora me lembro.
— Poderia conversar com seu filho, Doutor?
— Pode sim, Delegado.
Todos começaram a sair.
— Eu fico! — exclamou Melissa.
— Por favor, querida. Chamo você depois, está bem? — afirmou o pai de Eduardo.
— Tá bem — saiu desgostosa. — Chiii! Tem alguma coisa errada. Sei que tem — falou Melissa ao ouvido da irmã.
Mariana apenas a olhou. Não disse nada. A porta foi fechada.
Lá dentro, o Dr. João Vitor adiantou a conversa:
— Meu filho não estava drogado...
— Está bem! Está bem!
— Não, não está nada bem. Ontem o Senhor insinuou que ele havia se drogado. Fiz todos os exames. Era uma espécie de tranquilizante usado em animais. Gente de circo usa muito;
é suficiente para derrubar um elefante de uma tonelada por vinte e quatro horas.
— Não imagino por que alguém adormeceria seu filho no meio do jardim de seu edifício — insinuou o Delegado.
— Pois também não tenho a mínima ideia, Delegado. Poderia você, o profissional aqui, me responder?
— Não precisa se descontrolar Doutor. Não apresentei queixa-crime contra seu filho. Só quero entender.
— Posso falar? — perguntou Eduardo ao conseguir uma chance. Os dois o olharam. — Foi ele... O ladrão.
— O quê? — perguntaram em uníssono.
— Só ele pra querer me matar. Isso prova que existia alguém no quarto da morta.
— Está escondendo mais alguma coisa, menino?
— Não! Claro que não! Juro pai — olho um. —, juro Delegado — olhou outro.
João Vitor andou para um lado, o Delegado para o outro. Os dois se encontraram no meio do quarto.
— Não compreendo a entrada deste ladrão na história. O Senador chegou a São Paulo e quebrou o pau com a mulher. A empregada se intrometeu e foi morta. O motorista deve ter
entrado no rolo por encobrir as saídas da esposa traidora, e foi morto. O Senador matou a esposa e depois se matou. Deixou uma carta em que explicava tudo. O caso do Senador
foi encaminhado ao Ministério Público, que designou um juiz. As provas foram aceitas e o caso encerrado. Não conseguimos provar que a casa foi assaltada.
— Mas e as roupas jogadas? — perguntou Eduardo.
— Prova de que houve discussão. É o que eu disse: os empregados entraram no rolo e foram mortos.
— Incrível! Não consigo ver aquele homem tão calmo e cordial como um assassino dotado de tanta frieza — o Dr. João Vitor ainda tentava deglutir a coisa.
— É assim mesmo que são os assassinos, Doutor — disse o Delegado olhando em volta. — Bom, o caso foi encerrado por falta de provas contrárias.
— Mas meu filho sofreu um atentado, não?
— Não tem cabimento um ladrão naquela hora, Doutor.
— Ele podia estar assaltando a casa e se viu no meio da cena quando foi interrompido. Acabou não conseguindo fugir.
— É! É viável! — coçou o queixo. — Bem... Vamos colocar um carro com dois policiais em cada portão. São três portões, não são?
— Sim. São três entradas independentes — confirmou o Dr. João Vitor. — Isso já foi levado em questão nas reuniões de condomínio, mas ninguém toma uma decisão quanto ao controle.
Cada bloco de apartamentos tem sua entrada equipada com uma câmera de circuito fechado, que só permite ver quem entra ou sai daquele bloco.
Eduardo se encolheu. Ficou com medo de saberem que entrava e saía com o carro dos amigos e até do próprio pai pelo portão norte, para não ser visto pelas câmeras do portão
sul.
— Vamos iniciar outra investigação para não desvirtuar o caso do Senador. Não acredito mesmo numa ligação. Até mais! — e se dirigiu para a porta do quarto.
— Acompanho-o Delegado — disse o pai de Eduardo.
— Quanto tempo ainda vou ficar de cama? — falou Eduardo com o pouco de voz que saía da garganta.
— O Dr. Alfredo acha melhor você se restabelecer por mais um dia. Você já perdeu mesmo a prova de matemática.
— Ulalá! — exclamou Eduardo. O pai o encarou. — Desculpe pai. Foi mal — sorriu feliz.
— Não fique tão feliz assim, Eduardo. Vai repor a prova quando melhorar.
Eduardo sorriu morno. Esperou o pai e o Delegado saírem e se arriscou a ligar na casa de Melissa, já que imaginava que o celular de ambas havia sido confiscado pela mãe.
— Alô! — atendeu dona Sandra.
— Por favor, a Melissa — tentou disfarçar.
— Dudu? É você?
— Não! — disfarçou mais uma vez. — É o professor de música da Patrícia.
— Patrícia tem professor de música?
Eduardo fez uma careta:
— Sim, Senhora.
— Está bem. Vou chamá-la.
— Quem é mãe? — perguntou Melissa que vinha de encontro com a mãe. Estranhou o telefonema. — Alô? Quem é?
— Eu, Dudu, mas disfarça.
— Oh! Obrigada, então. Claro, eu falo pra ela.
— Preciso falar com você antes que morra de vez.
— Cruzes! Ah... Claro, o Senhor tá sendo muito gentil. Passarei seu recado. Claro! Claro!
— Para com essa baboseira, Melissa, que eu não consigo me lembrar do que vou falar. Que saco!
— Pediu pra dis... Oh! Claro, claro — dizia, olhando para a mãe que não desgrudava dela.
Melissa tentava a todo custo disfarçar.
— Cê tá sem cel?
— Sim.
— Droga! Então vai por aqui mesmo.
— Sim… — Melissa ainda sorria para a mãe.
— O Delegado José Liberato falou que não podia ter ninguém lá dentro na hora da morte da mãe da Pati, mas eu vi. E ele me viu e tentou me matar.
— Cruzes!
— Cuidado, Melissa. Disfarça! Que saco! Presta atenção. Meu pai falou que o cara podia estar assaltando e foi envolvido no crime sem querer. Tem duas coisas que não entendo...
Uma era que a Maria gritava sobre sangue pra Pati, e o Delegado falou que a empregada morreu primeiro... Sabe quem morreu primeiro? — perguntou franzindo a testa.
— Chiii! Como vou saber?! — quase gritou.
— É! Tem razão! Outra coisa; eu não vi aquela carta. Tô com uma impressão... Cepá.
— E agora?
— Agora que tive pensando... — coçou a cabeça.
— Você? Pensando? — riu. Olhou para trás. Viu o olhar de sua mãe e engoliu o sorriso. — O professor tem toda razão.
— Vou matar você quando te vir. Vou sim, viu Mel?
— O que quer afinal? — sussurrou.
— Você sabe o número do telefone daquele cara que namorou a Pati?
— Qual deles?
— Essa é boa. Um entre os cem — falou irritado. — Aquele Mel. Que faz direito e é filho de um grandão no Judiciário.
— O Carlos Alberto? Filho do desembargador Pereira?
— Eu não sei o nome dele. Só quero saber se é ele. Lembra? A Pati falou que os pais eram amigos... Será esse?
— E como vou saber? Tá! Vou perguntar... Tá! — e Melissa desligou.
— Era o Dudu?
— Não, né mãe? Se fosse ele ligava no meu cel.
— Seu celular está comigo.
— Pra cê vê...
Sandra se virou para ir embora.
— Era o professor de música da Pati — correu Melissa a emendar. — Ele tá tão chateado, coitado.
— Mais um namorado? — parou de andar.
— Chiii mãe, que coisa feia.
— A sua amiga já namorou meia cidade, e eu sou a coisa feia?
— A Pati é carente, mãe. Só isso.
— Sem-vergonhice mudou de nome?
— Chiii! — e se foi.
O juiz encarregado iria decidir o destino de Patrícia que tomava calmante. Nem a polícia, nem os amigos sabiam onde estava a tia dela. Patrícia estava dormindo no quarto de
Mariana enquanto Mariana estava no quarto de Melissa.
As irmãs Jung dormiam juntas desde a morte do pai de Patrícia.
E Melissa não entendia o que Patrícia fazia para ocupar o tempo. Não lia, não assistia televisão, não ia à escola. Não queria mais se arrumar, nem tomar banho. Vivia abandonada
arrastando-se pela casa da amiga. Também não queria de jeito nenhum falar sobre a tia. O pai de Melissa, Paulo Jung, insistiu com ela. Estava preocupado com a menina, órfã.
Mas nada a fazia falar.
Melissa aproveitou o silêncio no apartamento. Entrou e encarou Mariana.
— O Dudu tá com problemas. Vou te contar tudo e você vai me provar que cresceu Ok?
Mariana levou um susto.
Ficou mais assustada depois que ouviu o relato da irmã.
Capítulo 7
O Sol mal raiou e a polícia agira como o esperado. Colocou, discretamente, na frente de cada portão do condomínio, um carro com dois homens vestindo roupas civis. Eduardo
não foi à aula naquele dia. Patrícia também não.
Na bem a verdade, Patrícia não tinha mais ânimo para nada. Seu caso havia sido encaminhado para o Juizado de Menores, e a juíza responsável designou que, na falta da tia que
não conseguia ser localizada, ou ainda na falta de qualquer parente vivo, com condições para criá-la, a Corregedoria do Menor tomaria sua tutela e elegeria uma tutora fixa.
Patrícia corria o risco de estudar em um colégio interno.
Aliás, era o que sua mãe vinha tentando fazer. Era do gosto de Cibele Garcia de Moura que sua filha única estudasse na Suíça, numa renomada escola para moças, e de lá saísse
com a Faculdade de Administração, concluída.
Depois de muito custo, Melissa conseguiu o nome do ex-namorado da amiga. Patrícia não queria se lembrar dele e nem que seus pais haviam sido grandes amigos no passado. Melissa,
por sua vez, queria muito mais. Pediu uma ficha completa. Patrícia andava tão desligada da realidade que, no final das contas, acabou por responder sem contestar.
Fernando, Mariana e Melissa foram para a escola que ficava a dois quarteirões do Condomínio Jardim das Flores. Dava para ir a pé e numa corrida, chegava-se em lá em cinco
minutos. As aulas se desenvolviam, normalmente; era período de provas bimestrais. Mas Mariana estava avisada, iria mentir sobre uma repentina gripe de Melissa.
A assinatura da mãe, facilmente copiada pelas duas, foi arranjada em um bilhete falso. O diretor da escola estava tão consternado com os últimos acontecimentos que não ligou
para confirmar. Acreditou ter sido uma fraqueza de saúde da menina depois daquela noite fatídica.
Melissa estava livre para agir.
O portão da escola fechou e Melissa estava fora. Ela olhou para os lados. Tentou ver se a mãe não estava mais por lá, pois costumava parar para conversar com as amigas. Mas
a rua estava deserta. Só os carros estacionados e um homem ao lado de um carro branco, na última vaga do estacionamento, em frente ao portão da Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
Melissa respirou, profundamente, e tomou coragem. Seguiu à risca o pedido de Eduardo. Foi atrás do ex-namorado de Patrícia; um deles, como dizia sua mãe.
Carlos Alberto era um jovem de cabelos avermelhados e muitas sardas no rosto. Era o terceiro filho do respeitado desembargador Sílvio Pereira. Estudava direito no Largo São
Francisco e fazia esportes no campus da USP. Reconheceu Melissa quando esta se aproximou.
— Oi! Te conheço, não?
— Sim! Eu sou Melissa, amiga da Patrícia.
— Tudo bem? Como vai a Pati? Eu li nos jornais o que aconteceu. Puxa! Fiquei sem jeito de telefonar pra ela.
— Tudo bem! Tá todo mundo sentindo isso.
— Você entrou pra universidade? — olhou Carlos Alberto em volta, meio na dúvida.
— Não... Na verdade vim falar com você. Eu sabia que costumava vir ao campus.
— Olha, é muito chato, meu, mas não vou falar com a Pati, se é isso. Sabe, a gente terminou tudo muito mal. Ela ficou com ódio de mim por causa...
— É! — Melissa cortou sua fala. — Foi duro pra ela que soube que você tava namorando duas ao mesmo tempo... Mas não é isso que eu quero.
— Não é?
— Sabe, é até uma coisa meio estranha. Tenho um amigo que tá com problemas, ele não quer e nem pode pagar um advogado. Queria falar com você. Pode ser?
— Sei não, meu! Tô no sexto semestre. Não posso falar muita coisa. Sabe, é meio complicado — sorriu; era alto e forte, do tipo que chama atenção.
— Qualquer coisa será bem-vinda — sorriu Melissa.
— Tudo bem. Quer que eu ligue quando?
— Agora! — e esticou o celular emprestado de uma amiga. — Dá pra ser?
O estudante de direito sorriu assustado. Melissa ligou o número desejado e entregou o aparelho para o futuro advogado.
O celular de Eduardo tocou.
— Alô? Oi! Você é o Carlos Alberto? Ulalá! A Mel é terrível mesmo. Ela te encontrou.
— É, parece que sim. O quer de mim?
— Queria penetrar no sistema de computadores do Judiciário.
O cara ficou vermelho. Foi à impressão que Melissa teve.
— Quer o quê?
— Preciso ler algo sobre um processo antes que ele suma de vez em Brasília.
— Brasília? Quer dizer... Brasília? A federal?
— Temos outra?
— Cê tá me gozando, meu?
— Pareço estar?
— Tem algo haver com a Pati? — arqueou as sobrancelhas.
— E se tiver?
Carlos Alberto demorou a responder.
— Não sei como penetrar...
— Só tem que estar lá na hora certa, e eu aqui, na mesma hora. Entendeu, não?
— Meu! Tu é hacker?
— Não. Ainda não. Mas tô ficando bom.
— Meu! Isso é ilegal. Meu pai me mata se sabe. Sei não! Acho que nem pela Pati...
— Não vai fazer nada. É só abrir o canal pra eu entrar. E isso só pode ser feito quando alguém abre o arquivo certo, entendeu? Com a senha do teu pai, entendeu? Que eu sei
que dá aula na USP; entendeu?
— Entendi? Meu… Como é? Tenho que tá mexendo no computador da facul com a senha de professor do meu pai, pra você abrir um canal no judiciário? É isso?
— É! Você entendeu! Uma vez a senha do banco de dados do Judiciário aberta você vai sair do modo seguro, pra desligar os firewalls e os antivírus da USP, e aceitar instalar
o B.O., um programa Trojan Horse que eu vou te mandar. Então eu penetro nos arquivos pela porta aberta do teu computador. Rápido! Ninguém vê! Não vou deixar rastro. Juro que
é só isso que vou fazer.
— Não sei, meu! Preciso pensar. Um ‘Cavalo de Tróia’ enviado pela senha do meu...
— Tem três segundos.
— O quê?
— Esgotou o tempo. Você deve isso a Pati que eu sei.
— Você sabe? Cê tá brincando? Isso é piada?
— Piada vai achar teu pai quando eu contar o que você fazia com certas fotos da Pati na Net.
— Tá bem! Tá bem! — ficou furioso. — Não vou querer saber como você sabe, né?
— Não vai! — Eduardo também não estava a fim de contar o que a Patrícia contou para Fernando, que contou a ele. Uma rede de informações para lá de complicada. — Fica frio!
Não vou apagar arquivo algum. Nem copiá-lo. Só vou ler. Isso se chama hackear.
— Tá bom. Pela Pati... — olhou em volta, nervoso —, que tá sofrendo — e Carlos Alberto se afastou de Melissa. — Sei lá onde vai parar isso. Pô, meu, ninguém mais saberá, Ok?
— Ok!
— Esta noite vou fazer pesquisa e... — e olhou para os lados, se afastando cada vez mais.
O pátio do campus da Universidade de São Paulo estava lotado, mas não tinha ninguém por perto para ouvir. Melissa olhava para todos os lados. Estava tensa e apavorada com
as ideias de Eduardo. Tentava ver um rosto conhecido. Alguns carros parados em cima da grama. Umas poucas árvores para fazer sombra e alguns alunos em volta, só observando.
O tal Carlos Alberto desligou o celular. Passou a mão pelo cabelo avermelhado agora molhado de suor, e entregou o aparelho para Melissa se despedindo sem nada comentar. Melissa
ficou sem ouvir o resto da conversa. Ele havia se afastado demais no final.
Melissa guardou o celular na bolsa e correu. Tinha de esperar Mariana na saída da escola e juntas, irem para o portão para esperar a carona da mãe.
Os alunos já estavam saindo quando o ônibus que trouxe Melissa parou e ela saltou um ponto antes da escola. Estava tudo como havia deixado antes. Até mesmo o homem no carro
branco. Quando a mãe aportou, Melissa se juntou a Mariana.
Fernando levou um susto.
— Não tava doente?
— Melhorou — sacaneou Mariana.
— Cala boca, Mari. E você, vê se não dá outro fora, tá, Fê? — pediu Melissa.
— Eu? Fora? Vocês é que me colocaram no rolo. Minha mãe tá furiosa comigo até agora. Não me deixa tirar o carro da garagem e sou obrigado a pegar carona com sua mãe, que me
olha atravessado.
— O olhar dela é assim mesmo, bobinho. Mamãe é estrábica — riu Mariana.
Melissa ia rir, mas se controlou. Fernando nem ligou. Não queria andar a pé.
Os três entraram no carro e partiram para o Condomínio Jardim das Flores.
Capítulo 8
Eduardo deu a última mordida no hambúrguer e fez uma cara de satisfação. Seu pai estava de plantão no hospital e Berenice via novelas enquanto ele navegava pela Internet.
— Sites preferidos... Uhm! Deixe me ver. Últimas risadas do YouTube — músicas e vídeos eram armazenadas enquanto ele ria com a última do bebe engraçadinho ou o tombo fenomenal,
ou ainda os memes de políticos.
E o computador parecia pular ao som do bom e velho Massive Attack enquanto Eduardo olhava o relógio, enquanto cantava junto ao clipe que assistia; estava em seu mundo, os
computadores.
Eduardo perdera a mãe muito cedo. Seu pai se preocupava com sua estabilidade emocional. Criou-o mais como um pai amigo do que como um pai severo. Eduardo adorava o pai, com
o qual tinha toda liberdade do mundo para conversar, pegar a moto de vez em quando, e é claro, falar de garotas. Mas o Dr. João Vitor não conseguia fazer Eduardo estudar.
Isso era pedir demais. Eduardo já estava com dezesseis anos, o mais velho da turma e o mais atrasado, com risco de não mais acompanhar os amigos no Monsenhor Hipólito Ibi
já que fazia o nono ano pela terceira vez. Então quando o filho se interessou pelos computadores aos oito anos, o Dr. João Vitor viu uma possibilidade de alcançá-lo, perdido
no tempo e nos fundamentais da vida.
Incentivou-o a fazer todos os cursos, mas não precisou.
Eduardo era um autodidata.
Ele olhou mais uma vez a hora, tinha marcado com Carlos Alberto às nove horas em ponto. As nove, o futuro advogado acessaria os computadores do Judiciário, uma rede interna
chamada Intranet.
Carlos Alberto então abriu os arquivos enviados por Eduardo, um Trojan horse, um Cavalo de Tróia que permitia total controle do computador onde estivesse instalado. Eduardo
penetrou os arquivos e Carlos Alberto perdeu o controle total do computador da USP para o programa de invasão hacker.
O programa rastreava informações, palavras digitadas pelo computador. As informações confidenciais iam e vinham. Trafegavam pela rede sem que o firewall as brecasse.
Eduardo procurou pela data do assassinato; a hora, as conclusões finais e achou o que queria: o arquivamento do processo feito pelo Juiz de Alçada. Era tudo o que Eduardo
queria ver.
Já Carlos Alberto olhou para os lados. A biblioteca da USP, onde estavam instalados os computadores, estava quase vazia se não por meia dúzia de ‘gatos pingados’, que estudavam
e um ou dois computadores funcionando. Carlos Alberto ficou à espreita, à espera de não ser interrompido.
Ficou lá a ler as mesmas informações.
Eduardo também lia com cuidado. Estranhou o fato de o quarto de Patrícia não ter sido mencionado no inquérito. Entre outras coisas que Eduardo já sabia, estava a carta.
Leu em voz alta, para si mesmo:
— ‘Eu, Senador Blá blá blá, de livre e plena vontade, me mato. Deixo esta carta para minha querida filha, Patrícia, luz da minha existência. Isto é uma despedida. Não fui
capaz de enfrentar o problema. Você precisava saber que sua mãe me traía… Blá blá blá, é o fim. Pequena criatura, ser do meu ser, eu… Blá blá blá Seu pai!’ — Eduardo parou
de ler. — Cruzes! Que coisa macabra! — Eduardo leu mais algumas linhas. O processo descrevia as autópsias; falava que a empregada fora a primeira a morrer. Seguida pelo motorista
e pela mãe de Patrícia. — Como ela pode ter morrido primeiro? De que sangue Maria falava, afinal? — leu mais e mais alguma coisa. — Também não falam que tipo sanguíneo estava
nas paredes... Estranho! — e Eduardo estranhou outro fato. Ninguém tinha averiguado a autenticidade da letra do Senador. — Cruzes! Concordaram com tudo? — fez um bico. — Ok!
Já vi o que queria — e iniciou o processo para liberar a página que estava sob seu controle.
Fechou a conexão com seu provedor de acesso e a conexão não fechou. O computador não respondeu e Eduardo insistiu.
‘FECHAR CONEXÃO’; clicou com o mouse.
O computador não obedeceu. Ainda na tela, o Trojan horse que havia instalado no Judiciário.
— Meu pai do céu! — exclamou nervoso ao ver que seu computador ainda estava on-line, e arrancou o fio de conexão com o modem fazendo a rede cair.
Tentou fechar o programa outra vez.
“COMPUTADOR SEM RESPOSTA”; avisava a tela.
Eduardo chacoalhou a cabeça. Tentou entender o que acontecia. Reconectou o modem e conectou-se ao provedor outra vez. Entrou na Internet, tentando voltar ao Judiciário e apagar
do banco de dados o Trojan Horse. Chamou o site e percebeu que seu programa hacker estava on-line. Eduardo não acreditou no que via, só ele podia comandar tal invasão.
Ou seria um hacker invadindo outro hacker durante o ataque.
— Coisa de cinema… — escapou dele teclando desesperado sem que o computador respondesse. Tentou o mouse, mas também não funcionava. A gaveta do CD-ROM abria e fechava e seu
HD consumia memória; era alguém invadindo seu computador. Sua tela ficou preta. — Ai!!! — gritou. — Mas que saco! Vírus! — arrancou o fio de conexão com o modem outra vez
e tentou resetar a máquina. A tela pirou. Cores foram manchadas, arquivos ficaram em crise, páginas apresentadas pela metade. Eduardo acionou o programa antivírus. Foi rápido.
O Trojan Horse, um tipo de vírus, foi brecado. — Mas que saco! Eu instalo um programa hacker e eles me devolvem o mesmo vírus? Não, não pode ser... — o computador avisou que
o vírus destrutivo foi deletado da máquina. — Cepá! — suspirou. — O que foi isso afinal?
Eduardo entrou em seus próprios arquivos. Deletou de sua memória de arquivamento, o arquivo infectado. Entrou de novo na Internet. Foi até a página do Judiciário.
‘ERRO 404’, o navegador avisou.
‘SITE NÃO ENCONTRADO’.
Eduardo entrou em pânico. Levantou as grossas e negras sobrancelhas e seus olhos castanhos brilharam.
— Fui descoberto! — falou para si mesmo.
Saiu do quarto voando. Atravessou todo o apartamento. Abriu a porta da cozinha e se lançou escada abaixo. Desceu todos os degraus que podia. Estancou na porta da cozinha de
Melissa tocando a campainha desesperadamente.
Sandra deu um pulo do sofá.
— Calma! — pedia ela ao chegar à cozinha após ouvir a campainha disparar. — O que foi...? Ah! É você?
— Pelo meu pai do céu! — e se jogou de joelhos ao chão. — Me deixa falar com a Mel?
Sandra piscou. Ficou sem entender a gracinha de Eduardo.
— Não temos mais telefone ‘professor de musica’?
— Temos, não, quer dizer, tá com problemas. Por favor! Por favor! Por favor! Deixa vê-la — se arrastava de joelhos.
— Eduardo? — fez uma careta. — Ah! Está bem. Mas vou contar para seu pai que não está no seu apartamento após uma recuperação deli…
— Tá! Tá! Tá! — Eduardo não esperou o resto da bronca.
Até quis ter dito ‘Blá! Blá! Blá!’, mas correu para dentro da casa e invadiu o quarto de Melissa.
— Ahhh... — Mariana fez uma espécie de gemido; estava de camisola. Eduardo paralisou. — Ahhh?! — agora gritou mais alto e Eduardo recuou rapidamente.
Fechou a porta.
— Desculpa! — exclamou do lado de fora em choque. Não sabia que Mariana era tão bonita. Bateu na porta outra vez. Estava nervoso que nem viu Melissa atrás dele, de baby-doll.
— Ai! Que susto, Mel... — e paralisou outra vez.
‘Perder a voz’ teria explicado melhor o que aconteceu. Não sabia que as irmãs Jung eram tão bonitas.
Mas dessa vez Eduardo fez mais que ficar paralisado e estudou Melissa. Quase se perdeu em tantas curvas. Voltou estático, nunca tinha visto Melissa sem roupas que lembrassem
algo grande, comprido e preto.
E Melissa usava uma pequena camisola rosa e tinha lindos laços na cabeça.
— Perdeu alguma coisa? — falou irritada.
— Perdi? — respondeu confuso com uma pergunta. — Ulalá! — olhou-a de cima a baixo. — Acho que perdi tempo.
— Do que você tá falando?
Eduardo acordou. Conseguiu nem soube como.
— Eu... — balbuciou. — Vim te contar... — e a puxou para longe, quase no fim do corredor, em frente à porta do quarto dos pais de Melissa. —, fui interceptado.
— Como assim?
— Alguém entrou no meu computador na mesma hora que eu tava lendo a página do Judiciário.
— Como assim?
— Assim, como, Mel? Não tá entendendo? Alguém tava lá, lia o que eu lia, não sei por quê.
— Como alguém podia saber?
— Não sei, cepá, usando cookie, spyware ou até adware pra gravar dados. Isso se não fizeram phishing...
— Chega Dudu! — cortou-o. — Como assim ‘dados’?
— O cookie ou qualquer outro programa adware, spyware, espião entende? Ele pode gravar o IP do meu provedor, minhas preferências de sites, e até senhas. Depois alguns sites
inescrupulosos vendem no mercado essas informações.
— Acha que tavam te vigiando pra vender informações?
— Não sei, não sei — Eduardo divagava. — Devia ter navegado com o anonymizer.
— O anony... o quê? Cruzes! Como você fala complicado, Dudu — sorriu.
— O anonymizer é um aplicativo que faz com você navegue anônimo e ele ‘maqueia’ teu IP — Eduardo suspirou. — Falou pra alguém o que ia fazer? Alguém te ouviu quando tava com
o Carlos Alberto?
— Alguém me seguia, Dudu — apavorou-se Mel. — Um carro branco... Tinha um carro branco no portão da escola quando eu cheguei de manhã, e tenho certeza que era o mesmo carro
que estava em frente da USP. Claro que um carro branco é sempre igual, e tem a tal coincidência, mas... E se não for?
— Tô com medo, Mel. Muito mesmo.
— Boa noite, Herr Eduardo — falou uma voz grossa por trás dos dois.
Eduardo engoliu a fala, Melissa se encolheu para dentro do curto baby-doll e o grande, e loiro, e robusto, e alemão, pai de Melissa e Mariana não estava com cara de bons amigos.
— Oi! Pai! O Dudu veio mostrar que melhorou — apontou.
— É, deu para ver que ele está mesmo muuuito, melhor.
— Eu acho que tá na hora de ir embora. Boa noite, seu Paulo — falou Eduardo sentindo seu estômago embrulhar perante o grande pai das belas mestiças Jung.
— Boa noite — concordou o Engenheiro Paulo Jung.
— Amanhã te vejo na escola?
— Tá bem — falou Melissa, sem graça.
— Até! — insistiu o pai, num aceno.
Eduardo se foi. Agora, com a certeza de que tinha entrado numa enrascada bem pior. Seria escalpelado pelo pai se contasse para ele; seria preso se contasse para o Delegado;
seria morto se não contasse para alguém.
Capítulo 9
— ‘Estranho, é a morte’, falava o poeta. Como se morrêssemos todos os dias — explicava a professora de literatura. — Já pensaram nisso? A morte? A perda? O fim de algo?
A classe estava estática. Mergulhada em pensamentos. Os mais bizarros possíveis.
Melissa pensou duas vezes naquelas palavras. Lembrou-se de Patrícia em sua casa, entupida de calmantes, sem pai nem mãe. Teve pena. Não queria sentir isso. Achava pena um
sentimento muito complicado, nem sempre correto.
— Estranha a morte, o assassino, a perda… — Melissa quase se esquecia de que estava em aula. Nem tudo que era falado assimilava.
Fernando estava mais a frente. Era alto, ele a encobria sempre.
Melissa viu Eduardo no pequeno vidro da porta. Ele a observava, melhor. Era verdade que algo acontecera com ele em relação à Melissa, talvez em relação às duas irmãs. E nunca
havia prestado muito atenção às duas. Mariana era loira de olhos azuis com olhos levemente puxados o que a fazia uma cópia do grande e loiro alemão Paulo. Já Melissa havia
puxado a mãe e a sua família oriental; tinha longos e lisos cabelos negros que enegrecia mais todo mês com xampus tonalizantes, e que ficavam mais escuros com as roupas ‘dark’
que ela usava.
Eduardo até achava Mariana mais bonita, mais feminina, mas Melissa tinha mexido com ele. Sentiu isso como nunca havia sentido antes.
Melissa olhou para o vidro mais uma vez e viu que Eduardo ainda olhava para ela. Levantou a mão, chamando atenção. Demorou em que a professora a visse.
— Posso sair?
— Rápido Melissa, por favor.
— Sim — e saiu. — Oi, Dudu. Não o vi na entrada. Chegou atrasado? — Eduardo não respondia. — O que foi? — insistia ela.
— Por que fez aquilo ontem? — falou confuso, aproximando-se de Melissa.
— Aquilo o quê? — sorriu interessada.
— Se vestiu... diferente.
— Fala do baby-doll? Não tem irmãs, né?
— Não — Eduardo não conseguia entender o magnetismo exercido pela amiga. Melissa começou a falar da aula. Contava sobre a professora de literatura e a dissertação sobre a
morte. Eduardo não ouvia nada se aproximando cada vez mais dela, embarcando no movimento dos lábios de Melissa até tocá-los. Ela arregalou os olhos. Eduardo também. Sentiu
seus lábios presos aos dela e recuou. — Eu…
— Você?
— Des... desculpa. Não sei o que me deu — e Eduardo correu.
Melissa achou que ia desmaiar. Desejou, até. Sorriu satisfeita logo após. O sinal tocou. Os corredores começaram a ser invadidos.
Melissa não conseguia se mover.
— Que delícia — foi só o que falou.
— O que foi tão gostoso? — falou Mariana ao se aproximar.
Fernando chegou também.
— Nada! Tava chupando uma bala.
— Tava roendo unhas, que eu sei.
— Mari... — Melissa girou os olhos. —, você não se cansa?
— Do quê? — perguntou irritada.
— De ser pentelha.
— Pentelha agora, né? Mas ontem bem que te ajudei...
Mas Melissa não ficou lá por muito tempo. Foi atrás de Eduardo, encontrando-o na classe dele.
Ele olhava para o caderno vazio quando foi interrompido.
— O que quis dizer com a tal página ontem?
Eduardo teve um sobressalto. Percebeu que Melissa não tinha comentado nada. Agradeceu calado o fora e o beijo que dera.
— Eu não tenho certeza, sabe... Mas cepá, acho que alguém entrou naquele computador.
— Como assim?
Eduardo suspirou. Sentia-se cansado.
— Eu sei que você não manja nada de computadores, mas esse cara é muito bom. Ele tava lendo tudo o que eu lia, sabia onde eu tava, sabia quem eu era. Não acredito que a página
do Judiciário, tivesse algum mecanismo que explodisse um vírus na hora do acesso, nem que instalasse Trojans nos computadores que rodam na sua Intranet. Mesmo que os dados
fossem tão secretos, sei que é possível... Mas entende? Não acredito que eles fizessem essa caca com os caras.
— Entendi foi nada. Se não foi a própria página, quem?
— Não sei. Pode ser o ladrão...
— Não vai querer que eu acredite que um ladrãozinho entenda de computadores assim, né?
— É esse o ponto. Muito esperto, muito mesmo.
— Vamos comer alguma coisa na lanchonete?
— Não tô com fome. Eu vou pra praia amanhã. Não venho dormindo direito. Meu pai falou que essa semana que passou foi muito desgastante, e que merecemos um final de semana
sossegado.
— É! Tem razão. Vai ser bom — falava ainda em pé, sem ver o rosto de Eduardo, abaixado. — Meu pai vai viajar também. Ele decidiu ir, ele mesmo, ao Espírito Santo, atrás da
tal tia que a Pati falou.
— A Polícia ainda não a achou?
— Não! Estranho, né?
— Cepá. Não sei mais nada. Tô tão confuso... — passou as mãos pela testa suada. — Tá calor aqui — e se levantou, caminhando até a janela.
Melissa percebeu que Eduardo estava sem graça. Outra vez, nada comentou. Nem sabia como fazê-lo. Gostava tanto de Eduardo.
Desde pequenos, Eduardo era seu namorado nas brincadeiras de criança. O tempo passou. Melissa cresceu mais rápido que Eduardo. Ele, por sua vez, continuava um crianção. Melissa
olhava para meninos mais velhos, mas continuava a pensar em Eduardo, o vizinho.
O sinal tocou duas vezes. As aulas recomeçaram.
Melissa havia deixado Eduardo na classe. Ele estava estranho, ela sentiu. Nem saberia mais como puxar assunto.
O resto da manhã não foi diferente. A última aula do dia terminou e eles se preparam para partir. Eduardo ia direto para a praia, com o pai. Foi uma surpresa para ele quando
chegou ao portão da escola, e a empregada Berenice já esperava no carro, com a mala pronta.
Melissa o viu de longe. Quis se despedir, mas ficou sem graça. Aquele projeto de beijo a deixou balançada. A mãe dela também já esperava no portão. Iam dar carona a Fernando,
que reclamava um bocado.
Mariana entrou primeira no carro. Foi atrás com Fernando, que entrou logo em seguida. Melissa entrou na frente. Arrumou o cinto, jogou os cadernos para trás e o viu. Não queria
ter visto, mas o viu; o mesmo carro branco, o mesmo homem de óculos escuros, na mesma posição. Voltou para frente apavorada. Perdeu a cor. Tentou disfarçar.
A mãe arrancou.
O carro de Eduardo ainda estava na frente, parado no sinal fechado.
“Grito ou não grito?”, desesperava-se Melissa.
Eduardo não percebia nada. Dr. João Vitor, ao volante, olhou para o lado. Viu Sandra, sua vizinha, à sua esquerda. Cumprimentou-a com um aceno de cabeça. Depois olhou a filha
dela, Melissa; ela se espremia no vidro.
Estava roxa de tanto que se agitava.
— A Melissa está bem? — perguntou o pai de Eduardo.
Eduardo olhou para o lado. Seguiu o movimento do pai. Viu Melissa apontando para trás, fazendo mímica com as mãos. Imitava um carro, um homem, óculos no rosto. Eduardo olhou
para trás. Só teve tempo de ver a cor do cabelo do homem que entrava no carro branco, o único ainda estacionado na frente da escola.
Era vermelho, cor de fogo.
Capítulo 10
Melissa insistiu tanto que a empregada de Fernando acabou cedendo; Amália deu a ela o número do telefone da casa da praia de Eduardo. Melissa também sabia que Eduardo estava
sem celular. Não conseguia mesmo entender como podiam viver sem aqueles aparelhos.
O telefone tocou. Dr. João Vitor atendeu. Melissa desligou. Deu um tempo e tocou de novo. Outra vez o Dr. João Vitor atendeu, e outra vez levou o telefone na cara.
Na terceira tentativa, Berenice atendeu.
— Quem? Dudu? Tá! Vou chamar.
Dr. João Vitor ficou curioso. Queria saber quem desligava na cara dele já que não reconheceu de imediato o número gravado no identificador de chamadas.
Pensou duas vezes e cedeu à tentação ficando a escutar na extensão.
— Alô! — falou Eduardo.
— Dudu? É Mel.
— Mel? Como sabia meu número da praia?
— A empregada do Fê deu pra Berê que me deu. Não conta pro teu pai. Eu desliguei na cara dele.
— Por quê?
— Não queria que ele soubesse.
— Ah! Então tá.
— Me explica melhor sobre a carta... Você leu?
— Sim. O Senador se despedia, apenas. Sei lá. Coisa esquisita. Não parecia um cara louco que ia matar até os empregados.
Os dois ficaram em silêncio. Alguns segundos correram.
— Entendeu o que eu queria naquela hora, no carro, no portão da escola?
— Ulalá! Achei que você tava se transformando num monstro espacial. Toda de preto, pra variar.
Mas Melissa não ligou para as gracinhas de Eduardo.
— Viu o cara?
— Meu pai achou que você tava doente — riu. — Tá! Tá bom! Eu vi. O ruivo, né?
— Sim.
— Vi. Quem era?
— Era ele. O mesmo homem do carro branco.
— Mas o cara deve ser namorado ou amigo de alguém. Já faz tempo que ele vai à escola.
— Desde quando?
— Deixa ver... Cepá, já o vi algumas vezes por lá. Foi... Já lembrei! O cara tava com a Pati.
Um silêncio se instalou. Nenhum dos dois conseguiu mais falar.
Melissa quebrou o silêncio.
— Com a Pati?
— Será o tal que te seguiu? Tem certeza que ele tava na USP? — perguntou Eduardo.
— Muita certeza, não. Mas ele tava no colégio. Na ida e na volta.
— Cepá, tenha levado alguém e ido lá buscar.
— Mas não falou que ele tava com a Pati?
— Pô, Mel. Falei que vi os dois conversando, uma vez, não me lembro de quando. A gata também não namora tudo que vê pela frente, eu acho.
— Como era o ladrão, Dudu? — insistia Mel.
— Como vou saber? Não vi.
— Mas você não falou que viu?
O pai de Eduardo teve um sobressalto na escuta. Aquela palavra o balançou de vez. Desligou o telefone. Um pequeno estalo se fez no aparelho.
Eduardo se assustou.
— Mel? Alguém tá escutando?
— Não sei. Acho que aqui, não.
Eduardo ia falar. Só enxergou os chinelos do pai refletidos no piso ladrilhado da cozinha.
— Acho que temos que ter uma conversa, Eduardo. Adulta, de preferência — o médico viu Eduardo desligar na cara de Melissa, sentindo que o chão se abrira, a terra tremera.
O Dr. João Vitor tirou o telefone do gancho, e foram os dois para o quarto dele. — Vai me contar tudo? — perguntou logo ao fechar da porta.
— Não tenho nada pra contar, pai. Juro!
— Agora deu para jurar em vão?
— Não...
— Pensei que fôssemos amigos?
— Somos amigos, pai. Somos sim. Mas não tenho nada pra falar. Nada que possa falar, eu acho — espremeu o rosto.
— Está com problemas? Drogas?
— Não, pai. Não faria isso comigo, nem com você, nem pela memória da mamãe. Sei como ela sofria por ver o primo Tadeu, sempre com os olhos vermelhos, e como ela e a tia Bia
ficavam.
— Bom! Muito bom mesmo. Isso só vai te levar a uma porta sem saída.
— Não, pai. Não tem nada haver com drogas.
— Mas gosta de fumar, não é?
— De vez em quando... — Eduardo riu.
— Então, quando quiser fumar, por mais que isso lhe faça mal ao pulmão, porque faz, porque dá câncer, porque para teu coração cara, mas faça com o meu consentimento. Peça-me
dinheiro. Não aceite cigarro de ninguém.
— Eu já sei pai. Você me fala isso desde os 10 anos — falava ao balançar a cabeça.
— É para o seu próprio bem.
— Eu sei pai. Só não gosto de ficar escutando o tempo todo o que já sei pai.
— Ok, então. Se tiver realmente problemas lembre-se, Eduardo, só eu posso ser seu amigo.
— Tá bem — ia saindo.
— Eduardo?
— Que é?
— Esqueça essa história de ladrão. Não houve nenhum. Foi brincadeira de criança, aqueles dardos. Garanto que será para seu próprio bem.
— Mas e se realmente havia um ladrão? E se foi ele quem matou a mulher? E se foi ele quem tentou me dopar?
— A polícia cuida disso.
— Tem tanta certeza, pai? Tomara que sim — e saiu do quarto. — Afinal, sou eu quem corro os riscos — falou para consigo.
Mas o Dr. João Vitor não tinha tanta certeza assim. Sentia no ar a mesma insegurança de Eduardo. Observou-o pela janela do quarto. Viu o filho sair da casa e andar pela praia
e ligou para o Delegado José Liberato.
Confiava nele.
— Delega… — perguntou o policial Rocha, seu ajudante, do outro lado da sala. —, o telefone tocou, não ouviu?
— Não… — respondeu atordoado. Há muito tempo não conseguia se concentrar no trabalho, no trânsito, no que fosse. Sua mulher vinha estranhando suas atitudes. Andava disperso.
Não ouvia direito o que ela falava. Falava sozinho. Ele, tão prestativo, tão minucioso, tão dedicado. — Quem é? — perguntou enfim.
— É o tal Doutor, pai daquele menino.
— Ajudou bastante, Rocha — sorriu morno. — Consegui localizá-lo na minha memória.
— Desculpa, delega. É o pai do menino, lá do assassinato do Senador.
O Delegado se ligou.
— Passa a ligação.
— Tá bem — e Rocha saiu.
— Alô? Dr. João Vitor?
— Boa tarde, Delegado. Poderia conversar com o Senhor pessoalmente? Não gosto de falar ao telefone.
— Está me assustando, Doutor.
— É importante. Estou na praia e volto amanhã para São Paulo. Gostaria que fosse ao meu consultório pela manhã. Sei que é domingo, mas é realmente muito importante. Além do
mais, não me sinto muito à vontade na delegacia.
— Ninguém, Doutor, pode acreditar. Nem eu. Mas está bem. As dez; pode ser?
— Está ótimo. Aguardo. Um bom final de sábado. E obrigado! — desligou. — Berenice? — chamou-a. — Prepare as malas. Vamos voltar amanhã de manhã, bem cedo.
— Eu, hein... Mal chegamos — pensou em voz alta.
Amanheceu um dia frio e chuvoso. Foi a desculpa que o Dr. João Vitor encontrou para subir mais cedo. Chegou atrasado ao consultório por causa do trânsito.
Antes deixou o filho e a empregada em casa.
O Delegado José Liberato estava esperando na porta do consultório. Era uma clínica que pertencia ao Dr. João Vitor e mais dois amigos médicos, um deles Dr. Alfredo, clínico
geral.
Não havia ninguém fazendo plantão naquele domingo.
— Oh! Desculpe o atraso. A estrada estava uma loucura por causa da chuva — e entrou.
— São Paulo também consegue ter trânsito até aos domingos — o seguiu.
— Sim, basta chover. Sente-se, por favor. Aceita um café solúvel? Não tenho nada mais a oferecer. Minha enfermeira é quem faz o café.
— Não se incomode. Quero saber o que faço aqui num domingo de chuva.
— Meu filho disse à amiguinha, pelo telefone, que estão sendo observados. Um cara ruivo dentro de carro branco no portão da escola. Muito antes do assassinato.
— Estão sendo seguidos?
— Não sei. O que me preocupa é que eles ainda insistem no assunto do ladrão. Sei que não vou arrancar de Eduardo nada que ele não queira realmente contar, mas tenho certeza
de que há algo muito maior.
— Está falando do quê?
— O ouvi falar que leu a carta do Senador. Pergunto-me... Como poderia?
— Não sei. Ninguém teve acesso a ela.
— Pois é. Passei ontem, a noite inteira, a pensar como.
O Delegado nada falou. Seus olhos arregalados encaravam o carpete do consultório. Coçou a cabeça. Tentou falar duas vezes. Não conseguiu. Tentou outra vez:
— Estou com alguns problemas, Dr. João Vitor. Sabe... Está acontecendo alguma coisa dentro daquela delegacia. Posso pressentir. São buchichos, informações atravessadas, pequenas
fofocas lá dentro. A verdade é que não consegui ver a carta depois que foi levada para a delegacia — levantou-se dando voltas em torno da cadeira.
— Não a leu naquela noite?
— Sim. Ler, eu li, mas achei que depois pudesse lê-la com calma, compreende? E o depoimento que fiz com as meninas, depois que Eduardo me contou a verdade, teve que ser feito
na presença da dona Sandra. Já havia passado um tempo, as informações pareciam ‘meio’ esquecidas, confusas. Dona Sandra estava nervosa, e isso atrapalhou. Não sei realmente
o que a menina Patrícia ouviu a empregada gritar no telefone. Suas informações não batiam com a da menina Melissa — o Delegado falava e andava pela sala. De repente sentou-se
e recomeçou a falar. — A carta saiu das minhas mãos, no dia seguinte ao do assassinato, direto para o Poder Judiciário. Gostaria de ter passado a carta para um perito em caligrafia,
amigo meu, para verificar a autenticidade da letra do Senador. Depois, ninguém me autorizou a retirá-la. Está arquivada, é o que sei.
— O que quer dizer?
— Já me perguntei. Sabe, tenho me feito muitas perguntas. Outra questão é a morte dos empregados...
— Acha que devo forçar Eduardo a falar?
— Não sei. Ele poderia mentir e acabar por confundir mais ainda.
— Eu... Não sei se devo falar. É uma coisa que aconteceu — sorriu sem graça. — A Berenice, minha empregada, reclamou um bocado — sorriu outra vez. O Dr. João Vitor também
não conseguia se comunicar como devia. — Vou explicar melhor. Quando o zelador, o seu Almeida, me ligou dizendo que Eduardo estava caído no meio do jardim, em frente ao salão
de festas do nosso bloco, aconselhei-o a levar Eduardo para o quarto dele, pois era mais perto. Quando eu cheguei, ele já estava sendo tratado pela Berê. Santa Berenice! —
jogou as mãos para o alto. — Ela reclama assim mesmo. É dela, eu sei. Berenice falou que Eduardo era irresponsável e estava todo molhado. Ele estava com os lábios roxos e
fiquei muito assustado ao vê-lo. Eduardo não respondia a um estímulo psicotrópico — e explicou. —, que é uma cápsula a base de amônia que estouramos próximo às narinas para
forçar uma pessoa a acordar. Sabe como é... Não podemos medicar ninguém sem saber se está ou não em coma. Eduardo não respondia. Estava sob efeito de algo muito forte. Fiquei
com o coração na mão. Minha cunhada, Bia, sofreu muito com meu sobrinho, que era viciado. O menino morreu por overdose.
— Sinto muito! — exclamou o Delegado consternado. — Essa juventude... Não sei, não... — divagou.
— É! Foi um baque. Mas o Eduardo estava sob ação de tranquilizantes. Chamei meu amigo farmacologista que me assegurou. Foi dos mais pesados, não sei por que alguém faria isso
— ao dizer isso, o Dr. João Vitor olhou para os lados. Procurou com os olhos a mãe de Eduardo nas fotos. — Mas não é esse o ponto. Eduardo tinha cacos de vidro enterrados
no tênis. Veja! — levantou-se para tirar do armário o tênis que o filho usava no dia do ataque. — Eu trouxe para cá com medo que Berenice tentasse limpá-lo. O tênis era novo,
como pode notar. Berenice ia reclamar; cuida de Eduardo como um filho. A mãe dele teve uma parada cardíaca nos braços dela e faleceu. Ela se acha responsável por ele.
O Delegado observou o tênis de Eduardo enquanto Dr. João Vitor desenterrava o passado.
— São cacos de vidros blindados?
— Exatamente! Não achei nenhuma vidraça quebrada, nenhum caco de vidro no jardim que houvesse sido retirado dali de perto. Mas, se olhar para cima, Delegado, muito para cima,
mesmo, vai ver a sacada envidraçada do Senador. Eu subi até lá. Não pude entrar por causa da faixa na porta da entrada social. Mas a porta de serviço estava com a faixa forçada.
— O quê? E o policial que coloquei lá?
— Colocou-o no portão de entrada, se bem me lembro. Acho que ele nunca subiu.
— É! É, verdade! Que loucura a minha. Estou tão confuso. Não entendo por que não posso mexer nesses documentos. Bem... Compreenda Dr. João Vitor, o caso foi arquivado, e a
menos que consiga uma liminar do Juiz, não posso reabrir o caso. E sem reabri-lo, não posso levantar questões. Tenho que ter provas, Doutor.
— Se entrar lá, vai ver o vidro quebrado, Delegado. Alguém atirou aqueles dardos no meu filho, da sacada envidraçada da cobertura do Senador e a quebrou. Isso não é uma prova?
O Delegado arregalou os olhos.
Foi só isso que conseguiu fazer até sair do consultório do Dr. João Vitor Ferreira, que nada mais tinha a acrescentar.
Capítulo 11
A Polícia nem sempre era compreendida. Nem tampouco usava métodos convencionais. Era cada um por si, à sua maneira. O Delegado José Liberato era um homem metódico. Daqueles
que podem até se entregar aos anos que passam e criar uma barriga saliente, mas que nunca perdem a sua técnica.
Ao contrário, aprimoram-na.
Respeitado por todos com quem trabalhava, trazia uma imagem de homem perfeccionista. Temido, porém honesto. Aos 60 anos de idade, o Delegado, casado, não tinha filhos. Eles
até fizeram falta, mas o trabalho sempre fora prioridade. E aquele caso, envolvendo jovens, o perturbava. Dizia sempre à esposa que ‘quando crianças, jovens almas, estão em
jogo, poderiam ser nossos filhos’. E esse caso não era diferente. José Liberato estava muito envolvido.
Preocupava-se com a segurança dos cinco amigos.
Havia dado uma maior atenção àquela garota que tinha ficado órfã. Não conseguia encontrar a tia, e isso o deixava descontrolado. Não conseguia provas de que houvesse um ladrão
na cobertura na hora dos assassinatos. Não encontrou nada nem ninguém que tivesse visto aqueles dardos apesar de confirmada a invasão à cobertura lacrada. Isso também o descontrolava.
Mas havia outra ponta naquele novelo, um fio da meada que se desenrolava desenfreadamente ladeira abaixo, e ele precisava retomar esse fio, esse fio da meada de um grande
novelo que lhe dizia que um estranho no portão da escola levava a algo maior: drogas.
José Liberato estava lá parado, discretamente, junto a seu fiel ajudante, o policial Rocha. Os dois observavam o carro branco. Ele parecia mais pontual que alunos e professores.
Chegava sempre antes deles e estacionava, como sempre, na última vaga do estacionamento em frente à Escola Monsenhor Hipólito Ibi.
O Delegado José Liberato acompanhava a entrada dos alunos. Disfarçou quando o pai do Eduardo o deixou na escola. Estranhou Fernando que chegava a pé. Patrícia de Moura era
de se esperar que faltasse, mas não entendeu por que as meninas Jung não apareceram. Chamou seus oficiais pelo comunicador do rádio; comunicou-se com a central. Era experiente
e inteligente. Pediu reforço. Viu o que realmente aquele cara, alto e ruivo, vinha fazer na escola.
Estava traficando drogas para os alunos.
José Liberato viu um ou dois atravessarem a rua e discretamente, comprar pacotinhos. Imaginou o que continham. Agora tinha de provar.
— Ponto de venda — resmungou baixinho. — E os pais achando ser seguro, o ‘lar’ escolar.
— Em frente à escola e nem tão nem aí? Esses caras perderam o medo, delega. Já não escondem o que fazem. Vê se pode!
— Por muito pouco tempo, Rocha. O dia final dele chegou.
O Delegado José Liberato havia dado uma ordem especifica: três de seus policiais, de preferência jovens, deveriam entrar pelo portão lateral da escola, vestidos com o uniforme
da escola, atravessar a rua e comprar drogas.
— Eles já chegaram, delega.
José Liberato ergueu o cavanhaque.
— Vamos esperar! — ordenou.
A escola silenciava. Todos os alunos já haviam entrado. O ruivo se preparava para ir embora.
— Hei?! — gritou um jovem bonito, usando camiseta da escola, jeans e tênis último modelo. — O Joca me falou que tem entradas pro jogo de futebol!
— Quem é Joca? — assustou-se o ruivo.
— Joca Andrade! Ele me passou a dica...
— Ah! Quantas ‘entradas’ quer? — perguntou desconfiado, olhando os outros dois rapazes atrás do primeiro.
— Sei lá, cara, bastante. Tô a fim de assistir a uma boa jogada — riu ao gingar os quadris e olhar para os dois amigos.
Os três riram, pareciam já muito embalados, numa alegria peculiar.
O ruivo prosseguiu sério. Olhou para os lados; não viu nada.
— Não é muito normal, sabe? Sempre trago certa quantia... — e olhou o garoto de cima a baixo.
O falso estudante, policial Fabrício Bernardes, mostrou cinco notas. Eram todas de valor muito alto. O ruivo sorriu. Aquela linguagem ele conhecia. Entrou no carro. Abriu
uma sacola de nylon. Dessas que os esportistas usam. Tirou de dentro uma caixa de acrílico. Guardou as cinco notas de dinheiro. Abriu uma parte da sacola. O zíper atravessou
toda a sua extensão. Tirou de dentro dois papelotes. Era a quantidade que dava para aquelas notas pagarem. Saiu do carro e entregou o material.
Olhou para trás de Fabrício e só viu um dos amigos.
— Cadê o outro? — perguntou.
Foi só isso que fez. Uma arma calibre .32 estacionava na sua têmpora.
— Está preso! — anunciou Fabrício. — Por porte e tráfico de drogas! E por vender para jovens, sua prisão é inafiançável.
O ruivo ia falar. O Delegado José Liberato apareceu.
— Seja bem-vindo a dura realidade! — sorriu cínico. — Levem-no! Cuidarei pessoalmente do caso na delegacia.
Fabrício mandou os dois ajudantes levarem o ruivo. Rocha acompanhou-os.
— Fabrício? — e José Liberato chamou o rapaz que se preparava para entrar no carro branco e levá-lo para a delegacia.
— Sim, Doutor Delegado?
— Preciso de uma ajuda sua. Pode ser? Extraoficialmente?
Fabrício Bernardes se esticou todo. Há anos que ouvia seu pai, grande advogado criminalista, falar do Delegado José Liberato. Seu sonho passou a ser acompanhá-lo após se formar
em Direito. Quando a oportunidade de pegar um traficante apareceu de manhã, por ordem do Delegado José Liberato, ofereceu-se imediatamente.
Era a chance de estar mais próximo de seu ídolo.
— Claro! — sorriu o loiro e jovem policial de 22 anos.
Com sua aparência juvenil e saudável, passava por 16 anos brincando. Era sempre chamado para investigações que requeriam juventude.
— Sabe... Não precisa que faça amizade com a menina, apenas vigie cada um de seus passos, e se for necessário, tente entrar naquela turma. Ela se chama Patrícia de Moura.
— A filha do Senador assassinado? — assustou-se. — Há um boato na delegacia.
— Eu sei — respondeu cansado. —, ninguém fala sobre o assassinato.
— Isso mesmo. Tem certeza que quer isso mesmo, Delegado?
— Posso confiar em você?
— Claro! — respondeu com brilho nos olhos.
— Quero que alugue um apartamento no mesmo prédio daquela turma. Vou conversar com um dos proprietários; descobri certas falcatruas dele. Acho que não vai ser difícil um desconto
— riu. Ficou observando o jovem policial. — Vou falar mais sobre esses cinco amigos para você, lá na delegacia. Quero que se aproxime dela, mas discretamente.
— Está bem — e se preparou para ir embora mais uma vez.
— Mais uma coisa — José Liberato viu Fabrício voltar a olhá-lo. — Na primeira oportunidade, entre na cobertura do Senador. Quero que faça uma limpa lá dentro. Quero saber
quem está entrando lá. Tenho a impressão de que é a tal Patrícia mesmo, mas não imagino o que vai fazer lá tantas vezes — falou o Delegado, agora dispensando Fabrício.
O rapaz, porém, não foi. Ficou a pensar se deveria perguntar ou não.
Votou pelo sim.
— Delegado? — chamou-o.
— Sim?
— Por quê?
— Porque cinco jovens correm perigo de vida. Preciso falar mais?
— Não! É claro, que não!
Capítulo 12
— Mãe? — chamou Mariana. — O avião chegou. O papai não tá nele.
— Como não está? — falou Sandra, furiosa.
— Não desceu.
— Você não prestou atenção — e afastou Mariana para trás a fim de olhar ela mesma.
— Ah, é? Não reconheço mais meu pai?
— Falei que não prestou atenção — Sandra estranhou. Seu marido, o engenheiro Dr. Paulo Jung, havia ligado pela manhã dizendo que partiria naquele voo. — Por favor, Senhorita
— questionou para a comissária de terra. — Aquele era o voo vindo do Espírito Santo? — apontou para a janela.
— Sim, acabou de aterrissar.
— Obrigada — mas na dúvida, chamou o marido pelo celular. Ele atendeu. — Onde você está?
— Nossa! Tentei ligar, mas essas linhas celulares e nada são a mesma coisa. Não consegui embarcar.
— O que houve?
— Não sei. Comprei a passagem e meu nome, na última hora, ficou para o voo das quatro horas da tarde. Esses terminais...
— Voo da tarde? E agora? Não consegue outro?
— Não! Estão todos lotados. Vá para casa e eu pego um táxi quando chegar a São Paulo, Ok?
— Está bem... Que jeito! Depois de enfrentar um trânsito de segunda-feira, tudo bem.
— Oh, meine Liebe Sandra! Não tenho culpa. Não fui eu quem trocou meu nome de voo.
— Está bem. A Mariana está comigo. Vamos até em casa pegar as outras meninas para ir à escola. Elas já perderam a primeira aula e vão perder a segunda. Entrarão na terceira.
— Está bem — e o engenheiro desligou.
— Vamos, Mariana. Seu pai perdeu o voo. Só conseguirá chegar de tarde. Não vou ficar até às quatro horas esperando — falou, enciumada com a repentina mudança de horários dos
voos.
— Nossa mãe. Mas ele não confirmou?
— Deixa para lá. Quer ver que seu pai gostou de ficar por lá. Vamos embora. Ainda preciso passar no supermercado. Temos mais quilômetros de congestionamento até em casa.
Mariana acompanhava a mãe. Estava triste pela demora do pai. Chegaram até o estacionamento.
— Hei?! — gritou Sandra e correu.
— Mãe?! — correu atrás dela. Corriam como loucas pelo estacionamento do aeroporto. Sandra na frente, sendo seguida por Mariana. — Mãe?! — gritava Mariana em disparada. — O
que aconteceu? — questionou ao chegar ao carro.
— Um moleque... Mexendo no carro.
— Mãe! Que perigo! Papai já falou que não se deve enfrentar os trombadinhas. Já não falou?
Sandra não prestava atenção.
— Ele estava mexendo no carro — divagou. — Vamos embora. A vida está sem segurança, mesmo — e entrou no carro.
Mas Sandra derrapou na primeira curva, ao sair do estacionamento.
— Mãe?
— Está tudo bem... — o volante travou por um instante. — Ou não...
— Ou não?
— Ouviu esse barulho? — perguntou assustada.
— Não sei. Vamos, mãe. Vou perder todas as aulas.
Sandra continuou a guiar apesar de ainda estar impressionada.
— Seu pai falou que o nome dele foi trocado de voo. Liga para casa. Avisa tua irmã e a Patrícia que vamos pegá-las para ir à escola.
Mariana obedeceu. Começou a discar. Olhou para o lado. O carro verde estava muito próximo.
— Mãe?! — gritou Mariana.
O carro encostou-se à lateral de Sandra que puxou o volante para o lado. E quase não conseguiu fazê-lo porque a direção hidráulica travou outra vez.
— Está dura!
— Mãe! — desesperava-se Mariana. — Ele tá encostando outra vez!
— Por que isso?! — perguntava-se Sandra aos gritos.
— Mãe?! — e o carro foi atingido de novo.
Sandra perdeu o controle. Subiu em cima do canteiro que separava as duas pistas. Caiu na contramão. Bateu em dois carros. Rodopiou na pista. Subiu na calçada oposta. Riscou
a parede. Perdeu toda a lateral esquerda do carro. Pisou no freio. Mais dois carros vinham na sua direção e chocaram-se.
Sandra não controlava o carro com a direção travada.
— Meu Deus!!! — gritava desesperada.
O carro trepidou sobre os olhos de gato. Girou outra vez. Subiu e desceu da ilha de separação. Girou 360 graus. Subiu outra vez. Bateu no poste.
As duas foram lançadas para frente.
Os air-bags, porém, dispararam.
Foram salvas Sandra e Mariana.
Capítulo 13
— Nossa que demora! — reclamava Melissa. — O celular da mamãe tá ocupado. Deve ser a Mariana. Ahhh! E quando eu gasto toda bateria ela não empresta o dela pra mim, né? — Melissa
não parava de reclamar. — Anda Pati, você não pode faltar mais na escola.
— Não me torra, Mel.
— Não te torra? Aquela Juíza vai te mandar pra Suíça se não mostrar a ela que pode ficar aqui e estudar, né?
— Não quero saber de nada. Hoje não tô pra conversa.
— Pati, você tem a vida toda pela frente. O que vai fazer?
— Ainda não sei. Não tô a fim de falar nisso.
— Chiii Pati, eu sei que é difícil, tá difícil até de falar, mas teus pais morreram você não. Vamos sair... Dar uma volta, sei lá.
— Quero ficar em casa.
— Fazendo o quê?
— Nada!
— Como nada? Onde você tava ontem quando eu te procurei? Achei que tava dormindo, revirei a casa e não te achei.
— Eu... Ãh... Eu desci um pouco — disfarçou. — Seu Paulo falou se achou minha tia?
— A mamãe foi buscá-lo no aeroporto, mas ele não falou nada... Ai! — se contorceu. — Que dor na boca do estômago. Que coisa ruim!
— Que foi Mel? — Patrícia olhou-a assustada.
— Não sei. Uma coisa... Sei lá.
— Acho que você comeu muito bombom ontem.
— É... Pode ser — passou a mão pela barriga. — Vou esperar mais cinco minutos.
— O telefone tá tocando!
— Eu atendo. Alô, Dudu? De onde tá falando?
— Da escola — respondeu do meio do corredor. — E se a orientação nos pega, tamos ferrados.
— E por que tá falando do telefone da escola?
— Não sei, mas a direção mandou recolher todos os cel hoje na entrada. Além do que, o meu tá com meu pai.
E um ruído de gente falando alertou Melissa.
— Quem tá aí com você?
— O Fê. Eu contei pra ele o que tava acontecendo. Pensei que ele ia ter um treco, mas achei que ele precisava participar. Afinal, tá no rolo também.
— Puxa Dudu. O Fê é tão complicado. Nunca soube guardar segredos... Não é arriscado?
Eduardo pensou, mas não respondeu.
Mudou de assunto.
— Por que não vieram pra aula?
— Não sei. Minha mãe falou que ia com a Mari no aeroporto pegar meu pai, e que só íamos perder a primeira aula. Não tô entendendo a demora.
— Meu pai conversou comigo, no sábado. Acha que tô com problemas de drogas. Não pude contar sobre os computadores... Mel? Você tá aí? Mel? Mel?
Melissa estava paralisada. Uma sombra se projetava na porta de seu quarto.
O coração veio à boca.
— Dudu… — falou baixinho.
— Mel? Tudo bem? Que houve? — desesperava-se no meio do corredor da escola. — Mel?
— Tem alguém...
— Quê?! Mel?! — gritou para a linha que caiu.
Melissa colocou o telefone no gancho, suavemente. Ficou paralisada. A sombra era de alguém estranho, podia pressentir. Não tinha empregada. A faxineira não vinha às segundas-feiras.
Mariana era escandalosa demais para entrar em silêncio. Patrícia estava no banheiro.
A sombra se mexeu, parecia se aproximar, parecia se afastar; estava indecisa.
Melissa quis correr e trancar a porta. Teve medo. Não tirava os olhos da sombra. A sombra dava voltas mexendo em algo. Patrícia acabava de entrar no chuveiro e Melissa ouviu
o barulho. Viu-se sozinha.
Sentiu tonturas.
Voltou a olhar para a porta. A sombra havia sumido. Ouviu o som de passos indo para os outros quartos. Melissa ia se arriscar, ia trancar a porta, mas desistiu outra vez.
Ouviu também que o som de passos se encaminhava para o quarto de Mariana, ao lado do seu.
Alguém estava mexendo nas gavetas de Mariana.
Melissa saiu e olhou pela fresta da porta. Pôde ver a mão envolta em luva, mas não o corpo. Recuou sem conseguir falar. Saiu e passou direto pelo quarto de Mariana sem ser
vista, correndo para dentro do quarto dos pais atrás de algum celular há muito desativado, tentando encontrar um com bateria, chip.
— Droga... — soou baixinho quando um dos celulares tocou. Melissa teve um sobressalto.
Os olhos do invasor, dentro da máscara de lã, também brilharam no outro quarto.
Melissa abriu o celular velho que tocava e não acreditou na voz que se seguiu.
— Mel? Tá tudo bem? — Eduardo corria com o celular do faxineiro, após ter invadido as gavetas da diretoria e roubado o celular dele.
— Dudu... — sussurrou ela. — Como tá ligando pra esse número desativado? — olhou o aparelho; era um celular com números fixos, sem chip.
— O Fê tinha arquivado na memória dele. E nem me pergunte como — ria.
— Meu... — e Melissa voltou a ver que era o primeiro celular dela, ganho as doze anos. — Mas como você sabia que...
— Agora não é hora pra explicar, mas o cel do faxineiro é pra lá de bom, tá pegando todos os Wi-Fi sem senha da rua.
— Wi-Fi? Do que tá falando?
— Tô falando que acessei as câmeras do seu pai; droga!
— Câmeras de quem? — ela olhou em volta totalmente atordoada.
— Droga, Mel. Escuta! Seu pai instalou câmeras no seu apê. Eu sabia que ele usava senhas de aniversários em tudo e então acessei — falava ofegante enquanto corria.
Melissa voltou a olhar em volta não acreditando naquilo, que Eduardo podia invadir sua privacidade.
— Você tá louco? Você não...
— Chega Mel. Eu e o Fê tamos correndo até aí. Segura firme.
— Segurar o que?
— Alguém desligou a câmera do quarto da Mari. Acho que tem alguém lá, e que também sabia sobre as câmeras.
Melissa sentiu todo seu corpo arrepiar, cada poro abrir pelo medo.
— Você tá dizendo que alguém mais sabia das câmeras e... — e Melissa desligou no que ouviu Patrícia gritar.
— Mel?! — gritava Patrícia do chuveiro. — Mel?! — gritava sem parar. — Tá me ouvindo?! — e desligou o chuveiro. Patrícia se enrolou numa toalha. Saiu do banheiro e Dudu viu
aquilo pelo cel do faxineiro.
Ligou para o telefone fixo da casa de Melissa para chamar a atenção dos intrusos que se alertaram outra vez.
Patrícia enrolada na toalha se aproximou do telefone e ele parou de tocar.
— Que tá fazendo cara? — perguntou Fernando correndo com toda sua musculatura para lá de estável. — Essa é a minha Pati no chuveiro?
— É! Essa é a ‘sua’ Pati.
— Cê tá...
— Não tô nada Fê. Não encuca tá? Corre! Só corre! — já Eduardo sentia que a goela estava bloqueada pelo coração que parecia bater ali.
Eduardo aumentou o passo para alcançar Fernando que disparou, enquanto Melissa no apartamento viu que a sombra voltou atrás e parou.
Jogou-se no chão tentando enxergar alguma coisa. Viu um par de botas marrom. O invasor colocou a mão na maçaneta. Tentou abrir a porta e Melissa pensou em gritar.
O invasor desistiu.
“Mãe... Mãezinha... Chega...”, pensava em pânico.
O invasor, porém voltou ao quarto de Mariana. Mexia incessantemente nas gavetas. Procurava algo com certeza. Melissa passou pela porta do escritório, foi até a sala. Deu a
volta, aproximou-se da parede do quarto de Mariana e colou o ouvido.
Ouviu o farfalhar de papel sendo tocado, sendo jogado, sendo amassado e destruído.
“Os projetos do papai? No quarto da Mari? Não, não pode ser isso”, pensou Melissa, aturdida.
Um silêncio se seguiu por mais cinco minutos.
Parecia uma eternidade para ela.
— Socorro!!! — gritou Patrícia.
Melissa nem soube por que fez aquilo. Mas saiu correndo e se lançou para dentro de seu próprio quarto.
— Larga ela!!! — berrou Melissa, quase sem voz com um sapato de salto na mão, mas foi Eduardo quem virou para trás.
Já Fernando teve um sobressalto muito maior. Estava suado da corrida ao ver um sapato quase ser arremessado nele.
— Dudu? Fê?
— Ah… É que o Dudu entrou no banheiro e meu viu de toalha — justificava Patrícia toda molhada, parada na porta, sem nada entender, tentando evitar o ataque da amiga.
— Onde tá ele? — falava Eduardo, alterado.
— Como chegaram tão rápido? Teletransporte?
— Não tenho tempo pra responder. Onde tá ele, Mel? — agitava-se Eduardo.
Fernando não falava nada. Estava atônito com tudo aquilo. Só olhava para o sapato ainda na mão de Melissa e a ideia de que aquilo iria machucar se o tivesse acertado.
— Não sei. Achei que a Pati tinha gritado por causa dele — e olhou para Patrícia que perguntava algo na careta que fez. — Acho que tem uma pessoa no quarto da Mari.
Fernando ficou com Patrícia enquanto Melissa correu atrás de Eduardo, que saiu do quarto.
Alcançou-o na sala.
— Fica aqui! — ordenou ele. — Entendeu? Quando a tua mãe chegar, grita por socorro.
— Aonde vai? — perguntou Melissa vendo Eduardo saindo do apartamento.
— Procurá-lo!
— Mas ele não tá no quarto da Mari?
— Não! Mas acho que sei aonde ele foi — e Eduardo correu para fora do apartamento de Melissa que ficava no sétimo andar. Pensou em pegar o elevador, mas desistiu. — As escadas!
— concluiu correndo atrás do intruso sem pensar em consequências. — Desgraçado! Agora te pego!
Parou ao ver a sombra fazer a curva, quatro andares acima. Estavam na escada de serviço. Eduardo tinha a respiração acelerada. Parou para engolir a saliva.
Balançou a cabeça. Tirou o tênis. Não queria fazer barulho. Correu escada acima. Ainda estava muito longe do invasor.
Sabia que era ele.
Melissa alcançou a porta de serviço, seguida por Fernando.
— Dudu?! — gritou Fernando.
Eduardo parou.
— Saco! — esbravejou. Os passos, acima dele, pararam também. Aceleraram logo depois. — Saco! Saco! Saco! — Eduardo corria atrás do intruso que agora sabia que estava sendo
seguido.
Encaminhava-se para a cobertura.
— Dudu?! — insistia Fernando, agora junto a Melissa.
— Volta idiota!!! — gritou Eduardo para Fernando.
— Não!!! Vamos com você!!! — berrava Melissa para cima.
— Não!!! Volta!!!
Melissa ficou na dúvida. Deixou Fernando e desceu. Deu de cara com Fabrício Bernardes no hall de entrada do prédio.
— Nossa!
— Desculpe! Te assustei?
Melissa não ficou para responder se homens bonitos a assustavam, precisava chegar à portaria.
Lembrou-se do carro da polícia. Dirigiu-se para lá. Fabrício acompanhou-a apenas com os olhos.
Já Eduardo subia. Estava cansado, ofegante. Mal conseguia respirar. Nem todas as suas horas de treino na capoeira ajudaram naquele exercício. Já estava cansado da corrida
a pé da escola até o condomínio, porque como sempre, Eduardo e Fernando haviam entrado pelo portão sul.
Os policiais não viram os dois amigos chegarem, e Zé, acostumado, abriu sem nada perguntar.
Eduardo alcançou, enfim, o vigésimo terceiro andar. Olhou para a porta da cozinha. A fita estava dilacerada, a porta escancarada. Um som de destruição vinha lá de dentro.
Entrou no apartamento, atravessou as salas, subiu a grande escada de mármore de Carrara. Dessa vez não havia trilha de sangue. O apartamento havia sido limpo.
Um grande estrondo partiu do último quarto. Eduardo parou, não sabia como agir. Lembrou que estava sem uma arma. Recuou e desceu. Entrou na cozinha, abriu todas as gavetas.
— Uma faca... Uma faca… Saco!
Achou o que queria. Criou coragem e subiu ao segundo andar da cobertura, agora armado.
Dois quartos ficavam à esquerda da escada. Eram os quartos de hóspedes. Depois vinham mais três portas em grandes intervalos.
O primeiro quarto pertencia a Cibele. O segundo pertencia ao Senador. O terceiro pertencia a Patrícia. De lá saía o som ensurdecedor. Tudo estava sendo jogado. Era essa a
impressão.
Eduardo se aproximou com cuidado e o som extinguiu-se. Eduardo ficou apavorado, teve a sensação de que alguém havia passado por trás dele. E teve a sensação de não ser apenas
um.
“Entrar? Sair? Voltar? Gritar?”; foram as suas dúvidas. Seus olhos se arregalavam cada vez mais.
Pânico geral.
Eduardo se arriscou e entrou. O quarto de Patrícia estava de pernas para o ar, literalmente. Os lençóis arrancados tal qual os da mãe; a cama revirada, roupas arrancadas do
guarda-roupa, gavetas lançadas contra a parede, o computador no chão e um novo movimento.
Eduardo olhou para trás. Ouviu um gemido.
“Mel?”, pensou apavorado.
“Ela subiu?”; correu para o quarto de onde ouvira o som.
Era o quarto de Cibele. Estava bagunçado também, com marcas de sangue ainda se encontrando no carpete de pelo alto. Sentiu enjoo. Achou que ia vomitar. Conseguiu se controlar.
Gritos vinham de fora, do lado de fora. Eduardo se aproximou da janela. Olhou para baixo e os terríveis toldos cor de laranja obstruíram uma visão melhor.
— Não!!! — gritou ao ser puxado pelos pés. O invasor ia lançar o corpo de Eduardo pela janela abaixo. — Socorro!!!
Apenas uma risada sarcástica como resposta. Eduardo se agarrou nele. Tentou arrancar-lhe a máscara que usava. Os cabelos apareceram. Eram ruivos. Eduardo se apavorou. Perdeu
a força e o equilíbrio. Quase caiu.
Fernando entrou no quarto.
— Dudu?! — gritou ao ver a cena.
Eduardo olhou para a porta do quarto. Viu uma sombra sair de trás da porta. Um segundo invasor carregava um grande vaso.
— Cuidado!!! — tentou avisar.
O vaso se quebrou em vários pedaços na cabeça de Fernando, que foi ao chão desmaiado. O primeiro invasor aproveitou a distração de Eduardo e empregou mais força ainda.
Eduardo puxou a faca e cortou-lhe o braço.
— Ai!!! — gritou o primeiro invasor.
Eduardo se agarrou às cortinas. Tentava voltar a se equilibrar, mas o primeiro invasor era mais forte. Enrolou-o no extenso tecido de voile. Eduardo lutava contra a cortina
enquanto tentava arrancar a máscara. O segundo invasor se juntou ao primeiro, e com mais força empregada levantaram os pés descalços de Eduardo que deslizaram no carpete.
Eduardo estava pendurado no parapeito, estava do lado de fora da janela. Agarrava-se ao que restava dos metros de tecido.
— Socorro!!! — berrava Eduardo.
O segundo invasor escorregou no voile, Eduardo na distração conseguiu enfiar a faca no braço forte do primeiro invasor que nada sentiu. Num último jogo de corpo, Eduardo tentou
lançar seus pés contra o segundo invasor que caiu no chão reclamando.
— Saco! — exclamou o segundo invasor fugindo do quarto, deixando para trás Eduardo e o primeiro invasor.
Eduardo tentou outra vez mover-se, mas a cortina tinha muito tecido, e o prendia. Estava cada vez mais enrolado para poder se mover. Tentava entrar, e o primeiro invasor o
empurrava cada vez mais para fora. Eduardo olhou para baixo e viu imagens distorcidas.
Ia ser jogado do vigésimo terceiro andar.
— Melissa?! Socorro!!! — e a parede escapou das suas mãos. Eduardo se segurou no batente da janela e foi a vez da faca escapar de suas mãos caindo vinte e três andares. —
Droga!
A faca parou junto aos pés de seu Almeida.
Almeida e Melissa olharam para cima.
— Eduardo?! — gritava Melissa, atônita.
Seu Almeida voltou correndo para a portaria. Foi chamar a polícia. Eduardo sentiu tonturas. Agarrava-se como podia ao fino tecido de voile da janela que cedeu.
— Não!!! — não aguentou mais.
Eduardo foi lançado no ar, passando por todos os toldos horrivelmente alaranjados, parando no décimo oitavo andar. O corpo, feito elástico, voltou um andar para cima e caiu
novamente.
Aos poucos os parafusos se soltavam.
Eduardo desceu mais cinco andares. Parou no toldo do décimo terceiro, pendurado pelos pés no aramado do toldo destruído.
Sua cabeça girou. Enxergava São Paulo de cabeça para baixo.
— Vamos! — o primeiro invasor aproveitou para fugir. Juntaram-se mais quatro invasores comparsas que esperavam por ele na porta.
Já Eduardo caiu novamente. O tecido de lona rasgou e ele foi lançado no vácuo. Dilacerou mais dois toldos e parou no décimo primeiro andar.
O resto de cortina se emaranhava, era o que segurava o corpo do jovem.
Mais dois toldos, e mais dois toldos, e mais dois toldos, chegando ao quinto andar. As lonas dos toldos o mantinham no ar.
Eduardo tentava raciocinar. Chacoalhou a cabeça e caiu novamente.
— Não!!!
E mais um toldo, e mais um, e mais um e mais um. Os toldos ruíam com o peso do corpo de Eduardo que parou no primeiro andar. Para então cair de novo e parar no toldo maior,
aberto no hall de entrada.
Melissa estancou pelo susto. Olhou para o lado. Viu Fabrício, que chegava. Olharam para cima, os dois, e acompanharam com a cabeça a descida final do corpo que se estatelou
no piso da entrada do Bloco Jardim das Azaleias.
— Tudo bem? — tentou Melissa falar ao ver o amigo.
A língua de Eduardo não descolou do céu da boca, mas chegou vivo ninguém soube como.
Capítulo 14
— Pro-fis-si-o-nal! — repetia o Dr. João Vitor cada sílaba. — O cara é um profissional! Eduardo já tinha dito!
O Delegado José Liberato estava atônito. Andava a percorrer de lá para cá o estreito corredor do Hospital das Clínicas. Não sabia o que falar para o pai de Eduardo.
Ele estivera certo o tempo todo.
Eduardo estava em observação. Havia passado por uma ressonância magnética. Os médicos que o socorreram levantaram a hipótese de algumas vértebras quebradas, mas Eduardo escapara
graças à cortina amarrada a seu corpo. Chegou aos pés de Melissa e Fabrício ainda emaranhado parecendo um paraquedista.
Do outro lado do corredor do hospital, os médicos acalmavam o grande e choroso Paulo Jung ainda em choque. Quando o desastre com sua mulher Sandra e a filha Mariana foi anunciado
pelo rádio da polícia, o Policial Rocha já havia corrido até o local. Fez, sem ordens superiores, sua própria inspeção. O volante hidráulico havia sido mexido, danificado
até. A bomba de óleo havia sido perfurada com uma lâmina experiente.
— Coisa de profissional! — concluiu também.
A coisa havia chegado a seu limite máximo, José Liberato sabia. Sandra havia quebrado o fêmur. Mariana havia batido a cabeça no vidro lateral depois do impacto com o air-bag
que havia salvado a vida das duas.
Melissa chorava muito. Não acreditava no que sua vida tinha se transformado; sua mãe, sua irmã e Eduardo, seu grande amor.
O mundo tinha acabado para ela.
O médico que assistia Eduardo apareceu. Era o Dr. Alfredo, sócio do pai de Eduardo na clínica. Eduardo estava sendo transferido para a semi UTI.
— Não é nada grave, João Vitor, acalme-se. Ele fez rubber jump, mais nada — brincou o amigo tentando aliviar a pressão do momento. — Já virou até esporte, sabia? — sorriu.
— A cortina parece que segurou o peso na queda se enroscando nos toldos. Foi muita sorte a cortina ter um tecido tão resistente. Ele agora vai ficar em observação por mais
essa noite — comunicou o Dr. Alfredo.
— Mas eu quero vê-lo. Preciso! — tentava o pai, em vão.
— Sinto. Acho que deve deixá-lo descansar. Não quero que ele se emocione — sorriu o Dr. Alfredo. — Sabe me dizer o porquê dos policiais nas portas? — apontou.
— É para a própria segurança deles — chegou o Delegado por trás dos dois médicos.
— Segurança? — disse João Vitor virando-se para encarar José Liberato. — Desculpe Delegado, mas meu filho não conhece essa palavra — e foi se sentar no mesmo banco em que
estava Paulo.
Os dois vizinhos se abraçaram. Tentavam se confortar. Melissa olhava o fim do corredor. Uma plaqueta na porta estava escrito: ‘Centro Cirúrgico’. Lembrou-se o quanto brigava
com Mariana, sua irmã.
— Me perdoa... — pedia ela aos prantos. — Nós brigávamos por tantas baboseiras, por tão pouco... Deus…
Uma cara apareceu. Melissa tentava se lembrar de onde o conhecia.
— Oi! Meu nome é Fabrício Bernardes. Sou seu novo vizinho, no condomínio.
Melissa ergueu a cabeça para vê-lo melhor. De homens bonitos ela lembrava; no hall de entrada, depois no jardim, na hora da queda final de Eduardo.
— Oi! — disse ela enxugando as lágrimas.
Fabrício achou-a uma garota muito bonita, olhou-a com ternura. Melissa sentiu a sinceridade. Ele ofereceu um lenço. Ela aceitou.
Melissa limpou o rosto inchado. Sorriu em retribuição. Devolveu o lenço molhado.
— Eu sinto muito por seu amigo, por sua mãe, por sua irmã.
— Como soube?
— Estava lá na hora que a polícia chamou a ambulância.
— Perguntei como soube da minha irmã?
Fabrício gelou:
— Comentaram...
— Entendi — falou por falar.
Fabrício arrumou as costas. Fazia isso quando estava nervoso.
— Como elas estão? — tentou novamente se comunicar.
— Bem! A Mari é que preocupa. Ela bateu o olho direito no vidro, na hora do impacto. O médico disse que houve deslocamento da retina. Teve de operar de emergência, mas foi
só laser. Ela vai se recuperar rápido — e chorou. — Eu brigava tanto com ela.
— Não se lembre disso. É coisa de irmã.
— É! Pode ser!
— O rapaz?
— Dudu? Esse é gato! Escapou outra vez.
— O que quer dizer com outra vez?
— Nada! — e Melissa se levantou.
Fabrício viu que não era hora de insistências, era esperto. Despediu-se de Melissa e se aproximou do pai de Eduardo, se apresentando como o novo vizinho. Contou que estava
lá na hora do acidente e ofereceu ajuda.
Dr. João Vitor agradeceu.
Fabrício olhou o Delegado por debaixo dos cílios grossos e se afastou. Não demorou muito para que o Delegado viesse atrás dele.
— Entrei na cobertura na hora da confusão da ambulância — Fabrício foi logo disparando as informações. — O apartamento estava todo destruído, além do que já havia sido feito.
Aliás, estava tudo diferente, para dizer a verdade.
— Não compreendi.
— Bem, o que deveria estar como foi deixado não estava. Li o relatório quando chegou à delegacia naquela noite. Havia certos detalhes que chamaram muito a minha atenção —
olhou para os lados. — Esteve na cobertura depois do assassinato Dr. Delegado?
— Sim, uma vez, depois que o Dr. João Vitor me falou que a vidraça da sacada estava quebrada.
— Pois é... As roupas não se encontravam mais jogadas no hall da sala. Reparou?
— Não. Só verifiquei que a fita havia sido rompida. Olhei em volta, mas até aquele dia, ninguém havia mexido em nada.
— Ah! Mexeram, sim. As paredes foram lavadas assim como os carpetes. Com exceção do quarto da Sra. Cibele, que tem o pelo do carpete, muito alto, o resto foi limpo com esmero.
— “Esmero”?
— Sim, foi a minha impressão. Não havia mais sinal de sangue. Nem vidros no chão. Parecia que o apartamento foi varrido.
— O quê? Varrido? Eu dei ordens para não se tocar em nada! Nem limpar, nem varrer — José Liberato estava, agora, mais descontrolado ainda.
Bufava feito touro irritado, acossado pela espada do toureiro.
— Compreendo! — falou, abismado com a mudança de humor do Delegado.
— Ele está me desafiando. Sei que está.
— O Rocha ouviu no rádio sobre o acidente. Sabe como é o Rocha... — Fabrício sorriu maroto.
— Um bisbilhoteiro nato.
— Exatamente! Ele se deitou debaixo do carro da dona Sandra.
— Ele fez o quê?
— Em plena confusão, e ninguém o viu. E ele me disse pelo telefone que a bomba de óleo da direção hidráulica foi rasgada por uma ferramenta pontiaguda. Isso deve ter travado
o volante. Rocha acha até que o cara que mexeu deve ter sido interrompido, porque havia indícios de que tinha começado a mexer em mais coisas.
— Acha que o desastre foi provocado? Queriam matar a mãe da Melissa?
— Posso dar minha opinião? — e não esperou pela ordem. Falou assim mesmo. — Não era a mãe; era a filha.
— A filha? A tal Mariana?
— Sim! Eduardo, Melissa, Mariana, Patrícia e Fernando. Os cinco amigos... — olhou um lado e outro. — Posso dar outra opinião?
— Vá em frente!
— Se não pegar o fio da meada, Delegado José Liberato, vão todos se enrolar de vez nesse novelo. E ele vai matar os cinco. Juntos ainda irão, família e empregados.
— ‘Ele’? Quem é ele, Fabrício?
— Tem certeza que não sabe quem é o fio da meada? Pois eu acho que é o tal ladrão que o garoto fala no relatório. E ‘ele’ acredita ter sido visto por Eduardo na cena do crime
e está tentando eliminá-lo, numa chance após a outra.
— O menino Eduardo tinha razão!
— Mas… — e Fabrício esperou ter a atenção de José Liberato. —, apesar de concordar com o garoto, não acredito num ladrão, não num ladrão comum. Não tenho tanta experiência
assim. Venho conversando muito com meu pai, pois ele é muito mais experiente. Mas acho que todos eles estão mesmo correndo risco de vida.
— Vou mandar colocar um policial na porta de cada apartamento. Dos dois meninos e das três meninas. E vigiá-los quando saírem. Mandei Rocha para Brasília. Quero uma limpa
na vida do Senador. Quero saber o que fazia antes de morrer, e no que trabalhava atualmente. Também quero uma vasculhada na vida dos cinco amigos, também. Isso pode cuidar
disso você mesmo. Acho que depois desse atentado consigo falar com meu amigo. Tenho que convencer o Judiciário a reabrir o caso. Então ‘ele’ vai se apavorar e nós o pegaremos
— concluiu.
Fabrício Bernardes ficou contente em ver o Delegado com aquele brilho nos olhos.
Ficou feliz por estar ao lado de seu ídolo.
Capítulo 15
Patrícia havia chorado a noite toda. Estava temporariamente no apartamento de Eduardo. Contudo, queria por que queria sair, e Berenice não deixava.
— Não posso. Tá sob minhas ordens. O Dr. João Vitor mandou.
— Ele não é meu pai, Berê. Só vou dar uma volta.
— Ocê me ouviu? Ele ligou do hospital e disse que o Delegado vai pôr um policial na nossa porta. Não pode sair sem avisá-lo.
— Droga! — praguejou irritada.
Berenice não ficou para olhar a raiva dela, foi arrumar o resto do apartamento após servir o café da manhã. Ninguém havia voltado ainda do hospital. Todos haviam passado a
noite por lá. Berenice deixou Patrícia sozinha na cozinha e ela aproveitou a chance e saiu pela porta de serviço.
— Minha Santa Aparecida, não sei se faço almoço ou... — falava enquanto se encaminhava de novo para a cozinha. — Ué? Cadê ela? Pati? — olhou para a porta. — Que droga! Onde
tá essa garota? Pati?! — gritou no corredor. — Minha Santíssima, o Doutor vai ficar uma fera comigo.
Patrícia estava nas escadarias. Subia correndo, com medo de ser pega. Ouviu barulho no corredor da cobertura. Alguém estava na porta de serviço do seu apartamento.
Abriu devagar a porta corta-incêndio.
— Você? — falou Patrícia para alguém que tentava abrir a porta com uma chave falsa. Ele sorriu apenas. — Ia mandar um e-mail pra você. Senti tantas saudades, Cacá.
O cara continuava nada a falar. Patrícia se jogou em seus braços. Beijou-o intensamente.
Ninguém os viu.
Capítulo 16
O avião aterrissou no Aeroporto Brigadeiro Eduardo Gomes, em Brasília, na Asa sul. O Policial Rocha quase beijou o chão.
Fazia calor em Brasília e o dia estava seco e nublado.
O gabinete do Senador estava lacrado. Rocha precisou da autorização do Congresso para abri-lo. Perdeu quase a manhã toda naquela investida. Antes de sair de São Paulo, porém,
telefonou para o ex-secretário particular do Senador, para estar lá para recebê-lo.
Osmar foi pontual. Caminhava agora a seu lado depois da permissão concedida. Rocha atravessou a sala que Osmar costumava usar. Abriu a grande porta de nogueira maciça. A sala
do Senador estava intacta. Recebera ordens de não abrir as janelas e o gabinete todo cheirava umidade, a coisa fechada.
Rocha era detalhista. Tinha aprendido com José Liberato depois de 20 anos de trabalho em conjunto.
— A sala foi fechada por ele?
— Sim. Ele a fechou e partiu para São Paulo. Ninguém mais entrou aqui.
— Ninguém? Ninguém teve curiosidade de olhar a sala de um morto?
— Nossa! — a face de Osmar endureceu, na dúvida se havia sido uma indireta. Estava acostumado a elas, trabalhando tanto tempo no Senado.
Osmar era robusto sem ser gordo. Seus cabelos embranqueciam rapidamente. Estava tenso com aquela visita.
— Desculpe. Empolguei-me… — desculpou-se Rocha ao ver o lobista e ex-secretário ainda de olhos arregalados.
— Tudo bem...
O policial abriu todas as gavetas e fotografou algumas anotações contidas na agenda do gabinete, guardada dentro de uma pasta de couro.
— Ele tem uma carteirinha de telefones, não? — Rocha olhou um lado e outro. — Do jeito que a sala é antiquada… não acredito numa agenda eletrônica… — e percebeu o susto do
homem. — Aconteceu alguma coisa Sr. Osmar?
— Eu falei para minha mulher... Eu precisava ter falado, mas ela não deixou — disse envergonhado.
— Hei? Calma lá. O que você precisava falar?
— Um homem, um bem estranho.
— Que homem? — interessou-se Rocha.
— Um tipinho que vinha aqui. Não sei para quê, mas ele sempre trazia um envelope. Desses comuns, pardos, de papelaria. E sempre saía sorrindo, contando dinheiro. Parecia fazer
de propósito, para que eu visse que o Senador lhe havia dado dinheiro.
— O Senador havia contratado esse homem?
— Era o que parecia.
— Que tipo de serviço acha que ele prestava se era um tipo tão estranho?
— Coisas do tipo... erradas.
— Seja mais claro, por favor. Poderemos deixar isso fora do relatório se quiser — insinuou com certo tato.
— Ninguém vai saber que eu falei? Tenho medo, minha mulher disse... Sabe... Meu emprego como lobista é delicado. Eu fico em volta de muita gente influente. Minha mulher disse...
— Não se importe com que sua mulher disse Sr. Osmar… — cortou o drama de uma vez. —, seu emprego não correrá riscos se é isso que o preocupa.
— Está bem. Eu acho que o cara era um detetive. Li nos jornais que o Senador matou sua mulher porque ela o traía. Eu também achava isso. Ela era uma perua bonita, jovem, chamava
a atenção de todos aqui no Senado. Uma modelo, ex-atriz, sei lá. Usava saias curtas e muito, muito decote. Acho até que fazia de propósito porque o Senador não gostava quando
ela vinha.
— Ele tinha muito ciúme dela?
— Que pergunta... Ele tinha mais de 60 anos, ela trinta e poucos. Dizem até que ele precisou usar de amigos da lei para poder casar com ela que era de menor na época do enlace;
um abismo. Além do mais, comentava-se que ela gostava de meninos jovens, muito jovens — piscou com malícia. — Ela só vinha aqui buscar dinheiro, cada vez mais. O Senador ficava
nervoso. Eles gritavam bastante dentro da sala. Uma vez ela atirou um vaso em cima dele e saiu num rompante. Ele ficou todo sem graça comigo e mandou repor com urgência porque
o vaso era do gabinete.
— Sabe se ela esteve naquela última vez?
— Não, aqui não. Mas ela estava em Brasília com ele. Eu sei por que ela ligou no final da tarde, quando o Senador estava com o tipinho estranho lá dentro. E ela falou para
mim: ‘Mande meu recado. Mande-o depositar dinheiro na minha conta’.
— Para que ela precisava de tanto dinheiro ultimamente?
— Não sei.
‘Chantagem?’, pensou Rocha.
— Depois que o tipinho saiu, o que o Senador fez?
— Nada! Imagino que não demorou a arrumar as coisas e ir embora. Eu não o vi sair. Tinha ido antes. Logo depois de atender o telefonema da mulher dele.
— Se ele trazia envelopes tão importantes para o Senador, onde os guardava? Isso aqui é um cofre? — falou apontando para o quadro.
— Sim — e Osmar o abriu. — Vê? Não deve ter nada importante dele aqui. Eu o abria constantemente.
— Estranho! — falou. — O que faria então com os envelopes se não os guardava no cofre e nem os levava para sua casa? Vamos Rocha... Pense… — falava sozinho. Olhou para os
lados. — Para que uma lareira de verdade em uma Brasília sempre abafada?
— Coisas de decorador, suponho.
— Ah! Já sei o que fazia com os envelopes... Destruía! — exclamou ao olhar para a lareira elétrica, cheia de papéis queimados. — Pode me conseguir um saco plástico?
— Sim. Vou buscar.
Rocha recolheu e guardou tudo o que tinha por lá. Ia levar direto para a equipe de cientistas forenses de José Liberato averiguarem.
Voltou para São Paulo quase no mesmo avião em que havia chegado.
Capítulo 17
O Dr. Alfredo apareceu na sala de espera naquela manhã nublada. O Dr. João Vitor passou a noite acordado, aguardando notícias. Eduardo dormiu o tempo todo. De manhã cedo partira
para uma batelada de exames. Deram todos negativos. Eduardo estava bem. Ia usar um colete de aço para aliviar a coluna. O Dr. Alfredo liberou o garoto para voltar para casa.
Liberados também foram Sandra, com a perna engessada e Mariana, que se recuperaria em casa após a cirurgia oftalmológica.
Depois de deixarem Sandra e Mariana em casa, Melissa e seu pai foram ao décimo primeiro andar, ao apartamento de Eduardo. Agradeceram Berenice por cuidar de Patrícia. Berenice
respirou aliviada. Nada falou sobre o sumiço da garota uma vez que Patrícia não sumira por mais de meia hora. Mas a intenção de contar a verdade não saíra da cabeça da empregada.
A polícia mudava-se, literalmente, para o condomínio. Iriam revezar, sem trégua, as vinte e quatro horas do dia.
Cada apartamento teria um policial na porta social e um policial na porta de serviço e quem saísse, seria acompanhado. Duas policiais femininas, jovens como Fabrício, entrariam
na escola e assistiriam às aulas que fossem necessárias para acompanhar as meninas.
Somente Melissa, Fernando e Patrícia iriam para a escola.
Eduardo queria ir, mas tinha sido dispensado. O pai não acreditou no que ouviu.
— Dudu querendo ir para a escola? — comentou. — Vai ver que o acidente o modificou — torcia para que aquilo tivesse acontecido.
E Melissa não acreditou quando Patrícia se preparou para ir à aula. Ela estava diferente; podia sentir. Sua atenção havia sido chamada diversas vezes pelos professores. Estava
sorrindo apesar de tanta desgraça, e não prestava atenção às aulas. Nada perguntou sobre o acidente, nada questionou sobre Mariana, se esqueceu até de perguntar sobre sua
tia.
Estava dispersa; dispersa e feliz.
Fernando, que teve uma pequena luxação por causa do vaso quebrado na cabeça, frequentava a aula junto a Melissa e Patrícia. Agora era Adriana, a mãe de Fernando, que levava
e trazia os três amigos da escola. E ela até quis saber mais detalhes sobre a queda de Eduardo, mas a falta de respostas da turma foi geral.
Melissa agradeceu o silêncio de Fernando, mas não iria agradecer o silêncio de Patrícia.
— Você mudou — falou Melissa de repente.
— Quê? — perguntou Patrícia no banco de trás do carro. Olhava para fora, sem prestar muita atenção ao caminho. — Não sei do que tá falando.
— Tá diferente, sim — e Melissa desistiu.
Patrícia olhou-a por baixo dos óculos escuros. Chegou ao apartamento de Melissa e foi direto para o quarto de Mariana, que o cedera de vez para ela.
— Mãe? — chamou Melissa ainda na porta.
Sandra se apoiou na bengala.
— O que foi?
— Posso ir até a casa do Dudu?
A mãe sorriu para ela. Foi tão sincera que Melissa perdeu a ação.
— Gosta dele, não?
— Ai. Mãe... Que pergunta!
— Gosta, eu sei. Estive pensando muito depois do acidente. Vocês duas são tudo o que tenho na vida. Seu pai, sua irmã e você são minhas verdadeiras riquezas. Não a quero machucada
e nem magoada, Melissa.
— Não vou me machucar, mãe. Prometo!
— Vou confiar em você, como sempre. Mas vou dobrar a atenção.
— Ok! Posso ir agora?
— Pode! Deve até, se te faz feliz.
— Oh, mãe! Obrigada — e a abraçou.
— Eu sei que você é uma gracinha, mas me faça um favor antes?
— O quê?
— Troque a cor da sua roupa, minha filha.
Melissa riu.
Correu para o quarto e colocou um jeans azul que há muito tempo não usava. Subiu até o apartamento de Eduardo, tendo que pedir autorização dos policiais.
Eduardo estava sonolento. Estava deitado quando Melissa entrou. Era a primeira vez que o via desde a queda.
— Oi? Tudo bem?
— Oi, Mel. Tô todo dolorido — riu. — Acho que dói mais que as surras que levava da minha mãe quando comia terra.
— Oh, Dudu! Você não toma jeito mesmo. Eu fiquei preocupada.
— Não esperava nada diferente de você.
— Como assim? — perguntou curiosa.
— Eu tive pensando... Lá na UTI não se faz outra coisa. Então pensei que... Ulalá! Não havia percebido... — mudou de repente o assunto.
— O que foi?
— Suas pernas... Estão azuis.
Melissa riu demoradamente.
— Foi pra você — balançou-se dentro do jeans.
— Gosto!
— Do jeans?
— Da cor... Do tecido... De como desenha suas curvas.
Melissa levantou a sobrancelha. Gostou do que ouviu.
— É? — brincou.
— Vou me jogar mais vezes da cobertura da Pati.
— Ai! Dudu! Não fala besteira. Você não vai crescer?
— E perder você no passado?
— Nossa! Virou poeta?
— Não é isso. Tô gostando de você.
— De quem? — o coração e a língua se encontraram.
— Você... Eu... Nunca tinha te visto de baby-doll. Não dormi direito, aquela noite; tive sonhos esquisitos. Não consegui parar de pensar em você. Você teve sempre tão perto
que não te via.
— É! Eu percebia.
— Posso te beijar?
— Beijar? — ficou vermelha. — Aqui? Agora?
Eduardo olhou para os lados.
— Tamos sozinho. Quê que tem? Posso? — e Eduardo viu Melissa se aproximar dele. — Não! — falou afastando Melissa, que se aproximava. — Não é você quem vai me beijar... Sou
eu quem vou beijar você, Mel — e se ergueu.
Melissa sorriu, acanhada. Abaixou a cabeça, que Eduardo levantou em seguida. Os dois se aproximaram. Melissa preferiu fechar os olhos, sentindo o coração bater na boca outra
vez.
Já Eduardo sentiu todo seu corpo de homem tremer. Encostou seus lábios nos dela, sem, porém beijá-los. Ficou segundos a observá-la.
Melissa abriu os olhos. Nunca havia visto Eduardo de tão perto.
Os lábios tremiam; sentiam prazer de estarem juntos. Melissa sentiu tonturas. Eduardo começou a tirar o colete de aço. Melissa percebeu. Não entendeu o porquê; não quis perguntar.
Eduardo a encarava, com seus olhos falando uma linguagem desconhecida.
Os dois ainda se encaravam de perto. Ele podia sentir o perfume que ela usava. Doce, sutil, tremendamente perigoso.
Tocou seu pescoço, afastando seus cabelos, aproximando sua boca grande.
Mordeu-o.
— Ah! — exclamou Melissa sentindo a corrente elétrica passar.
Mil volts de carga.
Eduardo ainda a via de modo estranho, passando seus lábios na boca de Melissa, insinuando-se, voltando a se aproximar, erguendo a cabeça, o supercílio, a mão esquerda, tocando
os cabelos dela novamente, puxando-os com força.
Ela ia gritar, mas não teve tempo. Eduardo engolia seu pescoço, experimentando o gosto, o aroma que exalava do corpo dela.
Melissa nem respirava mais sentindo o quarto girar, e Eduardo foi em frente, com o tocar de seus lábios; para baixo, para o lado, em sentido contrário, começando a descer
os olhos, alcançar a blusa do uniforme da escola. Subindo e descendo montanhas, se perdendo nas curvas sinuosas.
— Dudu... — tentou falar. — Não! — o afastou.
— Por quê?
— Não... Ainda não… — e Melissa mal teve tempo de falar no que Eduardo fez mais que olhar. Ela sentiu-se tonta no que a barba roçou-lhe o tecido, agora sem proteção. — Não
posso... — mas Eduardo já se inclinava novamente. — Não Dudu!
— Desculpa... Eu... Eu não consigo me controlar.
— Então é mais que não! — desvencilhou-se dele e saiu correndo.
— Saco! — exclamou Eduardo arrependido.
Melissa atravessou o apartamento. Quase tropeçou no policial na porta. Entrou no elevador. Não conseguia tocar os botões certos. Estava tonta, confusa, totalmente apaixonada.
Acabou descendo até as garagens até dar de cara com Fabrício.
— Oi! — exclamou ao vê-la levando um susto. — Te assustei novamente?
— Sim... Um pouco. Não sabia que o elevador ia descer.
— Ah… — Fabrício sorriu, a achava tão bonitinha.
Tocou o quarto andar.
— Já se mudou? — disse ela tentando recuperar o fôlego.
— Ainda não totalmente. Faltam detalhes, mas vim ver o apartamento.
Melissa estava tão atordoada que ficou sem graça e riu. Fabrício riu também. Ele desceu no andar tocado após se despedir. Entrou na sala quase vazia de móveis. Tirou da mala
o notebook que havia trazido pela manhã.
Tirou do bolso uma chave de fenda e abriu o compartimento debaixo do computador. Tirou uma placa e a colocou ao contrário. Fechou o notebook, pegou o casaco e se dirigiu para
o elevador.
— Berê?! — gritou Eduardo. — Tão tocando a campainha.
Berenice saiu correndo da cozinha e foi atender.
— Oi! Sou o vizinho do quarto andar. Meu nome é Fabrício Bernardes, já falei com o policial aqui na porta — e apontou para trás. — Posso falar com o Eduardo?
— São amigos?
— Conheci o pai dele, Dr. João Vitor, ontem no hospital.
— Tá bom. Pode entrar. É o segundo quarto do corredor.
— Obrigado! — Fabrício entrou e se encaminhou para o local indicado. — Posso entrar? — falou após ter bater e abrir a porta do quarto de Eduardo.
Eduardo estava estressado:
— Quem é você?
— Sou Fabrício, o novo vizinho. Encontrei sua amiga no elevador, a tal de Melissa — Fabrício viu Eduardo apenas o olhar. — Uma graça ela, não? — agora Eduardo prestou atenção
nele; e não gostou do que ouviu. Fabrício prosseguiu: — O porteiro disse que consertava computadores... É verdade?
— Puxa cara! Tô num estado ruim demais.
— Meu... É que preciso entregar um trabalho na faculdade. Tô ferrado! — brincou. — É só dar uma olhada... Pode ser?
— Tá! Tá bom! Dá aqui! — e tentou ligar o notebook.
A máquina não funcionou. Eduardo abriu a gaveta ao seu lado. Pegou um estojo de pequenas ferramentas. Fabrício se deslocou do local onde estava parado e Eduardo nem percebeu.
O policial fechou a porta à chave e Eduardo ouviu o clique da chave quando girou.
Levantou os olhos calmamente e encarou Fabrício parado diante da porta.
— Se virar a placa do outro lado, ela funciona — falou Fabrício com voz séria,
Eduardo olhou para o notebook que acabara de abrir. Viu a peça trocada. Sabia que nenhum profissional a colocaria daquele jeito. Percebeu que tinha sido mexida. Olhou para
o vizinho, assustado.
— Você…
— O que te perturba, Eduardo? A menina bonita ou a queda? — Fabrício viu os olhos de Eduardo brilhar e ele não conseguir falar, achando que ia morrer. — Sabe... O dia vai
ser longo, Eduardo. Avise a empregada para fazer sanduíches. Temos muito que conversar...
Eduardo engoliu tudo aquilo a seco.
Capítulo 18
As celas estavam abarrotadas de gente depois que o ruivo, o Vermelhão, como era chamado no submundo das drogas, havia chegado. Preso no portão da Escola Monsenhor Hipólito
Ibi, três dias depois que chegou ao distrito e já estava abrindo o bico.
Decidiu que não ia em cana, sozinho.
Foi um derrame de informações há muito procurado pelos agentes especiais do Delegado José Liberato. Naqueles dias que se seguiram após a prisão feita em flagrante, a equipe
já havia desbaratado oito gangues de traficantes, estourado cinco bocas de fumo e prendido vinte e cinco envolvidos, entre eles um perigosíssimo bandido, o famoso Juca Fumaça.
Sua especialidade era tráfico e desmanche. Sua gangue desmanchava um carro em quinze minutos; eram os melhores do ramo.
Vermelhão havia contado à polícia que vendia cocaína e maconha para alguns alunos da Escola Monsenhor Hipólito Ibi e de outras também. Tinha freguesia certa. Uma delas era
Patrícia de Moura, dizia Vermelhão, que comprava cocaína dele dizendo sempre ser para a mãe. José Liberato e Rocha descobriram que era para manter seu vício, cada vez mais
constante, que Cibele de Moura pedia tanto dinheiro ao Senador.
Rocha ainda acreditava em um amante sedento de grana.
José Liberato havia conseguido reabrir o caso mandando exumar o corpo de Cibele, no Cemitério da Paz, a fim de uma nova autópsia, agora nas vísceras da morta. Aquele tipo
de exame não havia sido pedido antes, mas agora as evidências da dependência de drogas, levavam a isso, e abriam mais possibilidades para os investigadores.
Eduardo tinha razão quando contou a Fabrício ter visto Patrícia no portão da escola com o tal ruivo. Fabrício achou sua conversa com o garoto proveitosa, apesar do susto inicial
dele imaginando que ia ser assassinado ali, naquela hora.
Fabrício riu, disse que ele assistia filme demais.
Eduardo não achou tanta graça assim, mas contou a ele tudo o que vinha acontecendo, despejando tudo sobre o policial, depois que Fabrício se identificou, o que tinha averiguado
durante o período. Contou até sobre os computadores do Judiciário, sob a promessa de que seu pai nada ficasse sabendo. Pediu também que mantivessem Melissa por dentro de tudo.
Assim poderia falar tudo o que ela também tinha descoberto.
Fabrício sorria e erguia o sobrolho toda vez que o nome dela era falado e Eduardo começou a sentir ciúme do jovem policial loiro. Mesmo assim, concordou que Fabrício visitasse
Melissa, que também levou um susto quando este se apresentou como policial.
Nas próximas horas, somente Eduardo e ela saberiam da verdadeira identidade dele.
Melissa se achou o máximo, depois se lembrou dos riscos que corria. Contudo não deixou de fora nenhum detalhe. Fabrício anotava tudo em seu notebook, agora com a placa na
posição certa. Fez um relatório minucioso, estranhando saber que Patrícia tinha um namorado ‘virtual’. Outro detalhe que não compreendeu foram os gritos da empregada Maria.
— O que ela tinha visto para estar tão apavorada? E se morrera antes de todos, a que sangue se referia? — Fabrício progredia nas investigações.
Pediu à delegacia, além das ordens do Delegado, um minucioso estudo da morte dos envolvidos. Dessa vez incluiu o corpo do Senador, também retirado do Cemitério da Paz e o
corpo do motorista e o da empregada, Maria.
O Delegado José Liberato estava cada vez mais impressionando com o jovem policial Fabrício, que conseguiu com amigos de seu pai influente, autorização para todas aquelas autópsias.
Rocha chamou um especialista da Polícia Federal e pediu que Osmar fizesse um retrato falado do detetive a partir do depoimento, agora oficial, do lobista e ex-secretário do
Senador.
E outra vez precisou assegurar a Osmar, sua segurança pessoal.
— Delega? — chamou Rocha, que estava no final da grande sala dos policiais ainda no Distrito Policial. — A perícia chegou a uma conclusão — e entregou um envelope. — Eles
disseram que a maioria do material encontrado na lareira do Senador estava muito danificada pelo fogo, mas pelo tipo de material, é acetato.
— Fotos?
— Sim, fotos. Todos os papéis queimados naquela lareira eram fotos. Não há nenhum outro tipo de papel, portanto o que o tipinho estranho levava para o Senador só podia ser
fotografias.
— Tem alguma maneira de se identificar quem está na foto?
— Interessante falar nisso, delega. A perícia criminalista falou que tem algumas fotos das quais apenas uma parte fora queimada.
— Como assim?
— Eles falaram que não podem dar cem por cento de certeza, mas parece que o Senador rasgava a foto, retirando dela ‘alguém’, e as queimava depois. As fotos jogadas diretamente
no fogo, então, tinham a dona Cibele e eram totalmente destruídas. A perícia acha que ele a excluía, separando-a da fotografia, e depois as queimava. As fotos contendo outra
pessoa ele simplesmente, jogava na lareira, ficando mais por cima e não sendo totalmente destruídas.
— Estranho! Muito estranho!
— Mas isso vira o jogo delega — Rocha abriu o pacote. —, porque isso permitiu que algumas fotos fossem reconstituídas e retocadas — e entregou três fotos. — Sabe delega, esse
pessoal é bom no que faz. Eles têm um computador que conserta as imagens. Veja! — coçou a cabeça. — Eles conseguiram arrumar uma imagem de dona Cibele. É ela mesma — e entregou
para José Liberato que ficou impressionado com o trabalho de sua equipe forense. Rocha prosseguiu. — Agora, veja essas duas fotos do cara com ela.
— A perícia tem certeza de que as cores não foram alteradas?
— Papel de primeira, delega, importado, não se destrói totalmente no fogo — e Rocha esperou a análise do delegado. — Vê o corpo do homem ao lado da Cibele fotografado no motel?
Jovem, atlético, e ruivo.
E José Liberato ficou matutando algo antes de dizer.
— Desde que entrei em contato com o mundo do Senador… — e parou de falar para tomar fôlego. —, descobri que ele era um homem muito bom. E todos o dizem; bom demais para existir
na política... — riu. — Bom pai, bom marido, bom vizinho. Acredita que também fosse um bom assassino?
Os dois se olharam.
Capítulo 19
— Mel? Pode vir até aqui? — perguntou Eduardo, pelo interfone da cozinha.
— Não sei se devo. Ontem foi tudo tão esquisito...
— Olha! Desculpe. Eu precisava falar com você. Não pode ser pelo interfone.
— Tá! Tá bom! Tô subindo.
Eduardo ficou olhando o interfone desligado. Percebeu o quanto gostava dela.
Não demorou em que sua campainha tocasse. Eduardo abriu a porta e viu que o policial não estava na porta dele.
— Vamos até meu quarto? Se eu ficar perambulando pela casa, a Berê me mata. Já disse que tô bem... Mas não adianta — abriu a porta para ela entrar. Melissa usava um vestido
curto. — Ulalá! Quer me matar? De novo? — brincou Eduardo, mas ela mantinha a seriedade. — Então tá... Não vamos falar nisso, Ok? Amigos outra vez?
— Não deixei de ser sua amiga, Dudu. Só acho melhor dá um tempo.
— Tá! Também acho — e se aproximava. — Posso te contar uma coisa? — Melissa se encolheu toda. — Teu cheiro, sabe? Me dá até azia.
— Azia? — riu.
— Dá um frio na barriga, enjoo, não me controlo — e a beijou.
Eduardo entrava cada vez mais em sua boca, engolindo-a por completo. Estava apaixonado.
Melissa esperou o beijo acabar para falar.
— Vai ter que ser à minha maneira.
— Aceito! — quase gritou. — Só não quero dá tempo nenhum.
— Mas vai ser devagarzinho. Com juízo.
Eduardo achou graça.
— O que entende por juízo, Mel?
— Isso mesmo que pensou.
— Tá bom — riu. — Eu topo.
— Então vamos ‘ficar’. Vamos ver no que vai dar.
— Ulalá!!! — gritou de felicidade a balançar os cachos negros. — Mas antes da gente se perder de novo... — brincou. —, tenho uma coisa pra te contar. Fecha a porta.
Melissa olhou para fora e agora deu de cara com Berenice.
— Ahhh! Querem sanduíches? — falou sem graça pelo flagra.
— Dudu? Quer sanduíches? — perguntou Melissa com calma.
— Sim! — respondeu ele no disfarce.
Riram a beça depois que Berenice foi embora.
— Acho que a Berê ouviu, né?
— Com certeza. Mas não esquenta, Mel. Eu quero te falar algo importante. Conversei muito com o policial Fabrício. Ele acha que o que eu fiz no Judiciário foi errado, a tal
ida aos computadores sem autorização e tal, mas disse também que o Delegado vem enfrentando problemas por causa da reabertura do caso. Ele queria uma cópia daquela carta.
Parece que o pai da Pati morreu primeiro. Saco! Naquela noite esqueci e não imprimi. Vou precisar ir lá.
— Não pode sair de casa. Teu pai proibiu.
— Eu sei. Por isso preciso de você.
— Quer que eu vá até o Judiciário?
— Não, você não vai conseguir. Preciso do Carlos Alberto outra vez.
— Não acredito que ele vá se envolver. É filho de um desembargador.
— Vai ter que convencê-lo. Sabe como? Fica bem de jeans... — Dudu foi pura insinuação.
— Dudu! — reclamou. — Cê é mesmo um louco.
— Tô brincando. Agora tenho até ciúme de você — piscou. — Ciúme até do policial.
— Do policial Fabrício? Ah! Imagine!
E ambos se calaram.
— Sabe se a Pati pode cooperar? — mudou de assunto.
— Não acredito nisso.
— Mas é o pai dela, Mel.
— Pati tá diferente. Não é mais a mesma. Sabe o que eu acho Dudu? Ela tá se encontrando com aquele Ricardo.
— O virtual?
— É... E não é pelo computador. Pati tinha um montão de camisinha na bolsa e anda sumindo demais.
— Mexeu na bolsa dela? — falou, horrorizado. — Mel... Que coisa feia!
— Ah! Não enche, Dudu.
— Por que mexeu?
— Não me conformo daqueles caras terem invadido nosso apartamento bem no dia do acidente da mamãe. Por que foram mexer nas gavetas da Mariana, que na verdade estavam cheias
de roupas da Pati? Ela tava dormindo no quarto da Mari já algum tempo. Agora se mudou de vez... Então diz? Como é que eles sabiam?
— Sabiam do quê?
— Das gavetas! Da Pati no quarto da Mariana!
— Mas eles tavam procurando algo, não é isso? Não tô te entendendo, Mel?
— Dudu, preste atenção. Raciocine comigo. A Pati falou que o cara do computador conhecia tudo sobre ela, até o que ela não falava. Falou que era meigo e atencioso, e dava
conselhos. Mas a Pati de repente passou a ter medo dele. Achava que era atenção demais. Aí o pai e a mãe morrem e você falou que tinha alguém lá no quarto da mãe dela morta,
né?
— E tinha. Agora sabemos.
— Pois é. O Fabrício falou que você contou pra ele, que tentou tirar a máscara do cara que te empurrou da janela e viu cabelos vermelhos, né? Bom... A Pati falou que o tal
Ricardo pensou que ela tinha ‘saído’ da sala de Chat e continuou a conversar com outra garota. Só que ela saiu e entrou de novo, mas com outro nickname, pra vigiá-lo sem ele
ver. Sei lá como isso funciona, mas aí o cara falou que era ruivo e tinha 23 anos. Só que pra Pati ele falou que tinha 38... E não falou de jeito nenhum como ele era. Foi
aí que ela falou que ele era ruivo.
— Meu... Quantos ‘falou’ — e Eduardo viu a cara que ela fez. — Tá. Tá bom. Tá querendo dizer que o cara de cabelo vermelho é o cara da Pati?! — gritou no que a ‘ficha caiu’.
— Ai! — sentiu dores nas costas no que se levantou rápido.
— Calma! Não pode se levantar tão rápido — disse Melissa, ajudando-o a sentar de novo. — E se for verdade, Dudu? Isso explica tudo. Inclusive o fato dele saber que você o
tinha visto e por isso tentou te dopar com os dardos no jardim.
— Meu... Já pensou se a casa da Pati tinha câmeras?
— Como é que é?
— Câmeras Mel... Como as do seu pai.
— Acho que o meu pai sempre foi encanado com essa coisa de segurança. E a Pati dizia que o Senador nem fechava a porta do carro. Daí...
— É... Pode ser que tudo isso tenha contribuído, sei lá, cepá, pro cara entrar sem ser visto todas essas vezes.
— Ou o cara é hacker como você — Melissa viu que Eduardo se assustou com o que ouviu. — E também soube que você tava procurando a tal carta... Aí o tal Ricardo virtual tava
naquele computador quando o Carlos Alberto abriu a página pra você Dudu...
— A Pati sabia? Sobre minha ida ao computador do Judiciário?
— Ah! É! Acho que não. Mas se sabe, não fui eu quem contou. Achei que você tivesse contado pra ela...
— Que confusão, Mel!
— É! Uma baita confusão...
E Eduardo deu um salto da cama.
— Mas que cara esperto... Muito esperto…
— Por quê? — mas ela não ouviu resposta. Eduardo estava eufórico. — Por que Dudu?
— Preciso ir até a cobertura.
— Por quê?
— O computador da Pati... Preciso vê-lo.
— Não vai adiantar. A Pati me falou que deletava todos os e-mails para que nem a mãe, nem o pai soubessem.
— Isso não é problema.
— Como não?
— Posso recuperá-los. Acredite!
— Acabei de falar que ela deletou tudo.
— Teria que ter deletado o sistema todo... Ou por fogo no bicho...
— Fogo aonde?
— Mel… meu doce Mel… Se for um programa interno tipo Outlook e tal, ela poderia ficar desinstalando e instalando o programa de e-mails toda vez que quisesse usá-lo — Eduardo
fez uma careta. —, mas não acredito que a Pati saiba fazer isso. De qualquer forma isso também deixa rastros que posso ler...
— E se o cara que é inteligente como você, tiver ensinado ela a deletar os rastros?
— Então o cara pode ensinar a ela escrever por dentro da Internet, sob falsos IPs, também mascarar o provedor, fazer miséria — Eduardo olhou-a. — Temos que forçá-la a escrever
pra ele.
— Como?
— O computador dela tá na cobertura. O Delegado vai ter que dar um jeito de descê-lo e colocá-lo no quarto dela. A tentação vai ser maior e ela vai escrever pro tal Ricardo.
— Que adianta ela escrever se não vamos ler?
— Aí que se engana. Vou ler sim. Eu posso fazer isso.
— Isso é tema de filme, Dudu. ‘Invasão de privacidade’.
— Chame como quiser, vou ler cada correspondência dela. Cada marquinha que a trilha deixar.
Melissa não pensou duas vezes. Abandonou o quarto no momento que Berenice trazia as bandejas. A empregada ficou sem entender por que ela tinha saído tão rápido. Eduardo também
não comeu, tinha muito que fazer e muita gente para quem ligar. Telefonou também para a delegacia, mesmo tendo receios de sua linha ter escutas.
Achou-se o próprio James Bond.
Fabrício recebeu o telefonema. Providenciou a descida do computador. Em uma hora o computador estava conectado no quarto de Patrícia, antigo quarto de Mariana. A desculpa
foi dada por Melissa, que disse ao pai que Patrícia deveria se ocupar com alguma coisa, e sugeriu o computador.
A demora realmente não foi grande, como previra Eduardo. Melissa estava de antena ligada. Ouviu as teclas do computador sendo digitadas. Correu para o apartamento de Eduardo.
Não perderia por nada, aquele momento histórico: o seu grande amor, fazendo algo realmente importante.
Eduardo digitava rapidamente. Tentava conexão com o seu provedor de acesso, do provedor para o backbone próximo, e para outro, e para outro, e um mundo todo aberto a ele.
Eduardo acessava a Deep Web, uma internet que poucos conseguiam acessar.
— O que tá fazendo?
— Visitando as Marianas.
— Quem?
— Não ‘quem’! Isso é uma alusão às fossas marianas, no Oceano Pacífico, para chamar as camadas profundas de uma Internet proibida, onde crackers, criminosos, piratas digitais
e vendedores de todo tipo de coisa e gente, bolaram para esconder seus domínios virtuais de olhares curiosos.
— E você tá aí por quê?
— Porque se até o mundo dos bons tem um ponto cego, imagina o que o inferno não seria capaz de ter.
— Traduz!
— Tô indo até o provedor da Pati através de camadas, para não ser visto pelos ditos, roteadores normais.
— Ahhh... — e Melissa desistiu.
Eduardo riu do ‘Ahhh’ dela.
— Sabe o que é um guru, Mel? Não, também não sabe né? São os mestres dos hackers, mentes privilegiadas; hackers do bem que trabalham na maioria como segurança em bancos e
financeiras. E não falo dos caras de uniforme e arma na entrada, falo de gente que fica horas no computador atrás de erros que provoquem invasões. Só quem sabe como invadir
sabe prevenir invasões, cepá. E eu conheço um hacker legal chamado Pedro. Ele tem amigos que passam um scanner, uma espécie de malha e leem tudo... Até e-mail. O Pedro trabalha
no provedor da Pati. Vai me ajudar a entrar lá depois que o Fabrício deu carta branca, e as policias internacionais que vasculham as Marianas, liberaram.
— Ahhh… — voltou a soar dela.
Ambos esperavam calmamente quando um sinal foi ouvido.
— Que legal! O Pedro já me conectou lá. Agora liga pra tua casa, Mel. Pede pra Mari ver se o roteador do quarto dela tá piscando — Melissa pegou o celular e confirmou com
a irmã. Acenou positivo com a cabeça. — Ulalá! Ela se conectou e tá escrevendo pra ele… — o computador de Eduardo apitou e um sinal sonoro avisou que havia novas correspondências
na caixa de entrada. O espelhamento do e-mail de Patrícia chegava ao computador de Eduardo na mesma hora que ele entrava no banco de dados do provedor do namorado, Ricardo.
“Te amo! Te amo! Te amo! Sua Pati”, estava escrito na tela que Melissa e Eduardo leram.
Eduardo desligou o computador.
Ficou extasiado recostando-se nos travesseiros.
— Sabe Mel, quando a gente manda um e-mail precisa de um endereço, assim como fazemos com uma carta comum. Então temos um nome de usuário, uma senha e um endereço eletrônico
— e deu uma parada na explicação. — Calcula quem seja esse tal Ricardo?
— Não!
— Aqui tá escrito. Seu nome é Cacá! Deve ter dado seu nickname como nome de usuário. Agora, chuta pra onde foi postada a ‘carta de amor’ da Pati, Mel!
— Não tenho ideia! — respondeu outra vez.
— Pra USP!
Melissa quase caiu da cadeira com o susto.
Capítulo 20
José Liberato estava cansado, a idade chegava rápido. Tinha cãibras, dores na coluna, nos braços. Sentiu que até os dentes postiços doíam, tão tenso ele estava.
Anoiteceu muito rápido, e a delegacia estava quase vazia. Poucos ainda trabalhavam lá.
O delegado José Liberato telefonou para casa, e avisou sua esposa que deixasse o prato no forno e que fosse dormir. Levantou-se, arrumou seus documentos na velha pasta de
couro e saiu.
Olhou para o céu.
— Que Lua feia — pensou em voz alta, caminhando pelo estacionamento quase deserto.
Colocou a mão nos bolsos e não encontrou a chave do carro. Havia deixado na delegacia.
“Velho burro!” xingou-se voltando para a delegacia.
Ia continuar se não tivesse ouvido um barulho.
Algo estalou atrás dele.
— Quem está aí? — perguntou ao vento. Ninguém respondeu. José Liberato balançou a cabeça. Achou ter sido uma impressão. Ouviu um novo estalar. Algo caiu ao lado dele. José
Liberato viu o brilho que fez. Abaixou-se conforme o cansaço permitia e pegou o objeto do chão arregalando os olhos. — Um dardo? — perguntou-se no que algo penetrou seu pescoço.
— Ahhh... Um dardo — desmaiou mais rápido que Eduardo.
Foi arrastado pelo chão do estacionamento e jogado no porta-malas de um carro muito caro.
Capítulo 21
— Não sei Fabrício.
— Mas Rocha... A mulher dele falou que ele ligou dizendo que ia demorar, mas o policial de plantão o viu sair. Só que ele não chegou em casa. São duas da madrugada.
— Já falei... Não sei.
— Pode me fazer um favor?
— De que tipo?
— Consegue uma foto do tal Juca Fumaça e outra do Vermelhão? — Fabrício perguntou para Rocha na delegacia. — Me manda via Whatsapp, que eu sei que você usa. Vou estar aqui
no condomínio. E Rocha... Seja rápido!
— Está bem — concordou o policial coçando a cabeça, tentando saber se o que andava postando na Internet também chegou aos olhos do Delegado.
Fabrício se levantou. Subiu até o sétimo andar do condomínio e foi visitar Mariana. Seu Paulo olhou-o arisco. Fabrício carregava seu computador pessoal.
— Boa noite. Poderia conversar com suas filhas?
— Só vai encontrar minha tochter, minha filha Mariana; minha tochter Melissa tá na casa do namorado. Veja se isso é possível.
— Paulo! — repreendeu Sandra se aproximando deles. — Melissa já é uma mocinha. Estava na hora de namorar.
Fabrício sorriu apenas.
— Dá para chamar as três?
— Por quê? — estranhou Sandra.
— Acho que temos que conversar Senhora... Em família.
O casal encarou Fabrício. Chamaram Mariana, que descansava no quarto. Chamaram Patrícia, mas ela não estava em casa.
Paulo ficou assustado.
— Ela sumiu!
— O quê? — perguntaram uníssonos, Sandra, Fabrício e Mariana que entrava na sala.
Patrícia estava no cemitério. Havia conseguido entrar sem ser vista. Chorava desesperadamente em frente à lápide de seus pais. O túmulo havia sido aberto e fechado recentemente.
Chorava tal qual a criança que ainda era.
Colocou algumas flores na lápide do pai. Sentia falta dele, mais do que da mãe, sempre ausente.
Mas alguém estava atrás dela.
— Ahhh?! — Patrícia deu um grito, que foi abafado pela mão que lhe segurou a boca. — Você me assustou… — falou Patrícia para o rapaz atrás dela. — Por que tá aqui? Tava me
seguindo? — mas ele não respondeu. Ainda a olhava sem se mexer. Patrícia voltou a olhar para a lápide. — Sabia que seus corpos foram tocados pela polícia? Eles descobriram
que meu pai morreu primeiro. Não entendo. Quem matou minha mãe? Por que, Cacá? Por que a mataram afinal? — continuou sem responder. — Por que me olha desse jeito estranho?
Não!!! — gritou para a mão que se levantara contra ela.
Patrícia foi atingida com o vaso de flores que havia trazido.
Capítulo 22
O policial que vigiava o apartamento de Eduardo saiu correndo para o apartamento de Fabrício. Precisava avisá-lo de algo. Não o encontrou, mas foi achá-lo no apartamento dos
Jung, ainda chocados com a notícia que era um policial disfarçado, e ainda mais chocados quando Mariana identificou Juca Fumaça, como o motorista do carro verde que as atingira
no acidente.
Contudo Fabrício ficou cabreiro com a foto de Vermelhão. Tinha fé de que Mariana o reconheceria, mas ela nunca o havia visto, nem mesmo em frente à escola.
Chamaram Fernando, no segundo andar. Fernando foi pior ainda. Não reconheceu nenhum deles. Havia sido atingido por trás quando entrou no quarto de Cibele, e não viu o cara
que empurrou Eduardo pela janela, pois estava de máscara.
Estava tudo na mesma, a não ser a prisão decretada para o tal detetive de Brasília. A Polícia Federal não demorou a localizá-lo. Encontraram-no numa espelunca, assistindo
a um show de strip-tease, nas bocas de Brasília. Foi levado para a delegacia e preso após Osmar, por trás de um espelho falso, ter confirmado ser ele o detetive que prestava
serviços ao Senador.
Ele não demorou a falar o que Fabrício e Rocha já sabiam: que o Senador não queria matar sua mulher. Fabrício leria isso mais tarde, num e-mail enviado a ele. Disse que o
próprio Senador queria chantagear a mulher com as fotos dela e do amante. Queria ameaçá-la de mostrar as fotos a Patrícia, para assim forçá-la a largar o vício. Mas nunca
teve coragem de magoar a filha com a imagem de uma mãe promíscua.
O policial chegou quase sem voz.
— O menino fugiu!
— O quê? — Fabrício levantou-se da cadeira da sala dos Jung.
— O menino e a menina me pediram para pegar uma caixa de leite no alto da dispensa. Quando me virei... Eles não estavam mais lá.
— Mel?! — gritou dona Sandra ao desmaiar.
— Mãe? — descontrolou-se Mariana.
— E a empregada?
— Estava no banho.
— E o pai do garoto?
— No hospital.
— Droga! Mas que droga. Você não podia segurar os dois meninos?
— Eu interfonei para o seu Almeida, mas ele me disse que por lá não saíram.
— Dudu sai sempre pelo portão sul. O Zé abre pra ele o tempo todo — falou Mariana sob protestos de Fernando.
Fabrício correu até o apartamento de Eduardo. Pensou em ligar seu computador, mas não precisava ser tão bom quanto Eduardo nos computadores, para hackear algo.
Eduardo havia deixado na tela de seu computador três letras bem grandes: ‘USP’.
— Meu Deus… — foi só o que falou o policial Fabrício, indo atrás deles.
Capítulo 23
A Universidade de São Paulo estava deserta àquela hora da madrugada. Fabrício entrou silenciosamente. Um verdadeiro massacre o esperava. Ele encontrou cadeiras quebradas no
meio dos corredores, vidros espalhados por todos os lados, um rastro de sangue no chão.
— Meu! — exclamou ao passar a mão e verificar ser isso mesmo. — Mas quem? — se perguntou.
O jovem policial havia pedido reforço no caminho, mas chegou lá primeiro e chegou à Cidade Universitária mais rápido que a turma da delegacia. Caminhava naquele momento por
salas vazias e destruídas quando tropeçou.
“Droga!” esbravejou um silêncio.
Parecia ter havido muita luta por lá.
Fabrício ouviu vozes ao longe, tentou se localizar naquele espaço quase escuro. Nunca havia estado naquele lugar.
Chegou mais próximo do som e encontrou Eduardo caído ao chão.
— Eduardo? — chamou o rapaz quando foi atingido por trás.
Fabrício caiu ao chão. Tentou se erguer, mas foi atingido outra vez, por um chute perfeito.
Foi ao chão novamente, dessa vez fingindo ter desmaiado de olhos fechados.
Pôde perceber a respiração se afastar.
‘Estará sozinho?’, pensou Fabrício.
Esticou o braço lentamente e puxou Eduardo pela gola da blusa. Ele estava desmaiado, mas respirava.
— Eduardo? — chamou outra vez, agora perto dele.
Eduardo abriu os olhos. Estava atordoado, quase não enxergava naquela escuridão. Sua boca sangrava; havia apanhado muito.
— Ele pegou Mel... Pati... — e desmaiou de vez.
— Desgraçado!!! — gritou Fabrício atingindo o estranho que não esperava aquela reação.
— Ahhh... — de máscara, o estranho caiu no chão.
O estranho mascarado tentou se levantar, mas Fabrício girou outra vez; 360 graus de perfeição. Outra vez o estranho mascarado foi ao chão. Fabrício sobre ele. Seus corpos
rolaram de um lado para o outro.
Tentavam se socar.
— Sei quem você é — desafiou-o. Mas o estranho mascarado gargalhou. Fabrício tentou tirar-lhe a máscara e o estranho desviou atingindo-o. Seu estômago entrou centímetros para
dentro.
O policial estava ao chão, contorcido.
O estranho mascarado se levantou e acendeu as luzes. Fabrício abriu os olhos e viu-se num enorme tablado, que parecia ser um palco.
— Voilà! — foi o que Fabrício ouviu.
— Gosta de representar, Ricardo? — foi o que Fabrício falou.
O estranho mascarado riu demoradamente.
— Meu nome não é Ricardo.
— Não. É ‘Cacá’, o ator.
— Exato! Escolhi a profissão errada; gosto de ser teatral — ria Carlos Alberto ‘Cacá’ com ironia ao arrancar a máscara. — Sabe... Desde pequeno que o mundo realiza minhas
vontades. Nada mais justo que um cenário pra representar, não acha? — respondeu com uma pergunta.
— Você é ridículo, Cacá... — Fabrício falava debochado. — Ninguém se vangloria de misérias e é só isso que construiu.
— Não foi não! E o pai de Patrícia sabia disso. Vinha me combatendo durante esses anos. Ia a plenário me desmoralizar. Eu... Logo eu... O melhor, o filho do desembargador.
— E quem é você? Filho de um corrupto?
— Cale-se! Meu pai não é corrupto — e voltou a bater nele.
— Não... Ele não... — tossiu pela dor, pelo sangue na boca. — Que pena que não puxou a ele, não ‘Cacá’? — e Fabrício levou outro chute quando sacou a arma do coldre, e ficou
apontando sem saber ao certo para onde, com a vista embaçada e todas suas forças esvaecendo.
— Parado aí, meu!!! — gritou com a arma também em punho. — Devagar. Vai soltando devagar — ele viu o jovem policial largar a arma que carregava ao ver que ele apontava a arma
agora para a cabeça de Melissa.
Mas Fabrício sorriu calmamente, com o sangue frio a correr-lhe nas veias.
— Você não tem estômago para isso.
— O que? Acha que não? — Carlos Alberto caminhou para o lado dele arrastando o corpo desmaiado de Melissa com ele.
Fabrício não gostou daquilo e Carlos Alberto percebeu o interesse dele por Melissa.
— Ah! Veja só… O metido a tira americano tá com dózinha da garotinha?
— Você não tem estômago para isso — repetiu Fabrício com cinismo na voz.
— Acha que não sou capaz? Pois sua amiguinha vai morrer por sua causa, policial babaca.
Melissa se espremeu por dentro da fita adesiva que colava seus lábios. Também estava amarrada a um pedaço de tecido.
Fabrício olhou para os lados, para cima, para o chão:
— Já ouviu falar em Notre Dame? — perguntou.
Carlos Alberto se assustou com a pergunta.
— Do que tá falando, meu? — perguntou, ainda perto de Melissa.
— Da igreja. Igreja de Notre Dame.
— Já fui lá, e daí? — começou a se aproximar, agora de Fabrício, que sem sua arma se esticou na parede fria às suas costas.
— Há muito tempo dizia-se que havia demônios na igreja. Homens defeituosos, bruxos, feiticeiros... Paris era uma cidade infectada pela peste.
— É mesmo? — ironizava Carlos Alberto, que encostou o cano frio na testa do policial.
Deliciava-se com o suor que corria do rosto dele.
— Havia um homem na cidade que se chamava Father X. Era um exorcista.
— Que policial babaca, meu. Ah! Vai... Tá bom... Continua... Tô gostando da historinha pra boi dormir — ria.
Melissa olhou para Eduardo. Ele sangrava, jogado do outro lado da sala. Tinha as mãos amarradas, tal qual ela. Já Patrícia acordou, ficou encarando Carlos Alberto ‘Cacá’ ou
Ricardo virtual com lágrimas a escorrer dos olhos, percebendo o engano que fizera, percebendo o quanto havia errado.
Melissa voltou a prestar atenção no policial Fabrício que tentava, a todo custo, chamar a atenção de Carlos Alberto.
— Vamos idiota... Continua! Tô começando a gostar.
— Um dia, Father X foi chamado para exorcizar a Igreja de Notre Dame — falava Fabrício compassado, sem se preocupar com o tom irônico do agressor. — O rei não queria mais
frequentá-la, e a plebe não entrava mais lá. Father X passou uma semana sozinho dentro da igreja, e quando saiu, encarou o povo dizendo: ‘Libertei seus bruxos, seus piores
pesadelos!’.
— Eu sou seu pior pesadelo, policial babaca!!!
Fabrício, porém não se descontrolou, continuando a falar.
— ‘Não!!!’; gritava o povo ensandecido. ‘Não fizemos nada a Deus!!!’; Father X riu e disse: ‘If you believe in the light it’s because of obscurity; If you believe in happiness
it’s because of unhappiness; If you believe in God, then you have believe in the devil’* — e Cacá caiu no chão pelo tiro certeiro da arma do Delegado José Liberato. Fabrício
sorriu com gosto. — E que você seja bem-vindo no inferno! — completou para o rapaz ferido.
Todos se olharam.
* Se você acredita na luz é por causa da escuridão. Se você acredita na felicidade é por causa da infelicidade. Se você acredita em Deus então vai ter que acreditar no diabo.
Final
— Sabia quem era o fio da meada esse tempo todo? — questionou o Delegado José Liberato para Fabrício na saída da USP, logo após a chegada do reforço pedido por ele.
José Liberato tentava extinguir um fio de sangue que escorria de seu pescoço. O dardo com tranquilizantes havia rasgado a sua pele envelhecida.
— Não! — respondeu Fabrício, olhando Eduardo ao seu lado. — Foi o expert em computadores, aqui — e Fabrício o abraçou.
Eduardo sentiu dores nas costas.
— Ai — contorceu-se todo.
— Então foi você! — falou José Liberato todo sorrisos depois de dormir muito tempo no porta-malas do assassino.
— Não foi tão difícil assim, depois que cismei que o cara tinha que ser alguém muito perto da gente. Quando a Mel falou sobre o namorado virtual da Pati e o quanto sabia sobre
ela, fiquei lembrando umas coisas que ouvi a Berê falar, algo tipo, a mãe da Pati namorava todos os namorados dela, que tinha fissura por moleque e tal. Acredita que ela deu
em cima do Fê só porque namorou a Pati? — chacoalhou a cabeça. — Então pensei... É isso, o cara que transava com ela era o namorado da Pati. Só não imaginava que fosse ex
e atual ao mesmo tempo.
— Como assim Eduardo?
— Cacá é apelido de Carlos e não de Ricardo, e a Pati havia namorado o tal de Carlos Alberto, filho do desembargador. O cara errou ao usá-lo como nickname. Além do mais, era
a única pessoa que poderia mandar o Trojan Horse de volta para mim, na mesma hora que eu acessei a página do Judiciário...
— E você acessou o judiciário? — a voz de José Liberato foi mais para provocar medo que outra coisa.
— É que eu... Eu... — olhou um e outro. — Sim... E era pouco provável, mesmo que um cara estranho estivesse na mesma rede, e não tivesse aparecido pro Carlos Alberto. O vírus
tinha que ter vindo do mesmo computador. Foi uma coincidência e um azar muito grande eu pedir ajuda logo pro assassino, né? — balançou a cabeça, descorçoado.
— Coincidência ou não isso o deixou descontrolado — falou Fabrício. — Ele achou que você era um empecilho e partiu para o ataque.
— É! Ele cismou comigo desde a hora que o senti naquele quarto — Eduardo respirou bem fundo. — Mas, afinal, por que ele matou o Senador?
— Carlos Alberto era um menino mimado, acostumado a ter suas vontades. Só que se envolveu com amigos errados, e o pai não percebeu — disse o Delegado.
— Acontece muito! — exclamou Fabrício.
— O pai, um desembargador, sempre dentro da mais perfeita ordem, não percebeu que um dos carneiros de seu rebanho escapava ao seu controle e ordem. Carlos Alberto era viciado,
já havia sido preso por ter agredido uma namorada e quase matado um menino num simples jogo de futebol. Era um rapaz com problemas sérios de adaptação social e o pai sempre
abafava tudo — e José Liberato tentou secar o sangue que voltava a escorrer. — As boas notas na faculdade pareciam ser ‘borracha’ para o pai.
— A dificuldade de adaptação social para um indivíduo nos dias atuais não é muito diferente da dificuldade de adaptação séculos atrás. Port isso o bullying se infestou tanto
na nossa sociedade. Pais e mestres vêm muitas vezes esses jovens como excêntricos, cheios de mania, mas que transbordam problemas de ética.
— Nosso professor disse que o critério da ética não pode ter fundação na adaptação social.
— Exato menino Eduardo. Muito exato!
— Mas nem sempre a adaptação num grupo social é uma falha do cara.
— Exato menina Melissa — sorriu o delegado. — Será que deveríamos realmente nos adaptar a uma sociedade doente?
— Mas afinal, por que ele matou o Senador?
— Sabe, menino Eduardo, com certeza, certeza mesmo nada pode afirmar, a menos que o tal Carlos Alberto conte. Mas podemos fazer uma pequena retrospectiva.
— Consegue visualizar o que aconteceu realmente naquela noite, Delegado?
— A minha experiência permite, como você disse, ‘visualizar’, mas será só isso. Veja bem, o Senador contratou um detetive particular. Esse detetive tirou fotos comprometedoras
da esposa e o menino Carlos Alberto para ele chantagear a esposa.
— Aí veio a festa...
— Aí veio a festa que a menina Patrícia avisou o pai que iria. Eu imagino que o Senador queria dar um basta naquilo e chamou o menino Carlos ‘Cacá’ Alberto para uma conversinha,
quando chegasse a São Paulo, aproveitando a saída da filha. Deve ter inventado alguma história para arrastá-lo até a cobertura. Mas o menino, porém, estava arisco. Tinha medo
de Cibele se denunciar ao vê-lo lá. Isso já vinha deixando-o descontrolado. A empregada deve ter aberto a porta para ele e se retirado. Quando o Senador chegou, levou-o para
a biblioteca e entregou-lhe um documento qualquer que provava sua participação no crime, que vinha investigando nos portos, ou talvez algumas fotos, não sei. Tentou mostrar-se
decidido a entregá-lo à polícia. Deve ter havido discussão, e alta. Muita gente ouviu gritos nos andares abaixo da cobertura. Contudo o Senador quando viu que de nada adiantaria,
se dirigiu ao quarto brigando, não sei, e que numa distração de Carlos Alberto, aproveitou e sacou a arma que sempre guardava na gaveta da mesinha de cabeceira. Mas a ideia
do Senador era outra: queria culpar o Carlos Alberto de sua morte e assim afastá-lo de vez. Meus policiais são bons, disseram-me que a arma foi disparada pelo punho do próprio
Senador. O menino deve ter ficado em pânico quando viu ele se matar, não sei. Correu e escreveu a tal carta que estava um tanto ilegível, tentando parecer um suicídio. Iria
atestar aquilo até o fim. Mas o tiro foi ouvido pela empregada, que desmanchava as malas da patroa que sempre as abandonava à porta da entrada, para que as roupas fossem lavadas
e passadas. A menina Patrícia disse que ela sempre fazia isso após cada viagem. A empregada viu a cena do Senador morto e correu. Carlos Alberto deve ter ido atrás dela e
no caminho, arrebentou a caixa de vidro onde o Senador colecionava as armas, tirando a adaga. A empregada pegou o telefone, ligou para o único número que lembrava, o do celular
da menina Patrícia, e saiu em disparada. Ele a alcançou, e ela foi a segunda a ser morta, mas a primeira pela adaga. Percebe aí o erro? — José Liberato viu Fabrício e Eduardo
se olharem.
— Eu disse a Mel que se um ladrão tivesse entrado pra roubar ou matar, levaria sua própria arma.
— Sim. Carlos Alberto não estava preparado para aquilo, foi coisa de momento — pigarreou, coçou o cavanhaque. — Bom... O motorista ouviu os gritos, os mesmos que a menina
Patrícia e a menina Melissa ouviram ao telefone, e correu atrás sendo surpreendido pela fúria de Carlos Alberto que, talvez meio dopado, tinha de estar, atacou o motorista
na cabeça e arrastou-a por toda a sala. Era o sangue do motorista que pintava as paredes de vermelho. Depois subiu e matou Cibele, que devia estar gostando de tudo aquilo,
no resto de cólera que sobrava — o Delegado viu Eduardo se espremer.
— Então eles se conheciam?
— Sim! O Senador e o pai de Carlos Alberto eram amigos e trabalhavam num projeto de lei que proibia a entrada de pequenos navios estrangeiros nos portos brasileiros. Esses
navios traziam sempre contêineres que não eram abertos por política interna do porto. O Senador desconfiava que os contêineres carregassem drogas pesadas e pediu ajuda a seu
amigo. O Desembargador, pai de Carlos Alberto, investigou e chegou em Juca Fumaça, líder do bando e dono do barco Lili, que costumava navegar sem bandeira de origem. O garoto
sempre estava por perto e tinha acesso a essas informações. Foi atrás de Juca Fumaça pensando em ter drogas à hora que quisesse. Juca Fumaça confirmou na delegacia que havia
sido procurado pelo filho de um grandão, mas não disse quem, e em troca das informações de como andavam as investigações, receberia drogas. Nem o pai nem o Senador sabiam
do envolvimento de Carlos Alberto.
— Que cara esperto, não? Tinha a faca e o queijo na mão, e soube usar — falou Fabrício. — Então, através da Internet, mostrou-se para Patrícia como outro apaixonado, mudando
o nome para Ricardo, a fim de sacanear o Senador e sua família.
— Cacá! Cabelos vermelhos! — lembrou-se Eduardo. — O que vai acontecer com a Pati?
— Ela vai estudar na Suíça. Estava tudo programado e já pago pela mãe, que queria se livrar dela e ficar com o menino Carlos Alberto só para ela. Ele era jovem, tinha fogo,
e a drogava o tempo todo.
— Cruzes! — exclamou Eduardo. — E a tia? Seu Paulo disse que não a convenceu!
— A tia estava foragida. Tinha dado muitos cheques sem fundo na praça. Quando soube que a polícia estava atrás dela, sumiu. O pai da menina Melissa a encontrou trabalhando
numa lanchonete, e prometeu pagar todas as suas contas se ela assumisse a menina. Acho que agora que ela sabe que a Patrícia vai morar na Suíça, talvez aceite.
Os três deram de ombros e os dois policiais deixaram Eduardo entregue em seus devaneios. Eduardo imaginava o futuro sombrio de Patrícia de Moura. Olhou para frente e viu Melissa
abraçada ao pai. Teve vontade de abraçá-la também.
Sentia dores, sono, paixão. Melissa o viu observando-a. Ele desviou o olhar quando percebeu ter sido pego.
Eduardo estava feliz ao todo, por ter seus amigos seguros, fora de perigo. Mas mais ainda, por saber que era apaixonado por sua melhor amiga.
Melissa largou o pai e foi ao seu encontro.
— Ainda quer me namorar?
— Não te defendi como o Fabrício fez. Não sei se mereço você...
Melissa riu:
— Sabe que eu acho?
— Não.
— Acho que você não vai crescer nunca, né Dudu? — e o beijou.
Um beijo fadado a não terminar.

“A amizade é o conforto indescritível de nos sentirmos seguros com uma pessoa, sem ser preciso pesar o que se pensa, nem medir o que se diz”.
George Eliot.

 

 

                                                   Marcia Ribeiro Malucelli         

 

 

 

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