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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FLOR DE MAGNÓLIA / Agatha Christie
FLOR DE MAGNÓLIA / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FLOR DE MAGNÓLIA

 

                       

 

Vincent Easton estava esperando sob o relógio de Victoria Station. De vez em quando erguia os olhos, inquieto, para os ponteiros. Pensou consigo mesmo: ‘Quantos homens não esperaram aqui por uma mulher,  que não apareceu?’

Sentiu uma pontada súbita. Suponhamos que nunca viesse, que tivesse mudado de idéia? Isso é comum com as mulheres. Que certeza podia ter – que garantia ela lhe dera? Até que ponto a conhecia bem? Não o desconcertara desde o início? Parecia que existiam duas mulheres diferentes – aquela criatura linda, que gostava tanto de rir, casada com Richard Darrell, e a outra silenciosa, cheia de mistérios, com quem tinha passeado pelo jardim de Haymen Close. Igual a uma flor de magnólia – assim a imaginava. – talvez porque fora à sombra de um pé de magnólia que haviam trocado o primeiro, arrebatado, incrédulo, beijo. O ar estava impregnado do perfume das flores e uma ou duas pétalas, aveludadas, cheirosas, tinham caído de mansinho, pousando naquele rosto erguido, tão nacarado, macio e silencioso como elas. Flor de magnólia – exótica, perfumada, misteriosa.

Isso tinha sido há duas semanas – no segundo dia que se haviam encontrado. E agora a esperava para ficar sempre em sua companhia. Ela não viria. Como fora capaz de acreditar nisso? Implicava em abandonar tantas coisas. A bela Mrs. Darrel não podia se safar impunemente de uma situação dessas. Aquilo seria comentado como um prodígio, um escândalo de repercussões incalculáveis, que jamais ficaria esquecido de todo. Existiam maneiras melhores, mais convenientes, de fazer uma coisa dessas – um divórcio discreto, por exemplo.

Mas nem tinham se lembrado disso – ele, ao menos, não tinha. E ela, teria? Como poderia saber,  uma vez que ignorava por completo o que ela pensava? Havia-lhe pedido que fugissem quase a medo – pois afinal de contas, quem era ele? Ninguém especial – um dos mil plantadores de laranja no Transvaal. Que vida  que lhe oferecia – depois do esplendor de Londres! E no entanto, já que a queria tão desesperadamente, precisava pedir-lhe.

Ela consentira, tranqüilamente, sem hesitações nem protestos, como se ele estivesse pedindo a coisa mais simples do mundo.

- Amanhã? – tinha perguntado, espantado, quase não acreditando.

E ela lhe havia prometido que sim, com aquela voz suave, submissa tão diferente do brilho risonho de sua conduta na sociedade. Quando a enxergara pela primeira vez, comparara-a a um diamante – irradiando faíscas, refletindo a luz de cem facetas diversas.  Mas naquele primeiro contato, naquele primeiro beijo, se transformara miraculosamente na suavidade velada de uma pérola – uma pérola nacarada, semelhante a uma flor de magnólia.

Ela lhe prometera. E agora esperava que cumprisse a promessa.

Olhou de novo o relógio. Se  não viesse logo, perderiam o trem.

Sentiu-se invadido por uma onda de pessimismo. Ela não ia vir! Claro que não. Como fora tão bobo a ponto de contar com isso? Que significavam as promessas? Encontraria uma carta dizendo todas as coisas que as mulheres dizem ao se desculpar pela falta de coragem.

Ficou irritado – e amargurado de frustração.

Então viu-a aproximar-se pela plataforma com um leve sorriso nos lábios. Caminhava devagar, sem pressa e sem agitação, como se tivesse toda a eternidade pela frente. Estava de preto – um vestido preto que modelava-lhe o corpo – e um chapeuzinho que emoldurava a maravilhosa palidez nacarada do rosto.

Tomou-lhe a mão, murmurando feito idiota:

- Então você veio... você veio. Afinal!

- Lógico.

Como sua voz parecia calma! Calma!

- Pensei que não viria – disse, soltando-lhe a mão, ofegante.

Ela arregalou os olhos – grandes, lindíssimos, numa expressão de assombro, o assombro ingênuo de uma criança.

- Por quê?

Não respondeu. Preferiu se virar a chamar um carregador que passava por perto. Não dispunham de muito tempo. Os poucos minutos restantes correram entre atropelos e confusão. Por fim sentaram no compartimento reservado e as casas tristes da parte sul de Londres começaram a desfilar diante deles.

 

Theodora Darrel estava sentada à sua frente. Finalmente era dele. E agora via quão incrédulo tinha sido até o último minuto. Não ousara acreditar. Deixara-se amedrontar por aquela qualidade mágica, indefinível, que ela possuía. Parecia-lhe impossível que algum dia viesse a lhe pertencer.

Agora não havia mais suspense. Estava reclinada no canto, completamente imóvel, com aquele leve sorriso ainda nos lábios, os olhos baixos, as longas pestanas negras pousadas na curva nacarada da face.

Pensou: ‘Em que ela estará pensando? Em mim? No marido? O que é que ela acha dele, afinal? Será que nunca o amou? Será que o odeia ou simplesmente lhe é indiferente?” E, como uma ferroada, ocorreu-lhe a idéia? “Não sei”“. “Jamais saberei”. Eu a amo e não sei nada a seu respeito – nem o que pensa, nem o que sente.”

Concentrou os pensamentos em torno do marido de Theodora Darrel. Tinha conhecido uma porção de mulheres ousadas que se mostravam sempre prontas a falar sobre os maridos – de como eram incompreendidas, de como ignoravam seus sentimentos mais delicados. Vincent Easton refletia cinicamente que esse era um dos métodos de conquista mais conhecidos.

Mas, a não ser casualmente, Theo nunca se referia a Richard Darrel. Easton sabia dele só que era publicamente notório: um sujeito popular, bonito, simpático e despreocupado. Todo mundo gostava de Darrel. A esposa sempre parecera viver muito bem em sua companhia. O que nada provava, refletiu Vincent. Theo era uma moça fina – que não exporá suas mágoas em público.

E entre eles não se registrara nenhum comentário. Desde aquela segunda noite que se tinham visto, quando passearam juntos pelo jardim, calados, roçando os ombros, e havia sentido o leve tremor que o contato provocava nela, não se mostrara disposta a explicações, a definir sua posição. Retribuíra-lhe os beijos, uma criatura muda, trêmula, despido de todo aquele brilho consistente que, aliado à sua beleza imaculada, tinham-na tornado famosa. Jamais fizera uma referência ao marido. Na hora, Vincent ficou-lhe grato por isso. Como era bom encontrar uma mulher que não perdia tempo em provar a si mesma e ao amante que dispunham de motivos justos para se entregarem ao amor.

Mas agora aquela secreta conspiração de silêncio o inquietava. Voltava-lhe de novo a pavorosa sensação de nada saber a respeito dessa criatura estranha que estava pronta a unir sua vida à dele. Sentia medo.

Com o intuito de se tranqüilizar, curvou-se para a frente e pousou a mão no joelho coberto pelo vestido preto no assento fronteiro. Tornou a perceber o leve tremor que a sacudiu e estendeu o braço para pegar-lhe a mão. Curvando-se mais, beijou-lhe demoradamente a palma. Sentiu a reação dos seus dedos. Levantando a cabeça, olhou-a nos olhos e ficou contente.

Reclinou-se no banco. Por enquanto não queria mais nada. Estavam juntos. Ela era dele. Daí a pouco comentou num tom despreocupado, de brincadeira:

- Você está muito calada.

- Estou?

- Está, sim. – Esperou um instante, depois perguntou mais sério: - Tem certeza de que não está... arrependida?

Os olhos dela se arregalaram.

- Claro que tenho!

Não duvidou da resposta. Existia por trás dela uma firmeza de convicção.

- Em que está pensando? Gostaria de saber.

- Acho que estou com medo – respondeu ela, em voz baixa.

- Com medo?

- Da felicidade.

Então foi sentar-se ao lado dela e abraçou-a, beijando-lhe o rosto e o pescoço macios.

- Eu te amo – disse. Te amo... te amo.

A resposta veio na entrega do corpo, na impetuosidade dos lábios.

Depois retornou ao lugar anterior. Pegou uma revista e ela fez o mesmo. De vez em quando, entreolhavam-se por cima da página. E então sorriam.

Chegaram a Dover logo depois das cinco. Teriam de pernoitar ali para atravessar o Canal da Mancha no outro dia de manhã. Theo entrou na sala do hotel seguida por Vincent, que trazia na  mão alguns jornais vespertinos que largou em cima da mesa. Dois criados do hotel trouxeram a bagagem e se retiraram.

Theo virou-se da janela onde havia ficado parada, olhando para fora. No minuto seguinte estavam abraçados.

Ouviu-se uma batida discreta na porta. Separaram-se de novo.

- Que raiva – resmungou Vincent, - pelo visto nunca conseguiremos ficar sós.

Theo sorriu.

- Pois é – disse baixinho, e sentando-se no sofá pegou um dos jornais.

Era o garçom com o chá. Deixou-o sobre a mesa, puxando-a mais para perto do sofá, onde Theo estava sentada, lançou um rápido olhar em torno, perguntou se não queriam mais nada e foi embora.

Vincent que tinha ido até o quarto ao lado, voltou à sala.

- Vamos ao chá – disse, todo alegre, mas de repente parou no meio do caminho. – Que foi? – perguntou.

Theo havia dado um pulo do sofá. Olhava fixamente para a frente, com a fisionomia mortalmente pálida.

Vincent aproximou-se às pressas.

- Que é, meu bem?

Como resposta, ela lhe entregou o jornal, apontando a manchete com o dedo.

Vincent pegou:

- FALÊNCIA DE HOBSON, JEKYLL & LUCA – leu.

O nome da grande firma londrina não lhe dizia nada, mas no fundo sentiu a irritante certeza de que devia ter algum significado para ela. Fitou Theo com uma expressão interrogativa.

- Richard é dono da Hobson, Jekyll e Lucas – explicou ela.

- O seu marido?

- É.

Vincent voltou ao jornal e leu cuidadosamente a lacônica informação que trazia. Frases como “súbito colapso financeiro”, “ aguardam-se graves revelações”, “ outras firmas atingidas”, produziram-lhe um efeito desagradável.

Um movimento súbito fez com que levantasse os olhos. Theo estava endireitando o chapeuzinho diante do espelho. Virou-se ao ouvir o barulho que ele tinha feito. Encarou-o com firmeza.

- Vincent... tenho que voltar para o Richard.

Ele saltou em pé.

- Theo... não seja absurda.

- Tenho que voltar para o Richard – repetiu, maquinalmente.

- Mas, minha querida...

Ela indicou o jornal caído no chão.

- Isso aí significa a ruína... a bancarrota. Não posso escolher justamente o dia de hoje para abandoná-lo.

- Você já o tinha abandonado antes de ouvir falar nisso. Seja razoável!

Sacudiu a cabeça, pesarosa.

- Você não compreende. Eu tenho que voltar para ele.

E nada conseguiu demove-la. Estranho que uma criatura tão meiga e dócil pudesse ser inflexível assim. Recusou-se a discutir. Deixou que ele dissesse tudo o que tinha a dizer, sem interrompê-lo. Abraçou-a, procurando quebrar-lhe a força de vontade pela escravização dos sentidos, mas embora seus lábios macios retribuíssem os beijos, sentiu nela qualquer coisa arredia e inexpugnável que resistia a todos os rogos.

Por fim largou-a, farto e aborrecido de tanto esforço em vão. Dos rogos passou ao rancor, acusando-a de jamais te-lo amado. Também isso ela ouviu em silêncio, sem protestos, enquanto o rosto, mudo e confrangedor, desmentia-lhe as palavras. Terminou dominado pela raiva, proferindo todas as crueldades que lhe ocorreram, só querendo feri-la, para vê-la ajoelhada a seus pés.

Por fim calou-se: Não havia mais nada a dizer. Sentou com a cabeça entre as mãos, de olhos fixos no tapete de pelo vermelho. Ao chegar à porta, Theodora parou, um vulto preto de rosto branco.

Estava tudo acabado.

- Adeus, Vincent – disse baixinho.

Ele não respondeu.

A porta se abriu –  e depois se fechou.

 

Os Darrels moravam numa casa em Chelsea – uma casa de estilo antigo, curiosa, situada no meio de um jardinzinho todo especial. Bem na frente da casa havia um pé de magnólia, coberto de fuligem, sujo, encardido, mas mesmo assim de magnólia.

Theo levantou os olhos para ele, parada no degrau da porta, cerca de três horas depois. Um sorriso súbito lhe desfez o ricto amargo da boca.

Foi direto ao gabinete nos fundos da casa. Um homem caminhava de um lado para outro – um homem jovem, rosto bonito e expressão desfigurada.

Soltou um suspiro de alívio ao vê-la entrar.

- Graças a Deus que você apareceu, Theo. Me disseram que você tinha levado toda a bagagem e ido não sei para que lugar fora da cidade.

- Eu soube da notícia e voltei.

Richard Darrel passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a para o divã. Sentaram-se lado a lado. Theo desvencilhou-se do abraço de um modo que parecia perfeitamente natural.

- A situação é muito grave, Richard? – perguntou, serena.

- Tão grave quanto possível... o que não é pouco.

- Me conte tudo!

Ele recomeçou a caminhar para cá e para lá, enquanto falava. Theo ficou sentada, observando-o. Ele não pode perceber que de vez em quando as luzes do gabinete enfraqueciam e sua voz sumia nos ouvidos dela, ao mesmo tempo que outra sala, de um hotel em Dover, surgia-lhe nitidamente diante dos olhos.

Apesar disso, conseguiu prestar bastante atenção. Ele tornou a sentar-se no divã a seu lado.

- Ainda bem – concluiu. – que eles não podem tocar na sua parte do casamento. A casa também lhe pertence.

Theo concordou com a cabeça, pensativa.

- Pelo menos ficaremos com isso – disse. – Então a situação não está tão má, não é? Significa apenas que teremos que recomeçar tudo de novo, só isso.

- Pois é, exatamente. Você tem razão.

Mas qualquer coisa na voz dele soava falso e Theo de repente pensou: ‘Não é só isso. Ele não me contou tudo.”

- Não há mais nada, Richard? – perguntou, delicadamente. – Nada pior?

Ele hesitou apenas uma fração de segundo, e aí:

- Pior? Que poderia haver?

- Sei lá – respondeu Theo.

- Tudo vai se acertar – disse Richard, dando mais a impressão de que procurava tranqüilizar a si mesmo do que a Theo. - Claro que vai.

De repente passou-lhe o braço pela cintura.

- Que bom que você veio – exclamou. – Agora que já está aqui, tudo entrará nos eixos. Aconteça o que acontecer, tenho você, não é?

- É, sim – concordou com doçura e desta vez deixou que o braço dele ficasse na cintura.

Ele beijou-a, segurando-a contra si, como se de certo modo estranho tirasse consolo da sua proximidade.

- Tenho você, Theo – repetiu dali a pouco e ela, como antes, respondeu:

- É sim, Richard.

Ele deslizou do divã para o soalho a seus pés.

- Estou exausto – disse, mal-humorado. – Deus do céu, que dia foi hoje. Medonho! Não sei o que faria se você não tivesse chegado. Afinal de contas, para que é que serve a mulher da gente, não é mesmo?

Ela não respondeu, apenas sacudiu a cabeça, concordando.

Ele pousou a nuca no colo dela. O suspiro que deu parecia de uma criança cansada.

Theo pensou mais uma vez: “Tem alguma coisa que ele não me disse. O que será?”

Deixou cair a mão maquinalmente nos sedosos cabelos escuros dele e começou a afagá-los com delicadeza, como uma mãe consolando o filho.

Richard murmurou vagamente:

- Agora que você está aqui, tudo entrará nos eixos. Você não vai me deixar em falta.

Sua respiração se tornou lenta e regular. Adormeceu. A  mão dela continuou a lhe afagar a cabeça.

Mas olhava fixamente, sem enxergar nada, para a escuridão que tinha diante de si.

- Você não acha, Richard – perguntou Theodora, - que seria melhor me contar tudo?

Isso foi três dias mais tarde. Estavam na sala de visitas, fazendo hora para jantar.

Richard teve um sobressalto e avermelhou.

- Não sei o que você quer dizer – disse, esquivando-se à resposta.

-  Não sabe?

Ela lançou-lhe um olhar rápido.

- Bem, claro... existem detalhes.

- Não acha que para poder ajudar você eu devia saber de tudo?

Olhou-a de um modo estranho.

- Por que é que você acha que eu preciso da sua ajuda?

Ficou um pouco espantada.

- Bem, Richard... eu sou sua mulher, não sou?

De repente ele sorriu, com aquele sorriso de antes, simpático, despreocupado.

- De fato, é, Theo. E muito bonita, por sinal. Nunca suportei mulheres feias.

Pôs-se a caminhar de um lado para outro, como sempre fazia quando alguma coisa o preocupava.

- Não vou negar que de certo modo você tem razão -  disse, afinal. - Há outra coisa, sim.

Calou-se.

-  Qual?

- É difícil à beca explicar esse tipo de coisa às mulheres. Sempre interpretam tudo errado... tomam uma coisa... bem, pelo que ela não é.

Theo não disse nada.

- Sabe - continuou Richard – a lei é uma coisa, e o que está certo e errado é outra, bem diferente. Eu posso dizer uma coisa perfeitamente certa e direita, mas que a lei não encararia assim. Em nove de cada dez vezes, a gente é bem sucedido, mas aí, na décima... bem se dá com os burros n’água.

Theo começou a entender. Pensou: “Por que não me admiro? Será que no fundo sempre soube que ele não era honesto?”

Richard prosseguiu falando. Para se justificar, entrou em explicações desnecessárias. Theo ficou contente que ele encobrisse os detalhes exatos da história com esse manto de verbosidade. O assunto dizia respeito a uma vasta extensão de terras na África do Sul. Não lhe interessava saber exatamente o que Richard tinha feito. Ele lhe garantia que moralmente agira com correção e boa-fé, mas que legalmente – bem, não havia como negar o fato de que se achava sujeito a um processo penal.

Enquanto falava, a todo instante lançava olhares furtivos à mulher. Estava nervoso e contrafeito. E não parava de se desculpar, tentando atenuar a gravidade do caso com explicações que até uma criança veria logo que eram supérfluas. Por fim, num acesso de justificação, entregou-se ao desespero. Talvez fosse pura impressão de Theo, que naquele momento tinha um brilho escarninho no olhar, porém ele se jogou numa poltrona ao lado da lareira com a cabeça entre as mãos.

- Eis aí a situação, Theo – disse, alquebrado. – E agora, o que você acha?

Ela correu prontamente a se ajoelhar ao pé da poltrona, encostando o rosto no dele.

- O que se pode fazer, Richard? O que é que vamos fazer?

Puxou-a contra si.

- Está falando sério? Você vai ficar do meu lado?

- Mas claro, meu bem. Lógico.

Então, impelido a contragosto pela sinceridade, disse:

- Sou um ladrão, Theo. Numa linguagem bem clara, a coisa se resume nisto... não passo de um ladrão.

- Pois então sou a mulher de um ladrão, Richard. Estamos juntos no mesmo barco.

Ficaram um instante calados. Não demorou muito, Richard recuperou parte do seu ar despreocupado.

- Sabe, Theo, eu tenho um plano, mas depois a gente fala nisso. Já está na hora do jantar. Precisamos ir trocar de roupa. Ponha aquele vestido cor de creme, você sabe qual é... o modelo de Caillot.

Theo arqueou as sobrancelhas, com espanto.

- Para passar a noite em casa?

- Sim, sim eu sei. Mas eu gosto dele. Anda, ponha, seja boazinha. Fico todo animado quando a vejo bem vestida.

Theo desceu para jantar com o Caillot. Era uma criação em brocado cremoso, recamado por um tênue fio de ouro, sob um fundo rosa pálido para dar um pouco de cor ao conjunto. Possuía um decote ousado nas costas e nada poderia ser mais indicado para exibir a alvura deslumbrante do pescoço e dos ombros de Theo. Agora lembrava perfeitamente uma flor de magnólia.

Richard pousou os olhos nela com aprovação entusiástica.

- Muito bem! Sabe, você fica simplesmente sensacional nesse vestido.

Foram jantar. Richard passou o tempo todo nervoso e diferente, dizendo piadas e rindo sem o menor motivo, como se estivesse se esforçando em vão para esquecer suas preocupações. Theo tentou várias vezes trazer à baila o assunto que tinham discutido antes, mas ele sempre se esquivava.

Por fim, de repente, quando ela se levantou para ir dormir, ele abordou a questão.

- Não, não vá ainda. Tenho uma coisa para lhe dizer. Sobre esse negócio miserável, sabe?

Theo se sentou de novo.

Ele começou a falar rápido. Com um pouco de sorte, a coisa toda poderia ser abafada. As aparências estavam relativamente a salvo. Bastava que certos papéis não chegassem às mãos do síndico da massa falida...

Fez uma pausa significativa.

- Papéis? – Retrucou Theo, perplexa. – Quer dizer que você pretende destruí-los?

Richard teve um esgar.

- Eu os destruiria assim que me caíssem em mãos. O diabo é consegui-los.

- Com quem estão, afinal?

- Com um sujeito que nós dois conhecemos... Vincent Easton.

Theo deixou escapar uma exclamação. Procurou disfarçar, mas Richard já tinha percebido.

- Sempre desconfiei de que ele sabia de alguma coisa da história. Foi por isso que o convidei para vir cá uma porção de vezes. Não se lembra como lhe pedi para ser amável com ele?

- Me lembro sim, disse Theo.

- Por um motivo ou outro, nunca consegui travar amizade com ele. Não sei por quê. Mas ele gosta de você. Eu diria até que gosta um bocado de você.

- Gosta, sim – confirmou Theo, a voz bem nítida.

- Ah! – fez Richard, satisfeito. - Isso é ótimo. Agora você está vendo aonde quero chegar. Estou certo de que se você procurasse o Vincent Easton e pedisse para ele lhe entregar os tais papéis, ele não recusaria. Mulher bonita, você sabe... essa espécie de coisa.

- Não posso fazer isso – disse logo Theo.

- Que bobagem.

- Nem pensar.

O rosto de Richard aos poucos foi-se cobrindo de manchas vermelhas. Ela viu que ele estava furioso.

- Minha filha, acho que você não entendeu bem a situação. Se isso vier a público, sou capaz de ir parar na cadeia. Significa a ruína... a desgraça.

- Tenho certeza de que Vincent Easton não usará os tais papéis contra você.

- Não se trata disso. Ele talvez nem perceba que eles me incriminam. Só se forem tomados conjuntamente com... os meus negócios... com os dados que fatalmente hão de achar. Ah! Não posso entrar em detalhes. Ele vai me arruinar sem saber o que está fazendo, a menos que alguém lhe explique tudo.

- E por quê você não faz isso? Escreva para ele.

- Grande coisa ia adiantar! Não, Theo, só temos uma única esperança. Você é o nosso trunfo. Você é a minha mulher. Precisa me ajudar. Vá procurar o Easton agora de noite...

Theo não pôde conter um grito.

- Agora de noite não. Amanhã, talvez.

- Meu Deus, Theo, será que você não compreende? Amanhã talvez seja tarde demais. Se você for agora... imediatamente... à casa do Easton. – Notou que ela vacilava e procurou tranqüilizá-la. – Eu sei, minha filha, eu sei. É uma coisa hedionda que estou lhe pedindo. Mas é um caso de vida ou morte. Theo, você não vai me desapontar, vai? Você disse que faria tudo para me ajudar...

Theo ouviu-se falando com uma voz dura, seca.

- Mas não isso. Tenho motivos.

- É um caso de vida ou morte, Theo. Estou falando sério. Olha aqui.

Abriu bruscamente a gaveta da escrivaninha e tirou um revólver. Se havia no gesto qualquer coisa de teatral, ela não percebeu.

- Ou você vai ou eu me mato. Não posso enfrentar um escândalo. Se você não fizer o que estou pedindo, serei um homem morto antes do amanhecer. Juro solenemente que é a pura verdade.

Theo soltou um grito abafado.

- Não, Richard, isso não!

- Então me ajude.

Jogou o revólver em cima da mesa e ajoelhou-se aos pés dela.

- Theo, minha querida... se você me ama... se algum dia você me amou... faça isso por mim. Você é minha mulher, Theo. Não tenho mais ninguém a quem possa recorrer.

E continuou assim, sem parar, murmurando, implorando. E por fim Theo ouviu-se dizendo:

- Está bem... eu faço.

Richard levou-a até a porta e chamou-lhe um táxi.

 

- Theo!

Vincent Easton deu um pulo, encantado, sem poder acreditar no que via. Ela estava parada à porta. O abrigo de arminho-branco pendia-lhe dos ombros. Easton achou que nunca a tinha visto tão linda.

- Você veio, afinal.

Ela levantou a mão para impedir que ele se aproximasse mais.

- Não, Vincent, não é o que você está pensando – disse numa voz baixa, sôfrega. – Foi meu marido que me mandou aqui. Ele acha que existem uns papéis que podem... causar-lhe dano. Eu vim pedir a você para me entregá-los.

Vincent ficou totalmente imóvel, olhando para ela. Depois deu uma risadinha.

- Então é isso, é? Bem que outro dia me pareceu que Hobson, Jekyll & Lucas não me era estranho, mas na hora não consegui atinar direito. Não sabia que seu marido estivesse ligado à firma. Já faz certo tempo que a situação não mais ainda boa para eles. Me encarregaram de examinar o assunto. Desconfiei de que fosse algum subordinado. Nunca pensei que se tratasse do próprio chefão.

Theo nada disse. Vincent olhou-a com curiosidade.

- Isso não lhe faz diferença? – perguntou. – O fato de que  o.. bem, pra falar com franqueza, de que o seu marido seja um vigarista?

Ela sacudiu a cabeça.

- Que coisa incrível – exclamou Vincent. Depois acrescentou, calmamente: - Quer esperar um pouco? Vou buscar os papéis.

Theo sentou numa cadeira. Ele entrou na peça ao lado. Não demorou muito, voltou e entregou-lhe um pequeno embrulho.

- Obrigada – disse Theo. – Tem fósforo?

Pegando a caixa que ele lhe alcançou, ajoelhou-se diante da lareira. Depois que os papéis ficaram reduzidos a cinza, levantou-se.

- Obrigada – repetiu.

- De nada – respondeu ele, formalmente. - Deixe eu chamar um táxi para você.

Levou-a até o carro e esperou na calçada até que se afastasse. Que entrevista mais estranha e cerimoniosa. Desde o início nem tinham ousado olhar um para o outro. Bem, paciência, era o fim. Iria embora, para o estrangeiro, tentar esquecer.

Theo inclinou a cabeça pela janela e falou com o motorista do táxi. Não podia voltar logo para a casa de Chelsea. Precisava de um espaço para respirar. Rever Vincent causara-lhe um abalo terrível. Se ao menos – se ao menos... mas repreendeu-se. Não sentia o mínimo amor pelo marido – porém devia-lhe lealdade. Fosse lá qual fosse a falta que houvesse cometido, amava-a: a ofensa era contra a sociedade e não contra ela.

O táxi perambulou pelas largas ruas de Hampstead. Foram dar no campo, e um sopro de ar puro, revigorante, refrescou as faces de Theo. Já tinha recuperado o controle. O táxi tomou rapidamente o rumo de Chelsea.

Richard veio recebê-la no vestíbulo.

- Puxa, como você demorou.

- Demorei?

- É... um tempão. Está tudo... em ordem?

Seguiu-a, com um olhar de ave de rapina. Suas mãos tremiam.

- Está tudo em ordem, então? – repetiu.

- Eu mesma os queimei.

- Ah!

Ela entrou no gabinete, jogando-se numa grande poltrona. Tinha o rosto pálido como um cadáver e o corpo desfeito pelo cansaço. Pensou: - “Se ao menos agora eu pudesse ir dormir e nunca, nunca mais acordar!”

Richard a observava. Não parava de lançar-lhe olhares tímidos, furtivos. Ela nem notou. Ser-lhe-ia impossível.

- Deu tudo certo, então?

- Já disse que sim.

- Tem certeza de que eram os tais papéis? Olhou?

- Não.

- Mas como...

- Tenho certeza, estou lhe dizendo. Não me aborreça mais, Richard. Eu não agüento mais.

- Sim, sim. Já vi.

Caminhou irrequieto de um lado para outro. Dali a pouco aproximou-se e pousou-lhe a mão no ombro. Ela se desvencilhou.

- Não me toque. – Tentou rir. – Desculpe, Richard. Estou muito nervosa. Tenho a impressão de que não suporto contato nenhum.

- Sei. Compreendo.

Recomeçou a andar pela sala.

- Theo – exclamou de repente. – Lamento profundamente.

- O quê? – Levantou os olhos, meio atônita.

- Não devia ter deixado que você fosse lá a esta hora da noite. Nunca pensei que ficaria exposta a qualquer... dissabor.

- Dissabor? – Deu uma risada. Parecia achar graça na palavra. – Você nem imagina! Ah, Richard, você nem imagina!

- Não imagino o quê?

- O que esta noite me custou – respondeu, bem séria, com os olhos fixos na sua frente.

- Meu Deus, Theo, nunca pretendi... Você... você fez isso por mim? O cretino! Theo... Theo... Nunca supus. Nunca me passou pela cabeça. Meu Deus!

Agora estava ajoelhado a seus pés, balbuciante, abraçando-a pela cintura. Ela se virou e olhou-o com certa surpresa, como se as palavras tivessem, finalmente, conseguido chamar-lhe a atenção.

- Eu... eu nunca pretendi...

- O que é que você nunca pretendeu, Richard?

O tom de sua voz o assustou.

- Me diga. O que foi que você nunca pretendeu?

- Theo, não falemos mais nisso. Não quero saber. Nunca mais quero pensar nesse assunto.

Agora o encarava, totalmente lúcida, com todas as faculdades alertas. As palavras saíam claras e nítidas:

- Nunca pretendeu... O que é que você acha que aconteceu?

- Não aconteceu nada, Theo. Vamos fingir que não aconteceu.

Continuou encarando-o, até que começou a se dar conta de tudo.

- Você acha que...

- Não quero...

Interrompeu-o:

- Você acha que o Vincent Easton exigiu um preço pelas tais cartas? Acha que eu... paguei a ele?

- Eu... eu nunca pensei que ele fosse esse tipo de homem – disse Richard, alquebrado e de maneira pouco convincente.

 

- Não pensou? – Cravou-lhe os olhos. Ele baixou a cabeça. – Por que me pediu pra por este vestido agora de noite? Por que me mandou ir lá sozinha, a esta hora? Você achou que ele... gostava de mim. Queria salvar a sua pele... a todo custo... inclusive da minha honra.

Levantou-se.

- Agora entendo. Você pretendia isso desde o início... ou pelo menos encarou como uma possibilidade, e não se deixou intimidar.

- Theo...

- Não tente negar, Richard. Eu julgava que há anos conhecia tudo o que era possível conhecer a seu respeito. Quase de saída, percebi que você não era o que se chama uma pessoa correta. Mas pensei que comigo fosse.

- Theo...

- Pode negar o que acabo de dizer?

Viu-se forçado a ficar calado.

- Escute, Richard. Tem uma coisa que preciso lhe contar. Há três dias, quando você sofreu esse golpe, os criados lhe disseram que eu estava fora... que tinha ido para o campo. Não foi bem assim. Eu tinha fugido com o Vincent Easton...

Richard soltou um som inarticulado. Ela o deteve com a mão.

- Espere. Nós estávamos em Dover. Eu vi um jornal... me dei conta do que havia acontecido. Aí então como você sabe, voltei.

Fez uma pausa.

Richard pegou-a pelo pulso. Fixou-lhe um olhar penetrante.

- Você voltou.... a tempo?

Theo soltou uma risadinha amarga.

- Sim, eu voltei, como você diz, “a tempo”, Richard.

O marido afrouxou o aperto do braço. Ficou em pé, junto à lareira, a cabeça atirada para trás. Estava bonito e até um pouco digno.

- Nesse caso – disse, - posso perdoar.

- Pois eu não.

As três palavras saíram bruscas. E tiveram o efeito de uma bomba naquela sala tranqüila. Richard deu um passo à frente, de olhos arregalados, boquiaberto, formando um quadro quase ridículo.

- Você... o que foi que você disse, Theo?

- Eu disse que não posso perdoar! Ao abandonar você por outro homem, eu pequei – não no sentido literal, talvez, mas na intenção, o que vem a dar no mesmo. Se pequei, porém, foi por amor. Você também não me tem sido fiel desde que casamos. É sim, eu sei. Mas o perdoei, porque realmente acreditei que me amasse. Mas o que você fez, hoje à noite, é diferente. É uma coisa revoltante, Richard... uma coisa que nenhuma mulher perdoaria. Você me vendeu, a sua própria esposa, para comprar segurança!

Pegou o abrigo e virou-se para a porta.

- Theo – gaguejou ele, - aonde você  vai?

Ela olhou-o por cima do ombro.

- Nesta vida tudo tem um preço, Richard. Preciso pagar com a solidão o pecado que cometi. Quanto a você... bem, você arriscou a coisa que amava, e saiu perdendo!

- Você vai embora?

Ele suspirou fundo.

- Vou. Não existe nada que me prenda aqui.

Ele ouviu a porta se fechar. Passaram-se séculos, ou apenas minutos? Qualquer coisa caiu de mansinho do lado de fora da janela – a última das pétalas de magnólia, macia, perfumada.

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

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