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FLORES DA RUINA / Patrick Modiano
FLORES DA RUINA / Patrick Modiano

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Naquele domingo à noite de novembro eu caminhava pela rue de l’Abbé-de-l’Épée. Ladeava o grande muro do Instituto de Surdos-Mudos. À esquerda, ergue-se o relógio da igreja Saint-Jacques-du-Haut-Pas. Eu me lembrava de um café na esquina da rue Saint-Jacques aonde ia depois de ter assistido a um filme no Studio des Ursulines.

Na calçada, folhas mortas. Ou as páginas queimadas de um velho dicionário Gaffiot. O bairro das universidades e dos conventos. Alguns nomes antiquados voltavam a minha memória: Estrapade, Contrescarpe, Tournefort, Pot-de-Fer... Sentia-me apreensivo ao passar por lugares onde não colocava os pés desde meus dezoito anos, quando estudava em um liceu da Montagne-Sainte-Geneviève.
Tinha a sensação de que os lugares permaneceram do jeito que eu os havia deixado no início dos anos sessenta, e que foram abandonados na mesma época, lá se iam mais de vinte e cinco anos. Na rue Gay-Lussac — esta rua silenciosa onde, outrora, arrancaram paralelepípedos e ergueram barricadas —, a porta de um hotel estava pregada e a maioria das janelas já não tinha mais vidros. Porém a placa permanecia afixada ao muro: Hôtel de l’Avenir. Hotel do Futuro. Que futuro? Aquele, já consumado, de um estudante dos anos trinta que alugava um quartinho no hotel, depois de concluir a Escola Normal Superior, e que às noites de sábado convidava os antigos colegas? E contornavam o conjunto de prédios para ver um filme no Studio des Ursulines. Passei diante da grade e da casa branca com persianas que abriga o cinema no térreo. O vestíbulo estava iluminado. Eu poderia caminhar até o Val-de-Grâce por essa área agradável onde havíamos nos escondido, Jacqueline e eu, para que o marquês não tivesse a menor chance de encontrá-la. Morávamos em um hotel no fim da rue Pierre-Nicole. Vivíamos com o dinheiro que Jacqueline conseguira com a venda de seu casaco de pele. A rua ensolarada, a tarde de domingo. Os alfeneiros da casinha de tijolos aparentes em frente ao colégio Sévigné. A hera recobria as sacadas do hotel. O cachorro dormia no corredor da entrada.
Cheguei à rue d’Ulm. Estava deserta. Embora eu me dissesse que isso nada tinha de insólito em uma noite de domingo nesse bairro estudioso e provinciano, perguntava-me se continuava em Paris. Diante de mim, o domo do Panthéon. Tive medo de ficar sozinho ao pé daquele monumento fúnebre banhado pela luz da lua e entrei na rue Lhomond. Detive-me diante do colégio dos Irlandeses. Um relógio soou oito badaladas, talvez o da Congregação do Espírito Santo, cuja fachada maciça se erguia a minha direita. Mais alguns passos e desemboquei na place de l’Estrapade. Procurei o número 26 da rue des Fossés-Saint-Jacques. Um prédio moderno, bem ali, diante de mim. O antigo prédio sem dúvida tinha sido demolido uns vinte anos antes.
24 de abril de 1933. Um jovem casal se suicida por razões misteriosas.

 


 


Uma história muito estranha se desenrolou na noite anterior no prédio 26 da rue des Fossés-Saint-Jacques, perto do Panthéon, na casa do senhor e da senhora T.

O senhor Urbain T., jovem engenheiro, melhor aluno da Escola de Química, casara-se havia três anos com a senhorita Gisèle S., de vinte e seis anos, um a mais que ele. A senhora T. era uma bela mulher loura, alta e esbelta. Quanto ao marido, ele era um típico rapaz moreno e bonito. Haviam se instalado no último mês de julho no térreo do número 26 da rue des Fossés-Saint-Jacques, em um ateliê transformado por eles em estúdio. O jovem casal era bastante unido. Nenhuma preocupação parecia atrapalhar a felicidade dos dois.

Na noite de sábado, Urbain T. decidiu jantar fora com a esposa. Os dois deixaram seu domicílio por volta das sete da noite. Só retornariam por volta das duas da manhã, acompanhados por dois casais que tinham acabado de conhecer. A balbúrdia inusitada acordou os vizinhos, pouco habituados a manifestações tão barulhentas por parte de inquilinos em geral bastante discretos. Sem dúvida houve imprevistos na festa.

Por volta das quatro da manhã os convidados foram embora. Durante a meia hora seguinte, transcorrida em silêncio, dois disparos surdos ecoaram. Às nove, ao sair de casa, uma vizinha passou diante da porta dos T. Ouviu gemidos. Lembrando-se de súbito dos disparos da madrugada, ficou preocupada e bateu à porta. Gisèle T. apareceu. O sangue escorria lentamente de uma ferida aparente abaixo do seio esquerdo. Ela murmurou: “Meu marido! Meu marido! Morto.” Pouco depois chegava o senhor Magnan, comissário de polícia. Gisèle gemia, estirada no sofá. No cômodo contíguo, encontraram o cadáver do marido. Ele ainda segurava o revólver na mão crispada. Tinha se suicidado com uma bala no coração.

A seu lado, uma carta escrita às pressas: “Minha mulher se matou. Estávamos bêbados. Eu me matei. Não procurem...”


Segundo a investigação, ao que tudo indica, Urbain e Gisèle T., depois do jantar, foram parar em um bar de Montparnasse. Uma noite dessas andei da rue des Fossés-Saint-Jacques até o cruzamento com a rua onde ficam o Dôme e la Rotonde, após ter deixado para trás os jardins escuros do Observatório. Os T. provavelmente seguiram o mesmo caminho naquela noite de 1933. Estava surpreso por me encontrar em um lugar que evitava desde os anos sessenta. Como o Ursulines, o bairro de Montparnasse evocou para mim o castelo da Bela Adormecida. Experimentara a mesma sensação, vinte anos antes, quando me hospedei por algumas noites em um hotel da rue Delambre; Montparnasse já me parecia um bairro que sobrevivia a si mesmo e decaía aos poucos, longe de Paris. Quando chovia na rue d’Odessa ou na rue du Départ, eu me sentia em um porto bretão sob a garoa. Da estação de trem ainda não destruída vinham baforadas de Brest ou de Lorient. Ali a festa terminara tempos atrás. Lembro-me de que o letreiro do antigo Jimmy’s ainda pendia do muro da rue Huyghens e que lhe faltavam duas ou três letras, levadas pelo vento.

Era a primeira vez — de acordo com os jornais de abril de 1933 — que o jovem casal entrava em um estabelecimento noturno de Montparnasse. Teriam bebido além da conta durante o jantar? Ou queriam apenas interromper, por uma noite, o tranquilo curso da vida? Uma testemunha garantia tê-los visto, por volta das dez, no Café de La Marine, um dancing, 243, boulevard Raspail; outra, no cabaré des Isles, na rue Vavin, acompanhados por duas mulheres. Os policiais mostravam as fotos do casal em busca de depoimentos, que corriam o risco de não ser confiáveis, pois havia muitas moças louras e rapazes morenos como Urbain e Gisèle T. Durante alguns dias, tentaram identificar os dois casais levados pelos T. ao apartamento na rue des Fossés-Saint-Jacques, mas acabaram encerrando a investigação. Gisèle T., antes de sucumbir ao ferimento, tinha conseguido falar, porém suas lembranças eram vagas. Sim, encontraram-se com duas mulheres em Montparnasse, duas desconhecidas sobre as quais ela nada sabia... E as duas levaram o casal a um dancing em Perreux, onde dois homens se juntaram ao grupo. Depois, foram a uma casa que tinha um elevador vermelho.

Nesta noite, sigo seus passos em um bairro enfadonho que a torre Montparnasse vela em luto. Durante o dia, a torre encobre o céu e projeta sua sombra sobre o boulevard Edgar-Quinet e as ruas vizinhas. Deixo para trás o Coupole, que está sendo esmagado debaixo de uma fachada de concreto. É difícil acreditar que, outrora, Montparnasse teve uma vida noturna...

Em que época exatamente morei naquele hotel da rue Delambre? Por volta de 1965, quando conheci Jacqueline, pouco antes da minha partida para Viena, Áustria.

O quarto vizinho ao meu era ocupado por um homem de cerca de trinta e cinco anos, um louro com quem eu costumava cruzar no corredor e que acabei conhecendo. Seu nome? Algo como Devez ou Duvelz.

Ele andava sempre muito bem-arrumado e exibia uma condecoração na lapela. Em várias ocasiões, havia me convidado a beber alguma coisa em um bar, o Rosebud, pertinho do hotel. Eu não me atrevia a recusar. Ele parecia encantado com o lugar.

— Este lugar é simpático...

Ele tinha uma boa dicção, como um rapaz de boa família. Havia me confidenciado que passara mais de três anos “nas djebels” e lá ganhara aquela condecoração. Mas a guerra da Argélia o havia traumatizado. Ele demorou muito para se recuperar. Assumiria, como repetia sem cessar, o cargo do pai no comando de uma grande empresa da indústria têxtil no norte do país.

Logo me dei conta de que ele não me dizia a verdade: sobre essa “indústria têxtil”, mantinha-se vago. E se contradizia, afirmando-me um dia que havia deixado a escola de Saint-Maixent pouco antes de sua partida para a Argélia; depois, no dia seguinte, contava que tinha concluído todos os seus estudos na Inglaterra. Às vezes a boa dicção dava lugar a uma tagarelice de camelô.

Foi preciso caminhar por Montparnasse naquele domingo à noite para que esse Duvelz — ou Devez — ressurgisse subitamente do nada. Certo dia, lembro-me bem, havíamos nos encontrado por acaso na rue de Rennes, e ele me oferecera uma caneca — como dizia — em um dos cafés do melancólico carrefour Saint-Placide.

O cabaré des Isles, na rue Vavin, onde teriam notado a presença do casal, ficava no subsolo do Vikings. O ambiente escandinavo e a madeira clara do Vikings contrastavam com aquele baile negro. Bastava descer as escadas: dos coquetéis e aperitivos noruegueses do térreo se mergulhava nas danças martinicanas. Teria sido ali que os T. se encontraram com as duas mulheres? Tenho a impressão de ter sido no Café de La Marine, no boulevard Raspail, para os lados de Denfert-Rochereau. Eu me lembro do apartamento aonde Duvelz havia nos levado, Jacqueline e eu, no início desse mesmo boulevard Raspail. Daquela vez, tampouco, atrevi-me a recusar seu convite. Durante quase uma semana, ele tinha insistido para que nós dois fôssemos sábado à noite à casa de uma amiga que ele gostaria muito de nos apresentar.

Ela abriu a porta para nós e, à penumbra do vestíbulo, não pude distinguir muito bem seu rosto. A grande sala de estar aonde entramos, que não correspondia em nada ao quartinho de Duvelz na rue Delambre, atordoou-me com seu luxo. Ele estava lá. Apresentou-nos. Esqueci o nome dela: uma morena de traços harmoniosos e uma grande cicatriz atravessando uma das faces, na altura da maçã do rosto.

Estávamos sentados, Jacqueline e eu, no sofá. Duvelz e a mulher, nas poltronas diante de nós. Os dois deviam ter a mesma idade: trinta e cinco anos. Ela nos observava com curiosidade.

— Não acha os dois encantadores? — disse Duvelz com sua boa dicção.

Ela nos olhava fixamente e perguntou:

— Querem beber alguma coisa?

Havia uma certa tensão entre nós. Ela nos serviu de vinho do Porto.

Duvelz tomou um gole generoso.

— Relaxem — disse ele. — Ela é uma velha amiga...

Ela nos lançou um sorriso tímido.

— Já fomos até noivos. Mas ela teve de se casar com outro.

Ela nem pestanejou. Permanecia empertigada na poltrona, a taça na mão.

— O marido dela se ausenta com frequência... Podíamos aproveitar para sairmos os quatro... O que acham?

— E ir aonde? — indagou Jacqueline.

— Aonde quiserem... Mas não precisamos sair.

Ele deu de ombros.

— Estamos bem aqui... Não é?

Ela se mantinha empertigada na poltrona. Acendeu um cigarro, talvez para disfarçar o nervosismo. Duvelz tomou mais um gole do vinho do Porto. Colocou a taça na mesinha de centro. Ele se levantou e caminhou em direção à mulher.

— Ela é bonita, não acham?

Duvelz passava o indicador na cicatriz de sua face. Em seguida, desabotoou a blusa dela e acariciou seus seios. Ela não se mexia.

— Sofremos um acidente de carro gravíssimo faz um tempão — comentou ele.

Ela afastou a mão dele com um gesto brusco. Voltou a nos sorrir.

— Vocês devem estar com fome...

Tinha a voz grave, e percebi um leve sotaque.

— Pode me ajudar a servir o jantar? — perguntou-lhe em um tom bastante seco.

— Claro.

Os dois se levantaram.

— Uma refeição fria — avisou ela. — Tudo bem?

— Está ótimo — respondeu Jacqueline.

Ele havia segurado a mulher pelo ombro e a conduzia para fora da sala de estar. Passou a cabeça pelo vão da porta.

— Vocês gostam de champanhe?

Havia perdido a boa dicção.

— Muito — disse Jacqueline.

— Até já.

Ficamos sozinhos na sala de estar por alguns minutos, e me esforço para lembrar o máximo de detalhes possível. As sacadas que davam para o bulevar estavam entreabertas por causa do calor. Era o prédio número 19 do boulevard Raspail. Em 1965. Um piano de cauda no fundo do aposento. As duas poltronas e o sofá do mesmo couro preto. A mesinha de metal prateado. Um nome como Devez ou Duvelz. A cicatriz na face. A blusa desabotoada. A luz fortíssima de um projetor ou, provavelmente, de uma lanterna. A luz ilumina apenas uma parte da decoração, um instante isolado, deixando o restante na penumbra, pois jamais saberíamos a sequência dos acontecimentos e quem eram, na verdade, aquelas duas pessoas.

Esgueiramo-nos para fora da sala e, sem sequer fechar a porta, descemos as escadas. Havia pouco tínhamos tomado o elevador, mas não era vermelho como aquele do qual falara Gisèle T.


O depoimento de um funcionário de um restaurante-dancing de Perreux aparece na primeira página de um jornal vespertino daquele mês de abril de 1933. O título da matéria é o seguinte:

PROCURAM-SE OS DOIS CASAIS
QUE PASSARAM A NOITE NO APARTAMENTO
DO JOVEM QUÍMICO E DE SUA ESPOSA

Na delegacia do bairro de Val-de-Grâce, apesar de toda a investigação ter sido suspensa por considerarem o ocorrido como duplo suicídio, fomos informados de que o jovem casal teria ido não apenas a Montparnasse como também às margens do Marne, em Perreux; e que o casal havia levado não só duas mulheres para casa, e sim duas mulheres e dois homens.... As buscas empreendidas para encontrar essas quatro pessoas continuam, até o momento, infrutíferas.

Fomos a Perreux na esperança de coletar alguns detalhes importantes sobre os minutos que precederam a tragédia.

Em um “restaurante-dancing” do cais de Artois, lembram-se perfeitamente da passagem dos dois jovens.

“Eles chegaram por volta das dez”, declara o garçom que os serviu. “Chegaram sozinhos, ela muito bonita, muito loura, muito elegante... Eles estavam sentados ali, embaixo da sacada. Se foi aqui que conheceram as pessoas que depois convidaram para casa? Não notei. Aos sábados à noite, nesta época, fica muito cheio. Eles não me pareceram especialmente animados. De qualquer maneira, lembro-me de que às onze e meia pagaram a conta.”

É difícil levar em conta esse depoimento, pois sugere que os T. tenham ido a Perreux sozinhos e por iniciativa própria. Ora, tudo que se conhece a respeito da vida deles no bairro tranquilo da rue des Fossés-Saint-Jacques leva a crer que eles não frequentavam os dancings às margens do Marne nas noites de sábado. Não, foram as duas desconhecidas que encontraram em Montparnasse que os levaram aquela noite a Perreux, como havia mencionado a própria Gisèle T. E fica a pergunta: por que o funcionário deu tal depoimento? Por acaso os teria confundido com outro casal? É provável que sua intenção fosse proteger da curiosidade dos investigadores as pessoas em companhia dos T., duas mulheres e dois homens, sem dúvida frequentadores do estabelecimento. As duas mulheres de Montparnasse conheciam os dois homens. Mas onde ficaria — perguntavam na matéria — a casa com o elevador vermelho citado por Gisèle T.?


Na saída do Café de La Marine, os T. e as duas desconhecidas talvez tenham tomado um táxi. Mas nenhum taxista, no dia posterior à tragédia, declarou aos investigadores ter conduzido quatro passageiros a Perreux. Nem um único, tampouco, manifestou-se para declarar ter levado os casais de Perreux ao número 26 da rue des Fossés-Saint-Jacques por volta das duas da manhã.

Naquele tempo se ia de Paris a Nogent-sur-Marne e a Perreux pela gare de la Bastille ou pela gare de l’Est. Os trens que saíam da Bastille seguiam a linha chamada Vincennes até Verneuil-l’Étang. Cheguei a conhecer esta linha, no início dos anos sessenta, antes que a Rede Expressa Regional a substituísse e a gare de la Bastille fosse destruída para dar lugar à estação Opéra.

Os trilhos corriam sobre o viaduto da avenue Daumesnil, cujos arcos eram ocupados por cafés, armazéns e lojas comerciais. Por que ladeio esse viaduto com tanta frequência em meus sonhos? Eis o que se via sob os arcos, à sombra dos plátanos da avenida:

Laboratoire de l’Armanite
Le Garage des Voûtes
Peyremorte
Corrado Casadei
Le Dispensaire Notre-Dame-de-Lourdes
Dell’ Aversano
La Régence, fabrique de meubles
Les Marbres français
Le Café Bosc
Alligator, Ghesquière et Cie
Sava-Autos
Tréfilerie Daumesnil
Le Café Labatie
Chauffage La Radieuse
Testas, métaux non ferreux
Le Café-Tabac Valadier

Certa noite de verão, no Café Bosc, pouco antes de minha partida para Viena, as mesas estavam dispostas sobre a calçada. Eu não conseguia desgrudar os olhos das luzes da gare de Lyon, tão pertinho...

O trem parava na estação de Reuilly e depois na de Bel-Air. Deixava Paris pela porte Montempoivre. Passava diante da escola Braille e parava em seguida na gare de Saint-Mandé, perto do lago. Depois vinha Vincennes e a gare de Nogent-sur-Marne, às margens do bosque.

Da gare de Nogent, eles tiveram de subir a pé toda a avenida principal até Perreux. A menos que os dois homens tivessem ido buscá-los de carro.

Tenho a nítida impressão de que, ao sair do Café de La Marine com as duas desconhecidas, eles desceram as escadas da estação Raspail, a poucos metros do café.

O metrô segue direto até a gare de l’Est. Eles tomaram o trem da linha de Mulhouse. Quando o trem deixava Paris, atravessando o canal Saint-Denis, via-se do alto os abatedouros da Villette. O trem parava em Pantin. Depois margeava o canal de l’Ourcq. Noisy-le-Sec, Rosny-sous-Bois. Chegava-se à gare du Perreux. Eles desceram na plataforma, e o trem continuou seu percurso pelo viaduto que atravessa o Marne. As duas mulheres levaram o casal a um restaurante-dancing bem perto, no cais de Artois. Eram seis agora, contando os dois outros desconhecidos.


Lembro-me do cais de Artois, que começava ao pé do viaduto. Bem em frente a ele ficava a île des Loups. Durante os anos 1964 e 1965, eu costumava ir àquela ilha: um tal de Claude Bernard, para quem eu tinha vendido uma caixa de música e alguns livros antigos, havia nos convidado, minha namorada Jacqueline e eu, a visitar sua casa em diversas ocasiões. Ele morava em uma espécie de chalé, com bow-windows e varandas. Uma tarde, ele nos fotografou em uma das varandas, pois queria testar um novo equipamento, e, pouco depois, estendeu-nos uma foto colorida: era a primeira vez que eu via uma foto tirada por uma polaroide.

Esse Claude Bernard tinha uns quarenta anos e se dedicava à atividade de compra e venda de objetos de segunda mão: possuía armazéns, uma barraca no mercado de pulgas de Saint-Ouen e até mesmo um sebo na avenue de Clichy, onde eu o havia conhecido. Após o jantar, ele nos levava, Jacqueline e eu, de volta a Paris em um Jaguar cinza. Alguns anos mais tarde, não ouvi mais falar dele. A barraca no mercado de pulgas e o sebo na avenue de Clichy desapareceram. No número de telefone de sua casa na île des Loups “não tinha ninguém com esse nome”.

Penso nele por causa da île des Loups. Em uma das matérias dedicadas ao que os jornais chamaram de “a orgia trágica” fica subentendido que a polícia havia identificado um dos desconhecidos que o casal T. e as duas mulheres teriam encontrado no restaurante-dancing do cais de Artois: tratava-se de um morador de Perreux. Para mim, ele só podia morar na île des Loups. E, levando em consideração o depoimento suspeito do funcionário, eu me pergunto se os T. e os dois outros casais foram mesmo, naquela noite, ao restaurante-dancing do cais de Artois. Tenho a nítida impressão de que um dos desconhecidos os levou à île des Loups, pois lá ficava a casa com o elevador vermelho.

Hoje tento reconstituir as condições do lugar, mas na época em que ia visitar Claude Bernard isso jamais passaria por minha cabeça. Claude Bernard não morava naquele grande chalé ornado com varandas e bow-windows havia muito tempo. Um quiosque de madeira se erguia no fundo do jardim.

Quem teria sido o proprietário anterior? Um tal de Jacques Henley? A foto de Henley aparece nos antigos anuários de cinema com a menção: “Fala inglês e alemão sem sotaque.” Um rosto bastante britânico: bigode louro, olhos muito claros. Como endereço consta: Jacques Henley, “Les Raquettes”, Île des Loups, Nogent-sur-Marne (Sena), Tremblay 12.00. Porém o mesmo número é mencionado na lista telefônica como pertencente a E. J. Dothée. Dentre os outros antigos moradores da ilha que pesquisei, aparecem:

Willame H. Tremblay 33.44

Magnant L. Tremblay 22.65

Dothée, também conhecido como Henley, e essas duas pessoas moravam na parte da ilha que fica em Nogent-sur-Marne, e as seguintes, na porção leste, em Perreux:

Hevelle Tremblay 11.97

Verchère E. L., Les Heures tranquilles, île des Loups, (de maio a outubro) Tremblay 09.25

Kisseloff P. Tremblay 09.25

Korsak (de) Tremblay 27.19

Ryan (Jean E.), La Pergola, Île des Loups, Tremblay 06.69

A Société d’encouragement du sport nautique (Tremblay 00.80) ficava na área de Nogent-sur-Marne. Acho que a casa de Claude Bernard se situava na zona leste, sob a alçada de Perreux. Em suma, a île des Loups evocava aquela ilha das Antilhas dividida entre dois países — Haiti e República Dominicana —, com a diferença de que não havia obtido sua independência, pois se encontrava sob o domínio tanto de Nogent quanto de Perreux. O viaduto a atravessava, e era ele quem marcava a fronteira entre as duas zonas.

Grupos de árvores ao longo da margem escondiam a casa de Claude Bernard. Ele nos buscava de barco no cais de Artois. O jardim, entregue ao abandono, era circundado por uma cerca branca. No térreo, um aposento muito vasto e aberto para a varanda servia de sala de estar: um sofá, duas poltronas de couro, uma mesa de centro e uma grande lareira de tijolos. Claude Bernard estava sempre sozinho naquela casa e dava a impressão de acampar nela. Quando nos convidava para jantar, ele mesmo cozinhava. Tinha me dito que não queria mais morar em Paris e que, para dormir, precisava do ar do campo e da proximidade com a água.

Suponho que não reste mais nenhum vestígio de campo em Perreux e na île des Loups. Sem dúvida demoliram a casa de Claude Bernard. As árvores e os pontões ao longo da margem desapareceram.

Por ocasião de nosso primeiro encontro, em seu sebo na avenue de Clichy, o dia em que eu lhe oferecera os vinte volumes das obras completas de Balzac — editora Veuve Houssiaux — e em que ele os tinha comprado por três mil francos, conversamos sobre literatura. Ele havia me confidenciado que seu escritor preferido era Buffon.

Os livros de Buffon encadernados de marroquim verde sobre a lareira de tijolos da sala de estar eram os únicos que eu tinha visto em sua casa. É evidente que aquela casa na île des Loups me parecia estranha e que as atividades de “negociante de objetos usados” de Claude Bernard me intrigavam um pouco. Mas, em geral, costumávamos conversar sobre cinema e literatura, e por isso ele simpatizava comigo.

Lembro-me dos grossos painéis de madeira nas paredes da sala de estar, das ferragens, mas sobretudo do elevador revestido de veludo vermelho em capitonê — que já não funcionava mais. Certo dia, Claude Bernard tinha nos contado, às gargalhadas, que o antigo proprietário havia mandado instalar o elevador somente para subir até o quarto no primeiro andar.

Aquele elevador era o único indício remanescente da noite de abril de 1933 na qual os T. aportaram em Perreux com os dois outros casais. Em seguida, eles retornaram à rue des Fossés-Saint-Jacques, a seu bairro discreto, porém isso não tinha mais nenhuma importância. Era tarde demais. Seu destino havia sido selado em Perreux e na casa da île des Loups.

Na época, não me preocupavam muito os acontecimentos que os jornais chamavam de “a orgia trágica” nem o papel do elevador revestido de veludo vermelho que Claude Bernard tinha nos mostrado no fundo da sala de estar. A île des Loups e seus arredores, para nós, não passavam de mais um bairro afastado como tantos outros. No caminho que seguíamos da estação até o cais de Artois, onde Claude Bernard nos esperava em seu barco, eu pensava que logo partiríamos em viagem graças ao dinheiro das obras de Balzac e da caixa de música antiga que eu lhe vendera. Pouco tempo depois, Jacqueline e eu estaríamos longe do Marne e de Perreux, em Viena, onde eu completaria vinte anos.


Ainda quero me demorar na Rive gauche, pois sou filho de Saint-Germain-des-Prés. Frequentei a escola pública da rue du Pont-de-Lodi e os cursos de catecismo do abade Pachaud, na rue de l’Abbaye e na place Furstenberg. Porém, desde então, evito meu antigo bairro, pois não o reconheço mais. Nessa noite, o carrefour de l’Odéon me parece tão triste quanto o porto bretão de Montparnasse sob a garoa.

Uma de minhas últimas recordações de Saint-Germain-de-Prés remonta à segunda-feira de 18 de janeiro de 1960. Eu tinha quatorze anos e meio e fugira do colégio. Havia caminhado até a Croix-de-Berny ladeando os hangares do aeródromo de Villacoublay. Em seguida, tinha pego um ônibus até a porte d’Orléans. E o metrô. Descera em Saint-Germain-de-Prés. No fim da rue Bonaparte, cheguei ao café-tabacaria na esquina com o cais, o Malafosse. Ao menos era assim que meu pai o chamava. Depois do almoço, encontrávamo-nos com seus amigos em seu escritório e ele me pedia:

— Busque uns Partagás no Malafosse.

Naquela tarde, no Malafosse, um grupo de pessoas que conhecia minha mãe e que sempre andava pelo bairro estava de pé diante do balcão. Dentre elas, uma bonita dinamarquesa de cabelos curtos e louros e olhos azuis-violeta. Ela usava gírias que contrastavam com seu sotaque doce e infantil. Em geral, gírias bastante ultrapassadas. Quando me viu entrar, perguntou:

— Está fazendo o quê aqui, meu chapinha?

Confessei-lhes minha fuga. Eles mantiveram um silêncio constrangido. Eu estava prestes a cair no choro. De repente, ela falou, com seu sotaque dinamarquês:

— Que diferença isso faz, meu chapinha?

Depois, bateu a palma da mão no balcão.

— Um uísque para meu chapinha...


Revejo os jogadores de bilhar no primeiro andar do Café de Cluny. Eu estava lá em um sábado de janeiro à tarde, no dia do funeral de Churchill. Em 1966, reformaram todos os cafés da praça e do boulevard Saint-Michel; depois, nesses últimos anos, alguns se transformaram em McDonald’s, como o Mathieu, onde se reuniam os apostadores de corridas de cavalo e se escutava o rangido da máquina registrando o resultado das apostas.

Até o fim dos anos sessenta, esse bairro continuou idêntico. Os acontecimentos de maio de 1968, para os quais serviu de palco, deixaram apenas imagens de notícias em preto e branco que parecem, a vinte e cinco anos de distância, quase tão longínquas quanto as filmadas durante a Liberação de Paris.


O boulevard Saint-Michel está mergulhado, nesse domingo à noite, nas brumas de dezembro, e me vem à lembrança a imagem de uma rua, uma das raras do quartier Latin — a única, acredito, a surgir com frequência em meus sonhos. Acabei por reconhecê-la. Ela desce em suave declive em direção ao bulevar; o sonho contagia a realidade e faz com que a rue Cujas permaneça para mim congelada para sempre sob a luz do início dos anos sessenta; uma luz suave e límpida que associo a dois filmes daquela época: Lola, a flor proibida e Adeus, Philippine.

Havia, perto do fim da rua, no térreo de um hotel, uma sala de cinema, o Studio Cujas. Sem ter o que fazer em uma tarde de julho, entrei no frescor e na obscuridade daquela sala, e eu era o único espectador.

Um pouco mais acima, na Montagne-Sainte-Geneviève, encontrei uma amiga que trabalhava em filmes da nouvelle vague — como se dizia então.

Pensei nela ontem à tarde ao cruzar, diante dos portões de ferro do palácio de Luxemburgo, com um homem usando um pulôver de xadrez escocês surrado e cujos cabelos castanhos e nariz adunco me lembravam alguém. Sim, claro, eu costumava vê-lo com frequência no café onde essa amiga combinava de se encontrar comigo. Um tal de François, apelidado de “o Filósofo”, sem dúvida por ser professor de filosofia em algum curso particular.

Ele não me reconheceu. Carregava um livro na mão, e sua aparência era a de um velho estudante. O acaso me fazia voltar a esse bairro após vinte e cinco anos e eu me deparava com esse homem inalterado, para sempre fiel aos anos sessenta. Eu poderia ter falado com ele, mas o tempo transcorrido desde nosso último encontro o havia tornado inacessível para mim, como alguém que eu tivesse abandonado em uma ilha longínqua. Quanto a mim, eu havia me lançado ao mar.

Eu o revi hoje, do outro lado dos jardins, acompanhado por uma jovem loura. Ele demorou um tempo conversando com ela na entrada da estação de trem que substitui a antiga gare du Luxembourg. Depois, ela desceu as escadas e o deixou sozinho.

Ele avançava a passos rápidos pela calçada do boulevard Saint-Michel em direção a Port-Royal. Sempre carregando o livro na mão. Tentei segui-lo, os olhos fixos em seu pulôver de xadrez escocês cuja mancha esverdeada acabou por se perder na altura da rue de l’Abbé-de-l’Épée.

Atravessei os jardins. Teria sido o encontro com aquele fantasma? Ou as alamedas do palácio de Luxemburgo por onde eu não caminhava havia uma eternidade? Sob a luz do entardecer, tive a sensação de que os anos se confundiam e o tempo se tornava transparente. Certo dia, eu havia acompanhado aquela amiga que fazia cinema em seu carro conversível, da Montagne-Sainte-Geneviève até os estúdios de Saint-Maurice. Seguíamos os cais saindo de Paris, e os plátanos formavam uma abóbada de folhas. Era a primavera de 1963 ou de 1964.


A neve que se transforma em lama nas calçadas, as grades das termas do Cluny diante das quais se erguem as barracas dos vendedores ambulantes, as árvores desnudas, todas essas tonalidades pretas e cinza das quais guardo a lembrança me fazem pensar em Violette Nozière. Ela combinava seus encontros em um hotel da rue Victor-Cousin, perto da Sorbonne, e no Palais du Café, no boulevard Saint-Michel.

Violette era uma morena de tez pálida que os jornais da época comparavam a uma flor venenosa e a chamavam de “a jovem dos venenos”. No Palais du Café ela encontrava falsos estudantes com jaquetas apertadas demais e óculos de aro de tartaruga. Ela lhes fazia acreditar que esperava uma herança e lhes prometia mundos e fundos: viagens, Bugattis... Sem dúvida devia ter cruzado no bulevar com o casal T., que acabava de se instalar no apartamentinho da rue des Fossés-Saint-Jacques.

Um pouco mais abaixo do Palais du Café, na calçada oposta, uma moça de vinte anos, Sylviane, disputava partidas de bilhar no primeiro andar do Cluny. Não era morena e pálida como Violette, mas ruiva, com aquela tez que poderíamos classificar como tipicamente irlandesa. Não permaneceria muito tempo na monotonia do quartier Latin. Em breve, seria vista no faubourg Montmartre, no Fantasio e no bilhar do boulevard des Capucines. Depois, frequentaria o Cercle Haussmann, na rue de la Michodière, onde encontraria benfeitores. Os presentes, as joias, a vida fácil, os hipódromos de Neuilly... No início da Ocupação, desposaria um pretendente sem fortuna, mas dotado de um título de marquês do Império... Passaria longas temporadas na zona livre, na Côte d’Azur, e contaria com o presidente da Société des Bains de Mer de Mônaco entre seus admiradores. Seu regresso à zona ocupada... O encontro com um tal de Eddy Pagnon em circunstâncias suspeitas... Contudo, naquela primavera de 1933, ainda morava na casa da mãe em Chelles, em Seine-et-Marnes, e vinha a Paris no trem da linha de Meaux, que a deixava na gare de l’Est. Segundo um depoimento obtido pelos investigadores, uma das duas mulheres que levaram o casal T. a Perreux tinha uma cabeleira ruiva e não parecia ter mais de vinte anos. Ela morava em uma região a leste. Mas se chamaria Sylviane?

Ela é encontrada novamente onze anos depois, na primavera de 1944, no quarto de um hotelzinho no cais de Austerlitz. Lá aguarda o tal Eddy Pagnon, que desde o mês de maio transporta vinhos contrabandeados de Bordeaux a Paris.

Nas noites em que precisa fazer o trajeto Paris-Bordeaux, ele estaciona o caminhão diante do hotel, sobre a calçada do cais, à sombra de duas fileiras de plátanos. Vai ao encontro dela no quarto. Falta pouco para o toque de recolher. O frêmito longínquo do metrô sobre a ponte de Bercy perturba o silêncio de tempos em tempos. Pela janela do corredor que leva ao quarto se distinguem ainda, no crepúsculo, as vias férreas da gare d’Austerlitz, mas elas estão desertas, e chega-se a imaginar que a estação tenha sido abandonada.

Eles jantam no andar de baixo, no café. Mantêm as cortinas da porta e das janelas fechadas por causa do toque de recolher. São os únicos clientes. Servem-lhes uma refeição do mercado negro, e o proprietário do hotel, que falava ao telefone atrás do balcão, vem se sentar à mesa deles. Pagnon realiza os transportes de Bordeaux a Paris a serviço desse homem, dono de um armazém nas proximidades, no cais Saint-Bernard, na Halle aux vins. Após o jantar, o proprietário do hotel faz últimas recomendações a Pagnon. Sylviane o acompanha até o caminhão, no cais de Austerlitz. O motor ronca por um longo tempo, depois o caminhão desaparece na escuridão. Então ela volta ao hotel e se deita na cama desarrumada. Uma cama com barras de cobre. Paredes recobertas por um velho papel pintado com flores cor-de-rosa. Um momento suspenso. Ela conheceu quartos de hotel desse tipo, quando era bem jovem e não voltava para dormir em Chelles, na casinha minúscula da mãe.

Ela o aguardará até amanhã à noite. Ele vai dirigir o caminhão até o armazém da Halle aux vins para que descarreguem a mercadoria e, a pé, percorrerá o caminho do cais Saint-Bernard ao hotel. Este quarto abjeto a faz se lembrar de seus vinte anos. E eu sou assaltado por uma lembrança da infância: o gordo Lucien P. desabado em uma das poltronas de couro no escritório de meu pai. Certo dia os ouvi falar dessa Sylviane de cabeleira ruiva. Teria sido o gordo Lucien quem a havia apresentado a meu pai? Ou o contrário? Meu pai tinha me confidenciado que também frequentava o quartier Latin no início dos anos trinta, na mesma época e com a mesma idade de Violette Nozière e Sylviane. Talvez a tenha conhecido no bilhar do Café de Cluny.

Um pouco além do cais de Austerlitz, em direção à pont de Bercy, os Armazéns Gerais de Paris ainda existem? No inverno de 1943, meu pai havia sido preso nesse anexo do campo de Drancy. Certa noite alguém apareceu para soltá-lo: Eddy Pagnon, que então fazia parte do que mais tarde passou a ser chamado de bando da rue Lauriston? Muitas coincidências me levam a acreditar que sim: Sylviane, o gordo Lucien... Tentei descobrir a oficina onde Pagnon trabalhava antes da guerra, e, dentre os novos fragmentos de informação que acabo de reunir sobre ele, consta: preso em novembro de 1941 pelos alemães por trapaceá-los em um negócio no mercado negro de impermeáveis. Detido na Santé. Libertado por Chamberlin, também conhecido como “Henri”. Entra a seu serviço na rue Lauriston. Deixa o bando da rue Lauriston três meses antes da Liberação. Retira-se para Barbizon com a amante, a marquesa d’A. Ele possuía um cavalo de corrida e um automóvel. ENCONTRA UM EMPREGO COMO MOTORISTA DE CAMINHÃO PARA O TRANSPORTE DE VINHOS DE BORDEAUX A PARIS.

Saindo dos Armazéns Gerais, eu me pergunto qual caminho meu pai seguiu após o toque de recolher. Ele devia estar estupefato por ter a vida salva.

De todos os bairros da Rive gauche, esta área que se estende da pont de Bercy até as grades do Jardin des Plantes continua sendo para mim a mais tenebrosa. Chega-se de noite à gare d’Austerlitz. E aqui a noite cheira a vinho e a carvão. Deixo para trás a estação e essas massas escuras ao longo do Sena que chamavam de “Armazéns do porto de Austerlitz”. Os faróis do carro ou a lanterna na mão iluminam alguns metros adiante do cais Saint-Bernard. Ao odor de vinho e de carvão agora se mistura o das folhas do Jardin des Plantes, e escuto o grito de um pavão e os rugidos do jaguar e do tigre. Os plátanos e o silêncio da Halle aux vins. O frescor de uma adega me envolve. Rolam um tonel em algum lugar e esse ruído fúnebre se distancia aos poucos. Parece que construíram no lugar da Halle aux vins grandes prédios de concreto, mas, embora eu semicerre os olhos na escuridão, não os vejo.


Para se chegar ao sul, era preciso seguir os túneis: Tombe-Issoire, Glacière, rue de la Santé, iluminados de tempos em tempos por uma lâmpada azul. E se desembocava nas avenidas e pradarias ensolaradas de Montsouris.

A porte d’Italie marcava a fronteira leste do país. O boulevard Kellermann conduzia ao oeste até a poterne des Peupliers. À direita, os escritórios da SNECMA pareciam uma pesada carga derrubada à beira do bulevar, sobretudo nas noites em que a lua refletia nas vidraças. Um pouco mais adiante, à esquerda, o estádio Charléty. O mato crescia através das rachaduras do concreto.

Vim a esse bairro pela primeira vez em um domingo, por causa de um amigo que havia me levado ao estádio Charléty. Ele tinha conseguido, apesar de seus dezessete anos, um empreguinho em um jornal esportivo. Fora encarregado de assistir a provas de corrida e pediu minha ajuda para redigir a matéria.

Não éramos muitos nas arquibancadas. Lembro-me do nome de um velocista: PIQUEMAL. Havíamos lhe feito algumas perguntas ao final das provas para enriquecer a matéria. Por volta das cinco da tarde, esperávamos o ônibus 21, que não chegava. Então decidimos ir a pé até o centro de Paris. As ruas ensolaradas estavam vazias. Eu poderia relembrar a data exata: na primeira banca de jornal que cruzamos pelo caminho — não um quiosque, mas uma dessas barracas de lona verde que montam aos domingos — vi a foto e a manchete em letras garrafais anunciando a morte de Marilyn Monroe.

Após Charléty, a Cidade Universitária e, à direita, o parque Montsouris. No início da rua que ladeava o parque, em um prédio com grandes vãos envidraçados, tinha morado o aviador Jean Mermoz. A sombra de Mermoz e a SNECMA — uma fábrica de motores de avião — conectaram em minha mente o bairro ao aeroporto de Orly, bem pertinho, e às pistas de aterrissagem de Villacoublay, de Buc e de Toussus-le-Noble.

Restaurantes quase campestres. Defronte ao prédio para o qual Mermoz regressava entre dois voos da Aéropostale, o Chalet du Lac. A calçada dos restaurantes dava para o parque Montsouris. E, mais abaixo, na esquina da avenue Reille, uma casinha com um jardim salpicado de cascalho. No verão, ali eram dispostas mesas e se comia debaixo de um caramanchão.

Para mim, com o passar dos anos, esse bairro inteiro se afastou lentamente de Paris. Em um dos dois cafés no fim da rue de l’Amiral-Mouchez, na altura do estádio Charléty, um jukebox tocava músicas italianas. A dona era uma morena de perfil romano. A luz do verão banha o boulevard Kellermann e o boulevard Jourdan, desertos ao meio-dia. As sombras sobre as calçadas e as fachadas ocre dos prédios que escondem fragmentos do campo, revejo-as em meus sonhos, e de agora em diante pertencem aos arredores de Roma. Caminho ao longo do parque Montsouris. As folhas me protegem do sol. Lá longe fica a estação de metrô Cité-Universitaire. Penetrarei no frescor da pequenina estação. Trens param a intervalos regulares e nos levam rumo às praias de Ostie.


Jacqueline havia alugado um quarto em um daqueles condomínios do boulevard Kellermann, construídos antes da guerra, no local das fortificações. Graças a carteirinhas de estudantes falsas, podíamos fazer nossas refeições — por cinco francos — no restaurante da Cidade Universitária: ele ocupava o grande vestíbulo forrado de lambris de um prédio que evocava os hotéis de Saint-Moritz ou de Cimiez.

Muitas vezes passamos dias e noites nos gramados ou nos vestíbulos dos diferentes pavilhões. Havia até um cinema e um teatro dentro da Cidade Universitária.

Um local de veraneio, ou uma dessas concessões internacionais como as existentes em Xangai. Aquela zona neutra, nos limites de Paris, garantia imunidade diplomática a seus residentes. Quando cruzávamos a fronteira — com nossas carteiras de identidade falsas —, ficávamos ao abrigo de tudo.

*

Conheci Pacheco na Cidade Universitária. Eu já o tinha notado alguns meses antes. Em janeiro daquele ano, havia nevado muito, e a Cidade Universitária se assemelhava a um resort de esportes de inverno. Eu havia cruzado repetidas vezes, no boulevard Jourdan, com um homem de cerca de cinquenta anos usando um casaco marrom desbotado com mangas compridas demais, calças de veludo preto e botas para neve. Os cabelos eram castanhos e penteados para trás; o rosto, malbarbeado. Caminhava circunspecto, como se tivesse medo de, a cada passo, escorregar na neve.

No mês de junho seguinte, já não era mais o mesmo. O terno bege, a camisa azul-celeste e os sapatos de camurça pareciam novos em folha. Os cabelos mais curtos e o rosto barbeado lhe conferiam um ar juvenil. Começamos a conversar na cafeteria da Cidade Universitária, cujas janelas se abriam para o boulevard Jourdan? Ou em frente, na cervejaria Babel? Provavelmente na cafeteria, parece-me, por causa daquela indissociável atmosfera de aeroporto que, para mim, Pacheco tem: objetos decorativos de plástico e metal, idas e vindas de gente falando em todas as línguas como se estivessem em trânsito. Aliás, naquele dia, Pacheco carregava uma maleta de couro preto. E tinha me explicado que trabalhava na Air France sem que eu compreendesse direito se ele era comissário de bordo da companhia aérea ou se trabalhava em Orly. Ocupava um quarto no pavilhão das províncias francesas. E, como me surpreendia que em sua idade ele pudesse morar na Cidade Universitária, mostrou-me a carteira de estudante comprovando sua matrícula na faculdade de ciências da Halle aux vins.

Não me atrevi a lhe contar que já o conhecia de vista. E, quanto a ele, teria me notado naquele inverno? Esperava que eu lhe fizesse perguntas? Ou estava convencido de que eu não poderia fazer nenhuma ligação entre o mendigo de botas para neve e o homem diante de mim? O olhar azul nada deixava adivinhar de seus pensamentos.

Um vulto de casaco marrom desbotado e passo hesitante havia desaparecido na neve daquele inverno. E ninguém tinha se dado conta. Exceto eu.


A partir de então, nós o encontrávamos na cafeteria da Cidade Universitária ou no restaurantezinho de especialidades “orientais” da avenue Reille. Mantínhamos conversas anódinas: ele me explicava que não podia cursar todas as matérias da faculdade de ciências por causa de seu trabalho. Mas qual era, exatamente, seu trabalho?

— Digamos... um trabalho de comissário de bordo. Às vezes no avião ou no escritório de Orly... ou no terminal des Invalides... Três dias por semana...

Ele havia se calado. Eu não tinha insistido. Ele saía com os estudantes marroquinos, cujo pavilhão era o primeiro da Cidade Universitária, logo depois do estádio Charléty. Aos marroquinos se juntavam escandinavas louríssimas e dois cubanos. Assistíamos em companhia desse grupo às sessões de cinema de sábado à noite e, com frequência, reuníamo-nos no quarto ocupado por uma das escandinavas na fundação Deutsch-de-la-Meurthe, uma vila composta de pequenas construções com muros de tijolinhos cobertos de hera. Pacheco convidava todos a jantar sob o caramanchão do restaurante da avenue Reille e distribuía presentes na sobremesa — cigarros louros, perfumes e isqueiros “isentos de impostos” que conseguia em Orly.

De tempos em tempos, juntava-se a nosso grupo um moreno alto, funcionário da Air Maroc, que havia residido na Cidade Universitária alguns anos antes. Pacheco o tratava com intimidade. Sem dúvida, tinha conhecido os outros por seu intermédio. Pacheco compartilhava da animação do grupo, das piadas, dos banhos de sol nos gramados da Cidade Universitária, participava das conversas, mas eu sempre percebia seu retraimento e ele me dizia que devia ser consequência da diferença de idade entre ele e nós.

Certa noite de domingo ele estava sozinho na cafeteria e havia nos convidado, Jacqueline e eu, para degustar um pan-bagnat e uma torta de maçã. Eu estava prestes a questioná-lo sobre o mendigo de casaco desbotado daquele inverno, porém me contive a tempo. Limitei-me a perguntar se seu nome, Pacheco, era de origem espanhola ou portuguesa.

— Meu pai era peruano.

Ele nos observava, um por um, como se quisesse se certificar de que não corria risco ao nos fazer confidências.

— Minha mãe era metade belga, metade francesa. Sou descendente, pelo lado materno, do marechal Victor.

Juro que, na ocasião, eu não sabia nada sobre esse marechal. Apenas que existia um boulevard Victor lá para os lados da porte de Versailles.

— O marechal Victor foi marechal do Primeiro Império. Napoleão o nomeou duque de Bellune.

Ele tinha dito isso em tom displicente. Parecia achar natural que o nome “Victor” não nos remetesse a nada.

— Quando eu era mais jovem, usava o nome Philippe de Bellune, embora não tivesse nenhum direito a esse título.

Então seu nome era Philippe. Estávamos habituados a chamá-lo de “Pacheco” e, para nós, “Pacheco” ocupava ao mesmo tempo a função de nome e sobrenome.

— Por que não tem nenhum direito a esse título?

— O último duque de Bellune só teve filhas, das quais uma era minha avó, e o título foi extinto. Isso realmente lhe interessa?

— Sim.

Era a primeira vez que ele me falava de assuntos pessoais. Até então, eu não tinha nenhum parâmetro: aquele homem era tão elusivo e escorregadio quanto seu olhar. Até mesmo sua idade era imprecisa: entre trinta e cinco e cinquenta anos.

— É bonito, “Philippe de Bellune”. Devia ter continuado a usar esse nome.

— Acha mesmo?

Ele deu de ombros e me observou por um instante com aqueles olhos azuis. A imagem do mendigo de casaco marrom desbotado, caminhando naquele inverno pelo boulevard Jourdan, retornou a minha memória: talvez o conhecessem como Philippe de Bellune.

— Em que momento renunciou a ser chamado de Philippe de Bellune?

— Isso lhe interessa de verdade?

Alguns de nossos amigos marroquinos e escandinavos vieram se sentar a nossa mesa, e Pacheco recobrou sua reserva. Participava da conversa, mas só dizia generalidades. Saímos muito tarde da cafeteria. Pacheco carregava a maleta de couro preto com a qual eu o tinha visto diversas vezes.

Separamo-nos no vestíbulo do pavilhão das províncias francesas, onde Pacheco ocupava um quarto. A noite estava amena e nos sentamos, Jacqueline e eu, em um banco cercado de arbustos de alfeneiros que nos protegiam de olhares. Foi sem dúvida esse o motivo de Pacheco não notar nossa presença quando saiu, dez minutos depois, com a maleta de couro na mão. Prendemos a respiração. Pensamos a mesma coisa: ele fingia morar no pavilhão das províncias francesas; tão logo tinha a certeza de que não corria mais o risco de encontrar os integrantes de nosso grupinho, deixava o pavilhão rumo a um destino desconhecido.

Esperamos que se distanciasse uns cinquenta metros para seguir seus passos. Na saída da Cidade Universitária, ele virou à esquerda, em direção à porte d’Orléans, e seu vulto desapareceu na noite. Aonde ia? Onde realmente moraria? Eu o imaginava seguindo em frente, até a porte de Versailles, alcançando por fim aquele bulevar desolado que levava o nome de seu ancestral. Ele caminhava a passos lentos, a maleta na mão, como um sonâmbulo, e, àquela hora tardia, era o único pedestre.


Nós o revimos no dia seguinte, sempre muito limpo, muito arrumado, usando o terno bege e os sapatos de camurça. Não carregava mais a maleta, e sim uma pequena bolsa de viagem azul-marinho da companhia British Airways a tiracolo. Nossos olhares se cruzaram, o dele tão vazio quanto de costume. Cabia apenas a mim resolver o enigma proposto por aquele homem. Pacheco. Philippe de Bellune. Com a ajuda desses dois nomes, seria preciso descobrir outros detalhes a seu respeito. Naquela época, para ganhar algum dinheiro, eu tinha começado a comprar e revender lotes de livros, arquivos diversos, coleções completas de revistas. Tentava descobrir ao acaso os nomes Bellune e Pacheco nas listas telefônicas e nos jornais antigos que passavam por minhas mãos, como um trapeiro que, com a ajuda de uma haste, revira montes de detritos.

Assim, eu havia conseguido reunir algumas informações: o último duque de Bellune era, do lado materno, de ascendência anglo-portuguesa pelas famílias de Lemos e Willoughby da Silveira. Morto em 1907 sem um herdeiro masculino. Sua filha caçula tinha se casado com um tal de Fernand-Marie-Désiré Werry de Hults, belga, embora “conde romano”, e do matrimônio nasceram dois filhos e uma filha, Éliane. Em 1919, de acordo com o Bottin mondain, moravam todos em uma mansão no número 4 da rue Greuze, no 16º arrondissement. De fato, no mesmo endereço eram mencionados um tal de Riclos y Perez de Pacheco e senhora, nascida Éliane de Hults. Estes dois eram, com toda a certeza, os pais do Pacheco que eu conhecia. A partir de 1927, levando em conta as informações das listas telefônicas, essa estranha família havia desaparecido do número 4 da rue Greuze sem deixar rastros. Em 1953, reaparecia uma condessa de Hults-Bellune no número 4 da rue du Dôme e, no ano seguinte, no mesmo endereço e com o mesmo número de telefone, a senhora Pacheco. Depois, mais nada.

Nos raros momentos em que eu ficava a sós com Pacheco na cafeteria, deixava escapar uma pergunta na esperança de que ele respondesse e me fornecesse outras informações a seu respeito.

— Em 1953 costumava visitar sua mãe na rue du Dôme?

Eu havia notado então que ele se abalara. De súbito, empalidecera bastante. Era preciso aproveitar a deixa.

— Não sei do que está falando.

Ele estava na defensiva. Por que esse detalhe o tinha perturbado? Eu acreditava ter uma resposta: 1953, 1954... Não se tratava mais de seu ancestral, o marechal Victor. Aproximávamo-nos perigosamente do presente e de um mendigo de casaco marrom desbotado e botas para neve gastas que perambulava no inverno passado pelo boulevard Jourdan. Eu estava impaciente para ver sua reação quando lhe falasse daquele homem. Teria um sobressalto, como alguém com medo da própria sombra?

Várias semanas transcorreram sem que ele desse sinal de vida. Seu trabalho o mantinha longe da Cidade Universitária? No pavilhão das províncias francesas, perguntei se alguém chamado Pacheco ocupava um quarto. Não conheciam nenhum estudante com esse nome, tampouco um homem de uns cinquenta anos de cabelos curtos que usava um terno bege e sapatos de camurça. À noite, na cafeteria, perguntei aos integrantes de nosso pequeno grupo:

— Alguma notícia do Pacheco?

— Não.

Nossos amigos marroquinos e escandinavos já não falavam mais dele. Ele se apagava de suas lembranças. A vida continuava sem Pacheco: as tardes e as noites no extenso gramado, os passeios pelo parque Montsouris, os jantares sob o caramanchão do restaurante oriental na avenue Reille... Acabei acreditando que não o veríamos mais. Quis o acaso que, em um lote de jornais velhos dos anos 1946 e 1948, eu me deparasse com duas matérias. A primeira apresentava uma lista de pessoas procuradas por suas atividades durante a Ocupação. Dentre elas constava “Philippe de Bellune, vulgo ‘de Pacheco’, que teria morrido no ano anterior por causa de sua prisão em Dachau”. Porém, manifestavam dúvidas quanto a essa morte. Dois anos depois, em 1948, um jornal publicava, ao pé da página, outra lista de procurados que não compareceram à audiência em um tribunal: o número 3 da lista era “Philippe de Bellune, nascido em Paris no dia 22 de janeiro de 1918, domicílio desconhecido”. Isso queria dizer que, naquela época, sua morte ainda não tinha sido confirmada.

O destino de um homem procurado por ter sido cúmplice do inimigo e que não sabiam se havia saído vivo do campo de Dachau me deixava perplexo. Qual série de acontecimentos o teria levado a essa situação tão contraditória? Eu pensava em meu pai, que tinha vivido todas as incoerências do período da Ocupação e não me contara praticamente nada antes de nos separarmos para sempre. E eis que, mal o tendo vislumbrado, Pacheco também se eclipsava sem ter me dado explicações.


Ele reapareceu em um domingo à noite, na cafeteria da Cidade Universitária. Era tarde e não restava mais ninguém ao redor das mesas de fórmica. Eu estava sentado perto da janela que dava para o boulevard Jourdan e, ao vê-lo chegar de terno bege e mocassins de camurça — os cabelos um pouco mais compridos do que de costume e a pele bronzeada —, senti uma pontada no coração. Ele veio se sentar a meu lado de modo tão natural quanto se tivesse se ausentado por alguns minutos para telefonar.

— Achei que nunca mais o veríamos.

— A Air France me despachou para trabalhar em um pequeno aeroporto no Marrocos... Em Casablanca... Tive de ficar lá um bom tempo.

— Descobri que foi prisioneiro no campo de Dachau durante a guerra — eu disse de repente.

— Não.

Ele permaneceu imóvel, o olhar fixo à frente, como se temesse outras revelações minhas.

— E que foi procurado pela Justiça depois da guerra por ter sido cúmplice do inimigo. Foi na época em que se chamava Philippe de Bellune.

— Está enganado.

— Acreditaram durante um tempo que tivesse morrido em Dachau...

— Morrido?

Ele dava de ombros.

— Por que motivo era procurado depois da guerra?

Ele cortava seu pan-bagnat com garfo e faca em fatias muito finas.

— Quanta imaginação... Bem, estou muito cansado hoje...

Ele me fitou sorrindo e compreendi que não tiraria nada dele. Nos dias seguintes, voltamos a nos ver, mas junto de todo nosso grupo, e não conversamos mais a sós. Ele nos convidou a jantar, como de costume, no restaurante da avenue Reille. Seu amigo da Air Maroc estava presente naquela noite. E, como de costume, ele nos ofereceu maços de cigarro americano, canetas, perfumes “isentos de impostos” e lembrancinhas trazidas de Casablanca.

Eu não queria deixá-lo constrangido lhe perguntando se realmente morava no pavilhão das províncias francesas. Inúmeras outras vezes nós o acompanhamos à noite até o pavilhão e eu o via subir a grande escadaria, porém sem sequer ter vontade de me sentar no banco sob os alfeneiros para verificar se ele saía alguns minutos depois.

Um fim de tarde daquele mês de setembro em que estávamos deitados no gramado da Cidade Universitária aproveitando os últimos dias bonitos, Pacheco mostrou fotos do pequeno aeroporto e das avenidas de Casablanca. Em uma delas, aparecia trajando o uniforme de comissário de bordo diante de um prédio cuja brancura contrastava com o azul do céu. Tudo era nítido no cenário ensolarado: os tons brancos e azuis, a sombra que se recortava ao pé do prédio, o uniforme bege de comissário de bordo, o sorriso de Pacheco e a fuselagem reluzente de um avião de turismo ao fundo. Mas eu pensava em um tal de Philippe de Bellune cujo vulto havia se perdido no nevoeiro já fazia muito tempo. Seu destino tinha sido tão nebuloso que o julgavam morto depois da guerra. Ele nem sequer usava seu nome verdadeiro. Como devia ter sido a vida daquele homem nascido no dia 22 de janeiro de 1918 em Paris? Devia ter passado os primeiros anos da infância no número 4 da rue Greuze, com os avós e os pais. Por curiosidade, eu havia consultado a lista telefônica. O número 4 da rue Greuze era agora a sede da Igreja caldeia. Sem dúvida, transformaram o térreo em capela para celebrar os ritos dessa religião oriental. Teriam mantido intato o quarto da criança? Eu planejava comparecer a uma cerimônia do rito caldeu e sair furtivamente da capela para visitar os andares da mansão. E, quem sabe, encontrar na rue Greuze testemunhas que tivessem conhecido Pacheco. No número 2 do prédio vizinho morava, por volta de 1920, uma princesa Duleep-Singh, e este nome havia me despertado uma lembrança de infância: espero meu pai sexta à noite em uma estação de trem na costa da Normandia. Dentre os viajantes que desembarcam do trem de Paris, encontra-se uma mulher morena cercada por vários criados de turbante e jovens inglesas de calças de montaria que parecem exercer o papel de damas de companhia. Eles empilham uma grande quantidade de malas nos carrinhos. Um dos criados esbarra em mim quando passa. Com a queda, arranho o joelho. Logo a mulher me levanta, inclina-se na minha direção e, com a ajuda de um lenço e de um frasquinho de perfume, limpa o machucado do meu joelho em um gesto maternal. Tem uns trinta anos e seu rosto me deslumbra pela doçura e beleza. Ela sorri para mim. Acaricia meus cabelos. Diante da estação, vários automóveis americanos a aguardam.

— Uma princesa hindu — dissera meu pai.


Em qual internato teriam matriculado o menino Philippe Riclos y Perez de Pacheco? Quem eram seus amigos em 1938, quando tinha vinte anos? A que profissão se destinava? Eu o imaginava abandonado à própria sorte. A guerra e a Ocupação acabaram semeando a desordem e a confusão em um jovem de personalidade bastante indefinida: nem sequer devia estar seguro de sua identidade, pois naquela época fazia com que o chamassem Philippe de Bellune, como se quisesse agarrar-se ao único ponto de referência que teve na vida, um ponto de referência muito longínquo: seu ancestral, o marechal Victor, duque de Bellune.

Sem dúvida, tinha sido vítima das más companhias. Na matéria de 1946, afirmam que um “mandado de busca e apreensão” foi expedido contra ele e várias outras pessoas, dentre elas uma “condessa” de Seckendorff e um “barão” de Kermanor. Seriam esses títulos de nobreza tão autênticos quanto o de Philippe de Bellune? A lista publicada no jornal de 1948 incluía de novo os três nomes.

Seguimento do processo de acusação de crimes de colaboracionismo com o inimigo contra:

1) Lebobe, André, nascido em 6 de outubro de 1917 em Paris, 14º Corretor. 22, rue Washington.

2) Sherrer, Alfred, vulgo “o Almirante”, nascido em 26 de março de 1915 em Hanói (Indochina). Domicílio desconhecido.

3) Philippe de Bellune, nascido em Paris em 22 de janeiro de 1918, filho de Riclos y Perez de Pacheco, Mario e Werry de Hults, Éliane, domicílio desconhecido.

4) Bremont, Roger, nascido em 24 de fevereiro de 1910 em Paris, também conhecido como Breugnot, Roger, domicílio desconhecido.

5) Yevremovitch, Miodraf, vulgo “Draga”, nascido em 23 de março de 1911 em Valdejo (Iugoslávia), tendo residido em Paris, 2, square des Aliscamps (16º), atualmente com domicílio desconhecido.

6) Ruiz, José, vulgo “Vincent”, vulgo “Vriarte, Vincent”, nascido em 26 de abril de 1917 em Sestao (Espanha), domicílio desconhecido.

7) Galleran, Héloïse, sobrenome de casada Pelaez, nascida em 24 de abril de 1914 em Luanco (Espanha), atualmente com domicílio desconhecido.

8) de Reith, Hildegarde-Jeanne-Caroline, sobrenome de casada von Seckendorff, nascida em 18 de fevereiro de 1907 em Mayen (Alemanha), tendo residido em Paris, 41, avenue Foch, atualmente com domicílio desconhecido.

9) Léger, Yves, 14, rue des Dardanelles, último domicílio conhecido.

10) Watchmann, Johannès, 76, avenue des Champs-Élysées, último domicílio conhecido.

11) Fercrou, 1, rue Lord-Byron, último domicílio conhecido.

12) Cremer, Edmond, vulgo “Piquet”, vulgo “barão de Kermanor”, nascido em 31 de outubro de 1905 em Bruxelas. 10, rue Berteaux-Dumas (Neuilly), último domicílio conhecido.

Os acusados não se apresentaram para a audiência do dia 3 de novembro de 1947.

Nenhum deles tinha comparecido à audiência de 25 de fevereiro de 1948, conforme ordenava o presidente da Corte de Justiça do Sena. Desapareceram para sempre.

Teria Philippe de Bellune realmente sido preso no campo de Dachau? E, ao regressar a Paris, onde teria se refugiado para escapar da Justiça que lhe pedia para prestar contas? Eu o imaginava à noite entrando furtivamente no pequeno apartamento da rue du Dôme onde aquela condessa de Hults-Bellune, também conhecida como senhora de Pacheco — sua mãe —, recebia-o às escondidas, pois devia ter declarado aos policiais que procuravam seu filho que ele havia morrido.

Com frequência, por precaução, mãe e filho não se encontravam no apartamento, e sim nos cafés do bairro — na place Victor-Hugo, na avenue de la Grande-Armée... Certa noite, foram juntos à casa de penhores da rue Pierre-Charron para dividir o pagamento da última joia de valor que ela colocava no prego. Em seguida, subiram a Champs-Élysées. Era uma noite do inverno de 1948, dia em que o segundo mandado de busca e apreensão havia sido expedido, prova de que a Justiça ainda duvidava da morte de Philippe de Bellune... Ela o tinha deixado na estação de metrô George V, onde ele se perdera na multidão na hora do rush.

Vinte anos se passaram. E, no imenso gramado, Pacheco mostrava suas fotos no Marrocos, como um turista de volta das férias. Talvez mais tarde nos convidasse para uma projeção de slides em seu quarto no pavilhão das províncias francesas. Afinal, era eu quem imaginava histórias a seu respeito. Naquela noite, acabamos todos reunidos em torno de uma das mesas da cafeteria, e me lembro de que um dos marroquinos e sua amiga sueca dançaram ao som da música que tocava em um transistor. Pacheco também tinha dançado. Usava uma camisa polo azul-marinho, óculos escuros, e seus cabelos bem curtos o rejuvenesciam ainda mais. Eu começava a duvidar de que a data de nascimento daquele homem fosse 22 de janeiro de 1918.


Na semana seguinte, Jacqueline e eu estávamos sozinhos com Pacheco em um dos cafés em frente ao estádio Charléty. A seu lado, a maleta de couro preto.

— Poderia me fazer um favor? — perguntou ele.

Ele sabia que Jacqueline morava em um quarto no boulevard Kellermann. Será que podia lhe confiar por alguns dias essa maleta? Precisava mais uma vez se ausentar a trabalho e não queria deixá-la em seu quarto do pavilhão das províncias francesas, pois a porta não tinha chave. Na maleta, havia guardado roupas e objetos pessoais sem valor, exceto para ele.

Acompanhou-nos até o prédio do boulevard Kellermann, mas não quis subir. No vestíbulo, confiou-me a maleta.

— Eles me despacharam de novo para o Marrocos... Mas semana que vem estou de volta... Envio um cartão-postal...

Ele permaneceu de pé no meio do pátio. Eu sentia que queria me dizer algo, porém não se decidia. Eu segurava a maleta na mão. Ele me olhava fixamente com seus olhos vazios.

— Pode me fazer outro favor?

Estendia-me um grande envelope marrom.

— É minha ficha de matrícula para cursar a faculdade de ciências este ano. Tem de ser entregue na Halle aux vins antes do fim de semana.

— Pode contar conosco — eu lhe disse.

Ele apertou nossas mãos. Voltou a erguer o olhar para mim. Deu-nos as costas repentinamente, após esboçar um gesto de adeus com a mão. Eu o vi atravessar o bulevar e ladear o muro da SNECMA em direção ao parque Montsouris.

Dias e meses transcorreram sem que tivéssemos notícia dele. Não nos enviou um cartão-postal do Marrocos como havia prometido. Tínhamos guardado a maleta no armário do quarto do boulevard Kellermann. A ficha de matrícula para a faculdade de ciências da Halle aux vins que me confiara não passava de uma solicitação para assistir ao curso na qualidade de ouvinte. E tal solicitação era formulada em nome de Philippe de Pacheco. Nossos amigos da Cidade Universitária não se surpreendiam com sua ausência. “Qualquer dia desses ele volta trazendo maços de cigarro americano...” Contudo, falavam disso com mais e mais indiferença, como se ele fosse apenas um dentre as centenas de residentes com quem cruzamos uma vez nos corredores e em companhia de quem nos encontramos, por acaso, em torno de uma mesa da cafeteria.


Certa noite decidi abrir a mala. Tinha acabado de encontrar, na calçada do Café Babel, perto do parque Montsouris, o moreno alto que trabalhava na Air Maroc. Eu havia lhe pedido notícias de Pacheco.

— Acho que ele não volta mais. Vai ficar em Casablanca para sempre.

— Sabe o endereço dele?

— Não.

Eu tinha certeza do contrário. Ele sabia mais do que queria me dizer.

— Então ele prefere ficar por lá?

— Sim.

De volta ao quarto, tirei do armário a maleta de couro preto. Estava trancada à chave, mas, com a ajuda de uma faca, forcei o fecho.

Nada de interessante naquela maleta: o casaco desbotado usado pelo mendigo que eu tinha visto nas cercanias da Cidade Universitária naquele inverno havia dois anos. Algumas calças de veludo preto. Descobri em um dos bolsos do casaco uma carteira de marroquim bastante surrada cujo conteúdo esvaziei sobre a mesa da cozinha.

Uma carteira de identidade datada de dez anos atrás em nome de Philippe de Pacheco, nascido em 22 de janeiro de 1918. O endereço mencionado na carteira era: 183, rue Belliard, Paris, 18º. Dobrado em quatro, o rascunho de uma carta — a julgar pelos riscos e por certas palavras acrescentadas nas entrelinhas.

Paris, 15 de fevereiro de 1954.

Senhor diretor,

Estou neste momento no abrigo do Exército da Salvação, na balsa do cais de Austerlitz, em frente à estação. Há um refeitório, duchas e o dormitório é bem-aquecido. No último outono, passei várias semanas no abrigo da rue Cantagrel, onde trabalhava em um ateliê. Não tenho qualificação especial, exceto ter trabalhado desde os 15 anos no setor de alimentos (cafés, restaurantes etc.).

Segue a lista de meus diferentes empregos:

Garçom: de 1933 a 1939, restaurante La Flotte, 118, cais de Artois, em Perreux. De 1940 (desmobilizado) a junho de 1942, Café Les Tamaris, 122, rue d’Alésia (14º). De junho de 1942 a novembro de 1943, Le Polo, 72, avenue de la Grande-Armée. De novembro de 1943 a agosto de 1944, restaurante Chez Alexis, 47, rue Notre-Dame-de-Lorette (9º). De 1949 a 1951, vigia noturno na pensão Keppler, 9, rue Keppler (16º).

Ainda estou sujeito à proibição de residir no departamento do Sena e perdi todos os meus documentos.

Espero que o senhor possa fazer algo por mim.

Com todo respeito,
Lombard.

Além da carta, a carteira continha a página de uma revista, também dobrada em quatro: a matéria relatava os acontecimentos daquela noite de abril de 1933, na qual Urbain e Gisèle T. vagaram de Montparnasse a Perreux antes de voltar à rue des Fossés-Saint-Jacques na companhia de dois outros casais. Várias fotos em tom sépia ilustravam a página da revista. Em uma delas, via-se o restaurante-dancing de Perreux; em outra, a entrada do prédio número 26 da rue des Fossés-Saint-Jacques. No alto, à esquerda, a fotografia de um homem bastante jovem de cabelos castanhos com gomalina: não tive nenhuma dificuldade em reconhecer o pretenso Pacheco, apesar da passagem dos anos. O arco das sobrancelhas, o nariz reto e os lábios carnudos eram iguais... Ao lado da foto, uma legenda: “Charles Lombard, empregado de um restaurante-dancing em Perreux, serviu o casal naquela noite.”

Então aquele homem com quem eu tinha convivido meses a fio não se chamava Philippe de Pacheco. Tratava-se de um tal de Charles Lombard, ex-garçom que frequentava os abrigos do Exército da Salvação e, em particular, a balsa ancorada no cais de Austerlitz. Por que havia deixado a maleta comigo? Queria me dar uma lição mostrando-me que a realidade era mais fugidia do que eu imaginava? Ou então, simplesmente, havia abandonado seus despojos para recomeçar a vida em Casablanca ou em outro lugar.

Onde e em que época Lombard teria usurpado a identidade de Pacheco? A carteira de identidade datava de 1955. Portanto, naquele ano, Pacheco estava vivo. A foto naquela carteira era do homem que eu havia conhecido na Cidade Universitária, cujo verdadeiro nome era Charles Lombard, e ele tinha habilmente substituído a foto de Pacheco, pois ela exibia o selo da prefeitura de Polícia. Naquela noite, fui ao número 183 da rue Belliard, perto da porte de Clignancourt, e a zeladora me informou nunca ter existido um morador chamado Pacheco no prédio.

A Justiça sem dúvida havia desistido de encontrar Pacheco. Fiquei sabendo que depois de um certo tempo promulgaram uma lei de anistia para os delitos de “colaboracionismo com o inimigo”. Nessa época, Pacheco provavelmente surgiu do nada e fez a carteira de identidade.

Eu imaginava que ele houvesse adotado a aparência de mendigo. Na balsa no cais de Austerlitz, teve Lombard como vizinho de dormitório. Este havia roubado sua carteira de identidade. Aliás, tudo era possível no bairro de Austerlitz entre o cais da estação de trem e o Jardin des Plantes; a noite lá é tão profunda, com seus odores de vinho e carvão e seus rugidos de feras, que um mendigo pode cair da ponte de uma balsa no Sena e se afogar sem que ninguém repare.

Lombard conhecia o passado de Pacheco quando havia roubado sua carteira de identidade? De todo modo, sabia que Philippe de Pacheco usava o nome Philippe de Bellune e era descendente do marechal Victor. Eu ainda podia ouvi-lo me contar com sua voz suave na cafeteria da Cidade Universitária: “Quando eu era mais jovem, usava o nome Philippe de Bellune, embora não tivesse nenhum direito a esse título.”

No dormitório da balsa de Austerlitz, Pacheco tinha se aberto com Lombard e lhe contado a vida. Por que em sua carteira de identidade constava o endereço 183, rue Belliard, 18º? Sua mãe ainda era viva? Onde estaria? Tantas perguntas cujas respostas estavam, sem dúvida, em um dossiê guardado junto de outros na prefeitura de Polícia. Lá também constavam os motivos de sua prisão em Dachau e da acusação por “colaboracionismo com o inimigo”. Mas como obter esse dossiê?

E se Pacheco tivesse continuado em busca de asilo nos diversos abrigos do Exército da Salvação? A perda da carteira de identidade o tinha deixado indiferente. Havia muito estava morto para o mundo... Talvez não tivesse deixado a balsa do cais de Austerlitz.

À tarde, ele perambulava ao longo do cais, ou então visitava o Jardin des Plantes e terminava o dia sentado no vestíbulo da estação, antes de ir jantar no refeitório da balsa e se espichar no beliche do dormitório. E a noite caía sobre o bairro onde meu pai, alguns anos antes, também tinha a aparência de mendigo. Só que os Armazéns Gerais de Paris, onde havia sido preso com centenas de pessoas, não eram o Exército da Salvação.

Em sua memória nebulosa pairavam fragmentos do passado: a mansão na rue Greuze. O cachorro que os avós lhe deram de Natal. Um encontro com uma jovem de cabelos castanho-claros. Os dois foram juntos ao cinema na Champs-Élysées. Naquele tempo, ele se chamava Philippe de Bellune. A Ocupação havia chegado com todas aquelas pessoas, elas também com nomes esquisitos e títulos de nobreza falsos. Sherrer, vulgo “o Almirante”; Draga; a senhora de Seckendorff, o barão de Kermanor...

Eu havia me sentado a uma mesa na calçada de um dos cafés, bem em frente ao estádio Charléty. Esboçava todas as hipóteses referentes a Philippe de Pacheco, de quem eu nem sequer conhecia o rosto. Tomava notas. Sem ter uma consciência clara disto, começava meu primeiro livro. Não era levado a escrever por uma vocação nem por uma dor particular, mas simplesmente pelo enigma que um homem que eu não tinha nenhuma chance de encontrar me apresentava, e por todas aquelas perguntas que jamais teriam resposta.

Às minhas costas, o jukebox tocava uma música italiana. O cheiro de pneus queimados pairava no ar. Uma jovem avançava sob as folhas das árvores do boulevard Jourdan. A franja loura, as maçãs do rosto e o vestido verde eram o único toque de frescor naquele início de tarde de agosto. De que adiantava tentar resolver mistérios insolúveis e perseguir fantasmas, quando a vida estava ali, em toda sua simplicidade, sob o sol?


Aos vinte anos, eu sentia alívio ao atravessar a pont des Arts e passar da Rive gauche à Rive droite do Sena. A noite já havia caído. Eu me voltava uma última vez para ver brilhar, acima da cúpula do Instituto, a estrela Polar.

Todos os bairros da Rive gauche eram apenas a província de Paris. Assim que eu alcançava a Rive droite, o ar me parecia mais leve.

Hoje me pergunto do que fugia quando atravessava a pont des Arts. Talvez do bairro que eu tinha conhecido com meu irmão e que, sem ele, não era mais o mesmo: a escola da rue du Pont-de-Lodi, a prefeitura do 6º arrondissement onde ocorria a entrega dos prêmios, o ônibus 63 que esperávamos diante do Café de Flore e nos levava ao Bois de Boulogne... Durante muito tempo, eu experimentei um desconforto ao percorrer certas ruas da Rive gauche. Hoje o bairro se tornou indiferente para mim, como se tivesse sido reconstruído pedra por pedra após um bombardeio, mas houvesse perdido a alma. Entretanto, certa tarde de verão, em uma revelação súbita, encontrei, ao dobrar a rue Cardinale, algo da Saint-Germain-des-Prés de minha infância que se assemelhava à antiga cidade de Saint-Tropez sem os turistas. Da praça da igreja, a rue Bonaparte descia em direção ao mar.

Uma vez cruzada a pont des Arts, eu passava sob os arcos do Louvre, uma área que também havia tempos me era familiar. Sob o arco, um odor de porão, de urina e de madeira podre vinha do lado esquerdo da passagem, por onde jamais nos atrevemos a nos aventurar. A luz vinha de uma vidraça suja e coberta de teias de aranha, e deixava à penumbra um monte de escombros, de vigas e de velhas ferramentas de jardinagem. Tínhamos certeza de que ratos se escondiam ali, e apressávamos o passo para desembocar a céu aberto, na cour du Louvre.

Nos quatro cantos desse átrio, a grama crescia entre os paralelepípedos desconjuntados. Ali também se empilhavam escombros, pedras de cantaria e canos de metal enferrujados.

A cour du Carrousel era cercada por bancos de pedra, ao pé das alas do palácio que emolduravam as duas pracinhas. Não havia ninguém nos bancos. Exceto nós. E, às vezes, um mendigo. No centro da primeira praça, sobre um pedestal tão alto que mal distinguíamos a estátua, o general Lafayette, perdido contra o céu. Um gramado não aparado cercava o pedestal. Podíamos brincar e descansar na grama alta sem que nenhum guarda jamais viesse nos repreender.

Na segunda praça, entre os arbustos, duas estátuas de bronze, lado a lado: Caim e Abel. As grades de proteção datavam do Segundo Império. Os visitantes se amontoavam à entrada do museu do Louvre, mas nós éramos as únicas crianças a frequentar aquelas praças abandonadas.

A área mais misteriosa se estendia à esquerda dos jardins du Carrousel, ao longo da ala sul que termina no pavillon de Flore. Era uma grande alameda separada dos jardins por uma grade e bordejada por lampiões. Como na cour du Louvre, o mato crescia entre os paralelepípedos, mas a maioria deles havia sumido, deixando camadas de terra descobertas. Lá no alto, onde a ala do palácio era reforçada, um relógio. E, atrás do relógio, a cela do prisioneiro de Zenda. Nenhuma das pessoas que passeavam pelos jardins du Carrousel se aventurava naquela alameda. Brincávamos tardes inteiras entre as fontes e as estátuas quebradas, as pedras e as folhas mortas. Os ponteiros do relógio não se moviam. Indicavam cinco e meia para sempre. Aqueles ponteiros imóveis nos envolviam em um silêncio profundo e apaziguante. Basta permanecer na alameda e nada nunca mais mudará.

Havia uma delegacia na cour du Louvre, à direita dos arcos que levavam à rue de Rivoli. Um camburão estava estacionado nas proximidades. Agentes uniformizados ficavam diante da porta entreaberta da qual se filtrava uma luz amarela. Sob os arcos, à direita, a entrada principal da delegacia. Para mim, aquele era o posto fronteiriço que marcava de fato a passagem da Rive gauche para a Rive droite, e eu verificava se carregava minha carteira de identidade no bolso.

As lojas do Louvre ao longo dos arcos da rue de Rivoli. A place du Palais-Royal e sua entrada do metrô que dava acesso a um corredor no qual se sucediam engraxates com seus assentos de couro, vitrines de bijuterias e souvenirs. Bastava agora escolher o destino da viagem: Montmartre ou os bairros do oeste.


Em Lamarck-Caulaincourt, era preciso pegar um elevador para sair da estação. O elevador era do tamanho de um teleférico e, no inverno, quando havia nevado em Paris, era possível acreditar que ele nos conduzia ao cume de uma pista de esqui.

Uma vez lá fora, subia-se a escada para chegar à rue Caulaincourt. Na altura do primeiro patamar, na lateral do prédio à esquerda, abria-se a porta do San Cristobal.

Ali, nas tardes de julho, quando o calor inclemente esvaziava as ruas da colina de Montmartre, reinavam um silêncio e uma penumbra de gruta marinha. Os vitrais multicoloridos das janelas refratavam os raios de sol sobre os muros brancos e os painéis de madeira escura. San Cristobal... O nome de uma ilha no mar do Caribe, perto de Barbados e da Jamaica? Montmartre também é uma ilha que passei uns quinze anos sem rever. Eu a deixei para trás, intata, no infinito do tempo... Nada mudou: o odor de tinta fresca da casa e a rue de l’Orient, que sempre evocará para mim as ruas íngremes de Sidi-Bou-Saïd.

Fui pela primeira vez ao San Cristobal com a dinamarquesa, na noite de minha fuga do colégio. Estávamos sentados a uma mesa de fundo, perto dos vitrais.

— O que você quer comer, meu chapinha?

Durante o jantar, tentei lhe falar de meu futuro. Agora que não me queriam mais no colégio, eu poderia continuar meus estudos? Ou deveria procurar um emprego?

— A cada dia basta o seu mal... Peça uma sobremesa...

Ela não parecia se dar conta da gravidade da situação. Um louro alto usando terno príncipe de Gales entrou no San Cristobal e se dirigiu a nossa mesa.

— Oi, Tony.

— Oi.

Ela parecia felicíssima de encontrá-lo. Seu olhar havia se iluminado. Ele se sentou ao nosso lado.

— Apresento a você um amigo que estava sozinho hoje à noite... — disse ela, apontando para mim. — Então o convidei para jantar.

— Fez bem.

Ele me sorria.

— O senhor trabalha com música?

— Não, não... — interveio a dinamarquesa. — Ele fugiu do colégio.

O homem franziu o cenho.

— Isso é preocupante... Ele não tem pais?

— Estão viajando — balbuciei.

— Tony vai telefonar para seu colégio — disse a dinamarquesa. — Vai fingir que é seu pai e explicar que você chegou bem em casa...

— Você acha mesmo que isso é uma boa ideia? — perguntou Tony.

Ele girava lentamente a ponta do cigarro sobre a borda do cinzeiro.

— Você vai ligar, Tony...

Ela adotara um tom imperioso e o ameaçava apontando o indicador.

— Tudo bem...

Foi ela mesma quem ligou para o serviço de informações e pediu o número do telefone do colégio. Anotou-o em um pedaço de papel.

— Agora chegou sua vez, Tony...

— Já que você insiste...

Ele se levantou e, com um passo indolente, dirigiu-se à cabine telefônica.

— Você vai ver... Tony vai dar um jeito em tudo...

Depois de um momento, ele voltou à mesa.

— Pronto... Eles disseram que meu filho tinha sido expulso e que preciso buscar seus pertences antes do fim de semana.

Ele dava de ombros com ar desolado. Eu devia ter empalidecido de repente. Ele pousou a mão em meu ombro.

— Não se preocupe... Eles não podem mais chatear você... Já avisei que chegou bem em casa...

Encontramo-nos os três na rue Caulaincourt.

— Não posso ir com você ao cinema — avisou-me a dinamarquesa. — Preciso ficar um pouquinho com Tony...

Ela havia planejado me levar ao Gaumont-Palace para assistir a Salomão e a rainha de Sabá. Remexeu nos bolsos e me estendeu uma nota de dez francos.

— Você vai sozinho ao Gaumont feito um adulto... Depois pegue o metrô e venha dormir em minha casa... No sentido Porte Dauphine até Étoile. Em seguida, pegue o metrô para Nation e desça em Trocadéro.

Ela me lançou um sorriso. Ele me cumprimentou com um aperto de mãos. Entraram os dois no carro azul, que desapareceu na primeira esquina.

Não fui ao cinema naquela noite. Passeei pelo bairro. Subindo a avenue Junot, cheguei diante do castelo dos Brouillards. Eu tinha certeza de que um dia moraria ali perto.


Lembro-me de um trajeto de automóvel, cinco anos mais tarde, de Pigalle à avenue des Champs-Élysées. Ia me encontrar com Claude Bernard no sebo da avenue de Clichy, e ele me convidou ao cinema para assistir a Lola, a flor proibida e Adeus, Philippine, que me deixaram uma bela lembrança... Tenho a sensação de que as nuvens, o sol e as sombras de meus vinte anos continuam vivos, por milagre, nesses filmes. Em geral, só conversávamos sobre livros e filmes, mas naquela noite fiz alusão a meu pai e suas aventuras durante o período da Ocupação: o armazém do cais da estação de trem, Pagnon, o bando da rue Lauriston... Ele virou o rosto para mim.

— Um dos antigos vigias da rue Lauriston agora é porteiro de casas noturnas.

Como ele podia saber? Não tive a presença de espírito de lhe perguntar.

— Quer ver?

Seguimos o boulevard de Clichy e paramos na place Pigalle, na borda da fonte. Eram cerca de nove da noite.

— É aquele ali...

Ele apontava para um homem de terno azul-marinho de sentinela em frente ao Les Naturistes.

Por volta de meia-noite, subimos a pé a rue Arsène-Houssaye, na parte alta da Champs-Élysées, lá onde Claude Bernard havia estacionado o carro. E, de novo, esbarramos com ele. Ainda usava o terno azul-marinho. E óculos escuros. Permanecia imóvel na calçada, na fronteira entre dois cabarés vizinhos, de modo que não sabíamos ao certo para qual dos dois trabalhava.

Eu gostaria de interrogá-lo a respeito de Pagnon, mas experimentei uma sensação de desconforto no instante em que passávamos diante dele. Mais tarde, procurei seu nome entre os dos outros integrantes do bando. Dois jovens serviram de vigias na rue Lauriston: um tal de Jacques Labussière e um tal de Jean-Damien Lascaux. Na época, Labussière morava na rue de la Ronce, em Ville-d’Avray; e Lascaux, em algum lugar para os lados de Villemomble. Ambos foram condenados à prisão perpétua. Qual dos dois era ele? Eu não o reconhecia pelas fotos pouco nítidas publicadas nos jornais por ocasião do processo.

Eu o reencontrei, por volta de 1970, na calçada da rue Arsène-Houssaye, imóvel, no mesmo lugar, com o mesmo terno azul-marinho e os mesmos óculos. Vigia por toda a eternidade. E me perguntei se ele não usava aqueles óculos escuros porque, depois de trinta anos, seus olhos estavam cansados de ver tanta gente cruzando a soleira de tantas casas de perdição...

Alguns dias depois, Claude Bernard havia vasculhado um armário no fundo do sebo de onde tirou uma carta, datada da Ocupação, que me entregou. Eu a guardei durante todo esse tempo. Seria endereçada a ele?

Meu amor, meu homenzinho amado, é uma da tarde; estou acordando cansadíssima. Os negócios não correram muito bem. Encontrei um oficial alemão no Café de la Paix e o levei a Chantilly. Faturei duas garrafas: 140 francos. À meia-noite, ele estava cansado. Eu tinha lhe contado que morava muito longe, então ele alugou um quarto para mim e outro para si. Ganhei comissão pelos dois, ou seja, 260 francos; e ele ainda me deu 300 francos. No total, embolsei meus 25 luíses. Ele havia combinado de me encontrar ontem à noite no saguão do Grand Hôtel, mas às sete horas, no horário combinado, ele chegou desolado e mostrou a ordem recebida para se apresentar em Brest. Depois de meu encontro cancelado, decidi: “Vou a Montparnasse ver se o Anjo Contrabandista apareceu no Café de La Marine.” Fui. Nada de Anjo. Já ia pegar o metrô quando dois oficiais alemães se aproximaram e me convidaram para sair com eles, mas percebi que eram uns idiotas e os dispensei. Voltei ao Café de la Paix. Nada acontecia. Uma vez fechado o Café de la Paix, fui ao saguão do Grand Hôtel. Nada. Fui ao bar do Claridge. Reunião protocolar de um grupo de oficiais com seu general. Nada. Subi a Pigalle a pé. Nada pelo caminho. Era mais ou menos uma da manhã. Subo ao Pigall’s após ter passado no Royal e no Monico, onde não havia nada. Nada tampouco no Pigall’s. Ao descer, cruzo com dois zazous que me levam com eles; bebemos duas garrafas no Pigall’s, ou seja, 140 francos, e depois fomos ao Barbarina, onde embolsei mais 140 francos. Hoje de manhã, às seis e meia, voltei para dormir, exausta, com 280 francos. No Barbarina, encontrei Nicole. Precisava ver a roupa dela... Se pudesse ter ido lá, meu pobre Jeannot, ficaria enojado...

Jacqueline.

Quem poderia ser o Anjo Contrabandista que essa Jacqueline ia encontrar no Café de la Marine? No mesmo café, uma testemunha achava ter reconhecido Gisèle e Urbain T. na noite de abril em que se meteram com más companhias em Montparnasse.


A avenue des Champs-Élysées... É como o lago que evoca uma romancista inglesa e no fundo do qual se depositam, em camadas sucessivas, os ecos das vozes de todos os passantes que sonharam sobre suas margens. A água ondulante conserva para sempre esses ecos e, nas noites silenciosas, os ecos se misturam uns aos outros... Em uma noite de 1942, perto do cinema Biarritz, meu pai foi levado à força pelos homens dos comissários Schweblin e Permilleux. Muito tempo depois, mais ou menos no fim de minha infância, eu o acompanhava a encontros no saguão do Claridge e íamos jantar os dois no restaurante chinês bem pertinho que ficava no primeiro andar. Ele lançava olhares para a outra calçada da avenida onde aguardava, alguns anos antes, o camburão que o levaria ao Depósito? Lembro-me de seu escritório no prédio ocre com grandes vãos envidraçados, no número 1 da rue Lord-Byron. Podia-se sair, atravessando intermináveis corredores, pela avenue des Champs-Élysées. Acho que ele escolheu esse escritório por causa da saída dupla. Lá ficava sempre sozinho com uma loura muito bonita, Simone Cordier. O telefone tocava. Ela tirava o fone do gancho.

— Alô... Quem gostaria?

Depois, voltando-se para meu pai, sussurrava-lhe o nome. E acrescentava:

— Eu digo que está, Albert?

— Não. Não estou para ninguém...

E assim se passavam as tardes. Vazias. Simone Cordier datilografava cartas na máquina de escrever. Meu pai e eu íamos com frequência ao cinema na avenue des Champs-Élysées. Ele me levava para ver reprises de filmes de que gostava. Em um deles trabalhava a atriz alemã Dita Parlo. Na saída do cinema, havíamos descido a avenida a pé. Ele me dissera em tom confidente, incomum de sua parte:

— Simone era amiga de Dita Parlo... Conheci as duas juntas...

Depois se calara, e o silêncio entre nós havia durado até a place de la Concorde, onde me fez perguntas sobre meus estudos.

*

Dez anos depois, eu procurava alguém que pudesse datilografar meu primeiro romance. Havia localizado o endereço de Simone Cordier e lhe telefonara. Parecia surpresa com o fato de eu me lembrar dela após tanto tempo, mas havia combinado um encontro comigo em sua residência, na rue de Belloy.

Entrei naquele apartamento com o manuscrito debaixo do braço. Primeiro ela me pediu notícias de meu pai e não pude lhe responder, porque já não as tinha.

— Então escreve romances?

Respondi com voz insegura. Ela me convidou a entrar em um cômodo que devia ser a sala de estar e onde já não restava nenhum móvel. A pintura bege das paredes estava descascada aqui e ali.

— Vamos ao bar — convidou-me.

E apontava com um gesto brusco para um barzinho branco no fundo do cômodo. Seu gesto, que na época havia me chocado pela aparente desenvoltura, compreendo hoje o tanto de desconforto e desespero que escondia. Ela ficou de pé atrás do bar. Repousei meu manuscrito sobre a bancada.

— Posso lhe servir um uísque? — perguntou-me.

Eu não me atrevia a lhe dizer não. Estávamos ambos de pé, um de cada lado do bar, sob a luz vacilante projetada por uma luminária de parede. Ela também se serviu de uísque.

— Toma puro como eu?

— Sim.

Eu não tomava uísque desde o dia em que a dinamarquesa havia me oferecido um no Malafosse, e lá se ia muito tempo...

Ela bebeu uma grande dose.

— E quer que eu datilografe tudo isso?

Apontava para o manuscrito.

— Sabe, não datilografo há muito tempo...

Ela não tinha envelhecido. Os mesmos olhos verdes. O que constituía a bela arquitetura do rosto permanecia intato: a testa, o arco dos supercílios, o nariz reto. Mas sua tez estava um pouco manchada.

— Eu teria de voltar a... Perdi a mão...

De chofre, fiquei imaginando onde ela poderia datilografar naquele aposento vazio. De pé, com a máquina apoiada no bar?

— Se isso é um problema — eu lhe disse —, deixe para lá...

— Não... de maneira nenhuma...

Ela se serviu de mais uísque.

— Vou dar um jeito... Alugarei uma máquina...

Ela batia no tampo do bar com a palma da mão.

— Deixe três páginas e volte daqui a quinze dias... Depois, traga mais três páginas... E assim por diante... Está bem?

— Sim.

— Outra dose de uísque?

Após ter deixado o apartamento de Simone Cordier, não peguei direto o metrô na estação Boissière. Anoitecia, e perambulei sem destino pelo bairro.

Eu havia lhe deixado três páginas de meu manuscrito sem grandes esperanças de que as datilografasse. Ela tinha dado de ombros quando lhe dissera que havia cinco anos não tinha notícias de meu pai. Nada, decididamente, podia surpreendê-la em se tratando de “Albert”; nem mesmo seu desaparecimento.

Havia chovido. Um cheiro de gasolina e de folhas molhadas pairava no ar. De repente, pensei em Pacheco. Eu o imaginava caminhando pela mesma calçada. Tinha chegado à altura do Hôtel Baltimore. Eu sabia que certa noite ele fora se encontrar com alguém naquele hotel e me perguntei que tipo de pessoa poderia encontrar ali. Talvez o Anjo Contrabandista.

O único depoimento que havia obtido sobre Pacheco surgira fortuitamente durante uma conversa na casa de Claude Bernard, na île aux Loups. Tínhamos jantado com um antiquário de Bruxelas, que ele apresentava como sócio. Por quais meandros havíamos, aquele homem e eu, começado a falar do duque de Bellune, depois de Philippe de Bellune, também conhecido como de Pacheco? O nome lhe lembrava algo. Muito jovem, tinha conhecido em uma praia da Bélgica, em Heist, perto de Zeebrugge, um tal de Felipe de Pacheco, que morava com os avós em um casarão em ruínas sobre o dique. Ele dizia ser peruano.

Felipe de Pacheco frequentava o Hôtel du Phare, onde a proprietária, que tinha sido cantora na Ópera de Liège, oferecia às vezes, à noite, recitais para os hóspedes. Ele estava apaixonado pela filha dela, uma loura muito bonita chamada Lydia. Passava as noites tomando cerveja com os amigos de Bruxelas. Dormia até o meio-dia. Havia interrompido os estudos e vivia de expedientes. Seus avós eram velhos demais para controlá-lo.

E, alguns anos mais tarde, em Paris, meu interlocutor havia reencontrado aquele rapaz em um curso de arte dramática, onde ele dizia se chamar Philippe de Bellune. Frequentava o curso acompanhado por uma moça de cabelos castanho-claros. Quanto a ele, era um rapaz moreno, com uma mancha acima do olho. Certo dia, esse Philippe de Bellune contara que havia acabado de conseguir um trabalho bem-remunerado graças ao anúncio de um jornal.

Nunca mais os tinha encontrado. Nem Philippe de Bellune nem a moça de cabelos castanho-claros. Isso devia ter acontecido durante o inverno de 1942.

Consultei todos os anúncios de empregos publicados nos jornais daquele inverno:

Precisa-se de jovens sem qualificações especiais para trabalho lucrativo, ganho imediato. Escrever para Delbarre ou Etève, Hôtel Baltimore, avenue Kleber, 88 bis, 16º. Ou se apresentar neste endereço a partir das sete da noite.

Lembro-me de um Hôtel de Belgique, no boulevard Magenta, na altura da gare du Nord. Era o bairro onde meu pai morava na infância. E minha mãe chegou pela primeira vez a Paris pela gare du Nord.

Hoje senti vontade de voltar àqueles lados, mas a gare du Nord me pareceu tão longínqua que desisti. Hôtel de Belgique... Eu tinha dezesseis anos quando minha mãe e eu havíamos aportado, em julho, em Knokke-le-Zoute, como dois mendigos. Alguns amigos dela fizeram a gentileza de nos acolher.

Certa noite, passeávamos os dois pelo grande dique de Albert-Plage. Havíamos deixado para trás o cassino e uma área de dunas, além da qual começava o dique de Heist-sur-Mer. Teríamos passado em frente ao Hôtel du Phare? No caminho de volta, pela avenue Élisabeth, eu tinha notado vários casarões abandonados. Talvez um deles pertencesse aos avós de Felipe de Pacheco.


Ontem à noite, acompanhei minha filha aos arredores de Gobelins. Na volta, o táxi seguiu pela rue de la Santé, onde um daqueles cafés — que exibiam acima do letreiro a inscrição MADEIRAS CARVÕES BEBIDAS ALCOÓLICAS — estava iluminado por uma luz verde. No boulevard Arago, eu não desgrudava os olhos do muro escuro e interminável da prisão. Era ali que, outrora, erguiam a guilhotina. De novo pensei em meu pai saindo do armazém do cais da estação de trem e em Pagnon, que sem dúvida fora buscá-lo naquela noite. Eu sabia que o próprio Pagnon ficara detido na Santé em 1941, antes de ser solto por “Henri”, o chefe do bando da rue Lauriston.

O táxi tinha alcançado a Denfert-Rochereau e pegava a avenida que ladeia o hospital Saint-Vincent-de-Paul, o Observatório e o Bureau des Longitudes. Dirigia-se ao Sena. Em meus sonhos, faço com frequência este trajeto: saio de uma área de detenção que poderia ser o armazém do cais da estação de trem ou a Santé. Está escuro. Alguém me espera em um grande automóvel com bancos de couro. Deixamos esse bairro de hospitais, de conventos, de mercados de vinhos e de couro e de prisões e seguimos rumo ao Sena. No instante em que chegamos à Rive droite, após ter atravessado a pont du Carrousel e os arcos do Louvre, dou um suspiro de alívio. Nada mais tenho a temer. Deixamos para trás a zona perigosa. Sei bem que se trata apenas de uma trégua. Um dia terei de prestar contas. Experimento um sentimento de culpa cujo motivo permanece vago: um crime do qual participei na qualidade de cúmplice ou de testemunha, não saberia dizer com exatidão. E torço para que essa ambiguidade evite meu castigo. A que corresponde esse sonho na vida real? À lembrança de meu pai, que, durante a Ocupação, também vivera uma situação ambígua? Preso em uma batida da polícia francesa sem saber de que era acusado, e solto por um integrante do bando da rue Lauriston. Os integrantes do bando utilizavam vários automóveis de luxo abandonados pelos proprietários em junho de 1940. “Henri” circulava em um Bentley branco que tinha pertencido ao duque de Cadaval, e Pagnon, em um Lancia que o escritor alemão Erich Maria Remarque, antes de sua partida para a América, havia confiado a um mecânico da rue La Boétie. E, sem dúvida, Pagnon fora buscar meu pai no Lancia roubado de Remarque. Que estranha sensação sair do “buraco” — como dizia meu pai — e se encontrar em um desses carros com cheiro de couro que atravessa Paris lentamente em direção à Rive droite após o toque de recolher... Entretanto, mais dia, menos dia será preciso prestar contas.


Esse sonho que tenho com frequência de uma travessia de carro da Rive gauche à Rive droite, em circunstâncias suspeitas, também vivi quando fugi do colégio em janeiro de 1960, aos quatorze anos e meio. O ônibus que tomei na Croix-de-Berny tinha me deixado na porte d’Orléans, em frente ao Café de la Rotonde, que ocupava o térreo de um dos prédios dos conjuntos habitacionais da periferia. Nas raras ocasiões em que tínhamos um dia de folga, era preciso se reunir na segunda às sete da manhã diante do Café de la Rotonde e esperar o ônibus que nos levaria de volta ao colégio. Uma espécie de casa de correção com aparência luxuosa para delinquentes, rejeitados de famílias ricas, filhos de mulheres outrora chamadas de “galinhas” ou crianças abandonadas durante uma estadia em Paris como bagagens inoportunas: tal como meu vizinho de dormitório, o brasileiro Mello Rodrigues, que não recebia notícias da família havia um ano... A fim de nos inculcar a disciplina que não tínhamos recebido de nossas “famílias”, a direção aplicava um rigor de academia militar: marchas, saudações à bandeira pela manhã, castigos físicos, posição de sentido, inspeção nos dormitórios à noite, intermináveis circuitos de resistência ao ar livre nas tardes de quinta...

Naquela segunda de 18 de janeiro de 1960, eu fazia o caminho inverso: do Café de la Rotonde, tão lúgubre nas manhãs invernais de segunda, quando voltávamos ao “buraco” por Montrouge e Malakoff, tomei o metrô até Saint-Germain-des-Prés. No Malafosse, a dinamarquesa disse:

— Um uísque para meu chapinha...

O garçom, atrás do balcão, sorriu e lhe respondeu:

— Não servimos bebidas alcoólicas para menores, senhorita.

Ela me fez tomar um gole de seu copo. O gosto do uísque me pareceu particularmente amargo, porém me deu coragem para lhes confessar que não podia ir para casa porque meus pais não estavam, nem meu pai nem minha mãe, e só regressariam no mês seguinte.

— Então você precisa voltar para o colégio — disse aquele que usava óculos escuros e fumava cigarros de papel amarelo.

Eu lhes expliquei que era impossível: a fuga de um aluno sempre era punida com a imediata expulsão do colégio... Eles se recusariam a me acolher.

— E não tem ninguém na sua casa?

— Ninguém.

— E não podemos avisar seus pais?

— Não.

— E você não tem a chave de casa?

— Não.

— Eu cuido do meu chapinha — disse a dinamarquesa.

Ela pousou a mão em meu ombro. Tínhamos nos despedido dos outros e saímos do Malafosse. Seu carro estava estacionado um pouco mais adiante, no cais, depois da escola de Belas-Artes: um Peugeot 203 azul-marinho com bancos de couro vermelho. Eu conhecia bem aquele carro. Já o tinha visto várias vezes no bairro, diante do Hôtel de la Louisiane e do Montana.

Estava sentado no banco a seu lado. Ela acelerou bruscamente.

— Alguém precisa tomar conta de você — comentou com ar plácido.

Seguimos pelos cais e atravessamos o Sena pela pont de la Concorde. Na Rive droite, eu me sentia melhor, como se o Sena fosse uma fronteira capaz de me proteger de um interior hostil. Estávamos longe do Café de la Rotonde, da Croix-de-Berny e do colégio... Mas eu não conseguia me impedir de pensar no futuro com inquietação, pois me parecia ter cometido um erro irreparável.

— Acha que é grave? — perguntei-lhe.

— O que é grave?

Ela se virou para mim.

— Nada disso, meu chapinha... Vai dar tudo certo...

Seu sotaque dinamarquês me tranquilizava. Seguíamos o Cours-la-Reine, e eu dizia a mim mesmo que pelo menos podia contar com ela.

— Eles vão avisar a polícia...

— Você tem medo da polícia?

Ela me sorria e seus olhos azuis-violeta repousavam sobre mim.

— Fique tranquilo, meu chapinha...

O sussurro doce e rouco de sua voz dissipava minha inquietação. Tínhamos chegado à place de l’Alma e seguíamos pela avenida que sobe até o Trocadéro. Era o caminho percorrido pelo ônibus 63 quando o pegávamos, meu irmão e eu, para ir ao Bois de Boulogne. Nos dias de tempo bom, viajávamos na área aberta nos fundos.

Ela não pegou a direita, a avenida sombreada de árvores que o 63 percorria. Estacionou o carro em frente a uns prédios grandes e modernos no início da avenue Paul-Doumer.

— Eu moro aqui.

No térreo, atravessamos um corredor comprido iluminado por neons. Um vulto usando impermeável aguardava diante de sua porta. Um homem moreno, alto e de bigode fino. Um cigarro pendia do canto de seus lábios. Eu também já havia cruzado com ele nas ruas de Saint-Germain-des-Prés.

— Eu não tinha a chave — explicou.

Ele me sorria com ar meio surpreso.

— É um amigo meu — disse ela, apontando para mim.

— Prazer.

Ele apertava minha mão. Ela me falou:

— Vá dar uma volta, meu chapinha... Volte daqui a uma hora... Hoje à noite vamos ao restaurante e depois ao cinema...

Ela abriu a porta. Os dois entraram. Depois, ela passou a cabeça pela fresta.

— Não se esqueça do número quando voltar: 23...

Com o dedo, apontava o número 23 em metal dourado sobre a madeira clara.

— Volte daqui a uma hora... Essa noite vamos encher a pança em Montmartre, no San Cristobal...

O sotaque dinamarquês ainda era mais doce, mais carinhoso por causa da gíria fora de moda.

Ela fechou a porta. Permaneci imóvel por um instante no corredor. Fiz um esforço sobre-humano para não bater à porta. Saí do prédio andando a passos lentos e regulares, pois me sentia tomado pelo pânico. Acreditei que jamais conseguiria atravessar a place du Trocadéro. Precisei me convencer a não ir à primeira delegacia e lhes confessar meu crime. Nada disso, quanta idiotice! Eles me levariam para um reformatório de verdade ou ao que chamavam de “centro vigiado”. Eu podia mesmo confiar na dinamarquesa? Devia ter ficado na calçada da avenue Paul-Doumer, para me certificar de que ela não iria embora. O moreno de impermeável que havia entrado na casa dela podia persuadi-la a não cuidar mais de mim. Apartamento 23. Eu não podia esquecer o número. Mais quarenta e cinco minutos pela frente. E, mesmo se ela não estivesse mais lá, eu a esperaria na porta do prédio, sem me fazer notar, até sua volta.

Eu tentava me tranquilizar remoendo todos esses pensamentos. Do outro lado da praça, o ponto do 63. Dava tempo de ir ao Bois de Boulogne e voltar? Restavam-me dez francos. Mas eu sentia medo de ficar sozinho naquele ônibus, sozinho no gramado de La Muette e à beira do lago, naqueles lugares onde poucos anos antes eu ia com meu irmão. Preferi me aventurar na esplanada de onde se pode ver toda Paris. E desci as ladeiras das alamedas do jardim banhado pelo sol do inverno. Ninguém. Eu me sentia melhor. No alto, as imensas janelas e a cornija do palácio. Tinha a impressão de que as salas e as galerias no interior estavam tão desertas quanto os jardins. Quis me sentar em um banco. Depois de um instante, essa imobilidade provocou em mim, mais uma vez, um início de pânico. Então me levantei e continuei caminhando ao longo das alamedas rumo ao Sena.

Cheguei à porta do Aquário. Comprei uma entrada. Era como se eu penetrasse em uma estação de metrô. Na base das escadas estava escuro, porém isso me tranquilizava. Na sala onde desemboquei apenas os aquários estavam iluminados. Pouco a pouco, no fundo daquela penumbra, reencontrei a calma. Nada mais tinha importância. Estava longe de tudo, de meus pais, do colégio, da barulheira da vida cuja única boa recordação era aquela voz doce e sussurrante com sotaque dinamarquês... Aproximei-me dos aquários. Os peixes tinham tonalidades tão vivas quanto as dos carrinhos bate-bate de minha infância: cor-de-rosa, azul-turquesa, verde-esmeralda... Não faziam barulho. Deslizavam ao longo das paredes de vidro. Abriam a boca sem emitir nenhum som, mas de tempos em tempos as bolhas subiam à superfície da água. Eles jamais me pediriam para prestar contas.


Ali, na calçada da avenue Henri-Martin, eu disse a mim mesmo que as noites de domingo no inverno são tão tristes nos bairros do oeste quanto para os lados do Ursulines e na praça congelada do Panthéon.

Senti uma pressão no peito, uma flor cujas pétalas cresciam e me sufocavam. Eu estava pregado ao chão. Por sorte, a presença de minhas filhas me fincava ao presente. Caso contrário, todos os antigos domingos à noite e a volta ao pensionato, a travessia do Bois de Boulogne, os hipódromos desaparecidos de Neuilly, as lamparinas do dormitório, aqueles domingos teriam me inundado com seu odor de folhas mortas. Algumas janelas iluminadas nas fachadas dos prédios eram elas mesmas lamparinas que foram deixadas acesas trinta anos antes em apartamentos vazios.

A lembrança de Jacqueline surgiu das poças de chuva e das luzes brilhando inutilmente nas janelas dos prédios. Não sei se ainda está viva em algum lugar. A última vez que a vi foi há vinte e quatro anos, no saguão da gare de l’Ouest, em Viena. Eu me preparava para deixar a cidade e retornar a Paris, mas ela queria ficar. Deve ter morado ainda um tempo no quarto da Taubstummgasse, atrás da igreja Saint-Charles, e suponho que depois, por sua vez, deva ter partido em busca de novas aventuras.

Pergunto-me onde estão hoje certas pessoas que conheci na mesma época. Tento imaginar em qual cidade poderia ter alguma chance de reencontrá-las. Estou certo de que elas deixaram Paris definitivamente. E penso em Roma, onde acabamos aportando e onde o tempo parou como o relógio dos jardins du Carrousel de minha infância.

Naquele verão, encontrávamo-nos havia vários meses em outra cidade estrangeira, Viena, e tínhamos a intenção de ali permanecer para sempre. Certa noite, nos arredores de Graben, havíamos entrado em um café cuja porta era a mesma de um prédio. O vestíbulo dava acesso a um salão de assoalho acinzentado que parecia o local de um curso de dança ou o saguão desocupado de um hotel, ou mesmo o café-restaurante de uma estação de trem. A luz vinha de tubos de neon presos às paredes.

Eu tinha descoberto aquele lugar por acaso durante uma caminhada. Sentamo-nos a uma das mesas dispostas em fileiras, com um espaço largo separando umas das outras. Havia apenas três ou quatro clientes conversando entre si em voz baixa.

Claro, fui eu quem levou Jacqueline ao Café Rabe naquela noite. Mas aquela jovem, exatamente da minha idade, atraía fantasmas. Em Paris, na noite de domingo em que eu a notara pela primeira vez, ela estava em tão curiosa companhia... E agora, no Café Rabe, que encontro provocaria?

Um homem entrou. Usava um paletó de tweed. Dirigiu-se mancando bastante ao balcão no fundo da sala, serviu-se sozinho de uma garrafa d’água e de um copo. Com seu andar coxo, veio se sentar à mesa vizinha à nossa.

Eu me perguntei se não seria o proprietário do café. Ele apreendeu algumas palavras de nossa conversa, pois se virou em nossa direção.

— São franceses?

Ele tinha um sotaque muito leve. Sorria. Apresentou-se:

— Rudy Hiden...

Eu havia escutado aquele nome sem saber a quem pertencia. O rosto de traços harmoniosos poderia ser o de um ator de cinema. Naquele instante, seu nome, Rudy, tinha me abalado. Era o nome de meu irmão. E ele evocava imagens românticas: Mayerling, os funerais de Valentino, um imperador da Áustria que sofria de melancolia em tempos longínquos...

Com Rudy Hiden trocamos observações gentis, como viajantes desconhecidos sentados à mesma mesa em um vagão-restaurante. Ele nos contou que tinha morado em Paris, que havia muito não voltava e sentia muitas saudades da cidade. Saudou-nos com um aceno de cabeça cerimonioso quando deixamos o Café Rabe.

Mais tarde, soube que ele tinha sido o maior goleiro da história do futebol. Tentei encontrar fotos dele e de todos os seus amigos austríacos de nomes melodiosos que faziam parte do Wunderteam de Viena e que deslumbraram com sua graça o público dos estádios. Rudy Hiden precisou abandonar o futebol. Tivera uma casa noturna em Paris, na rue Magellan. Depois um bar, na rue de la Michodière. Havia quebrado a perna. Tinha retornado a Viena, sua cidade natal, onde levava uma vida de mendigo.

Eu o revejo sob a luz de neon do Café Rabe avançando em nossa direção com seu andar coxo. É coincidência topar com uma frase de uma carta de Scott Fitzgerald que me faz lembrar dele? “Estou convencido de que todos os boxeadores profissionais, atores e escritores que vivem de seus talentos deveriam, durante seus anos mais frutíferos, entregar-se às mãos de um gerente. O elemento efêmero desse talento parece tão ‘distinto’ de nós, algo que nos é estranho e se dissimula em um recôndito tão secreto de nosso ser, que, ao que parece, seria preciso confiar sua guarda à custódia de alguém mais firme que o pobre homem no qual habita e que deve, em definitivo, pagar a conta.”

E acabar no Café Rabe.


Eu tinha visto Jacqueline em um domingo à noite, em Paris, no 16º. Arrondissement estranho. Claude Bernard, por exemplo, cuja ficha judiciária eu teria curiosidade de consultar para saber mais sobre o homem que conheci há dezenove anos, jantava com frequência nos restaurantes desse bairro da área oeste. Os integrantes do bando da rue Lauriston também. Pagnon morava em um apartamento de luxo no número 48 bis da rue des Belles-Feuilles. Ele frequentava os hipódromos de Neuilly e até as pistas do Cercle de l’Étrier, no Bois de Boulogne, que havia requisitado, por intermédio de “Henri”, para que a amante pudesse montar a cavalo sozinha uma tarde, sem ser incomodada por ninguém...

Por mais que eu vasculhe minha memória em busca de lembranças referentes ao 16º, só encontro apartamentos vazios, como se tivessem acabado de sofrer uma apreensão de bens: por exemplo, a sala de estar de Simone Cordier.

Chovia naquele domingo à noite. Era outubro ou novembro. Claude Bernard tinha marcado um jantar comigo em um restaurante da rue de la Tour. Na véspera, eu havia lhe vendido as obras completas de Balzac — editadas pela Veuve Houssiaux. Cheguei primeiro. Ninguém além de mim. Esperei em uma salinha de painéis de madeira clara. Fotos de jóqueis e de professores de equitação, a maioria com dedicatória, enfeitavam as paredes.

Três pessoas fizeram uma entrada barulhenta: um homem louro com uns cinquenta anos, alto e forte, usando casaco de caça e echarpe; um moreno bem mais jovem e mais baixo que ele; e uma jovem da minha idade, cabelos castanhos e olhos claros, envolta em um casaco de pele. O dono do restaurante se dirigiu a eles com um sorriso nos lábios.

— O que contam de novo?

O moreno baixo o fitou de cima a baixo com ar triunfante.

— Vierzon-Paris em uma hora e quinze... Não tinha ninguém na estrada... cento e cinquenta quilômetros por hora em média... Quase matei esses dois de medo...

Ele apontava para a jovem e para o homem louro de casaco de caça. Este deu de ombros.

— Ele acha que é piloto de corrida. Esquece que há vinte anos eu corria com Wimille e Sommer...

Os três homens caíram na gargalhada. Quanto à moça, parecia aborrecida. O dono os conduziu a uma mesa diante da minha. Eles nem sequer notaram minha presença. O moreno me dava as costas. O outro tinha se sentado ao lado da moça no banco. Ela não havia tirado o casaco de pele. O telefone tocou. O aparelho ficava em cima do balcão, à minha direita.

— É para o senhor...

O dono me estendia o fone. Eu me levantei. Os olhares de todos os três pousaram sobre mim. O moreno até se virou. Claude Bernard pedia desculpas por não poder ir ao meu encontro. Disse estar “sitiado em sua casa na île des Loups por causa de uma visita inesperada”. Perguntou se eu tinha dinheiro suficiente para pagar a conta do jantar. Por sorte, eu havia posto no bolso interno de meu paletó os três mil francos da venda das obras de Balzac. Quando desliguei, meu olhar encontrou o da moça. Não me atrevia a deixar o restaurante sem jantar, pois seria preciso pedir o casaco que um garçom tinha guardado no vestiário lá no fundo.

Voltei diversas vezes àquele lugar. Na companhia de Claude Bernard. Ou mesmo sozinho. Claude Bernard se espantava com minha assiduidade em frequentar a rue de la Tour. Eu queria saber mais sobre aquela moça que não tirava o casaco de pele e exibia sempre uma expressão aborrecida.

Todo domingo eles faziam sua entrada por volta das nove e meia da noite. Eram quatro ou cinco, às vezes mais. Falavam alto, e o dono os tratava com amabilidade respeitosa. A moça se sentava à mesa muito empertigada, sempre ao lado do louro de casaco de caça. Não dizia uma palavra. Parecia ausente. O casaco de pele contrastava com a juventude do rosto.

“Vierzon-Paris em uma hora e quinze... Não tinha ninguém na estrada...” O eco dessas palavras que eu o tinha ouvido pronunciar no primeiro domingo hoje soa tão longínquo que preciso apurar o ouvido. Os anos o recobrem com uma estática parasita... Vierzon... Voltavam de Sologne, onde o louro de casaco de caça possuía um castelo e terras. Tinha um título de marquês. Mais tarde, soube que seu nome evocava os pajens com roupas acinturadas da corte dos Valois e a fada Morgana, de quem sua família alegava descender.

Contudo, tinha diante de mim apenas um homem com rosto abrutalhado e voz pastosa. Eu experimentava o mesmo desconforto que me invadiu alguns anos mais tarde ao escutar uma conversa entre intermediários e transportadores de carne em uma estalagem nas cercanias de Paris: falavam de caçadores ilegais que os abasteciam com cervos e corças, de matança clandestina e de entregas noturnas em abatedouros equinos; e os lugares onde agiam eram aqueles cujos tão graciosos nomes são cantados por Nerval: Crépy-en-Valois, Mortefontaine, Loisy, La Chapelle-en-Serval...

Voltavam, portanto, de Sologne. O marquês era um dos proprietários de uma equipe de caça com matilha que “desatrelava” — eu havia assimilado esse termo de suas conversas — na floresta de Vierzon. A equipe se chamava “Sologne-Lagoa de Menehou”. E eu imaginava essa lagoa ao fim de uma alameda na floresta, ao pôr do sol. Ao longe, uma fanfarra de trombetas de caça comovia meu coração. Eu não podia desviar o olhar da água adormecida com reflexos avermelhados, folhas de nenúfares e juncos. Pouco a pouco, a superfície da água se tingia de negro e eu via aquela moça ainda na infância, à margem da lagoa de Menehou...

Alguns domingos depois, o dono do restaurante começava a me reconhecer. Aproveitando-me de um momento em que os outros ainda não tinham chegado para jantar, havia lhe perguntado quem era a jovem de casaco de pele e qual sua relação com o marquês, a quem parecia sempre acompanhar e que se sentava toda vez a seu lado: “Uma parente pobre”, respondera ele, dando de ombros.

Na certa, uma parente pobre oriunda, como o marquês, de uma linhagem nobre bastante antiga cujas origens se perdiam na noite dos tempos e no coração das florestas da Île-de-France e de Sologne... Eu tinha certeza de que ela passara a infância no internato das ursulinas de Bourges. Era a única descendente de uma dessas famílias extintas sem descendentes masculinos e a quem chamavam de “mestiças de além-mar”, pois permaneceram, após as cruzadas, vários séculos em Constantinopla, na Grécia ou na Sicília. Muito tempo depois, um de seus ancestrais havia retornado a Sologne, sua terra natal, para encontrar um castelo em ruínas à beira da lagoa de Menehou, e tílias, à sombra das quais volteavam sem pressa grandes borboletas.

Um domingo à noite, envolta em seu casaco de pele, ela parecia ainda mais aborrecida que o normal. De minha mesa, eu observava as tentativas do marquês de animá-la: acariciou seu queixo com o indicador, mas ela virou o rosto com um movimento brusco, como se surpreendida pelo contato com algo viscoso. Eu compartilhava de sua repulsa: as mãos do marquês eram grosseiras, vermelhas, mãos de estrangulador, que me lembravam o título de um documentário, O sangue das bestas. A que se acrescenta hoje a recordação daquela conversa entreouvida entre intermediários e transportadores de carne que cruzavam o país de Nerval. Como aquele louro gordo usando casaco de caça se atrevia a sujar aquele rosto tão delicado com sua mão? Claude Bernard, que certo domingo tinha notado meu interesse pela jovem, havia me dito com gentileza: “Ela é parecida com Joan Fontaine, minha artista preferida...”

Esse elogio não me parecera de todo correto. Joan Fontaine era inglesa, enquanto a moça representava para mim o ideal da francesa, tal como eu a idealizava na época.

Naquela noite, eu notava um grupo mais numeroso à mesa que nos outros domingos. Poderia citar os nomes: um tal de Jean Terrail, que Claude Bernard havia reconhecido dentre eles na semana anterior, um moreno que, segundo me disse, administrava um hotel na rue François-Ier. Ora, dentre as informações reunidas sobre Pagnon, constava a seguinte: “Em 1943, extorquiu pessoalmente trezentos mil francos em marcos alemães que lhe foram confiados, com o propósito de venda, por um certo senhor Jean Terrail.” O mundo ao qual pertenciam essas pessoas me despertava lembranças da infância; era o mundo de meu pai. Marqueses e capitães de indústria. Cavalheiros de fortuna. Carne para a cadeia. O Anjo Contrabandista. Pela última vez, eu os resgato do vazio antes que para lá retornem em definitivo.

Hoje aqueles jantares de domingo à noite me parecem tão distantes no tempo como se um século se houvesse transcorrido. Todos os convivas estão mortos. Não constituem outro interesse para mim senão formar em torno de Jacqueline um estojo de joias de veludo podre... Vierzon-Paris em uma hora e quinze... Não tinha ninguém na estrada... A porta do restaurante se abre para ela e de fora penetra o odor de terra molhada e tília.

No meio do jantar, ela se levantara bruscamente. O marquês havia tentado detê-la segurando-a pelo ombro. Mas ela havia deixado a mesa e, com andar indolente, o restaurante. O marquês não tinha se movido. Fingindo indiferença, havia se esforçado para participar da conversa geral.

Quanto a mim, eu ainda não havia começado a jantar. Levantei-me. Um impulso me empurrava para fora. Fazia semanas que a espiava e nunca havia encontrado seu olhar.

Ela estava uns dez metros à minha frente na calçada. Caminhava com andar indolente. Eu a alcancei muito rápido. Ela se virou. Eu me espantei. Consegui balbuciar:

— Largou seus amigos?

— Sim. Por que a pergunta?

Ela ergueu a gola do casaco de pele e a apertou em volta do pescoço. Seus olhos irônicos estavam fixos em mim.

— Acho que conheço de vista um de seus amigos...

Ela retomava o caminho e eu a seguia, com medo de que me lançasse um comentário descortês. Mas parecia achar natural eu ficar a seu lado. Entramos no beco sem saída ladeado de prédios conhecido como avenue Rodin.

— Então conhece um de meus amigos... Qual?

Começou a chover. Nós nos abrigamos sob o pórtico do primeiro prédio.

— Aquele senhor louro — respondi. — O marquês de sei lá o quê.

Ela me sorriu.

— Refere-se ao velho babaca?

Sua voz era doce, meio pastosa, e ela havia pronunciado as duas palavras sem enfatizar nenhuma sílaba. Logo compreendi que me enganara a seu respeito e que minha imaginação tinha me levado a divagar. Melhor assim. De agora em diante, para mim ela era simplesmente Jacqueline da avenue Rodin.

Esperamos a chuva passar e caminhamos a pé até a casa dela. Sempre em frente, ao longo da rue de la Tour. Depois, seguimos o boulevard Delessert, naquela área de Passy construída em vários níveis e que desce em direção ao Sena. Uma escadaria íngreme nos conduziu a uma ruazinha que desembocava no cais. O elevador estava quebrado. Duas peças, lado a lado. Em uma delas, uma cama grande com a cabeceira de cetim branco em capitonê.

— O velho babaca vai vir. Importa-se se apagarmos a luz?

Sempre aquela voz doce e serena, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Estávamos sentados lado a lado no sofá, à penumbra. Ela não havia tirado o casaco de pele. Aproximou o rosto do meu.

— E posso saber o que fazia todo domingo à noite naquele restaurante?

Ela tinha me pego de surpresa. Seus lábios esboçavam um sorriso debochado. Encostou a cabeça em meu ombro e esticou as pernas no sofá. Eu sentia o perfume de seus cabelos. Não me atrevia a me mover. Ouvi o motor de um carro lá embaixo.

— Deve ser o velho babaca — cochichou.

Levantou-se e olhou pela janela. O motor foi desligado. Eu também olhei. Chovia muito. Um grande carro inglês preto estava estacionado no meio-fio. O marquês permanecia imóvel em frente ao prédio. Não usava sobretudo nem impermeável. Ela saiu da janela e foi se sentar no sofá.

— O que ele está fazendo? — perguntou-me.

— Nada. Está parado debaixo da chuva.

Depois de um momento, porém, ele se dirigiu à porta do prédio. Eu escutava seus passos pesados nas escadas. Ele tocou a campainha duas vezes de leve. Depois, outro toque, bem demorado. Depois, toques breves. Ela não se mexia do sofá. Ele acabou batendo na porta. Parecia tentar derrubá-la. O silêncio voltou. Seus passos pesados sumindo nas escadas.

Eu não havia me afastado da janela. Sob a chuva torrencial, ele atravessou a rua e se encostou no muro de apoio da escadaria que tínhamos descido havia pouco. E continuava lá, de pé, as costas apoiadas no muro, a cabeça erguida na direção da fachada do prédio. A água da chuva escorria do alto das escadarias e caía sobre ele, e seu paletó estava encharcado. Mas ele não se movia um milímetro sequer. Então houve um fenômeno para o qual tento hoje encontrar uma explicação: a lâmpada do poste que, do alto, iluminava a escadaria se apagou de súbito. Pouco a pouco, aquele homem se fundia ao muro. Ou então a chuva, de tanto cair sobre ele, apagava-o, como a água dilui uma pintura que não teve tempo de se fixar. Embora eu apoiasse a testa contra o vidro e perscrutasse o muro cinza escuro, não havia mais vestígio dele. Ele havia desaparecido desse jeito repentino que eu notaria mais tarde em outras pessoas, como meu pai, e que deixa alguém perplexo a ponto de não restar outra opção a não ser procurar provas e indícios para persuadir a si mesmo de que essas pessoas de fato existiram.


A primavera foi precoce esse ano. Fez muito calor naqueles 18 e 19 de março de 1990. De um dia para o outro, os brotos se transformaram em folhas nas castanheiras no jardim de Luxemburgo. Na entrada do jardim, na rue Guynemer, param ônibus multicoloridos de onde descem turistas japoneses. Em filas, seguem uma alameda até a estátua da Liberdade que se ergue às margens de um gramado, a réplica em miniatura da estátua de Nova York.

Há pouco eu estava sentado em um banco, nas proximidades dessa estátua. Um homem de cabelos grisalhos usando um terno azul-celeste caminhava à frente de um grupo de japoneses e, diante da estátua, fornecia-lhes, gesticulando com as mãos e tentando falar em inglês, algumas explicações. Misturei-me ao grupo. Eu não desgrudava os olhos daquele homem, atento a seu timbre de voz. Tive a impressão de nele reconhecer o falso Pacheco da época da Cidade Universitária. Carregava a tiracolo uma bolsa da companhia de aviação TWA. Tinha envelhecido. Era realmente ele? A mesma pele bronzeada, como quando de seu retorno de Casablanca, e os mesmos olhos vazios de tão azuis.

Aproximei-me e fiquei tentado a tocar em seu ombro e interromper seu discurso. E a dizer, estendendo-lhe a mão: “Senhor Lombard, presumo...”

Os japoneses tiraram algumas fotos da estátua, e o grupo deu meia-volta seguindo pela alameda que leva ao portão da rue Guynemer. O homem de cabeleira prateada e terno azul-celeste abria a marcha. Embarcaram no ônibus à espera no meio-fio. O homem contava os japoneses à medida que passavam a sua frente.

Então ele subiu e se sentou ao lado do motorista. Tinha um microfone na mão. O jardim de Luxemburgo era apenas uma etapa e iriam visitar Paris inteira. Tive vontade de segui-los nessa manhã radiante que anunciava a primavera e de não ser nada além de um simples turista. Sem dúvida teria recuperado uma cidade que havia perdido e, através de suas avenidas, a sensação de leveza e de despreocupação que eu experimentava outrora.

Aos vinte anos, eu tinha partido para Viena com a Jacqueline da avenue Rodin. Lembrei-me dos dias que precederam essa partida e de uma tarde na porte d’Italie. Eu tinha visitado um pequeno canil, no fim da avenue d’Italie. Em uma das jaulas, um terrier me observava com seus olhos pretos, a cabeça ligeiramente inclinada, as orelhas erguidas, como se pretendesse iniciar uma conversa e não perder uma só palavra do que eu lhe diria. Ou então, simplesmente, esperava que eu o libertasse de sua prisão: o que fiz após alguns minutos de hesitação. Por que não levar o cachorro para Viena?

Sentei-me com ele a uma mesa na calçada de um café. Era junho. Ainda não tinham cavado a trincheira do anel viário que dá a sensação de cerco. As portas de Paris, naquela época, eram todas convergentes; pouco a pouco a cidade afrouxava seu abraço para se perder nos terrenos baldios. E ainda era possível acreditar que a aventura se encontrava na esquina seguinte.

 

 

                                                   Patrick Modiano         

 

 

 

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