Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
FLOR DE NEVE E O LEQUE SECRETO
Um idioma mantido em segredo durante milhares de anos é o pano de fundo deste romance inesquecível sobre duas chinesas cujas vidas são marcadas pela amizade e pelo amor que as unem.
Esta história apaixonante e comovente se passa na China do século XIX, quando as mulheres tinham que se submeter à antiga tradição de bandagem dos pés para reduzir-lhes o tamanho e torná-las melhores partidos. Durante esse dolorido processo de embelezamento, que durava cerca de dois anos e, em algumas regiões, era iniciado quando as jovens tinham apenas seis anos de idade, eram obrigadas a viver em reclusão. O tamanho dos pés iria determinar o valor da mulher como esposa. Os pés pequenos seriam oferecidos aos futuros sogros como prova da disciplina e da capacidade para suportar a dor do parto, além de todos os outros infortúnios que poderiam aguardá-la.
Iletradas e isoladas do mundo, não era apropriado que pensassem, tivessem vontade própria ou demonstrassem emoções. No entanto, algumas mulheres falavam uma língua secreta entre si, conhecida como nu shu; a única escrita utilizada exclusivamente por mulheres que se tem notícia na história. Elas pintavam os caracteres nu shu em leques, bordavam-nos em lenços, e usavam a "escrita feminina" para compor canções e escrever histórias, saindo assim do isolamento para compartilharem seus sonhos e realizações.
Algumas jovens, consideradas especiais, eram unidas em pares numa aliança conhecida como laotong, algo tão importante quanto um bom casamento, mas realizado por escolha, tendo como objetivo o companheirismo emocional e a fidelidade eterna.
Em Flor da Neve e o leque secreto, somos levados por Lírio em uma viagem ao seu passado, o relacionamento com sua "velha igual" - como as laotong costumam ser chamadas -, os casamentos arranjados e as alegrias e agruras da maternidade. Até que um terrível mal-entendido escrito no leque secreto usado por elas ameaça separá-las. Com um detalhamento histórico e uma densidade emocional impressionantes, a história aborda um dos mais misteriosos relacionamentos: a amizade feminina.
Sentada calmamente
Eu sou o que chamam na nossa aldeia de "alguém que ainda não morreu" - uma viúva, de oitenta anos. Sem o meu marido, os dias são longos. Não ligo mais para as comidas especiais que Peônia e as outras preparam para mim. Não aguardo mais com ansiedade os eventos felizes que ocorrem com tanta facilidade sob o nosso teto. Só o passado me interessa agora. Depois de todo este tempo, posso finalmente dizer as coisas que não podia dizer quando dependia de minha família para me criar ou da família de meu marido para me alimentar. Tenho uma vida inteira para contar; não tenho mais nada a perder, e poucos a quem ofender.
Sou velha o bastante para saber perfeitamente quais são as minhas qualidades e os meus defeitos, que, freqüentemente, se confundem. Durante a minha vida inteira desejei ardentemente o amor. Eu sabia que não era correto - como jovem e mais tarde como mulher - desejá-lo ou esperar por ele, mas o fiz, e esse desejo injustificado esteve na raiz de todos os problemas que enfrentei na vida. Eu sonhava que minha mãe iria reparar em mim e que ela e o resto da família acabariam por me amar. Para ganhar sua afeição, eu era obediente - a característica ideal para alguém do meu sexo -, mas era ansiosa demais por agradar. Na esperança de que eles me demonstrassem até mesmo o mais simples gesto de carinho, tentei satisfazer todas as expectativas que tinham em relação a mim - conseguir ter os menores pés amarrados da região -, então deixei que os meus ossos fossem quebrados e moldados numa forma mais adequada.
Quando eu sabia que não ia mais agüentar a dor, e as lágrimas caíam sobre minhas ataduras ensangüentadas, minha mãe falava baixinho no meu ouvido, encorajando-me a prosseguir por mais uma hora, mais um dia, mais uma semana, lembrando-me das recompensas que eu teria se agüentasse mais um pouco. Dessa maneira, ela me ensinou a suportar - não só a provação física da bandagem dos pés e do parto, mas a dor mais tortuosa do coração, da mente, da alma. Ela estava também apontando os meus defeitos e me ensinando a usá-los em meu próprio benefício. No nosso país, chamamos esse tipo de amor de mãe de teng ai. Meu filho me disse que na escrita dos homens ele é composto de dois caracteres. O primeiro significa dor; o segundo significa amor. É assim o amor de mãe.
A bandagem alterou não apenas os meus pés, mas todo o meu caráter e, estranhamente, sinto como se esse processo continuasse por toda a minha vida, transformando-me de criança submissa em moça determinada, e depois em jovem mulher, que obedecia sem questionamento a tudo que os sogros ordenavam, em mulher da categoria mais elevada da região, que impingiu regras e costumes severos à aldeia. Quando completei quarenta anos, a rigidez do processo de bandagem - que transformou meus pés em "lírios dourados" de apenas sete centímetros - tinha se deslocado de meus membros inferiores para o meu coração, que se apegava a injustiças e mágoas com tanta força que eu já não era mais capaz de perdoar aqueles que eu amava e que me amavam.
A minha única rebelião veio sob a forma de nu shu, a escrita secreta de nossas mulheres. Ela apareceu pela primeira vez quando Flor da Neve - minha laotong, minha "velha igual", minha companheira de escrita secreta - enviou-me o leque que está pousado sobre a minha mesa, e, de novo, depois que a conheci. Contudo, não considerando quem eu era com Flor da Neve, eu estava decidida a ser uma esposa honrada, uma nora louvável e uma mãe escrupulosa.
Nas horas difíceis, meu coração era forte como o jade. Eu tinha a capacidade oculta de suportar tragédias e sofrimentos. Mas aqui estou - uma viúva, calmamente sentada como manda a tradição —, e percebo que estive cega por muitos anos.
Exceto por três meses terríveis durante o quinto ano do reinado do imperador Xianfeng, passei a vida nos aposentos das mulheres no andar de cima. Sim, freqüentei o templo, viajei de volta à minha terra natal, cheguei até a visitar Flor da Neve, mas conheço muito pouco do mundo externo. Ouvi os homens falarem de impostos, secas e levantes, mas esses assuntos estão muito distantes da minha vida. O que conheço é bordado, costura, cozinha, a família de meu marido, meus filhos, meus netos, meus bisnetos e nu shu. Minha vida transcorreu normalmente - dias de filha, dias de cabelo preso, dias de arroz-e-sal, e agora sentada calmamente.
Então, aqui estou, sozinha com meus pensamentos e com este leque na minha frente. Quando o pego, é estranho como parece leve, pois nele estão registradas tantas alegrias e tanta dor. Eu o abro rapidamente, e o som feito por cada dobra me faz lembrar de um coração batendo. Lembranças se agitam diante dos meus olhos. Nesses últimos quarenta anos, eu o li tantas vezes que o sei de cor, como uma canção da infância.
Lembro-me do dia em que a casamenteira o entregou para mim. Meus dedos tremeram quando o abri. Naquele tempo, uma simples guirlanda de folhas enfeitava a borda superior e havia uma única mensagem escrita na primeira dobra. Naquela época, eu não conhecia muitos caracteres em nu shu, então minha tia leu as palavras. "Eu soube que existe uma menina de bom caráter e versada em conhecimentos femininos na sua casa. Você e eu somos do mesmo ano e do mesmo dia. Não podemos ser iguais juntas?" Olho agora para os floreios delicados que compõem essas linhas e vejo não apenas a moça que Flor da Neve era, mas a mulher que ela viria a ser - perseverante, franca, objetiva.
Meus olhos percorrem as outras dobras, e vejo o nosso otimismo, a nossa alegria, a nossa admiração mútua, as promessas que fizemos uma à outra. Vejo como aquela simples guirlanda se transformou num desenho elaborado de botões de neve e lírios para simbolizar nossas vidas juntas como um par de laotong, velhas iguais. Vejo a lua no canto superior direito brilhando sobre nós. Deveríamos ser como longas trepadeiras com raízes entrelaçadas, como árvores que vivem mil anos, como um par de marrecos unidos por toda a vida. Em uma das dobras, Flor da Neve escreveu: "Nós que somos afeiçoadas uma à outra jamais romperemos nossos laços." Em outra dobra, porém, vejo os desentendimentos, a quebra de confiança e a porta fechada ao final. Para mim, o amor era um bem tão precioso que eu não podia dividi-lo com mais ninguém, e no fim ele me separou da única pessoa que era minha igual.
Ainda estou aprendendo a respeito do amor. Achei que sabia o que ele era - não apenas o amor de mãe, mas o amor pelos pais, pelo marido e pela laotong. Experimentei outros tipos de amor - amor por compaixão, amor por respeito, amor por gratidão. Mas, examinando o nosso leque secreto com as mensagens trocadas entre mim e Flor da Neve ao longo de muitos anos, vejo que não dei valor ao tipo mais importante de amor - o amor do fundo do coração.
Nesses últimos anos, copiei várias autobiografias para mulheres que nunca aprenderam nu shu. Escutei cada tristeza e cada queixa, cada injustiça e cada tragédia. Relatei as vidas miseráveis de mulheres infelizes. Ouvi tudo e anotei tudo. Porém, se sei muito sobre histórias de mulheres, não sei quase nada sobre histórias de homens, exceto que elas geralmente envolvem a luta de um fazendeiro contra a força da natureza, as batalhas de um soldado ou um homem solitário e sua luta interior. Contemplando a minha própria vida, vejo que ela espelha histórias de mulheres e homens. Sou uma mulher humilde com as queixas habituais, mas por dentro também travei uma batalha semelhante à dos homens, entre a minha verdadeira natureza e a pessoa que eu deveria ter sido.
Estou escrevendo estas páginas para aqueles que moram no mundo dos mortos. Peônia, a esposa do meu neto, prometeu que providenciaria para que elas fossem queimadas por ocasião da minha morte, para que a minha história os alcance antes do meu espírito. Que as minhas palavras possam explicar as minhas ações para os meus antepassados, para o meu marido, mas principalmente para Flor da Neve, antes que eu me encontre de novo com eles.
Dias de filha
Dentes de leite
Meu nome é Lírio. Entrei neste mundo no quinto dia do sexto mês do terceiro ano do reinado do imperador Daoguang. Puwei, minha aldeia natal, fica no estado de Yongming, o estado do Eterno Esplendor. A maioria das pessoas que moram aqui descende da tribo étnica Yao. Com os contadores de histórias que visitavam Puwei quando eu era criança, aprendi que os Yao chegaram a esta região há mil e duzentos anos, durante a dinastia Tang, mas a maior parte das famílias veio um século depois, fugindo dos exércitos mongóis que invadiram o Norte. Embora o povo da nossa região nunca tenha sido rico, nunca fomos pobres a ponto de as mulheres serem obrigadas a trabalhar nos campos.
Pertencíamos à linhagem familiar dos Yi, um dos clãs originais dos Yao e o mais comum na região. Meu pai e meu tio arrendaram sete mou de terra de um rico proprietário que morava no extremo oeste da província. Eles plantaram arroz, algodão, mandioca e ervas. A casa de minha família era típica no sentido de ter dois andares e estar virada para o sul. Um aposento do segundo andar era reservado para as mulheres se reunirem e para as moças solteiras dormirem. Quartos para cada unidade familiar e um quarto especial para os animais cercavam o salão principal do andar de baixo, onde cestas cheias de ovos ou laranjas e cordas de pimentas pendiam da viga central para afastar os camundongos, galinhas e porcos. Numa parede, ficava uma mesa com banquinhos. Uma lareira onde mamãe e titia cozinhavam ocupava um canto da parede oposta. Não tínhamos janelas no salão principal, então mantínhamos aberta a porta que dava para o beco do lado de fora da casa, para entrar luz e ar fresco nos meses quentes. Os demais quartos eram pequenos, o chão era de terra batida, e, como eu disse, nossos animais moravam conosco.
Nunca parei muito para pensar se era feliz ou se me divertia quando criança. Eu era uma menina assim-assim que morava com uma família assim-assim numa aldeia assim-assim. Eu não sabia que havia outro modo de viver, e tampouco me preocupava com isso. Lembro-me, no entanto, do dia em que comecei a notar as coisas à minha volta e a refletir sobre elas. Eu tinha acabado de fazer cinco anos, e achava que tinha cruzado um marco importante. Acordei antes do amanhecer com algo como uma coceira no cérebro. Essa pequena irritação me fez ficar alerta a tudo que vi e experimentei naquele dia.
Eu estava deitada entre Irmã Mais Velha e Terceira Irmã. Olhei para a cama da minha prima do outro lado do quarto. Lua Linda, que tinha a minha idade, ainda não estava acordada, então fiquei imóvel, esperando minhas irmãs se mexerem. Eu estava de frente para Irmã Mais Velha, que era quatro anos mais velha do que eu. Embora dormíssemos na mesma cama, só vim a conhecê-la melhor depois que meus pés foram amarrados e passei a freqüentar o aposento das mulheres. Fiquei contente de não estar virada para Terceira Irmã. Eu sempre dizia a mim mesma que, por ela ser um ano mais moça, era insignificante demais para ocupar meu pensamento. Acho que minhas irmãs também não me adoravam, mas a indiferença que demonstrávamos umas pelas outras era apenas uma máscara que usávamos para ocultar nossos verdadeiros anseios. Cada uma de nós queria atrair a atenção de mamãe. Cada uma de nós ansiava pela atenção de Baba. Cada uma de nós queria poder passar mais tempo por dia com Irmão Mais Velho, uma vez que, sendo o primeiro filho, ele era a pessoa mais preciosa da nossa família.
Eu não tinha esse tipo de ciúme de Lua Linda. Éramos boas amigas e estávamos felizes por nossas vidas estarem ligadas até nos casarmos.
Nós quatro éramos muito parecidas. Tínhamos cabelo preto cortado bem curto, éramos muito magras e muito próximas em altura. Poucas características nos distinguiam umas das outras. Irmã Mais Velha tinha um sinal sobre o lábio. Terceira Irmã usava sempre o cabelo amarrado em pequenos tufos porque não gostava que mamãe o penteasse. Lua Linda tinha um belo rosto redondo, enquanto que as minhas pernas eram musculosas de tanto correr e meus braços muito fortes de tanto carregar meu irmãozinho.
- Meninas! - chamou mamãe da escada.
Isso foi o bastante para acordar as outras e fazer todo mundo sair da cama. Irmã Mais Velha vestiu-se apressadamente e desceu. Lua Linda e eu fomos mais vagarosas, porque não só nos vestimos como também vestimos a Terceira Irmã. Depois descemos juntas, e titia estava varrendo o chão, enquanto titio cantava uma cantiga matinal, mamãe - com Segundo Irmão enganchado nas costas - despejava o resto da água na chaleira para esquentar, e Irmã Mais Velha cortava cebolinhas para o mingau de arroz que chamamos de congee. Minha irmã me lançou um olhar tranqüilo que interpretei como querendo dizer que ela já tinha ganho a aprovação da família naquela manhã e estava a salvo pelo resto do dia. Escondi meu ressentimento, sem compreender que o que eu via como presunção era algo mais próximo à triste resignação que iria instalar-se em minha irmã depois do seu casamento.
- Lua Linda! Lírio! Venham aqui! Venham aqui!
Minha tia nos cumprimentava assim todas as manhãs. Corremos para ela. Titia beijou Lua Linda e me deu um tapinha afetuoso no traseiro. Então, titio ergueu Lua Linda nos braços e beijou-a. Depois de colocá-la no chão, ele piscou para mim e beliscou minha bochecha.
Você conhece o velho ditado que diz que pessoas lindas se casam com pessoas lindas e que pessoas talentosas se casam com pessoas talentosas? Naquela manhã concluí que titio e titia eram pessoas feias e, portanto, combinavam perfeitamente um com o outro. Titio, irmão mais moço de meu pai, era careca, tinha as pernas tortas e um rosto de lua cheia. Titia era baixa e gorda, e seus dentes pareciam pedras lascadas projetando-se de uma caverna. Seus pés amarrados não eram muito pequenos, deviam ter catorze centímetros de comprimento, duas vezes o tamanho que os meus teriam mais tarde. Eu tinha ouvido línguas maldosas na nossa aldeia dizerem que esse era o motivo de titia - que era uma mulher saudável, de quadris largos -não conseguir levar a termo a gravidez de um filho homem. Nunca ouvi esse tipo de reclamação em casa, nem mesmo de titio. Para mim, eles tinham um casamento ideal; ele era um rato carinhoso e ela um boi obediente. Todos os dias espalhavam alegria em volta da lareira.
Minha mãe ainda não demonstrara saber que eu estava na sala. Fora sempre assim, mas naquele dia percebi e senti o seu descaso. A melancolia tomou conta de mim, espantando a alegria que eu tinha sentido junto de titia e titio, assustando-me com a sua força. Depois, com a mesma rapidez, a sensação desapareceu, porque Irmão Mais Velho, que era seis anos mais velho do que eu, me chamou para ajudá-lo com as tarefas da manhã. Por ter nascido no ano do cavalo, está na minha natureza gostar do ar livre, porém, mais importante ainda do que isso era ter Irmão Mais Velho só para mim. Eu sabia que tinha tido sorte e que minhas irmãs iriam ficar aborrecidas comigo, mas não me importei. Quando ele falava comigo ou sorria para mim, eu não me sentia invisível.
Corremos para fora. Irmão Mais Velho tirou água do poço e encheu os baldes para carregarmos. Nós os levamos de volta para casa e tornamos a sair para juntar lenha. Fizemos uma pilha, depois Irmão Mais Velho encheu os meus braços com os galhos menores. Apanhou o resto e fomos para casa. Quando chegamos lá, entreguei os galhinhos para mamãe, querendo que ela me elogiasse. Afinal, não é fácil para uma menininha carregar um balde de água ou um monte de lenha. Mas mamãe não disse nada.
Mesmo agora, depois de todos esses anos, é difícil para mim pensar em mamãe e no que compreendi naquele dia. Percebi claramente que não tinha nenhuma importância para ela. Eu era o terceiro filho, uma segunda filha sem nenhum valor, pequena demais para ela perder tempo comigo enquanto não achasse que eu sobreviveria àqueles primeiros anos. Ela olhava para mim do jeito que todas as mães olham para as filhas - como uma visitante temporária que era mais uma boca para alimentar e um corpo para vestir, até eu ir embora para a casa de meu marido. Eu tinha cinco anos, era grande o bastante para saber que não merecia a sua atenção, mas de repente a desejei ardentemente. Quis que ela olhasse para mim e conversasse comigo como fazia com Irmão Mais Velho. Contudo, mesmo naquele momento do meu primeiro desejo realmente profundo, fui esperta o bastante para saber que mamãe não iria querer que eu a interrompesse quando estava ocupada, quando tantas vezes tinha ralhado comigo por falar muito alto ou tinha golpeado o ar ao meu redor por eu estar no seu caminho. Em vez disso, jurei que ia ser igual à Irmã Mais Velha e ajudar da forma mais silenciosa e cuidadosa possível.
Vovó entrou na sala com um andar vacilante. Seu rosto parecia uma ameixa seca e suas costas eram tão curvadas que nossos olhos ficavam na mesma altura.
- Ajude sua avó - mamãe ordenou. - Veja se ela precisa de alguma coisa.
Embora tivesse acabado de fazer uma promessa a mim mesma, hesitei. As gengivas de vovó eram azedas e grudentas de manhã, e ninguém queria chegar perto dela. Eu me aproximei, prendendo a respiração, mas ela fez um sinal impaciente para eu me afastar. Afastei-me tão depressa que dei um encontrão em meu pai - a décima primeira e mais importante pessoa da nossa casa.
Ele não me repreendeu nem disse nada para ninguém. Pelo que eu sabia, ele não falaria nada até o final do dia. Ele se sentou e esperou que o servissem. Observei mamãe atentamente enquanto ela lhe servia chá sem dizer uma palavra. Posso ter tido medo de que ela reparasse em mim durante sua rotina matinal, mas ela estava mais preocupada em atender meu pai. Ele raramente batia na minha mãe e nunca teve uma concubina, mas a cautela dela ao lidar com ele nos deixava apreensivos.
Titia colocou as tigelas na mesa e serviu o congee, enquanto mamãe amamentava o bebê. Depois de comermos, meu pai e meu tio saíram para o campo, e minha mãe, minha tia, minha avó e minha irmã mais velha subiram para o aposento das mulheres. Eu queria ir com mamãe e as outras mulheres da família, mas ainda não tinha idade para isso. Para piorar as coisas, agora eu tinha de dividir Irmão Mais Velho com meu irmãozinho e Terceira Irmã quando íamos lá para fora.
Carregava o bebê nas costas enquanto cortávamos capim e colhíamos raízes para o porco. Terceira Irmã nos acompanhava da melhor maneira possível. Ela era uma coisinha engraçada, mal-humorada. Agia como uma menina mimada, quando os únicos que tinham o direito de ser mimados eram os nossos irmãos. Ela achava que era a pessoa mais querida da família, embora nada lhe indicasse que isso fosse verdade.
Terminadas as nossas tarefas, nosso pequeno quarteto foi explorar a aldeia, subindo e descendo os becos entre as casas até encontrar umas meninas pulando corda. Meu irmão parou, pegou o bebê e deixou que eu pulasse também. Depois fomos para casa almoçar - algo simples, arroz e legumes apenas. Em seguida, Irmão Mais Velho saiu junto com os homens, e o resto foi lá para cima. Mamãe tornou a amamentar o bebê, depois ele e Terceira Irmã foram tirar uma soneca. Mesmo com aquela idade, eu gostava de ficar no aposento das mulheres junto com minha avó, minha tia, minha irmã, minha prima e especialmente minha mãe. Mamãe e vovó estavam tecendo, Lua Linda e eu fazíamos bolas de linha, titia sentou-se com seu pincel e tinta, escrevendo cuidadosamente seus caracteres secretos, enquanto Irmã Mais Velha esperava por suas quatro irmãs juradas que vinham visitá-la.
Logo em seguida ouvimos o som de quatro pares de pés de lírio subindo silenciosamente a escada. Irmã Mais Velha cumprimentou cada uma das meninas com um abraço, e as três se reuniram num canto. Elas não gostavam de que eu me intrometesse na conversa delas, mas fiquei observando-as mesmo assim, sabendo que eu faria parte da minha própria irmandade dali a dois anos. As meninas eram todas de Puwei, o que significava que podiam reunir-se com freqüência, e não apenas em ocasiões especiais, como Tomar Brisa Fresca ou o Festival de Pássaros. A irmandade tinha sido formada quando as meninas completaram sete anos. Para consolidar o relacionamento, seus pais tinham contribuído com vinte e cinco jin de arroz cada um, que ficaram estocados na nossa casa. Mais tarde, quando cada uma delas se casasse, sua porção de arroz seria vendida para que suas irmãs juradas pudessem comprar presentes para ela. A última porção de arroz seria vendida por ocasião do casamento da última irmã jurada. Isso marcaria o fim da irmandade, uma vez que as meninas teriam todas ido para aldeias distantes, onde estariam ocupadas demais com seus filhos e obedecendo às suas sogras para ter tempo para velhas amizades.
Mesmo com as amigas, Irmã Mais Velha não tentava chamar atenção. Ficou sentada placidamente junto com as outras meninas, enquanto bordavam e contavam histórias engraçadas. Quando a conversa e os risos ficaram altos, minha mãe ralhou com elas, e um novo pensamento surgiu em minha cabeça: mamãe nunca fazia isso quando as irmãs juradas da velhice da minha avó vinham visitá-la. Depois que os filhos cresceram, minha avó tinha sido convidada para se juntar a um novo grupo de cinco irmãs juradas em Puwei. Só duas delas, além de minha avó, ainda estavam vivas, e se visitavam pelo menos uma vez por semana. Elas faziam rir umas às outras e, juntas, trocavam pilhérias que nós meninas não entendíamos. Nessas ocasiões, mamãe não ousava mandá-las parar porque tinha medo da sogra. Ou talvez estivesse ocupada demais para isso.
Mamãe ficou sem linha e se levantou para apanhar mais. Por um momento, ela ficou imóvel, olhando pensativamente para o nada. Senti um desejo quase incontrolável de correr para os braços dela e gritar: Olha para mim, olha para mim, olha para mim! Mas não o fiz. Os pés de mamãe tinham sido mal amarrados pela mãe dela. Em vez de lírios dourados, mamãe tinha feios tocos. Em vez de flutuar ao andar, ela se equilibrava numa bengala. Se largasse a bengala, seus quatro membros vergavam na tentativa de manter o equilíbrio. Mamãe era trôpega demais para alguém abraçá-la ou beijá-la.
- Não está na hora de Lua Linda e Lírio irem lá para fora? - titia perguntou, interrompendo o devaneio de minha mãe. - Elas podiam ajudar Irmão Mais Velho com suas tarefas.
- Ele não precisa da ajuda delas.
- Eu sei - titia admitiu -, mas está um dia bonito...
- Não - mamãe disse severamente. - Não gosto das meninas andando pela aldeia quando deveriam estar aprendendo suas tarefas de casa.
Mas nesse assunto minha tia era teimosa. Queria que nós conhecêssemos nossos becos, que víssemos o que havia neles, que caminhássemos até a extremidade da aldeia e olhássemos para fora, sabendo que em pouco tempo tudo o que iríamos ver era o que conseguíssemos avistar pela janela de treliça do aposento das mulheres.
- Elas só têm uns poucos meses — argumentou minha tia. Ela se absteve de acrescentar que em breve nossos pés seriam amarrados, nossos ossos quebrados, nossa pele ficaria podre. - Deixe-as correr enquanto podem.
Minha mãe estava exausta. Tinha cinco filhos, três deles com menos de cinco anos. Arcava com toda a responsabilidade da casa - limpar, lavar e costurar, cozinhar todas as nossas refeições, e controlar as despesas o melhor que pudesse. A sua posição era mais elevada do que a de titia, mas não podia brigar todo dia pelo que acreditava ser um comportamento adequado.
- Está bem. - Mamãe suspirou resignada. - Elas podem ir. Agarrei a mão de Lua Linda e pulamos de alegria. Titia nos empurrou rapidamente para a porta antes que minha mãe mudasse de idéia, enquanto Irmã Mais Velha e suas irmãs juradas olhavam para nós com inveja. Minha prima e eu descemos correndo e fomos para o lado de fora. O fim da tarde era a parte do dia de que eu mais gostava, quando o ar estava quente e perfumado e as cigarras cantavam. Corremos pelo beco até encontrarmos meu irmão levando a família de búfalos para o rio. Ele estava montado nas costas largas do animal, com uma das pernas encolhida sob o corpo e a outra balançando sobre os flancos do bicho. Lua Linda e eu fomos andando em fila atrás deles através do labirinto de becos estreitos da aldeia, cujo desenho intrincado nos protegia tanto dos fantasmas quanto dos bandidos. Não vimos nenhum adulto - os homens estavam trabalhando nas plantações e as mulheres estavam nos seus aposentos do andar de cima, atrás das janelas de treliça -, mas os becos estavam ocupados por outras crianças e pelos animais da aldeia: galinhas, patos, porcas gordas e porquinhos guinchando.
Saímos do perímetro da aldeia e seguimos por um caminho estreito coberto de pequenas pedras. Ele era largo o suficiente para pessoas e palanquins, mas estreito demais para carroças puxadas por bois ou por cavalos. Descemos até o rio Xiao e paramos pouco antes da ponte balançante que o cruzava. Do outro lado da ponte, o mundo se abria diante de nós com largas faixas de terra cultivada. O céu se estendia tão azul quanto as penas de um alcião. Ao longe, avistamos outras aldeias - lugares que nunca achei que visitaria na vida. Depois descemos até a margem do rio, onde o vento soprava através dos juncos. Eu me sentei numa pedra, tirei os sapatos e caminhei pelo raso. Setenta e cinco anos se passaram, e eu ainda me lembro da sensação da lama entre meus dedos, da água correndo sobre os meus pés, do frio contra a minha pele. Lua Linda e eu éramos livres de uma forma que jamais seríamos de novo. Mas me lembro muito bem de outra coisa daquele dia. Desde o instante em que acordei, eu tinha visto a minha família de formas diferentes, e todas tinham me enchido de emoções estranhas - melancolia, tristeza, ciúme e uma sensação de injustiça acerca de muitas coisas que, de repente, pareceram incorretas. Deixei a água levar tudo isso embora.
Naquela noite, depois do jantar, nós nos sentamos do lado de fora, desfrutando o ar fresco da noite e vendo Baba e titio fumarem seus longos cachimbos. Todo mundo estava cansado. Mamãe ama-mentou o bebê pela última vez, tentando fazê-lo adormecer. Ela parecia cansada das tarefas do dia, que ainda não haviam terminado para ela. Passei o braço pelo seu ombro para confortá-la.
- Está quente demais para isso - disse ela, e me empurrou delicadamente.
Baba deve ter visto a minha decepção, porque me pôs no colo. Na noite silenciosa, eu era preciosa para ele. Naquele momento, fui como uma pérola em sua mão.
A Bandagem
A preparação para a bandagem dos meus pés levou muito mais tempo do que todo mundo esperava. Nas cidades, meninas que pertencem à burguesia têm os pés amarrados desde os três anos. Em algumas províncias distantes da nossa, as meninas só amarram os pés temporariamente, para parecerem mais atraentes para os futuros maridos. Essas meninas podem já ter até treze anos. Seus ossos não são quebrados, suas ataduras estão sempre folgadas, e, depois de casadas, seus pés são soltos para que elas possam trabalhar no campo ao lado dos maridos. As meninas mais pobres não amarram os pés nunca. Nós sabíamos como elas terminavam. Ou eram vendidas como criadas ou se tornavam "pequenas noras" -garotas de pés grandes de famílias pobres que são entregues para serem criadas por outras famílias, até completarem idade suficiente para ter filhos. No entanto, na nossa região assim-assim, meninas de famílias como a minha começavam a bandagem dos pés aos seis anos, e o processo só era considerado concluído dois anos depois.
Enquanto eu ainda corria lá fora com meu irmão, minha mãe já tinha começado a preparar as longas faixas azuis de pano que iriam amarrar os meus pés. Com suas próprias mãos, ela fez o meu primeiro par de sapatos, mas foi mais cuidadosa ainda ao fazer a miniatura de sapatos que iria colocar no altar de Guanyin - a deusa que ouve o choro de todas as mulheres. Aqueles sapatos bordados tinham apenas três centímetros e meio de comprimento e foram feitos com um retalho especial de seda vermelha que minha mãe tinha guardado do seu enxoval. Eles foram o primeiro indício que tive de que talvez minha mãe gostasse de mim.
Quando Lua Linda e eu fizemos seis anos, mamãe e titia chamaram o adivinho para definir uma data auspiciosa para começar a bandagem dos nossos pés. Dizem que o outono é a época mais propícia para se iniciar a bandagem, mas só porque o inverno está próximo e o tempo frio ajuda a anestesiar os pés. Eu estava empolgada? Não. Estava com medo. Eu era pequena demais para me lembrar dos primeiros dias da bandagem dos pés de Irmã Mais Velha, mas quem na nossa aldeia não tinha ouvido os gritos da menina Wu que morava logo adiante?
Minha mãe recebeu o adivinho Hu lá embaixo, serviu chá e lhe ofereceu uma tigela de sementes de melancia. Sua cortesia tinha como objetivo induzir uma boa leitura. Ele começou por mim. Analisou a data do meu nascimento. Pesou as possibilidades. Então ele disse:
- Preciso ver essa criança com os meus próprios olhos. - Isso não era comum, e, quando minha mãe foi me buscar, seu rosto estava tenso. Ela me levou até o adivinho. Colocou-me diante dele. Seus dedos apertavam meus ombros, mantendo-me no lugar e assus-tando-me ao mesmo tempo, enquanto o adivinho me examinava.
- Olhos, sim. Orelhas, sim. Essa boca. - Ele olhou para minha mãe. - Essa não é uma criança comum.
Minha mãe sorveu o ar através dos dentes cerrados. Essa era a pior afirmação que o adivinho poderia ter feito.
- É preciso analisar melhor - disse o adivinho. - Proponho consultarmos uma casamenteira. Você concorda?
Algumas pessoas poderiam suspeitar de que o adivinho estava tentando ganhar mais dinheiro e que estava mancomunado com a casamenteira local, mas minha mãe não hesitou nem por um momento.
Tal foi o medo dela - ou sua convicção -, que nem mesmo pediu a permissão de meu pai para gastar o dinheiro.
- Por favor, volte assim que puder - disse ela. - Estaremos esperando.
O adivinho foi embora, deixando todos nós confusos. Naquela noite, minha mãe falou muito pouco. De fato, ela não olhou para mim. Titia não fez nenhuma brincadeira. Minha avó se recolheu cedo, mas pude ouvi-la rezando. Baba e titio foram dar um longo passeio. Sentindo a inquietação da família, até mesmo os meus irmãos ficaram quietos.
No dia seguinte, as mulheres acordaram cedo. Dessa vez, prepararam bolos, chá de crisântemo, e pratos especiais foram tirados dos armários. Meu pai ficou em casa para receber as visitas. Todas essas extravagâncias demonstravam a gravidade da situação. Então, para piorar as coisas, o adivinho não levou madame Gao, a casamenteira local, mas madame Wang, a casamenteira de Tongkou, a melhor aldeia do nosso estado.
Deixe-me dizer isto: nem a casamenteira local jamais havia estado na nossa casa. Ela só deveria visitar-nos dentro de um ou dois anos, quando serviria de intermediária para Irmão Mais Velho na procura de uma esposa e para Irmã Mais Velha, quando as famílias estivessem procurando noivas para seus filhos. Então, quando o palanquim de madame Wang parou na frente da nossa casa, não houve nenhum júbilo. Olhando lá de cima do aposento das mulheres, vi os vizinhos saindo boquiabertos para verem aquilo. Meu pai ajoelhou-se para fazer uma reverência, tocando o chão com a testa diversas vezes. Senti pena dele. Baba vivia preocupado - típico de alguém nascido no ano do coelho. Ele era responsável por todos na casa, mas isso estava além da sua experiência. Meu tio ficou pulando de um pé para outro, enquanto minha tia - normalmente tão receptiva e alegre - ficava paralisada ao seu lado. Do meu posto privilegiado de observação, lá em cima, a conclusão era evidente em todos os rostos abaixo de mim: algo estava terrivelmente errado.
Depois que entraram, fui silenciosamente até o alto da escada para poder escutar. Madame Wang sentou-se. O chá e os doces foram servidos. A voz do meu pai era quase inaudível enquanto ele executava os rituais exigidos pela boa educação. Madame Wang, contudo, não tinha vindo para conversar futilidades com essa família humilde. Ela queria me ver. Assim como na véspera, fui chamada à sala. Desci e entrei no aposento com toda a graça possível a alguém com apenas seis anos de idade, e cujos pés ainda são grandes e desajeitados.
Contemplei os adultos da minha família. Embora haja momentos especiais em que a distância do tempo deixe as lembranças nas sombras, as imagens dos rostos deles naquele dia permanecem muito nítidas para mim. Minha avó estava sentada, observando as mãos cruzadas no colo. Sua pele era tão frágil e fina que eu podia ver uma veia azul pulsando em sua têmpora. Meu pai, que já tinha aborrecimentos de sobra, estava mudo de ansiedade. Meu tio e minha tia estavam parados juntos na porta, com medo de participarem do que estava para acontecer, e também com medo de perderem aquilo. Mas me lembro principalmente do rosto da minha mãe. É claro que, como filha, eu achava que ela era bonita, mas enxerguei a sua verdadeira natureza pela primeira vez naquele dia. Eu sempre soube que ela nascera no ano do macaco, mas nunca tinha percebido que os traços de esperteza e malícia dele fossem tão fortes nela. Havia um embrutecimento oculto sob as maçãs salientes do seu rosto. Algo de malicioso por trás dos seus olhos escuros. Havia alguma coisa... Ainda não sei exatamente como descrever. Eu diria que algo como uma ambição masculina exalava de seus poros.
Mandaram-me ficar em frente a madame Wang. Achei sua jaqueta de seda linda, mas uma criança não tem gosto, não tem discernimento. Hoje eu diria que ela era espalhafatosa e inadequada para uma viúva, mas na verdade uma casamenteira não é uma mulher comum. Ela faz negócios com homens, estabelecendo o preço das noivas, discutindo dotes e servindo de intermediária. O riso de madame Wang era alto demais e suas palavras muito suntuosas. Ela mandou que eu me aproximasse, prendeu-me entre seus joelhos e examinou atentamente o meu rosto. Naquele momento, deixei de ser invisível e passei a ser bem visível.
Madame Wang foi mais minuciosa do que o adivinho. Ela beliscou os lóbulos das minhas orelhas. Colocou os indicadores nas minhas pálpebras inferiores e puxou-as para baixo, depois mandou que eu olhasse para cima, para baixo, para a esquerda, para a direita. Pôs as mãos dos dois lados do meu rosto, virando-os para a frente e para trás. Suas mãos apalparam os meus braços desde os ombros até os pulsos. Depois, ela pôs as mãos nos meus quadris. Eu só tinha seis anos! Não dá para saber nada a respeito de fertilidade ainda! Mas ela o fez assim mesmo, e ninguém disse nada para impedi-la. Então, madame Wang fez uma coisa incrível. Levantou da cadeira e mandou que eu tomasse o seu lugar. Fazer isso seria uma enorme falta de educação. Olhei para a minha mãe e para o meu pai para me orientar, mas eles estavam totalmente sem ação. O rosto do meu pai tinha ficado cinzento. Eu quase podia ouvi-lo pensando: por que não a atiramos no rio quando ela nasceu?
Madame Wang não tinha se tornado a casamenteira mais importante do estado esperando ovelhas tomarem decisões. Ela simplesmente me pegou no colo e me sentou na cadeira. Depois ajoelhou-se diante de mim e tirou os meus sapatos e as minhas meias. Mais uma vez, silêncio absoluto. Como tinha feito com o meu rosto, ela virou os meus pés de um lado para outro e depois passou a unha do polegar para cima e para baixo no arco dos meus pés.
Madame Wang olhou para o adivinho e balançou a cabeça. Tornou a se levantar e, com um movimento abrupto do dedo indicador, mandou que eu saísse da cadeira. Depois de ter retomado o seu lugar, o adivinho pigarreou.
- Sua filha nos coloca diante de uma circunstância especial -comentou ele. - Vi alguma coisa nela ontem, e madame Wang, que detém outros conhecimentos, concorda. O rosto da sua filha é comprido e fino como uma semente de arroz. Os lóbulos carnudos de suas orelhas dizem que ela é generosa de espírito. O mais importante, porém, são seus pés. O arco é muito alto mas ainda não está completamente desenvolvido. Isso significa, mãe, que você deve esperar mais um ano para começar a bandagem. - Ele ergueu a mão para evitar que alguém o interrompesse, como se isso fosse acontecer. - Sete não é o costume na nossa aldeia, eu sei, mas acho que se olhar para sua filha verá que...
O adivinho Hu hesitou. Vovó empurrou uma tigela de tangerinas na direção dele, para que ele pudesse organizar suas idéias. Ele tirou uma, descascou-a e jogou a casca no chão. Com um gomo erguido diante da boca, ele prosseguiu:
- Aos seis anos, os ossos ainda são constituídos na maior parte de água e, portanto, são maleáveis. Mas a sua filha é pouco desenvolvida para a idade, mesmo para a sua aldeia, que passou por anos difíceis. Talvez as outras meninas desta casa também sejam. Você não deve envergonhar-se disso.
Até aquele momento, eu não tinha achado que houvesse nada de diferente com a nossa família, nem imaginado que houvesse algo de diferente em mim.
Ele enfiou o gomo de tangerina na boca, mastigou-o pensativa-mente e continuou:
- Mas a sua filha tem algo além do subdesenvolvimento causado pela fome. O pé dela tem um arco particularmente alto, o que significa que, se fizermos concessões adequadas agora, seus pés poderão ser os mais perfeitos produzidos no nosso estado.
Algumas pessoas não acreditam em adivinhos. Outras acham que eles só fazem recomendações com base no bom-senso. Afinal de contas, o outono é a melhor época para a bandagem de pés, a primavera é a melhor época para dar à luz, e uma bela colina com uma brisa suave terá o melhor eng shui para cemitério. Mas esse adivinho viu algo em mim, e isso mudou o curso da minha vida. Ainda assim, naquele momento, não houve nenhuma comemoração. A sala estava estranhamente quieta. Algo continuava muito errado.
Nesse silêncio, madame Wang disse:
- A menina é mesmo muito bonita, mas lírios dourados são muito mais importantes na vida do que um rosto bonito. Um rosto bonito é um presente do céu, mas pés pequenos podem melhorar o nível social. Quanto a isso não há a menor dúvida. O que acontece além disso é o pai quem decide. - Ela olhou direto para Baba, mas as palavras que cruzaram o ar foram dirigidas realmente a minha mãe. - Não é assim tão ruim conseguir uma boa aliança para uma filha. Uma família importante trará relações melhores, um melhor preço para a noiva, e uma proteção econômica e política a longo prazo. Embora eu aprecie a hospitalidade e a generosidade que vocês me demonstraram hoje - disse ela, enfatizando a pobreza da nossa casa com um lânguido movimento da mão -, o destino, na forma da sua filha, trouxe-lhes uma oportunidade. Se mamãe fizer o seu trabalho direito, esta menina insignificante poderá casar-se com alguém de uma família de Tongkou.
Tongkou!
- A senhora fala de coisas maravilhosas - disse meu pai cautelosamente. - Mas a nossa família é modesta. Não podemos pagar os seus honorários.
- Velho pai - madame Wang respondeu sem se abalar -, se os pés da sua filha ficarem do jeito que imagino, posso contar com uma quantia generosa por parte da família do noivo. Vocês também receberão um bom pagamento pela noiva. Como podem ver, vocês e eu nos beneficiaremos desse acordo.
Meu pai não disse nada. Ele nunca discutia o que acontecia no campo nem nos revelava os seus sentimentos, no entanto recordei um inverno após um ano de seca em que não tínhamos muita comida estocada. Meu pai foi caçar nas montanhas, mas até os animais tinham morrido de fome. Baba teve de voltar para casa apenas com raízes amargas que minha mãe e minha avó cozinharam para fazer uma sopa. Talvez nesse momento ele estivesse lembrando-se da vergonha daquele ano e imaginando como o meu preço seria alto, e o que isso iria significar para nossa família.
- Além de tudo isso - a casamenteira continuou —, acredito que sua filha também possa ter um relacionamento laotong.
Eu conhecia aquela palavra e sabia o que ela significava. Um relacionamento laotong era completamente diferente de uma irmandade. Ele envolvia duas meninas de aldeias diferentes e durava toda a vida delas, enquanto que uma irmandade era composta de diversas meninas e se dissolvia com o casamento. Nunca em minha curta vida eu tinha conhecido uma laotong nem imaginado que poderia ter uma. Quando meninas, minha mãe e minha tia tiveram irmãs juradas em suas aldeias natais. Irmã Mais Velha tinha irmãs juradas agora, enquanto vovó tinha amigas viúvas da aldeia do seu marido como irmãs juradas da velhice. Eu presumira que no curso natural da minha vida eu também as teria. Ter uma laotong era algo realmente muito especial. Eu devia estar excitada, mas, como todos os outros na sala, estava perplexa. Esse não era um assunto que devesse ser discutido na frente de homens. A situação era tão extraordinária que meu pai não agüentou e exclamou:
- Nenhuma das mulheres da nossa família jamais teve uma laotong.
- A sua família não teve um bocado de coisas, até agora - madame Wang disse, erguendo-se da cadeira. - Discutam essas coisas entre vocês, mas lembrem de que a oportunidade não bate todos os dias na sua porta. Eu-voltarei.
A casamenteira e o adivinho saíram, ambos prometendo voltar para verificar o meu progresso. Minha mãe e eu fomos para cima. Assim que entramos no aposento das mulheres, ela se virou e olhou para mim com a mesma expressão que eu tinha visto na sala. Então, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela me deu um tapa no rosto com toda a força.
- Você sabe o trabalho que isso vai dar ao seu pai? — mamãe perguntou. Palavras duras, mas eu sabia que aquele tapa era para dar sorte e para afastar os maus espíritos. Afinal de contas, nada garantia que os meus pés se tornariam lírios dourados. Era possível que minha mãe cometesse um erro com os meus pés assim como a mãe dela tinha cometido com os seus. Ela fizera um bom trabalho com Irmã Mais Velha, mas tudo podia acontecer. Em vez de ser valorizada, eu poderia me arrastar sobre dois tocos feios, batendo constantemente os braços para manter o equilíbrio, como minha mãe.
Embora meu rosto ardesse, por dentro eu estava feliz. Aquele tapa fora a primeira vez em que mamãe demonstrou seu amor materno, e tive de morder os lábios para não sorrir.
Mamãe não falou comigo pelo resto do dia. Ela desceu e conversou com minha tia, meu tio, meu pai e minha avó. Titio era bondoso, mas, como segundo filho, ele não tinha nenhuma autoridade em nossa casa. Titia sabia dos benefícios que poderiam surgir dessa situação, mas, no papel de mulher casada com um segundo filho e sem nenhum filho homem, ocupava a posição mais inferior na família. Mamãe também não tinha nenhuma posição, mas, considerando a expressão de seu rosto enquanto a casamenteira falava, eu sabia quais seriam os seus pensamentos. Papai e vovó tomavam todas as decisões na casa, embora ambos pudessem ser influenciados. A comunicação da casamenteira, embora um bom presságio para mim, significava que meu pai teria de trabalhar muito para construir um dote apropriado a um casamento num nível social mais alto. Se não concordasse com a decisão da casamenteira, ele ficaria desmoralizado não apenas na aldeia, mas em todo o estado.
Não sei se eles decidiram o meu destino naquele dia, mas na minha mente nunca mais as coisas foram as mesmas. O futuro de Lua Linda também mudou junto com o meu. Eu era alguns meses mais velha do que ela, mas ficou decidido que nós duas teríamos os nossos pés amarrados na mesma época que a Terceira Irmã. Embora eu ainda continuasse a executar as minhas tarefas ao ar livre, nunca mais fui até o rio com meu irmão. Nunca mais senti a frescura da agua contra a minha pele. Até aquele dia mamãe nunca tinha me batido, mas aquela foi apenas a primeira das muitas surras que levei nos anos seguintes. O pior de tudo é que meu pai nunca mais olhou Para mim do mesmo jeito. Nunca mais sentei no colo dele à noite, enquanto ele fumava o seu cachimbo. Em um segundo, eu tinha deixado de ser uma menina sem nenhum valor e me transformado em alguém que poderia ser útil para a família.
Minhas ataduras e os sapatos especiais que minha mãe tinha feito para colocar no altar de Guanyin foram guardados, bem como as ataduras e os sapatos que tinham sido feitos para Lua Linda. Madame Wang começou a fazer visitas periódicas. Ela sempre vinha no seu próprio palanquim. Ela sempre me examinava da cabeça aos pés. Ela sempre me interrogava sobre a minha aprendizagem das coisas da casa. Eu não diria que era gentil comigo. Eu era apenas um meio para ela obter lucro.
No decorrer do ano seguinte, a minha educação no aposento das mulheres começou com grande ansiedade, mas eu já sabia muita coisa. Sabia que os homens raramente entravam no aposento das mulheres; que era um lugar só para nós, onde podíamos fazer nosso trabalho e dividir nossos pensamentos. Eu sabia que iria passar quase a vida inteira num quarto como aquele. E também sabia que a diferença entre nei - o reino interno da casa - e wai - o reino externo dos homens - estava no âmago da sociedade confuciana. Quer você seja rico ou pobre, imperador ou escravo, a esfera doméstica pertence às mulheres e a esfera exterior, aos homens. As mulheres não devem sair dos cômodos internos nem nos seus pensamentos nem nas suas ações. Eu também entendia que dois ideais confucianos regiam nossas vidas. O primeiro eram as Três Obediências: "Quando menina, obedeça ao seu pai; quando esposa, obedeça ao seu marido; quando viúva, obedeça ao seu filho." O segundo eram as Quatro Virtudes, que determinavam o comportamento, o discurso, a postura e a ocupação das mulheres: "Seja casta e obediente, calma e altiva na atitude; seja silenciosa e agradável nas palavras; seja contida e delicada nos movimentos; seja perfeita nos trabalhos manuais e no bordado." Se as meninas não se afastarem desses princípios, elas se transformarão em mulheres virtuosas.
Meus estudos se ampliaram para incluir as artes práticas. Aprendi a enfiar a linha na agulha, escolher a cor de uma linha e a costurar com pontos pequenos e iguais. Isso era importante, uma vez que Lua Linda, Terceira Irmã e eu começamos a trabalhar nos sapatos que usaríamos durante os dois anos do processo de bandagem dos pés. Precisávamos de sapatos para o dia, chinelos especiais para dormir e diversos pares de meias apertadas. Trabalhávamos cronologicamente, começando com coisas que caberiam nos nossos pés agora e passando para tamanhos cada vez menores.
O mais importante: minha tia começou a me ensinar nu shu. Na época, não entendi bem por que ela se interessou particularmente por mim. Tolamente, acreditei que se fosse diligente, inspiraria Lua Linda a ser diligente também. E se ela fosse diligente, talvez fizesse um casamento melhor que o da mãe. Mas minha tia estava na verdade torcendo para trazer a escrita secreta para as nossas vidas, para que Lua Linda e eu pudéssemos compartilhá-la para sempre. Também não percebi que isso causava conflito entre minha tia e minha mãe e minha avó, pois as duas eram analfabetas em nu shu, assim como meu pai e meu tio eram analfabetos na escrita dos homens.
Na época, eu nunca tinha visto a escrita dos homens, de modo que não tinha com o que compará-la. No entanto, agora posso dizer que a escrita dos homens é clara, com cada caractere facilmente contido dentro de um quadrado, enquanto que a nossa nu shu se parece com pernas de mosquito ou pegadas de pássaro na poeira. Ao contrário da escrita dos homens, um caractere nu shu não representa uma palavra específica. Em vez disso, nossos caracteres são de natureza fonética. Por isso, um caractere pode representar cada palavra falada com o mesmo som. Então, embora um caractere possa representar um som que signifique três coisas diferentes, o contexto normalmente deixa claro o significado. Ainda assim, é preciso tomar muito cuidado para não interpretar errado o sentido. Muitas mulheres - como minha mãe e minha avó - nunca aprenderam a escrita, mas mesmo assim conhecem algumas das canções e histórias, muitas das quais ressoam com um ritmo de ta dum, ta dum, ta dum.
Titia me ensinou as regras especiais que regem o nu shu. Ela pode ser usada para escrever cartas, canções, autobiografias, lições acerca de deveres femininos, orações para a deusa e, é claro, histórias populares. Pode ser escrita com pincel e tinta em papel ou num leque, bordada num lenço ou tecida em pano. Pode e deve ser cantada diante de uma platéia de mulheres e meninas, mas pode também ser algo que se lê e se guarda apenas para si. No entanto as duas regras mais importantes são: os homens não podem nunca saber que ela existe e não podem tocar nela de forma alguma.
As coisas continuaram assim - Lua Linda e eu aprendendo novas habilidades todos os dias - até o meu sétimo aniversário, quando o adivinho voltou. Dessa vez, ele tinha de encontrar uma única data para três meninas - para mim, Lua Linda e Terceira Irmã, a única de nós que estava na idade certa -, para iniciar a nossa bandagem. Ele pigarreou e tossiu. Consultou nossos oito caracteres. Depois de tudo isso, contudo, decidiu-se pelo dia típico para as meninas da nossa região - o vigésimo quarto dia do oitavo mês lunar -, quando aquelas que vão ter os pés amarrados rezam e fazem oferendas para a Donzela de Pés Pequenos, a deusa encarregada da bandagem de pés. Mamãe e titia retomaram suas atividades pré-bandagem, produzindo mais faixas. Elas nos alimentaram com bolinhos de feijão para ajudar a amolecer nossos ossos, deixando-os com a mesma consistência dos bolinhos, e para nos inspirar a conseguir para os nossos pés um tamanho igual ao dos bolinhos. Nos dias que precederam o processo de bandagem de nossos pés, muitas mulheres da aldeia vieram visitar-nos no aposento do andar de cima. As irmãs juradas da Irmã Mais Velha nos desejaram sorte, trouxeram doces e nos cumprimentaram pela nossa entrada oficial na condição de mulheres. Sons de comemoração animaram a sala. Todo mundo estava feliz, cantando, conversando. Agora sei que muitas coisas não foram ditas. (Ninguém disse que eu poderia morrer. Foi só quando me mudei para a casa do meu marido que minha sogra me contou que uma em cada dez meninas morrem em decorrência da bandagem, não só no nosso estado, mas em toda a China.)
Tudo o que eu sabia era que a bandagem dos pés me tornaria um partido melhor e, portanto, me aproximaria daquilo que é a maior alegria e a maior paixão da vida de uma mulher - um filho homem. Para tanto, o meu objetivo era conseguir um par de pés perfeitamente contidos com sete atributos distintos: eles deveriam ser pequenos, estreitos, retos, pontudos e arqueados, além de cheirosos e macios. De todos esses atributos, o tamanho é o mais importante,sete centímetros - mais ou menos o tamanho de um polegar - é o ideal. A forma vem em seguida. Um pé perfeito deve ter a forma de um botão de lótus. Ele deve ser cheio e arredondado no calcanhar e formar uma ponta na frente, com todo o peso sustentado apenas pelo dedão. Isso significa que os dedos e o arco do pé devem ser quebrados e entortados para trás para encostar no calcanhar. Finalmente, a fenda formada entre a parte da frente do pé e o calcanhar deve ser profunda o bastante para esconder uma peça grande de cash perpendicularmente em sua dobra. Se eu conseguir isso, minha recompensa será a felicidade.
Na manhã do vigésimo quarto dia do oitavo mês lunar, oferecemos à Donzela de Pés Pequenos bolinhos de arroz, enquanto nossas mães colocavam as miniaturas de sapatos que haviam feito diante de uma pequena estátua de Guanyin. Depois disso, mamãe e titia juntaram alume, adstringente, tesoura, cortadores de unhas especiais, agulhas e linha. Elas esticaram as longas ataduras que tinham feito; cada uma tinha cinco centímetros de largura e três metros de comprimento, e era ligeiramente engomada. Em seguida, todas as mulheres da casa subiram. Irmã Mais Velha chegou por último, com um balde de água fervida com raiz de amoreira, amêndoas moídas, unna, ervas e raízes.
Por ser a mais velha, fui a primeira, e estava determinada a mostrar o quanto era corajosa. Mamãe lavou os meus pés e esfregou-os com alume, para contrair o tecido e limitar as inevitáveis secreções de sangue e pus. Cortou minhas unhas o mais rente possível. Durante esse tempo, minhas ataduras ficaram de molho, para que quando secassem na minha pele ficassem ainda mais apertadas. Em seguida, mamãe pegou uma das pontas de uma atadura, colocou-a na parte de dentro do meu pé, depois puxou-a por cima dos meus quatro dedos menores para iniciar o processo de empurrá-los para baixo. Dali, passou a atadura pelo meu calcanhar. Mais uma volta ao redor do tornozelo para prender e estabilizar as duas primeiras voltas. A idéia era fazer com que os meus dedos se encontrassem com o meu calcanhar, criando a fenda, mas deixando de fora o dedão para eu caminhar sobre ele. Mamãe repetiu esses passos até ter usado a atadura inteira; titia e vovó ficaram olhando por cima do ombro dela o tempo todo, certificando-se de que não havia nenhum vinco no pano. Finalmente, mamãe costurou a ponta bem apertada para que as costuras não afrouxassem e eu não pudesse soltar o pé.
Ela repetiu o processo no meu outro pé; depois titia começou com Lua Linda. Durante a bandagem, Terceira Irmã disse que queria beber água e desceu. Depois que os pés de Lua Linda estavam amarrados, mamãe chamou a minha irmã, mas ela não respondeu. Uma hora antes, teriam dito para eu ir procurá-la, mas nos dois anos seguintes eu não teria permissão para descer as escadas. Mamãe e titia procuraram pela casa inteira e depois foram para o lado de fora. Eu quis correr até a janela para espiar, mas os meus pés já estavam doendo por causa da pressão nos ossos e porque as ataduras apertadas estavam bloqueando a circulação do sangue. Olhei para Lua Linda, e seu rosto estava tão branco quanto o seu nome dava a entender. As lágrimas rolavam pelo seu rosto.
Do lado de fora, as vozes de mamãe e titia chegaram até nós.
- Terceira Irmã, Terceira Irmã.
Vovó e Irmã Mais Velha foram até a janela e olharam para fora.
- Aiya - vovó resmungou. Irmã Mais Velha olhou para nós.
- Mamãe e titia estão na casa dos vizinhos. Vocês podem ouvir Terceira Irmã gritando?
Lua Linda e eu sacudimos negativamente a cabeça.
- Mamãe está arrastando Terceira Irmã pelo beco - Irmã Mais Velha relatou.
Então ouvimos Terceira Irmã gritar:
- Não, eu não vou, não quero fazer isso! Mamãe ralhou com ela bem alto:
- Você é uma inútil. É uma vergonha para os nossos antepassados. - Essas eram palavras duras, mas não incomuns; eram ouvidas quase todos os dias na nossa aldeia.
Terceira Irmã foi empurrada para dentro do quarto, mas, assim que caiu no chão, se levantou, correu para um canto e ficou lá, toda encolhida.
- Isso vai acontecer. Você não tem escolha - mamãe declarou, enquanto os olhos de Terceira Irmã examinavam nervosamente o quarto, procurando um lugar para se esconder. Ela estava acuada, e nada poderia impedir o inevitável. Mamãe e titia avançaram em sua direção. Ela fez um último esforço para escapar por baixo dos braços delas, mas Irmã Mais Velha agarrou-a. Terceira Irmã tinha apenas seis anos, mas lutou o máximo que pôde. Irmã Mais Velha, titia e vovó a seguraram enquanto mamãe colocava rapidamente as ataduras. Terceira Irmã gritou o tempo todo. Conseguiu soltar um dos braços algumas vezes, mas foi contida. Por um segundo, mamãe deixou escapar o pé de Terceira Irmã, e logo ela estava sacudindo a perna inteira e a faixa balançou no ar como se fosse a fita de um acrobata. Lua Linda e eu ficamos horrorizadas. Isso não era maneira de alguém da nossa família se comportar. Mas só pudemos ficar olhando, porque, nessa altura, pontadas de dor subiam de nossos pés para nossas pernas. Finalmente, mamãe terminou sua tarefa. Ela atirou o pé de Terceira Irmã no chão, ficou de pé, olhou para a a filha mais moça com desprezo e pronunciou uma única palavra:
- Inútil!
Agora vou escrever sobre os minutos e semanas seguintes, um espaço de tempo que, numa vida longa como a minha, deveria ser insignificante, mas que para mim foi uma eternidade.
Mamãe olhou para mim primeiro porque eu era a mais velha.
-Levante-se!
A idéia estava além da minha compreensão. Meus pés latejavam. Poucos minutos antes eu estava tão segura da minha coragem. Agora fiz o possível para conter as lágrimas, mas não consegui.
Titia bateu no ombro de Lua Linda.
- Levante-se e ande.
Terceira Irmã ainda estava no chão, soluçando.
Mamãe arrancou-me da cadeira. A palavra dor não descreve o que eu estava sentindo. Meus dedos estavam presos sob meus pés, de modo que todo o peso do meu corpo caía sobre eles. Tentei me equilibrar sobre os calcanhares. Quando mamãe viu, me bateu.
-Anda!
Fiz o melhor que pude. Enquanto me arrastava em direção à janela, mamãe pôs Terceira Irmã de pé, arrastou-a até Irmã Mais Velha e disse:
- Faça-a caminhar dez vezes de um lado para outro do quarto. -Ao ouvir isso, compreendi o que me aguardava, e foi algo quase inimaginável. Quando viu o que estava acontecendo, e sendo a pessoa de posto mais inferior na casa, minha tia pegou a mão da filha com brutalidade e tirou-a da cadeira. Lágrimas corriam pelo meu rosto enquanto mamãe me fazia caminhar de um lado para outro no aposento das mulheres. Ouvi os meus soluços. Terceira Irmã continuava gritando e tentando escapar de Irmã Mais Velha. Vovó, cujo dever como pessoa mais importante da família era simplesmente supervisionar essas atividades, pegou o outro braço de Terceira Irmã. Ladeado por duas pessoas mais fortes do que ela, o corpo de Terceira Irmã teve de obedecer, mas isso não significa que suas queixas tenham diminuído. Só Lua Linda sufocou seus sentimentos, provando ser uma boa filha, mesmo ocupando um lugar sem importância na família.
Depois de dez voltas, mamãe, titia e vovó nos deixaram sozinhas. Nós três estávamos praticamente paralisadas de dor, mas nossa provação tinha apenas começado. Não conseguimos comer. Mesmo com os estômagos vazios, vomitamos de dor. Finalmente, todos na casa foram dormir. Que alívio foi deitar. Só o fato de ter os pés no mesmo nível que o resto do corpo foi um alívio. Com o passar das horas, porém, um novo tipo de sofrimento tomou conta de nós. Nossos pés ardiam como se estivessem pousados sobre carvão em brasa. Estranhos gemidos escapavam de nossas bocas. A pobre da Irmã Mais Velha tinha de dividir o quarto conosco. Ela tentou nos consolar de todas as maneiras, contando histórias de fadas e lembrando do modo mais gentil possível que todas as meninas, de todas as classes sociais, no imenso território da China, passavam pelo que estávamos passando para se tornarem mulheres, esposas e mães de valor.
Nenhuma de nós dormiu aquela noite, mas, por pior que nos sentíssemos no primeiro dia, o segundo foi duas vezes pior. Nós três tentamos rasgar as ataduras, mas só Terceira Irmã conseguiu soltar um dos pés. Mamãe bateu nos braços e nas pernas dela, tornou a amarrar seu pé e obrigou-a a dar dez voltas extras no quarto como castigo. Mamãe sacudiu-a diversas vezes e perguntou:
- Você quer se tornar uma pequena nora? Ainda não é tarde demais. Esse pode ser o seu futuro.
A vida inteira tínhamos ouvido essa ameaça, mas nenhuma de nós jamais tinha visto uma pequena nora. Puwei era pobre demais para as pessoas aceitarem uma menina indesejada, teimosa, de pés grandes, mas também nunca tínhamos visto um espírito de raposa, e acreditávamos piamente nele. Então mamãe ameaçou, e Terceira Irmã rendeu-se temporariamente.
No quarto dia, pusemos nossos pés de molho num balde de água quente. As ataduras foram então removidas, e mamãe e titia checaram nossas unhas, rasparam calos, retiraram a pele morta com uma escova, esfregaram mais alume e perfume para disfarçar o cheiro da carne apodrecida, e puseram ataduras novas, ainda mais apertadas. Todo dia a mesma coisa. A cada quatro dias a mesma coisa. A cada duas semanas um novo par de sapatos, cada par menor que o anterior. As mulheres da vizinhança vinham nos visitar, trazendo bolinhos de feijão, na esperança de que nossos ossos amolecessem mais depressa, ou então pimentas secas, na esperança de que nossos pés adquirissem aquela forma fina e pontuda. As irmãs juradas de Irmã Mais Velha chegaram com presentes que as haviam ajudado durante a bandagem dos pés. "Mordam o cabo do meu pincel de caligrafia. A ponta é fina e delicada. Isso vai ajudar seus pés a se tornarem finos e delicados também." Ou então: "Comam essas castanhas. Elas vão dizer à sua carne para pensar pequeno."
O aposento das mulheres transformou-se num quarto de disciplina. Em vez de fazermos as nossas tarefas normais, caminhávamos de um lado para outro pelo quarto. Todo dia, mamãe e titia aumentavam o número de voltas pelo quarto. Todo dia, vovó era chamada para ajudar. Quando se cansava, ela descansava numa das camas e dirigia as nossas atividades dali. Quando esfriava, ela se cobria com mais edredons. Conforme os dias foram ficando mais curtos e mais escuros, suas palavras também foram ficando mais curtas e mais escuras, até que ela passou a falar muito raramente, limitando-se a olhar fixamente para Terceira Irmã, ordenando-lhe com os olhos a cumprir o número de voltas.
Para nós, a dor não diminuiu. Como poderia? Aprendemos, contudo, a lição mais importante para todas as mulheres: que temos de obedecer para o nosso próprio bem. Mesmo naquelas primeiras semanas, começou a formar-se uma imagem de como nós três seríamos como mulheres. Lua Linda ia ser estóica e linda sob qualquer circunstância. Terceira Irmã ia ser uma esposa queixosa, amarga com relação à sua sorte, insatisfeita com os presentes que recebesse. Quanto a mim - dita especial —, eu aceitaria o meu destino sem reclamar.
Um dia, ao cruzar o quarto, ouvi algo se partir. Um dos meus dedos tinha se quebrado. Achei que o som era algo interno no meu corpo, mas foi tão violento que todo mundo que estava no aposento das mulheres ouviu. Minha mãe olhou firme para mim.
- Continue andando. Finalmente houve algum progresso!
Ao caminhar, o meu corpo inteiro tremia. A noite, os oito dedos que precisavam ser quebrados tinham se quebrado, mas mesmo assim tive de continuar andando. Sentia os dedos quebrados a cada passo que dava, pois eles estavam soltos dentro dos meus sapatos. O espaço recém-criado, onde antes tinha existido uma articulação, era agora uma massa gelatinosa e torturante. O tempo gelado não anestesiou as dores que percorriam todo o meu corpo. Ainda assim, mamãe não estava satisfeita com meu desempenho. Naquela noite, ela disse a Irmão Mais Velho para cortar uma vara na beira do rio. Nos dois dias seguintes, ela usou a vara na parte de trás das minhas pernas para me fazer andar sem parar. No dia em que as minhas ata-duras foram substituídas, encharquei os pés como sempre, mas dessa vez a massagem para remodelar os ossos foi além de tudo o que eu já tinha experimentado até então. Com os dedos, mamãe puxou os meus ossos soltos para trás e para cima, contra as solas dos meus pés. Em nenhuma outra ocasião, vi com tanta clareza o amor mater-nal de mamãe.
- Uma verdadeira dama não deixa entrar nenhuma indignidade em sua vida - repetia ela sem parar, fazendo as palavras penetrarem em mim. - Só pela dor você conseguirá a beleza. Só pelo sofrimento encontrará a paz. Eu enrolo, amarro, mas você receberá a recompensa.
Os dedos de Lua Linda se quebraram alguns dias depois, mas os ossos de Terceira Irmã recusaram-se a quebrar. Mamãe fez outra encomenda a Irmão Mais Velho. Dessa vez, ele precisava encontrar pedras pequenas que pudessem ser amarradas aos dedos de Terceira Irmã para fazer mais pressão sobre eles. Eu já disse que ela era resistente, mas agora seus gritos eram ainda mais altos, se é que uma coisa dessas é possível. Lua Linda e eu achamos que ela reagia assim porque queria mais atenção. Afinal de contas, mamãe estava dedicando seus esforços quase que só para mim. Mas, nos dias em que nossas ataduras eram removidas, podíamos ver diferenças entre os nossos pés e os de Terceira Irmã. Sim, sangue e pus vazavam pelas nossas ataduras, como era normal, mas os fluidos que escorriam do corpo dela tinham um cheiro novo e diferente. E, enquanto a minha pele e a de Lua Linda tinham adquirido a palidez da morte, a pele de Terceira Irmã estava cor-de-rosa.
Madame Wang veio fazer outra visita. Examinou o trabalho que minha mãe tinha feito e recomendou algumas ervas que poderiam ser tomadas em forma de chá, para aliviar a dor. Só experimentei aquela bebida amarga quando a neve começou a cair e os ossos de meu pé se partiram. Minha mente estava enevoada devido a uma combinação de dor e ervas, quando o estado de Terceira Irmã repentinamente se alterou. A pele dela queimava. Seus olhos brilhavam de febre e o rosto redondo murchou. Quando mamãe e titia desceram para preparar o almoço, Irmã Mais Velha teve pena de sua pobre irmã e deixou que ela se deitasse em uma das camas. Lua Linda e eu fizemos uma pausa na nossa caminhada ao redor do quarto. Com medo de sermos apanhadas sentadas, ficamos de pé ao lado de Terceira Irmã. Irmã Mais Velha esfregou as pernas de Terceira Irmã, tentando proporcionar-lhe algum alívio. No entanto, estávamos em pleno inverno e usávamos nossas roupas mais acolchoadas. Com nossa ajuda, Irmã Mais Velha ergueu a calça de Terceira Irmã até o joelho para poder massagear a perna diretamente. Foi quando vimos as terríveis estrias vermelhas que subiam por suas pernas e desapareciam sob suas calças. Nós nos entreolhamos por um momento e depois examinamos rapidamente a outra perna. As mesmas estrias vermelhas estavam lá também.
Irmã Mais Velha desceu. Para contar o que havíamos descoberto, ela tinha de confessar que não havia cumprido com sua obrigação. Achamos que mamãe iria bater nela. Mas não. Mamãe e titia subiram imediatamente. Pararam no alto da escada e contemplaram a cena: Terceira Irmã olhando para o teto com suas pequenas pernas expostas, duas outras meninas esperando amedrontadas pelo castigo, e vovó dormindo debaixo dos edredons. Titia deu uma única olhada para o quarto e foi ferver água.
Mamãe foi até a cama. Ela estava sem a bengala e caminhou pelo quarto como um pássaro de asas quebradas, incapaz de ajudar a própria filha. Assim que titia voltou, mamãe começou a retirar as ataduras. Um cheiro nauseabundo tomou conta do quarto. Titia quase vomitou. Embora estivesse nevando, Irmã Mais Velha rasgou o papel de arroz que cobria as janelas para o fedor sair. Finalmente, os pés de Terceira Irmã ficaram expostos. O pus era verde-escuro, e o sangue havia coagulado numa lama marrom e pútrida. Terceira Irmã foi posta sentada na cama e seus pés foram mergulhados na água quente. Ela estava tão fora de si que nem gritou.
Todos os gritos de Terceira Irmã nas semanas anteriores adquiriram um novo significado. Será que ela soube naquele primeiro dia que alguma coisa ruim poderia acontecer? Foi por isso que ela resistiu? Será que mamãe, na sua pressa, tinha cometido algum erro terrível? Será que o envenenamento do sangue de Terceira Irmã tinha sido causado pelas dobras em suas ataduras? Será que ela estava fraca por causa da desnutrição, como madame Wang havia dito a meu respeito? O que ela teria feito na sua vida anterior para merecer tal castigo?
Mamãe esfregou os pés dela, tentando remover a infecção. Terceira Irmã desmaiou. A água do balde ficou enlameada de pus. Finalmente, mamãe tirou os membros quebrados do balde e enxugou-os.
- Mãe - mamãe apelou para a sogra -, a senhora tem mais experiência do que eu. Por favor, me ajude.
Mas vovó não se mexeu debaixo dos edredons. Mamãe e titia discordaram sobre o que deveria ser feito em seguida.
- Nós devemos deixar os pés dela livres para tomar ar - mamãe sugeriu.
- Você sabe que essa é a pior coisa a fazer - titia retrucou. - Muitos dos ossos dela já estão quebrados. Se você não amarrá-los, nunca vão sarar direito. Ela vai ficar aleijada. Não vai poder casar.
- Prefiro mantê-la neste mundo solteira do que perdê-la para sempre.
- Então ela não terá nenhum propósito e nenhum valor - titia argumentou. - Como mãe, você sabe que ela não terá nenhum futuro.
Enquanto elas discutiam, Terceira Irmã permaneceu imóvel. Esfregaram alume em sua pele e tornaram a amarrar seus pés. No dia seguinte, a neve continuava caindo e ela estava pior. Embora não fôssemos ricos, Baba saiu no meio da tempestade e trouxe com ele o médico da aldeia, que olhou para Terceira Irmã e sacudiu a cabeça.
Foi a primeira vez que eu vi esse gesto, que significa que somos incapazes de impedir que a alma de um ente querido parta para o mundo dos espíritos. Você pode lutar contra ela, mas, depois que a morte agarra firme, não há nada que se possa fazer. Somos impotentes diante dos desígnios do outro mundo. O médico se ofereceu para fazer um cataplasma e preparar ervas para um chá, mas era um homem bom e honesto. Ele compreendeu a nossa situação.
- Posso fazer essas coisas para a sua menininha - disse ele a Baba —, mas será gastar dinheiro numa causa perdida.
Essas, porém, não foram as únicas más notícias do dia. Enquanto nos ajoelhávamos para fazer uma reverência para o médico, ele olhou em volta e viu vovó sob os edredons. Aproximou-se dela, pôs a mão em sua testa e tomou os pulsos secretos que mediam o seu chi. Ele olhou para meu pai.
- Sua honrada mãe está muito doente. Por que não mencionou isso antes?
Como Baba poderia responder sem ficar numa situação difícil? Ele era um bom filho, mas também era um homem, e essa questão estava relacionada ao mundo interior. Ainda assim, o bem-estar de vovó era seu mais importante dever filial. Enquanto ele estava no andar de baixo fumando o seu cachimbo junto com o irmão e esperando que o inverno terminasse, no andar de cima duas pessoas tinham sido enfeitiçadas pelos espíritos.
Mais uma vez, nossa família inteira se questionou. Haviam gasto tempo demais com meninas sem nenhum valor e permitido que a única mulher de valor e apreço em nossa casa se enfraquecesse? Será que todo aquele afã de andar de um lado para outro com Terceira Irmã havia gasto todos os passos de vovó? Será que vovó -cansada dos gritos de Terceira Irmã - tinha fechado o seu chi para não ouvir o barulho? Será que os espíritos que vieram roubar Terceira Irmã tinham ficado tentados com a possibilidade de mais uma vítima?
Depois de tanto barulho e de toda a atenção dispensada nas últimas semanas a Terceira Irmã, todo o foco concentrou-se em vovó.
Meu pai e meu tio só saíam do lado dela para fumar, comer e fazer suas necessidades. Titia assumiu todas as tarefas da casa, preparando comida, lavando e cuidando de todos nós. Nunca vi mamãe dormir. Como primeira nora, tinha dois objetivos principais na vida: gerar filhos homens para dar continuidade à família e cuidar da mãe de seu marido. Ela deveria ter cuidado melhor da saúde de vovó. Em vez disso, ela permitira que a ambição masculina penetrasse em sua mente e desviasse sua atenção para mim e meu futuro sorridente. Agora, com a feroz determinação provocada pela negligência anterior, ela executou todos os rituais prescritos, preparando oferendas especiais para os deuses e para os nossos antepassados, rezando e entoando cânticos, chegando até a fazer sopa do seu próprio sangue para restaurar a força vital de vovó.
Já que todos estavam ocupados com vovó, Lua Linda e eu fomos encarregadas de velar por Terceira Irmã. Tínhamos apenas sete anos, e não conhecíamos nem palavras nem ações que pudessem confortá-la. Seu tormento era grande, mas não foi o pior que eu iria presenciar em minha vida. Ela morreu quatro dias depois, suportando mais dor e sofrimento do que merecia em sua curta vida. Vovó morreu um dia depois dela. Ninguém a viu sofrer. Ela simplesmente foi se enroscando e ficando cada vez menor, como um lagarto sob um cobertor de folhas outonais.
O chão estava duro demais para se fazer o enterro. As duas irmãs juradas ainda vivas de vovó cuidaram dela, cantaram canções de luto, envolveram seu corpo em gaze e a vestiram para a vida no outro mundo. Ela era uma mulher velha, que tinha vivido uma vida longa, Portanto suas roupas para a eternidade possuíam muitas camadas. Terceira Irmã tinha apenas seis anos. E não tinha uma vida inteira de roupas para mantê-la aquecida nem muitas amigas para recebê-la no outro mundo. Possuía apenas a roupa de inverno e a roupa de verão, e mesmo essas tinham sido usadas antes por Irmã Mais Velha e por mim. Vovó e Terceira Irmã passaram o resto do inverno sob uma mortalha de neve.
Eu diria que, entre a morte de vovó e Terceira Irmã e o enterro delas, muita coisa mudou no aposento das mulheres. Ah, ainda fazíamos nossas caminhadas. Ainda banhávamos nossos pés a cada quatro dias e trocávamos nossos sapatos por outros menores a cada duas semanas. Agora, contudo, mamãe e titia nos vigiavam com grande atenção. E nós também estávamos atentas, sem nunca resistir ou reclamar. Quando chegava a hora de banhar os pés, tanto os nossos olhos quanto os de mamãe e titia fixavam-se no sangue e no pus. Toda noite, depois que éramos finalmente deixadas sozinhas, e toda manhã antes da nossa rotina recomeçar, Irmã Mais Velha examinava nossas pernas para certificar-se de que não estávamos desenvolvendo uma infecção grave.
Costumo pensar muito naqueles primeiros meses do processo de bandagem dos pés. Eu me lembro de como mamãe, titia, vovó e até mesmo Irmã Mais Velha costumavam recitar algumas frases para nos encorajar. Uma delas era: "Case-se com um frango, fique com um frango; case-se com um galo, fique com um galo." Como acontecia com tantas outras coisas na época, eu ouvia aquelas palavras, mas não compreendia o significado delas. O tamanho do meu pé iria determinar meu valor como esposa. Meus pés pequenos seriam oferecidos aos meus futuros sogros como prova de minha disciplina e de minha capacidade para suportar a dor do parto, além de todos os outros infortúnios que poderiam me aguardar. Meus pés pequenos iriam mostrar ao mundo a minha obediência à família, particularmente à minha mãe, o que também causaria uma boa impressão na minha futura sogra. Os sapatos que bordei iriam simbolizar para os meus futuros sogros a minha habilidade no bordado, bem como nas demais tarefas domésticas. E, embora eu não soubesse de nada disso na época, meus pés iriam atrair o fascínio de meu marido nos momentos mais íntimos e particulares que ocorrem entre um homem e uma mulher. O desejo que ele tinha de vê-los e segurá-los nunca diminuiu durante a nossa vida conjugal, nem depois de eu ter cinco filhos, nem depois que o resto do meu corpo deixou de ser atraente na cama.
O leque
Passaram-se seis meses do início da bandagem de nossos pés, dois meses da morte de vovó e de Terceira Irmã. A neve derreteu, a terra amoleceu e vovó e Terceira Irmã foram preparadas para serem enterradas. Há três eventos na vida dos Yao - não, na vida de todos os chineses - em que se gasta dinheiro: nascimento, casamento e morte. Todos desejamos nascer bem e casar bem; todos desejamos morrer bem e ser bem enterrados. Mas o destino e as circunstâncias práticas influenciam esses três eventos mais do que qualquer outro. Vovó era a matriarca e tinha vivido uma vida exemplar; Irmã Mais Moça não tinha realizado nada. Baba e titio juntaram todo o dinheiro que tinham para comprar um bom caixão em Shangjiangxu para vovó. Baba e titio fizeram um caixãozinho para Terceira Irmã. As irmãs juradas de vovó vieram de novo, e finalmente realizamos o funeral.
Mais uma vez, vi o quanto éramos pobres. Se tivéssemos mais dinheiro, talvez Baba tivesse construído um arco de viúva para celebrar a vida de vovó. Talvez ele tivesse usado o adivinho para encontrar um local propício com os melhores elementos de feng shui para seu enterro ou alugado um palanquim para transportar a filha e a sobrinha, que ainda não podiam andar muito depressa, até o local do enterro. Essas coisas não foram possíveis. Mamãe carregou-me nas costas, e titia carregou Lua Linda. Nossa procissão muito simples foi até um lugar não muito longe da casa, ainda em terra arrendada por nós. Baba e titio ajoelharam-se e fizeram três reverências seguidas, repetindo várias vezes esse procedimento. Mamãe deitou-se sobre os túmulos e implorou perdão. Queimamos dinheiro de papel, mas nenhum outro presente além de doces foi dado às pessoas que acompanharam o enterro.
Embora vovó não soubesse ler nu shu, ela ainda tinha os livros de terceiro dia de casamento que ganhara ao se casar, muitos anos antes. Estes, junto com uns poucos outros tesouros, foram reunidos por suas duas irmãs juradas da velhice e queimados em seu túmulo para que as palavras pudessem acompanhá-la até o outro mundo. Elas entoaram juntas: "Esperamos que você encontre suas outras irmãs juradas. Vocês três serão felizes. Não se esqueçam de nós. Os laços entre nós continuam presentes mesmo que a raiz de lótus tenha sido cortada. Tal é a força e a longevidade de nosso relacionamento." Nada foi dito sobre Terceira Irmã. Nem mesmo Irmão Mais Velho teve alguma mensagem para dar. Uma vez que ela não tinha deixado nada escrito, titia, Irmã Mais Velha, Lua Linda e eu escrevemos mensagens em nu shu para as apresentarmos aos nossos antepassados, e em seguida as queimamos.
Embora ainda estivéssemos no início do período de três anos de luto por vovó, a vida continuou. A parte pior da bandagem de meus pés já tinha ficado para trás. Minha mãe já não precisava me bater tanto, e a dor causada pela bandagem tinha diminuído. Agora, a melhor coisa para mim e Lua Linda era sentar e deixar que nossos pés adquirissem sua nova forma. De manhã cedo, nós duas - sob a supervisão de Irmã Mais Velha - praticávamos novos pontos de bordado. No final da manhã, mamãe me ensinava a fiar; no início da tarde, tecíamos. Lua Linda e sua mãe faziam a mesma coisa, só que no sentido inverso. Os finais de tarde eram dedicados ao estudo de nu shu, e titia nos ensinava palavras simples com paciência e muito senso de humor.
Sem ter de supervisionar a bandagem dos pés de Terceira Irmã, Irmã Mais Velha, agora com onze anos, retomou seus estudos de artes femininas. Madame Gao, a casamenteira local, vinha regularmente para negociar o Contratar uma Família, o primeiro dos cinco estágios do processo de matrimônio de Irmão Mais Velho e Irmã Mais Velha. Uma menina de uma família muito semelhante à nossa tinha sido encontrada em Gaojia, aldeia natal de madame Gao, para se casar com Irmão Mais Velho. Isso era uma boa coisa para a nora em potencial, porque madame Gao fazia tantos negócios entre as duas aldeias que cartas em nu shu poderiam ser trocadas com regularidade entre elas. Além disso, titia tinha vindo de Gaojia. Agora ela poderia comunicar-se mais facilmente com a família. Ela ficou tão contente que durante dias todo mundo pôde enxergar a enorme caverna de sua boca com todos os dentes tortos, de tanto que ela sorria.
Irmã Mais Velha, considerada por todos que a conheciam como uma menina quieta e bonita, ia entrar para uma família melhor do que a nossa e morar na distante aldeia de Getan. Ficamos tristes porque não a veríamos com tanta freqüência quanto gostaríamos, mas ainda teríamos sua companhia por mais seis anos antes do casamento propriamente dito e por mais dois ou três antes que ela nos deixasse para sempre. No nosso país, como se sabe muito bem, seguimos o costume de buluofujia: só nos mudamos definitivamente para a casa de nossos maridos quando ficamos grávidas.
Madame Gao não era nada parecida com madame Wang. A melhor palavra para descrevê-la é rude. Enquanto madame Wang usava seda, madame Gao usava algodão tecido em casa. Enquanto as palavras de madame Wang eram escorregadias como gordura de ganso, os sentimentos de madame Gao eram tão abrasivos quanto os latidos de um cachorro da aldeia. Ela chegava no aposento das mulheres, empoleirava-se num banquinho e pedia para ver os pés de todas as meninas da família Yi. É claro que Irmã Mais Velha e Lua Linda obedeciam. Mas, embora o meu destino já estivesse entregue a madame Wang, mamãe dizia que eu devia mostrar meus pés também. As coisas que madame Gao dizia! "A fenda é tão funda quanto as dobras internas dessa menina. Ela vai fazer do marido um homem feliz." Ou então: "O modo como o calcanhar dela se curva para baixo como um saco com a parte da frente do pé apontada para fora vai fazer o marido pensar no próprio membro. Esse homem sortudo vai passar o dia inteiro pensando em coisas de cama." Na época, eu não entendia o que ela estava dizendo. Quando passei a entender, fiquei envergonhada por essas coisas terem sido ditas na frente de mamãe e titia. Mas elas tinham rido junto com a casamenteira. Nós três ríamos junto com elas, mas, como eu disse, aquelas palavras e seu significado estavam muito além de nosso conhecimento e de nossa experiência.
Naquele ano, no oitavo dia do quarto mês lunar, as irmãs juradas de Irmã Mais Velha reuniram-se para o Dia da Briga de Touros. As cinco meninas já estavam demonstrando que iriam dirigir muito bem suas futuras casas, arrendando o arroz que suas famílias tinham dado a elas para formar a irmandade e usando o dinheiro para financiar suas festas. Cada menina trouxe um prato de casa: sopa de macarrão, folhas de beterraba com conserva de ovo, pés de porco com molho de pimenta, vagem em conserva e bolos de arroz-doce. Muita coisa era preparada em conjunto também, com todas as meninas enrolando bolinhos, que eram cozidos no vapor e depois mergulhados em molho de soja misturado com suco de limão e óleo de pimenta. Elas comiam, riam e contavam histórias em nu shu, como "A história de Sangu", em que a filha de um homem rico permanece leal ao marido pobre através de muitos altos e baixos até eles serem recompensados por sua fidelidade, tornando-se mandarins; ou "A carpa fada", em que um peixe se transforma numa linda moça que se apaixona por um sábio e tem sua verdadeira forma revelada.
A preferida delas, no entanto, era "A história da mulher que tinha três irmãos". Elas não sabiam a história toda, e não pediram a mamãe para conduzir as perguntas e respostas, embora ela tivesse decorado muitas das palavras. Em vez disso, pediram a titia para guiá-las pela história. Lua Linda e eu nos juntamos a elas nesse pedido, porque aquela história verdadeira tão apreciada - trágica e engraçada ao mesmo tempo - era uma boa oportunidade de praticarmos a declamação associada à escrita especial das mulheres.
Uma das irmãs juradas de titia tinha passado a história para ela, bordada num lenço. Titia pegou o paninho e o abriu cuidadosamente. Lua Linda e eu fomos nos sentar perto dela para seguir os caracteres bordados enquanto ela declamava:
- Era uma vez uma mulher que tinha três irmãos - começou minha tia. - Todos eles tinham esposas, mas ela não era casada. Embora fosse virtuosa e trabalhadeira, seus irmãos não lhe davam um dote. Como ela era infeliz! O que ela irá fazer?
- Ela é tão infeliz que vai até o jardim e se enforca numa árvore - respondeu minha mãe.
Lua Linda, minhas duas irmãs, as irmãs juradas e eu dissemos em coro:
- O irmão mais velho atravessa o jardim e finge que não a vê. O segundo irmão atravessa o jardim e finge não ver que ela está morta. O terceiro irmão a vê, começa a chorar e leva o corpo para dentro.
Do outro lado da sala, mamãe levantou os olhos e me viu olhando para ela. Ela sorriu, contente talvez por eu não ter errado nenhuma palavra.
Titia recomeçou o ciclo da história:
- Era uma vez uma mulher que tinha três irmãos. Quando ela morreu, ninguém quis cuidar do seu corpo. Embora ela tivesse sido virtuosa e trabalhadeira, seus irmãos se recusaram a tratar dela. Que crueldade! O que vai acontecer?
- Ela é tão ignorada na morte quanto o foi em vida, até seu corpo começar a feder - mamãe declamou.
Mais uma vez, nós, meninas, recitamos o coro:
- O irmão mais velho dá um pedaço de pano para cobrir o seu corpo. O segundo irmão dá dois pedaços de pano. O terceiro irmão envolve o corpo dela com o máximo possível de roupas para ela ficar aquecida no outro mundo.
- Era uma vez uma mulher que tinha três irmãos - titia continuou. - Agora vestida para o seu futuro como espírito, seus irmãos não querem gastar dinheiro num caixão. Embora ela fosse virtuosa e trabalhadeira, seus irmãos são pão-duros. Que injustiça! Será que algum dia ela terá descanso?
- Bem sozinha, bem sozinha - mamãe declamou -, ela planeja seus dias de assombração.
Titia usava o dedo para nos indicar cada caractere escrito, e nós tentávamos acompanhar, embora não fôssemos fluentes o bastante para identificar a maioria dos caracteres.
- O irmão mais velho diz: "Nós não precisamos enterrá-la num caixão. Ela está muito bem assim." O segundo irmão diz: "Nós podemos usar aquela caixa velha que está no barracão." O terceiro irmão diz: "Este é todo o dinheiro que tenho. Vou comprar um caixão para ela."
Quando nos aproximamos do fim, o ritmo da história mudou. Titia entoou:
- Era uma vez uma mulher que tinha três irmãos. Eles chegaram até aqui, mas o que vai acontecer com Irmã agora? Irmão Mais Velho: um espírito mesquinho; Segundo Irmão: frio de coração; mas com Terceiro Irmão o amor pode vencer.
As irmãs juradas deixaram Lua Linda e eu terminarmos a história:
- Irmão Mais Velho diz: "Vamos enterrá-la aqui perto do caminho dos búfalos" (o que significava que ela seria pisada por toda a eternidade). Segundo Irmão diz: "Vamos enterrá-la debaixo da ponte" (o que significava que ela seria levada pela correnteza). Mas Terceiro Irmão, bom de coração, diz: "Nós vamos enterrá-la atrás da casa para que todo mundo se lembre dela." No fim, Irmã, que teve uma vida infeliz, encontrou grande felicidade no outro mundo.
Eu adorava essa história. Era divertido recitá-la junto com mamãe e as outras, mas, depois das mortes de minha avó e minha irmã, entendi melhor suas mensagens. A história me mostrou como o valor dado a uma menina - ou a uma mulher - podia variar de pessoa para pessoa. Ela também ensinava como cuidar de um ente querido após a morte - como um corpo devia ser manipulado, quais eram as roupas apropriadas, onde alguém devia ser enterrado. Minha família tinha feito o possível para seguir essas regras, e um dia eu iria segui-las também, depois de me tornar esposa e mãe.
No dia seguinte ao Dia da Briga de Touros, madame Wang voltou. Eu passara a odiar suas visitas, porque sempre significavam mais ansiedade para a família. É claro que todos estavam felizes com a perspectiva de um bom casamento para Irmã Mais velha. É claro que todos estavam encantados com o fato de que Irmão Mais Velho também iria se casar e que nossa casa iria ter a sua primeira nora. Entretanto, também tínhamos acabado de ter dois funerais em casa. Deixando a emoção de lado, todos esses eventos, alegres e tristes, significavam arcar com a despesa de dois casamentos e dois funerais. A pressão em cima de mim para eu fazer um bom casamento tinha adquirido outro significado. Tratava-se da nossa sobrevivência.
Madame Wang subiu para o aposento das mulheres, examinou educadamente o bordado de Irmã Mais Velha e elogiou-a por seus atributos artísticos. Depois sentou-se num banquinho, de costas para a janela. Ela não olhou na minha direção. Mamãe, que estava apenas começando a entender sua nova posição como a mulher mais importante da casa, fez sinal para titia buscar o chá. Enquanto o chá não chegava, madame Wang falou sobre o tempo, sobre os planos para a próxima feira, sobre um carregamento de mercadorias que havia chegado de Guilin pelo rio. Depois de servido o chá, madame Wang começou a tratar de negócios:
- Prezada mãe - começou ela -, já discutimos antes algumas das possibilidades com relação ao futuro da sua filha. Um casamento numa boa família da aldeia Tongkou parece coisa certa. - Ela se inclinou para a frente e confidenciou: - Eu já fiz alguns contatos lá. Dentro de poucos anos virei visitar você e seu marido para Contratar uma Família. - Ela voltou a esticar o corpo e pigarreou. - Hoje, porém, vim sugerir outro tipo de aliança. Como você deve se lembrar, no dia em que nos conhecemos vi em Lírio a chance de se tor-nar uma laotong. - Madame Wang esperou que isso ficasse bem entendido antes de continuar: - A aldeia Tongkou fica a quarenta e cinco minutos daqui, a pé. A maioria das famílias de lá pertence ao clã Lu. Existe uma laotong potencial para Lírio nesse clã. O nome da menina é Flor da Neve.
A primeira pergunta de mamãe mostrou a mim e a todas as outras pessoas que estavam ali não só que ela não tinha esquecido o que madame Wang havia sugerido em sua primeira visita, mas que havia refletido sobre essa possibilidade desde então.
- E quanto aos oito atributos? - mamãe perguntou, com uma voz doce que não disfarçava em nada sua determinação. - Não vejo razão para uma aliança a não ser que os oito atributos estejam perfeitamente de acordo.
- Mãe, eu não teria vindo aqui hoje a não ser que houvesse um perfeito alinhamento entre os oito atributos - respondeu, no mesmo tom, madame Wang. - Lírio e Flor da Neve nasceram no ano do cavalo, no mesmo mês, e, se o que ambas as mães me disseram é verdade, no mesmo dia e na mesma hora. Lírio e Flor da Neve têm o mesmo número de irmãos e irmãs, e ambas são o terceiro filho...
-Mas...
Madame Wang ergueu a mão para impedir minha mãe de continuar.
- Para responder à sua pergunta antes que você a faça: sim, a terceira filha na família Lu também está com antepassados dela. As circunstâncias dessa tragédia não importam, pois ninguém gosta de pensar na perda de um filho, nem mesmo sendo uma filha. - Ela fitou mamãe com um olhar duro, praticamente desafiando-a a dizer alguma coisa. Quando mamãe desviou os olhos, madame Wang prosseguiu: - Lírio e Flor da Neve são da mesma altura, possuem igual beleza e, o que é mais importante, seus pés foram amarrados no mesmo dia. O bisavô de Flor da Neve era um intelectual jinshi, portanto a posição social e econômica não combina. - Madame Wang não precisou explicar que se essa família tinha um intelectual do mais alto escalão entre seus antepassados ela devia ser muito rica e bem relacionada. - A mãe de Flor da Neve não parece ligar para essas discrepâncias, uma vez que as meninas compartilham tantas outras semelhanças.
Mamãe balançou a cabeça afirmativamente, com o macaco que havia nela absorvendo tudo isso, mas tive vontade de voar da minha cadeira, correr até a margem do rio e gritar de alegria. Olhei para titia. Eu esperava ver aquela enorme caverna sorridente, mas ela estava com a boca bem fechada como se tentasse esconder sua satisfação. Seu corpo era o retrato da imobilidade e do decoro, exceto pelos dedos, que se agitavam nervosamente como pequenas enguias. Ela, mais do que o resto de nós, entendia a importância desse encontro. Sem que percebessem, olhei disfarçadamente para Lua Linda e Irmã Mais Velha. Os olhos delas brilhavam de felicidade por mim. Ah, as coisas que iríamos conversar essa noite depois que o resto da casa fosse dormir!
- Embora normalmente eu trate desse assunto durante o Festival de Outono, quando as meninas têm oito ou nove anos - declarou madame Wang -, achei que neste caso uma aliança imediata seria muito benéfica para sua filha. Ela é ideal sob muitos aspectos, mas sua aprendizagem doméstica pode melhorar, e ela precisa de muito refinamento para poder integrar-se numa família de nível mais elevado.
- Minha filha não é como deveria ser - mamãe concordou com indiferença. - Ela é teimosa e desobediente. Não sei se essa é uma boa idéia. É melhor ser uma uva imperfeita no meio de muitas irmãs juradas do que desapontar uma menina de nível social elevado.
A minha alegria de momentos antes desapareceu. Embora eu conhecesse bem a minha mãe, ainda não tinha idade suficiente para compreender que suas palavras ácidas a meu respeito faziam parte da negociação, do mesmo modo que sentimentos semelhantes iriam ser expressos quando meu pai e a casamenteira se sentassem para discutir o meu casamento. O fato de me fazer parecer sem valor protegia os meus pais de quaisquer queixas que a família de meu marido ou a família da minha laotong pudessem ter no futuro a meu respeito. E também poderia baixar quaisquer custos não declarados que tivessem de pagar à casamenteira e diminuir o que tivessem que dispor para o meu dote.
A casamenteira não se perturbou.
- É natural que você pense assim. Eu também tenho as mesmas preocupações. Mas chega de conversa por hoje. - Ela fez uma pausa como se estivesse refletindo, embora ficasse muito claro para nós que cada uma de suas palavras e atitudes tinha sido bem calculada e ensaiada. Ela enfiou a mão dentro da manga, tirou um leque e me chamou. Ao entregar-me o leque, madame Wang dirigiu-se à minha mãe, falando por cima de minha cabeça: - Você precisa de tempo para ponderar sobre o destino da sua filha.
Abri o leque e contemplei as palavras que estavam escritas numa das dobras e a guirlanda de folhas que enfeitava a borda superior. Mamãe falou severamente com a casamenteira:
- A senhora dá isso a minha filha embora não tenhamos ainda discutido os seus honorários?
Madame Wang fez um gesto de desagrado como se aquela sugestão tivesse mau cheiro.
- Do mesmo modo que o casamento dela. Nenhum honorário da família Yi. A família da outra menina pode me pagar. E se eu elevar o valor da sua filha agora que ela é uma laotong, vou poder cobrar bem mais da família do noivo. Estou satisfeita com essa combinação.
Ela se levantou e deu alguns passos na direção da escada. Depois virou-se, pôs a mão no ombro de titia e anunciou sem olhar para ninguém em especial:
- Há mais uma coisa que vocês todas devem avaliar. Esta mulher fez um bom trabalho com a filha dela, e posso ver que Lua Linda e Lírio são muito amigas. Se estivermos de acordo com esse relacionamento laotong para Lírio, que irá ajudar a solidificar as suas chances de casamento em Tongkou, então acho que seria bom pensar em procurar um casamento para Lua Linda lá também.
Essa possibilidade nos apanhou de surpresa. Eu me esqueci do decoro e me virei para Lua Linda, que parecia tão excitada quanto eu.
Madame Wang ergueu a mão e formou com ela um arco na forma de uma lua crescente.
- É claro que talvez vocês já tenham contratado madame Gao. Eu não gostaria de interferir nos negócios locais dela - e com isso ela quis dizer de categoria inferior - de forma alguma.
Só isso já serviu para mostrar que minha mãe não poderia competir com madame Wang na arte de negociar, e ela agora se dirigiu diretamente a mamãe:
- Considero isso uma decisão feminina, uma das poucas que você pode tomar em relação a sua filha e talvez a sua sobrinha também. Entretanto, o pai também tem de concordar, antes que possamos prosseguir. Mãe, eu gostaria de deixar uma sugestão antes de sair: deixe para advogar sua causa na cama.
Enquanto mamãe e titia acompanhavam a casamenteira até o seu palanquim, Irmã Mais Velha, Lua Linda e eu nos abraçamos no meio do quarto, conversando excitadamente. Será que essas coisas maravilhosas estavam mesmo acontecendo para mim? Será que Lua Linda também se casaria com alguém de Tongkou? Será que ficaríamos mesmo juntas pelo resto da vida? Irmã Mais Velha, que poderia ter sentido inveja de nós, desejou de coração que tudo o que a casamenteira tinha proposto se tornasse realidade, sabendo que toda a família se beneficiaria com isso.
Nós éramos meninas e estávamos excitadas, mas sabíamos nos comportar. Lua Linda e eu tornamos a nos sentar para descansar nossos pés.
Irmã Mais Velha fez um sinal com a cabeça para o leque que eu ainda segurava.
- O que está escrito aí?
- Não sei ler tudo. Ajude-me.
Abri o leque. Irmã Mais Velha e Lua Linda olharam por cima do meu ombro. Nós três examinamos os caracteres, procurando aqueles que conseguíamos identificar: menina, boa, mulheres, casa, você, eu.
Sabendo que só ela poderia ajudar-me, titia foi a primeira a voltar lá para cima. Usando o dedo, ela foi apontando cada caractere. Decorei as palavras imediatamente: "Eu soube que existe uma menina de bom caráter e versada em conhecimentos femininos na sua casa. Você e eu somos do mesmo ano e do mesmo dia. Não podemos ser iguais juntas?"
Antes que eu pudesse responder a essa menina chamada Flor da Neve, muitas coisas tiveram de ser examinadas e pesadas pela minha família. Embora Irmã Mais Velha, Lua Linda e eu não tivéssemos voz em nada que pudesse acontecer, passávamos horas no aposento das mulheres ouvindo mamãe e titia discutindo as possíveis conseqüências de uma aliança laotong. Minha mãe era esperta, mas titia vinha de uma família melhor do que a nossa e era mais instruída. Ainda assim, sendo aquela que ocupava posição mais baixa na escala da família, titia tinha que ter cuidado com o que dizia, especialmente agora que minha mãe exercia total controle sobre a vida dela.
- Uma aliança laotong é tão importante quanto um bom casamento - titia arriscava dizer para iniciar a conversa. Ela repetia muitos dos argumentos da casamenteira, mas sempre retornava ao ponto que considerava mais importante. - Um relacionamento laotong é realizado por escolha e tem como objetivo o companheirismo emocional e a fidelidade eterna. Um casamento não é realizado por escolha e só tem um objetivo: gerar filhos homens.
Ao ouvir essas palavras acerca de filhos homens, mamãe tentava consolar a cunhada:
- Você tem Lua Linda. Ela é uma boa menina e deixa todo mundo feliz...
- E irá deixar-me para sempre quando se casar. Os seus dois filhos irão viver com você pelo resto da sua vida.
Todo dia as duas tocavam nesse aspecto triste, e todo dia minha mãe tentava desviar a conversa para questões mais práticas.
- Se Lírio tornar-se uma laotong, ela não terá irmãs juradas. Todas as mulheres da nossa família... tiveram. Era como mamãe pretendia terminar a frase, mas titia a terminava de outro jeito.
- ...podem funcionar como suas irmãs juradas sempre que ela precisar. Se você achar que precisamos de mais meninas quando chegar a época de Sentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima antes do casamento de Lírio, você pode convidar as filhas solteiras dos nossos vizinhos para ajudá-la.
- Aquelas meninas não a conhecem bem - mamãe disse.
- Mas sua laotong sim. Quando chegar a hora de essas duas meninas se casarem, elas conhecerão uma à outra melhor do que você e eu conhecemos nossos maridos.
Titia fez uma pausa como sempre fazia nesse ponto.
- Lírio tem uma oportunidade de seguir um caminho diferente do que você e eu seguimos para terminar aqui - continuou ela, após alguns instantes. - Esse relacionamento laotong vai lhe acrescentar valor e mostrar às pessoas em Tongkou que ela merece fazer um bom casamento em sua aldeia. E, como a ligação entre duas velhas iguais é eterna e não muda com o casamento, os elos com o povo de Tongkou irão fortalecer-se e o seu marido e todos nós ficaremos mais protegidos. Essas coisas ajudarão a garantir a posição de Lírio no aposento das mulheres na casa do seu futuro marido. Ela não vai ser uma mulher aleijada por causa de um rosto feio ou de pés feios. Ela vai ser uma mulher com perfeitos lírios dourados que já provou suficientemente a sua lealdade, a sua fidelidade e a sua capacidade de escrever na nossa linguagem secreta, a ponto de ter sido a laotong de uma menina da aldeia deles.
Variações em torno dessa conversa eram intermináveis, e eu as ouvia todo dia. O que eu não conseguia ouvir era como tudo isso era transmitido por mamãe a Baba de noite, na cama. Essa aliança iria exigir do meu pai recursos - a constante troca de presentes entre as velhas iguais e suas famílias, água e refeições extras durante as visitas de Flor da Neve a nossa casa, e as despesas para eu viajar para Tongkou - de que ele não dispunha. Mas, como madame Wang disse, cabia a mamãe convencer Baba de que isto era uma boa idéia.
Titia também ajudava murmurando no ouvido de titio, uma vez que o futuro de Lua Linda estava ligado ao meu. Quem disser que as mulheres não têm influência nas decisões dos homens está cometendo um grande e estúpido erro.
No fim, minha família fez a escolha que eu estava desejando. A questão seguinte era como eu iria responder a Flor da Neve. Mamãe ajudou-me a acrescentar mais bordados num par de sapatos que eu estava fazendo para enviar como meu primeiro presente, mas ela não podia me aconselhar a respeito da minha resposta escrita. Normalmente, a mensagem era enviada num leque novo, que então se tornaria parte do que poderia ser considerado como a troca de presentes de "casamento". Eu tinha algo diferente em mente, que rompia completamente com a tradição. Quando vi a guirlanda entrelaçada de Flor da Neve na borda superior do leque, pensei no velho ditado: "Cachos de jacintos e mamoeiros, longas trepadeiras, raízes profundas. Palmeiras dentro dos muros do jardim, com raízes profundas, duram mil anos." Para mim, isso resumia como a nossa amizade deveria ser: profunda, entrelaçada, para sempre. Eu queria que esse único leque fosse o símbolo do nosso relacionamento. Eu só tinha sete anos e meio, mas visualizei como ficaria esse leque com todas as suas mensagens secretas.
Depois de estar convencida de que a minha resposta ia ser no leque de Flor da Neve, pedi a titia para me ajudar a escrever uma mensagem correta em nu shu. Passamos dias discutindo as possibilidades. Se eu ia ser radical com o meu presente de retribuição, eu deveria ser o mais convencional possível com a minha mensagem secreta. Titia escreveu as palavras que combinamos e eu as pratiquei até a minha caligrafia estar passável. Quando fiquei satisfeita, moí tinta na pedra, misturando-a com água até conseguir um preto bem profundo. Peguei o pincel, segurando-o bem reto entre o polegar, o indicador e o dedo médio, e mergulhei-o na tinta. Comecei pintando uma pequena flor da neve no meio da guirlanda de folhas na borda superior do leque. Para escrever a mensagem, escolhi a dobra ao lado da bela caligrafia de Flor da Neve. Comecei com uma abertura tradicional e continuei com as frases convencionais para essa ocasião:
Escrevo para você. Por favor, ouça-me. Embora eu seja pobre e inadequada, embora não esteja à altura da alta posição de sua família, escrevo hoje para dizer que foi o destino que nos uniu. Suas palavras tocam meu coração. Nós somos um par de marrecos. Somos uma ponte sobre o rio. Gente de toda parte irá invejar a nossa aliança. Sim, meu coração deseja sinceramente a sua amizade.
Naturalmente, eu não experimentava todos esses sentimentos. Como seria possível entender de amor profundo, amizade e compromisso eterno aos sete anos de idade? Nós nem nos conhecíamos ainda, e mesmo que já tivéssemos nos encontrado, não seríamos capazes de compreender esses sentimentos. Eles eram apenas palavras que alguém escrevia, na esperança de que um dia se tornassem verdadeiros.
Arrumei o leque e o par de sapatos que tinha feito num pedaço de pano. Sem nada para ocupar minhas mãos, minha mente se encheu de preocupações. Será que eu era inferior demais para a família de Flor da Neve? Será que olhariam para a minha caligrafia e perceberiam o quanto eu era inferior? Será que achariam que o meu rompimento com a tradição demonstrava falta de educação? Será que impediriam a aliança? Esses pensamentos inquietantes - espíritos de raposa na mente, como minha mãe os chamava - me atormentavam; entretanto, tudo o que eu podia fazer era esperar, continuar trabalhando no aposento das mulheres e descansar os meus pés para que os ossos sarassem direito.
Quando madame Wang viu o que eu tinha feito no leque, ela franziu os lábios desaprovadoramente. Depois, após um longo intervalo, ela balançou a cabeça, concordando.
- Essa é realmente uma aliança perfeita. Essas duas meninas não são iguais apenas nos oito atributos, elas são iguais nos seus espíritos de cavalo. Isso vai ser... interessante. - Ela disse a última palavra quase como uma pergunta, o que me deixou curiosa a respeito de Flor da Neve. - O próximo passo é completar os acordos oficiais. Sugiro que eu acompanhe as duas meninas à feira do Templo de Gupo em Shexia para escrever o contrato. Mãe, eu me encarregarei do transporte de ambas as meninas. Elas não terão de caminhar muito.
Com isso, madame Wang segurou as quatro pontas do pano, dobrou-o sobre o leque e os sapatos, e levou-os com ela para dá-los à minha futura laotong.
Flor da Neve
Foi difícil para mim passar os dias que se seguiram sentada, permitindo que meus pés sarassem, quando eu só conseguia pensar na proximidade de meu encontro com Flor da Neve. Até mamãe e ti tia ficaram ansiosas, sugerindo o que Flor da Neve e eu deveríamos escrever no nosso contrato, embora nenhuma delas jamais tivesse visto um. Quando o palanquim de madame Wang chegou à porta da nossa casa, eu estava limpa e vestida com minhas roupas simples de camponesa. Mamãe carregou-me até o lado de fora. Dez anos depois, quando me casei, fiz o mesmo percurso até um palanquim. Naquela ocasião, eu estava temerosa da nova vida que se estendia diante de mim e triste por estar deixando para trás tudo o que me era familiar, mas para este encontro eu estava nervosa e excitada. Será que Flor da Neve iria gostar de mim?
Madame Wang abriu a porta do palanquim, mamãe me pôs no chão e entrei naquele espaço apertado. Flor da Neve era muito mais bonita do que eu havia imaginado. Seus olhos eram duas amêndoas perfeitas. Sua pele clara indicava que ela não havia passado tanto tempo quanto eu do lado de fora, durante meus anos de dentes de leite. Havia uma cortina vermelha perto dela, e uma luz rosada se refletia em seu cabelo preto. Usava uma túnica de seda azul-celeste bordada com um desenho de nuvens. Saindo de baixo de suas calças compridas estavam os sapatos que eu havia feito para ela. Ela não disse nada. Talvez estivesse tão nervosa quanto eu. Ela sorriu, e eu sorri de volta.
O palanquim tinha apenas um assento, então nós três tivemos que nos apertar. Para manter o palanquim equilibrado, madame Wang sentou-se no meio. Os carregadores nos ergueram, e logo estávamos trotando sobre a ponte que saía de Puwei. Eu nunca tinha andado de palanquim antes. Nós tínhamos quatro carregadores, que tentavam correr de forma a não balançar muito, mas - com as cortinas fechadas, o calor do dia, minha própria ansiedade e aquele movimento ritmado - fiquei enjoada. Eu também nunca tinha me afastado de casa, então, mesmo que pudesse ter olhado pela janela, não teria sabido onde estava ou quanto tempo ainda teria de viajar. Eu tinha ouvido falar na feira do Templo de Gupo. Quem não tinha? As mulheres iam lá todos os anos, no décimo dia do quinto mês, para rezar pelo nascimento de filhos homens. Diziam que milhares de pessoas iam a essa feira. Isso estava além da minha compreensão. Quando comecei a ouvir outros ruídos atravessando a cortina - sinos tocando em charretes puxadas por cavalos, carregadores gritando para as pessoas saírem da frente e chamados dos vendedores de rua expondo incensos, velas e outras oferendas para serem postas no templo —, soube que havíamos chegado.
O palanquim parou e os carregadores nos colocaram no chão com um estrondo. Madame Wang inclinou-se sobre mim para abrir a porta, mandou que ficássemos ali e saltou. Fechei os olhos, feliz por estar parada e me concentrando em acalmar o meu estômago, quando uma voz expressou meus sentimentos:
- Estou tão feliz por estarmos paradas. Achei que ia vomitar. O que você teria pensado de mim se isso acontecesse?
Abri os olhos e olhei para Flor da Neve. Sua pele clara tinha ficado tão verde quanto imaginei que a minha estaria, e os olhos continham uma interrogação sincera. Ela encolheu os ombros de uma forma conspiradora, sorriu de um modo que eu logo aprenderia ser um indício de que estava pensando em algo que nos deixaria encrencadas, deu um tapinha na almofada do seu lado e disse:
- Vamos ver o que está acontecendo lá fora.
Um fator-chave para a combinação dos nossos oito atributos era o fato de termos ambas nascido no ano do cavalo. Isso significava que nós duas gostávamos de aventuras. Ela tornou a olhar para mim, avaliando minha coragem, que, devo admitir, era pouca. Respirei fundo e me arrastei para o lado dela; ela abriu a cortina. Agora eu podia ver os rostos dos donos das vozes que eu tinha ouvido, mas além disso os meus olhos encheram-se das mais incríveis imagens. O povo Yao tinha montado barracas decoradas com panos muito mais coloridos do que qualquer coisa que mamãe e titia jamais haviam feito. Uma trupe de músicos usando roupas vistosas passou por nós, a caminho de um espetáculo de ópera. Um homem seguia puxando um porco com uma guia no pescoço. Nunca me havia ocorrido que alguém pudesse levar seu porco para vender numa feira. A cada minuto parava outro palanquim à nossa volta, cada um deles, presumimos, trazendo uma mulher para fazer uma oferenda a Gupo. Muitas outras mulheres andavam pela rua - irmãs juradas que tinham se casado e ido morar em outras aldeias e que se haviam reunido nesse dia especial -, usando suas melhores saias e panos bordados na cabeça. Juntas, elas caminhavam gingando pela rua nos seus lírios dourados. Havia tanta coisa bonita para ver, e tudo aquilo acrescido de um perfume incrivelmente doce que penetrou no palanquim, seduzindo meu nariz e acalmando meu estômago.
- Você já esteve aqui antes? - Flor da Neve perguntou. Quando sacudi negativamente a cabeça, ela prosseguiu: - Eu já vim várias vezes com minha mãe. Nós sempre nos divertimos. Visitamos o templo. Você acha que vamos fazer isso hoje? Provavelmente não. Seria preciso andar muito, mas espero que possamos ir até a barraca de taro. Mamãe sempre me leva lá. Está sentindo esse cheiro? O velho Zuo, ele é o dono da barraca, faz a melhor iguaria da região. - Ela estivera a" muitas vezes? - É assim que ele faz: ele frita cubos de taro até ficarem macios por dentro e firmes e crocantes por fora. Em seguida, derrete açúcar numa enorme frigideira. Você já comeu açúcar, Lírio? É a melhor coisa do mundo. Ele o derrete até ficar marrom, depois joga o taro frito no açúcar e mexe até formar a cobertura. Aí coloca num prato e leva para sua mesa, junto com uma tigela de água fria. Você não imagina como é quente o taro coberto de açúcar derretido. Ele faria um buraco na sua boca se você tentasse comê-lo, por isso você pega um cubo com os pauzinhos e o mergulha na água. Crack, crack, crack! Esse é o barulho que o açúcar faz quando fica duro. Quando você morde, sente a dureza da cobertura de açúcar, o crocante do taro frito e a maciez do centro. Titia tem que nos levar lá, não acha?
- Titia?
- Você fala? Achei que talvez soubesse apenas escrever belas palavras.
- Talvez eu não fale tanto quanto você - respondi, magoada. Ela era bisneta de um intelectual do império e muito mais instruída do que a filha de um simples fazendeiro.
Ela pegou a minha mão. A dela estava seca e quente, seu chi ardia.
- Não se preocupe. Eu não me importo que você seja calada. Sempre me meto em confusão porque falo as coisas sem pensar, enquanto que você vai ser uma esposa ideal, sempre escolhendo as palavras com muito cuidado.
Está vendo? Ali mesmo, naquele primeiro dia, nós nos entendemos, mas será que isso nos impediria de cometer erros no futuro? Madame Wang abriu a porta do palanquim.
- Venham, meninas. Está tudo arranjado. Vocês não vão ter de andar mais que dez passos. Mais do que isso, eu estaria quebrando a promessa que fiz às suas mães.
Paramos perto de um estande que vendia papéis, decorado com fitas vermelhas, versos de boa sorte, símbolos vermelhos e dourados de felicidade, e imagens pintadas da deusa Gupo. Uma mesa na frente estava cheia de artigos das mais diversas cores. Corredores laterais permitiam a entrada dos clientes no estande, protegido da confusão da rua por três longas mesas. No meio, havia uma mesinha com tinta, pincéis e duas cadeiras. Madame Wang mandou que escolhêssemos um papel para nosso contrato. Como qualquer criança, eu já havia feito pequenas escolhas, como, por exemplo, que pedaço de legume tirar da tigela depois que Baba, titio, Irmão Mais Velho e todos os outros membros da nossa família já tinham enfiado seus pauzinhos no prato. Agora eu estava confusa com a escolha, minhas mãos queriam tocar todas as mercadorias, enquanto que Flor da Neve, aos sete anos e meio, foi seletiva, demonstrando sua maior competência.
- Lembrem-se, meninas, vou pagar por tudo hoje. Esta é apenas uma das decisões. Vocês têm outras a tomar, então não percam tempo - disse madame Wang.
- É claro, titia - Flor da Neve respondeu por nós duas. Depois ela me perguntou: - Qual deles você prefere?
Apontei para uma folha grande de papel que, por causa do seu tamanho, pareceu ser a mais apropriada para a importância da ocasião. Flor da Neve passou o indicador pela borda dourada do papel.
- A qualidade da tinta dourada é inferior - ela disse, e, em seguida, ergueu a folha na direção do céu. - O papel é fino e transparente como a asa de um inseto. Está vendo como o sol passa por ele? - Ela o pôs de volta na mesa e olhou para mim com aquele seu jeito intenso. - Precisamos de algo que possa demonstrar para sempre a natureza preciosa e a durabilidade de nossa relação.
Mal consegui compreender suas palavras. Ela falava num dialeto ligeiramente diferente do que usávamos em Puwei, mas essa não era a única razão para minha incompreensão. Eu era burra e grosseira; ela era refinada, e seu aprendizado doméstico ia muito além do Que minha mãe e até mesmo minha tia conheciam.
Ela me puxou mais para dentro do estande e murmurou:
- Eles sempre guardam as melhores coisas aqui atrás. - Com sua voz normal, ela disse: - Velha igual, o que você acha deste?
Era a primeira vez que alguém me pedia para olhar - realmente olhar - para algo, e eu o fiz. Mesmo com o meu olhar ignorante, pude ver a diferença entre o que eu havia escolhido na parte da frente do estande e aquilo. Era uma folha menor e menos espalhafatosa.
- Experimente - Flor da Neve disse.
Levantei a folha de papel - ela pareceu substancial ao toque - e a ergui contra o sol como Flor da Neve havia feito. O papel era tão grosso que o sol só passava por ele como um leve clarão vermelho.
Num acordo sem palavras, entregamos o papel ao vendedor. Madame Wang pagou por ele e também para escrevermos o nosso contrato na mesa do estande. Flor da Neve e eu nos sentamos uma de frente para a outra.
- Quantas meninas você acha que já se sentaram nessas cadeiras para escrever seus contratos? - Flor da Neve perguntou. - Nós temos que escrever o melhor contrato que já foi escrito. - Ela franziu a testa e perguntou: - O que você acha que ele deve dizer?
Pensei nas coisas que minha mãe e minha tia haviam sugerido.
- Nós somos meninas - disse eu -, então temos de seguir as regras...
- Sim, sim, todas as coisas habituais - Flor da Neve disse, com uma certa impaciência -, mas você não quer que isso se refira a nós duas?
Eu estava insegura, enquanto ela parecia saber tanto. Ela já estivera ali, enquanto eu nunca tinha estado em lugar nenhum. Ela parecia saber o que deveria ser incluído em nosso contrato, e eu só podia me fiar no que minha tia e minha mãe imaginavam que deveria figurar nele. Cada sugestão que fiz veio em forma de pergunta.
- Nós seremos laotong por toda a vida? Seremos sempre sinceras? Realizaremos tarefas juntas no aposento de cima?
Flor da Neve olhou para mim do mesmo jeito franco com que me havia olhado no palanquim. Eu não sabia o que ela estava pensando. Será que eu tinha dito a coisa errada? Será que tinha dito do modo errado?
Momentos depois, ela pegou um pincel e o mergulhou na tinta. Além de ter percebido todas as minhas deficiências naquele dia, ela sabia, pelo nosso leque, que minha caligrafia não era tão boa quanto a dela. Entretanto, quando começou a escrever, vi que ela acatara minhas sugestões. Meus sentimentos e sua linda forma de expressá-los entrelaçaram-se, criando um único pensamento a partir de duas meninas.
Acreditamos que os sentimentos expressos naquele pedaço de papel iriam durar para sempre, mas não podíamos prever as tormentas que nos aguardavam. Ainda assim, eu me lembro de quase todas as palavras. Como poderia esquecê-las? Elas se tornaram aTpalavras do meu coração.
Nós, senhorita Flor da Neve da aldeia Tongkou e senhorita Lírio da aldeia Puwei, seremos sinceras uma com a outra. Iremos confortar uma à outra com palavras gentis. Iremos acalmar o coração uma da outra. Iremos cochichar e bordar juntas no aposento das mulheres. Iremos praticar as Três Obediências e as Quatro Virtudes. Iremos seguir o ensinamento de Confúcio expresso em O clássico das mulheres, comportando-nos como boas mulheres. Neste dia, nós, senhorita Flor da Neve e senhorita Lírio, dissemos palavras verdadeiras. Prestamos juramento da nossa aliança. Por dez mil li, seremos como dois córregos correndo para o mesmo rio. Por dez mil anos, seremos como duas flores no mesmo jardim. Nunca distantes uma da outra, nunca uma palavra áspera trocada entre nós. Seremos velhas iguais até morrermos. Nossos corações estão contentes.
Madame Wang observava com ar solene enquanto nós duas assinávamos nossos nomes em nu shu no contrato.
- Estou feliz com esta aliança laotong - anunciou ela. - Como um casamento entre um homem e uma mulher, os bons se casam com as boas, os bonitos se casam com as bonitas, os inteligentes se casam com as inteligentes. Mas, ao contrário de um casamento, este relacionamento deve permanecer exclusivo. - Ela se permitiu uma risadinha. - Concubinas não são permitidas. Entendem o que quero dizer, meninas? Esta é uma união de dois corações que não pode ser rompida pela distância, por desentendimentos, por solidão, por um casamento melhor, ou permitir que outras meninas, e mais tarde mulheres, se intrometam entre vocês.
Caminhamos nossos dez passos de volta para o palanquim. Durante muitos meses, andar havia sido uma agonia, porém, naquele momento, eu me sentia como Yao Niang, a primeira mulher de pés pequenos. Quando essa mulher lendária dançava sobre seus lótus dourados, ela dava a ilusão de estar flutuando numa nuvem. Cada passo que eu dava era amortecido por uma almofada de felicidade.
Os carregadores nos levaram até o centro da feira. Dessa vez, quando saltamos, estávamos bem na praça. Sobre uma pequena colina, pude ver as paredes vermelhas, os entalhes dourados e o telhado verde do templo. Madame Wang deu uma moeda de cash para cada uma de nós e nos mandou comprar presentes para comemorar aquele dia. Se eu nunca tinha tido a chance de fazer escolhas, com certeza jamais tinha tido a responsabilidade de gastar dinheiro. Numa das mãos eu segurava a moeda enquanto na outra eu segurava a mão de Flor da Neve. Tentei pensar no que aquela menina ali do meu lado poderia querer, mas, com tanta coisa maravilhosa à minha volta, senti-me atordoada.
Felizmente, Flor da Neve tornou a tomar a iniciativa.
- Eu sei exatamente o que comprar! - gritou ela. Deu dois passinhos rápidos, como se fosse correr, e parou. - Às vezes eu me esqueço dos meus pés - ela disse, com o rosto contraído de dor.
Meus pés deviam estar sarando mais depressa do que os dela, e senti um certo desapontamento por não podermos explorar tudo que nós - que eu - gostaríamos.
- Vamos bem devagar - eu disse. - Não temos que ver tudo desta vez...
-... porque vamos voltar aqui todos os anos pelo resto de nossas vidas. - Flor da Neve completou por mim, e então apertou minha mão.
Que visão devíamos ser: duas velhas iguais no seu primeiro passeio, tentando andar sobre a memória de pés tendo apenas a alegria para impedi-los de cair, e uma mulher mais velha, usando uma roupa espalhafatosa, berrando com elas:
- Tratem de se comportar, senão vamos voltar para casa agora mesmo! - Felizmente, não precisamos ir muito longe. Flor da Neve me puxou para dentro de uma barraca que vendia artigos de bordado.
- Somos duas meninas em nossos dias de filha - Flor da Neve disse, enquanto examinava o arco-íris de linhas. – Até casarmos, vamos ficar no aposento das mulheres, visitando-nos mutuamente, bordando juntas, cochichando juntas. Se comprarmos cuidadosamente, teremos lembranças que poderemos construir juntas por muitos anos.
Na barraca de bordados, nossas idéias combinaram perfeitamente. Gostamos das mesmas cores, mas também escolhemos algumas que não nos agradavam tanto mas que serviriam para criar o detalhe de uma folha ou a sombra de uma flor. Demos nossos cash em pagamento e voltamos para o palanquim carregando nossas compras. Uma vez lá dentro, Flor da Neve implorou por mais um agrado:
- Titia, por favor, leve-nos até o homem do taro. Por favor, titia, por favor! - Presumindo que Flor da Neve estivesse usando aquele título para abrandar o coração de madame Wang, eu me juntei a ela. - Por favor, titia, por favor! - Madame Wang não pôde dizer não, com uma menina de cada lado puxando as suas mangas, cada uma implorando por mais uma extravagância como apenas um primeiro filho poderia fazer.
Ela finalmente cedeu, avisando que isso não iria acontecer de novo.
-Eu sou apenas uma pobre viúva, e gastar dinheiro com dois rebentos inúteis vai abalar minha reputação neste estado. Vocês querem me deixar na pobreza? Querem que eu morra sozinha? - Ela disse tudo isso com seu jeito brusco habitual, mas na verdade estava tudo pronto para nós quando chegamos à barraca. Uma mesinha tinha sido preparada, com três pequenos barris para servir de assento. O proprietário trouxe uma galinha viva e ergueu-a.
- Sempre escolho o melhor para a senhora, madame Wang - o velho Zuo disse. Alguns minutos depois, ele chegou com uma panela especial aquecida por carvões em brasa num compartimento inferior. Caldo, gengibre, cebola e pedaços da galinha que tínhamos visto momentos antes borbulhavam dentro da tigela. Um molho de gengibre, alho, cebolas e óleo quente também foi colocado sobre a mesa. Uma travessa de ervilhas salteadas com dentes de alho inteiros completou nossa refeição. Comemos com satisfação, pescando os pedaços deliciosos de galinha com nossos pauzinhos, mastigando alegremente e cuspindo os ossos no chão. Mas por mais delicioso que fosse tudo isso, ainda guardei lugar para o prato de taro que Flor da Neve tinha mencionado antes. Tudo o que ela dissera sobre ele era verdadeiro - a forma como o açúcar quente estalava ao ser mergulhado na água fria, o crocante irresistível e a maciez em minha boca.
Como fazia em casa, peguei o bule e servi chá para nós três. Quando pousei o bule na mesa, ouvi o ruído de desaprovação que Flor da Neve fez. Eu tinha feito alguma coisa errada de novo, mas não sabia o quê. Ela cobriu minha mão com a sua e guiou-a até o bule de modo que, juntas, nós o virássemos para que o bico não ficasse mais apontando para madame Wang.
- É falta de educação apontar o bico do bule para alguém - Flor da Neve disse delicadamente.
Eu devia ter sentido vergonha. No entanto, senti apenas admiração pela finura da minha laotong.
Os carregadores estavam dormindo sob as varas do palanquim quando voltamos, mas a voz alta de madame Wang e suas palmas os acordaram, e logo estávamos a caminho de casa. Na viagem de volta, madame Wang permitiu que nos sentássemos juntas, mesmo que isso perturbasse o equilíbrio do palanquim e desse mais trabalho para os carregadores. Olhando para trás, vejo como éramos jovens - duas garotinhas rindo de tudo, separando as linhas de bordar, dando as mãos, olhando pela cortina quando madame Wang dava uma cochilada, e vendo o mundo passar pela janela. Estávamos tão distraídas que dessa vez nem sentimos enjôo com o balanço do palanquim sobre a estrada esburacada.
Essa foi nossa primeira viagem a Shexia e ao Templo de Gupo. Madame Wang levou-nos de novo no ano seguinte, e fizemos nossas primeiras oferendas no templo. Ela iria acompanhar-nos lá quase todos os anos até o final dos nossos dias de filhas. Depois que Flor da Neve e eu nos casamos, nos encontrávamos em Shexia todo ano, se as circunstâncias permitissem, sempre fazendo oferendas no templo para ter filhos homens, sempre visitando o vendedor de linhas para dar continuidade aos nossos projetos com os mesmos esquemas de cor, sempre revivendo os detalhes da nossa primeira visita e sempre parando para comer o taro caramelizado do velho Zuo no final do dia.
Chegamos a Puwei ao cair da tarde. Naquele dia eu tinha feito mais do que arranjar uma amiga fora da minha família. Tinha assinado um contrato para ser uma velha igual de outra menina. Eu não queria que o dia terminasse, mas sabia que terminaria assim que chegássemos à minha casa. Eu me imaginei saltando, depois vendo os carregadores levando Flor da Neve pelo beco, seus dedos aparecendo por baixo da cortina para um último adeus, antes que ela desaparecesse na esquina. Então, eu soube que minha felicidade ainda não tinha acabado.
Nós paramos, e eu saltei. Madame Wang disse a Flor da Neve para saltar também.
- Até logo, meninas. Voltarei dentro de alguns dias para apanhar Flor da Neve. - Ela se inclinou para fora do palanquim, beliscou a bochecha da minha velha igual e disse: - Seja boa. Não reclame. Aprenda com os olhos e os ouvidos. Faça com que sua mãe sinta orgulho de você.
Como posso explicar o que senti quando vi nós duas paradas na porta de minha casa? Eu estava exultante, mas sabia o que me aguardava lá dentro. Por mais que eu amasse minha família e nossa casa, sabia que Flor da Neve estava acostumada com coisa melhor. E ela nao tinha levado roupas nem artigos de higiene com ela.
Mamãe saiu para nos receber. Ela me beijou, depois pôs um braço ao redor dos ombros de Flor da Neve e guiou-a para dentro de nossa casa. Enquanto estivemos fora, mamãe, titia e Irmã Mais Velha tinham trabalhado bastante para arrumar a sala principal. Todo o lixo tinha sido removido, as roupas arrumadas e os pratos guardados. Nosso chão de terra batida tinha sido varrido e borrifado com água para ficar mais liso e mais fresco.
Flor da Neve conheceu todo mundo, até Irmão Mais Velho. Quando o jantar foi servido, Flor da Neve, primeiro, mergulhou os pauzinhos em sua xícara de chá, para limpá-los, mas, fora esse pequeno gesto, que mostrou um refinamento que minha família jamais tinha visto, ela fez o possível para ocultar seus sentimentos. Meu coração, entretanto, já conhecia Flor da Neve muito bem. Ela estava tentando disfarçar. Aos meus olhos, estava horrorizada com o modo como nós vivíamos.
Tinha sido um dia longo e estávamos muito cansadas. Quando chegou a hora de subir, tive outro sobressalto, mas as mulheres da casa tinham trabalhado lá em cima também. As roupas de cama tinham sido arejadas e toda a confusão associada aos nossos afazeres diários fora organizada em pilhas bem ordenadas. Mamãe nos indicou uma bacia de água fresca para nos lavarmos, e duas mudas de roupas minhas e uma de Irmã Mais Velha - todas recém-lavadas -para Flor da Neve usar enquanto fosse nossa hóspede. Deixei que Flor da Neve usasse a bacia primeiro, mas ela mal molhou as pontas dos dedos nela, desconfiada, acho, de que a água não fosse suficientemente limpa. Segurou a roupa de dormir que lhe entreguei na frente do corpo com dois dedos, examinando-a como se fosse um peixe podre em vez de a roupa mais nova de Irmã Mais Velha. Ela olhou em volta, viu que estávamos olhando para ela, e então, sem dizer nada, despiu-se e vestiu a roupa. Nós subimos na cama. Aquela noite, como no futuro, em todas as noites em que Flor da Neve se hospedou lá em casa, Irmã Mais Velha iria dormir com Lua Linda.
Mamãe deu boa-noite para nós duas. Depois inclinou-se, beijou-me e sussurrou no meu ouvido:
- Madame Wang nos disse o que deveríamos fazer. Seja feliz, pequenina, seja feliz.
Então ali estávamos nós, uma ao lado da outra, com uma leve colcha de algodão nos cobrindo. Éramos muito pequenas, mas, embora cansadas, não conseguíamos parar de cochichar. Flor da Neve fez perguntas sobre minha família. Perguntei sobre a dela. Contei a ela sobre a morte de Terceira Irmã. Ela me contou que sua Terceira Irmã tinha morrido de tosse. Perguntou sobre a nossa aldeia, e contei a ela que Puwei queria dizer Aldeia da Beleza de Todos, no nosso dialeto local. Ela explicou que Tongkou significava Aldeia da Boca da Floresta, e que, quando eu a visitasse, eu ia ver por quê.
O luar entrava pela janela, iluminando o rosto de Flor da Neve. Irmã Mais Velha e Lua Linda adormeceram, mas eu e Flor da Neve continuamos conversando. Quando somos mulheres, aprendemos que nunca devemos conversar sobre nossos pés amarrados, que isso é impróprio e indelicado, e que esse tipo de conversa só serve para atiçar a paixão dos homens. Porém, éramos meninas e ainda estávamos no processo de bandagem dos pés. Essas coisas não eram lembranças, como são para mim agora, mas constituíam a dor e o sofrimento que estávamos sentindo na época. Flor da Neve contou que tinha se escondido da mãe e implorado ao pai para ter piedade dela. Seu pai quase cedera, o que teria condenado Flor da Neve a uma vida de solteirona na casa dos pais, ou de empregada na casa de outra pessoa.
- Mas quando meu pai começou a fumar seu cachimbo - Flor da Neve explicou -, ele esqueceu o que me havia prometido. A mente dele estava longe, então minha mãe e minha tia me levaram para cima e me amarraram numa cadeira. É por isso que, como você, estou um ano atrasada na minha bandagem. - Isso não significava que ela aceitara o seu destino. Não, ela lutou contra ele nos primeiros meses com todas as suas forças, chegando até a rasgar completamente suas ataduras. - Minha mãe amarrou os meus pés mais apertados e me prendeu com mais força na cadeira.
- Você não pode lutar contra o destino - disse eu. - Ele é predestinado.
- Minha mãe diz a mesma coisa - Flor da Neve respondeu. - Ela só me desamarrava para andar e quebrar os meus ossos, ou então para usar o penico. O tempo todo eu ficava olhando pela janela. Eu via os pássaros voando, acompanhando as nuvens. Observava a lua crescendo e depois encolhendo. Tanta coisa acontecia do lado de fora da minha janela que eu quase esquecia do que estava acontecendo dentro daquele quarto.
Como esses sentimentos me amedrontavam! Flor da Neve tinha a marca da independência própria do signo do cavalo, só que o cavalo dela tinha asas que a levavam muito acima da terra, enquanto que o meu marchava na terra. Mas uma sensação na boca do estômago -de algo audacioso, de romper as fronteiras de nossas vidas preordenadas - causou-me uma excitação interna que, com o tempo, se transformaria num desejo profundo.
Flor da Neve chegou mais perto de mim e nós ficamos cara a cara. Ela pôs a mão no meu rosto e disse:
- Estou feliz por sermos velhas iguais. - Então, ela fechou os olhos e dormiu.
Deitada ao lado dela, contemplando seu rosto sob o luar, sentindo o peso delicado de sua mãozinha no meu rosto, ouvindo sua respiração que ia ficando cada vez mais profunda, imaginei como poderia fazer com que ela me amasse da forma que eu desejava ser amada.
Amor
Nós, mulheres, temos a obrigação de amar nossos filhos assim que eles saem de nossos corpos, mas qual de nós não sentiu decepção ao olhar para uma filha nem sentiu a profunda tristeza que toma conta da mente mesmo quando se está segurando um filho precioso, caso ele só faça chorar e sua sogra olhar para você como se o seu leite fosse amargo? Nós podemos amar nossas filhas de todo o coração, mas precisamos treiná-las para a dor. Amamos nossos filhos acima de tudo, mas jamais faremos parte do mundo deles, do mundo externo dos homens. Temos a obrigação de amar nossos maridos a partir do dia de Contratar uma Família, embora só possamos ver o rosto deles seis anos depois. Somos instruídas a amar nossos sogros, mas entramos naquelas famílias como estranhas, como a pessoa mais inferior da casa, apenas um degrau acima de uma empregada. Somos instruídas a amar e honrar os antepassados de nossos maridos, então cumprimos as obrigações apropriadas, mesmo que nossos corações exprimam silenciosamente nossa gratidão para com nossos próprios antepassados. Amamos nossos pais Porque eles tomam conta de nós, mas somos consideradas galhos sem valor na árvore da família. Nós drenamos os recursos da família, fomos criadas por uma família para outra. Por mais felizes que seja-mos com nossas famílias, todas sabemos que a separação é inevitável.
Então, amamos nossas famílias, mas compreendemos que esse amor irá terminar na tristeza da partida. Todos esses tipos de amor têm origem no dever, no respeito e na gratidão. A maioria deles, como as mulheres do meu país sabem, é fonte de tristeza, ruptura e brutalidade.
Mas o amor entre um par de velhas iguais é algo completamente diferente. Como madame Wang disse, um relacionamento laotong é contraído por escolha. Embora seja verdade que Flor da Neve e eu não sentíamos realmente tudo aquilo que havíamos escrito uma para a outra no nosso primeiro contato por intermédio do leque, quando olhamos pela primeira vez nos olhos uma da outra no palanquim, senti algo especial passar entre nós - como uma centelha para acender o fogo ou uma semente para plantar arroz. Uma única centelha, contudo, não é suficiente para aquecer uma sala, nem uma única semente é suficiente para iniciar uma plantação. Amor profundo -amor verdadeiro - tem de crescer. Naqueles tempos, eu ainda não conhecia o amor que queima, então pensei nos arrozais que costumava avistar nos meus passeios diários até a beira do rio junto com meu irmão, quando eu ainda tinha todos os meus dentes de leite. Talvez eu pudesse fazer o nosso amor crescer como um fazendeiro faz crescer sua plantação - por meio de muito trabalho, de uma vontade inabalável e das bênçãos da natureza. Que engraçado eu ainda me lembrar disso agora! Waaa! Eu sabia tão pouco sobre a vida, mas sabia o bastante para pensar como um fazendeiro.
Então, quando menina, preparei a terra - pegando um pedaço de papel com Baba ou pedindo a Irmã Mais Velha um pedacinho de pano do seu enxoval -, na qual plantar. Minhas sementes eram os caracteres nu shu que eu compunha. Madame Wang tornou-se o meu canal de irrigação. Quando ela passava para ver como meus pés estavam progredindo, eu dava a ela a minha missiva - em forma de carta, de um pedaço de tecido ou de um lenço bordado -, e ela a entregava a Flor da Neve.
Nada pode crescer sem o sol - algo que está completamente fora do controle de um fazendeiro. Com o tempo, passei a acreditar que Flor da Neve desempenhou esse papel. Para mim, o sol vinha na forma de suas respostas às minhas cartas em nu shu. Quando eu recebia algo de Flor da Neve, todas nos reuníamos para decifrar o sentido, pois ela já usava palavras e imagens que desafiavam o conhecimento de titia.
Eu escrevia coisas simples, infantis: "Eu estou boa. Como vai você?" Ela podia responder: "Dois pássaros se equilibram nos galhos mais altos de uma árvore. Juntos, eles voam para o céu." Eu podia escrever: "Hoje mamãe me ensinou a fazer arroz enrolado em folhas de taro." Flor da Neve podia responder: "Hoje olhei pela minha janela. Pensei na fênix subindo para procurar um companheiro, e então pensei em você." Eu podia escrever: "Uma data favorável foi escolhida para o casamento de Irmã Mais Velha." Ela podia responder: "Sua irmã está agora no segundo estágio das muitas tradições do seu casamento. Felizmente, ela ainda ficará com vocês por mais alguns anos." Eu podia escrever: "Eu quero aprender tudo. Você é inteligente. Posso ser sua aluna?" Ela podia responder: "Eu também estou aprendendo com você. É isso que nos faz um par de marrecos construindo um ninho juntos." Eu podia escrever: "Meus pensamentos não são profundos e minha letra é imperfeita, mas eu gostaria que você estivesse aqui e pudéssemos cochichar juntas à noite." A resposta dela: "Dois rouxinóis cantam na escuridão."
As palavras dela me assustavam e me alegravam ao mesmo tempo. Ela era inteligente. Era muito mais instruída do que eu. Mas essa não era a parte assustadora. Em todas as mensagens, ela falava em pássaros, em voar, no mundo longínquo. Mesmo então, ela voava para longe da realidade. Eu queria me agarrar em suas asas e voar junto com ela, apesar do medo.
Exceto pelo leque, Flor da Neve nunca me mandou nada sem que eu tivesse mandado algo para ela antes. Isso não me incomodava. Eu a estava conquistando. Eu a regava com minhas cartas, e ela sempre correspondia com um galhinho novo ou com uma flor. Mas um obstáculo me intrigava. Eu queria vê-la de novo. Ela precisava convidar-me para a sua casa, mas o convite não vinha.
Um dia, madame Wang chegou para uma visita, dessa vez trazendo o leque. Eu não o abri de uma vez só. Abri primeiro as primeiras três dobras, revelando sua primeira mensagem para mim, a minha -esposta ao lado desta e a nova comunicação que vinha em seguida:
Se sua família concordar, eu gostaria de ir visitá-la no décimo primeiro mês. Nós vamos sentar juntas, enfiar nossas agulhas, escolher nossas cores e conversar em voz baixa.
Na guirlanda de folhas, ela acrescentara outra flor delicada.
No dia marcado, esperei ao lado da janela, aguardando o palanquim dobrar a esquina. Quando ele parou diante da porta, tive vontade de descer correndo e sair à rua para receber minha laotong. Isso era impossível. Mamãe foi até a rua, e a porta do palanquim foi aberta. Flor da Neve desceu. Usava a mesma jaqueta azul-celeste com desenho de nuvens. Com o tempo, passei a pensar nela como sendo sua túnica de viagem, e achei que ela a usava em todas as suas visitas para não embaraçar a minha família pela nossa pobreza.
Ela não tinha trazido nem comida nem roupas com ela, como era o costume. Madame Wang fez a mesma recomendação que havia feito a Flor da Neve da última vez. Ela devia ser boa, não reclamar, aprender com os olhos e os ouvidos, e deixar sua mãe orgulhosa. Flor da Neve respondeu:
- Sim, titia. - Mas eu sabia que ela não estava prestando atenção porque estava parada na rua, olhando para a janela, procurando o meu rosto nas sombras.
Mamãe carregou Flor da Neve para cima, e, assim que seus pés tocaram no chão do aposento das mulheres, ela começou a falar sem parar. Conversava, cochichava, implicava, fazia confidências, consolava, admirava. Ela não era a menina que me incomodava com suas idéias de voar para longe. Só queria brincar, se divertir, rir e falar, falar, falar, falar sobre coisas de menina.
Eu tinha dito a ela que queria ser sua aluna, então naquele dia ela começou a me ensinar coisas de O clássico das mulheres, como nunca mostrar os dentes ao sorrir ou erguer a voz ao falar com um homem. Mas ela havia escrito que também queria ser minha aluna, então me pediu para ensiná-la a fazer aqueles bolinhos de arroz. Ela também fez perguntas estranhas sobre tirar água do poço e dar comida aos porcos. Eu ri porque toda menina sabe essas coisas. Flor da Neve jurou que não sabia. Achei que estava brincando comigo. Ela insistiu em dizer que não sabia mesmo. Então, as outras começaram a implicar comigo.
- Talvez você não saiba como tirar água! - Irmã Mais Velha disse.
- E talvez você não lembre como dar comida a um porco - titia acrescentou. - Esse conhecimento foi jogado no lixo junto com os seus sapatos velhos.
Isso era demais, e eu me levantei. Estava tão zangada que pus as mãos na cintura e olhei com raiva para elas, mas, quando vi os rostos risonhos olhando para mim, minha raiva desapareceu e quis deixá-las ainda mais alegres.
Foi um divertimento para todo mundo no aposento das mulheres me ver andar desajeitadamente, de um lado para outro, nos meus pés ainda convalescentes, fingindo tirar água do poço e carregá-la de volta para casa ou arrancando capim e misturando-o com restos de comida. Lua Linda riu tanto que teve de urinar. Até Irmã Mais Velha, tão séria na preparação do seu enxoval, riu com o rosto escondido na manga. Quando olhei para Flor da Neve, seus olhos estavam alegres e ela batia palmas, encantada. Flor da Neve era assim. Ela podia entrar no aposento das mulheres e, com umas poucas palavras, levar-me a fazer coisas que eu jamais sonharia em fazer por iniciativa própria. Ela poderia estar naquele aposento - que eu via como um lugar de segredos, sofrimentos e luto - e transformá-lo num oásis de alegria, risos e diversão.
Apesar daquela sua conversa de falar em voz baixa com homens, ela conversava com Baba e titio durante o jantar, fazendo-os rir também. Irmão Mais Moço escalava Flor da Neve como se fosse um Macaquinho, e o colo dela um ninho numa árvore. Quanta vida tinha ela! Aonde quer que fosse, conquistava as pessoas e as tornava felizes. Ela era melhor do que nós - todo mundo podia ver -, mas transformou isso numa aventura para minha família. Para nós, ela era como um pássaro raro que havia fugido da gaiola e estava ciscando no pátio no meio das galinhas. Nós nos divertíamos, e ela também.
Chegou a hora de lavarmos o rosto para dormir. Lembrei-me do incômodo que senti durante a primeira visita de Flor da Neve. Fiz sinal para ela ir primeiro, mas ela se recusou. Se eu fosse primeiro, a água não estaria limpa para ela. Mas quando Flor da Neve disse: -Vamos lavar o rosto juntas —, eu soube que todo o meu trabalho e a minha força de vontade de fazendeira tinham dado frutos. Juntas, nos inclinamos sobre a bacia e jogamos água em nossos rostos. Ela me cutucou com o cotovelo. Olhei para a água e vi nossos dois rostos refletidos. Escorria água pelo rosto dela e pelo meu. Ela riu e espirrou água em cima de mim. Naquele momento de compartilhamento da água, eu soube que minha laotong também me amava.
Aprendizagem
Durante os três anos seguintes, Flor da Neve nos visitou a cada dois meses. Sua túnica azul-celeste estampada de nuvens foi substituída por outra de seda cor de lavanda debruada de branco - uma combinação de cores incomum para uma menina tão jovem. Assim que ela entrava no aposento de cima, trocava essa roupa por outra que mamãe tinha feito para ela. Assim, éramos velhas iguais tanto por dentro quanto por fora.
Eu ainda não tinha ido visitar Tongkou, a aldeia natal de Flor da Neve. Eu não questionava isso nem ouvia os adultos da minha casa comentarem sobre a estranheza da situação. Então, um dia, quando eu tinha nove anos, ouvi mamãe tentando questionar madame Wang a respeito disso. Elas estavam paradas perto da porta e suas vozes chegaram até onde eu estava, ao lado da janela.
- Meu marido diz que nós estamos sempre alimentando Flor da Neve - mamãe disse naquele dia em voz baixa, esperando que ninguém a ouvisse. - E suas visitas nos obrigam a apanhar uma quantidade extra de água para beber, cozinhar e lavar. Ele quer saber quando Lírio irá visitar Tongkou. Como é o costume.
- O costume é que todos os oito atributos se combinem - mada-me Wang respondeu -, mas nós sabemos que um deles não combi-na. Flor da Neve entrou para uma família inferior à dela. – Madame Wang fez uma pausa, e depois acrescentou: - Eu não a ouvi reclamar disso quando abordei o assunto pela primeira vez. -Sim, mas...
- Você obviamente não entende como as coisas funcionam -madame Wang prosseguiu, indignada. - Eu disse desde o início que tinha esperança de encontrar um noivo para Lírio em Tongkou, mas esse casamento jamais ocorreria se um futuro noivo pusesse os olhos na sua filha antes do dia do casamento. Além disso, a família de Flor da Neve sofre por causa da diferença social entre as meninas. Você deveria sentir-se grata por eles não terem encerrado o acordo laotong. É claro que nunca é tarde demais para se fazer uma mudança, se é isso que seu marido realmente deseja. Vai ser apenas mais uma situação incômoda para mim.
O que minha mãe poderia fazer, exceto dizer:
— Madame Wang, eu me expressei mal. Por favor, entre. Quer uma xícara de chá?
Percebi o medo e a vergonha de minha mãe naquele dia. Ela não podia pôr em risco nenhum aspecto do relacionamento, mesmo que ele trouxesse mais um peso para nossa família.
Você pode imaginar como me senti, sabendo que a família de Flor da Neve não achava que eu era sua igual? Isso não me incomodou, porque eu sabia que não merecia a afeição de Flor da Neve. Eu me esforçava todos os dias para fazer com que ela me amasse do mesmo modo que eu a amava. Senti pena - não, vergonha — de minha mãe. Ela perdera muitos pontos com madame Wang. Mas a verdade é que eu não me importei com as preocupações de Baba, com o embaraço de mamãe, com a teimosia de madame Wang, nem com o caráter peculiar do meu relacionamento com Flor da Neve, porque, mesmo que pudesse ter visitado Tongkou sem que meu futuro marido me visse, eu achava que não precisava ir lá para conhecer a vida da minha laotong. Ela já tinha me contado mais sobre sua aldeia, sua família e sua linda casa do que eu poderia saber simplesmente vendo-as. Mas a questão não terminou ali.
Madame Wang e madame Gao sempre brigaram por território. Agindo como intermediária para as pessoas de Puwei, madame Gao tinha negociado um bom casamento para Irmã Mais Velha e encontrado uma menina adequada em outra aldeia para Irmão Mais Velho. Ela esperara fazer o mesmo por Lua Linda e por mim. Madame Wang, porém - com suas idéias acerca do meu destino —, tinha mudado não apenas o curso do meu destino, mas também o de Lua Linda e de madame Gao. Essas moedas não iriam parar em sua bolsa. Como dizem, uma mulher avarenta sempre acalenta a vingança.
Madame Gao viajou para Tongkou para oferecer seus serviços à família de Flor da Neve. Madame Wang não demorou a saber disso. Embora a briga não tivesse nada a ver conosco, o confronto ocorreu em nossa casa, quando madame Wang chegou para buscar Flor da Neve e encontrou madame Gao comendo sementes de abóbora e discutindo, com Baba, a logística da cerimônia de Marcação da Data de Irmã Mais Velha, na sala principal. Nada foi dito diante dele. Nenhuma das duas mulheres era assim tão mal-educada. Madame Gao poderia ter evitado a briga se tivesse simplesmente saído ao terminar a conversa. Mas ela subiu, instalou-se numa cadeira e começou a se gabar a respeito de sua competência como casamenteira. Foi como pôr um dedo na ferida. Finalmente, madame Wang não conseguiu mais se conter.
- Só uma cadela no cio seria louca o bastante para ir até minha aldeia e tentar roubar uma das minhas sobrinhas - madame Wang disse asperamente.
- Tongkou não é sua aldeia, Velha Tia - madame Gao respondeu sem se alterar. - Se sua aldeia é aquela, por que você vem se meter em "uwei? Pelo seu raciocínio, Lírio e Lua Linda deveriam ser minhas. Mas eu fico chorando waa-waa como um bebê por causa disso?
- Eu vou arrumar bons casamentos para essas meninas. E para Flor da Neve também. Você não faria melhor.
- Não tenha tanta certeza. Você não se saiu muito bem com a irmã mais velha dela. Eu sou mais adequada para isso, dadas as circunstâncias de Flor da Neve.
Mencionei que Flor da Neve estava no quarto ouvindo essas palavras, sendo tratada como se ela e a irmã fossem sacos de arroz de qualidade inferior disputados por dois comerciantes inescrupulosos? Ela estava parada ao lado de madame Wang, esperando para ir para casa. Tinha nas mãos um pedaço de pano que havia bordado. Ela o enrolou nos dedos, esticando os pontos. Ela não ergueu os olhos, mas pude ver que seu rosto e suas orelhas estavam vermelhos. Nessa altura, a briga poderia ter ficado feia. Madame Wang, entretanto, estendeu a mão e colocou-a delicadamente nas costas de Flor da Neve. Até aquele momento, eu não sabia que madame Wang era capaz de sentir pena ou de recuar.
- Eu não falo com mulheres da sua laia - disse ela. - Vamos, Flor da Neve. Temos uma longa viagem até em casa.
Nós poderíamos ter esquecido esse episódio, mas desde aquele dia as duas casamenteiras não pararam mais de se pegar. Quando madame Gao ouvia dizer que o palanquim de madame Wang tinha chegado a Puwei, ela se vestia com suas roupas mais coloridas, punha ruge no rosto e vinha até nossa casa para bisbilhotar, como... bem, como uma cadela no cio.
Quando eu e Flor da Neve fizemos onze anos, nossos pés haviam sarado completamente. Os meus eram fortes e perfeitos, com apenas sete centímetros de comprimento. Os pés de Flor da Neve eram ligeiramente maiores, enquanto que os pés de Lua Linda eram maiores ainda, embora tivessem uma forma especialmente bonita. Isso, somado às prendas domésticas de Lua Linda, tornou-a muito valorizada como esposa. Depois de termos passado pela bandagem dos pés, madame Wang passou para a fase de Contratar uma Família no processo de casamento de nós três. Nossos oito atributos foram comparados com os dos nossos futuros maridos e as datas dos noivados foram escolhidas.
Como madame Wang havia previsto, a perfeição dos meus lírios dourados conduziu-me a um noivado imprevisto. Ela negociou o meu casamento com a melhor família Lu de Tongkou. O tio do meu marido era um intelectual jinshi, que havia recebido muitas terras do imperador por serviços prestados. Tio Lu, como ele era chamado, não tinha filhos. Morava na capital, e quem cuidava das suas propriedades era o irmão. Como o meu sogro era"o chefe da aldeia - alugava terras para os fazendeiros e recolhia os aluguéis -, todo mundo presumia que o meu marido iria tornar-se o futuro chefe. Lua Linda ia se casar com um rapaz de uma família Lu menos importante que vivia perto. Seu noivo era filho de um fazendeiro que cultivava quatro vezes mais mou do que Baba e titio. Para nós, isso parecia próspero, mas ainda era muito menos do que o meu futuro sogro controlava para o irmão.
- Lua Linda, Lírio - madame Wang disse -, vocês duas são unidas como duas irmãs. Agora vão ser como minha irmã e eu. Nós duas nos casamos em Tongkou. Embora ambas tenhamos sofrido reveses, temos a sorte de ter passado a vida toda juntas. - E, realmente, Lua Linda e eu estávamos felizes porque íamos poder continuar dividindo tudo, desde os nossos dias de arroz-e-sal como esposas e mães até os dias de sentarmos calmamente como viúvas.
Flor da Neve tinha de se casar fora de Tongkou, mas ela ficaria perto, em Jintian - Aldeia do Espaço Aberto. Madame Wang garantiu que Lua Linda e eu poderíamos avistar Jintian e talvez até enxergar a janela de Flor da Neve das nossas janelas. Não soubemos muito a respeito da família do futuro marido de Flor da Neve, apenas que o seu noivo tinha nascido no ano do galo. Isso nos preocupou, porque todo mundo sabe que esse não é o casamento ideal, já que o galo quer sentar-se nas costas do cavalo.
- Não se preocupem, meninas - madame Wang tranqüilizou-nos. - O adivinho estudou os elementos água, fogo, metal, terra e madeira. Prometo que não se trata de um caso em que água e fogo terão de conviver. Tudo dará certo - ela disse, e nós acreditamos nela.
As famílias dos nossos noivos enviaram os primeiros presentes de dinheiro, doces e carne. Titia e titio receberam uma perna de Porco, enquanto que mamãe e Baba receberam um porco assado inteiro, que foi cortado e enviado de presente para os nossos parentes em Puwei. Nossos pais retribuíram com ovos e arroz para simbolizar nossa fertilidade. Então, esperamos pelo início da segunda fase, quando os nossos futuros sogros iriam Marcar a Data dos nossos casamentos.
Imagine como estávamos felizes. Nossos futuros estavam garantidos. Nossas novas famílias eram de nível mais elevado do que as nossas. Ainda éramos jovens o bastante para acreditar que nossos corações bondosos iriam suplantar quaisquer dificuldades que tivéssemos com nossas sogras. Estávamos ocupadas com os trabalhos manuais. Mas, principalmente, estávamos felizes em desfrutar a companhia umas das outras.
Titia continuou a nos ensinar nu shu, mas também aprendíamos com Flor da Neve, que trazia novos caracteres toda vez que vinha nos visitar. Alguns deles ela conseguia espiando os papéis do irmão, uma vez que muitos caracteres nu shu são apenas versões em itálico de caracteres masculinos, mas outros vinham da mãe de Flor da Neve, que era extremamente versada na escrita secreta das mulheres. Passávamos horas praticando-os, desenhando os traços com nossos dedos nas palmas das mãos umas das outras. Titia sempre nos avisava para sermos cuidadosas com as palavras, já que, ao usar caracteres fonéticos, em oposição aos caracteres pictográficos da escrita dos homens, o sentido das palavras podia ser confundido ou perder-se.
- Toda palavra tem de ser contextualizada - ela nos recomendava todos os dias no final da aula. - Uma leitura errada poderia causar muitos transtornos. - Depois dessa recomendação, titia nos recompensava com a história romântica da mulher que inventou nossa escrita secreta.
- Muitos anos atrás, nos tempos de Song, há mais de mil anos, talvez - dizia ela -, o imperador Song Zhezong vasculhou todo o reino em busca de uma nova concubina. Ele viajou para bem longe, chegando finalmente ao nosso estado, onde ouviu falar de um fazendeiro chamado Hu, um homem de alguma educação e bom-senso que vivia na aldeia de Jintian, sim, Jintian, onde nossa Flor da Neve irá morar quando se casar. Mestre Hu tinha um filho que era intelectual, um jovem de posição muito elevada que havia se saído muito bem nos exames imperiais, porém a pessoa que mais intrigou o imperador foi a filha mais velha do fazendeiro. O nome dela era Yuxiu. Ela não era um galho inteiramente inútil, pois o pai tinha cuidado de sua educação. Sabia recitar poesia clássica e tinha aprendido a escrita dos homens. Sabia cantar e dançar. Seu bordado era fino e delicado. Tudo isso convenceu o imperador de que ela Seria uma ótima concubina real. Ele visitou mestre Hu, negociou a compra de sua inteligente filha, e logo Yuxiu estava a caminho da capital. Um final feliz? De certa forma. Mestre Hu recebeu muitos presentes, e Yuxiu teve garantida uma vida de jade e seda na corte. Mas, meninas, digo a vocês que mesmo uma pessoa tão inteligente e culta quanto Yuxiu não conseguiu evitar a tristeza da separação da família. Quantas lágrimas escorreram dos olhos de sua mãe! Como suas irmãs choraram de tristeza! Mas nenhuma delas ficou tão triste quanto Yuxiu.
Nós já tínhamos aprendido muito bem essa parte da história. A separação de Yuxiu da família foi apenas o início de suas provações. Mesmo com todos os seus talentos, ela não conseguiu manter o imperador distraído para sempre. Ele se cansou do seu lindo rosto de lua, dos seus olhos de amêndoa, da sua boca de cereja, enquanto que os seus talentos - tão incomparáveis em Yongming - eram insignificantes diante dos talentos das outras damas da corte. Pobre Yuxiu. Ela não era páreo para as intrigas palacianas. As outras esposas e concubinas não queriam saber daquela moça do campo. Ela se sentia triste e solitária, mas não tinha como se comunicar com sua mãe e suas irmãs sem que as outras descobrissem. Uma palavra descuidada e ela poderia ser decapitada ou atirada num dos poços do palácio e silenciada para sempre.
- Dia e noite, Yuxiu guardava as suas emoções para si mesma — titia prosseguiu. - As mulheres malvadas da corte e os eunucos Vigiavam-na enquanto ela bordava ou praticava caligrafia silenciosamente. Eles debochavam o tempo todo do trabalho dela. "Está muito malfeito", diziam. Ou então: "Vejam como essa macaca camponesa tenta copiar a escrita dos homens." Todas as palavras vindas de suas bocas eram cruéis, mas Yuxiu não estava tentando copiar a escrita dos homens. Ela a estava modificando, inclinando, feminili-zando e, por fim, criando caracteres inteiramente novos, que tinham pouco ou nada a ver com a escrita dos homens. Ela estava inventando um código secreto para poder escrever para a mãe e as irmãs.
Flor da Neve e eu tínhamos perguntado várias vezes como a mãe e as irmãs de Yuxiu tinham conseguido ler o código secreto, e hoje titia inseriu essa resposta na história.
- Talvez um eunuco compassivo tenha enviado secretamente uma carta de Yuxiu explicando tudo. Ou talvez suas irmãs não tenham entendido o que dizia o bilhete, tenham-no amassado, e dessa forma visto e interpretado os caracteres em itálico. Depois, com o passar do tempo, as mulheres daquela família foram inventando novos caracteres fonéticos, que passaram a compreender a partir do contexto, exatamente como vocês estão aprendendo a fazer agora. Mas esses são detalhes que os homens é que costumam apreciar. - Ela nos repreendeu severamente, lembrando-nos de que essas questões não importavam. - A lição que devemos tirar da vida de Yuxiu é que ela encontrou uma forma de compartilhar o que estava acontecendo debaixo da superfície aparentemente feliz da sua vida e que esse presente que ela deixou nos foi passado através de inúmeras gerações.
Por um momento ficamos caladas, pensando naquela concubi-na solitária. Titia começou a cantar e nós três nos juntamos a ela, enquanto mamãe ficava ouvindo. Era uma canção triste, que diziam ter saído diretamente da boca de Hu Yuxiu. Nossas vozes derramaram a sua tristeza:
A minha escrita está encharcada com as lágrimas do meu coração, Uma rebelião invisível que nenhum homem pode ver. Deixem que as histórias da nossa vida tornem-se uma arte trágica. Ó mamãe, ó irmãs, ouçam-me, ouçam-me.
As últimas notas saíram flutuando pela janela e encheram o beco.
- Lembrem-se, meninas - titia disse. - Nem todos os homens são imperadores, mas todas as meninas se casam. Yuxiu inventou o nu shu para que as mulheres do nosso estado mantenham os elos com suas famílias.
Nós pegamos nossas agulhas e começamos a bordar. No dia seguinte, titia iria contar-nos de novo aquela história.
No ano em que Flor da Neve e eu fizemos treze anos, nossa aprendizagem vinha de todos os lados e tínhamos de ajudar em todas as tarefas costumeiras. Embora as mulheres da família de Flor da Neve tivessem se excedido ao ensinar-lhe as artes do refinamento, tinham falhado completamente com as artes domésticas, então ela me acompanhava como uma sombra enquanto eu cumpria minhas tarefas. Acordávamos de madrugada e acendíamos o fogo para cozinhar. Depois que Flor da Neve e eu lavávamos os pratos, íamos preparar a comida dos porcos. Ao meio-dia, saíamos por alguns minutos para colher verduras frescas na horta; depois preparávamos o almoço. Antes, mamãe e titia é que realizavam todas essas tarefas. Agora, elas nos supervisionavam. As tardes eram passadas no aposento das mulheres. Quando caía a noite, ajudávamos a preparar e servir o jantar. Cada minuto do dia era uma aula. As meninas da nossa casa - e incluo Flor da Neve nisso - tentavam ser boas alunas. Lua Linda era quem melhor fiava, tarefa para a qual Flor da Neve e eu não tínhamos a menor paciência. Eu gostava de cozinhar, mas não tinha muito interesse em tecer, costurar e fazer sapatos. Nenhuma de nós gostava de limpar, mas Flor da Neve era horrível nisso. Mamãe e titia não a castigavam como faziam comigo e minha prima quando não varríamos direito o chão ou não tirávamos toda a sujeira das túnicas de nossos pais. Eu achava que elas eram indulgentes com Flor da Neve Porque sabiam que ela teria empregadas um dia e jamais precisaria fazer essas coisas. Eu encarava essa falha dela de forma diferente. Ela jamais iria aprender a limpar direito, porque parecia pairar acima das coisas práticas da vida.
Também aprendíamos com os homens da família, embora não do modo que se poderia supor. Baba e titio jamais nos ensinariam nada diretamente. Isso teria sido inadequado. O que quero dizer é que aprendi sobre os homens pelas ações de Flor da Neve e pelo modo como Baba e titio reagiam a elas. Congee é uma das coisas mais fáceis de fazer - apenas arroz, um bocado de água e mexer, mexer, mexer -, então deixamos Flor da Neve preparar isso para o café da manhã. Quando ela viu que Baba gostava de cebolas, providenciou para que uma porção extra fosse colocada em sua tigela. No jantar, mamãe e titia tinham sempre colocado silenciosamente os pratos na mesa e deixado que Baba e titio se servissem. Flor da Neve circulava a mesa, mantendo a cabeça baixa e oferecendo cada prato, primeiro para Baba, depois para titio, em seguida para Irmão Mais Velho e Segundo Irmão. Ela ficava sempre suficientemente afastada para não parecer muito íntima, mas ao mesmo tempo demonstrando cortesia. Aprendi que, por causa dessas pequenas atenções, eles evitavam encher demais a boca, cuspir no chão ou coçar as barrigas cheias. Em vez disso, sorriam e conversavam com ela.
Meu desejo de aprender ia muito além do que eu precisava saber no aposento das mulheres, nas áreas do andar de baixo e até mesmo no estudo de nu shu. Eu queria saber sobre o meu futuro. Felizmente, Flor da Neve adorava falar, e ela falava um bocado sobre Tongkou. Nessa altura, ela já tinha viajado muitas vezes de uma aldeia para outra e tinha aprendido o caminho muito bem.
- Quando você for para a casa do seu marido - ela me disse —, vai passar sobre o rio e atravessar muitos arrozais, dirigindo-se para as colinas que pode avistar dos limites de Puwei. Tongkou se aninha nos braços daquelas colinas. Elas nunca irão vacilar, nem nós, pelo menos é isso que o meu Baba diz. Em Tongkou, estamos protegidos de terremotos, fome e malfeitores. Ela é perfeita em termos de feng shui.
Ouvindo Flor da Neve, Tongkou crescia na minha imaginação, mas isso não era nada comparado ao que eu sentia quando ela falava sobre o meu marido e os meus futuros sogros. Nem Lua Linda nem eu estivemos presentes na reunião que madame Wang teve com nossos pais, mas sabíamos do essencial: todo mundo que morava em Tongkou era um Lu, e ambas as famílias eram prósperas. Essas coisas interessavam a nossos pais, mas queríamos saber sobre nossos maridos, nossas sogras e sobre as outras mulheres que freqüentavam os aposentos do segundo andar. Só Flor da Neve podia nos dar as respostas.
- Você tem sorte, Lírio - Flor da Neve disse um dia. - Eu vi esse garoto Lu. Ele é meu primo em segundo grau. O cabelo dele é negro como a noite. Ele é amável com as meninas. Uma vez dividiu um bolo comigo. Ele não precisava fazer isso. - Ela me contou que o meu futuro marido tinha nascido no ano do tigre, um signo tão animado quanto o meu, o que nos fazia perfeitamente compatíveis. Ela me disse coisas de que eu precisaria saber para me adequar à família Lu. - É uma casa movimentada - explicou ela. - Como chefe da aldeia, mestre Lu recebe muitas visitas de dentro e fora da aldeia. Além disso, moram muitas pessoas na casa. Não existem filhas, mas diversas noras irão morar lá. Você vai ser a nora número um. A sua posição vai ser mais elevada no início. Se tiver um filho homem primeiro, essa posição será sua para sempre. Isso não significa que você não vai ter os mesmos problemas que Yuxiu, a concubina do imperador, teve. Embora a esposa de mestre Lu tenha dado a ele quatro filhos homens, ele tem três concubinas. Ele é obrigado a ter porque é o chefe da aldeia. Elas ajudam a mostrar ao povo a força que ele tem.
Eu devia ter me preocupado mais com isso. Afinal de contas, se o pai tomou concubinas, o filho provavelmente faria o mesmo. Mas eu era tão jovem e inocente que isso não me passou pela cabeça. E mesmo que tivesse passado, eu não teria sabido a respeito dos conflitos que isso poderia causar. O meu mundo se restringia apenas a mamãe e Baba, titia e titio - simples, simples.
Flor da Neve virou-se para Lua Linda, que, como sempre, ouvia calada, esperando que a incluíssemos na conversa. Flor da Neve disse:
- Lua Linda, estou feliz por você. Conheço muito bem essa família Lu. O seu futuro marido, como você sabe, nasceu no ano do porco. Suas características são ser robusto, galante e pensativo, enquanto que a sua natureza de carneiro fará com que você o adore. Esse é outro casamento perfeito.
- E quanto a minha sogra? - Lua Linda perguntou.
- Essa madame Lu visita a minha mãe todos os dias. Ela tem um coração bondoso, muito mais bondoso do que você imagina.
Flor da Neve ficou com os olhos cheios d'água. Isso foi tão inusitado que Lua Linda e eu rimos, achando que era alguma espécie de brincadeira. Minha laotong piscou os olhos rapidamente.
- Um fantasma entrou nos meus olhos! - Flor da Neve exclamou, antes de começar a rir também. Depois continuou de onde tinha parado: - Lua Linda, você vai ficar muito contente. Eles irão amá-la de todo o coração. E a melhor parte é que todo dia você vai poder andar até a casa de Lírio. Vocês ficarão mesmo muito perto uma da outra.
Flor da Neve tornou a olhar para mim.
- A sua sogra é muito tradicional - disse ela. - Segue todas as regras femininas. É cuidadosa com o que diz. Ela se veste bem. E quando chegam as visitas, tem sempre chá quente esperando. - Já que Flor da Neve estava me ensinando a fazer essas coisas, eu não tinha medo de cometer um erro. - Há mais empregados na casa do que na minha família - Flor da Neve continuou. - Você não vai ter de cozinhar, exceto para preparar pratos especiais para Lady Lu. Você não vai precisar amamentar o seu bebê, a não ser que queira.
Quando ela me contou essas coisas, achei que ela estava maluca. Quis saber mais acerca do pai do meu marido. Ela refletiu por um minuto e respondeu:
- Mestre Lu é generoso e compassivo, mas também é inteligente, por isso que ele é o chefe. Todo mundo o respeita. Todo mundo vai respeitar o filho dele e a nora também. - Ela olhou para mim com aqueles seus olhos penetrantes e repetiu: - Você tem muita sorte.
Vendo as imagens criadas pelas palavras de Flor da Neve, como eu poderia deixar de me imaginar em Tongkou com um marido amoroso e filhos perfeitos?
O meu conhecimento começou a se estender para muito além da minha própria aldeia. Flor da Neve e eu já tínhamos ido cinco vezes ao Templo de Gupo em Shexia. Todo ano subíamos a escadas do templo, colocávamos nossas oferendas no altar e acendíamos incenso. Depois andávamos até o mercado, onde comprávamos linha de bordar e papel. Sempre terminávamos o dia com uma visita ao velho Zuo para comer o seu taro com açúcar queimado. Durante a viagem, olhávamos pela janela do palanquim enquanto madame Wang cochilava. Víamos estradinhas estreitas que saíam da estrada principal e iam dar em outras aldeias. Víamos rios e canais. Aprendemos com nossos carregadores que essas águas ligavam o nosso estado ao resto da nação. Nos aposentos do segundo andar, víamos apenas quatro paredes, mas os homens do nosso estado não ficavam tão isolados. Se quisessem, poderiam viajar para quase qualquer lugar de barco.
Durante todo esse tempo, madame Wang e madame Gao entravam e saíam da nossa casa como duas galinhas atarefadas. O quê? Você acha que como os nossos noivados estavam arranjados aquelas duas iam nos deixar em paz? Elas tinham de vigiar e esperar e conspirar e bajular, protegendo e assegurando seus investimentos. Alguma coisa podia dar errado. Obviamente, estavam apreensivas com quatro casamentos numa mesma casa, imaginando se Baba iria cumprir sua promessa em relação ao preço estipulado para a esposa de Irmão Mais Velho, aos dotes das três meninas e, o mais importante, aos honorários das casamenteiras. Mas, no meu décimo terceiro verão, a batalha entre as duas casamenteiras de repente esquentou.
Tudo começou de forma muito simples. Estávamos no aposento de cima quando madame Gao começou a reclamar que as famílias locais não estavam pagando os honorários na hora certa, dando a entender que a nossa família era uma delas.
- Uma rebelião de camponeses nas colinas está tornando as coisas difíceis para todos nós - madame Gao opinou. - Nenhum produto entra nem sai. Ninguém tem cash. Ouvi dizer que algumas meninas tiveram de desistir de seus noivos porque suas famílias não podem mais pagar seus dotes. Agora essas meninas irão tornar-se pequenas noras.
Não era novidade que as coisas andavam difíceis no nosso estado, mas o que madame Gao disse em seguida surpreendeu a todas nós:
- Nem mesmo a pequena senhorita Flor da Neve está a salvo. Eu ainda tenho tempo para procurar alguém mais apropriado para ela.
Fiquei contente por Flor da Neve não estar ali para ouvir aquela insinuação.
- A senhora está falando de uma família que é uma das melhores do estado - madame Wang respondeu, com uma voz que não soava como óleo, e sim como pedras se entrechocando.
- Talvez, Velha Tia, a senhora queira dizer foi. Aquele mestre já viu muito jogo e muitas concubinas.
- Ele fez apenas o que é correto na posição dele. A senhora, por outro lado, deve ser perdoada por sua ignorância. Não sabe o que é ocupar uma posição elevada.
- Ah! A senhora me faz rir. Conta mentiras como se fossem verdades. O estado inteiro sabe o que está acontecendo com aquela família. Combine as revoltas nas colinas com safras ruins e desaten-ção, e só é possível mesmo esperar que um homem fraco se torne viciado no cachimbo...
Minha mãe ergueu-se abruptamente.
- Madame Gao, sou grata pelas coisas que a senhora fez pelas minhas filhas, mas elas são crianças e não devem ouvir essas coisas. Vou acompanhá-la até a porta, pois tenho certeza de que a senhora tem outras visitas a fazer.
Mamãe praticamente ergueu madame Gao da cadeira e quase a arrastou pelas escadas. Assim que desapareceram de vista, minha tia serviu chá para madame Wang, que estava sentada, imóvel, muito pensativa, com o olhar distante. Então, ela piscou três vezes, olhou em volta e me chamou para perto dela. Eu estava com treze anos e ainda tinha medo dela. Eu tinha aprendido a chamá-la de titia, mas na minha mente ela era sempre a amedrontadora madame Wang. Quando me aproximei, ela me puxou para perto, segurou-me entre suas pernas e agarrou os meus braços como tinha feito na primeira vez em que nos encontramos.
- Nunca, nunca repita o que ouviu aqui para Flor da Neve. Ela é uma menina inocente. Não precisa ter a mente envenenada pela maldade dessa mulher.
- Sim, titia.
Ela me sacudiu com força.
- Nunca!
- Eu prometo.
Na época, não entendi metade do que foi dito. Mesmo que tivesse entendido, por que eu iria repetir aquele boato maldoso para Flor da Neve? Eu amava Flor da Neve. Jamais iria feri-la repetindo os comentários venenosos de madame Gao.
Só vou acrescentar o seguinte: mamãe deve ter dito alguma coisa para Baba, porque madame Gao nunca mais pôde entrar na nossa casa. No futuro, todos os assuntos foram tratados com ela em banquinhos do lado de fora da casa. Isso mostra o quanto mamãe e Baba gostavam de Flor da Neve. Ela era a minha laotong, mas eles a amavam tanto quanto a mim.
O décimo mês do meu décimo terceiro ano chegou. Do lado de fora da janela, o céu esbranquiçado do verão cedeu lugar ao azul do outono. Só faltava um mês para o casamento de Irmã Mais Velha. A família do noivo entregou a última leva de presentes. As irmãs juradas de Irmã Mais Velha venderam um dos seus vinte e cinco km de arroz e compraram presentes. As meninas vieram ficar conosco para dentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima. Outras mulheres a aldeia vieram visitar-nos para conversar, dar conselhos e lamen-ar. Durante vinte e oito dias, cantamos canções e contamos histó-rias- As irmãs juradas ajudaram Irmã Mais Velha a terminar a última colcha e a embrulhar os sapatos que ela havia feito para os membros de sua nova família. Juntas, todas trabalhamos nos livros do terceiro dia de casamento que seriam dados à Irmã Mais Velha. Eles a apresentariam às mulheres da sua nova família, e nós nos esforçamos para encontrar as palavras certas para descrever seus melhores atributos e características.
Três dias antes de Irmã Mais Velha partir para sua nova casa, tivemos o Dia de Tristeza e Preocupação. Mamãe sentou-se no quarto degrau da escada com os pés no terceiro e iniciou um lamento:
- Filha Mais Velha, você foi uma pérola em minhas mãos - ela entoou. - Meus olhos se enchem de lágrimas. Dois rios escorrem pelo meu rosto. Em breve, haverá aqui um espaço vazio.
Irmã Mais Velha, suas irmãs juradas e as mulheres da aldeia começaram a chorar ao ouvir a tristeza de minha mãe. Ku, ku, ku.
Titia cantou em seguida, acompanhando o ritmo estabelecido por minha mãe. Como sempre, titia tentou ser otimista no meio da tristeza.
- Eu sou feia e não sou inteligente, mas sempre tentei ter uma natureza boa. Tenho amado o meu marido e ele tem me amado. Somos um casal de marrecos feios e não muito espertos. Temos nos divertido bastante na cama. Espero que você se divirta também.
Quando chegou a minha vez, ergui a voz:
- Irmã Mais Velha, meu coração chora por perder você. Se fôssemos filhos homens, não nos separaríamos. Ficaríamos sempre juntos como Baba e titio, Irmão Mais Velho e Segundo Irmão. Nossa família está triste. O aposento de cima vai ficar solitário sem você.
Querendo dar a ela o melhor presente possível, cantei o que havia aprendido com Flor da Neve.
- Todo mundo precisa de roupas, não importa o quanto faça calor no inverno ou frio no verão, então faça roupas para os outros sem que lhe peçam. Mesmo que a mesa seja abundante, deixe os seus parentes comerem primeiro. Trabalhe com afinco e se lembre de três coisas: seja boa para os seus sogros e demonstre-lhes sempre respeito, seja boa para o seu marido e teça sempre para ele, seja boa para os seus filhos e seja sempre um modelo de decoro para eles. Se fizer isso, a sua nova família irá tratá-la com bondade. Naquela boa casa, mantenha o coração sereno.
As irmãs juradas vieram depois de mim. Elas tinham amado a sua irmã jurada. Irmã mais velha era talentosa e atenciosa. Quando a última menina se casasse, sua irmandade iria dissolver-se. Elas guardariam apenas as lembranças dos tempos em que bordavam e teciam juntas. Teriam apenas as palavras escritas nos seus livros de terceiro dia de casamento para consolá-las nos anos que viriam. Quando uma delas morresse, juraram que as irmãs restantes iriam ao funeral e queimariam seus escritos para que as palavras pudessem viajar com ela para o outro mundo. Mesmo estando angustiadas pela sua partida, as irmãs desejaram que ela fosse feliz.
Depois que todo mundo tinha cantado e que muitas lágrimas haviam sido derramadas, Flor da Neve fez uma apresentação especial.
- Não vou cantar para você - ela disse. - Em vez disso, vou apresentar o modo que sua irmã e eu encontramos de tê-la sempre conosco. - De dentro da manga, ela tirou o nosso leque, abriu-o e leu os dois versos simples que havíamos escrito juntas: - "Irmã Mais Velha e boa amiga, serena e bondosa. Você é uma lembrança feliz."— Então, Flor da Neve apontou para a pequena flor cor-de-rosa que havia pintado na nossa guirlanda no alto do leque para representar Irmã Mais Velha para todo o sempre.
No dia seguinte, todo mundo juntou folhas de bambu e encheu baldes de água. Quando a nova família de Irmã Mais Velha chegou, atiramos as folhas sobre eles como um símbolo de que o amor dos recém-casados iria ser eternamente fresco como o bambu; depois jogamos a água para dizer à família do noivo que ela era tão pura quanto aquele líquido claro e vital. Isso tudo foi acompanhado de Muitos risos e vivas.
Mais horas se passaram com refeições e lamentos. O enxoval foi exibido e todo mundo comentou a respeito da qualidade do trabalho manual de Irmã Mais Velha. Durante todo o dia e a noite, ela esteve linda com seus olhos marejados de lágrimas. Na manhã seguinte, ela entrou no palanquim para ir ao encontro da sua nova família. As pessoas atiraram mais água e gritaram: "Casar uma filha é como jogar água fora!" Nós todos andamos até os limites da aldeia e ficamos vendo a procissão cruzar a ponte e sair de Puwei. Três dias depois, foi mandado um carregamento para a nova aldeia com bolos de arroz, presentes e todos os nossos livros de terceiro dia de casamento, que seriam lidos em voz alta no seu novo aposento do andar de cima. No dia seguinte a isso, conforme o costume, Irmão Mais Velho pegou a carroça da família, apanhou Irmã Mais Velha e a trouxe para casa. Exceto pelas visitas conjugais algumas vezes por ano, ela continuaria a morar conosco até o final da sua primeira gravidez.
De todos os eventos relativos ao casamento de Irmã Mais Velha, eu me lembro mais de quando ela voltou de uma visita nupcial à casa do marido na primavera seguinte. Ela era normalmente muito calma - ficava sentada em seu banquinho, num canto, bordando ou costurando, jamais provocando discussões, sempre obediente -, mas dessa vez ela se ajoelhou no chão com o rosto enterrado no colo de mamãe, chorando suas mágoas. Sua sogra era agressiva, estava sempre reclamando e criticando. Seu marido era ignorante e bruto. A família dele queria que ela apanhasse água e lavasse a roupa de todo mundo. Ela mostrou como suas mãos estavam machucadas de tanto trabalhar. Aquelas pessoas não gostavam de alimentá-la e falavam mal da nossa família por não mandar comida suficiente para ela durante suas visitas.
Lua Linda, Flor da Neve e eu nos juntamos em volta dela, fazendo ruídos de comiseração, mas, por dentro, embora sentíssemos pena de Irmã Mais Velha, achávamos que uma coisa dessas jamais aconteceria conosco. Mamãe alisou o cabelo de Irmã Mais Velha e acariciou-lhe o corpo trêmulo. Eu esperava que mamãe dissesse a ela para não se preocupar, que aqueles problemas eram apenas temporários, mas isso não aconteceu. Com um ar de desamparo, mamãe olhou para titia, em busca de orientação.
- Eu tenho trinta e oito anos de idade - titia disse, não com pena, mas com resignação. - E tenho vivido uma vida miserável. Minha família era boa, mas meus pés e meu rosto selaram o meu destino. Até mesmo uma mulher como eu, que não é nem inteligente nem linda, ou que é deformada ou muda, consegue achar um marido, porque até um homem retardado é capaz de gerar um filho. Só é preciso um recipiente. Meu pai me deu em casamento à melhor família que concordou em me aceitar. Chorei do mesmo modo que você está chorando agora. O destino foi mais cruel ainda. Não consegui ter um filho homem. Fui um peso para a família do meu marido. Eu gostaria de ter tido um filho e uma família feliz. Gostaria que minha filha jamais se casasse para poder tê-la perto de mim para ouvir os meus lamentos. Mas é assim que são as coisas para as mulheres. Você não pode escapar ao seu destino. Ele está predestinado.
Esses sentimentos expressos por minha tia - a única pessoa em nossa casa que sempre tinha algo engraçado a dizer, que sempre falava o quanto ela e titio eram felizes e se divertiam na cama, que sempre nos guiava em nossos estudos com tanta animação - foram um choque para nós. Lua Linda apertou minha mão. Seus olhos encheram-se de lágrimas diante dessa realidade, que nunca havia sido expressa no aposento das mulheres até então. Eu nunca havia pensado antes no quanto a vida fora dura com titia, mas naquele momento tive uma visão dos anos anteriores e de como ela havia sempre mantido um sorriso nos lábios diante do que, obviamente, fora uma vida decepcionante.
Não é preciso dizer que essas palavras não serviram de consolo Para Irmã Mais Velha. Ela soluçou mais ainda e tapou os ouvidos. Mamãe teve de se manifestar, mas, quando falou, as palavras que lhe saíram da boca vieram da parte mais profunda do yin - negativas, sombrias e femininas.
- Você se casou - mamãe disse, de um jeito que soou estranhamente isento. - Você vai para outra aldeia. Sua sogra é cruel. Seu marido não liga para você. Gostaríamos que você não fosse embora, mas toda filha se casa e parte. Todo mundo concorda. Todo mundo aceita isso. Você pode chorar e implorar para voltar para casa, podemos lamentar a sua partida, mas você e nós não temos escolha. Existe um velho ditado que explica isso muito bem: "Se uma filha não se casa, ela não tem valor; se o fogo não incendeia a montanha, a terra não fica fértil."
Dias de Cabelo Preso
Tomar Brisa Fresca
Flor da Neve e eu fizemos quinze anos. Nosso cabelo foi preso para cima no estilo da fênix, simbolizando que em breve estaríamos casadas. Trabalhávamos zelosamente nos nossos enxovais. Falávamos em voz baixa. Caminhávamos graciosamente nos nossos pés de lírio. Dominávamos perfeitamente nu shu e, quando estávamos separadas, escrevíamos quase que diariamente uma para a outra. Nós sangrávamos todo mês. Ajudávamos em casa, varrendo, colhendo legumes na horta, preparando refeições, lavando pratos e roupas, tecendo e costurando. Éramos consideradas mulheres, mas não tínhamos as responsabilidades de mulheres casadas. Ainda tínhamos a liberdade de nos visitar quando quiséssemos e passávamos horas no aposento do andar de cima, com as cabeças inclinadas, bem próximas uma da outra, enquanto cochichávamos e bordávamos. Nós nos amávamos do jeito que eu havia desejado quando era menina.
Naquele ano, Flor da Neve veio passar conosco todo o tempo do estival, que acontece durante a época mais quente do ano, quando os estoques da colheita anterior estão quase no fim e a nova colheita ainda não começou. Isso significa que as mulheres casadas, que ocupam a posição mais baixa em qualquer casa, são mandadas de volta para suas aldeias de origem por vários dias ou até semanas. Chamamos isso de festival, mas na realidade se trata apenas de uma série de dias em que bocas indesejadas são afastadas das mesas das famílias de seus maridos.
Irmã Mais Velha tinha acabado de se mudar definitivamente para a casa do marido. Seu primeiro filho estava para nascer e ela não podia estar em nenhum outro lugar. Mamãe estava visitando a família dela e, com ela, levara Segundo Irmão junto. Titia também tinha ido para a casa de sua família, e Lua Linda estava hospedada do outro lado da aldeia junto com suas irmãs juradas. A esposa de Irmão Mais Velho e a filhinha deles estavam Tomando uma Brisa Fresca na casa da família dela. Baba, titio e Irmão Mais Velho queriam ficar sozinhos, em paz. Eles não queriam nada de Flor da Neve e de mim, a não ser chá quente, fumo e melancia fatiada. Então, durante as três noites do Festival, Flor da Neve e eu ficamos sozinhas no aposento do andar de cima.
Na primeira noite, nos deitamos uma ao lado da outra, usando faixas de bandagem e chinelos de dormir nos pés, roupa de baixo e roupa de cima. Empurramos a cama para perto da janela, na esperança de conseguir uma brisa fresca, mas não havia nenhuma brisa, só um calor insuportável. A lua estava quase cheia. Os raios de luz que entravam pela janela batiam nos nossos rostos suados, deixando-nos com mais calor ainda. Na noite seguinte, que estava ainda mais quente, Flor da Neve sugeriu que ficássemos apenas com a roupa de baixo.
- Não tem ninguém aqui - disse ela. - Ninguém vai saber. - Isso nos aliviou um pouco, mas queríamos algo mais fresco ainda.
Na nossa terceira noite juntas e sozinhas, a lua estava cheia, e o aposento do andar de cima estava banhado de uma luz azulada. Depois de nos certificarmos de que os homens estavam dormindo, tiramos tanto a roupa de cima quanto a de baixo. Ficamos apenas com as faixas e os chinelos nos pés. Sentimos o ar passando sobre nossos corpos, mas não era uma brisa fresca, e ainda sentíamos o mesmo calor de quando estávamos vestidas.
- Isso não é suficiente - Flor da Neve disse, colocando em palavras o que eu estava pensando.
Ela se sentou e pegou o nosso leque. Vagarosamente, ela o abriu e começou a abaná-lo sobre o meu corpo. Por mais quente que o ar estivesse sobre a minha pele, foi uma sensação deliciosa. Flor da Neve, no entanto, ainda não estava satisfeita. Fechou o leque e largou-o. Ela fitou o meu rosto e depois deixou os olhos percorrerem o meu corpo, desde o pescoço, passando pelos meus seios, a barriga. Eu devia ter ficado sem jeito por ela estar me olhando daquele jeito, mas ela era minha laotong, minha velha igual. Não havia motivo algum para eu ficar envergonhada.
Quando ergui os olhos, eu a vi encostar o indicador nos lábios. Ela esticou a ponta da língua. Na luz clara da lua cheia, vi sua língua cor-de-rosa e brilhante. Com um gesto delicado, ela passou a língua na ponta do dedo. Depois, encostou o dedo no meu estômago. Traçou uma linha para a esquerda e outra na direção oposta, seguida de algo semelhante a duas cruzes. Aquele dedo úmido me proporcionou uma sensação de frescor na pele e fiquei arrepiada. Fechei os olhos e deixei aquela sensação me percorrer. Então, depressa demais, a umidade desapareceu. Quando abri os olhos, Flor da Neve estava olhando para mim.
- E então? - Mas ela não esperou a resposta. - É um caractere -explicou ela. - Diga-me qual.
De repente, entendi o que tinha feito. Ela desenhara um caractere em nu shu no meu estômago. Vínhamos fazendo isso havia anos, desenhando caracteres na terra com pauzinhos, ou nas mãos ou costas uma da outra com nossos dedos.
- Vou fazer de novo - disse ela -, mas preste atenção.
Ela lambeu o dedo, e foi um movimento tão fluido quanto da primeira vez. Assim que aquela umidade tocou a minha pele, fechei os olhos. A sensação deixou meu corpo pesado e ofegante. Um traço Para a esquerda para criar um pedacinho de lua, outro pedacinho embaixo desse e ao contrário do primeiro, dois traços à direita para criar a primeira cruz, depois dois traços para a esquerda para criar a segunda. Mais uma vez mantive os olhos fechados até o frio momentâneo deixar o meu corpo. Quando abri os olhos, Flor da Neve estava olhando para mim com uma expressão interrogadora.
-Cama - disse eu.
- Está certo - disse ela, falando baixo. - Feche os olhos. Vou escrever outra palavra.
Dessa vez, ela escreveu um caractere bem menor num local bem à direita do meu osso do quadril. Eu o reconheci imediatamente. Era um verbo que significava acender.
Quando eu disse isso, ela murmurou no meu ouvido:
- Ótimo.
O caractere seguinte foi desenhado no meu estômago, perto da extremidade oposta do osso do quadril.
- Luar - disse eu. E abri os olhos. - A cama é iluminada pelo luar.
Ela sorriu por eu ter identificado o primeiro verso do poema da dinastia Tang que ela me havia ensinado; então, trocamos de posição. Como ela fizera comigo, eu me demorei contemplando o seu corpo: a finura do seu pescoço, os dois montinhos que formavam os seus seios, o espaço achatado do estômago, que era tão convidativo quanto uma peça de seda esperando para ser bordada, os dois ossos salientes do quadril, abaixo disso um triângulo idêntico ao meu, e depois duas pernas magras que desapareciam nos chinelos de dormir de seda vermelha.
Você tem de lembrar que eu ainda não era casada. Não sabia o que acontecia entre marido e mulher. Só mais tarde aprendi que nada é mais íntimo para uma mulher do que seus chinelos de dormir, e que nada é mais erótico para um homem do que ver a pele branca de uma mulher nua em contraste com o vermelho desses chinelos. Naquela noite, porém, posso lhe dizer que meus olhos se detiveram neles. Era o par de verão de Flor da Neve. Ela havia escolhido para bordar neles os Cinco Venenos - centopéias, sapos, escorpiões, serpentes e lagartos. Esses eram os símbolos tradicionais usados para combater os males trazidos pelo verão - cólera, praga, tifo, malária. Seus pontos eram perfeitos, assim como todo o seu corpo era perfeito.
Lambi o dedo e olhei para a brancura da pele de Flor da Neve. Quando o meu dedo úmido tocou-lhe o estômago, logo acima do umbigo, eu a vi prender a respiração. Seus seios ergueram-se, seu estômago encolheu, e sua pele ficou toda arrepiada.
- Eu - disse ela. Estava correto. Escrevi o próximo caractere abaixo do seu umbigo. - Penso - disse ela. Então, segui exatamente o que ela havia feito, e escrevi do lado direito do osso do seu quadril. - Branda. - Agora do lado esquerdo. - Neve. - Ela conhecia o poema, portanto não havia mistério nas palavras, só a sensação de escrevê-las e lê-las. Eu tinha acompanhado todos os lugares em que ela havia escrito no meu corpo. Agora eu tinha de encontrar um lugar novo. Escolhi aquele ponto macio em que os dois lados do seu quadril se juntam sobre a barriga. Eu sabia pelo meu próprio corpo que essa área era sensível ao toque, ao medo, ao amor. Flor da Neve estremeceu quando escrevi. - Cedo.
Só faltavam duas palavras para terminar o verso. Eu sabia o que queria fazer, mas hesitei. Deixei a ponta do dedo flutuar pela ponta da minha língua. Então, encorajada pelo calor, pelo luar e pela sensação da sua pele contra a minha, deixei meu dedo úmido escrever sobre um de seus seios. Ela entreabriu os lábios e gemeu. Ela não disse qual era o caractere, e não pedi que ela o fizesse. Mas, para escrever o último caractere do verso, me deitei ao lado de Flor da Neve para poder ver de perto como a sua pele iria responder. Lambi o dedo, escrevi o caractere e vi o bico do seu seio entumecer e saltar. Ficamos imóveis por um momento. Então, ainda com os olhos fechados, Flor da Neve murmurou o verso inteiro:
-Eu penso na neve branda de um amanhecer de inverno.
Ela virou de lado para olhar para mim. Pôs a mão carinhosamente no meu rosto, como fazia toda noite desde que havíamos começado a dormir juntas anos antes. Seu rosto brilhava ao luar. Então, ela deslizou a mão pelo meu pescoço, meus seios, até o meu quadril.
- Temos mais dois versos.
Ela se sentou, e me deitei de costas. Achei que tinha sentido calor nas noites anteriores, mas agora, nua, sob o luar, senti um fogo ardendo em mim, muito mais quente do que qualquer coisa que os deuses pudessem nos infligir por meio dos meros ciclos das estações.
Fiz força para me concentrar quando percebi onde ela estava planejando escrever o primeiro caractere. Tinha ido para a extremidade da cama e colocado os meus pés em seu colo. Na parte interna do meu tornozelo esquerdo, bem no local onde terminava o chinelo, ela começou a escrever. Quando terminou, dirigiu sua atenção para o meu tornozelo direito. Depois, ela foi alternando as pernas, ficando sempre logo acima das faixas. Meus pés - objetos de tanta dor e sofrimento, tanto orgulho e beleza - vibraram de prazer. Éramos velhas iguais havia oito anos; entretanto, nunca tínhamos estado tão próximas. O verso dizia: "Erguendo os olhos, eu aprecio a lua cheia no céu noturno."
Eu estava ansiosa para ela sentir o que eu havia sentido. Segurei seus lírios dourados em minhas mãos, depois coloquei-os sobre minhas coxas. Escolhi o lugar que tinha sido mais incrível para mim: a depressão entre o osso do tornozelo e o tendão que passava na parte de trás da perna. Escrevi o caractere, que pode significar inclinando-se, curvando-se ou prostrando-se. No outro tornozelo, desenhei a palavra eu.
Em seguida, escrevi um caractere em sua batata da perna. Depois disso, passei para um lugar na parte interna de sua coxa esquerda, logo acima do joelho. Meus últimos dois caracteres foram escritos no alto de suas coxas. Inclinei-me para me concentrar e escrever os caracteres mais perfeitos que eu pudesse. Soprei cada traço, sabendo a sensação que isso causaria, e vi os pêlos entre suas pernas agitarem-se em resposta.
Depois, recitamos o poema juntas.
A cama é iluminada pelo luar.
Eu penso na neve branda de um amanhecer de inverno. Erguendo os olhos, eu aprecio a lua cheia no céu noturno. Inclinando-me, eu sinto saudades da minha terra natal.
Todos sabemos que esse poema é sobre um estudioso que está viajando e sente saudades da sua casa, mas naquela noite, e para sempre, achei que era sobre nós. Flor da Neve era a minha casa, e eu era a dela.
Lua Linda
Lua Linda voltou no dia seguinte e nós retornamos ao trabalho. Meses antes, cada um dos nossos futuros sogros tinha Marcado a Data dos nossos casamentos, e tinha enviado junto as primeiras prestações dos nossos valores oficiais - mais carne de porco e doces, bem como caixas vazias de madeira para guardar nosso enxoval. Finalmente, e o mais importante, eles enviaram tecidos.
Eu já disse que mamãe e titia produziam tecidos para nossa família, e, nessa altura, Lua Linda e eu já sabíamos tecer. Mas a expressão cultivado em casa é que me vem à mente quando penso no que produzíamos. O algodão era cultivado por Baba e titio, a colheita era limpa pelas mulheres da nossa casa, a cera de abelha que usávamos para criar os desenhos e as tintas para tingir o pano de azul eram usadas com parcimônia porque éramos muito frugais.
Além do que nós mesmas fazíamos, eu só podia comparar o pano do meu enxoval com aquele usado nas túnicas, calças e lenços de cabeça de Flor da Neve, que haviam sido feitos com belos tecidos e estampados sofisticados, formando um elegante guarda-roupa. Uma das roupas mais bonitas que ela usava naquela época era feita com um tecido azul-anil. O desenho elaborado do índigo e o corte da jaqueta eram melhores do que qualquer coisa que as mulheres casadas de Puwei possuíam ou faziam. Ainda assim, Flor da Neve a usou com naturalidade até ela começar a desbotar e puir. O que estou tentando dizer é que o tecido e seu corte me inspiraram. Eu queria fazer roupas para mim que pudessem ser usadas no dia-a-dia em Tongkou.
Porém, o algodão que meus sogros mandaram, como parte do meu preço de noiva, alterou todas as minhas percepções. Era macio, sem saliências, com desenhos complexos e tingido de azul-anil profundo, tão a gosto do povo Yao. Com esse presente, percebi que ainda tinha muito que aprender e realizar, mas mesmo esse algodão não era nada comparado à seda. A que veio para mim era não apenas de ótima qualidade, mas perfeita na cor. Vermelho para o casamento, mas também para aniversários de casamento, celebrações de Ano-Novo e outras festividades. Roxo e verde, ambas apropriadas para uma jovem esposa. Um cinza-azulado da cor do céu antes de uma tempestade e um verde-azulado da cor de um lago de aldeia no verão para os meus anos de matrona, e mais tarde de viúva. Preto e azul-marinho para os homens da minha nova casa. Algumas das sedas eram lisas, enquanto outras tinham sido tecidas de modo a incluir uma dupla felicidade, com desenhos de peônias ou nuvens.
Os rolos de seda e algodão que meus sogros mandaram não me foram entregues para que eu fizesse com eles o que quisesse. Eles eram para ser usados na preparação do meu enxoval, assim como Lua Linda e Flor da Neve tinham de usar seus presentes para preparar seus enxovais. Tínhamos de fazer colchas, fronhas, sapatos e roupas em quantidade suficiente para durar a vida inteira, uma vez que as mulheres de nacionalidade Yao acreditam que jamais devem receber nada de seus sogros. Colchas! Deixe-me falar sobre isso. Elas são chatas e quentes de fazer. Entretanto, já que todo mundo acha que quanto mais colchas você leva com você para a casa da família do seu marido, mais filhos você vai ter, fizemos o máximo possível.
O que adorávamos fazer eram sapatos. Nós os fazíamos para nossos maridos, sogras, sogros e quem mais vivesse na nova casa, inclusive irmãos, irmãs, noras e todas as crianças. (Eu tive sorte, meu marido era o filho mais velho. Ele só tinha três irmãos mais moços. Os sapatos masculinos não eram enfeitados, então eu conseguia fazê-los rapidamente. Lua Linda tinha uma tarefa árdua. Sua nova casa tinha um filho, os pais dele, cinco irmãs, uma tia, um tio e os três filhos deles.) Fizemos também dezesseis pares para nós mesmas, quatro pares para cada uma das quatro estações. Estes, mais do que as outras coisas que fizemos, iriam ser bem examinados, mas ficamos muito contentes ao saber disso porque tratamos cada par com o maior cuidado possível, desde a criação das solas até o último ponto do bordado. A fabricação de sapatos nos permitia demonstrar nossa técnica bem como nossas habilidades artísticas, mas também enviava uma mensagem alegre e otimista. No nosso dialeto, a palavra usada para sapato soa da mesma forma que a palavra usada para filho. Assim como acontecia com as colchas, quanto mais sapatos fizéssemos, mais filhos teríamos. A diferença é que a fabricação de sapatos exige delicadeza, enquanto que fazer colchas é um trabalho pesado. Como havia três meninas trabalhando lado a lado, competíamos da maneira mais amigável possível para executar os mais lindos desenhos na parte externa de cada par de sapatos, e ao mesmo tempo garantir firmeza e apoio do lado de dentro.
Nossas futuras famílias mandaram os moldes de seus pés. Não conhecíamos nossos futuros maridos e não sabíamos se eles eram altos ou se tinham a pele esburacada, mas sabíamos o tamanho de seus pés. Éramos jovens - românticas como todas as meninas daquela idade — e imaginávamos todo tipo de coisas sobre nossos maridos a partir daqueles moldes. Algumas se mostraram verdadeiras. A maioria não.
Usávamos os moldes para cortar pedaços da fazenda de algodão, depois colávamos três camadas dessas pegadas. Fazíamos diversos conjuntos e os colocávamos na janela para secar. Durante o período de Tomar Brisa Fresca, eles secavam muito depressa. Uma vez secos, pegávamos as camadas coladas, fazíamos uma pilha com três e a costurávamos para formar a sola. A maioria das pessoas faz um ponto repetitivo parecido com grãos de arroz, mas queríamos impressionar nossas novas famílias, então costurávamos fazendo diversos desenhos: uma borboleta estendendo suas asas para um marido, um crisântemo em flor para uma sogra, um grilo num galho de árvore para um sogro. Todo esse trabalho apenas para as solas, mas víamos isso como mensagens para as pessoas que esperávamos que fossem nos amar quando nos casássemos.
Como eu disse, estava insuportavelmente quente naquele ano durante o período de Tomar Brisa Fresca. Nós nos derretíamos no aposento do andar de cima. No andar de baixo, era só um pouco mais fresco. Tomávamos chá, na esperança de que ele refrescasse nosso corpo, mas mesmo com nossas jaquetas e calças mais leves sofríamos. Então conversávamos sobre lembranças refrescantes da nossa infância. Eu me lembrava de quando mergulhava os pés no rio. Lua Linda recordava a época em que corria pelos campos no outono, quando o ar frio batia-lhe no rosto. Flor da Neve tinha viajado para o Norte uma vez com o pai e sentido o vento gelado que vinha da Mongólia. Essas coisas não nos acalmavam. Eram um tormento.
Baba e ti tio tiveram pena de nós. Sabiam melhor do que nós o quanto o clima estava cruel. Junto com meus irmãos, eles trabalhavam todos os dias debaixo do sol brutal. Mas éramos pobres. Não tínhamos um pátio interno para ficar, nem terra para onde pudéssemos ser levadas por carregadores para sentar na sombra de uma árvore, ou algum lugar onde pudéssemos ficar totalmente protegidas dos olhos de estranhos. Então, Baba pegou um pano de mamãe e, com a ajuda de titio, fez uma cobertura para nós no lado norte da casa. Depois colocaram algumas colchas de inverno no chão para termos algo macio para sentar.
- Os homens passam o dia nas plantações - Baba disse. - Eles não verão vocês. Até o tempo mudar, podem trabalhar aqui. Só não contem para suas mães.
Lua Linda estava acostumada a ir até a casa das suas irmãs juradas para sessões de bordado e coisas assim, mas eu não estivera ao ar livre em Puwei desde os meus anos de dentes de leite. É claro que tinha saído para entrar no palanquim de madame Wang e para colher vegetais na horta. Mas, fora isso, só podia olhar pela janela para o beco onde ficava nossa casa. Havia muito tempo que eu não sentia o ritmo da aldeia.
Estávamos gloriosamente felizes - ainda com calor, mas felizes. Enquanto ficávamos sentadas na sombra, tomando realmente uma brisa fresca como o festival prometia, bordávamos a parte de cima dos sapatos ou fazíamos os acabamentos. Lua Linda estava concentrada na costura de seus sapatos vermelhos de casamento, o mais precioso de todos os sapatos. Flores de lótus cor-de-rosa e brancas se abriam, simbolizando sua pureza e sua fertilidade. Flor da Neve tinha acabado de terminar um par de seda azul-celeste com um desenho de nuvens para a sua sogra, e eles estavam pousados sobre a colcha, ao nosso lado, com um ar delicado e elegante, um amável lembrete do trabalho de alta qualidade que deveríamos perseguir em todos os nossos projetos. Eles me encheram de alegria, fazendo-me lembrar da jaqueta que Flor da Neve estava usando no dia em que nos conhecemos. Contudo, pensamentos nostálgicos não pareciam interessar a Flor da Neve; ela simplesmente passara a um par para si mesma, de seda roxa debruada de branco. Quando os caracteres para roxo e branco eram escritos juntos, significavam um monte de filhos. Como era comum com Flor da Neve, seus bordados buscavam inspiração no céu. Dessa vez, pássaros e outras criaturas aladas movimentavam-se nos pedacinhos de pano. Enquanto isso, eu estava terminando um par de sapatos para a minha sogra. Seu tamanho de sapato era um pouco maior do que o meu, e enchia-me de orgulho saber que, apenas com base no tamanho dos meus pés, ela teria de me considerar digna do seu filho. Eu ainda não tinha conhecido minha sogra, então não sabia do que ela gostava ou não, mas, durante a onda de calor daqueles dias, eu não pensava em nada além do frescor. O meu desenho envolvia o sapato, criando uma paisagem de mulheres descansando sob salgueiros ao lado de um riacho. Era uma fantasia, mas não mais do que os pássaros míticos que enfeitavam os sapatos de Flor da Neve.
Formávamos um belo quadro ali sentadas naquelas colchas, com as pernas encolhidas debaixo do corpo: três jovens donzelas, todas prometidas a boas famílias, trabalhando alegremente em seus enxovais, demonstrando seus bons modos para aqueles que as visitavam. Garotinhos paravam para conversar conosco quando estavam indo buscar lenha ou levar o búfalo da família até o rio. Garotinhas encarregadas de tomar conta dos irmãos deixavam-nos carregar seus irmãozinhos ou irmãzinhas. Imaginávamos como seria carregar nossos próprios bebês. Velhas viúvas, cujo status e comportamento eram garantidos, vinham até junto de nós para fofocar, examinar nossos bordados e elogiar nossa pele pálida.
No quinto dia, madame Gao fez uma visita. Ela acabara de voltar da aldeia Getan, onde estava negociando um casamento. Enquanto estava lá, havia entregue diversas cartas nossas para Irmã Mais Velha e apanhado uma carta de Irmã Mais Velha para nós. Nenhuma de nós gostava de madame Gao, mas tínhamos sido criadas para respeitar os mais velhos. Oferecemos chá, mas ela recusou. Como não havia nenhum dinheiro para ganhar conosco, ela me entregou a carta e voltou para o seu palanquim. Ficamos olhando até o palanquim dobrar a esquina; então, usei a minha agulha de bordar para abrir o selo de pasta de arroz. Em virtude do que aconteceu mais tarde naquele dia, e porque Irmã Mais Velha usou tantas expressões padrão em nu shu, acho que posso reconstituir quase tudo o que ela escreveu:
Família,
Hoje eu pego uma escova, e meu coração voa para casa. Para a minha família eu escrevo - lembranças aos meus queridos pais, tia e tio. Quando penso no passado, não consigo conter as lágrimas. Ainda estou triste por ter saído de casa. Minha barriga está grande com o bebê e sinto muito calor neste clima.
A família do meu marido é vingativa.
Eu faço todo o trabalho doméstico.
Neste calor é impossível agradar.
Irmã, prima, tomem conta de mamãe e Baba.
Nós mulheres só podemos desejar que nossos pais vivam muitos anos. Assim teremos um lugar para voltar nos festivais. Na casa em que nascemos, teremos sempre pessoas que nos apreciam. Por favor, sejam boas para os nossos pais.
Sua filha, irmã e prima
Terminei de ler a carta e fechei os olhos. Eu estava pensando. Tantas lágrimas para Irmã Mais Velha, tanta alegria para mim. Eu estava contente por seguirmos o costume de nos mudarmos para a casa do marido apenas quando o primeiro filho estivesse para nascer. Eu ainda tinha dois anos até o meu casamento, e possivelmente três anos antes de me mudar permanentemente para a casa dos meus sogros.
Esses meus pensamentos foram interrompidos por algo que soou como um soluço. Abri os olhos e olhei para Flor da Neve. Uma expressão de espanto se espalhou pelo seu rosto, quando ela olhou para o lado direito. Acompanhei seu olhar até Lua Linda, que estava esfregando o pescoço e respirando com dificuldade.
- O que aconteceu? - perguntei.
O peito de Lua Linda arfava com o esforço de respirar - uuu, uuu, uuu —, sons que jamais esquecerei.
Ela me olhou com seus lindos olhos. Suas mãos pararam de esfregar e seguraram com força o lado do pescoço. Ela não tentou ficar de pé. Ficou sentada com as pernas encolhidas, ainda parecendo uma jovem dama sentada na sombra, numa tarde quente, com o bordado no colo, mas pude ver que, por baixo de sua mão, o pescoço tinha começado a inchar.
- Flor da Neve, vá buscar ajuda - disse eu com urgência. -Chame Baba. Chame titio. Depressa!
Pelo canto do olho, vi Flor da Neve tentar correr com seus pés pequeninos. Sua voz - que não tinha o hábito de elevar-se - saiu esganiçada:
-Socorro! Socorro!
Arrastei-me pela colcha até perto de Lua Linda. Vi sobre o seu bordado uma abelha lutando para viver. O ferrão deveria estar no pescoço da minha prima. Peguei na outra mão dela e fiquei segurando. Ela abriu a boca. Lá dentro, sua língua estava inchando.
- O que eu posso fazer? - perguntei. - Você quer que eu tente tirar o ferrão?
Nós duas sabíamos que era tarde demais para isso.
- Você quer água? - perguntei.
Lua Linda não conseguiu responder. Ela agora só respirava pelas narinas, e cada respiração era um esforço cada vez maior. Em algum lugar na aldeia, ouvi a voz de Flor da Neve:
- Baba! Titio! Irmão Mais Velho! Alguém! Ajude-nos!
As mesmas crianças que tinham nos visitado nos últimos dias juntaram-se em volta da colcha, olhando boquiabertas para Lua Linda, cujo pescoço, língua, pálpebras e mãos inchavam sem parar. Sua pele passou da palidez da lua, que lhe dera o nome, para rosa, vermelho, roxo e azul. Ela parecia uma criatura de uma história de terror. Algumas viúvas de Puwei chegaram. E sacudiram a cabeça, penalizadas.
Os olhos de Lua Linda grudaram nos meus. Sua mão tinha inchado tanto que seus dedos eram como salsichas na minha palma, a pele tão brilhante e esticada que parecia prestes a romper. Embalei a mão monstruosa na minha.
- Lua Linda, presta atenção - implorei. - Seu Baba está vindo, espere por ele. Ele a ama tanto. Nós todos a amamos, Lua Linda. Está ouvindo?
As velhas começaram a chorar. As crianças se abraçaram. A vida na aldeia era dura. Quem dentre nós não havia visto a morte?
Porém, era raro ver tanta coragem, tanta imobilidade, tanta beleza de atitude nos momentos finais.
- Você tem sido uma boa prima - disse eu. - Sempre a amei. Vou honrá-la para sempre.
Lua Linda tornou a respirar. Dessa vez, foi como uma dobradiça emperrada. Foi lento. Quase nenhum ar conseguia entrar em seu corpo.
- Lua Linda, Lua Linda...
O som terrível cessou. Seus olhos eram apenas fendas no rosto cruelmente desfigurado, mas ela olhou para mim com lucidez. Tinha ouvido cada palavra que eu pronunciara. No último instante de sua vida - quando nenhum ar conseguia entrar ou sair do seu corpo -, tive a sensação de que ela me havia transmitido muitas mensagens. Diga a mamãe que eu a amo. Diga a Baba que eu o amo. Diga aos seus pais que sou grata por tudo o que fizeram por mim. Não deixe os homens sofrerem por mim. Então, sua cabeça tombou sobre o peito.
Ninguém se moveu. Estava tudo parado como a paisagem que eu havia bordado nos meus sapatos. Apenas o som das pessoas chorando revelava que havia algo errado.
Titio correu pelo beco, empurrando as pessoas até chegar perto de mim e de Lua Linda. Ela estava com uma pose tão tranqüila que ele teve esperanças. Mas o meu rosto e os das pessoas em volta diziam o contrário. Um grito terrível saiu de sua garganta, e ele caiu ajoelhado. Quando viu o estado do rosto de Lua Linda, soltou outro urro. Algumas crianças saíram correndo. Titio estava tão suado do trabalho no campo e de correr até nós que eu podia sentir o seu cheiro. As lágrimas escorriam dos seus olhos, pingavam do seu nariz, rosto e queixo e desapareciam na sua túnica suada.
Baba chegou e se ajoelhou ao meu lado. Alguns segundos depois, Irmão Mais Velho chegou correndo, ofegante, com Flor da Neve nas costas.
Titio continuava falando com Lua Linda.
- Acorda, pequenina. Acorda. Eu vou buscar a sua mãe. Ela precisa de você. Acorda. Acorda.
O irmão dele, meu pai, agarrou seu braço.
- Não adianta.
Titio estava com uma postura semelhante à de Lua Linda, com a cabeça baixa, as pernas sob o corpo, as mãos no colo - tudo igual, exceto pela tristeza que pingava dos seus olhos e a dor incontrolável que sacudia-lhe o corpo.
Baba perguntou:
- Você quer carregá-la ou quer que eu a carregue?
Titio sacudiu a cabeça. Sem dizer nada, ele firmou uma perna no chão, depois ergueu Lua Linda e carregou-a para dentro de casa. Nenhum de nós estava raciocinando direito. Só Flor da Neve agiu, indo rapidamente até a mesa da sala principal e tirando as xícaras que tínhamos arrumado para quando os homens voltassem do campo. Titio deitou Lua Linda. Agora os outros podiam ver como o veneno da abelha lhe havia deformado o rosto e o corpo. Eu ficava pensando: foram apenas cinco minutos, não mais que isso.
Mais uma vez, Flor da Neve assumiu o controle.
- Desculpe, mas vocês precisam ir buscar os outros.
Compreendendo que isso significava que titia teria de ser informada da morte de Lua Linda, os soluços de titio ficaram mais fortes. Eu mesma mal podia pensar em titia. Lua Linda tinha sido a sua única felicidade verdadeira. Eu tinha ficado tão chocada com o ocorrido com minha prima que ainda não tinha tido tempo de sentir nada. Naquele momento, minhas pernas perderam a força, e lágrimas rolaram pelo meu rosto, de tristeza pela minha doce prima e de pena por minha tia e meu tio. Flor da Neve me abraçou e me levou até uma cadeira, sem deixar de dar instruções.
- Irmão Mais Velho, corra até a aldeia natal da sua tia - instruiu ela. - Tenho um pouco de cash. Use para alugar um palanquim para ela. Depois corra até a aldeia natal da sua mãe. Traga-a de volta. Você vai ter de carregá-la como fez comigo. Talvez Segundo Irmão Possa ajudá-lo. Mas vá depressa. Sua tia vai precisar dela.
Então nós esperamos. Titio sentou-se num banquinho ao lado da mesa e chorou tanto em cima da túnica de Lua Linda que manchas espalharam-se pelo tecido como nuvens carregadas. Baba tentou consolar titio, mas de que jeito? Ele não podia ser consolado. Quem quer que diga que o povo Yao não liga para suas filhas está mentindo. Nós podemos ser inúteis. Podemos ser criadas para outra família. Mas normalmente somos amadas e apreciadas, embora nossas famílias se esforcem para não nutrir sentimentos por nós. Se não fosse assim, por que veríamos em nossa escrita secreta frases do tipo "Eu era uma pérola na palma da mão do meu pai" com tanta freqüência? Talvez, como pais, tentemos não nos importar. Eu tentei não me importar com minha filha, mas como poderia fazer isso? Ela mamou no meu peito do mesmo modo que meus filhos homens, ela derramou suas lágrimas no meu colo e honrou-me ao se tornar uma mulher boa e talentosa, fluente em nu shu. A pérola de titio tinha partido para sempre.
Fiquei olhando para o rosto de Lua Linda, recordando o quanto tínhamos sido próximas. Nossos pés tinham sido amarrados no mesmo dia. Estávamos noivas de rapazes da mesma aldeia. Nossas vidas tinham sido inexoravelmente ligadas, e agora estávamos separadas para sempre.
A nossa volta, Flor da Neve não parava. Ela preparou um chá que ninguém tomou. Andou pela casa, procurando por roupas brancas de luto, e separou-as para nós. Ficou na porta, recebendo as pessoas que tinham ouvido a notícia. Madame Wang chegou no seu palanquim e Flor da Neve mandou-a entrar. Eu teria esperado que madame Wang lamentasse a perda do seu pagamento como casamenteira. Mas, ao contrário, ela perguntou como poderia ajudar. O futuro de Lua Linda tinha estado nas mãos dela, e ela se sentia obrigada a auxiliá-la nessa passagem derradeira. No entanto ela cobriu a boca com a mão quando viu o rosto desfigurado de Lua Linda e aqueles dedos monstruosos. E estava tão quente. Não havia nenhum lugar fresco em que a pudéssemos colocar. As coisas começariam a acontecer muito depressa agora com Lua Linda.
- Quanto tempo falta para a mãe chegar? - madame Wang perguntou.
Nós não sabíamos.
- Flor da Neve, envolva o rosto da menina com gaze, depois vísta-a com suas roupas para a eternidade. Faça isso agora. Nenhuma mãe deveria ver a filha desse jeito. - Flor da Neve virou-se para subir a escada, mas madame Wang agarrou sua manga. - Irei a Tongkou e trarei suas roupas de luto. Não saia desta casa até eu mandar. - Ela soltou Flor da Neve, lançou um último olhar em Lua Linda e saiu.
Quando titia chegou, Baba, titio, meus irmãos e eu estávamos vestidos com pano de saco. O corpo de Lua Linda tinha sido completamente envolto em gaze, depois vestido com as roupas para a sua viagem para a outra vida. Tantas lágrimas na casa aquele dia, mas nenhuma veio de titia. Ela oscilou nos seus pés de lírio e foi direto para perto do corpo da filha. Alisou as roupas e depois colocou a mão sobre o coração de Lua Linda. Ficou assim durante horas.
Titia fez tudo o que tinha de ser feito para o funeral. Ela foi ao enterro de joelhos. Queimou dinheiro de papel e roupas no local para Lua Linda usar no outro mundo. Juntou toda a escrita secreta de Lua Linda e queimou-a também. Depois, criou um pequeno altar na nossa casa onde fazia oferendas todos os dias. Ela não chorava em nossa presença, mas nunca vou me esquecer dos sons que ecoavam na casa à noite quando titia ia se deitar. Ela soltava gemidos que vinham do mais fundo da alma. Ninguém conseguia dormir. Ninguém podia consolá-la. De fato, meus irmãos e eu tentávamos ficar bem quietos - invisíveis quase -, sabendo que nossas vozes e nossos rostos só a faziam lembrar do que havia perdido. De manhã, depois que os homens saíam para o campo, titia se retirava para o quarto e não saía mais. Ela se deitava de lado, com o rosto virado Para a parede, recusando-se a comer qualquer coisa a mais que a tigela de arroz que mamãe levava para ela, e ficava quieta o dia inteiro, até a noite chegar e aqueles gemidos assustadores recomeçarem. Todo mundo sabe que parte do espírito desce para o outro mundo, enquanto que outra parte permanece com a família, mas temos uma crença especial sobre o espírito de uma jovem que morreu antes do casamento que vai de encontro a isso. Ela volta para buscar outras jovens solteiras - não para assustá-las, mas para levá-las para o outro mundo com ela para lhe servir de companhia. O modo como a infelicidade de Lua Linda chegava até nós toda noite pelos gemidos medonhos de titia mostrou a Flor da Neve e a mim que estávamos em perigo.
Flor da Neve teve uma idéia:
- Temos de construir uma torre de flores - disse ela uma manhã. Uma torre de flores era exatamente o que se precisava para apaziguar o espírito de Lua Linda. Se lhe fornecêssemos uma boa torre de flores, ela teria um lugar para visitar e se distrair. Se ela estivesse feliz, eu e Flor da Neve estaríamos protegidas.
Algumas pessoas - aquelas com mais dinheiro - procuram um construtor profissional de torres de flores, mas Flor da Neve e eu resolvemos construir a nossa. Imaginamos uma torre com muitos níveis, como um pagode de sete camadas. Pusemos um par de cães da raça Foochaw na entrada. Dentro, pintamos poemas nas paredes com nossa escrita secreta. Fizemos um andar para dançar, outro para flutuar. Fizemos um quarto de dormir, com lua e estrelas pintadas no teto. Em outro andar, fizemos um aposento de mulheres, com janelas de papel picotado que permitia olhar em todas as direções. Construímos uma mesa sobre a qual dispusemos pedaços de nossas linhas favoritas, um pouco de tinta, papel e um pincel, para que Lua Linda pudesse bordar ou escrever cartas em nu shu para suas novas amigas fantasmas. Recortamos criadas e artistas em papel colorido e os colocamos em todos os andares da torre para proporcionar-lhe companhia, distração e diversão. Quando não estávamos trabalhando na torre de flores, compúnhamos um lamento que iríamos cantar para acalmar minha prima. Se a torre de flores era para dar prazer a Lua Linda por toda a eternidade, nossas palavras seriam um último adeus do mundo dos vivos.
No dia em que o tempo finalmente melhorou, Flor da Neve e eu pedimos permissão para ir até o túmulo de Lua Linda. Não era uma longa caminhada até o cemitério, era muito menor do que a que Flor da Neve tinha feito quando foi até a plantação chamar Baba e titio no dia da morte de Lua Linda. Nós nos sentamos no túmulo por alguns minutos. Então, Flor da Neve pôs fogo na torre de flores. Nós a vimos queimar, imaginando-a sendo transportada para outro mundo e Lua Linda passeando encantada pelos aposentos. Em seguida, peguei o papel onde havíamos escrito o nosso lamento para Lua Linda na escrita secreta e começamos a cantar:
Lua Linda, esperamos que a torre de flores lhe traga paz. Esperamos que você se esqueça de nós, mas nunca a esqueceremos. Nós a honraremos. Limparemos o seu túmulo no Festival da Primavera. Não deixe os seus pensamentos divagarem. Viva na sua torre de flores e seja feliz.
Flor da Neve e eu fomos para casa e subimos para o aposento das mulheres. Sentadas lado a lado, nós nos revezamos escrevendo o lamento nas pregas do nosso leque especial. Quando terminamos, acrescentei na borda uma lua crescente, tão fina e discreta quanto a própria Lua Linda.
A torre de flores ajudou a proteger a mim e Flor da Neve, e aplacou o espírito inquieto de Lua Linda, mas não ajudou em nada a titia e o titio, que não podiam ser consolados. Tudo isso estava destinado a acontecer. Estávamos à mercê de elementos poderosos, e não podíamos fazer nada a não ser cumprir nossos destinos. Isso pode ser explicado por yin e yang: Existem mulheres e homens, sombra e luz, tristeza e alegria. Essas coisas proporcionam equilíbrio. Você Pega um momento de suprema felicidade como o que Flor da Neve e eu tivemos no início do Festival Tomar Brisa Fresca, depois o desfecho da forma mais cruel com a morte de Lua Linda. Você pega duas Pessoas felizes como titio e titia, depois os transforma, num instante, em dois desgraçados sem motivo para viver, que, quando meu pai morrer, serão obrigados a depender da bondade de Irmão Mais novo para cuidar deles e não jogá-los na rua. Você pega uma família como a minha que não é tão abastada, e então a pressiona com casamentos demais em uma mesma casa... Todas essas coisas perturbavam o equilíbrio do universo, então os deuses consertavam as coisas abatendo uma menina de coração bondoso. Não existe vida sem morte. Esse é o verdadeiro sentido de yin e yang.
Cadeira de flores
Dois anos depois da morte de Lua Linda, meu cabelo - que havia sido preso quando eu tinha quinze anos - foi penteado no estilo dragão, como convinha a uma jovem que estava prestes a se casar. Meus sogros mandaram mais tecido, cash para que eu pudesse ter o meu próprio dinheiro e jóias - brincos, anéis, colares —, tudo em prata e jade. Eles também deram aos meus pais trinta sacos de arroz glutinoso - o suficiente para alimentar a família e os amigos que nos viriam visitar nos próximos dias - e um lombo de porco que Baba fatiou e meus irmãos distribuíram para o povo da aldeia Puwei, para avisá-los de que o mês inteiro de comemoração do casamento tinha começado oficialmente. Mas o que mais surpreendeu e encantou Baba - e que mostrou que o duro trabalho da nossa família para me preparar para o meu futuro especial tinha valido a pena - foi a chegada de um novo búfalo. Com esse único presente, meu pai tornou-se um dos três homens mais prósperos da nossa aldeia.
Flor da Neve veio passar todo o mês de Sentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima. Durante aquelas quatro últimas semanas, enquanto eu terminava o meu enxoval, ela me ajudou de diversas maneiras, e nos tornamos ainda mais próximas. Nós duas tínhamos idéias tolas a respeito do casamento, mas Flor da Neve e eu acreditávamos que nada poderia comparar-se ao bem-estar que sentíamos nos braços uma da outra - o calor dos nossos corpos, a maciez da nossa pele, os odores delicados. Nada jamais alteraria nosso amor, e quando olhávamos adiante, achávamos que só teríamos mais o que compartilhar.
Acreditávamos que, Sentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima fora o início de um compromisso mais profundo entre nós. Após dez anos juntas, nosso relacionamento ia entrar em um nível novo e mais profundo. Dentro de dois ou três anos, quando eu tivesse me mudado em caráter definitivo para a casa do meu marido e Flor da Neve tivesse ido para a casa do marido dela em Jintian, nós nos visitaríamos com freqüência. Sem dúvida, nossos maridos -ambos homens ricos e muito respeitados - contratariam palanquins para isso.
Como eu não tinha irmãs juradas para me acompanhar nessas festividades, minha mãe, minha tia, minha cunhada, Irmã Mais Velha - que veio para casa grávida de novo - e algumas moças solteiras da aldeia Puwei vieram todas celebrar a minha boa sorte. Madame Wang também se juntava a nós de vez em quando. Às vezes, recitávamos histórias favoritas, ou uma pessoa escolhia um cântico que todas acompanhavam. Outras vezes, cantávamos a respeito de nossas próprias vidas. Minha mãe - que estava satisfeita com o seu destino -recontava "A história da florista", enquanto titia, ainda de luto, nos fazia chorar a todas com suas palavras de lamento.
Uma tarde, enquanto eu bordava o cinto que iria atar o meu traje de casamento, madame Wang chegou para nos distrair com "A história da esposa Wang". Ela sentou num banquinho ao lado de Flor da Neve, que estava pensativa, compondo o meu livro do terceiro dia de casamento e procurando as palavras certas para falar a meu respeito com os meus novos parentes. As duas falaram baixinho uma com a outra. De vez em quando, eu ouvia Flor da Neve dizendo: "Sim, titia" e "Não, titia". Flor da Neve tinha sido sempre muito carinhosa com a casamenteira. Eu tinha tentado - com um sucesso apenas moderado - igualar-me a ela nisso.
Quando madame Wang viu que estávamos todas esperando, ajeitou o traseiro no banquinho para ficar mais confortável e começou a saga:
- Era uma vez uma mulher piedosa com poucas perspectivas. - Ela tinha engordado muito nos últimos anos, o que a havia deixado mais lenta para contar histórias e em seus movimentos. - A família dela casou-a com um açougueiro, a união mais inferior possível para uma mulher devotada ao budismo. Por mais devota que fosse, ela era em primeiro lugar uma mulher, e deu à luz filhos e filhas. Ainda assim, a esposa Wang não comia peixe nem carne. Ela recitava sutras todo dia durante horas, especialmente o Sutra Diamante. Quando não estava recitando, implorava ao marido para não matar animais. Ela o avisava do mau carma que viria para ele na próxima vida se ele continuasse naquela profissão.
A casamenteira colocou a mão na coxa de Flor da Neve num gesto de simpatia. Eu teria achado a mão daquela velha opressiva, entretanto Flor da Neve não a afastou.
- Mas marido Wang disse a ela, e alguns podem achar que com razão, que ele pertencia a uma família de várias gerações de açougueiros - madame Wang continuou. - "Continue a recitar o Sutra Diamante", ele disse. "Você será recompensada na sua próxima vida. Eu continuarei a matar animais. Vou comprar terra nesta vida e vou ser punido na próxima."
Esposa Wang sabia que estava condenada por dormir com seu marido, mas, quando ele testou seu conhecimento do Sutra Diamante e viu que ela podia recitá-lo sem erro, deu-lhe um quarto só dela para que ela pudesse permanecer celibatária pelo resto da vida deles de casados.
- Enquanto isso - madame Wang prosseguiu, e mais uma vez sua mão procurou Flor da Neve e pousou de leve em sua nuca - o rei do outro mundo enviou espíritos para procurar pessoas de grande virtude. Eles observaram a esposa Wang. Uma vez convencidos de sua pureza, a convidaram a visitar o outro mundo para recitar o Sutra do diamante. Ela sabia o que isso significava: estavam pedindo para ela morrer. Ela implorou a eles para não a obrigarem a deixar os seus filhos, mas os espíritos se recusaram a ouvir suas súplicas. Ela disse ao marido para arranjar uma nova esposa. Recomendou aos filhos que fossem bons e obedecessem a sua nova mãe. Assim que acabou de pronunciar essas palavras, caiu no chão, morta.
"Esposa Wang sofreu várias provações antes de ser levada finalmente à presença do rei do outro mundo. Durante essas provações, ele a havia observado, notando sua virtude e piedade. Assim como seu marido, pediu que ela recitasse o Sutra Diamante. Embora ela errasse nove palavras, ele ficou tão satisfeito com seus esforços -tanto durante a vida quanto depois da morte - que a recompensou, permitindo que ela voltasse ao mundo dos vivos como um menino. Dessa vez, ela nasceu na casa de um homem culto, mas seu verdadeiro nome estava escrito na sola do seu pé.
"Esposa Wang tinha vivido uma vida exemplar, mas era apenas uma mulher", a casamenteira nos lembrou. "Agora, como homem, ela se destacou em tudo o que fez. Atingiu o mais alto posto como intelectual. Obteve riquezas, honra e prestígio, mas, apesar de todas essas realizações, ela sentia saudades de sua família e queria ser mulher de novo. Finalmente, foi apresentada ao imperador. Contou a ele sua história e implorou que ele a deixasse voltar para a aldeia natal do marido. Assim como havia acontecido com o rei do outro mundo, a coragem e a virtude dessa mulher comoveram o imperador, mas ele viu algo mais - piedade filial. Ele a enviou como magistrado para a aldeia do marido. Ela chegou com todas as regalias do seu cargo. Quando todo mundo veio reverenciá-la, ela assombrou a multidão tirando os seus sapatos masculinos e revelando o seu verdadeiro nome. Ela contou ao marido - agora muito velho - que queria voltar a ser sua esposa. Marido Wang e os filhos foram até o túmulo dela e o abriram. O imperador de Jade apareceu e anunciou que toda a família Wang poderia transcender este mundo para o nirvana, o que eles fizeram."
Achei que madame Wang tinha contado essa história para me falar a respeito do meu futuro. Meu marido Lu e sua família, apesar de estimados e respeitados em todo o estado, poderiam fazer coisas que fossem consideradas ofensivas ou mesmo corruptas. Da mesma forma, estava na natureza de um homem nascido sob o signo do tigre ser impetuoso, corajoso e impulsivo. Meu marido poderia bater de frente com a sociedade ou zombar das tradições. (Isso não é tão ruim quanto ser um açougueiro, admito, mas esses traços podem ser perigosos.) Eu, sendo uma mulher nascida sob o signo do cavalo, poderia ajudar o meu marido a lutar contra esses traços negativos. Uma mulher cavalo jamais deveria ter medo de tomar as rédeas e manter o parceiro longe de encrencas. Para mim, esse foi o verdadeiro significado de "A história da esposa Wang". Ela pode não ter conseguido obrigar o marido a fazer o que ela queria que ele fizesse, mas através da sua piedade e de suas boas obras não só o salvou de ser condenado por seus atos impuros, como ajudou a família toda a alcançar o nirvana. Essa foi uma das poucas histórias didáticas com final feliz que ouvimos, e naquela tarde de outono, um mês antes do meu casamento, ela me deixou feliz.
Mas fora isso meus sentimentos estavam confusos durante Sentar e Cantar. Eu estava triste por deixar a minha família, mas, como havia feito durante a contenção dos meus pés, tentei enxergar algo maior - não aquele pedacinho de vida que podia avistar da nossa janela, mas um panorama como os que Flor da Neve e eu víamos quando olhávamos pela janela do palanquim de madame Wang. Eu estava convencida de que um futuro novo e melhor me aguardava. Talvez isso fosse típico da minha natureza; um cavalo cavalgaria pelo mundo se pudesse. Eu estava contente de estar indo Para um lugar novo. Naturalmente, gostaria de dizer que Flor da Neve e eu seguíamos nossas naturezas de cavalo exatamente como os horóscopos descrevem, mas cavalos - e pessoas - não são sempre obedientes. Dizemos uma coisa e fazemos outra. Sentimos de uma maneira, entretanto nossos corações se abrem em outra direção, fazemos uma coisa, mas não compreendemos que antolhos atrapalham a visão. Marchamos por um caminho que amamos e então vemos uma estrada, um beco, um rio que nos tenta...
Era assim que eu me sentia, e achava que Flor da Neve, minha velha igual, deveria sentir o mesmo, mas ela era um mistério para mim. O casamento de Flor da Neve seria um mês depois do meu, mas ela não parecia nem excitada nem triste. Ao contrário, parecia estranhamente reprimida, mesmo enquanto cantava as palavras certas durante nossa cantoria e trabalhava aplicadamente no livro de terceiro dia de casamento que estava fazendo para mim. Achei que talvez ela estivesse mais nervosa do que eu a respeito da noite de núpcias.
- Eu não tenho medo disso - zombou ela, enquanto dobrávamos e embrulhávamos minhas colchas.
- Nem eu - disse eu, mas acho que nenhuma de nós falou com muita convicção. Nos meus dias de filha, quando ainda podia brincar do lado de fora, eu tinha visto animais se acasalando. Sabia que ia ser algo parecido com aquilo, mas não entendia como aquilo podia acontecer nem o que eu tinha de fazer. E Flor da Neve, que normalmente sabia muito mais do que eu, não ajudou em nada. Estávamos esperando que uma de nossas mães, irmãs mais velhas, minha tia ou até mesmo a casamenteira nos explicassem como cumprir essa tarefa, assim como nos tinham ensinado a cumprir tantas outras.
Como estávamos ambas inquietas em relação ao assunto, tentei levar a conversa para o nosso planejamento para as próximas semanas. Em vez de voltar para casa logo depois do meu casamento, eu iria para a casa de Flor da Neve para o seu mês de Sentar e Cantar. Eu tinha de ajudá-la com os preparativos do seu casamento assim como ela estava me ajudando com o meu. Já fazia dez anos que eu queria conhecer a casa dela, e de certa forma eu estava mais excitada com isso do que em conhecer o meu marido, porque já fazia muito tempo que ouvia falar da casa e da família de Flor da Neve, enquanto que não sabia quase nada sobre o homem com quem ia me casar. No entanto, embora eu estivesse cheia de expectativas - iria finalmente à casa de Flor da Neve! -, ela parecia vaga com relação aos detalhes.
- Alguém da casa dos seus sogros irá levá-la até lá - Flor da Neve disse.
- Você acha que a minha sogra irá juntar-se a nós para o seu Sentar e Cantar? - perguntei. Isso me agradaria, porque ela me veria com a minha laotong.
- Lady Lu é muito ocupada. Ela tem muitas obrigações, assim como você terá um dia.
- Mas vou conhecer sua mãe, sua irmã mais velha e... quem mais vai ser convidado?
Eu havia esperado que mamãe e titia participassem dos rituais de Flor da Neve. Ela era quase um membro da nossa família, e achei que ela ia querer que estivessem lá.
- Titia Wang irá - disse ela.
A casamenteira iria provavelmente aparecer várias vezes durante o Sentar e Cantar de Flor da Neve, como havia feito no meu. Para madame Wang, o nosso casamento era a realização de anos de trabalho duro e significava o recebimento do seu pagamento. Ela não perderia nenhuma chance de mostrar às outras mulheres - as mães de clientes em potencial - os seus esplêndidos resultados.
- Além da presença da titia Wang, não sei o que minha mãe planejou - Flor da Neve prosseguiu. - Vai ser tudo uma surpresa.
Ficamos silenciosas enquanto dobrávamos mais uma colcha. Olhei para ela e ela me pareceu tensa. Pela primeira vez em muitos anos, minhas inseguranças vieram à tona. Será que Flor da Neve me achava indigna dela? Será que ela tinha vergonha de que as mulheres de Tongkou conhecessem minha mãe e minha tia? Então, me lembrei de que estávamos conversando sobre o Sentar e Cantar dela. Ele deveria ser exatamente como a mãe de Flor da Neve quisesse.
Ajeitei uma mecha do cabelo de Flor da Neve atrás de sua orelha.
-Mal posso esperar para conhecer sua família. Vai ser uma ocasião muito feliz.
Ela ainda parecia tensa quando disse:
- Tenho medo de que você fique desapontada. Falei tanto sobre mamãe e Baba...
- E Tongkou e a sua casa...
- Como eles podem ser tão bons quanto você imagina?
Eu ri.
- Você é boba de se preocupar. Tudo que tenho na cabeça vem das suas lindas imagens faladas.
Três dias antes do meu casamento, comecei as cerimônias associadas ao Dia de Tristeza e Preocupação. Mamãe sentou-se no quarto degrau da escada que levava ao aposento do andar de cima, as mulheres da nossa aldeia vieram testemunhar os lamentos, e todo mundo ficou fazendo ku, ku, ku, acompanhado de muitos soluços. Quando mamãe e eu terminamos os choros e as cantorias, repeti o processo com meu pai, meu tio, minha tia e meus irmãos. Eu podia ser corajosa e estar ansiando pela minha nova vida, mas meu corpo e minha alma estavam fracos de fome, porque uma noiva não pode comer nos últimos dez dias que antecedem as festividades do seu casamento. Será que seguimos esse costume para nos sentirmos mais tristes em deixar nossas famílias, ou para estarmos mais submissas quando formos para a casa de nossos maridos, ou para parecermos mais puras para os nossos maridos? Como posso responder? Tudo o que sei é que mamãe - como a maioria das mães - escondia ovos cozidos para mim no aposento das mulheres, mas estes não conseguiam me dar muita energia, e minhas emoções ficavam mais enfraquecidas a cada novo evento.
Na manhã seguinte, o nervosismo me fez acordar assustada, mas Flor da Neve estava do meu lado, acariciando o meu rosto com seus dedos macios, tentando acalmar-me. Eu ia ser apresentada aos meus sogros naquele dia, e estava com tanto medo que não teria conseguido comer mesmo se pudesse. Flor da Neve ajudou-me a vestir o traje de casamento que eu havia feito - uma jaqueta curta, sem gola, presa com um cinto por cima de calças compridas. Ela enfiou no meu pulso as pulseiras de prata que a família do meu marido tinha mandado, depois ajudou-me a colocar os outros presentes que eles tinham dado - os brincos, o colar e os grampos de cabelo.
Minhas pulseiras batiam umas nas outras, enquanto os talismãs que eu tinha costurado na minha jaqueta tilintavam harmoniosamente. Nos pés, eu estava usando meus sapatos vermelhos de casamento, e na cabeça, um enfeite de pérolas e adornos prateados - todos balançavam quando eu andava ou mexia com a cabeça ou quando não conseguia controlar meus sentimentos. Borlas vermelhas caíam da frente da minha tiara, formando um véu. A única forma de eu enxergar e manter o decoro apropriado era ficar olhando direto para baixo.
Flor da Neve ajudou-me a descer. Só porque eu não podia enxergar não queria dizer que eu não estivesse com emoções variadas fervilhando no meu corpo. Ouvi os passos cambaleantes de minha mãe, minha tia e meu tio falando baixinho um com o outro e o arranhar da cadeira do meu pai quando ele se levantou. Juntos, caminhamos até o templo ancestral de Puwei, onde agradeci aos meus antepassados por minha vida. O tempo todo, Flor da Neve esteve ao meu lado, guiando-me pelas ruas estreitas, murmurando palavras de encorajamento e lembrando-me de andar o mais depressa possível porque meus sogros deviam estar chegando.
Quando voltamos para casa, Flor da Neve e eu tornamos a subir para o segundo andar. Para me manter quieta, ela segurou minhas mãos e tentou descrever o que a minha nova família estava fazendo.
- Feche os olhos e imagine isto. - Ela chegou mais perto e minhas borlas balançavam a cada palavra que ela dizia. - Mestre e Lady Lu devem estar lindamente vestidos. Eles, junto com os amigos e parentes, já estão a caminho de Puwei. Eles são acompanhados por uma banda que anuncia para todo mundo ao longo do caminho que hoje tem a posse da estrada. - Ela baixou a voz. - E onde está o noivo? Ele espera por você em Tongkou. Dentro de dois dias você irá vê-lo!
De repente, ouvimos música. Eles estavam quase chegando, rlor da Neve e eu fomos até a janela de treliça. Abri as minhas borlas e olhei para fora. Ainda não podíamos avistar nem a banda nem a Procissão, mas juntas vimos um emissário atravessar o beco, parar na Porta da nossa casa e apresentar ao meu pai uma carta em papel vermelho, declarando que minha nova família tinha vindo me buscar.
Então, a banda virou a esquina, seguida por uma multidão de estranhos. Quando chegaram à nossa casa, teve início a comoção habitual. Lá embaixo, as pessoas atiraram água e folhas de bambu na banda, acompanhadas das gargalhadas e piadas costumeiras. Fui chamada lá embaixo. Mais uma vez, Flor da Neve segurou na minha mão e me guiou. Ouvi vozes femininas cantando: "Criar uma filha e dá-la em casamento é como construir uma estrada para os outros usarem."
Fomos para o lado de fora e madame Wang apresentou os dois casais de pais. Eu tinha de estar com uma atitude perfeitamente séria e modesta no momento em que meus sogros me vissem pela primeira vez, então nem pude cochichar para pedir a Flor da Neve para me descrever como eles eram ou se ela conseguia avaliar o que tinham achado de mim. Então meus pais foram andando na frente na direção do templo ancestral, onde minha família iria oferecer o primeiro de muitos banquetes. Flor da Neve e outras moças da aldeia sentaram-se ao meu redor. Pratos especiais foram trazidos. Álcool foi servido. Os rostos foram ficando vermelhos. Fui objeto de muitas brincadeiras por parte dos homens e das mulheres velhas. Durante todo o banquete, cantei lamentos e as mulheres responderam. Nessa altura eu já não comia uma refeição de verdade havia sete dias, e o cheiro de toda aquela comida me deixou tonta.
No dia seguinte - o Dia do Grande Salão de Canto - houve um almoço formal. Meus trabalhos manuais e todos os livros de terceiro dia de casamento foram exibidos, acompanhados por mais cantoria por parte de Flor da Neve, das mulheres e de mim. Mamãe e titia conduziram-me até a mesa do centro. Assim que me sentei, minha sogra colocou diante de mim uma tigela de sopa que ela tinha preparado para simbolizar a gentileza da minha nova família. Eu teria dado tudo para tomar pelo menos uns poucos goles de sopa.
Eu não podia ver o rosto da minha sogra através do véu, mas, quando olhei para baixo através das borlas e vi lírios dourados que pareciam tão pequenos quanto os meus, senti uma onda de pânico. Ela não estava usando os sapatos especiais que eu tinha feito para ela. Eu podia ver por quê. O bordado destes sapatos era muito melhor do que qualquer coisa que eu fizera. Eu estava desgraçada. Certamente, os meus pais estavam envergonhados e os meus sogros desapontados.
Nesse momento terrível, Flor da Neve chegou do meu lado e tornou a segurar o meu braço. O costume ordenava que eu saísse da festa, então ela me conduziu para fora do templo e de volta para casa. Ela me ajudou a subir, e então tirou o meu enfeite de cabeça, removeu o resto do meu traje de casamento e me ajudou a vestir uma camisola e os meus chinelos de dormir. Fiquei quieta. A perfeição dos sapatos da minha sogra estava me incomodando, e tive medo de dizer alguma coisa, até mesmo para Flor da Neve. Eu não queria que ela ficasse desapontada comigo também.
Bem tarde naquela noite, a minha família voltou para casa. Se eu fosse receber algum conselho sobre coisas de cama, tinha de ser naquele momento. Mamãe entrou no quarto e Flor da Neve saiu. Mamãe parecia preocupada, e por um segundo achei que ela viera me dizer que os meus sogros queriam desmanchar o acordo. Ela pousou a bengala na cama e sentou-se ao meu lado.
- Eu sempre disse a você que uma verdadeira dama não deixa nenhuma indignidade entrar na sua vida - disse ela — e que só através da dor é que se encontra a beleza.
Balancei a cabeça timidamente, mas por dentro eu estava praticamente gritando de terror. Ela havia usado essas frases o tempo todo durante a contenção dos meus pés. Será que coisa de cama podia ser tão ruim?
- Espero que você se lembre, Lírio, que às vezes não podemos evitar a indignidade. Você tem de ser corajosa. Você prometeu unir-se por toda a vida. Seja a dama que você foi criada para ser.
E então ela se levantou, equilibrou-se na bengala e saiu do quarto. Não fiquei aliviada com o que ela havia dito! Minha determinação, meu espírito de aventura e minha força estavam completamente enfraquecidos. Eu me sentia verdadeiramente como uma noiva -medrosa, triste e muito assustada de deixar minha família.
Quando Flor da Neve voltou e viu que eu estava branca de medo, tomou o lugar da minha mãe na cama e tentou me consolar.
- Durante dez anos você se preparou para este momento - ela me tranqüilizou. - Você obedece às regras estabelecidas em O clássico das mulheres. É delicada nas palavras mas forte de coração. Penteia o cabelo de forma decorosa. Não usa ruge nem pó. Sabe fiar algodão e lã, sabe tecer, costurar e bordar. Sabe cozinhar, limpar, lavar, manter o chá sempre quente e pronto, e acender o fogo da lareira. Cuida bem dos seus pés. Retira as ataduras velhas todas as noites antes de dormir. Lava bem os pés e usa a quantidade certa de perfume antes de colocar ataduras limpas.
- E quanto... a coisas de cama?
- O que é que tem? Sua tia e seu tio têm sido felizes nisso. Sua mãe e seu Baba fizeram isso bastante para terem muitos filhos. Não pode ser tão difícil quanto bordar ou limpar.
Eu me senti um pouco melhor, mas Flor da Neve não tinha terminado. Ela me ajudou a deitar, enroscou-se em mim e continuou a me elogiar.
- Você vai ser uma boa mãe, porque é amorosa - murmurou ela no meu ouvido. - Ao mesmo tempo, vai ser uma boa professora. Como eu sei disso? Veja todas as coisas que me ensinou. - Ela fez uma pausa, para ter certeza de que minha mente e meu corpo haviam absorvido o que ela dissera antes de continuar num tom mais natural: - E, além disso, eu vi o modo como os Lu olharam para você ontem e hoje.
Eu me soltei dos braços dela e me virei para encará-la.
- Conte-me. Conte-me tudo.
- Lembra quando Lady Lu trouxe a sopa para você?
É claro que eu me lembrava. Isso foi o início do que imaginei ser uma vida inteira de humilhação.
- Você estava tremendo toda - Flor da Neve disse. - Como você fez isso? A sala inteira notou. Todo mundo comentou sobre sua fragilidade misturada com controle. Enquanto você ficava lá sentada de cabeça baixa, mostrando ser uma donzela perfeita, Lady Lu olhou para o marido. Ela sorriu aprovadoramente, e ele sorriu de volta. Você vai ver. Lady Lu é severa, mas tem bom coração.
- Mas...
- E o modo como os convidados dos Lu examinaram os seus pés! Ah, Lírio, tenho certeza de que todo mundo na minha aldeia está feliz em saber que um dia você vai ser a nova Lady Lu. Agora tente dormir. Você tem muitos dias longos à frente.
Nós nos deitamos de frente uma para a outra. Flor da Neve pôs uma mão no meu rosto como costumava fazer.
- Feche os olhos - ordenou ela baixinho. Eu obedeci.
No dia seguinte, meus sogros chegaram bem cedo em Puwei para me buscar e me levar de volta para Tongkou no final da tarde. Quando ouvi a banda tocando nos arredores da aldeia, meu coração disparou. Não consegui evitar que lágrimas saltassem dos meus olhos. Mamãe, titia, Irmã Mais Velha e Flor da Neve estavam todas chorando quando me levaram para baixo. Os emissários do noivo chegaram à porta. Meus irmãos ajudaram a colocar meu enxoval nos palanquins. Mais uma vez, eu estava usando o meu enfeite de cabeça, de modo que não consegui ver ninguém, mas ouvi as vozes da minha família quando executamos os últimos ritos de gritos e respostas.
- Uma mulher jamais se tornará valiosa se não deixar a sua aldeia - mamãe gritou.
- Adeus, mamãe - entoei de volta. - Obrigada por criar uma filha sem valor.
- Adeus, filha - Baba disse baixinho.
Ao ouvir a voz do meu pai, as lágrimas escorreram pelo meu rosto. Eu me agarrei no corrimão da escada. De repente, não queria ir.
- Como mulheres, nascemos para deixar nossas aldeias natais. - titia entoou. - Você é como um pássaro voando na direção de uma nuvem, para nunca mais voltar.
- Obrigada, titia, por me fazer rir. Obrigada por me ensinar o verdadeiro sentido da dor. Obrigada por compartilhar comigo os seus talentos especiais.
Os soluços de titia ecoaram de volta do seu canto escuro. Eu não podia deixá-la sozinha em seu luto. Minhas lágrimas igualaram-se às dela.
Olhando para baixo, vi as mãos queimadas de sol de titio nas minhas, puxando os meus dedos do corrimão.
— Sua cadeira de flores espera por você — disse ele, com uma voz embargada de emoção.
-Titio...
Então, ouvi a voz dos meus irmãos, cada um deles me dizendo adeus. Eu queria vê-los com meus olhos em vez de estar cega por aquelas borlas vermelhas.
- Irmão Mais Velho, obrigada pela bondade que demonstrou para comigo - disse eu. - Segundo Irmão, obrigada por ter-me deixado cuidar de você quando era pequeno. Irmã Mais Velha, obrigada por sua paciência.
Do lado de fora, a banda estava tocando mais alto. Estendi as mãos. Mamãe e Baba as tomaram e me ajudaram a cruzar a porta de casa. Quando saí, minhas borlas balançaram para a frente e para trás sobre o meu rosto. Em pequenos flashes, vi meu palanquim coberto de flores e seda vermelha. Minha hua jiao - cadeira de flores - era linda.
Tudo o que me haviam dito desde o meu noivado, seis anos antes, me passou pela mente. Eu estava me casando com um tigre, o melhor par para mim, segundo nossos horóscopos. Meu marido era saudável, inteligente e educado. A família dele era respeitada, rica e generosa. Eu já tinha percebido isso pela qualidade e pela quantidade de presentes do meu preço de noiva, e agora eu via isso de novo na minha cadeira de flores. Diminuí a pressão dos dedos nas mãos dos meus pais e eles me soltaram.
Dei dois passos cegos para a frente e parei. Eu não podia ver para onde estava indo. Estendi as mãos, desejando que Flor da Neve as tomasse. Como sempre tinha feito, ela me acudiu. Com os dedos entrelaçados nos meus, ela me levou até o palanquim. E abriu a porta. Ouvi choros à minha volta. Mamãe e titia cantavam uma melodia triste - a de costume para dizer adeus a uma filha. Flor da Neve se aproximou e cochichou de modo que ninguém pudesse ouvir:
- Lembre-se, somos velhas iguais para sempre. - Então, ela tirou alguma coisa de dentro da manga e enfiou na minha jaqueta. -Eu fiz isto para você - disse ela. - Leia no caminho para Tongkou. Eu a verei lá.
Subi no palanquim. Os carregadores me ergueram, e eu parti. Mamãe, titia, Baba, Flor da Neve e alguns amigos de Puwei me seguiram até a extremidade da aldeia, desejando felicidades. Fiquei sentada sozinha no palanquim, chorando.
Por que eu estava tão chorosa, se ia voltar para casa dentro de três dias? Posso explicar da seguinte maneira: A expressão que usamos para casar-se é buluofujia, que significa não cair imediatamente na casa do marido. O luo significa cair, como o cair das folhas no outono ou cair morto. E no nosso dialeto, a palavra para esposa significa a mesma coisa que a palavra para hóspede. Para o resto da minha vida, eu seria meramente uma hóspede na casa do meu marido - não do tipo que se trata com refeições especiais, demonstrações de afeto ou camas macias, mas do tipo que é visto para sempre como um estranho, diferente e suspeito.
Enfiei a mão na jaqueta e tirei o pacote de Flor da Neve. Era o nosso leque, embrulhado num pano. Eu o abri, antecipando as palavras alegres que ela devia ter escrito. Meus olhos examinaram as dobras até eu encontrar a mensagem dela: "Dois pássaros voando -corações batendo em uníssono. O sol bate em suas asas, inundando-as de calor. A terra se estende abaixo deles - toda deles." Na guirlan-da no alto do leque, dois pássaros voavam juntos: meu marido e eu. Adorei que Flor da Neve tivesse colocado o meu marido no nosso bem mais precioso.
Em seguida, abri no meu colo o lenço com que ela havia embrulhado o leque. Olhando para baixo, com minhas borlas balançando com o movimento dos carregadores, vi que ela bordara uma carta Para mim na nossa linguagem secreta para celebrar esse momento especial.
A carta começava com a abertura tradicional para uma noiva:
Sinto facas espetando o meu coração enquanto escrevo para você. Nós prometemos uma à outra que nunca nos separaríamos, que jamais trocaríamos uma só palavra áspera.
Estas palavras vinham do nosso contrato, e sorri com a lembrança.
Achei que passaríamos a vida toda juntas. Nunca acreditei que este dia fosse chegar. É triste que tenhamos vindo de forma errada para esta vida - como meninas -, mas este é o nosso destino. Lírio, temos sido como um par de marrecos. Agora tudo muda. Nos próximos dias, você vai saber coisas a meu respeito. Tenho estado inquieta e apreensiva. Tenho chorado com o coração e a boca, pensando que você não irá mais me amar. Por favor, saiba que não importa o que você pense de mim, a minha opinião a seu respeito jamais irá mudar.
Flor da Neve
Pode imaginar como eu me senti? Flor da Neve tinha estado muito quieta nas últimas semanas, porque estava preocupada, achando que eu não iria mais amá-la. Mas como isso poderia acontecer? Na minha cadeira de flores, indo ao encontro do meu marido, eu sabia que nada jamais iria alterar os meus sentimentos por Flor da Neve. Tive um mau pressentimento e quis gritar para os carregadores levarem-me de volta para casa para que eu pudesse acalmar os temores da minha laotong.
Mas aí chegamos ao portão principal de Tongkou. Fogos de artifício explodiram no céu; a banda começou a tocar. Meu enxoval começou a ser descarregado. Essas coisas tinham de ser levadas imediatamente para a minha nova casa para que meu marido pudesse vestir o traje de casamento que eu tinha feito para ele. Então, ouvi um som terrível, mas familiar. Era o de um frango sendo degolado. Do lado de fora da minha cadeira de flores, alguém espalhou o sangue do frango no chão para espantar os maus espíritos que porventura tivessem chegado junto comigo.
Finalmente, minha porta foi aberta e uma mulher que era considerada a chefe da aldeia ajudou-me a sair. A mulher que era realmente a chefe da aldeia era minha sogra, mas para esse propósito foi escolhida a mulher que tinha mais filhos homens em Tongkou. Ela me conduziu até a minha nova casa, onde atravessei a soleira da porta e fui apresentada aos meus sogros. Eu me ajoelhei diante deles, tocando o chão com a cabeça três vezes.
- Eu irei lhes obedecer - disse eu. - Irei trabalhar para vocês. - Então servi chá para eles. Depois disso, fui levada para o aposento nupcial, onde fui deixada sozinha com a porta aberta. Eu estava prestes a conhecer o meu marido. Eu vinha esperando por isso desde a primeira vez em que madame Wang esteve na minha casa para ver os meus pés; no entanto, fiquei totalmente nervosa e confusa. Esse homem era um completo estranho, então era natural que eu me sentisse curiosa em relação a ele. Ele seria o pai dos meus filhos, portanto estava ansiosa para saber como isso iria acontecer. E eu tinha acabado de receber uma carta misteriosa da minha velha igual e estava extremamente preocupada com ela.
Ouvi as pessoas arrastarem uma mesa para bloquear a porta. Inclinei de leve a cabeça para afastar as borlas e vi meus sogros empilharem minhas colchas de casamento sobre a mesa e colocarem duas taças de vinho - uma amarrada com uma fita verde e outra com uma fita vermelha, e depois amarradas juntas - no topo da pilha.
Meu marido entrou na ante-sala. Todo mundo aplaudiu. Dessa vez não tentei espiar. Eu queria ser o mais convencional possível nesse primeiro encontro. Do lado dele da mesa, ele puxou a fita vermelha. Do meu lado, puxei a fita verde. Então, ele pulou para cima da mesa, bem em cima das colchas, e saltou para dentro do quarto. Com esse ato, estávamos oficialmente casados.
O que posso contar sobre o meu marido no primeiro instante em que ficamos lado a lado? Percebi pelo cheiro que ele tinha feito uma limpeza completa no corpo. Olhando para baixo, pude ver que os sapatos que eu tinha feito para ele ficaram bem nos seus pés e que sua calça vermelha de casamento tinha o comprimento perfeito. Mas o momento passou e iniciamos o Brincando e Fazendo Barulho no Aposento Nupcial. Os amigos do meu marido entraram ruidosamente, com as pernas bambas e dizendo palavras incoerentes de tanto beber. Eles nos deram amendoim e passas para que tivéssemos muitos filhos. Eles nos deram doces para que tivéssemos uma vida doce. Mas não me entregaram um bolinho como fizeram com o meu marido. Não! Amarraram o bolinho com um barbante e o sacudiram logo acima da minha boca. Eles me fizeram saltar para pegá-lo, sem nunca permitir que eu atingisse o meu objetivo. E faziam piadas o tempo todo. Você sabe de que tipo. Meu marido iria ser forte como um touro essa noite, ou eu iria ser submissa como um cordeiro, ou meus seios eram como dois pêssegos prontos para rasgar o tecido da minha jaqueta, ou meu marido teria tantas sementes quanto uma romã, ou se ficássemos numa determinada posição iríamos garantir um primeiro filho homem. Isso é assim em toda parte - esse tipo de conversa de baixo nível é permitido na noite de núpcias em qualquer lugar. E participei da brincadeira, mas por dentro estava cada vez mais apavorada.
Havia horas que eu estava em Tongkou. Agora já era tarde da noite. Do lado de fora, na rua, os aldeões estavam bebendo, comendo, dançando, celebrando. Foram disparados mais fogos, sinalizando que estava na hora de todo mundo ir para casa. Finalmente, madame Wang fechou a porta do aposento nupcial e meu marido e eu ficamos a sós.
Ele disse:
- Olá.
Eu disse:
- Olá.
-Você já comeu?
- Não posso comer por mais dois dias.
- Você tem amendoim e passas - disse ele. - Não vou contar a ninguém se você quiser comê-los.
Sacudi a cabeça e as pequenas bolas do meu enfeite de cabelo balançaram e as pecinhas de prata tilintaram agradavelmente.
Minhas borlas se abriram e vi que os olhos dele estavam virados para baixo. Ele estava olhando para os meus pés. Enrubesci. Prendi a respiração, tentando manter as borlas paradas para que ele não visse a minha emoção. Não me mexi, e ele também não. Eu sabia que ele ainda estava me examinando. A única coisa que eu podia fazer era esperar.
Finalmente, o meu marido disse:
- Disseram-me que você é muito bonita. É verdade?
- Ajude-me a tirar este enfeite da cabeça e descubra por si mesmo.
Isso saiu num tom mais ácido do que eu havia esperado, mas meu marido riu. Instantes depois, ele colocou o enfeite de cabeça numa mesinha. Ele se virou para olhar para mim. Estávamos mais ou menos a um metro um do outro. Ele examinou o meu rosto e eu, atrevidamente, examinei o dele. Tudo o que madame Wang e Flor da Neve tinham dito a respeito dele era verdade. Ele não tinha marcas nem cicatrizes de nenhum tipo. Ele não tinha a pele tão escura quanto Baba ou titio, o que me fez saber que passava poucas horas nas plantações da família. Ele tinha maçãs do rosto salientes e um queixo que era confiante, mas não desaforado. Uma mecha de cabelo rebelde caía em sua testa, dando-lhe um ar jovial. Seus olhos brilhavam bem-humorados.
Ele deu um passo para a frente, segurou minhas mãos e disse:
- Acho que podemos ser felizes, você e eu.
Uma garota Yao de dezessete anos poderia desejar palavras melhores? Como o meu marido, eu também enxergava um futuro dourado diante de nós. Naquela noite, ele seguiu todas as tradições corretas, inclusive removendo os meus sapatos de casamento e colocando os meus chinelos vermelhos de dormir. Eu estava tão acostumada com o toque delicado de Flor da Neve que não posso descrever o que senti com as mãos dele nos meus pés, exceto que esse ato me Pareceu muito mais íntimo do que o que veio a seguir. Eu não sabia Que estava fazendo, mas ele também não. Só tentei imaginar o que Flor da Neve teria feito se estivesse debaixo daquele estranho em vez de mim.
No segundo dia do meu casamento, acordei cedo. Deixei meu marido dormindo e fui até o hall. Sabe aquela sensação que você tem quando está doente de preocupação? Era assim que eu me sentia desde que havia lido a carta de Flor da Neve, mas não podia fazer nada a respeito - não durante o meu casamento, na noite passada, nem mesmo agora. Devia empenhar-me para cumprir o meu destino, até voltar a vê-la. Mas era difícil, porque eu estava com fome, exausta, e o meu corpo doía. Meus pés estavam cansados e machucados de tanto andar naqueles últimos dias. Eu também me sentia desconfortável em outro lugar, mas tentei esquecer tudo isso e me dirigi para a cozinha, onde uma empregada de uns dez anos estava aga-chada, aparentemente esperando por mim. Minha própria emprega dinha - ninguém tinha me falado sobre isso. As pessoas em Puwei não têm empregados, mas eu soube o que ela era porque seus pés não tinham sido amarrados. O nome dela era Yonggang, o que significa corajosa e forte como o ferro. (Isso provaria ser verdadeiro.) Ela já tinha acendido o fogo no braseiro e trazido água para a cozinha. Só tive de esquentar a água e levá-la para os meus sogros lavarem o rosto. Eu também fiz chá para todos na casa, e quando eles chegaram à cozinha, servi-o sem derramar uma só gota.
Mais tarde naquele dia, meus sogros mandaram outro carregamento de porco e bolos para a minha família. Os Lu deram uma grande festa no seu templo ancestral, mais um banquete em que eu não tive permissão para comer. Diante de todos, meu marido e eu nos curvamos diante do céu e da terra, dos meus sogros e dos antepassados da família Lu. Depois, percorremos o templo, curvando-nos diante de todos que fossem mais velhos do que nós. Estes, por sua vez, nos deram dinheiro embrulhado em papel vermelho. Em seguida, de volta ao aposento nupcial.
O dia seguinte, o terceiro de um casamento, é aquele pelo qual todas as noivas esperam, porque os livros de terceiro dia de casamento preparados pela família e pelas amigas são lidos. No entanto, por ora eu só conseguia pensar em Flor da Neve e que eu a veria no evento.
Irmã Mais Velha e a esposa de Irmão Mais Velho chegaram trazendo os livros e a comida que eu finalmente podia comer. Muitas mulheres de Tongkou juntaram-se às mulheres da família do meu marido para ler as palavras, mas nem Flor da Neve nem minha mãe vieram. Não consegui entender o motivo disso. Fiquei profundamente magoada... e assustada com a ausência de Flor da Neve. Lá estava eu no que era considerado o mais alegre de todos os ritos de casamento, e não podia desfrutá-lo.
Meu sanzhaoshu continha todas as frases habituais sobre a tristeza da minha família agora que eu não estava mais com eles. Ao mesmo tempo, louvavam minhas virtudes e repetiam frases do tipo: "Se ao menos pudéssemos persuadir essa honrada família a esperar alguns anos antes de levá-la", ou: "É triste essa nossa separação", e também exortavam meus sogros a serem clementes e a ensinar-me os costumes familiares com paciência. O sanzhaoshu de Flor da Neve também foi como eu esperava, incorporando o seu amor aos pássaros. Começava com: "A fênix se casa com a galinha dourada, um casamento feito no céu." Mais uma vez, os sentimentos habituais, mesmo da minha laotong.
Verdade.
Se as circunstâncias tivessem sido normais, no quarto dia após meu casamento eu teria voltado para a casa da minha família em Puwei, mas havia muito que eu tinha planejado ir direto para a casa de Flor da Neve para o seu mês de Sentar e Cantar. Agora, que faltava pouco para vê-la, eu estava mais ansiosa do que nunca. Vesti um dos meus bons trajes de uso diário, uma jaqueta de seda verde-água e calças bordadas com um desenho de bambus. Eu queria causar uma impressão favorável não só em qualquer um por quem eu passasse em Tongkou, mas também na família de Flor da Neve, de quem eu tinha ouvido falar tanto ao longo de todos aqueles anos. Yonggang, a empregadinha, me conduziu pelas ruelas de Tongkou. Ela carregava as minhas roupas, a linha de bordar, o tecido e o livro de terceiro dia de casamento que eu tinha preparado para Flor da Neve dentro de uma cesta. Eu estava satisfeita por ter Yonggang para me guiar, mas me sentia desconfortável com sua companhia. Ela era uma das muitas coisas com as quais eu ia ter de me acostumar.
Tongkou era muito maior e mais próspera do que Puwei. As ruas eram limpas, sem galinhas, patos ou porcos passeando livremente. Paramos diante de uma casa que era exatamente como Flor da Neve havia descrito: dois andares, tranqüila e elegante. Sendo recém-chegada, eu ainda não conhecia os costumes da aldeia, mas uma coisa era exatamente igual a Puwei. Nós não gritávamos saudações nem batíamos para anunciar nossa chegada. Yonggang simplesmente abriu a porta da casa de Flor da Neve e entrou.
Entrei logo atrás e fui imediatamente atacada por um odor estranho, que combinava sujeira noturna com carne podre e uma camada de algo enjoativamente doce. Eu não tinha idéia de onde aquilo poderia vir, só que de certa forma parecia ser humano. Meu estômago revirou, mas meus olhos se rebelaram ainda mais, recusando-se a aceitar o que estavam vendo.
A sala principal era muito maior do que a da minha casa, mas tinha muito menos mobília. Eu vi uma mesa, mas nenhuma cadeira. Vi uma balaustrada de madeira trabalhada levando para o aposento das mulheres, mas além dessas poucas coisas - que mostravam uma qualidade artesanal muito maior do que qualquer coisa existente na minha casa - não havia mais nada. Nem mesmo fogo. Já estávamos em pleno outono e fazia frio. A sala também estava suja, com migalhas de comida pelo chão. Vi outras portas que deviam dar em quartos.
Isso não era apenas totalmente diferente do que se poderia esperar ao ver o exterior da casa, mas era muito diferente do que Flor da Neve havia descrito. Eu tinha de estar no lugar errado.
Perto do teto, havia várias janelas, mas todas, exceto uma, haviam sido tapadas. Um único raio de sol vindo daquela janela iluminava a escuridão. Naquela obscuridade melancólica, vi uma mulher agachada sobre uma bacia. Ela estava vestida como uma camponesa humilde, com roupas acolchoadas sujas e rasgadas. Nossos olhos se encontraram e ela rapidamente desviou o olhar. Mantendo a cabeça baixa, ela se levantou na faixa de luz. Sua pele era linda, clara e pura como porcelana. Ela entrelaçou os dedos e se curvou numa reverência.
- Senhorita Lírio, seja bem-vinda. - Ela manteve a voz baixa, não em deferência ao meu recém-adquirido status mais elevado, mas num timbre que parecia abafado pelo medo. - Espere aqui. Vou buscar Flor da Neve.
Agora eu estava totalmente chocada. Esta tinha que ser a casa de Flor da Neve. Mas como podia ser? Quando a mulher atravessou a sala em direção à escada, vi os seus lírios dourados, quase tão pequenos quanto os meus, o que aos meus olhos ignorantes pareceu uma coisa inacreditável para uma criada.
Fiquei escutando atentamente enquanto a mulher se dirigia a alguém no andar de cima. Então, meus ouvidos captaram o impossível - a voz de Flor da Neve falando num tom teimoso e argumenta-tivo. Chocada, foi como me senti, inteiramente chocada. Mas, fora esse único som familiar, a casa parecia estranhamente quieta. E naquele silêncio senti alguma coisa espreitando como um espírito maligno do outro mundo. Todo o meu corpo reagiu a essa experiência. Minha pele se arrepiou de nojo. Estremeci dentro do meu traje de seda verde-água, que tinha vestido para impressionar os pais de Flor da Neve, mas que não oferecia nenhuma proteção contra o vento úmido que soprava pela janela nem contra o medo que senti por estar naquele lugar estranho, escuro, fedorento e assustador.
Flor da Neve apareceu no alto da escada.
- Suba - disse ela para mim.
Fiquei ali paralisada, tentando desesperadamente absorver o que estava vendo. Algo tocou a minha manga e eu me assustei.
- Não creio que o patrão iria querer que eu a deixasse aqui -Yonggang disse, seu rosto uma máscara de preocupação.
- O patrão sabe onde estou - respondi, sem pensar.
- Lírio. - A voz de Flor da Neve tinha um tom de tristeza e desespero que eu nunca tinha ouvido antes.
Então eu me lembrei subitamente de uma coisa que minha mãe tinha dito poucos dias antes. Que, sendo mulher, eu não podia evitar a indignidade e que tinha de ser corajosa. "Você prometeu unir-se por toda a vida", ela havia dito. "Seja a dama que você foi criada para ser." Ela não estava se referindo a coisas de cama com o meu marido. Ela estava falando sobre isto. Flor da Neve era minha velha igual por toda a vida. Eu sentia um amor maior e mais profundo por ela do que jamais poderia sentir pela pessoa que era meu marido. Esse era o verdadeiro sentido de um relacionamento laotong.
Dei um passo para a frente e ouvi algo como um gemido vindo de Yonggang. Eu não sabia o que fazer. Nunca tinha tido uma criada antes. Dei um tapinha no ombro dela.
- Pode ir. - Tentei falar como uma patroa. - Vou ficar bem.
- Se precisar partir por qualquer motivo, vá até lá fora e peça ajuda - Yonggang sugeriu, ainda preocupada. - Todo mundo aqui conhece mestre e Lady Lu. As pessoas a levarão de volta para a casa dos seus sogros.
Tirei a cesta da mão dela. Como ela não se mexeu, fiz sinal para ela ir embora. Yonggang suspirou resignadamente, curvou-se rapidamente, recuou até a porta, virou-se e saiu.
Segurando firmemente a cesta, subi a escada. Quando me aproximei de Flor da Neve, vi que seu rosto estava molhado de lágrimas. Assim como a criada, ela estava usando uma roupa cinzenta acol-choada, malfeita e muito remendada. Parei um degrau abaixo do patamar.
- Nada mudou - disse eu. - Nós somos velhas iguais.
Ela segurou a minha mão, me ajudou a subir o último degrau e me levou para o aposento das mulheres. Pude ver que um dia ele tinha sido encantador. Ele era talvez três vezes maior que o aposento das mulheres da minha casa. Em vez de barras verticais na janela de treliça, uma tela de madeira trabalhada cobria a abertura. Fora isso, o quarto era vazio, a não ser por uma roda de fiar e uma cama. A linda mulher que eu tinha visto embaixo estava sentada graciosamente na beirada da cama, com as mãos pousadas no colo. Suas roupas de camponesa não disfarçavam sua origem.
- Lírio - Flor da Neve disse -, essa é minha mãe. Atravessei o quarto, juntei as mãos e fiz uma reverência para a mulher que tinha posto a minha laotong no mundo.
- Você deve perdoar nossas circunstâncias - a mãe de Flor da Neve disse. - Só posso oferecer-lhe chá. - Ela se levantou. – Vocês devem ter muito o que conversar. - Dizendo isso, saiu do quarto com a graça sublime que vem de pés que passaram por uma bandagem perfeita.
Quando saí da minha casa, há quatro dias, lágrimas correram pelo meu rosto. Eu estava triste, feliz e assustada ao mesmo tempo. Mas agora, ali sentada na cama de Flor da Neve, vi no rosto dela lágrimas de remorso, culpa e vergonha. Eu queria gritar para ela: "Conte-me tudo!" Mas esperei pela verdade, sabendo que cada palavra que saísse dos lábios de Flor da Neve iria contribuir para a sua humilhação.
- Muito antes de nós nos conhecermos - Flor da Neve disse finalmente -, minha família era uma das melhores do país. Você pode ver - ela fez um gesto mostrando o ambiente - que isto aqui foi muito bonito. Nós éramos muito prósperos. Meu bisavô, o intelectual, ganhou muitos mou do imperador.
Fiquei escutando, com a cabeça a mil.
- Quando o imperador morreu, meu bisavô caiu em desgraça, então voltou para casa. A vida era boa. Quando ele morreu, o filho dele, meu avô, assumiu a casa. Meu avô tinha muitos trabalhadores e muitos criados. Ele tinha três concubinas, mas elas só lhe deram filhas. Minha avó finalmente teve um filho homem e garantiu o seu lugar. Minha mãe foi dada em casamento a esse filho. As pessoas diziam que ela era igual a Hu Yuxiu, que era tão talentosa e atraente que havia conquistado o imperador. Meu pai não era um intelectual do império, mas foi educado nos clássicos. As pessoas diziam que um dia ele ia ser o chefe de Tongkou. Mamãe acreditava nisso. Outros viam um futuro diferente. Meus avós reconheciam no meu pai a fraqueza de ter sido criado como filho único numa casa cheia de irmãs e concubinas, enquanto minha tia suspeitava de que ele fosse covarde e suscetível ao vício.
Os olhos de Flor da Neve estavam distantes enquanto ela revivia um passado que não existia mais.
- Dois anos depois que eu nasci, meus avós morreram — continuou ela. - Minha família tinha tudo, roupas maravilhosas, muita comida, um monte de empregados. Meu pai me levava para viajar; minha mãe me levava ao Templo de Gupo. Eu vi e aprendi um bocado quando era menina. Mas meu pai teve de cuidar das três concubi-nas do meu avô e casar as suas quatro irmãs de sangue e as cinco meias-irmãs que eram filhas das concubinas. Ele também teve de providenciar trabalho, comida e abrigo para os trabalhadores do campo e os empregados da casa. Meu pai tentou mostrar a todos que grande homem ele era. Cada preço de noiva foi mais extravagante do que o outro. Ele começou a vender terras para o grande proprietário a oeste da nossa província para poder comprar mais seda pura e mais um porco para ser sacrificado como dote. Minha mãe, você a viu, ela é linda por fora, mas por dentro é muito parecida com o que eu era antes de conhecer você: mimada, protegida e ignorante acerca de trabalhos domésticos, com exceção de bordado e nu shu. Meu pai... - Flor da Neve hesitou, depois revelou - meu pai se viciou no cachimbo.
Eu me lembrei do dia em que madame Gao tinha feito aquele papelão falando mal da família de Flor da Neve. Ela mencionara jogo e concubinas, mas também que o pai de Flor da Neve era viciado no cachimbo. Eu tinha nove anos. Achei que ele fumasse muito tabaco. Agora percebia não só que o pai de Flor da Neve tinha se viciado em ópio, mas que todo mundo que estava no aposento das mulheres aquele dia, com exceção de mim, tinha compreendido exatamente o que madame Gao estava dizendo. Minha mãe sabia, minha tia sabia, madame Wang sabia. Todas elas sabiam, entretanto, todas tinham concordado que esse conhecimento não deveria ser compartilhado comigo.
- O seu pai ainda está vivo? - perguntei. Sem dúvida, ela teria me contado caso ele tivesse morrido, mas, considerando todas as outras mentiras, talvez não.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas não acrescentou mais nada.
- Ele está lá embaixo? - perguntei, pensando no cheiro estranho e nojento que havia na sala.
O rosto dela ficou imóvel; em seguida, ela ergueu as sobrancelhas. E interpretei como sendo sim.
- A virada veio com a fome - Flor da Neve resumiu. - Você se lembra disso? Nós ainda não tínhamos nos conhecido, mas houve uma colheita muito ruim seguida de um inverno extremamente cruel.
Como eu poderia esquecer? O melhor que comíamos era papa de arroz temperada com nabos secos. Mamãe era frugal, Baba e titio mal comiam, e nós havíamos sobrevivido.
- Meu pai não estava preparado - Flor da Neve admitiu. - Ele fumava o seu cachimbo e se esquecia de nós. Um dia, as concubinas do meu avô partiram. Talvez elas tenham voltado para a casa de suas famílias. Talvez tenham morrido na neve. Ninguém sabe. Quando a primavera chegou, só os meus pais, meus dois irmãos, minhas duas irmãs e eu morávamos na casa. Aparentemente, ainda tínhamos uma vida elegante, mas, na realidade, os cobradores estavam começando a nos visitar regularmente. Meu pai vendeu mais terras. Finalmente, nós tínhamos apenas a casa. Nessa altura, contudo, ele gostava mais do cachimbo do que de nós. Antes de penhorar a mobília, ah, Lírio, você não pode imaginar como tudo era bonito, ele pensou em me vender.
- Não como criada!
- Pior. Como uma pequena nora.
Essa tinha sido sempre a pior coisa que eu conseguia imaginar: não ter os pés amarrados, ser criada por estranhos que tinham de ter tão pouca moral a ponto de não querer uma nora decente, ser tratada pior do que uma criada. E agora que eu estava casada, entendia o aspecto mais terrível dessa vida. Você não era nada além de um objeto para coisas de cama para qualquer homem que morasse na casa.
- Fomos salvos pela irmã da minha mãe - Flor da Neve disse. - Depois que eu e você nos tornamos laotong, ela arrumou um casamento mais ou menos para a minha irmã mais velha. Ela nunca mais veio aqui. Depois, minha tia mandou meu irmão mais velho para ser aprendiz em Shangjiangxu. Hoje o meu irmão mais moço trabalha no campo para a família do seu marido. Minha irmã mais moça morreu, como você sabe...
Mas eu não me importava com gente que não conhecia e sobre as quais só tinha ouvido mentiras.
- O que aconteceu com você?
- Minha tia mudou o meu futuro com tesouras, tecido e alume. Meu pai protestou, mas você conhece titia Wang. Quem vai dizer não para ela depois que ela tomou uma decisão?
- Titia Wang? - Minha cabeça girou. - Você quer dizer a nossa titia Wang, a casamenteira?
- Ela é irmã da minha mãe. — Apertei as têmporas com os dedos. No dia em que conheci Flor da Neve e fomos ao Templo de Gupo, ela havia se dirigido à casamenteira como titia. Achei que ela fizera isso em sinal de cortesia e respeito, mas daí em diante também passei a usar o título quando falava com madame Wang. Eu me senti tola e imbecil.
- Você nunca me contou - disse eu.
- Sobre titia Wang? Essa era a única coisa que eu achava que você sabia.
A única coisa que eu achava que você sabia. Tentei absorver essas palavras.
- Titia Wang viu logo quem era o meu pai - Flor da Neve prosseguiu. - Ela compreendeu que ele era fraco. Ela também olhou para mim. Leu no meu rosto que eu não gostava de obedecer, que não prestava atenção, que não sabia nada sobre os afazeres domésticos, mas que minha mãe poderia ensinar-me a bordar, a me vestir corretamente, a me comportar diante de um homem e a nossa escrita secreta. Titia é apenas uma mulher, mas como casamenteira também tem cabeça para negócios. Ela viu onde iriam parar as coisas na nossa família e o que iria acontecer comigo. E começou a procurar uma laotong, na esperança de que isso mostrasse às pessoas da região que eu era educada, leal, obediente...
- Uma possível esposa - concluí. Isso servia para mim também.
- Ela procurou em todo o estado, viajando por lugares que iam do seu território habitual de casamenteira até ouvir o adivinho falar de você. Quando ela a conheceu, decidiu unir o meu destino ao seu.
- Eu não compreendo.
Flor da Neve deu um sorriso triste.
- Você estava destinada a subir e eu estava caindo. Quando você e eu nos conhecemos, eu não sabia nada. Eu teria de aprender com você.
- Mas foi você quem me ensinou. O seu bordado foi sempre melhor do que o meu. E você conhecia tão bem a escrita secreta. Você me treinou para viver numa casa com uma soleira alta...
- E você me ensinou a tirar água do poço, a lavar roupa, a cozinhar e a limpar a casa. Tentei ensinar a minha mãe, mas ela não consegue olhar as coisas de forma diferente.
Eu já tinha percebido que a mãe de Flor da Neve estava presa a um passado que não existia mais, mas tendo acabado de ouvir Flor da Neve contar a história de sua família, acho que minha laotong também via as coisas através do véu feliz da lembrança. Conhecen-do-a por todos aqueles anos, eu sabia que ela acreditava na idéia de que o mundo interior das mulheres devia ser lindo e sem preocupações. Talvez ela achasse que de alguma forma as coisas voltariam a ser como antes.
- Com você, aprendi o que precisava saber para a minha nova vida - Flor da Neve disse -, só que nunca fui capaz de limpar tão bem quanto você.
É verdade, ela nunca tinha sido muito boa nisso. Eu sempre achara que aquela era a maneira de ela fechar os olhos para a bagunça em que vivíamos. Agora eu entendia que era mais fácil para ela deixar sua mente voar acima das nuvens do que reconhecer a indignidade que estava bem diante dos seus olhos.
- Mas a sua casa é muito maior e mais difícil de limpar do que a minha, e você era apenas uma menina nos seus anos de cabelo preso - respondi estupidamente, tentando fazê-la sentir-se melhor. - Você tinha...
- Uma mãe que não podia me ajudar, um pai viciado em ópio e irmãos e irmãs que foram partindo um por um.
- Mas você vai se casar...
De repente, recordei aquele último dia em que madame Gao esteve no aposento do andar de cima e teve sua última discussão com madame Wang. O que ela dissera a respeito do noivado de Flor da Neve? Tentei lembrar o que sabia do acordo, mas Flor da Neve e eu raramente falávamos do seu futuro marido, se é que falávamos; ela raramente mostrou algum presente do seu preço de noiva, se é que mostrou algum. Tínhamos visto cortes de algodão e seda que ela estava costurando, é verdade, mas ela sempre dizia que eram trabalhos comuns, como sapatos para si mesma. Nada muito complicado.
Um pensamento assustador começou a tomar forma em minha mente. Flor da Neve teria de estar se casando com alguém de uma família muito inferior. A questão era: quão inferior?
Flor da Neve pareceu ler os meus pensamentos.
- Titia fez o melhor que pôde por mim. Eu não vou me casar com um fazendeiro.
Isso doeu um pouco, uma vez que meu pai era fazendeiro.
- Um comerciante, então? - Um comerciante tinha uma profissão pouco honrada, mas poderia ser capaz de restaurar algumas das coisas que Flor da Neve havia perdido.
- Vou me casar com alguém da aldeia vizinha de Jintian, como titia Wang disse, mas a família do meu marido - mais uma vez ela hesitou -, eles são açougueiros.
Waaa! Esse era o pior casamento possível! O novo marido de Flor da Neve teria algum dinheiro, mas o que fazia era impuro e nojento. Na minha mente, revi tudo que havia acontecido no último mês, enquanto nos preparávamos para o meu casamento. Em especial, recordei o modo como madame Wang havia ficado sempre ao lado de Flor da Neve, apoiando-a e incentivando-a. Então, me lembrei da casamenteira contando "A história da esposa Wang". Com profunda vergonha, vi que a história não fora dirigida a mim, e sim a FlordaNeve.
Não soube o que dizer. Eu tinha ouvido a verdade em pedacinhos, desde os nove anos, mas tinha preferido não acreditar nela ou não admiti-la. Agora, eu pensava, não é meu dever alegrar a minha laotongl Fazê-la esquecer esses problemas? Fazê-la acreditar que tudo vai dar certo?
Eu a abracei.
- Pelo menos você nunca passará fome - eu disse, embora estivesse enganada quanto a isso. - Existem coisas piores que podem acontecer a uma mulher - eu disse, mas não consegui imaginar quais seriam.
Ela enterrou o rosto no meu ombro e soluçou. Passados alguns instantes, ela me empurrou com força. Seus olhos estavam molhados de lágrimas, mas não vi tristeza neles, e sim uma fúria descontrolada.
- Não quero que você sinta pena de mim!
Não tinha passado pela minha cabeça sentir pena dela. Eu me senti triste e confusa. A carta dela tinha arruinado o prazer pelo meu casamento. O fato de ela não ter aparecido para a leitura dos meus livros de terceiro dia de casamento tinha me ferido profundamente. E agora isso. Subjacente ao tumulto das minhas emoções, estava o sentimento de que Flor da Neve me havia traído. Foram tantas as noites que passamos juntas, por que ela não tinha me contado a verdade? Teria sido porque não acreditava que aquele seria o seu destino? Que pelo fato de estar sempre com a mente voando para muito longe achava que isso também poderia ocorrer na vida real? Será que ela realmente acreditava que nossos pés iriam deixar o chão e nossos corações iriam realmente voar junto com os pássaros? Ou ela estava apenas tentando evitar humilhações ao guardar seus muitos segredos, acreditando que este dia jamais chegaria?
Talvez eu devesse ficar zangada com Flor da Neve por ter mentido para mim, mas não foi isso que senti. Eu acreditara que tinha sido escolhida para um futuro especial, o que me deixou autocentrada demais para ver o que estava bem diante dos meus olhos. Não tinha sido a minha falha como amiga - como uma laotong - que me havia impedido de fazer a Flor da Neve as perguntas certas a respeito do seu passado e do seu futuro?
Eu só tinha dezessete anos. Tinha passado os últimos dez anos praticamente inteiros no aposento do andar de cima, cercada de mulheres que viam um determinado futuro para mim. O mesmo pode ser dito dos homens no andar de baixo. Mas quando pensava em todos eles - mamãe, titia, papai, titio, madame Gao, madame Wang e até mesmo Flor da Neve -, a única pessoa que eu podia realmente culpar era minha mãe. Madame Wang poderia tê-la iludido, a princípio, mas finalmente ela soube a verdade e decidiu não me contar. Os meus sentimentos por minha mãe alteraram-se e se deformaram quando compreendi que suas eventuais demonstrações de afeto, que eu via agora como parte de suas mentiras de omissão, tinham sido simplesmente uma forma de me manter no caminho certo para o bom casamento que iria beneficiar toda a minha família.
Foi um momento de suprema confusão, e acredito que tenha preparado o terreno para o que aconteceu mais tarde. Não consegui raciocinar. Não consegui enxergar o que era importante. Eu era apenas uma garota tola que achava que sabia alguma coisa porque estava casada. Não soube como resolver nenhuma dessas coisas, então enterrei-as bem fundo dentro de mim. No entanto, meus sentimentos não desapareceram - nem poderiam desaparecer. Foi como se eu tivesse engolido a carne de um porco doente e ela começasse lentamente a me infectar por dentro.
Eu ainda não havia me tornado a Lady Lu que hoje é respeitada por sua graciosidade, compaixão e força. Entretanto, a partir do momento em que pisei na casa de Flor da Neve, senti algo novo dentro de mim. Pense de novo naquela carne de porco estragada e irá entender o que estou dizendo. Eu tinha de fingir que não estava doente em infectada, então usei de toda a minha determinação para isso. Eu queria honrar a família do meu marido, sendo caridosa e bondosa para as pessoas, nas piores circunstâncias. É claro que não sabia como fazer isso, porque essas coisas não me eram naturais.
Flor da Neve iria casar-se dentro de um mês, então ajudei a ela e sua mãe a limpar a casa. Eu queria que tudo estivesse apresentável para a festa do noivo, mas ninguém era capaz de lidar com o fedor que permeava os aposentos. O cheiro adocicado e nauseante vinha do ópio que o pai de Flor da Neve fumava. E o outro fedor, como você provavelmente imaginou, vinha dos intestinos doentes dele. Nem incenso, nem vinagre queimado, nem o fato de abrir as janelas, mesmo naqueles meses frios, poderiam disfarçar a sujeira daquele homem e seus hábitos.
Vi a rotina daquela casa, onde duas mulheres viviam mortas de medo do homem que residia num quarto do andar de baixo. Vivenciei suas vozes baixas e o modo como se encolhiam toda vez que ele chamava por elas. E vi o próprio homem, deitado no meio da sujeira e do fedor. Mesmo na pobreza, ele era tão petulante e raivoso quanto uma criança mimada. Pode ter havido um tempo em que ele batia na mulher e na filha, mas agora era apenas uma criatura dopada que era melhor que fosse deixada entregue ao seu vício.
Tentei não demonstrar minhas emoções. Lágrimas demais já tinham sido derramadas naquela casa para que eu acrescentasse as minhas. Pedi para ver os presentes do preço de noiva de Flor da Neve. Pensei comigo mesma: talvez essa família de açougueiros não seja tão ruim assim. Eu tinha visto as peças de seda que Flor da Neve costumava costurar. Essas pessoas devem ser relativamente prósperas, mesmo que sejam espiritualmente poluídas.
Flor da Neve abriu uma cômoda de madeira e arrumou cuidadosamente na cama tudo o que ela havia feito. Vi os sapatos de seda azul-celeste com o desenho de nuvens que ela havia terminado no dia em que Lua Linda morreu. Vi uma jaqueta que usava um pouco daquela mesma seda na lapela; depois, formando uma fileira, Flor da Neve arrumou cinco pares de sapatos de diferentes tamanhos no mesmo tecido, mas bordados com desenhos adicionais. Tudo isso me pareceu familiar, e de repente entendi por quê. Essas coisas tinham sido confeccionadas a partir da jaqueta que Flor da Neve estava usando no dia em que nos conhecemos.
Minhas mãos percorreram outros itens do seu enxoval. Ali estava o tecido lavanda e branco do traje de viagem de Flor da Neve quando ela estava com nove anos, transformado em coletes e sapatos. Ali estava o meu tecido de algodão favorito, índigo e branco, que havia sido recortado para enfeitar jaquetas, tiaras, cintos e colchas. Os presentes do preço de noiva de Flor da Neve eram pouquíssimos, mas ela usara pedaços de suas próprias roupas para criar um enxoval fantástico.
- Você vai ser uma esposa incrível - disse eu, maravilhada com o que ela conseguira fazer.
Pela primeira vez, Flor da Neve riu. Eu sempre amara aquele som, tão alto, tão sedutor. Eu ri também, porque tudo isso estava... além - além de tudo que eu pudesse ter imaginado, além do que era justo ou certo no universo. A situação de Flor da Neve e o que ela havia feito com ela eram algo horrível, trágico, engraçado e espantoso, tudo ao mesmo tempo.
-As suas coisas...
- Que, para começar, nem são minhas - Flor da Neve respondeu, tentando recuperar o fôlego. - Minha mãe cortava as roupas do enxoval dela para fazer roupas para mim quando eu ia visitar você. Agora, elas foram cortadas outra vez para o meu marido e os meus sogros.
É claro! Tinha que ser isso, porque agora eu me lembrava de ter pensado, na época, que certos estampados pareciam sofisticados demais para uma garota tão jovem, e de ter cortado linhas soltas de um punho quando Flor da Neve não estava olhando. Fui mais burra do que uma galinha na chuva. O sangue subiu à minha face. Pus as mãos no rosto e ri ainda mais.
- Você acha que minha sogra vai notar? - Flor da Neve perguntou.
- Se eu fui cega o suficiente para não notar, então... - Mas não pude terminar porque era tudo muito engraçado.
Talvez essa seja uma piada que só meninas e mulheres possam entender. Nós somos vistas como totalmente inúteis. Mesmo que nossas famílias nos amem, somos um peso para elas. Nós nos casamos e entramos para novas famílias, vamos ao encontro dos nossos maridos sem nunca tê-los visto, fazemos coisas de cama com eles como completas estranhas e nos submetemos às ordens de nossas sogras. Se tivermos sorte, teremos filhos homens para garantir nossa posição na casa dos nossos maridos. Se não, seremos obrigadas a enfrentar o desprezo das sogras, a zombaria das concubinas dos nossos maridos e os rostos desapontados das nossas filhas. Usamos as astúcias femininas - que uma garota de dezessete anos praticamente desconhece -, mas, além disso, há muito pouco que possamos fazer para mudar o nosso destino. Vivemos ao bel-prazer dos outros, por isso é que o que Flor da Neve e sua mãe tinham feito estava tão além. Elas tinham usado tecido que fora um dia enviado pela família de Flor da Neve para a sua mãe como preço de noiva e transformado no enxoval de uma fina donzela, em seguida transformado de novo em roupas para uma linda filha, e agora, mais uma vez, reformado para anunciar as qualidades de uma jovem mulher que ia entrar para a família de um açougueiro sujo. Tudo isso fora obra de mulheres -que os homens consideravam como sendo algo meramente decorativo - e estava sendo usada para mudar a vida das próprias mulheres.
Porém, era preciso muito mais. Flor da Neve precisava ir para sua nova casa com roupas suficientes para usar a vida inteira. E possuía muito poucas. Minha mente começou a trabalhar, imaginando o que poderíamos fazer naquele mês que restava.
Quando madame Wang chegou para o Sentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima de Flor da Neve, eu a chamei num canto e implorei que fosse até a casa da minha família.
- Tem coisas que eu preciso...
Aquela mulher tinha passado tanto tempo me criticando. Ela também tinha mentido - não para minha família, mas para mim. Eu nunca gostei dela, e agora gostava menos ainda por seu fingimento, mas ela fez exatamente o que mandei (afinal de contas, eu agora era mais importante do que ela). Ela voltou da minha casa várias horas depois, com uma cesta cheia das sobras do meu casamento, um pouco da carne de porco que meus sogros haviam mandado, legumes frescos da nossa horta e outra cesta cheia de tecidos que eu tinha planejado cortar quando voltasse para casa. Ver a mãe de Flor da Neve comer aquela carne foi algo de que jamais esquecerei. Ela fora educada para ser uma dama elegante e, embora faminta, não se atirou sobre a comida como alguém da minha família teria feito. Usou os pauzinhos para retirar pedacinhos de carne e levá-los delicadamente à boca. Sua reserva e seu controle ensinaram-me uma lição que tem me servido até hoje. Você pode estar desesperada, mas nunca deixe que ninguém a veja como algo menos que uma mulher educada. — Eu não tinha terminado com madame Wang.
- Vamos precisar de moças para Sentar e Cantar - eu disse. - Você pode trazer a irmã mais velha de Flor da Neve?
- Seus sogros não irão permitir que ela volte a esta casa. Digeri esse fato. Eu não sabia que tal coisa fosse possível.
- Nós ainda precisamos de moças - insisti.
- Ninguém virá, senhorita Lírio - madame Wang confessou. - A reputação do meu cunhado é ruim demais. Nenhuma família irá permitir que uma moça solteira cruze esta porta. E quanto a sua mãe e sua tia? Elas já sabem da situação...
- Não! - Eu ainda não estava preparada para lidar com elas, e Flor da Neve não precisava da piedade delas. A minha laotong precisava de estranhas.
Eu tinha cash do meu casamento. Coloquei algum na mão de madame Wang.
- Não volte enquanto não tiver encontrado três moças. Pague o que considerar adequado aos pais delas. Diga-lhes que eu me responsabilizo por suas filhas.
Eu tinha certeza de que meu novo status de casada com a melhor família de Tongkou iria pesar favoravelmente; entretanto, eu poderia muito bem estar falando uma bobagem, porque certamente os meus sogros não sabiam que eu estava usando a posição deles desse Jeito. Porém, pude ver que madame Wang pesou isso. Ela precisava continuar a fazer negócios em Tongkou, e estava prestes a colher os benefícios a longo prazo de ter-me trazido para a família Lu. Não queria ameaçar sua posição, mas já tinha quebrado muitas regras para beneficiar a sobrinha. Finalmente, madame Wang resolveu mentalmente a equação, balançou a cabeça e saiu.
Um dia depois, ela voltou com três filhas de fazendeiros que trabalhavam para o meu sogro. Em outras palavras, eram moças como eu, só que não tinham tido os meus privilégios.
Eu assumi aquele mês. Conduzi as moças em seus cantos. Ajudei-as a achar palavras boas para escrever a respeito de Flor da Neve - alguém que elas não conheciam - nos seus livros de terceiro dia de casamento. Se não sabiam um caractere, eu escrevia para elas. Quando se demoravam para costurar uma colcha, eu as chamava de lado e dizia que seus pais seriam punidos se elas não fizessem direito o trabalho para o qual haviam sido contratadas.
Lembra-se de como foi com Irmã Mais Velha? Ela estava triste de sair de casa, mas todo mundo acreditava que ela ia fazer um bom casamento. Suas canções não eram nem muito trágicas nem muito felizes, refletindo o que ia ser o seu futuro. Eu tinha tido emoções conflitantes acerca do meu casamento. Estava muito triste de sair de casa, mas estava excitada porque minha vida ia mudar para melhor. Eu havia cantado canções elogiando os meus pais por terem me educado e em agradecimento por terem trabalhado tanto por minha causa. O futuro de Flor da Neve, por outro lado, parecia tristonho. Ninguém poderia negar ou mudar isso, então nossas canções eram cheias de melancolia.
- Mamãe - Flor da Neve cantou um dia -, Baba não me plantou numa colina ensolarada. Viverei na sombra para sempre.
Sua mãe cantou de volta:
- Realmente, foi como plantar uma linda flor num monte de bosta de vaca.
As três moças e eu não pudemos deixar de concordar, erguendo nossas vozes em uníssono para repetir ambos os versos. Foi assim que as coisas se passaram: feitas com o coração pesado, mas da maneira tradicional.
Os dias foram ficando mais frios. O irmão mais moço de Flor da Neve veio visitá-la um dia e colou papel na treliça da janela. Mesmo assim, a umidade entrava. Nossos dedos ficavam duros e vermelhos por causa do frio constante. As três moças tinham medo de reclamar. Não podíamos continuar assim, então sugeri que nos mudássemos para a cozinha, lá embaixo, onde poderíamos nos esquentar perto do fogo. Madame Wang e a mãe de Flor da Neve concordaram comigo, confirmando mais uma vez que agora eu tinha poder.
Já fazia muito tempo que eu tinha escrito o livro de terceiro dia de casamento para Flor da Neve. Ele estava cheio de belos presságios sobre Flor da Neve e seu futuro, mas essas coisas não eram mais adequadas. Recomecei a escrevê-lo. Cortei um pano de índigo para a capa, dobrei-o em volta de diversas folhas de papel de arroz e costurei com linha branca. Por dentro da folha de rosto, colei pedaços de papel vermelho nos cantos. As primeiras páginas eram para eu escrever a minha canção de adeus para Flor da Neve, as seguintes para eu apresentá-la à nova família, e o resto ficava em branco para que ela pudesse usar para seus próprios escritos e guardar seus moldes de bordado. Passei tinta na pedra e aparei o meu pincel para escrever os caracteres em nossa linguagem secreta. Procurei fazer cada traço o mais perfeito possível. Eu não podia deixar minha mão - tão sem firmeza por causa das emoções daqueles dias - prejudicar os sentimentos.
Quando os trinta dias chegaram ao fim, começou o Dia de Tristeza e Preocupação. Flor da Neve ficou no andar de cima. Sua mãe sentou-se no quarto degrau da escada que conduzia ao aposento das mulheres. Nossas canções tinham crescido e se desenvolvido bastante. Apesar de temer a ira do pai de Flor da Neve por qualquer ruído, ergui minha voz para cantar meus sentimentos e recomendações.
- Uma boa mulher não deve detestar a condição inferior do seu marido - cantei, lembrando-me da "História da esposa Wang". - Ajude a elevar o nível da sua família. Sirva e obedeça ao seu marido.
A mãe e a tia de Flor da Neve ecoaram esses pensamentos.
- Para sermos boas filhas, precisamos obedecer - elas cantaram juntas. Ouvindo a harmonia de suas vozes, ninguém poderia duvidar da devoção e do afeto que havia entre elas. - Nós temos de permanecer nos nossos aposentos do andar de cima, ser castas, humildes e perfeitas nas artes femininas. Para sermos boas filhas, temos de deixar nossas casas. Esse é o nosso destino. Quando partimos para a casa de nossos maridos, novos mundos se abrem, às vezes melhores, às vezes piores.
- Nós passamos juntas nossos dias felizes de filhas - lembrei a Flor da Neve. - Ano após ano, estivemos sempre juntas. Agora vamos continuar juntas do mesmo jeito. - Recordei as primeiras coisas que havíamos escrito no nosso leque e no nosso contrato de laotong. - Ainda falaremos em sussurros. Ainda escolheremos nossas cores, enfiaremos nossas agulhas e bordaremos juntas.
Flor da Neve apareceu no alto da escada. Sua voz flutuou na minha direção.
- Achei que iríamos voar juntas, duas fênix em pleno vôo, para sempre. Agora me sinto como uma coisa morta descendo até o fundo de um lago. Você diz que estaremos juntas do mesmo jeito. Acredito em você. Mas a soleira da minha porta não se compara com a sua.
Ela desceu lentamente, parando para sentar ao lado da mãe. Nós esperávamos ver lágrimas amargas, mas não havia nenhuma lágrima. Ela deu o braço à mãe e ouviu educadamente as moças da aldeia cantarem os seus lamentos. Olhando para Flor da Neve, não pude deixar de refletir sobre aquela aparente falta de emoção, quando até eu - por mais excitada que estivesse por estar fazendo um bom casamento - tinha chorado durante essa cerimônia. Estariam os sentimentos de Flor da Neve tão confusos quanto os meus tinham estado? Sem dúvida, ela iria sentir saudades da mãe, mas será que ela sentiria saudades daquele pai desprezível ou de acordar todas as manhãs naquela casa vazia, que devia lembrar-lhe constantemente tudo o que dera errado em sua família? Era terrível estar se casando com um açougueiro, mas na prática seria pior do que isto? E Flor da Neve também tinha nascido no ano do cavalo. O espírito galopante que ansiava por aventuras era tão forte nela quanto em mim. Entretanto, embora fôssemos velhas iguais, ambas nascidas sob o signo do cavalo, meus pés estavam sempre no chão - prática, leal, obediente -, enquanto que o seu espírito de cavalo tinha asas que queriam voar e lutar contra tudo que pudesse detê-la, apesar de possuir uma mente que buscava a beleza e o refinamento.
Dois dias depois, a cadeira de flores de Flor da Neve chegou. Mais uma vez, ela não chorou nem lutou contra o inevitável. Olhou em volta uma única vez para o grupo tão pequeno que se havia juntado e então subiu no palanquim modestamente decorado. As três moças que eu havia contratado nem mesmo esperaram que a cadeira de flores virasse a esquina para irem embora para casa. A mãe de Flor da Neve entrou e fiquei sozinha com madame Wang.
- Você deve achar que sou uma mulher má - a casamenteira disse. - Mas deve entender que nunca menti para a sua mãe ou para a sua tia. Uma mulher pode fazer muito pouco nesta vida para mudar o seu destino, e o que dizer então do destino de outra pessoa, mas...
Ergui a mão para evitar que ela enumerasse suas desculpas, porque eu precisava saber outra coisa.
- Há muitos anos, quando a senhora esteve na minha casa para ver os meus pés...
- Você está me perguntando se era mesmo especial? Quando eu disse que sim, ela me olhou com dureza.
- Não é muito fácil encontrar uma laotong em potencial - admitiu ela. - Eu tinha vários adivinhos procurando alguém que eu pudesse unir à minha sobrinha. É verdade que eu teria preferido alguém de uma família mais importante, mas o adivinho Hu encontrou você. Seus oito atributos combinavam perfeitamente com os da minha sobrinha. Mas ele teria me procurado de qualquer jeito, porque, sim, os seus pés eram mesmo especiais. O seu destino estava fadado a mudar, com ou sem minha sobrinha como sua laotong. Agora espero que o destino dela tenha mudado por causa do relacionamento com você. Contei muitas mentiras para que ela pudesse ter uma chance na vida. Nunca pedirei perdão a você por isso.
Olhei para o rosto cheio de ruge de madame Wang, pensativa. Eu queria odiá-la, mas como poderia? Ela havia feito o melhor que pôde para a pessoa mais importante do mundo para mim.
Já que a irmã mais velha de Flor da Neve não ia entregar os livros de terceiro dia de casamento, fui no lugar dela. Minha família de sangue mandou um palanquim e em pouco tempo cheguei a Jintian. Nenhum enfeite ou sons alegres de uma banda de música anunciavam que algo de especial estava acontecendo na aldeia naquele dia. Simplesmente desci do palanquim numa estrada de terra em frente a uma casa de telhado baixo e inclinado, com uma pilha de lenha encostada na parede. A direita da porta havia algo que parecia uma panela gigantesca embutida numa plataforma de tijolos.
Um banquete deveria ter sido preparado para a minha chegada. Não foi. As mulheres mais importantes da aldeia deveriam ter me recebido. Elas o fizeram, mas seu dialeto rústico, embora vivessem a poucos quilômetros de Tongkou, me deu uma idéia da má qualidade das pessoas que viviam ali.
Quando chegou a hora de ler os sanzhaoshu, fui levada para a sala principal. Na superfície, a casa se parecia com a da minha família. Pimentas secas pendiam da viga central. As paredes eram de tijolos sem pintura. Eu esperava que essas semelhanças com a minha casa se refletissem nas pessoas que moravam ali. Não me encontrei com o marido de Flor da Neve nessa ocasião, mas conheci a mãe dele, e ela era uma criatura horrível. Seus olhos eram muito juntos e a finura dos seus lábios indicava uma mente estreita e um espírito mesquinho.
Flor da Neve entrou na sala, sentou-se num banquinho ao lado dos seus livros de terceiro dia de casamento e esperou calmamente. Embora eu achasse que eu tinha mudado com o casamento, ela não pareceu diferente aos meus olhos. As mulheres de Jintian agruparam-se em torno dos sanzhaoshu, passando seus dedos sujos sobre eles. Elas comentaram entre si a costura da capa e os recortes de papel, mas nenhuma disse nada a respeito da qualidade da escrita nem sobre os pensamentos expressos. Após alguns minutos, as mulheres se posicionaram ao redor da sala.
A sogra de Flor da Neve caminhou até um banco. Seus pés não tinham sido tão mal amarrados quanto os de minha mãe, mas a estranheza do seu passo marcava mais a sua classe do que os sons guturais que saíam de sua boca. Ela se sentou, olhou com desagrado para a nova nora, e então cravou seus olhos frios em mim.
- Eu soube que você entrou para a família Lu. Você tem muita sorte. - As palavras eram educadas, mas o modo como ela as pronunciou sugeria que eu estava coberta de ferragem de porco. - Dizem que você e minha nora são versadas em nu shu. As mulheres da nossa aldeia não valorizam esse passatempo. Nós sabemos ler, mas achamos que é melhor ouvir.
Não acreditei nisso. Essa mulher era igual a minha mãe, analfabeta em nu shu. Olhei em volta, avaliando as outras mulheres. Elas não tinham comentado a escrita porque provavelmente sabiam muito pouco sobre ela.
- Nós não temos necessidade de ocultar nossos pensamentos em palavras escritas em papel - a sogra de Flor da Neve prosseguiu. -Todo mundo nesta sala sabe o que eu penso. - Quando algumas risadas sem graça receberam este comentário, ela ergueu três dedos para silenciar as amigas. - Gostaríamos de ouvir você ler os sanz-haoshu da minha nora. Comentários acerca do valor da minha nora vindos de alguém de uma casa importante de Tongkou serão muito apreciados.
Tudo o que aquela mulher dizia era em tom de desprezo. Reagi como uma garota de dezessete anos reagiria. Peguei o livro de terceiro dia de casamento que a mãe de Flor da Neve tinha preparado para ela e o abri. Imaginei sua voz refinada e tentei recriá-la ao recitar.
- Apresento esta carta à sua nobre família no terceiro dia do seu casamento. Eu sou sua mãe e estamos separadas há três dias. A desgraça se abateu sobre nossa família e agora você se casa e parte para uma aldeia pobre. - Como era costume num livro de terceiro dia de casamento, o assunto mudou, e a mãe de Flor da Neve se dirige à nova família. - Espero que vocês demonstrem compaixão pela minha filha por causa da pobreza do seu enxoval. Até mesmo a camada de cima é simples. Por favor, não comentem isso. - Continuava assim, falando sobre a má sorte da família de Flor da Neve, sua perda de status social e a pobreza em que viviam agora, mas meus olhos passaram sobre os caracteres como se eles não existissem. Em vez de lê-los, inventei novas palavras. - Uma boa mulher como a nossa Flor da Neve deveria cair num bom lugar. Ela merece uma família decente.
Larguei o livro. A sala estava em silêncio. Peguei o livro de terceiro dia de casamento que eu havia escrito para Flor da Neve e o abri. Meus olhos procuraram a sogra de Flor da Neve. Eu queria que ela soubesse que a minha laotong teria sempre uma protetora em mim.
- As pessoas podem se referir a nós como moças que se casaram - recitei, na direção de Flor da Neve —, mas nunca estaremos separadas em nossos corações. Você desce; eu subo. A sua família mata animais. A minha é a melhor deste estado. Você é tão próxima a mim quanto o meu próprio coração. Nossos futuros estão unidos. Somos como uma ponte sobre um largo rio. Nós caminhamos lado a lado.
- Eu queria que a sogra de Flor da Neve me ouvisse. Mas seus olhos me olhavam cheios de desconfiança, seus lábios finos apertados em sinal de aborrecimento.
Quando cheguei ao final, acrescentei alguns sentimentos novos.
- Não demonstre tristeza na frente dos outros. Não deixe os soluços lhe subirem à garganta. Não dê motivos para que pessoas mal-educadas riam de você ou de sua família. Siga as regras. Não deixe que rugas de ansiedade marquem sua testa. Nós seremos velhas iguais para sempre.
Flor da Neve e eu não tivemos oportunidade de falar. Fui levada de volta ao meu palanquim e voltei para a casa da minha família. Assim que fiquei sozinha, desembrulhei o nosso leque e o abri. Um terço das dobras já possuía comentários sobre nossos momentos especiais. Isso estava certo, pois já havíamos vivido mais de um terço do que era considerado uma vida longa para as mulheres da nossa região. Contemplei todas as coisas que haviam acontecido em nossas vidas até aquele ponto. Tanta felicidade. Tanta tristeza. Tanta intimidade.
Fui para a última anotação, onde Flor da Neve tinha escrito acerca do meu casamento na família Lu. Ela cobria metade de uma dobra do leque. Misturei tinta e escolhi meu melhor pincel. Bem abaixo dos seus votos para mim, acrescentei cuidadosamente novos caracteres: "Uma fênix voa acima de um galo. Ela sente o vento em volta dela. Nada irá atirá-la ao chão." Só naquele momento em que me vi sozinha, depois que aquelas palavras foram escritas, é que finalmente enfrentei a verdade acerca do destino de Flor da Neve. Na guirlanda da borda do leque, pintei uma flor murcha da qual pingavam pequenas lágrimas. Esperei a tinta secar.
Então, fechei o leque.
O Templo de Gupo
Meus pais ficaram felizes em me ver quando voltei. Ficaram mais felizes ainda com os bolos que meus sogros mandaram de presente. Mas, para ser honesta, eu não estava tão feliz em vê-los. Eles tinham mentido para mim durante dez anos, e minhas entranhas ardiam de ódio. Eu não era mais a meninazinha que podia deixar a água do rio levar embora os sentimentos desagradáveis. Queria acusar minha família, mas, para o meu próprio bem, ainda precisava seguir as regras da piedade filial. Então, me rebelei sutilmente, isolando-me física e emocionalmente o melhor que pude. A princípio, minha família pareceu não notar nenhuma mudança em mim. Eles continuaram a fazer e a dizer as coisas de sempre, e fiz o possível para refutar suas iniciativas. Minha mãe quis examinar minhas partes, mas neguei, alegando vergonha. Minha tia perguntou sobre coisas de cama, mas me afastei dela, fingindo timidez. Meu pai tentou segurar minha mão, mas eu disse que agora estava casada e esse tipo de carinho não era mais apropriado. Irmão Mais Velho buscou minha companhia para rir e contar casos; eu disse que ele devia fazer essas coisas com a esposa dele. Segundo Irmão notou minha cara e manteve distância de mim; e não fiz nada para mudar isso, sugerindo, recatadamente, que quando ele tivesse uma esposa iria entender. Só titio - com seu ar desapontado e seu andar nervoso despertou alguma simpatia em mim, mas eu não lhe disse nada. Eu cumpria as minhas tarefas. Trabalhava em silêncio no aposento do andar de cima. Eu era educada. Controlava minha língua porque todos eles, exceto meu irmão mais moço, eram mais velhos do que eu. Mesmo sendo uma mulher casada, não tinha o direito de acusá-los de nada.
Contudo, eu não poderia agir assim por muito tempo sem ser notada. Para mamãe, o meu comportamento - embora respeitoso sob todos os aspectos - era inaceitável. Nós éramos gente demais numa casa pequena para que uma só pessoa tomasse tanto espaço com o que ela considerou ser minha mesquinhez.
Eu estava em casa havia cinco dias quando mamãe pediu a titia para descer para buscar chá. Assim que titia saiu, minha mãe atravessou o quarto, encostou a bengala na mesa onde eu estava sentada, agarrou o meu braço e enfiou as unhas na minha carne.
- Você acha que é boa demais para nós agora? - ela me acusou com um sussurro raivoso. - Você se acha superior porque fez coisa de cama com o filho de um chefe de aldeia?
Ergui os olhos e a encarei. Eu nunca a havia desrespeitado. Agora eu revelava a raiva em meu rosto. Ela sustentou o meu olhar, acreditando que poderia abalar-me com seus olhos frios, mas não desviei os olhos. Então, com um movimento rápido, ela soltou meu braço, recuou e me deu uma bofetada. Minha cabeça foi atirada para o lado e depois voltou para o centro. Meus olhos buscaram os dela de novo, o que só serviu para ofendê-la ainda mais.
- Você desonra esta casa com o seu comportamento - ela disse. -Você é mais que desgraçada.
- Mais que desgraçada - repeti em voz baixa, sabendo que ela ficaria ainda mais furiosa com isso. Então, agarrei o braço dela e a puxei para baixo para ficarmos cara a cara. A bengala dela caiu no chão.
Lá de baixo, minha tia perguntou:
- Você está bem, irmã?
Mamãe respondeu:
- Sim, traga o chá quando estiver pronto.
Meu corpo tremia com as emoções que fervilhavam sob minha pele. Mamãe sentiu-as e sorriu do seu jeito astuto. Enfiei as unhas em sua carne como ela fizera comigo. Mantive a voz baixa para que ninguém na casa pudesse ouvir o que eu dizia.
- Você é uma mentirosa. Você, e todo mundo nesta família, me enganou. Você achou que eu não ia descobrir a respeito de Flor da Neve?
- Nós não lhe contamos em consideração a ela - gemeu. - Nós amamos Flor da Neve. Ela era feliz aqui. Por que iríamos mudar o modo como você a via?
- Nada teria mudado. Ela é minha laotong.
Minha mãe projetou o queixo para à frente teimosamente e mudou de tática.
- Tudo o que fizemos foi para o seu bem. Enterrei mais as unhas.
- Para o seu bem, você quer dizer.
Eu sabia que a estava fazendo sentir dor, mas, em vez de fazer uma careta, ela estampou no rosto uma expressão bondosa. Também sabia que ela ia tentar se justificar, mas jamais teria imaginado a desculpa que iria inventar.
- O seu relacionamento com Flor da Neve e os seus pés perfeitos significavam um bom casamento, não só para você mas também para a sua prima. Lua Linda ia ser feliz.
Essa digressão do assunto foi mais do que eu poderia suportar, mas mantive a compostura.
- Lua Linda morreu há dois anos. - Minha voz saiu rouca. - Flor da Neve veio para esta casa há dez anos. Entretanto, você nunca encontrou a ocasião de me contar a verdade sobre ela.
-Lua Linda...
- Não estamos falando de Lua Linda!
- Você a levou para fora. Se não tivesse levado, ela ainda estaria aqui. Você partiu o coração da sua tia.
Eu deveria ter esperado essa manipulação dos fatos por parte da minha mãe macaco. Mesmo assim, a acusação era dura demais, cruel demais de se acreditar. Mas o que eu podia fazer? Eu era uma filha. Ainda tinha de me apoiar na minha família até engravidar e ir embora. Como uma moça nascida sob o signo do cavalo poderia vencer uma batalha contra o insidioso macaco?
Minha mãe deve ter percebido sua vantagem, porque continuou:
- Uma filha dedicada iria agradecer-me...
- Do quê?
- Eu lhe dei a vida que não pude ter por causa deles. - Ela mostrou os pés deformados. - Amarrei e prendi os seus pés, e agora você recebeu a recompensa.
As palavras dela me transportaram de volta para as horas em que senti as dores mais agudas nos pés e em que ela havia sempre repetido uma versão ou outra dessa promessa. Com horror, percebi que durante aqueles dias terríveis ela não estava demonstrando nenhum amor maternal. De certa forma, a dor que ela estava me infligindo tinha a ver com seus próprios desejos egoístas.
A fúria e a decepção foram insuportáveis.
- Nunca mais vou esperar nenhuma bondade de você — disse eu, largando o braço dela, enojada. - Mas lembre-se disso. Você agiu de forma que um dia eu tivesse o poder de controlar os destinos desta família. Vou ser uma mulher boa e caridosa, mas não pense que algum dia vou esquecer o que você fez.
Minha mãe abaixou-se, pegou a bengala e se apoiou nela.
- Tenho pena da família Lu por ter recebido você. O dia que você sair daqui vai ser o mais feliz da minha vida. Até lá, não tente fazer essa bobagem de novo.
-Ou o quê? Você não vai me dar comida?
Mamãe me olhou como se eu fosse uma estranha. Então, virou-Se e foi mancando até sua cadeira. Quando titia subiu com o chá, nada foi dito.
E foi assim que as coisas permaneceram, em grande parte.
Amoleci um pouco em relação aos outros: meus irmãos, titia, titio, Baba. Eu queria cortar mamãe inteiramente de minha vida, mas as circunstâncias não permitiam. Eu tinha de permanecer na casa até ficar grávida e estar pronta para dar à luz. E, mesmo quando eu me mudasse para a casa do meu marido, a tradição exigia que eu voltasse diversas vezes por ano para a casa da minha família. Ainda assim, tentei manter uma distância emocional da minha mãe - embora muitas vezes estivéssemos a poucos centímetros uma da outra -, agindo como se eu tivesse amadurecido e não precisasse mais de carinho. Essa foi a primeira vez que fiz isso - segui os costumes e as regras externamente, deixei soltas as minhas emoções por alguns terríveis instantes, e depois me agarrei à minha mágoa como um polvo a uma rocha - e funcionou para todo mundo. Minha família aceitou o meu comportamento, e eu ainda parecia ser uma filha devotada. Mais tarde, eu faria algo parecido de novo, por razões muito diferentes e com resultados desastrosos.
Eu amava Flor da Neve mais do que nunca. Nós nos escrevíamos com freqüência e madame Wang entregava as nossas cartas. Eu me preocupava com seu bem-estar - se a sogra a estava tratando bem, como ela suportava as coisas de cama e se a situação tinha piorado na casa dos pais dela - e ela receava que eu não gostasse mais dela como antes. Queríamos nos encontrar, mas não tínhamos mais a desculpa de nos visitar para preparar nossos enxovais, e as únicas viagens que tínhamos permissão para fazer eram as visitas conjugais na casa de nossos maridos.
Eu ia para junto do meu marido quatro ou cinco noites por ano. Toda vez que eu partia, as mulheres da minha casa choravam por mim. Toda vez eu levava a minha própria comida, já que os meus sogros não podiam fornecer-me refeições enquanto eu não estivesse morando permanentemente com eles. Toda vez que eu ia para Tongkou, sentia-me encorajada pelo modo como era tratada. Toda vez que voltava para casa, as emoções da minha família eram amargas e doces ao mesmo tempo, pois cada noite longe deles fazia-me parecer mais preciosa e tornava realidade o fato de que em breve eu os deixaria para sempre.
A cada viagem, eu me tornava mais confiante, olhando pela janela do palanquim até conhecer muito bem o caminho. Eu viajava por uma estrada quase sempre enlameada e esburacada. Plantações de arroz e uma ou outra plantação de taro ladeavam a estrada. Nos arredores de Tongkou, um pinheiro debruçava-se sobre a estrada numa saudação. Mais adiante, à esquerda, ficava o lago de peixes da aldeia. Atrás de mim, o rio Xiao corria sinuoso. A minha frente, exatamente como Flor da Neve havia descrito, Tongkou se aninhava nos braços da montanha.
Assim que os carregadores me depositavam diante do portão principal de Tongkou, eu saltava no chão de pedras, dispostas na forma de escamas de peixe. Essa área tinha o formato de uma ferradura, com o depósito de arroz da aldeia à direita e um estábulo à esquerda. Os pilares do portão - decorados com entalhes pintados -sustentavam um telhado com abas que se erguiam na direção do céu. As paredes eram pintadas com cenas das vidas dos imortais. A solei-ra do portão da frente era alta, para mostrar aos visitantes que Tongkou tinha o status mais elevado da região. Um par de pedras de ônix com desenhos de peixes saltando ladeava o portão para ajudar os visitantes a cavalo a apear.
Logo depois da soleira ficava o pátio principal de Tongkou, que não apenas era acolhedor e grande, mas coberto por uma cúpula de oito faces, entalhada e pintada, perfeita em termos de feng shui. Se eu entrasse pelo portão secundário à minha direita, ia dar no salão principal de Tongkou, que era usado para receber visitantes comuns e pequenos grupos. Mais adiante, ficava o templo ancestral, que era usado para recepcionar emissários e funcionários do governo, e para ocasiões festivas como casamentos. As casas mais simples da aldeia, algumas construídas em madeira, ficavam agrupadas um pouco adiante do templo.
A casa dos meus sogros destacava-se do outro lado do portão secundário à minha esquerda. Todas as casas dessa área eram imponentes, mas a dos meus sogros era particularmente bonita. Mesmo hoje, estou feliz em morar aqui. A casa tem os dois andares habituais. Ela é feita de tijolos e coberta de reboco por fora. Sob as abas exteriores do telhado, existem painéis pintados com belas donzelas e bonitos rapazes estudando, tocando instrumentos, praticando caligrafia, fazendo contas. Estas são as coisas que sempre foram feitas nesta casa, então as pinturas são uma mensagem para quem pensa sobre a qualidade das pessoas que vivem aqui e o modo como elas passam seu tempo. As paredes internas são forradas com as belas madeiras das nossas montanhas, enquanto que os aposentos são bastante ornamentados de colunas entalhadas, janelas de treliça e balaustradas.
Quando cheguei aqui pela primeira vez, a sala principal era bem parecida com o que é hoje - com móveis elegantes, chão de madeira, uma boa brisa soprando pelas janelas altas e escadas que subiam pela parede do lado leste até um balcão de madeira trabalhada com um desenho em forma de diamante. Naquela época, meus sogros dormiam no quarto maior que ficava no térreo, nos fundos da casa. Cada um dos meus cunhados tinha o seu próprio quarto, que ficava no perímetro da sala principal. Após algum tempo, vieram as esposas para morar com eles. Se não tivessem filhos homens, suas esposas seriam finalmente transferidas para outros aposentos, e concubinas ou pequenas noras tomariam o lugar delas na cama dos meus cunhados.
Durante minhas visitas, a noite era dedicada a coisas de cama com meu marido. Precisávamos fazer um filho homem, e estávamos nos empenhando para tal. Fora isso, meu marido e eu não nos víamos muito - ele passava os dias com o pai, enquanto eu passava os meus com a mãe dele -, mas, com o tempo, passamos a nos conhecer melhor, o que tornou a nossa tarefa noturna mais suportável.
Como na maioria dos casamentos, a pessoa mais importante com quem eu tinha de construir um relacionamento era minha sogra. Tudo o que Flor da Neve tinha me contado a respeito de Lady Lu ser uma pessoa convencional era verdade. Ela me observava realizar as mesmas tarefas que eu realizava na casa da minha família: preparar chá e café da manhã; lavar roupas e lençóis; preparar o almoço; costurar, bordar e tecer à tarde; e finalmente preparar o jantar. Minha sogra me dava ordens, sem qualquer cerimônia. "Corte os melões em cubos menores", ela dizia às vezes, quando eu estava preparando sopa de melão no inverno. "Os pedaços que você cortou só servem para os porcos." Ou então: "Minha menstruação escorreu para o lençol. Você tem de esfregar com força para tirar a mancha." Quanto à comida que eu trazia de casa, ela costumava cheirá-la e dizer: “Da próxima vez, traga algo menos fedorento. O cheiro da sua comida estraga o apetite do meu marido e dos meus filhos." Assim que a visita terminava, eu voltava para casa sem agradecimento nem adeus.
Isso mais ou menos resume como era a minha vida - nem tão boa nem tão ruim, apenas normal. Lady Lu era justa; eu era obediente e queria aprender. Em outras palavras, entendíamos o que era esperado de nós e fazíamos o possível para cumprir com nossas obrigações. Então, por exemplo, no segundo dia do primeiro Ano-Novo depois do meu casamento, minha sogra convidou todas as moças solteiras de Tongkou e todas as moças que, como eu, tinham casado recentemente com alguém da aldeia para nos visitar. Ela providenciou chá e doces. Foi educada e graciosa. Quando todas elas foram embora, nós as acompanhamos. Visitamos cinco casas naquele dia, e conheci cinco novas noras. Se eu já não fosse a laotong de Flor da Neve, talvez tivesse examinado o rosto delas procurando por aquelas que quisessem formar uma irmandade pós-casamento.
A primeira vez que eu e Flor da Neve tornamos a nos encontrar foi para a nossa visita anual ao Templo de Gupo. Você pensaria que teríamos muito a dizer, mas estávamos ambas retraídas. Achei que ela estava com remorsos - por ter mentido para mim durante todos aqueles anos sobre o seu casamento inferior. Mas eu também me sentia desconfortável. Eu não sabia como discutir os meus sentimentos para com minha mãe sem lembrar Flor da Neve da sua própria mentira. Se esses segredos não eram suficientes para atrapalhar a conversa, agora tínhamos maridos e fazíamos coisas com eles que eram muito embaraçosas. Já era bem desagradável quando nossos sogros ficavam ouvindo da porta ou quando nossas sogras checavam o lençol de manhã. Mesmo assim, eu e Flor da Neve tínhamos de conversar sobre alguma coisa, e pareceu mais seguro falar sobre nossa obrigação de engravidar do que tocar nesses outros assuntos espinhosos.
Falamos com delicadeza sobre os elementos essenciais que devem estar presentes para um bebê ser gerado, e se nossos maridos obedeciam ou não a esses rituais. Todo mundo sabe que o corpo humano é uma versão em miniatura do universo - os olhos e os ouvidos são o sol e a lua, a respiração é o ar, o sangue é a chuva. Sendo assim, esses elementos desempenham um papel importante no desenvolvimento de um bebê. Por isso, coisas de cama não devem acontecer quando a chuva cai sobre o telhado, porque tais circunstâncias fazem com que o bebê se sinta acuado e confinado. Não devem acontecer, tampouco, durante tempestades, pois o bebê desenvolveria sentimentos de destruição e medo. E não deveriam acontecer também quando o marido ou a esposa estão angustiados, porque esses humores sombrios são transmitidos para a próxima geração.
- Eu soube que não se deve fazer coisa de cama depois de um trabalho pesado - Flor da Neve me disse -, mas não acredito que a minha sogra saiba disso. - Ela parecia exausta. Eu me sentia do mesmo jeito depois de visitar a casa do meu marido, por causa do trabalho interminável, por ser obrigada a ser sempre amável e por ser vigiada o tempo todo.
- Essa é a única regra que minha sogra também não respeita - confirmei. - Será que elas não sabem que um poço exaurido não fornece água?
Sacudimos nossas cabeças para a natureza de nossas sogras, mas também nos preocupávamos com a possibilidade de engravidar e ter filhos que não fossem saudáveis ou inteligentes.
- Titia me disse qual é a melhor época de engravidar - comentei. Embora os bebês dela tivessem morrido, com exceção de Lua Linda, ainda confiávamos em sua experiência a esse respeito. - Não pode haver nenhum aborrecimento em sua vida.
- Eu sei. - Flor da Neve suspirou. - Quando a água está parada, o peixe respira tranqüilamente; quando o vento desaparece, a árvore fica firme - recitou ela.
- Precisamos de uma noite calma, em que a lua esteja cheia e brilhante, que sugere tanto a forma de uma barriga prenhe quanto a pureza da mãe.
- E o céu claro - Flor da Neve acrescentou -, que nos diz que o universo está calmo e preparado.
- E que nós e nossos maridos estejamos felizes, o que permitirá que a flecha atinja o alvo. Nessas circunstâncias, segundo titia, até mesmo os insetos mais letais saem para se acasalar.
- Eu sei o que precisa acontecer - Flor da Neve tornou a suspirar -, mas é difícil conciliar tudo isso.
- Mas precisamos tentar.
E assim, na nossa primeira visita ao Templo de Gupo depois de nossos casamentos, Flor da Neve e eu fizemos oferendas e rezamos para que essas coisas viessem a acontecer. Entretanto, apesar de seguir as regras, não engravidamos. Você pensa que é fácil engravidar fazendo coisa de cama apenas algumas vezes por ano? Às vezes, o meu marido está tão excitado que sua essência não chega a entrar.
Durante nossa segunda visita ao templo depois de nos tornarmos esposas, nossas preces foram mais fervorosas e nossas oferendas mais numerosas. Então, como era nosso costume, Flor da Neve e eu visitamos o homem do taro para nosso almoço especial de galinha acompanhado da nossa sobremesa favorita. Por mais que gostássemos desse prato, nenhuma de nós comeu com prazer. Comparamos anotações e tentamos inventar novas táticas de engravidar.
Nos meses seguintes, fiz o possível para agradar minha sogra quando visitei a casa dos Lu. Na minha casa, tentei ser o mais simpática possível. Mas não importa onde eu estivesse, as pessoas estavam começando a me lançar olhares que eu interpretava como sendo de repreensão pela minha falta de fertilidade. Então, dois meses depois, madame Wang entregou-me uma carta de Flor da Neve. Esperei a casamenteira sair antes de abri-la. Em nu shu, Flor da Neve tinha escrito:
Eu estou grávida. Sinto enjôo todos os dias. Minha mãe diz que isso significa que o bebê está contente no meu corpo. Quero que isso aconteça com você.
Não pude acreditar que Flor da Neve tivesse me ultrapassado. Era eu quem tinha o status mais elevado. Eu deveria ter ficado grávida antes. Minha humilhação foi tão grande que não contei a novidade nem para mamãe nem para titia. Eu sabia como elas iriam reagir. Mamãe iria criticar-me, enquanto titia ficaria muito feliz por Flor da Neve.
Quando tornei a visitar meu marido e fizemos coisa de cama, enrosquei minhas pernas nas dele e o segurei sobre mim com os braços até ele ter terminado. Eu o segurei por tanto tempo que ele adormeceu dentro de mim. Fiquei acordada por um longo tempo, respirando calmamente, pensando na lua cheia lá fora e tentando ouvir alguma agitação nos bambus do outro lado da janela. De manhã, ele tinha rolado de cima de mim e estava dormindo de lado. Agora eu já sabia o que precisava fazer. Enfiei a mão por baixo da colcha e segurei o seu membro até ele ficar duro. Quando vi que ele estava prestes a abrir os olhos, tirei a mão e fechei os olhos. Deixei que ele fizesse aquilo de novo, e, quando ele se levantou e se vestiu para começar o dia, permaneci imóvel. Ouvimos a mãe dele na cozinha, iniciando as tarefas que eu já devia ter realizado. Meu marido olhou para mim, mandando-me uma mensagem clara: Se eu não me levantasse logo para iniciar minhas tarefas, haveria sérias conseqüências. Ele não gritou comigo nem me bateu como alguns maridos teriam feito, mas saiu do quarto sem se despedir. Ouvi os murmúrios dele e da mãe logo em seguida. Ninguém veio me chamar. Quando finalmente me levantei, me vesti e fui para a cozinha, minha sogra estava sorrindo alegremente enquanto Yonggang e as outras garotas trocavam olhares significativos.
Duas semanas depois, já de volta à minha própria cama, acordei com a impressão de que espíritos travessos estavam sacudindo a casa. Fui até o urinol e vomitei. Titia entrou no quarto, ajoelhou-se do meu lado e limpou o suor do meu rosto com as costas da mão.
- Agora você vai mesmo nos deixar - ela disse, e pela primeira vez em muito tempo a enorme caverna que era sua boca abriu-se num sorriso.
Naquela tarde, eu me sentei com minha tinta e pincel e escrevi uma carta para Flor da Neve. "Quando nos encontrarmos este ano no Templo de Gupo", escrevi, "nós duas estaremos redondas como alua."
Mamãe, como você pode imaginar, foi tão severa comigo durante aqueles meses como havia sido durante a época da bandagem de meus pés. Acho que era próprio dela só pensar nas coisas ruins que poderiam acontecer. "Não suba ladeiras", ela dizia, como se algum dia eu tivesse tido permissão para isso. "Não atravesse uma ponte estreita, não fique de pé num único pé, não olhe para um eclipse nem tome banho com água quente." Nunca houve nenhum perigo de eu fazer qualquer dessas coisas, mas as restrições alimentares eram algo diferente. Na nossa região, nós nos orgulhamos de nossa comida apimentada, mas eu não podia comer nada temperado com alho ou pimenta, o que poderia retardar a saída da minha placenta. Não podia comer nenhuma parte do carneiro, o que poderia fazer o meu bebê nascer doente, nem comer peixe de escamas, já que isso poderia dificultar o trabalho de parto. Não me deixavam experimentar nada muito salgado nem muito amargo nem muito doce nem muito azedo, de modo que eu não podia comer feijão-preto fermentado, melão azedo, coalhada, sopa quente e azeda, ou qualquer coisa remotamente temperada. Eu podia tomar sopas leves, comer legumes refogados com arroz e chá. Aceitei essas limitações, sabendo que o meu valor dependia inteiramente da criança que crescia dentro de mim.
Meu marido e meus sogros ficaram encantados, é claro, e começaram a se preparar para minha chegada. Meu bebê estava previsto para o final do sétimo mês lunar. Eu iria ao festival anual no Templo de Gupo para rezar por um filho, e em seguida viajaria para Tongkou. Meus sogros concordaram com essa peregrinação - eles fariam qualquer coisa para garantir um herdeiro -, desde que eu passasse a noite numa hospedaria e não me excedesse. A família do meu marido enviou um palanquim para me buscar. Fiquei parada na soleira da porta da minha casa e aceitei as lágrimas e os abraços de todos; depois entrei no palanquim e parti, sabendo que iria voltar nos anos seguintes para os festivais Tomar Brisa Fresca, Fantasmas, Pássaros e Saboreando, bem como para qualquer celebração que ocorresse em minha família. Esse não era um último adeus, apenas uma despedida temporária, como tinha acontecido com Irmã Mais Velha.
Nessa altura, Flor da Neve, que estava mais adiantada na sua gravidez do que eu, já estava morando em Jintian, então fui buscá-la. A barriga dela estava tão grande que não pude acreditar que sua nova família a tivesse deixado viajar, mesmo que fosse para rezar por um filho homem. Nós estávamos engraçadas, paradas na estrada de terra, tentando nos abraçar com nossas barrigas enormes, rindo o tempo todo. Ela estava mais linda do que nunca, e parecia verdadeiramente feliz.
Flor da Neve falou a viagem inteira, comentando o que estava sentindo fisicamente, como amava o bebê que estava dentro dela e como todo mundo tinha sido gentil desde que ela se mudara para a casa do marido. Ela segurou um pedaço de jade branco que trazia pendurado ao pescoço para ajudar a tornar a pele do bebê clara como a pedra, em vez da tez corada do marido. Eu também usava jade branco, mas, ao contrário de Flor da Neve, eu esperava que ela protegesse o meu filho não do tom da pele do meu marido, mas da minha, que, embora eu passasse os dias dentro de casa, era naturalmente mais escura do que a pele cor de leite da minha laotong.
Nos anos anteriores, tínhamos visitado o templo rapidamente, inclinando-nos e tocando o chão com a cabeça enquanto rezávamos à deusa. Agora, entramos caminhando orgulhosamente, empinando nossas barrigas, olhando para as outras futuras mães para ver quem estava maior, quem tinha a barriga alta e quem tinha a barriga baixa, tomando cuidado, entretanto, para que nossas mentes e línguas expressassem apenas pensamentos nobres e benevolentes, para que esses atributos pudessem ser passados para os nossos filhos.
Andamos até o altar, onde estavam alinhados cerca de cem pares de sapatinhos de criança. Nós duas tínhamos escrito poemas em leques como oferendas à deusa. O meu falava da bênção de ter um filho, como ele iria dar continuidade à linhagem Lu e honrar seus antepassados. Eu terminava assim: "Deusa, a sua bondade nos ilumina. Tantas vêm até aqui implorar por um filho homem, mas espero que a senhora ouça a minha prece. Por favor, conceda-me o meu desejo." Isso tinha parecido apropriado quando escrevi, mas então imaginei o que Flor da Neve teria feito com o seu leque. Ele devia estar cheio de lindas palavras e fantásticos desenhos. Rezei para que a deusa não se deixasse ofuscar pela oferenda de Flor da Neve. "Por favor, me escuta, por favor, me escuta, por favor, me escuta", repeti baixinho.
Juntas, Flor da Neve e eu colocamos nossos leques no altar com a mão direita, enquanto que, com a esquerda, pegamos sorrateiramente um par de sapatinhos cada uma e os escondemos em nossas mangas. Então, saímos rápido do templo, torcendo para não sermos apanhadas. Na província de Yongming, todas as mulheres que desejam um filho saudável roubam descaradamente - mas fingindo dissimulação - um par de sapatos do altar da deusa. Por quê? Como você sabe, no nosso dialeto a palavra para sapato tem o mesmo som que a palavra para filho. Quando nossos bebês nascem, devolvemos um par de sapatos ao altar - o que explica o estoque do qual roubamos os nossos - e fazemos oferendas em sinal de gratidão.
Saímos para o dia lindo que fazia lá fora e fomos até o quiosque.
Como havíamos feito doze anos antes, procuramos cores que pudessem captar as idéias das estampas que tínhamos em nossas mentes. Flor da Neve ergueu uma seleção de verdes para eu examinar.
Havia tons de verde claros como a primavera, secos como capim murcho, terrosos como folhas no fim do verão, vibrantes como musgo após uma chuva, pálidos como pouco antes que os amarelos e vermelhos do outono comecem a aparecer.
- Amanhã - Flor da Neve disse - vamos parar perto do rio na volta para casa. Vamos sentar e ver as nuvens voando no céu, ouvir a água batendo nas pedras e bordar e cantar juntas. Assim, nossos filhos nascerão com um gosto elegante e refinado.
Beijei o seu rosto. Longe de Flor da Neve, às vezes deixo a minha mente entrar em lugares sombrios, mas agora eu a amava como sempre a amara. Ah, como eu tinha sentido saudades da minha laotongl
Nossa visita ao Templo de Gupo não estaria completa sem um almoço na barraca de taro. O velho Zuo abriu um sorriso desdentado quando nos viu com nossas barrigas prenhes. Ele nos preparou uma refeição especial, tendo o cuidado de seguir todas as exigências alimentares de nosso estado. Saboreamos cada pedaço. Então, ele trouxe nosso prato favorito, o taro frito coberto de açúcar caramelado. Flor da Neve e eu parecíamos duas meninas de tão alegres, e não duas senhoras casadas prestes a dar à luz.
Aquela noite na hospedaria, depois de termos vestido nossas roupas de dormir, Flor da Neve e eu nos deitamos de frente uma para a outra. Esta seria a nossa última noite juntas antes de nos tornarmos mães. Havíamos aprendido muitas lições sobre o que deveríamos ou não fazer, e como essas coisas afetariam nossos bebês. Se o meu filho podia reagir ao fato de ouvir linguagem profana ou ao toque do jade branco contra a minha pele, então certamente ele tinha de sentir o meu amor por Flor da Neve em seu pequeno corpo.
Flor da Neve pôs a mão sobre a minha barriga. Fiz o mesmo na dela. Eu tinha me acostumado com o modo como o meu bebê chutava e empurrava a minha pele, especialmente à noite. Agora eu sentia o bebê de Flor da Neve mexendo-se dentro dela. Naquele momento, estávamos tão próximas quanto duas mulheres podiam estar.
- Estou contente por estarmos juntas - disse ela, e então desenhou com um dedo o lugar onde o meu bebê estava esticando o cotovelo ou o joelho para alcançá-la.
- Eu também estou contente.
- Estou sentindo o seu filho. Ele é forte. Igual à mãe.
As palavras dela me deixaram orgulhosa e cheia de vida. O dedo dela parou, e mais uma vez ela segurou a minha barriga com suas mãos quentes.
- Vou amá-lo tanto quanto amo você – disse. Então, como fazia desde que éramos crianças, ela encostou uma das mãos no meu rosto e a deixou lá até adormecermos.
Eu ia fazer vinte anos dentro de duas semanas, meu bebê ia chegar logo e a minha verdadeira vida estava prestes a começar.
Anos de Arroz e Sal
Filhos
Lírio,
Eu lhe escrevo como mãe.
Meu bebê nasceu ontem.
Um menino de cabelos pretos.
Ele é comprido e magro.
Meus dias de contaminação de parto ainda não terminaram.
Durante cem dias meu marido e eu dormiremos separados.
Penso em você no seu aposento do andar de cima.
Espero notícias do seu bebê.
Desejo que ele nasça vivo.
Rezo à deusa para protegê-la de qualquer problema.
Desejo muito vê-la e saber que você está bem.
Por favor, venha para a comemoração de um mês.
Você vai ver o que escrevi sobre meu filho no nosso leque.
Flor da Neve
Fiquei feliz porque o filho de Flor da Neve tinha nascido saudável, e torci para que continuasse assim, porque a vida na nossa região é muito frágil. Nós, mulheres, esperamos ter cinco que cheguem à idade adulta. Para isso acontecer, temos de ficar grávidas a cada um ou dois anos. Muitos desses bebês morrem por causa de abortos, ao nascer ou de doenças. As meninas - tão suscetíveis a fraquezas por deficiência de alimentação e negligência -nunca perdem sua vulnerabilidade. Ou morremos cedo - durante o processo de bandagem dos pés, como minha irmã, de parto ou de muito trabalho e pouca alimentação - ou sobrevivemos àqueles a quem amamos. Os bebês do sexo masculino, tão preciosos, podem morrer com a mesma facilidade, porque seus corpos são jovens demais para terem criado raízes, suas almas muito tentadoras para os espíritos do outro mundo. Depois, como homens, sofrem o risco de infecções por cortes, envenenamento alimentar, problemas no campo ou nas estradas, ou corações que não conseguem suportar o estresse de cuidar de uma família. É por isso que existem tantas viúvas. Mas não importa o motivo, os primeiros cinco anos de vida são insubstanciais para meninos e meninas.
Eu me preocupava não apenas com o filho de Flor da Neve, mas também com o bebê que eu estava carregando na barriga. Era duro ter medo e não ter ninguém para me apoiar e consolar. Quando eu ainda estava na casa da minha família, minha mãe estivera ocupada demais cumprindo as opressivas tradições e costumes para me dar qualquer conselho prático, enquanto que minha tia, que havia tido diversos abortos, tentava evitar-me completamente para que sua má sorte não me atingisse. Agora que estava na casa do meu marido, eu não tinha ninguém. Meus sogros e meu marido se preocupavam com o bem-estar do bebê, é claro, mas nenhum deles parecia preocupado que eu pudesse morrer dando à luz ao seu herdeiro.
A carta de Flor da Neve me pareceu um bom presságio. Se o parto tinha sido fácil para ela, com certeza o meu bebê e eu também iríamos sobreviver. Deu-me forças saber que, embora estivéssemos vivendo novas vidas, o amor que sentíamos uma pela outra não diminuíra. Pelo contrário, estava mais forte agora que tínhamos entrado nos nossos dias de arroz-e-sal. Pelas nossas cartas, podíamos compartilhar tristezas e alegrias, mas, como acontecia com tudo, precisávamos seguir certas regras. Como mulheres casadas morando na casa de nossos maridos, tínhamos de abandonar nossos modos juvenis. Escrevíamos cartas padronizadas, com formatos estipulados e palavras formais. Em parte, isso era por sermos estranhas na casa de nossos maridos, por estarmos ocupadas aprendendo os costumes de novas famílias. Em parte, porque não sabíamos quem poderia ler essas cartas.
Nossas palavras tinham de ser circunspectas. Não podíamos escrever nada muito negativo acerca da nossa vida. Isso era difícil, já que o modelo de carta de uma mulher casada precisava incluir as queixas habituais - que éramos patéticas, impotentes, sugadas até os ossos de tanto trabalho, saudosas de casa e tristes. Tínhamos que falar diretamente dos nossos sentimentos sem parecermos ingratas, sem consideração ou filhas desnaturadas. Qualquer nora que permita que a verdade da sua vida se torne pública envergonha sua família e a família do marido, razão pela qual, como você sabe, esperei que eles estivessem todos mortos para escrever a minha história.
A princípio tive sorte, porque não tinha nada de ruim para contar. Quando fiquei noiva, soube que o tio do meu marido era um jinshi, o mais alto nível de intelectual do império. O ditado que eu tinha aprendido em menina - "Se alguém se torna funcionário público, então todos os seus cachorros e gatos vão para o céu" - se tornou claro. Tio Lu morava na capital e deixava os seus bens a cargo de mestre Lu, meu sogro, que saía de casa antes do amanhecer, percorrendo as terras, falando com os fazendeiros acerca das plantações, supervisionando projetos de irrigação e se reunindo com outros homens importantes de Tongkou. Toda a responsabilidade pelo que acontecia nas terras pesava sobre seus ombros. Tio Lu gastava o dinheiro sem se preocupar em saber como ele chegava aos seus cofres. Tinha sido tão bem-sucedido que seus dois irmãos mais moços viviam em suas próprias casas ali perto - embora não tão bonitas quanto esta. Eles vinham sempre jantar com suas famílias, e suas esposas visitavam quase que diariamente o nosso aposento do andar de cima. Em outras palavras, todo mundo na família de tio Lu desde os cachorros e gatos até as cinco empregadas de pés grandes que dividiam um quarto ao lado da cozinha - se beneficiava da sua posição.
Tio Lu era o senhor supremo, mas garanti minha posição ao me tornar a primeira nora e, em seguida, ao dar ao meu marido o seu primeiro filho homem. Assim que o meu bebê nasceu e a parteira colocou-o nos meus braços, fiquei tão encantada que esqueci a dor do parto e tão aliviada que não me preocupei com todas as coisas ruins que ainda poderiam acontecer a ele. Todo mundo na família ficou feliz, e a gratidão deles me alcançou de várias maneiras. Minha sogra preparou para mim uma sopa especial com licor, gengibre e amendoim para ajudar o meu leite a subir e o meu útero a encolher. Meu sogro mandou pelas suas concubinas um brocado de seda azul para eu fazer uma jaqueta para o seu neto. Meu marido sentou-se e conversou comigo.
Por esse motivo, eu disse às jovens mulheres que entraram para a família Lu, e às outras que finalmente alcancei ensinando nu shu, que deviam ter logo um filho homem. Os filhos são a base da personalidade de uma mulher. Eles dão à mulher sua identidade, bem como dignidade, proteção e valor econômico. Eles criam o elo entre o marido da mãe e seus antepassados. Essa é a única realização que um homem não consegue sem a ajuda da esposa. Só ela pode garantir a perpetuação da linhagem familiar, que, por sua vez, é o principal dever de todo filho. É assim que ele cumpre o seu dever de filho, enquanto que os filhos homens são a maior glória de uma mulher. Eu tinha feito isso, e estava maravilhada.
Flor da Neve,
Meu filho está aqui do meu lado.
Meus dias de contaminação de parto não terminaram.
Meu marido me visita todas as manhãs.
O rosto dele está feliz.
Meu filho tem olhos que me fitam indagadores.
Mal posso esperar para vê-la na comemoração de um mês.
Por favor, use suas melhores palavras para colocar o meu filho no nosso leque. Conte-me sobre sua nova família.
Não vejo o meu marido com muita freqüência. Você vê o seu? Eu olho da minha janela de treliça para a sua. Você está sempre cantando no meu coração. Penso em você todos os dias.
Lírio
Por que esses dias são chamados de dias de arroz-e-sal? Porque são feitos de tarefas comuns: bordar, tecer, costurar, remendar, fazer sapatos, cozinhar, lavar a louça, limpar a casa, lavar as roupas, manter o fogo aceso e estar pronta à noite para fazer coisa de cama com um homem que você ainda não conhece muito bem. Também são dias cheios de ansiedade pelo fato de sermos jovens mães com seus primeiros filhos. Por que ele está chorando? Será que está com fome? Será que está mamando o suficiente? Será que vai conseguir adormecer? Será que dorme demais? E quanto a febres, erupções, picadas de insetos, calor demais, frio demais, cólicas, para não falar das doenças que varrem a região todos os anos matando bebês, apesar dos esforços dos médicos, das oferendas nos altares familiares e das lágrimas das mães? Além de se preocupar com o bebê que mama em seu seio, você tem de pensar na verdadeira responsabilidade de ser mulher: ter mais filhos e garantir a próxima geração e as gerações depois dessa. Mas, durante as primeiras semanas de vida do meu filho, senti outro tipo de aflição, que não teve nada a ver com meus deveres como nora, esposa ou mãe.
Quando pedi a minha sogra para convidar Flor da Neve para a festa de um mês do meu filho, ela disse não. Esse menosprezo é algo que as pessoas da minha região consideram um insulto terrível. Fiquei confusa e arrasada com a proibição, mas não havia nada que pudesse fazer para obrigá-la a mudar de idéia. O dia foi um dos mais importantes e festivos da minha vida, e eu o passei sem Flor da Neve do meu lado. A família Lu visitou o templo ancestral para colocar o nome do meu filho na parede junto com todos os outros membros da família. Ovos vermelhos - um símbolo da vida tingido de vermelho para a comemoração - foram dados aos convidados e parentes. Um grande banquete foi servido com sopa de ninho de passarinho, aves salgadas que haviam sido colocadas em salmoura por seis meses e pato alimentado com vinho, ensopado com gengibre, alho e pimentas frescas verdes e vermelhas. Durante toda a festa, senti imensamente a falta de Flor da Neve, e mais tarde escrevi para ela contando todos os detalhes que consegui recordar, sem pensar que eles poderiam lembrar-lhe a terrível indelicadeza. Aparentemente, ela aceitou o lapso, porque mandou de presente uma jaqueta de bebê bordada e um chapéu enfeitado com pequenos talismãs.
Quando minha sogra viu os presentes, ela disse:
- Uma mãe tem de ter cuidado com quem ela escolhe para fazer parte da sua vida. A mãe do seu filho não pode relacionar-se com a esposa de um açougueiro. Mulheres que são boas filhas criam filhos que são bons filhos, e esperamos que você cumpra os nossos desejos.
Quando ela disse isso, compreendi que os meus sogros não só não queriam que Flor da Neve viesse à festa, mas que não queriam que eu a visse mais. Fiquei horrorizada, apavorada e, como tinha acabado de ter bebê, chorava o tempo todo. Eu não sabia o que fazer. Teria de enfrentar os meus sogros nessa questão, sem perceber o quanto isso seria perigoso.
Enquanto isso, Flor da Neve e eu escrevíamos secretamente uma para a outra, quase todos os dias. Eu achava que sabia tudo sobre nu shu e que os homens jamais deveriam tocar ou ver essa escrita, mas agora que estava morando na casa dos Lu, onde todos os homens sabiam escrever, percebi que a escrita secreta das mulheres não era tão secreta assim. Então, compreendi que os homens do estado inteiro deviam saber sobre nu shu. Como não saberiam? Eles a usavam bordada em seus sapatos. Eles nos viam tecendo nossas mensagens em tecido. Eles nos ouviam cantando nossas canções e apresentando os livros de terceiro dia de casamento. Os homens apenas consideravam a nossa escrita indigna deles.
Dizem que os homens têm coração de ferro enquanto as mulheres são feitas de água. Isso aparece na escrita dos homens e na escrita das mulheres. A escrita dos homens tem mais de cinqüenta mil caracteres, cada um diferente do outro, cada um com seus sentidos profundos e suas nuances. A escrita das mulheres tem cerca de seis-centos caracteres, que usamos foneticamente, como bebês, para criar cerca de dez mil palavras. A escrita dos homens leva uma vida inteira para ser aprendida e compreendida. A escrita das mulheres é algo que aprendemos quando meninas, e nos fiamos no contexto para dar significado a ela. Os homens escrevem sobre o mundo exterior da literatura, das contas e das colheitas; as mulheres escrevem sobre o mundo interior dos filhos, das tarefas domésticas e das emoções. Os homens da família Lu tinham orgulho da fluência de suas esposas em nu shu e da sua habilidade no bordado, embora essas coisas tivessem tanta importância para a sobrevivência quanto um peido de porco.
Como os homens achavam nossa escrita insignificante, não prestavam atenção nas cartas que eu escrevia ou recebia. Minha sogra era outra história. Eu tinha de disfarçar. Por ora, ela não exigia saber para quem eu estava escrevendo, e, nas semanas seguintes, eu e Flor da Neve aperfeiçoamos um sistema de entrega. Usávamos Yonggang para correr entre nossas aldeias transportando cartas, lenços bordados e tecidos. Eu gostava de sentar perto da janela e vigiá-la. Pensei, muitas vezes, eu mesma podia fazer essa viagem. Não era tão longe assim, e meus pés eram fortes o suficiente para isso, mas tínhamos regras a respeito dessas coisas. Mesmo que uma mulher pudesse caminhar uma longa distância, não deveria ser vista sozinha na estrada. Ela podia ser raptada por bandidos, mas a maior ameaça pairava sobre sua reputação, caso ela não estivesse acompanhada por uma pessoa adequada - seu marido, seus filhos, sua casamenteira ou seus carregadores. Eu poderia ter caminhado até a casa de Flor da Neve, mas jamais teria corrido esse risco.
Lírio,
Você pergunta sobre minha nova família.
Eu tenho muita sorte.
Na minha casa, não havia felicidade.
Minha mãe e eu tínhamos que fazer silêncio dia e noite.
As concubinas, meus irmãos, minhas irmãs e as empregadas foram embora. Minha casa era vazia. Aqui eu tenho minha sogra, meu sogro, meu marido e suas irmãs mais novas. Não há concubinas nem empregadas na casa do meu marido. Eu cumpro todos esses papéis. Não me importo com o trabalho pesado. Tudo que eu precisava saber aprendi com você, sua irmã, sua mãe e sua tia. Mas as mulheres aqui não são como as da sua família. Elas não gostam de brincar. Não contam histórias. Minha sogra nasceu no ano do rato. Você consegue imaginar algo pior para alguém que nasceu no ano do cavalo? O rato acredita que o cavalo é egoísta e relaxado, embora eu não seja. O cavalo acredita que o rato é manipulador e exigente, o que ela é. Mas ela não bate em mim.
Ela não grita comigo mais do que é habitual para uma nova nora. Você já soube o que aconteceu com meu pai e minha mãe? Poucos dias depois de eu vir para a casa do meu marido, Mamãe e Baba venderam o resto dos seus pertences. Eles pegaram o cash e sumiram no meio da noite. Como mendigos, não terão de pagar impostos nem outras dívidas. Mas onde eles estão? Eu me preocupo com minha mãe.
Ainda estará viva?
Estará no outro mundo?
Não sei.
Talvez eu nunca mais a veja.
Quem poderia adivinhar que minha família seria tão azarada?
Eles devem ter cometido crimes em vidas passadas.
Mas, se o fizeram, então o que vai acontecer comigo?
Você está sabendo de alguma coisa que possa me contar?
E você, você é feliz?
Flor de Neve
Depois que soube dessa notícia trágica sobre os pais de Flor da Neve, comecei a prestar mais atenção nas fofocas da casa. Os comerciantes e vendedores que percorriam a região começaram a dizer que tinham visto os pais de Flor da Neve dormindo debaixo de uma árvore, mendigando comida ou usando roupas sujas e rasgadas. Eu costumava pensar no quanto a família da minha laotong havia sido poderosa em Tongkou, e como a sua linda mãe deve ter-se sentido ao casar com alguém da família de um intelectual do império. E agora ela chegou a esse estado de decadência. Temi por ela com seus pés de lírio. Sem amigos influentes, os pais de Flor da Neve estavam à mercê dos elementos. Sem a casa da sua família, Flor da Neve era pior que uma órfã. Eu achava que era melhor ter pais mortos, que você podia adorar e honrar como antepassados, do que pais que haviam desaparecido no mundo como mendigos. Como ela ia saber quando eles morressem? Como ia poder providenciar um funeral adequado, limpar seus túmulos no Ano-Novo ou apaziguá-los quando se agitassem no outro mundo? O fato de ela estar triste e não me ter para ouvir seus pensamentos era difícil para mim e devia ser insuportável para ela.
Quanto à última pergunta de Flor da Neve - eu era feliz? —, eu não sabia ao certo como responder. Eu deveria escrever sobre as mulheres da minha nova casa? Meu novo aposento do andar de cima abrigava mulheres demais que não gostavam umas das outras. Eu era a primeira nora, mas, pouco depois que cheguei a Tongkou, a esposa do segundo filho veio morar na casa. Ela engravidara imediatamente. Mal tinha feito dezoito anos e chorava o tempo todo de saudade da família. Ela deu à luz uma filha, o que aborreceu minha sogra e piorou ainda mais as coisas. Tentei fazer amizade com Segunda Nora, mas ela ficava num canto com seu papel, tinta e pincel, escrevendo sem parar para sua mãe e suas irmãs juradas, que ainda estavam na sua aldeia natal. Eu poderia ter contado a Flor da Neve sobre o jeito inconveniente com que Segunda Nora tentava agradar Lady Lu, fazendo reverências o tempo todo, murmurando palavras obsequiosas e manobrando para ganhar status, enquanto as três concubinas de mestre Lu brigavam entre si, seus ciúmes mesquinhos enfeiando seus rostos e azedando seus estômagos, mas não ousei colocar esses sentimentos no papel.
Eu poderia ter escrito a Flor da Neve sobre meu marido? Suponho que sim, mas não sabia o que dizer. Eu raramente o via, e, quando via, ele geralmente estava conversando com outra pessoa ou envolvido em tarefas importantes. Durante o dia, ele saía para supervisionar as plantações e projetos de melhoria, enquanto eu ficava bordando ou realizando outras tarefas no aposento do andar de cima. Eu servia café, almoço e jantar para ele, lembrando-me de ser tão quieta e reservada quanto Flor da Neve costumava ser à mesa da minha casa. Ele não falava comigo nessas ocasiões. Ele às vezes vinha cedo ao nosso quarto para visitar nosso filho ou para fazer coisa de cama. Eu presumia que fôssemos iguais a qualquer outro casal - até mesmo Flor da Neve e seu marido -, então não havia nada de interessante para escrever.
Como eu podia responder à pergunta de Flor da Neve acerca da minha felicidade quando o maior conflito da minha vida tinha a ver com ela?
- Admito que você aprendeu muita coisa com Flor da Neve - minha sogra disse um dia, quando me surpreendeu escrevendo para a minha laotong - e estamos gratos por isso. Mas ela não é mais um membro da nossa aldeia nem está sob a proteção de mestre Lu. Ele não pode nem deve tentar mudar o destino dela. Como você sabe, temos códigos relativos a esposas que têm a ver com guerra e outras disputas de fronteira. Como hóspedes femininas, as esposas não são afetadas durante brigas, invasões ou guerras, porque consideram que nós pertencemos tanto à aldeia dos nossos maridos quanto à nossa aldeia natal. Você entende, Lírio, como esposas, temos proteção e lealdade de ambos os lugares. Mas, se alguma coisa acontecesse a você na aldeia de Flor da Neve, qualquer coisa que fizéssemos poderia levar a retaliações e, possivelmente, a uma guerra declarada. Ouvi as desculpas de Lady Lu, mas sabia que os motivos dela eram muito mais abjetos. A família de Flor da Neve estava desgraçada, e ela se casara com um homem poluído. Os meus sogros simplesmente não queriam que eu me relacionasse com ela.
- O destino de Flor da Neve foi predeterminado - minha sogra continuou, aproximando-se mais da verdade - e não se mistura com o seu de forma alguma. Mestre Lu e eu veríamos com bons olhos uma quebra de contrato com alguém que não é mais uma velha igual. Se você precisa de companhia, eu gostaria de lembrar-lhe das jovens esposas em Tongkou que apresentei para você.
- Eu me lembro delas. Obrigada - balbuciei com tristeza, enquanto por dentro eu gritava de horror: Nunca, nunca, nunca.
- Elas gostariam que você entrasse para uma irmandade pós-casamento.
- Mais uma vez, obrigada...
- Você deveria considerar esse convite uma honra.
- Eu considero.
- Só estou dizendo que precisa tirar Flor da Neve da cabeça - minha sogra disse, e terminou com uma variação de sua repreensão habitual. - Não quero lembranças dessa garota infeliz influenciando o meu neto.
As concubinas deram risinhos por trás dos dedos. Elas gostavam de me ver sofrer. Em momentos como esses, o status delas subia e o meu descia. Mas fora essa crítica constante, que as outras adoravam e que me amedrontava profundamente, minha sogra era mais gentil comigo do que minha própria mãe jamais tinha sido. Ela seguia todas as regras, exatamente como Flor da Neve tinha dito. "Quando menina, obedeça a seu pai; quando esposa, obedeça a seu marido; quando viúva, obedeça a seu filho." Eu tinha ouvido isso a vida inteira, então não fiquei intimidada. No entanto, minha sogra me ensinou outro axioma um dia, quando estava zangada com o marido: Obedeça, obedeça, obedeça, depois faça o que quiser. Por ora, os meus sogros podiam proibir-me de ver Flor da Neve, mas não podiam obrigar-me a deixar de amá-la.
Flor da Neve,
Meu marido me trata bem.
Eu nem mesmo sei onde ficam as plantações da nossa família.
Também trabalho duro.
Minha sogra vigia tudo o que eu faço.
As mulheres da minha casa conhecem nu shu muito bem.
Minha sogra me ensinou novos caracteres.
Vou mostrá-los para você quando nos encontrarmos de novo.
Eu bordo, teço e faço sapatos.
Fio panos e preparo refeições.
Tenho um filho.
Rezo à deusa para um dia ter outro filho.
Você também deveria rezar.
Por favor, preste atenção.
Você precisa obedecer a seu marido.
Precisa ouvir a sua sogra.
Peço para você não se preocupar tanto.
Em vez disso, lembre-se de quando bordávamos juntas e cochichávamos à noite. Nós somos dois marrecos. Nós somos duas fênix voando pelo céu.
Lírio
Na carta seguinte, Flor da Neve não mencionou nada a respeito de sua nova família, a não ser que seu filho tinha aprendido a sentar. Quando chegou ao final, perguntou de novo sobre a minha vida:
Conte-me sobre suas refeições e o que vocês conversam. Eles recitam os clássicos enquanto comem? Sua sogra distrai os homens com histórias? Ela canta para eles para ajudá-los na digestão?
Tentei responder com franqueza. Os homens da minha casa discutiam finanças: que pedaço de terra poderiam arrendar, quem iria cultivá-la, quanto deveriam cobrar de aluguel, o valor dos impostos. Eles queriam "subir mais", "chegar ao topo da montanha". Toda família diz essas coisas no Ano-Novo, incorporando pratos especiais que invocam esses desejos - sabendo que isso é exatamente o que eles são. Mas os meus sogros trabalhavam duro para fazer com que seus desejos se realizassem. Era sobre isso que girava a conversa chata que eu não entendia nem queria entender. Eles já tinham mais do que qualquer outra pessoa em Tongkou. Eu não podia imaginar o que mais poderiam desejar; entretanto, seus olhos nunca se afastavam do topo da montanha.
Eu esperava que Flor da Neve estivesse mais feliz agora, conformada - como todas as esposas precisam ser - com as circunstâncias inteiramente diferentes do que ela conhecera até agora. Então, numa tarde sombria enquanto eu amamentava meu filho, ouvi o palanquim de madame Wang parar na porta da nossa casa. Esperei vê-la subindo a escada. Em vez disso, minha sogra entrou no quarto e, com um ar desaprovador, pôs uma carta sobre a mesa ao meu lado. Assim que meu filho dormiu, puxei o lampião a óleo para mais perto e a abri. Notei imediatamente que o formato da carta era diferente, e com uma sensação de nervosismo, comecei a ler:
Lírio,
Eu me sento no andar de cima e choro. Do lado de fora, ouço o meu marido matando um porco. Ele perpetra a sua violação das leis da poluição.
Assim que me casei, minha sogra me fez ficar parada na plataforma do lado de fora da casa enquanto matavam um porco para que eu visse de onde vinha o nosso sustento. Meu marido e meu sogro trouxeram o porco até a nossa porta. Ele era carregado de cabeça para baixo, numa estaca apoiada nos ombros do meu marido e do meu sogro. O porco estava entre os dois, chorando, chorando, chorando. Ele sabia o que o aguardava. Já ouvi isso muitas vezes, porque todos eles sabem o que vai acontecer e seus gritos ecoam pela nossa aldeia com muita freqüência.
Meu sogro segurou o porco ao lado de uma panela grande cheia de água fervendo. (Você se lembra da panela do lado de fora da minha casa? A que estava embutida na plataforma? Sob ela tem um lugar para queimar carvão.) Meu marido cortou a garganta do porco. Primeiro, ele recolheu o sangue para fazer molho pardo, depois enfiou o corpo na panela. O porco foi fervido para amaciar a carne. Meu marido me pediu para retirar o pêlo do couro. Chorei e chorei, mas não tão alto quanto o porco tinha chorado. Eu disse a eles que nunca mais iria assistir ou tomar parte nessa profanação. Minha sogra me condenou por ser tão fraca.
Todo dia eu me pareço mais com esposa Wang. Você se lembra de quando minha tia contou essa história? Eu me tornei vegetariana. Meus sogros não se importam. Sobra mais carne para eles.
Estou sozinha no mundo, exceto por você e meu filho.
Eu queria nunca ter mentido para você. Prometi que sempre lhe contaria a verdade, mas não gosto que você conheça a indignidade da minha vida.
Eu me sento ao lado da janela e olho na direção da minha aldeia natal. Eu a imagino na sua janela olhando para mim. Meu coração voa até você. Você está sentada lá? Você me vê? Sente a minha presença?
Sem você estou triste. Imploro por sua visita ou por uma carta.
Flor da Neve
Isso era horrível! Olhei pelajanela na direção de Jintian, desejando poder ao menos avistar Flor da Neve. Eu me sentia muito mal sabendo que ela estava sofrendo, e eu sem poder abraçá-la e consolá-la. Na frente da minha sogra e das outras mulheres no aposento do andar de cima, peguei uma folha de papel e misturei tinta. Antes de pegar o pincel, reli a carta de Flor da Neve. Da primeira vez, eu só havia percebido a sua tristeza. Agora eu percebia que ela havia rompido com o estilo refinado que as esposas utilizavam em suas cartas e estava usando nu shu para escrever com mais franqueza sobre a sua vida.
Com esse seu ato corajoso, compreendi o verdadeiro propósito da nossa escrita secreta. Ela não existia para a troca de bilhetes fúteis entre moças ou mesmo para sermos apresentadas às famílias de nossos maridos. Ela existia para nos dar uma voz. Nossa nu shu era um meio para que nossos pés amarrados nos levassem para junto da outra, para que nossos pensamentos pudessem voar por sobre os campos como Flor da Neve havia escrito. Os homens de nossas casas nunca esperaram que tivéssemos algo de importante a dizer. Nunca esperaram que tivéssemos emoções ou que expressássemos pensamentos criativos. As mulheres — nossas sogras e as outras - colocaram ainda mais obstáculos entre nós. Mas de agora em diante eu esperava que Flor da Neve e eu fôssemos capazes de escrever a verdade de nossas vidas, quer estivéssemos juntas ou separadas. Eu queria abandonar as frases feitas que eram tão comuns entre esposas nos seus dias de arroz-e-sal e expressar os meus sentimentos verdadeiros. Nós iríamos escrever como havíamos falado quando estávamos juntas no aposento do andar de cima da minha casa.
Eu precisava me encontrar com Flor da Neve e dizer a ela que as coisas iam melhorar. Mas, se eu a visitasse contra a vontade da minha sogra, estaria cometendo um dos piores crimes possíveis, escrever ou ler cartas às escondidas não era nada comparado a isso, mas eu tinha de fazer isso se quisesse ver a minha laotong.
Flor da Neve,
Eu choro ao pensar em você nesse lugar. Você é boa demais para ter tanta indignidade em sua vida. Precisamos nos encontrar. Por favor, venha à minha casa para o Festival Espantar os Pássaros. Levaremos nossos filhos. Seremos felizes de novo. Você esquecerá os seus problemas. Lembre-se de que ao lado de um poço ninguém passa sede. Ao lado de uma irmã ninguém se desespera. No meu coração, eu sou para sempre sua irmã.
Lírio
Sentada no aposento do andar de cima, fiz planos, mas estava com medo. A melhor coisa parecia ser a simplicidade - eu iria apanhar Flor da Neve no meu palanquim a caminho de casa -, mas essa também seria a melhor maneira de ser apanhada. As concubinas poderiam olhar pela janela e ver o meu palanquim desviar-se para a direita na direção de Jintian. E, o que era mais perigoso ainda, as estradas estariam cheias de mulheres - inclusive minha sogra - retornando às suas aldeias natais para o festival. Qualquer pessoa poderia nos ver, qualquer pessoa poderia nos denunciar, nem que fosse apenas para agradar a família Lu. Mas, quando chegou a época do festival, eu tinha ganho coragem e achava que iríamos ser bem-sucedidas.
O primeiro dia do segundo mês lunar marcava o início do cultivo, por isso o Festival Espantar os Pássaros. Do lado de dentro, na manhã desse dia, as mulheres da casa se levantavam cedo para fazer bolas de arroz; do lado de fora, os pássaros esperavam que os homens começassem a plantar as sementes de arroz. Eu trabalhava ao lado da minha sogra, formando as bolas, usando o arroz para proteger mais arroz, o mais precioso dos alimentos diários. Quando chegava a hora, as mulheres solteiras de Tongkou carregavam o banquete dos pássaros para o lado de fora e enfiavam as bolas em estacas, para atrair os pássaros, enquanto os homens espalhavam grãos envenenados pelas beiradas das plantações, para os pássaros continuarem a se banquetear. Assim que os pássaros comiam as primeiras sementes envenenadas, as mulheres casadas de Tongkou subiam em palanquins, carroças ou nas costas de mulheres de pés grandes para serem levadas de volta às suas aldeias natais. As mulheres idosas dizem que, se não partirmos, os pássaros irão comer as sementes de arroz que nossos maridos estão prestes a semear e que nós não vamos poder dar-lhes mais nenhum filho homem.
Conforme o planejado, meus carregadores pararam em Jintian. Não saltei do palanquim com medo de que alguém me visse. A porta foi aberta e Flor da Neve, com o filho adormecido no ombro, juntou-se a mim. Já fazia oito meses que eu a havia encontrado no Templo de Gupo. Com todo o trabalho que ela realizava, eu havia imaginado que tivesse perdido todo o peso adquirido na gravidez, mas ela ainda estava gorda por baixo da túnica e da saia. Seus seios estavam maiores do que os meus, embora eu pudesse ver que seu filho era magro em comparação ao meu. Sua barriga também estava grande, razão pela qual ela pusera o filho no ombro, em vez de carregá-lo deitado no colo.
Ela virou delicadamente o filho para que eu pudesse vê-lo. Tirei o meu filho do seio e o ergui de modo que os bebês ficassem de frente um para o outro. Eles tinham agora sete e seis meses de idade. Dizem que todos os bebês são bonitos. O meu filho era, mas o dela, apesar da grossa cabeleira negra, era magro como um varapau, com uma pele amarelada e uma expressão carrancuda. Mas é claro que eu a cumprimentei por ele, e ela fez o mesmo comigo.
Enquanto nossos corpos sacudiam e pulavam no ritmo dos passos dos carregadores, conversávamos sobre nossos novos projetos. Ela estava tecendo uma peça de tecido que incorporava um verso de um poema - um trabalho bem difícil e complicado. Eu estava aprendendo a fazer conserva de aves - uma tarefa relativamente fácil, só que precisava ser feita corretamente para evitar que apodrecesse. Mas essas coisas eram sem importância, tínhamos assuntos mais sérios a tratar. Quando perguntei como andavam as coisas, ela não hesitou nem por um momento.
- Quando acordo de manhã, a única alegria que sinto é por causa do meu filho - confessou ela, fitando-me nos olhos. - Gosto de cantar enquanto lavo roupa ou carrego lenha, mas meu marido fica zangado quando ouve. Quando ele se aborrece, não permite que eu saia, a não ser para cumprir minhas tarefas. Quando ele está contente, de noite deixa que eu me sente na plataforma onde ele mata os porcos. Mas, quando estou lá, só consigo pensar nos animais que morreram. Quando adormeço à noite, sei que vou acordar de novo, mas que não haverá amanhecer, apenas escuridão.
Tentei animá-la.
- Você diz isso porque acabou de ser mãe e estávamos no inverno. - Eu não tinha o direito de comparar a minha solidão com a dela, mas até eu me sentia invadida pela melancolia quando tinha saudades da minha família ou quando as sombras geladas dos dias curtos de inverno deprimiam o meu coração. - A primavera chegou - eu disse, tanto para ela quanto para mim mesma. - Vamos ficar mais felizes com dias mais longos.
- Os meus dias são melhores se forem curtos - respondeu ela. -Só quando meu marido e eu vamos para a cama é que as queixas param. Não ouço o meu sogro reclamando porque o meu chá é fraco, a minha sogra ralhando comigo por eu ter o coração mole, as minhas cunhadas exigindo roupas limpas, o meu marido ordenando que eu não seja motivo de vergonha na aldeia, ou o meu filho exigindo, exigindo, exigindo.
Fiquei horrorizada ao saber que a situação da minha velha igual estava tão ruim. Ela estava infeliz, e eu não sabia o que dizer, embora poucos dias antes eu houvesse prometido a mim mesma que seríamos mais sinceras uma com a outra. Na minha confusão e embaraço, eu me deixei prender às convenções.
- Tentei conciliar o meu marido e a minha sogra, e isso melhorou a minha vida - disse eu. - Você devia fazer o mesmo. Está sofrendo agora, mas um dia a sua sogra vai morrer e você vai ser a senhora da casa. Todas as esposas número um que têm filhos homens conseguem isso no fim.
Ela sorriu tristemente, e pensei na sua reclamação a respeito do filho. Eu não conseguia entender isso. Um filho era a vida de uma mulher. Atender às necessidades dele era sua obrigação e sua maior realização.
- Logo o seu filho vai estar andando - disse eu. - Você vai estar correndo atrás dele por toda parte. E vai ficar muito feliz.
Ela abraçou o filho com força.
- Eu estou grávida de novo.
Externei meus cumprimentos, mas meu cérebro virou um turbilhão. Isso explicava os seios inchados e a barriga crescida. Ela já devia estar bem adiantada. Mas como ela pôde ficar grávida tão cedo? Será que essa era a profanação que tinha mencionado em sua carta? Será que ela e o marido tinham feito coisa de cama antes dos cem dias estarem completos? Tinha de ser isso.
- Eu lhe desejo outro filho homem - consegui dizer.
- Espero que sim. - Suspirou. - Porque meu marido diz que é melhor ter um cachorro que uma filha.
Nós todas sabíamos o quanto essas palavras eram verdadeiras, mas quem diria isso para a esposa grávida?
A sensação do palanquim sendo depositado no chão e os gritos de alegria dos meus irmãos evitaram que eu tivesse de pensar numa resposta adequada. Eu estava em casa.
Como a casa estava mudada! Irmão Mais Velho e a esposa agora tinham dois filhos. Ela viajara para a casa dela para o Festival Espantar os Pássaros, mas tinha deixado as crianças para nós vermos. Meu irmão mais moço ainda não tinha casado, mas os preparativos para o seu casamento estavam adiantados. Oficialmente, ele era um homem. Irmã Mais Velha tinha chegado com as duas filhas e o filho, ela estava envelhecendo diante dos nossos olhos, embora eu ainda Pensasse nela como uma menina nos seus dias de cabelo preso. Mamãe não podia me criticar mais tão facilmente, embora tentasse, baba estava orgulhoso, mas até eu pude ver o peso que era para ele ter tantas bocas para alimentar, mesmo que por poucos dias. Ao todoo, havia sete crianças de seis meses a seis anos sob o nosso teto. A casa vibrava com o som de pezinhos correndo pelo chão, pedidos de atenção e canções para acalmar. Titia estava feliz com tantas crianças em volta; uma casa cheia de crianças tinha sido sempre o seu sonho. Ainda assim, de vez em quando eu via os olhos dela encherem-se de lágrimas. Se o mundo fosse mais justo, Lua Linda também estaria lá com seus filhos.
Passamos três dias conversando, rindo, comendo e dormindo - ninguém discutiu, implicou, condenou ou acusou. Para Flor da Neve e para mim, os melhores momentos foram à noite, no aposento do andar de cima. Colocávamos os nossos filhos na cama entre nós. Vendo os dois, lado a lado, as diferenças entre eles ficavam ainda mais aparentes. Meu filho era gordo, com o cabelo em pé como o do pai. Ele adorava mamar e gorgolejava no meu peito até ficar bêbado de tanto leite, parando apenas para olhar para mim e sorrir. O filho de Flor da Neve não se dava bem com o leite da mãe, regurgi-tando tudo em seu ombro quando ela o punha para arrotar. Ele também era agitado em outros aspectos - chorava muito no final da tarde, com o rosto vermelho de raiva, a bunda rosada e assada. Mas quando nós quatro nos enfiávamos debaixo da colcha, os dois bebês se aquietavam, ouvindo nossos sussurros.
- Você gosta de coisa de cama? - Flor da Neve perguntou, quando se certificou de que todos estavam dormindo.
Durante muitos anos, eu tinha ouvido as piadas picantes contadas pelas mulheres velhas ou as observações de titia sobre a diversão que ela e titio tinham na cama. Tudo isso tinha sido muito confuso, mas agora eu entendia que não havia nada de confuso nisso.
- Meu marido e eu somos como dois marrecos — Flor da Neve disse quando custei a responder. - Encontramos mútua felicidade voando juntos.
Fiquei espantada com o que ela disse. Será que ela estava mentindo de novo, como tinha feito durante tantos anos? Percebendo o meu silêncio espantado, ela tornou a falar:
- Mas por mais que gostemos disso - Flor da Neve prosseguiu —, fiquei incomodada pelo fato de o meu marido não ter obedecido às regras a respeito de coisa de cama depois de eu ter dado à luz. Ele só esperou vinte dias. - Ela fez outra pausa, e então admitiu: - Eu não o culpo. Concordei. Quis que isso acontecesse.
Embora completamente confusa pelo seu desejo de fazer coisa de cama, fiquei aliviada. Ela devia estar dizendo a verdade, porque ninguém iria mentir para encobrir uma verdade pior. O que poderia ser mais vergonhoso do que cometer um ato profanador?
- Isso é mau - sussurrei de volta. - Você tem de seguir as regras.
- Ou então o quê? Eu me torno tão contaminada quanto o meu marido?
Essa idéia já havia me ocorrido, mas eu disse:
- Eu não quero que fique doente ou morra.
Ela riu.
- Ninguém fica doente por causa de coisa de cama. Isso só dá prazer. Trabalho duro o dia inteiro para minha sogra. Será que não mereço um pouco de prazer à noite? E se eu tiver outro filho, vou ficar mais feliz ainda.
Essa última parte eu sabia que era verdadeira. O que estava dormindo entre nós duas era difícil e fraco. Flor da Neve precisava ter outro filho... como precaução.
Nossos três dias passaram muito depressa. Meu coração estava mais leve. Meu palanquim deixou Flor da Neve na frente de sua casa e, em seguida, fui para casa. Ninguém havia visto o meu desvio na estrada, e o cash que paguei aos carregadores garantiu o silêncio deles. Fortalecida pelo meu sucesso, soube que poderia ver Flor da Neve com mais freqüência. Muitos festivais ao longo do ano exigiam que as mulheres casadas voltassem às suas casas, e também tínhamos nossa visita anual ao Templo de Gupo. Podíamos ser mulheres casadas, mas ainda éramos velhas iguais, não importa o que minha sogra dissesse.
Durante o ano seguinte, Flor da Neve e eu continuamos a nos escrever. Nossas palavras voando de um lado para outro por sobre as plantações, livres como dois pássaros planando no vento. As queixas dela diminuíram e as minhas também. Éramos jovens mães e nossas vidas eram alegradas pelas aventuras diárias de nossos filhos - o nascimento de novos dentes, o balbuciar das primeiras palavras, os primeiros passos. Para mim, nós duas estávamos contentes, tendo nos adaptado aos ritmos de nossas novas casas, aprendido a agradar nossas sogras e nos ajustado aos deveres de esposa. Até me acostumei mais a escrever a Flor da Neve sobre meu marido e nossos momentos íntimos. Nessa altura, eu havia compreendido o velho ditado: "Suba na cama, aja como marido; desça da cama, aja como um cavalheiro." Eu preferia o meu marido quando ele descia da cama. De dia, ele seguia as Nove Considerações. Era lúcido, ouvia cuidadosamente e se mostrava afável. Ele era modesto, leal, respeitoso e justo. Quando em dúvida, consultava o pai, e, nas raras ocasiões em que se zangava, tinha o cuidado de não demonstrar. Então, à noite, quando ele subia na cama, eu ficava contente com o seu prazer, mas aliviada quando ele terminava comigo. Eu não entendia o que minha tia costumava falar durante os meus dias de cabelo preso, e não entendia o prazer de Flor da Neve com coisa de cama. Mas, por maior que fosse minha ignorância, de uma coisa eu sabia: Você não desobedece às leis da contaminação sem pagar um alto preço.
Lírio,
Minha filha nasceu morta. Ela partiu sem plantar raízes, portanto não conheceu os sofrimentos da vida. Segurei seus pés em minhas mãos. Eles jamais iriam conhecer as agonias do processo de bandagem. Toquei os olhos dela. Eles jamais iriam conhecer a tristeza de deixar a casa em que nasceram, de ver sua mãe pela última vez, de dizer adeus a um filho morto. Pus os dedos sobre seu coração. Ele jamais iria conhecer a dor, a tristeza, a solidão, a vergonha. Eu a imagino no outro mundo. Será que minha mãe está com ela? Não conheço o destino de nenhuma das duas.
Todos na minha casa me acusam. Minha sogra diz: "Por que a aceitamos na família se não foi para ter filhos homens?" Meu marido diz: "Você é jovem. Vai ter mais filhos. Da próxima vez, vai me dar um filho homem."
Não tenho como extravasar minha tristeza. Não tenho ninguém para me escutar. Eu gostaria de ouvir os seus passos na escada.
Imagino a mim mesma como um pássaro. Eu voaria no meio das nuvens, e o mundo lá embaixo pareceria muito distante.
A peça de jade que uso em volta do pescoço para proteção dos bebês que carrego no ventre se tornou um peso. Não consigo parar de pensar na minha filhinha morta.
Flor da Neve
Abortos são comuns em nossa região, e as mulheres não devem ligar quando têm um, especialmente se o bebê for uma menina. Crianças que nascem mortas são algo terrível, mas apenas se forem meninos. Quando uma menina nasce morta, geralmente os pais ficam agradecidos. Ninguém precisava de outra boca sem valor para alimentar. Quanto a mim, embora eu me sentisse apavorada quando estava grávida de que alguma coisa pudesse acontecer com o meu bebê, honestamente não sei o que teria sentido se ele tivesse sido uma filha e tivesse morrido antes de respirar o ar deste mundo. O que estou tentando dizer é que fiquei confusa por Flor da Neve estar se sentindo desse jeito.
Eu havia implorado a ela para me dizer a verdade, mas agora que ela o fizera eu não sabia como responder. Eu queria responder com simpatia, queria lhe dar consolo e apoio. Porém, tinha medo por ela e não sabia o que escrever. Tudo o que havia acontecido na vida de Flor da Neve - a realidade da sua infância, seu péssimo casamento e agora isso - estava além da minha compreensão. Eu tinha acabado de fazer vinte e um anos. Jamais experimentara um sofrimento verdadeiro, minha vida era boa, e essas coisas não calavam fundo em mim.
busquei as palavras certas para escrever para a mulher que eu amava, e, para minha vergonha, deixei que as convenções com as quais havia sido criada tomassem conta do meu coração, como havia feito, no outro dia, no palanquim. Quando peguei o pincel, recorri à segurança das linhas formais apropriadas para uma mulher casada, esperando que isso mostrasse a Flor da Neve que nossa única proteção como mulheres estava na face plácida que apresentávamos, mesmo nos momentos de maior desespero. Ela precisava tentar engravidar de novo - e logo -, porque o dever de todas as mulheres era tentar dar à luz filhos homens.
Flor da Neve,
Estou sentada no aposento do andar de cima, refletindo.
Escrevo para consolá-la.
Por favor, ouça-me.
Minha querida, acalme o seu coração.
Imagine-me ao seu lado - minha mão na sua.
Imagine-me chorando ao seu lado.
Nossas lágrimas formam quatro rios que correm para sempre.
Saiba disso.
A sua tristeza é profunda, mas você não está sozinha.
Não se lamente.
Isso estava predestinado, assim como a riqueza e a pobreza são predestinadas. Muitos bebês morrem. Isso parte o coração de uma mãe. Não podemos controlar essas coisas. Só podemos tentar de novo. Da próxima vez, um filho...
Lírio
Dois anos se passaram nos quais nossos filhos aprenderam a andar e a falar. O filho de Flor da Neve aprendeu essas coisas primeiro, como era de esperar. Ele era seis semanas mais velho, mas suas pernas não eram gordas como as do meu filho. Ele continuou magro, e parecia ser uma magreza de personalidade. Isso não quer dizer que não era inteligente. Ele era muito inteligente, mas não tanto quanto o meu filho. Aos três anos, meu filho já queria segurar o pincel de caligrafia. Ele era fantástico, o queridinho do aposento do andar de cima. Até as concubinas o cobriam de atenções, disputando-o do mesmo jeito com que disputavam um corte de seda.
Três anos depois do nascimento do meu primeiro filho, nasceu o meu segundo filho. Flor da Neve não teve a mesma sorte. Ela podia gostar de fazer coisas de cama com o marido, mas isso não gerou nada - exceto uma segunda filha que nasceu morta. Após essa perda, recomendei que ela procurasse o herbanário local para encontrar ervas que a ajudassem a conceber um filho homem e aumentassem a energia do marido na região abaixo do cinto. Graças ao meu conselho, Flor da Neve me informou, ela e o marido tinham tido muitos motivos de satisfação.
Tristezas e alegrias
Quando meu filho mais velho completou cinco anos, meu marido começou a falar em trazer um tutor para iniciar a educação formal do menino. Como morávamos na casa dos meus sogros e não tínhamos recursos próprios, tivemos que pedir a eles para arcarem com as despesas. Eu devia ter ficado envergonhada dos desejos do meu marido, mas nunca lamentei não ter ficado. Da parte deles, os meus sogros não podiam ter ficado mais felizes do que quando o tutor chegou e meu filho deixou o aposento do andar de cima. Chorei ao vê-lo ir, mas foi um dos momentos de maior orgulho em minha vida. Secretamente, eu tinha esperança de que um dia ele pudesse submeter-se aos exames imperiais. Eu era apenas uma mulher, mas até eu sabia que esses exames davam até mesmo aos mais pobres dos intelectuais, vindos dos ambientes mais miseráveis, uma oportunidade de subir na vida. Entretanto, a ausência dele no aposento do andar de cima me deixou um vazio que não pôde ser preenchido nem com as brincadeiras do meu segundo filho, nem com as discussões das concubinas, nem com a implicância da minha cunhada, e tampouco com meus encontros periódicos com Flor da Neve. Felizmente, no primeiro mês do novo ano lunar, descobri que estava grávida de novo.
Nessa altura, o aposento do andar de cima estava muito cheio. A Terceira Cunhada tinha se mudado para lá e tinha tido uma filha. Em seguida, veio a Quarta Cunhada, cujas queixas irritavam todo mundo. Ela, também, teve uma filha. Minha sogra era especialmente cruel com a Quarta Cunhada, que mais tarde perdeu dois filhos homens durante o parto. Então, é justo dizer que as outras mulheres da casa receberam a novidade com inveja. Nada causava mais consternação no aposento do andar de cima do que a chegada da menstruação de uma das esposas. Todo mundo sabia, todo mundo comentava. Lady Lu sempre notava essas ocorrências" e xingava a jovem em questão em voz alta para todo mundo ouvir. "Uma esposa que não gera um filho homem pode sempre ser substituída", ela dizia às vezes, embora odiasse as concubinas do marido. Agora, quando eu olhava em volta no aposento das mulheres, só via inveja e ressentimento, mas o que as outras mulheres podiam fazer a não ser esperar e ver se outro filho homem sairia do meu corpo? Eu, no entanto, tinha sofrido uma mudança. Eu queria uma filha, mas pela mais prática das razões. Meu segundo filho iria deixar-me em breve para entrar no mundo dos homens, e as filhas só deixavam suas mães quando se casavam. Meu desejo secreto aumentou quando soube que Flor da Neve também estava grávida. Não posso dizer o quanto eu queria que ela também tivesse uma filha.
Nossa primeira oportunidade de nos encontrarmos para compartilhar nossas aspirações e expectativas veio com o Festival Saboreando no sexto dia do sexto mês. Depois de cinco anos morando com os Lu, eu sabia que minha sogra não tinha mudado de opinião em relação a Flor da Neve. Eu suspeitava de que ela soubesse que nos víamos durante os festivais, mas desde que eu não fizesse alarde do relacionamento e cumprisse com minhas obrigações domésticas, minha sogra não tocava no assunto.
Como sempre, Flor da Neve e eu desfrutamos da companhia uma da outra no aposento do andar de cima, mas nossa velha intimidade não podia ser demonstrada com aquele monte de crianças na nossa cama ou em berços à nossa volta. Mesmo assim, conseguíamos cochichar. Confessei a ela que desejava uma filha para me fazer companhia. Flor da Neve acariciou minha barriga e lembrou-me de que meninas não passavam de galhos inúteis, incapazes de continuar a linhagem dos pais.
- Elas não vão ser inúteis para nós - disse eu. - Não poderíamos formar uma aliança laotong para elas agora, antes de nascerem?
- Lírio, nós não temos nenhum valor. - Flor da Neve se sentou na cama. Eu podia ver seu rosto ao luar. - Você sabe disso, não sabe?
- Mulheres são as mães dos filhos homens - eu a corrigi. Isso havia garantido o meu lugar na casa do meu marido. Certamente, os filhos de Flor da Neve tinham garantido o lugar dela também.
- Eu sei. As mães dos filhos homens... mas...
- Então nossas filhas vão ser nossas companheiras.
- Eu já perdi duas...
- Flor da Neve, você não quer que nossas filhas sejam velhas iguais? - A idéia de que ela talvez não quisesse me atingiu como um raio.
Ela me olhou com um sorriso triste.
- É claro, se tivermos filhas. Elas poderão dar continuidade ao amor que sentimos uma pela outra, mesmo depois que tivermos partido para o outro mundo.
- Então está combinado. Agora deite-se aqui do meu lado. Tire essas rugas de preocupação da testa. Este é um momento feliz. Vamos ser felizes juntas.
Retornamos a Puwei com duas filhas recém-nascidas na primavera seguinte. Os aniversários delas não combinavam. Os meses em que haviam nascido não combinavam. Retiramos seus cueiros e encostamos as solas dos pés de uma na outra. Mesmo quando bebês, o tamanho de seus pés não combinava. Mesmo contemplando a minha filha, Jade, com olhos maternos, eu podia ver que a filha de Flor da Neve, Lua de Primavera, era linda em comparação com a minha. A pele de Jade era escura demais para a família Lu, enquanto que a pele de Lua de Primavera era clara e lisa como um pêssego. Eu tinha esperança de que Jade se tornasse forte como a pedra que lhe deu nome, e desejava que Lua de Primavera viesse a ser mais vigorosa do que minha prima, a quem Flor da Neve havia homenageado ao escolher o nome da filha. Nenhum dos oito atributos combinavam, mas não nos importamos com isso. Essas meninas iam ser velhas iguais.
Abrimos nosso leque e contemplamos nossas vidas. Havia tanta felicidade registrada ali. Nossa aliança. Nossos casamentos. Os nascimentos de nossos filhos homens. Os nascimentos de nossas filhas. Sua futura aliança. "Um dia duas meninas irão encontrar-se e irão tornar-se laotong", escrevi. "Elas vão ser como dois marrecos. Outro par - com alegria em seus corações -, elas irão sentar-se juntas numa ponte e vê-los voar." Acima da guirlanda na borda do leque, Flor da Neve pintou dois pares de asas voando em direção à lua. Dois outros pássaros, pousados um ao lado do outro, olhavam para cima.
Quando terminamos, ficamos sentadas juntas, embalando nossas filhas. Senti uma alegria enorme, entretanto não parei para pensar que, ao ignorar as leis que determinam a aliança entre duas meninas, estávamos quebrando um tabu.
Dois anos depois, Flor da Neve enviou-me uma carta dizendo que tinha finalmente tido um segundo filho homem. Ela estava radiante, e fiquei encantada, acreditando que seu status fosse subir na casa do seu marido. Mas nós mal tivemos tempo de festejar, porque três dias depois nosso país recebeu uma notícia muito triste. O imperador uaoguang tinha ido para o outro mundo. Nossa região ficou de luto, mesmo quando o filho dele, Xianfeng, se tornou o novo imperador.
Eu tinha aprendido, pela amarga experiência da família de Flor da Neve, que quando um imperador morre sua corte cai em desgraça, de modo que cada transição imperial traz desordem e desarmonia, não só no palácio mas em todo o país. Na hora do jantar, quando, em sussurro, meu marido e seus irmãos discutiam o que estava acontecendo fora de Tongkou, eu só absorvia o que não podia ignorar. Rebeldes estavam causando problemas em algum lugar e os proprietários de terras estavam pressionando os fazendeiros por aluguéis mais caros. Eu tinha pena das pessoas - como as da minha própria família - que iriam sofrer, mas na verdade essas coisas pareciam muito distantes do ambiente confortável da casa da família Lu.
Então tio Lu perdeu a sua posição e voltou para Tongkou. Quando ele desceu do seu palanquim, nós todos nos curvamos diante dele, encostando nossas cabeças no chão. Quando ele nos mandou levantar, vi um velho usando trajes de seda. Ele tinha duas verrugas no rosto. Todo mundo valoriza os pêlos de suas verrugas, mas os de tio Lu eram esplêndidos. Ele tinha pelo menos dez pêlos - de textura grossa, brancos e com uns três centímetros de comprimento - em cada verruga. Quando vim a conhecê-lo melhor, vi que ele gostava de brincar com aqueles pêlos, puxando-os de leve para incentivá-los a crescer ainda mais.
Seus olhos inteligentes olharam de rosto em rosto antes de se fixarem no do meu primeiro filho. Meu garoto estava com oito anos. Tio Lu, que deveria ter cumprimentado primeiro o seu irmão, estendeu uma mão coberta de veias e a pousou no ombro do meu filho.
- Leia mil livros - disse ele com uma voz refinada mas distorcida por muitos anos passados na capital - e suas palavras fluirão como um rio. Agora, pequeno, mostre-me o caminho de casa. — Com isso, o homem mais importante da família deu a mão ao meu filho e, juntos, eles cruzaram o portão da aldeia.
Mais dois anos se passaram. Eu tinha acabado de ter o meu terceiro filho homem e estávamos todos trabalhando muito para manter as coisas como eram antes, mas todo mundo podia ver que, com a perda de prestígio do tio Lu e a rebelião contra o aumento dos aluguéis, a vida não era a mesma. Meu sogro começou a diminuir o seu consumo de tabaco e o meu marido passava mais tempo nas plantações, as vezes empunhando as ferramentas e juntando-se aos fazendeiros em sua labuta. O tutor partiu e tio Lu assumiu a educação do meu filho mais velho. E no aposento do andar de cima, as implicâncias entre as esposas e as concubinas aumentaram à medida que diminuíam os presentes habituais de cortes de seda e linha de bordar.
Quando Flor da Neve e eu nos encontramos na minha casa naquele ano, passei pouco tempo com a minha família. Ah, nós fazíamos as refeições juntos e nos sentávamos à noite do lado de fora como quando eu era criança, mas mamãe e Baba não eram a razão da minha visita. Eu queria estar com Flor da Neve. Nós tínhamos feito trinta anos, e havia vinte e três anos que éramos laotong. Era difícil acreditar que tanto tempo tinha passado e mais difícil ainda acreditar que um dia tínhamos sido tão unidas. Eu amava Flor da Neve como minha laotong, mas meus dias eram preenchidos com filhos e tarefas domésticas. Eu era mãe de três filhos e uma filha, enquanto ela tinha dois filhos e uma filha. Tínhamos uma ligação emocional que acreditávamos que jamais seria rompida e que era mais profunda do que os laços com nossos maridos, mas a paixão do nosso amor tinha desaparecido. Não nos preocupávamos com isso, já que todos os relacionamentos profundos têm que enfrentar a realidade prática dos dias de arroz-e-sal. Sabíamos que quando atingíssemos nossos dias de Sentar Calmamente, estaríamos de novo juntas como nos velhos tempos. Por ora, tudo o que podíamos fazer era partilhar nossa vida diária o máximo possível.
Na casa de Flor da Neve, sua última cunhada tinha se casado, eliminando as tarefas que antes ela precisava realizar para elas. Seu sogro também tinha morrido. Um porco que ele estava matando tinha entortado o corpo com tanta força no último momento que a taça escorregara de sua mão e cortara-lhe o braço até o osso; ele sangrou até morrer na soleira da porta da sua casa, como tinha acontecido com tantos porcos. Agora o marido de Flor da Neve era o chefe da família, embora ele - e todos os que moravam em sua casa - ainda fosse muito controlado pela mãe. Sabendo que Flor da Neve não tinha nada nem ninguém, a sogra aumentou a implicância com ela, tanto quanto o marido diminuiu sua proteção em relação a isso. Mesmo assim, Flor da Neve estava muito feliz com seu segundo filho, que era um garotinho robusto. Todo mundo amava aquela criança, achando que o primeiro filho não chegaria nem aos dez anos, quanto mais aos vinte.
Embora o ambiente de Flor da Neve não fosse tão elevado quanto o meu, ela era muito mais atenta do que eu ao que se passava em volta. Eu já devia saber disso. Ela sempre se interessara mais do que eu pelo mundo externo. Ela explicou que os rebeldes dos quais eu tinha ouvido falar eram chamados Taiping, e buscavam uma ordem mais harmoniosa. Eles acreditavam - do mesmo modo que o povo Yao - que fantasmas, deuses e deusas têm influência na colheita, na saúde e no nascimento de filhos homens. Os Taiping proibiam vinho, ópio, jogo, dança e fumo. Diziam que as terras deveriam ser tiradas dos proprietários, que possuíam noventa por cento delas e recebiam até setenta por cento da colheita, e que aqueles que trabalhavam na terra deviam ter direito à metade. Na nossa província, centenas de milhares de pessoas tinham abandonado suas casas para se juntarem aos Taiping e estavam invadindo aldeias e cidades. Ela falou sobre seu líder, que acreditava ser filho de um deus famoso, falou sobre o que ele chamava de seu Reino Sagrado, sobre o ódio que tinha aos estrangeiros e à corrupção política. Não entendi o que Flor da Neve estava tentando me dizer. Para mim, um estrangeiro era alguém de outra região do país. Eu vivia dentro das quatro paredes do meu aposento do andar de cima, mas Flor da Neve tinha uma mente que voava para lugares distantes, contemplando, procurando, pensando.
Quando voltei para casa e perguntei a meu marido sobre os Taiping, ele respondeu:
- Uma esposa deve preocupar-se com seus filhos e em fazer a família feliz. Se a sua família natal a perturba, da próxima vez não vou permitir que você vá visitá-la.
Eu não disse mais nenhuma palavra sobre o mundo exterior.
A falta de chuva e o prejuízo que isso teve para a colheita deixaram todo mundo com fome em Tongkou - desde a quarta filha de um fazendeiro até o honrado tio Lu —, entretanto, só me preocupei quando vi a nossa despensa começar a esvaziar. Logo a minha sogra começou a nos castigar por derramarmos chá ou por fazermos um fogo muito grande no braseiro. Meu sogro passou a diminuir a quantidade de carne em seu prato, preferindo que seus netos se servissem primeiro. Tio Lu, que tinha vivido no palácio, não reclamou tanto quanto poderia, mas, à medida que foi tomando consciência da realidade, tornou-se mais exigente com o meu filho, na esperança de que o menino pudesse levar a família de volta a uma situação melhor.
Isso alertou o meu marido. A noite, quando estávamos na cama com as luzes bem fraquinhas, ele me confidenciou:
- O tio Lu enxerga alguma coisa em nosso filho, e fiquei satisfeito quando ele assumiu a educação do menino. Mas agora olho para a frente e vejo que talvez tenhamos que mandá-lo para fora para prosseguir seus estudos. Como podemos fazer isso quando o estado inteiro sabe que em breve teremos de vender terras para poder comer? - No escuro, meu marido segurou minha mão. - Lírio, tenho uma idéia que parece boa para o meu pai, mas me preocupo com você e nossos filhos.
Esperei, com medo do que ele ia dizer em seguida.
- As pessoas precisam de certas coisas para viver - continuou ele. - Ar, sol, água e lenha são de graça, mesmo que nem sempre sejam abundantes. Mas o sal não é de graça, e todo mundo precisa de sal para viver.
Apertei a mão dele. Aonde ele estava querendo chegar?
- Perguntei ao meu pai se poderia pegar o que ainda resta de dinheiro - disse ele -, viajar para Guilin, comprar sal e trazer para vender aqui. Ele deu sua permissão.
Isso representava um grande risco. Guilin ficava na província vizinha. Para chegar lá, meu marido teria de atravessar o território ocupado pelos rebeldes. Os que não eram rebeldes eram fazendeiros desesperados que haviam perdido suas casas e se transformado em bandidos que assaltavam quem ousasse viajar pelas estradas. O próprio comércio de sal era perigoso, e essa era uma das razões pelas quais ele era sempre tão escasso. Os homens que controlavam o sal em nossa província tinham os seus próprios exércitos, mas meu marido era um só. Ele não tinha nenhuma experiência em lidar com chefes guerreiros ou comerciantes espertos. Como se isso já não fosse o bastante, minha mente feminina imaginou o meu marido encontrando belas mulheres em Guilin. Se ele fosse bem-sucedido na sua empreitada, poderia trazer uma ou mais concubinas. Minha fraqueza de mulher foi a que primeiro se manifestou.
- Não vá colher flores selvagens - implorei, usando o eufemismo para o tipo de mulheres que ele poderia encontrar.
- O valor de uma mulher está nas suas virtudes e não no seu rosto - ele me tranqüilizou. - Você me deu filhos homens. Meu corpo irá viajar uma grande distância, mas meus olhos não irão olhar para o que não devem ver. - Ele fez uma pausa e em seguida acrescentou: - Permaneça fiel, evite tentações, obedeça a minha mãe e cuide de nossos filhos.
- Eu não faria diferente - prometi. - Mas não estou preocupada comigo.
Tentei contar a ele as minhas outras preocupações, mas ele respondeu:
- Nós vamos parar de viver porque algumas pessoas estão infelizes? Temos que continuar a usar nossas estradas e rios. Eles pertencem a todo o povo chinês.
Ele disse que talvez ficasse fora por um ano.
Assim que meu marido partiu, fiquei preocupada. A medida que os meses se passavam, eu ficava mais ansiosa e assustada. Se alguma coisa acontecesse a ele, o que seria de mim? Como viúva, eu teria poucas opções. Como meus filhos eram muito pequenos para tomar conta de mim, meu sogro poderia vender-me para outro homem. Sabendo que nessas circunstâncias era possível que eu nunca mais visse os meus filhos, compreendi por que tantas viúvas se matavam.
Mas eu não podia ficar chorando dia e noite. Tentei manter uma aparência serena no aposento do andar de cima, mesmo temendo pela segurança do meu marido.
Desejando ser consolada pela visão do meu primeiro filho, fiz algo que nunca tinha feito antes. Eu me oferecia várias vezes por dia para ir buscar chá para as mulheres na cozinha; então, quando chegava lá embaixo, eu me sentava silenciosamente e ficava ouvindo as lições de tio Lu.
- As três forças mais importantes que existem são o céu, a terra e o homem - meu filho disse. - Os três luminares são o$tA, a lua e as estrelas. As oportunidades dadas pelo céu não são equivalentes às vantagens oferecidas pela terra, enquanto que as vantagens oferecidas pela terra não se comparam com as bênçãos que vêm da harmonia entre os homens.
- Qualquer menino pode decorar as palavras, mas o que elas significam? - Tio Lu era cortante em sua precisão.
Você acha que o meu filho podia dar uma resposta errada? Não, e vou dizer por quê. Se ele não respondesse corretamente a uma pergunta ou se cometesse um erro nas suas sabatinas, tio Lu batia na palma da mão dele com uma vara de bambu. Se ele tornasse a errar no dia seguinte, o castigo era em dobro.
- O céu fornece o clima para o homem, mas, sem o solo fértil da terra, este não tem valor - meu filho respondeu. - E o solo fértil é inútil se não houver harmonia entre os homens.
Do meu canto inchei de orgulho, mas tio Lu não terminou a lição por causa de uma única resposta certa.
- Muito bem. Agora vamos falar do império. Se você fortalecer a família e seguir as regras que estão escritas no Livro dos Ritos, a ordem irá reinar na casa. Isso se espalha de uma casa para outra, construindo a segurança do estado até chegar ao imperador. Mas um rebelde atrai outro rebelde e em pouco tempo a desordem se instala. Pequenino, preste atenção. Nossa família possui terras. O seu avô comandou-as enquanto eu estava fora, mas agora as pessoas sabem que eu não tenho mais amizades na corte. Eles vêem e ouvem os rebeldes. Nós temos de ser muito, muito cuidadosos.
Mas o terror que ele temia não veio na forma dos Taiping. A última coisa que eu soube antes que os espíritos da morte se abatessem sobre nós foi que Flor da Neve estava grávida de novo. Bordei um lenço para ela, desejando saúde e felicidade nos próximos meses, depois decorei-o com peixes prateados saltando num riacho azul-claro, acreditando que essa era a imagem mais benigna - e fresca -que eu podia criar para alguém que passaria o verão grávida.
Naquele ano o calor chegou rápido. Ainda era cedo para voltar para a casa de nossas famílias, então nós, mulheres e crianças, ficávamos prostradas no aposento do andar de cima, esperando, esperando, esperando. Como a temperatura continuou a subir, os homens de Tongkou e das aldeias vizinhas levaram as crianças para nadar no rio. Esse era o mesmo rio em que eu havia refrescado os meus pés quando criança, então fiquei encantada quando meu sogro e meus cunhados se ofereceram para levar as crianças. Mas também era o mesmo rio em que as mulheres de pés grandes lavavam roupa e, como os poços da aldeia estavam contaminados com larvas e insetos - apanhavam água para beber e cozinhar.
O primeiro caso de tifo aconteceu na melhor aldeia da região - a minha Tongkou. A doença atacou o precioso primeiro filho de um dos nossos fazendeiros, e depois varreu a casa inteira, matando todo mundo. A doença chegava em forma de febre, acompanhada de uma intensa dor de cabeça e depois de males de estômago. Às vezes vinha acompanhada também de uma tosse rouca ou de uma erupção de pele. Mas logo que a diarréia atacava, a morte vinha em uma questão de horas. Assim que soubemos que uma criança tinha ficado doente, vimos o que aconteceria em seguida. Primeiro a criança morreria, depois os irmãos e irmãs, depois a mãe, depois o pai. Era um padrão que se repetia sem parar, pois uma mãe não pode dar as costas a um filho doente e um marido não pode abandonar a esposa moribunda. Em pouco tempo, todas as aldeias da região tinham casos de tifo.
A família Lu se retirou da vida da aldeia e fechou suas portas. As empregadas desapareceram, talvez mandadas embora pelo meu sogro, talvez fugindo de medo. Até hoje não sei. As mulheres da minha casa juntaram as crianças no aposento do andar de cima, acreditando que estaríamos mais seguras lá. O filhinho da Terceira Cunhada foi o primeiro a desenvolver os sintomas. A testa dele ficou quente e seca. Seu rosto ficou afogueado. Quando percebi, levei meus filhos para o meu quarto de dormir. Chamei meu filho mais velho. Sem o meu marido em casa, eu deveria ter-me resignado ao seu desejo de permanecer com seu tio-avô e os outros homens, mas não lhe dei essa opção.
- Só eu vou sair deste quarto - disse eu aos meus filhos. - Irmão Mais Velho ficará responsável por vocês quando eu não estiver aqui. Deverão obedecer-lhe em tudo.
Todo dia, durante aquele período terrível, eu saía do quarto uma vez pela manhã e uma vez à noite. Sabendo como essa doença saía do corpo das pessoas que atacava, eu carregava o urinol e o esvaziava eu mesma, cuidando para que nada na área de depósito de estérco tocasse minhas mãos, meus pés, minha roupa ou o nosso urinol. Eu tirava uma água escura do poço, a fervia, e depois coava para clareá-la e limpá-la o melhor possível. Eu tinha medo da comida, mas precisávamos comer. Eu não sabia o que fazer. Será que deveríamos comer comida crua, direto da horta? Entretanto, quando pensava no estérco que usávamos nas plantações e como a doença tinha se derramado de tantos corpos, eu sabia que isso não podia estar certo. Eu me lembrei da única coisa que minha mãe cozinhava quando eu estava doente - congee. Eu o preparava duas vezes por dia.
O resto do tempo ficávamos trancados no meu quarto. Durante o dia, ouvíamos as pessoas correndo de um lado para outro. A noite, o choro espasmódico dos doentes e os gritos de angústia das mães chegavam até nós. De manhã, eu encostava o ouvido na porta e tentava saber quem tinha ido para o outro mundo. Sem ninguém para cuidar delas, a não ser elas mesmas, as concubinas morreram em agonia e sozinhas, exceto pelas próprias mulheres contra as quais haviam conspirado.
Eu me preocupava dia e noite com Flor da Neve e com meu marido. Será que ela estava tomando as mesmas precauções que eu? Será que ela estava bem? Será que tinha morrido? Será que aquele seu patético primeiro filho tinha morrido? Será que sua família inteira tinha morrido? E quanto ao meu marido? Será que tinha morrido em outra província ou na estrada? Se acontecesse alguma coisa com eles, eu não sabia o que iria fazer. Eu me sentia pressionada pelo medo.
O meu quarto só tinha uma janela, alta demais para eu olhar para fora. O cheiro dos cadáveres inchados e contaminados colocados na frente das casas empesteava o ar. Cobríamos a boca e o nariz, mas não havia como escapar - era um fedor que fazia os olhos arderem e deixava a língua amarga. Na minha cabeça, eu ia enumerando todas as tarefas que tinha de cumprir: rezar constantemente para a deusa. Envolver as crianças num pano vermelho-escuro. Varrer o quarto três vezes por dia para afugentar os maus espíritos. Eu também listava as coisas que devíamos evitar: nada de comida frita ou sauté. Se o marido tivesse estado em casa, nada de coisa de cama. Mas ele não estava, e eu só tinha a mim mesma para manter vigilância.
Um dia, enquanto eu cozinhava o mingau de arroz, minha sogra entrou na cozinha com uma galinha morta na mão.
- Não tem mais sentido mantê-las - disse ela zangada. Enquanto desmembrava a ave e picava alho, avisou: - Seus filhos vão morrer sem carne e legumes. Você vai matá-los de fome antes mesmo que fiquem doentes.
Olhei para a galinha. Minha boca salivou e meu estômago roncou, mas pela primeira vez em minha vida de casada não dei ouvidos a ela. Não respondi. Simplesmente despejei o congee em tigelas e coloquei-as numa bandeja. A caminho do quarto, parei na porta do tio Lu, bati e deixei uma tigela para ele. Eu tinha que fazer isso, entende? Ele era não só o membro mais velho e mais respeitado da família como também o professor do meu filho. Os clássicos nos dizem que, em matéria de relacionamentos, aquele entre professor e aluno está em segundo lugar, atrás apenas do relacionamento entre pais e filhos.
As outras tigelas entreguei aos meus filhos. Quando Jade protestou porque não tinha cebola nem iscas de porco, nem mesmo legumes em conserva, bati com força no rosto dela. As outras crianças engoliram as queixas, enquanto a irmã mordia o lábio e reprimia as lágrimas. Não dei atenção a isso. Simplesmente peguei a vassoura e voltei a varrer.
Os dias se passaram e ninguém adoeceu no nosso quarto, mas o calor estava no auge, piorando o cheiro de doença e morte. Uma noite, quando fui até a cozinha, encontrei Terceira Cunhada parada como um fantasma no escuro, vestida de branco dos pés à cabeça, a cor do luto. Pela aparência dela, adivinhei que seu marido e seus filhos deviam estar mortos. Fiquei imobilizada pela expressão vazia, sem alma, dos olhos dela. Ela não se mexeu, não deu a entender que tinha me visto, embora eu estivesse a menos de um metro dela. Eu estava assustada demais para recuar e assustada demais para avançar. Do lado de fora, ouvi o chamado dos pássaros noturnos e o gemido grave de um búfalo. Na confusão causada pelo susto, uma idéia estúpida me passou pela cabeça. Por que os animais não estavam morrendo? Ou estavam morrendo e não sobrara ninguém para me contar?
- A porca inútil está viva! - Uma voz soou raivosa e amarga atrás de mim.
Terceira Cunhada nem piscou, mas eu me virei para olhar. Era a minha sogra. Tinha tirado os grampos, e seu cabelo caía em mechas oleosas ao redor do rosto.
- Nós nunca deveríamos ter deixado você entrar nesta casa. você está destruindo o clã dos Lu, sua porca imunda.
Minha sogra cuspiu em Terceira Cunhada, que não teve forças nem para limpar o rosto.
Lu a amaldiçôo - minha sogra disse, com o rosto vermelho de a e de dor. - Espero que você morra. Se não morrer, por favor, deusa, faça com que ela sofra; mestre Lu irá dá-la em casamento no outono. Mas se dependesse de mim você não viveria mais para ver a luz do dia.
Com isso, minha sogra, que havia ignorado a minha presença, deu meia-volta, se agarrou na parede para não cair e saiu cambaleando da cozinha. Eu me virei para a minha cunhada, que ainda parecia fora do mundo. Tudo me dizia que o que eu ia fazer era errado, errado, mas a abracei e a levei até uma cadeira. Pus água para ferver; em seguida, com toda a coragem que consegui encontrar, molhei um pano num balde de água fria e limpei o rosto dela. Joguei o pano no braseiro e o vi queimar. Quando a água ferveu, fiz um bule de chá, servi uma xícara e pus diante da minha cunhada. Ela não tocou nela. Eu não sabia o que mais poderia fazer, então comecei a preparar o congee, mexendo pacientemente o fundo da panela para o arroz não grudar nem queimar.
- Tento ouvir o choro dos meus filhos. Procuro meu marido por toda parte - Terceira Cunhada murmurou. Eu me virei para olhar para ela, achando que estava falando comigo. Os olhos dela disseram-me que não estava. - Se eu me casar de novo, como poderei encontrar meu marido e meus filhos no outro mundo?
Não havia nada que eu pudesse dizer para consolá-la. Ela não tinha uma grande árvore para protegê-la nem uma montanha fiel para ampará-la. Ela se levantou e saiu da cozinha oscilando sobre seus delicados pés de lírio, tão frágil quanto uma lanterna que se houvesse soltado durante o Festival da Lanterna e estivesse sendo levada pelo vento. Voltei a mexer o mingau.
Na manhã seguinte, quando desci, parecia ter havido uma mudança. Yonggang e duas outras empregadas tinham voltado e estavam limpando a cozinha e repondo o estoque de lenha. Yonggang informou-me que Terceira Cunhada tinha sido encontrada morta de manhã. Ela se matara, engolindo detergente. Eu sempre me pergunto o que teria acontecido se ela tivesse esperado mais algumas horas, porque na hora do almoço minha sogra estava com febre. Ela já devia estar doente na noite anterior quando havia sido tão cruel.
Agora eu tinha uma terrível escolha a fazer. Tinha mantido os meus filhos protegidos no meu quarto, mas meu dever como esposa era para com os pais do meu marido, acima de tudo. Servi-los não significava apenas levar chá para eles de manhã, lavar suas roupas ou aceitar críticas com um sorriso no rosto. Servi-los significava que eu devia estimá-los acima de tudo - acima dos meus pais, do meu marido, dos meus filhos. Com meu marido ausente, eu precisava esquecer o medo da doença, expulsar do coração todos os sentimentos que tinha pelos meus filhos e fazer o que era certo. Se eu não fizesse isso e minha sogra morresse, minha desonra seria enorme.
Mas não abandonei meus filhos facilmente. Minhas outras cunhadas estavam em seus quartos com suas famílias. Eu não sabia o que estava acontecendo por trás das portas fechadas. Elas já poderiam ter adoecido. Já poderiam estar mortas. Eu também não podia confiar meus filhos a meu sogro. Ele não tinha passado a noite ao lado da esposa? Não seria o próximo a adoecer? E eu não via o tio Lu desde o início da epidemia, embora ele deixasse sua tigela vazia do lado de fora do quarto todas as manhãs, e todas as noites para eu tornar a enchê-la.
Eu me sentei na cozinha, torcendo os dedos de preocupação. Yonggang aproximou-se, ajoelhou-se diante de mim e disse:
- Eu vou cuidar dos seus filhos.
Recordei como ela havia me acompanhado à casa de Flor da Neve logo depois do meu casamento, como tinha cuidado de mim depois dos meus partos e como se mostrara leal e discreta ao levar minhas cartas para minha laotong. Fizera tudo isso por mim, e, sem que eu notasse, tinha crescido e se transformado numa moça de ossos e pés grandes de vinte e quatro anos, e deixado de ser a menina de dez anos que eu tinha conhecido. Para mim, ela ainda era tão feia quanto uma genitália de porco, mas eu sabia que ainda não tinha caído doente e que cuidaria dos meus filhos como se fossem dela.
Dei a ela instruções exatas sobre como tratar a água e preparar a comida deles, e uma faca para guardar com ela no caso de as coisas Piorarem e ela ter de bloquear a porta. Com isso, deixei os meus filhos nas mãos do destino e dirigi minha atenção para a mãe do meu marido.
Durante os cinco dias seguintes, fiz tudo o que uma nora pode fazer por uma sogra. Limpei-a quando ela não pôde mais usar o urinol. Preparei para ela o mesmo congee que tinha preparado para os meus filhos; depois cortei meu braço como tinha visto minha mãe fazer para que o meu fluido vital fosse acrescentado ao mingau. Essa é a dádiva suprema de uma nora, e eu a concedi, esperando que, por algum milagre, o que me dera vitalidade pudesse devolver a dela.
Não preciso dizer, no entanto, o quanto essa doença é terrível. Você sabe o que acontece. Ela morreu. Tinha sido sempre bondosa comigo, então foi difícil dizer adeus. Quando exalou seu último suspiro, eu soube que não poderia fazer tudo o que precisava ser feito para uma mulher do porte dela. Lavei seu corpo sujo e desidratado com água quente perfumada com sândalo. Vesti-a com suas roupas de longevidade e enfiei seus escritos em nu shu nos seus bolsos, mangas e túnica. Ao contrário de um homem, ela não havia escrito para ser conhecida por cem gerações. Ela havia escrito para transmitir às amigas seus pensamentos e emoções, e elas haviam escrito para ela com o mesmo propósito. Se as circunstâncias tivessem sido outras, eu teria queimado tudo isso ao lado do seu túmulo. Mas, com o calor e a epidemia, os corpos tinham que ser enterrados rapidamente, sem tempo para pensar em coisas como eng shui, nu shu ou dever filial. Tudo o que pude fazer foi certificar-me de que minha sogra tivesse o consolo das palavras de suas amigas para ler e cantar no outro mundo. Assim que terminei com ela, o corpo foi levado para um enterro rápido.
Minha sogra tinha vivido uma vida longa. Pude me alegrar por ela quanto a isso. E, como minha sogra tinha morrido, eu me tornei a chefe da família, embora meu marido ainda estivesse ausente. A gora as cunhadas teriam que se reportar a mim. Teriam que permanecer sob minhas boas graças para receber um bom tratamento. Com as concubinas mortas também, eu iria buscar uma harmonia maior, porque uma coisa estava muito clara: não haveria mais concubinas sob este teto.
Como as empregadas haviam percebido, a doença estava abandonando a nossa região. Abrimos as portas e avaliamos a situação. Na nossa casa, havíamos perdido minha sogra, meu terceiro cunhado, toda a família dele e as concubinas. Os Irmãos Dois e Quatro sobreviveram, bem como suas famílias. Na casa da minha própria família, mamãe e Baba morreram. É claro que lamentei não ter passado mais tempo com eles na minha última visita, mas Baba e eu nos havíamos distanciado depois que tive os pés amarrados, e as coisas nunca mais haviam sido as mesmas com mamãe depois da nossa briga por causa das verdades que ela ocultara sobre Flor da Neve. Como uma filha casada, minha única obrigação era guardar luto de um ano pelos meus pais. Tentei honrar a minha mãe macaco pelo que ela havia feito por mim, mas não fiquei com o coração partido de tristeza.
No cômputo geral, tivemos sorte. Tio Lu e eu não trocamos nenhuma palavra. Isso não teria sido apropriado. Mas, quando ele saiu do quarto, não era mais um tio benevolente vivendo seus dias de aposentadoria na ociosidade. Ele instruiu o meu filho com tanta intensidade, foco e dedicação que nunca mais tivemos que contratar um tutor de fora. Meu filho nunca descuidou dos estudos, sabendo que a noite do seu casamento e o dia em que o seu nome aparecesse na lista de ouro do imperador seriam os mais gloriosos de sua vida. Na primeira, ele estaria cumprindo o seu dever de filho dedicado; no segundo, ele saltaria da obscuridade da nossa humilde região para uma tal fama que o tornaria conhecido em toda a China.
Mas antes que tudo isso acontecesse, meu marido voltou para casa. Não posso explicar o alívio que senti quando vi o seu palanquim aparecer na estrada principal, seguido de uma procissão de carros de boi carregados com sacas de sal e outras mercadorias.
Todas as coisas pelas quais tinha me preocupado e chorado não iriam me acontecer - pelo menos por enquanto. Fui tomada da mesma felicidade que tomou conta de todas as mulheres de Tongkou quando nossos homens começaram a descarregar as mercadorias. Nós todas choramos, desafogando o peso, o medo e a tristeza que tínhamos carregado no peito. Para mim - para todas nós - meu marido era o primeiro bom sinal que víamos em muitos meses.
O sal foi vendido em toda a região para pessoas desesperadas mas gratas. A extravagância dessas vendas terminou com todas as nossas preocupações financeiras. Pagamos nossos impostos. Resgatamos as terras que havíamos vendido. A família Lu recuperou seu status e sua fortuna. A colheita daquele ano foi abundante, o que tornou o outono ainda mais festivo. Tendo passado por dias negros, não podíamos estar mais aliviados. Meu sogro contratou artesãos para virem a Tongkou e pintar painéis adicionais sob as abas do nosso telhado, para mostrar aos nossos vizinhos e a todos aqueles que visitassem a aldeia no futuro a nossa prosperidade e sorte. Eu poderia ir até lá fora hoje e contemplá-los: meu marido vestindo sua jaqueta e entrando no barco que o levaria rio abaixo, suas negociações com os comerciantes de Guilin, as mulheres da nossa casa usando vestidos vaporosos e bordando enquanto esperavam, e a volta triunfante do meu marido.
Tudo está pintado sob nosso telhado exatamente como aconteceu, exceto pelo retrato do meu sogro. No painel, ele está sentado numa cadeira de espaldar alto, contemplando os seus bens com uma expressão de orgulho, mas, na realidade, ele sentia saudades da esposa e não se importava mais com coisas mundanas. Ele morreu tranqüilamente um dia, caminhando pelas plantações. Nossa principal obrigação era dar a ele o melhor funeral que a região já tinha visto. Meu sogro foi deitado num caixão e colocado do lado de fora por cinco dias. Com o dinheiro que tínhamos ganho, contratamos uma banda de música para tocar dia e noite. Gente de toda a região veio curvar-se diante do caixão. Trouxeram de presente dinheiro dentro de envelopes brancos, estandartes de seda e rolos de papel decorados com a escrita dos homens elogiando o meu sogro. Todos os irmãos e suas esposas foram de joelhos até a beira do túmulo. O povo de Tongkou e outras pessoas das aldeias vizinhas seguiram atrás a pé. Nós éramos um rio branco em nossas roupas de luto, correndo pelo verde dos campos. A cada sete passos, todos se curvavam, encostando a testa no chão. O túmulo ficava a um quilômetro, então você pode imaginar quantas vezes paramos naquela estrada pedregosa.
Jovens e velhos exprimiam a sua dor, enquanto a banda soava seus clarins, trinava suas flautas, vibrava seus pratos e batia seus tambores. Como filho mais velho, meu marido queimou dinheiro de papel e soltou fogos. Os homens cantaram; as mulheres cantaram. Meu marido tinha contratado também diversos monges que executaram ritos para ajudar a conduzir o meu sogro - e, esperávamos, todos aqueles que haviam morrido na epidemia - para uma existência feliz no mundo dos espíritos. Em seguida ao enterro, oferecemos um banquete para toda a aldeia. A medida que os convidados iam se retirando, os primos Lu mais importantes davam a cada pessoa uma moeda da sorte de papel, um pedaço de doce para tirar da boca o gosto amargo da morte e uma toalha para limpar o corpo. Essa foi a primeira semana de ritos. Ao todo, tivemos quarenta e nove dias de cerimônias, oferendas, banquetes, discursos, música e lágrimas. No final - embora meu marido e eu não tivéssemos terminado ainda o nosso período oficial de luto - todo mundo na região sabia que éramos, pelo menos no nome, os novos mestre e Lady Lu.
Nas montanhas
Eu ainda não sabia o que tinha acontecido com Flor da Neve e sua família durante a epidemia de tifo. Na minha preocupação com as crianças, meus deveres para com minha sogra e na felicidade pela volta do meu marido, seguidos da morte e do funeral do meu sogro, e finalmente por eu e meu marido nos termos tornado mestre e Lady Lu mais cedo do que talvez estivéssemos preparados, eu tinha - pela primeira vez na minha vida - esquecido a minha laotong. Então, ela me enviou uma carta.
Querida Lírio,
Soube que você está viva. Sinto muito pelos seus sogros. Fico mais triste ainda por sua mãe e seu Baba. Eu os amava muito.
Nós sobrevivemos à epidemia. Nos primeiros dias, tive um aborto - outra menina. Meu marido diz que foi melhor assim. Se eu tivesse levado a termo todos os filhos, eu teria quatro filhas - um desastre. Ainda assim, segurar nos braços três vezes um filho morto é demais.
Você sempre me diz para tentar de novo. Farei isso. Eu podia ser como você e ter três filhos homens. Como você diz, os filhos homens mostram o valor de uma mulher.
Muitas pessoas morreram aqui. Eu poderia dizer que as coisas estão mais calmas agora, mas minha sogra está viva. Ela fala mal de mim todo dia, envenenando o meu marido contra mim.
Quero convidar você para vir me visitar. Meu portão não se compara com o seu, mas quero deixar para trás os nossos problemas. Se você me ama, por favor, venha. Quero estar com você antes de iniciarmos o processo de bandagem dos pés de nossas filhas. Temos muito o que conversar sobre isso.
Flor da Neve
Com minha sogra no outro mundo, eu pensava constantemente no que ela me havia dito sobre o dever de uma esposa: "Obedeça, obedeça, obedeça, depois faça o que quiser." Sem os olhos vigilantes da minha sogra, eu podia finalmente ver Flor da Neve abertamente. Meu marido tinha diversas objeções: nossos filhos tinham agora onze, oito e um ano e meio, nossa filha tinha acabado de completar seis anos, e ele gostava de me ver em casa. Passei diversos dias acalmando os seus receios. Eu cantava para acalmar sua mente. Estabelecia projetos para cada uma das crianças, o que tranqüilizava o seu coração de pai. Eu preparava todos os seus pratos favoritos. Lavava e massageava os pés dele toda noite quando ele voltava do campo. Atendia à sua área abaixo da cintura. Ele ainda não queria que eu fosse, e eu bem que gostaria de ter obedecido.
No vigésimo oitavo dia do décimo mês, vesti uma túnica de seda cor de lavanda que eu tinha bordado com um desenho de crisântemo apropriado para o outono. Eu achava que as únicas roupas que jamais usaria seriam as que eu tinha feito durante os meus dias de cabelo preso. Eu não tinha calculado que minha sogra fosse morrer e deixar para trás rolos de tecidos, nem que meu marido ficaria tão rico que eu poderia comprar quantidades ilimitadas da melhor seda Uzhou. Mas, sabendo que eu ia visitar Flor da Neve e me lembrando de que ela havia usado minhas roupas quando éramos meninas, não levei mais nada para as três noites que passaria fora.
O palanquim me deixou diante da casa de Flor da Neve. Ela estava me esperando sentada na plataforma do lado de fora da casa, usando túnica, calça, avental e um pano na cabeça, de um índigo sujo, usado e mal tingido e de algodão branco. Nós não entramos imediatamente. Flor da Neve estava feliz em ter-me ao seu lado ali fora, no ar fresco da tarde. Enquanto ela conversava animadamente, vi claramente pela primeira vez a panela gigantesca onde as carcaças de porco eram fervidas para remover os pêlos e soltar a pele. Dentro de um pequeno anexo, pude ver a carne pendurada em ganchos. O cheiro revirou-me o estômago. O pior de tudo, no entanto, foi a porca com seus filhotes que ficavam vindo até a plataforma em busca de comida. Depois que Flor da Neve e eu acabamos de almoçar arroz e verduras, ela pegou nossas tigelas e colocou no chão para que a porca e seus filhotes pudessem comer as sobras.
Quando vimos o açougueiro voltando para casa - empurrando uma carroça com quatro cestas, cada uma contendo um porco estendido ao comprido de barriga para baixo -, subimos para o aposento do andar de cima, onde a filha de Flor da Neve estava bordando e sua sogra limpando algodão. O aposento era úmido e triste. A janela de treliça de Flor da Neve era ainda menor e menos enfeitada do que a da casa da minha família, embora eu pudesse ver através dela a minha janela em Tongkou. Nem ali em cima conseguíamos escapar do cheiro de porco.
Nós nos sentamos e falamos do que estava mais presente em nossas mentes - nossas filhas.
- Você já pensou quando devemos começar a bandagem dos pés delas? - Flor da Neve perguntou.
O correto seria começar naquele ano, mas, pela pergunta de Flor da Neve, tive esperança de que ela estivesse pensando o mesmo que eu.
- Nossas mães esperaram até que tivéssemos sete anos, e nós temos sido felizes juntas desde então - respondi com cuidado.
Flor da Neve abriu um sorriso de felicidade.
- Foi justamente isso que pensei. Nossos oito atributos combinavam perfeitamente. Nós não deveríamos combinar os oito atributos das nossas filhas entre elas e também com os nossos o melhor que pudermos? Elas poderiam iniciar sua bandagem no mesmo dia e com a mesma idade que nós.
Olhei para a filha de Flor da Neve. Lua de Primavera tinha a beleza da mãe naquela idade - uma pele de seda e cabelos pretos e macios -, mas seu jeito parecia resignado, ali sentada com a cabeça baixa, atenta ao seu bordado, tentando não ouvir o que dizíamos a respeito do seu destino.
- Elas serão como um par de marrecos - disse eu, aliviada por termos chegado tão facilmente a um acordo, embora eu tenha certeza de que ambas estávamos esperançosas de que nossos atributos em comum pudessem compensar o fato de que os oito atributos das meninas não combinassem tanto.
Flor da Neve teve muita sorte em ter tido Lua de Primavera, senão ela teria ficado sozinha o dia inteiro com a sogra. Deixe-me dizer o seguinte: aquela mulher ainda era tão implicante e mesquinha como quando a conheci. Ela só tinha um refrão: "Seu filho mais velho não é melhor que uma menina. Ele é um fracote. Como ele vai poder um dia ter força para matar um porco?" Tive um pensamento impróprio de Lady Lu: Por que os espíritos não a haviam levado durante a epidemia?
Nosso jantar trouxe de volta sabores da minha infância, antes que começassem a chegar os presentes do meu dote - vagens em conserva, pés de porco com molho de pimenta, abóbora frita e arroz vermelho. Enquanto estive em Jintian, cada refeição era a mesma no sentido de que sempre comíamos alguma parte do porco. Gordura de porco com feijão, orelhas de porco no pote de barro, intestinos de Porco, pênis de porco frito com alho e pimenta. Flor da Neve não comia nada disso, apenas legumes e arroz.
Depois do jantar, sua sogra retirou-se para o quarto. Embora a lição diga que duas velhas iguais devem dividir uma cama quando estão de visita - querendo dizer que o marido dorme em outro lugar -, o açougueiro anunciou que não ia mudar de quarto. A desculpa dele? "Não existe nada pior do que um coração de mulher." Esse era um velho ditado e provavelmente verdadeiro, mas não era uma coisa simpática para se dizer a Lady Lu. Entretanto, a casa era dele e nós tínhamos que fazer o que ele dissesse.
Flor da Neve levou-me de volta para o aposento das mulheres, onde ela fizera uma cama com algumas de suas colchas, já bem usadas, mas limpas, do enxoval. Sobre a cômoda, ela colocou uma vasilha com água morna para eu lavar o rosto. Ah, como eu queria molhar um pano nessa água e limpar todas as preocupações do rosto da minha laotong. Enquanto eu pensava nisso, ela trouxe uma roupa quase idêntica à dela - quase, porque me lembro de quando ela a costurou usando uma das peças do enxoval da mãe. Flor da Neve inclinou-se, me deu um beijo no rosto e murmurou no meu ouvido:
- Amanhã teremos o dia inteiro juntas. Vou mostrar-lhe o meu bordado e o que escrevi no nosso leque. Vamos conversar e recordar. - Então ela me deixou sozinha.
Soprei a lanterna e me deitei. A lua estava quase cheia, e a luz azul que entrava pela janela de treliça me transportou para muitos anos antes. Enterrei o rosto nas dobras onde o perfume de Flor da Neve se conservava tão fresco e delicado quanto era nos nossos anos de cabelo preso. A lembrança de gemidos de prazer me encheu os ouvidos. Sozinha naquele quarto escuro, enrubesci pensando em coisas que estariam melhor esquecidas. Mas os sons não desapareceram. Ergui a cabeça. Os ruídos não estavam na minha cabeça, mas vinham do quarto de Flor da Neve. A minha laotong e o marido estavam fazendo coisas de cama! A minha laotong podia ter-se tornado vegetariana, mas ela não era a esposa Wang da história. Cobri os ouvidos e tentei dormir, mas foi difícil. A minha vida afortunada tinha-me tornado impaciente e intolerante. A natureza poluída e poluidora daquele lugar e das pessoas que viviam lá ofendia os meus sentidos, a minha carne, a minha alma.
Na manhã seguinte, o açougueiro saiu e a mãe dele voltou para o quarto. Ajudei Flor da Neve a lavar e secar a louça, apanhar lenha, tirar água do poço, fatiar os legumes para o almoço, pegar carne no barracão onde ficavam pendurados os porcos e cuidar da filha. Depois de fazer tudo isso, Flor da Neve pôs água para esquentar para o nosso banho. Ela carregou a chaleira até o aposento das mulheres e fechou a porta. Nunca tínhamos tido nenhuma inibição. Por que teríamos agora? O ar naquela pequena casa era surpreendentemente quente, embora já estivéssemos no décimo mês, mas minha pele ficou arrepiada sob o toque do pano úmido passado por Flor da Neve.
Mas como posso dizer isso sem soar como um marido? Quando olhei para ela, vi que sua pele clara - sempre tão linda - tinha começado a engrossar e escurecer. Suas mãos - sempre tão macias - estavam ásperas. Tinha rugas sobre os lábios e nos cantos dos olhos. Seu cabelo, preso para trás formando um coque na nuca, estava entremeado de fios prateados. Flor da Neve tinha a minha idade - trinta e dois anos. As mulheres da nossa região normalmente não vivem além dos quarenta anos, mas eu tinha acabado de ver a minha sogra partir para o outro mundo, e ela ainda estava bem bonita para uma mulher que tinha alcançado a incrível idade de cinqüenta e um anos.
Naquela noite, mais porco para o jantar.
Não percebi na época, mas o mundo exterior - aquele mundo tumultuado dos homens - estava entrando na minha vida e na de Flor da Neve. Durante minha segunda noite em sua casa, fomos acordados por sons terríveis. Nós nos reunimos na sala principal e ficamos todos juntos, até o açougueiro, aterrorizados. Fumaça invadiu a sala. Uma casa - talvez uma aldeia inteira - estava pegando fogo em algum lugar. Nossas roupas ficaram cobertas de pó e cinzas. Ruídos de metal e de patas de cavalos ressoaram em nossas cabeças. Na escuridão da noite, não fazíamos idéia do que estava acontecendo. Era uma catástrofe numa única aldeia ou algo bem pior?
Só percebemos que estava para acontecer uma grande calamidade quando as pessoas que moravam em aldeias atrás de nós começaram a fugir, abandonando suas fazendas e buscando proteção nas montanhas. Da janela de Flor da Neve, na manhã seguinte, nós os vimos - homens, mulheres e crianças - em carroças puxadas a mão ou em carros de boi, a pé ou a cavalo. O açougueiro correu até a extremidade da aldeia e gritou para a corrente de refugiados:
- O que aconteceu? É a guerra? Vozes gritaram de volta:
- O imperador mandou um recado para a cidade de Yongming dizendo que o nosso governo tem que agir contra os Taiping!
- Tropas imperiais chegaram para expulsar os rebeldes!
- Há lutas por toda parte!
O açougueiro fez uma concha com a mão e gritou:
- O que devemos fazer?
- Fugir!
- Os combates vão chegar aqui logo, logo!
Fiquei petrificada, assombrada e morta de medo. Por que meu marido não tinha vindo me buscar? Repreendi a mim mesma por ter escolhido esta hora - depois de todos esses anos - para visitar Flor da Neve. Mas o destino é assim mesmo. Você faz escolhas que são boas e sólidas, mas os deuses têm outros planos para você.
Ajudei Flor da Neve a arrumar malas para ela e as crianças. Fomos para a cozinha e juntamos um saco de arroz, chá e aguardente para beber e tratar ferimentos. Finalmente, enrolamos quatro das colchas do enxoval de Flor da Neve em embrulhos bem apertados e as colocamos ao lado da porta. Quando tudo estava pronto, vesti o meu traje de seda de viagem, fui para cima da plataforma do lado de fora e esperei pelo meu marido, mas ele não veio. Olhei na direção da estrada para Tongkou. Uma fila de pessoas também estava saindo de lá, só que, em vez de se dirigir para as montanhas atrás da aldeia, elas estavam atravessando as plantações, indo na direção de Yongming. As duas fileiras de pessoas - uma indo para as montanhas, outra na direção de Yongming - me confundiram. Flor da Neve não dissera sempre que as montanhas eram os braços que nos envolviam? Se era assim, por que a gente de Tongkou estava indo na direção oposta?
No final da tarde, vi um palanquim sair do meio do grupo que estava deixando Tongkou e virar na direção de Jintian. Eu sabia que ele estava vindo me buscar, mas o açougueiro recusou-se a esperar.
- Está na hora de ir! - berrou.
Eu quis ficar e esperar pela minha família. O açougueiro não deixou.
- Então vou ao encontro do palanquim - disse eu. Tantas vezes, sentada na minha janela, eu tinha imaginado caminhar até ali. Agora eu não podia ir ao encontro da minha família?
O açougueiro fez um gesto no ar para me impedira dizer mais uma palavra.
- Muitos homens estão vindo. Você sabe o que eles farão com uma mulher sozinha? Você sabe o que a sua família fará comigo se alguma coisa acontecer com você?
-Mas...
- Lírio - Flor da Neve interveio -, venha conosco. Ficaremos fora algumas horas, depois mandaremos você para junto da sua família. É melhor sermos precavidos.
O açougueiro ajudou a mulher, os filhos menores e a mim a subirmos na carroça. Quando ele e o filho mais velho começaram a nos empurrar, olhei para os campos atrás de Jintian. Chamas e fumaça erguiam-se no ar.
Flor da Neve ficava o tempo todo dando água ao marido e ao filho mais velho. Já estávamos no meio do outono, e quando o sol se pôs, o frio desceu sobre nós, mas o marido e o filho de Flor da Neve suavam como se estivessem no meio de um dia de verão. Sem ninguém pedir, Lua de Primavera saltou da carroça, levando o irmãozinho com ela. Ela carregou o menino no quadril, depois nas costas, finalmente, ela o pôs no chão, segurou a mão dele e manteve a outra na carroça.
O açougueiro assegurou à esposa e à mãe que iríamos parar em breve, mas não paramos. Fizemos parte de uma trilha de tristeza naquela noite. Na hora da mais completa escuridão, pouco antes do amanhecer, chegamos ao sopé da primeira montanha. O rosto do açougueiro retesou-se, suas veias cresceram, seus braços tremeram com o esforço de empurrar a carroça montanha acima. Finalmente, desistiu, caindo no chão atrás de nós. Flor da Neve deslizou até a beirada da carroça, pendurou as pernas para fora e então saltou. Ela olhou para mim. Olhei de volta para ela. O céu atrás de nós estava vermelho de fogo. Os sons trazidos pelo vento fizeram-me saltar da carroça. Flor da Neve e eu amarramos duas colchas cada uma nas costas. O açougueiro pendurou o saco de arroz no ombro e as crianças carregaram o máximo possível de mantimentos. Percebi uma coisa. Se só iríamos ficar fora por algumas horas, por que tínhamos levado tanta comida? Era possível que eu ficasse vários dias sem ver meu marido e meus filhos. Enquanto isso, ficaria ali, desabrigada, na companhia do açougueiro. Cobri o rosto com as mãos para me recompor. Eu não podia deixar que ele visse a minha fraqueza.
A pé, nós nos juntamos aos outros. Flor da Neve e eu demos o braço à mãe do açougueiro e a puxamos montanha acima. Ela nos puxava para baixo, mas isso era típico da sua personalidade de rato! Quando Buda quis que o rato espalhasse a sua palavra, a vil criatura tentou conseguir uma corrida grátis no cavalo. O cavalo sabiamente recusou, motivo pelo qual os dois signos nunca mais se entenderam. No entanto, naquela trilha terrível, naquela noite medonha, o que nós, dois cavalos, poderíamos fazer?
Os homens à nossa volta tinham nos rostos uma expressão sombria. Haviam deixado para trás suas casas e seu ganha-pão, e agora imaginavam se ao voltar só encontrariam um monte de cinzas. Os rostos das mulheres estavam manchados de lágrimas de medo e de dor por estarem andando mais em uma noite do que numa vida inteira desde que seus pés foram amarrados. As crianças não reclamavam. Estavam assustadas demais. Tínhamos apenas iniciado a nossa fuga.
Já no meio da tarde seguinte - e não havíamos parado nem uma vez -, a estrada se transformou numa trilha cada vez mais íngreme. Um excesso de imagens feriu nossos olhos. Um excesso de sons arranhou nossos ouvidos. Às vezes, passávamos por homens e mulheres idosos que haviam sentado para descansar e que nunca mais se levantariam. Na nossa região, eu não teria imaginado ver algum dia pais abandonados dessa maneira. Muitas vezes, ao passarmos, ouvimos súplicas, últimas palavras ditas para um filho ou uma filha, e repetidas como último alento: - Deixe-me aqui. Volte amanhã quando isso estiver terminado. - Ou então: - Continue andando. Salve os filhos. Lembre-se de erguer um altar para mim no Festival da Primavera. - Sempre que passávamos por alguém assim, eu pensava na minha mãe. Ela não teria podido fazer essa viagem tendo apenas sua bengala como apoio. Será que ela teria pedido para ser deixada para trás? Será que Baba a teria abandonado? E Irmão Mais Velho?
Meus pés doíam tanto quanto tinham doído durante o processo de bandagem, e a dor atingia as minhas pernas a cada passo. Porém, tive sorte no meio de tanto sofrimento. Vi mulheres da minha idade e até mais moças - mulheres nos seus anos de arroz-e-sal -, cujos pés haviam quebrado com o esforço da caminhada ou que se haviam partido em pedaços contra uma pedra. Do tornozelo para cima estavam perfeitas, mas estavam completamente aleijadas. Jaziam ali, sem se mover, apenas chorando, esperando morrer de sede, fome ou frio. Mas nós prosseguimos, sem olhar para trás, enterrando a vergonha em nossos corações vazios, ignorando o mais que podíamos os sons de dor e agonia.
Quando a segunda noite caiu e nosso mundo escureceu, o desalento se abateu sobre nós. Pertences foram abandonados. Pessoas se separaram de suas famílias. Maridos procuravam suas esposas. Mulheres chamavam pelos filhos. Estávamos no final do outono, a época em que começa a bandagem dos pés, então encontramos muitas meninas cujos ossos tinham quebrado recentemente e que tinham sido deixadas para trás, junto com comida, roupas, água, altares, peças de enxoval e tesouros de família. Também vimos garo-tinhos - terceiros, quartos ou quintos filhos - que imploravam ajuda a quem passasse. Mas como você pode ajudar os outros quando tem que continuar andando agarrada à mão do seu filho favorito enquanto seu marido segura firmemente a sua? Quando você teme pela sua vida, não pensa nos outros. Você só pensa nas pessoas que ama, e mesmo isso pode não ser suficiente.
Não havia sinos para nos informar as horas, mas estava escuro e estávamos exaustos. Andávamos havia mais de trinta e seis horas -sem descanso, sem comida e com apenas alguns goles de água. Começamos a ouvir gritos terríveis. Não conseguimos imaginar o que seria. A temperatura caiu. A nossa volta, folhas e galhos cobriam-se de geada. Flor da Neve vestia algodão e eu, seda. Nossas roupas não iriam proteger-nos do frio. Sob nossos sapatos, as pedras foram ficando escorregadias. Eu sabia que meus pés estavam sangrando, porque eles estavam estranhamente quentes. Ainda assim, continuamos andando. A mãe do açougueiro cambaleava entre nós. Ela era uma velha fraca, mas sua personalidade de rato a fazia querer sobreviver.
A trilha estreitou-se, não passando de trinta centímetros de largura. A nossa direita, a montanha era tão íngreme que tocava os nossos ombros enquanto subíamos em fila indiana. A esquerda, só havia escuridão. Não dava para ver o que havia lá embaixo. Mas na trilha à frente e atrás havia muitas mulheres de pés amarrados. Éramos como flores numa tempestade. Nossos pés não eram nossa única fraqueza. Os músculos de nossas pernas - que nunca haviam trabalhado tanto - doíam, tremiam, contraíam-se.
Durante uma hora, seguimos uma família - pai, mãe e três filhos - até a mulher escorregar numa pedra e cair no poço de escuridão abaixo de nós. O grito dela foi alto e longo, e terminou abruptamente. Havíamos ouvido esse tipo de morte a noite inteira. Dali em diante, passei a me agarrar com as duas mãos no mato, deixando que elas fossem feridas pelas pedras pontudas que se projetavam no desfiladeiro à minha direita. Eu faria qualquer coisa para não me tornar outro grito na noite.
Chegamos a uma clareira. As silhuetas das montanhas projetavam-se contra o céu, à nossa volta. Havia pequenas fogueiras acesas. Estávamos bem alto, entretanto, aquela depressão no terreno não permitia que os Taiping vissem o clarão das fogueiras, pelo menos esperávamos que não vissem. Descemos na direção da clareira.
Talvez por eu estar sem a minha família, só enxerguei rostos de crianças em volta das fogueiras. Elas tinham um olhar parado e vazio. Talvez tivessem perdido uma avó ou um avô. Talvez tivessem perdido uma mãe ou uma irmã. Estavam todas assustadas. Ninguém deveria ver uma criança naquelas condições.
Paramos quando Flor da Neve reconheceu três famílias de Jintian que haviam encontrado um lugar relativamente protegido sob uma grande árvore. Elas viram que o açougueiro tinha um saco de arroz nas costas e abriram espaço para nós junto ao fogo. Quando me sentei com os pés e as mãos perto das chamas, eles começaram a arder, não por causa do calor, mas por causa dos ossos e da carne congelados começando a descongelar.
Flor da Neve e eu esfregamos as mãos dos filhos dela. Eles choravam baixinho, até mesmo o menino mais velho. Pusemos os três bem juntinhos e os cobrimos com uma colcha. Flor da Neve e eu nos enfiamos sob outra colcha, enquanto a sogra pegou uma colcha só para ela. A última era para o açougueiro. Ele fez um sinal de que não queria. Puxou um dos homens de Jintian de lado, murmurou algumas palavras e balançou a cabeça. Então, ajoelhou-se diante de Flor da Neve.
- Vou buscar mais lenha - anunciou ele. Flor da Neve agarrou o seu braço.
- Não vá! Não nos abandone!
- Sem fogo não sobreviveremos à noite — disse ele. - Você não está sentindo? A neve está chegando. - Ele soltou o braço delicadamente dos dedos de Flor da Neve. - Nossos vizinhos cuidarão de vocês enquanto eu estiver longe. Não tenha medo. E - aqui ele baixou o tom de voz - se precisar, empurre essa gente para longe do fogo. Abra espaço para você e sua amiga. Você pode fazer isso.
E eu pensei, talvez ela não possa, mas não vou me deixar morrer aqui, longe da minha família.
Apesar de estarmos exaustas, o medo não nos deixou dormir nem mesmo fechar os olhos. E estávamos com fome e com sede. No nosso pequeno círculo em volta do fogo, as mulheres - que, soubemos depois, eram irmãs juradas pós-casamento - nos distraíram do medo entoando uma canção. É engraçado que embora a minha sogra fosse extremamente versada em nu shu - talvez exatamente por conhecer uma tal variedade de caracteres - cantar e declamar nunca foram coisas muito importantes para ela. Ela se interessava mais em compor uma carta perfeita ou um belo poema do que em explorar o caráter de diversão e consolo de uma canção. Por causa disso, minhas cunhadas e eu tínhamos esquecido muitas das velhas canções que havíamos aprendido na infância. De todo modo, a história contada aquela noite em forma de canção era familiar, mas eu não a ouvia desde a infância. Ela falava no povo Yao, em sua primeira pátria, e na sua luta corajosa pela independência.
- Nós pertencemos ao povo Yao - Lótus, uma mulher uns dez anos mais velha do que eu, começou. - Na Antigüidade, Gao Xin, um bondoso e benevolente imperador Han, estava sendo atacado por um general mau e ambicioso. Panhu, um cachorro vira-lata e indesejado, soube dos problemas do imperador e desafiou o general para uma batalha. Ele venceu e recebeu a mão de uma das filhas do imperador em casamento. Panhu ficou feliz, mas sua noiva ficou envergonhada. Ela não queria se casar com um cachorro. Mas esse era o seu dever, então ela e Panhu foram para as montanhas, onde ela deu à luz doze filhos, os primeiros Yao. Quando eles cresceram, construíram uma cidade chamada Qianjiadong, a Gruta das Mil Famílias.
A primeira parte da história terminou, e outra mulher, Salgueiro, continuou. Ao meu lado, Flor da Neve tremia. Será que ela estava recordando os nossos dias de filha, quando ouvíamos Irmã Mais Velha e suas irmãs juradas, ou então mamãe e titia contando as histórias das nossas origens?
- Poderia existir um lugar com tanta água e terra tão boa? -Salgueiro perguntou na canção. - Poderia haver lugar mais protegido, já que ele não podia ser visto de fora e tinha como único acesso um túnel cavernoso? Qianjiadong tinha muita magia para o povo Yao. Mas um paraíso desses não podia permanecer intocado para sempre.
Comecei a ouvir versos cantados por mulheres sentadas ao redor de outras fogueiras. Os homens deveriam ter interrompido o nosso canto, pois sem dúvida os rebeldes poderiam ouvir-nos. Mas a pureza das vozes das mulheres nos dava força e coragem.
Salgueiro continuou:
- Muitas gerações mais tarde, na dinastia Yuan, alguém do governo local, mais ousado em suas explorações, atravessou o túnel e encontrou o povo Yao. Todos usavam roupas magníficas. Todos estavam gordos por causa da riqueza da terra. Ao saber desse lugar maravilhoso, o imperador, ambicioso e ingrato, exigiu altos impostos do povo Yao.
Quando os primeiros flocos de neve atingiram nosso cabelo e nossos rostos, Flor da Neve me deu o braço e ergueu a voz para contar a parte seguinte da história:
- Por que devemos pagar? O povo Yao quis saber. - A voz dela vibrava com o frio. - No topo da montanha que bloqueava a sua aldeia dos intrusos, eles construíram um parapeito de pedra. O imperador enviou três cobradores de impostos à caverna para negociar. Eles não saíram de lá. O imperador mandou mais três...
As mulheres ao redor da fogueira juntaram-se a ela.
- Eles não saíram de lá.
- O imperador enviou um terceiro contingente. - A voz de Flor da Neve ganhou força. Eu nunca a tinha ouvido cantar daquele jeito. Sua voz flutuou, clara e linda, por sobre as montanhas. Se os rebeldes a tivessem ouvido, teriam fugido, temendo tratar-se de um espírito.
- Eles não saíram de lá - nós, mulheres, cantamos em resposta.
- O imperador mandou tropas. Houve uma luta sangrenta. Muitos Yao morreram, homens, mulheres e crianças. O que fazer? O Que fazer? O chefe tomou um chifre de búfalo e o dividiu em doze pedaços. Ele os distribuiu entre diferentes grupos e mandou que eles se espalhassem e vivessem.
- Que se espalhassem e vivessem - nós, mulheres, repetimos.
- Foi assim que o povo Yao se espalhou por vales e montanhas, nesta província e em outras - Flor da Neve concluiu.
Flor de Ameixeira, a mulher mais jovem do nosso grupo, terminou a história.
- Dizem que em quinhentos anos, o povo Yao, onde quer que esteja, irá entrar de novo naquela caverna, juntar os pedaços do chifre e reconstruir nosso lar encantado. Esse tempo irá chegar logo.
Já fazia muitos anos que eu tinha ouvido essa história e não sabia o que pensar. Os Yao tinham achado que estavam a salvo, ocultos atrás da montanha, do parapeito e da caverna secreta, mas não estavam. Então imaginei quem entraria primeiro na nossa clareira na montanha e o que aconteceria quando eles viessem. Os Taiping poderiam tentar conquistar-nos, enquanto que o Grande Exército Hunan poderia confundir-nos com rebeldes. De um jeito ou de outro, estaríamos enfrentando uma batalha perdida e seríamos iguais aos nossos antepassados? Algum dia poderíamos voltar para casa? Pensei nos Taiping, que - como o povo Yao - haviam se revoltado contra os altos impostos e se rebelado contra o sistema feudal. Eles teriam razão? Nós nos deveríamos juntar a eles? Estaríamos ofendendo nossos antepassados não fazendo isso?
Naquela noite, nenhum de nós dormiu.
Inverno
As quatro famílias de Jintian permaneceram juntas sob a proteção da grande árvore de galhos frondosos, mas a provação não terminou - nem após duas noites nem após uma semana. Ninguém se lembrava de ter enfrentado uma nevada pior naquela província. A temperatura caía a cada instante. Nossa respiração era uma nuvem de vapor que se desmanchava no ar da montanha. Estávamos sempre com fome. Cada família controlava a sua comida, sem saber ao certo quanto tempo iria ficar lá. Tosses, resfriados e dores de garganta varreram o acampamento. Homens, mulheres e crianças continuaram a morrer dessas moléstias e em decorrência das noites geladas.
Meus pés - e os da maioria das mulheres nestas montanhas -tinham ficado muito machucados durante nossa fuga. Não tínhamos privacidade, então éramos obrigadas a desamarrar, limpar e tornar a amarrar nossos pés na frente dos homens. E vencemos nosso embaraço com relação a outras funções corporais aprendendo a fazer nossas necessidades atrás de uma árvore ou na latrina comum, depois que ela foi cavada. Mas, ao contrário da maioria das mulheres lá em cima, eu estava sem a minha família. Sentia uma saudade desesperada do meu filho mais velho e dos meus outros filhos, preocupava-me constantemente com meu marido, seus irmãos, minhas cunhadas, seus filhos, até mesmo com as empregadas - sem saber se eles tinham conseguido chegar à cidade de Yongming.
Meus pés levaram quase um mês para melhorar o suficiente para que eu conseguisse caminhar sem que sangrassem. No início do décimo segundo mês lunar, decidi sair todos os dias à procura dos meus irmãos e suas famílias e de Irmã Mais Velha e sua família. Eu tinha esperança de que estivessem a salvo, mas como poderia localizá-los se éramos dez mil pessoas espalhadas pelas montanhas? Todo dia eu cobria os ombros com uma colcha e saía, sempre marcando o meu percurso, sabendo que, se não encontrasse o caminho de volta até Flor da Neve e sua família, eu certamente morreria.
Um dia - umas duas semanas depois de ter iniciado a minha busca - encontrei um grupo de pessoas da aldeia Getan amontoadas sob uma plataforma de pedra. Perguntei se conheciam Irmã Mais Velha.
- Sim, sim, conhecemos! - uma das mulheres respondeu.
- Nós nos separamos dela na primeira noite - sua amiga disse. - Se você a encontrar, diga a ela para vir ficar conosco. Podemos abrigar mais uma família.
Entretanto, outra - a que parecia ser a líder - me avisou que só tinham espaço para gente de Getan, para evitar que eu tivesse outra idéia.
- Compreendo - eu disse. - Mas, se a virem, podem dizer que estou procurando por ela? Sou irmã dela.
- Irmã dela? É você que é conhecida como Lady Lu?
- Sim - respondi, desanimada. Se elas achavam que eu tinha alguma coisa para dar a elas, estavam enganadas.
- Uns homens vieram procurá-la.
Meu estômago deu um salto ao ouvir isso.
- Quem eram eles? Meus irmãos?
As mulheres se entreolharam, depois olharam para mim, avaliando-me. A líder tornou a falar:
- Eles tiveram o cuidado de não dizer quem eram. Você sabe como são essas coisas. Um deles era o patrão. Eu diria que ele tinha uma bela figura. Seus sapatos e suas roupas eram de boa qualidade. Seu cabelo caía na testa.
Meu marido! Tinha que ser ele!
- O que foi que ele disse? Onde ele está agora? Como...
- Não sabemos, mas, se você é mesmo Lady Lu, saiba que tem um homem procurando por você. Não se preocupe. - A mulher me deu um tapinha na mão. - Ele disse que voltaria.
Mas por mais que procurasse, nunca mais ouvi ninguém falar nisso. Então acreditei que aquelas mulheres tinham usado sua amargura contra mim, mas, quando voltei ao lugar onde as havia encontrado, havia outro grupo de famílias sob a plataforma de pedra. Depois dessa descoberta, voltei para o meu acampamento sentindo um desespero profundo. Supostamente, eu era Lady Lu, mas olhando para mim ninguém saberia disso. Meu traje de seda com bordados de crisântemos estava sujo e rasgado, e meus sapatos estavam manchados de sangue e puídos de tanto eu andar na montanha. Eu só podia imaginar o que o sol, o vento e o frio estariam causando ao meu rosto. Agora, aos oitenta anos, posso olhar para trás e dizer com certeza que eu era uma mulher frívola e estúpida, capaz de pensar em futilidades quando a falta de comida e o frio implacável eram nossos verdadeiros inimigos.
O marido de Flor da Neve tornou-se um herói para o nosso pequeno grupo de pessoas. Por exercer uma profissão impura, ele fazia muitas coisas que precisavam ser feitas, sem reclamações e sem agradecimentos. Ele nasceu sob o signo do galo - bonito, crítico, agressivo e mortal, se necessário. Fazia parte de sua natureza buscar a sobrevivência na terra; ele sabia caçar, limpar um animal, cozinhá-lo numa fogueira e secar a pele para servir de agasalho. Ele era capaz de carregar fardos pesados de lenha e água. E nunca se cansava. Lá em cima, ele não era um impuro; era um guardião e um herói. Flor da Neve tinha orgulho dele por ser um líder, e eu me senti - me sinto - eternamente grata a ele por ter-me mantido viva.
Mas aquela mãe rato dele! Ela estava sempre espionando. Mesmo naquelas circunstâncias miseráveis, continuava a denunciar e a reclamar, mesmo a respeito das coisas mais insignificantes. Ela sempre se sentava o mais perto possível do fogo. Nunca largava a colcha que tinha recebido na primeira noite e, sempre que podia, pegava outra até que a pedíssemos de volta. Escondia comida nas mangas, tirando quando achava que não estávamos vendo para comer escondido. Você sempre ouve dizer que os ratos são apegados ao clã. Víamos isso todos os dias. Ela manipulava o filho o tempo todo, mas não precisava fazer isso. Ele fazia o que todo filho dedicado faria: obedecia. Então, quando a velha reclamava, dizendo que precisava de mais comida do que a nora, ele cuidava para que ela, e não a esposa, comesse. Sendo eu também uma filha dedicada, não podia ir contra essa lógica, então Flor da Neve e eu começamos a dividir a minha porção. Um dia, depois de termos esgotado o saco de arroz, a mãe do açougueiro disse que o filho mais velho não deveria comer o que o açougueiro caçasse.
- É precioso demais para se desperdiçar com alguém tão fraco -disse ela. - Quando ele morrer, todos nós ficaremos aliviados.
Olhei para o menino. Ele tinha onze anos, a mesma idade do meu filho mais velho. Ele olhou para a avó com os olhos fundos, patético demais para lutar por si mesmo. Com certeza Flor da Neve iria dizer alguma coisa em defesa dele. Afinal de contas, ele era o primeiro filho. Mas minha velha igual não amava o menino como deveria. Os olhos dela, mesmo naquele terrível momento em que ele estava sendo condenado a uma morte certa, não estavam nele, mas no seu segundo filho. Por mais inteligente, resistente e forte que fosse o segundo filho, eu não podia deixar que isso acontecesse com um filho mais velho. Isso ia contra todas as tradições. Como eu poderia responder aos meus antepassados quando me perguntassem como eu havia permitido que a criança morresse? Como eu iria saudar aquele pobre menino quando o encontrasse no outro mundo? Sendo o filho mais velho, ele merecia mais comida do que todos nós, incluindo o açougueiro. Então comecei a dividir a minha porção com Flor da Neve e seu filho. Quando o açougueiro percebeu o que estava acontecendo, ele bateu no menino e depois na esposa.
- Essa comida é para Lady Lu.
Antes que um deles pudesse responder, sua mãe rato se adiantou:
- Filho, por que dar comida para essa mulher? Ela é uma estranha. Temos que pensar no nosso próprio sangue: você, seu segundo filho e eu.
Nenhuma menção, é claro, ao primeiro filho ou a Lua de Primavera, que haviam sobrevivido até então com migalhas e que iam ficando cada vez mais fracos.
Mas dessa vez o açougueiro não cedeu à pressão da mãe.
- Lady Lu é nossa hóspede. Se eu a levar de volta viva, talvez haja uma recompensa.
- Dinheiro? - a mãe dele perguntou.
Uma pergunta típica de rato. Aquela mulher não conseguia esconder sua ganância.
- Há coisas que Lady Lu pode fazer por nós que vão além do dinheiro.
A velha apertou os olhos enquanto refletia sobre isso. Antes que ela pudesse falar, eu disse:
- Se vai haver uma recompensa, vou precisar de uma porção maior. Senão... - e aqui entortei o rosto numa expressão mimada que me lembrava de ter visto no rosto das concubinas do meu sogro
- vou dizer que não encontrei nenhuma hospitalidade nesta família, apenas avareza, falta de consideração e vulgaridade.
Que risco tremendo assumi naquele dia! O açougueiro poderia ter-me expulsado do grupo. Contudo, apesar das queixas intermináveis da mãe, recebi a maior quantidade de comida, que pude dividir com Flor da Neve, seu filho mais velho e Lua de Primavera. Ah, como sentíamos fome! Nós nos tornamos pouco mais que cadáveres
- deitados imóveis o dia inteiro, com os olhos fechados, respirando de leve, tentando poupar todas as energias que nos restavam. Doenças consideradas leves em casa continuaram a reduzir os nossos números. Com pouca comida, sem energia, chá quente ou doses de ervas fortificantes, ninguém conseguia lutar contra essas moléstias.
Enquanto mais e mais pessoas iam morrendo, poucos de nós tinham forças para movimentar seus corpos.
O filho mais velho de Flor da Neve vinha para perto de mim sempre que podia. Ele não era amado, é verdade, mas não era estúpido como a família dele imaginava. Pensei no dia em que Flor da Neve e eu tínhamos ido ao Templo de Gupo para rezar por filhos homens e como desejamos que tivessem gostos elegantes e refinados. Eu podia ver que essas coisas estavam adormecidas no menino, embora ele não tivesse recebido nenhuma educação formal. Eu não podia ajudá-lo a aprender a escrita dos homens, mas podia repetir o que tinha ouvido tio Lu ensinar ao meu filho. "As cinco coisas que o povo chinês mais respeita são o céu, a terra, o imperador, os pais e os professores." Quando terminei com as lições de que me lembrava, contei a ele uma história didática relatada por mulheres da nossa região sobre um segundo filho que se torna mandarim e volta para a casa de sua família, mas mudei-a para que se encaixasse nas circunstâncias adversas do pobre menino.
- Um primeiro filho corre na beira do rio - comecei. - Ele é verde como bambu. Não conhece nada da vida. Mora com sua mãe, Baba, o irmão mais moço e a irmã mais moça. O irmão mais moço vai seguir a profissão do pai. A irmã mais velha vai se casar. Os olhos de mama e Baba nunca se detêm sobre seu filho mais velho. Quando o fazem, batem em sua cabeça até que ela fique inchada como um melão.
O menino se agitou do meu lado, movendo os olhos do fogo para o meu rosto enquanto eu falava.
- Um dia o menino vai até o lugar onde seu pai guarda o dinheiro. Ele pega um pouco de cash e esconde no bolso. Em seguida vai até onde a mãe guarda a comida. Ele enche uma bolsa com tudo o que consegue carregar. Então, sem um único adeus, sai de casa e atravessa os campos. Ele atravessa o rio a nado e anda mais um pouco. - Imaginei um lugar bem distante. - Ele caminha até Guilin. Você acha que essa viagem até as montanhas foi muito dura? Você acha que passar o inverno ao relento é duro? Isso não é nada. Lá na estrada, ele não tinha amigos, não tinha benfeitores, só tinha a roupa do corpo. Quando a comida e o dinheiro acabaram, ele sobreviveu mendigando.
O menino enrubesceu, não por causa do calor do fogo, mas de vergonha. Ele deve ter sabido que seus avós maternos tinham sido reduzidos a essa vida.
- Algumas pessoas dizem que isso é desprezível - continuei -, mas se for a única maneira de permanecer vivo, então exige uma grande coragem.
Do outro lado do fogo, a mãe do açougueiro resmungou:
- Você está contando errado a história.
Não dei atenção a ela. Eu conhecia muito bem a história, mas queria dar àquela criança algo em que ela pudesse se agarrar.
- O menino vagou pelas ruas de Guilin, procurando pessoas que estivessem vestidas como mandarins. Prestou atenção na maneira como eles falavam e formatou sua boca de modo a emitir os mesmos sons. Ele se sentou do lado de fora de casas de chá e tentou falar com os homens que entravam. Só quando a sua fala ficou refinada foi que alguém olhou para ele.
Aqui eu interrompi a história.
- Menino, existem pessoas bondosas no mundo. Você pode não acreditar nisso, mas já conheci algumas. Você deve estar sempre à procura de alguém que possa ser um benfeitor.
- Como você? - ele perguntou.
A avó dele fez um muxoxo. Mais uma vez eu a ignorei.
- O homem empregou o menino como criado - continuei. - Enquanto o menino o serviu, o benfeitor ensinou a ele tudo o que sabia. Quando não teve mais o que ensinar, contratou um tutor. Passados muitos anos, o menino, já um homem adulto, submeteu-se ao exame imperial e se tornou um mandarim, só que do nível mais baixo - acrescentei, acreditando que tal coisa fosse possível até para o filho de Flor da Neve.
- O mandarim retornou para a sua aldeia natal. O cachorro na frente da casa da família dele latiu três vezes em reconhecimento.
Mama e Baba saíram da casa. Eles não reconheceram o filho. O segundo irmão saiu. Ele não reconheceu o irmão. A irmã? Ela tinha se casado. Quando ele disse quem era, eles se curvaram diante dele e logo em seguida começaram a pedir favores."Precisamos de um poço novo", o pai disse. "Você pode contratar alguém para cavá-lo?" "Eu não tenho seda", sua mãe disse. "Você pode comprar alguns cortes para mim?" "Tomei conta dos nossos pais por muitos anos", o irmão mais moço disse. "Você vai me pagar pelo tempo que gastei?" O mandarim recordou o quanto eles o haviam tratado mal. Ele tornou a subir no seu palanquim e voltou para Guilin, onde se casou, teve muitos filhos e viveu uma vida muito feliz.
- Waaal Você conta essas histórias e destrói a vida já arruinada de um menino? - A velha cuspiu no fogo mais uma vez e olhou para mim com um ar zangado. - Você faz ele ter esperança quando não há esperança alguma? Por que faz isso?
Eu sabia a resposta, mas jamais a diria para aquela velha mulher rato. Não estávamos vivendo sob circunstâncias normais, eu sabia, mas longe da minha própria família eu precisava ter alguém para cuidar. Na minha cabeça, eu via o meu marido como sendo o benfei-tor deste menino. Por que não? Se Flor da Neve pôde me ajudar quando éramos meninas, a minha família não poderia mudar o futuro deste menino?
Em pouco tempo, os animais das montanhas ao nosso redor tornaram-se escassos, expulsos de suas casas pela presença de tanta gente ou mortos - como tantos de nós morreram -, em conseqüência daquele inverno cruel. Os homens - todos fazendeiros - enfraqueceram. Eles só tinham trazido o que conseguiram carregar; quando isso acabou, eles e suas famílias passaram fome. Muitos maridos pediram às esposas para descer a montanha em busca de suprimentos. Na nossa região, como você sabe, as mulheres não são atacadas em tempo de guerra, por isso são muitas vezes enviadas para buscar comida, água ou outros suprimentos durante rebeliões. Ferir uma mulher no decorrer de hostilidades sempre leva a uma escalada de violência, mas nem os Taiping nem os soldados do Grande Exército Hunan eram dali. Eles não conheciam os costumes do povo Yao. Além disso, como é que nós, mulheres, enfraquecidas pela desnutrição e frágeis por causa dos nossos pés atrofiados, iríamos descer a montanha no inverno e tornar a subir com provisões?
Então, um pequeno grupo de homens partiu, descendo cautelosamente a montanha, na esperança de achar comida e outros artigos de primeira necessidade nas aldeias que tínhamos abandonado. Apenas uns poucos voltaram e nos contaram que haviam visto os amigos decapitados, com as cabeças enfiadas em estacas. As novas viúvas, inconsoláveis com a notícia, cometeram suicídio: atirando-se do alto do precipício que tinham escalado com tanta dificuldade, engolindo carvão em brasa, cortando a própria garganta ou morrendo lentamente de fome. Aquelas que não escolheram esse caminho aumentaram sua desonra indo viver com outros homens ao redor de outras fogueiras. Dava a impressão de que nas montanhas algumas mulheres haviam esquecido as regras da viuvez. Mesmo que sejamos pobres, mesmo que sejamos jovens, mesmo que tenhamos filhos, é melhor morrer, permanecer fiéis aos nossos maridos e manter nossa virtude do que envergonhar a memória deles.
Separada dos meus filhos, eu observava os de Flor da Neve atentamente, vendo como haviam sido influenciados por ela, aprendendo mais sobre ela através deles, e - porque sentia uma falta desesperada dos meus - comparando os meus com os dela. Na minha casa, nosso filho mais velho já tinha assumido o seu lugar de direito e um futuro brilhante estendia-se diante dele. Nesta família, o filho mais velho de Flor da Neve tinha uma posição inferior até a dela. Ninguém o amava. Ele parecia à deriva. Entretanto, para mim, ele era o mais parecido com a minha laotong. Ele era doce e delicado, talvez por isso ela tivesse se afastado dele com o coração tão empedernido.
O meu segundo filho era um menino bom e inteligente, mas ele não tinha a curiosidade do meu primeiro filho. Eu o imaginava vivendo a vida toda conosco, casando-se, gerando filhos e trabalhando para o irmão mais velho. O segundo filho de Flor da Neve, por outro lado, era a luz daquela família. Ele tinha o corpo do pai, baixo e robusto, com braços e pernas fortes. A criança nunca demonstrava-medo, nunca tremia de frio, nunca chorava de fome. Ele seguia o pai como uma sombra, indo até nas expedições de caça. Ele devia ajudar de alguma maneira, senão o açougueiro não teria permitido que fosse. Quando voltavam com a carcaça de um animal, o menino se agachava ao lado do seu Baba, aprendendo como preparar a carne. Essa semelhança dele com o pai me esclareceu muita coisa acerca de Flor da Neve. O marido dela podia ser rude, fedorento e inferior à minha velha igual, mas o amor que ela dedicava ao menino me fez compreender que ela também gostava muito do marido.
O rosto e o jeito de Lua de Primavera eram inteiramente diferentes dos de minha filha. Jade tinha as feições um tanto brutas da minha família, razão pela qual eu era tão dura com ela. Como os lucros decorrentes do comércio de sal iriam proporcionar-lhe um dote generoso, ela poderia fazer um bom casamento. Eu achava que Jade daria uma boa esposa, mas Lua de Primavera iria tornar-se uma esposa extraordinária se pudesse ter a chance que eu tive.
Todos eles me faziam sentir saudades da minha família.
Eu estava solitária e amedrontada, mas isso era amenizado pelas noites passadas com Flor da Neve. Mas como posso explicar isso? Mesmo ali, naquelas circunstâncias, com tanta gente em volta, o açougueiro queria fazer coisa de cama com a minha laotong. No espaço frio e desprotegido ao lado da fogueira, eles faziam aquilo debaixo da colcha. O resto de nós desviava os olhos, mas não dava para tapar os ouvidos. Felizmente ele era silencioso, soltava apenas um ou dois grunhidos, mas algumas vezes ouvi suspiros de prazer-não do açougueiro, mas da minha laotong. Eu não compreendia isso. Depois que aquilo terminava, Flor da Neve vinha para perto de mim e me abraçava como quando éramos meninas. Eu sentia cheiro de sexo nela, mas, com as temperaturas congelantes, ficava feliz com seu calor. Sem o corpo dela ao lado do meu, eu teria sido apenas mais uma mulher que morreu durante a noite.
Naturalmente, com todo aquele negócio de cama, Flor da Neve engravidou de novo, embora eu tivesse esperança de que, em decorrência do frio, das dificuldades, da fome, a sua menstruação tivesse simplesmente ficado suspensa como a minha. Ela nem quis ouvir essa conversa.
- Eu já fiquei grávida antes - disse ela. - Conheço os sinais.
- Então eu lhe desejo outro filho homem.
- Desta vez - os olhos dela brilharam com uma mistura de felicidade e certeza - eu vou ter um.
- Sem dúvida, filhos homens são sempre uma bênção. Você deveria orgulhar-se do seu filho mais velho.
- Sim - ela respondeu sem muito entusiasmo, depois acrescentou -, tenho visto vocês dois juntos. Você gosta dele. Você gosta dele o bastante para aceitá-lo como genro?
Eu gostava do menino, mas essa proposta estava fora de questão.
- Não pode haver nenhuma aliança homem-mulher entre nossas famílias - disse eu. Eu devia muito a Flor da Neve por ter-me tornado o que era. Eu queria fazer o mesmo por Lua de Primavera, mas jamais permitiria que minha filha descesse tanto. - Uma aliança do coração entre nossas filhas é muito mais importante, você não acha?
- É claro que você tem razão - Flor da Neve respondeu, sem se dar conta, acho, dos meus verdadeiros sentimentos. - Quando voltarmos para casa, vamos nos reunir com titia Wang como havíamos planejado. Assim que os pés das meninas assumirem suas novas formas, elas irão ao Templo de Gupo assinar o contrato, comprar um leque para escrever a história de suas vidas juntas e comer na barraca de taro.
- Você e eu deveríamos nos encontrar em Shexia também. Se formos discretas, poderemos vigiá-las.
- Você quer espioná-las? - Flor da Neve perguntou, incrédula. Voando eu sorri, ela deu uma risada. - Sempre pensei que a malvada fosse eu, mas veja quem está tramando agora.
Apesar das privações daquelas semanas e meses, nossos planos Para nossas filhas nos deram esperança e tentávamos recordar o que havia de bom na vida a cada dia que passava. Comemoramos o quinto aniversário do filho mais moço de Flor da Neve. Ele era um garotinho tão engraçado que nos distraíamos vendo-o junto com o pai. Eles agiam como dois porcos juntos - fuçando, catando comida, atirando seus corpos robustos um contra o outro, ambos sujos de terra, ambos se deliciando na companhia um do outro. O filho mais velho ficava satisfeito na companhia das mulheres. Por causa do meu interesse pelo menino, Flor da Neve começou a prestar atenção nele também. Debaixo dos olhos dela, ele ria com facilidade. Na expressão dele, eu via o rosto da mãe naquela idade - doce, inocente, inteligente. Flor da Neve olhava para ele não exatamente com amor de mãe, mas como se gostasse do que estava vendo mais do que havia imaginado antes.
Um dia, quando eu estava ensinando uma canção para ele, ela disse:
- Ele não devia aprender nossas canções femininas. Nós aprendemos alguns poemas quando éramos meninas...
- Por causa de sua mãe...
- E tenho certeza de que você aprendeu outros na casa do seu marido.
- É verdade.
Ficamos todas animadas e começamos a listar os títulos dos poemas que sabíamos.
Flor da Neve segurou a mão do filho.
- Vamos ensinar a ele o que pudermos para que ele seja um homem educado.
Eu sabia que não seria muito, porque éramos ambas sem instrução, mas aquele menino era como um cogumelo seco mergulhado em água fervente. Ele absorvia tudo o que ensinávamos. Em pouco tempo, ele era capaz de recitar o poema da dinastia Tang, que Flor da Neve e eu tanto gostávamos quando éramos crianças, e trechos inteiros do livro clássico para meninos que eu tinha decorado para ajudar meu filho em suas lições. Pela primeira vez, vi um orgulho verdadeiro no rosto de Flor da Neve. O resto da família não sentia o mesmo, mas pela primeira vez Flor da Neve não se acovardou nem cedeu quando mandaram que parássemos. Ela se lembrara da garotinha que costumava abrir a cortina do palanquim para que pudéssemos olhar para fora.
Aqueles dias - frios e desconfortáveis e tão cheios de medo e dificuldades - foram de certa forma maravilhosos, porque Flor da Neve estava feliz como fazia anos eu não a via. Grávida, sem muita comida, tinha um brilho interior como se tivesse um lampião aceso dentro de si. Ela desfrutava a companhia das três irmãs juradas de Jintian e estava radiante por não ser obrigada a ficar trancada dentro de casa com a sogra. Sentada junto daquelas mulheres, Flor da Neve cantava canções que havia muito tempo eu não ouvia. Ali ao ar livre, longe da casa escura e miserável em que morava, seu espírito de cavalo estava livre.
Então, numa noite gelada depois de estarmos lá por dez semanas, o segundo filho de Flor da Neve foi dormir enroscado perto do fogo e nunca mais acordou. Não sei o que o matou - doença, fome ou frio -, mas de manhãzinha vimos que seu corpo estava coberto de geada e seu rosto, azul. Os gritos de Flor da Neve ecoaram pelas montanhas, mas o açougueiro foi quem mais sofreu. Ele ergueu o menino nos braços, com as lágrimas escorrendo, formando sulcos na sujeira que cobria-lhe o rosto. Ele não pôde ser consolado. Recusou-se a largar o menino. Não deu ouvidos nem à esposa nem à mãe. Escondeu o rosto no corpo do filho, para não ouvir as súplicas delas. Mesmo quando os fazendeiros do nosso grupo se sentaram em volta dele, protegendo-o da nossa visão e consolando-o baixinho, ele não cedeu. De vez em quando, erguia o rosto e gritava para o céu:
- Como posso ter perdido o meu filho precioso? - A pergunta desesperada do açougueiro aparecia em muitas histórias e canções nu shu. "Olhei para as outras mulheres sentadas em volta do fogo e vi sua indagação: Um homem - este açougueiro - podia sentir o mesmo desespero e a mesma tristeza que nós mulheres sentíamos quando perdíamos um filho?
Ele ficou sentado ali durante dois dias, enquanto o resto de nós entoava canções de luto. No terceiro dia, ele se levantou, segurou o filho junto ao peito, afastou-se da nossa fogueira, atravessou os agrupamentos de famílias e entrou na floresta, onde ele e o filho tinham se aventurado tantas vezes juntos. Voltou dois dias depois, de mãos vazias. Quando Flor da Neve perguntou onde o filho estava enterrado, o açougueiro bateu nela com tanta ferocidade que ela voou uns dois metros e caiu na neve com um estrondo.
Ele bateu tanto nela que a fez abortar com uma violenta hemorragia de sangue preto que manchou as colinas geladas do nosso acampamento. Ela não estava muito adiantada, de modo que nunca achamos um feto, mas o açougueiro estava convencido de que tinha livrado o mundo de outra menina. - Existe algo de diabólico no coração de uma mulher - repetia ele sem parar, como se nenhuma de nós jamais tivesse ouvido esse ditado antes. Continuamos cuidando de Flor da Neve - tiramos sua calça, derretemos água para lavá-la, limpamos o sangue de suas coxas e retiramos o enchimento de uma das colchas do seu enxoval para estancar o líquido pútrido que continuava a escorrer do meio de suas pernas - e nunca erguemos os olhos nem a voz para ele.
Quando olho para trás, penso que foi um milagre Flor da Neve ter sobrevivido àquelas duas últimas semanas nas montanhas, enquanto aceitava passivamente uma surra atrás da outra. Seu corpo enfraquecido da perda de sangue causada pelo aborto. Seu corpo maltratado pelas surras diárias do marido. Por que não o impedi? Eu era Lady Lu. Eu o tinha obrigado a fazer o que eu queria antes. Por que não dessa vez? Porque eu era Lady Lu, não pude fazer mais. Ele era um homem fisicamente forte, que não hesitava em utilizar a força. Eu era uma mulher que, apesar do meu status, estava sozinha. Eu estava impotente. Ele sabia disso tão bem quanto eu.
Nos piores momentos da minha laotong, percebi o quanto precisava do meu marido. Para mim, grande parte da vida junto com ele tinha se resumido a deveres e aos papéis que pela tradição devíamos desempenhar. Lamentei todas as ocasiões em que não tinha sido a esposa que ele merecia. Jurei que, se conseguisse sair daquela montanha, eu me tornaria o tipo de mulher que poderia realmente vir a merecer o título de Lady Lu, e não seria apenas alguém que estava representando um papel. Desejei ardentemente isso, mas não antes de me revelar muito mais brutal e cruel do que o marido de Flor da Neve.
As mulheres sob nossa árvore continuaram a cuidar de Flor da Neve. Fazíamos curativos em seus cortes usando neve fervida para evitar potenciais infecções, cobrindo-os com panos feitos com pedaços de nossas próprias vestes. As mulheres quiseram fazer uma sopa para ela com o tutano dos animais que o açougueiro trazia para nos alimentar. Quando lembrei a elas que ela era vegetariana, nós nos revezamos em grupos de duas para percorrer a floresta em busca de cascas de árvore, ervas e raízes. Preparamos um caldo e demos para ela em colheradas. Cantávamos canções para consolá-la.
Contudo, nossas palavras e ações não lhe acalmaram a mente. Ela se recusava a dormir. Ficava sentada ao lado do fogo, com os joelhos encolhidos, os braços em volta deles. Seu corpo inteiro balançava num desespero dilacerante. Nenhuma de nós tinha roupas limpas, mas vínhamos tentando manter-nos arrumadas. Flor da Neve não se importou mais com isso. Ela deixou de lavar o rosto com punhados de neve e de limpar os dentes com a bainha da túnica. Seu cabelo pendia solto, fazendo-me lembrar da noite em que minha sogra caíra doente. Ela foi ficando cada vez mais parecida com Terceira Cunhada naquela mesma noite - ausente, com a mente cada vez mais delirante.
Chegou um momento em que Flor da Neve começou a se afastar do fogo todos os dias para vagar pelas montanhas cobertas de neve. Ela andava como uma sonâmbula, perdida, solta. Eu sempre a acompanhava, sem ser convidada, segurando seu braço, ambas cambaleando com nossos pés de lírio sobre as pedras geladas até a beira do precipício, onde ela gemia na direção do grande vazio, o som levado pelo forte vento norte.
Eu ficava aterrorizada, sempre pensando na nossa fuga horrível Para as montanhas e nos gritos apavorantes das mulheres quando se precipitavam para a morte. Flor da Neve não partilhava do meu nervosismo. Ela contemplava os gaviões voando por sobre os rochedos. Eu pensava em todas as vezes que Flor da Neve tinha falado em voar. Como teria sido fácil para ela dar um passo e se projetar no precipício. Mas nunca saí do lado dela, nunca larguei o seu braço.
Eu tentava conversar com ela sobre coisas que a trouxessem de volta para a terra. Eu dizia, por exemplo: "Você prefere conversar com madame Wang sobre nossas filhas ou prefere que eu converse?" Quando ela não respondia, eu tentava outra coisa: "Eu e você moramos tão perto uma da outra. Por que devemos esperar até as meninas se tornarem velhas iguais para se conhecerem? Vocês duas deviam vir passar um tempo comigo. Podemos amarrar os pés delas juntas. Aí elas terão a recordação desse tempo também." Ou então: "Veja aquela flor da neve. A primavera está chegando e em breve nós sairemos deste lugar." Durante dez dias, ela respondeu apenas por monossílabos.
Então, no décimo primeiro dia, ao se dirigir para a beirada do precipício, ela finalmente falou:
- Perdi cinco filhos, e meu marido me culpou por isso todas as vezes. Ele sempre usa os punhos para manifestar suas frustrações. E os punhos dele sempre buscam a mim. Eu costumava achar que ele estava zangado por eu ter ficado grávida de filhas. Mas agora, com o meu filho... Será que o que o meu marido sempre sentiu foi tristeza? - Ela fez uma pausa e inclinou a cabeça como se estivesse tentando raciocinar melhor. - De todo modo, ele precisa achar um alvo para os seus punhos - concluiu ela melancolicamente.
O que significava que essas surras vinham ocorrendo desde que ela fora morar permanentemente na casa do açougueiro. Embora os atos do seu marido fossem comuns e aceitos na nossa região, doeu-me saber que tinha ocultado isso de mim por tanto tempo. Eu achava que ela jamais tornaria a mentir para mim e que não teríamos mais segredos, mas não fiquei aborrecida com isso. O que senti foi culpa por ter ignorado os sinais da infelicidade da minha laotong por tanto tempo.
- Flor da Neve...
- Não, ouça. Você acha que o meu marido tem maldade em seu coração, mas ele não é um homem mau.
- Ele trata você pior que a um animal...
- Lírio - ela me advertiu -, ele é meu marido. - Então seus pensamentos voltaram-se para algo ainda mais sombrio. - Há muito que eu tenho desejado morrer, mas alguém está sempre por perto.
- Não diga uma coisa dessas.
Ela me ignorou.
- Você costuma pensar no destino? Eu penso nele todo dia. E se minha mãe não tivesse se casado com o meu pai? E se o meu pai não tivesse ficado viciado em ópio? E se os meus pais não tivessem me casado com um açougueiro? E se eu tivesse nascido homem? Eu poderia ter salvo a minha família? Ah, Lírio, eu me envergonho tanto das circunstâncias da minha vida diante de você...
-Eu nunca...
- Desde que você entrou na casa dos meus pais eu percebi a sua piedade. - Ela sacudiu a cabeça, impedindo-me de responder. - Não negue. Apenas ouça. - Ela parou por um momento antes de continuar: - Você olha para mim e acha que caí muito, mas o que aconteceu com a minha mãe foi muito pior. Quando eu era menina, me lembro de ouvi-la chorando dia e noite. Tenho certeza de que ela teve vontade de morrer, mas não quis me abandonar. Então, depois que fui para a casa do meu marido, ela não quis abandonar meu pai.
Vi para onde isso estava caminhando, então eu disse:
- Sua mãe nunca permitiu que seu coração ficasse amargurado. Ela nunca desistiu.
- Ela foi para a rua com meu pai. Nunca vou saber o que aconteceu com eles, mas tenho certeza de que ela só se permitiu morrer depois que ele se foi. Já faz doze anos. Estou sempre me perguntando se poderia tê-la ajudado. Ela poderia ter recorrido a mim? Vou responder da seguinte maneira: sonhei que me casaria e encontraria a felicidade longe da doença do meu pai e da tristeza da minha mãe. Eu não sabia que me tornaria uma mendiga na casa do meu marido.
Então aprendi como fazer o meu marido trazer para casa uma comida que eu pudesse comer. Sabe, Lírio, existem coisas que não nos informam acerca dos homens. Podemos fazê-los felizes se demonstrarmos prazer. E, sabe de uma coisa, é bom para nós também, quando deixamos isso acontecer.
Ela parecia uma daquelas mulheres velhas que estão sempre tentando assustar as meninas com esse tipo de conversa.
- Você não precisa mentir. Sou sua laotong. Você pode me contar a verdade.
Ela tirou os olhos das nuvens, e por um breve momento olhou para mim como se não me reconhecesse.
- Lírio - a voz dela soou gentil e compassiva -, você tem tudo, e no entanto não tem nada.
As palavras dela me feriram, mas não pude pensar nelas quando ela confessou:
- Meu marido e eu não seguimos as regras acerca da contaminação das mulheres após o parto. Nós dois queríamos mais filhos.
- Os filhos são o valor de uma mulher...
- Mas você viu o que aconteceu. Meninas demais entraram no meu corpo.
Para esse inegável problema, eu tinha uma resposta prática.
- Não era o destino delas viver - disse eu. - Fique agradecida, porque provavelmente havia alguma coisa errada com elas. Nós mulheres só podemos tentar outra vez...
- Ah, Lírio, quando você fala desse jeito a minha cabeça fica vazia. Só ouço o vento soprando entre as árvores. Você percebe como o chão quer se abrir sob meus pés? Você deve voltar agora. Deixe-me ficar com minha mãe...
Muitos anos tinham se passado desde que Flor da Neve perdera a primeira filha. Na época, eu não tinha entendido a sua dor. Mas, nessa altura, eu já havia experimentado mais das misérias da vida e via as coisas de forma diferente. Se é perfeitamente aceitável para uma viúva desfigurar-se ou cometer suicídio para poupar a família do marido, por que uma mãe não seria levada a cometer esse ato extremo pela morte de um filho ou filhos? Nós cuidamos deles. Nós os amamos. Tratamos deles quando ficam doentes. No caso de filhos homens, nós os preparamos para dar os primeiros passos no mundo dos homens. No caso de filhas, amarramos seus pés, en-sinamo-lhes nossa escrita secreta e as treinamos para serem boas esposas, noras e mães, para que elas saibam como se comportar nos aposentos do andar de cima de suas novas casas. Mas nenhuma mulher deveria viver mais que seus filhos. Isso vai contra a lei da natureza. Quando isso acontece, por que ela não teria vontade de saltar de um precipício, de se enforcar num galho de árvore ou de engolir veneno?
- Todo dia chego à mesma conclusão - Flor da Neve admitiu, enquanto contemplava o vale abaixo. - Mas então penso na sua tia. Lírio, pense como ela sofreu e como nos importamos pouco com o sofrimento dela.
Respondi com a verdade.
- Ela sofreu muito, mas acho que nós fomos um consolo para ela.
- Você lembra como Lua Linda era bonita? Lembra como ela foi elegante até na morte? Lembra quando sua tia voltou para casa e se debruçou sobre o corpo dela? Nós tínhamos ficado preocupadas com os sentimentos dela, então cobrimos o rosto de Lua Linda. Sua tia nunca mais viu a filha. Por que fomos tão cruéis?
Eu poderia ter dito que o cadáver de Lua Linda seria uma lembrança horrível demais para uma mãe. Mas em vez disso eu disse:
- Vamos visitar titia assim que pudermos. Ela ficará contente em nos ver.
- Você, talvez - Flor da Neve disse —, mas não eu. Eu a faço lembrar-se demais de si mesma. Mas fique sabendo de uma coisa. Ela me ensina todo dia a suportar. - Ela esticou o queixo para a frente, lançou um último olhar para as montanhas cobertas de névoa e disse: - Acho que devemos voltar. Estou vendo que você está com frio E, além disso, tem uma coisa que quero que você me ajude a screver. - Enfiou a mão dentro da túnica e tirou o nosso leque. – Eu o trouxe comigo. Tive medo de que os rebeldes pudessem queimar a minha casa, e ele estaria perdido. - Olhou para mim. Ela estava de volta agora. Deu um suspiro e sacudiu a cabeça. - Eu disse que nunca mais ia mentir para você. A verdade é que achei que íamos morrer aqui. Não quis que morrêssemos sem ele. Ela me puxou pelo braço.
- Afaste-se da beirada, Lírio. Fico assustada de ver você parada aí.
Voltamos para o acampamento, onde improvisamos tinta e um pincel. Tiramos do fogo duas achas de lenha e as deixamos esfriar; então raspamos as partes queimadas com uma pedra, guardando cuidadosamente o que conseguimos. Depois misturamos aquele carvão com água, onde fervemos algumas raízes. Não ficou tão preto e opaco como tinta, mas ia servir muito bem. Então afrouxamos a extremidade de uma cesta, extraímos um bambu e o apontamos o melhor que pudemos. Usamos isso como pincel. Nós nos revezamos, registrando na nossa linguagem secreta a nossa viagem até lá, a perda do garotinho de Flor da Neve e seu aborto, as noites frias e as bênçãos da amizade. Quando terminamos, Flor da Neve fechou delicadamente o leque e o enfiou de volta dentro da túnica.
Naquela noite, o açougueiro não bateu na minha laotong. Em vez disso, ele quis fazer coisa de cama. Depois, ela veio para perto de mim, enfiou-se debaixo da colcha, enroscou-se do meu lado e descansou a palma da mão no meu rosto. Ela estava cansada de tantas noites insones, e senti o corpo dela amolecer rapidamente. Antes de dormir, ela murmurou:
- Ele me ama do jeito que sabe. Tudo vai melhorar agora. Você vai ver. A disposição dele mudou. — E eu pensei, sim, até a próxima vez em que ele descontar a sua tristeza ou a sua raiva naquela pessoa amorosa ali do meu lado.
No dia seguinte, soubemos que já era seguro voltar à aldeia. Depois de três meses nas montanhas, eu gostaria de dizer que não vimos mais mortes. Mas não é verdade. Tivemos que passar por todos aqueles que tinham sido deixados para trás durante a fuga. Vimos homens, mulheres, crianças, bebês - todos em decomposição pela exposição ao tempo, desfigurados pelos animais e pela decomposição natural da carne. Ossos brilhavam ao sol. As roupas permitiam uma identificação imediata, e ouvimos muitos gritos de reconhecimento e remorso.
Como se tudo isso não bastasse, muitos de nós estávamos tão fracos que a morte era inevitável - agora, naquele último estágio, quando estávamos quase em casa. Foram mulheres, na maioria, que morreram descendo a montanha. Equilibrando-nos mal nos nossos pés de lírio, éramos mais pesadas em cima. Éramos empurradas para o abismo à nossa direita. Dessa vez, à luz do dia, não só ouvimos os gritos, mas vimos os braços das mulheres agitando-se inutilmente no ar. Um dia antes, eu teria me preocupado com Flor da Neve, mas o rosto dela estava firme e concentrado enquanto caminhava cuidadosamente pela trilha.
O açougueiro carregou a mãe nas costas. Uma vez, quando Flor da Neve hesitou, recuando ao ver uma mãe embrulhando os restos de um filho para levá-lo para casa e enterrá-lo adequadamente, ele parou, pôs a mãe no chão e segurou o cotovelo de Flor da Neve.
- Por favor, continue andando - implorou ele baixinho. - Logo chegaremos à nossa carroça. Você vai fazer o resto do caminho nela, até Jintian. - Como ela se recusasse a tirar os olhos da mãe e do filho, ele acrescentou: - Voltarei na primavera e levarei os ossos dele para casa. Prometo que o teremos perto de nós.
Flor da Neve endireitou os ombros e passou relutantemente pela mulher e seu pequeno embrulho.
A carroça não estava mais onde a havíamos deixado. Isto e tantas outras coisas que haviam sido abandonadas três meses antes haviam sido levadas, seja pelos rebeldes seja pelo Grande Exército ttunan. Mas, atraídos pelas nossas casas, nós nos esquecemos da dor, da fraqueza e da fome. Jintian estava aparentemente incólume. Ajudei a levar a mãe do açougueiro para dentro de casa e voltei para fora. Eu queria ir para casa. Eu tinha chegado tão longe que sabia que poderia caminhar as últimas poucas léguas até Tongkou, mas o açougueiro correu para contar ao meu marido que eu estava de volta e pedir que ele viesse me buscar.
Assim que ele saiu, Flor da Neve me segurou.
- Venha - disse ela. - Não temos muito tempo. - Ela me empurrou para dentro de casa, embora eu preferisse ficar vendo o açougueiro correr pela estrada na direção da minha aldeia. Quando chegamos lá em cima, ela disse: - Uma vez você me fez uma grande gentileza, ajudando-me a preparar o meu enxoval. Agora posso pagar uma pequena parte dessa dívida. - Ela abriu uma arca e tirou lá de dentro uma jaqueta azul-escuro com uma pala de seda azul-claro com um desenho de nuvem na frente. Eu me lembrava daquela pala de seda na jaqueta que Flor da Neve estava usando no dia em que nos conhecemos. Ela me ofereceu a jaqueta. - Eu ficaria honrada se você usasse isto para se reencontrar com o seu marido.
Vi a aparência horrível de Flor da Neve, mas não tinha pensado na minha própria aparência quando o meu marido me visse. Eu tinha usado a minha jaqueta de seda cor de lavanda com bordado de crisântemos durante três meses. Não só ela estava imunda e rasgada, mas, ao me olhar no espelho enquanto a água esquentava para eu me lavar, vi o resultado de ter vivido na lama e na neve por três meses, sob um sol inclemente e uma alta altitude no meu rosto.
Só tive tempo de lavar os lugares que ele ia ver ou cheirar primeiro - mãos, braços, rosto, pescoço, debaixo dos braços e o lugar entre minhas pernas. Flor da Neve fez o que pôde com meu cabelo, prendendo aquela maçaroca suja num coque e depois cobrindo-a com um lenço limpo. Assim que ela acabou de me ajudar a vestir a calça do seu enxoval, ouvimos barulho de patas de cavalo e de rodas de uma carroça se aproximando. Rapidamente, ela abotoou a túnica. Ficamos frente a frente. Ela pôs a palma da mão na pala de seda azul-clara do meu peito.
- Você está linda - disse ela.
Vi diante de mim a pessoa que eu mais amava no mundo. No entanto, eu estava incomodada pelo que ela havia dito antes de descermos a montanha sobre eu ter pena dela. Não queria partir sem me explicar.
- Nunca achei que você fosse - tentei encontrar uma forma mais delicada de me expressar, mas acabei desistindo - menos do que eu.
Ela sorriu. Meu coração bateu forte sob a mão dela.
- Você não disse nenhuma mentira.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ouvi a voz do meu marido me chamando:
- Lírio! Lírio! Lírio!
Então corri - sim, corri - pelas escadas, até lá fora. Quando o vi, caí de joelhos e encostei a cabeça em seus pés, de tão envergonhada que estava com a minha aparência e o meu cheiro. Ele me ergueu e me abraçou.
- Lírio, Lírio, Lírio... - Meu nome saiu abafado, enquanto ele me beijava, sem se importar com quem estivesse em volta.
- Dalang... - Eu nunca havia pronunciado o nome dele antes. Ele me segurou pelos ombros e me afastou para poder olhar para mim. Seus olhos estavam cheios de lágrimas; então ele me puxou de volta e me abraçou com força.
- Eu tive que retirar todo mundo de Tongkou - explicou ele. - Depois tive que cuidar da segurança dos nossos filhos...
Estes atos, que só fui compreender melhor mais tarde, é que transformaram o meu marido de filho de um bom e generoso chefe em um chefe muito respeitado por si mesmo.
Seu corpo tremeu quando ele acrescentou:
- Procurei por você muitas vezes.
Nas nossas canções femininas, dizemos tantas vezes: "Eu não sinto nada pelo meu marido" ou "Meu marido não sente nada por mim". Esses são versos populares, repetidos em coro, mas naquele dia abriguei sentimentos profundos pelo meu marido e ele por mim.
Meus últimos momentos em Jintian são apenas um borrão. Meu marido recompensou o açougueiro com uma quantia generosa, Flor da Neve e eu nos abraçamos e nos beijamos. Ela me ofereceu o leque para eu levar para casa, mas eu quis que ela o guardasse, pois seu sofrimento era recente e eu só sentia alegria. Eu me despedi do filho de Flor da Neve e prometi que mandaria alguns cadernos para ele estudar a escrita dos homens. Finalmente, inclinei-me diante da filha de Flor da Neve.
- Irei vê-la muito em breve - disse eu. Então subi na carroça e meu marido sacudiu as rédeas. Olhei para Flor da Neve, acenei e me virei na direção de Tongkou - na direção da minha casa, da minha família, da minha vida.
Carta de injúria
Por toda a região, as pessoas tentavam reconstruir suas vidas. Aqueles que haviam sobrevivido naquele ano haviam sofrido demais, primeiro com a epidemia, depois com a rebelião. Estávamos esgotados - emocionalmente e pelo número de pessoas que havíamos perdido -, mas gratos por estarmos vivos. Aos poucos, fomos ganhando peso. Os homens voltaram aos campos e os filhos voltaram à sala principal para estudar, enquanto as mulheres e as meninas se retiraram para o seu aposento do andar de cima, a fim de bordar e tecer. Todos nós fomos em frente, revigorados pela nossa boa sorte.
Algumas vezes, no passado, eu havia imaginado como seria o mundo dos homens. Agora jurei que nunca mais me aventuraria nele de novo. Minha vida era para ser vivida no aposento do andar de cima. Eu me senti feliz em contemplar os rostos de minhas cunhadas e ansiava pelas longas tardes passadas com elas bordando, tomando chá, cantando e contando histórias. Mas isso não foi nada comparado com o que senti ao ver os meus filhos. Para eles e para min, três meses foram uma eternidade. Eles tinham crescido e mudado. Meu filho mais velho tinha feito doze anos enquanto eu estava longe. Na segurança de um abrigo no campo durante o caos, Protegido pelas tropas do imperador, ele tinha estudado muito.
Tinha aprendido a suprema lição: todos os intelectuais, não importa onde vivessem ou que dialeto falassem, liam os mesmos textos e faziam os mesmos exames, de modo que a lealdade, a integridade e uma visão singular fossem mantidas em todo o reino. Mesmo longe da capital, em regiões remotas como a nossa, os magistrados locais -todos treinados de forma idêntica - ajudavam as pessoas a entender o relacionamento entre elas e o imperador. Se meu filho se mantivesse no caminho certo, um dia ele seguramente prestaria os seus exames.
Desde que éramos meninas que eu não via Flor da Neve tanto quanto a vi naquele ano. Nossos maridos não tentaram impedir-nos, embora a rebelião ainda estivesse ocorrendo em outras partes do país. Depois de tudo o que tinha acontecido, meu marido acreditava que eu estaria segura sob os cuidados do açougueiro, enquanto que o açougueiro encorajava as visitas da esposa à minha casa, sabendo que ela sempre retornaria com presentes - comida, livros, cash. Dividíamos uma cama na casa uma da outra, enquanto nossos maridos mudavam-se para outros quartos para permitir que passássemos algum tempo juntas. O açougueiro não teve coragem de reclamar, seguindo o exemplo do meu marido nessa questão. Mas como eles teriam podido impedir essas coisas - nossas visitas, nossas noites juntas, nossas confidências? Não temíamos nem o sol, nem a neve, nem a chuva. Obedeça, obedeça, obedeça, depois faça o que quiser.
Flor da Neve e eu continuamos a nos encontrar em Puwei para os festivais, como sempre tínhamos feito. Era bom para ela ver titio e titia, cuja vida inteira de bondade os tinha feito ganhar amor e respeito. Titia era adorada como uma avó por todos os seus "netos". Ao mesmo tempo, titio também estava em melhor posição do que quando meu pai era vivo. Irmão Mais Velho precisava dos conselhos de titio no campo e nas contas, e titio sentia-se honrado em ajudar. Titia e titio tinham conseguido um final feliz que ninguém poderia ter imaginado.
Naquele ano, quando Flor da Neve e eu fomos para o Templo de Gupo, nossa gratidão foi profunda. Fizemos oferendas, curvando-nos em agradecimento por termos sobrevivido ao inverno. Depois, de braços dados, fomos até a barraca de taro. Ali sentadas, planejamos o futuro de nossas filhas e discutimos os métodos de bandagem dos pés que pudessem garantir perfeitos lírios dourados. De volta a nossas casas, preparamos as faixas, compramos ervas, bordamos miniaturas de sapatos para colocar no altar de Guanyin, fizemos bolinhos de arroz para presentear a Donzela de Pés Pequenos e alimentamos nossas filhas com feijão-vermelho para amaciar seus pés. Separadamente, conversamos com madame Wang sobre a aliança de nossas filhas. Quando Flor da Neve e eu tornamos a nos encontrar, comparamos as conversas, rindo do fato de sua tia continuar a mesma, com seu rosto pintado e modos autoritários.
Mesmo agora, olhando para trás, para aqueles meses de primavera e início de verão, vejo o quanto eu era feliz. Eu tinha a minha família e tinha a minha laotong. Como eu disse, segui em frente. Esse não foi o caso com Flor da Neve. Ela não recuperou o peso que havia perdido. Ciscava a comida - alguns grãos de arroz, dois pedacinhos de legume -, preferindo tomar chá. A pele dela ficou pálida de novo e seu rosto recusou-se a encher. Quando ela veio a Tongkou e sugeri que visitássemos suas velhas amigas, ela recusou delicadamente, dizendo: "Elas não iam gostar de me ver", ou então: "Elas não vão se lembrar de mim." Insisti até ela concordar em ir comigo no ano seguinte à cerimônia de Sentar e Cantar de uma moça Lu em Tongkou, que era prima em segundo grau de Flor da Neve e minha vizinha.
Durante as tardes, Flor da Neve sentava-se perto de mim enquanto eu bordava, mas ficava olhando pela janela, com a mente longe. Era como se ela tivesse saltado daquele precipício, no nosso último dia nas montanhas, e estivesse caindo silenciosamente. Eu via a sua tristeza, mas me recusava a aceitá-la. Meu marido me alertou diversas vezes sobre isso.
- Você é forte - disse ele uma noite depois que Flor da Neve tinha voltado para Jintian. - Você voltou das montanhas e me deixa mais orgulhoso a cada dia com o modo como administra a nossa casa edá um bom exemplo às mulheres da nossa aldeia. Mas você, e, por favor, não se zangue comigo, fica cega quando olha para a sua velha igual. Ela não é sua igual em tudo. Talvez o que aconteceu no inverno passado tenha sido demais para ela. Não a conheço bem, mas com certeza você pode ver que ela tenta enfrentar com boa cara uma situação ruim. Você levou muitos anos para entender isso, mas nem todo homem é igual ao seu marido.
O fato de ele me confiar isso deixou-me profundamente embaraçada. Não, não foi isso. Fiquei foi irritada por ele ousar interferir em assuntos particulares, exclusivamente femininos. Mas não discuti com ele, porque não me cabia. Mas eu achava que tinha de provar que ele estava errado e eu estava certa. Então prestei mais atenção em Flor da Neve quando ela veio me visitar de novo. Fiquei realmente atenta. A vida tinha desandado para Flor da Neve. Sua sogra tinha racionado a sua comida, permitindo-lhe apenas um terço do arroz necessário à subsistência.
- Eu só como mingau - disse ela -, mas aceito isso. Não tenho tido muita fome ultimamente.
E o que é pior, o açougueiro não tinha parado de bater nela.
- Você disse que ele não ia fazer isso de novo - protestei, sem querer acreditar no que o meu marido tinha visto com tanta clareza.
- Se ele me agride, o que posso fazer? Não posso agredir de volta. - Flor da Neve estava sentada na minha frente, com seu bordado largado no colo, tão enrugado quanto uma pele de tofu.
- Por que você não me contou? Ela respondeu com outra pergunta:
- Por que eu iria amolar você com coisas que você não pode mudar?
- Podemos mudar o destino se tentarmos com afinco - disse eu. - Eu mudei a minha vida. Você também pode mudar a sua.
Ela me olhou em silêncio.
- Com que freqüência isso acontece? - perguntei, tentando manter a voz calma, mas frustrada pelo fato de seu marido ainda estar usando os punhos contra ela, zangada por ela aceitar isso tão passivamente e ofendida por ela não ter confiado em mim, de novo.
- As montanhas o mudaram. Elas mudaram todos nós. Você não entende isso?
- Com que freqüência? - insisti.
- Eu decepciono o meu marido de muitas maneiras...
Em outras palavras, isso acontecia com mais freqüência do que ela queria admitir.
- Quero que você venha morar comigo - disse eu.
- Deserção é a pior coisa que uma mulher pode fazer - respondeu ela. - Você sabe disso.
Eu sabia. Para uma mulher, essa era uma ofensa^que podia ser punida com a morte pela mão do marido.
- Além disso - Flor da Neve continuou —, jamais deixaria os meus filhos. Meu filho precisa de proteção.
- Mas você tem que protegê-lo com o seu próprio corpo? - perguntei.
Que resposta ela poderia dar?
Olho para trás agora e vejo, com a clareza dos oitenta anos, que demonstrei muita impaciência pelo desânimo de Flor da Neve. No passado, sempre que eu me sentira insegura sobre como reagir à infelicidade da minha laotong, eu a havia pressionado a seguir as regras e tradições do mundo interior como uma forma de combater as coisas ruins que aconteceram em sua vida. Dessa vez, fui mais longe, desencadeando uma campanha para ela controlar o seu marido galo, acreditando que, sendo uma mulher nascida sob o signo do cavalo, ela podia usar a sua força de vontade para mudar a situação. Tendo apenas uma filha inútil e um primeiro filho não amado, ela devia tentar engravidar de novo. Ela precisava rezar mais, comer direito e pedir tônicos ao herbanário - tudo para garantir um filho homem. Se ela desse ao marido o que ele queria, ele se lembraria do valor dela. Mas isso não era tudo...
Quando o Festival dos Espíritos chegou ao décimo quinto dia do sétimo mês, eu havia bombardeado Flor da Neve de perguntas Que ela deveria ter compreendido serem sugestões para melhorar sua atuação. Por que não podia tentar ser uma esposa melhor? Por que não podia alegrar o marido do jeito que eu sabia que ela podia? Por que não beliscava as bochechas para ficar rosada? Por que não comia mais para ter mais energia? Por que não voltava imediatamente para casa e se curvava diante da sogra, preparava suas refeições, costurava para ela, cantava para ela, fazia o que tivesse que fazer para deixar a velha satisfeita em sua velhice? Por que não tentava com mais afinco melhorar as coisas? Achei que estava dando conselhos práticos, mas eu não tinha nenhum dos problemas e preocupações de Flor da Neve. Ainda assim, eu era Lady Lu e achava que estava certa.
Então, quando esgotei as coisas que Flor da Neve poderia fazer em sua casa, eu a questionei sobre o tempo que passava na minha. Ela não estava feliz de estar comigo? Não gostava das roupas de seda que eu lhe dava? Não entregava os presentes que a família Lu mandava para o seu marido como prova de gratidão com a devida deferência, de modo que ele ficasse satisfeito com ela? Não valorizava o fato de eu ter contratado um homem para ensinar os meninos da idade do filho dela a ler e escrever em Jintian? Ela não via que ao tornar nossas filhas laotong estaríamos mudando o destino de Lua de Primavera, assim como o meu havia sido mudado?
Se ela me amava de verdade, por que não fazia o que eu tinha feito - envolvido a mim mesma nas convenções que protegiam as mulheres - para melhorar a sua situação? Diante de todas essas indagações, ela apenas suspirava ou balançava a cabeça. Sua reação me deixava ainda mais impaciente. Eu insistia nas perguntas e no raciocínio até ela se render e me prometer que ia fazer o que eu estava dizendo. Mas não fazia, e, na vez seguinte, a minha frustração ficava ainda mais evidente. Não entendi que o cavalo corajoso da infância de Flor da Neve tinha tido o seu espírito quebrado. Fui teimosa o bastante para acreditar que poderia consertar um cavalo que tinha ficado manco.
Minha vida mudou para sempre no décimo quinto dia do oitavo mês lunar do sexto ano do reinado de Xianfeng. Tinha chegado o Festival de Outono. Faltavam poucos dias para começar o processo de bandagem dos pés de nossas filhas. Nesse ano, Flor da Neve e os filhos viriam visitar-nos no feriado, mas não foram eles que chegaram à minha porta. Foi Lótus, uma das mulheres que tinha vivido sob nossa árvore nas montanhas. Eu a convidei para tomar chá comigo no aposento do andar de cima.
- Obrigada - disse ela -, mas estou em Tongkou para visitar a minha família.
- Uma família gosta de receber em casa uma filha casada - respondi com o refinamento costumeiro. - Tenho certeza de que ficarão felizes em vê-la.
- E eu em vê-los - disse ela, enfiando a mão na cesta de bolos que estava pendurada em seu braço. - Nossa amiga pediu-me para lhe dar uma coisa. - Ela tirou um pacote comprido da cesta, embrulhado num pedaço de seda verde que eu tinha dado recentemente a Flor da Neve. Lótus entregou-me o pacote, desejou-me boa sorte e foi embora, desaparecendo ao dobrar a primeira esquina.
Eu sabia o que estava no pacote por causa do formato, mas não consegui imaginar por que Flor da Neve não tinha vindo e tinha mandado o leque em seu lugar. Levei o pacote para cima e esperei até minhas cunhadas saírem para distribuir bolos para os nossos amigos na aldeia. Mandei minha filha com elas, dizendo que ela precisava aproveitar aqueles últimos dias ao ar livre. Quando elas saíram, eu me sentei na minha cadeira ao lado da janela. Uma luz suave penetrava pela treliça da janela, formando um desenho de folhas de videira na minha mesa de trabalho. Contemplei o pacote por longo tempo. Como eu soube que devia ter medo? Finalmente, abri um lado, depois o outro da seda verde até expor o nosso leque. Eu o ergui. Então, abri uma dobra de cada vez, lentamente. Ao lado dos caracteres escritos a carvão na noite anterior à nossa descida das montanhas, vi uma nova coluna de caracteres.
"Tenho problemas demais", Flor da Neve tinha escrito. Sua caligrafia era mais bonita do que a minha, as pernas das suas linhas de Mosquito tão finas e delicadas que as pontas se esfumaçavam. "Não Posso ser aquilo que você deseja. Você não terá mais que ouvir as minhas queixas. Três irmãs juradas prometeram amar-me como sou. Escreva-me, não para me consolar como você tem feito, mas para recordar os dias felizes de meninas que passamos juntas." E foi só.
Senti uma espada atravessando o meu corpo. Meu estômago saltou de surpresa, depois contraiu-se numa bola. Amor? Ela estava realmente falando de amor com irmãs juradas no nosso leque secreto? Tornei a ler, espantada e confusa. Três irmãs juradas prometeram amar-me. Mas Flor da Neve e eu éramos laotong, que era um casamento de emoções fortes o bastante para atravessar grandes distâncias e longas separações. Nossa ligação deveria ser mais importante do que o casamento com um homem. Tínhamos jurado que seríamos fiéis e verdadeiras até que a morte nos separasse. O fato de ela estar abandonando as nossas promessas em favor de um novo relacionamento com irmãs juradas me doeu tremendamente. O fato de ela estar sugerindo que, de algum modo, ainda pudéssemos ser amigas me deixou literalmente sem fôlego. Para mim, o que ela escrevera era dez mil vezes pior do que se meu marido tivesse entrado e anunciado a chegada da sua primeira concubina. E não que eu não tivesse tido a oportunidade de me juntar a uma irmandade pós-casamento. Minha sogra tinha insistido muito comigo nessa direção, mas eu tinha feito tudo para manter Flor da Neve em minha vida. Agora ela estava me deixando de lado? Parecia que Flor da Neve -essa mulher por quem eu tinha um amor imenso, que eu adorava e com a qual havia assumido um compromisso por toda a vida - não gostava de mim da mesma forma.
Quando pensei que já tinha chegado ao fundo do poço, percebi que as três irmãs juradas a que ela se referia tinham que ser aquelas mulheres de sua aldeia que tínhamos encontrado nas montanhas. Na minha cabeça, revi tudo o que acontecera naquele último inverno. Elas estariam conspirando para roubá-la de mim desde aquela primeira noite com o seu canto? Ela teria se sentido atraída por elas, como um marido por novas concubinas que são mais jovens, mais bonitas e mais amorosas que uma esposa leal? As camas daquelas mulheres seriam mais quentes, seus corpos mais firmes, suas histórias mais interessantes? Será que ela olhava para seus rostos e não via expectativas nem responsabilidades?
Essa dor era diferente de tudo o que eu já havia sentido até então - penetrante, dilacerante, cruciante, muito pior do que a dor de parto. Então, algo mudou dentro de mim. Comecei a reagir não como a meninazinha que havia se apaixonado por Flor da Neve, mas como Lady Lu, a mulher que acreditava que regras e convenções podiam proporcionar paz de espírito. Foi mais fácil para mim enumerar os defeitos de Flor da Neve do que sentir as emoções que se agitavam no meu peito.
Eu havia sempre feito concessões a Flor da Neve por amor a ela. Mas quando comecei a focar minha atenção em suas fraquezas, um modelo de mentira, fingimento e traição começou a emergir. Pensei em todas as vezes em que Flor da Neve tinha mentido para mim -sobre sua família, sobre sua vida conjugal, até mesmo sobre suas surras. Ela não só não tinha sido uma laotong fiel, mas também não tinha sido uma amiga muito boa. Uma amiga teria sido franca e honesta. Como se tudo isso não fosse o bastante, eu me deixei invadir pela lembrança das últimas semanas. Flor da Neve tinha se aproveitado do meu dinheiro e da minha posição para ganhar roupas melhores, comida melhor e uma situação melhor para sua filha, ao mesmo tempo ignorando a minha ajuda e as minhas sugestões. Eu me senti enganada e totalmente idiota.
E então aconteceu uma coisa muito estranha. Pensei na minha mãe. Lembrei que, quando criança, tinha desejado que ela me amasse. Eu tinha pensado que se fizesse tudo o que ela me pedisse durante a amarração dos meus pés ganharia a sua afeição. Achei que tinha ganho essa afeição, mas isso não era verdade. Assim como Flor da Neve, ela só estava buscando os seus interesses pessoais. Minha primeira reação às mentiras de minha mãe e sua falta de consideração Por mim tinha sido raiva, e nunca lhe perdoei, mas com o tempo fui me afastando cada vez mais dela até que ela não teve mais nenhum Poder emocional sobre mim. Para proteger o meu coração, era isso que eu teria de fazer com Flor da Neve. Eu não podia deixar ninguém saber que eu estava morrendo de angústia por ela não me amar mais. Eu também tinha que esconder a minha raiva e o meu desespero, porque não eram sentimentos adequados a uma mulher.
Fechei o leque e o guardei. Flor da Neve tinha me pedido para escrever para ela. Não escrevi. Passou-se uma semana. Não iniciei a bandagem dos pés da minha filha no dia combinado. Passou-se mais uma semana. Lótus tornou a vir até a minha porta, dessa vez para entregar uma carta, que Yonggang me trouxe no aposento do andar de cima. Abri o papel e contemplei os caracteres. Aqueles traços tinham sido sempre carícias para mim. Agora eu os lia como se fossem punhais.
Por que você não escreveu? Você está doente ou a sorte tornou a sorrir para você? Iniciei a bandagem dos pés da minha filha no dia vinte e quatro, o mesmo dia em que iniciamos a nossa. Você também começou nessa data? Olho da minha janela para a sua. Meu coração voa até você, desejando felicidade para as nossas filhas.
Eu a li uma única vez, depois encostei um dos cantos do papel na chama do lampião a óleo. Fiquei vendo o papel queimar e as palavras se transformarem em fumaça. Nos dias que se seguiram - quando o tempo esfriou e iniciei a bandagem dos pés da minha filha - chegaram mais cartas. Eu as queimei também.
Eu tinha trinta e três anos. Teria sorte se vivesse mais sete anos, e mais sorte ainda se vivesse mais dezessete. Não podia suportar a sensação de angústia em meu estômago nem por mais um minuto, que dirá por um ano ou mais. Meu tormento era enorme, mas recorri à mesma disciplina que havia permitido que eu suportasse o processo de amarração dos meus pés, a epidemia e o inverno nas montanhas. Comecei o que chamei de Arrancar uma Doença do meu Coração. Sempre que uma lembrança me vinha à mente, eu a cobria de tinta preta. Quando via algo que me provocava uma recordação, fechava os olhos. Se a lembrança viesse na forma de um cheiro, eu enterrava o nariz nas pétalas de uma flor, jogava mais alho na panela ou trazia de volta o cheiro de inanição nas montanhas. Se uma lembrança me tocasse a pele - na forma do toque da minha filha em minha mão, da respiração do meu marido em minha orelha à noite ou da sensação de uma brisa leve em meus seios enquanto eu me banhava -, eu me coçava ou esfregava o lugar. Eu era tão implacável quanto um fazendeiro após a colheita, arrancando cada resto do que na estação anterior havia sido o seu broto mais precioso. Tentei deixar a terra inteiramente vazia, sabendo que essa era a única forma de proteger o meu coração ferido.
Quando a lembrança do amor de Flor da Neve continuou a me atormentar, construí uma torre de flores como a que havíamos construído para afastar o espírito de Lua Linda. Tive que exorcizar esse novo fantasma, impedir que ele voltasse a invadir a minha mente ou me atormentar com promessas não cumpridas de amor eterno. Esvaziei minhas cestas, baús, gavetas e prateleiras dos presentes que Flor da Neve havia feito para mim ao longo dos anos. Procurei todas as cartas que ela tinha escrito no tempo em que passamos juntas. Foi difícil encontrar tudo. Não consegui encontrar o nosso leque. Não consegui encontrar... digamos apenas que muitas coisas estavam faltando. Mas o que encontrei, colei ou coloquei na torre de flores; depois escrevi uma carta:
Você que um dia conheceu o meu coração, agora não sabe nada a meu respeito. Queimo todas as suas palavras, esperando que elas desapareçam nas nuvens. Você, que me traiu e me abandonou, saiu do meu coração para sempre. Por favor, por favor, deixe-me em paz.
Dobrei o papel e o enfiei pela janela de treliça no aposento do andar de cima da torre de flores. Depois pus fogo nas fundações, acrescentando óleo quando necessário para queimar todos os lenços, tecidos e bordados.
Entretanto, o fantasma de Flor da Neve era persistente. Quando eu amarrava os pés da minha filha, era como se Flor da Neve estivesse no quarto comigo, com a mão no meu ombro, sussurrando em meu ouvido: "Certifique-se de que não haja nenhuma dobra na faixa. Mostre à sua filha o seu amor de mãe." Eu cantava para abafar suas palavras. As vezes, à noite, sentia a mão dela em meu rosto e não conseguia dormir. Ficava deitada, acordada, furiosa comigo mesma e com ela, pensando: odeio você, odeio você, odeio você. Você quebrou sua promessa de lealdade. Você me traiu.
Duas pessoas sofreram as conseqüências da minha dor. A primeira, tenho vergonha em admitir, foi minha filha. A segunda, sinto dizer, foi madame Wang. Meu amor de mãe era muito forte, e quando amarrei os pés de Jade, você jamais saberá o quanto fui cuidadosa, lembrando-me não só do que tinha acontecido com Terceira Irmã, mas também de todas as lições que minha sogra tinha incutido em mim sobre como fazer direito esse trabalho, com a menor chance possível de infecção, deformidade ou morte. Mas também transferi a dor que sentia por causa de Flor da Neve para os pés da minha filha. Não eram os meus pés de lírio a fonte de toda a minha dor e todas as minhas conquistas?
Embora os ossos e a disposição da minha filha fossem maleáveis, ela chorava de dar pena. Eu não conseguia suportar isso, embora estivéssemos apenas começando. Controlei os meus sentimentos, obrigando minha filha a caminhar de um lado para outro no nosso aposento do andar de cima, amarrando os seus pés ainda mais apertados, nos dias em que trocava as faixas, e ralhando com ela - não, gritando com ela - do jeito que minha mãe fazia comigo. "Uma dama de verdade não deixa entrar nenhuma indignidade em sua vida. Só através da dor é que você conseguirá a beleza. Só através do sofrimento é que encontrará a paz. Eu enrolo, eu amarro, mas você receberá a recompensa." Eu esperava que pelas minhas ações pudesse colher uma parte dessa recompensa e encontrar a paz que minha mãe tinha prometido.
Com o pretexto de querer o melhor para Jade, falei com outras mulheres de Tongkou que estavam amarrando os pés das filhas:
- Nós todas moramos aqui - disse eu. - Somos todas de boas famílias. Nossas filhas não deveriam tornar-se irmãs juradas?
Os pés da minha filha ficaram quase tão pequenos quanto os meus. Mas, antes que isso se desse, madame Wang veio visitar-me no quinto mês do novo ano lunar. Na minha cabeça, ela nunca tinha mudado. Tinha sido sempre uma velha, mas nesse dia olhei para ela com um olhar mais crítico. Ela era muito mais jovem do que sou agora, o que significava que quando a conheci, tantos anos antes, ela estava no máximo com quarenta anos. Mas é preciso lembrar que minha mãe e a mãe de Flor da Neve já estavam mortas com essa idade - um pouco mais ou um pouco menos - e considerava-se que haviam vivido muito. Olhando para trás, acredito que madame Wang, sendo viúva, não quis morrer nem se mudar para a casa de outro homem. Preferiu viver sozinha e se sustentar. Ela não teria conseguido se não fosse extremamente esperta e competente em seu trabalho. Mas ela ainda tinha que lidar com o corpo. Ela mostrava às pessoas que era inatacável, usando pó para cobrir qualquer resquício de beleza que tivesse no rosto e usando roupas vistosas para diferenciá-la das mulheres casadas da nossa região. Agora, aos sessenta e muitos anos, não precisava mais esconder-se atrás de pó e sedas espalhafatosas. Ela era uma velha - ainda esperta, ainda competente, mas com um defeito que eu conhecia muito bem. Ela amava a sobrinha.
- Lady Lu, já faz muito tempo - disse ela, sentando-se numa cadeira da sala. Como não lhe ofereci chá, ela olhou em volta, ansiosa. - Seu marido está aqui?
- Mestre Lu chegará mais tarde, mas você está se adiantando. Minha filha é jovem demais para ele negociar um contrato de casamento para ela.
Madame Wang deu um tapa na perna e riu. Como eu não fiz o mesmo, ela ficou séria.
- Você sabe que não estou aqui para isso. Vim discutir uma aliança laotong. Esse assunto é só entre mulheres.
Comecei a bater com a unha do dedo indicador no braço da minha cadeira. O som era alto e enervante até mesmo para mim, mas não parei.
Ela enfiou a mão dentro da manga e tirou um leque.
- Eu trouxe isto para a sua filha. Talvez possa entregar a ela.
- Minha filha está lá em cima, mas mestre Lu não consideraria apropriado que ela visse algo que ele não examinou primeiro.
- Mas, Lady Lu - madame Wang disse -, isso está escrito na escrita das mulheres.
- Então entregue para mim. - Estendi a mão.
A velha casamenteira viu minha mão tremendo e hesitou. -Flor da Neve...
- Não! - A palavra saiu mais dura do que eu havia pretendido, mas eu não podia suportar ouvir aquele nome. Eu me acalmei, então disse: - O leque, por favor.
Ela o entregou relutantemente. Na minha cabeça, eu tinha um exército de pincéis com tinta preta, obliterando os pensamentos e lembranças que teimavam em surgir. Invoquei a dureza dos bronzes do templo ancestral, a dureza do gelo no inverno e a dureza dos ossos ressecados sob um sol inclemente para me darem forças. Com um único movimento rápido, abri o leque.
"Eu soube que existe uma menina de bom caráter e versada em conhecimentos femininos na sua casa." Esses eram os primeiros caracteres que Flor da Neve havia escrito para mim tantos anos antes. Ergui os olhos e vi madame Wang olhando para mim, esperando pela minha reação, mas mantive o rosto calmo como a superfície de um lago numa noite quieta. "Nossas duas famílias cultivam jardins. Duas flores nascem. Elas estão prontas para se conhecerem. Você e eu somos do mesmo ano. Não podemos ser velhas iguais? Juntas iremos voar acima das nuvens."
Ouvi a voz de Flor da Neve em cada caractere cuidadosamente desenhado. Fechei o leque e o estendi para madame Wang. Ela não o tirou da minha mão estendida.
- Eu acho, madame Wang, que houve um engano. Os oito atributos destas duas meninas não combinam. Elas nasceram em dias diferentes de meses diferentes. E o que é mais importante, seus pés não combinavam antes da bandagem começar, e duvido que combinem quando estiverem prontos. E eu fiz um gesto com a mão mostrando o salão principal - as circunstâncias familiares não combinam. Tudo isso é de conhecimento geral. Madame Wang apertou os olhos.
- Você acha que não sei o que está realmente acontecendo? - Ela bufou. - Deixe-me dizer-lhe o que sei. Você desfez a sua aliança sem nenhuma explicação. Uma mulher, a sua laotong, chora sem entender.
- Sem entender? Você sabe o que ela fez?
- Fale com ela - madame Wang continuou. - Não destrua uma combinação que foi feita entre duas mães amorosas!"Duas meninas têm um futuro brilhante juntas. Elas podem ser tão felizes quanto suas mães.
Eu não podia concordar com a sugestão da casamenteira. Estava fraca de tanto sofrimento, e no passado eu tinha me deixado influenciar muitas vezes - me deixado convencer, enganar - por Flor da Neve. E também não podia correr o risco de ver Flor da Neve com suas irmãs juradas. Minha mente já me atormentava o suficiente imaginando seus segredos e intimidades físicas.
- Madame Wang - disse eu -, eu não rebaixaria a minha filha a ponto de uni-la ao rebento de um açougueiro.
Fui intencionalmente má, na esperança de que a casamenteira desistisse do assunto, mas foi como se ela não tivesse ouvido, porque ela disse:
- Eu me lembro de vocês duas juntas. Atravessando uma ponte, seus reflexos na água lá embaixo, a mesma altura, o mesmo tamanho de pés, a mesma coragem. Vocês juraram fidelidade. Prometeram jamais se separar, prometeram ficar unidas para sempre...
Eu tinha feito tudo isso de coração aberto, mas e Flor da Neve?
- Você não sabe o que está dizendo - disse eu. - No dia em que sua sobrinha e eu assinamos o contrato, você disse: "Não são permitidas concubinas." Você se lembra disso, velha? Agora vá perguntar a sua sobrinha o que foi que ela fez.
Atirei o leque no colo da casamenteira e virei o rosto, com o coração gelado como a água do rio que costumava correr sobre os meus pés. Senti os olhos da mulher em mim, avaliando, indagando, questionando, mas ela não teve forças para continuar. Eu a ouvi levantar-se com dificuldade. Seus olhos continuavam pregados em mim, mas não me deixei abalar.
- Vou transmitir a sua mensagem - disse ela finalmente, com a voz carregada de bondade e de uma compreensão profunda que me abalou -, mas saiba de uma coisa. Você é uma pessoa rara. Percebi isso muito tempo atrás. Todo mundo na nossa região inveja a sua sorte. Todo mundo lhe deseja longevidade e prosperidade. No entanto, a vejo partindo dois corações. Isso é muito triste. Eu lembro a garotinha que você foi. Você não tinha nada além de um lindo par de pés. Agora tem abundância em sua vida, Lady Lu, uma abundância de maldade, ingratidão e esquecimento.
Ela saiu pela porta. Eu a ouvi subir no palanquim e ordenar aos carregadores que a levassem para Jintian. Não pude acreditar que tinha permitido que ela tivesse a última palavra.
Um ano se passou. O dia de Sentar e Cantar no Aposento do Andar de Cima da prima de Flor da Neve estava chegando. Eu ainda estava arrasada, a minha mente vibrava num ritmo interminável - ta dum, ta dum, ta dum -, como um coração ou um cântico feminino. Flor da Neve e eu tínhamos planejado ir juntas à festa. Eu não sabia se ela ainda viria. Se viesse, eu esperava poder evitar um confronto. Eu não queria brigar com ela como tinha brigado com minha mãe.
O décimo dia do décimo mês chegou - uma data boa e propícia para a garota do vizinho começar suas atividades matrimoniais. Eu me dirigi à casa ao lado e subi para o aposento das mulheres. A noiva tinha uma beleza um tanto lânguida. Suas irmãs juradas sentavam-se em volta dela. Avistei madame Wang e, ao lado dela, Flor da Neve: com o cabelo puxado para trás num estilo próprio a uma mulher casada e usando uma das roupas que eu tinha dado a ela. Aquele ponto sensível onde minhas costelas se juntam acima do estômago contraiu-se. O sangue pareceu sair todo da minha cabeça e achei que ia desmaiar. Eu não sabia se ia conseguir participar daquele evento com Flor da Neve presente e ainda assim manter a minha dignidade de mulher. Olhei rapidamente para os outros rostos. Flor da Neve não tinha levado nem Salgueiro, nem Lótus, nem Flor de Ameixeira para fazer-lhe companhia. Soltei um suspiro de alívio. Se uma delas tivesse estado lá, eu teria fugido.
Eu me sentei do outro lado do aposento. A festa teve toda a cantoria, as queixas, as histórias e as piadas de sempre. Então, a mãe da noiva pediu a Flor da Neve para falar de sua vida desde que ela saíra de Tongkou.
- Hoje vou recitar uma Carta de Injúria - Flor da Neve anunciou. Eu não havia previsto isso. Como Flor da Neve poderia querer fazer uma queixa pública contra mim quando eu é que tinha sido traída? No mínimo, eu deveria ter preparado um cântico de acusação e retaliação.
- O faisão grasna e o som se propaga - começou ela. As mulheres no aposento viraram-se para ela ao ouvir a abertura de praxe para aquele tipo tradicional de comunicação. Então, Flor da Neve começou a recitar naquele mesmo ritmo ta dum, ta dum, ta dum que eu vinha ouvindo havia meses. - Durante cinco dias, queimei incenso e rezei para encontrar coragem para vir aqui. Durante três dias, fervi água perfumada para limpar minha pele e minhas roupas para estar apresentável para as minhas velhas amigas. Coloquei minha alma em minha canção. Quando menina, fui amada como filha, mas todo mundo aqui sabe o quanto a minha vida tem sido dura. Perdi a casa em que nasci. Perdi minha família. As mulheres da minha família têm sido infelizes há duas gerações. Meu marido não é bondoso. Minha sogra é cruel. Fiquei grávida sete vezes, mas apenas três bebês respiraram o ar deste mundo. Agora apenas um filho e uma filha vivem. Parece que sou perseguida pelo destino. Devo ter praticado maus atos em uma vida anterior. Sou considerada inferior a outras mulheres.
As irmãs juradas da noiva choravam de compaixão como era de esperar. Suas mães ouviam atentamente - soltando exclamações durante as partes tristes, sacudindo suas cabeças acerca da inevitabilidade do destino de uma mulher e admirando a forma como Flor da Neve utilizava a nossa linguagem de tristeza.
- Eu só tive uma alegria na vida, a minha laotong - Flor da Neve continuou, ta dum, ta dum, ta dum. - No nosso contrato, escrevemos que jamais trocaríamos palavras ríspidas, e durante vinte e sete anos foi assim. Sempre fomos sinceras uma com a outra. Éramos como longas trepadeiras, uma buscando a outra, entrelaçadas para sempre. Mas, quando contei a ela sobre minha tristeza, ela não teve paciência. Quando viu o quanto eu era fraca de espírito, ela me lembrou que os homens cultivam o solo e as mulheres tecem, que o trabalho impede a fome, acreditando que eu poderia mudar o meu destino. Mas como pode existir um mundo sem pobres e desgraçados?
Vi as mulheres no aposento chorando por ela. Eu estava atônita.
- Por que você se afastou de mim? - ela entoou, com a voz aguda e linda. - Você e eu somos laotong, juntas em nossas almas mesmo quando não podemos estar juntas na nossa vida diária. - Abruptamente, ela introduziu outro tema. — E por que você feriu a minha filha? Lua de Primavera é jovem demais para entender o motivo, e você se recusa a dizer. Eu não esperava que você possuísse um coração malvado. Eu lhe peço para lembrar que um dia nossa amizade foi profunda como o mar. Não faça uma terceira geração de mulheres sofrer.
Nesse ponto, a atmosfera no quarto mudou quando as outras absorveram essa última injustiça. A vida já era dura demais para as meninas sem que eu tivesse que torná-la ainda mais dura para alguém muito mais fraca do que eu.
Eu me levantei. Eu era Lady Lu, a mulher mais respeitada da região, e deveria ter-me colocado acima disso. Entretanto, entrei no ritmo daquela música interna que vinha vibrando na minha cabeça e no meu coração havia meses.
- O faisão grasna e o som se propaga - disse eu, enquanto uma Carta de Injúria começava a se formar em minha mente. Eu ainda queria ser razoável, então abordei primeiro a última e mais injusta acusação de Flor da Neve. Olhei de mulher para mulher enquanto recitava. - Nossas duas meninas não podem ser laotong. Elas não são iguais em nada. A sua antiga vizinha quer algo para a sua filha, mas não vou quebrar o tabu. Ao dizer não, fiz o que qualquer mãe faria. Em seguida:
- Todas as mulheres neste quarto enfrentam dificuldades. Quando meninas, somos criadas como galhos inúteis. Podemos amar nossas famílias, mas não ficamos muito tempo com elas. Nós nos casamos com homens que não conhecemos, e vamos morar com famílias que não conhecemos em aldeias que não conhecemos. Trabalhamos sem parar, e se reclamarmos perdemos o pouco respeito que nossos sogros têm por nós. Temos filhos; às vezes eles morrem, às vezes nós morremos. Quando nossos maridos se cansam de nós, tomam concubinas. Nós todas enfrentamos adversidades, colheitas arruinadas, invernos frios demais, estações de plantio sem chuva. Nada disso é tão especial, mas esta mulher busca uma atenção especial para os seus infortúnios.
Eu me virei para Flor da Neve. Lágrimas ardiam em meus olhos quando eu me dirigi diretamente a ela, e me arrependi das palavras assim que saíram da minha boca.
- Você e eu fomos unidas como um par de marrecos. Eu sempre permaneci fiel, mas você me desprezou para aceitar irmãs juradas. Uma menina envia um leque para outra menina, e não escreve novos leques para várias. Um bom cavalo não tem duas selas; uma boa mulher não é infiel à sua laotong. Talvez a sua perfídia seja o motivo pelo qual o seu marido, a sua sogra, os seus filhos e, sim, a velha igual traída que está diante de você não a amem como poderiam amar. Você nos envergonha com suas fantasias infantis. Se o meu marido chegasse hoje em casa com uma concubina, eu seria expulsa da minha cama, abandonada, ignorada por ele. Eu, como todas as mulheres aqui, teria de aceitar isso. Mas... de... você...
Minha garganta fechou e as lágrimas que eu estava tentando controlar escorreram pelo meu rosto. Por um momento, achei que não poderia continuar. Eu me afastei da minha própria dor e tentei falar de coisas que todas as mulheres presentes pudessem compreender.
- Nós podemos esperar essa perda de afeição por parte de nossos maridos, eles têm o direito, e nós somos apenas mulheres, mas suportar isso de outra mulher, que pelo seu próprio sexo sofreu tanta crueldade simplesmente por estar viva, é cruel.
Continuei, lembrando as minhas vizinhas do meu status, do meu marido que tinha trazido sal para a aldeia, e de como ele tinha providenciado para que todas as pessoas de Tongkou fossem levadas para um lugar seguro durante a rebelião.
- A soleira da minha porta está limpa - declarei, e então me dirigi a Flor da Neve. - Mas e quanto à sua?
Naquele momento, toda a raiva acumulada veio borbulhando para a superfície, e nenhuma mulher ali presente me impediu de expressá-la. As palavras que usei vieram de um lugar tão escuro e amargo que senti como se tivesse sido aberta ao meio com uma faca. Eu sabia tudo sobre Flor da Neve, então comecei a usar o que sabia contra ela sob o pretexto da correção social e do meu poder como Lady Lu. Eu a humilhei na frente das outras mulheres, revelando cada fraqueza. Não ocultei nada, porque tinha perdido inteiramente o controle. Uma recordação muito antiga me veio à mente, da minha irmã mais moça sacudindo a perna e suas ataduras soltas, girando em torno dela. A cada injúria que eu dizia, tinha a impressão de que as minhas ataduras tinham se soltado e eu estava finalmente livre para dizer o que de fato pensava. Levei muitos anos para compreender que as minhas percepções na época eram completamente equivocadas. As ataduras não estavam voando pelo ar e batendo na minha laotong. Pelo contrário, elas estavam se apertando cada vez mais em volta de mim, tentando sufocar o amor verdadeiro pelo qual eu tinha ansiado a vida toda.
- Esta mulher que foi sua vizinha levou com ela um enxoval que foi feito do enxoval de sua mãe, de modo que, quando aquela pobre mulher foi viver na rua, não tinha roupas nem colchas para mantê-la aquecida - declarei. - Esta mulher que foi sua vizinha não mantém a casa limpa. Seu marido executa um trabalho poluído, matando porcos numa plataforma ao lado da porta da casa. Esta mulher que foi sua vizinha tinha muitos talentos, mas os desperdiçou, recusando-se a ensinar às mulheres da casa do marido a nossa linguagem secreta. Esta mulher que foi sua vizinha mentiu sobre sua situação quando era menina, em seus dias de filha, mentiu quando era uma jovem nos seus dias de cabelo preso, e continua a mentir como esposa e mãe nos seus dias de arroz-e-sal. Ela mentiu não só para vocês todas como também para a sua laotong.
Fiz uma pausa, examinando os rostos das mulheres ao meu redor.
- Como ela passa o seu tempo? Vou dizer como! Na luxúria! Os animais entram no cio periodicamente, mas esta mulher está sempre no cio. Seus gemidos silenciam a casa toda. Quando estávamos nas montanhas fugindo dos rebeldes - eu me inclinei para a frente e as outras se inclinaram na minha direção -, ela preferiu fazer coisa de cama com o marido do que ficar comigo, sua laotong. Ela diz que deve ter praticado más ações numa vida anterior, mas eu, Lady Lu, digo-lhes que foram as suas más ações nesta vida que forjaram o seu destino.
Flor da Neve estava sentada na minha frente, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, mas eu estava tão infeliz e confusa que só conseguia demonstrar a minha raiva.
- Nós redigimos um contrato quando éramos meninas - concluí. - Você fez uma promessa que não cumpriu.
Flor da Neve deu um suspiro profundo e trêmulo.
- Você uma vez me pediu para sempre dizer-lhe a verdade, mas quando faço isso você interpreta mal ou não gosta do que ouve. Encontrei mulheres na minha aldeia que não me olham de cima. Não me criticam. Elas não esperam que eu seja alguém que não sou.
Cada palavra que ela dizia reforçava as minhas suspeitas.
- Elas não me humilham na frente dos outros - Flor da Neve continuou. - Tenho bordado junto com elas, e consolamos umas às outras quando estamos infelizes. Elas não têm pena de mim. Elas me visitam quando não estou bem... Eu me sinto solitária. Preciso de mulheres que me confortem todos os dias, não apenas quando lhes convém. Preciso de mulheres que possam me ouvir como eu sou e não como se lembram de mim ou como querem que eu seja. Eu me sinto como um pássaro que voa sozinho. Não consigo encontrar o meu par...
Suas palavras doces e suas desculpas delicadas eram o que eu temia. Fechei os olhos, tentando bloquear meus sentimentos. Para me proteger, tive que me agarrar à minha mágoa, como tinha feito com minha mãe. Quando abri os olhos, Flor da Neve tinha se levantado e estava se dirigindo para a escada. Quando vi que madame Wang não foi atrás dela, senti uma pontada de compaixão. Nem a sua própria tia, a única dentre nós que tinha sobrevivido por conta própria, iria oferecer-lhe apoio.
Enquanto Flor da Neve descia a escada degrau a degrau, prometi a mim mesma que nunca mais tornaria a vê-la.
Quando recordo aquele dia, sei que falhei terrivelmente nos meus deveres e obrigações de mulher. O que ela fizera era imperdoável, o que eu disse foi indigno. Eu havia deixado a minha raiva, a minha dor e, em última análise, o meu desejo de vingança controlarem minhas ações. Ironicamente, foram exatamente as coisas que me envergonharam e que mais tarde fizeram-me sentir tanto arrependimento que completaram a minha passagem para me tornar Lady Lu. Minhas vizinhas tinham visto a minha coragem quando meu marido estava muito longe, em Guilin. Elas sabiam como eu tinha cuidado da minha sogra durante a epidemia e demonstrado minha piedade filial durante o enterro dos membros da família do meu marido. Depois que sobrevivi ao inverno nas montanhas, elas souberam que eu tinha enviado professores para aldeias próximas, que tinha comparecido a cerimônias em quase todas as casas de Tongkou, e que de maneira geral vinha me saindo bem como esposa do chefe da aldeia. Mas, naquele dia, realmente ganhei o respeito que era devido a uma Lady Lu ao fazer o que todas as mulheres devem fazer para o nosso país, mas que raramente conseguem realizar. Uma mulher tem que dar um exemplo de decoro e de pensamento correto no mundo interior. Quando ela consegue, essas coisas são passadas de porta em porta, fazendo não só com que mulheres e crianças se comportem adequadamente, mas inspirando nossos homens a tornar o mundo exterior tão seguro e organizado quanto possível, para que o imperador possa olhar do alto do seu trono e enxergar a paz. Eu fiz tudo isso da forma mais pública possível, mostrando às minhas vizinhas que Flor da Neve era uma mulher baixa e indigna que não devia fazer parte de nossas vidas. Eu tinha sido bem-sucedida, embora tivesse destruído a minha laotong.
A minha Canção de Injúria tornou-se conhecida. Ela foi registrada em lenços e leques. Foi ensinada a meninas como uma lição didática e cantada durante o mês de festividades matrimoniais para alertar as esposas acerca dos perigos da vida. Dessa forma, a desgraça de Flor da Neve espalhou-se por toda a região. Quanto a mim, tudo aquilo me havia mutilado. De que adiantava ser Lady Lu se eu não tinha amor na minha vida?
Em direção às nuvens
Oito anos se passaram. Durante esse tempo, o imperador Xianfeng morreu, o imperador Tongzhi assumiu o poder e a Rebelião Taiping terminou numa província distante. Meu primeiro filho se casou e sua mulher engravidou, veio morar na nossa casa e teve um filho - o primeiro de muitos netos preciosos. Meu filho também passou nos primeiros exames para se tornar um shengyuan, um intelectual distrital. Ele começou imediatamente a estudar para se tornar um intelectual xiucai, da província. Ele não tinha muito tempo para a esposa, mas acho que ela encontrava consolo no nosso aposento do andar de cima. Ela era uma jovem instruída e prendada. Eu gostava muito dela. Minha filha, uma moça de dezesseis anos, nos seus dias de cabelo preso, estava noiva do filho de um rico negociante da distante Guilin. Talvez eu nunca mais fosse ver Jade de novo, mas essa aliança iria proteger ainda mais os nossos elos com o comércio de sal. A família Lu era rica, respeitada e afortunada. Eu tinha quarenta e dois anos de idade, e tinha feito o possível para esquecer Flor da Neve.
Num dia de final de outono, no quarto ano do reinado do imperador Tongzhi, Yonggang subiu a escada e cochichou no meu ouvido que alguém queria falar comigo. Pedi a ela que trouxesse a visita até o aposento do andar de cima, mas os olhos de Yonggang foram da minha filha para a minha nora, que estavam bordando juntas, e ela sacudiu negativamente a cabeça. Ou isso era uma impertinência da parte de Yonggang ou era algo mais sério. Sem dizer nada para as outras, desci. Quando entrei na sala principal, uma jovem pobremente vestida caiu de joelhos e encostou a testa no chão. Mendigas como ela vinham muito à minha porta, pois a minha generosidade era conhecida.
- Lady Lu, só a senhora pode me ajudar - a moça implorou, enquanto se arrastava na minha direção até encostar a testa nos meus pés de lírio.
Eu me inclinei e toquei no seu ombro.
- Dê-me a sua tigela que eu a encherei.
- Não tenho tigela de pedinte e não preciso de comida.
- Então por que está aqui?
A moça começou a chorar. Pedi que ela se levantasse e, como ela não o fez, tornei a tocar no seu ombro. Ao meu lado, Yonggang olhava para o chão.
- Levante-se! - ordenei.
A moça ergueu a cabeça e olhou para mim. Eu a teria reconhecido em qualquer lugar. A filha de Flor da Neve era exatamente igual à mãe naquela idade. Seu cabelo lutava contra os grampos e caía em mechas soltas no seu rosto, que era pálido como a lua de primavera em honra da qual foi dado o seu nome. Recordei com saudade aquela menina antes de ela nascer. Através das névoas da memória, vi Flor de Primavera como um lindo bebê, depois durante aqueles dias e noites terríveis do nosso inverno Taiping. Um dia aquela coisinha linda teria sido a laotong da minha filha. Agora ela estava ali, com a testa encostada nos meus pés, implorando a minha ajuda.
- Minha mãe está muito doente. Ela não vai sobreviver ao inverno. Não podemos fazer nada por ela a não ser acalmar a sua mente agitada. Por favor, venha vê-la. Ela está chamando pela senhora. Só a senhora pode responder.
Até cinco anos antes a minha dor ainda seria tanta que talvez eu tivesse mandado a menina embora, mas eu tinha aprendido um bocado como Lady Lu. Jamais poderia perdoar Flor da Neve por toda a tristeza que ela me tinha causado, mas, em virtude da minha posição na região, eu tinha que me comportar como uma dama benevolente. Eu disse a Lua de Primavera para ir para casa e prometi que chegaria logo; então chamei um palanquim para me levar a Jintian. No caminho para lá, eu me preparei para ver Flor da Neve e o açougueiro, o filho deles, que imaginei que já deveria estar casado, e, é claro, as irmãs juradas.
O palanquim deixou-me diante da casa de Flor da Neve. O lugar não tinha mudado. Uma pilha de lenha estava encostada do lado da casa. A plataforma com sua panela embutida esperava por uma nova vítima. Hesitei, contemplando aquilo tudo. O açougueiro apareceu na soleira escura da porta e então o vi diante de mim - mais velho, mais magro, mas o mesmo.
- Não suporto vê-la sofrer. - Foram as primeiras palavras que ele me disse depois de oito anos. Ele enxugou os olhos com as costas da mão. - Ela me deu um filho, que me ajudou a melhorar o meu negócio. Ela me deu uma filha boa e útil. Ela tornou a minha casa mais bonita. Cuidou da minha mãe até ela morrer. Fez tudo o que uma esposa deve fazer, mas fui cruel com ela, Lady Lu. Eu vejo isso agora. - Então ele passou por mim, acrescentando: - Ela estará melhor na companhia de mulheres. - Eu o observei caminhar na direção do campo, o único lugar onde um homem pode ficar só com suas emoções.
É difícil para mim pensar nisso mesmo depois de todos esses anos. Achei que tinha apagado Flor da Neve da minha memória e que a tinha arrancado do meu coração. Eu tinha realmente acreditado que jamais iria perdoar-lhe por amar mais as irmãs juradas do que a mim, mas, no momento em que vi Flor da Neve ali deitada, todos aqueles pensamentos e emoções desapareceram. O tempo - a vida - a havia brutalizado. Fiquei ali parada, uma mulher mais velha, é verdade, mas minha pele ainda era macia dos cremes, dos pós e de uma década de proteção contra o sol, enquanto minhas roupas diziam a toda a região quem eu era. Na cama, do outro lado do quarto, estava Flor da Neve, uma velha encarquilhada, vestida com farrapos. Ao contrário da filha, cujo rosto tinha sido imediatamente familiar para mim, eu não teria reconhecido Flor da Neve se a tivesse encontrado na rua, do lado de fora do Templo de Gupo.
Sim, as outras mulheres estavam lá - Lótus, Salgueiro e Flor de Ameixeira. Como suspeitei anos antes, as irmãs juradas de Flor da Neve eram as mulheres que tinham vivido conosco sob a árvore nas montanhas. Nós não nos cumprimentamos.
Quando me aproximei da cama, Lua de Primavera ergueu-se e se afastou. Os olhos de Flor da Neve estavam fechados e sua pele estava mortalmente pálida. Olhei para a filha dela, sem saber o que fazer. A menina balançou afirmativamente a cabeça e segurei a mão fria de Flor da Neve. Ela se mexeu sem abrir os olhos, depois ume-deceu os lábios rachados com a ponta da língua.
- Eu sinto... - Ela sacudiu a cabeça como se quisesse tirar um pensamento da cabeça.
Eu disse o nome dela baixinho, depois apertei de leve os seus dedos.
Os olhos da minha laotong abriram-se e ela tentou focá-los, a princípio não acreditando que era eu que estava diante dela.
- Senti o seu toque - murmurou ela finalmente. - Sabia que era você. - Sua voz estava fraca, mas, quando falou, os anos de dor e horror desapareceram. Por trás da devastação causada pela doença, vi e ouvi a meninazinha que tinha me convidado para ser sua laotong tantos anos antes.
- Ouvi você chamando por mim - menti. - Vim o mais depressa que pude.
- Eu estava esperando.
Seu rosto contorceu-se de angústia. Ela segurou o estômago com a outra mão e encolheu as pernas. A filha de Flor da Neve molhou um pano, torceu-o e me entregou, sem dizer uma palavra. Com ele, enxuguei o suor que havia brotado na testa de Flor da Neve durante o espasmo.
No meio da sua agonia, ela falou:
- Sinto muito por tudo, mas você precisa saber que nunca vacilei no meu amor por você.
Enquanto eu aceitava o seu pedido de perdão, outro espasmo atacou-a, ainda pior do que o primeiro. Ela fechou os olhos de dor e não tornou a falar. Voltei a molhar o pano e o pus de volta em sua testa; então, peguei sua mão de novo e me sentei ao seu lado até o sol se pôr. Nessa altura, as outras mulheres tinham saído e Lua de Primavera tinha descido para preparar o jantar. Sozinha com Flor da Neve, afastei sua colcha. A doença tinha comido toda a carne em volta dos ossos e criado um tumor do tamanho de um bebê em sua barriga.
Mesmo agora não consigo explicar as minhas emoções. Eu tinha passado muito tempo zangada e ofendida. Achei que nunca fosse perdoar à Flor da Neve, mas em vez de pensar nisso percebi, atordoada, que o ventre da minha laotong a havia traído de novo e que o tumor dentro dela devia estar crescendo havia muitos anos. Eu tinha um dever a cumprir...
Não! Não é isso. Sofri muito tempo porque ainda amava Flor da Neve. Ela era a única pessoa que tinha visto as minhas fraquezas e me amado apesar delas. E eu a tinha amado mesmo quando mais a odiara.
Arrumei a colcha em volta dela e comecei a planejar. Eu precisava conseguir um médico decente. Flor da Neve devia comer, e precisávamos de um adivinho. Eu queria que ela lutasse como eu ia lutar. Sabe, eu ainda não entendia que você não pode controlar as manifestações do amor nem pode mudar o destino de outra pessoa.
Levei aos lábios a mão fria de Flor da Neve; depois desci. O açougueiro estava esparramado numa cadeira. O filho de Flor da Neve, agora um homem, estava em pé ao lado da irmã. Eles me olharam com expressões herdadas da mãe - orgulhosos, tolerantes, resignados, humildes.
- Estou indo para casa - anunciei. O filho de Flor da Neve me olhou decepcionado, mas ergui a mão e disse: - Volto amanhã. Por favor, arrumem um lugar para eu dormir. Não vou deixar esta casa até... - Não pude continuar.
Achei que quando estivesse instalada lá poderíamos vencer aquela batalha, mas duas semanas foi tudo o que tivemos. Duas semanas que resultariam em meus oitenta anos para mostrar a Flor da Neve todo o amor que eu sentia por ela. Não deixei aquele quarto nem uma única vez. Tudo o que entrou no meu corpo foi trazido pela filha de Flor da Neve. Tudo o que saiu do meu corpo foi levado pela filha de Flor da Neve. Todo dia eu lavava Flor da Neve, depois usava a mesma água para me lavar. Uma bacia de água compartilhada muitos anos antes foi como eu soube que Flor da Neve me amava. Agora eu esperava que ela visse o que eu estava fazendo, se lembrasse do passado e soubesse que nada havia mudado.
A noite, depois que todos saíam, eu me levantava da cama que a família tinha preparado para mim e me deitava ao lado de Flor da Neve. Eu a abraçava, tentando levar calor ao seu corpo esquelético e aliviar o tormento que maltratava tanto o seu corpo que a fazia gemer mesmo em sonhos. Toda noite eu adormecia desejando que minhas mãos fossem esponjas para absorver o tumor em sua barriga. Toda manhã eu acordava com a mão dela no meu rosto, com seus olhos fundos olhando para mim.
Durante muitos anos, o médico de Jintian tinha cuidado de Flor da Neve. Mas eu quis que ela fosse examinada pelo meu médico. Assim que ele a viu, sacudiu a cabeça.
- Lady Lu, uma cura é impossível - disse ele. - Só o que a senhora pode fazer é esperar pela morte. Ela já pode ser percebida pelo tom arroxeado da pele dela logo acima de suas faixas. Primeiro, os tornozelos; em seguida virão as pernas, inchando e deixando a pele roxa à medida que sua força vital vai diminuindo. Logo depois, na minha opinião, a respiração dela irá se alterar. A senhora reconhecerá isso. Uma inspiração, uma expiração, depois mais nada. Quando a senhora achar que ela partiu, ela tornará a respirar. Não chore, Lady Lu. Nesse momento o fim estará muito próximo, e ela não estará mais sentindo dor.
O médico deixou pacotes de ervas para prepararmos um chá medicinal; paguei a ele e jurei que nunca mais o consultaria de novo.
Depois que ele saiu, Lótus, a mais velha das irmãs juradas, tentou consolar-me.
- O marido de Flor da Neve chamou muitos médicos, mas nenhum deles pode fazer nada por ela agora.
A velha fúria ameaçou tomar conta de mim, mas vi simpatia e compaixão no rosto de Lótus, não apenas por Flor da Neve mas também por mim.
Eu me lembrei de que amargo era o mais ruin dos sabores. Ele causava contrações, reduzia a febre e acalmava o coração e o espírito. Convencida de que melão amargo era algo que poderia paralisar a doença de Flor da Neve, chamei suas irmãs juradas para preparar melão amargo refogado com molho de feijão-preto e sopa de melão amargo. As três mulheres atenderam o meu pedido. Eu me sentei na cama de Flor da Neve e fui dando a sopa para ela às colheradas. A princípio ela comeu sem reclamar. Depois fechou a boca e olhou para o outro lado, ignorando a minha presença.
A irmã jurada do meio me puxou de lado. No alto da escada, Salgueiro tirou a tigela de sopa da minha mão e murmurou:
- É tarde demais para isso. Ela não quer comer. Você tem que tentar deixá-la partir. - Salgueiro deu um tapinha carinhoso no meu rosto. Mais tarde, naquele dia, ela é que iria limpar o vômito de melão amargo de Flor da Neve.
Meu plano seguinte e derradeiro foi chamar o adivinho. Ele entrou no quarto e anunciou:
- Um fantasma grudou-se no corpo da sua amiga. Não se preocupe. Juntos nós o mandaremos embora e ela estará curada. Senhorita Flor da Neve - disse ele, inclinando-se sobre a cama -, aqui estão algumas palavras para a senhora cantar. - E ordenou ao resto de nós: - Ajoelhem-se e rezem.
Então Lua de Primavera, madame Wang - sim, a velha casamenteira esteve lá quase o tempo todo —, as três irmãs juradas e eu caímos de joelhos ao redor da cama, e começamos a rezar e a cantar para a Deusa da Misericórdia, enquanto Flor da Neve repetia os versos com um fio de voz. Quando o adivinho nos viu cumprindo nossas tarefas, tirou um pedaço de papel do bolso, escreveu alguns encantamentos nele, ateou-lhe fogo e correu pelo quarto tentando afugentar o fantasma. Em seguida, usou uma espada para cortar a fumaça.
- Fora fantasma! Fora fantasma! Fora fantasma!
Mas isso não ajudou. Paguei o adivinho e da janela de treliça de Flor da Neve o vi subir na sua carroça puxada a cavalo e partir. Jurei que dali em diante só usaria adivinhos para encontrar datas propícias.
Flor de Ameixeira, a terceira e mais moça das irmãs juradas, veio ficar do meu lado.
- Flor da Neve está fazendo tudo o que você pede. Mas espero que você compreenda, Lady Lu, que ela só faz isso por você. Esse tormento já se prolongou demais. Se ela fosse um cachorro, você a manteria sofrendo tanto?
A dor existe em muitos níveis: a agonia física que Flor da Neve sofreu, a tristeza de vê-la sofrer e acreditar que eu não conseguiria suportar nem mais um instante, o arrependimento torturante que senti pelas coisas que tinha dito a ela oito anos antes - e para quê? Para ser respeitada pelas mulheres da minha aldeia? Para ferir Flor da Neve tanto quanto ela me havia ferido? Ou teria sido devido ao meu orgulho - se ela não podia estar comigo, não poderia estar com mais ninguém? Eu tinha me enganado em todos esses aspectos, inclusive o último, porque durante aqueles longos dias vi o apoio que as outras mulheres deram a Flor da Neve. Elas não tinham ido até ela apenas naqueles momentos finais como eu; tinham cuidado dela por muitos anos. A generosidade delas - na forma de sacos de arroz, de legumes cortados e lenha - a tinha mantido viva. Agora vinham todos os dias, negligenciando suas próprias obrigações em casa. Elas não se intrometiam no nosso relacionamento especial. Apenas pairavam como espíritos benignos, rezando, acendendo o fogo para espantar os fantasmas ávidos por Flor da Neve, mas sempre nos deixando sozinhas.
Devo ter dormido algumas vezes, mas não me lembro disso. Quando não estava cuidando de Flor da Neve, estava fazendo sapatos para o seu funeral. Escolhi cores que sabia que ela iria gostar.
Enfiei minha agulha e bordei um pé de sapatos com uma flor de lótus para simbolizar contínua e uma escada para simbolizar subindo, querendo sugerir que Flor da Neve estava numa subida contínua para o céu. No outro pé, bordei pequenos corços e morcegos de asas onduladas, símbolos que significam longa vida - os mesmos que você vê em trajes de casamento e em placas comemorativas de aniversários -, para que Flor da Neve soubesse que, mesmo depois de sua morte, seu sangue continuaria através do seu filho e da sua filha.
Flor da Neve piorou. Logo que cheguei, lavei e enrolei os seus pés, vi que os dedões já estavam roxos. Como o médico disse que iria acontecer, essa terrível cor da morte avançou na direção de seus tornozelos. Tentei fazer com que Flor da Neve lutasse contra a doença. No início, implorava a ela para invocar sua natureza de cavalo para chutar para longe aqueles espíritos que queriam levá-la. Agora, eu sabia, só o que restava era facilitar o mais que pudéssemos a sua passagem para o outro mundo.
Yonggang via tudo isso quando vinha me ver todas as manhãs, trazendo ovos frescos, roupas limpas e mensagens do meu marido. Ela havia sido leal e obediente a mim por muitos anos, mas nessa ocasião descobri que ela havia me enganado uma vez e serei eternamente grata a ela por isso. Três dias antes de Flor da Neve morrer, Yonggang chegou para uma de suas visitas matutinas, ajoelhou-se diante de mim e colocou uma cesta a meus pés.
- Eu vi a senhora, Lady, já faz muitos anos - disse ela, com a voz trêmula de medo. - Eu sabia que a senhora não queria fazer o que estava fazendo.
Eu não sabia do que ela estava falando nem por que tinha escolhido aquele momento para se confessar. Então, ela puxou o pano que cobria a cesta e tirou lá de dentro cartas, lenços, bordados e o leque secreto meu e de Flor da Neve. Eram essas as coisas que eu tinha procurado quando estava queimando o nosso passado, mas essa criada tinha se arriscado a ser atirada na rua para salvá-las, durante aqueles dias de Arrancar uma Doença do meu Coração, e as tinha protegido durante todos aqueles anos.
Vendo isso, Lua de Primavera e as irmãs juradas correram pelo quarto, cavucando a cesta de bordados de Flor da Neve, vasculhando gavetas e entrando debaixo da cama para encontrar esconderijos secretos. Em pouco tempo, eu tinha diante de mim todas as cartas que havia escrito para Flor da Neve e tudo o que tinha feito para ela. No fim, tudo - exceto o que eu havia destruído - estava lá.
Nos últimos dias de vida de Flor da Neve, eu nos transportei numa viagem através de nossa vida juntas. Nós duas havíamos decorado tanta coisa que podíamos recitar trechos inteiros, mas ela perdeu rapidamente as forças e passou o resto do tempo apenas segurando minha mão e ouvindo.
A noite, juntas na cama sob a janela de treliça, banhadas pelo luar, fomos transportadas para os nossos dias de cabelo preso. Escrevi caracteres em nu shu na palma de sua mão. A cama está banhada pelo luar...
- O que foi que eu escrevi? - perguntei. - Diga quais são os caracteres.
- Eu não sei - ela murmurou. - Não sei dizer...
Então recitei o poema e vi as lágrimas saltarem dos olhos de Flor da Neve, escorrerem por suas têmporas e se perderem em suas orelhas.
Durante a última conversa que tivemos, ela perguntou:
- Você pode fazer uma coisa por mim?
- Qualquer coisa - disse eu, e era verdade.
- Por favor, seja uma tia para os meus filhos. Eu prometi que seria.
Nada amenizava ou aliviava o sofrimento de Flor da Neve. Nas últimas horas, li o nosso contrato para ela, lembrando como tínhamos ido ao Templo de Gupo e comprado papel vermelho, depois nos sentado uma ao lado da outra, escrevendo as palavras. Tornei a ler as cartas que havíamos enviado uma para a outra. Li as partes alegres do nosso leque. Cantarolei velhas melodias da nossa infância. Eu disse o quanto a amava e disse que esperava que ela estivesse me aguardando no outro mundo. Falei com ela durante todo o caminho até a porta do céu, sem querer que ela partisse, mas ao mesmo tempo desejando que ela voasse em direção às nuvens.
A pele de Flor da Neve passou de branca para dourada. Uma vida inteira de preocupações desapareceu do seu rosto. As irmãs juradas, Lua de Primavera, madame Wang e eu ouvíamos a respiração de Flor da Neve: uma inspiração, uma expiração, depois nada. Segundos se passavam; então uma inspiração, uma expiração, depois nada. Mais alguns segundos cruciantes, então uma inspiração, uma expiração, depois nada. O tempo todo fiquei com a mão encostada no rosto de Flor da Neve como ela fizera por mim durante toda a nossa vida juntas, para que ela soubesse que a sua laotong estava lá até aquela última inspiração, expiração e depois, realmente, nada.
Muito do que aconteceu me fez lembrar da história educativa que titia costumava recitar sobre a menina que tinha três irmãos. Agora entendo que aprendemos aquelas canções e histórias não só para saber como nos comportar, mas porque viveríamos variações delas várias vezes durante a vida.
Flor da Neve foi levada para a sala principal. Eu a lavei e vesti com suas roupas para a eternidade - todas elas rasgadas e desbotadas, mas com estampas que me faziam recordar da nossa infância. A irmã jurada mais velha penteou o cabelo de Flor da Neve. A irmã jurada do meio passou pó no rosto de Flor da Neve e pintou os seus lábios. A irmã jurada mais moça enfeitou o seu cabelo com flores. O corpo de Flor da Neve foi colocado num caixão. Uma pequena banda veio tocar música fúnebre enquanto nós a velávamos na sala principal. A irmã jurada mais velha tinha dinheiro suficiente para comprar incenso. A irmã jurada do meio tinha dinheiro suficiente para comprar papel para queimar. A irmã jurada mais moça não tinha dinheiro para incenso nem para papel, mas fez um bom trabalho chorando.
Três dias depois, o açougueiro, seu filho e os maridos e filhos das irmãs juradas carregaram o caixão até o túmulo. Eles andavam muito depressa, como se estivessem voando. Levei quase todos os escritos em nu shu de Flor da Neve, inclusive muitos do que eu havia mandado para ela, e queimei para que ela tivesse as nossas palavras no outro mundo.
Voltamos para a casa do açougueiro. Lua de Primavera fez chá, enquanto as três irmãs juradas e eu fomos para cima para limpar todos os sinais de morte.
Foi por elas que eu soube da minha maior vergonha. Elas me contaram que Flor da Neve não era sua irmã jurada. Eu não acreditei. Elas tentaram me convencer.
- Mas e o leque? - perguntei, em desespero. - Ela escreveu que estava se juntando a vocês.
- Não - Lótus corrigiu. - Ela escreveu que não queria que você se preocupasse mais com ela, que tinha amigas aqui para consolá-la.
Perguntaram se podiam ver as palavras por si mesmas. Flor da Neve, fiquei sabendo, tinha ensinado essas mulheres a ler em nu shu. Elas se juntaram em torno do leque como um bando de galinhas, exclamando e apontando as anotações que Flor da Neve havia contado para elas ao longo dos anos. Mas quando chegaram à última mensagem, ficaram sérias.
- Veja - Lótus disse, apontando para os caracteres. - Não há nada aqui que diga que ela se tornou nossa irmã jurada.
Puxei o leque e o levei para um canto onde pudesse examiná-lo sozinha. "Tenho problemas demais", Flor da Neve tinha escrito. "Não posso ser aquilo que você deseja. Você não terá mais que ouvir as minhas queixas. Três irmãs juradas prometeram amar-me como eu sou..."
- Está vendo, Lady Lu? - Lótus disse do outro lado do quarto. - Flor da Neve queria que a escutássemos. Em troca, ela nos ensinou a linguagem secreta. Ela era nossa professora e nós a respeitávamos e amávamos por isso. Mas ela não nos amava, ela amava você. Ela queria o mesmo amor em troca, sem o peso da sua piedade e da sua impaciência.
O fato de eu ter sido superficial, teimosa e egoísta não alterava a gravidade e a estupidez do que eu tinha feito. Eu tinha cometido o maior erro que uma mulher instruída em nu shu pode cometer: eu não tinha considerado a textura, o contexto e as nuances de significado. Mais do que isso, a minha crença na minha própria importância tinha-me feito esquecer o que eu tinha aprendido no dia em que conheci Flor da Neve: Ela era sempre mais sutil e sofisticada em suas palavras do que essa simples segunda filha de um fazendeiro comum. Durante oito anos, Flor da Neve tinha sofrido por causa da minha cegueira e da minha ignorância. Pelo resto da minha vida -quase tantos anos quanto Flor da Neve tinha ao morrer - convivi com esse remorso.
Mas elas não tinham terminado comigo.
- Ela tentou agradá-la de todas as maneiras - Lótus disse -, até mesmo fazendo coisa de cama com o marido logo depois de dar à luz.
- Isso não é verdade!
- Toda vez que ela perdia um bebê, você não oferecia mais simpatia do que seu marido ou sua sogra - Salgueiro continuou. - Você sempre disse que seu único valor vinha do fato de pôr filhos homens no mundo, e ela acreditou em você. Você disse para ela tentar de novo, e ela obedeceu.
- É isso que nos cabe dizer - respondi, indignada. - É assim que nós, mulheres, oferecemos consolo...
- Mas você acha que essas palavras serviram de consolo quando ela perdeu outro bebê?
- Vocês não estavam lá. Vocês não ouviram...
- Tente de novo! Tente de novo! Tente de novo! - Flor de Ameixeira insistiu. - Você pode negar ter dito essas coisas?
Eu não podia.
- Você exigiu que ela seguisse seus conselhos nisso e em muitas outras coisas - Lótus continuou. - Então, quando ela fez isso, você a criticou...
- Vocês estão deturpando minhas palavras.
- Estamos? - Salgueiro perguntou. - Ela falava em você o tempo todo. Ela nunca disse uma palavra contra você, mas percebemos a verdade do que aconteceu.
- Ela a amava como uma laotong deve amar, por tudo o que você era e por tudo o que você não era - Flor de Ameixeira concluiu. - Mas você tinha muito pensamento masculino em você. Você a amava como um homem a amaria, valorizando-a apenas por seguir as regras dos homens.
Terminado um ciclo, Lótus iniciou outro.
- Você se lembra quando estávamos nas montanhas e ela perdeu o bebê? - perguntou num tom de voz que me fez temer o que vinha em seguida.
- É claro que me lembro.
- Ela já estava doente.
- Isso não é possível. O açougueiro...
- Talvez o marido tenha tido a culpa naquele dia - Salgueiro admitiu. - Mas o sangue que saiu do corpo dela era negro, estagnado, moribundo, e nenhuma de nós viu nenhum bebê no meio daquela sujeira.
Mais uma vez, Flor de Ameixeira concluiu:
- Nós ficamos muitos anos aqui com ela, e isso aconteceu muitas outras vezes. Ela já estava bem doente quando você recitou a sua Carta de Injúria.
Eu não tinha sido bem-sucedida na minha argumentação com elas antes. Como poderia discutir esse ponto? O tumor tinha que estar crescendo há muito tempo. Outras coisas do passado então se encaixaram: a falta de apetite de Flor da Neve, sua palidez e sua perda de energia na própria ocasião em que eu estava implicando com ela para comer melhor, para beliscar o rosto para ficar mais rosada e para fazer tudo o que era esperado dela, a fim de trazer harmonia para a casa do seu marido. E então me lembrei de que duas semanas antes, quando cheguei à casa dela, ela havia pedido desculpas. Eu não tinha feito o mesmo - nem quando ela estava no auge do sofrimento, nem mesmo quando sua morte era iminente, nem mesmo quando estava dizendo a mim mesma que ainda a amava. O coração dela sempre fora puro, mas o meu tinha ficado tão duro, enrugado e seco quanto uma noz velha.
As vezes penso naquelas irmãs juradas - todas mortas agora, é claro. Tinham de ser cuidadosas com o que diziam para mim, porque eu era Lady Lu. Mas elas não iam deixar-me sair daquela casa sem conhecer a verdade.
Voltei para casa e me retirei para o meu aposento do andar de cima com o leque e algumas cartas que havia guardado. Triturei tinta até ela ficar preta como o céu noturno. Abri o leque, molhei o meu pincel na tinta e fiz o que acreditei ser a minha última anotação.
"Você que sempre conheceu o meu coração agora voa acima das nuvens no calor do sol. Espero que um dia possamos voar juntas." Eu teria muitos anos para refletir sobre aquelas linhas e fazer o que pudesse para consertar todo o mal que eu tinha causado para a pessoa que mais amei no mundo.
Remorso
Agora estou velha demais para usar minhas mãos para cozinhar, tecer ou bordar, e olhando para elas vejo as manchas causadas pelo excesso de anos vividos, quer você trabalhe ao ar livre sob o sol ou passe a vida inteira abrigada no aposento das mulheres. Minha pele está tão fina que pontinhos de sangue aparecem sob a superfície quando bato nas coisas ou as coisas batem em mim. Minhas mãos estão cansadas de triturar tinta na pedra, minhas articulações inchadas de segurar o pincel. Duas moscas estão pousadas no meu polegar, mas estou cansada demais para espantá-las. Meus olhos - os olhos úmidos de uma dama muito velha - têm lacrimejado muito nestes últimos dias. Meu cabelo - branco e fino -escapou dos grampos que deveriam segurá-lo no lugar por baixo do lenço. Quando chegam visitantes, eles tentam não olhar para mim. Tento não olhar para eles também. Vivi tempo demais.
Depois que Flor da Neve morreu, eu ainda tinha metade da minha vida diante de mim. Meus dias de arroz-e-sal ainda não tinham terminado, mas no meu coração iniciei os anos de Sentar Calmamente. Para a maioria das mulheres, eles começam com a morte do marido. Para mim, começaram com a morte de Flor da Neve. Eu era "aquela que não morreu", mas as circunstâncias impediam-me de ficar completamente parada ou quieta. Meu marido e minha família precisavam que eu fosse esposa e mãe. Minha comunidade precisava que eu fosse Lady Lu. E havia os filhos de Flor da Neve, de quem eu precisava - para poder me redimir com minha laotong. Mas é difícil ser verdadeiramente generosa e se comportar de uma maneira correta quando você não sabe como.
A primeira coisa que fiz nos meses que se seguiram à morte de Flor da Neve foi tomar o lugar dela em todas as tradições e cerimônias de casamento da filha dela. Lua de Primavera parecia resignada com a perspectiva de se casar, triste por estar saindo de casa, insegura - tendo visto o modo como o pai tratava a mãe — com o que esperar. Eu disse a mim mesma que todas as moças se preocupam com essas coisas. Mas na noite do seu casamento, depois que seu marido adormeceu, Lua de Primavera cometeu suicídio, atirando-se no poço da aldeia.
"Essa moça poluiu não apenas a sua nova família, mas também toda a água de beber da aldeia", era o que cochichavam. "Ela era igualzinha à mãe. Lembra daquela Carta de Injúria?" O fato de eu ter lido a carta que havia arruinado a reputação de Flor da Neve doía na minha consciência, então eu calava esse comentário sempre que o ouvia. Pelas minhas palavras, fiquei conhecida como alguém que era generosa e caridosa para com os impuros, mas eu sabia que havia falhado miseravelmente na minha primeira tentativa de acertar as coisas com Flor da Neve. O dia em que relatei a morte daquela menina no leque foi um dos piores da minha vida.
Em seguida, dirigi os meus esforços para o filho de Flor da Neve. Apesar das péssimas condições em que vivia e do fato de não ter nenhum apoio do pai, ele aprendeu um pouco da escrita dos homens e era bom com números. Entretanto, ele trabalhava ao lado do pai e não tinha mais alegria em sua vida do que quando era criança. Conheci a esposa dele, que ainda vivia com sua família de nascimento. Dessa vez tinha sido feita uma boa escolha. A moça engravidou, mas a idéia de que ela iria cair na casa do açougueiro me incomodava. Embora eu não costumasse interferir no mundo externo dos homens, insisti com meu marido — que não só havia herdado os bens de tio Lu, mas os havia multiplicado com os lucros do comércio de sal, e agora tinha plantações que se estendiam até Jintian - para arranjar algo para esse jovem fazer além de matar porcos. Ele contratou o filho de Flor da Neve para cobrar o aluguel dos fazendeiros e deu a ele uma casa com sua própria horta. Finalmente, o açougueiro se aposentou, foi morar com o filho e se apegou enormemente ao neto, que trouxe grande alegria para aquela casa. O rapaz e sua família eram felizes, mas eu sabia que ainda não tinha feito o suficiente para merecer o perdão de Flor da Neve.
Aos cinqüenta anos, quando a minha menstruação parou, minha vida tornou a mudar. Em vez de servir aos outros, passei a ser servida por eles, embora eu os observasse e corrigisse quando algo me desagradava. Mas, como disse, no meu coração eu já estava sentada calmamente. Tornei-me vegetariana e evitava comidas quentes como alho e vinho. Eu estudava sutras religiosos, praticava rituais de purificação e desejava renunciar aos aspectos poluidores das coisas de cama. Embora eu houvesse conspirado a vida inteira para que meu marido jamais trouxesse para casa uma concubina, olhei para ele e tive compaixão. Ele merecia a recompensa por uma vida inteira de trabalho duro. Não esperei que ele agisse - talvez nunca o tivesse feito -, mas me encarreguei de procurar e trazer para a nossa casa não uma, mas três concubinas para distraí-lo. Tendo-as escolhido eu mesma, pude evitar muitos ciúmes e desavenças que normalmente ocorrem entre moças jovens e bonitas. Não me importei quando elas tiveram filhos. E, na realidade, o respeito pelo meu marido aumentou na aldeia. Ele tinha provado não só que podia sustentar as mulheres mas que o seu chi era mais forte do que o de qualquer outro homem na região.
O meu relacionamento com meu marido transformou-se num grande companheirismo. Ele vinha freqüentemente ao aposento das mulheres para tomar chá e conversar comigo. O consolo que ele encontrava na calma do mundo interno fazia desaparecer suas preocupações com o caos, a instabilidade e a corrupção do mundo externo.
Esse foi talvez o período em que fomos mais felizes juntos. Havíamos plantado um jardim, e ele florescia à nossa volta de muitas maneiras. Todos os nossos filhos se casaram. Todas as esposas deles se mostraram férteis. Nossa casa era alegre com o barulho dos nossos netos. Nós os amávamos, mas o meu maior interesse era por uma criança que não era do meu sangue. Eu a queria perto de mim.
Numa pequena casa em Jintian, a esposa do coletor de aluguéis tinha tido uma menina. Eu queria aquela criança - a neta de Flor da Neve — para casá-la com o meu neto mais velho. Seis anos não é cedo demais para um Acordo Familiar, quando ambas as famílias querem selar o noivado de um casal valioso, quando a família do noivo está disposta a começar a enviar presentes pelo pagamento de noiva e quando a família da noiva é pobre o suficiente para precisar deles. Achei que preenchíamos todas as condições, e o meu marido - após trinta e dois anos de casamento, durante os quais eu nunca lhe dei motivos para sentir vergonha de mim - foi generoso o bastante para atender ao meu pedido.
Mandei chamar madame Wang na época em que os pés da menina deveriam começar a ser amarrados. A velha foi acompanhada até a sala principal por duas moças de pés grandes, que me disseram que, embora outras casamenteiras tivessem agora mais clientes, ela guardara dinheiro suficiente para viver bem. Entretanto, os anos não haviam sido bondosos com madame Wang. O rosto tinha murchado, seus olhos estavam brancos de cegueira. Ela estava desdentada. Tinha muito pouco cabelo. Seu corpo tinha encolhido e ela se tornara corcunda. Estava tão frágil e deformada que mal conseguia andar com seus pés de lírio. Soube, então, que não queria viver tanto tempo; entretanto, aqui estou eu.
Ofereci a ela chá e doces. E conversamos sobre trivialidades. Achei que ela não se lembrava mais de mim. Pensei em usar isso a meu favor. Conversamos mais um pouco, e então entrei no assunto.
- Eu estou procurando uma noiva para o meu neto.
- Eu não deveria estar falando com o pai do menino? - madame Wang perguntou.
- Ele está fora e pediu que eu negociasse em nome dele.
A velha fechou os olhos como se estivesse refletindo a respeito. Ou então ela cochilou.
- Ouvi dizer que há uma boa candidata em Jintian - continuei, falando mais alto. - Ela é filha de um coletor de aluguéis.
O que madame Wang disse depois me fez ver que ela sabia exatamente quem eu era.
- Por que não trazer a menina como uma pequena nora? - perguntou. - A sua casa é muito importante. Tenho certeza de que seu filho e sua nora ficariam felizes com essa combinação
Na realidade, eles não estavam satisfeitos com o que eu estava fazendo. Mas o que podiam fazer? Meu filho era um intelectual. Tinha acabado de passar no nível seguinte dos exames imperiais para tornar-se um juren com apenas trinta anos de idade. Ou a cabeça dele estava nas nuvens ou ele estava viajando pelo campo. Raramente vinha para casa e, quando vinha, era com histórias bizarras do que tinha visto: estrangeiros altos e grotescos com barbas vermelhas, que tinham esposas com cinturas tão apertadas que mal podiam respirar e pés enormes que esperneavam como peixes recém-apanhados. Tirando essas histórias, meu filho era devotado e fazia o que o pai queria, enquanto que minha nora tinha de me obedecer. Entretanto, ela havia se retirado inteiramente dessas discussões e se recolhido ao quarto para chorar.
- Não estou em busca de uma menina de pés grandes - disse eu. - Quero casá-lo com uma menina que tenha os pés mais perfeitos da região.
- A criança ainda não iniciou esse processo. Não há nenhuma garantia de que...
- Mas a senhora viu os pés dela, estou certa, madame Wang? A senhora é um bom juiz. Como acha que eles vão ficar?
- Talvez a mãe da menina não saiba fazer um bom trabalho...
- Então eu mesma vou fazer isso.
- Você não pode trazer a menina para esta casa se estiver querendo um casamento - madame Wang disse. - Seria impróprio que o seu neto visse a futura esposa.
Ela não tinha mudado, mas eu também não.
- A senhora tem razão, madame. Irei visitar a casa da menina.
- Isso não é nada apropriado...
- Eu a visitarei com freqüência. Tenho muitas coisas para ensinar a ela. - Vi madame Wang ponderando sobre isso. Então inclinei-me para a frente e cobri a mão da velha com a minha. - Acredito, titia, que a avó da menina teria aprovado.
Surgiram lágrimas nos olhos da casamenteira.
- Essa menina vai precisar aprender as artes femininas - continuei apressadamente. - Ela vai precisar viajar, não para tão longe que venha a ter ambições fora do mundo feminino, mas acho que a senhora concordaria que ela precisa visitar o Templo de Gupo todos os anos. Dizem que um dia houve um homem lá que preparava uma iguaria especial de taro. Soube que o neto dele mantém essa tradição.
Insisti na negociação, e a neta de Flor da Neve ficou sob minha proteção. Eu mesma amarrei os pés dela. Demonstrei-lhe todo o amor maternal possível ao fazê-la caminhar de um lado para outro no aposento do andar de cima da casa de seus pais. Os pés de Peônia tornaram-se perfeitos lírios dourados, idênticos em tamanho aos meus. Durante os longos meses que os ossos de Peônia levaram para se consolidar, eu a visitava quase todos os dias. Seus pais a amavam muito, mas seu pai tentava não pensar no passado e sua mãe não o conhecia. Então eu conversava com a menina, tecendo histórias sobre sua avó e a laotong dela, sobre escrever e cantar, sobre amizade e sofrimento.
- Sua avó nasceu numa família instruída - disse eu a ela. - Você vai aprender o que ela me ensinou: bordado, dignidade e, o que é mais importante, nossa escrita secreta.
Peônia era dedicada nos estudos, mas um dia ela me disse:
- Minha letra é grosseira. Espero que você me perdoe por isso. Ela era a neta de Flor da Neve, mas como eu podia não me ver nela também?
Eu às vezes me pergunto o que foi pior, ver Flor da Neve ou o meu marido morrer. Ambos sofreram muito. Apenas um teve um funeral em que três filhos percorreram de joelhos todo o caminho até o túmulo. Eu tinha cinqüenta e sete anos quando o meu marido foi para o outro mundo, velha demais para meus filhos pensarem em me casar de novo ou até mesmo para se preocuparem em saber se eu seria ou não uma viúva casta. Eu fui casta. Já o era havia muitos anos, só que agora era duplamente viúva. Não escrevi muito sobre o meu marido nestas páginas. Tudo isso está na minha biografia oficial. Mas vou dizer o seguinte: Ele me deu motivos para prosseguir vivendo dia após dia. Eu tinha de providenciar suas refeições. Eu tinha de pensar em coisas espirituosas para distraí-lo. Depois que ele se foi, passei a comer cada vez menos. Não queria mais ser um exemplo de mulher para a região. Os dias se transformaram em semanas. Esqueci o tempo. Ignorei os ciclos das estações. Os anos formaram décadas.
O problema de viver tanto é que você vê gente demais morrer antes de você. Sobrevivi a quase todo mundo - meus pais, minha tia e meu tio, meus irmãos, madame Wang, meu marido, minha filha, dois dos meus filhos, todas as minhas noras e até a Yonggang. Meu filho mais velho tornou-se um gongsheng e depois um jinshi. O próprio imperador leu o seu ensaio de oito partes. Como funcionário da corte, meu filho fica fora a maior parte do tempo, mas ele assegurou a posição da família Lu por muitas gerações. Ele é um filho devotado, e sei que jamais deixará de cumprir as suas obrigações. Ele até comprou um caixão - grande e laqueado - para eu descansar após minha morte. O nome dele -junto com os do tio-avô Lu e do bisavô de Flor da Neve - estão pendurados orgulhosamente, escritos em caracteres masculinos, no templo ancestral de Tongkou. Aqueles três nomes estarão lá até o prédio desabar.
Peônia está agora com trinta e sete anos, seis anos mais do que eu quando me tornei Lady Lu. Como esposa do meu neto mais velho, ela se tornará a próxima Lady Lu quando eu morrer. Ela tem dois filhos, três filhas e ainda pode ter mais filhos. Seu filho mais velho casou-se com uma moça de outra aldeia. Ela teve gêmeos recentemente, um menino e uma menina. Nos rostos deles vejo Flor da Neve, mas vejo também a mim. Quando somos meninas, as pessoas nos dizem que somos galhos inúteis, porque não levaremos o nome de nossa família natal, mas apenas o nome da família de nossos maridos, caso tenhamos a sorte de parir filhos homens. Dessa forma, uma mulher pertence para sempre à família do marido, quer esteja viva ou morta. Tudo isso é verdade, entretanto, hoje em dia, a minha felicidade vem de eu saber que o sangue de Flor da Neve e o meu irão em breve comandar a casa de Lu.
Sempre acreditei no velho ditado que diz: "Uma mulher sem conhecimento é melhor do que uma mulher instruída." A minha vida inteira fechei os ouvidos ao que acontecia no mundo externo e não tive vontade de aprender a escrita dos homens, mas aprendi os costumes femininos, as histórias e nu shu. Anos atrás, quando estava em Jintian ensinando a Peônia e suas irmãs juradas os traços da nossa escrita secreta, muitas mulheres perguntaram se eu escreveria as suas biografias. Não pude dizer não. É claro que cobrei delas uma taxa - três ovos e uma peça de cash. Eu não precisava nem dos ovos nem do dinheiro, mas eu era Lady Lu, e elas precisavam respeitar a minha posição. Mas era mais do que isso. Eu queria que elas dessem valor às suas vidas, que eram quase sempre tristes. Vinham de famílias pobres e ingratas que as deram em casamento em tenra idade. Sofreram a tristeza da separação de seus pais, da perda de filhos e as indignidades de ocupar a posição mais subalterna na casa de seus sogros, e muitas tinham maridos que batiam nelas. Sei um bocado sobre mulheres e seus sofrimentos, mas ainda não sei quase nada sobre os homens. Se um homem não valoriza a sua esposa ao se casar, por que irá apreciá-la depois? Se ele não considera a sua mulher melhor do que uma galinha que pode fornecer um suprimento inesgotável de ovos ou do que um búfalo que pode suportar uma carga inesgotável de peso em seus ombros, por que ele irá apreciá-la mais do que a esses animais? Ele pode apreciá-la até menos, já que ela não é tão corajosa, forte, tolerante ou capaz de buscar alimentos sozinha.
Tendo ouvido tantas histórias, pensei na minha. Durante quarenta anos, o passado só me causou arrependimento. Só amei verdadeiramente uma única pessoa, mas a tratei pior do que o pior dos maridos. Depois que Flor da Neve me pediu para ser uma tia para os seus filhos, ela disse - e estas foram as últimas palavras que disse para mim: "Embora eu não fosse tão boa quanto você, acredito que espíritos celestiais nos uniram. Ficaremos juntas para sempre." Tantas vezes refleti sobre isso. Ela estava dizendo a verdade? E se o outro mundo não tiver compaixão? Mas, se os mortos continuam a ter as mesmas necessidades e desejos dos vivos, então eu me dirijo a Flor da Neve e aos outros que testemunharam tudo isto. Por favor, ouçam as minhas palavras. Por favor, perdoem-me.
Lisa See
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