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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FLAMINGOS DOURADOS / Carlos Vale Ferraz
FLAMINGOS DOURADOS / Carlos Vale Ferraz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FLAMINGOS DOURADOS

 

               Vai até onde não puderes, Mano

Ao chegar a casa, descobri entre o monte do correio um enve­lope sem remetente, mas com a letra inconfundível do Manuel Costa. Abri-o com a displicência que dedico aos avisos para os pagamentos das contas enviadas por essas entidades tão longín­quas e inacessíveis como os deuses que dão corda ao mundo e fornecem água, luz, telefone, limpeza de esgotos, seguros de vida, complementos de reforma e até, e este é o último sinal dos tempos difíceis que vivemos, pompas fúnebres pagas adiantadamente.

Ele devia informar-me das razões do seu mais recente desa­parecimento, ou anunciar-me o próximo reaparecimento, porque aparecer e desaparecer são uma das suas especialidades. Julgo que a magia é a verdadeira vocação dele. Já o vi esfumar-se e materializar-se por causa de mulheres, de homens, de juizes, de advogados, de pais de virgens que deixaram de o ser, de mari­dos ciumentos e até para se esconder de filhos esfomeados. Tanto desaparecia daqueles que num dado momento considerava ami­gos, como surgia à frente dos inimigos.

O Manuel Costa é um velho astucioso, decadente e libertino, que assumiu o papel de génio incompreendido a quem o mundo e a humanidade têm o dever de aturar e sustentar, por esta ordem ou pela inversa, e há mais de quarenta anos que fez de

mim um dos seus socorristas particulares. Por isso me trata muitas vezes por Cento e Quinze, o antigo número do serviço de emer­gência.

Exagerar as aventuras e os perigos faz parte da farsa que escolheu representar ao longo da vida, mas esta carta trazia indí­cios de existir algo que verdadeiramente o preocupava e assus­tava. É que ele não me pedia dinheiro, dinheiro para a renda do quarto, para a comida e a bebida, para desempenhar os tare­cos, e também não anunciava os últimos progressos das doen­ças crónicas que o sustentavam como a um trofeu de caça, nem mesmo derramava veneno crítico sobre confrades escritores, editores, poetas e jornalistas. Não lhes chamava burgueses nem totós.

Não, ele revelava-me, com uma serenidade desarmante e até, presumo, com um orgulho de jovem recruta sitiado, que caíra no meio de um acerto de contas. O que para ele era uma abso­luta novidade.

«Meu estimado Cento e Quinze, Mano caríssimo, sinto-me enrolado por uma onda de mar, como daquela vez em que me levaste à praia da Foz do Arelho para curtir os pulmões com a maresia e estive em riscos de morrer afogado, vestido e calça­do — maldita água que me salgou o belo almoço que pagaste!»

No final da carta, informava-me do envio em breve de uma encomenda com revelações bombásticas.

Passados alguns dias, um toque de campainha na porta fez-me rever o Paulocas, especado como cristão-novo diante do Santo Ofício, com os braços longos e magros esticados pelo peso do embrulho que o pai o encarregara de me entregar.

O Paulocas, o único dos vários filhos do Manuel Costa que não lhe desaparecera, depositou o paralelepípedo no soalho do átrio com a indiferença dos contínuos dos tribunais, para quem tanto pesa um assassínio como um furto, e ficou a olhar-me com a cara de tristeza e fome dos cachorros criados ao deus-dará e que os técnicos do serviço social classificam como produtos atípicos de famílias disfuncionais.

Dei-lhe de comer e o Paulocas informou-me de que aboletava em casa de amigos e que recebera as últimas notícias do pai através de uma enfermeira do centro antialcoólico onde estivera a fazer uma desintoxicação.

— Que personagem dotada de poderes tão extraordinários lhe conseguiu impor uma temporada sem beber?

O Paulocas encolheu os ombros. Esgotara o pouco que tinha para dizer. Despedi-o com umas notas avulso para despesas urgen­tes e fui-me à encomenda com a tesoura de cortar os barbantes de outros processos.

Aberto o fardo, ajoelhei-me diante de um grosso maço de cadernos de diversos tamanhos e tipos, em diferentes estados de conservação, escritos a tinta e a lápis, folhas avulsas, cópias a químico, desbotadas pelo tempo, de artigos saídos ao longo dos últimos anos, páginas arrancadas a revistas de actualidade para recordar e anúncios de produtos esquecidos, livros impres­sos em papel pardo, requerimentos selados sobre papel azul da Companhia do Prado, cartas recebidas, caixas de várias formas e, inevitavelmente, panfletos. Panfletos que eram a varanda donde o Manuel Costa predicava às massas sobre as pulhices alheias, que eram o chapéu onde recolhia as moedas devidas ao artista, que eram o querosene que expelia em línguas de fogo, que lhe asseguravam o reconhecimento da comunidade e provo­cavam nela até algum receio.

Os famosos panfletos costais! Em edições limitadas, vendidos, recusados, apreendidos, copiados, censurados, fontes de ódios, motivo de ameaças, contribuíam com a sua quota-parte para acen­tuar em mim a sensação de estar perdido no meio de um caos primordial. O primeiro da resma era o que segue:

Os flamingos

Dizem-nos que o Diogo, o Miguel e o Gregário são a trindade que lança bênçãos do altar da Fundação que por ele e para ele criou o homem que quer ser o Pai da Nação.

Dizem-nos que para a corrupção se reúnem na Sala dos Flamin­gos e para a fornicação no cabaré Flamingo Dourado.

Pois são lugares de nomes muito adequados, porque, tal como as aves pernaltas, estes flamingos aprenderam a ficar horas em pé, a esticar o pescoço e a bater asas em danças e saracoteados, en­quanto esperam a felicidade de um dia ganharem o direito a ficar eles sentados.

Desejamos buscar este meio para lhes atalharmos traições e rou­bos tão públicos e escandalosos que parece que nos querem vender até a própria lei que temos.

É que eles não têm ciência, não praticam nenhuma virtude e, corruptos como são, não têm emenda nem perdão.

Que estão eles a tramar na dita Fundação chamada do Homem e da Obra?

Porque meios extraordinários ganhou a fortuna o Diogo Soares, conhecido como o Guedelha? Não sabemos, mas conhecemo-lo como vendedor de ofícios públicos e fazedor de lisonjas.

E porque trouxe para junto de si o cunhado Miguel Vasconcelos, agrário, cabo forcado, de inquieto engenho, fazendo-o seu sócio?

Sobre o Gregório Taumaturgo há que perguntar donde veio, como medrou? Dizem que em Angola a primeira mulher matou, que tentou uma sobrinha e que no retorno a Portugal casou com uma Marianinha, e que esta lhe rendeu a fortuna.

São estes três estafermos conhecidos do vulgo pelos tens-tens e entre eles pelos temos-temos.

Mas o seu verdadeiro nome é flagellum patriae e já basta o que têm, se quiserem mais dar-lhe-emos o sinal de alto ao saque, com o mais que constará na devida pontualidade.

O Manuelinho, com o senado todo junto

Por deformação profissional repugnam-me as denúncias anó­nimas, as quais para o Manuel Costa serviam tão bem como as outras para dar uns coices. Discordamos em quase tudo, mas ele teceu uma teia de cumplicidade à minha volta da qual não sou capaz de me libertar e sem a qual, em boa verdade, sentiria um vazio ainda maior na minha vida.

Ele é a minha má consciência e deve estar agora a embebedar-se, enquanto me encontro aqui de espinha dobrada sobre este monte de papéis.

Sou um adepto do método, da organização, e acreditava que haveria da parte dele alguma lógica, alguma intenção deliberada escondida nesta balbúrdia de despojos recolhidos a esmo depois de uma tempestade. Já desesperava, acreditando que o farsante apenas quisera alijar sobre mim parte da carga comprometedora que temia atirar ao lixo antes de mais uma mudança de escon­derijo, quando descobri, dentro de um caderno de capas pretas, uma folha escrita na letra miúda dos míopes, que eu tão bem conhecia:

Caro, caríssimo Cento e Quinze

Ainda agora e de olho alerta.

Garanto-te, Mano, Mano Serafim, que meço cuidadosamente todas as palavras. Embora não exista o espectro (nada agradável) da Rua António Maria Cardoso (onde agora os Braganças Pio Pio, associados aos patos-bravos da construção civil, transformaram a sede da PIDE em belos apartamentos de novos-ricos), tenho andado a defender a pele (algo escoriada) e a tentar por todos os meios não repetir a situação porque passei no Limoeiro, depois de não conse­guir fintar os mandados de captura do tribunal da Sertã, por causa do atentado ao pudor (que, se o tinha, bem o disfarçava) da mãe da Naná, a minha primeira filha.

Aqui vão estes documentos muito melindrosos. Dizem respeito a uma conjura montada para arrasar um monumento vivo! Estás a pensar que desta vez é que me deu a traquibérnia. Viste-me sempre mijar nos pés dos monumentos dos mortos e dar casquinhadas na cabeça dos candidatos a monumentos vivos. A verdade é que encontrei um fóssil em circulação, mas, para meu azar, no momento

em que os caçadores de tesouros o queriam emparedar, e com ele os que estivessem próximo, com a desculpa, que já não devia existir, de que era uma aberração histórica, de que não estava vivo, de que fora mal enterrado.

É evidente que parece muito razoável esta preocupação com o respeito pela ordem sequencial em que cada vivente deve cumprir as suas obrigações. O que seria da humanidade se os pais não des­sem o lugar aos filhos? Por isso é que nalgumas tribos primitivas estes os matavam quando atingiam uma certa idade e o respeito aos mais velhos só foi instituído quando um deles conseguiu convencer o descendente de que os seus conselhos e experiência valiam mais do que a sua carne. Digamos que foi o primeiro homem a ganhar a vida como consultor. Mas por detrás desta razoabilidade sincrónica existe muita escória disfarçada.

Como verás ao apreciar o material, o deus do ouro e os crimi­nosos por ambição encontram-se reunidos na mesma capela, cris­mada de Fundação o Homem e a Obra. É a História de Portugal no seu esplendor máximo. A mim lembra-me a época do egoísta e depravado rei João, que construiu o Convento de Mafra para agra­decer o milagre de a mulher engravidar (ele lá sabia porquê), rodea­do por acólitos freiráticos frequentadores do bordel real no Convento de Odivelas, a conspirarem e a exigirem mais e mais benefícios, e os cortesãos caídos em desgraça acusados de traição a apodrecerem nas masmorras ou mandados para o patíbulo.

O infeliz que encontrei numa taberna (que são as salas de estar nacionais) chama-se Francisco Manuel, passou seis anos preso no Forte da Torre (a mais classificada das pousadas nacionais do géne­ro) e está desde que de lá saiu internado num depósito de mortos-vivos que não consta de nenhum roteiro da cidade.

Foi acusado de um crime que garante não ter cometido, como vingança por outros em que terá participado, mas que não podem ser levados a tribunal, pois comprometeriam quem o acusa, que é simultaneamente quem o condenou, e querem dele uma jóia da coroa desaparecida no tempo do António, Prior do Crato, quando fugiu de Portugal com o escrínio real!

Agora vamos ao ponto crucial. Preciso que organizes um livro. Pode ter a forma de romance (até conviria, porque na ficção podem dizer-se as verdades com maior liberdade e menor risco), tendo por base o panfleto que aqui te mando.

Deves estar a perguntar-te (e a perguntar-me) porque não o escre­vo eu, já que tempo é a única coisa que não me falta (ideias também não). Em primeiro lugar não sou, nunca fui, romancista no sentido que os catedráticos de letras ensinam às futuras professoras de liceu. (Sou renitente à semiótica.) Nem estou inscrito na agremiação dos ditos, porque o amanuense do Arquivo Nacional de Identificação recusou inscrever-me como tal, afinfando-me com o argumento definitivo de que essa profissão não estava contemplada na lista do Ministério das Corporações! Aconselhando-me a declarar-me palha­ço, que essa era actividade reconhecida, caso quisesse aceder aos benefícios da segurança social.

Nunca mais voltei a tentar e não será agora que vou iniciar uma carreira habilitado com alvará e tudo.

Depois, a minha situação actual, de foragido, e a passada, de bêbado, de doido, e a futura, com os mecenas a ameaçarem cortar-me a colecta só por ter anunciado a intenção de rever a Arte de Furtar com o subtítulo: Novos Artistas, não me permite aparecer como autor de um romance deste quilate.

No antigamente, o papel da literatura perante um caso como o que lerás era o de fazer sair uns opúsculos clandestinos, ou a passa­gem dos escritores à acção militante. Desgraçadamente cheguei à conclusão de que qualquer destas soluções me assusta. Deve ser da velhice. Mas ainda me custa colaborar no silêncio do come e cala.

Enfim, aqui tens o material para ires ao pêlo dos Flamingos e do seu patrono.

Quando isto acalmar, apareço-te aí com a minha gabardina e chapéu.

Um abraço, Manuel Costa

Dias mais tarde, o telefone de minha casa trouxe-me a surpresa de ouvir em directo a voz cavernosa de tabaco e álcool do Manuel Costa a perguntar-me como ia o meu trabalho.

A desfaçatez dele não conhece limites! Nem a imprudência. Devia saber que quase de certeza tenho o telefone sob escuta!

Disfarcei como pude o pedido de instruções sobre o modo como ele gostaria de ver a sua obra, já não digo escrita mas orga­nizada, e ele respondeu-me com uma das famosas gargalhadas costais, que quase destruía o frágil tímpano da meu modernaço aparelho, pois que, para facilitar as gravações, fabricam-nos agora mais sensíveis que hímenes das virgens adolescentes pelas quais o Manuel Costa sofreu os incómodos da justiça.

Depois de ter esgotado o ar dos pulmões, puxando-o desde os testículos que produziram a semente do heteróclito rancho de filhos de várias mães espalhado pelo território nacional (incluin­do Angola e um até, segundo os biógrafos, adoptado por uma família alemã), numa habilidade, ou arte, que lhe granjeara o direito a oito linhas impressas na Antologia da Boémia organi­zada por alguns amigos, incluindo aqueles contra quem, sempre que lhe deu na mona, soltou umas casquinadas como forma de escárnio e mal-dizer, o Manuel Costa disse-me que fizesse dos papéis e do que lá estava escrito o que muito bem entendesse. Por ele, os admiráveis textos estavam formados em bicha na memória casual. E desligou com mais uma das gargalhadas que, a acreditar no douto juízo impresso nas sete linhas concedidas pelos reputados mestres neo-realistas Lopes e Saraiva na sua cele­brada História da Literatura Portuguesa, lhe garantiam maior notoriedade do que a actividade literária.

O seu magnânimo despacho fez com que durante o trabalho de tentar descobrir o fio condutor das peças me sentisse como uma criança a quem um tio de vida aventureira entregou uma caixa cheia de fantásticos objectos carregados de segredos e memórias.

O produto do meu exercício de paciência, e também de desespero, é o texto que segue, o qual, após o nhil obstat do

Manuel Costa e com alguns apartes que lhe introduziu, come­çará por se chamar «Uma Vida Violenta» em homenagem ao capitão Francisco Manuel, da extinta tropa dos Aventureiros.

O Manuel Costa pediu-me que abrisse o livro com uma cita­ção do Shakespeare.

 

                 Uma vida violenta

                 Sopra, sopra, ó vento de Inverno,

                 Pois tu não és tão cruel

                 Quanto a ingratidão do humano ser:

                 Menos afiados são os teus dentes

                 Porque te não podemos ver,

                 E embora seja rude o teu sopro

                 Ao verde azevinho, hey-ho, cantas terno.

                 São loucura os amores; e a maioria das amizades fingida,

                 Por isso é tão agradável esta vida...

                                               Shakespeare (As You Like It)

 

                     A Casa do Desterro

— Já não sei onde ia... Os médicos acusam-me de ser paramnésico...

— Os médicos não acusam, diagnosticam.

— Se todos me acusam, porque não os médicos?

— Lá isso... basta pormo-nos a jeito para nos acusarem... tenho experiência...

— Os psiquiatras acusaram-me de misturar o presente e o pas­sado, o real e o imaginário.

— Eu também tenho vivido com um sentimento de estra­nheza, não me lembro sequer do que lhe queria perguntar...

— Como também devo ter esquecido a resposta, não se perde muito...

— Já sei! Como é que um homem da sua valia, com o seu passado, com a sua carreira, com os seus serviços à Pátria, cai numa situação destas? Há-de haver uma explicação para esta injustiça!

— A injustiça, como é geral, passa a ser justa!

— Para esta vergonha, porque é uma vergonha o que lhe andam a fazer há tantos anos!

— Para a vergonha existir é necessário haver consciência e honra. Ora a honra e a consciência são hoje duas peúgas rotas. E como é prejudicial ao comércio passajar peúgas...

— Porra para as peúgas!

— ... temos de esperar pacientemente a nossa vez.

Os dois homens, de pêlo gasto como o dos velhos cães aban­donados, conversavam recolhidos numa espécie de cela de con­vento, àquela hora da noite em que o silêncio tem o peso de um último suspiro. O ar frio que pairava entre as quatro paredes manchadas de humidade e o alto tecto salpicado de caliça, don­de caía, suspensa como um enforcado, a lâmpada branca, obriga­va-os a encolherem-se nos sobretudos de tecido pardo, enquanto apoiavam as costas nos ferros pintados de verde-azeitona da cabeceira de um beliche da tropa. Entre eles navegava uma gar­rafa de vinho que lhes garantia o impulso para flutuarem na revi­vescência do passado, numa grande confusão mental.

O mais novo dos dois, um tipo feioso, de cara magra, com os traços fortes dos autoritários e dos que sofreram muita intempé­rie, após um longo momento em que pareceu recolhido na sua concha, soltou a boca do gargalo com um resmungo:

— Um, mais um álibi, meu caro Manuel Costa.

— Uma fuga ao tema português que é viver com várias cen­suras a fingir que nada se passa, enquanto os jornais nos enchem de maravilhas e maravalhas.

Esta frase de suavíssima critica provocou, Mano Serafim, meu caro Cento e Quinze, uma reacção de violência despropositada no meu parceiro da conversa. Até julguei que lhe tinha dado um electrochoque!

— Eu, Francisco Manuel, capitão de Aventureiros em África, filho do coronel Luís Manuel, expulso do Exército depois de ter exigido uma explicação do Salazar pelo abandono em que o deixara com o seu regimento na índia, e de Mary Wilson, que veio de Inglaterra para Por­tugal presa de amores pelo desassombrado adido militar em Londres que o meu pai foi, eu não ando a fugir, nem a fingir, Manuel Costa! A voz alterada de Francisco Manuel rasgou o silêncio de jazi­go do edifício, percorrendo como um ricochete os corredores escuros para lá da porta meio aberta do quarto. Por ela entrou o Matos, o cabo Matos, o ajudante do capitão Francisco Manuel, aturdido de sono e preocupação.

— Calma, meu capitão.

— Matos, senta-te aqui connosco.

Este cabo Matos, Cento e Quinze, que era um tipo parecido com o Francisco Manuel, mas em versão rústica, e que até de pija­ma dava a sensação de vestir o uniforme de combate, obedeceu com a maior naturalidade e instalou-se num banco de ferro com a atenção de um vigia à espera da borrasca.

— Matos, o senhor Manuel Costa quer saber porque estou eu aqui nestas penas de albergue do Estado...

Ao ouvir estas palavras, o cabo Matos saiu do seu posto sem ruído, com a segurança de um velho artista de circo que conhece de cor e salteado o passo seguinte da rábula do seu partenaire. O Francisco Manuel respirou fundo e dirigiu os olhos cinzentos para um infinito tão longínquo que eu, Cento e Quinze, senti uma vertigem que me obrigou a limpar as grossíssimas lentes embaciadas com o lenço encardido.

Ali ficámos os dois suspensos, à espera, Mano.

O Lar dos Antigos Combatentes, a residência fixa do capitão Francisco Manuel, ocupava um antigo convento franciscano que passara ao serviço do exército da República depois que os frades levaram sumiço. Enquanto instalação militar, tivera várias designa­ções, consoante a moda da época, mas sempre a mesma finalidade de recolher despojos das guerras. Até chegar à actual, fora asilo militar, albergue de recolhimento de expedicionários, depósito de indisponíveis do ultramar, mas a voz do povo colara-lhe aquela que melhor correspondia à verdade e que era a de Casa do Desterro.

O Manuel Costa chegara ali aos bordos atrás do capitão Fran­cisco Manuel, no final de uma noite de vinho e conversa na taber­na O Ninho do Papagaio. O cabo Matos tentara desembaraçar-se dele com o argumento da proibição da entrada de civis nos quar­téis e estabelecimentos afins, mas o Manuel Costa venceu-lhe o férreo sentido da disciplina através de uma arrasante actuali­zação do número de bêbado abandonado aos perigos das horas mortas, lamuriando que dificilmente conseguiria descobrir o cami­nho de casa e, mesmo que o conseguisse, não estaria lá a pentelhuda da Deolinda para lhe abrir a porta e o mandar dormir no quarto do filho Paulocas. E este, se por acaso já tivesse chegado, ou ainda não tivesse saído, se o visse naquele estado enrolava-lhe a cabeça numa toalha ensopada em água gelada. O que lhe provocaria um ataque de asma e, talvez, uma pneumonia.

O cabo condoera-se e agora tinha de aturar a peganhenta curiosidade daquele paisano destrambelhado sobre a origem das desgraças do seu capitão, de quem era uma espécie de anjo-da-guarda.

Aceitara o encargo de tomar conta do capitão Francisco Manuel por uma daquelas conjunções que nos levam a só conhe­cer o amanhã quando lá chegamos. A associação dos militares deficientes precisava de alguém para acompanhar o oficial que fora declarado inválido e incapaz de cuidar de si, e ele encontrava-se disponível. A mulher morrera há muito, a filha estava empre­gada, toda a vida vivera em quartéis, davam-lhe alojamento, pagavam-lhe uma gratificação extra e, acima de todos estes requi­sitos, continuava perto do estouvado junto de quem vivera aquilo que na sua vida tinha merecido a pena viver!

O momento em que o capitão Francisco Manuel e o Manuel Costa estiveram absortos, cada um consigo, terminou com a reentrada do cabo Matos no quarto, trazendo duas garrafas.

— Pois bem, senhor Manuel Costa, assim começa a história que quer ouvir. Não sei se bem aparelhada... mas o cabo Matos está ali para me cobrir os desvios.

O cabo Matos meteu o dedo mindinho no ouvido peludo e fitou o Manuel Costa com o desprezo complacente que os mili­tares dedicam às aventuras dos civis, levantou as sobrancelhas e resmungou, enquanto bebia um gole:

-Vai contar outra vez o processo do João Vicente? A esta

hora, meu capitão? O senhor já falou disso...

-já me esqueci de boa parte do que disse n'O Ninho do Papa­gaio. Fico com a consciência obnubilada e tenho sensações deli­rantes sempre que bebo o vinho da Paquita.

O capitão sofria de «esquecimento», um distúrbio da memó­ria clinicamente designado por uns psiquiatras como paramnésia e por outros como ecnmésia. Um esquecimento selectivo que provoca dualidade de apreciação dos factos vividos e que faci­litou à junta médica o veredicto de inimputabilidade ao fim de seis anos de prisão e a transferência, a pedido do antigo capelão da sua companhia em África, o padre Nuno Maria, para a Casa do Desterro, por incapacidade de se reintegrar na sociedade.

Aos vinte anos já era alferes, comandante de um pelotão de uma das primeiras unidades de caçadores especiais mobilizadas para Angola em mil novecentos e sessenta e um, a dos Aventu­reiros, comandada pelo capitão Castro Furtado. Um militar sério, bom chefe de família e crente em que ia defender o último impé­rio cristão em África, embora não muito esclarecido do que era um império cristão em África, como todos os seus subordinados.

— Lembras-te, Matos, dos corpos esquartejados de brancos e pretos, de homens e mulheres, ao sol no terreiro do Quitexe?

— Fui eu e o João Vicente que os recolhemos.

Esse gesto valeu uma condecoração aos dois militares, por­que a acção ficou registada numa reportagem de dois jornalistas estrangeiros que o quartel-general de Luanda autorizara a acom­panharem as operações nos Dembos, para mostrar ao mundo as chacinas dos terroristas...

— É a força da imprensa, Francisco Manuel. Basta um dique no momento certo e aparece do nada um herói chapado e pronto a exibir.

Durante um mês o jovem repórter inglês Ned Marchmont e a grande fotógrafa italiana Claudia Rossi viveram com a Compa­nhia dos Aventureiros, fazendo dos seus homens os rostos daquela guerra ignorada.

— A Claudia morreu mais tarde no Biafra. Sobraram as nos­sas fotografias de jovens guerreiros...

Mas nem o dilúvio durou para sempre, um dia as águas acal­maram e o Noé pode atracar a arca em terra firme, instalar os tarecos e restabelecer-se do enjoo. Assim aconteceu com a Com­panhia dos Aventureiros após os longos meses de operações, em que os militares não fizeram outra coisa senão matar e ver correr o sangue. A ponto de já se rirem dos mortos e rasgarem as liga­duras dos feridos.

Então, porque felizmente os estados-maiores são constituí­dos por cavalheiros sereníssimos que temem mais os exces­sos das suas tropas do que as suas vitórias, os Aventureiros foram mandados descer às circunscrições mais calmas, para recupe­ração.

Para eles o pior havia passado, e nos limites das zonas sub­levadas do Norte de Angola, os donos das grandes fazendas procuravam novos capatazes para substituir os que haviam desa­parecido nos massacres, contratavam bailundos para salvar a colheita do café, faziam contas aos prejuízos nas propriedades assaltadas e recebiam a tropa com a alegria de náufragos à che­gada do salva-vidas.

À Companhia dos Aventureiros calhou aboletar em Quiculun-go, na sede da Fazenda Nossa Senhora da Conceição, uma grande roça com escritórios, engenhos e armazéns, onde o proprietário os procurou convencer da grandiosidade do trabalho de gerações de brancos em África. O que até à data e depois de meio ano nas inóspitas matas dos Dembos, a apanhar chuva, calor e tiros, a desencravar viaturas das picadas lamacentas, a sacudir mos­quitos e cobras, a apanhar paludismo e a catar matacanhas debaixo das unhas, a comer rações de chouriço rançoso e bola­chas duras, não lhes parecera nada evidente.

O Gregório Taumaturgo Castelo Branco, na altura um homem ainda não entrado nos quarenta anos, de carnes rosadas, oriundo de uma família metropolitana com mais prosápia do que riqueza, vivia como o monarca de um estado absoluto. Cedeu os arma­zéns vazios de café para servirem de casernas e refeitório aos sol­dados, mandou preparar vivendas de funcionários desaparecidos para os sargentos e oficiais e ofereceu uma casa de visitas ao capitão Castro Furtado, para ele trazer a esposa.

— Dessa guerra eu gosto. O maralhal por cá a chorar a triste sina dos soldadinhos do outro lado do mar e vocês à sombra da bananeira em férias nos trópicos! E quanto a fêmeas? Pretas e punhetas, ou havia material fino para a oficialagem?

— Matos, como se chamava a mulher do Gregório, aquela cinquentona escanzelada?

— Guiomar, meu capitão.

— Uma beata áspera e desconfiada, que herdara as fazen­das do primeiro marido, doida varrida. De noite saía de casa e andava pelas casas e palhotas com uma vela à procura do pecado...

— Normalmente encontram-no nas braguilhas dos homens...

— Mulher velha com homem moço, é o casamento do diabo, pois vivem em perpétua discórdia. Esta tinha uns ciúmes de morte da sobrinha, que ficara órfã e que vivia com eles, a Branca.

— Ah, também aparece em cena uma adolescente bela e ten­tadora como um anjo! Isto promete! O jovem alferes Francisco Manuel e o tio Gregório atrás dos três vinténs da miúda, a mulher mal-aviada a rondar o heróico oficial, este apanha a flor desejada e atrai sobre si os ódios dos outros dois. Tem de haver um crime, uma traição e uma fuga, Francisco Manuel.

— Manuel Costa, não me diga que vai passar a escrever romances de cordel!

— Com um alferes peralta, uma musa de corpo tenro, uma dama de falsa virtude e o seu marido balofo, a guerra em fundo, a humidade de África, os corpos dos negros a dançar um batu­que, tenho matéria-prima para reescrever as Obras do Diabinho da Mão Furada no Quiculungo, em edição melhorada, autogra­fada, o mais dinheiro possível, um pastiche assacanado da nossa última gesta ultramarina!

— Esquece-se de que ainda não sabe porque fui acusado e preso.

— Parece que nem você...

— É aqui que entra o soldado João Vicente.

Antes de o Francisco Manuel continuar, a segunda garrafa ini­ciou o seu périplo. Eu estava ali como um espião não convidado e o Francisco Manuel, Cento e Quinze, tinha a tristeza dos escrito­res que obtiveram sucesso com o primeiro livro e sabem que não escreverão nenhum outro, porque se mataram com a sua própria história. Uma situação que só ultrapassámos à força de vinho.

O João Vicente era um dos homens de confiança de Francisco Manuel, tal como o cabo Matos, mas violento e desapiedado, sempre voluntário para arrastar os negros presos ao jipão até à vala aberta à frente da qual eram fuzilados, para lhes cortar cabe­ças e orelhas com a mesma ligeireza com que cortava o pão. Na paz da Fazenda Nossa Senhora da Conceição, iria continuar a demonstrar a sua utilidade.

O alferes Francisco Manuel precisava dele para o libertar da perseguição que a Guiomar lhe movia e deu ordem ao João Vicente para levar a colona de passeio na viatura militar, sempre que ela o fosse procurar à messe, a pretexto de lhe mostrar a ver­dadeira África.

Os jovens desejavam-se com a violência dos instintos que os códigos classificam como paixão, mas a tarefa de encontrar um bom disfarce exigia planeamento para escapar aos mil olhos atentos, invejosos e desconfiados que os cercavam.

Para conseguir iludi-los, o Francisco Manuel ofereceu-se ao capitão Castro Furtado para ir em seu lugar a Luanda tratar de assuntos da companhia, o que ele e a mulher agradeceram. Fez constar que estaria fora dois dias, pois são pesadas as burocra­cias, tanto as militares como as civis, e saiu de madrugada com o João Vicente.

— Só ele e eu sabíamos que regressaríamos de Luanda ainda naquela noite. Informei o João Vicente de que combinasse um encontro com a Guiomar, dado terem esses assuntos mais adian­tados que os meus com a Branca.

Em Luanda, que no início dos anos sessenta ainda se asseme­lhava mais do que final da guerra ao arraial onde se reuniam na maior confusão negreiros, piratas e soldados que fora desde a fundação, o alferes Francisco Manuel resolveu os assuntos sem dificuldade. Até lhe sobrou tempo para mostrar o camuflado novo nas esplanadas da baía, depois de ouvir os resmungos dos burocratas contra as exigências dos que se encontravam no mato e as recusas de fornecimento de géneros e equipamentos que já vinham da época em que o pai se perdera na índia. A meio da tarde, tomaram o caminho de regresso, com o João Vicente ao volante do jipe, e pararam ao cair da noite numa cantina manhosa.

— Como se chamava aquela povoação antes do Quiculungo?

— Banga, meu capitão.

Partiram de Banga já noite escura, entraram na Fazenda Nossa Senhora da Conceição de faróis apagados e, perto da casa prin­cipal, o Vicente abrandou o jipe para deixar o oficial saltar. Ele correu protegido pela sombra para a varanda e dali para o quarto da Branca, que tinha a janela aberta, só protegida pela rede mos­quiteira.

A Branca esperava-o numa cadeira de baloiço, descalça, de camisa de dormir, a fumar a liamba, que era mais vulgar do que o tabaco. A réstia de luz que entrava pela janela formava uma auréola sobre os seus cabelos e desenhava-lhe os contornos do corpo como a imagem fluorescente de uma santa. Ao ver o alfe­res deu uma risada leve e abraçou-o, mais ansiosa que precipitada.

— Daí a horas ainda estávamos deitados e cansados na cama desfeita, nos doces momentos que desejamos não tenham fim. De repente, a porta do quarto abriu-se e entraram de rompante o Gregório e a Guiomar, ambos a rosnarem impropérios, ameaças e considerações morais contra mim e a Branca!

Uma cena patética. Acusações de confiança traída, de falta de respeito por quem os recebia em sua casa, de ausência de escrúpulos, má índole, com os amantes in naturabilis a cobrir o corpo com os lençóis e a Branca lavada em lágrimas. O resultado foi a Branca ter sido recambiada para um colégio de freiras em Portugal e o Francisco Manuel transferido para outra companhia, a substituir um alferes morto em combate.

Antes de partir para o novo destino, o Francisco Manuel quis esclarecer junto do João Vicente as desconfianças que se lhe levantaram de estar feito com o Gregório, pois ele tinha-lhe garantido que o fazendeiro passaria a noite em Camabatela, jogar cartas, razão pela qual combinara ir satisfazer as afrontações da Guiomar.

— Lembras-te, Matos?

— Eu bem o tinha avisado de que ele se andava a vender e a vendê-lo para ficar de capataz na fazenda...

— Jurou pelo que tinha de mais sagrado que nunca lhe pas­sara pela cabeça trair-me. Deu-me a sua palavra, jurando pela memória dos nossos mortos e eu respeitei esse juramento. Ainda lhe pedi desculpa pelos murros que lhe tinha dado.

Os dois homens nunca mais se viram até o João Vicente sur­gir em Lisboa na vaga de retornados de Angola de mil novecen­tos e setenta e cinco, muito humilde, a solicitar ao agora capitão Francisco Manuel que lhe emprestasse dinheiro para as primei­ras impressões e ajuda para reconstituir a vida depois da indepen­dência de Angola. O incidente dos murros e da traição parecia definitivamente esquecido no fundo dos baús onde as aventuras da juventude acabam por ir morrer, ou fermentar, como foi o caso.

O capitão Francisco Manuel vivia então os dias de ouro nas câmaras e antecâmaras de ministérios e chancelarias que se seguiram à revolução de setenta e quatro, a traçar juntamen­te com os seus camaradas a história do país, convencidos de que eram agora o palco do mundo.

Dormia pouco, trabalhava febrilmente de manhã à noite, sem se desprender dos locais onde palpitavam o coração e o cérebro

que conduziam os embates entre a nova e a velha ordem. Fora nomeado membro da delegação de militares e civis encarregada das conversações para a independência das colónias, porque falava inglês e francês, chegara de Londres e estava a preparar-se para seguir para Argel, mas arranjou tempo para receber o soldado João Vicente e ouvi-lo resumir a sua vida durante os anos em que ficara em Angola.

A Guiomar enlouquecera de vez quando ele deixara de a fre­quentar. Atirou-se ao capelão da companhia, o ingénuo padre Nuno Maria, e um domingo, na missa, despiu-se por completo e gritou: «Venha a ressurreição!» Dias mais tarde morreu num acidente nunca esclarecido junto à cachoeira do rio. Fora ele, João Vicente, que a encontrara. Depois desse desagradável acon­tecimento, não quis permanecer no Quiculungo e o Gregório Castelo Branco ajudou-o a estabelecer-se com um bar em Luanda.

— O Flamingo Dourado. Uma casa que obteve grande suces­so na Ilha.

Reataram a ligação de antigos camaradas de armas. O João Vicente abriu entretanto em Lisboa um novo Flamingo Dourado, de que a gente vinda de África fez poiso para negócios pouco claros e onde o Francisco Manuel passou a ter direito a garrafa de uísque sem grandes falsificações, com o nome pendurado no gargalo.

— Ele vivia com a artista cabeça de cartaz que o acompa­nhara desde Luanda. Matos, como é que se chamava aquela morena que eu te dizia que cantava mal e se despia bem?

— Bárbara, meu capitão.

Nome de guerra, Cento e Quinze.

— Conheci uma Bárbara, filha da Vicência, patroa de uma casa de meninas universitárias na Alameda Afonso Henriques.

— O Manuel Costa deve ter conhecido todas as alcaiotas de Lisboa.

— Só as que fiavam. Mas esta Vicência era uma mulher extra­ordinária. Numa dada época foi minha mãe, minha mecenas, minha santa padroeira. Sabia mais da vida subterrânea, do bas-fond lisboeta do que a Dona Maria, governanta do Totocas.

— Uma cortesã.

— Olhe que por casa da Vicência passaram todas as celebri­dades nacionais. Consta até que um antigo presidente da Repú­blica soltou o último pio num dos seus quartos!

— Conheço o boato. Um marechal! É uma lástima que um homem honrado tenha de morrer assim, para adoçar um estado em que, tal como a mim, a vida e a honra lhe foram partidas ao meio. Mas o que tem essa tal Vicência a ver com a Bárbara, amante do João Vicente?

— Nada, julgo. Apenas que tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A Vicência sonhava que o rapaz fosse advogado e a Bárbara professora de História.

Nunca a mãe do Francisco Manuel sonhara o destino de mili­tar que o seu filho tomaria, mas a morte do marido, pelos des­gostos a que foi sujeito depois da queda da índia, deixou-a desamparada numa terra estranha.

— Foi essa infelicidade, mais que outras razões, que me trou­xe aos dez anos para a vida das armas, se tal inquietude que come­çou no Colégio Militar se pode chamar vida.

Mas, em mil novecentos e setenta e quatro, até Mary Wilson acreditou que também para o seu Francis nascia uma nova alvorada que daria ao filho o reconhecimento que fora negado ao marido. Essa esperança redentora cresceu quando viu desembar­car em Lisboa, aclamado como o grande libertador, aquele refu­giado que o seu pai John Wilson recebera em Inglaterra com a maior fraternidade, porque ele poderia retribuir com um acto de justiça o auxílio que lhe fora prestado. Mais uma esperança defraudada, que, felizmente, Mary Wilson já não teve de juntar às muitas que sofrera, porque faleceu antes de ver aquele que pedira ao seu pai ajuda contra a perseguição que lhe faziam os seus ini­migos mudar de pele e transformar-se no perseguidor do filho.

— Ele queria cortesãos, cúmplices, secretários e ajudantes-de-campo e eu não me prestei a nenhum desses papéis.

O funeral de Mary Wilson trouxe a Lisboa delegações de Ingla­terra e de França do Antigo e Aceite Rito Escocês da Maçonaria, de que o pai fora soberano-grande-comandante, e ele veio mar­car a sua presença junto de irmãos tão influentes, trazendo dois dos seus mais recentes acólitos, os jovens cunhados Diogo Soares e Miguel Vasconcelos, que apresentaram condolências ao Fran­cisco Manuel com o ar compungido adequado à circunstância.

-A minha mãe só perto da morte me revelou o segredo de o meu avô ter sido um maçon do mais alto grau, certamente para não me prejudicar mais do que me prejudicara a atitude do meu pai. Manuel Costa, sabe que o rito escocês da Maçonaria é francês?

— Perdoai-me o desabafo, Francisco Manuel, mas eu, quanto a forças ocultas, já me bastou aturar os surrealistas, decifradores de mistérios por excelência, segundo eles dizem.

— Não compare coisas sérias e perigosas com as ideias que uns poetas e pintores de caca foram a Paris cheirar no rabo de uns excêntricos e trouxeram para cá em versão de cuspo e ramela!

No dia seguinte, quando o Francisco Manuel andava ocupado nos trabalhos de resolver os assuntos que os mortos sempre dei­xam aos vivos como herança, recebeu um telefonema do Diogo Soares a convidá-lo para um almoço. Um convite que lhe pare­cera despropositado, pois, apesar de se conhecerem desde adolescentes, as relações entre ambos nunca justificaram uma refeição à mesma mesa. Muito pelo contrário, da vez em que estiveram mais tempo em contacto foi para esmurrarem a cara um do outro, numa cena de pancada no Café Monte Cario.

Aos domingos, o Francisco Manuel costumava encontrar-se ali com o Cabral e o Semedo, dois amigos negros da Guiné que estudavam em Lisboa com uma bolsa instituída pelo avô inglês, que fizera fortuna nos negócios das colónias britânicas e acredi­tava que o melhor caminho para as desenvolver era educar as elites nativas nas metrópoles e que a mãe transferira para Portu­gal. A confraternização de um jovem branco com dois negros incomodava a clientela de burgueses da zona do Saldanha, que ali vinha tomar uma bica e engraxar os sapatos, enquanto as mulheres assistiam à missa, e que, à falta de coragem, atiçavam as suas jovens crias contra aquela promiscuidade atentatória dos santos princípios da civilização. O Diogo Soares tomou sobre si as dores dos bons cidadãos e veio acompanhado de dois da mesma laia acusar o Francisco Manuel de trazer pretos a cons­purcar aquele lugar. Acabaram todos na esquadra da polícia do Matadouro...

— Imagine a minha surpresa, Manuel Costa, quando o vejo em Londres, para onde fora comigo, abraçado aos antigos guer­rilheiros, entre os quais o Cabral e o Semedo, a celebrar o êxito das conversações para a independência da Guiné!

— Deixe lá, Francisco Manuel, que eu também tive surpresas dessas com uns tachistas do Estado Novo que apareceram a exibir atestados de perseguidos!

Os anos que o Francisco Manuel consumira na guerra gastara-os o Diogo Soares a frequentar as universidades de Lisboa e de Coimbra para adiar a incorporação militar e a ida para a guerra, até se licenciar em Direito com a nota mínima, depois de ganhar uma boa reputação como fadista amador e de ficar conhecido como o Guedelha, embora nunca tivesse cantado os Beatles. A revolução apanhou-o antes de engrossar as fileiras do velho regime, mesmo a tempo de aparecer como faz-tudo do novo, na função de chefe de gabinete.

— Para o almoço, o Diogo Soares veio acompanhado pelo Miguel Vasconcelos, o cunhado que chamara para o assistir nos negócios da capital, um latifundiário alentejano, filho do gover­nador civil de Évora.

O Diogo Soares fazia as despesas da conversa, com recorda­ções e anedotas, passando de um pensamento a outro a uma velocidade que estonteava o embezerrado Miguel Vasconcelos, a lutar silenciosamente contra a falta de espaço para meter o corpo no fato de cidade e as ideias no cérebro agrário. Com o conhaque e os charutos, chegou também o momento das expli­cações e o Guedelha começou a falar da organização que na sombra iria dirigir os destinos do país, na altura designada ape­nas pela Fundação, uma nebulosa sem existência formal, onde militavam muitos dos irmãos da obediência do avô do Francisco Manuel, à qual o seu putativo Presidente encarregara o Diogo Soares de o convidar a aderir, para continuar a tradição da famí­lia e como gesto de reconhecimento pelo velho John Wilson.

— E o Francisco Manuel negou-se...

Ainda amenizara a recusa, esclarecendo o Diogo Soares ser pouco dado a clubes, associações, fundações, assembleias gerais, peregrinações, directórios... talvez por ser filho único... que nunca praticara desportos colectivos. Ele insistiu que uma resposta negativa seria tomada pelo Presidente da Fundação como uma afronta e castigada como tal, para exemplo de outros recal­citrantes que ainda não tivessem percebido que ou assentavam praça no seu séquito, ou eram tomados como seus inimigos. Mas o Francisco Manuel decidira que mais valia bater os dentes de frio do que adorar um novo ídolo.

— Descanse que o meu Padre-Nosso também sou eu próprio.

— Ele respondeu-me então que, se não sabia apreciar um convite como o que me estavam a fazer, depois não me quei­xasse...

— É sina dos solitários levarem pancada para não darem maus exemplos, Francisco Manuel. Vivemos num país de procissões e confrarias, em que todos temos de andar ou de opa ou de aven­tal! Mas vamos lá voltar às monstruosidades do tempo e da fortuna. O que tem o tal soldado João Vicente a ver com o castigo que lhe deu cabo da vida?

O Francisco Manuel meteu os dedos pelos cabelos brancos. Acendeu um cigarro com os movimentos tensos dos actores que vão subir ao palco. Depois saltou da cama com o movimento ágil dos cavaleiros a apear do cavalo para combaterem em terra. Estava a vê-lo, Cento e Quinze, jovem capitão revolucionário a incendiar paixões. Não me enganei, pois o que lhe aconteceu tinha origem nessa reviravolta da nossa história de que só me lembro por ter vindo para a rua em pijama, um pijama às riscas, espreitar o sarilho em que a tropa nos estava a meter logo de madrugada, porque eles têm a mania estuporada de fazer tudo de manhã cedo e os civis é que são apanhados em trajes menores!

— Em setenta e quatro, até as mulheres que haviam guardado nos baús de pau-santo os lençóis com as nódoas de sangue da noite de núpcias os vieram oferecer aos militares libertadores... e os consortes nunca perdoaram termo-nos deitado neles...

— Foi um ano difícil para os maridos.

Três anos depois de aclamado como libertador, o Francisco Manuel começou a sentir os efeitos da recusa ao convite que o Diogo Soares lhe fizera. Viu-se acusado de responsável pelas maiores sevícias, umas devidas à perda das colónias, que são as enteadas do Estado e as escravas do império, outras à anarquia em que o povo mergulhara, desobrigando-se de se desbarretar perante os senhores.

— Incriminaram-me por roubo de tesouros, por instruir grupos terroristas, por patrocinar uma guerra civil, e só não me atacaram antes porque passei o ano de setenta e seis em Madrid, que foi o destino para onde me empurrou a divisão em facções que as grandes mudanças causam.

— Por cada revolução que começa existem duas que acabam. A que vence e a que nunca se chega a concretizar.

— No meu caso, caí no meio.

— Aconteceu-me o mesmo na estação dos comboios do Entroncamento, quando vinha a fugir de uns polícias do Porto. Estava indeciso em passar para a linha da Beira Baixa, ou para o ramal de Tomar, ou regressar à Invicta e ia morrendo atrope­lado por um rápido. É perigoso passar para o outro lado, é peri­goso ficar no meio do caminho, é perigoso olhar para trás...

— Sentia-me o último dos homens.

Como eu, Cento e Quinze. Não tinha dinheiro e morria esfran­galhado entre os carris! Quem me salvou foi o revisor de um comboio regional, cheio de soldados e ferroviários, que me acon­selhou a fazer uma colecta entre os passageiros e me meteu dez paus na mão. Foi limpinho. Pedir é que dá resultado em Portu­gal, Mano. Cheguei a Lisboa com o bilhete pago, devidamente legalizado.

O Francisco Manuel também desembarcou em Lisboa de comboio, numa noite escura, com pouca bagagem, carregado de ameaças. De todos os exilados que regressaram de Madrid, foi o único a ser acusado de desertor, a ser impedido de entrar nos quartéis. Todos os outros foram amnistiados, reintegrados, louvados, promovidos como aliados dos que ocupavam agora o poder.

— O pretexto para a perseguição foi uma carta que escrevi a relatar o que faziam em Madrid alguns dos portugueses que para lá tinham ido procurar remédio para as suas dores e aflições, e agora roubavam, esbanjavam o dinheiro e as riquezas que lhes haviam sido entregues em negócios particulares e diverti­mentos nos bares e cabarés, escandalizando quem os acolhera.

Recusara a mudança de soldado para a de traficante e de assassino que lhe propunha o chefe daquela tropa de arruaceiros, o comandante Guilherme Brandão, que se sentiu traído com a denúncia e mandou o sicário Máximo Turiano dar-lhe o correc­tivo a que o condenara. Da disputa entre ambos resultou que o tal Turiano ficou entre a vida e a morte nos cuidados intensivos de uma discreta clínica da Guarda Civil, e as autoridades espa­nholas deram quarenta e oito horas ao Francisco Manuel para abandonar o país, se não queria ser preso.

No regresso a Lisboa, o Francisco Manuel mergulhou no estado em que o presente era vazio, o futuro duvidoso e o pas­sado irrepetível. Já levava à sua conta com seis acusações e, para responder aos vários processos que os vencedores sempre impõem aos vencidos, engrossou com a sua presença a massa dos passageiros dos transportes suburbanos de Paço de Arcos para o Cais do Sodré.

— Tornei-me naquilo que a minha falecida mãe, com indisfarçável desprezo, classificava como um commutter.

— Malta que viaja diariamente para o trabalho.

— Apesar de não ser essa a paz com que sonhara, aceitava-a com a serenidade dos jogadores que acabam de perder a for­tuna, embora nunca houvesse imaginado que os negócios em que entrara com tanta esperança tomassem tão mau caminho.

Depois de cumpridas as obrigações que a nova justiça lhe impunha, o Francisco Manuel ficava a vaguear pelo Rossio a remoer as perguntas dos inquiridores recolhidas das denúncias dos falsos amigos, dos antigos companheiros, de velhos e novos inimigos, enquanto observava as gentes que refaziam as suas vidas, os homens de regresso ao fato e gravata e as mulheres aos casacos de peles extraídos do fundo dos armários.

— Lisboa parecia o bairro de Alcalá em Madrid, com os reme­diados a armarem-se em fidalgos. Já foi a Madrid, Manuel Costa?

— Não, nunca. Estive para ir uma vez a convite de um mar­quês espanhol que andou ao engate em Lisboa e dizia ter fun­dado uma comuna no seu palacete, mas disseram-me que machos e fêmeas andava tudo cheio de galiqueiras e cortei-me.

— Conheci um desses que acolhiam todos os esfarrapados que lhe batiam à porta.

Apesar das preocupações, o Francisco Manuel não perdera de todo o gosto de apreciar uma mulher e a oportunidade de veri­ficar se o diabo não lhe retirara o jeito de as seduzir e que os seus olhares de caçador especial ainda se mantinham afinados, surgiu numa tarde, ao passear pelo Chiado.

— O encontro com a Mariana Castelo Branco, que desconhe­cia se era solteira, casada ou viúva, foi, segundo hoje estou certo, o mergulho final na minha perdição.

— Membro a pino, que é macho e submarino!

— Passámos a encontrar-nos nas noites de quinta-feira, quando o marido jantava fora, em negócios. A Mariana vivia numa bela casa antiga restaurada no bairro do Castelo, perto do Limoeiro.

— Conheço o local, também por causa de mulheres, mas infelizmente o quarto que me distribuíram não tinha cama de casal...

A Mariana Castelo Branco andaria pelos trinta anos e, no pequeno grupo dos que vivem como os pavões a fazer salama­leques e a dar gritos de espanto, convencidos que são a nata da sociedade, tratavam-na pela condessa de Portimão, acrescentan­do que também era senhora de muito bem-fazer a quem lho sou­besse pedir.

-Devia ter-me afastado dela logo que descobri que era casada com o Gregório Castelo Branco... mas não resisti...

Durante um ano, pontualmente às dez da noite das quintas-feiras, o Francisco Manuel avançava ao encontro da Mariana com a decidida confiança dos conquistadores, aproveitando o escuro misterioso das ruelas do bairro do Castelo antes de as eleições dos presidentes da câmara lhes iluminarem os segredos. Ela acendia a luz da janela, a transmitir-lhe a senha combinada de caminho livre, e ele subia com a ligeireza do gato para a por­ta dos fundos, ansioso e pronto para as duas horas do único prazer que lhe restava.

Assim chegou ao Verão de setenta e oito, época em que as boas famílias voltaram confiadamente à reconquista do Algarve e os tribunais encerraram as portas para as merecidas férias judi­ciais, guardando por três meses togas, becas e processos, à espera de ares mais frescos.

A Mariana partiu com o marido para Portimão, deixando o Francisco Manuel sem outro entretenimento do que observar a fauna indígena da infeliz classe dos cereais de sequeiro a pro­curar abrigo nas esquinas da Baixa e os pálidos turistas a subirem e descerem ruas, a escorrerem de suores pelos cantos de Lisboa, afogueados, de boca aberta.

— Ela voltou no fim da saison desse ano, apetecível, carrega­da de cores, mas também com a agenda cheia de pretendentes a saboreá-la nos serões frios que se aproximavam.

— Dizem que a maresia dá tusa...

O Francisco Manuel notou a intenção de ela o afastar pelos indí­cios que lhe foi dando com vários pretextos, enxaquecas, incó­modos, que se esquecera de tomar a pílula e, se engravidasse, era um escândalo, até ela lhe declarar que fora bom enquanto durara e que havia agora alguém muito importante, a quem não pode­ria recusar-se nem partilhar-se, que ocupara o seu lugar.

Ao ouvir esta confissão, o Francisco Manuel teve um ataque de fúria e disse o que pensava dessa figura de sátiro, que adivinhava quem seria, da estratégia de aranha que tecera para subir até onde estava, do orgulho que o enchia como o ar a um tambor, do egoís­mo com que confundia a felicidade com o prazer, da descon­fiança com que tratava os que o contrariavam, da ausência de escrúpulos na obtenção dos privilégios onde assentava o poder.

— Isso é o que se chama amor de irmãos! Mas revelar as emo­ções é abrir uma brecha por onde entram esses inimigos do peito, Francisco Manuel.

— O eco do meu ódio chegou aos ouvidos do tal salvador da pátria que cobrava imposto de pernada, se é que ele não se encon­trava escondido a ouvir-me!

Estivesse ou não, na quinta-feira seguinte os seus capangas esperaram o Francisco Manuel numa esquina para o levarem, vendado e amordaçado, na mala de um carro. Pararam num ermo perto de Caxias, puxaram-no sem cerimónias para o exterior e só tiveram tempo, um, de lhe perguntar onde tinha as coisas que trouxera de Madrid e, outro, de lhe dizer que tudo acabaria em bem, se as entregasse, antes de se verem diante do olho negro do cano da pistola que o Francisco Manuel lhes apontou.

— A Savage do meu pai, que trago sempre comigo. Não conta­vam que fosse tratar de amores com uma arma no bolso. Os bimbos...

— Cornear um velho casado com uma mulher jovem e cruzar-se à porta da marmajona com outro freguês, por muito impor­tante que ele seja, não me parece suficiente para explicar a condenação de proscrito ad eternum em que você se encontra.

Como sabes, Cento e Quinze, eu fui acusado de atentado ao pudor, de estupro, de desobediência qualificada, de ofensas à moral e aos bons costumes, sou e fui um marginal, um escritor maldito, um editor falido, um merdas, um desgraçado na verdadeira

acepção da palavra, e mesmo durante o regime do come e cala só me deram seis meses de uma vez e dois anos de outra. Tinha de existir algo de muito mais grave.

Por um momento, o Francisco Manuel pareceu um boneco cristalizado. Depois arqueou levemente as sobrancelhas, o que lhe deu o ar de espanto de quem está a ser empurrado, e homens como ele não gostam de ser empurrados nem toleram as dúvi­das. Têm de dominar os factos. Um ténue rubor transfigurou-lhe o rosto macilento das febres de África e, Cento e Quinze, imagi­nei-o a tentar escapar a essa armadilha fatal que é a relação sequencial de causa e efeito. Ele era militar e para os militares a causa e o efeito são simultâneos. Entre o tiro e a queda do alvo não há antes nem depois.

— Está à procura de alguma coisa, meu capitão?

Tal como conta a Bíblia a propósito de São Paulo, que só acor­dou do torpor em que caíra a caminho de Damasco quando apanhou forte e feio, também o Francisco Manuel precisou desta chamada de atenção do cabo Matos para ressuscitar. Encolheu os ombros e desabafou:

— É na desgraça que um homem vê os poucos amigos e luga­res onde procurar refúgio que tem.

O Francisco Manuel criara o hábito de passar pelo Flamingo Dourado antes de recolher ao apartamento de Paço de Arcos que lhe ficara de herança, para adormecer as mágoas com o uísque que o João Vicente lhe oferecia e ouvir os últimos boatos que corriam pelas mesas. Numa das noites, o antigo soldado dos Aventureiros perguntou-lhe à queima-roupa se sabia alguma coi­sa de Branca, a sobrinha do Gregório Castelo Branco, e de Guio-mar, e ele respondeu-lhe que a vira uma vez, ao longe, no Rossio.

— Ainda me fez um sorriso que quase me levou a abdicar da decisão que tomara de a deixar para quem a estimasse melhor que eu. Estava uma belíssima senhora, mas eu saíra muito cha­muscado do negócio com ela em Angola e, depois da experiên­cia com a Mariana, as asas doridas não me predispunham a retomar de imediato os altos voos.

O João Vicente apontou então um cavalheiro bem constituído, sentado numa mesa com outros três companheiros do género dos que se gabam de fazer ouro de enxofre. O marido dela, o dou­tor Fernando Cardoso, um dos maiores advogados de negócios de Lisboa, acompanhado dos administradores da Fundação o Homem e a Obra.

Mesmo na obscuridade do cabaré, o Francisco Manuel reco­nheceu o Diogo Soares, o Miguel Vasconcelos e o Gregório Castelo Branco, que depois da vinda de Angola despedira o Taumaturgo do nome e apresentava um ar mais rançoso e enrugado que o Onassis.

— Antes me tivesse caído um raio em cima da cabeça do que ter seguido o João Vicente!

O Flamingo Dourado atingira o apogeu da fama como tem­plo onde os novos-ricos vão celebrar as suas conquistas e, apesar do ambiente de ressentimento e de desforra que animava a clien­tela de patrícios romanos contra as ofensas dos escravos, dentro em pouco estavam todos à volta da mesa, alegres como cava­lheiros em celebração de aventuras antigas. A um sinal do João Vicente, vieram garrafas de uísque velho e raparigas novas, de saias curtas, cabelos compridos e sorrisos de contos de réis, tudo para animar o reencontro. Falaram do passado, da extinta revolução, de Madrid, do abandono de África, e logo brotaram os ódios incuráveis deles contras esses crimes que os despo­jaram de tudo o que haviam conseguido à custa de tantos sacri­fícios.

— Ouvi-os como manda a fidalga etiqueta dos ingleses que me ensinou a minha mãe, fingindo-me atento, sem os contrariar em nada, acenando que sim com a cabeça, até o Miguel Vascon­celos perguntar, com expressão de escárnio, como iam os meus processos na justiça.

O João Vicente percebeu o incómodo do Francisco Manuel e mandou instalar, entre ele e o Fernando Cardoso, a Bárbara, que eles cumprimentaram com familiaridade, e a presença dela desanuviou um pouco o ambiente.

O cabo Matos aproximou-se para retirar as garrafas vazias e propôs:

— Já são boas horas de dormir, meu capitão.

— Traz mais duas, que ainda falta um bocado para o senhor Manuel Costa perceber como entrei nas mãos da justiça e fiquei sem liberdade, sem fazenda, sem pátria e sem esperança, que nada disto me deixou o ódio dos meus inimigos, e como, quanto à honra, também fizeram o possível.

A chegada da bela morena desatinou a cabeça do advogado Fernando Cardoso, que não mais conseguiu prestar atenção às conversas do Gregório Castelo Branco, do Diogo Soares e do Miguel Vasconcelos. Enquanto eles falavam sobre negócios de armas para o Irão ou o Iraque, uma actividade que nesses anos parecia ser tão comum entre os frequentadores do Flamingo Dou­rado como antigamente a dos adolescentes irem fisgar pardais, ele gastava a sua prosápia e o engenho das mãos com a proprie­dade do João Vicente.

— Não augurei bom futuro ao advogado Fernando Cardoso, mas não imaginava quanto o fim dele se enredaria tão drama­ticamente no meu!

Toda a cidade dormia, incluindo os internos do Lar dos Anti­gos Combatentes, e até o cabo Matos cabeceava de sono, Cento e Quinze. A mim, doía-me o peito, apetecia-me estender na cama de lençóis encardidos, mas o Francisco Manuel tinha uma história de raivas entupidas para despejar. Havia que aguentar, Mano, e até dar-lhe corda. Aconcheguei o sobretudo ao esque­leto, meti o gargalo da garrafa à boca e incentivei-o:

— O programa da vida dessa gente é só um, resguardar-se dos inimigos, triunfar sobre os iguais e lixar todos os que podem!

— Admitia o desejo de vingança do Diogo Soares, do Gregó­rio Castelo Branco e do brutamontes do Miguel Vasconcelos, mas jamais do soldado João Vicente.

— O Francisco Manuel tem uma opinião muito idealizada dos soldados.

Esta opinião do Manuel Costa provocou um acesso de ira no Francisco Manuel, que quase se estatelou ao virar-se para o encarar.

— Que sabe você de soldados?

— De soldados e marinheiros conheço o que se passava fora dos quartéis, no tempo do orgulhosamente sós e da guerra em três frentes no ultramar. Quando cá o Manel andava ao engate e eles se faziam de pau feito, perguntando «quanto me dá?», antes de embarcarem para a Angola-é-nossa.

O Francisco Manuel passou a mão pela frente dos olhos a afastar más visões. Estava baralhado e dava desgosto ver assim um homem que fora cuspido da roda da fortuna. Num repente, atirou a garrafa à parede, furioso por não a poder lançar à cabeça daquele desbragado libertino, acordando o cabo Matos com o ruído do vidro a estilhaçar.

— Calma, meu capitão.

— Calma, meu capitão, paciência Francisco Manuel, há anos que ninguém me diz outra coisa senão que tenha calma, que tenha paciência!

— Não se irrite, Francisco Manuel, continue.

— A partir dessa noite azarada vi várias vezes o Fernando Cardoso em grandes conluios com a Bárbara, sob o olhar car­regado do João Vicente.

Sempre que este conseguia instalar o Francisco Manuel junto do Fernando Cardoso, sujeitava-os a ambos àquilo que deveria considerar a sua dose de vingança. A conversa caía invariavel­mente sobre a Branca, como estava, o que fazia, que lembranças tinha ela do tempo passado na fazenda da tia Guiomar. Seguiam-se as memórias de África, que provocavam sorrisos amarelos e despedidas rápidas do advogado, que era o que ele pretendia, antes de a Bárbara regressar do pequeno palco, depois da sessão de striptease.

— Ciúme de chulo, do pior.

— Uma noite deixei-me ficar no Flamingo Dourado depois de o Fernando Cardoso ter partido a remoer frustrações e critiquei o João Vicente pelas suas picardias. Ele riu-se todo ufano. A ques­tão não era provocar-me, garantiu, mas amolecer os avanços do advogado em direcção à Bárbara.

Nada devia àquele pavão que nem a tropa fizera e ficara por cá no ripanço das universidades, enquanto ele e outros como Francisco Manuel davam com os ossos em África. Um pássaro da espécie dos papa-figos, que casara com a Branca apadrinhado pelo Gregório Castelo Branco só para meter o bico na herança da tia Guiomar. Pelo menos na parte que o Gregório não conse­guira transferir para o seu nome antes da morte da mulher.

O João Vicente esperou uma reacção do Francisco Manuel às desventuras daquela que fora o seu grande amor e às maquina­ções do homem que o tio lhe arranjara para a arrumar como senhora casada, mas o oficial formara no rosto a expressão impenetrável que exibia nas matas dos Dembos quando desconfiava dos ruídos que vinham da floresta. Para o retirar desse mutismo, o antigo soldado dos Aventureiros adiantou que o advogado des­prezava a Branca e dedicava ao Francisco Manuel um ódio de morte, por desconfiar de que a ferida dos antigos amores de Angola não estava sarada, nem nele nem na Branca.

— Esta conversa pareceu-me despropositada, porque não conhecia o advogado até o encontrar no Flamingo Dourado, mas nem por um momento desconfiei de que todas as palavras do João Vicente faziam parte de um plano bem arquitectado para me perder e continuei a fazer a minha vida, desconhecendo o que trama­vam nas minhas costas os tipos da Fundação a que recusara aderir.

Neste estado de lástima, em que nem para beber um copo encontrava um lugar descansado, nem para um afago tinha uma companhia, o Francisco Manuel descobriu que só o papel branco não tem segundas intenções.

— Decidi escrever um livro e já escolhera o título, Ajuste de Contas.

— Escrever livros em Portugal é um acto tão insólito como produzir diospiros. Há mais quem os cultive do quem os compre, embora seja de norma todos dizerem que os apreciam.

Para preencher os ócios da quase clausura do apartamento de Paço de Arcos, o Francisco Manuel decidiu reunir algumas cartas onde descrevia as actividades secretas em que participara e o papel de sendeiro que alguns dos actuais figurões desempenha­ram, e discutia os preliminares com o editor, um jovem que regressara a Portugal do exílio no estrangeiro com uma sacola a abarrotar de ideias brilhantes para a nossa revolução.

— As cartas são um perigo e os editores uns agentes duplos.

— Não cheguei a estrear-me como escritor.

— A actividade dos escribas em Portugal não é reconhecida como profissão...

— O que menos me interessava era uma nova profissão, queria antes uma nova finalidade para a minha vida. Depois da guerra e da revolução, a escrita e a denúncia!

— Eu já estive na situação inversa, depois da escrita, um emprego normal, a servir copos de três num tasco. Mas durou pouco. Eu e o dono, por cada copo servido, bebíamos um para acompanhar o cliente. Por cada copo vendido, dois de prejuízo. Não havia capitalismo que aguentasse.

— Alguns camaradas meus sofreram essa difícil provação que é para um militar ter emprego com horários, facturas, recibos, sindicatos. Um, que se fez dentista, certamente por não lhe ter pago a conta de uma cárie, aconselhou-me a ir para a política. Veja lá, Manuel Costa, meter-me na política depois de tudo o que ela me causou! Antes tratar de cavalos...

Andava a discutir com o jovem editor a melhor maneira de tor­near os escolhos, porque alguns assuntos talvez fossem de difícil aceitação. Podíamos falar de África. Claro, afinal estivemos lá. E da guerra. Evidentemente, não fomos nesse capítulo piores do que os outros. Também deveria tocar na revolução, talvez sob o ponto de vista da derrota dos radicais. Boa ideia, porque certeza podemos ter de que o mundo nas mãos deles fosse melhor do que aquele em que hoje vivemos? Sim, se nem das do Criador saiu grande coisa...

Remoía vinganças e engendrava retaliações quando lhe saltou diante dos olhos, na primeira página de todos os jornais expostos no quiosque onde ia comprar tabaco, a notícia de que o João Vicente matara o advogado Fernando Cardoso: «Dono de boite de Nuit mata advogado amante da mulher!»

Confirmavam-se as ideias do Francisco Manuel quanto à lou­cura do advogado Fernando Cardoso em desafiar uma fera no seu covil.

— O advogado utilizava a palavra e a eloquência para encan­tar, sem perceber que o soldado João Vicente considerava o san­gue a melhor das soluções para se defender. Para ele, destruir sempre significou experimentar e esta lei não se aprende nas turmas das universidades.

— A minha avó dizia que mais vale um ano de tarimba do que cem de Coimbra...

— Vou vomitar.

O capitão dirigiu-se à porta do quarto, arrastando-se dentro do capote verde-azeitona com a majestade assustadora de uma nuvem carregada de muitas tempestades. A sua sombra de gran­de morcego cobriu as paredes, escurecendo a luz crua da lâmpada até desaparecer, apoiado ao fiel cabo Matos, deixando o Manuel Costa num silêncio vazio e longínquo, que lhe permitiu ouvir os violentos arranques trazidos das profundezas do ulce­rado cavername do Francisco Manuel. O ruído de dor ecoava nos corredores, o Manuel Costa sentia o corpo cobrir-se de suores e quase não conseguia respirar.

Que raio estava eu a fazer ali, Cento e Quinze? Via mortos a aparecer de todos os lados, porque era a morte a única senhora da Casa do Desterro. Tinha de escapar daquele transe sem dar nas vistas. Bebi mais um gole de vinho, a ganhar coragem para a fuga, limpei os beiços à manga e ala que se faz tarde.

Tarde de mais, o Francisco Manuel regressava, seguido pelo cabo Matos, enérgico e firme como se nada se tivesse passado. Estendeu o braço, cortando a saída ao Manuel Costa, e trouxe-o ao ponto de origem, a cama desfeita que servia de sofá de ouvir histórias.

— Não quer ouvir o que me sucedeu a seguir?

O Manuel Costa apagou-se com a falsa humildade do pilha-galinhas apanhado com a boca na botija.

— Quando estava de novo e descansadamente à volta dos meus trabalhos literários, fui abordado por um jornalista que conheci nos tempos da revolução, o qual me garantiu haver o João Vicente declarado no interrogatório a que fora sujeito ser eu o mandante da morte do Fernando Cardoso...

O Francisco Manuel não fez caso das notícias absurdas que esse jornalista lhe trouxe, apesar de saber que recebia dos pro­curadores os segredos de justiça como se eles fossem bilhetes de lotaria para apregoar e de ele lhe garantir que o juiz encarregue do processo o iria mandar prender. Não mudou os seus hábitos e manteve-se em casa, onde foi achado pelos polícias em todo o natural e inocente descuido.

— Podia ter fugido, mas queria saber até que ponto eles iriam. Conhece a palavra desprezo, Manuel Costa?

— Isso é altivez e orgulho, pagam-se caro.

— A minha prisão efectuou-se numa terça-feira, dia dezanove de Novembro, e o meu julgamento esclareceu que tanto faz que uma acção seja justa ou injusta, porque a justiça consiste apenas na vontade de quem tem o poder de condenar. Quiseram, inclu­sive, tirar-me as condecorações ganhas na guerra!

Toda a acusação contra Francisco Manuel teve por base a informação de duas testemunhas falsas e de nada lhe valeu lem­brar o seu passado de militar, nem argumentar que não tinha motivo que justificasse querer a morte do advogado Fernando Cardoso, quanto mais o mandá-lo assassinar, porque, no final, o juiz condenou-o como se o tivesse visto tirar-lhe a vida, ou ouvi­do mandar matar, enquanto atribuía ao João Vicente uma leve pena, devido às atenuantes de ter agido para limpar a sua honra e de ter sido incitado ao crime por um antigo superior, a quem devia favores e lealdades.

— Fiquei a ferver por dentro com a estupidez de ter caído numa armadilha friamente preparada, mas o que mais me custou, Manuel Costa, foi o soldado João Vicente ter participado nela, foi ele ter-me traído com a conversa do ódio do Fernando Car­doso, para servir de futura justificação ao assassínio do advogado, que os flamingos da Fundação planeavam realizar e do qual necessitavam para me acusar.

O Manuel Costa bocejou com ruído e ao bocejo seguiu-se um irreprimível arroto vínico, que se transformou num vómito, o qual projectou o sarro de todas as suas vísceras e tingiu o Francisco Manuel, mais a cama, com a pasta espessa e avermelhada que cobria os corpos nos longínquos dias das matanças em Angola.

O cabo Matos saltou para acorrer ao desastre e o Francisco Manuel fez um desesperado esforço para se afastar daquele mar de lava azeda, caiu pesadamente e arremessou a garrafa com a intenção de a dirigir à cabeça do Manuel Costa. Falhou a pon­taria e acertou com violência na parede.

— Beberrões de primeira apanha, agora vou ter de limpar tudo isto!

O capitão Francisco Manuel caiu com fragor.

— Estou acabado, I'm finished.

— Em inglês soa melhor.

Mas sabes que mais, Mano Serafim, palpitou-me que o capi­tão Francisco Manuel ainda não disse da sua missa nem a metade.

Estavam os dois bêbados e taralhoucos, e o Manuel Costa gatinhava pelo quarto, procurando um ponto de apoio para se levantar. Deitou a mão à pega do armário de ferro, que caiu desamparado sobre o cimento com o estrondo de um caixão, espalhando o seu interior como o corpo rebentado de um ho-mem-bomba. O espólio de Francisco Manuel, tudo o que lhe res­tava e ele arrastava atrás de si, como os sem-abrigo a vaguearem pelas ruas, estava exposto à devassa de quem quisesse ver.

Sentado no chão, o Manuel Costa, pegou nos papéis que começavam a embeber-se de vinho e começou a lê-los ao acaso. A voz cava, rouca e avinhada ecoava com o rufar ameaçador dos tambores das charangas militares nos cerimoniais guerreiros e chegou aos ouvidos dos internados da Casa do Desterro, que acorreram ao alvoroço no quarto do capitão Francisco Manuel, glória humilhada dos desapiedados Aventureiros das campanhas de África. Detiveram-se em magote na soleira da porta, ridículos como fantasmas nos seus pijamas encardidos, apoiados em muletas, de olhos brancos da cegueira, os rostos enegrecidos das explosões da pólvora das minas, troncos encaixados em cadeiras de rodas, crânios deformados, temerosos diante da­quele revisitado espectáculo de campo de batalha após a carnificina.

O Manuel Costa atirou os papéis ao ar. O capitão Francisco Manuel jazia adormecido, em morte aparente. Os internados da Casa do Desterro avançaram e o cabo Matos deteve-os, im­pedindo-lhes a entrada com o pau da esfregona que trouxera para as limpezas, enquanto o Manuel Costa gritava, sentado no chão:

— Rua, bicharada moribunda e pegajosa!

— Quem é este gajo? Perguntou uma boca sem dentes.

— Chamo-me Manuel Pitta Simões da Costa, ou só Ma­nuel Costa, como preferirem. Estou aqui porque também perdi tudo.

Caiu para o lado e os internados olharam uns para os outros. Um amputado dos dois braços dirigiu-se ao capitão Francisco Manuel e avisou o cabo Matos.

— Está desmaiado.

O sol da manhã rompia pelas janelas e a claridade revelava com a crueza da luz os pormenores da decadência em que se encontravam. Não era visível qualquer responsável para tomar conta do edifício nem dos seus ocupantes. A Casa do Desterro parecia navegar como um navio perdido nas brumas, entregue a uma tripulação de almas rejeitadas.

O cabo Matos abriu caminho por entre os que olhavam sem saber o que fazer, de mãos enfiadas nos bolsos dos pijamas, os que as tinham, os decepados com as mangas a abanar, vazias, de cabelos desgrenhados, a arrastarem os pés metidos em alpergatas sem atacadores, a tactearem com as bengalas. Deu-lhes algumas ordens, que eles cumpriram sem pressas. Resignados e habi­tuados.

— Vamos limpar isto antes que venha o coronel Furtado.

— O coronel está-se cagando para nós.

Respondeu um queimado, coberto de escárfulas purganhentas:

— Mas não se está cagando para ele — acrescentou um tipo a quem faltava o osso do externo, apontando o Francisco Manuel.

Passado algum tempo, entrou no átrio da Casa do Desterro uma ambulância e dela saiu uma enfermeira, apressada e deci­dida, que tomou o pulso aos dois homens. Depois de mandar colocar os dois corpos nas macas, disse ao cabo Matos:

— Estão em coma alcoólico, vou dar-lhes uma injecção de vitaminae de coramina.

O Manuel Costa sentiu o frio desagradável de uma agulha pene­trar-lhe a nalga e acordou aos espirros, deitado numa cama de lençóis lavados. Levantou os olhos e reconheceu a enfermeira Elsa, de bata branca. Na cama ao lado, encontrava-se o Francisco Manuel, ainda inconsciente.

— Como veio aqui parar, senhor Manuel Costa?

— É uma longa história.

— Tem de sair rapidamente. Quem podemos chamar para o vir buscar? O doutor Rui Mendonça?

— Sim, ele é o meu encarregado de educação.

— É a vossa sorte terem encarregados de educação nessa idade.

O Manuel Costa sentia-se cristalizado, vendo a Elsa esfumar-se, mas ainda a ouviu protestar:

— Pai, o capitão Francisco Manuel não pode andar metido com estranhos.

E a voz do cabo Matos:

— Ele deu em rememorar...

— Vício de velhinhos, gabarolices, sempre o mesmo estendal de vexames e fracassos, partes gagas, partidas de garotagem, que cegada! Temos de pôr este bebedolas daqui para fora antes que chegue o coronel Furtado. Como é que uma pessoa como o capitão Francisco Manuel se mete com um tipo destes?

— Elsa, mesmo as pessoas mais reservadas têm as suas horas malditas, necessitam de desembuchar...

— E que vamos fazer com esta papelada toda?

— Leva-a e guarda-a bem guardada. É a vida dele... e parte da minha...

 

   Su cuerpo dejáran no su cuidado, serán cinza, mas tendrá sentido.

                                   Quevedo (Sonetos)

 

                   De O Ninho do Papagaio à morte do anjo-da-guarda

Deitado na cama, com os olhos fechados, a fingir que dormia, se estivesse frio lá fora, tanto melhor, o Manuel Costa imaginava os homens e mulheres que circulam pelas artérias da cidade a bater o dente, a correr desaustinados para os empregos, a fazer pela vidinha.

É este o sangue que faz palpitar o coração das metrópoles, Mano! Gente insegura, atarantada, trémula, inquieta, com reci­bos, receitas de medicamentos, bilhetes de lotaria nas mãos, pas­ses sociais, sacos de plástico, guarda-chuvas, numa grande azáfama. E o Manuel Costa no quentinho, apenas levemente incomodado pela suave dor de cabeça da bela ressaca que justi­fica estar ali e nem se lembrar de como lá chegara. Deve ter apa­recido a habitual alma caridosa. Não seria má ideia para um jovem empreendedor criar uma empresa de entrega de bêbados ao domicílio, Cento e Quinze.

A memória do Manuel Costa começou lentamente a regressar à cela branca da Casa do Desterro onde deixara o capitão Fran­cisco Manuel e o cabo Matos com as suas histórias de portugue­ses mal-amados.

Pelo relógio do estômago, o mais antigo e verdadeiro, devia ser meio da tarde. Depois de ter dormido durante o período normal de funcionamento das repartições públicas, o Manuel Costa estava recuperado, pronto para iniciar a noitada. O dilema passava a ser levantar-se ou aguentar-se no remanso da cama, mesmo sem mijar.

Que raio de histórias o Francisco Manuel contou, Cento e Quin­ze! Os militares têm uma queda natural para se envolverem em atribulações com emboscadas, mulheres dos próximos e o destino de todos. O que favorece a literatura, mas confunde quem está por perto. Nem todos são assim, felizmente. O avô do Manuel Costa fora militar, maquinista naval e tão pacato que nunca percebera porque lhe chamavam capitão-de-mar-e-guerra. Nem um acidente de carro teve e acabou a vida no Arquivo Histórico-Militar!

Quem se julgava o Francisco Manuel? Um arcanjo mais habi­litado do que os outros porque andara aos tiros em África? Qual a vantagem? Estava agora pior do que os cães no canil municipal! Ele e os amigos seguiram todos no mesmo rumo, apupados pelo povo que ontem os aclamava, trocados por uns espertalhões de quem não se viam as caras nem as contas dos bancos, mas que os empurravam com dureza, a toque de caixa.

Decidi afastar-me da companhia desses ferrabrás, incluindo o fiel escudeiro. Era esta a minha intenção, caro Cento e Quinze, quando me senti sacudido.

— Ainda não morreste, velho gaga?

— Ressuscitei. Onde estou?

— Em minha casa, na Rua Camilo Castelo Branco.

— Esta casa é tua?

— É um apartamento para escapadelas.

— Boa, saio de um antro clandestino e caio num ninho de amores clandestinos. Que vieste cá fazer, agora és promotor da clandestinidade?

— Eu é que faço as perguntas.

— Sou todo ouvidos.

— O que aconteceu ontem não se pode repetir.

— Não foi a primeira vez que me foste buscar quando eu já não estava em condições de dar com o caminho do regresso...

— Tu sabes onde estiveste?

— A mim pareceu-me um campo de concentração secreto, sem forno crematório, é claro. E já lá tinha estado.

— Quando?

— Quando gozei aquela magnífica temporada de desinto­xicação que tu me proporcionaste no Centro Antialcoólico, ou anticatólico, do Vale do Rio...

— Uma perda de tempo...

— ... passei por lá, a caminho dos exames no hospital... O Rui Mendonça bateu com a mão na testa.

— Por isso conhecias o Francisco Manuel e a enfermeira!

— Brilhante acto dedutivo. Podes deixar o trabalho na Funda­ção e ir para detective.

O Rui Mendonça sentou-se na borda da cama. Parecia preo­cupado e o Manuel Costa pediu-lhe um copo, para romper o silêncio.

— Fala, já a minha professora, a Dona Felismina, dizia que gente calada é gente morta.

Na ácida opinião do Manuel Costa, o grande criador de todas as coisas poderia ter estabelecido o Rui Mendonça como estereó­tipo do secretário, caso se tivesse lembrado de o incluir nas suas obras, como o fez com os senhorios, os confessores e os teólo­gos, entre outras espécies de inúteis que sugam e perseguem os comuns mortais e também não constam do catálogo do Génesis da Bíblia.

Afável, curto de pernas, o que lhe garantia um baixo centro de gravidade, conveniente para se manter de pé em quase todas as circunstâncias, deixara perder os cabelos rebeldes da juven­tude e escolhera uns óculos redondos para acentuar o pendoroWelectual, a gravidade e a sensatez adequadas às importantes funções que desempenhava na Fundação o Homem e a Obra. Falava baixo, porque qualquer palavra mais alta pode revelar um segredo, vestia de escuro para mais facilmente passar desperce­bido e demonstrava uma efectiva boa vontade de resolver qual­quer situação, desde que tal fosse do interesse do seu príncipe. Perfeito.

Não era, contudo, este o Rui Mendonça que viera acordar o Manuel Costa, mas um ser acabrunhado, misterioso, ressentido, inquieto, acossado.

— Os tipos da Fundação preparam-se para me mandar limpar os pés.

— Que conversa é essa?

— É o que dizem na Máfia quando querem despachar um tipo que se tornou dispensável ou incómodo.

— Tornaste-te dispensável porquê?

— Porque eles estão convencidos de que me podem substi­tuir com vantagem.

O Manuel Costa arrotou e depois levantou-se da cama. Sinais da deferência que o assunto e o interlocutor lhe mereciam.

— Os patrões pagam os trabalhos como os avaliam...

— E sabes quem estão a preparar para me substituir? A tua filha Maria Helena, a Naná!

— Então a primeira a mandar-te limpar os pés foi a criatura com quem ainda há um mês estavas disposto a juntar os trapinhos e montar uma bela casinha recuperada em Alfama! Eu nunca acreditei na recuperação das coisas degradadas. Olha para mim!

— Vai para a cama com todos os tipos que lhe podem dar boas notícias para a primeira página do jornal onde trabalha, bebe, fuma e fode de mais...

— Vícios de família

Fazia um frio desgraçado no quarto, Cento e Quinze. Pelo menos, sentia-o. Ou os arrepios podiam ser recordações das des­venturas da paternidade, que entravam pelas frinchas das jane­las com aquele nome que o Rui Mendonça ressuscitara do limbo onde repousava.

Por causa da Naná fora condenado no tribunal da Boa Hora. Não exactamente por causa dela, mas por estupro da mãe, menor à data dos factos. Depois sumiu-se, quando tinha cinco ou seis anos. Fora uma das criancinhas que lhe desapareceram nas Caldas da Rainha. Partiu para muito longe e passou a ser apenas um nome, uma lembrança, como os anjinhos que morrem sem baptismo.

— Era muito viva, um amor de criança, guardei dela, durante algum tempo, uns sapatos de verniz.

— A Naná está a pensar em reinventar a sua própria história e apresentar-te como um patusco, um hippy, de quem é original uma grande jornalista ser filha.

— Sabida, a rapariga...

— O que o berço berça...

— E como está ela a pensar fazer essa reconversão?

— Através de um artigo a publicar numa revista da moda... em que surja acentuada a via da autoflagelação que tu deliberadamente escolheste para manifestares o teu abjeccionismo social, em que a tua miséria seja só aparente...

O Rui Mendonça esticou duas ou três vezes o pescoço dentro do colarinho da camisa. Nunca se habituara a trazê-los aperta­dos, mas um assessor não pode aparecer desgorjado, com a gra­vata às três pancadas.

— E tu queres que eu a desminta...

— Podes fazer constar que não é nada assim... a grande jor­nalista nem assina os artigos com o teu nome.

— Também eu assinei os textos marginais com o Pitta Simões do meu avô materno. Só o abandonei quando as graçolas me transfor­maram em Pila Simões. A família sempre há-de servir para obnu-bilar um rótulo como o meu, pouco recomendável nos meios onde ela se move, já que não deixou herança comestível, empenhável...

— Ela despreza a honra tanto quanto a virtude. A maldade agra­da-lhe por ela mesma. Sai a ti, em versão refinada.

— A versão revista da Delfina do Mal, um orgulho para o genitor! Pelos vistos, valeu a pena o meu sacrifício em gerá-la, se um dos meus duzentos e vinte cinco milhões de espermatozóides escorreitos, que é o número estimado pelos cientistas para cada acto, navegou vitoriosamente até produzir esse ser de talentos tão contraditórios como os que me estás a descrever.

Ao ver o Rui Mendonça fitá-lo com os olhares dos ofendidos, o Manuel Costa desistiu de apertar mais com o secretário da Fundação o Homem e a Obra sobre os bastidores do conflito entre ele e a Naná.

— Sabes que ela está a escrever a biografia do presidente da Fundação?

— Não eras tu quem estava a preparar a edição de um livro sobre o homem, para português ver, mas editado por uns ingle­ses e escrito por um polaco ou checo?

— A Portait of a Hero, com lançamento no Ritz. O livro saiu uma merda e o Diogo Soares e o Miguel Vasconcelos aproveitaram o falhanço e viraram-se para a Naná, para ela fazer uma edição nacional. Ajudas-me ou não a desmascarar esta sacanice? Lá por ser tua filha, também me deves favores...

Havia algo de desesperado na voz do Rui Mendonça, Cento e Quinze. Devia-lhe favores! Mas sempre lhos pagara, em conse­lhos, é certo.

— Ainda não me contaste porque os flamingos te consideram agora incómodo na Fundação...

— Tens visto, ouvido ou lido notícias?

— Não tenho rádio nem televisão... eu e o ornitorrinco do jar­dim zoológico devemos ser os dois únicos habitantes instalados neste cantinho à beira-mar que não dispomos desses aparatos. A caixa das imagens nunca me entrou em casa nem a cores nem a preto e branco, e o rádio, o transístor, levou-o a Deolinda, para ouvir o Roberto Carlos e a lengalenga do terço; quanto aos jor­nais, só leio a necrologia e a secção de artes e letras, porque artis­ta bom é artista morto. Estou à espera da minha vez.

Meu caro Cento e Quinze, o Rui Mendonça descreveu a seguir um processo deveras complicado de reproduzir, mas que deves conhecer por dentro, em que ele aparecia como vítima de uma cabala engendrada pelos cunhados Diogo Soares e Miguel Vasconcelos e pelo Gregório Castelo Branco.

É aquela bronca que saiu nos jornais (por acaso, aquele em que a Naná trabalha foi o que levantou a lebre) sobre um negó­cio que o Mendonça fez com uma empresa inglesa para esta entregar uma comissão a um ministro que lhes adjudicaria uma obra. A massa seria dividida em partes iguais, mas o governante abotoou-se com o envelope e entregou a obra a outros (que lhe devem ter pago mais). Os ingleses fizeram chegar ao jornal a cópia do faxe em que pediam o retorno do deles — business is business — e o ministro acusou o Mendonça de corruptor activo, enquanto os flamingos da Fundação (que também ficaram a ver navios) o culpam de estar feito com o ministro e de serem ambos corruptores passivos.

Cento e Quinze, mano Serafim, estão todos a sacudir a água do capote e quem está molhado é o Rui Mendonça. Até o caso ser deci­dido, o melhor é não incluíres no livro esta parte em que o rapaz surge como corruptor hermafrodita, o que constituiria motivo de chaco­ta generalizada no mundo a que ele se alcandorou a duras penas.

Já a noite havia caído e ainda o Rui Mendonça explicava os meandros da justiça, dos quais, na noite anterior, o Manuel Costa tinha recebido a sua conta.

— Não és o primeiro homem esforçado que sofre de ingratidões e contra quem os juizes inventaram leis feitas à medida. O Francisco Manuel é um caso desses.

— Eu quero lá saber desse Francisco Manuel!

— Aprendemos mais com um derrotado do que com um ven­cedor.

— E ainda por cima continuam a aparecer lá na Fundação os panfletos do Manuelinho, que deixam aqueles tipos furiosos.

— A vingança dos fracos. Como agora estás do lado deles, convém aprenderes como fazem.

— Tens alguma ideia?

Antes de o Manuel Costa responder que ideias nunca lhe faltaram, embora poucas tenham sido boas, o Paulocas entrou muito sorrateiro, mas não invisível, impedindo a revelação do passo seguinte, e olhou, desconfiado, o pai e o Rui Mendonça.

O miúdo tem o mesmo olhar do avô, funcionário do Instituto Nacional de Estatística e músico falhado. Submisso à lei. Quando me fita, a sua expressão acusa-me do ridículo da rábula que represento nesta vida. Despe-me e reflecte-me nos seus olhos como sou, um velho canastrão nu, cheio de pelangas, no fundo de um palco desmontável, que improvisa as deixas à medida que a acção decorre. Gosto muito deste meu filho, mas não consigo representar tendo-o à minha frente. Pudores.

O Paulocas certificou-se do estado sanitário do pai e estava de saída com uma carcaça entre os dentes e as bochechas quan­do ouviu o Manuel Costa propor ao Rui Mendonça acabarem a conversa na tasca O Ninho do Papagaio. Soltou então as únicas palavras: «Mais uma bebedeira.»

— Sofri pavores para ser pai, ganhei cabelos brancos, uma bronquite crónica, uma lesão cardíaca, fiz coisas inenarráveis e é esta a paga, estás a ouvir, Rui Mendonça, sai-me um tipo bem-comportado!

O ambiente desanuviou-se um pouco, o Paulocas sorriu, coisa rara, mas o Rui Mendonça só aceitou acompanhar o Manuel Costa depois de este prometer desmascarar a Naná, caso a filha tentasse refazer-lhe o passado, e garantir que não o metia em sari­lhos maiores do que aqueles em que já estava.

Selei os compromissos com as mais honestas intenções de os cumprir, Cento e Quinze, mas devo ter nascido de pés para a frente e tudo me sai ao contrário do que pretendo. Quem desta vez pagou as favas da minha malapata foi o Rui Mendonça. Acei­tou seguir-me para a desgraça com a felicidade e a ignorância de dois pombinhos noivos.

— Fazemos um lindo par.

O Manuel Costa mirou as suas imagens reflectidas na montra de uma loja de alta costura espanhola no início da Avenida da Liberdade. A gabardina coçada, nem curta nem comprida, caía dos ombros enxovalhada como uma opa de confraria que se desfez dos paramentos por saneamento do padroeiro da lista dos santos, as pernas das calças dançavam no meio das canelas, deixando à mostra as meias caídas sobre os sapatos cambados, grandes como a tumba de um filisteu. A barba por fazer também não ajudava a emparceirar com o Rui Mendonça, de fato de executivo, camisa por medida e gravata de seda.

Ao passarem pela montra iluminada do Rosa & Teixeira, Alfaia­tes, o Rui Mendonça não resistiu a espreitar as novidades.

— Que número vestes? Tenho uma roupa que te posso dar.

— Uso tamanho universal dos pés à cabeça, sou eu e o Jesus Cristo. Tu é que evoluíste muito desde que te conheci.

O conhecimento entre o Rui Mendonça e o Manuel Costa vinha dos tempos agitados da revolução de setenta e quatro, quando a malta que ficara a rezingar no torrão natal e a levar pancada da polícia de choque descobriu a existência de uma insuspeitada legião de lutadores que se batera galhardamente no estrangeiro.

Arrogantes como expedicionários regressados à pátria, toma­ram de assalto as velhas sedes da boémia dos metropolitanos, que deixaram de ter refúgios seguros na capital. Nem no Bairro Alto, nem nas Avenidas Novas, nem nos cafés, nem nas tascas, nem nas próprias casas (aqueles que as tinham), podiam evitar estes novos camaradas que pagavam os copos a pronto (o que ajudava a suportá-los) e lhes davam palmadas nas costas, en­quanto os afastavam dos lugares do futuro como trastes. Vinham cheios do vivo desejo de participar na restauração de Portugal. Se possível, com o maior proveito e sem muito trabalho.

O Mendonça era mais um, de cabelos longos e bigode de guer­rilheiro de café, de jeans coçados e alpergatas sujas, de camisas aos quadrados e boina preta, que passaria incógnito a contar his­tórias do exílio para onde escapara antes da idade obrigatória do recenseamento militar que o levaria à guerra em África.

— Ó Mendonça, tu estarias hoje na Covilhã, à testa da fabri-queta do teu pai, se não tivesses aquela namorada sueca, grande e loira, que motivava a cobiça do maralhal!

Além da sueca, o Rui Mendonça trazia alguns escritos de juven­tude, que gostaria de publicar. O Manuel Costa era, na altura, editor de livros que exibiam nas capas o seu nome. A sueca Gudrun era, além de namorada do Mendonça, uma mulher culta e com fortuna em moeda forte. Resultado, a editora ficou-lhe nas mãos.

— Senti pena quando ela morreu naquele desastre... mal em­pregada... Não quero que te melindres com o que te vou dizer, mas fui eu quem não quis editar os Textos do Exílio, não foi a Gudrun. Tu nunca serias escritor.

O desiludido Mendonça atirou os papéis, que nunca veriam a luz do dia, para o fundo da sacola de pele de rena onde trouxera as ilusões de mudar o mundo e fez-se à estrada. Menos de seis meses passados sobre a sua chegada da Suécia e da desistência da entrada no universo de côdeas de pão e cigarros sem filtro da escrita estava a viajar, todo impante, em primeira classe nas comitivas do governo, carregando pastas de couro e traduzindo discursos em papel timbrado.

Um começo auspicioso para a caminhada que o levou aos gabinetes dos ministros e depois ao do Presidente da Fundação o Homem e a Obra, de onde agora os três flamingos se prepara­vam para o correr e entregar às judiarias dos tribunais.

O Manuel Costa e o Rui Mendonça avançavam lentamente pela Avenida da Liberdade e o escritor maldito encostou os olhos míopes até onde lhe permitiu a curvatura do nariz semita junto a uma das muitas placas de latão atarraxadas às ombreiras das portas com nomes de médicos a oferecerem os seus serviços a quem necessitasse tratar das minudências dos recheios. Para sur­presa das prostitutas e dos travestis que ocupavam a zona, come­çou a ler em voz alta os títulos e os locais de trabalho dos pobres funcionários do Estado que arredondavam os magros salários com esse trabalho extra. Anunciou professores de medicina, internos dos hospitais, pneumatologistas, reumatologistas, obstetras, estomatologistas (cirurgia maxilo-facial e próteses), analistas de todos os tipos (TAC e ressonâncias magnéticas), psiquiatras e até um médico assistente das selecções nacionais!

— Estás doente?

— Eu sou um doente e não resisto a ver os anúncios dos fei­rantes da especialidade!

O Manuel Costa e o Rui Mendonça chegaram incólumes à Travessa da Conceição à Glória (que rico nome!) e daí subiram pelas vielas até chegaram ao portão de ferro atrás do qual se escondia a Casa do Desterro. Aqui, o Rui Mendonça estacou e recusou-se terminantemente a entrar quando o Manuel Costa avançou para o pátio.

Digo-te, meu Cento e Quinze, o aspecto da Casa do Desterro era assustador no seu silêncio de sombras, e tu sabes que nunca primei pela coragem física, contudo a discussão que travámos eu e o Rui Mendonça a duas vozes sussurradas, para evitar pertur­bar os fantasmas, teve a ver não com o medo do escuro e das ruínas, mas com a diferença que nos separava quanto ao cumpri­mento de regras, de leis, de compromissos...

O Rui Mendonça não aceitava que viéssemos buscar o capitão Francisco Manuel para o levar a O Ninho do Papagaio. Argumen­tava com a proibição de ele sair sem autorização do director do lar e não houve meio de o demover dessa recusa. É espantoso como homens capazes de participarem em vigarices de milhões, se assustam com a possibilidade de cometer uma pulantice de estu­dantes que saem do internato à revelia dos prefeitos! Mas é assim.

No interior do lar, o Manuel Costa encontrou o Francisco Ma­nuel a vaguear arrastadamente entre as paredes do quarto, com um cigarro nos dedos e o olhar ausente e sem esperança dos velhos leões enjaulados. Remoía o seu passado, pronto para tudo que o levasse de regresso até ele. Difícil, como o Manuel Costa previa, foi convencer o cabo Matos a deixar sair o seu capitão e, mais ainda, acompanhá-lo a O Ninho do Papagaio. Também é difícil perceber o apego aos regulamentos e ordens destes homens que nada teriam a perder com a desobediência, mas também é assim.

O melhor que o Manuel Costa e o Francisco Manuel conse­guiram do cabo Matos foi a garantia de que ficaria deitado na cama do capitão.

Estou hoje convencido, Cento e Quinze, de que quer o Rui Men­donça quer o cabo Matos estavam a premunir, a ter a presciência do que ia acontecer e a precaverem-se quanto possível das suas con­sequências, cada um a seu modo. Por mim, que sou um incons­ciente e considero que a vidinha das pessoas se rege por acasos, seguia de coração ao alto. Cheio de boa vontade em ser prestável.

Mesmo a alguma distância da porta de O Ninho do Papagaio, o trio começou a ouvir uma voz de falsete, que clamava estar a república entregue aos monopólios dos padres, dos médicos e dos advogados, e as coisas bem poderiam melhorar se a medi­cina fosse tomada pelos latoeiros, os tribunais pelos alfaiates e os púlpitos pelos jograis!

O Rui Mendonça engoliu em seco com o embate da frase do orador, cuspida ao ritmo irregular dos tartamudos a fazer suces­sivos ricochetes no cofre da memória onde estavam arquivadas as expressões da juventude, que hoje lhe pareciam tão ridículas como as suas fotografias de cabelos pelos ombros.

Quando os três entraram no reservado de O Ninho do Papagaio, a figura magríssima, de boneco de madeira articulado a ameaçar des­conjuntar-se, do padre Nuno Maria proclamava que os bons vencem os maus. O que é uma convicção perigosíssima quando o crente está disposto a forçar a mão do destino e a alcançar essa miragem.

Só o Rui Mendonça não conhecia o antigo capelão da compa­nhia dos Aventureiros e estranhava o modo como ele tentava fazer as palavras acompanharem a velocidade das suas ideias, sendo o resultado parecer muito aflito e zangado quando as expressava.

O sermão terminou abruptamente e o cabeçudo que adminis­trava o jarro de vinho passou um copo ao Rui Mendonça, em jeito de boas vindas de índios ao caçador branco. Há um quarto de século que não se viam, mas o Cabeça de Vaca tratou-o como se tivesse sido ontem que cada um seguira o seu caminho. No que dizia respeito a este último, nos vinte e cinco anos que produziram a nova raça dos que comem hambúrgueres com o tele-móvel no ouvido, apenas descera as poucas centenas de degraus das Escadinhas do Duque que separam a tasca das galegas Alice e Juanita, onde se conheceram, de O Ninho do Papagaio, para continuar a beber dos fiados da Paquita quando esta se estabe­leceu por conta própria.

— Tira o casaco, que temos trabalho ordinário e a Paquita desligou o ar condicionado.

O Rui obedeceu ao tipo gordo e barbudo, do tipo bovino, que vestia a mesma intemporal camisola de lã com nódoas e gordura de há vinte e cinco anos.

— Então, a sueca lá se foi! Lembro-me dela como se fosse ontem que esteve connosco a última vez na tasca das galegas. Tu é que estás que nem te reconhecia.

— De que demónios estan hablando?

O Francisco Quevedo, o madrileno com os óculos redondos de aros pendurados no nariz, encostou o seu casaco preto de clergyman ao sobretudo pardo do Francisco Manuel para conse­guir perguntar-lhe ao ouvido quem era Rui Mendonça e de onde diabo o Cabeça de Vaca conhecia aquele senhorito de camisa lavada e fato às riscas. O capitão encolheu os ombros, tão igno­rante quanto o espanhol que a familiaridade entre o gémeo do Quasímodo e o Rui Mendonça vinha da época em que todos se tratavam por tu, logo a seguir à revolução de setenta e quatro. Quando se irmanaram à roda das mesas das tascas os ociosos profissionais do Bairro Alto com os jovens em tirocínio da vida e se cruzaram, por um instante, os destinos dos filho-família, momentaneamente transviados do seu curso normal de futuros dirigentes, com a multidão de irrecuperáveis que a taberneira Alice, a gorda de bigode, classificava (e isto em castelhano soa melhor) de holgazanes, galloferosotruhanes

O Manuel Costa explicou ao Quevedo que nesses tempos, na tasca que as galegas Alice e Juanita dirigiam nas Escadinhas do Duque, todos se moviam com a felicidade dos cardumes de tainhas, um peixe mugilídeo português, adaptado à vida nas águas turvas junto às saídas dos esgotos, e o Cabeça de Vaca, acolitado pelo Rata dos Cabarés, um chulo de peito côncavo, a quem uma tuberculose fizera perder a graça das damas, vivera os seus momentos de glória, bebendo de graça e contando ane­dotas sobre o bas fond lisboeta. Ambos chegaram até a ser entre­vistados para uma revista alemã como exemplos do lumpen proletariat!

— Hombre, bienvenido a los desherdados Manuelinhos!

O inglês Ned Marchmont, sénior journalist and former correspondent do jornal Excelsior, propôs que deixassem o padre Nuno Maria continuar a dizer o que lhe ia na alma, porque senão nem quando os flamingos já estivessem no inferno eles acabariam de cozinhar o panfleto dos Manuelinhos que preparavam, para os reduzir a cinzas. O religioso emitiu uns ruídos a agradecer a ajuda e o Cabeça de Vaca deu-lhe uma palmada nas costas, que quase lhe fez saltar a língua e os olhos dos respectivos encaixes naturais.

— Deixem-no, que o capelão necessita de ganhar embala­gem... Nem os sustos da guerra o curaram.

Ao ouvir a voz do capitão Francisco Manuel, a taberneira Paqui-ta espreitou por detrás da cortina que tapava a porta do tabique que separava o escondidinho da sala principal da taberna, e Quevedo, atento, gritou-lhe:

— Que santa mujer que retarte el panolava nuestras heridas con una ânfora Ilena de bálsamos.

— Mas vamos continuar a ouvir este mestre-escola falar em espanhol toda a noite? Se for assim, passo a falar em inglês!

— Déjame en paz, Ned. Algún dia desaparecerán Ias naciones, Ias fronteras, los cárcelesosobre todo los ingleses!

O Rui Mendonça encostou a cabeça ao ouvido do Manuel Costa e sussurrou-lhe:

— O que fazem um espanhol anarca, um inglês reformado e um padre esquerdista com o Cabeça de Vaca?

— Continuas com mentalidade pequeno-burguesa...

— São estes os Manuelinhos que assinam as cartas?

Gravíssima pergunta, Cento e Quinze. Os originais, das alter­cações de Évora, talvez não fossem muito diferentes, embora sem atingirem a internacionalização deste grupo.

-Que julgavas, pá, que éramos o júri do grande prémio da literatura?

A pergunta destinava-se só a animar o Rui Mendonça, Cento e Quinze. Eu trouxera-o a O Ninho do Papagaio para o apresentar aos Manuelinhos que lhe davam tantas preocupações na Funda­ção e principalmente ao Ned Marchmont e ao Francisco Manuel. Armei-me em aprendiz de feiticeiro com os rudimentos de psi­quiatria aprendidos no Centro Antialcoólico e quis vencer-lhe as fobias através do mergulho na água fria das boas causas. Mostran­do-lhe os inimigos nos bastidores, com as gabarolices e as confis­sões de fraqueza que os humanizam, talvez ultrapassasse as aflições por que passava na Fundação. O problema foi ele não ter estofo para aguentar o choque. Em vez de uma aterragem suave no território hostil, caímos no tumulto dos estados gerais reuni­dos para apelar ao povo e denunciar os abusos dos patrões, quando o padre clamava como um profeta esquentado, e o Rui Mendonça ficou perdido como alguns dos presos que conheci no Limoeiro, pronto a desbroncar-se, imprestável como uma cana rachada!

Para o impedir de se ir completamente a baixo, o Manuel Costa agarrou-o pelo braço. O Cabeça de Vaca, indiferente aos suores frios, rapinou-lhe um cigarro Marlboro. Entretanto o padre Nuno Maria continuava a lutar com as palavras, soprando-as com as bochechas enfunadas até obter guinchos de espantar os gatos. A questão que se esforçava por apresentar à assembleia reunida n'O Ninho do Papagaio para redigir o novo panfleto era, mais uma vez, a injustiça com raízes antigas praticada pelo Gue­delha Diogo Soares e o Miguel Vasconcelos e o crédito que eles tinham junto daquele que os escolhera para seus conselheiros. Chegara a altura de os Manuelinhos o responsabilizarem, porque competia ao soberano escolher quem o serve. E não se pode escusar com os vassalos para justificar as iniquidades.

— Quando assim é, quebra-se o pacto em que nos tínhamos comprometido a não atacar o Presidente.

Nada de novo, Cento e Quinze, excepto se considerarmos o cubículo de uma taberna e meia dúzia de tipos como eu o local e a audiência apropriados para resolver os assuntos da história pátria. Não me parecia mal, poupava-se um dinheirão em depu­tados, obras públicas, secretárias, automóveis, luz eléctrica, mas duvido dos resultados. Contudo, o pior estava para vir.

O padre Nuno Maria acertou finalmente o ritmo e, depois de emborcar mais dois tintos, as frases ganharam velocidade. De pé, com a palavra solta, referiu os nomes de Sisenando Rodrigues e de João Barradas como se invocasse dois santos e, ao ouvi-los, só o Francisco Manuel despertou da sonolência de arcebispo absorvido em pensamentos vindos do altíssimo.

— Capitão Francisco Manuel, lembra-se deles quando andá­mos a tratar das altercações de Évora?

— Se o capelão se lembra...

O padre levantou as mãos e revirou os olhos para o tecto de madeira carunchosa empenada pela sobrecarga da tralha suspen­sa dos pregos ferrugentos. Depois varreu a assembleia com um olhar acusador e a voz subiu de tom. Na relação entre a forma e o conteúdo, estava melhor neste do que naquela e saíra do seminá­rio a pender mais para os rebeldes que os Romanos transformavam em ração para leões do que para os zelotas da doutrina oficial. Não fora por acaso que os bispos da hierarquia o nomearam cape­lão militar enquanto durou a guerra e, depois dela acabada, o desterraram para pároco na selva urbana da paróquia de Agualva-Cacém. Nem admira que tivesse um vernáculo clássico:

— Foda-se! Estou a dizer-vos que o maior risco de ruína do nosso país é a desigualdade. Porque o povo dá tudo quanto tem, e o grande dá sempre menos do que deve.

— Ó Nuno Maria, o povo português, desde que tenha em abundância vinho e seja barato o pão, dá-se por contente e está-se cagando para quem o governe!

— E comam pouco, que é saudável!

Do alto do improvisado púlpito, o padre fulminou primeiro o inglês Ned Marchmont e depois o Cabeça de Vaca com o olhar de anjo exterminador, antes de descer do banco para lhes tirar outro tipo de explicações.

O desgraçado do Rui Mendonça revirava os olhos com a afli­ção de um islamita numa matança de porco. De um morto-vivo que regressa a casa e encontra a mulher e a filha com os vizi­nhos a gozarem do cartão de crédito, do carrinho, do telefone, do seguro de vida. De um Frei Luís de Sousa moderno. Digo-te, Cento e Quinze, que até a mim me parecia excessivamente sur­realista o ambiente de O Ninho do Papagaio e, como sabes, já assisti a muitas sessões em que se trataram de assuntos sérios com a maior algazarra. Até com pancada entre gente avariada, doidos espertalhões, parasitas da vida como o Cabeça de Vaca, mas era a primeira vez que me via entre frustrados tentando arrastar-se uns aos outros para o fundo do poço, enquanto berravam alarvi-dades.

Quando o padre já avançava, pronto a cortar as cabeças dos provocadores, um ruído aflitivo vindo da porta desviou a atenção da assistência. O religioso suspendeu o que quer que fosse sua intenção fazer, que de qualquer modo não provocava nas presumíveis vítimas expressões de medo, e um novo e mais próximo ataque de tosse, tão macabro como o anterior, anunciou a entra­da do Rata dos Cabarés com o uniforme de moço de recados do cabaré Flamingo Dourado a drapejar sobre o esqueleto.

—oa ver se te curas esse catarro, bujarrón.

O recém-chegado parou um instante a exibir o resfolgar de moribundo, soltando dos pulmões ruídos de canos sem água e, antes que deitasse os bofes pela boca e lhe acontecesse o mesmo que ao infeliz herói da Maratona, o Cabeça de Vaca desapertou os colchetes que apertavam os colarinhos do dólman azul carcelado a vermelho e passou-lhe um copo para as mãos trémulas.

Era naquele espectro ridiculamente paramentado de soldadi­nho de chumbo que se transformara o que fora o mais imponente chulo do Bairro Alto, depois de as malfeitorias do tempo e uma tuberculose o terem posto a receber esmolas das mulheres, em vez da paga pelos serviços que já não conseguia desempenhar!

Chegado a esse ponto, o Rata dos Cabarés entendeu que soara a hora de mudar de campo e passou a vender os seus préstimos aos empresários devidamente instalados no ramo. Deixou as ruas para a nova vaga de traficantes e drogados que ocuparam os seus domínios e dedicou-se à actividade mais calma de introduzir nos bares as raparigas da província em busca de oportunidades na capital. Aos poucos, fixara-se no Flamingo Dourado, onde tinha direito a uma farda e a pagamento semanal, além das gorjetas. Que mais podia querer aquela caveira desdentada? Estava no seu meio e tornara-se num especialista a recolher informações capta­das com o ouvido de tísico no meio da trovoada vinda dos ampli­ficadores. Negociava o teor das conversas a meia voz entre os homens e entre as mulheres pelo critério da melhor e última oferta estabelecida na lei dos concursos públicos, mas sem nunca perder o sentido da trincheira onde se encontravam os compin-chas de O Ninho do Papagaio, que tinham a primazia nas últi­mas novidades.

— Fala, estamos todos à espera!

A turba exige sempre mais e mais do artista, Mano. Reas­sumidas as funções vitais, o Rata dos Cabarés tinha de explicar o motivo da urgência que o fizera vir a correr do Flamingo Dou­rado.

Nessa noite, assistira do seu posto de trabalho, junto ao balcão, a uma cena que lhe fizera arregalar os olhos e arrebitar as ore­lhas, os dois órgãos que mantinha em melhor estado de funcio­namento. Numa mesa estavam sentados o João Vicente com o Miguel Vasconcelos e dois ingleses

— Como sabes que eram ingleses?

— Porque falavam como o Ned quando está zangado e não como os marinheiros quando estão bêbados!

E ouviu o Miguel Vasconcelos referir o nome do capitão Fran­cisco Manuel, com a aquela voz de chamar touros que até pelo ouvido de um surdo entra, e aproximou-se quanto pôde sem levantar suspeitas. O alentejano dizia ao João Vicente que ele tinha de resolver o assunto do Francisco Manuel de uma vez por todas, mas o dono do Flamingo Dourado não se mostrava recep­tivo. Não contassem com ele. Estava velho e já lhe chegara a encrenca em que o haviam metido com a morte do advogado Fernando Cardoso. Queria paz e descanso. O Miguel Vascon­celos assentou a mão peluda na mesa e apontou os dois ingleses, que tinham vindo tratar com ele de um problema que só podia resolver depois de arrumar esse capitão de bandoleiros, «e você vai tomar esse assunto a seu cargo...» O João Vicente levantou-se, virou-lhes as costas e foi para uma mesa afastada, com cara de poucos amigos. O trio, com o Miguel Vasconcelos à frente, seguiu-o e sentou-se à volta dele. Aí já estavam fora do alcance das antenas do Rata dos Cabarés, o que o levou a pedir à chefe de sala para ela ir disfarçadamente ouvir o que estavam a dizer, enquanto lhes mudava a garrafa e as pipocas. Mas a Linda negou-se com a desculpa de ter a família em Braga para sustentar.

— O que ela quer é muitas gorjetas e poucos problemas! O Cabeça de Vaca virou-se para o Manuel Costa:

— É isso que ensinas agora às tuas mulheres?

— Essa amostra de chulo ainda se atreve a falar da Deolinda?

— Adelante, chavalo. Estás nervioso por algo?

O grito do Quevedo matou a discussão que o Manuel Costa e o Rata dos Cabarés se preparavam para travar sobre a última mulher que este aliciara.

Em boa verdade, Cento e Quinze, a Deolinda fora a mulher que ambos tínhamos aliciado, como verás mais adiante. Por agora todos estávamos interessados em saber o desenlace dos negócios que o Miguel Vasconcelos e os dois ingleses foram tratar com o João Vicente ao Flamingo Dourado, mas o Rata dos Cabarés já tinha pouco mais para relatar, apenas que eles não chegaram a esvaziar os últimos copos e saíram sem cerimónias.

— Como eram eles?

As manchas vermelhas causadas pelo muito uísque destilado no fígado do velho jornalista do defunto Excelsior acentuaram-se ao escutar a descrição do Rata dos Cabarés e, depois de a ouvir, tirou do bolso do casaco de tecido xadrez já pouco nítido (nem as cãs inglesas são o que já foram) uma fotografia de jornal:

— Parecidos com estes?

— São esses!

O Ned Marchmont voltou-se para a assistência com o ar pom­poso de um Sherlock Holmes em fim de investigação:

— O Ricardo e o Maurício, conhecidos no meio como os Príncipes Palatinos!

O capitão Francisco Manuel não se lembrava de dois irmãos ingleses em Lisboa, que em setenta e sete e setenta e oito com­pravam aos que regressavam do exílio o que eles vendiam para refazer as vidas? Não se recordava deles instalados num iate no porto de Cascais, a fazerem desacatos e a exigirem impunidade, dizendo serem primos da rainha de Inglaterra? Não se lembrava da facilidade com que tiveram acesso aos círculos mais restri­tos dos favorecidos do antigo regime e dos que procuravam os favores do novo?

— Não se lembra de terem ido ter consigo para lhe proporem um negócio de obras de arte?

O militar fitou-o com os olhos de ver ao longe.

— Fui praticante das artes da cavalaria, a dos cavalos, a da guerra, a das mulheres, a do jogo e a da bebida...

— Falta a arte de não fazer nada.

Só o Ned Marchmont não riu do aparte do Manuel Costa, tal­vez por os ingleses serem excepções permanentes, ou porque a preocupação o impedia de participar na algazarra, e o capitão buscou auxílio à sua volta, perdido, adiantando:

— O cabo Matos é quem guarda tudo o que tenho... O jornalista levantou-se e mandou:

— Temos de ir já perguntar ao cabo Matos onde estão as coisas do capitão!

A proposta de trocar os trabalhos espirituais de redigir um manifesto contra os poderosos pelos bens materiais que pode­riam estar com o anjo-da-guarda do capitão Francisco Manuel só teve a oposição do padre Nuno Maria. Este ainda esbracejou com o fervor de um missionário deixado para trás pelos mari­nheiros ao correrem ao encontro das selvagens que os esperam de seios nus na praia da Ilha dos Amores, antes de os seguir.

De facto, Cento e Quinze, os outros membros do grupo partiam do reservado de O Ninho do Papagaio com o alvoroço de mati­lha ao cheiro de cadela, derrubando os bancos e sem olhar para trás. Uma largada que esbarrou na Paquita:

— No salir sin pagar de anteriormente Io que me deber a mi!

Esta justíssima exigência, Cento e Quinze, levantou o proble­ma que eu já conhecia das tertúlias dos surrealistas do Café Gelo e dos cineastas do Vavá, de encontrar um incauto que fique para trás. Valeu-nos na circunstância o Rui Mendonça ter perdido o hábito das fugas precipitadas e acertar as contas por alto feitas pela galega para nos autorizar a partir.

— É o que dá vires de casaco e gravata — comentou o Cabeça de Vaca, enquanto a Paquita arrumava as notas no avental e os enxotava:

— Fuera vosotros todos a ganar el jornal!

Com o inglês Ned Marchmont à cabeça, o grupo fez os pos­síveis para progredir unido pelas ruelas escuras que conduziam à Casa do Desterro, e apenas o Rui Mendonça foi ficando para trás, a preparar a recusa terminante de entrar na porta, onde o padre pediu silêncio com o dedo, antes de avançarem pelo pátio em passo de fantasmas tolhidos pela gota.

Não sei, Cento e Quinze, se estes cuidados se justificavam, pois o manto de morte que envolvia a Casa do Desterro abafaria qualquer ruído e as pálidas luzes acesas nos claustros apenas acentuavam o vazio e o abandono daquele enorme jazigo. Também não acreditava que restasse algo de valor no quarto do capi­tão Francisco Manuel depois de a enfermeira Elsa ter recolhido o espólio que eu e ele espalháramos com a bebedeira da noite anterior, mas não era a mim que competia fazer de desmancha-prazeres...

Ao chegarem ao quarto do capitão, os fiéis d'O Ninho do Papa­gaio verificaram com alívio que o cabo continuava deitado sobre a cama do oficial, coberto pelo seu capote, apenas com um tufo de cabelos brancos à vista. O padre Nuno Maria abanou o antigo expedicionário da companhia dos Aventureiros sem obter respos­ta e, ao tentar virá-lo, o corpo rodou sobre si, num último gesto de obediência. Então todos perceberam que o cabo Matos nunca mais serviria nem de memória nem de claviculário dos segredos ao seu capitão.

O Francisco Manuel aproximou-se daquele que era uma parte de si e manteve-se diante do seu corpo, com os braços esten­didos e as mãos de punhos cerrados, sem uma palavra, sem um gesto, sem um simples esboço de expressão de sentimentos. Como se não acreditasse naquela morte ou, acreditando, se resig­nasse absolutamente ao arbítrio que o levara em vez dele. Numa atitude de tão impressionante ausência de qualquer reacção, que ninguém teve coragem de o interromper, até ele respirar profun­damente.

Depois de ele soltar esse longo suspiro, o padre Nuno Maria fez os sinais-da-cruz com o polegar sobre os olhos e a boca do morto, a entregar aquela alma ao deus em que ele acreditava, e o capitão deixou-se levar pelo Cabeça de Vaca e pelo Rata dos Cabarés para o quarto ao lado.

Como havia que tomar as providências exigidas pela morte, o padre recorreu ao conhecimento que ganhara na guerra quan­to ao modo de funcionar das instituições militares e procurou o responsável de serviço. Há sempre um.

— Onde estará esse cabrão?

E desapareceu no interior da Casa do Desterro para surgir mais tarde com um pigmeu em pijama, só com um olho, sem um braço e com a metade esquerda do crânio deformada. Apresen­tou-lhe o corpo do cabo Matos, que fora adquirindo a rigidez cadavérica. O sargento Inácio, o graduado de serviço, inspec­cionou-o com a sua vista de miniatura de ciclope, encolheu duas ou três vezes o bigode de esquilo e declarou com sole­nidade:

— Está morto, não dá sinais de vida.

— Isso já nós sabemos, o que está previsto nas «nepes» fazer num caso destes?

— Nas normas de execução permanente está previsto comu­nicar a ocorrência aos superiores. Em caso de morte, transmitir ao director.

— Então vá tratar do assunto.

O sargento olhou o capelão com desconfiança.

— Faça o que lhe digo, sou tenente na reserva e o capelão desta casa, porra.

— Eu sei, senhor capelão, só que acordar o coronel Furtado a esta hora...

— Há alguma hora prevista para alguém morrer aqui? Eu conheço o coronel Furtado... e avise também a filha do morto. Você não tem uma relação com as moradas dos familiares?

O sargento Inácio não sabia onde estava, mas ela havia de aparecer, porque não há como a tropa para fazer listas, horários, relatórios, boletins, folhas de carga, registos!

Aos poucos e com naturalidade, o padre tomou a seu cargo a condução dos actos que a morte impõe aos vivos e o pequeno grupo que viera tão apressado a O Ninho do Papagaio reuniu-se à sua volta, atarantado e à espera de que lhes indicasse o caminho a seguir.

— Têm de sair daqui antes que o coronel chegue. Só fica o capitão Francisco Manuel, para ele o ver.

Faltava apenas o Ned Marchmont, que desaparecera por uns momentos e agora andava à volta do corpo do cabo Matos, a meter o nariz nos armários de metal, a olhar por baixo da cama, a mexer na roupa suja, e que se aproximou para acrescentar:

— Quem assassinou o cabo queria apanhar o capitão.

— Usted ahora és detective?

— O quarto do cabo também foi revistado.

O inglês ia desfiar os indícios que o levavam a concluir esta­rem diante de um crime, mas o padre mandou-o calar. Calm down, my friend! Nada de levantar hipóteses extraordinárias de crime! A sua ideia era fazer os possíveis para a morte do cabo ser aceite como provocada por causas naturais. Reagia como um Português sensato, experimentado, membro de uma antiquíssima instituição, para quem a presença da polícia traz sempre o duplo perigo de inocentar os criminosos e descobrir inconveniências nas vítimas. Para conseguir evitar que os assassinos se ficassem a rir e o capitão Francisco Manuel se visse envolvido em maio­res trabalhos com a justiça do que os que já sofrera, confiava no horror das instituições aos escândalos e na má vontade dos cida­dãos em testemunhar. Por fim, conhecia o coronel Furtado e a sua habilidade para atravessar a chuva sem se molhar.

Os queixos mal barbeados do inglês Ned Marchmont foram descaindo à medida do espanto com que ouvia estas considera­ções sobre o modo como os Portugueses se relacionam com as autoridades e a justiça. Mas nada mais pôde fazer, porque todos os presentes abanaram as cabeças de assentimento às palavras do padre. A partir do momento em que chegaram a este acordo, a questão era abandonar a Casa do Desterro o mais rapidamente possível.

— Ao menos vamos combinar um local para nos encon­trarmos.

Esta já parecia uma proposta razoável do inglês, desde que esse lugar não fosse O Ninho do Papagaio, e o padre propôs a sua casa de pároco de Agualva-Cacém, o que permitiu a cada um dos membros do grupo desaparecer na noite, sem mesmo se despedirem uns dos outros.

O Manuel Costa viu-se sozinho na ruela escura, à procura do Rui Mendonça, tacteando como um cego abandonado que tenta ouvir o menor ruído para se orientar. Custava-lhe admitir, por­que não queria admitir, mas convenceu-se de que o cobardola do Mendonça se fora embora. Com gente como ele, o jogo da conveniência anda sempre falseado. Prometem sempre mais do que dão. Garantem-nos ajudas que ninguém pediu e falham porquê? Para nos gozarem? Deu um grito quando viu o vulto sair de uma porta.

— Pregaste-me um susto.

— Julgas que sou o teu anjo-da-guarda?

— O anjo-da-guarda do capitão morreu. Aliás, foi morto.

Cento e Quinze, havias de ver o salto que o Mendonça deu ao ouvir o que acontecera ao cabo Matos. Pior do que lhe tivesse dado um choque com a electricidade do Castelo do Bode. Desa­tou a tremer e mijou-se pelas pernas a baixo. Ciente do perigo que ambos corríamos nesta perigosa contenda, eu expunha-lhe os pormenores do que se passara na Casa do Desterro em voz cada vez mais baixa. E ele a ganir sem forças para sair dali. Quando vi uns faróis a aproximarem-se, empurrei-o para dentro do vão de escada donde saíra. Ele aproveitou a protecção do escuro absoluto e agarrou-me pelo pescoço. Mas aquilo parecia mais um abraço do que um ataque em forma. Imaginava grupos rivais em encontros fortuitos de esperas e ciladas a chegarem a vias de facto em tiroteios sangrentos. Uma porta abriu-se e saiu de lá um balde de água e um berro:

— Paneleiros de merda!

Corremos os dois todos ensopados dali para fora, até aos Res­tauradores, com ele a culpar-me por o ter arrastado para esta aventura, a amaldiçoar a hora em que me foi buscar a Setúbal.

 

                                                 Quem paga é que sabe.

                                                       Manuel Costa

 

                               Colhido pelo seu próprio jogo

— Bom, é nestes períodos da vida que os momentos de que tenho estado a falar têm maior probabilidade de ocorrerem.

— Que momentos?

— Momentos de cansaço, de descontentamento, de convul­são, de revolta. De descalabro geral, extraordinários, que mudam o destino de uma nação e de um indivíduo. Decisivos, como diz o teu patrão nos discursos.

— Finalmente reconheces que já não basta preocupares-te contigo e dares umas caneladas na história da pátria. Só para assistir a essa confissão valeu a pena ter vindo aqui.

— Meu sacana, não preciso que me digas com quem devo preocupar-me. Basta olhar para ti, seguir o teu belo exemplo!

— Mau, se entras pelo caminho da ofensa vou-me já embora. Para malandro, malandro e meio, o Rui Mendonça rodou

sobre os calcanhares ameaçando dar meia volta e levar consigooanúncio da boa nova que o trouxera até ao Manuel Costa. Este, fez-se humilde e respondeu com os modos de um gentleman fleumático e civilizadíssimo à ameaça de retirada do grande Mendonça.

— Perdoai-me, senhor, o desabafo, mas ele há coisas...

— O principal é tu quereres.

— Se depositam confiança na gente, temos de corresponder.

— Assim entendemo-nos.

A conversa pareceu tomar o caminho que o Rui Mendonça pretendia, mas não estava a ser fácil manter as ideias alinhadas no ambiente de promiscuidade e miséria em que o Manuel Costa o recebera. Desconfiava de que ele encenara aquela situação escabrosa só para o chocar. Conhecia-o de ginjeira.

Depois de ter recebido o seu recado a avisar da visita, o velho marginal deve ter recorrido aos conhecimentos ganhos como antigo funcionário da Inspecção dos Espectáculos para montar aquele palco neo-realista em que fora introduzido pela jovem mulher do Manuel Costa. Um quarto de tecto e paredes de con­traplacado a escorrerem humidade, a janela com os vidros racha­dos, um penico de ferro debaixo da cama. O Rui Mendonça coçou-se, mordido pelas pulgas esfomeadas.

Previra um espectáculo degradante, mas não tanto como a realidade que veio encontrar naquele tugúrio nos fundos da casa inacabada nos limites do porto de Setúbal, onde nem a polí­cia chegava à primeira tentativa. O Mercedes preto estava lá fora, debaixo da figueira, que dava uma sombra pegajosa, e restava-lhe esperar que os figos podres não lhe queimassem a pintura, os miúdos selvagens não o riscassem, ou os adultos não o rou­bassem.

Enrolado nos lençóis como uma múmia num túmulo aberto, o Manuel Costa observava as reacções do Rui Mendonça com um brilho velhaco nos olhos. Como quem diz «estás a ver?». O esforço que fizera para se sentar na cama deu-lhe o pretexto para exibir um ataque de tosse, deixando ao seu interlocutor a responsabilidade da conversa.

— Como ia dizendo, foste tu quem pediu ajuda...

— E achas que não preciso? Estou triste e só neste quarto imundo por onde entra toda a bicharada, afogado em álcool como um feto apodrecido dentro dum frasco do laboratório da morgue, crivado de dívidas, a morrer de fome, tremem-me as mãos, falta-me o ar nos pulmões, fraquejam-me os olhos, sei que estou doente, descrente, decadente, os vizinhos chamam-me bêbado, paneleiro e doido.

— Vá, coragem, esperam-te melhores dias.

— Então o que preciso de fazer, agora que quem paga é quem sabe, pois já lá vão os tempos em que eu berrava que quem sabe é quem faz.

— É a lei do mercado!

— O meu problema é aguentar a carcaça vivente. Aceito tudo, até um emprego, basta dizeres o que queres de mim. Só preciso de uma orientação e dos respectivos instrumentos para a realizar.

A sagração do Presidente da Fundação o Homem e a Obra como o maior português dos tempos modernos incluía as Confe­rências do Milénio, abrilhantadas pelos mais ilustres pensadores e homens de acção vindos dos quatro cantos do mundo, uma grande exposição de obras e tesouros, com o título «Esplendor de Portugal — Nós e os Outros» e, como habitualmente, a reu­nião de um friso de artistas e intelectuais para preencher os intervalos dos actos solenes. Só que, desta vez, o rebanho seria alargado aos que andavam tresmalhados e ainda não haviam entrado no seu redil, aos que era necessário caçar com engodos e engenhos. O Manuel Costa pertencia a este grupo.

Era por conta desta tarefa venatória, em que os mecenas ganham prestígio fazendo caridade aos artistas — aos quais mais vale ajudar, mesmo na dúvida de que venham a realizar obra decente, do que desprezá-los, pois nesse caso, sim, a perda pode ser incalculável, nunca mais nos livramos de os ter à perna, mesmo depois de mortos —, que o Rui Mendonça viera mergu­lhar naquilo a que os aspirantes ao título sempre honroso de Jornalista e homem de letras, de que até existe uma associação no Porto, chamariam as vicissitudes da vida do Manuel Costa.

Estavam os dois sós no quarto, até porque não caberia mais ninguém, separados pela cama de casal. A famosa cama descrita na carta em que o Manuel Costa expôs a sua situação ao Presi­dente da Fundação:

Somos quatro na cama: para a cabeceira durmo eu e a Deolinda, rapariga que é a minha mulher; para os pés, o Paulocas e a miúda pequena. A cama é larga, de madeira, alta, gingona. Eu comparo-a a uma jangada, onde vamos nós quatro, cercados de noite, de ondas caprichosas, perigos desconhecidos.

— Esta é a toca que estou em riscos de perder. A família Manito procurou escapar à crise que varre a turística Costa Azul alugando-me parte do seu espaço vital. Azar o deles, desconhecimento das misérias do meio literário e cultural da pátria, que lhes deu por inquilino um mal-amado escriba que vive a crédito da escrita e das ideias.

— Desabafa à vontade. Embora não sejas obrigado a impín-gir-me a cassete lá porque te inscreveste no Partido.

— Sentia-me a morrer e a ideia de ter bandeira do Partido a cobrir o caixão dava-me um aconchego que nunca tive em vida.

— Cada um escolhe a sua extrema-unção...

— Olha que estás muito bem vestido para o funeral, se excep­tuarmos a gravata cor-de-rosa.

O Rui Mendonça não resistiu ao piropo, olhou para si próprio, ajeitou as abas do casaco de bom corte e o Manuel Costa peidou-se.

— Desculpa o estrépito ventral. Ando com os intestinos cheios de ar. Meditei muito antes de pedir e a conclusão a que cheguei é que só me resta apelar, apelar sempre, esconder a careta de vergonha, que haja, e estender a pata. Aceito tudo, dinheiro, cigarros, fatiota, roupa de cama, mercearias...

— ... bacalhau, brinquedos, livros, esferográficas, papel de máquina, vitaminas, uma corneta para tocares num dia que tu bem sabes, como escreveste na carta que enviaste ao Presidente, viagens, estadas em casas de muito sossego, garrafas de vinho, revistas com nus...

— Ajudam à punheta matinal...

— ... um casaco de abafar para a tua senhora, pastéis de Belém, salsichas, passas, nozes e tâmaras, bolo-rei... Porra, parece a ladainha do bispo!...

— Não costumo ir à missa e chateia-me ver o artista prejudi­cado por causa do respeitinho à Santa Madre de Roma. Eu pedi em primeiro lugar. Eu aceito tudo. Por acaso não tens aí algum trocado para dar ao Manito, por conta das rendas em atraso?

— Esquece o Manito e as dívidas. O que não tem remédio, remediado está. Agora as boas notícias.

— Venham elas, embora eu para mim já não queira nada, mas tenho família, durmo com uma rapariga de dezanove anos e todos pedem pão, pãozinho seco ou duro, e para lho dar empenhei dois cobertores, e um não era meu. Tenho a máquina de escrever, que não posso vender, porque não a paguei.

— A Secretaria de Estado da Cultura atribuiu-te uma bolsa por mérito cultural.

— ... (silêncio absoluto do Manuel Costa.)

— Não dizes nada?

— Somos um país de bons cristãos, católicos, apostólicos, romanos, não é? Segundo dizem os evangelhos, não há debaixo dos céus nem um passarinho cuja sorte escape ao bom Deus, quanto mais um escriba renitente como eu!

— Vê como falas.

— Sou um libertino, herético e céptico. Isso da bolsa é coisa para quanto?

O Manuel Costa sentiu-se rico com o anúncio do balúrdio de rendimento mínimo que colocava o seu mérito cultural ao nível de um almeida da câmara. Num instante ficou curado de todos os males. Os amigos passaram a ser simpáticos, afáveis, delica­dos, pacientes.

Como tu bem sabes, Cento e Quinze, quando estamos em queda desamparada na miséria, ou no vício, são eles que vêm com a boa nova que promove o inesperado volta-face na nossa vida.

Este era o Manuel Costa filho único que poderia ter sido e não foi o orgulho dos pais. Mas havia o outro Manuel Costa, aquele que recusou ser fiel depositário desse capital de esperança, que fez tudo às avessas e matou quase à nascença as mais vulgares ilusões dos progenitores, o que apanhou muito pontapé. A vida é dura de atravessar, há que desconfiar de tudo e de todos. Então, este último virou-se para o Rui Mendonça e avisou-o:

— Isto comigo é como as putas antigas à porta dos quartéis, a aviar os mancebos da recruta: «Dinheiro na mão e eu no chão.» Não me enganes!

— Descansa.

— Vou já beber dois tintos.

— Espera. Também te queria falar daquele pedido de bolsa que fizeste à Gulbenkian para escreveres uma biografia do Bocage...

— Santa fundação, grande poeta da nossa pátria. Merecedores um e outro de uma obra séria. Eu pedincho como o Tolentino... e o Perdigão paga por conta do arménio e do petróleo, produto que não aparece no nosso solo pátrio. Só temos as aparições de Fáti­ma, mas não fazem mover os carrinhos a motor. Nem por milagre!

— Tu pedinchas como o Bocage, sofres de caquexia como o Gomes Leal, és bêbado como o Pessoa, paneleiro como o Botto, estiveste preso por causa de mulheres como o Francisco Manuel de Melo...

— Nunca tinha pensado em mim sob esse ponto de vista his­tórico que, vendo bem, justifica a minha tença por mérito cultu­ral. Pertencer a esse conjunto de malditos, mas considerados vultos fundamentais para a nossa cultura, para os discursos evo­cativos, para os congressos, para as teses de doutoramento, afasta de mim os labéus de beneficiário, de pensionista, de inútil chulo da pátria, sempre desagradáveis, e ainda estou a escrever uma actualização d'A Arte de Furtar, acrescentando-lhe o capítulo dos Novos Artistas...

— Esquece A Arte de Furtar. Existe um outro mundo sobre o qual poderias escrever...

— Não há tenças de borla. Queres que escreva sobre quê?

O Rui Mendonça era um ser bem-mandado. Cumpria os traba­lhos de casa e apresentava-os sem mácula. Esforçava-se como um pretendente a ministro de Estado.

— O presidente da Fundação quer prolongar a sua actividade, continuar a sua luta pelo bem do povo.

— Não sou mal-agradecido, quando não pago as dívidas é porque não posso, mas desconfio daqueles que pretendem ven­der esperanças grandiosas e apagar passados melindrosos...

— Ele quer criar coisas novas e o mundo gira em torno desses actores, desses guerreiros.

— Não me fales em guerreiros que me lembro logo das Caldas da Rainha do tempo em que lá estive, e o antigo regime transfor­mou a vilória que crescera à volta de umas termas reais numa escola de jovens que iam servir de carne para canhão para o ultramar. Vinham os moços à paisana de todos os pontos do país e de tempos a tempos, antes de partirem, desfilavam pela Praça com garbo marcial, metidos numa serpente verde, davam uma volta e ninguém mais os via. Os cisnes do lago saudavam-nos com um grasnar de mau agoiro e ficavam à espera dos seguin­tes. Ainda hoje me arrepio.

— O povo português orgulha-se dos grandes homens que empreenderam longas viagens para verem outros costumes, sem esquecerem os seus.

— Quanto a viagens ao estrangeiro, só saí uma vez do país e há muitos anos, quando um indígena deste país de navegadores e contrabandistas ainda necessitava de requerer autorização ao superior hierárquico para atravessar a fronteira e ausentar-se da paróquia. Fui a Roma sem dinheiro e tive de sacar trinta mil liras na embaixada para regressar. Espero que não me estejas a convi­dar para secretário de relações internacionais, para passear de borla não devem faltar candidatos, incluindo tu...

— O mundo actual é aberto, as fronteiras das nações, tal como as dos homens, encontram-se onde as conseguirmos colo­car. Dizem os cientistas que o bater de asas de uma borboleta em África pode provocar um tufão na América.

— A meteorologia tem dessas birras, inexplicáveis pelos homens da ciência, mas eu tenho um joelho que me dá sinais seguros de chuva com uma semana de antecedência. É a com­pensação dos artistas pouco conceituados.

— Fomos um povo que fez a grandeza do mundo e o que somos hoje?

— Se queres a minha modesta opinião, somos o que sempre fomos: mesquinhos, vivendo na alegria das pequenas maldades e acagaçados perante os delitos graves.

— Tu fazes parte do plano para contribuir para mudar esse estado de coisas

— Ah, há um plano! Então já não falta quase nada.

— Deixa-te de graçolas, és um escritor talentoso, que tem acompanhado atentamente o que se passa.

— Não sou mais do que alguns outros, escusas de exagerar. Embora os elogios me animem mais do que as patadas das caval­gaduras... Então, queres-me metido em quê?

O Rui Mendonça olhou à volta. Já não aguentava o cheiro a podre, nem o ar abafado, nem a visão do Manuel Costa em traje de judeu condenado à fogueira da Santa Inquisição com o sambenito a fazer de pijama, e propôs-lhe irem conversar para outro local. O Manuel Costa estendeu a mão e segurou uma garrafa escondida na cabeceira da cama, bebeu um gole, limpou os bei­ços com a língua, subtraiu as pernas ossudas e brancas para fora dos lençóis e, num instante estava ressuscitado e de pé, com os óculos encavalitados no nariz, diante do Rui Mendonça. Deu-lhe um abraço de vamos a isto, enquanto perguntava:

— Posso receber algum adiantado?

O tipo conhecia-me, Cento e Quinze, e vinha preparado. Esten­deu-me um envelope, que eu abri com a curiosidade ansiosa dos premiados em conhecerem o que lhes saiu na rifa. Soltei uma gargalhada ao apertar-lhe a mão a selar o acordo:

— Não passo recibos!

E sugeri que fôssemos beber um copo, para não restarem dúvidas.

À saída do quarto deparou-se-lhes a tribo familiar reunida no corredor, de olhos fixos e as bocas entreabertas dos refugiados à espera do embarque. O Rui Mendonça despediu-se da Deolinda, que estava de combinação curta e ligeira, parte das mamas à mostra, e percorreu-a com os olhos melados, beijou-a carinho­samente, espreitando-lhe o colo, e depois, mais fugidiamente, afa­gou a cabeça da pequenita, a Ritinha, que arrastava as fraldas. O Manuel Costa, logo atrás, a observar-lhe a cobiça.

Os amigos, amáveis e caridosos, não resistem a uma jovem mamã desamparada. O truque das festas aos meninos tem bar­bas, Cento e Quinze!

O Manuel Costa afastou o Mendonça da Deolinda, atraindo-o à sala onde o casal Manito se preparava para jantar. Da cozi­nha vinha o cheiro a açorda de coentros. O homem, de barba por fazer, a olhar para o local onde estivera a televisão antes de ir para o prego, vestia uma camisa azul com o nome da desman­telada Lisnave estampado nas costas e saiu do torpor, abrindo a boca de espanto ao ver o Manuel Costa acenar-lhe com a folha verde emitida pelo Banco de Portugal. Perante esta excitante visão, o Manito mandou logo a mulher largar a açorda e ir com­prar frango assado e vinho.

Distribuída a felicidade, o Manuel Costa conduziu o Rui Men­donça à Marítima, uma taberna de estivadores, escura e suja, em forma de galeria de mina, aberta dia e noite. Um local lúgubre, carregado de vultos encostados às paredes, onde o fato feito por medida e a gravata cor-de-rosa do Rui Mendonça causaram algu­ma perturbação.

— Um tipo como tu tem de ver o que se passa nas bases, fora dos veludos dos Procópios e dos Snobes.

As boas graças do patrão da Marítima foram reconquistadas quando o Manuel Costa aliviou parte da conta calada que ali tinha a render. Um acto que lhe proporcionou uma mesa, de onde foram desalojados dois pescadores quase em coma. O Rui Mendonça observou o local com uma vaga nostalgia estampada no olhar.

— Lembra-me a tasca das galegas, o grupo do Rata dos Cabarés, do Cabeça de Vaca...

— Tempos heróicos, mas vamos lá à nossa conversa, que raio de Fundação é essa que me vai empregar?

— Uma instituição sem fins lucrativos, de índole cultural, científico e educativo para prolongar a luta pela democracia, a justiça e a liberdade do seu Presidente.

— Já entendi, um clube de barões da fina flor.

— Os estatutos prevêem que, sem prejuízo de outras activi­dades próprias da realização dos seus fins, a Fundação execute, promova e patrocine projectos de investigação, conceda bolsas e subvencione estudos. É aqui que tu entras.

— Estou há muito tempo nos subterrâneos, nos bas-fonds, a viver à parte das regras que regem essas academias de generosos. O hábito endureceu-me contra as propostas dos amigos que me querem empregar, prefiro as dos que me acham graça mesmo assim. Prefiro as bolsas aos estudos, mas se a mudança é a lei....

Meu caro Cento e Quinze, a proposta do Rui Mendonça previa que escrevesse umas histórias respingonas e espontâneas, onde surgissem enaltecidas as virtudes dos egrégios cidadãos que verdadeiramente foram os artífices dos últimos abalos que ocor­reram em Portugal e não aqueles que deram o corpo ao mani­festo.

— A História, com maiúscula, tem sido mal contada. Está cheia de falsos heróis, tipos estouvados, presumidos e imprevi­síveis que excitam as gentes em vez de as acalmar. Na opinião do presidente da Fundação, a nossa História está demasiado cheia de militares. Os militares deviam ser como os falcões domesticados. Mantinham-se presos por uma corrente ao pulso do falcoeiro, com um carapuço enfiado na cabeça para não verem nem ouvirem o que se passa à sua volta, eram largados quando aparecesse uma presa que valesse a pena e deviam estar treinados para regressar à mão do dono.

— Com os aviadores isso deve ser possível, o pior é a tropa terrestre, que anda cá por baixo misturada com o pagode!

O Manuel Costa ouviu a proposta do Rui Mendonça com a expressão indisfarçável do homem que pressente ter chegado a sua hora, mas não quer dar parte de fraco. Não era a primeira vez que sentia esta sensação de pavor. Experimentara-a quando os pides o haviam feito levantar da cama para o levarem diante de um tipo vestido de preto para que denunciasse quem editara um panfleto clandestino.

Desconfiado, mas agora sem a tremedeira dessa ocasião, o Manuel Costa remeteu-se à defesa. O Rui Mendonça não era um inspector da PIDE, mas havia algo na sua proposta que soava tão a falso como as últimas e piedosas palavras que este proferira: «O senhor pode ajudar-nos.»

Podia ser que tudo corresse bem e que fossem as melhores as intenções do Rui Mendonça. Como a mesa estava composta, com pratos de chocos fritos, carapaus de escabeche, rodelas de chouriço, pão, azeitonas, delícias do mar e da terra, que o Manuel Costa chupava deliciado, apanhando a gordura que escorria dos beiços com uma manobra de língua, haja esperan­ça de salvar este mundo depravado e corrupto. Um objectivo grandioso, mil vezes tentado e nunca conseguido, Cento e Quinze!

— Gostava que lesses este panfleto a denunciar os membros da Fundação.

O Rui Mendonça tirou do bolso do casaco um papel policopiado e estendeu-o ao Manuel Costa, que hesitou em pegar-lhe com os dedos a escorrer azeite. Limpou-os ao casaco antes de ajeitar os óculos — tinha de mudar a graduação das lentes. Chegou o papel perto dos olhos, tão perto do nariz quanto o tamanho deste permitia, e leu-o, como se o fosse cheirar.

— Sempre existiram maldizentes e panfletos anónimos.

— És capaz de fazer alguma coisa contra isto?

Eu sou escritor de panfletos! Este do Manuelinho é bom, posso fazer uns iguais de contrapropaganda.

— É isso que pretendemos. E também realçar o nosso Presi­dente.

— Há criaturas e acontecimentos em que tememos remexer.

— Trouxe este livro de primeiros socorros. «Dezoito tentativas para chegar a santo», de Jean Vautrin.

— Os santos e os favoritos são o grande empecilho nestes traba­lhos de evangelista. Fazem sombra aos deuses, promovem intri­gas, disputam favores e baralham os crentes. Afasta-me deles, mas explica-me quem são.

— O Diogo Soares, que o Presidente está convencido de que lhe é imprescindível... o Miguel Vasconcelos, cunhado do Diogo Soares....

— Conheci o pai dele, o doutor Pedro Barbosa, no bar D. Qui-xote, frequentado por toureiros. Um velho depravado, que morreu em cima de uma miúda de doze anos. Estamos então num negó­cio de família.

— Ainda falta o Gregório Castelo Branco, que tem no meio o ridículo nome de Taumaturgo, que ele prefere esquecer, porque os únicos milagres que lhe são conhecidos reverteram em pro­veito próprio.

— A igreja podia canonizá-lo como o santo que é o único devoto de si mesmo...

O Manuel Costa arrotou e limpou as mãos ao casaco, pres­sentindo no ar uma ameaça difusa. Já fora vítima da entusiástica rapaziada da política e tentava precaver-se das rasteiras dos que falam para si mesmo e respondem a si próprios, mas havia a ingente necessidade da sobrevivência diária... ainda assim:

— É fácil dizeres: levanta-te e escreve! Mas nem eu sou o Lázaro, nem tu o Cristo.

— Já fizeste coisas bem piores.

— Pois já.

O Rui Mendonça ouviu a resposta com a satisfação do caça­dor de borboletas que murmura esta já cá canta ao meter uma espécie rara no saco. O Manuel Costa entrava para a colecção de artistas de asas abertas, pregadas com alfinetes no quadro que iria decorar a sala de honra da Fundação. Cumprira o essencial da tarefa que recebera do seu Presidente, evitando o escândalo de vir a ser conhecida do público a situação de abandono daquele que os jornais e a televisão transformariam no genial escritor Manuel Costa, exibindo-o afogado na miséria, sem uma tença, sem dinheiro para remédios, para óculos, para comida. Infelizmente tivera de o aliciar com uma promessa de trabalho na Fundação que não estava prevista, mas agora podia gozar o papel de mecenas junto do seu protegido, interessar-se pela sua família.

— Não vi o Pau locas. Como é que ele se dá com esta tua mulher?

— Como com as anteriores. Trata-as a todas com a indiferen­ça de hóspede da pensão. O importante é que está comigo. É o instrumento alegre da minha orquestra. Quando desaparece, caio nos graves, quando regressa, saem-me acordes triunfais.

A última frase zuniu contra o silêncio em que mergulhara a Marítima, multiplicada por sucessivos ricochetes nos azulejos gretados da parede, nos calendários ressequidos pelos anos e o fumo, nas fotografias de equipas de futebol desaparecidas dos campeonatos, nos ramos secos de eucalipto pendurados do tecto para afastar moscas e mosquitos.

O Manuel Costa ficou por momentos debaixo dos olhares raiados de sangue e de cansaço dos clientes, com o cigarro de filtro que o Rui Mendonça lhe oferecera pendente dos dedos, mas a assistência voltou de novo as cabeças para o ecrã, num movi­mento síncrono, para recolocar as atenções no aparelho de tele­visão, que transmitia o sorteio de mais uma das ninhadas de lotarias dadas à luz, num espectáculo de fantasia e cor, pela benemérita Santa Casa da Misericórdia, que até distribui senhas para a sopa dos pobres.

Das esferas metálicas, a imitar o mundo, saíam bolas nume­radas e à sua volta dançavam matulonas de mamas e pernão ao léu, enquanto, no centro do ecrã, um maricas embrulhado como um caramelo num fato de cetim verde, anunciava sucessivamente centenas e milhares de contos aos felizes possuidores do bilhetinho premiado.

Infelizmente não ocorreu o milagre de transformar em milio­nário qualquer dos presentes, e no final do programa voltou cada um a espreitar o fundo do copo vazio que tinha diante de si. A corda sensível da alma do Manuel Costa não resistiu a tanta tristeza e ele gritou:

— Sai uma rodada para a malta. Paga o Presidente da Fun­dação o Homem e a Obra!

O Rui Mendonça ficou a saber que teria de incluir o momento de glória do Manuel Costa nas despesas de representação, mes­mo sem recibo justificativo. Passara à respeitável categoria de amigo de pagar cinquenta copos. No ecrã surgiu entretanto a jor­nalista Maria Helena Simões, para um programa de conversa, numa disputa desigual com os gargantas-secas. Perante o desin­teresse generalizado, o Rui Mendonça avisou:

— Se queres ver a tua filha Naná, olha para a televisão.

O Manuel Costa virou a cabeça apenas o suficiente para não fazer uma desfeita ao amigo e, cumprida a mirada rápida, voltou ao seu copo, resmungando:

— Como sabes que o diminutivo dela é Naná?

O Mendonça esticou duas ou três vezes o pescoço dentro do colarinho da camisa. Fazia-se tarde para o regresso a Lisboa e iniciaram o caminho para o bairro de São Gabriel. Quando pas­savam pelo jardim da Avenida Luísa Todi, o Rui Mendonça revelou-lhe que ele e a Naná haviam estabelecido um poiso em comum. Ela aderira à moda do beatiful people de viver numa casa recuperada nos bairros antigos de Lisboa e o Rui Mendonça responsabilizara-se pelo pagamento ao arquitecto, metera cunhas na Câmara para a autorização das obras, conseguira um subsí­dio a fundo perdido ao abrigo de um programa de valorização das zonas históricas e degradadas e acompanhara a Naná na escolha do mobiliário.

Ao ouvir esta descrição, o Manuel Costa cruzou os dedos, a amolecer as articulações doridas pelo reumatismo, enquanto compunha uma expressão zombeteira de quem sabe por expe­riência feita existirem poucas coisas tão merecedoras de escárnio

e lástima como as ilusões dos otários de meia-idade que mon­tam casa a mulheres em troca de favores de ocasião. O Rui Men­donça não gostou do que viu estampado na cara do Manuel Costa, mais de um sátiro do que o de um pai, que devia irradiar felicidade com a sorte da filha, que fora por ele, Rui Mendonça, retirada da gafaria de má-língua onde se arrastava.

— Apesar de passarmos a ser uma espécie de sogro e genro, desculpa lá, mas ele há coisas... é que não acredito no que me estás a dizer. Ó Rui Mendonça, tanto trabalho e despesa só para dares umas galadelas na Naná?

— Convém-me tê-la do meu lado. Ela anda a bater-se ao lugar de directora da televisão e tu também podias ganhar alguma coisa se reatasses a relação com a tua filha!

O Manuel Costa assobiou e deu uma palmada nas costas do Rui Mendonça.

— Há um pequeno quiproquó, é que eu e a Naná fazemos um dueto tão desafinado como um trombone de varas e uma flauta.

Haviam chegado à porta da casa da família Manito, envolta na paz e no silêncio da noite. O Manuel Costa assoou o enorme nariz e limpou depois os óculos embaciados pela humidade vinda do mar ao lenço amarrotado. O Rui Mendonça não insis­tiu no reencontro dos dois cometas errantes, para não estragar o trabalho feito. Dava-lhe jeito aparecer entre a jornalista Naná e o recuperado grande escritor Manuel Costa, mas a história da humanidade não acabava em Setúbal. O Mercedes continuava no mesmo local onde o deixara, sem marcas exteriores de van­dalismo das classes populares contra os bens sem guarda. A névoa húmida que envolvia o estuário do Sado penetrava-o até aos ossos e o Rui Mendonça esfregou as mãos, incomodado Pelo frio. Um galo cantou, anunciando a aproximação da madru­gada.

— Em resumo, começas por largar este tugúrio, mudas-te para Lisboa, compras uns fatos em que as calças te tapem as canelas e o casaco te cubra o traseiro, trocas de óculos...

— ... lavo os dentes, faço a barba, mudo de cuecas, corto as unhas, arranjo uma carteira de calfe para botar as notas... e até aquele rectângulo de plástico para levantar a massa nas máqui­nas...

E apresentas-te na Fundação para falar comigo!

 

                                         Coming events cast their shadows before.

                                                         Shakespeare

 

                   A Fundação o Homem e a Obra

No dia e hora determinados pelo Rui Mendonça e nas condi­ções em que este o havia instruído, o Manuel Costa iniciou as mano­bras de aproximação à sede da Fundação o Homem e a Obra.

Pelas onze da manhã de um radioso dia de sol e luz, come­çou a descer em passo lento as ruelas que ligam o Príncipe Real, onde o autocarro da carreira número quinze da Carris o deixou, ao vale da Avenida da Liberdade, onde algures se situaria a casa-mãe da Fundação. Revia-se nos vidros das janelas dos rés-do-chão das casas humildes com a vaidade de infante no primeiro dia de escola. Óculos novos, fato de pronto-a-vestir, o casaco de mangas demasiado curtas e as calças ligeiramente apertadas na barriga, camisa de popelina às riscas com longos colarinhos pen­dentes e gravata de puro nylon estampada de cornucópias.

Na véspera fora às compras com a Deolinda, a Lolita que tal­vez o faça esquecer de vez as anteriores, que talvez seja a última de uma longa lista, e ela aproveitara o adiantamento de fundos do Rui Mendonça para escolher novo guarda-roupa nos Arma­zéns do Alegrete, do Poço do Borratém, da Rua dos Fanqueiros. Eu estava um brinco, Cento e Quinze!

Um brinquedo vivo esta Lolita, Mano, dezanove aninhos, espigada, ancas cheias, barriga abaulada, morena, os olhos vivos, a cheirar a sexo e a terra lavrada por semear... capaz de tudo para largar o duplo emprego, entre a fábrica de malhas numa garagem e os encantos da vida rural, com as casas velhas de telha vã, abrigo de gente e gado, a tristeza do isolamento. Até de vir para Lisboa atrás de um velho como eu com as calças rotas e os sapatos cambados, para tentar a sorte nesta onda de progresso que varreu o nosso país com os fundos da CEE.

Um engate fácil, num domingo, à porta da Sé de Braga. A Deolinda estava a despedir-se de um grupo de raparigas e pre­parava-se para apanhar a camioneta da carreira para a sua aldeia dos arredores. O Manuel Costa foi-se a ela, lançando «olhares mágicos de múltiplas dioptrias». As primeiras perguntas, a meter conversa, foram calmas e neutras, inocentes, com ela a respon­der, toda espevitada, que era uma boa cristã e até cantava no coro da igreja. Fora escolhida pelo cónego Telo, uma autoridade na matéria, e, para desfazer dúvidas, convidou o Manuel Costa a ir no domingo seguinte ouvi-la.

Quem era ele para duvidar do cónego Telo, que, pelos vistos, possuía talentos de músico, além dos que lhe eram conheci­dos de tribuno incendiário, de açulador de multidões, de bom copo, bom garfo e tão bom padrinho de interesses que, se todos os que lhe foram comer à mão se juntassem, podiam fazer-lhe um monumento maior do que o Bom Jesus?

Mano, vê lá as coincidências. Eu tinha ido a Braga, enviado pel'O Século, entrevistar um cacique local que prometera reve­lações sensacionais sobre as actividades passadas do cónego Telo, que metiam umas mortes e uns desvios de jóias e artes sacras que foram sacadas (não seria melhor sacradas?) das igre­jas do Norte, mas o tal ressabiado decidiu meter a viola no saco, comprado ou ameaçado antes de pôr a boca no trombone.

O cónego Telo parece que é dos que mostram as dores com brados e respondem à bomba aos que lhas causam. Só hereges e amancebados se atrevem a falar mal dele. Sai mais uma urba­nização e duas vias rápidas!

Apesar das obras, em Braga cheira a incenso todo o ano e aos domingos as raparigas divertem-se à saída das missas. Sede arcebispal, terra abençoada! Já que lá estava, abonado de ajudas de custo pelo jornal, o Manuel Costa convidou a Deolinda para almoçar. Com o Bom Jesus por cenário, arroz de frango à minho­ta, vinho verde à descrição, ele sentiu que a despesa tinha valido a pena, quando a viu sorrir à sua proposta de a lamber toda.

Para gozar as primeiras alegrias, convenceu a velha da recep­ção da Pensão Central de que a Deolinda era uma sobrinha que vinha buscar uma encomenda, e envolveram-se rapidamente na doce luxúria do quarto, que tinha chuveiro, bidé e sanita. Como­didades que decidiram a Deolinda a ficar com o Manuel Costa até esgotarem o dinheiro do matutino fundado pelo João Pereira da Rosa, que também o gastava a patrocinar vocações artísticas femininas. Dada como perdida pela família e pelo coro do cóne­go, ela acompanhou-o para a terra prometida de Lisboa, que seria afinal o quarto do Manito, em Setúbal.

Águas passadas, Mano. Depois da recente mudança para Lisboa, a Deolinda deixara de o chagar com a promessa de ele a pôr a cantar em cima dum palco acompanhada de um acor­deão e de uma bateria de bombo e pratos, e, aparentemente, substituíra os sonhos de fama pela alegria dos trabalhos domés­ticos no apartamento das Amoreiras arranjado pelo Rui Men­donça. Tudo naquela manhã em que descia para a Fundação estava bem e a felicidade devia andar perto do que sentia, Cento e Quinze.

Não fosse a maldita sede provocada pela excitação do grande fomento em que começaria a trabalhar na Fundação o Homem e a Obra e pela ressaca da celebração da noite anterior, com a Deolinda a estrebuchar no orgasmo, mais a desidratação provo­cada pela marcha, que já lhe ia descompondo o nó da gravata, e ainda o facto de nestas ruas da capital existir a maior densidade por metro linear de tascas, casas de pasto e estabelecimentos simi­lares que pulgas num cão vadio, e a respeitável instituição teria acolhido entre os seus colaboradores um irrepreensivelmente sóbrio Manuel Costa.

Mas a fresca semiobscuridade de O Ninho do Papagaio, vazio àquela hora da manhã, constituía uma tentação a que um peca­dor como o Manuel Costa não conseguia resistir.

Esforcei-me, Cento e Quinze. Impus a mim mesmo beber só um copo, para limpar a garganta e espevitar a alma. Bem preci­sava dela a borbulhar, agora que a ia pôr por conta de cava­lheiros de posição. Contudo, até a limpeza da pedra de lioz do balcão contribuiu para a minha queda, permitindo-me assentar os cotovelos sem ofender as mangas do casaco, antes de pedir um tinto.

— Há muito que não aparecias.

— Estive de férias na Costa Azul.

— Fizeram-te bem, pareces um alentejano.

O Manuel Costa conhecia a Paquita desde os tempos em que os broncos dos montes vinham aos sábados a Lisboa deso­var nas casas de matriculadas, de samarra de pele e botas de atanado, e acompanhara-a depois do fim legal dessa activi­dade, quando a galega passara a trabalhar de cozinheira com as suas conterrâneas Alice e Juanita até se estabelecer por conta própria n'O Ninho do Papagaio, arrastando consigo alguns dos clientes.

A taberna era pequena e, tal como os antigos prostíbulos, divi­dida em dois espaços, um público e um reservado, com a priva­cidade garantida por um tabique de madeira e uma portinhola encoberta por uma cortina de chita. Para essa dependência entra­ram quatro homens de idade respeitável, que o Manuel Costa mal distinguiu na contraluz. Um baixote, de cabelo comprido, óculos redondos assentes na cana do nariz, uma figura estrafalária que falava um português espanholado e usava uma casaca preta que lhe chegava aos joelhos; um outro mais alto, já fora loiro ou ruivo, de bigodes retorcidos, a pele da cara manchada de vermelho, aspecto de major inglês reformado; um lingrinhas de longas barbas, com uma boina preta sobre os cabelos brancos; e, por fim, o mais impressionante de todos, embuçado num capote que arrastava quase até aos pés e coberto por um chapéu de abas largas que lhe escondia o rosto.

Uma frequência muito diferente da que o Manuel Costa espe­rava e que o levaram a perguntar à Paquita se o Rata dos Cabarés e o Cabeça de Vaca ainda apareciam. — Desde que lhes fie...

Os dois bebedores do quadro permanente do estabelecimento apresentaram-se com a pontualidade de fiéis muçulmanos às ora­ções rituais e envolveram o Manuel Costa no ambiente de recor­dações e copos que deixam o tempo a vogar suspenso por cima dos fusos horários e das obrigações terrenas. Procuravam des­cobrir a origem dos surpreendentes sinais de prosperidade que viam no Manuel Costa, a ponto de o Rata dos Cabarés o con­vidar a ir ao Flamingo Dourado, um local de luxo, adequado ao seu novo estatuto, reaberto recentemente depois de problemas com a gerência e onde ele agora se fixara.

Nesta altura, Cento e Quinze, já eu não os ouvia. Os meus olhos míopes, mas lúbricos, viam coisas do antigamente e fixa­ram-se nas beldades carnudas da Paquita, anos atrás, quando estava na vida, comprimida numa saia curta e numa camisola decotada

— A liberdade é bela!

A mão do velho fauno fugiu até ao traseiro da galega e esta, sentindo assaltado à falsa fé o baú dos tesouros esquecidos, recorreu à língua mãe no momento de aflição

— Joder! Maricon de puta madre!

Antes de retomar o controlo de si e reagir com a ponderação da idade:

— O raio do velho! Tem juízo e sai-me da vista!

Os dois companheiros levantaram-se em defesa da vítima, que tantas vezes os acudira com a sua confiança.

— Haja respeito. A Paquita é como nossa irmã, porra!

— Respeito? Este gajo nunca teve respeito por ninguém, nem macho nem fêmea, nem nova nem velha, nem por trás nem por diante.

Sacudiram o Manuel Costa até lhe enrugarem o fato. Os óculos caíram ao chão de cimento e ele teve de baixar-se para os apa­nhar. O movimento de dobrar o esqueleto provocou-lhe um arroto vínico que se transformou num vómito carregado de bor­ras a escorrer pelo fato novo. Resmungou:

— O tinto está muito martelado e o branco ainda é pior!

O que provocou a ira da Paquita, que saiu desembolada em defesa do bom nome dos produtos da casa, agarrando-o pelo pescoço.

— Muérase ya, cabrón!

Ele abraçou-a e os dois amigos desfizeram o par sem grande esforço. Da porta do reservado surgiram as cabeças dos quatro conspiradores para acudir ao que fosse necessário. O Manuel Costa atirou uma nota recém-saída da máquina do multibanco para cima da mesa e, à despedida, comentou para os que fica­vam a vê-lo sair, derrotado:

— Grandes cravas!

Tropeçou no degrau de saída e viu-se caído de queixos em cima de uma pedra solta da calçada portuguesa que devia cobrir o passeio da rua, estendido, com a bela gravata de cornucópias colada a uma cagadela de cão, a camisa manchada de sangue, a manga do casaco descosida. Um farrapo. Ergueu-se penosa­mente, debaixo das gargalhadas dos ex-companheiros e da tas­queira. Sobre o seu rosto, projectado no céu azul, deparou-se-lhe então a cara do homem do capote, que o ajudou a levantar-se, dizendo:

— Quem não sabe beber...

— Come merda. Já sei, ando nisto há mais tempo que você. Ainda não acabara de retorquir quando um vulto saiu de trás

do homem, a protegê-lo de qualquer eventualidade. O Manuel Costa levantou as mãos a negar qualquer má intenção.

— O Ninho do Papagaio é uma tasca pacífica, não é preciso guarda-costas para beber um copo. Somos todos velhos amigos.

O homem do capote e do chapéu fitou-o um instante, surpreen­dido quando o Manuel Costa se chegou mais perto para lhe segredar:

— Gosto de irritar a Paquita para a ouvir falar castelhano.

Limpou os excrementos caninos ao lenço e de seguida as quei­xadas abertas, juntando o sangue e a merda de todas as batalhas, e partiu sobre as pernas bamboleantes, girando os olhos sem órbita certa, em busca da Fundação onde o trabalho pago a horas o redimiria das humilhações. Talvez até o deixassem lavar-se na casa de banho e uma secretária perfumada lhe oferecesse uma bebida, talvez lhe colassem um penso nas fuças, desses rápidos que os miúdos vendem às esquinas.

Passava das três da tarde e os funcionários da Fundação já deviam estar nos seus postos, bem almoçados. O Manuel Costa estivera quatro horas a emborcar copos e tudo o que via nos dois lados da rua eram prédios decrépitos, com as mariquitas da pros­tituição já a patrulharem as entradas, de malinha dos precisos a tiracolo. Pensão Flor da Alegria, águas correntes. A uma porta manhosa, a encobrir a entrada de uma furna que poderia con­duzir ao túmulo do faraó Tutancamon, a rapariga cadavérica que estava de sentinela atirou-lhe:

— Avozinho, não te queres aviar?

Continuou a descer. Via as imagens a andar à roda e puxou de um cigarro, que é um objecto muito mais fácil de aparecer que um polícia a quem perguntar um destino nesta cidade.

Um magarefe veio à porta do talho com o bibe de menino gigante tingido do sangue do último homicídio, esfregou as mãos com os gestos de afiar a faca de desfazer as carcaças dos bois sem cabeça nem patas e orientou-o. Desde que levasse o fedor Para longe era só virar na primeira à esquerda.

«A carne de cavalo é a melhor», garantia o letreiro na mon-tra do talho. O esquartejador ficou a ver o Manuel Costa afastar-"se aos bordos, a caminho do seu destino final. Vais num lindo estado!

Concordei mentalmente, Cento e Quinze, mas para a frente é que era o caminho! Depois de ter sido expulso de uma tasca, de ter caído em cima da merda de um cão, de uma puta me ter abordado e de um assassino em potência me ter escorraçado, bas­tava descer e virar à esquerda para saber como seria o meu futuro.

Uma coisa é certa há muito tempo na organização das cida­des, os palácios encontram-se sempre a conveniente distância das choupanas dos miseráveis. Ou, quando isso não é possível, disfarçados, arredados dos olhares invejosos da turba.

A sede da Fundação a Obra e Homem, ou seria o Homem e Obra? — o Manuel Costa não distinguia as palavras escritas na placa de latão cravada na parede —, abrigava-se atrás de um belo jardim que escondia um edifício de linhas simples, discretas, reconstruído com todas as comodidades. De fora não se descon­fiava de nada.

Tocou no botão da campainha e uma voz feminina pergun­tou-lhe através do altifalante camuflado na coluna de pedra quem era e ao mando de quem vinha.

— O excelentíssimo senhor doutor Rui Mendonça. (O gajo seria doutor em quê?)

O portão abriu com um dique e um matulão impecavelmente uniformizado de segurança privado surgiu à sua frente. O Manuel Costa sorriu-lhe cheio de urbanidade e esperou que ele lhe indi­casse o caminho. O segurança manteve-se imóvel como o colos­so de Rodes e, ao abrir a boca para repetir o nome, o Costa percebeu que algo de errado se passava com o tipo que uma placa no bolso do casaco identificava como Márcio Santos. O Márcio vacilou, deu dois passos à retaguarda, atingido por uma força invisível, o seu corpo dobrou-se numa meia volta apertada, antes de se amparar ao tronco de uma árvore a esconder um vómito desesperado. Dali perguntou:

— Donde é que você saiu, caralho?

O descomposto segurança de farda castanha e boina preta atravessou o jardim a correr, como um mensageiro de más notícias, e o Manuel Costa seguiu-o em ziguezague, sorrindo aparvalhado.

Quando deu por si encontrava-se no átrio de mármore do edifício da Fundação, cercado à distância por funcionários fardados e à paisana e de gentis meninas recepcionistas que gritavam:

— Tragam uma máscara de gás!

— E um balde com desinfectante.

Uma das recepcionistas, etiquetada como Cátia, assumiu o comando das operações, pedindo a identificação do Manuel Cos­ta, enquanto cobria o nariz com um lenço de seda perfumado. Ele repetiu o nome e ela abespinhou-se, apesar do cartaz pen­durado na parede: «Sorria, que Está a Ser Filmado.»

— Um documento de identificação, bilhete de identidade, passaporte, carta de condução, carteira profissional...

Ali estava eu, Cento e Quinze, naquele átrio mais alto e luxuo­so que o do São Carlos, onde ninguém me conhecia, sem um documento, a remexer nos bolsos das calças amarrotadas, do casaco sujo com a manga esfacelada, a ganhar tempo, reconhecendo que um funcionário entrincheirado atrás do seu balcão é praticamente invencível. A batalha estava mais uma vez perdi­da e procurava apenas ganhar tempo.

A Cátia hesitava em chamar a polícia quando um tropel de excitação percorreu o átrio e os presentes tomaram uma posição respeitosa, excepto o Manuel Costa, que deslizou pelo balcão e se estatelou no mármore branco, só não ficando estendido por­que a parede lhe susteve os costados. Os olhos subiram até enca­rar de baixo para cima a figura imponente de homem na casa dos sessenta, ataviado com os sinais exteriores de bem-estar na vida, de ventas levantadas a farejar.

— Rebentou algum esgoto?

Pois foi assim, Mano, que ocorreu o encontro entre o excelen­tíssimo doutor Diogo Soares, ministro de vários ministérios, legis­lador insigne, figura angular do regime democrático, um dos mais seguros braços-direitos do Presidente da Fundação, que para seu conselho e acção tinha vários, mas nenhum de tanto valor, tão firme, fiel e constante, e o escritor maldito Manuel Costa, des­denhado, repulsivo, condenado, libertino.

No imenso átrio da Fundação, os dois personagens represen­tavam os seus papéis cercados por figurantes mudos e atentos. Um de pé, o outro esticado como um pugilista a expelir baba escura pela boca, a lutar contra a morte aparente, com dificul­dade em respirar, numa angústia de asmático.

— Afinal o que se passa?

— Este homenzinho quer falar com o doutor Rui Mendonça.

— Então chamem-no e entretanto levem a criatura lá para dentro. Depressa, que o Presidente está a chegar com umas visi­tas estrangeiras.

Dois seguranças saíram da roda das mudas testemunhas, com o nojo estampado nos rostos, para lhe pegarem, quando o Manuel Costa se ergueu como um ressuscitado e, para espanto de todos, porque aquela não era uma casa onde se acreditasse em mila­gres, declarou:

— Alto aí! Eu sou livre, sou um cidadão livre, eu sou o que...

O doutor Diogo Soares fez um sinal aos seguranças para con­tinuarem e o Manuel Costa sacudiu-os, debatendo-se com a fúria de um gato assanhado.

— Está quieto e calado, cabrão, que te fodo!

O engenheiro agrário Miguel Vasconcelos, vindo do elevador, dirigiu-se ao doutor Diogo Soares e também a todos os presen­tes, perguntando em tom de ameaça:

— Que preque é este?

A interrogação nasalada, arrastada, alentejana, chegou às abas gigantes e peludas do aparelho auditivo do Manuel Costa carre­gada de más lembranças (o ouvido é o último dos sentidos a abandonar os viventes).

Esta voz, Cento e Quinze, recordou-me as horas malditas do interrogatório da polícia política, a tremer que lhe arrancassem as unhas por causa do insólito crime de ter publicado uma Anto­logia Erótica, num país onde o povo não lê e só fode na posição do missionário!

Aos sessenta anos, o doutor Miguel Vasconcelos apresentava-se na arena com uns enérgicos cento e vinte quilos (oito arrobas, como preferia) bem distribuídos por um metro e oitenta de altura. Os enchumaços do casaco acentuavam a silhueta de couraceiro napoleónico. Da antiga farta cabeleira restavam umas patilhas largas até meio da cara sanguínea, mas o Manuel Costa reconhe­ceu-o entre a galeria de agrários que frequentavam o D. Quixote. Era, Mano, desse templo da noite, ponto de encontro de cava­leiros tauromáquicos e forcados, onde eu esperava pelos restos da pancadaria para escapar com uma das raparigas no meio da confusão, que eu me lembrava do celebrado rabejador do grupo de pegadores de Évora e conhecido entre as fêmeas da casa por, tal como o pai, só escolher putas que usassem crucifixo ao peito! Confortados pela presença deste santo protector, os seguran­ças arrastaram o Manuel Costa para os bastidores.

— Diogo, não podemos admitir altercações destas!

— Foi o Rui Mendonça quem o mandou vir. É escritor, um desgraçado. O Presidente deitou-lhe a mão.

— Mais um bêbado comuna para mamar nesta teta! O Rui Mendonça é do que gosta. Ainda nos há-de codilhar, se não o pegarmos pelos cornos e se não atirarmos tipos como este para a salgadeira... Vai ter comigo à Sala dos Flamingos, que o Gregório está a chegar com o Presidente e os nossos amigos...

Quando o Manuel Costa voltou a saber que estava vivo, teve o cuidado de se manter imóvel e de respirar à sorrelfa, sorvendo o oxigénio em pequenas rações. Possuía no currículo o número suficiente de experiências de cama para saber que o problema não está no deitar, mas no levantar. Até já tinha acordado na valeta aberta junto a um cemitério, mas era a primeira vez que dava acordo de si em cima de uma resma de cartazes a anunciar «O Melhor para Todos», com um fundo verde e azul de paraíso na Terra.

O seu corpo foi depositado no armazém dos restos da propa­ganda da Fundação. Ia morrer ali, entre baldes de cola, escadas, fotografias gigantes para todos os gostos do Presidente e dos acó­litos que resistiram a seu lado na longa marcha da vida pública, e megafones, altifalantes para ampliar as promessas ao povo, bandeiras, sacos de plástico, abandonado, na cave onde jazem as ilusões no fim do prazo de validade das campanhas. Cumprida a sua função, Ite, missa est.

Os segundos (ou as horas?) passavam, a luz trespassava a membrana translúcida das pálpebras (deviam ser feitas de mate­rial mais opaco) e ele continuava à espera de uma indicação do exterior. Uma réstia de luz descia da frincha entre as madeiras do telhado e percebeu que estava debaixo de uma sala onde vozes masculinas tratavam de assuntos importantes, secretos, num ambiente internacional, falando em várias línguas. Alguém, num francês entaramelado, incentivava:»Nada do que dissermos passará daqui.»

Pois não! Basta uma orelha à escuta nesta tumba. O Manuel Costa sentiu na garganta o imperativo categórico de apagar o fogo que a consumia e estendeu o braço em busca de um copo imaginado. De tinto, de bagaço, de anis escarchado, de cevadilha, que é um excelente esternutatório para aliviar as ressacas, qualquer coisa servia. Tremia e um frio de matadouro percorria-lhe o corpo esquecido a ouvir segredos de perigosos negócios de Estado, provocando-lhe uma morte gloriosa, num local tão respeitável como as catacumbas do Vaticano, debaixo de acér­rimos democratas que tão bons serviços prestaram à Pátria! Mas uma morte, de qualquer maneira, sem remissão, com as mesmas consequências irreparáveis de todas as mortes, o ex-vivente a deixar mulheres e filhos ao abandono, obras-primas por escrever, garrafas por abrir, virgens por desflorar, mancebos sem aconchego.

Até que a lâmpada redonda do tecto espalhou uma luz de esperança amarelada pelo armazém. O Manuel Costa entreabriu um olho e deixou-se ficar imóvel a observar. Viu um vulto de homem a aproximar-se e reconheceu o segurança Márcio que o agarrara no átrio, antes de passar ao estado de ausência dos anji­nhos borrachos. Susteve a respiração e ouviu o segurança regougar o veredicto: «Desgraçado, estás como hás de ir», antes de se afastar. Depois, novo ruído de passos, agora de mulher, desta vez da recepcionista boazona de fato cor-de-rosa.

Dirigiram-se os dois para um patamar que os aproximava do tecto e os colocava num nível sobrelevado que permitia ao Manuel Costa observá-los deitado. Posição cómoda, segura para um espec­táculo de sexo ao vivo. O Márcio ainda tentou encostar o ouvido ao soalho de madeira para escutar a conversa que se desenrolava no andar de cima, mas a Cátia estava desensofrida e começou a descer com a cabeça pelo corpo dele. Ainda o latagão não tinha as calças da farda em baixo, já ela o chupava com todo o fervor.

Findo o primeiro quadro, o Manuel Costa ouviu o segurança dizer, armado em agente secreto:

— Deixa ouvir o que estes filhos da puta estão a tramar!

E a recepcionista, saltando-lhe para cima com a desenvoltura ganha nas turmas mistas das escolas:

— Nem penses, zero zero sete. Agora é a minha vez!

Enquanto subia a saia travada do uniforme e baixava as cue­cas, que saíam das pernas carnudas enroladas nos colas, deixava ver, em ecrã panorâmico, a polpa esbranquiçada das nádegas em contraste com o cor-de-rosa-velho do uniforme.

No fim daquele que foi, literalmente, o segundo acto, a recep­cionista também ficou mais sossegada e o rapaz da segurança perguntou-lhe, enquanto puxava as calças:

— O Miguel Vasconcelos está ao lado de quem?

Ela espreguiçou-se, desinteressada da política, sorriu com um esgar de amargura, puxou o segurança e mordeu-lhe o pescoço:

— Sei lá, o pior é quando está em cima de mim!

O Márcio segurou-a pela cintura e voltou-a lentamente com os gestos seguros de escultor experiente. Felizes os jovens que trocam de posições com tanta facilidade, Mano! Puxou-a, segu­rando-a pelos ombros com grande desembaraço, e a rapariga, penetrada por trás, ganiu de falsa surpresa:

— Que estás a fazer?

Deitado no catre de cartazes de propaganda política, o Manuel Costa preparava-se para apreciar o terceiro acto quando a porta bateu. Rodou a cabeça e no contraluz da entrada os olhos míopes descobriram o vulto do Rui Mendonça a avançar na sua direcção.

Fechou ainda mais as pálpebras, contraiu os fracos músculos e esperou pela pancada um infinito segundo, dois, uma eterni­dade, até sentir a dor. A tortura da espera e nada, até ouvir a voz martelada de incredulidade:

— Não, não acredito no que estou a ver...

O Manuel Costa presumiu que o secretário tivesse descoberto os dois amantes clandestinos aninhados atrás do púlpito móvel utilizado para os discursos de campanha, mas era a ele que o Rui Mendonça se dirigia, mesmo que o acreditasse quase cadáver.

— O sacripanta está de pau feito!

Agora sim, Cento e Quinze, o meu corpo começou a estreme­cer, a ser abanado, agredido a punhadas de raiva, e tive de dizer alto aí, antes que o meu protector o mandasse directamente para as mesas da morgue, sem lhe dar a oportunidade de testar a efi­cácia das promessas das devotas que fumigam de velas a estátua do doutor Martins, no Campo dos Mártires da Pátria.

Saltou da pilha de cartazes onde estava deitado sobre a foto­grafia do Presidente, levantando os braços, e depois uniu as mãos num gesto de humildade. Deixando-se cair de joelhos (malditos joelhos enferrujados), diante do Rui Mendonça.

— Velhaco galhofeiro, tu queres dar cabo de mim?

— Desculpa, juro que não era minha intenção...

Com o corpo do Manuel Costa a seus pés, inofensivo como um cachorro, passada a ira que anula os sentidos, o Rui Mendon­ça sentiu então toda a violência do cheiro nauseabundo que fer­mentara durante as horas em que ali fora deixado.

— Vai-te lavar. Há ali um lavatório.

Obedeceu arrastando os pés na direcção indicada pelo Rui Mendonça, onde o segurança Márcio e a recepcionista Cátia se encontravam encolhidos e medrosos, apanhados em flagrante. O Manuel Costa piscou-lhes o olho, cúmplice, por detrás das len­tes dos óculos novos já de cangalhas tortas, enquanto desviava a atenção do Rui Mendonça resmungando:

— Água, a maldita água que me persegue desde as Caldas da Rai­nha, águas medicinais, que limpam as tripas e espevitam o paladar!

Hoje eles, amanhã nós, Cento e Quinze.

No regresso, sumariamente enxaguado, excepto na gravata de cornucópias, imprestável para todo o sempre, o Rui Mendonça pareceu-lhe menos macambúzio, de orelha levantada à escuta das vozes que vinham do alto.

— O que me apetecia era um copo.

— Vinho, sempre o vinho!

— Sem beber fico perigoso, conto tudo, invento espirais de fantasia, aumento desgraças passadas e prevejo o pior para o futuro, caricaturo e aldrabo o presente. Tenho certezas...

A mão papuda do Rui Mendonça veio ao encontro do peito do Manuel Costa, que apenas com este leve toque de repreender crianças de mama o fez sentar de novo em cima da cara estampada e sorridente daquele que seria o objecto do seu trabalho de escriba.

— O Presidente soube o que aconteceu comigo?

— A tua sorte foi ele saber e achar-te graça, se não, por von­tade do Miguel Vasconcelos, estavas agora outra vez na enxovia de Setúbal, recambiado à procedência.

— Muito ele folgará por me ter a seu sustento, prometo portar-me bem daqui para o futuro e para todo o sempre, ámen. Já agora diz-lhe que mande calafetar o soalho da sala lá de cima. Isso, se te convier também a ti, claro.

Os favores são como as juras, sejam as de amor sejam as de fidelidade. Devem ser trocados em voz de reza, às escuras e sem testemunhas, para que nunca se saiba a quem fica dever o quê. O Rui Mendonça assentiu e mandou: — Ala que se faz tarde!

O Rui Mendonça empurrou o Manuel Costa para a porta dos fundos, longe das vistas do Miguel Vasconcelos, do Diogo Soares, do Gregório Castelo Branco, das visitas recebidas à porta, dos seguranças, das recepcionistas, dos assessores, dos consultores, das secretárias, das telefonistas, dos choferes, enfim, do elenco de gente limpa, com horário, casa, carro e família, perfumada, organizada, europeizada, de pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar e ceia, que assegura o espectáculo diário da Fundação. Mas antes de abandonarem a cave do material de propaganda, aproximou a boca do ouvido do Rui Mendonça e sussurrou-lhe:

— Não feches a porta do armazém à chave...

Agradecia o espectáculo que o segurança e a recepcionista me haviam proporcionado, Cento e Quinze, e, depois, todos os amores precisam de itinerários de fuga.

No caminho, pelos corredores interditos a estranhos ao ser­viço, o Manuel Costa esforçava-se por acompanhar a passada do secretário, ansioso por se ver livre dele. No exterior, junto à tabu­leta «Acesso de Fornecedores» e a uma carrinha de cabina fechada a olhares curiosos, hesitou antes da despedida:

— E amanhã?

— Amanhã?

— Sim, o que digo à Deolinda, ao meu filho Paulocas, à pe­querrucha Ritinha, que arrasta as fraldas, quando chegar lá a casa, ao nosso apartamento mobilado, e eles me interrogarem com os olhos cheios de orgulho em me verem empregado?

— Que és um bêbado, um irresponsável, um ingrato, um incapaz!

— Não posso.

— Não me venhas justificar as tuas desgraças com a mulher e os filhos.

— Um pai é um pai, vivemos numa sociedade cristã. Não me deixes ficar mal. Eu, só para eles me receberem de braços aber­tos, faço tudo, prometo, as coisas que sei e de que gosto e as outras...

— Quanto mais falas mais te enterras. Se te deixasse fazer tudo o que sabes e de que gostas, transformavas esta Fundação no bordel mais depravado e ranhoso do planeta!

O zumbido electrónico do telemóvel do Rui Mendonça inter­rompeu por momentos a conversa. Um intervalo que o Manuel Costa aproveitou para desfazer o nó da gravata e atirar o pedaço malcheiroso de tecido para um caixote que se encontrava perto, e depois, desesperado, começou a rasgar a camisa.

— Eu sou o João, o Baptista, a voz que clama no deserto e prepara o caminho do Senhor! O grão que germinou sozinho.

— Deixa-te de palhaçadas. Aproximam-se momentos difíceis e nem o Presidente pode admitir que te apresentes na Fundação com a voz entaramelada, as mãos a tremer, borrado, aos bordos, com esse bafo de cagadeira dos comboios da CP. Ele tem de con­temporizar com os outros membros da administração...

— Raça de víboras...

— Mas são eles que angariam os fundos e querem tipos nor­mais aqui. Por isso, começas por fazer um programa de desinto­xicação do álcool, depois logo vemos.

— Isso é que não! Eu recupero com uma velocidade assom­brosa, assim eu queira, ou precise, o que vem a dar no mesmo. Confia em mim.

— És um fiteiro. Vais para um centro antialcoólico, está tudo tratado. Eu mesmo vou lá levar-te.

 

                                       Os amigos são para as ocasiões.

                                                                Anónimo

 

                       A desintoxicação

Ao fim da tarde de um dia de Outubro, apoiado ao balcão de atendimento do recém-inaugurado Centro Antialcoólico do Vale do Rio, o Manuel Costa debatia-se com as dificuldades que inevitavelmente o afligiam quando tinha de responder às perguntas dos funcionários para preencher o formulário dos dados individuais necessário à entrada nos estabelecimentos do Estado.

Um nervosismo incontrolável acometia-o nestas ocasiões. Coçava-se, tossia e só não se borrava por vergonha.

Cento e Quinze, nasci equipado com uma instintiva rejeição à lei e à ordem. É uma característica de fabrico. A ordem provo­ca-me medo e o medo torna-me irascível e agressivo. Por isso, necessito do amparo de uma bebida para o disfarçar. Mas não me atrevera a meter um bagaço no bucho antes de iniciar um tratamento de desintoxicação. Ainda por cima aceitara vir de livre vontade, embora condicionada por motivo de força maior.

Desta vez o interrogatório nem estava a correr mal e a funcio­nária tinha-lhe aceite até ao momento todas as respostas. Mesmo a da profissão de escritor. O problema surgiu com a definição do estado civil.

— Solteiro, casado, viúvo, divorciado ou em união de facto?

— Já passei por todos eles, sem me deter em nenhum.

A resposta não era a esperada e o computador rejeitou-a. A funcionária também, e chamava-se Augusta e tinha bigode. E sindicato para a defender. E jantar para fazer. E contas em atraso para pagar. E tinha um balcão à sua frente, essa muralha inexpug­nável onde a autoridade administrativa se defende das investidas das hordas de assaltantes diários, designados por beneficiários dos serviços. A Augusta disparou:

— Em que ficamos?

— Em branco.

— Essagora! Aqui não fica nada em branco, são as ordens que tenho.

— Então fica a preto, ou a azul, que era uma cor muito que­rida no tempo do antigamente.

A congénita relutância dos burocratas e dos computadores aos espaços em branco nos impressos só foi ultrapassada a pedi­do do Rui Mendonça, que se responsabilizou pelo Manuel Costa, um pobre velho com as suas manias. E todos vamos para velhos, não é? E que manifestou compreender os que têm a ingrata tarefa de atender o público nos serviços públicos, uns moiros de traba­lho, sujeitos ao péssimo humor dos Portugueses.

A recepcionista acabou mesmo a desculpar-se:

— Foi a minha primeira ficha. Ainda não estou muito adap­tada ao sistema.

Ao pressentir como o Manuel Costa ia comentar a justificação, o Rui Mendonça arrastou-o sem cerimónias para a porta do elevador, levando-o a trote e à maleta de plástico com a tralha a tilintar. Felizmente a funcionária já não o ouviria dizer que a primeira custa sempre, mas depois a gente habitua-se e até gosta.

O Manuel Costa inspeccionou o ambiente. Um edifício em forma de paralelepípedo, filho da arquitectura da Expo Mundial de Lisboa, em que uma igreja se confunde com um standde auto­móveis ou um ginásio, mas a cheirar a novo e sem ruídos de feira por perto.

— Não imaginava que existisse um centro deste nível.

— Para seres admitido tive de meter uma cunha ao ministro da Saúde.

— Os amigos são para as ocasiões.

— Espero que mereças o esforço. Não me deixes malvisto.

O Manuel Costa passou aos cuidados dos serviços de acolhi­mento de doentes e as enfermeiras receberam-no com o desvelo idêntico ao que lera na História de Portugal, do Oliveira Martins, sobre o modo como as freiras do Convento de Odivelas acolhiam os nobres freiráticos após a restauração da independência. Deram-lhe banho, pijama, afagos, caldo quente e pastilhas de várias cores. Abriram os lençóis da cama, apagaram a luz e desejaram-lhe boa-noite.

Uma agradável surpresa para quem experimentara o trata­mento proporcionado pelos guardas-prisionais nas «pousadas do Estado». Alguma coisa melhorara com a democracia, Mano. Até havia enfermagem dedicada para o borracholas, o doentinho!

Ali estava, meu caro Cento e Quinze, naquela cama alta, naquele quarto branco, naquele centro antialcoólico instalado nos edifícios vagos da última exposição mundial do século XX, para os lados do pestilento rio Trancão, sem nada ter premedi­tado, com a esperança irreprimível dos tristes, dos condenados, tudo por conta do plano do grande Rui Mendonça de fazer de mim cronista do novo regime, de panegirista avençado pela Fun­dação o Homem e a Obra para louvar o seu fundador e Presi­dente vitalício!

Que bom estar sozinho com um cigarro e deixar andar. «Proi­bido fumar no quarto.» Também não trouxera tabaco. Ler enca-fuado no quente da cama. Faltavam-lhe os livros. Restava-lhe uma tranquilidade repleta de álibis. Tudo imóvel à sua volta e adormeceu pedrado pelos tranquilizantes, antiansiolíticos e com­panhia, sonhando ter nas mãos a fugidia eternidade e um prato de caracóis à frente, com o recheio apimentado, e um copo de bom vinho a escorrer pelas goelas, até ressuscitar a alma.

O Manuel Costa acordou a ouvir a música ambiente e expe­rimentar o sossego e a intimidade garantidos pela porta fechada. Para já, a impressão inicial excedia as suas melhores expectativas.

Um raio de sol penetrou pela janela, obrigando-o a piscar os olhos. Colocou os óculos de lentes grossas, umas vinte dioptrias, e teve a primeira má surpresa ao ver os pilares e o tabuleiro da grandiosa e esbelta ponte da feijoada, a maior da Europa, através de grades colocadas do lado de fora da janela. Teve medo, mas o pior estava para vir. Na primeira linha do cabeçalho da etiqueta que o identificava, leu: Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos.

O seu estatuto de recomendado pela Fundação o Homem e a Obra dava-lhe direito a visita de boas-vindas do director, e este entrou sorridente, de estetoscópio ao pescoço. O Manuel Costa fez uma tentativa para sair da cama, que o clínico interrompeu com um gesto magnânimo, perguntando-lhe se tinha passado bem a noite.

Como sabes, Cento e Quinze, apurei ao longo da vida a arte de reclamar. Soergui o tronco, o que me provocou um acesso de tosse asmática, e, nesta posição, depois de recuperado o fôlego, desfiei os meus argumentos.

— Reconheço ser um velho princípio considerar os bêbados de hoje como os loucos de amanhã, mas integrar um centro anti-alcoólico num hospital psiquiátrico, com grades e tudo, cria-me uma situação atroz e pode até inibir-me a veia artística, que é o meu ganha-pão.

— É uma questão de organização dos serviços, não se preo­cupe.

— É que eu sou um bêbado, assumo-o, quanto à loucura não, estou bem assim.

— Vai ver que com este tratamento melhora as suas capaci­dades artísticas.

— Não troce de mim, senhor doutor. Com estas já eu sou con­siderado uma ave rara. Um perigo público. Um maldito! O se­nhor doutor não vê o ridículo desta associação entre alcoolismo e loucura num país como Portugal, campeão mundial do consu­mo de bebidas alcoólicas, ou lá perto, onde os bebe-água e os «desculpe, não bebo» são mais desprezados do que os leprosos na Bíblia? Onde até o senhor se chama Dionísio?

— Os seus argumentos fazem parte do clássico debate sobre a relação dos artistas com as drogas. A comunidade científica admite que a droga traz de fora para dentro a fantasia, que pro­voca uma efracção das barreiras egoicas e a emergência de con­teúdos fantasmáticos até aí desconhecidos, acompanhados de vividos muito intensos de desrealização e despersonalização, as demências pré-senis.

Catalogado como bêbado, demente e senil, amochei, Cento e Quinze, antes que me doutorassem em vez de me tratarem. Aproveitei para aliviar a bexiga e os intestinos nas instalações que nas cadeias se designam por necessárias e aqui se revela­vam na forma de um quarto de banho com todas as comodi­dades. Foram os únicos momentos em que pude dispor de mim e do meu livre arbítrio, que até os teólogos fundamentalistas consideram ser um bem dado pelos deuses aos homens, embora um brinquedo perigoso a que não é conveniente deixar-lhes dar muita corda.

Ainda não havia puxado as calças e já dois latagões fardados de azul o seguravam, cada um por seu lado, para o conduzirem enganchado por baixo dos sovacos, até uma ambulância que o esperava com o motor em funcionamento.

Mano, caro Cento e Quinze, o que é preciso é acordar vivo, disse para mim ao ser entregue, sequioso e esfomeado, em abso­luto jejum, aos cuidados da enfermeira paramentada de branco, com uma capa azul-escura pelos ombros e uma touca na cabeça que lhe dava o aspecto de noviça pecadora em tirocínio para fada boa. Elsa, identificava-a a placa colocada sobre o peito saliente, para o caso de haver reclamações.

A ambulância partiu com a enfermeira Elsa ao lado do con­dutor e o Manuel Costa sentado no banco de trás, impante como um turista VIP na visita de reconhecimento à cidade desconhe­cida que o acolhe com todas as deferências, o sightseeing tour obrigatório. Uma estreia merecida após tantos anos de baldões nos transportes públicos e muita marcha a pé, ao sol e à chuva. Uma falta que lhe circunscrevera o conhecimento da cidade às zonas centrais e o impediram de apreciar a linda obra dos cons­trutores civis e dos autarcas nos arredores e extremas da capital.

À medida que se aproximavam do centro, começou a reco­nhecer os lugares e a sentir a alegria farejante que o Flag demons­trava quando regressava a casa, mesmo sabendo que não havia nada para comer. Um rafeiro que se manteve até ao limite da sobrevivência enquanto conseguiu lamber os pratos de papas de flocos de aveia dos filhos do Manuel Costa. Estive para lhe mudar o nome para Néstum, Cento e Quinze, mas antes disso ele desa­pareceu, tal como a prole existente na comunidade da altura.

A ambulância penetrava agora nas ruelas familiares dos bair­ros históricos, com as casas apinhadas sobre as colinas e a sua fauna humana a catar o sustento e o divertimento numa exube­rante harmonia de tascas, mulheres gordas às portas, paredes esboroadas, bêbados a mijar contra os tapumes das obras, pedras da calçada soltas, roupa íntima pendurada às janelas, assadores de peixe na rua com o seu fumo e odor característico, tão típico que até do estrangeiro vinham turistas apreciar.

De repente, ao virar difícil de uma esquina, num recanto imprevisível, a ambulância estacou diante de um portão de ferro com a pintura descolorida e salpicada de ferrugem dos cascos dos navios das antigas linhas de África fundeados no Mar da Palha, a aguardar o abate ao efectivo e a ida para sucata. O por­tão rodou lentamente nos gonzos e o Manuel Costa encontrou-se no interior de um pátio de chão empedrado pertencente a um velho palácio a ameaçar ruína, com a fachada a exibir ainda a herança do ocre original e as telhas escuras do musgo assentes sobre um esqueleto de telhado que ameaçava desfazer-se a qualquer momento. Um edifício carregado de cicatrizes mal saradas da luta contra o tempo, mas assustadoramente envolvido num silêncio de morte.

Um silêncio mais pesado do que o do parque das termas das Caldas da Rainha, quando há mais de trinta anos o Manuel Costa tinha de o atravessar de manhã, por entre os fantasmas dos velhos que iam às águas, por entre as árvores gigantes ainda mais velhas que os assombravam, a caminho da primeira tasca do dia, depois de deixar a mulher na fábrica de doces. Uma sertaneja beira, dura no trato e no carácter, que acabou por abandoná-lo. Tinha de ser. Irene, sê feliz, que bem o mereces. Substituíra a irmã, que fora a sua primeira mulher oficial, quando perfizera os mesmos catorze aninhos.

Uma rapariga virgem de catorze anos tem muita força. Um libertino não resiste às suas graças. Mesmo que elas sejam inte­lectualmente primárias. Tal como é a actual, a minhota Deolinda, e os amigos digam que elas não nos servem e que não as pode­mos levar a nenhum lugar decente. Adiante, a pentelhuda da Deolinda um dia seguirá pelo mesmo caminho, não há duas sem três, mas, até ao adeusinho, o que é bom dura enquanto dura.

Mergulhados na solução de formol do silêncio do pátio do palácio, circulavam estranhas criaturas desviadas dos olhares de todos os dias. Uma pequena multidão de homens a vaguearem sem destino, uns sentados em cadeiras de rodas, outros de mule­tas, amputados das pernas, outros cegos, outros de caras desfei­tas, todos vestidos com capotes verde-azeitona. Mesmo protegido pela carapaça vidrada da ambulância, o Manuel Costa sentiu medo.

Tive medo, Cento e Quinze, confesso. Medo daquele pátio deserto e cheio de destroços, medo do frio que se adivinhava apesar do sol que o banhava, medo da solidão daquelas almas. Medo e não piedade. O medo de ter entrado noutro mundo.

— Onde estamos, menina Elsa?

— No Lar dos Antigos Combatentes. Vimos recolher um resi­dente que também vai fazer exames.

Da janela viu aproximar-se um homem que, além do capote, trazia um gorro castanho enfiado na cabeça até metade da testa e que subiu dispensando a ajuda que o acompanhante fez men­ção de lhe prestar. Mal transpôs o degrau da viatura, cumprimentou a Elsa com familiaridade e um galanteio.

— Olá, Elsa, os teus trabalhos renovam o meu encantamento!

A voz denotava o hábito de mandar e de engatar que, dizem os próprios, era apanágio dos antigos oficiais de cavalaria. O Manuel Costa olhou-o surpreendido e desviou o traseiro para o deixar sentar. O recém-chegado agradeceu e instalou-se como se tivesse deixado de o ver. O homem que o acompanhava trocou algumas palavras com a enfermeira antes de esta mandar o condutor seguir e depois perfilou-se para fazer um aceno de despedida, levando a mão à testa num gesto de continência mili­tar. O Manuel Costa inspeccionou o novo passageiro com a curiosidade de um zoólogo a observar um animal exótico. Um tipo feio, mas simultaneamente de bom porte, se é que alguém consegue parecer bem nestas circunstâncias. Mais jovem que ele próprio, corpo esguio, não demasiado musculoso, cara magra com a barba rala por fazer, olhar triste, fundo e cinzento, rosto duro, varonil, um pouco fatigado e gasto, do género blasé, que agrada às mulheres e não inspira outra confiança aos homens, senão a de os seguirem numa aventura de morte.

Uma inquietação vinda de um ponto desconhecido afligiu o Manuel Costa.

Eu conhecia aquela cara, Cento e Quinze, mas donde? E tam­bém a do homem que ficou no pátio. De certeza que os encon­trara antes. Ou seria mais uma das minhas tontas alucinações? Retorcia as meninges e não me lembrava. É sempre a mesma merda e já me estava a dar um ataque de sufoco asmático! E tudo porque me faltava o álcool, uma carência que impede o bom fun­cionamento da minha memória. Nas ressacas, apenas sentia uma dor sem nome, que aumentava quando pretendia focar os con­tornos esfumados à distância. A abstinência é isto, nomes e caras voltadas sempre para o outro lado. Como a deste companheiro, que seguia balbuciando uns sons incompreensíveis, sem deixar de manter a cara encostada à janela. Que pensamentos estaria a deixar que aflorassem aos lábios este cão velho levado a passear no carro da família?

Pela fresta aberta da janela entrou uma aragem fresca que o Manuel Costa bebeu com um prazer estimulante para os senti­dos que assim despertam. Meteu conversa, enquanto lançava olhares lúbricos à imagem da Elsa reflectida no espelho da ambu­lância, deixando ver as formas desenhadas pela bata branca, salientadas pelos contornos em baixo-relevo das calcinhas e do sutiã. Demorou-se apreciar-lhe a cintura, o rego dos seios, os joelhos redondos e as pernas roliças, tudo como ele gostava.

— Grande mulher.

— Fêmea primorosa.

— Excelente definição, literária.

— Sou clássico por formação.

— Eu nem sei como me classificar. Chamo-me Manuel Costa, lisboeta, da freguesia de Dona Estefânia, casado, divorciado, liber­tino. Sou o que se chama, na mais profunda baixeza da palavra, um desgraçado, um desgraçado a quem prometeram um em­prego.

— Francisco Manuel, lisboeta, da Calçada do Combro, com bastantes motivos para ser solteiro e severamente experimentado pelo sofrimento.

— Temos em comum problemas com mulheres.

— E eu também com os homens.

— Por mim só me faltam chatices com os deuses.

— Acreditei em Deus. Tive fé na Pátria, fui educado no Colé­gio Militar.

— Eu sou um céptico. Discípulo do Montaigne. Andei no Liceu Camões, esse nosso compadre de infortúnios.

Depois de um momento de silêncio, o companheiro condes­cendeu:

— Pode falar à vontade, gosto de ouvir os outros, já me abor­reço de me escutar a mim mesmo...

— Também já não sei onde ia. Tenho a cabeça numa confu­são... Que acha que nos vão fazer?

— O costume. Nos hospitais, nas prisões e nos quartéis fazem sempre o costume aos que lá chegam.

— Eu nunca entrei num quartel. Da tropa só conheço os soldados, fora dos muros...

— Vão pôr-nos nus.

— Não é a primeira vez que vem à inspecção?

— Eu sou um residente. Há séculos que sou um residente! Residente porquê, gostaria de ter perguntado o Manuel Costa,

mas a enfermeira abriu as portas da ambulância para os fazer sair do aconchego daquele casulo semovente e entrar Hospital do Desterro, onde estavam montados os equipamentos necessários para avaliar o estado físico dos corpos humanos, porque no Júlio de Matos apenas tratavam das cachimónias.

As duas criaturas apertaram os roupões de pano turco sobre os pijamas de flanela de cor parda, com todas as peças marcadas com letras maiúsculas, a indicar a procedência daquelas encomendas, o lugar para onde deviam ser recambiadas, se alguém as encontrasse perdidas. Não fosse algum maluco roubá-las para as levar ao réveil-lon organizado pelas madamas da Cruz Vermelha no Hotel Ritz!

Desceram da viatura dobrados ao peso da resignada tristeza dos bovinos trazidos do campo para o redil.

Enquanto avançavam, desajeitados e trôpegos, com os uni­formes do internato, encolhiam-se para se defender do frio húmido dos corredores do Hospital do Desterro, mais um con­vento transferido do serviço de Deus para o dos homens, sem que estes tenham resolvido as incomodidades para os corpos que as almas não sentem e de que as divindades lá nas fofas e clima­tizadas alturas celestes nem se apercebem. Os vultos dos pacien­tes, outra certeira alegoria para designar os que esperavam uma consulta, afastavam-se desconfiados à passagem daqueles dois maluquinhos e desapareciam na sombra dos cubículos de aguar­dar a sua vez, com as senhas de atendimento nas mãos e os fras­cos de urina aos pés, junto ao saco do farnel.

Os doentes internados e os presos tinham prioridade sobre os ambulatórios e estes sobre a maltosa da consulta externa. Era a única regra respeitada no Serviço Nacional de Saúde.

A merecida popularidade da enfermeira Elsa entre os funcio­nários do hospital fez com que daí a nada o Manuel Costa e o Francisco Manuel se encontrassem em pêlo diante de um comité de especialistas para os avaliarem sobre o que se passava com o seu recheio orgânico.

No final da via sacra, azamboados por tantos cuidados, volta­ram a vestir os pijamas e os roupões, prontos para o regresso aos portos de origem. Enquanto reocupavam os lugares na ambulân­cia, a enfermeira, fiel depositária dos relatórios que não podiam ser entregues aos pacientes, anunciou com voz doce ao Manuel Costa e ao Francisco Manuel que os resultados eram positivos para ambos.

— A Elsa quer dizer que não morremos das maleitas que aqui nos trouxeram, Manuel Costa.

— Morre-se de qualquer coisa, tanto faz.

— Até de esquecimento.

— Eu também já passei na rua por alguns fantasmas que me gritaram, espantados: «Ó pá, inda és vivo?»

— É regra em Portugal abater todos os que se distinguem. A enfermeira Elsa cortou o desenvolvimento da conversa com

a autoridade de um sargento e o carinho ofensivo das mulheres jovens pelos homens que já não podem fazer mais do que lambe­ras com os olhos húmidos de lágrimas:

— Senhor capitão, o senhor não pode falar!

O Francisco Manuel não falaria mais naquela viagem de regresso. Antes da ordem da Elsa, já partira para outro mundo, que só ele via com os olhos de coruja fixos num infinito exclusivo das suas memórias. O Manuel Costa conhecia este olhar dos mortos-vivos. Os seus mortos, aqueles que haviam marcado a sua vida, apareciam-lhe com este sorriso ausente que o Francisco Manuel exibia sentado no banco da ambulância. Fingem bem, os sacanas. Estão lúcidos e vazios. Garantem que não querem e não esperam nada, mas mal acreditamos neles, zás, caem-nos em cima, uns tornam-se maçadores e outros ameaçadores. O Fran­cisco Manuel era destes últimos. Donde raio é que o conhecia? Em que furna da vida o encontrara?

Mano Cento e Quinze, durante as duas semanas do trata­mento de desintoxicação, o Francisco Manuel, que a enfermeira Elsa tratara por capitão, nunca mais me saiu da caixa onde pen­duro o nariz, que serve para suportar os óculos e meter-se onde não deve. Um enigma que me ajudou a suportar a abstinência, as lavagens ao estômago, as sessões de terapia de grupo, mas que exigia alguém para discutir o assunto fora do círculo de bêbados crónicos que justificavam os seus problemas de bebida com a solidão, o azar nos amores, nos negócios, com as injustiças, as desgraças da família. Corja de frustrados, de cornudos, de madraços, apenas preocupados em saber se o tempo passado no tratamento contava para a pensão de reforma, se teriam direito a redução do horário de trabalho por serem bêbados! Mas nem uma carta recebera desde que chegara ao centro antialcoólico. Já tinha experiência deste abandono a que me votaram os amigalhaços quando estive no Limoeiro.

O Manuel Costa fora de cana e ninguém chorara por ele, nem protestara com abaixo-assinados e comunicados que a polícia política usava para actualizar os ficheiros. Anos depois, já nos antigos lugares dos legionários da União Nacional, os democra­tas bem-comportados desculparam-se dizendo que os crimes do Manuel Costa não eram nobres como os dos escritores que criti­caram os patrões do antigo regime nos seus romances, nem como os dos conceituados advogados estabelecidos na praça, que exi­giram o respeito pelo cumprimento das leis por quem as fizera. Crimes de cidadania, em suma. Pelo contrário, os seus eram deli­tos comuns, taras sexuais, dívidas, arruaças. A oposição política era uma coisa séria. Não podia confundir costumes com ideais. Malta do pior, os amigos, Cento e Quinze.

No isolamento do centro antialcoólico, só as visitas da Elsa para substituir a bateria de pastilhas e tirar-lhe a temperatura permitiam ao Manuel Costa falar sem ser consigo próprio à frente do espelho. Conversava com a enfermeira com o termómetro metido na boca, reclamando que não estava gaga, e ela ria-se da voz fanhosa que saía pelo nariz e respondia:

— Pois não, até está muito bom para a idade. Todos os dias o diálogo terminava com a pergunta:

— Elsa, quem é o Francisco Manuel?

Numa tarde, Cento e Quinze, decidi: de hoje é que não passas e, quando ela me ia tirar o tubinho de vidro da boca, mordi-o com a raiva do Flag filado nas minhas peúgas, segurei-lhe as mãos e rosnei:

— Se não me disser hoje quem é o Francisco Manuel, engulo esta coisa!

A chantagem deu resultado. A Elsa sentou-se na beira da cama, deixando ver os joelhos e parte das coxas, para gozo do velhinho, e respondeu:

— Sei que esteve várias vezes na guerra, uns dizem que par­ticipou nas piores coisas da revolução, outros nas melhores,

— Pelos vistos nas que falharam.

— Na minha terra dizem que o bem e o mal dependem de quem governa.

— A Elsa é alentejana?

— De perto de Évora. O que eu lhe digo é que não é bom falar dele, nem com ele

— Também já passei pela situação de proscrito.

— Agora dê-me o termómetro.

Ao fim de quinze dias, Cento e Quinze, esperava as visitas da Elsa com a ansiedade dos viciados sem a dose da droga, de olhos esbugalhados. Onde uma boca para beijar, um corpo para tocar? Onde é que andaria a minha Deolinda e o seu corpo emitindo um bafo quente?

Estava a limpar o nariz, sentado à mesa, quando a Elsa entrou Para anunciar que o Rui Mendonça estava na recepção. O Ma­nuel Costa mordeu com os olhos o seu corpo e seguiu-a à distân­cia. A meio do corredor viu-a abrir a porta da casa de banho.

Adivinhou-a a abrir a bata, a dar um jeito às ancas para deixar cair as calcinhas, a deixar ver o umbigo, a curva da barriga. Passou instintivamente a mão pelo sexo e sentiu-o adormecido e mole. Descobri, Cento e quinze, que, depois de quinze dias de jejum e abstinência, não fora só a memória a sofrer os efeitos. O tipo lá de baixo também passara a ser um coitado que ficava nas covas. Mas, em vez da surpresa e do natural pânico por verificar a decadência em que caíra aquele companheiro de tantas folias, desatou a rir com as suas famosas gargalhadas e a abaná-lo. O Rui Mendonça apanhou-o nesta figura.

— Que te deu? Já estás maluco?

— Tens um cigarro?

— Sentes-te pior?

— Cá se fazem, cá se pagam.

— De aspecto, não estás mal.

— Que fazemos quando o bicho da cama diz: não me ape­tece e confunde uma boa mulher com uma vaca holandesa?

— Chichi.

— Não te armes em engraçadinho.

— Vamos então falar a sério. Foi para saber de ti que vim.

— Já não era sem tempo. Devias saber que o isolamento me faz andar azoinado.

— É das regras do tratamento não haver visitas nem contactos com o exterior nas primeiras duas semanas.

— No Limoeiro era apenas uma.

— É a diferença entre um preso e um doente.

— O objectivo é o mesmo, separar o sujeito do seu ambiente natural.

— Lindo ambiente, o teu, naquele cu de judas de Setúbal. Como te tens dado aqui no centro?

— Bastante melhor do que na casa do Manito, donde me tiraste. Ter a sobrevivência quotidiana assegurada, o essencial de bor­la, ajuda a levantar o moral. Excepto o do rapaz aqui de baixo...

— Chegar à tua idade amorfo de sexo, sem beber, sem fumar e sem foder, não é uma coisa triste, pode ser até repousante.

— Fala por ti, estou farto desse repouso.

— Já te apetece sair?

— Home sweet home.

— Estás a ficar sensato. Isso é bom sinal. É uma prova de que este tratamento resulta. Se já tens consciência do que fizeste...

O Rui Mendonça hesitava nas frases, como se tivesse algo de difícil a revelar e não soubesse como o fazer.

— Desculpa. É de estar aqui fechado. Do que preciso é que me fales do lá de fora.

Do lá de fora, Cento e Quinze! A frase fez os tambores rufa­rem na minha cabeça e trouxe a imagem dele, em plano ameri­cano, iluminado pelos projectores, a baixar-se sobre mim.

— Já descobri donde conheço o Francisco Manuel!

— Qual Francisco Manuel?

— O tipo de capote que me ajudou a levantar quando caí à porta da taberna da Paquita. Um antigo capitão que está inter­nado no Lar dos Antigos Combatentes e foi comigo à inspecção médica. Sabias que há um internamento para militares?

— Não sabia, mas não me admira, eles têm todos as menin-ges deterioradas.

— É a ideia feita na cabeça dos ilustres doutores em leis e letras amigos do teu patrão, mas põe-te é a pau com os civis. Ouvi os flamingos falarem a teu respeito.

— E tu, se também queres um conselho, nunca fales nesse Francisco Manuel na Fundação, nem perto, melhor, nem longe... melhor ainda, afasta-te dele como de um cão morto...

A conversa foi interrompida pela entrada do doutor Dionísio, de bata branca imaculada, um sorriso de chefe de oficina no rosto, que veio garantir ao Rui Mendonça o bom trabalho reali­zado na máquina entregue quinze dias antes. O médico passou a mão pelo lombo do Manuel Costa, a exibir o orgulho pelo resultado obtido na recuperação do chaço que ali entrara a cam­balear das juntas e com a pintura minada pela ferrugem. Por ele, Podia voltar já à estrada.

— Se quiser dou-lhe alta amanhã, sexta-feira.

O Manuel Costa olhou-o de través, com a expressão amuada e trombuda que o filho Paulocas fazia quando queria dizer não quero.

O médico insistiu em despachá-lo e leu o relatório que pre­parara:

Boa recuperação geral no que respeita à desintoxicação anti-alcoólica.

Quanto às síndromas psicorgânicas deve considerar-se que a idade desempenha um papel muito importante e que após os ses­senta anos são normais as desordens cognitivas associadas com distúrbios de vigilância. Em particular, distúrbios de aparência neu­rótica, por vezes entrecortados por produções delirantes interpretativas e alucinatórias...

— É isso, as produções delirantes... ainda não me sinto prepa­rado para sair...

O clínico encolheu os ombros e acordou com o Rui Mendon­ça que este viria buscar o Manuel Costa no domingo à tarde.

À hora combinada, o Manuel Costa aguardava-o na sala de espera, com a pequena mala junto aos pés, quieto e triste como um camponês na paragem do autocarro que o levará à cidade.

O Rui Mendonça veio irritado e tenso. É dura a vida de corte­são, Mano, com os inimigos sempre a espreitarem qualquer falha para intrigar. E o dia e a hora em que nos encontrámos também não ajudava a alegrar o ambiente. O regresso a casa, num final de tarde de domingo, a bordo do carro familiar é, para a maio­ria dos portugueses citadinos, um momento particularmente sombrio. No fim de uma jornada sem sentido pelos arredores, os funcionários voltam ao aconchego dos lares ainda mais trom-budos e irritados do que nos chamados dias úteis.

— Que caras!

O carro do Rui Mendonça avançava cercado por milhares de réplicas apinhadas de homens e mulheres, até crianças resgatadas dos infantários, uns com ar de nazis e outros de judeus no campo de concentração, e o Manuel Costa apontou o telemóvel, que piscava uma luz verde de pirilampo aflito:

— Posso utilizar essa coisa para telefonar à Deolinda a avisá-la de que estou a chegar?

— Se tinhas tanta vontade de a ver, porque não saíste na sexta-feira?

— Eles queriam despachar os borracholas para aliviar as esca­las e irem de fim-de-semana. Ora, durante o fim-de-semana, a Deolinda não tem nada para eu comer, ainda não se habituou a ir ao mercado, e o Paulocas vai namorar...

Mentia duplamente, Mano Cento e Quinze. O finca-pé teve a ver com a despedida da Elsa, que me prometera trazer a ficha com os dados do Francisco Manuel no domingo, ocasião em que o Centro estaria quase vazio e haveria menos perigo de delações. Essa era uma razão, mas não ainda a verdadeira. A verdadeira é que eu temia não encontrar a Deolinda em casa e não queria sofrer a decepção de cair no vazio. Precisava de ter a certeza de que lhe ia apalpar as mamas enquanto ela fazia papas de sar­rabulho e de que podia peidar-me sossegadamente antes de ir para a cama.

— Qualquer dia a parola da tua Deolinda larga-te e só tens a tua filha para te ajudar

— Estou feito, então. Mas tu também não pareces em boas condições...

Embora o Manuel Costa não constituísse um modelo de gene­rosidade e a miopia lhe servisse de desculpa para nunca reparar nos sinais de preocupação alheia, o facto é que o Rui Mendonça estava com o ar dos homens circunspectos. Olhava à sua volta para ver o que o rodeava, num varrimento de radar interior em busca de conhecer os fins e os meios dos outros, para medir as distâncias e prevenir ataques. Quando o Rui Mendonça parou o carro à porta do prédio das Amoreiras e o Manuel Costa lhe disse, antes de tirar as pernas para fora:

— Estava a pensar ir amanhã à Fundação...

E o ouviu responder:

— Não há pressa. Basta lá passares às quintas-feiras, ao final da tarde, de resto podes trabalhar em casa.

Percebeu que os trejeitos do Rui Mendonça eram hesitações antes de lhe dar a má notícia de que não o queriam lá. Ainda tentou:

— O que eu precisava de facto era de um emprego normal, com horário certo, pouco dispêndio mental, trabalho pago pon­tualmente ao fim do mês.

— Patacoadas.

— Eu sou um trabalhador incansável. Não exijo nem muito dinheiro nem grandes honras, que causam os problemas de bílis que te afligem. Se for preciso trabalho aos sábados, domingos e dias santos de guarda. Estou recuperado, tu viste o relatório. Como vou eu dizer à Deolinda e ao Paulocas que voltei a viver de biscates?

— Tens a pensão de mérito cultural. O problema é que o Soares e o Vasconcelos convenceram o Presidente de que a Fun­dação não pode estar à mercê de quem lhes manche o presente e lhes comprometa o futuro.

À despedida, quando o carro começava a andar, o Rui Men­donça ainda o ameaçou:

— Vou dizer à Naná que te deixei em bom estado.

— Esquece.

 

                                   Ubi bene, ibi pátria.

                                   (Onde se está bem, aí é a minha pátria)

                                                                         Pacúvio

 

                     O desvio fatal

Fazia um frio de rachar e o Manuel Costa deambulava sozinho pelo apartamento das Amoreiras a matutar no que lhe dissera o Rui Mendonça sobre o seu futuro como visitador da Fundação às quintas-feiras.

Fora mais uma vez enganado com promessas e como tu sabes, Cento e Quinze, não tenho rendimentos que me permitam agradecer promessas! Nem gosto que me tratem como a uma lavadeira saloia, das que antes da invasão das máquinas electrodomésticas também tinham um dia por semana para ir às casas dos burgueses receber a roupa suja e entregar a lavada.

O Rui Mendonça é um inconsequente com a ambição sempre a traí-lo e que só serve para trabalhos subalternos. Por isso é que o seu maior desejo era ser ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo de Portugal, segundo me confessou.

Má sorte a da paróquia no concerto da nações, Mano, e pior a de quem como eu teve de acreditar nas suas palavras.

Como os azares dançam aos pares, não só a situação pro­fissional do Manuel Costa ia mal, a familiar nem sabia bem como ia.

As três assoalhadas do apartamento das Amoreiras estavam limpas, excepto o quarto do Paulocas, desarrumado e cheio como um ferro-velho. Durante a sua ausência no Centro Anti-alcoólico, a Deolinda enchera a casa de flores de plástico, colo­cara na sala uma imagem do Bom Jesus de Braga, espalhara tapetes com dragões chineses pelo chão. Só não apagara as mar­cas dos antigos residentes. Também estes não haviam limpo as dos anteriores e por isso as paredes, as cabeceiras das camas, os espelhos da casa de banho, as etiquetas dos lençóis, as chapas made in dos artefactos domésticos revelavam a proveniência dos anteriores hóspedes, retornados de África de setenta e cinco, refu­giados bósnios e timorenses mais recentes, acolhidos em nome da solidariedade internacional, agora que em Portugal vivemos em paz e em progresso.

Calhara-me agora a mim, Cento e Quinze, como indígena carenciado, ser recolhido pela acção humanitária, que infeliz­mente não chegava para o aquecimento, nem para aquecer durante muito tempo, como eu iria comprovar.

A Deolinda tinha saído com o pretexto de ir visitar uma prima que viera de Braga, deixando a Ritinha a dormir. Desde que cheguei da desintoxicação vai ver a prima todos os dias e eu espero que haja mesmo uma prima. Quando a estas parolas começam a chegar pri­mas da província... Outro dia disse-me que ia ao cinema e só apa­receu às tantas da noite. Numa tentativa de bom entendimento, perguntei-lhe que filme vira e respondeu que não se lembrava porque era falado em estrangeiro! Olha se fosse em português!

Como agora fico em casa para evitar as tentações das recaídas e lá ia o investimento do Rui Mendonça por aguardente a baixo, numa tarde descobri um papel dela com um número de telefone e liguei só para confirmar a existência da tal prima. Responderam do Flamingo Dourado a perguntar se era um fornecedor. Claro, fornecedor de carne para cachorros. Salsichas Costa!

A minhota, além de alvorotada, andava desconfiada quanto ao futuro de mesa farta e roupa de marca, até de uma televisão, de uma máquina de lavar, um carrito, umas férias na praia da Póvoa.

Quando cheguei do Centro do Vale do Rio não tive coragem, Cento e Quinze, para dizer à Deolinda que afinal talvez não tivesse um emprego, no sentido que as classes laboriosas dão à palavra, e nos primeiros dias em que me viu ficar em casa, a tos­sir e a catar macacos do nariz, ou, pior ainda, sentado a matra­quear a máquina de alinhar letras inúteis, ainda aceitou a desculpa de me encontrar em convalescença receitada pelos médicos, que são muito cuidadosos com os doentes depois de eles abandonarem os hospitais, mas a situação tornou-se insusten­tável e, numa quarta-feira, após o jantar, ao ouvir o Manuel Costa anunciar que no dia seguinte iria à Fundação, a Deolinda excla­mou «finalmente!» com a rapidez e o alívio de cuspir um caroço.

A perspectiva de me ver entregue a um patrão, que mais e melhor pode um homem querer?, Cento e Quinze, estimulou a Deolinda e ela nessa noite esmerou-se na cama, porque desde que viera da desintoxicação tínhamos andado muito chochos, afastados um do outro. Ela fez o que podia para que eu me apre­sentasse nas melhores condições aos senhores da Fundação, reconheço. Só mimos ao velho fauno para assegurar a continui­dade da inaudita fartura que proporcionava iogurtes e filetes de pescada congelada no frigorífico.

A quinta-feira era o dia da audiência que o Rui Mendonça marcara ao Manuel Costa para semanalmente lhe dizer o que esperava dele. Mal se levantou, a Deolinda exigiu acompanhá-lo na viagem até à porta da Fundação, para evitar um desvio a O Ninho do Papagaio.

Não havia nada a fazer, Cento e Quinze, uma mulher na situa­ção dela, nua e lânguida de manhã, tem muita força, e eu na mi­nha, nu e esgotado no fim da noite, estava à sua mercê! Ainda argumentei com a Ritinha, mas ela já arranjara uma ama na casa da vesga que mora ao lado e começou a vestir-se a preceito, dentro do seu gosto e do dos Armazéns do Alegrete, para patro­cinar o meu salário e evitar o flagelo da minha presença.

Ao vê-la com os paramentos para a expedição, o Manuel Costa murmurou a oração dos enrascados de todos os credos de seja o que Deus quiser.

Logo à saída de casa, com a Deolinda à ilharga, o Manuel Costa recebeu os primeiros entusiásticos olés. Não era todos os dias que os matulões das obras e das entregas de mercadorias viam as formas de uma saudável camponesa esculpida ao vivo por uma camisola e por uma saia elásticas, de braço dado com um velhadas com aspecto de cangalheiro, com uma pasta de fiscal da câmara debaixo do sovaco.

Quando ela subiu os degraus do autocarro o condutor nem quis saber dos bilhetes e só arrancou depois de espreitar pelo retrovisor interno como lhe ficavam as pernas quando se empo­leirasse no banco. Um passageiro indiferenciado, de passe social numa bolsa de plástico, coçou as virilhas e respirou fundo. Esta­vam todos a vê-la na horizontal, e o Manuel Costa começou a matutar na viagem de regresso da Deolinda e a pensar se não seria melhor ela vir de táxi.

Uma opção difícil de tomar, porque, apesar de muitos trazerem terços a baloiçar no espelho e imagens de santos colados nos tabliês, os taxistas são geralmente cristãos pouco recomendáveis, a quem a quinquilharia da religião serve para melhor enganarem os incautos.

A Deolinda desceu a calçada a bambolear as ancas em busca do melhor equilíbrio, empoleirada nos sapatos de salto alto, e, ao passar pela porta d'O Ninho do Papagaio, o Manuel Costa vislumbrou a silhueta dos primeiros clientes, parasitas como o Cabeça de Vaca e o Rata dos Cabarés, que começavam cedo a pôr os fígados, se ainda os tinham, em vinha-d'alhos para mais um dia de sobrevivência.

No aperto em que seguia, nem pensar em fazer o mesmo, que era o que me apetecia, Cento e Quinze. O que mais queria era que nenhum desses dois destiladores de carrascão sonhasse com a figura que eu estava a fazer, e o menos encontrar o Rata dos Cabarés, que até para a nossa mãe olha a apreciar as possibi­lidades de a pôr a render de pernas abertas. Que tem nos olhos aquilo que, se ninguém inventou para uso de tipos como ele, devia ter inventado, um conómetro! Para quem uma mulher como a Deolinda é um bombom à espera de ser desembrulhado. Naquele momento, Cento e Quinze, nem me aflorou à caixa dos pirolitos a lembrança do grupo de conspiradores interna­cionais que haviam escolhido O Ninho do Papagaio para sede. As minhas preocupações tinham a forma do Rata dos Cabarés, que subia a calçada para o primeiro copo do dia com o esforço dos condenados do Forte de Elvas a empurrarem os barris de água monte da Graça a cima, mas que, ao ver a Deolinda, come­çou a trotar com a ligeireza de ratazana esfomeada. Deu uma palmada nas espáduas do Manuel Costa, que lhe fizeram ranger o cavername dos pulmões, enquanto tirava uma radiografia à Deolinda e disparou com todo o descaramento:

— Então tu tinhas uma coisa destas em casa e não dizias nada aos amigos?

— Desaparece e cala o bico.

Os olhos do Rata dos Cabarés responderam-lhe que isso era o que ele queria. Havia ali, na Deolinda, material para trabalhar.

Quando ela, toda viva, lhe disse que cantava, isso soou ao antigo chulo como música celestial. Mas mesmo que ela fosse surda-muda havia de a aliciar para o Flamingo Dourado.

— Tens aqui um tesouro!

E o Manuel Costa a pensar que desta é que nem o Bom Jesus o livrava de ela o trocar pela vocação artística descoberta na sé de Braga. O safado ainda teve um sorriso trocista ao despedir-se:

— Atão, até amanhã e advirtam-se!

Os pensamentos do Manuel Costa concentraram-se mais nos perigos da viagem de regresso da Deolinda do que na forma como seria recebido na Fundação, e encheu-a de tantos conse­lhos que ela se abespinhou, comparando-o ao cónego Telo de Braga, que só via o mal nos outros.

Desta vez, a entrada do Manuel Costa não causou incómodo nem alerta geral na Fundação. O segurança Márcio reconheceu-o e acompanhou-o com a delicadeza de um mestre-de-cerimó-nias até ao átrio da recepção. A Cátia também o atendeu com um bom-dia cordial e o Rui Mendonça surgiu a recebê-lo com o sorriso dos relações publicas, que chegam à noite com as quei­xadas mais doridas do que os pés dos peregrinos a Fátima. Alguns da sua raça já morreram com esta máscara de boas-vindas agar­rada às fuças, Cento e Quinze.

Cinco passos até ao elevador, uma viagem calma com música de fundo e estavam no escritório do Rui Mendonça. Ambiente de grande executivo, secretária maior que a minha cama, telefones de várias cores, sofás de cabedal, candeeiros de antiquário, chão de madeira envernizada. Uma fotografia do Presidente na parede. Vis­tas para o jardim interior. Uma atmosfera propícia ao estudo e refle­xão, não fosse o cinzeiro atafulhado de beatas, o tampo da mesa coberto de papéis e os olhos vermelhos do fumo e de noites mal dormidas denunciarem os tormentos que afligiam o seu ocupante.

— Toma cuidado, ainda sofres um ataque cardíaco. Pareces um caranguejo num tacho. Rebentou alguma guerra? Algum dos flamingos partiu o bico?

— Estou a preparar as Conferências do Milénio para o Presi­dente e os tipos mais importantes estão todos a dar negas.

— Se calhar, é um problema de milenas. Faz as conferências do século, que saem mais baratas, embora dinheiro seja o que parece não faltar por aqui...

— Quem vê caras...

— Não vê hemorróidas! Quem é que já se negou?

— O Kissinger, o Gorbatchev, um cardeal do Vaticano, o Rockfeller.

— Convida o Kalashnikov, o da espingarda dos guerrilheiros.

— O Presidente encarregou a Naná de fazer os convites e deu nisto... mandou-lhes um faxe como se fossem fornecedores de supermercado... agora anda pelo estrangeiro à cata de uns palra-dores de segunda.

— A rapariga não tem a tua experiência internacional... Nem polindo-lhe o ego o Rui Mendonça caiu na rasteira do Manuel Costa:

— E, cá para o rapaz, não se arranja nada a tempo inteiro?

— Já te disse que trabalhas em casa, podes fazer traduções... Restava ao Manuel Costa a rábula da humilhação. Atirou-se

de joelhos aos pés do Rui Mendonça, deixando cair a pasta que guardava sobre o colo e salmodiando:

— Traduções, revisões, punhetas, broches...

Foi nesta figura degradante, de animal rendido a um todo-poderoso, que o surpreendeu o doutor Diogo Soares ao entrar no gabinete do Rui Mendonça, sem se dar ao cuidado de bater à porta. Trazia uns papéis na mão e durante uns instantes não soube bem o que se estava a passar naquela dependência da res­peitável Fundação. O Manuel Costa desdobrou o esqueleto por fases, ajeitou os óculos e passou a mão pela cabeça a ajeitar os raros cabelos, antes de o cumprimentar e se desculpar:

— Estava à procura de uma moeda que caiu do bolso. É a única que tenho, é para o autocarro...

O que ficou conhecido pelo Guedelha Sempre Ministro não pareceu dar importância ao facto, sentou-se sem cerimónias diante do Rui Mendonça, pousou os molhos de folhas em cima da secretária e fez um sinal para o Manuel Costa se instalar a seu lado.

Desconfiei de tanta urbanidade, Cento e Quinze, e pensei logo o que é que aquele manjerico queria.

O Diogo Soares vinha comunicar ao Rui Mendonça uma notí­cia que devia preocupar todos os membros da Fundação. Tinha sabido, pelos meios subterrâneos habituais nestes casos, da pre­sença em Lisboa do jornalista inglês Ned Marchmont, descrito como aquele bife bêbado e comuna que andou por aí em setenta e quatro e setenta e cinco a fazer propaganda da revolução.

Uma dessas andorinhas que ao cheiro de reformas agrárias, comités de fábrica e descolonizações aqui arribaram vindas do Chile, da China, de Cuba, da Albânia. Fala português e espanhol, bebe vinho e parece que até gosta de caracóis! Tornou-se amigo de peito dos revolucionários da altura, principalmente do triste­mente célebre capitão Francisco Manuel, a quem chegou a clas­sificar como o novo Guevara, enquanto lhe seguia as façanhas. Acertou em cheio nesse tolo a meio caminho entre um louco e um cadáver, que sonhou ser glorioso, e agora veio de novo para desenterrar o que jaz morto e sepultado.

— Os ingleses das classe médias não conseguem suportar a Inglaterra por muito tempo e qualquer argumento lhes serve para se rasparem daquela terra que só é um paraíso para os cava­los e para os cães. Quando são novos, escrevem romances de viagens e empifam-se, quando estão reformados vêm para o Sul entreter-se com livros de memórias e empifar-se.

O Francisco Manuel deve ter mandado ao Ned Marchmont uma das duas mil e seiscentas cartas que ele próprio confessou ter escrito a lamuriar as suas desgraças aos mais variados destina­tários nacionais e estrangeiros. A uns a choramingar, a outros a difamar. Esse destrambelhado exibicionista, que o menos que lhe falta é sensatez, vejam o que lhe faltará mais, não deve ter feito outra coisa na prisão do que escrever, e ainda se queixa do regime!

O doutor Diogo Soares conhecia o Francisco Manuel desde novo. A sua família e a dele viviam na zona do Saldanha. Aos domingos, aparecia no Café Monte Cario fardado de menino do Colégio Militar, a exibir-se com dois pretos para provocar os frequentadores que vinham tomar um café sossegados. Naquele tempo isso era uma desfaçatez, e um dia pegou-se tudo à pan­cada e teve de ser ele a pôr cobro ao desaforo.

— Em vez de me ficar agradecido, deve ter ido contar uma patranha à mãe, que apareceu mais tarde em casa dos meus pais a tirar explicações e a acusar-nos de porcos racistas no português entaramelado dela! Já nesse tempo o Francisco Manuel confiava demasiado nas suas capacidades e tentava sempre ir além das suas forças.

É um vingativo e mal-agradecido. Ao Presidente, que sempre o apoiou enquanto pôde, que foi amigo do avô, que o convidou para esta Fundação, a paga do Francisco Manuel foi andar a espa­lhar aos quatro ventos que ele o perseguia porque se encon­traram à porta da mesma senhora a disputar-lhe os favores! Pretendeu mesmo editar um livro de ajuste de contas, e só não o conseguiu porque o editor era dos nossos e o empapelou com promessas até ser preso.

Nunca fez mais do que atrapalhar as realizações das pessoas responsáveis, envolveu-se na entrega das colónias, na ocupação das terras, nos roubos e esbulhos dos tesouros tanto públicos como privados, andou em arruaças e pancadarias em Madrid com os mais desprezíveis vagabundos. Nunca soubemos se esta­va do lado da moderação ou da revolução e apresenta-se como vítima de cabalas escuríssimas! Ao anterior procurador-geral da República, mesmo sabendo que ele era um fiel amigo do nosso Presidente, escreveu que só estava esquecido vivo até ser conve­niente lembrarem-se dele para o matarem! Imaginem agora, com a cobertura do inglês, o que irá dizer ao filho de uma puta que passou a ocupar o cargo! Vai aproveitar o Ned Marchmont como megafone internacional para as aleivosias que guardou encoiradas estes anos.

— Em resumo, temos de desviar o Ned Marchmont do Fran­cisco Manuel. O problema é que ninguém sabe onde o jorna­lista está.

— Deve andar por aí de taberna em taberna.

— E como há tantas em Lisboa...

— Talvez aqui o Manuel Costa, com os seus conhecimentos do meio, nos possa dar uma ajuda...

Neste momento, Cento e Quinze, comecei a ver esta história a dirigir-se na minha direcção com a velocidade de um auto­carro desaustinado. Ou me deixava atropelar, ou saltava para ele em andamento. Ainda sugeri que utilizassem os novos servi­ços de informação da República, mas o doutor Soares abanou a cabeça, fazendo dançar a guedelha. A identidade dos agentes saíra nos jornais, além disso foram escolhidos pelos deputados Para preencherem cotas de amigos, tinham horário que limitava as horas de trabalho, pelo que algumas das investigações fica­vam a meio porque chegara a hora de descansar. Uma des­graça.

— Era exactamente o que estava há pouco a dizer ao Manuel Costa, que ele nos podia ser útil aqui na Fundação...

O sacana do Rui Mendonça! Pra sacana, sacana e meio. Esta­va ali para o que fosse preciso, mas necessitava de uma base para trabalhar. Em casa não era possível.

— A Ritinha, a minha filha, é um diabrete que parte, rasga, esconde, guincha, espalha, destrói e borra tudo o que apanha. Eu próprio já andei de gatas, como há pouco estava, à procura de coisas a que ela deitou a mãozita. Já tive de ir ao caixote do lixo... um cubículo... com uma mesinha...

O Rui Mendonça fuzilou-me com os olhos. E eu a gozar, Cento e Quinze. Tinha a consciência de estar a ser tratado como um palhaço pobre que faz as trampolinices na pista do circo e depois tem de ir às traseiras dar de comer aos jacarés. Restava-me a esperança de escapar sem ser comido à primeira.

O doutor Diogo Soares mandou o Rui Mendonça acertar com o segurança Márcio um local de trabalho e saiu, deixando a reco­mendação:

— Descubra o Ned Marchmont!

Ou lá se ia o estanco de fazer de conta que era um escritório, para a Deolinda julgar que eu voltava a ser, aos setenta anos, um exemplar funcionário. Eu, Cento e Quinze, que fui expulso da Inspecção-Geral dos Espectáculos por ter aparecido de gravata xadrez no dia de luto nacional por morte do Carmona, Oscar Fra­goso, sem me valer de nada dizer ao inspector que a recebera como oferta de um importador de uísque!

A mesma desconfiança do antigo chefe do Manuel Costa, ao vê-lo de gravata colorida amarrada ao pescoço num dia de exé­quias nacionais, demonstrou o Rui Mendonça ao reparar na pasta de cartão que ele segurava no regaço com o cuidado das beatas a proteger o missal.

— Que tens aí?

O Manuel Costa esperava a pergunta e começou a espalhar pelo tampo da secretária as folhas do processo militar do Fran­cisco Manuel, que a enfermeira Elsa lhe entregara à saída do cen­tro antialcoólico, com a lentidão estudada das cartomantes, cujo segredo é ganharem tempo para observar as reacções dos clien­tes, enquanto o Rui Mendonça ia mudando de cor, para verde, ao ver documentos oficiais em mãos tão pouco credenciadas.

Estava ali, em cima da sua mesa de trabalho, o cadáver dis­secado do capitão Francisco Manuel, descrito sem comentários, porque os amanuenses militares escrevem mal e não arriscam fantasias literárias. O problema é que o Rui Mendonça temia que os flamingos, além das críticas por outros motivos, ainda o acusassem de ter transformado o gabinete numa morgue. Lamu­riava que só faltava cair-lhe em cima da mesa um militar da defunta revolução.

A vida do capitão parece um caminho em que encontrou todas as pedras e em todas deu topadas. Fica órfão e frequenta o Colégio Militar, onde tem por comandante o então major Hum­berto Crato, que passou para a oposição e morreu assassinado em Espanha. Foi colega dos filhos dele, Manuel e Cristóvão. Esteve em Angola é nossa, no início da guerra, em Moçambique, nas operações de Mueda como capitão de Aventureiros. Vai aca­bar na Guiné, o nosso Vietname, com o Spínola. Operações de combate em Guidage e em Buruntuma, ou será Burumtumba? Duas vezes condecorado, dez louvado, três ferido, punido por ofensas a um oficial superior. Depois de a guerra acabar, foi duas vezes a Londres nas delegações oficiais para a independência das colónias, uma à Argélia. Colocaram-no, por escolha, em Estre-moz, no tempo da reforma agrária.

— Andou tantas vezes perto do fogo que acabou por se quei­mar. E depois?

— Depois parece que desapareceu. Os militares fizeram um risco a vermelho sobre a folha dele... passaram-no ao braço secular...

— E foram tipos como estes que fizeram uma revolução por acaso e que por esse acaso querem ficar na História!

- Estou aqui para pôr os tipos certos, nos sítios certos..

Como vês, Cento e Quinze, fazia os possíveis para engrossar a corte dos que vivem de tenças e, se fosse preciso, até anuncia­ria a coroação de um príncipe mesmo depois dele morto, como fez o azarado do padre Vieira com o recém-nascido D. João, quanto mais dizer o que quem paga quer ouvir, quando a porta do gabinete do Rui Mendonça foi impulsionada pela urgência do toque a rebate e por ela entrou de rompante o Miguel Vascon­celos a exibir um papel, soprando que aparecera mais um pan­fleto do Manuelinho.

O Miguel Vasconcelos rugia, clamando por sangrentos desagra­vos contra os bandalhos que escolheram o nome dos arruaceiros de Évora e tomaram o patrocínio dos franciscos manuéis que por lá andaram a espicaçá-los, e perguntou ao atónito Rui Mendonça:

— Sabe qual é o seu dever?

O Manuel Costa não resistiu à pergunta e, do canto onde se abrigara, recitou com a voz cava de um actor do teatro nacional, olhando pela janela:

— Sabeis vós qual é o dever de um alcaide?

— Este merdoso está aqui outra vez?

O antigo forcado dos Amadores de Évora nem queria acreditar no que via e o olhar que lhe deitou fazia temer o pior. Teve de ser o Diogo Soares a arrastar o cunhado para fora do escritório, a fim de evitar que este prejudicasse a posição em que ambos se encontravam, matando ali aquele bobo da corte.

Quando ele desapareceu com o seu programa para resolver os desaforos do povo, trabalho de sol a sol e que morram depressa, o Rui Mendonça comentou para o Manuel Costa:

— Tu não consegues ouvir e calar?

— Sou um homem do povo, excelência...

O Manuel Costa ajeitou os óculos novos que davam para ver ao longe e ao perto, meteu a papelada na pasta, assoou-se com estrondo ao lenço do tamanho de uma mortalha e disse ao ató­nito Mendonça:

— Vamos lá ver o cubículo cá para o meço!

— Antes disso, diz lá qual é o dever do alcaide

— É não se deixar enrascar.

Desceram os dois ao rés-do-chão e o Rui Mendonça chamou o segurança Márcio para os acompanhar às partes baixas do palace­te, pois são os funcionários menores sempre os mais esclarecidos sobre os esconsos onde a tralha de pouco préstimo é arrumada. O rapaz começou a encaminhar-se para um lado e o Manuel Costa para o outro. O Márcio procurava evitar o esconderijo dos seus amores com a Cátia, e a mim, Cento e Quinze, interessava-me precisamente esse poiso, por baixo da Sala dos Flamingos. Mas fui dizendo que não viria todos os dias, nem estaria ali de sol a sol e o moço começou a aceitar a possibilidade de coabi­tação, que para mim tem sido a prática mais comum.

Por fim, acordaram no local, com entrada pela porta de ser­viço, longe dos olhares do Miguel Vasconcelos. O Márcio encar­regava-se de ali instalar uma mesa, das que já não serviam nos andares superiores, um candeeirinho de cabeça de cisne, uma cadeirinha de rodas, uma escalfeta e até um telefone se arranjava. Uma simpatia que o Manuel Costa retribuiu, garantindo que só viria com aviso prévio e sem incomodar.

Ficámos amigos, Mano. Quando precisares de saber alguma coisa dos bas-fonds da Fundação, recorre ao segurança Márcio. Ele sente o mesmo acrisolado amor pelos flamingos que os ursos do circo pelos domadores que os obrigam a dançar presos por uma argola no nariz.

Senti que me aproximava da órbita do planeta de gente dupla, que joga em todas as cartas do triunfo ao mesmo tempo, bara­lhando os naipes, ganhando sempre e arrepiava-me desempenhar o papel de agente dos serviços secretos a infiltrar-se no mundo dos sorrisos impiedosos. Isto até o Rui Mendonça me propor ir jan­tar com ele e com a Naná quando ela regressasse do estrangeiro. As manigâncias do Rui Mendonça podiam levá-lo um dia, quem sabe, a ministro do Palácio das Necessidades, mas não Passavam de truques requentados para o Manuel Costa. Um jantar em família, com emocionante reconciliação, recordações longínquas e o Mendonça no final a distribuir conhaque e charutos para declarar que unidos venceremos.

— Só se for para ver a grande jornalista Maria Helena Pitta Simões a fazer refogado e a mexer nos tachos...

A careca, coberta por ralos cabelos do Rui Mendonça, luziu de suores e seborreia ao ouvir tal hipótese.

Estávamos conversados, Mano, e eu fiquei livre para seguir ao meu destino.

Com os sucessivos acontecimentos já passara a hora do almo­ço e o Manuel Costa começou a subir a calçada, agora no sentido inverso, direito a O Ninho do Papagaio, para celebrar a sua entrada na História como agente infiltrado. Um simples copo e depois iria dar a boa nova à Deolinda e levá-la para a cama a meio da tarde, enquanto os papalvos se esfalfavam a trabalhar. Uma sesta como deus manda, com foda, pijama e uns caracóis a rematar, que são uns bichos de muita sustância, peitorais, afrodisíacos.

Esta era a minha intenção, Cento e Quinze, juro. Mas a cabe­ça põe e o vício dispõe, porque, é claro, não podia ser o bom Deus a dispor o que aconteceu.

A Paquita recebeu o Manuel Costa sem ressentimentos pelo apalpão à falsa-fé da primeira visita, antes com a genuína alegria de ver velhos conhecidos bem na vida, e ofereceu-lhe um cálice da paz, um tinto da nova remessa, muito melhor, garantiu, do que aquele que lhe causara a anterior indisposição. Nem levou a mal o pedido que ele lhe fez para o misturar com gasosa, por­que estava ainda em período de abstinência.

Cumprido o ritual das boas-vindas, o Manuel Costa transpôs a cortina que dividia a sala principal do reservado d'O Ninho do Papagaio, para procurar velhos conhecidos, e encontrou o Rata dos Cabarés e o Cabeça de Vaca abancados à mesa juntamente com os quatro homens que vira ali reunidos na primeira passa­gem a caminho da Fundação.

Durante as duas semanas em que o Manuel Costa estivera em faxinas internas no centro antialcoólico, o Rata dos Cabarés e o Cabeça de Vaca haviam-se introduzido no grupo dos conspiradores e garantido o sustento das tardes com a sua conversa pega­josa, numa manobra habitual de ociosos impenitentes que já não tinham físico apresentável para a chulice. Receberam-me de bra­ços abertos e expressões carregadas do maior afecto:

— Senta-te e bebe um copo.

A Paquita trouxe uma braseira feita com os restos da grelha de assar febras e o ambiente tornou-se tão acolhedor, Cento e Quinze, que o Rata dos Cabarés, que só ouvira falar da existên­cia da escola primária por denúncia de uns vizinhos que um dia apareceram carecas e acusaram a professora de ter chamado um tosquiador a esse estabelecimento para lhes rapar o cabelo e as­sim vencer a praga de piolhos e lêndeas que lhes enchia a cabeça em vez da tabuada e do abecedário, apresentou o Manuel Costa aos ilustres frequentadores d'O Ninho do Papagaio como se fosse ele próprio um membro da Academia de Letras que introduz um postulante aos colegas:

— O Manuel Costa também é escritor.

— Estou a pensar em escrever como o Hemingway, à tabela. Tantas palavras, tantos tostões. Eis um morto simpático, o He­mingway, um bêbado suicida, sem problemas de dinheiro, com fartura de mulheres!

O comentário do Manuel Costa à desfaçatez do analfabeto caiu bem na assistência, que passara à interminável fase do bagaço, ainda com os pratos cheios de espinhas de carapaus à espanhola sobre a mesa. O que tinha a figura mais estrafalária, de cabelo comprido, óculos redondos, apresentou-se num por­tuguês espanholado como Francisco Quevedo, que publicou a obra Sobre las gradas e desgracias del ojo del culo e por isso foi despedido do respeitável Instituto Cervantes de Lisboa.

— Se a sua avó foi duena de retrete da rainha de Espanha, eles queriam que você escrevesse sobre quê?

O tipo de bigodes retorcidos, com a pele da cara manchada de vermelho, que já fora loiro e mantinha o aspecto de major inglês, acompanhou o comentário com a gargalhada seca dos ingle­ses quando ouvem as suas próprias graças.

— Senor Ned Marchmont, este es un comentário ordinário que solo podría hacer un periodista, esa raza de escribas que escribe de pie, odia Ia gramática,queice que Io oyó, se guarda Io que piensa, olvida deprisa, cuenta Ias mismas anécdotas en Ias bodasoen los funerales y, ai final, precisa de una fotografia para explicar Io que sucedio.

Em vez de uma definição do inglês, ainda por cima mais coxa do que ele próprio, o que o Manuel Costa precisava era de que o Quevedo lhe tivesse arranjado um fato de homem invisível, para se esquecer de que fora incumbido pelo Diogo Soares de descobrir o perigoso jornalista Ned Marchmont e denunciar onde ele se encontrava. Enquanto bebia dos copos abandonados balançava no dilema dos pobres de ter de seguir os poderosos como escravo, ou continuar na honrada miséria. Por um lado, acabara de ser avençado pela Fundação o Homem e a Obra e tinha a Deolinda à perna à espera do cheque do fim do mês, mas, por outro, soube sempre distinguir de que lado estava. Lá tinha de vir o álcool arbitrar o cumprimento do dever, Mano, e agora sem gasosa para amortecer!

Entretanto, o Ned Marchmont explicava que fora antigo envia­do a Portugal do extinto Excelsior, de Londres, durante a revolu­ção, depois especializara-se em jornalismo de investigação sobre tráfico de obras de arte. Uma área inesgotável, dado a Inglaterra ser o maior receptador mundial e até dispor de respeitabilíssimas empresas estabelecidas by appointment of Her Magesty que com­pram, vendem, certificam, leiloam o melhor que vai aparecendo de todas as proveniências. Por vezes é arriscado, mas propor­ciona viagens por todo o mundo.

— Decidi vir beber vinho a Portugal, mesmo tendo de aturar o Quevedo, também para fugir aos queixosos do livro Gangrena, que escrevi e no qual não acharam graça à comparação que fiz entre a época da revolução do Cromwell e a actual. Até fui acusado de instigar ao regicídio e à implantação da república, o que em Inglaterra é o mesmo que os católicos proporem a elei­ção do papa por sufrágio universal.

Ao ouvir falar no papa e no universo, o lingrinhas de longas barbas emitiu uns ruídos indecifráveis.

— O padre Nuno Maria foi capelão da minha companhia em Angola, mas já era assim quando os bispos o mandaram assen­tar praça...

Esclareceu o capitão Francisco Manuel, com a voz grave e bem colocada que o Manuel Costa já lhe ouvira durante a ida ao Hos­pital do Desterro na ambulância do Júlio de Matos, com a bela enfermeira Elsa.

A conversa n'O Ninho do Papagaio continuou neste tom ele­vado, Cento e Quinze, que eu já conheço desde os tempos da outra senhora e que sempre se prolongam para um sem fim que há-de ser em data da próxima, seja a de uma revolução, a de um abaixo-assinado, ou a do lançamento de um livro. Assim se fez noite sem darmos por isso, até uma figura de ausente que regressa assomar ao cubículo e dizer:

— São horas, meu capitão.

— Aqui me tens, cabo Matos, meu anjo-da-guarda. Aqui me achará sempre quem me quiser para toda a resolução que for ser­vido comigo.

O capitão Francisco Manuel levantou-se vagarosamente, colo­cando o capote verde-azeitona pelas costas, e o jornalista Ned Marchmont sussurrou-lhe ao ouvido:

— Temos de conversar sobre as jóias desaparecidas na revo­lução, Francisco Manuel.

— Agora não, que estou maldisposto e pior dormido.

O inglês encolheu os ombros e partiu com o Quevedo, que o de­safiou a irem acabar a noite entre as garrafas da colecção do padre Nuno Maria, e o Rata dos Cabarés aproveitou a boleia para ir ocupar o seu posto no Flamingo Dourado, dizendo ao Manuel Costa:

— Tu é que estás bem.

Nada é fortuito ou casual, nada é inocente, Cento e Quinze. Nem as palavras do Rata dos Cabarés. Saí d'O Ninho do Papagaio com os piores pressentimentos, deixando o Cabeça de Vaca a ajudar a Paquita, vendo-a arrumar a loiça.

Arrastei as trombas até casa, com uma dor de cabeça dos diabos, a remoer nos meus problemas, com a plena consciência de que não podia entregar estes camaradas aos meus patrocina­dores. O Francisco Manuel, mesmo com as suas pequenezas humanas e grandes fantasias, fora um dos artífices do sacão vio­lento que me fizera livrar do doutor Areio Manso, juiz dos tribu­nais plenários, por escrever prefácios à Filosofia de Alcova do Sade. O que pode não parecer muito, mas para mim fora sufi­ciente para continuar um tipo maldito, mas já não amaldiçoado.

A opção estava feita, não serei o último dos bufos portugue­ses! Mas apetecia-me um afago por tê-la tomado. Precisava de uns beijos, uns pas-de-deux sobre a cama, o resto são larachas.

A Deolinda saíra e o Manuel Costa foi buscar a Ritinha a casa da vesga. A ama, e a nenhuma como a esta velha assentava tão apropriadamente o labéu de seca, deitou-lhe um olhar de pie­dade (quanto gente desta, que aluga quartos à hora, tem pena da gente é mau sinal, Mano) e desejou-lhe uma boa noite que soou a dobre de finados, enquanto o ajudava a abrir a porta. Uma tare­fa que àquela hora e com aquele carregamento de álcool é pra­ticamente irrealizável por um homem só.

A minhota regressou depois de o Manuel Costa ter mudado duas vezes a fralda à miúda e de ter sofrido um ataque de falta de ar, que, mesmo com a garantia dos médicos de ter origem ner­vosa, o fez mais uma vez acreditar que ia morrer a assobiar para dentro. A Deolinda deitou-se sem uma palavra, nem para se desculpar com a prima de Braga, virou-me as costas e deu um coice a afastar-me para a faixa da cama que está à beira do abismo.

Na manhã seguinte, o Manuel Costa fez-se esquecido dos amuos nocturnos e anunciou à Deolinda que os mecenas o haviam acolhido na sede da Fundação com a pompa de um herói a entrar no Panteão. Ela nunca ouvira falar na Igreja de Santa Engrácia e eu nunca lá tinha entrado, nem esperava, Cento e Quinze. Respondeu que devia ser por isso que eu cheirava tanto a vinho e eu esclareci-a de que se tratava de um monumento nacional aberto ao público, embora pouco frequentado, onde repousam os heróis, incluindo o Sidónio, um major reaccio­nário, lente em Matemática, a quem deram um tiro no Rossio. O passado não lhe interessava para nada, nem o Sidónio. Se eu era tão espertinho, tão sabido, já agora podia aproveitar para tomar banho com um sabonete, mudar de peúgas, besuntar a cara com um creme depois de fazer (ela disse desfazer) a barba e limpar o cu antes de puxar as cuecas. Como vês, Cento e Quin­ze, pelo conhecimento que demonstrou dos pormenores da inti­midade e da higiene pessoal dos homens, já fizera a rodagem e estava lançada.

O Manuel Costa viveu ainda umas semanas a tentar catequi­zar a Deolinda com um fervor militante de que o amanhã seria deles, no pequeno intervalo em que se encontravam antes de ele sair em direcção d'O Ninho do Papagaio, com uma breve pas­sagem pela Fundação para dizer que continuava em campo, atrás do rasto do Ned Marchmont.

A tertúlia d'O Ninho do Papagaio e o grupo dos Manuelinhos, que tanto arrepiava as almas perfumadas a Aramis e vestidas a Rosa & Teixeira que oficiavam na Fundação o Homem e a Obra, começara por ser e, Cento e Quinze, vendo bem, nunca foi mais do que isso, apenas um acto piedoso do padre Nuno Maria, que trouxera o capitão Francisco Manuel para desanuviar entre velhos amigos, depois de convencer o coronel Furtado de que estas saí­das o aliviariam do estado de prostração em que vivia na Casa do Desterro. Mais tarde aparecera o Quevedo, saneado do Insti­tuto Cervantes, dizendo que viera porque siempre le atrairan los preteridos a al a contemplación de la condición humana a través de todo lo que tiene de negativo, a los orosolos harrapos, del proceso de degradación. Y, al fin de tudo, porque Francisco Ma­nuel era un buen hermano, e o Ned Marchmont, saído das bru­mas londrinas com o farol de detective na proa, que é assim que literariamente vejo os ingleses, entre sherlockholmes e navios de piratas. Devo dizer que, depois de passar a frequentar a tertú­lia d'O Ninho do Papagaio e de voltar a beber, tomei conhecimento de uma parte obscura da História, que também nos fez chegar aqui e que me passara ao lado. Eu e os meus amigos e inimigos tínhamos andado a escrever prefácios e posfácios, a dis­cutir quem eram os grandes mortos e os pequenos vivos, a exa­gerar a importância e o perigo de escrever um livro, enquanto os franciscos manuéis, os soares, os Vasconcelos, andavam a matar, a roubar, a trair, a sério, Mano.

Até que, uma madrugada, ao chegar ao apartamento das Amoreiras, o Manuel Costa descobriu que a Deolinda fora mes­mo cantar de vez para o Flamingo Dourado, aliciada pelo Rata dos Cabarés e contratada pelo patrão, chamado João Vicente. Voara com a Ritinha a arrastar as fraldas. Mais uma que fora para o grande raio que as parta, como a Helena, a Irene, a Zé, de que nem se recordava da cara, a Fátima, a Carmo. Se um dia se juntas­sem, todas as mulheres que passaram e desapareceram da vida do Manuel Costa davam para encher uma camioneta de excursão!

Um certo travo na boca do que podiam ser as boas-vindas do fígado ao álcool por aquilo que não fizera e pelo tempo que pas­sara a fazer o que não valia um chavo atormentava-me todas as noites. Já devia estar habituado aos abandonos das mulheres, mas aos setenta anos não é fácil perder mais uma, que em prin­cípio seria a última, Cento e Quinze. Não era o Picasso, nem o Chaplin, que oitententões galaram até as mulheres dos gatos-pingados que lhes fizeram o funeral. Segundo consta.

Não foi, contudo, a perda da Deolinda que fez o Manuel Cos­ta seguir o capitão Francisco Manuel após a morte do cabo Matos, mas a implacável engrenagem de rebaixar as pessoas até as transformar em bonecos de plástico, daqueles que se dobram ao primeiro aperto, ou de destruir as irrecicláveis.

Julgava ele que não havia pior fado do que o da intriga e da traição dos que me obrigavam a escrever para pagar as dívidas e a fazer dívidas para escrever, mas agora o jogo era de vida e de morte.

Num aperto destes, pode um homem, mesmo um homem como eu, Cento e Quinze, avesso a vidas arriscadas, concentrar-se nos problemas familiares, manter-se alheado das preocupa­ções com o se passa à sua volta e fugir com a desculpa de que é cada um por si?

Acontece ainda que, depois da morte do cabo Matos, fiquei completamente só, porque antes de aqui chegar também o Rui Mendonça saiu a correr da minha vida. Felizmente, Mano, donde te escrevo o menos que te digo é que eu e o capitão Francisco Manuel estamos entregues à guarda de gente bondosa. Mas a viagem até cá chegarmos não foi fácil...

 

         Nesta condição me puseram os que não se lem­bram de mim a não ser para me ofenderem.

                                 Francisco Manuel de Melo (Cartas Familiares)

 

                     Retiro por uma noite

Viajar de táxi na madrugada de Lisboa é uma aventura que devia ser registada nos anais dos feitos heróicos ao lado da pas­sagem do cabo das Tormentas numa nau de madeira com o capi­tão bêbado, e o Manuel Costa teve de a viver depois de o Rui Mendonça o abandonar em plena Praça dos Restauradores, aos gritos em falsete:

— Nunca mais te quero ver. Nunca mais!

A separação entre o escritor que fizera da sua vida a história de uma aberração de feira e o secretário da Fundação que explo­rava a feira deu-se na noite em que o grupo d'O Ninho do Papa­gaio passou ao estado gasoso, a meio da colina do Bairro Alto, deixando na Casa do Desterro o corpo do cabo Matos e o capi­tão Francisco Manuel aos cuidados da enfermeira Elsa.

Depois de se apanhar a uma distância do local onde já podia olhar para trás sem o risco de atrair um raio que o transformasse num daqueles blocos de cimento em que os serviços secretos metem os atrevidos antes de os lançarem aos rios, o Rui Men­donça berrou, com o desespero dos escaldados por uma bola de fogo grego, que nem por mais um minuto estaria ao lado de quem convivia nas tabernas com rufiões que chafurdavam nas lixeiras do passado e do presente, para de lá retirarem a porcaria que estampavam em panfletos clandestinos, de quem o arrastara a descobrir mortos em casernas perdidas por causa de umas jóias do tesouro nacional procuradas por traficantes internacionais e, se calhar, nacionais.

— Eu fui para o exílio para não me meter em guerras!

Ouvido o rol das acusações, reconheço que, tal como os jui­zes que me condenavam depois de descrever em pormenor os meus antecedentes, ele tinha alguma razão. Excepto no ponto de eu estar a servir dois senhores! Então não anda toda a gente neste país em duplo e triplo emprego, dos médicos aos polícias, dos padres aos deputados, dos professores às putas? O que ele sofreu foi uma crise de cagaço, não fosse a noitada d'O Ninho do Papa­gaio chegar aos ouvidos dos flamingos, que já o tinham atirado às feras dos tribunais por causa da partilha das comissões dadas ao ministro e só estavam à espera de um pretexto para lhe cor­tarem o salário certinho ao fim do mês. E eu apanhei por tabela com as desculpas tremeliqueiras de um zequinha que o mais peri­goso que fez na vida foi embarcar para a Suécia aos vinte anos, com a viagem paga pelos paizinhos. Já não me deixava ir dormir ao apartamento das galadelas clandestinas na Camilo Castelo Branco, nem me levava às Amoreiras, para onde eu também não iria sozinho. Nessa noite, Mano, tudo menos ficar sozinho, entre­gue aos sonhos com mortos.

O Manuel Costa chamou então um táxi sem saber para onde ia, só para escapar, sem ser violado ou esfaqueado, da fauna da noite que exercia a sua actividade à boca da furna do que já fora o salão do elegante Café Palladium e que tomou os gritos do alto funcionário da Fundação o Homem e a Obra contra o Manuel Costa como uma cena de ciúmes entre dois arrebentas intrusos no seu território.

O Mercedes verde e preto que parou ao seu aflitivo bater de asas quando este se viu só, entre a bicharada da Praça dos Res­tauradores, fazia parte do lote de despojos de guerra abando­nados pela delegação da Gestapo em Lisboa após a derrota da Alemanha. Se não andasse aos solavancos, se não tivesse uma telefonia Blaupunkt que transmitia os ruídos dos Panzers a fugi­rem da Rússia, até para latão do lixo estava em mau estado.

Depois da uma da manhã, Lisboa é uma floresta de fantasmas, Cento e Quinze, eles vêm à superfície e trazem consigo os seus segredos e os seus instrumentos de trabalho. Mas eu topo-os. O chofer deste táxi, por exemplo, que tossia engasgado pelo fumo do gasóleo que vinha do motor, enquanto dava punhadas no volante e trocava a maçaneta das mudanças com a das luzes pisca-pisca, era a alma de um torcionário que ficou sem emprego e que de dia vivia escondido num forte abandonado para os lados da Musgueira.

Reconheci-o quando parou a meio da corrida, na zona do cais de Xabregas e saiu para despejar a bexiga. No regresso, enquanto limpava o carapau mijante às abas da gabardina, perguntou-me com um hálito a vinho de cortar à faca: «Pra onde é que disse que queria ir?», e ao ouvir a súplica feita com os melhores mo­dos que, se possível, gostava de me dirigir à urbanização do Vale do Rio, no extremo norte da antiga exposição mundial, junto aos pilares da ponte da feijoada, respondeu: «Foda-se, com estes faróis não sei se chego lá.»

De dia, dizem-me que os choferes de táxi são polícias de folga, funcionários públicos de baixa, licenciados sem emprego das novas universidades, gente mais ou menos normal, mas de noite, tu fazes ideia, Cento e Quinze, como são recrutados os choferes de táxi que andam à noite em Lisboa? E quem inspec­ciona os semoventes que passam num passe de mágica de belos espadas cor de café com leite para estes chaços imundos? Eu suponho que é assim: os bandos de fantasmas meliantes que anti­gamente andavam na arruaça pelo Bairro Alto saem das tocas ao escurecer e decidem à dentada quem ocupa os lugares ao volante do ferro-velho que não pode ser incinerado porque já não existe siderurgia, quem vai lançar fogo às florestas e quem vai para bombeiro, quem vai para as administrações dos bancos e para os ministérios das finanças, quem vai para as câmaras e para os clubes da bola.

O táxi só tinha um farol, que apesar de ir aceso no máximo, não iluminava grande coisa, mas, como o chofer devia ver a dobrar, talvez conseguissem chegar ao destino. O que funcionava bem era o taxímetro, para onde o Manuel Costa olhava com preocupação crescente, não fosse a corrida ficar-lhe mais cara do que um cruzeiro transatlântico e exceder o valor das notas e moedas que, num rebate de consciência, o Rui Mendonça lhe tinha metido no bolso, quando se despediu dele para sempre, a tremelicar de remorsos e de raiva, quase a chorar. Estou con­vencido, Mano, de que, em caso de falta de meios de pagamento, este gémeo do João Brandão, que no século passado assaltava incautos no Aqueduto das Águas Livres, não teria hesitado um segundo em deitar-me as gadanhas ao pescoço e atirar o meu cadáver ao lodo do Trancão.

Agora que o Rui Mendonça engrossara a longa lista dos que lhe desapareceram da vida, o único refúgio que o Manuel Costa podia encontrar àquela hora era o Centro Antialcoólico do Vale do Rio e era para lá que o táxi se dirigia, rompendo a noite às apalpadelas atrás do seu olho luminoso de arrumador do Coli­seu. Do exterior, os outros utilizadores da via pública deviam tomá-lo por uma moto de baixa cilindrada conduzida por um rufia adolescente em treinos nocturnos, porque, ao aproximarem-se do centro, um carro que seguia em sentido contrário a grande velocidade quase os transformou em papel de embrulho. Valeram os reflexos do fantasma, que já devia ter morrido dezenas de vezes em circunstâncias idênticas.

— Deve-me mais cem pela chicuelina.

Avisou a alma penada com dotes tauromáquicos à chegada ao alpendre do Centro Antialcoólico do Vale do Rio, deitando ao anúncio luminoso um olhar vermelho de inaudita surpresa pela existência de uma casa com a finalidade antipatriótica de impe­dir os bêbados de beber, num país onde os abstémios já foram considerados agentes subversivos. Resmungou:

— Ora esta!

Que fez o Manuel Costa dobrar a gorjeta. Uma medida excep­cional, que produziu o efeito de aumentar a sua indignação e o levou a deixar cair a manápula em cima do ombro do cliente e a atirar-lhe às fuças uma nova rajada de tinto, desta vez gasei­ficado com filosofia:

— Por este caminho, qualquer dia abrem um centro anticató-lico para curar beatas. A um centro desses é que eu achava piada!

Respondi-lhe que até eu, Cento e Quinze, mas não me admi­rava, o país estava uma miséria. «Alguém se atreveria? Foi a revo­lução. Antigamente não se via nada disto.» Pois, antigamente. O que queria era ver-me livre dele.

A Elsa surgiu a espreitar que novo ou velho cliente ali viera cair e recebeu o Manuel Costa com a expressão que ele conhe­cia estampada no rosto dos salvadores quando lhe abriam a porta a horas mortas, um misto de ódio e piedade de quem suspira para dentro era só o que me faltava, mas lhe diz para entrar, perdido por cem, perdido por mil.

A enfermeira ainda não tivera tempo para chorar a morte do pai e não o teria nos tempos mais próximos, porque uns desco­nhecidos haviam tentado assaltar o centro, à procura do capitão Francisco Manuel, e só fugiram porque este recebeu os vultos que tentavam cortar as grades do quarto com dois tiros de pistola.

Felizmente o quarto onde ela o instalara ficava numa ala ain­da não inaugurada e, tirando os cães que ladraram, ninguém mais pareceu incomodar-se com os estampidos. Os assaltos faziam parte do programa nocturno do modernaço bairro da Expo e a polícia só comparecia quando os interlocutores lhe garantiam pelo telefone haver mortos e feridos. Sem sangue nem se davam ao trabalho de sair da esquadra. Se fosse muito, também não, pois havia que chamar o grupo especial, uma tropa deste­mida, mas que demorava bastante tempo a reunir.

Encontrei o Francisco Manuel sentado com um ar de grande serenidade. Se queres que te diga, Cento e Quinze, parecia diver­tido com o que acabara de acontecer. Os olhos brilhavam e a pele adquirira uma cor saudável. A paz dos que conheceram a guerra deve deixá-los assim, tal como eu ficava depois de um engate bem sucedido. Recebeu-me com um aceno.

— Estive tanto tempo sem visitas e você hoje já é a segunda que me vem cumprimentar!

A Elsa deixara-o naquele quarto, mas não lhe apetecia dormir e sentara-se na cadeira a fumar um cigarro. Começara a ouvir ruídos no exterior, um leve assobio de maçarico a cortar as grades. Man­teve o cigarro aceso em cima da mesa de ferro, para não levantar suspeitas no inimigo, e deslizou para a casa de banho à espreita. Viu as sombras no contraluz e puxou duas vezes o gatilho da Savage, a velhinha pistola da ordenança que o seu pai usara na índia.

— Para já, Elsa, estamos a ganhar dois a um.

O capitão Francisco Manuel sorriu e a enfermeira abanou a cabeça com os cabelos soltos, trágica, determinada e apetecível como a Ingrid Bergman a fazer de Joana d'Arc.

A Elsa trouxera o capitão Francisco Manuel depois de conven­cer o coronel Castro Furtado de que ele não podia ficar na Casa do Desterro naquela noite. O coronel só então descobriu que a enfermeira que regularmente levava o capitão Francisco Manuel ao hospital era filha do cabo Matos.

— Ele viveu sempre na ignorância do que se passava à sua volta. Quanto menos soubesse, menos chatices tinha. E enquanto o sargento Inácio lhe garantisse — sem novidade, meu coronel — estava tudo bem...

Dada a relação de parentesco da Elsa com o falecido cabo Matos, que por sua vez tinha o encargo de tomar conta do capi­tão Francisco Manuel, o director do Lar dos Antigos Combatentes anuiu sem dificuldade.

— O Furtado sempre teve o bom critério de julgar o melhor para resolver as dificuldades sem se comprometer. Só não chegou a general por minha causa.

— O coronel estava preocupado consigo.

— Ele estava preocupado era com o funeral do teu pai, com o inquérito, com o relatório que vai ter de fazer, com a mensa­gem para o quartel-general. Para ele, os mortos são problemas administrativos e os vivos problemas disciplinares. Sempre assim foi. E deve ter dito para onde tu me levavas ao primeiro tipo que lhe perguntou.

— Podíamos ter sido seguidos.

— O Furtado é um pobre monárquico que pensou sempre como um cortesão. É um subalterno que se ajoelha e se dobra perante qualquer autoridade!

Mano, aquilo que eu percebi do diálogo entre a Elsa e o Fran­cisco Manuel foi que, enquanto na Casa do Desterro a máquina de transformar os que acabaram de perder a vida em verdadei­ros mortos se punha em movimento, os dois militares esvazia­ram mais um cálice de antigas recriminações mútuas, tendo a enfermeira por testemunha.

— Ele acusou-o, capitão, de não nunca ter entendido que o respeito aos superiores é indispensável, mesmo quando são fracos ou maus, porque são eles que asseguram a ordem e a paz interna. Que obedecer-lhes é honrar as instituições.

— Nunca tive problemas em respeitar os superiores, mesmo os fracos, como o Furtado. Mas quando vejo ladrões continuarem ilesos no seu ofício, fazerem discursos de rectidão e probidade, não posso obedecer-lhes, nem respeitá-los.

— Segundo ele, aqueles a quem acusa de ladrões, acusam-no a si de lhes ter feito desaparecer os tesouros que entregaram à sua guarda.

— O coronel sabe que não é assim, sabe quem quer o que me resta e foi por isso que me recordou o conselho que me deu há muitos anos de os deixar enfeitarem-se com os louros que não lhes pertencem, porque têm o poder de violar todas as regras sem serem incomodados.

— E que resposta lhe deu na altura?

— A mesma que hoje, que não tinha nem tenho medo deles!

— Hoje o capitão é um derrotado, sem direitos nem poder.

— Enganas-te, tal como o Furtado, que nunca percebeu nada da guerra de África e acreditava que conquistávamos os negros que fazíamos prisioneiros. Lá, como aqui, só vencemos os que matámos. Esses que me perseguem sabem que é assim, porque já me tentaram comprar e tiveram de me prender.

— Não há alternativa?

— A alternativa é um acordo entre iguais. Tenho as últimas coisas que eles querem...

— O tal Diamante Azul que o levou a colocar as duas mãos sobre os ombros mirrados do coronel e a perguntar-lhe se ele estava tão aborrecido neste ruim mundo que não se importava de se retirar dele antes do toque de ordem, quando ele quis saber se era isso que procuravam na Casa do Desterro?

O capitão Francisco Manuel sorriu, como fizera quando o sar­gento Inácio interrompera a conversa e se apresentara com o gar­bo possível num pigmeu maneta, só com um olho e com a metade esquerda do crânio deformada, para anunciar que o médico acabara de chegar para as diligências que iriam transformar o cabo Matos num defunto com direito a uma salva de cinco tiros no momento do enterro.

O coronel Furtado despedira-se da enfermeira, pedindo-lhe que tratasse do capitão Francisco Manuel até encontrar um outro auxiliar para o acompanhar, mas deixara-se ficar um momento nos umbrais da porta antes de perguntar se ela não saberia, por acaso, onde estariam os objectos pessoais dele, e pareceu alivia­do com a resposta negativa da Elsa.

— Podemos então assentar que ou não os possuía, ou que jamais aqui estiveram.

No quarto branco e frio do Centro Antialcoólico do Vale do Rio, estávamos os três naquele tipo de situação de reconheci­mento do facto, de consumatum est, por um lado, e sem prever os próximos lances, pelo outro. Digamos, Cento e Quinze, que estávamos aturdidos pelo abismo que se cavara à nossa volta.

O capitão, depois da excitação momentânea provocada pela recordação da conversa com o coronel Furtado, voltara a cair um estado de estupor e mordia os lábios num tique de nervoso iudinho que o consumia por dentro, mas eu, que só apanharaoazar esta nau parada à espera de vento, rebentava se a Elsa não tivesse perguntado ao Francisco Manuel, rompendo o silên­cio que já se tornara mais do que insuportável:

— Quem é que matou o meu pai?

Ele despertou com um salto, levantou os braços com a impo­nência de um tribuno que vai arengar às massas para declarar com uma voz de barítono que ecoou nos corredores, que foram três os assassinos que mataram o cabo Matos:

— O ódio ao que represento, a vingança do que fiz e a ambi­ção do que me resta! O médico que vai assinar a certidão de óbito pode escrever que a causa da morte do cabo Matos foi o capitão Francisco Manuel, os juizes podem acusar o capitão Francisco Manuel, os escritores que um dia contarem esta histó­ria podem escrever que todas as mortes que ocorreram podem ser atribuídas a um homem que visou sempre mais alto, mas hão-de escrever também que por detrás de todas elas estiveram sempre as mãos do mesmo mandante!

O capitão Francisco Manuel não era peco a tratar de si. E eu, Cento e Quinze, que nunca quis matar ninguém (às vezes bem me apeteceu), que nunca fiz mais do que implicar os meus piores inimigos, que os tenho, nas minhas paródias!

A Elsa acalmou a fúria do capitão com um afago, que é o que as mulheres têm de melhor para dar nestes casos.

Por mim, Cento e Quinze, precisava de álcool, nem que fosse puro, do que faz arder as feridas, que dói mas cura. Mas esse era um produto tão difícil de encontrar neste centro antialcoó­lico como uma virgem com um filho. Um milagre que só o Rata dos Cabarés, nos seus melhores tempos, conseguia realizar a pedido de alguns saloios endinheirados. Um milagre caro, que exigia tripa de cabra e os serviços especializados de uma abortadeira.

Tive de contentar-me com um cigarro cravado ao Francisco Manuel, que continuava a fumar com a calma dos turistas senta­dos numa esplanada a gozar uns momentos de repouso, sem imaginarem os perigos que os rodeiam, de carteiristas à espera de uma distracção, de criados preparados para acrescentarem uns zeros nas contas, de comerciantes que lhes vão vender genuí­nas rendas de bilros feitas na China.

O Francisco Manuel tinha o dom das estrelas, de estarem muito longe e de atraírem quem passasse por perto para a sua órbita. Era uma estrela bastante maltratada, que brilhava menos do que julga­va, mas mais do que queriam os muitos inimigos que pretendiam trans­formá-la num buraco negro. Mas era uma estrela, mesmo a sonhar.

A Elsa trouxe-o à terra.

— Agora que eles sabem que está aqui, este lugar deixou de ser seguro e as suas coisas também correm perigo.

— Eles não hão-de saber quem as tem.

— Eles agora sabem da minha relação consigo.

— Eu sou a herança do teu pai. Tu és parecida com ele e eu sou tão mau dote para ti como fui mau chefe para ele.

— Orgulho-me de tudo o que vem dele.

A Elsa passou as mãos pelos cabelos e, como era daquelas mulheres que rejuvenescem com um gesto, parecia incrivelmente fresca. A luz cinzenta anunciava o dia chuvoso que iria começar e com ele a chegada das mulheres da limpeza, umas alcoviteiras, dos funcionários do centro, dos enfermeiros e auxiliares, vindos do duplo emprego das clínicas privadas, dos médicos, que, se viessem, viriam mais tarde, e antes que todos nos encontrassem ali enclandestinados havia que encontrar um refúgio mais seguro para nós e menos comprometedor para ela. A Elsa tinha tudo decidido.

— Vou levá-los a casa do padre Nuno Maria. As suas coisas, capitão Francisco Manuel, ficam aqui, por agora, mas temos de encontrar um local mais seguro.

Subiu-me então, Cento e Quinze, um repentino ataque de energia. Com a melhor das intenções, é claro, e como prova do reconhecimento pelo asilo que me estavam a dar ofereci o meu Paulocas para transportador dos bens do capitão Francisco Ma­nuel. O rapaz agora trabalhava para uma empresa de levar pizas ao domicilio e não lhe seria difícil meter as coisas entre as bola­chas gigantes borradas a pasta de tomate. Desde que tivesse o cuidado de não misturar os papéis com alguma das mais mal-cheirosas, nem das que largam queijo derretido...

Envolvi inconscientemente o Paulocas na maldição do Dia­mante Azul, Mano, porque tenho um instinto infalível que me leva a escolher as soluções catastróficas! Se trabalhasse no teatro, seria o figurante que molha os fósforos e obriga o actor principal a dizer, na cena decisiva, que lhe cheira a papel rasgado! Feliz­mente somos poucos a saber da minha intervenção na aventura do Diamante Azul e ninguém me considera responsável pelo que lhe aconteceu. Como os historiadores detestam tanto o acaso como os espontâneos, nunca verei o meu nome inscrito neste episódio da nossa História.

Do que não escapei foi de entrar de noviço aos setenta anos, quase como o Nun'Álvares Pereira!

Do lado de lá do Mar da Palha, começava a surgir a ténue luminosidade que indica aos fantasmas da noite de Lisboa, como o chofer do táxi que me trouxera ao centro antialcoólico, que chegou a hora de guardarem os andrajos e de se mascararem de europeus de lei, com um pratinho de flocos de aveia ao pequeno-almoço e uma besuntadela de desodorizante nos sovacos para se apresentarem ao serviço diurno, e eu devia preparar-me para a viagem até à casa paroquial da igreja matriz de Agualva-Cacém.

Com um currículo de anos de cadeia, dívidas, palhaçadas sem conta, a família estuporada, aldrabices e coisas inenarráveis, com uns duzentos mil copos de tinto, nunca pensei, Mano, que a retribuição pelo favor que o Rui Mendonça (paz à sua alma) me fizera de me acolher no seu apartamento dos engates e de ter vindo acordar-me depois da bebedeira que apanhei com o Fran­cisco Manuel n'O Ninho do Papagaio, e assim contribuir o melhor que podia para ele desanuviar das preocupações que o afligiam, se embrulhasse desta maneira, com um morto, uma fuga, ódios antigos, até um misterioso Diamante Azul, de que nunca ouvira falar, e me fizesse acolher nas instalações da Santa Madre Igreja, emparceirado com um perseguido por assassínios, amores e revo­luções!

 

         Era cosa fácil livrarse de la guerra, pêro es impossible livrarse de la paz, sobre todo de esta paz que, abrindo de par en par el Continente, va a suscitar tre­mendos vendavales históricos.

                                                       OrtegaoCasset

 

                     As altercações de Évora

A manhã do chuvoso e cinzento dia de Novembro em que a enfermeira Elsa transportava o Francisco Manuel e o Manuel Costa no seu utilitário sem pedigree introduziu-os, logo à saída da primeira rotunda da urbanização da antiga Expo, nas colu­nas de viaturas ligeiras, pesadas e assim-assim que se arrasta­vam mergulhadas em fumos e buzinadelas, tentando alcançar Lisboa.

A viagem entre o Centro Antialcoólico do Vale do Rio e a casa paroquial do padre Nuno Maria, em Agualva-Cacém, confrontou o trio em busca de novo refúgio com a amarga realidade mati­nal dos suburbanos que diariamente se apresentam às portas da cidade pelas vias que os engenheiros e outros reputados técnicos de acessibilidades classificaram como rápidas, circulares e itine­rários complementares.

A Elsa tentava furar pelos interstícios dessa massa articulada, em ziguezagues arriscados entre os pneus e os pára-choques dos camiões, respondendo com vigor às ameaças dos outros deses­perados.

— É todos os dias a mesma coisa.

— Porque vem esta gente toda ao mesmo tempo?

O Francisco Manuel seguia como um desajeitado corpo estra­nho ao lado da enfermeira, pois o longo tempo que passara fora da vida activa não só lhe retirara o à-vontade para ocupar descontrai-damente um banco de automóvel, como o impedira de acompa­nhar o progresso da sociedade portuguesa entretanto ocorrido, com a transformação dos rurais em empregados por conta de outrem, das estradas em auto-estradas e do bom-dia em foda-se.

— Só melhora de noite, mas há o perigo dos assaltos, dos bêbados que vêm em contramão, e, se tenho uma avaria, ninguém pára para me ajudar.

— Porque não compras um carro novo?

— Porque sou a única que trabalho no centro antialcoólico em dedicação exclusiva e eles pagam uma miséria, a contar com o que todos os médicos e enfermeiros ganhem na privada.

A recompensa pela fidelidade ao serviço público era um carrito em segunda mão, com o motor a tossicar e o aquecimento ava­riado. Felizmente, o Francisco Manuel vinha embrulhado no seu capote e o Manuel Costa trazia a gabardina tão sebenta que se tor­nara impermeável depois de um período em que perdera essa característica originária. Como também não tinham bagagem, a situação no interior era melhor do que se fossem num jipe da tropa.

— Numa coluna para Nangololo, ou foi para Nambuangon-go? O teu pai é que devia saber...

A enfermeira colocou a mão no braço do Francisco Manuel a mandá-lo calar. Tinha de mudar de direcção e precisava de toda a coragem para realizar a arriscada a manobra de se atraves­sar à frente daquele exército blindado.

— Desta já nos safámos. Agora entramos no reino dos cons­trutores civis, a caminho de Sintra, e vamos em contracorrente.

Só ela é que conseguia orientar-se naquele labirinto tão complexo como o universo na altura em que explodiu, antes de Deus demorar uma semana a organizar o caos, e o Manuel Costa, repimpado e macambúzio no banco traseiro da nave espacial, limpou o vidro embaciado só para não perder o contacto com a terra.

«O Concelho da Amadora Saúda-vos!»

Se aquilo que observava, à minha direita e à minha esquerda, através da janela translúcida do vapor da respiração era a obra dos construtores civis nos arredores e extremas da capital, apesar da minha civilidade militante, eu queria ser engenheiro militar. Palavra, Cento e Quinze, para aprender a trabalhar com explosi­vos, minas, bombas de mil quilos e rebentar com aquilo tudo!

O Francisco Manuel apreciava a obra que resultara da vitória dos que o perseguiam com um sorriso de vingança impotente, coçando o queixo de incredulidade. Urbanizações de caixotes com empenas tortas encarrapitadas nos montes, viadutos apinha­dos de automóveis, armazéns, depósitos de sucata, desfilavam atrás de uma faixa de plástico que acenava à multidão, avisando: «Reboleira Cidade Jardim!» Alguns dos autores e simples candi­datos ainda se exibiam em cartazes com as fotografias gigantes a rir para o pagode, com o orgulho estampado pelo trabalho feito, ou prometido.

Na tabuleta seguinte, «O Concelho de Sintra Saúda-vos!» amea­çava os passantes, que lhe podiam responder: os que aqui vivem e aqui vão morrer te saúdam! Ave Caeser, morituri te salutant!

Deviam estar perto da paróquia de Agualva-Cacém. Ao longe a silhueta de castelo de fadas de Sintra avisava que depois era o mar e dali nem os construtores civis e os camarários passavam! Atravessaram um bairro identificado como Monte Abraão, donde os pastores que se perderam à saída da Mesopotâmia em busca da Terra Prometida enviavam sinais ao patriarca fundador da tribo para os vir retirar. Os coitados andavam encaracoladamente num engarrafamento à volta de um mercado todo de chapa metálica com o honesto e esclarecedor nome de Feira Nova.

A partir do Feira Nova ficaram por sua conta. A Elsa abriu o vidro do carro e perguntou a quem passava pela casa paroquial. Alguns, pelo ar de espanto, nem faziam ideia que já existisse a religião a que o velho Abraão dera origem, quanto mais organi­zada em paróquias! Dos mais prestáveis, uns respondiam que devia ser para os lados de Agualva, outros do Cacém. Todos a alijar responsabilidades. Haviam caído numa terra-de-ninguém, um local sempre perigoso e do qual havia que sair rapidamente.

— Em África tínhamos mapas para nos orientar.

— Isto não é África, capitão.

— Talvez perguntando na Polícia...

A minha proposta era duplamente disparatada, Cento e Quin­ze, mas eu tinha fome, frio e sede. Se andávamos fugidos, não podíamos ir à Polícia, e depois também não havia esquadra de Polícia, mas, segundo informou um indígena mesopotâmico, um posto da Guarda Republicana, num descampado a caminho de Mafra e não nos aconselhava a lá ir. Os ciganos tinham-lhes rou­bado os cavalos e eles ainda estavam na fase em que não recebiam estranhos, antes se defendiam, de armas aperreadas a espreitar pelas frinchas das janelas, de todos os que se aproxi­mavam.

A Elsa olhava para o relógio, a manhã já estava perdida, para o indicador da gasolina, a descer, para a temperatura do carro, a subir. Embora a perspectiva de nunca mais sairmos daquele ter­ritório de pagãos não fosse agradável e a de voltarmos ao ponto de partida fosse pior, a situação apresentava a vantagem de, uma vez chegados à casa paroquial, nunca mais sermos encontrados. Que é o maior desejo de qualquer perseguido.

A salvação veio, como é costume, donde menos a esperamos. A Elsa perguntou a um jovem negro, ou africano, ou lá como agora é politicamente correcto chamar-lhes, que ouvia música com um grupo de amigos à chuva, a baterem as mãos para se aquecerem, onde era a igreja e não é que o moço sabia! Sabia mesmo o nome do padre — Nuno Maria, um bacano, meus! — e estava disposto a guiar-nos, se lhe déssemos uma boleia.

Entrou ele e entraram os amigos. Refilaram por o carro não ter aquecimento, mas como íamos apertados uns contra os outros essa falta remediou-se e, quanto a mim, Cento e Quinze, até senti algum conforto no contacto com aqueles corpos jovens, de cheiro forte.

Com um deles ao colo, já a perceber o que eu queria e a remexer-se num belo jogo de rins, chegámos finalmente à resi­dência onde o padre Nuno Maria exercia o seu múnus sacer­dotal. Se isto quer dizer salvar almas, ele tinha trabalho até à eternidade e não corria o risco de o patrão de quem dependia o despedir.

Mas era precisamente a intenção do patriarca de Lisboa de dispensar os serviços do padre Nuno Maria a razão pela qual estava a ser substituído nessa função protocolar pelo es­panhol Quevedo, que veio à porta da casa paroquial aco­lher os refugiados com a pose majestática de frequentador habitual.

— Eu vos envio muito saludar.

Ignoraram o português um pouco arcaico, porque já lhes dava basta alegria terem alcançado o destino após três horas de via­gem. Os jovens africanos seguiram o seu caminho (com alguma pena da minha parte), dissolvendo-se na pequena multidão de negras com os filhos às costas e negros com gorros de lã na cabeça e tatuagens na cara que se encontravam sentados naquilo que noutras igrejas se chama o adro e que eu fiquei com a ideia de ser um bazar tropical.

O Francisco Manuel comentou que estar sentado à espera é um costume muito arreigado nos africanos, que em Angola e em Moçambique esperavam um dia inteiro pelo comboio que havia de vir. E que na Guiné, embora não houvesse caminhos de ferro, eles também mantinham essa atitude a aguardar a chegada do Spínola, que tinha os horários dos comboios das outras colónias e nunca se sabia quando aterrava numa tabanca para lhes prome­ter chapas de zinco destinadas a forrar as palhotas ou espingardas para servirem nas milícias locais.

Nem esta dissertação nem a chegada dos foragidos fez o Ned Marchmont desviar a atenção da garrafa de vinho e de um prato, com aquilo que pareciam as papas de linhaça de aliviar os males do peito na minha infância, que tinha diante de si.

— Moamba. Uma maravilha, querem provar?

O Francisco Manuel negou terminantemente, a Elsa engelhou o nariz afinado para temperos alentejanos e eu, sempre lambareiro (se já comi papas de Nestogénio para bebés, tirado da boca dos meus filhos!), aceitei uma garfada, a titulo de boas-vindas. Soube-me a cola de cartazes. Se colasse as tripas tinha o meu problema de alimentação resolvido. Deve ser por esta visão economicista que a receita é tão popular em África, Cento e Quinze.

O espanhol passou então a justificar a ausência do titular daquela sede eclesiástica com mais uma maldade dos jornalistas e olhou para o inglês, que lambia a perna azeitada e averme­lhada de uma galinha.

— Óleo de déndém, uma maravilha.

O Jornal de Sintra, órgão da imprensa regionalista, feudo da burguesia tradicional, glória da terra, como as queijadas e o Hoquey Club onde jogou o famoso Raio, campeão do mundo da sticada, publicara na edição de domingo um artigo de fundo sobre a paróquia de Agualva-Cacém, no qual a igreja dirigida pelo padre Nuno Maria era classificada como uma sanzala onde os bons cristãos não se reconheciam nos rituais do culto. As mis­sas eram acompanhadas por cânticos em crioulo e outras línguas de cafres, as imagens de alguns santos lembravam ídolos negros, os funerais tinham choro de mulheres velhas com turbantes e missangas, nos velórios a família dos mortos servia cachaça e os casamentos metiam danças de batuque pela noite dentro.

O padre Nuno Maria era acusado de frequentar tabernas, de ter em casa uma mulata para todo o serviço, de conviver com prostitutas, ladrões e outros criminosos, de acarinhar e atrair estran­geiros clandestinos e de descurar e até maltratar os filhos da terra. Em nota de fim de prosa, como quem não quer a coisa, o veneno mortal da denúncia: o pároco possuía, no maior segredo, uma casa no Alentejo, o Monte da Braveza, poiso dos últimos abencerragens da defunta revolução e talvez coito de terroristas internacionais. Uma comissão de bons católicos entregara um abaixo-assinado pedindo a sua excelência reverendíssima o cardeal-patriarca a transferência para uma paróquia mais adequada às práticas do padre Nuno Maria.

O sujeito destes predicados chegou a meio da tarde, a barafus­tar, seguido por um bando de crianças barulhentas e tão encar­didas que não se lhes distinguia a cor original da pele, nem o encaracolar do cabelo.

Atirou a capa alentejana encharcada para cima de um banco, tirou a boina, mandou as crianças irem ver se ele estava lá fora, deu um beijo à Elsa e sentou-se na cabeceira da mesa. Respirou fundo, olhou o Manuel Costa com uma caridade franciscana, bebeu os dois copos de vinho que a mulata risonha lhe serviu sem intervalo, e que eram a dose primordial de libertação da língua, e passou às notícias, comunicando à Elsa que falara com o coronel Furtado.

— O funeral do teu pai é amanhã, para o talhão dos comba­tentes. Na autópsia, concluíram que a morte foi causada por uma insuficiência respiratória. Nem quiseram ouvir falar na hipótese de assassínio.

Com esta morte, Cento e Quinze, descobri como nas guerras, tanto nas mais sujas como nas que se dizem limpas, que as buro­cracias militares e as justiças civis se aliam e cultivam desculpas macabras para os actos ignóbeis. Descobri-o quando o Quevedo lembrou que, durante a guerra civil espanhola, antes de os con­denados serem conduzidos ao paredão de fuzilamento, os carce­reiros lhes introduziam no bolso un acta de defúncion, um papel com dos dados biográficos e a causa da futura morte, resumida na palavra: hemorragia.

— Eu hei-de descobrir quem o matou.

— Havemos todos. Sou eu que vou fazer o funeral e pensa­remos nisso a seguir. Uma coisa de cada vez. Quanto ao Francis­co Manuel, o coronel dispensou-o de estar presente na cerimónia.

— Sempre medroso.

— Era uma imprudência que os seus inimigos podiam apro­veitar.

— Só sei que eles são uns velhos velhacos e que vocês me tomam como alguém que têm em bem pouca conta. Que hei-de fazer?

— Há momentos em que nos devemos esconder e outros em que nos devemos revelar.

— Beba e esqueça.

Francisco Manuel resignou-se. Que mais lhe restava? O padre Nuno Maria tinha notícias piores, que também o afectavam:

— O Patriarcado vem cá fazer uma inspecção para a semana e até lá temos de encontrar um local seguro para o Francisco Manuel.

A ideia do padre era enviar o capitão para a sua casa do Alen­tejo. Uma antiga propriedade que se encontrava há mais de tre­zentos anos na família e que ele ainda não ganhara coragem para entregar aos sobrinhos.

— Quem lá está agora a tomar conta daquilo são o Sesinando Rodrigues e o João Barradas.

O Francisco Manuel começou a sair da letargia conformada em que se mantinha quando o padre iniciou a explicação das razões que levavam o Miguel Vasconcelos a perseguir os dois alentejanos tanto na justiça como fora dela, acusando-os de responsáveis pela destruição da casa da Praça do Giraldo que fora do seu pai, Pedro Barbosa, governador civil da cidade durante as altercações que ocorreram na capital do Alentejo nos anos de mil novecentos e setenta e quatro e setenta e cinco, exigindo agora aos antigos cabecilhas dos inquietos de Évora, que amotinaram a população para se oporem aos antigos proprietários de terras, as indemniza­ções a que se julgava com direito após as demoradas partilhas da herança entre irmãos e irmãs, filhos legítimos e ilegítimos, agora todos com os mesmos direitos, que o patriarca espalhara a esmo.

— Que justiça é esta que exerce o seu zelo contra os fracos por acções passadas há mais de trinta anos e deixa de fora as bizarrias cometidas pelos fortes ainda ontem? Que vingança é esta que exerce contra eles os rigores da mais desenfreada tirania?

O Nuno Maria molhou de novo o bico, elevando o copo aos céus, e todos os presentes acompanharam o gesto litúrgico em que os padres são especialistas. Dera abrigo ao Sesinando Rodri­gues e ao João Barradas para os livrar das contrafés que o Miguel Vasconcelos conseguira dos tribunais para que apresentassem bens à penhora e das pancadas dos esbirros que recrutara.

— Padre Nuno Maria, é melhor começar a história pelo princípio para este franquista do Quevedo perceber alguma coisa.

Em resposta ao pedido do Ned Marchmont, o padre deu duas voltas com a mão pela cabeça, num tique que indicava uma longa e complicada tarefa pela frente.

A notícia de que as gentes do Alentejo já não estavam confor­mes com a antiga norma, que estabelecia para os grandes o desti­no inexorável da posse dos bens terrenos e das esperanças transcendentes e para o povo a função comezinha de arrotearem os campos e servirem nas mesnadas e nos ranchos, levou o gover­nador Pedro Barbosa, pai do Miguel Vasconcelos, a pedir instru­ções ao Governo em Lisboa.

Este dividiu-se em duas facções, a dos indignados, que propu­nham o uso da força para dominar o povo, e a dos que duvida­vam da solução e advogavam o diálogo.

— Hawks and doves. De umas vezes os falcões, de outras as pombas.

Num primeiro tempo, venceram os que propunham negocia­ções, argumentando que parecia mal o país apresentar-se a bater à porta da Europa com um bando de agrários a chorar as terras ocupadas e cargas de polícia a malhar nas costas magras da populaça a passar nos noticiários. E, quanto à repressão, havia ainda um forte contra, pois a tropa perdera o respeito aos oficiais e a maioria havia sido licenciada.

Pareceu-lhes então que poderia ser a propósito mandar al­guém tentar deitar água naquela fervura, mas a escolha do negociador sofreu as mesmas dificuldades que a dos ratos da fábula para encontrar um dos da sua espécie que fosse colocar o guizo no pescoço do gato malvado.

Como os políticos profissionais, consagrados e aprendizes, saltaram logo fora do trabalho incerto, restava encontrar alguém no grupo dos indiferenciados que dão jeito nos apertos e a que os militares chamam de serviço geral e os civis classificam de independentes. Contudo, mesmo entre esta espécie de sacristães ecuménicos não foi fácil encontrar um voluntário para o sacri­fício.

O primeiro que saiu na rifa, e nesses tempos muitas nomea­ções foram feitas numa tômbola, foi um jovem com muita lábia, que estagiara no escritório do Diogo Soares sem chegar a receber a carta patente de advogado porque o prenderam por desacatos e bebedeiras, mas que depois da revolução ganhara uma certa notoriedade democrática quando apareceu como defensor gracioso da mulher que se despiu completamente na praça do Rossio para afirmar o direito à liberdade e que considerou uma opressão fascista a capa que um envergonhado polícia lhe atirou para cima do corpo.

O jovem não tinha nada a perder com a ida a Évora, mas os alentejanos recambiaram-no à procedência, pois do que menos precisavam era de quem os defendesse por andarem nus no Rossio. Voltou o moço triste e queixoso com o desprezo com que o trataram e perdeu o Diogo Soares uma hipótese de sócio pro­gressista.

O segundo enviado para aquietar os inquietos de Évora partiu indigitado pelo Miguel Vasconcelos. O que, só por ser ele quem era, já não prenunciava bom sucesso. O resto do currículo ainda ajudava menos. Um engenheiro mecânico que conhecia o Alen­tejo por ter há uns anos participado numa prova com jipes de todo-o-terreno que atravessaram a região como se ela fosse um deserto de África, e os Alentejanos ainda se lembravam dessa coluna de doidos de Lisboa que não tinham mais nada que fazer senão andar de carro por fora das estradas, a levantar pó e a espantar os animais, quando do que precisavam era de caminhos sem buracos e de terras semeadas. O engenheiro nem foi rece­bido. Barraram-lhe a entrada às portas da cidade com uns pneus abandonados nesse safari.

O padre Nuno Maria apenas soube destes antecedentes quan­do foi chamado ao Patriarcado, à espera de ouvir mais uma admoestação evangélica mandada dar pelo cardeal e, em vez da reprimenda, recebeu ordem do bispo auxiliar para se apresentar no Ministério da Agricultura.

Saiu do Patriarcado directamente para a paragem, no Campo dos Mártires da Pátria, do eléctrico da carreira Estrela-Gomes Frei­re e apeou-se no Terreiro do Paço com menos conhecimentos da topografia dos ministérios do que as pombas e as gaivotas que disputam a estátua do D. José para poleiro. Perguntou pelo Minis­tério da Agricultura a um polícia de farda enxovalhada que se encontrava meio escondido atrás das colunas das arcadas e rece­beu dele um grunhido e um vago gesto a indicar a direcção da ala poente, onde acampava uma pequena multidão com carta­zes, bandeiras, cestos e garrafões.

Esse auxílio bastou para ele chegar à porta fechada que uma placa envergonhada anunciava como Ministério da Agricultura e Pescas e Secretaria de Estado do Desenvolvimento Rural e das Florestas. Tocou à campainha e o rosto de um velho de barba por fazer apareceu ao postigo a perguntar quem era e ao que vinha. Quando se identificou, puxaram-no rapidamente para dentro como se fosse o último dos membros da guarnição sitiada que conseguira escapar à perseguição do inimigo.

Entrou no ministério às dez da manhã e um contínuo com rosto de casca de noz, a arrastar-se de reumatismo e da idade, conduziu-o ao gabinete do ministro, mandando-o sentar e aguardar.

— Esperei até ao meio-dia e, quando julgava que me vinha oferecer o almoço, o mesmo funcionário que devia ter entrado ao serviço no tempo da conquista do Alentejo aos mouros abriu uma porta e fez-me sinal para avançar.

O ministro andava pelo gabinete com a agitação de um mos­cardo, a gravata dançava no colarinho da camisa, triste como uma bandeira esquecida no mastro. Fumava vários cigarros ao mesmo tempo. Um entre os dedos, outro a arder no cinzeiro, outro meio apagado em cima da secretária. Ao ver o padre, veio recebê-lo com uns salamaleques exagerados, tratando-o aleatoriamente por vossa reverência, eminência, senhor padre. Via-se logo que não percebia do protocolo da Igreja nem o mínimo que as crianças baptizadas aprendem na catequese para a primeira comunhão.

— Estava como eu quando entrei num quartel para fazer o ser­viço militar e não distinguia um cabo dum coronel. Na dúvida, fazia uma bela continência a todo o tipo fardado que tivesse qualquer distintivo em cima dos ombros.

O homem, que se dedicara a estudar as causas do atraso desta terra de milagres e lembrava o Lenine que enchia as paredes de Lisboa pintado a vermelho sobre um fundo amarelo, começou por pedir desculpa pelo atraso, mas estivera toda a noite em reuniões inconclusivas, umas com os camponeses alentejanos que os levassem a acreditar que haveria uma reforma agrária e outras a acalmar os agrários, garantindo-lhes que não perderiam as suas terras.

No meio do fumo que enchia o gabinete com uma névoa de esperar o D. Sebastião, o ministro explicou que era engenheiro agrónomo, mas que uma reforma agrária não era uma questão de agricultura, mas sim de posse, de propriedade, de poder e, ao dizer isto, a sua voz subia num crescendo de irritação. Por isso, tanto podia ser ele a estar ali como o electricista seu colega no ministério da Saúde, o advogado especialista em heranças e divór­cios que deu em ministro das Finanças, ou o engenheiro ministro da Economia. Fora dentro deste princípio, de que não é neces­sário ser especialista na matéria para tratar de assuntos decisivos, que aceitara a proposta de um padre ir a Évora parlamentar.

— «Os reis antigamente também curavam os males do povo pondo-lhe a mão na cabeça. O que era considerado muito eficaz na cura das escrófulas», disse-me ele, desalentado, antes de me informar que quem sugerira o meu nome para esta tentativa junto dos camponeses ocupantes de terras tinha sido o seu secretário de Estado, o doutor Diogo Soares.

Depois de dizer esta estranha verdade, arregalou os olhos e fixou-os no Nuno Maria, que aliás não parecia padre, porque nem tivera tempo de mudar de fato e seguira para a entrevista de calças de ganga e camisola de gola alta debaixo de um casaco grande como um gibão.

— Na minha primeira entrevista com um membro do Governo, calhou-me logo um tipo tão maldisposto com os poderes cons­tituídos quanto eu!

Em resumo, o padre Nuno Maria foi escolhido para árbitro por­que não encontraram outro bem-aventurado mais bem nascido para parlamentar. Era alentejano, mas também um homem da Igreja, estivera na guerra, mas acompanhara os militares que fize­ram a revolução, a família era abastada, mas não latifundiária, considerada liberal, mas não comunista, o cardeal de Lisboa não o queria a fazer sermões nas paróquias urbanas, nem sabia que destino lhe dar, e o Nuno Maria aceitou a incumbência que outros mais prudentes recusaram.

Do gabinete do ministro o padre passou ao do secretário de Estado, que o recebeu primorosamente, falando com voz mansa sobre assuntos gerais, sussurrando-lhe a importância da sua missão para uma tarefa fundamental: alterar a correlação de for­ças. No final, deu-lhe uma carta para entregar na tesouraria a fim de levantar o dinheiro das ajudas de custo.

O padre Nuno Maria foi despachado para aquietar os inquie­tos de Évora, levando apenas as orientações verbais, para que tudo se fizesse de forma a ter bom final, mas sem nenhuma ordem escrita, porque assim é mais fácil ao mandante apoiar ou esquecer o acordado, consoante os efeitos obtidos pelo arbitrista lhe sejam ou não convenientes.

Ingénuo foi o menos que lhe chamaram mais tarde, pois, mal chegado a Évora, o padre Nuno Maria começou a agir conforme o seu entendimento e não conforme o espírito de quem o mandou.

Os chefes dos camponeses, o Sesinando Rodrigues e o João Barradas, vieram ouvir o que tinha para lhes dizer e nem que­riam acreditar no que as suas orelhas escutaram daquele padre sem cabeção, guedelhudo, que se sentava com eles à mesa da taberna do Evaristo.

— A propriedade é a causa de todos os pecados e, como todos somos pecadores, o mais pobre dos homens possui o mesmo direito à terra quanto o mais rico!

Os dois alentejanos não precisavam de ser homens de sa­cristia para perceberem que lhes havia saído uma carta fora do baralho. O João Barradas, o mais novo dos dois, que havia sido expedicionário nas campanhas de Angola e conhecia a má fama dos capelães militares, retorquiu que o problema dos padres é dizerem sempre a cada classe o que cada uma quer ouvir.

— Se defendemos as coisas da forma que elas estão estabe­lecidas, pensam que falamos a favor do estado actual, se dizemos o que pensamos, julgam que os estamos a ludibriar!

O Sesinando, mais prático, propôs que tratassem dos assun­tos e o primeiro deles era parar com as acusações aos ocupantes das terras. O padre ouviu os argumentos e, passadas as primeiras razões dos tribunos da plebe, tomou a decisão de os absolver de todos os processos.

— Em nome de quem me enviou, estão livres dessas acusa­ções.

— Viva la huelga de proletários!

À roda da mesa da casa paroquial, a proclamação do Quevedo foi acompanhada pelo bater dos copos, numa viva celebração desses tempos idos.

Apesar dos poderes para perdoar de que o Nuno Maria se investira, como as perturbações eram tantas e os interesses tão contraditórios entre as partes envolvidas, ele sugeriu-lhes que, para remediar alguns males e evitar outros, conviria que o Sesi­nando e o João Barradas escolhessem em nome do povo algumas terras para entregar, que bastassem para satisfazer alguns proprietários mais assanhados. Uma proposta recebida com suspeição pelos dois tribunos, que pediram tempo para ouvir a opinião dos seus comités.

Vieram para segunda reunião de pé atrás contra os largos poderes do enviado, com os estranhos negócios que lhes propu­nha e ainda mais desconfiados com as promessas de indulgên­cias, estranhando a distância que as autoridades de Évora haviam tomado relativamente às suas acções. Não seria essa uma prova do engano a que estavam a ser conduzidos? Pois se havia repre­sentantes do Governo na cidade, porque se fora buscar a Lisboa outra pessoa para esse efeito? E logo um padre!

— É, nem maus nos aturam, nem bons nos estimam!

O governador Pedro Barbosa enviou para Lisboa um relatório a descrever os indecentes perdões e as mancomunações do padre com os sublevados, e este foi chamado de urgência pelo Diogo Soares, com a ordem para que deixasse tudo nos termos em que estava e regressasse. As novas ordens eram que o governador de Évora prosseguisse a tratar os assuntos da forma que vinha fazendo até à chegada do enviado.

— Derrotados os brandos, os fortes decidiram usar a força. Hawks after doves.

O Francisco Manuel reconheceu que lhe coube desempenhar o papel do falcão no início do seu envolvimento na reforma agrá­ria, o que iria acentuar o seu descrédito e expô-lo ainda mais à desafeição dos que não suportavam a sua independência, nem a arrogância de os tratar por tu.

Sem o cabo Matos para o coadjuvar, o capitão esquecera as falhas de memória que, como eu desconfiava, Cento e Quinze, lhe serviram apenas para atenuar os rigores do cumprimento da pena a que fora condenado. À força de se fazer passar por esque­cido, assumira que o era, mas da forma selectiva que o meu pai usava para se armar em surdo sempre que não lhe convinha ouvir as queixas desagradáveis da minha mãe.

Do estado-maior de Lisboa seguiu a ordem para a cavalaria de Estremoz marchar sobre Évora, mas esta tropa não passava de uma bisonha soldadesca, mal armada e pior instruída. Os sol­dados de África haviam sido desmobilizados e os disponíveis nas fileiras eram mancebos recrutados na região para manter os quar­téis abertos. Como o Governo desconfiava da tropa, a cavalaria não dispunha de blindados, os atiradores não tinham munições e da artilharia apenas restara a memória do seu uso. Além disso, dado que nas meninges dos ilustres governantes, todos doutores de leis e letras, os militares são uns sujeitos presumidos e impre­visíveis, também restavam poucos oficiais competentes para ocorrer às situações em que deixa de existir substituto credível para as armas. Restava a aviação para um bombardeamento aéreo, o que o Governo considerou excessivo para a imagem de democrata e defensor da paz que queria exibir.

Foi nestas circunstâncias que o sensato coronel Castro Fur­tado, comandante do Regimento de Dragões de Olivença e medalha de ouro de comportamento exemplar, chamou o capi­tão Francisco Manuel para organizar uma coluna e partir para Évora.

— Hombre, como has cambiado de vidaocomo te ha tocado venir de Lisboa para Estremoz, Francisco Manuel?

A ordem que então corria entre os políticos surgidos com o vigor da Primavera era a de mandar as tropas regressarem aos quartéis, porque a arte de governar, tal como a de roubar, é a de colocar a vítima sem jeito de se defender, e os militares, princi­palmente os de baixa graduação que tinham combatido em África e faziam a revolução em Lisboa, dificultavam a aplicação desta regra.

Existiam ainda umas velhas normas de transferências de mili­tares para as guarnições da província que facilitavam esta maqui­nação, as quais eram convenientemente aplicadas aos que ou não dispunham de padrinhos ou tinham inimigos que os queriam ver longe dos territórios que pretendiam dominar.

— Na verdade, depois do tudo o que já fizera, encontrava-me naquela situação de dúvida em que nada me satisfazia, nem a gritaria das esquerdas, nem as manhas da direitas, muito menos as exibições dos jovens laparotos que chegavam a Lisboa quase de socos e saco ao ombro, dispostos a todas as humilhações para preencherem os lugares nos gabinetes dos ministérios e que cele­bravam a sua entrada na vida política empanturrando-se de marisco nos restaurantes.

Uma temporada num regimento de província, afastado dessa gentalha a quem a gravata e a camisa branca dava o aspecto dos mancebos em dia de irem às sortes para a tropa, permitiria ao Francisco Manuel manter-se afastado do convívio com esses recrutas. Havia que lhes dar tempo para ganharem modos e habi­tuarem-se aos novos uniformes.

— Pensava gozar uma época de tranquilidade retemperadora e bem me enganei. Caí mesmo no centro da refrega!

O coronel Castro Furtado também vivia este período de nojo e desculpava-se da ordem que tinha de dar ao Francisco Manuel. Apesar de conhecer a sua queda para os excessos, escolhera-o para esta difícil missão porque o capitão descendia de uma antiga família de militares respeitados e ele torcia o nariz aos homens de passado duvidoso, aos espúrios que os generais haviam feito capitães sem cuidarem da sua origem. As classes privilegiadas não podem fazer coro com os protestos populares, pois, no caso de os apoiarem, contribuiriam para a sua própria ruína. Para a gente de bem, não é boa mezinha o mudar-se.

— Mas é o costume, pelo menos a mudança de tempo.

O Francisco Manuel estava mais interessado nos preparativos para a acção do que nas palavras do comandante. O coronel suspirou a afastar os maus pressentimentos e ficou a assistir à partida da coluna comandada pelo capitão, depois de ter acon­selhado o cabo Matos a tomar conta dele e não o deixar fazer grandes asneiras, pelo menos a não deitar fogo onde visse palha.

Meia dúzia de jipes e camiões a cair de podres, guarnecidos por uns trinta camponeses vestidos de verde, mais interessa­dos no conteúdo das latas de conserva das rações de combate do que no cumprimento da missão, despreocupados como um rancho que vai para a romaria, a isto se resumia a força dispo­nível para castigar a acção dos compadres, que uns desejavam imitar e outros imitavam.

À chegada a Évora, um militante das forças rebeldes, de lenço vermelho ao pescoço, com a indicação UCP Estrela Rabiosa (devia ser Radiosa) estampada, talvez um turra de maus fígados, mandou parar o chofer do primeiro jipe, com um varapau apon­tado ao desgraçado e berrou-lhe: «Viva a Revolução!»

— O chofer, acabrunhado, disse-me baixinho: «Querem lixar-me o veículo, meu capitão, e nunca mais saio da tropa!»

O cabo Matos resmungou do banco traseiro: «Vai chatear a puta da tua mãe.»

O tal militante que fazia sentinela no posto de controlo deve ter percebido pelo sotaque do cabo Matos que estava entre os seus, mirou-lhes os emblemas das boinas e levantou o cachaporro com grande entusiasmo para repetir: «Viva a Revolução!», depois veio ao lado do Francisco Manuel dizer-lhe: «Benditos os olhos que vos vêem, camarada de Estremoz. Julgávamos que era a tropa de mercenários de Lisboa.»

Sentou-se ao lado do condutor e levou-os a ser aclamados pelos populares reunidos nas ruas de Évora, que os saudavam como se fossem salvadores.

— Uma entrada triunfal, que me lembrou a recepção na fazen­da do Gregório Castelo Branco, à chegada ao Quiculungo, depois da campanha no Norte de Angola.

Gritavam que os soldados eram filhos do povo e o condutor olhava para o oficial com os olhos amedrontados dos que nunca se viram em situações difíceis («não sei se chegaremos ao nosso destino, meu capitão»), estava borrado de medo e queria raspar-se dali, deixando-o no meio daquela malta.

Um guarda-republicano, de polainas e chapéu de bico, apro­ximou-se com um gesto precipitado do braço direito para cima, em saudação a um qualquer ponto do cosmo, o que tanto pode­ria ser interpretado como uma continência envergonhada, um gesto fascista ou progressista, e sussurrou: «Viva a Pátria!»

Progredindo entre a revolução, viva, e a pátria, viva, deparou-se-lhes mais uma barragem de homens armados. Um civil de bigode, vestido com um colete de pele de borrego, veio ter com o capitão para o mandar sair do jipe. O Francisco Manuel, quando olhou para trás, antes de o acompanhar, viu os soldados já aos beijos e aos apalpões às mulheres e a beber dos cantis que os homens lhes metiam goela a baixo. Absorvidos pelo inimigo.

— Malta porreira, Francisco Manuel.

O inglês Ned Marchmont viera como enviado especial do Excelsior para dar conta aos Ingleses sobre que raio de coisas estavam a acontecer naquele canto da Europa para onde de vez em quando enviavam um corpo expedicionário, uns piratas, uns engenheiros de caldeiras e teares e, ultimamente, uns bandos de operários e empregadas de armazém, que, depois de uma semana ao sol e de barris de cerveja, regressavam sem pele e sem saber onde estiveram! O chefe da redacção chamou o único jornalista que falava a língua, que já passara por Lisboa, que conhecia um português, e mandou-o confirmar as suas preocupações quanto ao vinho do Porto e às férias no Algarve.

O primeiro nome que o Ned Marchmont tirou da memória longínqua onde arquivara o capítulo de Portugal foi o do Fran­cisco Manuel, o alferes dos Aventureiros dos tempos de Angola, que lhe palpitara ser dos que teriam a ver com qualquer agita­ção que ocorresse no seu país e que apresentava o encanto especial para os Ingleses de ser filho de uma súbdita de Sua Majestade. Logo, alguém capaz de distinguir um lorde de um membro do parlamento, de respeitar a libra esterlina, de chegar a horas aos encontros, de se embebedar em silêncio e de come­ter crimes sem sujar as mãos. A gentleman.

A partir do reencontro, escolheu-o para protagonista da his­tória que queria contar e acompanhou-o nas suas aventuras pelo Alentejo. Tirara fotografias desta e doutras confraternizações idênticas, que foram espalhadas pelas agências internacionais. Uma delas, com o capitão Francisco Manuel de pé, envergan­do um uniforme camuflado, de lenço ao pescoço, rodeado por camponesas de foice, tendo como fundo a fachada branca da igreja da vila de Cuba, deu volta ao mundo, que confundiu esta Cuba com a de Guevara, transformando-o no ícone da revolução portuguesa para as adolescentes inglesas e em diabo a exorcizar pelos que já acham excessiva a promiscuidade dos táxis sem separação entre os bancos dos passageiros e dos con­dutores.

O Francisco Manuel entrou na sala onde estavam os chefes dos comités populares com o cabo Matos a seu lado. Cumpri­mentou-os e o que se apresentou como Sesinando Rodrigues convidou-o a sentar-se, enquanto o seu companheiro João Barradas abraçava o cabo Matos e perguntava ao capitão se não o conhecia de algum lado.

— O João Barradas passara depois de mim pelos mesmos lugares de Angola e ele e o Matos eram velhos amigos, membros de duas famílias aliadas nos antigos tráficos do contrabando para Espanha.

Os três evocaram nomes estranhos aos ouvidos dos que os escutavam sem perceberem nada do que diziam e, já de noite, o João Barradas perguntou ao Francisco Manuel o que viera fazer a Évora. Os soldados estavam bêbados, alguns tinham desapa­recido com as mulheres, ou levados por conhecidos para suas casas, e o capitão respondeu-lhe que trazia ordens para os obri­gar a entregar as terras. O João Barradas deu uma gargalhada, acompanhado pelos outros.

— Se isso são coisas que se façam!

Depois, o Sesinando puxou de um papel do bolso e leu a carta que lhes escrevera o padre Nuno Maria após o regresso a Lisboa, dizendo que a opinião daqueles que o haviam enviado a Évora era a de que não devia sequer ter perdido tempo com pícaros como eles, que não era possível aceitar uma rebelião de gente tão baixa.

— Por isso, capitão, quanto às terras ocupadas não capitu­laremos.

— Se é assim, mantenham-nas ocupadas, se puderem!

Os membros da junta de populares saltaram em conjunto, começaram a baloiçar agarrados uns aos outros e vieram abraçá-lo, cada um com mais força do que o anterior, de modo que ainda hoje lhe doem os ossos da manifestação de apoio. Com o Sesinando à frente e o João Barradas a seu lado, levaram-no até à janela da casa e daí anunciaram que o capitão estava com o povo. O povo respondeu com os estribilhos ensaiados que os soldados eram filhos do povo, a terra a quem a trabalha, a refor­ma agrária vencerá.

— Fui aclamado como o último militar que mandou os cam­poneses do Alentejo ocuparem terras.

— Qué conos anda usted diciendo por ahí?

— Porra, o capitão está a dizer que não foi o primeiro, que foi o último!

À volta da mesa da casa paroquial de Agualva-Cacém fez-se um pesado e respeitoso silêncio. Apenas quebrado pelo Quevedo, que se dirigiu ao Francisco Manuel e ao padre Nuno Maria com a expressão de incredulidade dos espanhóis pelas revoltas em que sobram vivos protagonistas derrotados para as contar. Falhada a tentativa de o capitão Francisco Manuel repor a ordem, o governador Pedro Barbosa convocou-o para ouvir da sua boca a impossibilidade de fazer mais e melhor pela defesa da propriedade privada com aquela tropa. Pediu-lhe então que levasse para Estremoz o carregamento de objectos de muito valor que tinha sido entregue à sua guarda pelos assustados proprie­tários da região e até de fora dela.

Aliviado do peso que as jóias lhe causavam e já que a tropa era agora constituída por uns cagúendios, o governador iria tratar do assunto à sua maneira. Chamou os cabecilhas da rebelião, encerrou-os num quarto e ameaçou pendurá-los pelos pés e transformar em estrume a multidão de que se fizeram acompa­nhar, fosse por segurança ou, o que é mais certo, para atemori­zar com o seu número o executor da violência que temiam.

O João Barradas ainda se lembrava do que aprendera na guerra, essa escola onde se sobrevive com menos virtude do que ânimo, e conseguiu chegar à janela da casa para pedir auxílio ao povo. Este clamou pela morte do governador e por liberdade e vida para o Sesinando e o Barradas. Levantaram a voz e a força, entraram na casa e começaram a atear-lhe fogo.

A notícia destes desacatos chegou ao quartel de Estremoz ao mesmo tempo que o malcomposto esquadrão do Francisco Manuel ali reentrava. Este recebeu do aflito coronel Castro Fur­tado ordem para regressar à capital do Alentejo e promover a retirada do governador, deu meia volta com aquela tropa macam­búzia e, quando chegaram à Praça do Giraldo, o doutor Pedro Barbosa só procurava escapar com vida, mais o filho Miguel Vas­concelos, que viera em auxílio do pai armado em valente e se encontrava escondido a tremer como varas verdes. O capitão, com o auxílio do cabo Matos e do Barradas, conseguiu fazê-los sair por uma porta das traseiras, levou-os para o Convento da Cartuxa, donde mais tarde partiram a caminho de Lisboa.

A multidão, excitada com esta fuga, despejou todo o recheio na praça e deitou-lhe fogo como coisas pestíferas. Porém, verda­de seja dita, mostraram sempre maior indignação do que inte­resse.

— E é agora, passados estes anos, que o Miguel Vasconcelos decidiu herdar o ódio do pai e quer tirar vingança do Barradas e do Sesinando.

— El hijo, hay que respetar los mayores, padre Nuno Maria!

— Só agora os tribunais devem ter resolvido a partilha da herança do pai pelos filhos ilegítimos.

Neste fim de tarde de conversa à portuguesa, Cento e Quinze, havíamo-nos esquecido da presença da Elsa, que era para os homens mais gastos que velhos reunidos na inóspita sala da casa paroquial de Agualva-Cacém um rosto e um corpo inexistentes. Entretidos nas recordações peganhentas com quase trinta anos, a voz da enfermeira ecoou nas paredes forradas a azulejo de balneário como o grito de quem tinha uma verdadeira razão para gritar:

— Afinal, padre Nuno Maria, para onde vai o capitão?

Ela viera entregar o capitão Francisco Manuel e queria voltar a Lisboa depois de cumprir a tarefa. O padre levantou-se e disse-lhe

om ternura:

— Vou telefonar para o Monte da Braveza a avisar o Barra­das ou o Sesinando de que o capitão vai para lá uns tempos...

Saiu e o Ned Marchmont e o Quevedo viraram a sua atenção para mim, com o olhar vago dos sobrinhos que descobrem em casa dos tios da província o ouriço-caixeiro embalsamado que sempre esteve em cima da arca e perguntam o que estaria aquele para­sita, aquele pilha-galinhas, ali a fazer. Disfarcei, Cento e Quinze:

— A sociedade de hoje parece tão feliz, tão racional... Ainda não acabara de fechar a boca com o sorriso de dizer

idiotices afivelado quando, pelo movimento dos olhos dos meus companheiros em direcção à porta, percebi que algo de grave se passava. O padre Nuno Maria emitia uns sons, encostado à pare­de, mais branco do que a cal, e pensei que, devido à dificuldade que ele já tinha em falar em circunstâncias normais, agora é que nunca mais lhe ouviríamos a causa da mudez.

O Quevedo levantou-se com um copo de tinto e passou-lho para as mãos trémulas. O padre elevou-o dirigindo os olhos aos céus, limpou os lábios à manga da camisa e explicou que a mu­lher do Barradas lhe acabara de dizer que o seu homem apare­cera afogado na ribeira do Djebe. Saíra com dois tipos que o vieram procurar e um pastor encontrara nessa tarde o corpo dele a boiar numa represa com a cabeça desfeita.

Ao anúncio da morte do alentejano devia suceder-se a inter­rogação muda dos ouvintes do telejornal. Quando muito, o comentário piedoso: coitado do homem. Mas do canto de comer rnoamba explodiu a pergunta, lançada pelo Ned Marchmont, que provocou a alteração do curso desta história, Cento e Quinze: — O que tem o Barradas a ver com tráfico de obras de arte que saíram de Portugal nos anos quentes, capitão Francisco Manuel? A voz do Ned Marchmont e o modo como ele encarou de frente o capitão fizeram os olhos de todos fixarem-se no militar que era a causa de ali estarem.

A Elsa desistiu neste momento de regressar a Lisboa, porque dei­xava de ter quem recebesse quem ela viera entregar e porque, como um ser normal, era incapaz de resistir a um mistério. Até a algazarra dos africanos no átrio da casa paroquial emudeceu, deixando ouvir a chuva que caía sobre o silêncio em que todos mergulhámos, Cento e Quinze.

Mesmo sem saber o que teria andado a fazer nesses anos este morto vindo do rio Djebe, que pelos vistos corria perto de Évora e mantinha o nome dado pelos mouros, a ideia que me veio à cabeça foi a de ter caído num bacanal organizado pela Kiki de Montparnasse, de quem anda agora por aí uma imitação saloia, para amigos escolhidos. Parece-te absurdo, claro, mas tal como nessas festas, onde se tinha dificuldade em distinguir quem era macho ou fêmea, também aqui recebia uma surpresa sempre que abria uma porta, com a agravante de fazer uma figura de ingé­nuo pouco adequada à minha idade e aos meus pergaminhos. Restava-me ver e ouvir como o militar responderia a este vulto que lhe surgia quando o julgava definitivamente desaparecido.

A longa prática do capitão Francisco Manuel em enfrentar inquéritos judiciais ensinara-o a nunca responder de forma direc­ta a uma pergunta. Dava uma volta e ia buscar um antecedente.

Depois de regressar a Estremoz e guardar o tesouro que trou­xera de Évora, esperou que o coronel Furtado lhe dissesse o que fazer com um espólio tão sensível que até ficava mal ao lado de armas, arreios, marmitas, panos de tenda, unturas, massas de lubrificar, solarinas, graxas e panos de desperdício. Era óbvio o incómodo do coronel por ter à sua responsabilidade uma carga daquelas, que, se pudesse, mandaria transferir com o devido cer­tificado para um esquecido depósito geral, um paiol enterrado nas lonjuras do deserto, enfim, para onde um general ou mesmo um furriel lhe ordenasse e onde existisse alguém para carimbar o recibo a atestar que a carga fora recebida.

Uma tarde, após o toque de ordem regulamentar ter autori­zado os militares a saírem do quartel, o capitão Francisco Manuel foi surpreendido pela aproximação de um pequeno soldado com o uniforme ainda inteiriçado da goma com que saíra da fábrica e grandes dificuldades em fazer as continências militares, o qual lhe comunicou com uma timidez que não disfarçava o receio causado pelo cumprimento da missão de que fora incumbido, que o comandante lhe desejava falar.

O coronel Furtado estava de pé, à janela do seu gabinete, a olhar para a praça do Rossio de Estremoz com a preocupação do piloto que vê ao longe as nuvens negras da tempestade. Tinha, de um lado, uma gravura do major Mouzinho de Albuquerque a cavalo, de espada desembainhada a comandar a carga de Chai-mite e, do outro, o estandarte nacional. A mobília de pau-preto no estilo de torcidos e tremidos mal cabia no pequeno espaço que fora a cela de um frade franciscano e estava semeada de taças de provas hípicas e de galhardetes de unidades militares que tinham partido daquele regimento para o ultramar.

O capitão olhava já com alguma nostalgia para todos esses objectos de uma época de capitães de África que ele ajudara a findar, depois de sonhar ser como os melhores deles. O coronel, magro e pequeno como um jóquei, foi ao bar disfarçado na pare­de, ofereceu-lhe um cálice de vinho do Porto e convidou-o a sen­tar num dos sofás de couro bastante coçado. As suas primeiras palavras foram esclarecedoras: «Nada do que dissermos nesta conversa sairá daqui. O capitão Francisco Manuel é completa-mente livre para aceitar ou recusar a missão que tenho para si.»

Estava notoriamente embaraçado, mexia as mãos e abanava o pé no interior das botas altas com as quais parecia ter nascido.

O que sempre lhe assentara mal fora o camuflado do uni­forme de combate.

Passou a mão pelos cabelos cortados muito curtos e adiantou a preocupante evidência «os tempos estão difíceis, encontramo-nos numa encruzilhada», que o confrontava com as mudanças e o obrigava a comprometer-se.

As eleições realizadas há pouco tinham dado a vitória a socia­listas e a populares representativos de um centro burguês e bem-comportado. Os deputados desempenhavam o seu papel no ámen à escolha do capitão Francisco Manuel só chegou passado alguns dias, para azar do coronel Furtado, que deixou de ter uma desculpa para justificar a esquiva, e agora, que recebera finalmente a temida ordem por que esperava para transferir a mer­cadoria que jazia a fermentar perigosamente na arrecadação do cabo Matos, faltava apenas que o capitão aceitasse a missão. Para o incentivar a sair da enrascada em que se encontrava, o coronel recorreu ao arsenal de promessas de recompensa e bons conselhos que os alcaides cercados dão aos condenados que vão jogar a vida a troco de atravessar as linhas inimigas: «Dispunha de uma ocasião para se redimir dos erros passados e seria devidamente apreciado.»

Madrid era o próximo destino do que já fora entregue ao capitão Francisco Manuel e do que viesse no futuro a ser apresentado por intermédio do exilado governador Pedro Bar­bosa.

— A verdade, meus amigos, é que aceitei a incumbência, se não com entusiasmo, pelo menos com agrado.

Chegavam do Norte, como cheiro de carne podre em época de peste, notícias sobre a violência dos padres e dos caciques através de forças de assalto mascaradas atrás das siglas do MDLP e do ELP para incendiar as sedes dos partidos de esquerda e dos sindicatos. Chegavam do Sul, como rajadas de ar queimado, notí­cias de ocupações de terras por camponeses insubmissos, chega­vam de Lisboa, como ruídos de cadeias de ferro a arrastar sobre chão de cimento, notícias de greves e de manifestações de ope­rários atrás de estandartes vermelhos.

Ao Francisco Manuel repugnava-lhe participar na política de terra queimada que todos os defensores da regeneração de Portu­gal pregavam. Depois, a inquietação e o gosto pelas acções irre­gulares estavam-lhe no sangue. Preferia dar ordens do que recebê-las. Organizar e comandar um pequeno grupo de cúm­plices em quem confiasse, em vez de uma tropa obrigada a obedecer à força de medo. Inventar soluções sem ter de pedir instruções. Quando recebia uma missão, o seu espírito passava a funcionar com a angústia de um perdigueiro que só vê a perdiz que tem de alcançar.

— Um espírito muito inglês, capitão Francisco Manuel. «Straight to bed... think easy, cross the mountains by the donkey path», as palavras da mãe ressoavam na sua cabeça. Para atravessar a fronteira com carregamentos que não podem ser declarados aos guardas-fiscais e carabineiros da benemérita Guardiã Civil havia que seguir os passos dos almocreves e contrabandistas.

— É aqui que entram o cabo Matos e, trazido por ele, o João Barradas.

Os dois pertenciam a famílias de alentejanos com perga­minhos na arte de saltar a linha invisível que separa os dois países, e o capitão Francisco Manuel, primeiro apenas com o cabo Matos e pouco tempo depois com o acompanhamento do João Barradas, montou um esquema, que funcionou na perfeição, de fazer passar por ela os valores daqueles que os queriam pôr a salvo. Vadeavam uma ribeira a todo-o-terreno, tomavam a estrada a seguir a Badajoz, daí seguiam para Madrid, onde entre­gavam a carga ao comandante Guilherme Brandão, o homem de confiança do ELP.

— A operação corria com tanta segurança que, passados alguns tempos, pude instalar-me em Madrid e deixar as acções no terreno para o cabo Matos e os seus compadres.

— levamos una serie de lustros escuchando ensenanzas e predicas sobre la revolución de los campesinos alentejanos oahora si descubre qué los cabecillas passaban a Espanha las riquezas de aquellos a quien habían asaltado las casas, a quien acusaran de parasitas, explotadores e sabotadores!

A língua entrapada de marroquino vendedor de alfombras não retirava ao Quevedo alguma razão ao espanto por estas contra­dições, Cento e Quinze.

— Eles queriam terras para trabalhar, terras para matar a fome, que é fêmea e com ela não se brinca, e não se importavam com jóias, porque, como dizia o Barradas, a verdadeira riqueza está onde um homem recebe o alimento, na terra.

Os Alentejanos acreditavam que, se os latifundiários levassem para longe as suas riquezas, nunca mais regressariam.

— Os Alentejanos não eram lunáticos e o desprezo por aquilo que a nós nos parece um sacrilégio, uma traição, podia revelar uma atitude muito mais sensata do que podemos pensar.

Pois é Cento e Quinze, a verdade filosófica é irrelevante quan­do ignoramos o que o maralhal pensa! Além do mais, agradava-me a ideia de que as decências comportamentais podem ser invertidas, embora essa satisfação não evitasse a surpresa por estas questões menos conformes às ideias feitas que vieram à tona durante a revolução. Nem a mim, nem ao bom senso da Elsa...

— Não foram certamente os antigos camaradas da reforma agrária que mataram o Barradas por o considerarem um traidor. Os alentejanos pobres não guardam rancores por muito tempo. É mais fácil enforcarem-se de tristeza ou de vergonha do que matarem por vingança ou ódio. Quem o matou pensa que ele podia ter alguma coisa de muito valor escondida. Tal como jul­gava que o meu pai podia ter.

A observação da Elsa deixou-me, Mano Cento e Quinze, como uma ave desasada que se meteu pela seara alheia em dia de abertura da caça. Uns vigaristas de olhos em bico espalharam a doutrina de que a história estava vazia e acabara, porque tudo estava feito e contado, mas passariam a escrever sobre peixinhos de aquário se tivessem experimentado o frio que senti quando o Ned Marchmont se virou para o capitão Francisco Manuel e lhe perguntou, com a frieza de uma sirene da Polícia de Choque:

— Não é altura de explicar o que se passou com o Diamante Azul, capitão Francisco Manuel?

Reparei que a noite já caíra e a chuva parara no intervalo que se seguiu até ao Quevedo adiantar:

— de Io que passámos en Madrid cuando nos hubimos conocido?

 

                           Ello es una gran cosa, no sé yo si mala si buena.

                           Francisco Manuel de Melo (Cartas Familiares)

 

                     Madrid

A seguir ao jantar que aconchegou os estômagos dos foragidos d'O Ninho do Papagaio e da Casa do Desterro, o padre Nuno Maria saiu, acompanhado pela Elsa, em busca de um refúgio alternativo ao Monte da Braveza para o capitão Francisco Ma­nuel. A sala da casa paroquial de Agualva-Cacém mergulhou no ambiente de soturna felicidade dos bares das colectividades de recreio, com a sua meia dúzia de velhos sócios reformados a enganarem a solidão, lançando cartas para a mesa como facas de varar uma silhueta inimiga e batendo pedras de dominó com o estrépito de tiros.

Lá fora, a escuridão da noite cobria de alguma vergonha o caos municipal, enquanto no interior o herói do belo enredo fumava de olhos semicerrados, depois de duas mortes à conta de um Diamante Azul que continuava a faiscar perigos. Tudo isto parecia normal aos meus companheiros e eu é que sou acusado de anormal, Cento e Quinze! Contudo, como mortes e diamantes são boa matéria-prima para histórias, vou manter-me em campo. Agora, digo-te, é bem mais fácil e seguro escrever do que viver.

Pelas dez da noite, o padre reapareceu no salão principal a esvoaçar como um corvo que sacode a água das asas ao pousar e a sua chegada quebrou a modorra vazia das reuniões de família à volta de um parente moribundo em que, à espera do passo seguinte, nenhum membro tem qualquer coisa para dizer.

O antigo capelão da companhia de Aventureiros em Angola e pastor daquela paróquia de gentios perdidos na selva do Oeste nacional despiu o capote alentejano com os gestos instintivos de retirar os paramentos rituais, atirou a boina negra e ensopada para junto da lareira e pediu à mulata de boas formas que aba­nava as ancas junto à pia do lava-louça:

— Aurora, Aurorita, aquece-me a sopa e, entretanto, traz-me pão, vinho e o que houver.

Enquanto o Nuno Maria tratava de si e a mulata tratava dele, fomo-nos juntando à sua volta como pintos que procuram o aconchego da galinha.

A forma apaixonada como ele comia indiciava o bom sucesso na diligência que levara a cabo com a Elsa para encontrar um poiso seguro para a futura clandestinidade do capitão Francisco Manuel, depois da ameaça da vinda dos inquisidores do Patriarcado desaconselhar que ficasse na casa paroquial e da turbulên­cia da morte do Barradas impedir que fosse para o monte no Alentejo. Mas havia que confirmar as boas novas da sua boca e essa era uma tarefa que ele complicava, tentando falar enquan­to mastigava.

— lUsted ahora habla en cifra?

A pergunta do espanhol teve o condão de desembuchar o pa­dre e permitir-lhe fazer a revelação que uma paroquiana a quem recorrera emprestara a casa de férias que possuía em Colares para o capitão Francisco Manuel ali se acolher.

Afinal, Cento e Quinze, apesar da hostilidade queixinhas dos bons católicos de Sintra, ainda havia pelo menos uma benfeitora capaz de socorrer o padre numa aflição. Haja padre, que nunca lhe falta uma beata, pensei, e enganei-me, como verás lá mais adiante. A mudança seria feita no dia seguinte, depois do funeral do cabo Matos, mas até levantarmos ferro para nova paragem muita história passaria fora dos circuitos turísticos de grande esplendor e visita obrigatória.

A Elsa regressou a Lisboa, deixando-me naquelas irreparáveis paisagens com a esperança de, Cento e Quinze, ficar a partir de amanhã bem melhor em Colares (região demarcada da casta arinto que sobreviveu à filoxera) do que na casa do Mucifal aonde me escondera há cinquenta anos, perseguido pelo man­dado de captura do processo de estupro da mãe da minha filha Maria Helena, a Naná. Só esperava não ter de sair dali para as enxovias que substituíram as do Limoeiro.

A cabo-verdiana Aurora, Aurorita, atravessou a sala a gingar o corpo com um abençoado saracoteio que remediou o descon­forto da construção civil nacional, quente no Verão e fria no Inverno, e veio à mesa fazer uma vénia antes de perguntar se queríamos mais alguma coisa com um sorriso e um meneio de tronco que abriu o rego que separava os marmelos redondos e morenos. O Quevedo deu um suspiro de aficionado ao ver este passe de peito de cortar a respiração.

— No hay como hacer buenas obras, capitán! A mi me recuerda Berenguela de Vrught.

O capitão Francisco Manuel agitou-se com a comichão enver­gonhada dos adolescentes masturbatórios e o espanhol de pala­vra fácil esclareceu a reduzida assembleia que ambos haviam conhecido em Madrid o original de nome duplamente extrava­gante que a Aurora lhes trazia à cabeça e às partes que a idade só vai deixando comover por razões progressivamente mais pode­rosas, no já longínquo ano de mil novecentos e setenta e seis.

E, já agora, Cento e Quinze, que os levava também à causa, à verdadeira causa, pela qual o Francisco Manuel fora sacrificado e ainda hoje era perseguido.

Imagina, Mano, que raio de Novo Testamento dava uma his­tória em que um Deus mais dado ao prazer do que ao sofrimento

entregava por ele os pés e as mãos do Judas ao suplício dos pre­gos e da cruz! Imagina, Mano Serafim, que esse Judas era conde­nado porque tinha no bolso não as trinta moedas da traição, mas o diamante que o candidato a Deus queria obter a todo o custo para ornamentar o frontispício da coroa que faria dele o verda­deiro Todo-Poderoso, o reconhecido. Isto é, que tinha na sua posse o sinal do Deus sem o poder ser. Pois fora este o papel que calhara ao Francisco Manuel depois da temporada que passou em Madrid!

— Não há outra capital como Madrid, onde tudo chega de fora e nada é ali produzido, excepto vagabundos de toda a espé­cie e parasitas do corpo social. Em setenta e seis, quem visse os Madrilenos não imaginaria que estavam a sofrer os males de uma ditadura moribunda, mas sim que atravessavam uma era de pros­peridade, de alegria e boa vida.

Instalado na Babilónia espanhola para apoiar a passagem a porto seguro dos bens que o patriotismo dos proprietários lusi­tanos não queria deixar cair nas mãos grosseiras e delapidadoras do povo, sem muito que fazer na maior parte dos dias, o capi­tão Francisco Manuel integrou-se com naturalidade na horda de desocupados permanentes e temporários que passavam o tempo cavaqueando e maldizendo no passeio ao lado da Igreja de São Paulo e à entrada da Calle Mayor, numa zona que desde o século de ouro do império espanhol era conhecida por Mentidero.

Depois da sesta e de ter comido numa bodega de puntapié umas empanadillas de qualidade tão duvidosa que as más-línguas diziam feitas com a carne dos condenados à morte no garrote, o Francisco Manuel estabelecia-se numa esquina da Plaza de la Puerta do Sol a digerir a mistela e a apreciar o movi­mento da multidão de corpos movidos a pilhas entre as tendas de El Corte Inglês, a Monumental dos touros e os teatros e bares.

Só há hora tardia do jantar espanhol tinha previsto passar pela sede do Exército de Libertação de Portugal para receber o João Barradas, que vinha entregar mais uma carga de preciosidades, e até lá podia deixar-se a pairar nos círculos de abutre que os

Madrilenos chamavam ruas, observando as passageiras que saíam das bocas escuras da estação do metro, alçando provocado­ramente o peito e abanando os cabelos compridos antes de se misturarem com as prostitutas dos bares da zona.

Numa das levas que subiam das profundezas da terra, o Fran­cisco Manuel reparou na mulata com o perfil esguio de rainha do Sabá. A zona do cérebro encarregada de atacar estas silhue­tas provocadoras levou-o, quase sem ter consciência, a segui-la até à loja de roupas onde ela entrou. Não foi o único interceptor lançado na perseguição, porque logo atrás dele surgiu a mancar um vulto de aranhiço, vestido de preto e equipado com uns enor­mes óculos com aros de tartaruga.

— Esta criatura que aqui se encontra. Duas vezes caído em desgraça, tal como eu desenganado de muitas coisas. Tal como eu perseguido por um Marco Bruto que também o meteu em subterrâneos húmidos e desabridos.

— Después que te conoci, cuando me vuelvo atrás a ver los anos... deja que a vocês diga: nuestros desenganos son la verdadera riqueza nuestra. Quanto al más, hay la vida gozada o padecida, no de mentirijillas.

A mulata Berenguela pediu à empregada para ver um tercio pelo e o intrometido começou a jogar com as palavras, tércio e pêlo, pêlo e pelado, apelo e pospelo, com uma subtileza de fogueiro a atirar pazadas de carvão para a fornalha. O Francisco Manuel deixou-o espalhar-se e, no final dos jogos florais do espa­nhol, ganhou-lhe a parada propondo oferecer o pano de veludo carmesim que ela escolhera à princesa núbia que representava tão bem o seu papel de dama séria.

Ela fez-se rogada, com o velho argumento de não receber ofer­tas de quem não conhecia, e o impedimento ético foi ultrapassado com as apresentações formais dos dois pretendentes, já que o Quevedo recusava descolar para nova surtida contra outro alvo.

Quando a Berenguela de Vrught, nem Berinjela, nem Ben­guela, descobriu que o Francisco Manuel era português, os seus olhos negros e redondos abriram-se de um genuíno espanto, porque também o era o homem que a trouxera de Amesterdão para Madrid. E adiantou o nome de Cristóvão Crato, animada com a crença infantil dos estrangeiros de que no país dos outros todos se conhecem. «Cristóvão, filho do general Humberto Crato, que foi assassinado aqui em Espanha? O pai foi meu coman­dante no Colégio Militar e ele e o irmão foram meus compa­nheiros.»

— Qué coincidência!

O Quevedo devia saber que todos os encontros são fruto de coincidências, Cento e Quinze, e que só nos devemos preocupar com as consequências. E as consequências deste encontro foram, com as devidas adaptações, as da descoberta do Santo Graal, o Diamante Azul no qual o Ned Marchmont se mostrava tão inte­ressado. Uma jóia perdida, que atrai desgraças, promove crimes, justifica aventuras e que, no final, nunca fica na posse do último que lhe deita a mão. O Spielberg fez uma fortuna com a histó­ria da Arca Perdida. O pior é estar dentro da acção sem saber como ela acaba. É que nem o Francisco Manuel é o Harrison Ford, nem eu sou o Sean Connery!

A Berenguela sugeriu que se dirigissem ao café El Gato Negro, na Calle del Príncipe, onde o Cristóvão por vezes tertuliava por­que, caso aparecesse, havia de gostar de ver o Francisco Manuel.

O café El Gato Negro tinha uma decoração indefinida de sala de dentista, um local de passagem frequentado por uma fauna diversa de ociosos, polvilhada por alguns jovens de sexo ambí­guo, ou claramente maricas, que cheiravam a perfume enjoativo, uns velhos com cara de batráquios conservados em formol e umas mulheres volumosas com mais cremes do que os bolos de noiva.

Instalaram-se os três numa mesa, a Berenguela tirou um cigarro sem filtro e pediu um licor de amêndoa ao camarero com a voz arrastada e neutra dos marinheiros que navegam sem bús­sola quando chegam a um porto desconhecido. Falava e mexia o corpo com uma falsa modéstia que provocava o desejo e a curiosidade, como se nada do que dissesse e fizesse tivesse qualquer importância, utilizando o artifício de converter os acon­tecimentos no contrário do que pareciam, ou em tropelias do destino.

Os dois filhos do general Humberto Crato, o Cristóvão e o Manuel, ficaram na difícil situação de tratarem de si em que o pai os deixara enquanto desbaratava as energias na tentativa de des­pertar os seus compatriotas para uma alvorada redentora.

— Já no Colégio o major Humberto Crato tinha vocação de despertador. Todas as manhãs aparecia nas camaratas a acordar os alunos aos gritos tonitruantes, acompanhados de palavras de incentivo ao trabalho e à vida ao ar livre.

E, Cento e Quinze, com esta observação do Francisco Manuel percebi finalmente as verdadeiras causas do insucesso do gene­ral em derrubar o Tototas, que eu julgava devidas à conjugação das maldades da polícia política do regime com as traições entre os oposicionistas. Nada disso. O erro que se revelou fatal ao Humberto Crato foi ele, tal como o seu antepassado António do Crato, prior, querer acordar um povo que vive a dormir, acredita que os milagres substituem o trabalho e só anda voluntariamente ao ar livre para ir à igreja ou à taberna!

Aos catorze anos, o Cristóvão fugiu do Colégio Militar, onde estava internado, deixando um bilhete a informar que ia ter com o pai. Atravessou a Europa na companhia de vagabundos e pros­titutas. Em Roma, foi recolhido por uma condessa que se encan­tou com o seu bom aspecto e se perdeu por ele. Deixou essa protectora para se juntar a um grupo de teatro com quem parti­lhou em Paris o pouco êxito e as muitas misérias, vivendo num hotelzeco do Bairro Latino com uma artista de cabaré sul-americana.

Berenguela de Vrught cruzou-se com o Cristóvão Crato entre as mesas e os camarins do corpo de baile do luxuoso Holland Casino de Amesterdão. Ele era então um dos comissionistas a quem a gerência pagava uma percentagem para trazer os sempre bem-vindos homens de negócios que fumavam charutos e não olha­vam a despesas, mas, como falava uma meia dúzia de línguas, sabia escolher bebidas, não cumpria horários, desprezava as acti­vidades produtivas e mantinha a mesma conversa sobre todos os assuntos, a Berenguela acreditou no segredo que ele lhe disse ao ouvido de ser um diplomata dos serviços secretos do Minis­tério dos Negócios Estrangeiros do reino dos Países Baixos.

A sua família de antigos escravos das Antilhas desaguara na cidade dos primeiros donos dos seus antepassados no rescaldo de uma descolonização conduzida com o pragmatismo tolerante dos Holandeses, os pais de Berenguela exploravam uma lavandaria utilizando os cinco filhos como mão-de-obra, mas ela pre­feriu pôr a render os dotes que a natureza lhe distribuíra pelos sítios certos, em vez de os desperdiçar no posto inicial de engo-madeira, e acreditou que lhe calhara a sorte das ingénuas dos romances quando o Cristóvão lhe disse que ia ser transferido para Madrid e que faria dela uma estrela do mundo do espectá­culo, além de lhe assegurar o estatuto diplomático.

Como vês, Cento e Quinze, a história do príncipe encantado tanto serviu de desculpa à parola da minha Deolinda para vir comigo de Braga, como à mulata Berenguela para seguir o Cristó­vão Crato. Cada vez acredito mais que o futuro da Europa está nas mulheres aventureiras que seguem homens de vida fácil. Numa Europa invertida!

Em Madrid, em vez da carreira internacional, a Berenguela passou a apresentar nos cabarés da cidade um bailado exótico que misturava os movimentos de umbigo da dança do ventre árabe com os ritmos africanos, acompanhada por música anda-luza. Uma mistura explosiva que não a elevara aos píncaros da fama, mas lhe permitia sobreviver e sustentar o seu encantador agente.

Berenguela relatava os factos em português e em castelhano com a vulgaridade de quem aprendeu as línguas de ouvido e, quando descobriu o vulto do Cristóvão recortado na contraluz da entrada do café, elevou o longo braço a ondular como uma serpente, abanando as pulseiras de bijutarias vistosas com um ruído de campainha para lhe chamar a atenção.

O Cristóvão Crato aproximou-se movendo o corpo com a fle­xibilidade insolente dos toureiros a atravessar a arena para a sau­dar o director da corrida, deu um beijo instantâneo na face da Berenguela e estendeu a mão ao Francisco Manuel e ao Quevedo como se fosse um pianista a evitar que os brutamontes lhe estragassem os dedos. Depois, sentou-se com o desfalecimento de quem já acordara cansado e aborrecido, olhando à sua volta apenas para saber onde se encontrava.

— Conservava o ar de menino mimado que lhe conheci no Colégio, capaz de, pelo mesmo motivo, fazer a maior birra, ter uma fúria destruidora, ou abandonar-se ao choro de partir cora­ções.

Berenguela apontou o Francisco Manuel com o queixo e per­guntou ao Cristóvão se não o reconhecia. Ele piscou os olhos de lunar que raramente vê a luz e ela repreendeu-o: «Cristóvão, es que vives en ias nubes?»

— En Ias nubes de una resaca de drogas e de alcohol que le oscurecia los ojos con una telearana de somnolencia.

O Francisco Manuel despertou-lhe os neurónios lesionados com uma voz de comando: «Cento e cinco, já esqueceste o velho duzentos e três, que te tirou debaixo do Veloz quando caíste na Avenida da Liberdade, no desfile do três de Março?»

O Colégio Militar é uma instituição onde os humanos são tra­tados por números e os cavalos pelos nomes e esta tradição fun­ciona como código de reconhecimento. Ao ouvir o seu número de incorporado e a data do dia em que os alunos do Colégio desfilavam de espingarda ao ombro atrás dos eleitos da escolta a cavalo, o Cristóvão saltou do seu lugar com a energia dos bone­cos impulsionados pelo disparo da mola quando alguém abre a tampa da caixa onde estão comprimidos. «Que te traz a estas latitudes?»

O descendente mais novo do general Humberto Crato dedica­va a Portugal uma curiosidade distante de filho pródigo que não pensa regressar a casa e aceitou — com a naturalidade do por­que não? — que o antigo colega lhe dissesse que estava de férias.

O Francisco Manuel não podia revelar que andava a passar jóias e bens para fora do país a quem lhe dizia que Madrid estava cheia, demasiado cheia, de portugueses com fama de arrua­ceiros, de gente absurda com joanetes na alma, incluindo os assassinos do seu pai e os seus mandantes.

Apesar da mentira inicial, o reencontro com o antigo colega trouxe ao Cristóvão o conforto da lembrança dos tempos míticos da adolescência — aqueles bons velhos tempos! — e transformou-o na criatura simpática que ele também sabia ser. A civili­dade ganha nas famílias e nas boas escolas estendeu-se ao Quevedo, um nome arquivado na parte da memória onde caíam as fichas de gente com interesse. «Quevedo, el autor de La Morena que yo adoro, que pasó en el Teatro de la Comedia?»

O Quevedo vivia, na altura, o curto período entre as glórias do sucesso popular e as penas do futuro esquecimento. ídolo da classe média acomodada que ia ao teatro digerir o jantar e as humilhações diárias e bombo da festa dos críticos progressistas, que aproveitavam os ventos da mudança que assolavam a Espa­nha vindos de Portugal para o zurzirem como o Anacreonte espa­nhol, que escrevia elegias com os pés e poesias em papel de embrulho.

— Los críticos son como los sodomitas, tién el gusto en el culo.

Tomara eu, Cento e Quinze. Os daqui têm-no nas jantaradas pagas.

O Cristóvão Crato rodava durante a noite pelos teatros, bares e cabarés de Madrid, mas o autor de comédias nunca reparara no lânguido e anónimo jovem de melena caída sobre os olhos que escrevia crónicas sobre os mexericos da vida artística de Madrid para o suplemento de fim-de-semana da revista Cambio.

— Seguro porque no levava a Berenguela con él... Enquanto não lhe surgia a oportunidade para entrar no mundo dos que vêem o nome inscrito nos cartazes, o Cristóvão sacava uns dinheiros extra com um subterfúgio engenhoso posto em prá­tica pelos oposicionistas espanhóis que não queriam sofrer na pele as consequências dos seus escritos. Trabalhava como hom-bre de paja, assinando artigos polémicos nos jornais e recebendo por baixo da mesa a comissão dada pelos verdadeiros autores. O que cobria também os incómodos pelo cumprimento de uma semana de prisão.

Agora estava num desemprego mais duro de vencer, depois de ter dado o nome para uma reportagem explosiva sobre os novos refugiados portugueses do Movimento Democrático de Libertação de Portugal e do seu braço armado, o Exército de Libertação de Portugal, que surgira com o título: Los contra-revolucionarios por­tugueses: la dialéctica del uísque e de las bombas.

As campainhas da Oficina de Información soaram para impe­dir os directores das revistas de aceitar mais mercadoria assinada pelo Cristóvão Crato, quando o jornalista infiltrado no meio dos lusitanos que o Governo espanhol acolhia em nome da antiga ordem peninsular apresentara os membros do movimento demo­crático e libertador e do seu exército clandestino, o ELP, como um bando de senoritos portugueses que viviam de rendas, de retornados de África barrigudos e brutais, de saudosos do dita­dor Salazar, de burgueses que aproveitaram a oportunidade para se livrarem das mulheres e das dívidas, de jovens snobes que choravam ao recordar os cavalos deixados no hipódromo, de monárquicos amaneirados e de militares desertores que haviam combatido nas colónias, e estabeleceram a base de operações do ELP em Madrid, onde esgotavam as reservas de uísque e sus­tentavam os caprichos das mais caras cortesãs da capital.

— Las mamonas francesas.

Homens sem mais amizades do que a própria sombra, que de noite afogavam em álcool e zaragatas no bar El Chicote a soli­dão e a orfandade, e se vangloriavam, junto das prostitutas, das suas façanhas em Portugal com bombas e assaltos.

— Madrid recebia há séculos multidões de aventureiros, de assassinos e pretendentes a matadores, de ladrões, mercenários e descobridores de índias, de toda a casta de pícaros que contri­buíram para criar o ambiente castiço da cidade, que, sem eles, seria uma imensa e triste repartição pública instalada à volta do palácio real, mas havia uma pergunta que ninguém podia fazer: donde lhes vem o dinheiro?

O Cristóvão Crato falava com a ausência de entusiasmo dos que não têm bandeira e descrevem os acontecimentos como se eles dissessem respeito a um mundo do qual não fazem parte. Animou-se um pouco, com o cáustico sentido de humor que dis­farça o desprezo dos que descem indolentemente na vida quando querem ridicularizar os esforços dos que se esfalfam para a subir a todo o custo, ao apontar com o queixo a fotografia do coman­dante do ELP que ilustrava a reportagem que lhe causara as presentes dificuldades. Um retrato de cabeça rapada, com a cara angulosa de gladiador que lembrava propositadamente o Duce Mussolini, acompanhada pela legenda: El Tácito Lusitano. — Un loco de atar.

Guilherme Brandão exige ser tratado por Comandante e vive num apartamento recheado de obras de arte, no elegante bairro de Chamartin, com a Vera Munoz, a conhecida jornalista de mexericos e editora de revistas de moda, organizadora dos con­cursos de Miss Espana e que o verdadeiro autor da reportagem descrevia como uma velhota antecipada, com o cabelo listado por madeixas brancas, muito ligada aos meios dos falangistas e conhecida pela alcunha de La Ballena Alegre. As frases de Guilherme Brandão começam invariavelmente pelas palavras la guerra del Ultramar, depois abre a camisa de seda e mostra cica­trizes no peito flácido coberto de pêlos, sabendo que elas impres­sionam mais que as medalhas expostas em almofadas de veludo azul dentro das vitrinas iluminadas como se fossem sacrários. A sala do apartamento de Chamartin, atafulhada de móveis pesados e as paredes cobertas por quadros, lembra uma capela barroca onde fiéis aflitos entregaram os objectos mais valiosos para pagamento de promessas já regularizadas, ou como penhor de favores e protecções que esperam ainda pelo futuro despacho favorável. Castiçais de prata, imagens de santos esquecidos com as pinturas oxidadas, tapeçarias flamengas, retábulos, salvas, loiças da Companhia das índias, Budas de porcelana, esculturas bizarras de deuses e guerreiros africanos com os falos penden­tes, hostiários com o feitio de cogumelos gigantes cobertos por rendas de fio de ouro, dentes de elefante, peles de zebra e até podemos ver, a guardar a entrada do que podia ser um altar-mor, a cabeça de um leão com a juba comida pela traça e os dentes amarelos a saírem da boca engelhada.

O Comandante remexe-se numa poltrona de arcebispo com o desassossego inconstante que caracteriza os reis loucos e os prestamistas e pisca os olhos luxuriosos sobre os objectos deste tesouro que, mesmo tendo uma escala doméstica, lhe proporcio­nam o prazer dionisíaco que deveriam ter sentido os imperadores quando recebiam o espólio dos saqueadores de civilizações que são os heróis da nossa história, salivando ao imaginarem as guer­ras que com eles poderiam desencadear e os templos que pode­riam construir para celebrar o seu poder.

No complexo protocolo que o Guilherme Brandão estabele­ceu para as cerimónias rituais, as ordenanças, os civis do MDLP, cumprimentam a Vera de vénia e beija-mão, enquanto os opera­cionais do ELP estão proibidos de voltar a cabeça à sua passa­gem, como se ela fosse a mulher do Lot da Bíblia, mas esta não participa nos grandes actos guerreiros, porque o movimento é eminentemente viril. «Aqui não se admitem maricas, comunas e fêmeas!»

— Los hombres para la guerras las mujeres para los guerreros! Así habló Zaratustra!

Os membros da missão que o Guilherme Brandão preparou para apresentar o movimento ao jornalista que utilizou o nome do Cristóvão Crato reuniram-se, antes de partir no quartel-general do ELP para uma velada de armas, durante a qual foram aben­çoados pelo cónego de Braga, que usava o nome de código de Dom Pio e era o capelão do movimento. Em seguida, orou o Guilherme Brandão: «Obrigado, Senhor, por mais esta oportu­nidade de morrer pela Pátria», e abraçou-os, dizendo: «Vamos embora, rapazes.»

— Agua, por Dios! ;Me abraso de tanta tonteria!

A Berenguela sorriu ao dito do Quevedo e o Cristóvão apro­veitou para pedir um conhaque, francês, que alguém pagaria. Bebeu-o devagar e continuou citando de cor o artigo que lhe valera o banimento.

Chamam operar ao acto de ir a Portugal colocar bombas nas sedes e casas dos comunas, e resgate à técnica espanhola del sablazo, que consiste em exigir das vítimas, industriais, comer­ciantes e profissionais liberais, o pagamento de um imposto para o movimento, que evite ser incluído na terrível lista de comu­nistas a serem visitados com menos cordialidade. No regresso, os rapazes relataram as peripécias da excursão num ambiente de ofertório religioso e leilão de romaria e um deles, o Vidal, que tinha uma voz de caniche excitado, leu as reacções dos contri­buintes, que anotara um caderno de apontamentos.

— Chantajea a tus explotadores. Seguro que le sacas algo. A cerimónia propriamente dita estava terminada e, a um gesto do Guilherme Brandão, todos se mobilizaram para a celebração final e dirigiram-se com a disciplina e energia de uma brigada em campanha militar ao cabaré MaxirrTs, onde o patrão Ramón dirigia as actividades de umas putas bem fornecidas de carnes que sabiam o Kama Sutra de cor.

O negro Jonas, que regula as entradas com o ar marcial de um guerreiro zulu, só franqueia as portas do Maxim's aos clien­tes que levam as carteiras recheadas, para no decepcionar a las damas, que trocam champanhe por cocaína, mas os portugueses são velhos conhecidos que lhe metem notas de mil pesetas na tanga a imitar pele de leopardo e entram saudando-o com a senha de passe: «Salud e bombas!», que os anarquistas espanhóis utilizaram na guerra civil.

— La historia siempre se repite, como una farsa.

Quando estão sóbrios, os militantes do ELP são tipos discipli­nados, esperam que o seu chefe decida onde se sentam, o que bebem e até lhe pedem licença para fumar, mas no Maxim's esta fase durou pouco.

Sígfredo, o segundo comandante, um antigo pára-quedista com nome de personagem de ópera e físico de contentor a que fora acrescentado o transplante de um crânio reduzido dos índios jívaros, depois de ter despejado pela garganta um copo de uis­que, a que uma das cocottes acrescentara disfarçadamente uns pós de cocaína, levantou-se com o estardalhaço de um urso na época do cio, tirou o falo dilatado das calças e foi com ele pen­durado metê-lo no copo de champanhe de um cliente espanhol com aspecto de ganadero andaluz, que não tinha nada a ver com a política portuguesa e abriu os olhos de bovino perdido na arena que recebe a primeira farpa sem saber porquê: «Qué haces, camarada?» O Sigfredo segurou-o pelo colarinho: «No nos lia­mes camarada, cabrón rojo!»

O antigo pára-quedista lançava gritos de cometa desafinada, enquanto os agrários espanhóis se agrupavam para reparar a honra do companheiro, convertidos em democratas de ocasião para lavar rancores adormecidos: «Cochino fascista!; Mientras el pueblo de Portugal se muere de hambre estes cabrones gas-tan millones en putas!» Trocaram-se pistolas e berros, punhos e garrafas, numa reedição prostibular da batalha de Aljubarrota, no início também com mais insultos do que bordoadas.

O Guilherme Brandão tentou acalmar as suas hostes com gritos de «Ordem! Não somos vulgares rufias!», mas, colocado o ódio a destilar, bastou uma pergunta homicida para o incendiar: «Quién vos paga, hijos de puta?» O Máximo Fabiano, o guarda-costas de Guilherme Brandão, saltou para cima de uma mesa gritando: «Agora vão ver o que é bom!» e os empregados do Maxim’s, com cara de burros de carga, atiraram-se a ele: «Tu tranquilo. De aqui nadie se mueve. No vos aguentamos más cojudeces. En esta santa casa mandamos nosotrosh

Os portugueses transformaram o Maxim's num saloon de filme do Far West, enquanto lá fora, na Gran Via, decorria outra cena de acção, com os guardas-civis da Benemérita a distribuir bas­tonadas a torto e a direito com os cassetetes de borracha que se adaptavam aos costados de uns manifestantes que desafiavam as forças da ordem. De dentro do Maxin’s saíram gritos de solida­riedade a uns e a outros e só a entrada de roldão, através dos vidros da porta, de um dos insatisfeitos, que foi cair desmaiado sobre o balcão com a testa fendida, trazendo atrás de si um rasto de sangue e de guardas em uniforme antitumulto, evitou que rolassem mais cabeças e peças da mobília.

Depois de os manifestantes terem desaparecido e de os clientes do Maxin’s terem sido levados para o Governo Civil, a rua ficou vazia, mostrando um tapete de propaganda a exigir eleições constituintes e o cabaré fechou, deixando o Rámon a fazer as contas dos estragos a enviar ao comandante Guilherme Brandão: «Hay que joderse, como está el pátio! jEl Gobierno da hóstias a los campesinos e hospedaje a estes rufiones portugueses! jóder qui no se pude ser espaholh!»

O Cristóvão Crato descreveu estes factos com a afectação ser­vil dos diletantes quando querem encantar um ouvinte. Pensou que o Quevedo podia constituir um bom padrinho para encontrar uma alternativa que lhe rendesse algum dinheiro sem muito tra­balho e propôs continuar a conversa no café El Europeo.

— Un nido de intelectuales de pacotilla que cultibaban el ócio, desdenados, Ilenos de rabia contra el êxito el fervor del público.

Com a Berenguela à frente, o pequeno grupo atravessou o café por entre alas de olhares derretidos de guedelhudos que acreditavam ser génios e terem um lugar dourado nas artes, nas letras e na política espanhola do futuro porque não se lavavam e que acompanharam todos os seus movimentos até ela se sentar na mesa do fundo, junto à escada de acesso aos aseos.

As ideias que fervilhavam na cabeça do Cristóvão para serem representadas nos teatros de Madrid incluíam raptos a donzelas, sedutores escarmentados, digressões pornográficas, discursos anticlericais, apostasias e blasfémias, jorrando numa torrente imparável a que o Quevedo foi progressivamente dando maior atenção, enquanto se encostava às pernas da holandesa das Antilhas.

O Cristóvão era um daqueles espécimes ansiosos e instáveis possuidores de uma fonte inesgotável de capacidades que per­dem sem as conseguir aproveitar. A necessidade fazia-o men­digar para vender os seus talentos, e o Quevedo precisava de matéria-prima, ou pelo menos de novas embalagens onde embru­lhar a que tinha, para sobreviver aos novos tempos que se adivi­nhavam difíceis e a exigirem novidades chocantes.

A Berenguela tirou da mala um cigarro de haxixe já enrolado e começou a fumar com o ar distante e místico das antigas man­cebias proibidas de exercer a actividade durante a Semana Santa pelo decreto do rei Filipe segundo que regulou a púteria pública. Estava interessada no Francisco Manuel e não naquele míope escanzelado que tentava esfregar-lhe as coxas com os ossos das canelas.

— Yo era menos guapo que é, o mas perezoso,ome con­forme.

— O Quevedo partia com vantagem, a sua fama de autor aureolava-o de um prestígio de que eu, um desconhecido portu­guês exilado, carecia.

Acontece que a sociedade de autores que o Cristóvão e o Quevedo estavam a constituir na mesa do El Europeo, que come­çava a ser pequena para a quantidade de copos, passava mani­festamente ao lado dos interesses imediatos da Berenguela, que os ouvia falar de enredos, personagens e truques para empolgar o público com a mesma falta de atenção das antigas prostitutas pelo sermão sobre o arrependimento da Maria Madalena a que eram obrigadas a assistir durante a Semana Santa. Depois de olhar para o Francisco Manuel e de passar a língua pelos lábios com uma maldade anunciada, disse: «Cristóvão, estou a cair de sono, tenho frio e preciso de me preparar para o espectáculo de logo à noite.»

O jovem Crato mirou-a com o rancor mitigado do sócio de um negócio em processo de falência e respondeu com aspereza que o álcool já lhe dava: «Estás empenhada em estragar-me a noite? Vai tu sozinha e deixa-me em paz!» Ela rebolou o peito, fazendo dançar os seios redondos num desafio provocador, e o Francisco Manuel ofereceu-se para a acompanhar até uma para­gem de táxis. «Tenho de ir receber um português que chegou hoje.»

O Quevedo lançou ao Francisco Manuel um olhar assassino de caçador que vê um falcão-peregrino escapar com a presa quando a tinha diante da mira. A finta feriu o seu orgulho, mas nada podia fazer contra aquele português de físico de atleta e fama de aventureiro de África que levava a Berenguela.

— O Quevedo, a princípio, tinha-me um temor reverencial.

— A mi solo me interesaba triunfar en las letras.

Na rua, deixados para trás os dois artistas, o Francisco Manuel deitou o braço sobre os ombros da Berenguela e esta encostou-se a ele em busca do calor que lhe faltava. Passaram pela para­gem dos táxis com os choferes adormecidos sentados ao volante «Disseste que me acompanhavas só até aqui.» — «Acompanho-te a casa, tenho curiosidade em saber onde vives.» Tutuaram-se numa intimidade antecipada em direcção aos Quatro Caminhos, arrabalde na cintura de Madrid onde de noite cheirava a suor rançoso, a menstruações retidas e a corpos sujos dos que vieram em busca de melhor sorte na capital.

A casa onde a Berenguela o introduziu excedeu as piores expectativas do Francisco Manuel. Duas únicas divisões, uma sala que fazia as vezes de cozinha e gabinete de trabalho e um quarto de dormir separado por um biombo de pano que mal ocultava a cama. «Não repares na desarrumação», um pedido difícil de cumprir, quando a mesa estava coberta por papéis em desordem, copos sujos, garrafas vazias e sobras de comida, as cadeiras serviam de guarda-fato aos vestidos de cena da Beren­guela, expostos como mortalhas coloridas à espera do corpo, e pelo chão passeavam baratas entre sapatos e roupa interior enxo­valhada.

Com um resto do instinto de dona de casa, a Berenguela tentou dar um pouco de ordem aos restos do naufrágio, empur­rando os salvados para debaixo dos móveis com os pés, desculpando-se com a incapacidade do Cristóvão para a disciplina e o método: «Deve ser herança de vagabundo do antepassado Antó­nio Crato, que nunca teve poiso certo.»

O Francisco Manuel tentou vencer o incómodo do odor áci­do e doce de lixeira antiga que lhe inflamava a pituitária, agar­rando-a pelo braço para a beijar. «Não apertes aí, que é onde recebo a pedrada», e mostrou a nódoa negra escondida debaixo da manga da blusa, provocada pela agulha da seringa nas veias por onde metia a heroína, enquanto inalava uma linha de pó de cocaína. Depois, reconfortada, começou a despir a saia com o despojamento de quem vai trabalhar e deitou-se sobre as folhas de um original do Cristóvão que ficara esquecido em cima da cama, oferecendo o corpo para ser acariciado.

— Tinha uma pele de seda e mais macia à medida que as mãos percorriam as zonas menos transitadas do interior das coxas, o rego das nalgas, os sovacos que começavam a produzir o cheiro forte e húmido das florestas africanas.

— Es que no puedes evitar a eses pormenores, Francisco?

A Berenguela falava sem parar do Cristóvão enquanto forni-cavam sobre a cama que ameaçava desconjuntar-se. O Cristóvão bebia e drogava-se desalmadamente, escrevia textos que atirava fora porque não havia quem os merecesse ler. Fazia tudo em excesso. Excessos instantâneos, inconsequentes, como esses jovens que conduzem carros de grande potência, à noite e à máxima velocidade, escolhendo as ruas ao acaso, mas que nunca participarão numa corrida organizada, com linha de partida, percurso estabelecido e meta. O Cristóvão vivia num inferno de desespero e inveja de quem sabe e vê os outros bem menos talentosos alcançarem o êxito e o reconhecimento.

— Só por um momento se calou, quando o corpo se contraiu um segundo e as pálpebras se cerraram, talvez para dissimular o prazer do orgasmo.

Depois de fazer amor, a Berenguela adquiriu o hermetismo de uma mulher de negócios. O suor fazia brilhar os seus cabelos encrespados e acentuava o perfume ácido do corpo. Os olhos, dilatados pela cocaína viravam à esquerda e à direita, não a dei­xando seguir a direito à garrafa de uísque, mas, depois de beber um copo e ainda com as mãos a tremer, pediu dinheiro ao Fran­cisco Manuel com o maior à-vontade. Explicando em castelhano, para criar alguma distância: «caso es que necessito de dinero...» As drogas eram caras, infelizmente, porque nunca o paraíso esteve em saldo, havia a renda do apartamento por pagar e o Cris­tóvão não tinha agora outra fonte de rendimento que não fosse a de marido comissionista de uma mulher que vendia o corpo num cabaré e na cama de casal.

— Com a Berenguela aprendi que o amor mercenário e as fraquezas não deixam marcas tatuadas na pele. Ela amava o Cristóvão Crato como os náufragos que se deixam ir ao fundo agarrados um ao outro se podem amar.

—Cómo de entre mis manos te resbalas, como es tan largooen mi dolor tan fuerte!

A Berenguela foi guardar o dinheiro num cofre de madeira antiga, com os cantos forrados a prata, o único objecto de valor naquele tugúrio. Era ali que o Cristóvão guardava a única heran­ça que lhe restava. «Nunca me deixou ver o que tira daqui e vai depositar religiosamente num banco sempre que nos mudamos!» O Francisco Manuel respondeu-lhe que todos temos os nossos segredos, sem imaginar como esse segredo lhe iria afectar a vida, e passou adiante, dizendo que aquilo não era vida para eles, que deviam tratar-se, ir ao médico, fazer uma desintoxicação. Pergun­tou-lhe pelo irmão do Cristóvão, que vivia em Madrid, casado com uma mulher muito rica.

— Não me surgira um motivo para ir visitar o Manuel Crato e, embora a Berenguela me tivesse dito que nenhum queria saber do outro, um por orgulho, o outro por vergonha, decidi que a situa­ção do Cristóvão era uma boa causa para restabelecer os laços com o meu melhor companheiro dos tempos do Colégio Militar.

Despediram-se com a naturalidade afável de dois colegas que se separam à porta do escritório, sabendo que voltarão a encon­trar-se. O Francisco Manuel tinha de ir cumprir o seu dever de guarda-jóias de Portugal, porque os deveres exigem estas renún­cias, e ela tinha de ir dançar ao cabaré El Pombo.

O quartel-general do Exército de Libertação de Portugal, em Madrid, situava-se na numa antiga sede da Falange Espanhola, desactivada por falta de militantes e que fora cedida por emprés­timo aos irmãos portugueses. O prédio também fora imponente e agora ameaçava ruína. As paredes descoloridas estavam salpi­cadas de nódoas e buracos, como se antes tivessem servido para fuzilar antigos inimigos, e o Francisco Manuel abriu a porta com um empurrão para entrar no vestíbulo semeado de cacos de gesso caídos do tecto.

Encontrou o João Barradas a discutir com o guarda-costas do Guilherme Brandão, o Máximo Turiano, que fora chulo de putas em África, depois de ter cumprido o serviço militar, e sicário da Confederação Patronal, quando chegara a Portugal. O Barradas recebera ordens do cabo Matos, que por sua vez as trouxera, de Estremoz, do coronel Furtado, para só entregar aquele carrega­mento ao capitão Francisco Manuel em pessoa, e o Turiano tinha ordens do Comandante para levar os produtos que chegaram na velha carrinha Ford directamente para a antiga cocheira do pré­dio que funcionava como arrecadação do ELP.

A diferença de obediências dos dois subalternos traduziu-se num inultrapassável ódio, e o tumulto que os escudeiros provo­caram em nome dos seus senhores obrigou o Guilherme Bran­dão a vir ao pátio impor ordem com a sua presença. Ao encarar com o Francisco Manuel, ergueu o peito com a pose do almi­rante que chama um grumete e disse que precisava de lhe falar. — Mas eu nunca fui marinheiro, nem recebia ordens dele, e como também o João Barradas tinha coisas para me dizer res­pondi-lhe que iria depois.

O Guilherme Brandão soltou um resmungo de boi enjaulado e fez meia volta com a precipitação dos vingativos quando não conseguem o que querem.

— Sofria de delírios históricos e presunções de heroísmo e não suportava que o tivesse visto sem os enfeites das penas de

pavão com que se armara para criar a sua lenda de Lawrence da Arábia. Quando estive com ele na Guiné, antes de desembarcar­mos para uma operação muito arriscada, começou a suar por todos os poros e, perante o espanto geral, virou os olhos ao céu e proclamou: «Tremem as carnes daquilo em que as vai empe­nhar o coração!» Mas ficou no posto de comando do navio, a dar ordens pelo rádio e a colocar bandeirinhas nos mapas.

— No es de temor, no, sino de esfuerço, como ha dicho el conde de Cabra.

— Não suportava o meu sorriso quando o via representar o papel do salvador que carrega o pesado fardo com uma gravi­dade demasiado solene para ser levada a sério. Acima de tudo, não suportava que não precisasse dele para organizar os trans­portes dos bens que os aflitos queriam afastar dos revolucionários e que me correspondesse com o general Spínola.

Nas reuniões do ELP, o Guilherme Brandão referia-se depre­ciativamente ao Francisco Manuel como o turista, mas naquela tarde, antes de regressar ao interior da sede, arrependeu-se de lhe ter virado as costas e regressou com uma expressão de quem vai comer o vomitado para pedir, por favor, que depois de falar com o João Barradas fosse ter com ele.

— iQuanta dolor, Dios mio, quanta necesidad!

O João Barradas aproximou-se do Francisco Manuel para entregar a lista do que trouxera, acompanhada de uma carta do coronel Furtado a avisar que este fora o último carregamento mandado por ele de Portugal. O alentejano adivinhava o con­teúdo da mensagem e disse: «A situação mudou, capitão. Outros que levem de regresso o que trouxemos para cá. A partir de agora, é como se nunca nos tivéssemos conhecido. Cada um segue o seu caminho.»

— Despedi-me dele com um abraço e foi a última vez que o vi.

O gabinete donde o Guilherme Brandão despachava ordens para as represálias e os assaltos do ELP, onde tratava da buro­cracia e da propaganda e redigia notas oficiosas na gramática

difícil dos discursos dos presidentes de junta de freguesia em dia de inauguração de fontanário, cheirava a pobreza de tenda de campanha em bivaque militar. Tinha ao lado uma sala maior, a sala de operações e salão nobre, também com as janelas de vidros partidos, mas ornamentada com bandeiras, mapas, foto­grafias aéreas, miniaturas de barcos e um móvel com rádio e gira-discos, que, no final das reuniões e das cerimónias de jura­mento dos novos militantes e de reconhecimento pelos feitos dos operacionais, transmitia marchas militares e hinos bastante arranhados pelo uso.

Quando entrou, o Francisco Manuel percebeu o motivo que levara o Guilherme Brandão a dobrar a língua ao ver sentados o cónego Telo e o Gregório Castelo Branco. O pregador que a par­tir de Braga enfervorizara as gentes do Norte contra os perigos do comunismo através de uma retórica de incendiário e citações mal tiradas da Bíblia, vestia um casaco de xadrez multicor que destoava da camisa amarela e da gravata listada, formando um conjunto garrido de comerciante de gado que comprou o fato de cidade na feira da vila. Sorriu melifluamente, camuflando os lábios de sátiro para o interior da boca antes de o cumprimen­tar. O Gregório, redondo e liso, ensacado num fato escuro como um hipopótamo a boiar num pântano, passou a mão pelo queixo descaído, estendendo-a com a má vontade dos rancorosos.

Estavam ambos com cara de gatos-pingados que vêm anun­ciar a morte e tratar dos preparativos do funeral, e traziam essa missão difícil de transmitir e fácil de explicar que é o anúncio do irremediável, mas pareciam duas caricaturas extraídas de um filme de desenhos animados que recitam um diálogo com as vozes esganiçadas.

As recentes mudanças em Portugal permitiram aos conserva­dores recuperar o espírito de ordem de que tanto gostam. Depois da tempestade, as águas dos rios estavam a voltar aos seus lei­tos naturais e eles podiam regressar aos seus privilégios sem risco das acções violentas. O Governo recém-constituído decretara algumas medidas favoráveis, uma amnistia, uma lei de indemnizações, mandou prender os esquerdistas e soltar os direi-tistas. Enfim, o ELP estava a perder o apoio dos sectores mais pacifistas.

— O Gregório Castelo Branco explicou que o seu presidente se entendera com os banqueiros e os empresários.

— Basto con que lies expediera una bula para foliar grátis en el território reconquistado.

O Guilherme Brandão espumou de raiva. Sentia-se traído e a caminho de ser ostracizado, por desnecessário, e reagiu com um fervor misticóide, denunciando o complô fantasmagórico que se levantava contra ele e o ELP, no qual participavam os patrões, a banca, os militares de que agora, depois de ele ter ajudado os legalistas e os burocratas a subirem ao poder, só pensavam em ser promovidos, e até a Igreja estava a abandoná-lo. Ainda para mais, haviam-se vendido àquele que fora o primeiro responsável pela perda do império de África! «De quem levámos uma série de anos a ouvir discursos de propaganda derrotista!»

A comunicação de que os financiadores do movimento iam fechar as torneiras do dinheiro não era tudo o que de mau o cónego e o antigo retornado de Angola vinham transmitir. Tam­bém os proprietários das obras de arte enviadas para Espanha já começavam a pedir a sua devolução, e o general Spínola já dera o seu assentimento à restituição. «A esse hei-de meter-lhe o monó­culo no cu!»

O Guilherme Brandão reagiu com a violência de um animal ferido. «Vocês estão loucos e isto vai custar-vos caro!», utilizou o argumento do medo pelo desespero dos que se sentem aban­donados — «os militantes reclamarão represálias fulminan­tes!» — para convencer o cónego e o Gregório a explicarem aos que, durante o período difícil da revolução, só saíam de casa para ir à missa que os seus bens tinham sido bem utilizados para que pudessem agora andar em segurança à luz do dia. «Que jul­gam eles, que somos um bando de ladrões?»

Tanto o cónego como o Gregório sabiam do destino menos heróico dos valores, trocados nos bares de Madrid, nas contabilidades pouco rigorosas das putas do El Chicote e do Maxim's, transferidos para casas e colecções particulares, derretidos em barras de ouro, desmontadas as pedras preciosas das jóias e ven­didas avulso. A missão que os trazia era a de encontrar uma solu­ção de compromisso que evitasse os escândalos da exposição pública de um período confuso e conturbado que todos queriam esquecer, mas em que alguns não estavam dispostos a perder os anéis depois de terem salvo os dedos, e o Gregório Castelo Bran­co perguntou-lhe quais eram as suas intenções.

Qualquer organização moribunda concentra os recursos no seu aparelho terrorista, pois o eco das bombas ouve-se melhor do que o das palavras, e era esse o caminho que o Guilherme Bran­dão ameaçava seguir. Depois de uns instantes de pausa, respon­deu que iria animar o povo português com uma grande série de rebentamentos. «Assim demonstraremos a nossa força!», e propôs que o cónego arregimentasse os seus fiéis, como de costume.

«O que me pede é impossível, Comandante. Já não posso mobilizar as minhas gentes com os santiamém de uns tempos atrás. Além do mais, acordámos que o Movimento Democrático jamais apareceria associado ao ELP à luz do dia. Se nos envol­vem em crimes, é a nossa sentença de morte para o futuro.»

Parecia uma posição sensata, das que tomam os que gostam de tirar as castanhas do lume sem queimar os dedos, para contra­riar a clássica fuga para a frente que o Guilherme Brandão apre­sentava, mas o Gregório Castelo Branco, sem levantar a voz, pegou na proposta como se ela fosse um rebuçado e comunicou que o seu presidente concordava com uma nova e última cam­panha violenta antes das próximas eleições. Apoiava uma campanha sem autores a reivindicar os atentados, que assustasse a direita, que já se julgava a salvo, e afundasse ainda mais a esquerda, que ainda não estava convencida da sua derrota. Assim, na confusão instalada, ele podia representar o papel de árbitro e de salvador.

«Bem pensado!», e com esta exclamação o Guilherme Bran­dão agarrou a proposta daquele que ainda há pouco tratava como um vende-pátrias com a mesma facilidade que descartara o general Spínola, a quem devia a fama de herói.

A oportunidade que lhe abria uma porta para ele negociar o seu futuro, incluindo o da devolução das obras de arte, não evi­tava a futura bancarrota do ELP, mas o Guilherme Brandão pare­ceu ressuscitado e nele isso traduzia-se em palavras de ordem tão simples como as de comandar um pelotão de recrutas e numa ida ao El Chicote mostrar-se aos seus apaniguados na companhia de enviados de Lisboa.

O El Chicote era um bar com decoração de bordel parisiense e raparigas que não necessitavam de dançar para seguir a cami­nho das braguilhas, pertencente ao Pepe Rivera, um antigo mili­tar franquista de feições agrárias que vertia licores nos copos e os agitava com a violência de um estrangulador, e que recebera o alvará no final da guerra civil, quando o general Franco atri­buíra as licenças de exploração aos militares desmobilizados.

— Los tahures.

O Sigfredo veio a balançar o corpo de gigantone receber o Comandante e os seus convidados, trazendo nas mãos um copo des­sas mistelas intragáveis, e passou deliberadamente pelo Francisco Manuel sem o cumprimentar. Sentou-se e mandou uma das empre­gadas limpar a mesa dizendo: «Parece que temos aqui um turista.»

O antigo pára-quedista, que pertencia ao grupo dos militares com músculos na cabeça em vez de massa cinzenta, gritava «lim­pamos-lhes o sarampo e santas páscoas!», o que até ao cónego Telo provocava esgares de azia, quando lhe perguntavam o que fazer, e o Guilherme Brandão alimentava a sua vaidade e doci­lidade tratando-o por imediato. Encarregara-o da guarda dos bens vindos de Portugal para poder dispor deles à sua vontade, acicatando-lhe o ódio e a inveja contra o Francisco Manuel, e ele apenas daria conta da sua imbecilidade quando, no final da aventura madrilena, se viu com as chaves do ELP nas mãos e acusação de responsável pelos bens desaparecidos às costas. Uma carga que o impediu de ser nomeado comandante da tropa de pára-quedistas, a ambição da sua vida.

O Francisco Manuel, já conhecedor do ritual das noites no El Chicote, despediu-se, mesmo perdendo a oportunidade de assis­tir à celebração de um cónego de Braga que já tinha a puta Jus-tina ao colo a dizer-lhe: «Tienes un cráneo muy afilado, déjame ver como será el sexo.»

— Deixei-os a tratarem nas minhas costas da aliança entre aqueles que em Lisboa representavam o papel de campeões da nova liberdade e os pamplinas que em Madrid defendiam a velha ordem. Ambos iriam atribuir-me o papel de Judas.

Nas semanas que se seguiram, tal como fora combinado entre o Gregório Castelo Branco e o Guilherme Brandão, o ELP desen­cadeou em Portugal uma grande campanha de atentados, utili­zando o pequeno número de fiéis irredutíveis que se mantinha à volta do Comandante.

No regresso das tournées, o Corvo, o Vidal, o Trancoso, o Turia-no, chefes das equipas de acção, relatavam na decrépita sede do ELP os feitos realizados e indignavam-se no El Chicote, ao exi­birem as capas dos jornais que os atribuíam a bandos de comu­nistas e esquerdistas ainda activos. Os elementos mais excitados propunham que o movimento tomasse tácticas mais agressivas, sem darem conta de que estes sinais de vitalidade eram apenas os últimos estertores de um doente terminal antes do fim anun­ciado, em que só os mais iludidos, ou visionários, se mantinham firmes nas suas posições. Já só havia dinheiro para viagens e bombas, e pequenas células descomandadas começaram a assal­tar igrejas para recolher fundos e relíquias.

— Con Ia Iglesia es mejor estar en buenas relaciones.

E o Guilherme Brandão apareceu como um moderado a per­guntar: «Querem que a História nos julgue como um bando de criminosos?»

Foi com este cenário por fundo que o Francisco Manuel se dirigiu-se à sede do ELP com a serenidade de um navegante soli­tário que vai anunciar a partida para uma viagem de longo curso. A voz do Sigfredo dizia: «Vamos pô-lo à prova, encarregamo-lo de chefiar uma das próximas acções.»

Antes de ele entrar no gabinete do Guilherme Brandão e res­ponder, como se o imediato não existisse: «Não estou para isso, Guilherme. Já tenho a minha conta.» — «És um burguês, um diletante, um transumante.» — «Gostei dessa, do transumante, e tu o que és, Guilherme? Um marchand de arte? Um cantor de ópera?» — «Comandante, eliminamos o turista pela via rápida, para que aprenda bons modos?» — «Não merece a pena gastar munições com ele.» — «Parece-me que estás a perder qualidades e a ganhar barriga, Guilherme. É o que dá teres passado de assassino a ladrão, incluindo de igrejas, que são luga­res fáceis de roubar!» — «Tem cuidado, Francisco Manuel, quando chegar a hora do sangue entre nós.» — «Vai desafiar a tua putíssima madre! Tu és um cobarde e sabes que és um cobarde. Ainda te hei-de ver comerciante, que é a tua verdadeira vocação.» — «Fora com o intruso!»

Na cabeça do Sigfredo a melhor e, porventura, a única forma de tratar os recalcitrantes que não obedeciam cega e pronta­mente era empurrá-los borda fora, como fazia nos tempos de instrutor de salto aos recrutas pára-quedistas que hesitavam à porta do avião. Mas o Guilherme Brandão sabia que os problemas não ficam para sempre adormecidos nas profun­dezas, que mesmo os afogados vêm à superfície passado algum tempo, e, como entre ele e o Francisco Manuel existia a lis­ta dos bens trazidos de Portugal pelo João Barradas, tinha de o suportar até surgir uma saída diferente da proposta pelo Sigfredo.

Tentou envolvê-lo na teia que estava a tecer, com o argumento de o Spínola ser já um carregamento de carne em conserva que ultrapassou o prazo de validade. «O Velho está doente, recolhi­do nas termas por causa do fígado e da diabetes, já só nos serve de bandeira e para abrir certas portas.»

Ao redor do velho cabo-de-guerra da Guiné havia-se formado um círculo de oportunistas, que aproveitaram o seu prestígio para promover as suas ambições e que queriam agora sentir-se livres para disputar os restos do património. Estavam, como os actores no fim de uma temporada de fracassos, à procura de um empre­sário que os acolhesse numa nova companhia.

Eu fartei-me, Cento e Quinze, de conhecer falsos génios das artes com espírito de rafeiro, que se deitam imediatamente quan­do lhes acenam com uma bolsa, só não sabia que também os falsos heróis têm alma de escravo. Enfim, Mano, é difícil conhecer o bicho homem!

O contencioso que o Francisco Manuel mantinha aberto com o novo apoderado a que todos os novos e velhos matadores pro­curavam vender os talentos não lhe permitia, mesmo que esti­vesse disposto a isso, ir pedir-lhe um lugar na sua corte. Este era um dado assente, absoluto e tão inultrapassável como o de não ter asas para voar. É claro que também tinha boas justi­ficações.

— Vale mais ser um mendigo voluntário que atirou fora uma grande riqueza do que um criado de patrões gordos que explo­ram o mais pequeno monte de imundície para daí retirarem o seu proveito.

Passaram-lhe pelo espírito os pensamentos frios e solitários do abandono, mas aos poucos foi sentindo novo ânimo, um sopro quente na alma. Queria voltar ao topo e isso implicava começar noutro ponto e enveredar por outro caminho, porque aquele que seguira até aí estava bloqueado por uma enorme rocha que não tinha forças para deslocar. Podia ensaiar o papel do desmancha-prazeres que vai despir o deus dos seus atavios e mostrar o ouro que tem escondido debaixo das saias, o ódio que acumula entre as unhas, o desejo que pisca nos olhos.

Gritar que o rei vai nu já era arriscado, Cento e Quinze, quanto mais despi-lo!

Chegara para o Francisco Manuel o tempo das grandes mudan­ças e, como um novo clandestino, começou por alterar a imagem e mudou de residência. Trocou o apartamento da Calle Ferraz, onde o porteiro o tratava por Dom Francisco, por um quarto de hostal na Calle Madura, perto da casa do Quevedo, deixou cres­cer o cabelo e a barba e passou a vestir jeans e camisolas largas.

Adquiriu o aspecto de soixante-huitard caído em Madrid com o atraso das modas francesas na Península Ibérica. Para selar essa transformação e porque não tinha o sentido utilitário do Guilher­me Brandão, que se desprendia das pessoas como velharias que destoam da nova mobília e são lançadas à rua antes da mudança de casa, escreveu uma carta ao coronel Castro Furtado para ele fazer chegar ao general Spínola, relatando a actividade dos portugueses em Madrid, dizendo-lhe que os que para ali foram, ou fugidos ou para lutar, agora roubavam e matavam, banhados na corrupção. Que os chefes que por lá estavam julgavam que o vale-tudo era a melhor regra, que as contribuições desaparece­ram em divertimentos, as atitudes dos seus fiéis escandalizaram os amigos, esfriaram as alianças, e que tudo veio a reflectir-se em confusão e descrédito, tanto aos inocentes como aos culpados.

— Terminava confessando-lhe que, por mim, estava arrepen­dido de me ter envolvido nesta causa.

Quando saiu dos Correios, o Francisco Manuel sentiu-se pela primeira vez na pele de um civil. Entrara aos dez anos para o Colégio Militar, vivera toda a vida de adolescente a jovem adulto fardado e a obedecer a regras, de cabelo rapado acima das ore­lhas, a ouvir falar em coisas sublimes em prole dos outros, e agora era o tempo do mim, do é proibido proibir, da paz e amor.

Dirigiu-se ao El Europeo leve como um escravo com a carta de alforria. Madrid aparecia-lhe como uma réplica borbulhante e perigosa de Lisboa a seguir à revolução. Os jornais anunciavam diariamente ameaças de golpe de Estado, os filhos de uma Espanha ancestral desembarcavam na estação do Meio Dia e tomavam conta da Calle de Alcalá para celebrar as suas espe­ranças, empurrando os ocupantes habituais para a Cran Via, que passava a ser uma pequena Babilónia. Pela Castellana desfilavam meia dúzia de simpatizantes de um partido moderado, sonha­dores de uma democracia sem sobressaltos, que se cruzaram com uma caravana de automóveis a buzinar e camiões de car­ga com operários dos arrabaldes e camponeses das províncias mais pobres a agitar bandeiras como se fossem touros cobertos de farpas que correm para a praça a julgar que ganharam a liber­dade. Havia um bulício de revoluções que despertam. Um espí­rito inaugural como o de setenta e quatro e setenta e cinco em Portugal, ainda entre o ingénuo e o festivo.

Também o público dos teatros mudara, saturado das velhas piadas e farto de concertos das bandas municipais. O Quevedo passou a ter dificuldades em colocar as suas peças, porque em lugar das antigas obras se estreavam vaudevilles políticos ou revolucionários, protagonizados por actrizes novatas que mos­travam as mamas e o traseiro e por maricas de melenas oxige­nadas. Nos palcos entoavam-se loas ao amor livre e a repúblicas de trabalhadores, representavam-se dramas proletários de argu­mentos arqui-sabidos, onde os patrões das fábricas eram carac­terizados de déspotas, os quais criavam a solidariedade com o público, que chorava, aplaudia e cantava. O resto eram obras retrógradas.

No El Europeo, o Quevedo e o Cristóvão Crato desenvolviam ideias para um novo espectáculo que permitisse a um ultrapas­sar o labéu de retrógrado e ao outro adquirir o título de autor. No final, um ficaria rico e o outro alcançaria a fama.

Quando o Francisco Manuel os encontrou discutiam o título entre várias hipóteses lançadas pelo Cristóvão: Al bastón que le vistes en la mano, Ay Florealba, soné que te..., Esta víbora ardien-te, Si eres campana iDonde está el badajo?, Yo te untaré con tocino e Sola en ti, Lesbia, Vénus ha perdido. A Berenguela seria a actriz principal e o argumento, qualquer que fosse o título, tinha por base a mesma história picante:

— La vida de una mondonga criada en el palácio real en que su madre era hechiceraoun pouco puta, su padre ladrónosu tio verdugo.

A Berenguela torceu o nariz seco da cocaína ao papel de fressureira filha de uma bruxa e passou um cigarro de haxixe ao Francisco Manuel, que ganhara o direito a ser tratado como um igual desde que largara o fato e a gravata e se deitara com ela na cama desconjuntada do apartamento dos Quatro Caminhos.

Mas o problema principal era encontrar dinheiro para alugar o velho teatro El Corral de la Pacheca e montar a peça.

O Quevedo dispunha-se a entrar com as suas economias e a convencer alguns capitalistas da vantagem de aparecerem como mecenas e aproveitarem os ventos que corriam, para não serem apanhados de pijama como os seus confrades portugueses, que tiveram de ir para o exílio ou enviar os bens para o estrangeiro. O Francisco Manuel, sem lhes dizer o que iria fazer, rapou a barba ainda incipiente e vestiu de novo o fato cinzento quando decidiu ser agora, que o Cristóvão tinha uma oportunidade, mesmo ténue, de sair do pântano onde caíra, o bom momento para visitar o irmão dele, o Manuel Crato.

O filho mais velho do general Humberto Crato vencera as dificuldades causadas pelas actividades do pai, aproveitando o exemplo do seu antepassado António, bastardo e rei efémero, filho da judia Pelicana e fragueiro de alto bordo, que amava acima de tudo a boa vida, com boas mulheres e boa mesa.

Foi o melhor que a dinastia de Avis arranjou para suceder ao rei-cardeal Henrique e evitar que os Filipes mandassem para cá os seus recebedores de impostos, que, quanto à du­quesa de Mântua, parece que não houve reclamações, Cento e Quinze!

Deixado ao deus-dará em Madrid, o Manuel Crato arranjou maneira de casar com uma das mais ricas herdeiras de Espanha, uma fortuna feita pelo pai na construção civil e cunhada de um sobrinho do generalíssimo Franco, que atribuíra às duas filhas do Pepe Fezes o título de marquesas de um qualquer ignoto vale verde da Galiza, nobilitado através de uns pontapés na ortografia até ficar Valleverd. A fortuna de Emília de Valleverd transformou o Manuel Crato num homem com o aspecto enfaticamente con­servador dos que, tendo cultivado na juventude a algazarra mais encarniçada, alcançaram o poder ou a riqueza.

O Manuel Crato vivia no bairro de Almagro, numa mansão perto da Castellana, e recebeu o Francisco Manuel com a pompa de quem quer exibir o seu estatuto. Vestia um bleizer com botões dourados e usava lenço de seda ao pescoço, numa informalidade sintomática que lhe dava o ar de um galã outonal, embora ainda não tivesse quarenta anos, que a cabeça rectangular e a careca herdada do pai acentuavam. Cruzava os dedos sapudos, exibindo o anel de cachucho com um brasão qualquer, talvez o do extinto priorado do Crato.

— Tratámo-nos pelos números do Colégio, é claro, mas com a reserva do não-me-toques.

— Ni me jodas.

Durante os anos de internato no Colégio Militar haviam sido os dois amigos inseparáveis daquela amizade que os adolescen­tes julgam ir perdurar e sobrepor-se a todas as outras durante a vida adulta. Uma ilusão que desaparece quando cada um cria a sua regra do bem e do mal e encontra novos companheiros para seguir o seu caminho.

Ao contrário do irmão, o Manuel Crato estava muito bem informado sobre o que se passava em Portugal e da fama que o Francisco Manuel deixara atrás de si: «Não estás muito bem visto em Lisboa, duzentos e três. O homem que vai desempenhar um papel decisivo considera-te um tipo de pouca confiança e eu tenho para com ele uma dívida de gratidão por ter defendido a memória do meu pai.»

— Respondi-lhe que, quanto a esse, eu era credor, embora não tivesse dúvidas de que o maior perigo estava atrás de mim, em Lisboa.

A entrada do Manuel Crato na família dos construtores do regime de Franco introduzira-o no mundo dos empreiteiros que negociam as obras ao mesmo tempo que as comissões que as autorizam e, ao ouvir o pedido do Francisco Manuel para ajudar o Cristóvão a apresentar o seu espectáculo, reclinou-se no sofá de cabedal, soprou uma baforada do havano e respondeu: «Não creio em comportamentos altruístas, que ganhas tu com isso, duzentos e três? Ires para a cama com a amante dele? Arriscas-te a apanhar uma galiqueira. Lembras-te do doutor LM a expli­car nas aulas de higiene os perigos do morbus gallicus, o micróbio venéreo?», e soltou uma gargalhada à recordação dos tempos em que saltavam os muros do Colégio para irem às putas do Bairro Alto.

Pia baptismal da adolescência, Cento e Quinze.

Contudo, porque tinha deixado de acreditar em actos gene­rosos, não lhe desagradava a ideia de patrocinar a estreia do irmão como autor de teatro. Um artista tem hoje para as famílias emergentes o mesmo valor simbólico e ilustrativo que já repre­sentou, em tempos, um padre ou um militar.

Dobrou-se ligeiramente para a frente, num movimento pen­dular de conspirador, com uma expressão de sim, não era apenas o antigo colega que tinha segredos, e confessou ao perplexo Fran­cisco Manuel que, antes de partir para a viagem a Espanha onde encontrou a morte, e como se adivinhasse o que lhe ia aconte­cer, o pai chamara os dois filhos a Paris e dividira entre eles a herança do seu antepassado António Prior do Crato, que transi­tara ao longo das gerações.

Apesar de o Prior do Crato ter levado para o estrangeiro as jóias mais valiosas do escrínio de Portugal e de as ter derretido pela Europa em festas e contratações de mercenários, a verdade é que manteve sempre consigo as que tinham um valor simbólico para a independência de Portugal. «Eu, como primogénito, mantenho o Diamante Azul que o meu pai me entregou, não sei o que o Cristóvão terá feito das que lhe calharam, porque sei que também recebeu algumas. Temo pelo destino que lhes terá dado.»

O Francisco Manuel ouviu esta história com profunda surpre­sa. Tudo vai e tudo volta, tudo se perde e tudo se encontra, mesmo o que foi gasto com mil mãos, como terá feito o António Crato depois de fugir do Filipe de Castela, que não o queria por concorrente, e de ser traído pelo tio Henrique, que o pretendia casto para chefiar a Inquisição.

Após a confidência, o Manuel Crato fez uma pausa de arrepen­dimento, mas depois do segredo revelado já não podia negar o pedido. Concedeu que o Cristóvão era amoral, mas não um mal­feitor, nem mesmo um vagabundo. Teriam sido os azares da existência que o levaram a encontrar o seu elemento no meio daqueles que recusam submeter-se às convenções. Os jovens esquecem-se de que as sociedades se tornam filisteias e que pas­sam da contestação à resignação, como acontece aos homens, depois de vivida a juventude. «Que posso fazer, se o Cristóvão agora quer ser ajudado? Talvez esteja a entrar no bom caminho. Soy un maniroto.»

— Ganhei um patrocinador, mesmo vencendo a resistência da Emília de Valleverd, que entrou pesadona, com o cabelo apanha­do em bandós como uma Mona Lisa inchada, para oferecer chá e bolachas.

Aquela a quem desdenhosamente as velhas marquesas des­cendentes dos Grandes de Espanha nunca chamaram outra coisa senão a filha do Galego, é que não achou muita graça à ideia de ir assistir a um espectáculo num local chamado Corral da Pache-ca e, com a aversão instintiva das mulheres que viram criar uma fortuna a partir do nada ao tipo de boémio que o Cristóvão repre­sentava, não acreditou que dele pudesse sair algo que a bene­ficiasse.

— Nem imaginava a surpresa que lhe estava reservada!

O espectáculo, que recebeu o título final de El túmulo de la mariposa, foi anunciado como a grande novidade da temporada. O Quevedo conseguira o apoio do Ayuntamiento de Madrid, de um banco e de uma marca de cervejas, e, no dia da estreia, um cordão de guardas-civis isolou as ruas adjacentes do El Cor­ral de la Pacheca, só deixando passar os convidados, uns de smoking e casacos de peles, outros de cabelos compridos e jeans, a que se juntou o grupo de claque contratado para os aplausos, com aspecto de internados num asilo de inváli­dos do comércio.

— Un publico abigarrado en el que se mezclaban senoritos, surrealistas, burguezotes e marqueses...

A quem não passava pela cabeça aquilo a que iria assistir quando o teatro mergulhou na escuridão e do palco começaram a sair gritos de condenados à fogueira.

Ao abrir do pano, travestis paramentados de bispos rezavam litanias incompreensíveis, negros nus sopravam zarabatanas fáli­cas de cima de ameias de um castelo em forma de vagina, duas mulheres faziam amor numa banheira cheia de massa de tomate, um par de adolescentes enroscava-se num útero de sacos de plás­tico e a esperada apoteose chegava com a entrada da Beren-guela, que aparecia coberta com um manto transparente, o qual apenas lhe cobria a nudez de malícia e que ela abria repetida­mente, a imitar a mariposa do título, antes de sair, deixando ver o púbis iluminado por confetes cintilantes.

— El túmulo de la mariposa.

O público remexia-se nas cadeiras e, quando as luzes volta­ram a iluminar a sala para o intervalo, mostraram rostos amare­lados ou exangues de raiva. O alcaide levantou-se debaixo dos aplausos da claque contratada para aplaudir e saiu com o seu séquito, incluindo o Manuel Crato e a Emília de Valleverd, que lançaram olhares de ódio capazes de causarem a morte a alguém menos bem preparado para a enfrentar que o Francisco Manuel.

— Arranjei, com a minha boa vontade em ajudar o Cristóvão, mais um inimigo que iria difundir em Lisboa as piores aleivosias a meu respeito.

O espectáculo foi imediatamente suspenso pelas autoridades, deixando o Quevedo e o Cristóvão carregados de dívidas e, pior do que isso, cobertos por uma irreparável auréola de malditismo, a qual também se estendeu ao Francisco Manuel, que os passou a acompanhar no vagabundeio por cafés e tabernas onde foram procurar refúgio para o seu estrondoso fracasso.

— Começámos a sair à noite como criaturas lunares que renunciaram à luz para não serem reconhecidas.

O director de marquetingue da marca de cervejas que subsi­diara o espectáculo foi ter com o Quevedo para lhe exigir o dinheiro que investira a troco de publicidade nos cartazes e no pano de cena e não resistiu a pegar-lhe pelo colarinho do paletó quando o ouviu responder que se já estava a comer os próprios livros, como queria que lhe pagasse?

— Adernas Ia celulosa tiene mucha fibra, es muy buena para hacer el vientre.

O homem das cervejas apresentou queixa na polícia contra o Quevedo, por este ter tentado atirá-lo para dentro de uma caldei­ra de bronze a fermentar com cevada e lúpulo, obrigando o autor vingativo e caído em desgraça a fazer as malas e transladar-se para Nápoles, onde estivera em jovem, casado com uma viúva de quem se fartara ainda mais depressa do que das pizas. De Nápoles passara a Lisboa.

— Me fue a Lisboa por el mundo insospechadamente diverso que se iba abriendo con la revolución.

— Julgava que tivesse vindo desesperado. Como podia estar em Nápoles quem deseja mulheres alegres, mas surdas-mudas, quem goste de amigos que não o enganem e não o cumprimen­tem com dois beijos na cara, quem pretenda uma cidade onde haja menos pícaros que motoretas sem escape, onde os homens não tenham de saber cozinhar?

— Las cosas son todavia más complejas...

— E mais esclarecedoras da tua vinda para Lisboa, se disseres que limpaste dois corpos das suas malditas almas.

— lY usted, Ned, de qué conos se ríe? Le hace gracia que yo me arruine, o qué?

Restavam ao Francisco Manuel o Cristóvão e a Berenguela. Esta, apesar de consumida por uma gangrena interior, continuava a dançar e a explorar amantes de ocasião no El Pombo. Depois de a Berenguela partir para ganhar a vida, os dois homens iam acabar a noite no bairro da Moreria, para o Cristóvão se embe­bedar, falando de divinos fracassos, até a luz do dia os surpreen­der com a dor de um remorso na consciência.

— Navegávamos à deriva por Madrid no meu carro, uma imitação espanhola dos Renault, em segunda mão.

O Cristóvão jogava aleivosamente à boémia. De umas vezes despejando ideias com a fúria vingativa de um jogador de póquer que perdeu com quatro reis na mão, de outras com uma afecta­ção sensual e servil. O fracasso contaminava os demais aspectos da sua existência. Em vez de lutar, foi-se afundando. Bebia para recuperar da cocaína e drogava-se para curar as ressacas do álcool. Apertado pela fome e pelos vícios, o Cristóvão Crato ia-se desfazendo dos objectos que lhe restavam. O primeiro foi a Berenguela, que passou a viver com o empresário do El Pombo.

— Uma madrugada quis que o levasse à porta da cloaca onde ela dançava e, depois de a ver sair com o tipo azeitado que a meteu num Austin de dois lugares, pediu-me para o levar até ao viaduto que passava sobre a Calle Segovia. Parámos e ficámos um pouco a contemplar o esqueleto pré-histórico de Madrid recortado na alva da madrugada.

«É daqui que se atiram os suicidas», disse o Cristóvão com a entoação de quem quer engrossar as fileiras. Ele estava encolhido no banco do carro e as mãos tremiam-lhe quando as tentou meter no bolso para tirar uma pequena caixa quadrada. O Francisco Manuel puxou uma pequena manta que levava sempre no banco de trás para a eventualidade de ter de a estender no chão numa urgência de amores de borda de estrada, e o Cristóvão iniciou um discurso aos repelões de quem sente que lhe faltavam palavras, dizendo que desde os tempos do Colégio Militar tinha por ele uma mistura de ódio e de fascínio.

— Que eu devia ser o filho que o pai merecia ter tido. Era a primeira vez que o Cristóvão Crato falava do pai e respondi-lhe que os homens não crescem sobre os cadáveres dos pais.

«O meu pai morreu com mais coragem do que qualquer um neste mundo, disse-o o homem que o matou. Ele enfrentou a morte olhando os assassinos de frente e manteve uma atitude de tal serenidade que os assustou.»

Depois, desfez-se num choro convulsivo, com as lágrimas a escorrerem pela cara de uma magreza quase asquerosa, e o Fran­cisco Manuel abraçou-o, como faria a um filho que não tem sal­vação.

— Passou-me para as mãos o estojo que retirara do bolso, dizendo com a pressa aflitiva de quem larga uma pedra em brasa, como se agradecesse a quem a aceitava: «É o verdadeiro Diamante Azul que o António Prior do Crato trouxe de Portugal, leva-o de regresso, que é lá que ele deve ficar!», abriu a porta do carro e correu para saltar do viaduto. Ainda corri atrás dele, mas só a tempo de o ver sobrevoar a cidade como um pássaro de asas remendadas até cair na Calle Segóvia, esparramado e mártir da sua causa.

Na sala fria da casa paroquial de Agualva-Cacém, caiu tam­bém o silêncio que acompanha as mortes trágicas. Cento e Quin­ze, Mano Serafim, ficámos todos com as queixadas no umbigo e os olhos do tamanho do buraco do firmamento.

O Ned Marchmont cortou o silêncio com a voz cava dos pro­fessores de Inglês para explicar que o Diamante Azul valia tanto que fora a única jóia que o rei Carlos de Inglaterra não conse­guira que fosse incluído no dote da rainha Catarina, mesmo estando disposto a abdicar de receber a cidade de Bombaim! Todos olharam o Francisco Manuel com respeito e assombro, vendo nele um marajá das índias, um animal sagrado, um ungido, e a mim, Cento e Quinze, não queres saber que ele me pareceu uma ostra perlífera? Uma coisa viva que guardava dentro de si um objecto estranho que era a sua riqueza e a sua perdição! — O Diamante Azul é daqueles objectos que só servem para mostrar o poder de quem os possui. Inúteis e sem valor de troca, como o vosso Convento de Mafra, que abriga ratos gigantes e um quartel, a tiara do papa de Roma, que não o deixa mexer a cabeça, ou a coroa da rainha de Inglaterra, que não serve nem para comprar uma garrafa do gim anunciado pelos patuscos Bre-feater vestidos de vermelho que a guardam no castelo de Londres. Enfim, Cento e Quinze, uma daquelas coisas pelas quais os homens se matam e mandam os outros matar.

Depois de sabermos que o tal Diamante Azul estava na posse do Francisco Manuel, mais ninguém quis saber do destino dos que estiveram em Madrid, nem que o Guilherme Brandão dei­xara a Vera Munoz e fora nomeado, vejam lá, presidente de uma sociedade de explosivos em Portugal! Nem que o pára-quedista Sigfredo andava como um urso ferido a jurar-lhe pela pele, nem que o último gesto do Francisco Manuel em Madrid foi mandar o sicário Máximo Turiano, entre a vida e a morte, para uma clínica da Guardiã Civil, nem que a Berenguela aparecera morta com uma overdose, nem que o general Spínola mandara uma carta a Francisco Manuel dizendo-lhe que o acusavam de andar metido com vagabundos escandalosos e a viver à custa das jóias envia­das de Portugal, nem que, depois da ordem de retirada, cada um dos membros do ELP tratava da sua vida, uns deixando-se ficar em Madrid estabelecidos em negócios manhosos, outros regressando a Portugal com a inocência de colegiais que estiveram numa colónia de férias. Nem que...

Cento e Quinze, senti um arrepio, um verdadeiro e abracada-bradante arrepio histórico, ao lembrar-me de que mandara o meu Paulocas ir ter com a Elsa para ele esconder os bens do capitão Francisco Manuel, imaginando que o homem teria guardado uns papéis com uns nomes, umas vinganças e uns segredos de poli­chinelo com umas sacanices que lhe tivessem feito. Gelaram-se-me os ossos quando vi o olhar de pânico do Francisco Manuel a fitar-me como um anúncio de triste fim, se abrisse o bico, quando o inglês Ned Marchmont lhe perguntou:

— Compreendo que não queira dizer onde tem o Diamante Azul, mas ao menos tem-no guardado em lugar seguro?

Chegou então, Cento e Quinze, o meu momento de glória. Já que me juntara ao grupo e me preparava para comer e beber de borla no refúgio de Colares que o padre Nuno Maria arrancara a uma paroquiana, havia que pagar o pensionato e lancei:

— Todos aqui já pensaram nos perigos do Diamante Azul, mas ninguém pensou que também podemos morrer de frio, de fome e de outras misérias do corpo?

— Fome!

— Hambre!

A ideia de que o meu Paulocas andava a arrastar por Lisboa aquelas trombas de cordeiro antes da degola que a natureza (não se parece comigo, nem com a mãe) lhe deu levando a maior gema diamantífera que os nossos gloriosos descobridores rapinaram debaixo do braço, como se fosse um cigano com relógios e óculos escuros de contrabando, abriu-me um enorme buraco no estômago.

O Paulocas andava, sem saber, o coitadinho, como um meni­no de Deus de camisa enxovalhada, com o mais cobiçado objec­to da nossa História. Uma bomba-relógio que já causara duas mortes e uma condenação ao esquecimento em vida, enquanto a mulata Aurora, que o padre Nuno Maria fora acordar, nos pre­parava o pequeno-almoço.

— Despacha-te Aurora, Aurorita, que eu tenho de ir fazer o funeral do cabo Matos e estes senhores têm de ir dormir a fazer as malas antes que me cheguem aqui os cónegos do Patriarcado. E tu também convinha ires uns tempos para casa da tua família...

 

                       O procurador

Ao fim de seis meses o doutor Serafim Forte ainda se sentia um estranho no gabinete do procurador-geral da República. Um pássaro que a mão enluvada de um gigante acabara de depositar numa nova gaiola e que esvoaça dentro das grades para perce­ber onde o meteram e que perigos o cercam.

Sem mulher nem filhos à espera para reclamarem a partilha das inadiáveis tarefas domésticas, aproveitava o fim dos dias para ordenar as ideias que os assuntos caídos na secretária durante as horas do expediente transformavam no caos dos serviços de urgência dos hospitais, mesmo sem necessidade de catástrofes maiores que as causadas pelo programa nacional de desleixo e incúria.

Acendeu um cigarro, apesar da proibição de fumar afixada na porta pelo seu antecessor, deixando-se embalar pelo ruído dos aspiradores que acompanhava a algaraviada das mulheres da limpeza que andavam pelos corredores e salas com bibes colo­ridos de catatuas desasadas a preparar o campo para os desafios do dia seguinte.

Também ele era uma ave rara.

Fora nomeado procurador-geral da República porque, nos viciados jogos onde os croupiés dos vários poderes extraem os números que premiam os amigos, representava, entre os magistrados, aquilo que os engenheiros navais designam por meta-centro. Segundo esses peritos, o local onde todas as forças que sustentam um navio se anulam. Mas não tinha dúvidas de que o seu lugar era mais instável do que a linha de flutuação do Bolama, o cargueiro cujo misterioso afundamento à saída da barra para provas de mar fora o último acto que lhe calhara apreciar como juiz, antes de vir tomar conta do leme do Ministério Público.

É claro que na cerimónia de investidura no cargo todas as palavras de circunstância foram convenientemente explícitas em considerá-lo o homem certo para o lugar e veladamente implí­citas para lhe recordarem que a função do procurador da Repú­blica é a de curar de e não a de procurar o, marcando com as palavras a cerca de arame farpado donde não podia sair. Tam­bém não faltaram as alusões ao seu passado quando compararam Portugal à América, onde um filho de pai incógnito pode ocupar o trono imperial da Casa Branca.

Nenhuma novidade contida nas imposições de quem as pro­feria, nenhuma ilusão para quem as recebia. Mas ele estava deci­dido a dificultar a tarefa dos que se preparavam para assar o cabrito antes de o terem esfolado.

Ainda criança, o doutor Serafim Forte ouvira os homens que frequentavam a casa da Vicência, a sua mãe, afirmarem que o mais difícil não é chegar ao cimo, mas manter-se lá, e que semear a insegurança nos que pretendem apear-nos é a melhor táctica para o conseguir. Um antigo guarda-redes internacional, de quem tivera a fotografia assinada no quarto, explicou a um minis­tro, acabado de ser despedido com o seco cartão de agrade­cimento de Salazar, que o seu truque para defender penaltis era lembrar ao avançado as vezes que ele já falhara nos jogos pas­sados.

Só não imaginara que a ocasião de comprovar a eficácia da teoria do mãos-de-ferro chegaria através de um telefonema do secretário da Embaixada inglesa, a pedir que recebesse o jorna­lista Ned Marchmont, de passagem por Lisboa. O Ned March-mont era primo do secretário da Embaixada e também seu irmão na Maçonaria. O doutor Serafim Forte não podia negar-se a ouvir o que este inglês tinha para lhe dizer e que se iria revelar tão importante para levar aqueles que o desprezavam a temê-lo.

Quem o introduzira na Maçonaria fora o seu amigo Fernando Cardoso quando, no final do curso de Direito, lhe disse que ia seguir a carreira da magistratura. Optava por esta via por neces­sidade e por gosto. Por necessidade, porque o filho da Vicên­cia seria sempre um advogadozeco de pequenos delinquentes, de causas reles, da rataria de esgotos de que queria afastar-se, mas também por gosto, porque se habituara a viver sozinho entre mulheres e ganhara o vício da solidão que é necessária para julgar.

O único amigo que fizera e mantivera durante a infância e a juventude, aquele que conhecia e respeitava o segredo da sua origem, compreendeu que o Serafim Forte quisesse procurar um caminho que lhe permitisse julgar em vez de ser julgado, mas pediu-lhe que não decidisse por enquanto e, dias mais tarde, propôs-lhe aderir a uma loja maçónica. Perante o ar assustado do Serafim Forte, o Fernando Cardoso riu-se e explicou-lhe que não o estava a convidar para uma igreja secreta com os fiéis à volta de um pregador de avental que lhes ensinava a sabedoria e lhes distribuía beberragens de sangue. Esse tempo passara, se é que existira. Quando ele reagiu, respondendo que queria ser livre, que preferia ser livre, o Fernando Cardoso encarou-o com uma dureza que não lhe era habitual, para quase gritar:

— Queres ser livre? Livre de quê? Livre para quê?

A aspereza com que o Fernando Cardoso tratara o Serafim Forte era o reflexo dos jugos a que o sujeitavam os seus para ele pertencer ao grupo dos que reinam, vencem e brilham, porque a força do bando é mais importante do que o prazer e a felici­dade do indivíduo. A família de advogados e altos funcionários do Fernando Cardoso proporcionara-lhe aquela vida fácil que permite a liberalidade de conviver com o filho da patroa da casa de meninas da Alameda D. Afonso Henriques, que toda a boa sociedade de Lisboa sabia existir, mas não a liberdade de recusar um casamento de conveniência.

— Tens de pertencer a um grupo, Serafim.

Foi quando o Fernando Cardoso lhe anunciou que ia casar com a Branca e o convidou para padrinho.

Apresentar à família um padrinho de casamento como aquele colega, com uma nódoa original tão carregada, constituía o seu grito de revolta. Para quem o conseguisse entender...

— Tu sabes o que é o desprezo, Serafim. Aproximaste-te dos que se julgam superiores, mas eles nunca te hão-de perdoar. Vão atirar-te com lama à cara. Tu tens virtudes e qualidades, mas não podes viver num deserto, não podes ficar sozinho!

Na noite em que um aceitou entrar para a Maçonaria e o outro casar, o Fernando Cardoso falava do amigo e dele próprio. Dele próprio, como percebeu o Serafim Forte na sequência do seu assassínio, apresentado como fruto de um reles crime passional.

O Serafim Forte conheceu a Branca durante o curto noivado que se confundiu com o tempo mínimo de namoro para a união da jovem órfã vinda de Angola com o futuro brilhante advogado de negócios não ser considerada um negócio de famílias do sé­culo xix, ou entre indianos, o que seria intolerável depois da ocupação de Goa pelas tropas do Pandita Nehru. Havia que salvar as aparências.

Viu pela primeira vez a noiva do amigo ao fazer de chaperon numa visita do Fernando Cardoso ao colégio das freiras do Ramalhão, em Sintra, com autorização para a Branca os acompanhar numa curta saída. Foram os três lanchar a uma pastelaria da vila e ele recordava-se como se fosse hoje, porque para ele aquela tarde seria sempre, hoje, da tristeza resignada da Branca, da indi­ferença, igualmente resignada, do Fernando Cardoso. Apaixo­nara-se perdidamente pela Branca nessa angustiante tarde cinzenta e resignara-se a esconder esse amor.

A partir daí a sua vida foi uma fuga, tal como a do Fernando Cardoso. Ele fugiu para as comarcas de província, para os casos difíceis, para acórdãos de surpreendente brilhantismo, o Fernan­do Cardoso para os grandes e obscuros negócios em que o envol­veu o tio da Branca, Gregório Castelo Branco, para as amantes de ocasião. Fugiam ambos da Branca, arranhando-se e arran­cando pedaços de si em todas as barreiras de espinhos para onde se atiravam deliberadamente, flagelando-se até se destruírem, porque entre ela e eles pairava a sombra do fantasma que a enfei­tiçara em Angola, o capitão Francisco Manuel da tropa de Aven­tureiros, herói de guerra, ferrabraz da revolução.

O doutor Serafim Forte prometera chegar tão perto quanto as circunstâncias lhe permitissem da verdade que estivera por trás da morte do seu amigo Fernando Cardoso, ocorrida há vinte e cinco anos. Devia essa verdade à infeliz da Branca, que se vira envolvida numa relação que teve por base o castigo e se trans­formou numa tortura. Devia essa verdade também a si mesmo, porque na altura devida não tivera coragem de a procurar, pres­sentindo que as verdadeiras causas escondiam perigos muito para além dos que podia vencer.

O processo do assassínio do doutor Fernando Cardoso estava juridicamente encerrado e não podia ser reaberto. A verdade da justiça estabelecera sem mais possibilidade de recurso quem matara, como e porquê. Mas o pudding de passado e presente que o velho jornalista Ned Marchmont trouxe ao doutor Serafim Forte, com a eficaz mistura de cumprimento do dever cívico e da defesa dos interesses própria dos Anglo-Saxónicos, dava-lhe o pretexto de que necessitava para recuperar esse caso, que, na altura, lhe causara tantas perplexidades.

O inglês recomendado pelo secretário da Embaixada veio expor ao procurador as estranhas circunstâncias em que, no seu entender, ocorrera a morte de um velho soldado que ele conhe­cera em Angola, quando lá estivera a fazer uma reportagem no início da guerra. Ora o cabo Matos, o tal militar que aparecera morto, era o homem encarregado de tomar conta do capitão Francisco Manuel, um oficial que vegetava no asilo da Casa do Desterro, votado ao esquecimento como inimputável depois de condenado como autor moral do assassínio de um advogado. O cabo Matos fora chamado ao serviço para caucionar os actos do capitão Francisco Manuel e este não era alguém que tivesse passado ao lado da História recente de Portugal. Bem pelo contrário.

O Ned Marchmont, além de falar um português mais que razoável, tinha um conhecimento de Portugal e do funciona­mento das suas instituições que ultrapassava a dos relatórios, já de si pouco abonatórios, dos seus compatriotas que por aqui haviam passado em turismo, comércio ou em campanhas mili­tares. Fora por saber da inutilidade, e até do risco, de incomo­dar polícias e funcionários portugueses com dúvidas sobre o modo como arrumavam os casos e adormeciam os assuntos mais melindrosos que pedira ao seu primo secretário da Embai­xada que lhe proporcionasse uma audiência com o seu confrade o procurador.

Não queria intrometer-se nos assuntos portugueses, algo que já demasiados compatriotas haviam feito sem obter o resultado pretendido, nem gostaria de ser tomado por investigador policial, ou por agente secreto, pois os livros do Sherlok Holmes e os filmes do 007 haviam esgotado as possibilidades de reedição dessas figuras solitárias que resolvem mistérios e vencem perigos dispensando ajudas, mas estranhava que as autoridades militares portuguesas tivessem, simplesmente, atribuído a causas naturais a morte do cabo Matos. Que tivessem posto uma pedra sobre o assunto com uma rapidez e uma certeza que contrastava em absoluto até com as morosas diligências que desenvolviam para apurar as causas da falta de pontualidade de um recruta em apre­sentar-se no quartel.

O Ned Marchmont justificara o seu interesse por esta morte com o facto de estar a escrever uma história sobre piratas ingle­ses e a importância dos seus saques na construção e grandeza do Império Britânico. Uma prática antiga, mas continuada até aos tempos actuais. Não já através de galeões e homens de perna de pau, mas de modernos corsários de respeitabilíssima aparência, com fatos feitos por medida nos melhores alfaiates da Regent Street.

Neste ponto, o doutor Serafim Forte acendera um novo cigarro, a significar que não dispunha de uma eternidade para ouvir his­tórias conhecidas e o Ned Marchmont foi direito ao assunto: esta­va certo de que o capitão Francisco Manuel guardava consigo algo de muito valioso, uma jóia cobiçada pelos grandes comer­ciantes de arte londrinos, o Diamante Azul, e, para provar a importância daquilo que o oficial teria em lugar desconhecido, o Ned Marchmont comunicara-lhe que a morte do cabo Matos ocorrera quando se encontravam em Portugal os irmãos Maurício e o Roberto Stuart, os príncipes palatinos, conhecidos trafican­tes, fornecedores das grandes casas e das grandes colecções.

— Pura coincidência? Talvez, senhor procurador, mas uma estranha coincidência que merecia ser esclarecida, em vez de esquecida.

O doutor Serafim Forte agradeceu as informações e o incó­modo a que se dera o jornalista e este, à saída, desejou-lhe sorte e êxito no seu novo cargo.

De novo só, o procurador meteu uma a uma as folhas onde tomara as notas da conversa na máquina de as fazer em franjinhas ilegíveis, registando na memória o que o inglês lhe dissera. Sem nenhuma dúvida, apenas uma pequena parte do que guardava para si, como se soubesse que o procurador era capaz de reconstituir as zonas em branco sobre o tal capitão Francisco Manuel, porque era nesse fantasma condenado pela morte do seu amigo Fernando Cardoso que tudo confluía. Sempre ele!

Agora, as dúvidas do inglês sobre a morte do cabo Matos for­neciam-lhe o álibi que justificava o fel que ia deitar nas taças por onde bebem aqueles que buscam alcançar os seus objec­tivos por métodos muito diferentes dos das virtudes que apre­goam.

Depois desta visita, o dia do procurador estava honestamente ganho, restava-lhe esperar pelas próximas, as que viriam por si próprias bater-lhe à porta e as que ele faria sair das tocas. Ligou pelo intercomunicador a chamar o carro oficial.

Ao passar pela Praça de Londres, o doutor Serafim Forte des­pediu-se do motorista, avisando-o de que o fosse buscar no dia seguinte a casa, à hora do costume, e dirigiu-se a pé na direcção da Alameda Afonso Henriques, dissolvido na multidão dos que por volta das sete da tarde saem dos empregos carregando amar­guras e hesitam em enfrentar as preocupações que os aguardam nos lares.

Nada distinguia aquele homem de meia-idade, de estatura mediana e fato cinzento, dos vulgares chefes de família da classe média que herdaram os contratos de habitação e as velhas rendas dos pais que habitaram as casas construídas, nos anos cinquenta, à volta do Instituto Superior Técnico. A geração dos primeiros inqui­linos mudara de residência para os cemitérios e as casas ficaram como ruínas da memória dos tempos em que eles viveram nelas. Com a segurança dos que voltam às origens e conhecem os labi­rintos de olhos fechados, o doutor Serafim desapareceu no escuro de um vão de escada, depois de empurrar uma porta com a tinta em escamas, os gonzos ferrugentos e os botões das campainhas vazios como buracos de olhos vazados de uma caveira.

Às dez da noite, quando o doutor Serafim Forte saiu por essa mesma porta, a Alameda Afonso Henriques adquirira o aspecto sinistro daquilo que passara a ser: o cemitério abandonado não só pelos corpos como pelas almas dos antigos habitantes, que deviam estar agora no Alto de São João a lavar as loiças do jantar e a assistir a emissões de televisão a preto e branco. Uma névoa quente e suja de Bagdad bombardeada envolvia os vultos de mulheres projectados na contraluz dos raros candeeiros acesos, as luzes de pirilampos dos faróis dos carros parados anunciavam predadores emboscados à espera das presas, os sacos de plástico dançavam na poeira amarela da irremediável calva de argila seca que sucedera ao antigo relvado que se estendera, viçoso, diante das escadarias da grande escola dos engenheiros.

As paredes que suportaram o portão gradeado por onde entra­ram gerações de estudantes construtores de edifícios e obras de arte serviam agora de tela aos esguichos de ódio dos vândalos armados de latas de spray que destruíam a cidade em razias impunes, e do outro lado adivinhava-se o negrume de boca caria­da no lugar onde existira a Fonte Luminosa. Toda a Alameda fora destruída por um cancro que alastrou silencioso e sem resistên­cia, até a deixar como um cadáver que exala os últimos bafos húmidos e podres. O doutor Serafim Forte procurava escapar daquele bairro clandestino mergulhado no blackout antes de um ataque aéreo, onde nem já os anúncios do antigo Cinema Impé­rio serviam de referência, porque uns espertalhões o transfor­maram em terreiro de vender esperanças em nome de Deus. Uma ficção que já tem o enredo escrito e é bem mais lucrativa do que histórias de amores e aventuras. Conseguiu-o utilizando um truque cinematográfico. Correu para o táxi que um casal de dois homens abraçados chamara e tomou-o de assalto antes de os apaixonados terminarem as carícias inadiáveis, deixando-os aos saltos de caniches no passeio, enquanto gritava ao moto­rista que fugisse daquela zona perigosa.

O homem que conduzia o táxi devia ser um piloto de naves espaciais de busca e salvamento a fazer horas extraordinárias na noite de Lisboa e, ao ver pelo retrovisor o cinquentão, de fato e gravata, que lhe caíra no banco de trás, recobrou o ânimo do herói que resgata um dos seus, exclamando:

— Isto está por conta das putas e dos arrebentas! Por mim, lançava-lhes fogo.

Quando ouviu o doutor Serafim Forte mandá-lo seguir para o Flamingo Dourado, deu uma pancada no rádio, que debitava uma lengalenga sobre a próxima vinda de Cristo, calando com a tou-tiçada o brasileiro que conhecia o programa de viagens do naza­reno, antes de comentar:

— Belo local, no tempo em que fiz a tropa havia um Flamingo Dourado na Ilha de Luanda!

O táxi conduzido pelo antigo expedicionário nas colónias dei­xou-o à porta do cabaré e o doutor Serafim Forte entrou saudado pela vénia do porteiro, a bater-se à gorjeta de um cliente que não levantava suspeitas.

Àquela hora a sala de festas ainda estava vazia, à espera dos homens gordos que viriam celebrar negócios, depois dos longos jantares. As raparigas de saias curtas, vestidas como prendas de Natal, vagueavam a fumar e a pintar os lábios, algumas faziam exercícios de aquecimento na pista, ensaiando passos de ginás­tica e meneios de corpo ao som da música ainda suave como a dos órgãos de igreja antes do início das cerimónias.

As paredes de vidro espelhado reflectiam imagens de falsa inocência de recreio feminino que ele não gostava de recordar e chamou o empregado que estava de atalaia junto ao balcão, com uma farda demasiado grande para a magreza doentia do corpo.

— O senhor João Vicente?

O velho com cara de castanha pelada tossiu e apontou um vulto que se encontrava de costas a falar com uma das mulheres. O doutor Serafim Forte aguardou até ele terminar a conversa e aguentou o olhar de espanto do João Vicente quando este se voltou. Ambos pareciam esperar que o outro desse o primeiro passo com a tensão de dois contendores prestes a iniciar o duelo. O procurador avançou e o João Vicente manteve-se especado, sem mexer um músculo, com o copo de uísque na mão.

— Podemos conversar em privado?

O patrão do Flamingo Dourado apontou uma porta disfar­çada, dando passagem ao doutor Serafim Forte, quando uma mulher jovem, de cabelos escuros, se aproximou apressada a pedir desculpa pelo atraso.

— Vai andando, Linda.

O lingrinhas com a farda de soldadinho de chumbo enrugado veio perguntar se o patrão precisava de alguma coisa:

— Rata, não deixes que me venham incomodar.

Os dois homens sentaram-se frente a frente, separados pela mesa onde se acumulavam os papéis da gerência do cabaré, e, enquanto o João Vicente os afastava, o doutor Serafim Forte repa­rou nas fotografias penduradas nas paredes do pequeno gabinete sem janelas, onde não chegava o ruído da sala principal. Onde não chegava qualquer ruído. Fotos do João Vicente na guerra, tendo por fundo a selva de Angola, ao volante de um jipe, senta­do de calções à porta do primeiro Flamingo Dourado, rodeado de tipos gordos, de governadores e administradores, de clientes estrangeiros, com artistas de variedades. Fixou-se numa delas, em que o João Vicente aparecia abraçado a uma bela mulher more­na, do mesmo tipo da que há pouco lhe viera pedir desculpa pelo atraso.

— Venho da antiga casa da minha mãe, de ver a Bárbara.

— Como é que ela está?

— Os médicos dão-lhe pouco tempo, mas continua a lutar.

— Não tenho deixado que lhe falte nada.

O assunto e a presença do doutor Serafim Forte incomodavam o João Vicente, e ele não fazia cerimónia em demonstrar que queria despachar rapidamente o que quer que fosse que o trou­xera ali.

— Não foi para me falar da doença da Bárbara que veio ter comigo...

— Não. Foi para lhe perguntar o que sabe da morte do seu antigo companheiro dos tempos da guerra, o cabo Matos.

— O que todos sabem.

O procurador colocou a mão sobre a mesa com a força sufi­ciente para o som da palma da mão nas tábuas ser ouvido no silêncio opressivo do gabinete.

— Vamos falar claro. Eu não sou polícia, mas já fiz muitos interrogatórios. A minha visita não é um inquérito oficial. Sei que na noite da morte do cabo Matos o engenheiro Miguel Vascon­celos esteve aqui com dois ingleses e que, depois de eles saírem, o João Vicente também deixou o cabaré...

— Se sabe isso, sabe que eu recusei o que o Miguel Vascon­celos me propôs.

— Matar o capitão Francisco Manuel?

— Não foi isso que me pediram.

— Foi certamente coisa parecida... Com o seu passado, é o principal suspeito da morte do cabo Matos e agora não vai ter a protecção de que gozou depois do assassínio do doutor Fernan­do Cardoso. Sabe que eu era muito amigo dele?

— Foi ele quem o ajudou a fazer o curso de Direito quando saiu de casa da sua mãe, por ter vergonha das actividades da Vicência das meninas... e que foi padrinho do casamento dele com a Branca, apesar de estar apaixonado por ela...

— Como vê, sabemos quase tudo um do outro. Está disposto a falar sobre as verdadeiras razões da morte do Fernando Car­doso?

— Que ganho com isso?

— É o único caminho para se livrar da acusação que mais tarde ou mais cedo lhe vão fazer sobre a morte do cabo Matos...

— Agora somos amigos?

— Não gostava que, antes de morrer, a Bárbara ainda sofresse o desgosto de o ver envolvido em mais um homicídio...

Houve um longo tempo em que a família foi a causa da sua maior vergonha e em que o doutor Serafim Forte tentou libertar-se dela. A irmã, que regressara cancerosa para se acolher à casa materna, fê-lo compreender que não é possível largar as origens como se fossem os dentes de leite. Percebeu que não podia con­tinuar a fugir da sombra do passado no funeral da mãe.

Quando a velha Vicência, depois de uma vida por onde pas­saram centenas, milhares de homens, a quem ela deu conforto, prazeres e dinheiro, de quem guardou segredos e medos, foi acompanhada até à cova apenas pelos dois filhos, quase certa­mente de pais diferentes, porque ela nunca lhes explicou esses pormenores, nem esses dois homens vieram despedir-se da alcaiota ao cemitério do Alto de São João. Muito menos os cava­lheiros de posição, os exemplos de virtudes cristãs, os respeitá­veis chefes de família, os guardiães da moral que frequentaram a casa de meninas universitárias da Alameda Afonso Henriques. Talvez sejam assim tristes e vazios de um último afecto os finais das mulheres que escondem em si a hipocrisia dos que as usam e as acusam.

Ao entrar nos cinquenta anos, o doutor Serafim Forte chegara à conclusão de que o pecado original é um conceito iníquo, de que os filhos não têm de se envergonhar ou orgulhar das acções dos pais, de que cada um responde por si, e decidira que nunca mais assumiria como vergonha ser o filho de uma puta. A con­versa que viera ter com o homem rude que a Bárbara amara fazia parte do seu processo de habilitação de herdeiro da mãe e da irmã, porque os sentimentos são as únicas heranças que ninguém pode alienar de si mesmo.

O João Vicente ofereceu-lhe um uísque e aquele que podia ter sido seu cunhado aceitou-o como um gesto de paz, embora lhe lesse nos olhos a desconfiança dos acossados quando ele lhe perguntou:

— Acha que ganho um seguro de vida se disser que o doutor Fernando Cardoso morreu porque sabia de mais acerca do envolvi­mento de alguns dos tipos mais importantes do país e alguns estran­geiros nos negócios escuros feitos por conta das guerras em África?

— Que tipo de negócios?

— Armas, petróleo, diamantes, que passaram pela África do Sul, por Macau, pela América, pela França. Coisas em grande, que eu nunca soube bem o que eram, nem quis saber, e que o assus­taram. O palerma julgou que podia sair da organização com o adeusinho do bom esposo que se despede da amante que amea­ça contar o romance à legítima. Fiou-se que tinha as costas quen­tes, que nunca lhe tocariam, mas enganou-se, porque onde ele se meteu não há salva-vidas. Não há pai, nem mãe, nem Deus!

— Você dá-se bem nesses ambientes!

— Não nasci num berço de ouro, doutor.

— Nem eu, mas acho que chegou o tempo de a verdade vir ao de cima.

— Quer então que eu declare que o doutor Fernando Cardoso morreu porque ia abandonar o barco dos piratas depois de saber onde eles esconderam o tesouro?

Os dois homens olharam-se como se fossem dois peque­nos cachorros esfomeados que descobrem uma cobra. O instinto diz-lhes simultaneamente que têm de a comer e que não a podem abocanhar. Têm de decidir correr o risco de a cobra os morder ou retirarem-se. João Vicente respirou fundo e o doutor Serafim Forte perguntou-lhe:

— E quanto ao capitão Francisco Manuel?

— Foi acusado por pura vingança de coisas passadas em Áfri­ca e durante a revolução, mas no fundo serviram-se dele só para despistar. Na altura eles não sabiam que o capitão tinha o que andam agora à procura.

— Eles, quem são eles?

— Os tipos da Fundação o Homem e a Obra!

— E do que andam agora à procura?

— O Miguel Vasconcelos falou de papéis... mas julgo que queria tudo o que o capitão Francisco Manuel tivesse...

— Incluindo uma jóia, o Diamante Azul?

— Um Diamante Azul? Ninguém falou nisso.

— Esqueça. O que fez depois de o engenheiro Miguel Vascon­celos ter saído com os dois ingleses?

O diálogo entre os dois homens perdera a agressividade ini­cial, mas continuavam a trocar as frases com a rispidez de dois espadachins que têm urgência de acabar o jogo.

— Fui à Casa do Desterro para avisar o capitão Francisco Manuel de que devia tomar cuidado e encontrei o cabo Matos já morto, estendido no chão. Coloquei-o na cama, tapei-o e vim-me embora.

— A velha amizade da guerra falou mais alto!

— Acredite ou não.

— Acredito que o perigo e a morte nos reconciliam connosco. Pensa que foram os ingleses que o mataram?

— Não.

— Durante a conversa que tiveram aqui, alguém lhe falou num alentejano, chamado João Barradas, que apareceu afogado?

O João Vicente meteu as mãos por baixo da mesa carregada de papéis e garrafas e deixou-a cair com o estrondo e o deses­pero de quem atingira o limite da paciência. As olheiras escuras salientavam os olhos avermelhados da tensão sanguínea e, de repente, o animal perigoso que fora enjaulado quase reben­tava as grades que o aprisionavam. O velho mastim reagia mos­trando os dentes e falava como se rosnasse.

— Foda-se, doutor Serafim! Eu não conheço nenhum alente­jano chamado Barradas, eu sou transmontano e nem para caçar vou ao Alentejo!

— Calma.

— Estou farto de que me chamem criminoso quando só fiz o que os verdadeiros crápulas me obrigaram. Eles só deixam sair da miséria quem aceita fazer-lhes os trabalhos sujos, ou lhes obe­deçam de espinha dobrada e chapéu na mão. Ou criminosos, ou funcionários. Olhe para si, senhor procurador-geral, e espere pela paulada que eles lhe estão a preparar!

— Posso dar-lhe um conselho? Não vá contar esta conversa que tivemos aos seus amigos da Fundação.

— Não tenho outro caminho senão estar ao lado deles, mas agora sem sujar as mãos.

— Quem mexe em carvão não pode ter as mãos limpas.

— Vou trespassar esta baiuca e fico como agente da Deolinda, aquela rapariga que chegou atrasada... ela tem bom físico, boa voz e há quem a apoie, um mecenas...

— Desejo-lhe boa sorte.

A conversa terminara e os dois homens hesitaram antes de estenderem a mão um ao outro. A doença da Bárbara ajudou-os a ultrapassarem o constrangimento.

O doutor Serafim Forte saiu do Flamingo Dourado passando pela sala que começava a animar, já com a música de tempes­tade a ribombar nas paredes. O lingrinhas fardado acompanhou-o a tossicar até à porta e despediu-se dele com um «boa noite stor», que tanto podia significar que o conhecia, como o cumpri­mento usual aos que dão gorjetas e na volta recebem um título académico.

Ainda não eram onze da noite quando o doutor Serafim Forte chegou ao novo apartamento no Lumiar Residence, depois de ultrapassar os modernos sistemas de segurança do condomínio fechado que o protegiam dos perigos previstos para o desempe­nho das suas delicadas funções e onde, tal como os presos, ficava a mercê da vigilância contínua dos seus guardas.

Passara a viver cercado de grades deslizantes e seguido por olhos electrónicos que espiavam os seus gestos, restando-lhe a frágil esperança de que não fossem do género de atravessar as pare­des, porque podiam confundir a residência oficial do procurador-geral da República com o armazém de um alfarrabista. Os livros acumulavam-se, empilhados em prateleiras pelas paredes e pelo chão, e a Palmira, a mulher-a-dias que vinha fazer as limpezas, não estava autorizada a mudá-los de sítio. Treinara as suces­sivas Palmiras, desde os tempos de juiz de círculo, a realizar as tare­fas domésticas mínimas para a sobrevivência nas sucessivas casas que habitara com a sazonalidade e o despojamento dos pere­grinos acolhidos nas hospedarias à borda das estradas.

Com a excepção dos livros e da música em vários suportes, nenhum outro objecto identificava o seu passado, como se atrás dele existisse um vazio que não deixara registo de família, colegas de escola, viagens, promoções, louvores, jantares, cumpri­mentos a altas entidades. Nenhum horroroso bibelô, nenhum paninho de renda, nenhuma toalhinha bordada à mão, nenhuma carpete peluda, nenhuma jarra de flores, nenhuma escultura de artesanato indígena, nenhuma salva de prata, apenas, meio escondido numa estante, entre os livros de códigos e as colunas de som da aparelhagem, um quadro encaixilhado com o retrato de grupo do casamento do Fernando Cardoso com a Branca.

Foi nesse quadro que o doutor Serafim Forte fixou o olhar triste do marinheiro em terra a observar as estrelas que o orienta­ram. Sentou-se no sofá de cabedal, o único luxo visível, acendeu um cigarro, numa tentativa de delongar o que tinha de fazer, viu as horas e foi procurar o número da Branca, da Branca Cardoso, na pequena agenda que guardava no cofre de segredo, um para­lelepípedo de ferro comprado no leilão de um cambista e que exigia uma grua para ser deslocado abertura e de puxar a pesada porta, desabaram-lhe sobre os sapa­tos as folhas soltas, os panfletos amarrotados, os envelopes ama­relecidos, os cadernos a desfazerem-se, caixas de fitas de máquina e até saqueias com botões de punho e moedas antigas enviados pelo Manuel Costa e que pareciam animados pelas gar­galhadas de ódio à prisão do seu autor. O doutor Serafim Forte respondeu-lhes a pontapé, acelerando a desordem, mandando-os para o inferno a voarem com os seus recados e lamúrias do meu caro Cento e Quinze, Mano, a rirem-se ao aterrarem dan­çando diante dos seus olhos.

Não só a tralha entregue pelo Paulocas contribuía para o am­biente de lixeira varrida por um tufão que o rodeava, também o dossiê a que dera o titulo de «Uma Vida Violenta», onde se entre-tivera a fazer de romancista com as confissões e relatos do Manuel Costa, fora contagiado pela revolta e deviam andar pelo corredor e pela sala maldades dos flamingos, segredos da Fun­dação o Homem e a Obra, amores clandestinos, tráficos de in­fluências e de obras de arte, mortes por causas não esclarecidas, jornalistas ingleses, pícaros espanhóis, parasitas nacionais, dramas da guerra e, principalmente, as aventuras do capitão Francisco Manuel! Um homem que nunca vira, mas que lhe transformara a vida numa tempestade, como se fosse um vento de nordeste que de um ponto desconhecido sopra e agita o mar e ele o pescador que dança ao sabor das vagas no seu barco. Um homem que nunca fora capaz de decidir se era o seu torturador ou o seu ídolo, se o devia odiar ou invejar.

Reconhecia que apenas descrevera factos, acções, caracteres, e que para escrever faltava o mais importante, o mais difícil, um balanço, um final, uma moral, um destino para aquela gente toda, o resultado do exercício da empresa, aquilo que permite dizer: ganhámos ou perdemos, somos vencedores ou vencidos, mas não dispunha de muito tempo para recapturar aqueles fora­gidos rabiscados à mão e à máquina, na frente e no verso, por isso juntou-os à medida que os apanhou e voltou a colocá-los na prateleira do cofre donde não deviam ter saído até os entre­gar ao Manuel Costa, para este fazer com eles o que bem enten­desse. Depois de concluída a tarefa, não podia perder mais tempo antes de telefonar à Branca.

Utilizou o telefone portátil, esperando que fosse menos vulne­rável às escutas que o fixo, e a conversa começou por justifi­cações e continuou com dificuldades em explicar as razões e urgências que o levavam a ligar-lhe àquela hora, mas ela acei­tou sem dificuldade encontrar-se com ele em Sintra, no dia seguinte.

Este telefonema para a Branca resolveu-lhe o problema mais difícil que tivera de enfrentar, e o alívio que sentiu depois de o ter ultrapassado abriu-lhe o apetite e lembrou-o de que não jan­tara. Dirigiu-se à cozinha e abriu o frigorífico que a Palmira reabas­tecia segundo as suas preferências, meteu uma folha de fiambre entre duas fatias de pão e encheu um copo de vinho branco, cor­rente.

Pertencia à maioria dos portugueses que não fora educada nos requintes da gastronomia e à minoria dos que a revolução permitiu chegar ao topo da administração do Estado, que não fazia de conta que tomara as primeiras papas num restaurante de luxo, mas precisam de uma tabela para saberem de que vinho devem gostar. Aliás, apreciava mais os lugares, que as comidas. O que detestava era a sensação de fome, por isso a Palmira tinha ordem para ter as prateleiras sempre cheias, mesmo de coisas que levava para sua casa antes de se estragarem, principalmente dessas. Odiava sopa, feijão e peixe frito, porque lhe recordavam os tristes almoços de funcionários públicos, e bitoques e queques, porque lhe lembravam as apressadas refeições das prostitutas antes de começarem os trabalhos da noite; por outro lado, gostava de champanhe e de doces de ovos, aquilo que sempre associara às ocasiões felizes. Repugnavam-lhe tipos gordos e de bigode, pior ainda se falassem alto. Amava as mulheres, mas sofria peran­te elas um pudor radicado entre o incesto e a antropofagia.

Foi com o aperto na garganta e os suores frios do adolescente antes do exame que o doutor Serafim Forte entrou para o carro oficial na manhã seguinte e que percorreu o caminho entre Lis­boa e Sintra, disfarçando com telefonemas e leituras dos jornais o mal-estar que crescia à medida que se aproximava o momento de enfrentar a Branca.

Ela aguardava-o na pequena e discreta pastelaria onde haviam combinado e que tantas recordações lhe trazia desde a primeira vez em que ali estiveram ela, ele e o Fernando Cardoso. O doutor Serafim Forte aproximou-se com um sorriso nervoso da mulher que já passara dos cinquenta anos, mas que envelhecera bem, sem que a idade tivesse deformado o corpo e a quem a tonali­dade aloirada do cabelo pintado dava um toque juvenil, em vez de acentuar os estragos do tempo.

A Branca vestia um elegante tailleur preto e estendeu ligei­ramente a face para receber o beijo das boas-vindas. Ele sabo­reou o perfume único que ela usava e o contacto com a sua pele macia, e caiu numa espécie de paralisia devida ao fascínio de um encantamento. Ela sorriu e fez-lhe um gesto para ele se sentar:

— Vais ficar de pé a adorar-me?

Parecia divertida com a situação e sabia que teria de ser ela a quebrar as dificuldades iniciais da conversa, falando até ele ouvir uma palavra que lhe permitisse ligar ao que queria dizer-lhe. Enquanto pegava na chávena de chá com a ponta dos dedos, como se elevasse fios de seda, lembrou-lhe o cartão a de­sejar-lhe boa sorte quando soube da nomeação para o cargo de procurador e a que ele não respondera.

Sorte, não era ainda a palavra de que ele necessitava, embora tivesse pedido desculpa pelo esquecimento e acrescentado que sorte era coisa de que bem precisava. Ela falou das suas activi­dades de apoio social a jovens africanos na igreja da paróquia de Agualva-Cacém, das obras que estava a pensar fazer na casa de Belas, a prepará-la para viver a sua reforma. Jovens africanos, um fruto da nostalgia de África, algo de natural em quem

fora tão marcada como ela. Reforma, provocou a estranheza do doutor Serafim Forte. Não imaginava aquela bela mulher na idade da reforma, mas ainda não era o termo de que necessitava. A Branca não tivera filhos, não voltara a casar, possuía rendi­mentos suficientes para não depender do vencimento de profes­sora e estava saturada de dar aulas de Português e de História a selvagens de uma escola, na Idanha, que o Ministério da Educa­ção baptizara com o estranho nome de C+S, que parecia ter sido intenção do padrinho significar complementares e secundários. Quando os alunos eram primários que apareciam bêbados logo de manhã...

Ele já não a ouvia. História. Era a deixa que o doutor Serafim Forte aguardava!

— A propósito de história...

Começou por lhe revelar que ia reabrir o processo do homi­cídio do marido, aproveitando a morte, em circunstâncias mal esclarecidas, do homem que tomava conta do capitão Francisco Manuel, e precisava da concordância dela.

— Já passou tanto tempo... vais reabrir feridas para quê?

A Branca interrogou-o com a expressão transparente dos que já viveram as suas aventuras nos olhos claros e profundos, e acres­centou que nem todos podem ter uma vida excitante, que uma vida serena é uma graça de Deus, uma boa coisa, enfim.

Agora, que já não tinha diante de si uma mulher para o inibir, mas um interlocutor para arguir, o doutor Serafim Forte readqui-ria a posse das suas capacidades argumentativas. A serenidade e a paz dependem do equilíbrio de forças. Só podemos viver em paz quando os adversários nos temem. Porque, se não tiverem medo de nós, invadem-nos e subjugam-nos. É assim com as nações, com as organizações, com as pessoas...

— Como sabes, não existe nada a que se possa chamar um contrato entre os homens e Deus. Por isso estamos nas mãos dos intermediários e, quando estes cometem iniquidades, não há juiz capaz de decidir a controvérsia. Cada um recupera o direito de se defender pelos próprios meios.

— Lá estás tu com o Direito...

— Não é Direito, é estratégia militar de defesa de posições, dissuasão. Semear o pânico entre os inimigos, fazê-los desconfia­rem uns dos outros para os enfraquecer...

— Reabrir o processo da morte do meu marido permite-te defender a tua posição de quem?

— Daqueles que o mandaram matar. Ou acreditaste que foi o capitão Francisco Manuel?

Ao ouvir o nome do oficial passou pelos olhos dela uma nu­vem. Branca acenou ligeiramente com a cabeça. Não, não acre­ditara, e recordou como o marido vivera agitado os tempos antes de morrer e as explicações que lhe dera por meias palavras para os receios que sentia, depois de ter anunciado que abando­nava os negócios da Fundação.

— São águas passadas...

Mas não tanto que a tivessem levado a recusar o pedido do padre Nuno Maria para deixar o Francisco Manuel ir esconder-se na sua casa de férias. Ambos sabiam, embora não o tives­sem dito.

— Branca, não tenho, como sabes, nenhuma afeição especial pelo capitão Francisco Manuel...

Ela sorriu, triste.

— Acredito. Tudo seria mais fácil, se ele tivesse sido a causa da morte do Fernando. Eu seria a viúva e ele o assassino...

— ... mas preciso dele vivo e fora do alcance dos que julgam poderem ser criminosos bem sucedidos e reconhecidos. Dos que, por serem demasiado poderosos, são demasiado perigosos, e a quem há que fazer diminuir o poder e a arrogância, ameaçando-os com o fim da impunidade.

— Sempre sacrificado como um pobre cavaleiro...

A Branca colocou-lhe a sua mão bem tratada sobre o braço e o doutor Serafim Forte sentiu uma irresistível tentação de a beijar ali mesmo. Limitou-se a fazer-lhe um leve afago e a sussur­rar-lhe:

— Amo-te.

Agora, que dissera o que tinha a dizer, o doutor Serafim Forte voltou a ser o desajeitado tímido e nervoso perante uma mulher. Quando a Branca o convidou para almoçar, ele desculpou-se com os deveres que o esperavam em Lisboa para recusar.

— Fica para a próxima. Quando tudo isto tiver um fim.

 

O ajuste de contas

— Parece que estamos num velório.

— É num velório que tudo acaba.

— Vou acender a luz.

— Deixa estar, às escuras vê-se melhor o filme.

— Muita luz nos olhos, pouca claridade na cabeça.

— Era o que dizia a Vicência, a tua mãe, Cento e Quinze. Ao ouvir falar da mãe, o doutor Serafim Forte levantou-se e foi

em direcção ao móvel-bar.

— Não fujas, Serafim. Vivemos numa sociedade assente na ignomínia do pecado da carne. A mãe do deus era virgem e dois mil anos depois o procurador-geral da República ainda não podia ser filho de uma alcaiota.

— Eles agora já não me podem fazer nada, Manuel Costa. Estou numa situação desembaraçada, de partida...

O doutor Serafim Forte regressou com uma garrafa em cada mão, uma de vinho, para o Manuel Costa, e uma de Água das Pedras, para si.

— Cento e Quinze, lutar contra esses meliantes faz cabelos trancos, úlceras no estômago, provoca anginas de peito.

O Manuel Costa e o doutor Serafim Forte conversavam na "asa do procurador, mergulhados na penumbra do fim dos curtos iias de Inverno. Falavam como passageiros do último comboio

numa desarrumada sala de espera de estação de caminho de ferro a propósito das navalhadas traiçoeiras e cobardes, das em­boscadas inesperadas e sabidas de que haviam acabado de esca­par. A gabardina e o chapéu do Manuel Costa dormiam com o abandono de testemunhas esquecidas sobre o assento de uma cadeira, próximo da qual jazia a mala de cantos rombos e cica­trizes de muitas viagens do seu proprietário.

Findara a aventura que o capitão Francisco Manuel os fizera viver e, a partir de agora, nada mais podiam fazer do que recor­dá-la. Quanto muito, remexer nela com um graveto, como se fosse uma braseira que se ia extinguindo e eles dois sobreviven­tes num refúgio de montanha.

Dos outros que haviam embarcado nesta viagem, uns retor­naram às suas aldeias, outros desapareceram sem deixar rasto, uns mudaram de nome, outros ainda emigraram. Alguns mor­reram, como sabemos e saberemos. Quanto ao Manuel Costa, estava em trânsito da casa da Branca, em Colares, para um lar da Santa Casa da Misericórdia, em Azeitão, com cama, comida e roupa lavada, que foi o melhor que se arranjara para recom­pensar e controlar um velho escritor maldito que ainda pretendia fazer uma actualização de A Arte de Furtar. O procurador-geral da República, o doutor Serafim Forte, esse estava de partida para o Luxemburgo, como representante de Portugal no Tribu­nal Europeu, depois de aceitar que sua comissão lhe fosse dada por finda em nome do interesse nacional. Também fora o que melhor se conseguira para afastar um magistrado que ameaçara os poderosos e pusera em causa os seus frágeis equi-líbrios.

No acerto de contas feito à volta do Diamante Azul, foi este o resultado acordado para que ninguém ficasse irremediavelmente perdido.

— Nem vencedores, nem vencidos, Mano.

— Não tenho vocação de mártir...

— Daí que tenhas de ir lá para fora, enquanto eu daqui não saio a não ser para receber o cangalheiro.

— O mais difícil de conseguir para os obrigar a esta solução foi acertar no tempo para realizar cada jogada, como no xadrez, foi encontrar uma táctica subordinada a uma estratégia...

— Estou a ver-te, rapaz estudante, quando te ia dar as expli­cações de Latim que a tua mãe me exigia em troca de me aceitar lá em casa, com os livros à frente, a leres os catarpácios, com a fotografia da Branca em cima da mesa, e sempre pensei que te virias a transformar num jogador perigoso... não adivinhava era quanto... nem onde chegarias.

— Apesar de tudo o que disseram de mim para me enxova­lhar, nunca sonharam que fui aluno do escritor maldito, do liber­tino Manuel Costa... que recebi lições de Latim, de História e de Filosofia no bordel da minha mãe...

— Como sabes, até os sete sábios filosofavam nos bordéis da Grécia, onde, além da liberdade de vagina, havia a liberdade de pensamento. A tua mãe contava-me as superstições e as fraque­zas dos grandes homens e tinha lá em casa uma rapariga bem-educada, sensata, amável, que me dava corda, depois ela aderiu ao Movimento Nacional Feminino como amante de um ministro e eu tive de te dar explicações para não dormir na rua...

— Tretas... Eu sabia desde o início que só havia uma perso­nagem importante, o Presidente, e, através dos papéis que me enviaste pelo Paulocas, que só o comandante Guilherme Bran­dão era verdadeiramente perigoso. O resto, o Diogo Soares, o Miguel Vasconcelos, o Gregório Castelo Branco, eram parasitas que metem dó e nojo, mas que eu tinha de utilizar...

— Tu sabes, Serafim, que eu gosto do Presidente? Um aldraba, mas em grande. É um chefe, ocupa o lugar com naturalidade, tem uma supremacia inata. Exerce uma sedução que é uma estupidez não negar... Com a queda dele todos ficaríamos mais pobres...

— É a tua consciência de beneficiário de bolsas e subsídios a falar.

— Então conta lá o que aconteceu enquanto eu sejornava em -olares na companhia do Francisco Manuel, do Ned Marchmont

do Quevedo.

— O fim desta história do Francisco Manuel, do Diamante Azul, da Fundação, do Presidente, meu caro Manuel Costa, come­çou a desenhar-se a partir da minha conversa com o João Vicente, no Flamingo Dourado, e com a Branca, em Sintra.

— Já ela nos tinha instalado na colónia de férias de Colares...

— Donde te entretiveste a mandar os teus amigos falarem comigo.

— Eu não tenho amigos...

— Bem sei, tens cúmplices e pronto-socorros...

— Credores, críticos, cavaleiros que se escacham nas minhas costas, julgando a besta velha e tropicante.

— A quem tu sacodes e dás pares de coices.

— É a minha rábula da mula morta.

— Em vagas sucessivas, por uma ou por várias vezes e quase se atropelando à minha porta, vieram ter comigo o Márcio, o segurança da Fundação...

— Bom rapaz, parece o meu Pau locas, mas bem alimentado.

— A Linda...

— Que saudades daquele corpo! E agora canta e saracoteia-se na televisão, segundo me dizem.

— Até o Rata dos Cabarés...

— Coitado do velho chulo...

— A Naná...

— Essa não ta mandei.

— Não, essa queria saber de ti e veio por outros caminhos...

— Que não os da virtude.

— Mas a filha do cabo Matos, a enfermeira Elsa, apareceu-me por tua indicação...

— A divina Elsa... devia ser canonizada, se houvesse alguma justiça nos céus.

— Cada um deles permitiu-me reconstituir o que se passou logo após ter saído da conversa com o João Vicente no Flamingo Dourado e orientar as acções seguintes.

— Deves ter-te divertido a ouvi-los, sem eles saberem o que tu conhecias do passado! A propósito, estive a pôr alguma ordem nos teus papéis e a ler o que escreveste na «Vida Violenta» e, deixa-me que te diga, tens ali obra de escritor.

— Tenho é de arrumar as tuas coisas para as levares, amanhã vem cá a empresa de mudanças para me empacotar a tralha.

— Não te preocupes, eles, na Biblioteca Nacional e na Facul­dade de Letras, gostam de espólios à balda. Vê só quantos andam a comer, e há quantos anos, com o caixote sem fundo do Pessoa!

— Não quero o que escrevi sobre a vida do Francisco Manuel em nenhum arquivo.

— Dá-me o texto, que ainda cabe na mala, e faz o que quise­res do espólio dele. Entretém-te a queimá-lo na lareira da tua nova casa da Europa e agora canta mas é o que se passou antes de eu vomitar...

— O branco não é assim tão mau...

— Não é grande coisa. Tu nunca soubeste escolher vinho, nem mulheres.

— Talvez tenhas uma surpresa...

Logo após o doutor Serafim Forte ter saído do Flamingo Dourado e segundo o relato do Rata dos Cabarés, o João Vicente telefonou ao engenheiro Miguel Vasconcelos a dizer-lhe que pre­cisava de falar com ele e com os seus amigos, imediatamente.

Do outro lado da linha, o interlocutor não parecia disposto a ser incomodado e deve ter respondido com a sobranceria dos que estão mais habituados a mandar do que a obedecer. Deve mesmo ter começado a espumar quando ouviu o dono do cabaré repetir que os chamasse, porque dentro em pouco estaria para falar com eles na Fundação. E isto dito com o tom de voz de quem vai acertar contas e pôr negócios em pratos limpos.

Aí, o engenheiro Miguel Vasconcelos talvez tenha perguntado: que se passa homem? Como perguntava aos capatazes que lhe telefonavam das propriedades do Alentejo a dar-lhe más notícias, que o trigo não crescera, que os tractores se viraram, que as mu­lheres dos ranchos exigiam aumentos, que os fiscais dos subsídios à agricultura queriam mais dinheiro para verem os rebanhos de ovelhas declarados e nunca criados e também as searas de giras­sol cujas sementes nunca sentiram o cheiro dos terrenos de mato, mas estavam viçosas nos registos da CEE. Chatices agrícolas.

O que se passava é que o novo procurador-geral da República estivera no cabaré a falar de coisas que os distintos membros da

Fundação o Homem e a Obra bem conheciam, e este argumento convenceu o engenheiro agrário Miguel Vasconcelos a sair do seu aconchego nocturno para acorrer às confusões lisboetas em que o metera o cunhado Diogo Soares e com as quais sempre se dera mal.

Ao sair do escritório com o cenho carregado dos decididos, o João Vicente mandou ao Rata, que se encontrava do lado de fora da porta com a pose de uma sentinela mumificada:

— Diz à Linda que não espere por mim.

A Linda cantava a primeira série de músicas para uma plateia indiferente e rarefeita de cinquentões carecas e gordos. A casa estava fraca, os negócios do país andavam mal, as minas de ouro fácil de Bruxelas estavam a esgotar-se, os traficantes russos ha­viam tomado conta dos fornecimentos das guerras que decorriam pelo planeta e nem o anúncio da vinda do futebolista Maradona para escolher uma das raparigas da casa excitou a freguesia de presidentes de câmara de visita à capital, de construtores civis encalacrados entre as dívidas aos bancos e os malditos planos de ordenamento do território, todos eles tão redondos e boçais como a antiga estrela argentina dos estádios.

O João Vicente meteu-se no Mercedes de dois lugares, com­prado a pronto ainda nos bons tempos em que despachava mais garrafas de champanhe do que pratos de pipocas, em que os cheques tinham cobertura, e conduziu com a velocidade dos que levam cargas perigosas pelas ruas de Lisboa, apitando e fazendo sinais de luzes a mandar desviar os que andavam a arrastar-se pelas bermas no engate.

O Miguel Vasconcelos estava à sua espera no átrio da Funda­ção, apenas acompanhado à distância pelo segurança Márcio, e disparou, ainda antes de lhe esticar a mão para um cumprimento distraído:

— Nem uma palavra sobre a conversa que tivemos quando fui ao Flamingo com os ingleses.

Subiram para a grande sala de reuniões, de tectos com rosetas de estuque e desenhos de flamingos dourados, que contrastavam

com o castanho das madeiras. O João Vicente sentiu-se intimi­dado com a solidez e a respeitabilidade que as paredes trans­mitiam, com quadros do presidente da Fundação em pose ao lado de alguns dos grandes dirigentes políticos mundiais, de to­das as raças e cores, mas sempre sorridentes e confiantes. A mesa de madeira envernizada tinha pequenos rectângulos de carneira com as letras da fundação gravadas a ouro e permitia que mais de vinte pessoas se sentassem à sua volta para discutir assuntos importantes, que podiam exigir microfones para se fazer ouvir e quadros para projectar filmes. Passado pouco tempo, o Márcio entreabriu a porta para anunciar a chegada do doutor Diogo Soares e do engenheiro Gregório Castelo Branco, que entraram com o ar estremunhado de galinhas retiradas do galinheiro a meio da noite.

Não havia tempo a perder com intróitos e salamaleques e o João Vicente repetiu o que dissera ao Miguel Vasconcelos, que o procurador queria reabrir o processo do doutor Fernando Car­doso, aproveitando a morte do cabo Matos na Casa do Desterro.

— De que raio está você a falar? Quem é esse cabo Matos? O doutor Diogo Soares era o único dos presentes que não

tivera oportunidade para conhecer o homem que acompanhara o capitão Francisco Manuel, nem na guerra em Angola, nem no Alentejo, no tempo da passagem das jóias e tesouros para Madrid, nem no seu exílio interno.

— O único tipo que punha algum tento naquela cabeça des­vairada do Francisco Manuel — explicou o Gregório Castelo Branco.

— Um cúmplice, o primeiro ajuda que estava sempre atrás dele para o safar das enrascadas.

— Não me venhas com linguagem de forcado, Miguel. Em re­sumo, o tal cabo Matos era o Sancho Pança que o Francisco Ma­nuel merecia. Mas o que temos nós a ver com a morte do homem?

Todos viraram os olhares para o João Vicente.

— Eu sou o principal suspeito e os senhores os prováveis mandantes.

O Miguel Vasconcelos saltou sobre o soalho, fazendo estreme­cer a sala com as oito arrobas de peso bruto.

— Calma, Miguel, que ainda caímos na cave, em cima dos cartazes da propaganda e dos baldes de cola!

Não era a melhor ocasião para piadas, reconheceu o Márcio, no seu esconderijo subterrâneo de confessionário e amores.

— Então o filho da puta Vicência, o irmão da Bárbara, mais puta que a mãe, quer acusar-nos de quê?

O Diogo Soares e o Gregório Castelo Branco ficaram um ins­tante suspensos da reacção do João Vicente.

— A Bárbara foi a minha mulher durante mais de vinte anos...

— Desculpe, João Vicente.

— O procurador pensa que são os senhores os mais interes­sados naquilo que o capitão Francisco Manuel pode ter guar­dado... o móbil do crime, como ele me disse há pouco.

O Gregório Castelo Branco perguntou, como se falasse para si:

— Qual será o interesse do Serafim Forte neste caso?

— Chafurdar na merda, que é onde os tipos que vêm donde ele vem gostam de mexer.

— Ele quer chegar ao nosso Presidente. Através do capitão Francisco Manuel, vai relembrar o caso da disputa por causa da Dona Mariana. Desculpe, Gregório. O caso das jóias de Madrid e finalmente o da morte do Fernando Cardoso.

O antigo retornado sentiu-se colocado na mesa dos sacrifícios, naquele lugar onde um homem é posto para pagar os pecados dos outros e esperneou:

— Não fui eu quem decidiu que ele não podia ser deixado à solta com o que sabia. Por mim, aquilo que ele conhecia dos nossos negócios com os sul-africanos comprometiam-no tanto a ele como a nós... O problema foi político...

— O problema foi político... mas eu é que fui malhar com os ossos à cadeia... e ainda tive de desgraçar o capitão Francisco Manuel...

— Não venha agora com remorsos, João Vicente.

— Não posso ter remorsos porque me pagaram, como você, Gregório Castelo Branco, me pagou para dar o belo destino à sua mulher? Mas ainda hoje vejo a Dona Guiomar a amaldiçoar-me com os olhos de morta quando a deixei debaixo do jipe, junto à cachoeira da fazenda... Julgam que o dinheiro paga tudo?

— Calma, não é altura para perdermos a cabeça. Isso é o quer o filho da puta do Serafim Forte!

— Eu estou fora e não pensem em mandar-me procurar o capitão Francisco Manuel. Arranjem outro para resolverem os vossos problemas e não vos passe pela cabeça tratarem-me como ao doutor Fernando Cardoso...

— Quem anda a matar, não somos nós, João Vicente. Também estamos de fora...Nós queremos resolver os problemas a bem. Eu até pedi ao desgraçado que o Rui Mendonça trouxe aqui para a Fundação, o bêbado do Manuel Costa, para ele tentar encontrar pelas tabernas o jornalista inglês amigo do capitão Francisco Manuel, mas esse também desapareceu sem deixar rasto...

A acreditar nas palavras do doutor Diogo Soares e nas expres­sões de desânimo dos outros dois flamingos, encontravam-se rodea­dos por um vazio que os confundia e sentiam-se tão impotentes quanto ele. João Vicente podia ir em sossego que nenhum deles lhe faria mal.

— Tenho de voltar ao Flamingo e não quero meter-me em mais confusões.

A situação exigia serenidade de análise, aconselhou o Diogo Soares ao Gregório Castelo Branco e ao Miguel Vasconcelos. Agora, que o João Vicente saíra, estavam à vontade para trata­rem dos seus assuntos com engenho e astúcia.

Os três homens ficaram isolados no interior do vasto edifício que tinham construído e onde trabalhavam, como hoje, de dia e de noi­te, em projectos arriscados, enquanto ajudavam o presidente da Fun­dação a armar laços aos seus inimigos, a deslumbrar o povo com palavras calorosas e a conquistar os poderosos com promessas.

Esta divisão do trabalho tinha-lhes rendido bons lucros e não podiam destruir o crédito já alcançado, mas também não era

possível deixar ficar as coisas como estavam. Por um lado, a auréola de impunidade que rodeava os grandes homens estava a desaparecer, e eles eram responsabilizados pelos seus actos, pelo que não podiam expor o Presidente a acções que permi­tissem ao filho da puta do procurador vir farejá-las. Por outro, deviam agir, para ele não os tomar como inúteis.

Vendo bem, nada havia que justificasse o desespero e os fizesse voltar uns contra os outros, serenava o Diogo Soares. O objectivo principal fora atingido quando o Gregório Castelo Branco, aproveitando as boas relações que mantinha com o Manuel Crato desde os tempos dos exilados portugueses em Madrid e os favores que ele devia ao Presidente, conseguira que o Manuel Crato cedesse o Diamante Azul para ser apresen­tado na exposição «Esplendor de Portugal — Nós e os Outros», que acompanharia as Conferências do Milénio. Não precisavam de andar atrás do Francisco Manuel a matar-lhe os antigos com­panheiros. O que lhes convinha, para assegurar o êxito do grande evento, era que ele continuasse a não existir, esquecido na Casa do Desterro, sem os vir assombrar. O problema era nin­guém agora saber onde parava esse fantasma e não podiam descansar com ele à solta. Até o coronel Furtado lhe perdera o rasto.

— Esse merdas de botas altas nem para director de um lar de asilados serve! Quando eu e o meu pai estivemos cercados em Évora, no tempo da Reforma Agrária, deixou-se ficar no sossego do seu regimento de Estremoz a ensinar os cavalos a fazer passo espanhol!

— O Furtado esteve sempre feito com o Francisco Manuel, desde o tempo de Angola... sempre o protegeu... foi ele quem o indicou para organizar a operação de Madrid, mas a questão é que alguém anda a matar por conta própria...

O Gregório Castelo Branco virou para o Miguel Vasconcelos os olhos murchos de velho celerado que já provou todos os altos e baixos da fortuna, e ao redor da enorme mesa da sala dos fla­mingos, em vez do fresco ar condicionado, soprou o hálito pesado das partidas de póquer, com os jogadores tentando adivi­nhar as cartas que cada um dos outros tem guardadas. Fazendo contas de cabeça e espiando os sinais nas reacções menos con­troladas.

As mortes do tal cabo Matos e do alentejano Barradas, que o João Vicente anunciara, surgiam à frente do Miguel Vasconcelos como o vulto negro de um touro tresmalhado que teria de pegar pelos cornos sem ajuda.

— Ah ele é isso? Eu resolvo esse assunto por minha conta e à minha maneira!

Berrou furioso como um prisioneiro que vai ser empalado quando compreende a sorte que lhe está reservada, antes de sair sem olhar para trás.

Depois, a voz do doutor Diogo Soares ecoou no silêncio que amplia os ecos, a dizer ao Gregório Castelo Branco:

— O Miguel é o homem menos adequado a negócios que exijam paciência...

O roupão de seda azul onde o Miguel Vasconcelos tinha enfia­do os braços agora mais gordos do que musculados e que se espa­lhava aberto sobre parte da frente do enorme corpo nu e peludo já vira noites melhores. Algumas nódoas estampadas nas abas revelavam indícios de batalhas anteriores, a cor perdera o brilho inicial, as dimensões mal chegavam para o envolver e cheirava a azedo do suor, mas ele tinha por aquele roupão um carinho especial, funcionava como um fetiche. Dizia que o contacto dele com a pele lhe aumentava o desejo e o tesão.

Estava deitado na cama de lençóis enrugados, com a cabeça apoiada na cabeceira forrada a veludo, na posição relaxada de patrício romano depois do bacanal. Respirava com a dificul­dade de um corredor esgotado, deixando o suor escorrer da care­ca para a testa, alagar-lhe a cara afogueada e o pescoço grosso. Se não fosse estar embalado no roupão azul, o corpo escuro pare­ceria um hipopótamo de plástico a flutuar de barriga para cima numa banheira, com a Naná ajoelhada entre as pernas a soprar-lhe no sexo para o manter à tona de água.

— É escusado, hoje não salevanta.

A jornalista ergueu a cabeça, passou a língua ensalivada pelos lábios húmidos e fez uma festa com a mão naquele pedaço de carne exausto pelos vícios, antes de se estender a fumar um cigarro.

O antigo forcado pensara que a passagem pela cama de uma mulher tão habituada a aliviar as preocupações de homens en­volvidos em negócios difíceis como a jornalista Maria Helena o ajudaria mais facilmente a dissipar os maus pressentimentos com que saíra da Fundação do que uma ida às prostitutazecas adoles­centes que trabalham a contra-relógio e confundem a sensuali­dade com exercícios de ginástica aeróbica, mas nem mesmo toda a imensa experiência da mulher madura lhe conseguira tirar da cabeça as imagens dos monstros com os rostos do Presi­dente da Fundação, do Gregório Castelo Branco e do Diogo Soares a chuparem-no por dentro com muito mais vigor do que a Naná fizera por fora.

Saíra da conversa sobre as mortes do tal cabo Matos e do antigo ocupante de terras da reforma agrária convencido de que os seus confrades estavam a preparar-se para o entregarem à sorte dos tribunais, como fizeram ao Rui Mendonça por causa das luvas ao ministro, como fizeram ao capitão Francisco Manuel, como fizeram ao advogado Fernando Cardoso, que teve de ir à sorte final porque nos tribunais era ele mestre, como haviam feito a tantos outros menos conhecidos sempre que se sentiram amea­çados, ou contrariados. E agora calhava-lhe a ele, o bruto, o bron­co, o chaparro, o lugar do cabrito que vai ser sacrificado. A um homem nestas circunstâncias, que se vê de repente transformado de executor em executado, não há terapia do sexo que produza efeito.

Bateu com a manápula enorme na borda da cama, num gesto de impotência em que lutava contra as preocupações que já tinha, às quais se juntava a vergonha marialva pelo fracasso na erecção. O corpo magro da Naná tremeu, mas a vantagem das mulheres vividas sobre as jovens é que nestes casos procuram as causas em vez de fazerem dramas sobre os efeitos. Acalmou-o, pedindo-lhe que falasse, que ela estava ali para o ouvir.

A Naná não viera ao apartamento dele para outra coisa. Aos cinquenta anos, as reviravoltas na cama com um alentejano de oito arrobas serviam apenas de pretexto para ouvir o que lhe podia interessar. Cenas de sexo fazia ela com a naturalidade de outras necessidades. Às vezes até mais.

A história que o Miguel Vasconcelos contou à Naná dava uma excelente reportagem, se algum dia ela pudesse trazê-la a público sem risco de apanhar com os estilhaços.

No início, parecia uma daquelas vulgares e azarentas coin­cidências que deliciam os polícias somas e ronceiros, porque o suspeito é tão óbvio que nem vale a pena levantarem-se para procurar impressões digitais. O Miguel Vasconcelos metera uma acção em tribunal contra o João Barradas e o Sesinando Rodrigues para obter uma reparação pelos prejuízos morais e materiais sofridos com o assalto a casa do seu pai durante o período da Reforma Agrária e, quando o processo caiu em mais uma das mi-lhentas armadilhas da justiça, um deles aparece morto no rio Djebe e o outro esconde-se por temer idêntico destino.

Óbvio. Dois e dois são quatro. Um homem que se sente defrau­dado e não obtém pela via da lei a resposta ao que considera serem os seus direitos resolve o assunto pelas suas mãos. Os tri­bunais estão cheios de casos destes. O Miguel Vasconcelos pas­sava em menos de um ai de ilustre administrador da Fundação o Homem e a Obra a presunto em salga moura nos calabouços da Policia Judiciária, alvo de hipócritas palmadas nas costas dadas pelos antigos sócios.

A partir daí, alguém haveria de fazer chegar à polícia a histó­ria em banho-maria da passagem de jóias e outros bens de valor para Espanha no período da defunta revolução, e não seria difícil chegar ao capitão Francisco Manuel e ao seu fiel cabo Matos, também morto em circunstancias mal esclarecidas. Vá de bater de novo à porta do velho forcado Miguel Vasconcelos, nesta altu­ra mais carregado de suspeitas do que um touro de farpas no final da lide. Decorado como um paliteiro.

— Eu só pretendo defender a honra do meu pai e os bens da minha família, porra!

A Naná levantou-se, tocando com a mão no sexo do Miguel Vasconcelos, a fazer uma festa ao pequeno animal vencido.

— Ele hoje não se portou muito bem. A cabeça de cima anda por outro lado e essa é que manda.

Ela não deu importância ao caso e foi à mala pousada sobre uma cadeira, que suportava também as meias, ainda com as cal­cinhas enroladas dentro do nylon, e o sutiã aberto, enquanto ele continuava a desculpar-se:

— Tenho nome de traidor, mas quem está a ser traído sou eu. Estou nas mãos dos falsos amigos da Fundação!

— Tu não estás nas mãos de ninguém.

— Estamos sempre nas mãos de alguém, até de Deus!

— Beatices de forcado. Descontrai-te e vê isto.

A Naná regressou à cama trazendo um exemplar da revista Fancy na mão e mostrou-o ao Miguel Vasconcelos com o orgu­lho de um trofeu duramente conquistado. A jornalista conservava a nostalgia da família que não tivera, uma família normal, e a esperança de ser capaz de um dia a criar. Agora, que o Marx e as revoluções proletárias foram proscritos e que consciência de classe é escrever o nome com duas consoantes e exibir no dedo um anel de cachucho com um brasão de pechisbeque, ela queria ser uma rapariga, como se costuma dizer, de boas famílias, com uma linhagem, que tivesse aprendido piano, dança, e praticado desportos socialmente considerados, equitação, ténis. Recorda­rem-lhe permanentemente que era filha de um libertino, do escri­tor maldito que vivia com uma rapariga de vinte anos, engatava empregados de escritório e soldados, vivia de esmolas, andava fugido da justiça, comprometia-lhe as ambições.

Portugal não é a América, onde qualquer cidadão pode mudar de identidade com a mesma facilidade com que compra uma metralhadora, mas o resultado do plano que a Naná congemi-nara para limpar a imagem estava ali, estampado na revista Fancy, a bíblia do jet-set nacional. Ao lado das ginjonas e dos canastrões do costume, aparecia uma bela biografia da Naná, ilustrada com fotografias para dissipar as dúvidas. Fotografias dela em criança, ao colo da avozinha, a poetisa mística D. Adelina Maria, na casa de Bucelas, durante o Verão, estilo enternecedor, que infância feliz! Uma outra com a Naná adulta na redacção do jornal, ao volante de um automóvel desportivo, estilo executivo, que mulher activa!

O Miguel Vasconcelos observava as páginas com uma aten­ção que mal disfarçava o alheamento dos seus pensamentos e manteve-se imóvel e pesado até surgir, quase no fim, um artigo sobre a vida e obra do escritor Manuel Pitta Simões Costa, conhe­cido literariamente como Manuel Costa, apresentado como um patusco quase genial, de quem a grande jornalista herdara o talento, mas não a prática do abjeccionismo como programa de vida. Uma imagem de marca como artista e aos artistas tudo se desculpa, como aos pais, que todos os filhos, na ilusão do amor filial, julgam os melhores do mundo.

Ao ver a fotografia do Manuel Costa, cortado pelo meio do corpo, de óculos pendurados no nariz, a sorrir escarninho para a câmara do fotógrafo e para ele próprio, o Miguel Vasconcelos içou o corpanzil da cama, abrindo ainda mais o roupão azul e regougou fazendo badalar as gorduras do peito e os testículos negros com o respectivo apêndice:

— Este merdoso que o Rui Mendonça trouxe para a Funda­ção fui eu que o corri de lá. Corri com os dois e agora paguei para tu o apresentares como um herói nacional junto a essa manada de fufas e paneleiros!

A Naná garantiu-lhe que o pai era um pobre diabo tão peri­goso como um anarquista paraplégico e o Miguel Vasconcelos esqueceu rapidamente o Manuel Costa em pose de futuro doutor honoris causae da boémia para virar as atenções na direcção do verdadeiro perigo.

O Presidente, o Diogo Soares e o Gregório Castelo Branco jul­gavam que ele era um peão das nicas como o Rui Mendonça, ou um manso como o Gregório Castelo Branco? Estavam muito enganados! Ele guardara uma lista das pessoas que entregaram jóias ao seu pai, aquando da revolução, e que nunca mais as viram de volta, e tinha-os agarrados pelo rabo. Infelizmente per­dera o rasto do Francisco Manuel, porque o capitão devia ter a lista do que fora enviado para Madrid pelo pai do Miguel Vascon­celos através do coronel Furtado, e bastava compará-las para saber o que faltava e talvez a que mãos fora parar.

— Se eu soubesse onde pára esse fantasma sarnento...

— O Rui Mendonça contou-me que o meu pai o conheceu quando esteve a fazer uma cura de desintoxicação...

— Deviam fazer uma linda parelha...

De longe piscou um flash de esperança e o Miguel Vascon­celos olhou a Naná com a expressão do boi enjaulado que vis­lumbra uma oportunidade de escapar, quando ela disse:

— Vou tentar saber onde ele está.

Ao ouvir a oferta, deu uma gargalhada que pareceu um arroto de satisfação do desterrado que regressa a casa ao descobrir os velhos e garantidos sabores em que o educaram:

— Os homens para a guerra e a política, as mulheres para a cama e a calhandrice!

— Isso era na Grécia, quando elas despejavam penicos.

Lá vinham as intelectualices da fêmea estragar o belo momen­to ao macho! Mas, como Lisboa é uma sacristia de manhã, uma taberna de tarde e um bordel à noite, frequentados pelos mes­mos fiéis, e a Naná ia para a cama com todos os tipos que lhe podiam dar boas notícias para a primeira página do jornal, talvez, abrindo de novo as pernas ao Rui Mendonça, ela conseguisse saber onde se metera o Francisco Manuel. Esta possibilidade, tornou-o magnânimo e palrador. A Naná merecia uma recom­pensa. Já que não a satisfizera como devia, revelava-lhe um segre­do que ela apreciaria melhor do que um orgasmo verdadeiro.

Puxou-a para si, pegando-lhe pelos ombros com a falta de jeito dos gorilas, e, num gesto que pretendia ser de carinho e intimi­dade, apertou-a até lhe fazer doer os seios pequenos e contraiu os músculos da nuca de touro, para lhe dizer ao ouvido que o Presidente da Fundação andava todo ufano a anunciar a apresen­tação do Diamante Azul, que fora levado de Portugal pelo prior do Crato antes da invasão dos Espanhóis, mas a jóia que o Manuel Crato entregara ao Gregório Castelo Branco era falsa!

— Falsa!

Pronunciou a palavra com a alegria dos entusiastas que prepa­ram uma maldade, como se dissesse: eles estavam na praia e veio a onda e levou-lhes o brinquedo. Depois voltou a colocar o cor­po da Naná no lugar donde o tirara com a facilidade de mover um manequim e os seus olhitos pequenos brilharam debaixo da testa imensa à espera do efeito das suas palavras, mas o rosto da Naná, em vez de demonstrar a gratidão e a alegria que ele esperava, cobriu-se de uma névoa de maus pressentimentos. Encolheu-se de frio.

A Naná não podia dizer ao Miguel Vasconcelos que a vin­gança é uma arte que só deve ser praticada pelos que são mais astutos do que voluntariosos, e que quem não é pássaro não deve aproximar-se dos abismos, porque ele estava inchado com o orgulho dos temerários e a coragem dos embriagados. Que ele rebentasse, era um problema do foro íntimo. Problema é que a cegueira dos coléricos acaba por causar não só a sua perdição, mas a dos que eles arrastam, e ela não queria deixar-se envolver nessas chamas.

O corpo que conhecia todos os prazeres saltou da cama num movimento inesperadamente ágil para uma mulher de cinquenta anos, e o Miguel Vasconcelos vingou-se por um instante da sua impotência ao apreciar as marcas que o tempo lhe deixara naquela nudez de escandalosa falta de cerimónia, as mamas des­caídas, a pele da barriga enrugada, as coxas flácidas, os cabelos desgrenhados e sem brilho, os pés enormes, deformados por calos nos dedos e por joanetes nas articulações.

Ela era, como o pai, licenciosa e superficial, mas enquanto o Manuel Costa vendera ao prazer a sua honra e o seu interesse, ela sujeitara ao seu interesse a sua honra e o seu prazer. Abanou a cabeça e coçou a púbis de pêlos gastos num gesto de nervosismo e incredulidade. Afastara o Rui Mendonça da organização das Conferências do Milénio e da exposição «Esplendor de Portu­gal — Nós e os Outros», preparava-se para desfrutar o momento de glória associado aos eventos e aquele monte de toucinho anunciava-lhe que a estrela do acontecimento era uma jóia de quinquilharia com a mesma desfaçatez com que a mandava pôr-se por cima para o ajudar a ter uma erecção!

— Miguel, isso é uma matéria que mais vale não tocares. Há anos fiz uma reportagem sobre as jóias da revolução e, dos tipos que falaram comigo, um morreu numa emboscada quando ia de carro e o outro num desastre de avião...

Se ao menos a Naná pudesse esvaziar a cabeça do Miguel Vasconcelos deste segredo! Mas como, se ele estava como os relógios antigos, que fazem tiquetaque quando cheios de corda? Ganhou um momento insistindo:

— O Diamante Azul é falso?

As palavras do Miguel Vasconcelos jorraram com demasiada violência, como entornadas de uma taça, e a Naná aconselhou-o a ter cuidado em escarrar contra o vento, mas ele estava já cego pela vertigem da vingança.

— O Diamante Azul que o Manuel Crato entregou em Madrid ao Gregório Castelo Branco para ser exibido na exposição «Nós e os Outros» é falso, mais falso do que os rebanhos de cabras que eu declaro para os subsídios da CEE!

A voz nasalada do Miguel Vasconcelos repetiu aquilo que soava à Naná como uma sentença de morte, ou como um re­gresso ao purgatório donde tentava sair desde que se conhecia. Num primeiro momento, recusou-se a acreditar, depois veio de novo estender-se na cama, mexendo no sexo do Miguel Vascon­celos, com os dedos experientes a manobrarem lentamente.

— Como sabes?

Não se conquistam os homens sem os enganar. As carícias da Naná iam fazendo o seu efeito no falo moreno percorrido por veias negras como oleodutos, e o alentejano olhou com satis­fação os primeiros e animadores resultados desta troca de prazer e interesse, que são os deuses da Terra. O Miguel Vasconcelos meteu-lhe a mão entre as pernas e esclareceu:

O Presidente mandou confirmar a autenticidade da jóia em Londres. Foi aí que os irmãos Maurício e Roberto Stuart, os palatinos ingleses, souberam que deve existir um outro Diamante Azul verdadeiro e vieram ter comigo. E só dois homens podem ter uma ideia donde ele se encontra: o comandante Guilherme Brandão e o capitão Francisco Manuel.

As mãos do Miguel Vasconcelos penetravam as zonas mais profundas que a Naná utilizava para exercer as suas artes de sedução, com o dedo indicador a massajar o clitóris mole e sain­do dali para o rego entre as nádegas, de rigidez ainda aceitável.

Ela segurou o mastro que já começava a içar-se e disse-lhe:

— Estás a ver, o segredo está em ser tranquilo e forte.

Enquanto o percorria da base até ao topo, o apertava e o des­cascava, a Naná foi dando conselhos àquele homem cheio de vontade de chegar à felicidade do punhal. Sim, dizia-lhe, eu conheço o perigo em que te encontras, mas não levantes o teu braço contra eles. Apesar de teres um corpo forte, és dema­siado fraco para venceres esses glutões que querem agora a tua pele e o teu sangue.

Aos poucos, o Miguel Vasconcelos ia-se deixando embalar, mas ainda reagia:

— Conheço as bravoconerias deles! Esperem pela paga!

— Ser bravo é bom, mas agora tens de contemporizar.

— Eu não sirvo de muleta a ninguém! Nem ao meu cunhado Diogo Soares, nem ao Gregório Castelo Branco.

— Esses são uns pobres diabos. Sentem-se pequenos diante de ti, por isso te querem afastar. Quem tu tens de satisfazer é o Presidente. Ele é como os novos deuses e dá tudo se o adora­rem. Se não, estás a mais...

Lentamente, porque é lentamente que ocorre tudo o que é importante, a Naná ia-lhe passando o veneno, que ele tomava como se fosse o bálsamo que inventara por si próprio.

— Se eu descobrisse o verdadeiro Diamante Azul...

Era aí que a Naná queria que ele chegasse, ao manejar destra­mente o arco das suas mãos na flecha do Miguel Vasconcelos.

Há uns dias, o comandante Guilherme Brandão telefonara-lhe a combinar um encontro, em Madrid, com o cónego Telo, de Braga, para o ajudar a descobrir o rasto das jóias recolhidas pelo pai, o governador Pedro Barbosa, patriota de tão boa memó­ria, no tempo do ELP, e transportadas para Espanha pelo Fran­cisco Manuel, esse mano de dupla face...

— O Guilherme Brandão tem a mania dos clássicos, deve ter dito, Jano, o deus grego, que olha para trás e para a frente.

— Seja pela frente ou por detrás, vou a Madrid encontrar-me com eles... Se aparecer com o verdadeiro Diamante Azul ao pre­sidente...

— Tens o futuro garantido.

Assim era, animou-o. Porque o que faz um homem vencer e brilhar junto dos poderosos é o mesmo que causa admiração e inveja aos que o pretendem afastar.

A Naná prometeu que iria descobrir o paradeiro do Francisco Manuel e o Miguel Vasconcelos puxou-a para cima dele, dizen­do:

— É esta antecipação da vitória que faz vibrar a alma de um crente!

A casa. A casinha! Ao fim da tarde, no apartamento remode­lado dos antigos bairros de Lisboa que a Naná mandara decorar por uma designerde interiores e que ele ainda não pagara, o Rui Mendonça filosofava com a revolta impotente de um bêbado que acorda nu e despejado numa valeta depois de uma noite de farra.

Os pintores da Renascença transmitiram a arte de pintar o paraíso aos fotógrafos das revistas de decoração e o belo desceu uns bons furos na escala.

Cores frias nas paredes, móveis aerodinâmicos de nave espa­cial, luzes indirectas muito claras para o convívio e insuficientes para a leitura, mesas de comer demasiado altas e de beber tão rasteiras que obrigam a um exercício de contorcionista para apanhar os copos de fundo rombo, cadeiras de assentos estreitos e costas altas, boas para cenas de sado-masoquismo, armários sem prateleiras, tapetes pendurados e colchas de cama no chão. Janelas sem persianas nem cortinas, para fruição completa da paisagem de telhados, roupa pendurada e antenas de televisão, e gozo da vizinhança, que tem espectáculo de graça com as cenas em ecrã panorâmico dos intelectuais que discutem nus e comem em cima dos joelhos.

É claro que o Rui Mendonça só reparava nestas particulari­dades agora, depois de a Naná o deixar. Antes, quando a associação do secretário da Fundação o Homem e a Obra com a grande jornalista prometia os melhores êxitos comuns, ele achara que estas graças da decoradora, que por acaso se chamava Graça, transformariam aquele espaço, sim, o apartamento era um espa­ço, num ninho mais acolhedor do que o bangaló que há-de caber no céu aos santos e santas merecedores de férias eternas, mesmo descontando o preço exorbitante porque tudo aquilo lhe ficou e que ainda devia ao banco.

Os envelopes que o Rui Mendonça retirara há pouco da caixa do correio jaziam com o abandono das folhas no Outono sobre o tampo de vidro assente no que devia ter sido a pata de um mamute fossilizado, e ele adivinhava no interior desses pequenos caixões as contrafés, os avisos de recepção e os inquéritos envia­dos por tribunais, departamentos de investigação, bancos, repar­tições de finanças, que não se sentia com coragem para abrir.

Vagueava no silêncio depressivo das casas dos solitários, onde até os objectos parecem sofrer de tristeza, com o desespero de um refugiado que percorre as ruínas da sua cidade destruída, sem perceber como de um momento para o outro as mais sólidas cons­truções e os mais belos objectos desabaram numa nuvem de pó e entulho, deixando-o sem abrigo nem refúgio. Aquilo que via à sua volta já não era seu, eram os escombros de alguém que mere­cera a confiança dos bancos e vendedores, de alguém com um futuro garantido, com um patrão poderoso, com sócios influen­tes, com contas secretas. Alguém que já tinha pouco a ver com o pária em que os administradores da Fundação o transformaram.

Estremeceu ao ouvir a campainha da porta e esteve quase para deixar sem resposta a cara de batráquio do segurança Már­cio, da Fundação o Homem e a Obra, que aparecia no ecrã de controlo de acesso, fazendo de conta que não existia, como as crianças que se escondem durante as trovoadas. A solução dos jogos infantis, criando um lugar vazio onde os jogadores são invi­síveis e inatacáveis, é a última esperança dos perseguidos adul­tos, mas o Rui Mendonça sabia que neste jogo do mata e da apanhada em que estava envolvido a regra era a dos caçadores

com perdigueiro e furão, sem respeito por coitos seguros e invio­láveis, onde até nos ninhos as espécies indefesas são abocanhadas. Nestas circunstâncias, em que um homem está encurralado, havia, pelo menos, que tomar o gesto da dignidade. Como o Pre­sidente da Fundação que servira e que acompanhara em momen­tos muito difíceis lhe ensinara, é para receber os mensageiros de más noticias que os condenados devem estar mais compostos, e voltou a fazer o nó da gravata e a apertar os botões da camisa, antes de abrir a porta.

O segurança Márcio, metido num fato cinzento que estava pelos menos dois números abaixo do que o corpo de praticante de artes marciais exigia, entrou no belo apartamento com desconfiança atenta dos gatos em território desconhecido, olhando à sua volta e tacteando antes de assentar os pés, pronto para qualquer eventualidade.

A música de fundo que saía das colunas em forma de arranha-céus brilhantes ecoava em surdina protegida pelas paredes insonorizadas e o Rui Mendonça mandou-o sentar-se num sofá de veludo azul-petróleo de design italiano. O rapaz obedeceu sem desarmar as defesas, mantendo as mãos sobre as pernas espremidas numas calças que ameaçavam rebentar pelas costu­ras e que deixavam ver umas meias de brancura acabada de comprar, tal como a camisa que lhe apertava o pescoço. — Foi a Cátia quem te comprou essa fatiota? O Rui Mendonça nunca conseguira resolver o magno proble­ma de evitar que os seguranças e os guarda-costas contratados para proteger os membros da Fundação tivessem sempre os fatos demasiado apertados e anunciassem a sua condição, por muito que besuntassem o cabelo de brilhantina e escondessem os olhos atrás de óculos escuros. A dificuldade devia ser universal, reco­nheceu, enquanto se dirigia ao bar, porque os gorilas americanos também aparecem na televisão atrás dos presidentes tão discre­tos como falos megalíticos num jardim francês. Tirou dois copos de cristal da caixa de vidro transparente e encheu-os generosa­mente de uísque. Ofereceu um deles ao Márcio, que ficou com ele entre as duas mãos a assistir ao gesto de saúde, acompanhan­do-o sem entusiasmo, com a cara tensa de uma visita cerimo­niosa que não sabe como iniciar a conversa e espera a pergunta sacramental: que o traz a esta sua casa? Mas não fora essa a que o Rui Mendonça lhe fizera e ainda acertara onde não lhe convi­nha, porque fora de facto a recepcionista que, por ordem do Miguel Vasconcelos, comprara nessa tarde aquele guarda-roupa completo, fiando-se nas medidas que tirara ao seu corpo a olho nu, favorecendo-o com uma silhueta de elegante príncipe encan­tado que só existia na sua cabeça.

— Então como vão os teus amores com a Cátia?

A insistência incomodou o Márcio, que ainda não percebera onde o Rui Mendonça queria chegar e o olhou de soslaio quando ele lhe disse que tirasse o casaco e se pusesse à vontade. Já tinha a dose suficiente de velhos arrebentas para passar bem sem mais este, que lhe atirou à queima-roupa:

— O senhor Manuel Costa disse-me que fodes bem, mas que ou­ves melhor, mesmo quando estás na cave da Fundação com a Cátia.

O Márcio esfregou as mãos nas pernas. O Rui Mendonça já não era, ou estava em vias de deixar de ser, um tipo importante na Fundação e o tratamento entre ambos podia descer de nível sem risco de perder o emprego.

— Você é que não tem boa fama com as mulheres. A Dona Maria Helena não lhe dá grande nota...

— E que mais diz a Naná de mim na Sala dos Flamingos? Por­que a Dona Maria Helena ladra consoante os donos querem ouvir.

A Naná intercedera por ele junto do Presidente, considerando que não devia ser deixado às feras no caso das luvas do minis­tro, que aos nossos há que dar a mão, mantê-los do nosso lado, porque sozinho podia tornar-se perigoso, mas o Presidente rira-se e respondera que ou se estava com ele ou se tramavam.

— Você está tramado, doutor Rui Mendonça.

A conclusão do segurança não lhe causou surpresa. Encheu mais um copo de uísque, ofereceu outro ao Márcio e foi junto à aparelhagem de som colocar uma cassete.

— Ouve isto para ficares a saber com quem andas metido quando fores para os bacanais organizados pela mulher do Gre-gório Castelo Branco para o Presidente e os seus amigos. O título pode ser a honra do cornudo e gravei-o há muitos anos, quando a Fundação começou a estender as suas teias e surgiram uns boa­tos pouco adequados à imagem de respeitabilidade dos seus membros, que o Presidente passava pela cama da mulher de um dos administradores, depois de a Dona Mariana se ter entretido com um capitão revolucionário chamado Francisco Manuel.

Voz do Presidente:

— Gregório, alguns impostores falam das minhas idas a sua casa, mas fique a saber que respeito muito a sua honra, como respeito a da sua mulher.

Voz do Gregório:

— É verdade que alguns amigos, falsos, me disseram algo como isso, mas a Mariana jurou pelo mais sagrado e chorou de tal forma que eu preferia ser morto do que a ter importunado dizendo-lhe o que lhe disse.

Voz do Presidente:

— Quem der ouvidos à má-língua não irá longe comigo. Voz do Gregório:

— Eu, de um lado, e o senhor, pelo outro, já a convencemos de que nunca mais falaremos de traições e, por mim, a Mariana pode entrar e sair quando quiser porque estou seguro da sua fidelidade. E assim ficamos os três conformes e nunca mais se fala no assunto.

Voz do Presidente:

— Portanto, não ligue ao que possam dizer. Voz do Gregório:

— Quando alguém me quer falar dela e do senhor, eu digo logo que se cale, dessa maneira não me dizem nada e tenho paz em minha casa.

O Márcio riu pela primeira vez, um pouco mais descontraído. Afinal, se as escutas e as traições eram as armas que naquele meio os vencidos utilizam na hora em que se rendem para obter um perdão ou exigir as compensações que compram os silên­cios, ele não destoava da promiscuidade entre sexo e política que se vivia naquela casa e podia ter um futuro mais risonho do que como segurança privado. Estava no bom caminho para progredir. Como a Cátia também distribuía favores aos membros da Fundação e ouvia segredos, o casal podia aspirar a uma vida menos difícil. Assim soubessem manter-se aliados aos bons, sem cometer erros como o do Rui Mendonça.

Para o Márcio, depois de dois uísques e de uma velha con­versa gravada, chegara o momento de transmitir a má noticia que o fazia ali estar. Já se fazia tarde para dizer que o engenheiro Miguel Vasconcelos o mandara vir buscar o Mercedes que estava distribuído ao Rui Mendonça.

O carro é hoje em dia a marca de distinção dos homens, o sinal de que estão vivos e ocupam um dado lugar na escala dos seus semelhantes. Os abutres começam pelos olhos o ataque aos cadáveres, convencidos de que assim lhes retiram a capaci­dade para reagir, porque os olhos representam a vida e sem eles o ser deixa de existir, passa apenas ao estado de matéria, pasto de vísceras. O carro oficial é para homem de hoje o que os olhos são para os abutres. Os seus inimigos começam a atacá-los por aí.

— Para que quer o Miguel Vasconcelos o carro com tanta urgência? Eu ainda não me demiti, nem fui demitido da Funda­ção! Ainda não estou morto, estou quase, mas ainda não oficial­mente.

O desespero e a tristeza do esfrangalhado Rui Mendonça cau­saram dó ao Márcio e levaram-no a dar-lhe explicações que o Miguel Vasconcelos lhe mandara guardar como segredo.

— Amanhã de manhã vou a Madrid com o engenheiro e ele não quer que os outros administradores saibam. Por isso, deixa o carro dele na garagem e vamos no seu.

Ainda pensou recusar, mas viu-se como um peixe a debater-se fora de água pendurado no anzol, numa luta definitivamente

perdida com um tipo como o Miguel Vasconcelos, que salta para os cachaços dos touros quando os vê baixarem a nuca. Restava ao Rui Mendonça entregar as chaves, os documentos, transmitir alguns conselhos sobre a melhor forma de o tratar e abrir a porta para o Mercedes que exibira com orgulho de uma amante de fazer inveja sair da garagem conduzido pelo Márcio. Ao lado do lugar deixado vago, coberto de pó, estava o envergonhado Ford Escort utilitário que se vingou do abandono e do despre­zo a que fora votado, resmungando com os êmbolos a bada­larem dentro dos cilindros como campainhas a anunciarem um funeral quando sentiu o contacto da chave no motor de arranque.

Era naquilo que a partir de agora voltaria a andar. A noite pare­ceu-lhe fria e desolada, sentiu fome e olhou o relógio. À meia-noite não restavam muitos lugares onde pudesse comer qualquer coisa sem se sentir um desconhecido a quem os empregados tratavam com o desprezo dos que nunca mais serão vistos, e decidiu ir ao Snob, mesmo correndo o risco dos maus encontros com exemplares da fauna dos escaravelhos que vivem da merda dos outros. Talvez na escuridão do bar, numa mesa do canto, levando os óculos antigos, passasse despercebido.

O Snob recebeu-o com a familiaridade das grutas da infância. Com a escuridão de câmara fotográfica, cheiro a refogado e a mofo, mesas forradas a pano verde coçado, vindo de mesas de bilhar desmanteladas, candeeiros de abajures tortos e sofás de molas salientes. Nunca percebera a razão para aquela furna aberta num prédio em ruínas estar sempre cheia e ser um ponto de reunião em que cada um julgava ser uma águia cujos pais, por azar, colocaram os ovos numa pocilga. Salvavam-se os bifes, para quem gosta mais do molho do que da carne. O Snob valia porque quem o frequentava, existia. Pelo menos para os que lá iam, que por sua vez escreviam uns contra os outros para provar que existiam.

É evidente que o Rui Mendonça só tinha esta opinião do Snob agora que caíra em desgraça. Antes, quando lá ia, e ao Procópio e ao Dom Pedro e aos outros locais onde o destino dos inocentes é cozinhado entre uísques e segredos de cama, sussurrar as ideias geniais do Presidente da Fundação para o futuro da pátria e da humanidade aos ouvidos dos jornalistas para eles as espalharem na rodada seguinte — aquelas duas salas manhosas que nem para bordel de província eram apresentáveis pareciam-lhe a sala de comando de um programa espacial, com ele ao centro como coordenador dos lançamentos e os especialistas em balística e telecomunicações sentados à volta, cada um nas suas mesas.

Desta vez sentara-se com o recato envergonhado dos novos sem-abrigo que vão pela primeira vez à sopa dos pobres e pro­curam que ninguém os veja naquele lugar. O bife a nadar em molho, que o critico Zé Quitério elogiava pela simpatia dos fabri­cantes, para evitar apreciações culinárias, estava quase no fim sem que o Rui Mendonça tivesse sido descoberto, quando ouviu a voz estridente da Naná gritar:

— Apanhado em flagrante!

A jornalista era a prova de que os comportamentos têm funda­mento científico na genética, pois herdara do pai que mal conhe­cera a mesma desfaçatez e a ausência de sentimentos de culpa do Manuel Costa. Estava mais bêbada do que o costume, largou o grupo de colegas onde estava e veio sentar-se na mesa do Rui Mendonça com a alegria de quem encontra o seu primeiro salva­dor e não o último desgraçado que acabara de afogar.

Pediu um uísque e, apesar da escuridão, o Rui Mendonça repa­rou nas olheiras escuras e nas marcas de rugas que lhe vincavam o rosto como os veios secos de uma escultura de madeira carcomi­da. Exalava mau hálito a álcool e a tabaco, enquanto falava com a excitação dos repórteres de guerra debaixo de fogo, encostan­do-se alternadamente a ele e à mesa em busca de apoio. O grupo com quem viera dispersara e a Naná pegou no braço do Rui Mendonça com a fúria de um buldogue a filar a perna de um boneco de pelúcia, fazendo-o entornar o café.

— Vamos para casa!

A ordem continha ambiguidades que a Naná não estava em condições de esclarecer. Qual casa? Casa de quem? E a primeira de todas: o Rui Mendonça queria acompanhá-la?

Arrastado, este viu-se na Rua do Século com o recibo da conta nas mãos, entre carros em cima dos passeios e caixotes do lixo a fermentar restos e a acenar com sacos de plástico, envolvido pelo cheiro forte a suor com que o corpo da Naná chegava à noite. Sempre lhe pedira que tomasse banho duas vezes por dia, mas ela tinha a mesma aversão pela água do Manuel Costa e desculpava-se com os estragos na pele. O velho Ford Escort mantinha-se triste e ileso no lugar onde o deixara e a sua existên­cia, mais do que a sua visão, provocou um grito de espanto à Naná:

— Demos umas belas fodas neste calhambeque. Quando ain­da tinhas vergonha de andar comigo no Mercedes.

O banco ainda devia conhecer-lhe as formas do corpo, porque ela se adaptou a ele com a facilidade dos cães nas almofadas onde dormem, e o Rui Mendonça nem teve coragem de perguntar onde queria que a levasse. Ela apagara da memória tudo o que se passara, o lugar que lhe tirara na Fundação, as traições que come­tera, os cornos que lhe pusera e voltava a ser a amante que regressava ao ninho.

— Os filhos da puta já te tiraram o carro. Cabrões! Parecia completamente sincera. O Rui Mendonça conduziu

em silêncio até ao apartamento de Alfama e, ao entrarem, a Naná abraçou-o, olhando em volta o ninho decorado a seu gosto, antes de dizer:

— Tu portaste-te como um verdadeiro cavalheiro.

— Olha, Naná, tu podes foder com quem te apetecer. Eu esta­va a mais, já percebi, mas escusavas de ficar com o meu lugar na Fundação...

— É tão chato não ficares zangado, antes queria...

Ela reparou então na revista Fancy, com a sua fotografia na capa, deixada em cima da mesa de vidro.

— Que tal?

— Quem não te conhecer acredita que és virgem e vais come­çar a redimir os pecados do mundo!

— Não gozes.

— Imagino o teu pai a ver as fotografias e a comentar que pareces mesmo a nossa senhora das putas.

— Vindo de um pai como ele é um elogio.

A Naná sentou-se, melhor, estirou-se no sofá de design italia­no, com o ângulo das costas e dos assentos propositadamente aberto para os jogos de luxúria que os publicitários neles deixam imaginar nas fotografias de promoção. A Naná rebolou-se e man­dou o Rui Mendonça preparar-lhe um uísque.

— Não achas que já bebeste o suficiente?

— Nunca faço nada que seja suficiente, sou como o meu pai. A propósito, tens de me pôr em contacto com ele.

— Porquê esse repentino interesse filial?

— Porque ele deve saber onde se encontra o capitão Fran­cisco Manuel e eu preciso de encontrar urgentemente esse tipo que de repente parece ser a chave da salvação da pátria. O se­nhor da Arca Perdida onde se encontram os mais decisivos segredos...

— Foi por isso que vieste comigo...

Num movimento rápido, tão fácil como os movimentos coor­denados das ginastas olímpicas, a Naná puxou as saias para cima, tirou as calcinhas e desapertou o sutiã:

— Não, não foi, foi para foder! Apetece-me, depois de ter sido atropelada pelo Miguel Vasconcelos...

Ela segurou a cabeça de Rui Mendonça e foi-o conduzindo sobre o peito, deixando-se lamber os mamilos castanhos e redon­dos, para o umbigo, num percurso que ela sabia ser-lhe irresis­tível, até abrir as coxas e deixá-lo entre as pernas a ensalivar-lhe conscienciosamente o sexo, até onde a sua língua alcançava. A Naná gemia de prazer e pedia-lhe que fosse mais fundo, para limpar os restos que o agrário lá pudesse ter deixado. Ela sentiu um orgasmo violentíssimo, que ameaçou desconjuntar o sofá ainda antes de ser pago, e, no final, elogiou-lhe o desempenho.

— Fazes o melhor minete de Lisboa.

Disse, a concluir, enquanto ele observava mais uma vez, e com o espanto da primeira, o seu púbis de adolescente, um fruto que não amadurecera, que produzia um sumo ácido e de que a Naná servia, como se fosse a sua poção mágica, aos príncipes que encontrava no caminho.

— Boa, tu ficas-me com o lugar na Fundação, arrastas-me para casa, obrigas-me a limpar os restos do Miguel Vasconcelos misturados com os do teu perfume íntimo, elogias-me a língua e ainda queres que te leve ao teu pai!

— Quero encontrar o Francisco Manuel e, se me ajudares, pro­meto-te que te safo do processo do faxe... basta que fales pouco...

— Foi o que disse o Presidente?

— Foi.

— Porque está o Presidente tão interessado num tipo que teve fechado durante um quarto de século num lar de desterrados e que parece ser hoje o relicário da História de Portugal dos anos setenta?

— A geração dele está a acertar as últimas contas da revo­lução e o Francisco Manuel tem alguns dos recibos.

— Queres então encontrá-lo para o entregares ao Presidente?

— Rui, tu tens-me em tão boa consideração que fazes de mim a Judith da Bíblia a entregar o Holosfernes... Não, não é para en­tregar a ninguém, é para meu interesse, e teu...

— Mais teu do que meu... segundo sei, estás às aranhas para organizar as Conferências do Milénio e precisas de um trofeu para recuperar a tua imagem...

— Só tu, meu querido, é que fazias da organização das confe­rências uma ciência esotérica. Apesar das negas de alguns figu­rões, é fácil substitui-los por outra meia dúzia de relíquias que digam umas banalidades a troco de passarem uns dias no Ritz e de jantarem no Guincho, além de um cheque generoso, é claro...

A Naná continuava despida, a beber, e da pele subia um enjoa-tivo cheiro a cozinha de asilo. De repente saiu a correr, nua como uma perua depenada, em direcção à casa de banho e Rui Mendonça ficou a ouvir os seus vómitos. Ela regressou à sala com as olheiras mais fundas, a limpar a boca, a cambalear, com um sorriso perverso, enquanto deslizava amparada aos umbrais da porta laçada.

O Rui Mendonça correu para a amparar antes que ela se esta­telasse sobre a tijoleira da sala e pegou nela ao colo para a deitar na cama do quarto. Deitou-se ao lado dela e disse:

— Não me estás a dizer a verdade, Naná...

— É mais difícil dizer a verdade do que ficar nua...

— Acredito, mas sabes que já morreram tipos próximos do Francisco Manuel?

A Naná mexia-lhe com a mão de dedos compridos, dedos de pianista, no seu sexo, abrindo-lhe a braguilha com um desemba­raço que surpreendeu o Rui Mendonça, mas não lhe desagradou. Ela possuía a sabedoria e dominava a técnica de fazer o que queria com as mãos e, depois de obter o volume adequado, des­lizou o corpo para se deitar sobre ele. Começou a passear sobre ele a ponta da língua até o introduzir entre os lábios e o chupar ritmadamente. O Rui Mendonça rendeu-se, devia ser verdade aquilo que o Manuel Costa lhe contava sobre a arte familiar de tocar punhetas e fazer broches. Se metade do que o escritor mal­dito lhe contara sobre as suas aventuras com soldados e civis fosse verdade, a filha herdara-lhe o dobro desse talento.

A Naná sugava-o e apertava-lhe a base do sexo, impedindo-o de se vir e deixou-lho quase estrangulado, congestionado, para lhe exigir, antes de lhe conceder o momento culminante da explosão:

— Dizes-me ou não onde está o meu pai?

— Juro-te que não sei!

Ela aliviou a pressão e deixou-o vir nas suas mãos. Passou-lhas pela cara, exigiu que ele as lambesse.

— Então estás feito, vais ser atirado às feras.

— Estaria sempre. O Presidente necessita da minha conde­nação para se livrar da dele.

— Tu sabes que ele quando quer uma coisa tem de a ter.

— E o que quer ele assim tão importante do Francisco Manuel?

— O verdadeiro Diamante Azul, a mais importante jóia que jamais existiu em Portugal, para a apresentar na exposição «Esplendor de Portugal — Nós e os Outros».

— Era só o que lhe faltava, andar em busca do Santo Graal!

A Linda viera directamente do Flamingo Dourado para o gabinete do procurador e ainda trazia vestidas as roupas de tra­balho, que se resumiam a uma blusa aberta até ao umbigo e a uma saia brilhante e elástica pouco maior do que a tanga com que a Eva aparece retratada a sair do Paraíso. A gabardina que lhe pusera por cima, para cobrir o corpo na pressa da saída, salientava, em vez de disfarçar, as formas que o Manuel Costa tentara preservar do gozo generalizado e, apesar da noite passada em branco, não tinha olheiras. Era das que, mesmo depois dos baldões da vida, conservam o aspecto saudável das maçãs fres­cas. Fruto campestre, do tipo das que a mãe gostava de acolher na sua casa da Alameda D. Afonso Henriques, apresentando-as aos debochados próceres do regime como estudantes univer­sitárias vindas da província para obterem uma licenciatura em Lisboa.

— Ontem a casa estava fraca.

O Flamingo Dourado é um barómetro da situação do país muito mais fiável do que os índices da Bolsa e as tabelas do Insti­tuto de Estatística, pensou o doutor Serafim Forte, aconchegando o roupão por cima do pijama com que saíra da cama para aten­der a chamada de urgência da camponesa que o Manuel Costa trouxera de Braga.

— Não há grandes negócios e ainda por cima começaram a ser publicadas as declarações de impostos de alguns dos melho­res clientes...

Explicava a última mulher do Manuel Costa com a clarivi­dência de um oráculo encartado e com banca instalada em horá­rio nobre da televisão, concluindo cheia de bom senso:

— Pobres de pedir durante o dia, não se arriscam a aparecer à noite de BMW ou de Porsche, para estourar dois salários míni­mos em champanhe e raparigas!

Depois de terminado o seu número das três da manhã, a Linda dirigira-se aos camarins — uns cubículos piores do que as cortes do gado nas aldeias do Minho — quando dois tipos bem consti­tuídos lhe pediram que se sentasse na mesa deles. Pensou que seriam amigos do João Vicente e não podia negar-se, pois foram eles que fizeram a maior despesa da noite.

Esses dois homens entretiveram-na numa conversa mole até às quatro e meia. Propuseram-lhe levá-la para Espanha, para a Europa, fazerem dela uma vedeta internacional da canção. Com aquela voz, podia chegar onde quisesse.

— E eles só ouviram o pleibéque! O senhor doutor sabe o que é o pleibéque?

O doutor Serafim Forte sorriu. Há muita gente neste país a fazer gestos e a abrir a boca enquanto saem os sons que já estão gravados. Preferia os ventríloquos.

— A Deolinda já não faz striptease?

Ela olhou o procurador com a desconfiança das mulheres que só foram apanhadas desprevenidas na primeira vez. Para isso estavam agora lá as ucranianas, as russas, as brasileiras sem pas­saporte. Mulheres dispostas a tudo para se libertarem da miséria das suas terras...

— Não foi por isso que a Deolinda também veio de Braga para Lisboa?

O Rata dos Cabarés bem a tinha avisado contra as artes da­quele procurador que parecia o cónego Telo de Braga a fazer per­guntas difíceis de entender e perigosas de responder. Felizmente não parecia doido por rapariguinhas, nem se chegava a ela, por enquanto nem lhe deitara as mãos às mamas. A Linda vinha preparada. Desculpou-se com as perseguições do cónego. Era fresco, o homem, utilizava as raparigas do coro eucarístico como se fossem galinhas da sua capoeira. Comia uma todos os domin­gos, entre a missa e o ensaio.

— O senhor doutor conhece o cónego Telo?

— Só de nome. É um homem famoso.

Felizmente a Deolinda encontrara um senhor educado que a trouxe para Lisboa. Um artista. Um escritor. Um tanto doido, mas boa pessoa.

— Foi uma sorte, ter encontrado esse protector. Mas o que se passou a seguir, para estar tão aflita?

— O senhor doutor já sabe, ou está a ver se eu falo verdade?

— Não sou polícia.

Esta afirmação pareceu tranquilizar a Linda, que tinha sobre a verdade as mesmas ideias feitas de quase todos os primatas com bilhete de identidade, que era uma coisa perigosa, à volta da qual operam instituições poderosas, uma terra-de-ninguém onde não devemos deixar que nos apanhem. Algo de que os polícias se aproveitam para servir aos juizes. Mais ou menos como a fotografia das sopas estampadas nos pacotes Knorr. Um pó a que se tem de acrescentar água e sabe ao que o cliente quiser.

Antes de saírem, os dois cavalheiros disseram-lhe que voltavam daí a dias, para assentarem os pormenores da futura carreira inter­nacional, e a Linda avisou-os de que teria de falar com o geren­te do Flamingo Dourado, que era também o seu empresário e o seu homem do momento, o João Vicente. Eles sorriram enviesado, garantindo estarem seguros de que o João Vicente não se oporia ao que preparavam para a Linda.

— A forma, o tom, senhor doutor, com que eles se referiram ao João Vicente arrepiou-me. Tive um mau pressentimento e a primeira coisa que fiz mal viraram costas foi correr para o escri­tório dele.

Ao abrir a porta a Linda conteve um grito. Não podia pôr a casa em alvoroço. O João Vicente estava sentado, com a cabeça furada por um tiro, em cima da secretária. Correu para a sala em busca do Rata dos Cabarés e contou-lhe o que acontecera.

— O Rata mandou-me vir ter consigo, senhor doutor, en­quanto ele se encarregava de chamar a polícia. E também o João Vicente costumava dizer que, se lhe acontecesse alguma coisa, devia vir falar com o senhor. Meti-me num táxi e aqui estou.

A Linda mexia as mãos, metia-as entre as pernas e passava-as pelos cabelos espessos e negros. Estava assustada, mas não em pânico.

— Estiveram a entreter-me, foi o que foi. Apesar de o João Vicen­te ter a pistola caída junto à cadeira, ele não se matou. Olha quem!

O doutor Serafim Forte aconselhou-a a ir para casa, deitar-se, descansar e a responder com clareza e simplicidade a todas as perguntas que a polícia lhe fizesse quando fosse chamada a pres­tar declarações. Estava seguro de que os agentes da Judiciária não a incomodariam muito.

Até podia apostar consigo mesmo que evitariam exigir-lhe que reconhecesse os dois visitantes, mas isto não lhe disse, preferin­do oferecer-lhe um conhaque que ela bebeu de um trago. Antes de sair, a Deolinda agradeceu tanto os conselhos como a bebida e pareceu aliviada de um peso. Não queria ver-se metida em confusões, agora que a sua vida estava a tomar o rumo do êxito com que sempre sonhara.

Na sala de estar ficou o perfume forte da Deolinda e o doutor Serafim Forte respirou-o com o enjoo das memórias que recusam desaparecer e voltam a cada momento. Com elas regressava a casa da mãe nas madrugadas como a que se aproximava. Os chei­ros pesados dos segredos íntimos. Mas agora decidira que iria confrontar-se com os seus fantasmas e com o seu passado. Agora, que ia operar uma mudança na sua vida, surpreendia-se pela sua anterior falta de coragem.

A morte do João Vicente confirmava as suas suspeitas sobre a verdadeira origem das mortes dos homens de algum modo ligados ao capitão Francisco Manuel. Alguém que vivia no edifício que ele próprio construiu e de lá armava laços aos amigos e ini­migos. Alguém que, quando lhe faltava algo, não hesitava em recorrer a qualquer meio para obter o que o coração lhe pedia. Alguém que estava convencido de que os grandes homens são os que mais facilmente enganam os outros.

Era contra esse alguém que o procurador jogava a sua pele e desta vez não iria fazê-lo em campo aberto, como fizera há uns anos, quando era juiz em Marco de Canaveses.

O ainda jovem Serafim Forte está no casamento da filha de um cacique local e ele vem pedir-lhe que aprecie com bondade o processo de um amigo, um companheiro de antigas lutas, um combatente do Exército de Libertação de Portugal, que matara a amante e fugira para o Brasil, e agora, roído de saudades, dese­java regressar aos mimos da sua terra sem sofrer os enxovalhos da justiça. Ele responde que não julga com base em recados. Um mês depois, chegou a ordem de transferência de comarca. Agora era a sua vez de mandar recados. Fora para os transmitir que anunciara ao João Vicente que iria reapreciar o processo da morte do Fernando Cardoso, que provo­cara a ida do Miguel Vasconcelos a Madrid, aflito pela ameaça de implicação na morte do cabo Matos e do Barradas.

A morte do João Vicente provava que estava a avançar na direcção certa e a causar danos entre os inimigos, que já se mata­vam uns aos outros. Provocara mais do que uma efémera turbu­lência e agora devia preparar-se para uma tempestade... Não era isso que pretendia, mas...

O telefone tocou a trazê-lo à realidade, não à realidade do que podia influenciar, mas àquela de que ingenuamente queria fugir. A que revela a nossa insignificância.

Do outro lado da linha, uma voz anunciava a morte de Bár­bara, a sua irmã.

Sozinho, de mãos nos bolsos e passo lento, o doutor Serafim Forte seguia a pé atrás do carro funerário que levava o caixão da sua irmã Bárbara pela álea nascente do cemitério de Alto de São João até àquela que seria a sua última morada.

O padre e os gatos-pingados seguiam à frente, com a indife­rença desleixada de velhas mulas atreladas aos varais da odiada carroça que todos os dias têm de arrastar, e o procurador não tinha de representar a dor e a tristeza, ou a impassibilidade peran­te a dor e a tristeza. Avançava com a serenidade dos que não choram nem os vivos nem os mortos, porque sabem que a vida e a morte fazem parte do tempo.

Conseguira que os serviços municipais atribuíssem um lugar a Bárbara no talhão onde se encontrava a mãe de ambos e este pequeno gesto de humanidade de um funcionário menos azedo reconfortava-o a ponto de lhe permitir apreciar a paisagem que seria vista da campa, tendo por fundo o Mar da Palha e os fémures de dinossauro das chaminés da extinta Siderurgia Nacional.

Quando o corpo desceu à terra, ouviu o padre dizer «porque todos fomos criados para todo o sempre» e regressou ao carro que o aguardava no exterior, pensando como todos os seres são invisíveis antes do nascimento e depois da morte, e como, quanto à Bárbara, ela lhe tinha sido invisível durante a vida.

O doutor Serafim Forte via-se jovem, em casa da mãe, onde viviam as meninas estudantes que recebiam os senhores amigos da Vicência. Uma casa de hóspedes, de convívio, de rendez-vous, bem diferente de um vulgar bordel. Nos anos cinquenta, a Vicência atendia os cavalheiros como uma senhora que tem sobrinhas casadoiras a seu cargo e estas comportavam-se como tal, com as suas alegrias e crises, as suas esperanças e desesperos. Na sala ouvia-se música, conversava-se, tomavam-se bebidas, e nos quartos recolhiam-se os segredos, como em todos os quartos.

Quando não havia visitas, e os senhores eram sempre visitas, as meninas tratavam de si, escovando os cabelos, pintando as unhas, arrancando pêlos em locais que exigiam contorções do corpo e expunham diante dos seus olhos de criança partes ínti­mas com tanto à-vontade que ele perdeu, se é que chegou a ter, a curiosidade que é o primeiro sinal da sensualidade.

Era o único elemento masculino naquele gineceu e, de repen­te, surgiu a Bárbara, que passou a ser a boneca com que as meni­nas brincavam e lhe roubou o lugar de centro de mimos, numa altura em que chegava a adolescência e já não queria sê-lo, em que começava a envergonhar-se de o ser. Em que já apanhava tabefes: desaparece, que não te quero aqui!

Do mesmo modo que nunca perguntara à mãe porque não podia receber os colegas em casa, também nunca quisera saber donde viera aquela irmã, como jamais a inquirira acerca do seu pai, nem do dela. Criara ao redor de si um véu de pudores e de interditos. Descobrira por si que fazer perguntas é obrigar os outros a mentir, aprendera a não acreditar nos espertos que sabem como tudo se passou, a deixar que lhe contem coisas e, sem ter necessidade de lhe puxarem, ou cortarem, as orelhas, ganhara o dom de ouvir com os olhos.

A casa da Vicência das meninas era má para quem tinha curio­sidade e por isso, mais tarde, também nunca perguntara para onde a Bárbara fora. Soubera, quase sempre por acaso, que estava como bailarina no Parque Mayer, em África como artista de variedades, que ficara por Luanda depois de uma visita da companhia de revista às colónias. Que regressara no final da guerra. Soubera da Bárbara sempre tão vagamente quanto a sentira como sua irmã. Quase não se cruzaram até ela adoecer e ele então descobrir um ser frágil, de quem era o único ponto de apoio. De quem finalmente se aproximara sem lhe pedir expli­cações. De quem também nunca ouvira algo parecido com uma confissão.

Com a morte da Bárbara desaparecera a última pessoa da sua família e o doutor Serafim Forte sentiu-se com a paz interior de um ser renascido, com uma nova energia, uma nova liberdade. Podia agora apresentar-se à Branca para lhe pedir que casasse com ele. Não havia mais entraves. Eram dois adultos que deci­diam passar os últimos anos de vida juntos, num amor calmo.

Embebido neste estado de espírito, entrou no gabinete da Procuradoria-Geral da República para iniciar um novo dia de trabalho, sem imaginar quanto ele se iria revelar atribulado e decisivo.

O segurança Márcio aguardava-o na antecâmara com a expres­são aflita e urgente dos mensageiros de más notícias e, mal aca­bado de ultrapassar a porta, disparou:

— O engenheiro Miguel Vasconcelos morreu em Madrid!

O procurador mandou-o sentar e acalmar-se. Deu-lhe um copo de água, que o Márcio recebeu com as mãos trémulas, e esperou que ele o bebesse. O rapaz tinha o colarinho da camisa aberto e os olhos vermelhos congestionados da viagem que fizera, a guiar durante a madrugada, parecia febril e esgotado, mas não precisou de que o doutor Serafim Forte lhe pedisse para relatar o que acontecera.

Logo que chegaram a Madrid, ao fim da tarde, foram a casa do comandante Guilherme Brandão, onde se encontrava também o cónego Telo. Dali levara-os, com o engenheiro Miguel Vascon­celos, ao encontro de Manuel Crato, na zona de mansões da Cas-tellana, onde jantaram. O Márcio esperou-os entretendo-se num bar de tapas a comer tortillas e bocadillos e a ver televisão. Quando regressaram e depois de se terem instalado no carro, o coman­dante Guilherme Brandão disse ao engenheiro Miguel Vascon­celos que, como ele ouvira de viva voz do Manuel Crato, o Diamante Azul que este emprestara ao Presidente era verdadeiro, tudo o resto eram divagações delirantes. O Manuel Crato ou está a mentir ou anda enganado, como sempre mentiu e se enganou o pai, é de família, respondera o Miguel Vasconcelos, garantindo-lhes ter a certeza de que se tratava de uma cópia.

— O burro...

De facto, o engenheiro Miguel Vasconcelos saíra do jantar de má cara, se é que alguma vez a teve boa, e seguia ao lado do Márcio como se este fosse apenas uma extensão do volante. Voltou-se para trás a dizer aos outros dois que as coisas não fica­vam assim, que, se não existisse um outro Diamante Azul, ver­dadeiro, não andaria alguém a matar por ele. O comandante Brandão deu-lhe uma palmada apaziguadora nas costas e acon­selhou-o a esquecer as preocupações. Agora iriam ao Maxim's e, com uns copos e umas amigas da melhor escolha, ele come­çaria a ver a vida com outros olhos. O que o Miguel Vasconcelos precisava era de se animar, de esquecer, e para isso não havia melhor do que a noite de Madrid. Esta promessa provocou um sorriso de boas perspectivas ao engenheiro.

— Sempre armado em garanhão...

No Maxim's foram recebidos familiarmente pelo porteiro negro, o Jonas, vestido de guerreiro africano, que lhes abriu a porta e os informou de que os seus amigos portugueses estavam à sua espera. O comandante Guilherme Brandão mandou o Már­cio aguardar até vir alguém dar-lhe instruções e, enquanto esse alguém não veio, ele metera conversa com o Jonas, que o dei­xou espreitar o interior do cabaré.

— Uma catedral de espelhos e veludos, senhor doutor! O en­genheiro Miguel Vasconcelos caiu logo nos braços de uma mulher de tirar o fôlego e sentaram-se a uma mesa onde se en­contravam outros portugueses, todos muito alegres e bem acom­panhados.

O doutor Serafim Forte levantou-se e foi ao cofre disfarçado na parede, retirando de lá um envelope com fotografias, que mostrou ao Márcio.

— Algum desses homens está aqui?

O Márcio reconheceu-os e indicou um deles como o que viera mais tarde junto ao carro para lhe dar dinheiro e o mandar ir dormir a um hostal próximo, porque o engenheiro ficaria por sua conta e para onde ele iria depois não precisava de condutor.

Quanto a isso não havia dúvida, mas o Márcio, tal como o doutor Serafim Forte lhe tinha pedido, estava ali para seguir os passos do Miguel Vasconcelos em Madrid. Fez de conta que se ia embora e estacionou o Mercedes no outro lado da rua, donde podia observar a porta do Maxin’s sem o Jonas o ver.

— Como nos filmes, senhor doutor.

— Você, segundo me disse o senhor Manuel Costa, está habi­tuado a essas tarefas...

— O senhor Manuel Costa é um bacano a quem devo favores... Do seu posto de observação, o Márcio viu, horas depois, o

engenheiro Miguel Vasconcelos sair com a dama de companhia e despedir-se do comandante Guilherme Brandão e do cónego Telo. O casal apanhou um táxi e ele seguiu-os até um prédio de apartamentos, do qual trazia a direcção apontada, se fosse neces­sário confirmar. Passado algum tempo, o suficiente para o enge­nheiro se satisfazer, entraram nesse prédios dois dos portugueses que ele vira no Maxin’s. Viu-os sair e minutos depois chegar uma ambulância que levou o engenheiro para uma clínica, onde pas­sado pouco tempo surgiram o comandante e o cónego.

O Márcio perguntara-lhes se precisavam de alguma coisa e eles disseram-lhe que o engenheiro sofrera um enfarte e para ele desaparecer dali, que tratavam do assunto.

— Mataram-no, senhor doutor. Atraíram-no a uma armadilha e eu agora estou feito. Que faço?

O corpanzil do segurança tremia e ele olhava o procurador com ar aterrorizado das crianças envolvidas num jogo de que perderam o controlo.

— Vá à Fundação e relate o que se passou ao doutor Diogo Soares, omitindo que esteve à espreita, claro. Ele ainda lhe vai ficar agradecido pela sua preocupação e mais ainda pelo seu silêncio... manda-o para casa descansar. Tem mais que fazer do que se preocupar consigo.

O conselho deu-lhe algum ânimo. O que o Márcio queria era ver-se livre do peso que trazia desde Madrid, por isso saiu quase a correr, deixando o doutor Serafim Forte com os arrepios e os suores a escorrerem pela espinha, tal como devem sentir os com­batentes antes do assalto. De seguida o procurador pegou no telefone com a emoção do jogador de xadrez que vai movi­mentar a peça com a qual prepara o xeque.

A jornalista Maria Helena Simões, a Naná, chegou ao gabinete do procurador a meio da tarde com a expressão tensa e aflita dos prisioneiros que não sabem como vão resistir à dor da tortura, nem o que vão confessar.

O procurador e a jornalista haviam estabelecido uma informal linha de comunicação de vantagens mútuas desde os tempos em que ele era desembargador e ela decidira investigar enriqueci­mentos súbitos, impunidades escandalosas, favorecimentos inexplicáveis, poderes obscuros, roubos públicos, para os estampar na primeira página de um novo jornal. A relação entre ambos começara a propósito de um artigo do doutor Serafim Forte numa revista jurídica, para o qual o advogado com quem a Maria Hele­na vivia na altura lhe chamara a atenção e em que o obscuro juiz confessava aos seus pares que em Portugal certos crimes se avaliam de acordo com a importância dos acusados e que estes os praticam esperando escapar ao castigo pela corrupção dos que têm por missão julgá-los e puni-los, e que os tribunais por­tugueses de hoje não eram muito diferentes dos que existiam na Inglaterra no tempo do rei Carlos, onde os juizes e advo­gados falavam o french law, uma algaraviada que só eles enten­diam. Ela aproveitou a disponibilidade dele para denunciar casos embrulhados nas malhas dos processos formais e o juiz

conseguiu a única forma de punir os poderosos, que pelo menos viam a sua reputação manchada.

Até agora, a permuta de informações processara-se quase sem­pre ao ritmo de refeições longas e de conversas circulares. Por isso, a jornalista estava hoje tão surpreendida pelo carácter de urgência imperativa da chamada do procurador, que mordia os lábios, abanava os cabelos e tremia ao acender o cigarro. Irrita­da consigo mesma, quase entornava por cima das calças de velu­do o café que o doutor Serafim Forte lhe mandou servir.

Uma grande e temida repórter, capaz de destruir uma repu­tação, uma carreira, com uma frase entre duas vírgulas, e estava ali como uma estagiária nervosa antes da primeira entrevista, olhando à sua volta com a ansiedade de um animal enjaulado, desensofrida com a propositada lentidão com que o procurador arrastava o início daquilo que teria para lhe dizer! Este tempo de espera tornou-se-lhe tão insuportável que não resistiu a quebrar o silêncio:

— Quando estou diante de si, além de me sentir acusada de qualquer coisa que nunca sei o que é, tenho sempre a impressão de que o conheço há muito, de que me é familiar e de que está a ver muito para trás de mim.

O procurador sorriu.

— Dona Maria Helena, Naná, fui eu que tratei da separação do seu pai da sua mãe. Conheci-a a arrastar as fraldas na casa das Caldas da Rainha...

— Julgava que se tinham conhecido mais tarde... Então é por isso que nunca tentou ir para a cama comigo?

— Deve saber que nasci e cresci numa empresa que prestava esses serviços... quando os nomes dados às actividades ainda não as tinham nobilitado, quando as modistas ainda não eram estilistas, os agiotas ainda não eram investidores, os presidentes de câmara ainda não eram autarcas e as meninas que têm o mealheiro entre as pernas ainda não eram public relations nos ministérios do Governo. Deve saber que, vindo donde venho, sou como os filhos dos pasteleiros, não como bolos que vi sair do forno.

— O que não o impede de me utilizar como o telecomando de uma televisão...

— Embora não seja dado às novas tecnologias, preferia dizer que a utilizo como uma bomba inteligente... tentando limitar-lhe os efeitos colaterais...

— Tomo essa comparação como o elogio.

A Maria Helena descontraíra-se um pouco com a conversa e voltara a retomar algum controlo sobre as suas reacções. Já estava em condições de perguntar o que o procurador pretendia dela. Se ele lhe oferecesse um uísque, seria perfeito, mas a experiência do doutor Serafim Forte com mulheres tornara-o perverso como um domador com os seus animais, dando-lhe apenas o indispen­sável para eles obedecerem e não o atacarem, porque bem alimentados tornam-se insolentes e perigosos.

Jogavam ao gato e ao rato, desconfiando ambos de que o outro já sabia da morte do Miguel Vasconcelos, mas um deles teria de abrir o jogo. Essa abertura cabia ao anfitrião, que anunciou:

— O engenheiro Miguel Vasconcelos morreu a noite passada em Madrid.

Apesar de adivinhar este início de conversa, a Naná não deci­dira como devia responder. Podia fazer-se surpreendida, ou assu­mir o conhecimento desse facto, dizer que estivera com o Diogo Soares, depois de este ter recebido a comunicação do coman­dante Guilherme Brandão e do cónego Telo, quando vinham a caminho de Lisboa.

— Disseram-me na Fundação, esta manhã.

O procurador sorriu ao verificar que a Maria Helena optava por jogar limpo, embora não tivesse gostado de que ela o acusasse:

— O senhor deve sentir-se culpado da morte dele. Foi por se sentir ameaçado por si que fez esta viagem a Madrid.

Não sei as razões que levaram o engenheiro Miguel Vas­concelos a Madrid. A Maria Helena conhece-as? É que estou a pensar em pedir à justiça espanhola a extradição de uns portu­gueses sobre os quais tenho fundadas suspeitas de estarem envolvidos nas mortes do cabo Matos, do alentejano João Barradas e do João Vicente, o dono do Flamingo Dourado, e uma informação sobre os motivos da ida a Madrid do engenheiro Miguel Vas­concelos talvez me ajudasse a decidir...

— Posso saber quem são esses homens?

— O Máximo Turiano, o Vidal, o Trancoso, esbirros do coman­dante Guilherme Brandão desde os tempos do ELP, tipos entre o animal sabujo e o vinho carrascão... como diria o seu pai, que ficaram em Madrid depois da revolução porque nunca se confor­maram com o novo regime e nunca acertaram as contas com os trânsfugas do velho...

A Maria Helena empalideceu ao ouvir confirmados os piores receios do Diogo Soares sobre a intenção do procurador de apro­veitar a morte do Miguel Vasconcelos para atingir o Presidente.

— Essa notícia é para publicar ou para transmitir ao Presi­dente?

O doutor Serafim Forte cruzou os dedos das mãos e olhou-a nos olhos:

— Tanto faz, Maria Helena, o destinatário é o mesmo e os jor­nais são pouco mais do que o meio de fazer os ingénuos que os compram pagar recados, mas eu preferia que a transmitisse sem a publicitar. Devemos orgulhar-nos dos nossos inimigos...

Perante o espanto da jornalista, continuou:

— ... eu sou um simples juiz que desempenha as funções de procurador da República e que, como o Presidente disse, tem por função curar, isto é, cuidar da República, e não de julgar e conde­nar a sua História e os seus actores.

No espesso silêncio do gabinete, mergulhados na obscuridade do fim de tarde, tinham por fundo o longínquo ruído dos carros e da vida que corria lá fora, indiferente ao que o procurador e a jornalista de grandes escândalos tratavam entre si.

— Isso quer dizer...

— Quer dizer que aquilo que eu devo fazer é mais importante do que o que eu quero, ou gostaria, de fazer.

— E qual é o seu dever, senhor procurador?

O doutor Serafim Forte estalou os dedos das mãos e soltou um leve suspiro:

— Ficar calado.

A Naná respirou fundo, de alívio, e colocou-lhe a mão sobre a perna. O procurador deixou-se ficar assim por uns momentos até continuar:

— Minha querida, só podemos ficar calados e em paz quando temos um arco e flechas.

As condições do procurador para manter as flechas junto do arco eram que o Presidente deixasse o capitão Francisco Manuel em paz, que afastasse dele o comandante Guilherme Brandão. Eram, enfim, as condições para uma trégua que poderia impedir a escalada de mortes e trazer uma esperança de paz. Mesmo assente na desconfiança.

Depois de ouvir a decisão do procurador, a Naná podia falar sem os constrangimentos das testemunhas antes da sentença.

— Porquê esse seu interesse no capitão Francisco Manuel? Apesar de os homens terem inventado as religiões para dar

um futuro à morte, é para o passado que ela inevitavelmente nos acaba por transportar. É para lá que todos acabamos por viajar, e o dia do funeral da irmã comprovava essa rejeitada evidência ao procurador. Até as perguntas da jornalista Maria Helena, da filha do Manuel Costa, o remetiam para lá.

Há muitos anos, no final do julgamento dos assassinos do seu amigo Fernando Cardoso, perante a escandalosa falta de provas para condenar aquele que vinha acusado de autor moral do cri­me, o juiz Barata, que presidiu ao tribunal, justificara as gravosas penas da sentença com uma frase que ficou célebre nos meios judiciais: «Antes se perca o capitão Francisco Manuel do que eu!»

Uma frase tão cobarde como esta, proferida por alguém tão reles como era o juiz Barata, enobrece o acusado e revela a maqui­nação de forças obscuras e poderosas. Nos cenáculos da Maço­naria, dos quais o procurador se afastara sem rupturas depois da morte do Fernando Cardoso, quando alguém pronunciava o nome do capitão Francisco Manuel logo um outro cortava dizendo que essa pessoa era como se não existisse, e ele acreditava que haveria alguns interessados em que deixasse de existir de facto. Aos poucos, para o doutor Serafim Forte passou a ser mais impor­tante saber quem era aquele homem, que tantas e tão quali­ficadas entidades gostariam de ver transformado num átomo de gás perdido no cosmo, do que a verdade sobre a morte do seu amigo Fernando Cardoso. Aos poucos chegara à conclusão de que era a mesma a origem que determinara o destino quer de um quer de outro. Mas agora estava numa posição em que tinha uma possibilidade, ainda que ténue, de evitar o pior.

— Quando, Maria Helena, dois homens travam uma luta em que todas as regras são rasgadas é porque entre eles existe algo de incalculável valor!

— Está a referir-se a quê, senhor procurador?

— Aquilo que a Maria Helena conhece tão bem quanto eu.

— Ao Diamante Azul?

— E não gostaria de que a cegueira por ele levasse o Presi­dente a cometer o maior erro da sua vida e a cair na armadilha para onde o comandante Guilherme Brandão e o cónego Telo o estão a conduzir.

Os olhos da Naná, no centro da mancha escura fruto de noites mal dormidas, abriram-se de surpresa e curiosidade. Ali estava ela como gostava, a participar nas histórias dos homens trafi­cantes de poder. Histórias submersas, fermentos que levedam o pão que os comuns mortais comem sem imaginar como foi cozido.

Atenta, porque cada palavra podia conter uma mensagem, a Naná escutava o procurador dizer que o Presidente corria o risco de deixar o Guilherme Brandão e o cónego darem ao capitão Francisco Manuel a morte sobre a qual escrevera que, quando longe, temia e agora, que ela estava próxima, desejava, atirando sobre o Presidente o enxovalho desse crime.

— Em resumo, Maria Helena, o Guilherme Brandão e o cóne­go Telo obteriam à custa do capitão Francisco Manuel a vingança que sempre desejaram sobre o Presidente, a quem não perdoam

o papel que desempenhou no novo regime. Veja só, o grande homem acusado do homicídio de um velho herói da guerra, um velho, de qualquer maneira envolvido nos assassínios de um humilde soldado como o cabo Matos, de um pobre alente-jano, de um dono de cabaré, pois foi isso que o Guilherme Bran­dão e o cónego Telo prepararam e realizaram, talvez com a cumplicidade do Diogo Soares e do Gregório Castelo Branco! Uns, bêbados de sangue, outros, de ambição...

— O senhor é perverso!

— Não gostaria de que o Presidente acabasse enlameado por aqueles dois.

— Está do lado do Presidente?

— Pelo menos, no mesmo hemisfério. Na mesma metade do universo...

Aquilo que o procurador tinha para transmitir estava dito e esperava que a jornalista se levantasse para ir fazer o que lhe competia, mas a Maria Helena manteve-se sentada, a fixá-lo com o olhar que atravessa os corpos das feiticeiras.

— O senhor sabe onde se encontram o meu pai e o capitão Francisco Manuel?

— Não. Não sei porque não quero saber, mas não sei.

— Era conveniente que ninguém os descobrisse nas próximas horas, pelo menos até à inauguração das Conferências do Milé­nio e da abertura da exposição «Esplendor de Portugal-Nós e os Outros». Não lhe posso dizer mais.

O mais era certamente o que ela ouvira na Fundação após a chegada do comandante Guilherme Brandão e do cónego Telo para relatarem o que acontecera em Madrid. A Maria Helena atirou o isqueiro e o tabaco para dentro da mala e saiu apressadamente, deixando o procurador com a sensação de um comandante de veleiro que descobre sobre os mastros as nuvens negras de uma súbita tempestade e sente a força das primeiras grandes vagas embaterem no casco. Tinha de se preparar para as ultrapassar.

Entre ele e a baía de águas calmas onde queria fundear erguia-se uma montanha de espuma. Entre ele e a Branca existia o capitão Francisco Manuel. Como tudo seria mais fácil se um gigante lá do alto desfizesse o olho do tufão com um raio ins­tantâneo!

O doutor Serafim Forte mudou da cadeira onde estivera sen­tado para uma outra que se encontrava diante da sua secretária. A cadeira onde se acomodavam aqueles que vinham expor os seus casos e ouvir os seus conselhos, o banco dos réus. O que ele estivera a imaginar como a solução mais fácil para ter a Branca era vingança por ciúme. Se deixasse o capitão Francisco Manuel nas mãos dos que o queriam matar, o que seria ele ao lado dos assassinos? Um juiz que se transforma em vingador e vítima da sua lei! Iria causar a si mesmo e à Branca um mal pior do que o assassínio, iria conspurcar as visões mais queridas da juventude. Uma maldição com que teria de viver para o resto dos seus dias.

No funeral da Bárbara prometera renunciar a todos os desdéns e não podia começar por desdenhar de si próprio. Esse era o mais solene dos seus juramentos. Preferia encher de fel o cálice de mel que gostaria de tomar com a mulher da sua vida.

O capitão Francisco Manuel tinha de viver para que a Branca pudesse decidir sem a desculpa de entre os dois já não existir mais do que as ruínas de um túmulo. A vida do oficial dos Aven­tureiros constituía a prova real da vontade da mulher que ele amava em o aceitar, mas era também a prova de que alguns valo­res ainda podiam ser garantidos para além da ambição. A partir deste momento, uma intrincada rede de intrigas iria começar a ser tecida e percorrida para deter o braço que transportava o punhal.

E chegara a este momento por causa de um diamante vindo da lonjura dos tempos...

O novo ministro da Saúde nomeara uma comissão para trans­formar o centro antialcoólico numa outra coisa qualquer mais moderna, porque os dependentes do álcool estavam fora de moda. Devido ao anúncio ministerial, no modelar centro anti­alcoólico reinava agora a paz da inutilidade dos organismos públicos, em que os funcionários deixaram de fazer o pouco que vinham fazendo e ainda não faziam o que seria decidido virem a fazer.

A Elsa despedira-se, à porta do cemitério, do padre Nuno Maria, perguntando-lhe como se encontrava o Francisco Manuel, e recebera a tranquilizadora resposta do capelão da antiga Com­panhia dos Aventureiros de que o capitão estava em segurança, juntamente com o apêndice que se lhe juntara, o Manuel Costa. Regressou ao Centro Antialcoólico do Vale do Rio depois de o corpo do pai ter descido à cova aberta no talhão dos antigos combatentes acompanhado pelas salvas de tiro com que os mili­tares saúdam pela última vez os seus camaradas de armas, e agora, completamente só no seu quarto, sem a rotina do trabalho para a ocupar, a Elsa dispunha de um doloroso tempo para si. Não conseguia chorar, mas sentia-se verdadeiramente órfã.

Restavam-lhe, para mitigar a angústia de último sobrevivente, os objectos do pai e do capitão Francisco Manuel que trouxera

da Casa do Desterro, metidos à pressa num saco que se encon­trava ainda no armário para onde o atirara, e esta era a ocasião para lhes dar alguma ordem antes de os entregar ao filho do patusco Manuel Costa, para este os levar para lugar seguro.

Hesitou uns momentos antes de pegar no saco que se lem­brava ver o pai colocar às costas quando saía de casa para mais uma comissão de serviço. Um saco que lhe dava o aspecto de peregrino, cujo conteúdo constituiu sempre um mistério para a criança, que imaginava os objectos colocados no seu interior a multiplicarem-se, a tomarem as mais estranhas formas e a servi­rem para todos os fins durante o tempo quase infinito que dura­vam as ausências. Esse simples saco verde, um enorme enchido que ele fechava com uma travinca de metal e suspendia nos ombros por duas tiras de cabedal, ficara-lhe como o símbolo daquela geração de últimos legionários do império que, apenas equipados como ele, com um cantil para água e uma arma, atra­vessaram a África. Despejou o saco de lona verde-azeitona, onde os militares transportavam os seus haveres durante as missões, sobre a cama e desse sacrário, porque era assim que a Elsa via o saco de bagagem de campanha do pai — ou seria do capitão Francisco Manuel? —, caíram papéis, dezenas, centenas de papéis, sobre os quais ela foi deitando um olhar em que a curio­sidade defrontava o pudor. Pegava neles com o cuidado dos gatos, num toca e foge que evite más surpresas, mas não impeça o prazer da caça.

Cartas do Francisco Manuel em luta contra o esquecimento, que corre a mais valor do que ouro e assim deve ser, porque se gasta mais esquecimento do que ouro, por vezes com um humor amargo, têm os presos uma coisa boa para quem os visita: é que estão sempre certos em casa, mas consciente de ter caído nas mãos de alguém que não lhe perdoa, pois anda cada um a ver quem maior mal me fará e, se daqui sair, será para outro lugar de menos liberdade. Opiniões sobre os seus processos na justiça: Assim é que saiu um despacho em que se anulava o que contra mim é processado, mas de que serve desfazer as culpas e deixar o molde inteiro? Do mundo não sei senão que é um velho velha­co e de mim que sou alguém de quem os que mandam fazem bem pouca conta. Até já estou outra vez na mão dos juizes! E, por fim, as afirmações de um homem que conhece os perigos que enfrenta: Antes quero que cuidem que estou morto, pode ser que esqueçam que me têm ainda vivo para me matarem, mas que não tem meios para os vencer: Podemos desmentir os menti­rosos, mas não podemos fazer com que deixem de o ser.

Fora este homem que o seu pai servira durante um quarto de século e a Elsa teve o sentimento de partilhar um acto tão digno quanto mal reconhecido, tão abnegado que não podia ser dito que era heróico.

Mas no saco de campanha, e agora espalhados sobre a sua cama de enfermeira de serviço sem doentes, não existiam apenas papéis. Do interior dessa arca de segredos haviam caído também duas pequenas caixas de aparência sólida. A Elsa abriu a primeira, um estojo forrado a azul, e no seu interior encontrou as condeco­rações do capitão Francisco Manuel, uma cruz templária dou­rada que resumia os seus feitos em combate, a sua coragem física, o seu desprezo pelo perigo. A mesma cruz que há mil anos carregam nos ombros ou ao peito os homens que só sabem viver arriscando a vida. Valores milenares brilhavam nas escamas de ouro que envolviam a cruz de guerra, soltando os clarões de lou­cura e bravura.

Depois, a Elsa tentou abrir a segunda caixa, uma pequena arca de madeira polida e coberta de cicatrizes, dos sofrimentos, das aventuras que viveram as mãos que a detiveram e que, por­ventura, também sentiram dificuldade em vencer a resistência da fechadura de metal.

Como as pessoas que vivem para obter o indispensável, a Elsa nunca dera grande valor a jóias. Não fora educada a apreciar esses objectos supérfluos, nunca encontrara um amor que mere­cesse tê-los por testemunhas, nunca necessitara de um símbolo de eternidade, porque a sua luta travava-se dia a dia, distinguindo o útil do belo e, recordando aquela frase feita, ouvida já não se lembrava a quem, com certeza de um homem, de que o seio de uma mulher é a única coisa simultaneamente bela e útil que existe na natureza. Por isso, a Elsa não forçou a abertura do pequeno estojo, embora reconhecesse ter nas mãos algo de excepcional, de terrivelmente perigoso, mesmo sem confirmar se dentro da caixa estaria o Diamante Azul, um dos maiores exis­tentes, que percorrera quinhentos anos de história do seu país, que causara mais mortes e devastações do que muitas guerras. Que por ele se cometeram crimes e praticaram gestos insensata­mente admiráveis. Que à volta daquele diamante encerrado num invólucro tão ferido como a mala de um vagabundo, tudo era transitório e só ele era definitivo. Estava certa de que o capitão Francisco Manuel atribuía maior valor à condecoração do que à jóia, porque ganhara a primeira e se perdera pela segunda, mas que tinha de viver com as duas.

A Elsa largou a caixa com um suspiro do mergulhador que re­gressa à superfície e afastou-a como se ela lhe queimasse as mãos.

Quando o Paulocas se apresentou no quase deserto Centro Antialcoólico do Vale do Rio para levar as coisas do capitão Fran­cisco Manuel, a Elsa entregou-as com o sentimento de alívio e saudade de quem vê partir uma ave migratória que esteve durante uns tempos no beiral da casa a ganhar força para seguir viagem. Dobrara os papéis e atara-os em maços, pusera-lhe por cima as duas caixas e, depois da arrumação, o espólio do velho militar coubera numa pequena mala, um necessaire de fim-de-semana que já não usava.

O filho do Manuel Costa parecera-lhe a pessoa menos indi­cada para transportar uma carga tão valiosa, mas talvez estivesse enganada e aquele adolescente magricelas e quase mudo fosse o meio mais seguro para o fazer sem despertar suspeitas. A Elsa não lhe perguntara para onde levava os objectos e o Paulocas também não parecia saber. Ou era demasiado retardado para estar preocupado, ou era suficientemente esperto para não o demonstrar. De qualquer maneira, era filho do Manuel Costa e havia que confiar nos genes do velho libertino.

Ficou apenas para si com uma carta que o Francisco Manuel escrevera, mas não enviara, em que ele falava das responsabi-lidades do homem perante as mulheres: Só devemos recebê-las se não podermos passar sem elas a nossa vida, devemos esquecê-las se não quisermos arriscar-nos a perdê-las.

O Paulocas saiu do portão daquilo que ainda ostentava o nome de Centro Antialcoólico do Vale do Rio carregando a mala entregue pela enfermeira que tentara pôr o pai a beber água com a mesma resignada atitude que exibia quando tinha de pedir aos amigos as vintenas da subsistência do artista, de levar originais de panfletos às tipografias manhosas que os transformariam em ofensas e denúncias, com a mesma curva nas costas e vazio nos olhos com que levava os irmãos e as irmãs mais pequenos a casas de acolhi­mento. Estava habituado a estas tarefas de moço de fretes, de rafeiro que mete dó, e, felizmente, para esta missão, o pai dera-lhe um primeiro destino, onde ele encontraria as instruções para os passos seguintes: a taberna da Paquita, O Ninho do Papagaio.

Conhecia bem os frequentadores, tal como eles o conheciam a ele. A indicação que o pai lhe fizera chegar através de um da­queles papéis que já haviam servido de embrulho, de guarda­napo, até de pauta de música já os recebera, rabiscados em frases curtas, era a de levar à Paquita aquilo que a enfermeira lhe entre­gasse, para a galega guardar em local seguro. Nada de difícil, excepto ter de comer os carapaus com molho à espanhola, que ela lhe daria a nadarem num mar de azeite e cebola mais vasto do que o oceano onde nasceram e onde deviam ter permane­cido. O Paulocas detestava peixe e, se pudesse evitá-lo, mesmo dado, tanto melhor, mas não tinha a desvergonha do pai para pedir à taberneira uma sande de presunto.

Descia a Calçada da Glória já com o antecipado gosto do esca-beche a enjoá-lo, quando encontrou, melhor, quando foi encon­trado pela figura de moribundo, de lagartixa esborrachada, do Rata dos Cabarés, a tossicar enquanto urinava amparado à parede de um prédio em ruínas.

O Rata falou-lhe aos sacões e molhava as calças verdes amar­rotadas que lhe sobravam na cintura e caíam sobre os sapatos sem cor. Se o Pau locas não tivesse assistido a muitas crises de asma do pai, umas verdadeiras, outras falsas, diria que estava a dar as últimas, mas ele pertencia a uma geração de resistentes que podem perfeitamente passar uma noite a beber com a morte e, no final, ainda a obrigar a pagar a conta.

— O que levas aí nessa mala? O esqueleto do teu pai para empenhar?

A voz do Rata soou-lhe a barulho de autoclismo avariado e respondeu:

— Papéis.

— Se fossem papéis de notas... mas o teu pai tem a mania de escrever neles. Por onde anda o teu pai?

— Não sei.

— E onde é que levas os papéis?

— À Dona Paquita.

O Rata teve mais um ataque que tanto podia ser de falta de ar como de riso.

— Só o Manuel Costa é que se lembrava de mandar papéis à galega. Só se for para ela acender o fogareiro das febras com eles, ou os dar ao Cabeça de Vaca para ele limpar o traseiro em vez de gastar papel higiénico!

— São para guardar.

— Material clandestino!

Na cabeça do Paulocas começou a desenvolver-se uma ideia para escapar aos carapaus da Paquita. Venceu a timidez e pediu:

— O Rata podia levar-lhos e dizer-lhe para ela os esconder, que ele um dia destes passa pel'O Ninho do Papagaio a buscá-los.

O antigo chulo, a quem depois da morte do João Vicente a Linda pedira que ficasse como vigilante do Flamingo Dourado, enquanto tribunais e credores decidiam o futuro do cabaré, olhou o Paulocas com a alegria de um ressuscitado. Até os olhos bran­cos a flutuar nas olheiras de camaleão se riram.

— Foi preciso chegar a esta idade para pegar numa mala de livros, rapaz. Se não me alpergato, ainda me faço doutor!

O problema que dificultava essa possibilidade tão longínqua como a mais desconhecida estrela era o peso da mala.

— Ajuda-me com o chumbo cultural. Isto deve ter aqui a cabeça do gajo que inventou as letras.

Desceram os escassos metros de calçada até à porta d'O Ninho do Papagaio, onde o Rata se despediu.

— Diz ao Manuel Costa que a malta está à espera dele.

O Paulocas acenou que sim com a cabeça de palhaço triste e partiu com a sensação do dever cumprido, sem imaginar que acabara de participar em mais uma etapa na misteriosa viagem do Diamante Azul, que, tal como os cometas errantes, se perderia no infinito para reaparecer sabe-se lá onde e quando.

Depois de a Naná sair do gabinete do procurador com a urgên­cia do sapador que soube da existência de uma bomba-de-relógio prestes a esgotar as últimas voltas do mecanismo de explosão, o doutor Serafim Forte manteve-se imóvel a respirar o perfume que a jornalista deixara atrás de si.

Um perfume denso, sensual, de mulher madura que conhece o efeito dos cheiros nas cabeças dos homens e os utiliza como a aranha o faz com a teia, as sereias com os cantos, as serpentes com os olhos.

O doutor Serafim Forte conhecia das mulheres como a Naná o suficiente para saber que ela utilizaria essas armas em proveito próprio, mas chamara-a exactamente porque estava certo de que a filha do Manuel Costa correria para o covil a dar o alerta do perigo e que iria transmiti-lo ao único homem capaz de o entender, sem que nenhum lacaio, nenhum flamingo, nenhum assessor a detivesse na sua marcha até ele. Era isso que pretendia. Se ela também beneficiasse com esse gesto, tanto melhor.

Aproximava-se o desenlace do jogo cujas cartas distribuíra uma a uma a partir do dia em que tomara posse do cargo de pro-curador-geral da República. Desta vez o Presidente seria obri­gado a reconhecer os limites do seu poder, a contentar-se com menos do que queria, e essa era uma vitória que devia fazê-lo sentir-se feliz. Mas não, não era a felicidade da vara de madeira que deteve a espada de aço que ele sentia.

De facto, o procurador-geral da República estava quase a obter uma vitória sobre os homens ricos e poderosos que se jul­gam impunes, mas o filho da Vicência só alcançaria a felicidade se fosse capaz de conquistar a mulher que lhe revelasse a face oculta do que ele vira entre as meninas da casa da Alameda D. Afonso Henriques. A face não pervertida do amor, de algo que ele conhecia de ler e ouvir falar. E essa vitória não estava ele cer­to de conseguir, porque essa mulher era a Branca e o capitão Francisco Manuel o obstáculo que teria de vencer para chegar até ela.

Todas as acções que empreendera, aparentemente em nome da justiça e do bem da República, tiveram como finalidade secreta, guardada no mais recôndito lugar entre as suas verdades, resgatar a Branca da memória desse homem, que só conhecia através do que o Manuel Costa sobre ele escrevera, e apropriar-se dela. Na sua luta contra os flamingos da Fundação, o impo­luto procurador-geral da República agira movido pelos mesmos interesses individuais da calculista e sem escrúpulos jornalista Maria Helena. Tal como ela e tal como os inimigos que defron­tara, os seus actos visavam atingir objectivos particulares e, mesmo que fossem distintos os fins que prosseguiam, ele não era, na essência, diferente deles. Esta conclusão entristecia-o, mas não o desviava do que planeara fazer. Como os apaixonados que julgara severamente, também agora o que lhe interessava eram os resultados. O amor não é ilegal, alcançá-lo pode ser até um objectivo sublime que justifica renúncias e mesmo algumas ignomínias, desculpou-se antes de telefonar a Branca a pergun­tar-lhe se o capitão Francisco Manuel se encontrava em segu­rança. Perante a resposta — sim, julgava que sim —, insistiu na importância de uma certeza, numa garantia de que nada lhe acontecesse. Tudo para bem do oficial. Tudo para o bem de todos.

Do outro lado do fio, a Branca pareceu tão surpreendida quan­to preocupada com este interesse do doutor Serafim Forte no Francisco Manuel e alvitrou que podiam ir ambos verificar como ele estava ao local onde o escondera. Era esta a proposta que o procurador pretendia que ela lhe fizesse.

Mais uma vez manobrara de modo a provocar a reacção dese­jada, forçando dois inocentes, tanto quanto a ignorância pode ser associada à inocência, a colaborar involuntariamente nas suas jogadas. Mas, ao colocar diante um do outro a Branca e o Fran­cisco Manuel, ele sabia que lhe podia acontecer o mesmo que a qualquer aprendiz de feiticeiro e acabar destruído pela sua experiência. Simplesmente não tinha outra via para confirmar se a Branca estava liberta dos filamentos que a uniram na sua juven­tude ao antigo oficial dos Aventureiros, e o seu amor por ela não podia conviver com essa dúvida.

Ah, mas como competir com um monstro?

Essa é a pergunta em que assentam todas as histórias dos heróis fundadores das civilizações, de todas as mitologias.

Um herói resgata uma mulher das mãos de um ser que está para além da nossa compreensão, de um ser ímpar, com três ou cinco membros, com um ou três olhos, com uma força desco­munal, de um ser que dispara chamas pelas ventas, que não sente medo nem dor, que não tem família nem limites, que vive numa gruta, de um ser que só existe na imaginação dos que nunca viram a cor do medo, de um ser que os seres normais acreditam nunca ter franqueado as muralhas da morte, a não ser para a espalhar, de um ser que pode causar um cataclismo com um simples acenar de cabeça, de um ser que tudo atrai e que tudo repele.

O problema do doutor Serafim Forte era ele não ser o São Jorge e de o capitão Francisco Manuel ser o dragão.

Para satisfazer o intempestivo pedido do seu velho amigo, a Branca telefonou ao padre Nuno Maria, porque era ele quem assegurava a ligação aos refugiados e porque as preocupações se transmitem em cascata. Cada degrau retém uma pequena parte das águas e passa ao seguinte a grande massa que vem da ante­rior, trazida pela força da corrente.

A Branca recebeu a sua dose de preocupações quando tomou consciência de que teria de enfrentar o Francisco Manuel depois do telefonema em que o Serafim Forte quase a obrigara a acom­panhá-lo numa visita ao antigo oficial dos Aventureiros. Nunca se atrevera a ir ver o Francisco Manuel e limitara-se a perguntar por ele ao padre.

O padre Nuno Maria, tal como ela, tinha a capacidade de armazenar as preocupações perto do limite. Recebera a informa­ção do Patriarcado de que iam mudá-lo da paróquia de Agualva-Cacém e a sua situação era quase tão precária quanto a dos seus protegidos. Não se resignava a ir enterrar-se entre beatas e rezas sabujas numa aldeola minhota, a desfilar mascarado de capa e solidéu à frente de procissões e arraiais acompanhados a toque de bombos e zés-pereiras, nem a exilar-se num monte de almas perdidas no Alentejo, em que até o Centro de Trabalho do PC estava às moscas, que eram as duas alternativas que os cónegos da sé lhe propunham.

Em resumo, ao ouvir a notícia de que o procurador queria ver o Francisco Manuel, o padre Nuno Maria resmungou que era só o que lhe faltava, mas se tinha de ser... se essa visita contri­buísse para resolver a situação do capitão, ou para abreviar aquele desterro em Colares, dentro do desterro em que ele se encontrava há um quarto de século...

— Seja tudo pela graça de Jesus Cristo Deus Nosso Senhor...

— Ámen.

O padre Nuno Maria e a Branca entregavam-se nas mãos de Deus, o que não queria dizer que pudessem descansar ou que estivessem a salvo, apenas que ficaram interiormente um pouco mais aliviados no intervalo de tempo que decorreu até cada um cair em si e ter de realizar a parte que lhe compe­tia para receber o procurador e conduzi-lo ao Francisco Ma­nuel.

A Branca tinha de ir para Sintra esperar por ele, mas não era o encontro com o Serafim Forte que lhe provocava o desassos­sego de adolescente, que a afogueava, a levava a hesitar na esco­lha da roupa, do perfume, na forma como pentearia os cabelos, que a fazia recriminar-se por não ter ido ao cabeleireiro, que a fez, por fim, bater com o pára-choques do carro na esquina da garagem, antes de sair de casa.

Conduziu mais depressa do que o normal entre o Algueirão e Sintra, lembrando-se das correrias de jipe pelas picadas de Angola, que nada ficavam a dever em irregularidades de piso e curvas inesperadas às vias municipais daquele concelho metropolitano à porta da antiga capital do império, excepto na quantidade de veículos que por elas circulavam em perigosos exercícios de rali, mesmo alguns com várias toneladas.

O procurador estava já na pastelaria e viu a Branca chegar com um aperto no coração. Ficou preocupado com o que provo­cava o desarranjo da sua máquina interna, acelerando as batidas cardíacas, produzindo suores frios, engasgos no esófago, maus humores generalizados. Ou eram os seus olhos que a viam com um aspecto diferente do habitual, ou a Branca se engalanara com as melhores cores e panejamentos para impressionar o Fran­cisco Manuel.

Se ele seguisse o modelo primário de análise dos comenta­dores públicos, que atribuem ao terrorismo a responsabilidade por qualquer conflito, seja na Palestina, em Caxemira, no Tibete, nas Filipinas, na Córsega, na Argélia ou no País Basco, até no Paraíso, se existisse, não teria dúvidas de que era o Francisco Ma­nuel o terrorista que lhe disputava o território onde queria esta­belecer o seu novo colonato. Mas os gestos da Branca ao chegar junto ao doutor Serafim Forte não permitiram que este ganhasse a mesma certeza dos tais pensadores da casta das alimárias que apenas conhecem o caminho da cavalariça onde se encontra a manjedoura.

Ela beijou-o como de costume, recebeu o seu cumprimento com a distinção habitual e ofereceu-lhe boleia no seu carro.

Assim evitariam que o motorista da Procuradoria soubesse quem iam visitar e conhecesse o local de refúgio do Francisco Manuel.

O trajecto de Sintra para Colares pode ser feito por vários caminhos, todos eles igualmente inclinados, curvados e borde­jados de árvores. Mas todos eles diferentes. A serra de Sintra é o paraíso dos adeptos de emoções fortes ao volante, de amantes em geral, de toda a sorte de clandestinos em busca de recolhi­mento, e o inferno dos pacatos, dos cumpridores da lei, dos che­fes de família que nunca saíram fora de uma estrada para uma sessão de sexo num banco de automóvel.

O doutor Serafim Forte não ousava propor um acto destes à Branca e para mais ela guiava a grande velocidade e desem­baraçadamente, como se estivesse cheia de pressa em chegar a Colares. O procurador-geral da República quase não conse­guia fixar-se nas coxas ainda firmes e bem torneadas que a saia travada expunha e os movimentos dos pés no travão e no acele­rador acentuavam. O enjoo sobrepunha-se à libido e esta prio­ridade não augurava bons resultados na disputa com o Francisco Manuel. Que faria o capitão dos Aventureiros numa situação des­tas, sozinho com uma mulher num carro a percorrer as veredas isoladas da serra ao cair do dia?

Felizmente a viagem aproximava-se do fim e entravam agora numa zona de vivendas escondidas no meio de jardins maltra­tados, onde cresciam as ervas e arbustos que lhes davam o ar de abandono de estação balnear na época baixa. Não se via vivalma e a Branca desviou o carro para um portão de madeira aberto, que dava acesso a um pátio de cimento gretado onde se encon­trava estacionada uma velha carrinha Renault 4L de pintura comida pela ferrugem e chapa coberta de amolgadelas.

— O padre Nuno Maria já chegou.

A vivenda de férias da Branca fora construída nos anos cin­quenta, seguindo a moda do arquitecto Raul Lino: dois pisos, com telhado de quatro empenas e um pequeno alpendre de entrada. Nos primeiros anos estivera caiada de branco, mas as manchas de musgo que escorriam de algumas fendas e a humidade do mar, revestira-a progressivamente de uma tonalidade pardacenta, à qual também não escaparam as madeiras das jane­las lascadas, despidas do vermelho da pintura original. Estes sinais de desinteresse revelavam que a Branca a utilizava pouco.

— Venho aqui muito raramente. Quem gostava da casa era o Fernando, mas para actividades que eu preferia desconhecer.

Das janelas do rés-do-chão da sala da casa de Colares que a Branca cedera ao padre Nuno Maria para acolher o capitão Fran­cisco Manuel via-se a serra de Sintra, e essa imagem de falo gigan­te era a antena que ligava ao mundo os quatro homens que lá se encontravam fechados.

Uma república de velhos, em que o Francisco Manuel, o Quevedo, o Ned Marchmont e o Manuel Costa viviam como se alguém, com malévola persistência, exercesse sobre eles um grande peso.

Com o passar dos dias, já não se podiam ver nem ouvir uns aos outros e por isso cada um ocupava um canto da sala com as suas manias e hábitos de solitários.

Dos restos que abandonavam na cozinha vinha um cheiro a fedor e a couves fermentadas a que eles já estavam imunes. Por razões de segurança, não tinham ninguém de fora para lhes fazer qualquer serviço. Uma Aurora, Aurorita, como a mulata do Nuno Maria.

O padre viera, como vinha quase todos os dias, fazer-lhes companhia por umas horas, trazer notícias, vinho, alguma comi­da e levar recados, mas nessa tarde chegara como um dragão a deitar labaredas do nariz peludo e nem abrira ainda o saco dos mantimentos. Percebia-se no seu olhar a excitação do tumulto de ideias que nunca se sabe quando vão jorrar, mas que, quando lhe saem nos jactos intermitentes da sua oratória difícil, percebe-se que só podiam ter vindo dali. Estava ainda na fase de aqueci­mento para as grandes revelações.

— Na vossa idade e na vossa condição não duram muito. Do que estamos à espera? Dum quarto de asilo para cada um, é?

O antigo capelão dos Aventureiros falava aos solavancos no meio da sala, dando pequenos saltos de gato com comichões.

— Acalme-se, padre Nuno Maria, parece que tem feijão-macaco no corpo.

— Antes tivesse, capitão Francisco Manuel. Esfregava-me com mijo e cinza e passava-me. Mas da sarna que me atiraram para cima não me consigo livrar...

Ele era como os caçadores de serpentes, um homem que aceita trabalhos perigosos e mal pagos, e padres como estes rara­mente morrem na graça do seu Deus. Ou se transformam em fanáticos ateus ou em desesperados guerrilheiros abatidos pelas forças da ordem. Perdera a fé nos homens e descria dos deuses que os fizeram. Invectivava os cónegos que o queriam transferir de paróquia:

— Morte aos cabrões...

Mas até o capitão Francisco Manuel parecia ter esgotado a sua conta de horas de perigo e êxtase, em que cada desejo, cada sonho, cada pesadelo, tudo se torna de repente realidade, e se acomodara àquela vida de pensionista em época de termas.

— Bom, a vida na reserva não vai ser tão má como isso.

— Bueno, bueno, Francisco Manuel.

O Quevedo levantou-se pachorrentamente e foi ligar a televi­são. A noite caía sobre a casa e o padre aproximou-se do Ned Marchmont, procurando um aliado, mas este continuava à volta dos seus papéis a escrever e a tomar notas, com um copo à frente. Olhou o antigo capelão militar quando ele se aproximou da esquina que ocupara, levantou para ele os olhos claros antes de lhe dizer:

— Numa terra em que no mesmo ano um comunista recebe o Prémio Nobel, o papa da sua Igreja beatífica as três crianci­nhas de Fátima e o vosso maior banqueiro entrega o controlo das finanças aos espanhóis, valerá a pena que alguém se bata por algo que não seja o seu interesse privado? As pessoas andam demasiado ocupadas com as suas vidas para se preocuparem com isso.

— Experimente ver a coisa assim, padre Nuno Maria, terra modesta, safra modesta.

— Fué sueno ayer, manana será tierra, poço antes nada,opoço después humoodestinooambicionesopresumo apenas punto ai cerco que me cierca.

O padre, depois de ter encarado o capitão Francisco Manuel, voltou-se para o Quevedo, que voltara ao entretenimento de fazer passar os canais da televisão com o telecomando:

— O que está a querer dizer com essa arenga?

— Significa la própria brevedad de la vida.

— E o senhor, Manuel Costa, não diz nada?

O Manuel Costa tirava macacos do nariz, no canto mais afas­tado, com os olhos míopes postos entre as pernas.

— Estamos todos como este membro pendente que me sai do corpo logo abaixo do umbigo, enrugado e roxo, dum roxo quase negro na ponta.

O padre Nuno Maria atirou a boina ao chão.

— Porra, para falar verdade sinto-me tão agoniado convosco que já me ia esquecendo de vos avisar de que a dona Branca deve estar a chegar e de que com ela vem o procurador-geral da República!

O anúncio teve o efeito do grito de aviso de «polícia!» numa feira de ciganos e até as baratas que já estavam senhoras do lugar fugiram para se esconder nas suas tocas.

— Então, em vez de nos ter avisado logo que chegou, esteve para aí a lamuriar-se das maldades dos cónegos?

O capitão Francisco Manuel aproximara perigosamente as mãos de dedos longos do pescoço do padre, mas arrependeu-se de o esganar no último momento.

— Temos de dar uma limpeza e uma arrumação a esta cava­lariça.

— Pocilga.

Na urgência de medidas a tomar em que o padre Nuno Maria colocou os quatro homens, o antigo oficial dos Aventureiros era o mais excitado. Apesar de ser um homem desenganado de muitas coisas, entre outras, de mulheres, o Francisco Manuel continuava como comandante que recusa descer as velas do navio mesmo à vista da tempestade e foi tirar satisfações ao men­sageiro da má nova:

— Como é que a Branca e o procurador aparecem juntos nes­ta visita, padre Nuno Maria?

— Com ciúmes, capitão Francisco Manuel?

— Amor constante más allá de Ia muerte, fué sueno ayer, manana será tierra...

O poeta de Madrid esteve quase a conhecer a diligência com que se aproxima a morte e só foi a tempo de proteger os óculos quando o Francisco Manuel o sacudiu com as mãos de gigante, perante a estupefacção dos seus companheiros, que acorreram para evitar um triste fim ao espanhol, que esquecera as conve­niências de não usar a língua contra um apaixonado que sofre.

— No lo digo por mal... Francisco Manuel...

Desculpou-se o Quevedo, compondo a casaca preta e reco­locando os anteolhos redondos em cima do nariz, enquanto o Manuel Costa deitava água na fervura:

— O calado é o melhor... já não temos idade para estas can­seiras... isto puxa muito pelo peito e daqui a nada eles estão aqui.

Mal a Branca tocou no botão da campainha, a porta abriu-se imediatamente, como se estivesse alguém à espera atrás do trinco, e ao entrarem, ela e o procurador, deparou-se-lhes uma cena cân­dida de quatro homens velhos dispostos de um modo que lembrava as crianças de uma antiga escola primária a aguardar a visita do inspector escolar. Os quatro a cheirarem a lavados de fresco, de cabelos penteados, atentos, com os seus utensílios em boa ordem. Só o padre Nuno Maria destoava, mas esse dirigia a classe e encarregou-se de apresentar os refugiados aos recém-chegados.

O procurador passou os olhos pelos quatro homens com a atenção do taxidermista que observa corpos embalsamados. Ali estavam quatro marginais da espécie daqueles que a História nem refere em notas de rodapé, mas que são a sua matéria-prima. Ruínas que contam o passado e que ia cumprimentando um a um com movimentos progressivamente mais rígidos à medida que se aproximava do capitão Francisco Manuel, como se dele viesse o bafo gelado do vento polar. O contacto com o antigo oficial da tropa dos Aventureiros causou-lhe a impressão de tocar o aço de uma espada e percebeu que jamais venceria aquele orgulhoso espectro carregado de lendas, mas agora não lhe res­tava outra saída senão continuar, ir em frente e levar até ao fim a prova a que queria sujeitar a Branca.

Que o condenado siga o seu caminho sem lamentações! Reci­tou para si quando viu a Branca aproximar-se do capitão para o primeiro encontro há muitos anos.

Todos os olhos que se encontravam naquela casa abando­nada, escondida num vale de outra civilização, habitada por fan­tasmas e memórias, se fixaram naquelas duas figuras que, de repente, lhes surgiram projectadas diante dos olhos como um jovem par de adolescentes apaixonados, embora apenas tivessem trocado um olhar fugidio e as mãos quase só se houves­sem tocado nas pontas dos dedos.

Passava entre eles um fluxo de energia que não conseguiam disfarçar, por muito que o tentassem. A Branca rejuvenescera com o elixir das mulheres amadas, brilhava como uma rainha, e o doutor Serafim Forte afastou-se para não ter de contem­plar a sua felicidade.

O Manuel Costa estava diante da televisão com o Quevedo e o Ned Marchmont, os três juntos no sofá de cabedal, silenciosos como mochos engaiolados, e o procurador juntou-se a eles para disfarçar o seu incómodo. A noite trouxera a sombra da serra de Sintra para a sala, mergulhando-a na penumbra de tristeza dos asilos, onde apenas se ouviam, vindas da cozinha, a voz da Bran­ca, que levara com ela o Francisco Manuel para ajudar o padre Nuno Maria a distribuir pelos pratos os mantimentos que haviam trazido para adoçar a solidão dos prisioneiros, e, na sala, a sonoridade rançosa projectada pela caixa de olho vazado que caca­rejava sobre o beiral da lareira apagada.

A presença do procurador, de pé, nas suas costas, como um vigilante de exames, impedia os três homens de trocarem os comentários do costume, enquanto não apareciam os copos e pratos para o convívio com os visitantes. Nenhum se atrevia a revelar com uma palavra algo de inconveniente e disfarçavam esse cuidado fingindo-se atentos ao que o ecrã da televisão lhes punha diante dos olhos, desde a publicidade às inesgotáveis infelicidades e desgraças dos compatriotas. O Quevedo manobrava a seu prazer o telecomando, a uma velocidade correspondente ao mal-estar que os afligia, mas com esse gesto só conseguia agravar o tédio em que estavam mergulhados. Até que o Ned Marchmont gritou:

— Alto!

Entre as imagens que corriam e se sucediam impulsionadas pelos dedos nervosos do espanhol, ele conseguira apanhar uma que lhe interessava. Uma estação transmitia, em directo ou em diferido, as imagens solenes da inauguração das Conferências do Milénio. O inglês chamou o padre e o Francisco Manuel para virem ver a multidão de homens todos pinocas, de gravatinha de seda, colarinhos brancos separados do corpo da camisa, à anos vinte, e de mulheres de vestidos brilhantes que se aglomerava na sala de festas de um hotel de luxo. Foi neles que, a partir desse momento, os presentes na casa de Colares fixaram os seus olhos atentos e interessados.

O zapping do Quevedo parou no momento em que um homen­zinho de cabelos desgrenhados e óculos sem aros dobrava os papéis e descia do púlpito amparado à jornalista Maria Helena. Haviam perdido as doutas palavras de uma conferência encomendada pela Fundação o Homem e a Obra, o início do evento com que o Presidente queria ofuscar os seus compatriotas, mas não o mais importante.

Os sorrisos e os acenos do Presidente aos aplausos dos que o vitoriavam quando ele subiu ao palco não contagiaram nenhum dos presentes na sala da casa de Colares. À medida que a câmara trazia ao primeiro plano certas caras de adeptos a bater palmas, fungavam contra elas ressentimentos, animosidades, melindres e ressaibos que só a presença da Branca impedia de atingirem o vernáculo dos actuais recreios das escolas.

O Presidente pediu silêncio com um gesto magnânimo, antes de anunciar com uma voz locutor de circo a abertura da grande exposição «Esplendor de Portugal — Nós e os Outros», e a apresen­tação pública, pela primeira vez, do famoso Diamante Azul, que durante quinhentos anos, meio milénio, minhas senhoras e meus senhoras, estivera fora de Portugal!

As cortinas de veludo carmesim deslizaram lentamente para deixarem ver, em plano raccroché no meio do palco, um pedes­tal transparente com a jóia colocada no seu topo, a rebrilhar ilu­minada pelos projectores.

— É o aldraba de sempre...

O comentário do capitão Francisco Manuel fez convergir sobre si os olhares de todos os que se encontravam na sala, e ele, agora que rejuvenescera, deixando de ser o fantasma enxova­lhado que arrastava o seu passado como uma mortalha, deu um passo em frente, olhando primeiro para a televisão, onde surgia o cortejo dos embasbacados convidados, e depois para a peque­na roda de assistentes que se formara à sua volta:

— O descaramento do vigaro é a sua força, mas todos aqui sabem que aquele diamante é falso!

— Eu não sabia.

— Tu, Branca, não sabias, mas o senhor procurador-geral da República sabia, o senhor Manuel Costa sabia, o Ned, o Queve­do, o padre Nuno Maria sabiam e sabem. Ou não sabem?

De repente, na sala mal iluminada da casa de Colares, num passe de mágica, a figura de Francisco Manuel, capitão de Aven­tureiros, agigantou-se até substituir a sombra que projectava na parede. Desprendeu-se dela e surgiu como o falcão que vai cair sobre a presa para a despedaçar. Uma figura de anjo vingador que mergulha com a espada em riste.

O doutor Serafim Forte nunca se sentira tão pequeno e inde­feso. Passara num instante a réu perante um deus justiceiro. Como lhe estava a acontecer aquilo? Que poderes animavam este homem que vivera encarcerado um quarto de século para renascer assim e surgir com este vigor? Arrependia-se amarga­mente de ter vindo e de não o ter deixado enfrentar a sorte que lhe preparava o Guilherme Brandão. Tipos como este Francisco Manuel não precisam de protecção, mas de oportunidades para lutar. São estrelas do firmamento que prepara o caos e perto das quais nenhum ordeiro planeta consegue manter a órbita equili­brada!

Ansiava por um sereno fim de tarde, quando o toque da cam­painha da porta o atingiu com a força de uma segunda descarga de relâmpagos. O ruído metálico do martelo eléctrico a bater afli­tivamente na campânula de latão fê-lo dar um salto e sentir-se a pobre criança que desejou ir a correr para debaixo da cama, na única vez que a polícia entrou em casa da mãe para fazer uma rusga. Imaginou que poderiam ser os homens do Guilherme Brandão para realizarem a sua vingança sobre o Francisco Ma­nuel. Talvez a Naná não tivesse conseguido parar a máquina de matar que estava em andamento. Olhou desesperadamente à volta, em busca de um refúgio que o salvasse do sangrento ajuste de contas que lhe parecia iminente, mas nenhum daqueles homens tinha a noção do perigo que os ameaçava.

— Quem será?

O inglês Ned Marchmont fez a pergunta com muito mais irri­tação do que curiosidade. No tom de voz das sentinelas das ata­laias, que preferem disparar antes de perguntar quem vem lá.

O padre Nuno Maria foi ver quem batia à porta, assumindo o dever de oficio dos antigos monges de atender viajantes perdi­dos, e recebeu a enfermeira Elsa com a naturalidade dos portei­ros cistercienses diante de um peregrino a caminho de Santiago de Compostela. Trouxe a filha do cabo Matos para o convívio dos seus confrades cheio da verdadeira alegria do pastor que recolhe uma ovelha tresmalhada. O seu pequeno rebanho estava completo e, se a Elsa o tivesse deixado, ele daria início à ceia com uma oração e uma benzedura à mesa, sem lhe perguntar porque viera, sem querer saber porque estava ali.

A Elsa enfrentou a curiosidade dos que a recebiam de quei­xos caídos e olhos fixos, começando por declarar que não era nenhuma aparição.

— Nós é que não somos os três pastorinhos.

Respondeu o Manuel Costa do seu canto, provocando as censuras mudas dos outros. Depois, a Elsa cumprimentou cada um dos homens e parou diante do Francisco Manuel e da Bran­ca à espera de que o militar que o pai servira a apresentasse à mulher que ela sabia ter sido a esperança que justificara todos os sacrifícios e humilhações que sofrera durante um quarto de século.

O herói de guerra, o leão diletante que enfrentara os grandes chacais da revolução com um sorriso de desprezo, ficou subita­mente reduzido ao papel de uma indefesa cria que procura a mãe. O procurador via-o torcer as mãos e encolher os ombros em gestos patéticos para realizar a tarefa aparentemente simples de dizer esta é a Elsa. Antes de o conseguir, o capitão Francisco Manuel tartamudeou «a filha do cabo Matos. Minha filha, tam­bém, para mal dela...», que tipos como o Matos e ele não mere­ciam deixar descendência, que não deviam ter filhos... mas, tendo-os, que fossem como a Elsa...

A enfermeira afagou-lhe suavemente o rosto, antes de ele explicar à Branca:

— Eu e o Matos éramos dois cães no canil e a Elsa vinha todos os dias dizer-nos que não nos deixava ser abatidos como dois vadios abandonados...

As frases do Francisco Manuel comoveram-na e as faces da Elsa coraram, mas ela devia uma explicação para a sua presença na casa de Colares.

No início da semana apareceram dois homens no Centro Anti-alcoólico Vale do Rio munidos de uma ordem assinada pelo coronel Furtado para ela lhes entregar os bens pertencentes ao capitão Francisco Manuel a fim de serem juntos ao processo de averiguações que as autoridades estavam a proceder depois do seu desaparecimento da Casa do Desterro. A diligência parecera-lhe estranha porque o coronel Furtado lhe anunciara e ao padre Nuno Maria, logo após o funeral do cabo Matos, que se demi­tira de director do Lar dos Antigos Combatentes, porque ela só trouxera os papéis e os objectos pessoais do pai e do capitão, nada que pertencesse à instituição, e, finalmente, porque eles tinham o mau aspecto de ratazanas a quem a luz incomoda tanto como uma boa acção.

Estas incongruências levaram-na a recordar a tentativa de assalto que ocorrera na noite em que o capitão Francisco Manuel veio da Casa do Desterro e respondeu-lhes que ia lá dentro pro­curar entre as coisas que pertenceram ao pai, aproveitando para chamar o director do centro pelo bip de urgência, que trazia à cintura.

— Se eu lá estivesse com a minha Savage...

Quando os dois homens viram surgir o doutor Dionísio com uma outra enfermeira recuaram e embrulharam-se em desculpas de vendedores de carros em segunda mão, que afinal talvez já não fossem necessários os objectos, que talvez fossem eles pró­prios vitimas do mau funcionamento da burocracia e deram meia volta sem responder à pergunta do doutor Dionísio de quem são os senhores. Depois de desaparecerem, o médico comentara que pareciam os dois magarefes que no seu tempo de estudante traziam os cadáveres para as mesas de dissecação das aulas de anatomia. Que, tal como estes, tinham a cara contagiada pela morte e cheiravam a formol.

— Dois tipos do Guilherme Brandão.

— Talvez os que mataram o seu pai.

— Foi o que senti, senhor procurador.

Ao ver na televisão a reportagem sobre as Conferências do Milénio e ao ouvir anúncio de que iria ser apresentado o Dia­mante Azul, a Elsa associou essa visita ao estojo de madeira que não abrira. Seria o que estaria lá dentro aquilo que eles queriam?

Teve receio do que pudesse ter acontecido ao capitão Fran­cisco Manuel, porque homens com o seu passado acabam quase sempre por dar origem a notícias tristes. Escolheram as alturas e um dia desaparecem num desfiladeiro. São muitos os peri­gos que os espreitam, quer procurem os desertos ou as selvas, e os caçadores de tesouros só esperam um sinal de fraqueza para caírem sobre eles. O caso mais conhecido foi o do Che Guevara, que tinha uma estrela na boina da qual se perdeu o rasto e nem os satélites americanos a conseguiram encontrar, até hoje.

A Elsa estava ali para confirmar que o capitão Francisco Manuel ainda não jazia, como o Che, em cima de uma mesa de bambu, a sorrir com a barba por fazer e o corpo furado pelas mil balas com que os assassinos lhe revelaram o medo que tinham dele. Pareceu muito aliviada e até aceitou o copo de vinho que o capitão lhe colocou nas mãos ainda trémulas.

Agora, que o procurador Serafim Forte via o Francisco Manuel entre as duas mulheres, tão fascinadas que mais nenhum ma­cho se atrevia a disputá-las, nada mais lhe restava a fazer ali. Ia aproximar-se da Branca para lhe pedir que lhe indicasse donde podia telefonar ao seu motorista para o vir recolher, quando o inglês Ned Marchmont bloqueou seu desencanto, perguntando:

— Todos sabemos que aquele Diamante Azul que o Presi­dente anunciou e que está ali no ecrã é falso, mas onde tem o capitão Francisco Manuel o verdadeiro?

Sim, onde estava o verdadeiro Diamante Azul? Até os olhos apaixonados da Branca faziam essa pergunta.

Pelos olhos escuros do Francisco Manuel perpassou o sorriso do adolescente que pregou uma boa partida, sem ter consciên­cia dos seus efeitos. Algo de que os jovens esperam admiração e aplauso, do género que levava a mãe a exclamar: «Este rapaz!» numa reprimenda que escondia orgulho e condescendência. Querem saber onde pára o Diamante Azul? Pois tinha-o mantido sempre junto com os seus papéis, as suas cartas, reclamações, processos e as suas condecorações militares, no meio do ferro-velho que um homem acumula ao longo da vida à espera de ter tempo para um dia o revistar!

As cabeças dos que se encontravam na sala viraram-se para a enfermeira com o movimento uniforme dos assistentes de uma partida de ténis a seguirem a bola de um campo para o outro, enquanto a Elsa explicava que entregara ao Paulocas, o filho do Manuel Costa, tudo o que o militar tinha na Casa do Desterro, tal como lhe fora dito que fizesse.

— Dê-me licença, Elsa.

As sobrancelhas ruivas e pimentadas de pêlos brancos do Ned Marchmont davam-lhe um ar de permanente espanto. Era inglês, não podia ser outra coisa, e só encontrou palavras na língua materna para descrever o estado em que o deixara o que acaba­va de ouvir: turned upside down, literalmente, de cabeça para baixo, com a terra a oscilar numa enorme bebedeira e ele var­rido como uma choupana.

— Vejamos as coisas como elas são. Após quinhentos anos de fantásticas peripécias iniciadas pelo D. António Prior do Crato, a mais valiosa jóia do país foi parar às mãos do capitão Francis­co Manuel. Este guarda-a debaixo do catre da sua prisão durante vinte e cinco anos. No rescaldo de uma noite de bebedeira, essa jóia é levada, entre papéis e roupa suja, para um centro anti-alcoólico pela filha do homem que tomava conta dele. Esta recebe do Francisco Manuel a indicação para a entregar ao filho de alguém que se classifica a si mesmo como um desgraçado, um escritor maldito, que só não empenhou a máquina de escre­ver porque não era dele. É agora, com este rapaz, que o pai uti­liza para o mandar ir pedir aos amigos uma nota de vintes, que o Diamante Azul por aí anda!

— Con un nino de su padre!

A litania do inglês, a alinhar com a voz martelada dos acusa­dores o rol das causalidades em que o Manuel Costa e o capitão Francisco Manuel envolveram a mais recente viagem do Diaman­te Azul, fez a Elsa assumir o ar patético e furioso dos viajantes apanhados a atravessar fronteiras transportando cargas explosi­vas entregues por amigos de confiança.

— Foi nisto que vocês os dois me meteram?

— Vocês são malucos! E andámos nós a escrever os panfletos do Manuelinho contra os que delapidam Portugal! Elsa, o Pau­locas ao menos disse para onde ia levar as coisas do capitão?

O Ned Marchmont não conhecia o Paulocas, que aprendera à sua custa a nunca dizer para onde ia nem donde vinha. Para correr perigos e sofrer afrontas bastava a inevitabilidade de os outros saberem onde estava. A Elsa respondeu com um tímido não, sobre o qual caiu um silêncio que encolheu os que se encontravam na sala da casa de Colares, e o Manuel Costa sentiu que todos exigiam dele uma palavra que os salvasse do poço negro onde haviam caído.

O velho libertino encontrava-se mais uma vez na corda bam­ba do verdadeiro artista, entre a fatalidade da exposição e a opor­tunidade da exibição. Coçou o nariz, um gesto que o procurador lhe conhecia tão bem quanto as gargalhadas puxadas dos testí­culos, antes de fazer o seu número de descaramento nas alturas para onde os espectadores viram os narizes e os olhos. Neste caso, o número do pai orgulhoso dos feitos de um filho que entrava na História de Portugal como carrinha de transporte de valores. Ter o Paulocas fora um sofrimento recompensado, por­que ele é dos que fazem favores perigosos com gosto e sem exigir recompensa! O Manuel Costa prolongaria o exercício de equili-brismo durante toda a noite, se não fosse o Ned Marchmont inter­rompê-lo com a pergunta que ele queria evitar:

— Onde disse ao Paulocas para levar o Diamante Azul?

— AO Ninho do Papagaio!

A resposta saiu no tom de quem desafia: onde queriam que fosse?

Aquilo que parecia ao Manuel Costa uma evidência, mais uma das suas ideias geniais para vencer as dificuldades sem ter de arranjar emprego e sem ser preso, foi considerada pelo Ned Marchmont uma insensatez do mesmo calibre de sair à rua em Londres sem guarda-chuva. Algo que tinha de ser imediatamente reparado. Para recuperar o Diamante Azul, o inglês propôs uma expedição em boa forma a O Ninho do Papagaio e na sala da casa de Colares instalou-se a agitação dos quartéis-generais antes da batalha. Armado em general daquela tropa, o Ned Marchmont decidiu que no carro do padre Nuno Maria seguiriam ele, o Quevedo e o Manuel Costa, que o procurador seguiria com a Elsa para Sintra, onde o aguardava o carro oficial, e que a Branca fica­ria a tomar conta do capitão Francisco Manuel.

— Para quê toda esta paranóia? Eu nem sei se o Diamante Azul estava entre as coisas que entreguei ao Paulocas! Eu nunca vi o que estava dentro da caixa....

As cartas estavam distribuídas e nenhum dos pesquisadores de ouro queria perder tempo a escutar as palavras de quem lhes gritava que o eldorado podia ser um areal estéril, pois jamais ouvem quem os chama à razão. É inconcebível que o Homo sapiens possa ter sobrevivido a tantas ilusões e que pessoas tão vividas como aquelas que estavam na casa de Colares continuem a só ouvir o que querem ouvir.

Para o doutor Serafim Forte chegara o momento de assumir a derrota. Um homem com a sua experiência reconhece quando perde. Ainda lutara, mas não dispunha de meios para vencer o encantamento em que a Branca caíra logo que viu o antigo oficial dos Aventureiros. Não lhe podia dizer: se ao menos ouvis­ses a voz da razão..., porque ela lhe responderia com a voz dos encantados, que também não ouvem: fala lá com a voz da razão.

Os deuses não gostam de choramingas, disse uma voz ao pequeno herói abandonado.

O doutor Serafim Forte recordou a frase que lera num livro de adolescentes quando se sentou no banco do carro da Elsa para regressar a Sintra e assim cumprir a parte que lhe competia no plano de recuperação do verdadeiro Diamante Azul gizado pelo Ned Marchmont. Ele e a filha do cabo Matos deviam desaparecer de cena.

A enfermeira, sem uma palavra, ligou o motor e saiu do pátio da casa de Colares com a raiva dos escorraçados, fazendo os pneus chiarem no cimento rugoso. Depois, a pequena viatura mergulhou na escuridão para iniciar a subida da serra atrás do feixe luminoso dos faróis, sujeita às violentas guinadas da con­dutora, que a fazia dançar um bailado de equilíbrios perigosos nas bermas dos precipícios adivinhados para além das curvas da estrada.

No interior do carro viajavam dois feridos que arranhavam as suas chagas, autoflagelando-se cada um à sua maneira como última consolação.

Lá em baixo, no vale de Colares, a Branca ficara com o capi­tão Francisco Manuel, numa esfera onde existe tudo o que é bom, sem querer saber que um dia essa esfera rebenta como uma bola de sabão, e nada mais restava ao procurador do que afastar-se. Ele era apenas um homem sem atractivos, o filho da Vicência das meninas da Alameda, que falhara a tentativa de se transfor­mar de sapo em príncipe, e lembrou-se de que a frase do livro terminava afirmando que, aos vencidos, os deuses até o desejo lhes retiram, quando observou a Elsa iluminada pelos reflexos de luz. Talvez ainda para ele houvesse uma outra oportunidade, por­que sentiu o desejo de estender a mão e tocar naquela mulher de corpo vigoroso, mais atraente que bonita, vestida de forma desportiva, que o conduzia pelo caminho inverso por onde a Branca, de saia e casaco, o levara cheio de esperança e ilusões. Dominou esse impulso apenas por timidez e, na euforia desta pequena vitória, acreditou que aquela mulher friamente determi­nada também algum dia mergulharia numa bolha azulada onde os desejos se confundem com a realidade.

No fim da zona de curvas, a Elsa quebrou o silêncio em que vinham, comentando com amargura que o Francisco Manuel a tratara como se ela, a Elsa, a filha do cabo Matos, tivesse sido, tal como o pai, apenas uma ama contratada a prazo até chegar a sua verdadeira dona. Como se, desde a noite de Angola até ao dia de hoje, o Francisco Manuel nunca tivesse deixado de per­tencer a Branca.

— Ciúmes, Elsa?

— Ressentimento pela ingratidão.

Quanto a feridas provocadas por esses golpes, também o pro­curador tinha as suas queixas contra a Branca, que o abando­nara como a um carrinho de ir às compras que se partiu na última viagem para quase cair nos braços do Francisco Manuel com a cegueira das adolescentes.

— Despeito, senhor procurador?

— Frustração e desapontamento, mas contra mim próprio.

— Não percebo porque não luta pela Branca!

A voz da Elsa pareceu uma pedra a bater no pára-brisas e o procurador sentiu-se debaixo de uma mira que o ameaçava.

— Num duelo podem morrer os dois contendores...

— Isso é uma desculpa, senhor procurador. Cada um só se preocupa com a sua morte!

— Elsa, eu não sou um homem de tudo ou nada, de vitórias e derrotas absolutas. Não tenho vocação de mártir nem de herói. Sou um homem de leis, de convivência, e aprendi que, para sobrevivermos, é preciso saber largar a tempo as cordas que nos prendem, se não vamos ao fundo... a Elsa devia fazer o mesmo...

— Eu não tenho nada que me prenda...

A Elsa quase deixou o carro desviar-se para forma da berma para depois continuar, em tom de desafio:

— Só um cego não vê que o capitão Francisco Manuel não suportará por muito tempo uma relação com a Branca!

— Porquê? Pareceu-me um homem atraente, são quase da mesma idade...

O procurador comprazia-se a ferir a enfermeira, na convicção de que fazer os outros sofrer alivia as próprias dores. Esta acei­tou-o com a raiva de sequioso desesperado que nem repara no veneno que lhe estão a dar.

— O capitão Francisco Manuel nasceu para as grandes coisas e nunca conseguirá viver encafuado num casamento, numa vivenda, com horas certas e lugares determinados para se movi­mentar, que é o que a Branca tem para lhe oferecer.

— Conheço mal o mundo destes homens agitados pela guerra, mas talvez ele queira agora a paz.

— Não, não quer! Ele é como aquelas crianças que são capa­zes de se deixar matar com um berlinde fechado na mão, a rirem-se para não chorar...

— A Branca pode ajudá-lo a descerrar os dentes, a abrir a mão...

Um pequeno coelho atravessou a estrada e parou a meio enca­deado pelos faróis, a Elsa desviou-se com um movimento de reflexos rápidos.

— A Branca? Com aquele fato de saia e casaco, com idas ao cabeleireiro, chás de caridade? Ela também não aguentará por muito tempo um homem que nunca amou outra mulher senão a mãe, para quem todas as outras mulheres são fêmeas. O capitão Francisco Manuel é um amputado, falta-lhe a parte feminina! É capaz de dar afectos, mas não amor. É capaz de receber carí­cias, mas não exigências. É capaz de se sacrificar pelos outros, mas não de partilhar obrigações. Quando tem uma fêmea, copula, quando não tem, roça-se pelas árvores. Não pode ser pai, nem marido, só pode ser filho e amante. Não, o que o capitão Francisco Manuel precisa é de se livrar do maldito diamante e de alguém que o ajude depois a voltar a ser o que foi, que o reedu­que a viver na selva, em liberdade.

— E a Elsa é a pessoa indicada para o acompanhar nesse retorno?

O pé da Elsa calcou com força o travão e o carro imobilizou-se aos esses num desvio da estrada. Felizmente, o procurador era um homem cumpridor das leis e levava o cinto de segurança apertado, o que lhe evitou bater com a cabeça no vidro. Os olhos dela brilhavam de raiva ao dizer-lhe com o desejo de o abanar:

— Eu não amo o capitão Francisco Manuel como uma mulher ama um homem, mas como uma filha ama um pai doente! Eu quero que ele tenha um resto de vida feliz.

— E esse desejo passa por me empurrar para a Branca e assim libertá-lo dela...

— Não me venha com deduções de juiz, senhor procurador! Falavam agora como dois namorados dentro de um carro, no isolamento da serra, com uma música suave a sair da aparelha­gem sonora. O procurador sentia-se francamente bem e desa­pertou o nó da gravata, virou-se ligeiramente no banco para ficar de frente para a enfermeira e acendeu um cigarro. Para trás, lá em baixo, na casa de Colares, deixara um percurso triste, abra­sivo, recheado de vozes cada vez mais longínquas. Sentia-se renascer e liberto das sanções impostas pela natureza, de cujas leis se riu pelo simples facto de permanecer vivo e merecer a atenção daquela mulher. A Elsa preparava-se para rodar a chave e repor motor em marcha, e o procurador pediu que se deixasse ficar um pouco mais.

— Se não a compromete estar aqui comigo e se eu não lhe repugno...

A amargura da Elsa transformou-se numa gargalhada um pouco nervosa, mas ainda assim estimulante.

— Somos dois adultos livres e o senhor não é o canastro velho que gosta de se fazer... além do mais, eu também não sou nenhuma estrela de cinema...

O procurador sorriu, mas com o sorriso de tristeza do homem que todos os dias vê ao espelho a mesma cara e só sabe falar consigo sobre aquilo que lhe vai na alma. Lera muitos romances para aprender a falar com os outros, mas concluíra que a maior parte dos escritores só transcrevem o que já foi escrito e não o ajudavam a expressar-se com clareza. Quanto aos raros verda­deiros escritores, descobrira que morrem ao contar a sua história e por isso são tão inúteis quanto perigosos. A literatura revelara-se, pois, completamente ineficaz para ajudar o doutor Serafim Forte a dizer a uma mulher o que queria confessar, pelo que conti­nuava a utilizar o método das tentativas, que o faziam parecer um pateta tartamudo.

Aquilo que o doutor Serafim Forte julgava que tinha para dizer à Elsa era que não sabia como aquela história do Diamante Azul iria acabar. Afinal, isto não era o mais importante, concluiu após a primeira busca a que o cérebro procedia antes de acertar no que queria transmitir. Havia de terminar de alguma maneira, quer aqueles quatro doidos que iam no carro do padre Nuno Maria o encontrassem, quer não. Por si, esperava que não e que a jóia levada pelo Prior do Crato de Portugal continuasse no domínio da fantasia. Não era então sobre o destino do Diamante Azul que o doutor Serafim Forte queria falar à Elsa. Talvez sobre a luta entre o capitão Francisco Manuel e o Presidente. A enfermeira conhecia o ódio antigo entre os dois predadores tão bem ou melhor do que ele próprio. Não precisava de se pronunciar sobre isso. Passou então a olhar para si, que é para onde uma pessoa deve olhar quando tem de arrastar a carcaça diante de uma mira apontada.

Ao chegar a este ponto, acendeu-se uma luz e as ideias pas­saram a fluir com ligeireza na cabeça do doutor Serafim Forte. Admitir que talvez não se safasse fez-lhe nascer a verdadeira coragem e pedir a Elsa que se encontrasse com ele numa próxi­ma oportunidade. Mesmo sem saber com que segurança o pode­ria fazer, era uma mudança drástica no seu relacionamento com as mulheres. Do género de considerar que o desespero constitui para o desesperado a matéria-prima das mudanças drásticas. Quanto mais nos dominamos, pior ficamos.

A Elsa ouvira as idas e voltas dos pensamentos do procurador com a curiosidade do nativo abordado por um turista que tem uma ideia para onde quer ir, mas não a sabe explicar.

— Tenho muito gosto em encontrar-me consigo. Basta ligar-me, e quanto a segurança, senhor procurador, a segurança é um álbum de família. Como nem eu nem o senhor o temos, o melhor é não darmos importância às ameaças.

Ele ia responder que a Elsa não devia ter entendido perfei­tamente o alcance do que ele lhe dissera, mas a enfermeira colo­cou-lhe um dedo na boca e ele beijou a mão que lhe tocava os lábios. Ainda tentou abraçá-la, mas ela ligou o motor do carro e conduziu devagar até Sintra.

Quando chegaram ao largo onde estava o carro oficial da Pro­curadoria, falavam na existência de um Deus das segundas opor­tunidades.

— Tu e a Elsa acabaram a noite em Sintra a falar de um Deus das segundas oportunidades?

— O das primeiras é o dos heróis...

— Não me fales em mais heróis nesta história! Tu sabes o que é viajar num carro conduzido pelo doido do padre Nuno Maria?

A claridade da madrugada começava a invadir a sala de estar da casa do procurador e o Manuel Costa assoou-se com um ruído de trombeta bíblica. Depois limpou as lentes de ver ao longe e ao perto com o mesmo pano que tanto fazia de lenço como de guar­danapo e que, se fosse há muitos anos, também serviria de fralda a um dos bambinos, enquanto o doutor Serafim Forte o fitava com a surpresa dos coelhos estarrecidos quando se sentem ilumi­nados ao saírem da toca.

O padre Nuno Maria guiava a Renault 4L com o tronco dei­tado sobre o volante e a testa junto ao vidro, tenso como um ciclista a pedalar numa subida íngreme, esforçando-se tanto ou mais que o motor da carripana para alcançar a velocidade máxi­ma que o Ned Marchmont lhe exigiu durante toda a viagem de Sintra até Lisboa. O inglês não conseguia esconder a ansie­dade em chegar a O Ninho do Papagaio e incentivou o padre a andar sempre mais e mais depressa.

— Se tivéssemos vindo a pé, já lá estávamos!

No banco de trás, o Quevedo e o Manuel Costa, encolhidos com a aflição de duas galinhas dentro de um cesto à deriva, sofriam as vertigens das altas velocidades virtuais e temiam que um solavanco mais forte fizesse saltar as portas desconjuntadas da carrinha e os projectasse na noite escura.

— Calma que Ia Paquita no cerra el Nido antes de Ia media noche e el Diamante Azul no tiene patas!

Dentro da cidade, aos barulhos parasitas das chapas soltas e dos vidros fora das calhas juntaram-se as trepidações vindas da calçada irregular das ruas, às quais o inglês respondia com excla­mações irritadas dirigidas aos céus.

— Oh God! Oh God!

Em frente da porta d'O Ninho do Papagaio, o padre Nuno Maria ensaiou uma manobra precipitada de estacionamento sobre o passeio, a que os travões mal afinados da 4L se recusaram a corresponder, e a carrinha foi embater com estrondo na parede.

— Já cá estamos!

— Daqui ninguém nos tira.

Os quatro homens escaparam sem ferimentos, apenas um pouco combalidos. Esfregavam as partes mais doridas dos corpos e verificavam se estavam inteiros quando a Paquita e o Cabeça de Vaca saíram da porta d'O Ninho do Papagaio como dois fantasmas vindos das furnas do Inferno para receberem novos com­panheiros ali caídos sem aviso.

O Cabeça de Vaca passou as mãos pelos cabelos desgrenhados e a Paquita olhou-os sem alegria, ambos incapazes de dizerem ora ainda bem que vieram, ou qualquer saudação de boas-vindas, embora os seus gestos e expressões revelassem o desejo e a necessi­dade de transmitir algo que lhes ia na alma. Estavam pateticamente sobre o passeio a olhar o carro amolgado e os quatro recém-chegados, à espera de que algum deles lhes perguntasse alguma coisa para então responderem com o que queriam dizer-lhes.

O Ned Marchmont foi o último a desencarcerar-se, porque ficara entalado entre a carrinha e a parede, mas foi ele quem fez a pergunta que os trazia naquela pressa, mal conseguiu tirar o tronco e as pernas para o exterior:

— O Rata dos Cabarés?

— O Rata morreu.

— Foi enterrado esta tarde.

O anúncio da página de necrologia a que o Rata dos Cabarés teve direito foi cantado a duo pela Paquita e pelo Cabeça de Vaca e deveria ser complementado com as perguntas habituais, de que morrera, em que condições, mas só o padre Nuno Maria teve uma reacção habitual, benzendo-se e dizendo para si: paz à sua alma, que Deus o tenha no eterno descanso, ámen, porque o Manuel Costa e o Quevedo entenderam que antigo chulo mor­rera porque já vivera o suficiente e talvez mais do que o seu estado de decadência lhe auguraria. Para eles, o Rata dos Caba­rés estava na mesma categoria de objectos fora de prazo da carrinha Renault 4L que os trouxera. Era só uma questão de opor­tunidade até irem para a sucata.

A Paquita explicou o que devia ser explicado numa situação destas, que o Rata dos Cabarés caíra para sempre no percurso entre O Ninho do Papagaio e o Flamingo Dourado, onde tinha um quarto. Ainda veio uma ambulância que o levou para o hospital, mas já não havia nada a fazer. Foi a doença do peito, a pulmoeira, que deu o triste pio, adiantou o Cabeça de Vaca.

O fim do Rata dos Cabarés provocou um momento de cons­ternação, porque todos entenderam que um dia lhes calharia a eles passarem pelos mesmos trâmites e não gostavam de se ima­ginar a serem tratados como as pombas e os cães que aparecem todos os dias mortos na cidade de que fazem parte, sem mere­cerem sequer um pensamento dos que com eles conviveram. Entraram silenciosos n'O Ninho do Papagaio, que lhes pareceu a sala fria de uma capela funerária, mas, ainda antes de se senta­rem na mesa dos habitues onde se encontrava a garrafa de vinho e os dois copos com que a Paquita e o Cabeça de Vaca estavam a homenagear o antigo companheiro e de se associarem à velada, o Ned Marchmont quis saber quando haviam eles visto o Rata dos Cabarés pela última vez, onde guardava ele as suas coisas, se não teria deixado alguma encomenda na taberna.

— Senor Ned, usted ahora es policia?

A galega tinha a necessidade latina de expressar os sentimen­tos, não estava disposta a abdicar desse atributo para satisfazer os interesses anglo-saxónicos do antigo jornalista, e o Quevedo apoiou-a:

— Hay que respectar la muerteoa los muertos... Conhecer o destino que o Rata dos Cabarés dera ao Diamante Azul não podia sobrepor-se ao destino dele próprio. Cada coisa no seu lugar. Para já, havia que distribuir o vinho, logo depois falariam do Rata dos Cabarés, da sua memória, para que a sua alma não chegasse ao outro mundo sem o amparo de uma reco­mendação dos amigos, correndo o risco de ir parar ao Purgató­rio, que é para onde vão aqueles que não têm quem os reclame, uma espécie de armazém de objectos perdidos e esquecidos. No seu devido tempo chegariam ao Diamante Azul.

A sequência de beber um copo, falar duma desgraça e só por último tratar dos assuntos sérios não agradou ao Ned Marchmont, mas o inglês não teve outro remédio senão conformar-se com mais esta bizarria ibérica de celebrar os mortos e esquecer os vivos. Felizmente, para ele, era pequena a herança deixada pelo Rata dos Cabarés e de aproveitável quase nada. Em menos de duas garrafas esgotaram-se os capítulos do currículo do homem que acabara como uma múmia de soldadinho de chumbo a tossir e a escutar segredos com o ouvido de tísico no cabaré Flamingo Dourado.

— Ele já andava nas últimas. Há uns dias chegou aqui a deitar os bofes pela boca só por trazer um embrulho com papéis que o Pau locas lhe entregara.

— Cosas del senor Manuel Costa!

A Paquita olhou o Manuel Costa como se ele fosse o respon­sável pela morte do Rata dos Cabarés e este, ao readquirir o esta­tuto de acusado, rejuvenesceu como um melro que regressa a território conhecido depois de um período de gaiola, voltando a assobiar as suas velhas melodias.

— Os papéis destinavam-se ao júri do Prémio Nobel e o dia­mante era para colocar num alfinete de gravata! Se o Rata não conseguiu aguentar o peso da literatura nem da joalharia, que culpa tenho eu?

— Não vamos voltar às piadas das cartas do Manuelinho! Apesar de ao grupo que se reunira durante tantas noites n'O Ninho do Papagaio para escrever os panfletos contra os flamin­gos da Fundação o Homem e a Obra apenas faltar o capitão Francisco Manuel, o Ned Marchmont queria evitar a todo o custo que caíssem de novo no ambiente de vinho e má-língua donde saíam mais frases inflamadas do que acções concretas. Havia che­gado finalmente o momento pelo qual o inglês ansiava e todos os esforços deviam ser concentrados na descoberta do Diamante Azul que o Rata dos Cabarés devia ter trazido embrulhado entre as coisas que o Paulocas lhe dera para guardar.

— Onde terá o Rata dos Cabarés colocado o embrulho?

Para a Paquita a pergunta do Ned Marchmont tinha uma res­posta óbvia, porque tudo o que n'O Ninho do Papagaio se encon­trava fora das vistas estava na zona das traseiras a que a galega chamava pomposamente el almacén, e ela lembrava-se de o ter visto dirigir-se para lá.

— Podia ter ido à retrete.

O Cabeça de Vaca procurava apenas uma justificação para escapar aos trabalhos em que o inglês os queria meter. Todos os clientes d'O Ninho do Papagaio conheciam o cubículo infecto, com um tenebroso buraco no chão, onde tinham de fazer as necessidades de pé, amparados ao tapume que o separava da cozinha e nenhum imaginava o Rata dos Cabarés a aliviar-se ali com um molho de papéis nas mãos. Havia, pois, que inspec­cionar o almacén.

O Ned Marchmont tomou a dianteira, com a decisão de um espeleólogo que penetra numa mina, e a Paquita acendeu a lâm­pada coberta de pó que ficou a brilhar suspensa do tecto como um pirilampo estremunhado. No primeiro momento, apenas viram as teias de aranha que faziam de cortina esburacada, mas à medida que os olhos se habituavam à escuridão começaram a distinguir o interior daquela gruta do Ali Babá e dos seus qua­renta ladrões.

— Senores mios, necesario ha sido entrar en esta casa para persuadirme que no es el infierno!

Talvez o Quevedo exagerasse, pelo menos faltavam as cha­mas e os diabos entre a confusão que era possível observar, feita de produtos alimentares, barris velhos, cebolas penduradas em cachos, armadilhas para ratos, jornais velhos de embrulhar sardi­nhas, frigideiras malcheirosas, panelas rotas, sacas de serapi­lheira, cestos de vime, até um colchão e uma cadeira de braços...

— Ele às vezes dormia aqui...

— Curava as ressacas...

Estas informações da Paquita e do Cabeça de Vaca sobre os hábitos do Rata dos Cabarés animaram o Ned Marchmont a levantar a enxerga de palha e a afastar a cadeira desconjuntada, dois gestos que provocaram um pequeno desabamento das terras caídas das paredes de adobe que podiam ser do tempo em que um árabe ali devia ter estabelecido uma carvoaria.

— Ainda ficamos aqui soterrados.

Além da teimosia, os Ingleses sentem uma atracção especial pelos locais escuros e misteriosos, a ponto de organizarem visitas a castelos com fantasmas privativos que aparecem a horas certas. Não admira, por isso, que a profecia do padre Nuno Maria tivesse produzido no Ned Marchmont o efeito contrário ao que ele desejava e fizesse o inglês avançar para o interior das ruínas, desviando os restos daquele caos primordial com a ponta do pé.

Ele estava decidido a descobrir o Diamante Azul, nem que tivesse de o ir procurar nas entranhas da Terra, e lançou a ideia de dividir a área do almacén em sectores de pesquisa e distribui-los pelos membros do grupo.

Foi esta proposta que o perdeu, pois provocou nos ibéri­cos que o cercavam a reacção mais temida por todos os estran­geiros que ao longo da história os tentaram organizar para realizarem um trabalho colectivo. Nenhum recusou a ideia fron-talmente, nenhum se negou a participar ou a colaborar, mas cada um encontrou uma forma bordejante para escapar às tarefas sem a crueza de uma recusa em forma de não, como fazem os cava­los diante de um obstáculo e que os Ingleses resolvem com umas chicotadas.

A grandeza do trabalho que tinham pela frente exigia grandes meios, que não possuíam. Aquilo era coisa para especialistas, com ferramentas e saberes adequados. E, depois, o embrulho trazido pelo Rata talvez não estivesse no almacén, era tempo e trabalho perdido. Mas também era escusado o Ned Marchmont ficar com aquele ar de menino sem prenda, porque havia uma solução alternativa. Que, se não fosse solução, pelo menos era uma esperança. E se, já agora, em vez de se lançarem às cegas ao trabalho, de resultados incertos, fossem procurar o Diamante Azul a outro lado? — Onde?

O Cabeça de Vaca respondeu que Rata dos Cabarés vivia ulti­mamente num quarto nas traseiras do Flamingo Dourado, do qual ele tinha uma chave para lá se ir aboletar quando lhe falha­vam os outros refúgios, e o Ned Marchmont rendeu-se à inevi-tabilidade de seguir com aqueles companheiros até ao cabaré do falecido João Vicente. Mas nem para esta excursão já existia unanimidade, porque o Quevedo colocou o braço sobre os om­bros da Paquita e declarou, para espanto de todos:

— Me quedo aqui. Esto es Io bueno, ono Ias vuestras borra-cherías.

A galega pareceu não só divertida, mas feliz com esta decisão do antigo escritor de comédias exilado em Lisboa e correspondeu dando-lhe um beijo com tantos preceitos que lhe fez cair os óculos redondos.

— ;Hideputa picaroljVenga el fraile norabuena!

O inglês trocou os olhos com a aquela expressão aflita dos que não sabem que é a partir dos ingredientes mais inesperados que se fazem os milagres e que os milagres são das armas mais mortíferas que há para derrotar um esforço honestamente baseado na razão.

— E o Diamante Azul?

— Ned, me cago en el Diamante Azul.; Malhaya quien fia en hacienda mal ganada, que se va como se viene!

Para ultrapassar a surpresa do anúncio, o padre Nuno Maria recitou que o melhor que podemos fazer neste mundo é amar quem nos sabe corresponder, e com esta frase, que também se aplicava à Aurora, Aurorita, que o servia na casa paroquial de Agualva-Cacém, deixou o Ned Marchmont à beira de um colap­so. Através dos olhos inflamados, das narinas a latejar, incapaz de articular uma palavra, dizia, ou queria dizer, o antigo corres­pondente do Excelsior, o antigo repórter de guerra enviado a Angola, o antigo cronista da revolução, que Portugal afinal não passava de um pequeno jardim de bairro, daqueles jardins com velhos e namorados sentados nos bancos indiferentes ao que se passava à sua volta, a falarem e a jogarem horas a fio, com os olhos girando sem órbita certa.

Que farei agora de mim?, perguntava o inglês ainda com os olhos. Sim, que faria ele, que viera de novo a Portugal, agora para procurar o rasto do Diamante Azul, se os seus cúmplices come­çavam a acasalar como pombos na Primavera? Se o capitão Francisco Manuel ficara a arrulhar com a Branca lá em baixo, no ninho da casa de Colares e se este estralaferário de Madrid se juntava sem aviso prévio à galega Paquita? Saíam-lhe gritos pelos olhos enquanto barafustava contra as histórias de namorados que preferem o prazer ao esforço, que desatinam as campanhas mais bem planeadas e deixam as guerras desarmadas, que desertam, não por medo, mas porque se ausentam como sonâmbulos mer­gulhados num sonho!

— Vou dar-vos uma lição que nunca hão-de esquecer na vida!

— Está bem, está bem, nós vamos consigo ao Flamingo Dou­rado.

O padre Nuno Maria representou o seu papel de filantropo, de apaziguador, porque o inglês chegara àquele ponto de deses­pero em que deixara de ver, em que ele é tudo e tudo é ele. Em que um homem conhece todas as perguntas e todas as respostas e em que se torna perigoso deixá-lo sozinho com os seus desíg­nios.

Resumidos a uma pequena expedição de quatro sobreviven­tes, o Ned Marchmont, o padre, o Manuel Costa e o Cabeça de Vaca partiram em direcção ao Flamingo Dourado pelo caminho que o Rata dos Cabarés fizera tantas vezes para levar e trazer segredos, mas principalmente para encontrar um pouco de calor n'O Ninho do Papagaio. Era também essa necessidade de não perder um derradeiro abrigo que preocupava o Cabeça de Vaca, enquanto o Ned Marchmont trotava à frente da pequena patru­lha, ansioso por descobrir o Diamante Azul, a jóia da coroa de Portugal que passara os últimos quatro séculos numa viagem pelos portos de uma aventura que consumira os seus autores e deixara vazios os seus descendentes.

— Será que a Paquita vai manter O Ninho do Papagaio aberto? As quatro figuras fugidias que naquela madrugada percorriam

as ruelas da cidade adormecida levavam cada uma consigo aquilo que haviam calcado dentro de si, as suas sementes ocultas que duvidavam de que algum dia germinassem, porque eram todos velhos que haviam perdido as chaves das portas.

— Velharias, só velharias. Odeio coisas velhas!

O grito do Manuel Costa no tugúrio onde o Rata dos Cabarés vivera os últimos dias fez os seus companheiros interromperem os trabalhos que ainda não haviam iniciado e olharem-no com a aflição dos violadores de campas e de cadáveres surpreendidos pelo espírito do morto. Caíram em si e descobriram-se sacríle­gos profanadores.

— Com que direito estamos aqui a mexer nas coisas do Rata?

O Cabeça de Vaca investiu contra o Ned Marchmont, impe­dindo-o de continuar a pesquisar o que o antigo chulo acumulara naquele depósito que também servira para o seu corpo mirrado pela tuberculose. Ali devia ele ter dormido entre caixotes de cartão, roupas dadas por clientes, luvas de pelica e cachecóis de seda esquecidos, gravatas e botões de punho perdidos, cha­péus de feltro deixados no bengaleiro, isqueiros de marca, tele-móveis, óculos, carteiras vazias, cigarreiras de prata, fotografias de famílias respeitáveis, restos de vidas duplas, sinais de tempos de falsas felicidades e de verdadeiras pulhices.

— Mister Marchmont, o mais parecido com o Diamante Azul que o Rata guardou deve ser isto...

Nas mãos do padre Nuno Maria surgiu uma embalagem da mágica pastilha azul dos comprimidos Viagra, pronto-socorro dos amantes aflitos, e até o inglês teve de se render à evidência de que o verdadeiro Diamante Azul, o símbolo da identidade nacional dos Portugueses, deveria estar agora, algures, entre uma taberna que corria o risco de fechar porque a patroa caíra de amores por um pícaro espanhol que lhe soprara ao ouvido que solo un amante sonaba que juntara tanto infierno a tanto cielo e uma casa de putas fechada porque o patrão se recusara a matar o antigo capitão da sua companhia de Aventureiros.

Falar de guerras, amores e justiça é sinónimo de ficar com os lábios secos, a língua assada e as ideias tão desarrumadas quanto as garrafas e os copos que sobram como cadáveres sobre cam­pos de batalhas já travadas. Ou, se quisermos, como as folhas de um processo julgado, ou, ainda, como as roupas de um condenado antes de entrar na prisão.

O doutor Serafim Forte e o Manuel Costa entretinham-se nessa actividade de rever um sono penoso, de buscar durante uma noite os traços de uma disputa privada que desapareceram como fios de cabelo pelo ralo da banheira.

O Manuel Costa, o escritor maldito, estava habituado a ver as madrugadas chegarem com a ingenuidade das crianças, mas o filho da Vicência das meninas da Alameda D. Afonso Henriques, o filho da puta que chegara a procurador-geral da República, carregava às costas dois fantasmas, o do juiz que deve fazer jus­tiça e o do acusado que quer vingar-se. Era, de um certo modo, como os funambulistas do circo que marcham sobre o arame levando o filho sobre os ombros e que têm o mais importante às costas e o mais difícil diante de si. Não podem dar um passo em falso e, para se salvarem e à sua carga, tanto adoram santos como demónios.

Ao mesmo tempo que o Sol nascia sobre a cidade, o doutor Serafim Forte dirigiu-se ao Manuel Costa no tom suave dos que tem algo a esconder quando fazem uma pergunta:

— E quanto às condecorações do Francisco Manuel que esta­vam no embrulho entregue pelo Pau locas ao Rata dos Cabarés?

Aquilo que o Manuel Costa aprendera com o antigo capitão dos Aventureiros levá-lo-ia a responder que não é o peso da mochila que mata os soldados, mas os inimigos. Que, para se convencerem de que não atacam bonecos de madeira, os guerreiros têm de tocar com as suas mãos no sangue deles, o que é diferente, muito diferente, da frase feita de dizer que têm de sujar as mãos de sangue. Nenhum soldado suja as mãos com o sangue de um inimigo, Serafim. Mas o Manuel Costa pressentia que o seu amigo já encontrara um caminho para passar as linhas adversárias e a sua resposta foi:

— Meu irmão, repara que é o raio de luz que fascina as gali­nhas... e não a crista do galo...

Não era a informação que o procurador pretendia obter, daí o chiste:

— Deste em filósofo de capoeira?

— As condecorações identificam uma acção, mas deixam de ter valor depois de ela realizada. Alguém quer saber das con­decorações dos heróis?

Também não era esta divagação do Manuel Costa que interes­sava ao procurador, daí a insistência:

— Nem dos heróis, mas havia ainda o conjunto de papéis do capitão...

— Os papéis do Francisco Manuel contavam uma história que todos já conhecíamos, incluindo tu, muitos deles haviam sido divulgados, como os que a Elsa me deu e eu te mandei, outros foram copiados. Os que sobraram eram completamente inúteis.

— É essa é a verdade. Depois de o Presidente ter decretado a amnistia aos envolvidos em acções violentas durante a revolução, todos os papéis do Francisco Manuel deixaram de ter qualquer valor.

— A amnistia foi uma saída de mestre! Com ela evitou ser envolvido num futuro processo em que fossem acusados o Gui­lherme Brandão e os seus capangas, o Vidal, o Corvo, o Turiano, o cónego Telo, enfim, os que mataram, ou mandaram matar o cabo Matos, o alentejano Barradas, o João Vicente, o Miguel Vasconcelos com que tu o ameaçaste, e ainda fica para a História como um exemplo de magnanimidade!

— Na nossa justiça, criminoso é aquele que foi descoberto e não o que cometeu um crime...

— Não pareces muito chocado.

— Os poderosos são os que forçam a História a conformar-se com a sua vontade. Depois da amnistia, só nos resta a memória e o Presidente ainda publicou uma lei de reconstituição da car­reira aos que foram prejudicados! À conta dessa magnanimidade em nome da concórdia nacional, o Francisco Manuel é agora coronel. Não se pode queixar...

— Ele apreciou essa promoção. Passou a vida a reclamar que lhe reconhecessem o que fez, que lhe prestassem alguma justiça...

— Acreditei que a Branca o iria ajudar a recuperar uma vida normal.

— Uma vida normal, Serafim? Ele nunca teve uma vida nor­mal, não era aos sessenta anos e com uma mulher que conhecera aos vinte que a iria ter! Sabes o que ele me disse um dia das mulheres? Que elas eram uma forçosa companhia, mas que só os cobardes vivem permanentemente com elas, porque não se atrevem a viver sozinhos.

— Isso é uma fanfarronice de alguém que sempre viveu entre homens. Esses militares dos Aventureiros, quando eram novos, caçavam em bando e resolviam os assuntos à pancada, agora os que chegaram a velhos ficaram amargos e intratáveis, principal­mente para quem gosta deles.

— Viveram como cães, mas morrem como homens.

— Hã? Tu, Manuel Costa, que sempre foste um cagarolas, um pinga-amor, um pai-chocadeira, agora converteste-te em aven­tureiro solitário?

— Se a ideia de vida não for ter uma namoradinha na adoles­cência, uma casa na idade adulta, com mulher e muitos filhos, e um silêncio de pantufas na velhice...

— A Branca ainda tentou que o Francisco Manuel ficasse a viver com ela em Colares... é uma romântica que acreditava poderem voltar a amar-se como se nunca tivessem sido feridos.

— Ele está no monte alentejano com o padre Nuno Maria, ou seja, na melhor companhia e no melhor local que podia desejar.

— Um padre excomungado e um militar derrotado no seu deserto...

— Dois amigos a rememorar os inimigos que a intransigência lhes criou, os amigos que a morte lhes levou, com a Aurora, Aurorita, a dirigir uma pátria feita de uma lareira, uma mesa e uma cama no meio de nada. Estão felizes...

— Tal como o Quevedo e a Paquita a aviarem copos de bran­co e carapaus com molho à espanhola n'O Ninho do Papagaio.

— As velhas glórias estão a caminho do caixote do lixo.

— Parece que o Ned Marchmont ainda quer lá ir remexer. Veio outro dia dizer-me que regressa a Inglaterra para escrever a verdadeira história do Diamante Azul.

— Os Ingleses são bons a escrever histórias de mistérios inso­lúveis.

— E se vocês têm encontrado o Diamante Azul n'O Ninho do Papagaio, ou no Flamingo Dourado?

O Manuel Costa tirou os óculos do nariz para ganhar uns segun­dos a fingir que os limpava e atribuiu à ausência das lentes a visão da Elsa a aproximar-se contra a luz do dia que nascera, borde­jada por um halo fosforescente de extraterrestre. A entrada da enfermeira filha do cabo Matos na sala resolveu o problema da res­posta que o Manuel Costa devia dar à pergunta do procurador.

— Pois é, Mano Serafim, estou convencido de que, se tivés­semos encontrado o Diamante Azul, ficávamos todos como eu estou agora, sem acreditar que vejo o que os olhos me mostram e sem saber o que fazer com ele...

— Eu sei o que vou fazer com a Elsa... no dia em que a encon­trei sucedeu-me a melhor coisa do mundo...

O doutor Serafim Forte fez um sorriso cintilante à rapaz sedu­tor e passou a mão pelas ancas da Elsa.

Ela vinha ajudar o homem que fora convidado trocar o cargo de procurador pelo de juiz no Tribunal Europeu a fazer as malas para o Luxemburgo e ruboresceu como uma adolescente.

— Aqui está uma cena que eu há muito esperava...

— Qual, senhor Manuel Costa?

— Daquela em que um homem diz a uma mulher: «Quando voamos juntos eu sou as asas.»

— Agora voo eu, Manuel Costa, a Elsa vai ter comigo, depois de arrumar os seus assuntos.

O certo é que, ali sentados depois uma noite a comentar as últimas novidades da história em que o capitão Francisco Manuel os metera, o doutor Serafim Forte e o Manuel Costa tinham bebi­do bem, fumado muito, mas ainda não haviam chegado ao fim, apesar de a Elsa dizer, resignada, enquanto começava a reunir os copos e a despejar os cinzeiros:

— As coisas passaram-se assim, o Presidente foi mais forte que a capacidade de resistência das pessoas, porque ele não é

como os delinquentes comuns, que infringem as leis feitas pelos outros, ele é um delinquente natural, que rasga a própria lei. Foi o caminho da história caminhar...

— Eu também estou vencido e vendido, como vocês. Vou daqui para um asilo que ele me arranjou em Azeitão...

— Não disseste que tinha sido a tua filha Naná quem te encontrou esse poiso numa terra de bons queijos e bons vinhos às portas de Lisboa?

— A Naná anda agora metida com o Diogo Soares e ocupou o lugar do pobre do Rui Mendonça... adesivou no grupo de baju­ladores e familiares do Presidente...

— No final, o único que se tramou foi o Rui Mendonça, que está nas malhas inextrincáveis da justiça.

— Entre condenações na primeira instância e anulações na última há-de chegar à prescrição, à recuperação e à regeneração.

— Desde que se mantenha calado...

— Como todos nós.

— Calados! Senhor Costa, é para si.

A voz, o guincho da mulher, ecoou na sala do lar da terceira idade de Azeitão e o Manuel Costa levantou os olhos míopes para a baleia que parecia o defunto forcado Miguel Vasconcelos, em trajes de travesti e com um telefone na mão, a citar um touro no meio da arena.

Os asilados, com os esqueletos a segurarem as peles rugosas sobre as cadeiras da sentença de morte, sentados de costas para as paredes manchadas da humidade, obedeceram com a resigna­ção dos caixeiros e criadas de servir, de velhos meninos e meninas bem-comportados, que aguardam o início do baile de fim-de-semana no salão dos bombeiros. Apenas a televisão recusou cumprir a ordem, continuando a disparar o som dos tiros de um filme de cobóis.

— Despache-se!

A ordem partiu disparada na direcção do canto onde Manuel Costa estava refugiado com as suas visitas de domingo, à volta de uma mesa, a lanchar os mimos que elas trouxeram para con­fraternizar.

O capitão Francisco Manuel acabara de justificar as suas boas cores com os passeios a cavalo no Monte da Braveza onde estava aboletado, e o padre Nuno Maria insurgira-se contra os novos hábitos do militar, que assumira as práticas e mordomias do seu posto de coronel de cavalaria, em vez de continuar lutar contra os poderosos, contra a injustiça, a favor dos pobres e explorados.

— Quem vive para os outros vive melhor, porque o que pode ser para muitos não deve ser para um só!

O padre Nuno Maria continuava a ter dificuldade em expres­sar-se quando queria apresentar as suas elucubrações e sentia que lhe levantavam barreiras às suas propostas. Era também o único que continuava magro, porque o capitão Francisco Manuel e o Quevedo apresentavam o aspecto lustroso de galinhas que engordaram no aviário, porque nada mais lhes resta para fazer do que comer as rações que a Aurora, Aurorita, e a Paquita prepa­ravam a cada um. Não estavam com disposição para ouvir a cate­quese do Nuno Maria.

— O mais que as novas gentes esperam de nós é que sejamos esquecidos e estejamos arrumados!

— Enlarizados!

— iQue conos esta diciendo Manuel Costa?

— Que todos nos querem em vida aparente, metidos nestes lares, que são mais ou menos como as morgues, mas com cozi­nha e televisão!

— Despache-se, senhor Costa!

Agora não havia mais delongas e o Manuel Costa começou a movimentar as canelas brancas das pernas para atravessar o grupo de fantasmas silenciosos e babados, até chegar à mesa onde estava o telefone preto.

— Aparece. A gente conversa um bocadinho.

No regresso ao canto onde se encontravam o padre, o militar, que agora era coronel graças à reconstituição da carreira decre­tada pelo Presidente, a galega e o escritor de comédias nos teatros de Madrid, o Manuel Costa soltou uma gargalhada das antigas.

— Era a Naná a avisar que está aqui dentro de minutos.

— O que fez à sua filha para ela vir vê-lo?

O Manuel Costa riu-se com os olhos a brilharem por detrás das lentes de fundo de garrafa.

— Fiz constar que vou publicar um romance inspirado na vida do capitão Francisco Manuel!

— Sobre mim?

— No meu estilo.

— Você tem toda a liberdade, mas...

— Posso então escrever o que quiser? É que arranjei um mili­tar reformado que ainda fez o antigo curso dos liceus para testa-de-ferro.

— ... mas arranjem uma maneira de dizer as coisas sem ofen­der, sem chocar. Sem me fazerem correr riscos escusados.

— Riscos escusados, coronel Francisco Manuel? Depois de tudo o que passou fala de riscos escusados por causa de uma boa história? Tem medo do antigo capitão dos Aventureiros?

Olharam uns para os outros vendo-se ao espelho com a velhice estampada nos rostos. Haviam viajado por estradas sinuo­sas, feito compromissos parciais para sobreviverem a lealdades traiçoeiras, mas agora estavam num lar da terceira idade à volta do Manuel Costa, diante de um farnel. Ninguém lhes podia tocar. Só que, como o capitão Francisco Manuel sabia, o sentimento de segurança é a mais falsa das situações.

— É melhor irmo-nos embora para o Manuel Costa e a filha discutirem à vontade.

— Deixem-se ficar. A Naná vai ter a recepção que merece.

— É o que queria evitar...

A Naná entrou na sala do lar de última idade de Azeitão com a energia de um gato acossado, sem parecer dar conta da existên­cia dos mortos-vivos que tremelicavam nas cadeiras e viraram os olhos vazios na direcção daquele vendaval que entrava de cabe­lo solto sobre os ombros, óculos escuros e mala ao ombro, tra­zendo-lhes um perfume que cortava o cheiro enjoativo a suor e a urina que tinham entranhado dos pés à cabeça.

Dirigiu-se com a velocidade dum lanceiro nos últimos metros da carga da cavalaria ao recanto onde o pai a aguardava com os amigos. Só hesitou antes de lhe encostar a cara num simulacro de primeiro beijo, uma meia paragem que antecedeu o disparo de umas boas-tardes de quem não espera resposta aos outros três homens. Depois, sentou-se com a frieza do oficial de diligên­cias que vai transmitir uma sentença transitada em julgado, sem mais recursos nem manobras dilatórias. Do tipo agora é assim.

— Vinha dizer ao meu pai que não vai haver nenhum livro sobre o capitão Francisco Manuel, mas já que aqui estão reuni­dos digo-vos de viva voz que acabaram as reuniões dos Manue-linhos, dos conspiradores d'O Ninho do Papagaio. Esse é o acordo que foi estabelecido para estarem como estão!

— Que acordo, Naná?

— Não faça o seu número de velho tonto, pai. O acordo entre o Presidente e o seu amigo Serafim Forte!

— Eu estive com ele antes de embarcar para o Luxemburgo e não me falou em nenhum acordo.

Mas havia um compromisso entre homens pertencentes a fraternidades desavindas e que utilizaram a Naná como inter­mediária para chegarem a um acordo que evitasse os perigos e prejuízos de uma luta até ao fim, o que era tão contrário aos seus princípios, como aos seus interesses.

Na visita que a Naná fizera ao antigo procurador da Repúbli­ca, antes das Conferências do Milénio e da exposição «Esplen­dor de Portugal», ficara assente que o procurador iria para o Luxemburgo, levando a enfermeira Elsa, que a Branca tomaria conta do capitão Francisco Manuel, que este seria promovido a coronel, que o Manuel Costa seria acolhido num lar e que não haveria mais mortes, mas acabariam as referências aos proces­sos do doutor Fernando Cardoso e do cabo Matos e também não mais se falaria no Diamante Azul, nem surgiriam panfletos anónimos, nem cartas do Manuelinho, nem livros de ficção a encobrir a realidade!

Ora o capitão Francisco Manuel abandonara a Branca e fora para o Monte da Braveza do padre Nuno Maria, o qual, segundo as últimas informações, promovia assembleias com camponeses alentejanos, para ressuscitarem uma cooperativa. O grupo dos Manuelinhos reunia-se agora no lar onde se encontrava o Manuel Costa e este preparava-se para publicar um livro, enquanto o Ned Marchmont andava a farejar em Londres atrás do Diamante Azul.

— Vocês não têm juízo? Querem fazer voltar um passado que não tem regresso? Padre Nuno Maria, convença-se de que não vale a pena alguém bater-se por algo que não seja o seu interesse! Coronel Francisco Manuel, como o senhor bem devia saber, há os que mandam, os que obedecem e os que se retiram. Pai, nem estando aqui percebem que o vosso tempo passou, que todas as coisas têm o seu tempo? Senhor Quevedo, porque não volta a escrever...

À medida que a Naná falava, o rosto deles ia tomando a expressão dos doentes dos ouvidos que recebem ecos de sons dolorosos. As acusações faziam ricochete na superfície blindada dos ouvintes e regressavam multiplicadas para a agredir com maior força do que aquela com que as disparara. Decididamente, os quatro homens podiam ser as muralhas de Jericó, mas as pala­vras da Naná não eram as trombetas que as derrubariam à força de ameaças. O Quevedo entretinha-se a limpar os óculos à fralda do gibão negro, o padre esfarelava um pedaço de queijo com os dedos, o capitão Francisco Manuel acendeu um cigarro e o Manuel Costa soltou um arroto para dentro. Os quatro velhos olhavam as biqueiras dos sapatos, de cabeça em baixo como ruminantes a mascar pastilha elástica, e o pesado silêncio que respondia à Naná continuava apenas a ser quebrado pelos tiros do filme de cobóis que continuava a passar na televisão.

O vazio confundia a jornalista, que olhava as quatro sombras tentando ler-lhe os pensamentos, furiosa por não as conseguir agarrar. Por não obter uma resposta, uma critica, um aceno, uma expressão, uma palavra daquelas quatro raposas sabidas e encoi-radas que a ignoravam como se ela fosse uma gralha aflita.

— Não dizem nada?

—**Ah de la vida! Nadie me respondei1

— O quê?

— Mas eu estive a falar para o boneco?

— Não és directora da televisão?

— Não brinque com coisas sérias, pai.

— Isso do livro é para sair quando, Manuel Costa?

— Está visto que vim aqui perder tempo.

— Quem perde tempo é quem julga que se amansam burros velhos enfiando-lhes um saco de favas na cabeça.

— Em que ficamos?

— Quem não teme não deve.

A Naná já estava de pé, preparada para sair, e ainda insistiu:

— É essa a vossa resposta?

— Si peccas, pecca fortier.

— Não se queixem do que vos acontecer no futuro.

— En fin, brindemos por el futuro.

Um brinde ao futuro que a Naná apanhou já de costas viradas ao grupo de velhos a quem interrompera a tarde doce e limpa dos que não pensavam em renascer. A filha do Manuel Costa viera desassossegá-los e, com as suas ameaças e ordens, trazê-los de volta aos tempos desesperados das perseguições, das guerras, dos tribunais, das facadas nas vielas.

— Com que então, Manuel Costa, o seu amigo procurador fez um acordo com o Presidente em nosso nome!

O comentário do padre Nuno Maria lançou os quatro homens numa discussão do tipo teológico sobre a unidade do Espírito Santo, a prevalência do Pai sobre o Filho, o dogma do filioque, causa de guerras e cismas em que, no final, cada um continua a defender o que acreditava no princípio. Não era fácil decidir se o doutor Serafim Forte fora um benfeitor ou um traidor, um abne­gado que sacrificara a sua carreira pela segurança do capitão Francisco Manuel ou um egoísta que alcançara à custa dele um lugar cómodo e bem pago no estrangeiro. Nem era a intenção deles decidirem, mas apenas concluírem.

— As lojas da Maçonaria entenderam-se e eu fui a moeda de troca.

— Talvez também deva à Maçonaria estar vivo!

— Ned Marchmont!

Tão entretidos estavam a discutir o carácter do doutor Serafim Forte que nem tinham dado pela entrada do inglês.

— Hombre, te imaginabamos bebiendo una copa con los muertos del Diamante Azul.

— Na Embaixada inglesa disseram-me que o Manuel Costa estava neste lar.

O antigo jornalista do Excelsior apresentava o excelente aspecto de um castor que abana os bigodes no início da Prima­vera. Distribuiu abraços e palmadas nas costas como um meri­dional, até ouvir a pergunta do capitão Francisco Manuel:

— Já agora, explique a quem devo a vida?

O inglês respondeu com a rispidez de quem pergunta não me diga que não sabia e ralha por ele lhe perguntar o que sabe não poder ser explicado.

— Ao seu avô John Wilson, soberano e grande-comandante do Antigo e Aceite Rito Escocês, capitão Francisco Manuel!

— Después de tantas noches mal dormidas, de tantas quejas repetidas, de tantos suspiros derramados de tantas penas ime­recidas, de tantos pasos sin concierto, solo te queda, Francisco Manuel, que te compraran Ia alma con segredos de delantal!

— E o Ned que descobriu sobre o paradeiro do Diamante Azul?

— Nada e tudo. Nothing and everything.

— Mais ou menos como o tempo e a verdade. Sabemos que existem, mas não o que são, nem onde se encontram.

— Suppositions and assumptions. Conjecturas.

Como todos se recordavam, a jóia fora misturada nos primei­ros objectos que a Elsa levara da Casa do Desterro, na noite em que o capitão Francisco Manuel e o Manuel Costa apanharam a grande bebedeira. De seguida, o Diamante Azul, em vez de ter ficado no centro antialcoólico, seguira entre as coisas que o Manuel Costa entregara ao procurador Serafim Forte para ele escrever a história do capitão e já não se encontrava entre as que o Pau locas entregara ao Rata dos Cabarés. Se puxarem pelas memórias, lembrar-se-ão de que a Elsa nunca abriu a caixa onde todos julgaram que o diamante estava. Nunca o viu. Sendo assim, a preciosa pedra pode estar agora no Luxemburgo...

— E estando na posse de um seu irmão de delantal, mais limpo do que aquele que o Quevedo agora usa n'O Ninho do Papagaio, está bem e o Ned pode vir de férias...

— Existe ainda outra possibilidade além dessa: é a de ele estar perdido entre o cabaré Flamingo Dourado e a taberna d'O Ninho do Papagaio, capitão Francisco Manuel...

— Qual?

— O diamante pode nunca ter saído da sua posse. E nesse caso também se encontra em boas mãos.

— Muito bem, caro Ned Marchmont, deve estar cheio de sede e nós temos nestas garrafas de tinto velho de Reguengos um remédio que cura as alucinações num instante...

 

                                                                                Carlos Vale Ferraz  

 

                      

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