Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
M A T A R A N A
Livro III / Segunda Parte
FOGO NO CERRADO
Karen não queria sair do galpão antes de confirmar o estado de saúde de Thales. Deu uma olhada crítica no pistoleiro com os tiros nos joelhos, mas evitou olhar para o corpo grande do coronel. Parou ao lado de quem a interessava no momento e se ajoelhou.
― Viu os hematomas por baixo do sangue? ― ela perguntou a Franco, que voltou e se postou ao seu lado, conferindo o que lhe era mostrado: ― Olha só... ― levantou e encheu uma garrafa plástica com água da torneira da pia, voltou e lavou com delicadeza o rosto de Thales, e afirmou: ― percebeu? Não é soco com a mão nua, como nas corridas em que eu participava; usaram o tal do soco-inglês. Por aqui ninguém usa isso, o pau canta no punho limpo mesmo. Aquele cara ali, ó, está usando um desses.
Franco olhou em direção ao tatuado e depois para Karen.
― Foi ele então que cobriu o meu pai de porrada?
Ela fez que sim.
O tatuado gritou tentando se arrastar para fora do galpão:
― Nem vem, eu não bati sozinho!
― Eles o prenderam nesses ganchos e o golpearam até desmaiar.
À medida que ela falava, Franco sentia uma enguia de fogo percorrer-lhe a espinha até alcançar as pontas dos seus dedos. As asas dos insetos que habitavam a sua cabeça batiam agitadas. Ele então deixou o grandalhão rastejar feito uma lesma soltando a gosma sanguinolenta pelo chão até chegar à saída. Não suportando mais reprimir a vontade de causar um dano maior que a dor que ele próprio sentia, a dor que o homem que venerava tinha sentido, com passadas largas e obstinadas ele seguiu até o tatuado.
O outro parou de rastejar e segurou a respiração. Alguma coisa estava para acontecer. Ouviu um choro baixo, rouco, e o barulho do metal esfregando o couro. Era uma pistola puxada do coldre.
A sombra alta de chapéu se formou sobre o piso e a voz calma e persuasiva rasgou ao meio a atmosfera do ambiente:
― Acabou, Franco. Se não abaixar a arma, terei de usar a minha.
Karen se pôs de pé no minuto seguinte que viu Rodrigo e gritou alto e claro:
― Esse desgraçado que você quer proteger me viu atirando na cabeça do coronel Marau.
Somente por causa da confissão de Karen, que o fez apertar os lábios com raiva, Franco abaixou a arma. Olhou para o delegado com a feição ainda molhada pelas lágrimas e os olhos toldados pela dor. Esperou pelo o que tinha de acontecer. Porém, ainda assim, tentou limpar a barra de Karen:
― Fui eu que matei o coronel.
― Não, Rodrigo, fui eu. O Franco limpou as digitais da minha arma, aquela que o Thales me deu, e que você sabe o número de série...
― Bom, usei a arma dela. O cretino aí no chão me desarmou e tive de pegar a automática da Karen. Consegue imaginar essa vaca atirando em alguém?
Rodrigo olhava para Karen sem piscar, impassível:
― Era uma emboscada, ― ela começou a falar com desânimo e tristeza: ― tudo deu errado desde o início. Olha o Thales aqui no chão.
Ele viu e se aproximou até parar e flexionar os joelhos, pondo dois dedos sobre a artéria que pulsava forte no pescoço do fazendeiro.
― Atirei em todo mundo, delegado, e depois vim para cá pegar o meu pai. O coronel apareceu e eu atirei nele. O Bronson vai levar o meu pai para a fazenda, e eu sigo com você até a delegacia. Sei que tenho direito a um telefonema, então quero avisar a minha mulher...
Rodrigo se ergueu e o fitou firmemente.
― Está preparado para viver no presídio de Santa Fé?
― Sim. ― Karen respondeu por Franco. ― Fiz o que tinha de fazer. Ou era o Marau ou era o Dolejal. E há dez anos fiz a minha escolha.
O delegado se voltou para a mulher e a fitou com o semblante carregado.
― Por que se envolveu nessa imundície? O que acha que acontecerá agora, com os federais na cidade?
― A Karen não tem nada a ver com isso, porra!
― Acha que nasci ontem, moleque? O que pretendiam? Cavar um buraco e empilhar os corpos? Jogá-los no rio? Ou nem pensaram em limpar essa sujeirada toda? Pro inferno que vou deixar que você dois se destruam, os dois que não escutam ninguém e nunca pensam direito, sempre movidos por sentimentos extremos! Olha o que fez para a sua mulher e a sua filha! Satisfeito? Vão ficar sozinhas, enquanto o teu pai infernizará um bando de advogados para no máximo reduzir a tua pena. E você, Karen...O que faço com você? Pelo amor de Deus, me diz, o que faço com você? ― ele tinha os olhos cheios de lágrimas que não rolavam.
Bronson entrou com a picape e estacionou ao lado deles.
Ninguém se mexeu.
Rodrigo então fez um sinal com a mão para Franco e falou de forma clara e concisa:
― Pega o teu pai e a Karen e se mandem daqui. ― como o outro não saiu do lugar, insistiu: ― Sai daqui, Franco. Eu e o Bronson vamos sumir com qualquer vestígio de que alguém da Arco Verde, e isso inclui você, Karen, tenha estado aqui. Preciso da arma que ela usou.
Franco estendeu a Glock sem nada falar.
― Levem-no para a fazenda e, se ele precisar ser hospitalizado, que seja na capital. Vocês têm jatinho, não é? Então nada de chamar a atenção sobre a Arco Verde. Talvez com toda essa droga na fazenda, os federais acreditem que tenha sido uma execução. Toda vez que tem droga envolvida e alguém morre, associam uma coisa à outra. ― ele parou e fitou os dois: ― Por que ainda estão parados me olhando?
Franco indicou com a cabeça o tatuado.
― Ele ouviu tudo.
Rodrigo chegou até o homem e, se agachando ao seu lado, falou:
― Tudo indica que você também será assassinado. Notou que ficamos sem opções? Ou acredita que prenderei a mulher que amo? O que acha mais fácil de acontecer: eu indiciar a minha mulher por homicídio ou executá-lo como queima de arquivo? ― ele puxou a aba do chapéu para frente e acresceu de forma dura e persuasiva: ― Se há uma terceira alternativa, chegou o momento de dar a sua sugestão.
Paulo correu pela planície feito um condenado à forca. O coronel fora assassinado friamente, sem hesitação alguma por parte da ex-mulher de Dolejal. Talvez a mulher mais importante de Matarana que, por certo, jamais seria trancafiada detrás das grades. Pelo contrário, a fim de manter a sua liberdade, a família Dolejal inteira caçaria toda e qualquer possível testemunha do crime. Seria então o alvo de uma busca selvagem de um batalhão de pistoleiros.
Não podia voltar para casa e falar com os seus pais. Contar sobre a cagada que fizera, a maior de todas, e ele ainda nem tinha 20 anos.
Franco dirigia a picape Ford F250 de Bronson como se fosse sua, correndo, não a poupando dos buracos e com os vidros abaixados, desprezando o ar-condicionado. O vento morno entrava em rajadas, quase sacudia o comboio de veículos que seguia pela estrada vicinal. Nuvens escuras se formavam para jogar água por sobre todos.
A cada cinco minutos, ele lançava um olhar pelo retrovisor para espiar os passageiros no banco traseiro.
Karen olhava ao redor, desconfiada da placidez da paisagem de campos verdes ao longo da estrada, um sulco fundo de seriedade marcando a testa, os braços em torno do corpo escorado contra o seu, a cabeça de Thales descansando sobre seu ombro, os olhos ainda fechados.
E, para além dos dois ― na picape que Bronson ganhara do patrão ao completar vinte anos de serviços prestados ― os seguranças da Arco Verde retornando ao lar.
― Não pensa besteira, não se deixa enganar por pensamentos que não são seus.
Foi o que ela ouviu de Franco. Endereçou um olhar cheio de sombras para um par de olhos azuis emoldurado pelo retrovisor.
― Ele estava decidido a nos matar. ― ele reafirmou, se virando parcialmente e lançando um olhar terno para o homem que parecia adormecido no ombro da mulher. ― E você nos trouxe de volta para casa. ― enfatizou, sério.
Ela confessou num fiapo de voz:
― Não estou nada bem.
Exausta e vencida. Fracassara de vez, a última pá de terra jogada por sobre si mesma... Ah, ela era mestra nisto, em se afundar empurrando a própria cabeça com as suas mãos.
― Eu sei, Karen, a primeira vez mexe com a gente. ― considerou, a meio caminho da empatia com ela e a indiferença para com o evento da morte de um bandido. ― Justamente porque consideramos que o alvo sucumbiu por nossa causa e não provocado pelo mal que ele próprio cometeu. Se o coronel fosse uma pessoa boa, tenho certeza de que você não teria mandado ele passear. ― afirmou contundente ― Você precisa de um tempo para absorver essa porrada.
Karen percebeu que a voz de Franco se tornara meiga quase como um afago, era a manifestação dos extremos de uma personalidade explosiva. Olhou para o pai dele, machucado, o sangue seco ao redor dos hematomas inchados, a roupa rasgada, e repetiu baixinho:
― Não estou nada bem.
Franco reduziu a velocidade ao alcançar a entrada da Arco Verde e, enquanto passava pela guarita e acelerava até estacionar em frente ao avarandado da casa-sede, cogitou que ela ainda estivesse em estado de choque.
Parou e desligou o motor. Desceu da picape e abriu a porta detrás, ao lado dela, e fitou-a sem desviar:
― Se quiser, podemos levar você para um lugar isolado até se sentir melhor. Tudo o que quiser e precisar, fala comigo. Ouviu? Karen, ouviu? ― ele fez um afago em seu rosto inexpressivo.
Thales se mexeu no banco chamando a atenção de ambos. A feição contraiu-se de dor quando abriu os olhos gemendo baixinho, ainda confuso tentando se orientar. Tinha a pálpebra esquerda arroxeada, um ligeiro inchaço começava a se formar alcançando toda a extensão abaixo da sobrancelha, enquanto a pele abaixo do olho escurecia num círculo semelhante a olheiras; a pálpebra direita não sofrera qualquer golpe porque naquele lado do rosto fora o maxilar que enfrentara o punho de metal, e a marca avermelhada que, aos poucos, também escurecia, rasgara a epiderme em sulcos finos, delicadas tiras de carne brilhante, por onde ainda escorria sangue. O suor escorria por debaixo do cabelo curto, grudado na testa e nas têmporas, e uma palidez mortal revestia-lhe como uma máscara de fantasma. Ao redor das narinas o sangue secara, e o resto do dano estava no corpo encurvado e numa das pernas, a que recebera a pancada com o pedaço de pau.
Todavia, não foi por meio da visão que ele reconheceu a pessoa que lhe emprestara o ombro como suporte:
―Patchuli...― ele murmurou; depois, tentando se virar para ela, perguntou intrigado:― O que faz por aqui?
Franco interveio e parecia uma criança no Natal, eufórico:
― Conseguiu acordar? Como se sente? Pronto para dominar o mundo?
Karen não se incomodou com o fato de ele tê-la reconhecido pelo cheiro nem considerou o longo tempo em que estiveram juntos para criar aquele tipo de vínculo tão íntimo e instintivo. A percepção de que se importava com ele não conseguiu atravessar o muro que a isolava da recente realidade que a sufocava.
Os dois homens à sua volta dificilmente entenderiam o absurdo de toda aquela sua angústia, não apenas por ter dado fim ao homem que possivelmente mataria Thales e que mandara, em duas ocasiões, executar Rodrigo. O peito dilacerado de uma dor seca, rude, uma dor em metástase tinha sua origem também no fato de que destruíra outra vida, a de alguém honesto, incorruptível e orgulhoso dessa sua condição.
Com somente um tiro, ela matara o bandido e o mocinho.
Fitou Thales com vontade de desabafar. Jamais desabafara com ele, e não seria naquele momento. Ela estava fragilizada e ele também.
― Ai, droga, preciso mijar, tenho que sair daqui. ― Thales falou num resmungo.
Era para soar como um pedido, mas Franco sabia que era uma ordem expressa. Assim, ele fez sinal para outro camarada chegar até eles a fim de ajudá-lo a carregar o pai para dentro de casa.
Quando o pistoleiro grandalhão surgiu, tão encorpado quanto o seu patrão, Thales, já com meia perna para fora da picape, foi taxativo:
― Sei caminhar, não preciso de muletas.
― O senhor é quem sabe... ― disse Franco, resignado e dando de ombros.
Karen desceu da camionete, fez a volta e se postou à porta, na expectativa de requisitarem a sua ajuda.
Ele olhou para ela ao ficar de pé respirando pesadamente e com a testa porejada de suor:
― Por acaso foi me salvar?
Não havia ironia na pergunta; havia, sim, uma espécie de incredulidade.
Ela assentiu, sem condições de falar. O problema era que ele a conhecia e não deixava nada passar batido:
― Essa sua boa ação lhe renderá uma encrenca daquelas com o nosso amigo delegado, não é mesmo?
Franco interveio diplomaticamente, o que era incomum.
― Depois a gente conversa sobre isso, vamos subir e limpar os seus ferimentos.
Fez menção de pegar o antebraço do pai, ao que Thales puxou o braço encarando-o com uma expressão de poucos amigos:
― Não me interrompa, moleque. ― disse, mal descolando os lábios, mas deixando escapar junto com as palavras a rispidez.
O filho deu um passo atrás, surpreso com a advertência e muito mais com o seu tom beligerante. A luz vermelha de seu alarme interno se acendeu. O que tinha a fazer era simples: obedecer à ordem e se pôr em segundo plano. Por isso baixou os olhos, enfiou as mãos nos bolsos traseiros do jeans e procurou relaxar.
Para Karen, embora permanecendo distante dos eventos mais próximos e não querendo se meter em nenhuma situação que lhe exigisse descarga de energia emocional, havia algo a ser posto diante dos dois homens:
― O moleque, como você disse, está correndo o risco de ser largado pela mulher por sua causa, por você ser ganancioso. Ele deu cabo de pelo menos mais duas pessoas, a lista de mortes nas costas do Franco já está bem parecida com a de um assassino em série...
― Então os meus melhores soldados se uniram? ― falou com admiração, encostando-se à picape, visto que uma das pernas, na altura da coxa, latejava quente.
Franco sorriu.
― Deve a sua vida a essa mulher. Não é interessante?
― Não, chefe da segurança, o mais interessante é o fato de ter abandonado a missão antes mesmo de começar. Isso porque na sua casa quem dá as cartas é a patroa. A sua atitude irresponsável fodeu toda a operação! A partir de hoje, o Bronson volta ao posto de chefe da segurança e você ficará subordinado a ele. ― determinou com dureza.
― Como o senhor quiser. ― assentiu Franco, apertando os lábios.
― Ok, isso é com vocês, tenho que pegar o meu carro que ficou na estrada. ― falou ela, indicando o seu não envolvimento na relação entre pai e filho. Antes, porém, deixou seu recado ao mais velho: ― Quanto a você, Thales, boa sorte aí com a escadaria.
Deu-lhes as costas, deixando ambos sem ação, os olhos deles postos na mulher que usava chapéu e se postava diante dos demais pistoleiros com as mãos no quadril.
― Preciso de carona, quem se habilita?
Franco se voltou para Thales e confessou baixinho, olhando-o com firmeza:
― Ela matou o coronel.
O fazendeiro encheu-se de vigor, o sangue dentro das veias coçava a pele, fervilhava. O coronel morto. O seu maior adversário e, talvez, único, na lona. Mais ninguém a sua frente, visto que Rodrigues não era grande coisa.
Sorriu levemente.
― A melhor de todas, nunca tive dúvidas. ― afirmou, fitando a ex-amante; em seguida, perdendo o ar contemplativo, determinou com obstinação: ― Entre em contato agora mesmo com o departamento jurídico. O xerife tentará através da Karen arrancar o meu couro.
― Não precisaremos de advogado.
Dolejal estreitou os olhos, intrigado.
― E por que não?
Franco ajeitou a aba do chapéu para frente, aproximando-se ainda mais da figura com a postura ligeiramente reclinada para frente, e sussurrou o que parecia impossível:
― Ele e o Bronson ficaram na fazenda limpando os vestígios da nossa ofensiva.
― O que?
― Foi o que ouviu. O delegado jamais acusaria a Karen de homicídio. Ele preferiu enterrar a carreira na lama, patrão. ― a última frase foi dita com uma ironia beirando a amargura.
Esperou que o pai fechasse a cara e os punhos de raiva, raiva por agora dever favores ao policial, raiva por ficar na mão do atual namorado da mulher que amava, raiva por ter precisado do delegado e da sua proteção em vez de o contrário, raiva por esse delegado ser Rodrigo Malverde, conhecido adorador do manual dos bons modos do cidadão sem falhas. E, acima de tudo, raiva por ele não lhe dever mais nada.
Entretanto, o que Franco viu foi uma expressão de contentamento, como se tudo o que Thales sempre quisera e esperara de Rodrigo, enfim, acontecesse. Ele queria a lealdade do homem e a obediência do delegado. E, por isso, sorriu superior.
― Ele sempre tentou bancar o pai para cima de você, Franco, então está na hora de usarmos isso de forma positiva. Aproxime-se dele até trazê-lo totalmente para o nosso lado. Entendeu?
― Um “obrigado” não basta... pai? ― desafiou.
― Existe uma coisinha estúpida chamada dilema de consciência, e pode ser que essa coisinha faça o nosso delegado pedir uma inconveniente transferência ou até mesmo uma exoneração. E nós não queremos que isso aconteça...filho. E, agora, pega a Karen e a leva para onde ela quiser ir.
O filho assentiu com a cabeça, oferecendo carona a Karen até a estrada, perto da Coração de Ouro, onde se encontrava o Maverick. Depois de deixá-la, buscaria Nova na confeitaria. No celular, vinte ligações perdidas antecedidas de dez mensagens de texto da esposa.
Entre a estrada e a confeitaria, a sua casa. Ele precisava trocar de roupa, livrar-se do sangue na camisa e no jeans.
Antes do anoitecer, Bronson e outros dois pistoleiros alcançaram a divisa com a Bolívia. Ele tinha consigo alguns dos homens do coronel, os sobreviventes, por assim dizer, os sobreviventes da própria armadilha.
A determinação do delegado fora clara: as testemunhas da ofensiva contra Marau e, consequentemente, do seu assassinato e dos seus dois pistoleiros deveriam desaparecer de Matarana. Ele próprio os conduziria se a sua presença na estrada, sendo obrigado a trafegar pelas secundárias de Santa Fé e Belo Quinto, não fosse percebida; mas ela seria. Portanto, coubera a Bronson escoltá-los até a fronteira com o ultimato para jamais retornarem à cidade. Caso contrário, segundo Rodrigo afirmara a eles:
― Lavo as minhas mãos. Mexeram com o Dolejal, então arquem com as consequências disso.
Os capangas do coronel se entreolharam e meio que se despediram mentalmente de suas famílias, os que ainda mantinham contato com a família.
Expulsos da cidade pelo xerife. Bronson coçou a cabeça, rindo, e sinalizando com a mão para onde os prisioneiros deveriam se dirigir, ao largo da planície úmida, o cheiro morno da terra subindo em elos invisíveis.
― Aqui começa um novo ciclo. Coronel morto; Thales Dolejal posto. Não é mais ou menos assim o ditado?
Pelo radiotransmissor alguém o pôs a par sobre a ação policial na Coração de Ouro.
― A PF acabou de entrar.
Tudo estava acontecendo de acordo com o plano do delegado. Livrara a cara da sua mulher, limpara o local do crime ― tarefa difícil haja vista a extensão da área do tiroteio ― e, ainda por cima, indicara aos seus colegas da polícia a localização de um importante carregamento de pasta de coca.
Para os federais, a execução do coronel e da dupla de pistoleiros ― além do desaparecimento de alguns dos seguranças da fazenda e da família Marau, teria relação com algum cartel de drogas da Bolívia.
Para o bem ou para o mal, Malverde era eficiente e pragmático. Acima de qualquer suspeita, ele mexera as peças certas para Dolejal vencer o jogo. Ainda que fosse contra a sua vontade.
Mas o delegado não podia ser tão ingênuo ao ponto de acreditar que aqueles bandidos armados e assalariados jamais retornariam a Matarana, Bronson pensou; e, mais, para ele, um camarada durão e experiente, Rodrigo acabava de se tornar um enigma. Principalmente, porque a partir da constatação de que dona Karen estava envolvida diretamente na morte do coronel, o delegado tomara para si a missão de protegê-la acima dos seus próprios princípios e valores. E Bronson pensava, enquanto tocava a ponta dos dedos no couro do coldre, se o delegado tencionava de fato dar uma segunda chance àqueles criminosos ao oferecer-lhes a expulsão da cidade ou a ideia fosse a de matá-los, sem sujar as próprias mãos de sangue.
Era complicado assimilar as verdadeiras intenções de Rodrigo ao confiar ao homem forte de Thales Dolejal o destino daqueles que quase o mataram.
― Ahh...já sei.
Bronson viu a luz.
― E a sua picape?
Franco apertou os lábios ao recordar as chamas consumindo-a. Ao volante da camionete de Bronson, voltando da confeitaria com Nova ao seu lado, testa franzida e expressão entre desconfiada e despreocupada, respondeu:
― A coitadinha não aguentou e se foi, não está mais entre nós.
Ela não gostou da resposta.
― É isso?, meias verdades?
― Como assim?
― Pensa que não percebi que também trocou de roupa?
― Queria que eu aparecesse sujo na confeitaria? Sabe que sou um pistoleiro limpinho, princesa. ― debochou, piscando o olho para ela.
― Ou tinha sangue na sua roupa. ― deduziu.
Ele teve de se voltar para ela, desviar por alguns segundos a atenção do trânsito no centro da cidade, para perscrutar-lhe a feição acusadora.
― Acho que já conversamos sobre esse assunto antes. ― afirmou com bastante calma.
― Isso significa que matou de novo?
O sinal vermelho obrigou a parada antes da faixa de segurança. Um movimento oportuno para se acertar os ponteiros do relógio.
― Era uma armadilha. Fomos pegos de surpresa... Na verdade, o meu pai e os nossos homens foram pegos de surpresa, porque você, princesa, com a brilhante ideia de me amarrar, acabou me livrando da emboscada e eu pude salvar o meu pai. Mais do que nunca acredito em destino, e você é o meu talismã. Acho até que todas as manhãs, antes de sair para trabalhar, me esfregarei durante um bom tempo em seu corpo para que a boa sorte continue acompanhando os meus passos. ― completou com um sorriso de canto de boca, do jeitinho que a desarmava.
Mas ainda não.
Nova considerou o que acabava de ouvir; principalmente a primeira parte. Alisou a barriga com a mão enquanto perfilava calmamente os pensamentos. Com Franco se jogava xadrez o tempo inteiro.
― O que exatamente aconteceu?
― Eles esperavam por nós.
― O que exatamente aconteceu, Franco? ― insistiu.
Ele ajeitou o chapéu e endereçou a atenção ao semáforo. Beco sem saída.
― Muita coisa aconteceu. ― voltou-se para ela e tocou seu queixo com as pontas dos dedos: ― E muita gente nossa acabou se envolvendo nisso. Olha só, Nova, agora não cabe mais a postura de defensora de criminoso, ok? Até hoje, quem não havia cometido crime na vida, cometeu... E quem já havia cometido parou de cometer porque morreu. ― avaliou a expressão tensa da esposa e continuou: ― Vou te contar tudo, se quiser. Arrastarei você para baixo d’água, no fundo do rio, do meu rio, na parte mais suja, e mostrarei todo o lixo que eu tenho de limpar. Quero ser completamente honesto com você. Não posso mais ter medo que me deixe, não posso viver assim. ― balançou a cabeça devagar concentrado no que dizia: ― Quer visitar o meu mundo e se encher de tristeza, tanta tristeza que fará nossas filhas também pessoas tristes? Ou prefere continuar inocente e perfeita, absolutamente perfeita para mim e para as nossas meninas? Me diz, Nova, antes da luz verde aparecer, o que quer para a sua vida, hein?
Ela manteve os olhos fixos nos dele.
― Ser feliz. ― falou num fiapo de voz, assentindo com dificuldade, a contragosto.
Dentro de si, a jornalista detestava ver o sorriso satisfeito do seu marido. Por isso, foi ela mesma, a jornalista, quem falou:
― Arriscou a sua vida por um homem ganancioso que, em nome de uma suposta justiça, quer aniquilar o seu maior adversário para justamente tomar o seu lugar. Essa ofensiva não foi para vingar o velho Onório e retomar as terras roubadas e tampouco para livrar Matarana das garras do coronel; essa ofensiva nada mais foi que uma boa estratégia para aumentar o patrimônio dos Dolejal. Era assim que agiam os desbravadores no início da colonização, não é mesmo? Não é o que o seu pai conta? Tomavam as terras dos outros e do governo, dos mais fracos ou dos incautos. E para quê?, para fazer a reforma agrária? Não, não, imagina! Você suja as suas mãos, Franco, para que um empresário do agronegócio continue ampliando o seu império. Você limpa o caminho para ele, é o rolo-compressor dos seus inimigos, é o escudo que protege o mesmo tipo de homem que você mais rejeita, que é o coronel. A diferença é que um veste roupas importadas e fala vários idiomas; o outro não. Sim, meu amor, o seu rio é sujo, mas você não é um peixe e pode muito bem viver fora dele. ― ela fez uma breve pausa e perguntou com um sorriso de primavera: ― Não prefere se tornar inocente e perfeito para mim e para nossas filhas?
Olharam-se por alguns minutos até ouvirem as buzinas. O sinal indicava que o caminho estava livre, aberto, verde. E embora o asfalto não fosse de boa qualidade e tivesse ranhuras e buracos, era o caminho certo a seguir, a estrada para uma vida melhor.
― Quero ser perfeito pra você, Nova. ― ele murmurou sério, enquanto trocava as marchas e acelerava em direção à casa perto do Rio Verde.
Ela sorriu com ternura e estendeu-lhe a mão.
― Então fica comigo. ― pediu com carinho.
Franco aceitou o que inevitavelmente teria de um dia aceitar. Era mais forte que ele ou que qualquer explicação a respeito. Queria ser perfeito, Franco pensava, dirigindo debaixo do céu carregado de nuvens, uma mão no volante e a outra segurando firme o seu futuro.
Ninguém jamais lhe dissera que poderia ser assim, que poderia deixar de ser quem era e que poderia ser melhor sem ter de abandonar nenhum dos lados, dos seus dois lados, dois amores, a sua mulher e o seu pai.
Franco decidiu ficar com ambos.
― Tem razão, princesa, ― disse, puxando-a para si e pondo um braço sobre os ombros dela, ― não sou um peixe; sou um mamífero.
Ele a encontrou no alpendre, sentada na cadeira que ladeava a sua, as pernas cruzadas e esticadas, a mesma roupa que usara horas atrás quando se viram na fazenda do coronel. Apertou a própria nuca para relaxar os músculos enquanto caminhava em direção à entrada da casa, arrastando as botas nas passadas lentas e cansadas. Estava um caco, quebrado, morto. Urgia um banho morno e desmaiar na cama até o outro dia. A cidade parecia mergulhada num pandemônio de sentimentos ante o assassinato do coronel Marau. Os mataranenses se dividiam entre os pesares e a compra de fogos de artifício; os que receberam o seu apoio não escondiam o receio dos novos tempos e os partidários do inimigo do coronel comemoravam o início de uma era, a Era Dolejal.
Ironia ou não, os rumos de Matarana foram decididos através da mão de uma mulher, a chamada de vaca louca por boa parte da população.
Considerou a ideia de confrontá-la, pô-la contra a parede a respeito de sua participação no ataque de Dolejal ao coronel. Metia-se numa guerra que não era sua. E, com isso, se tornara uma criminosa. Uma situação difícil de ser contornada, considerou, parando diante dela, tirando o chapéu e puxando um cigarro da carteira.
― E o Thales? ― ele perguntou antes de riscar o fósforo.
Ela deu de ombros como se o assunto não a interessasse.
Rodrigo observou a palidez de seu rosto. Tragou fundo o cigarro, escorando o corpo contra a amurada ao redor do avarandado.
Terminou de fumar em silêncio. Havia qualquer coisa de pesado separando-os, um muro de palavras não ditas, um punhado de interrogações como estacas apontadas para todos os lados.
E de repente a intenção do confronto já não lhe parecia a mais sensata. Ele conhecia a sua melhor amiga tempo o suficiente para recuar diante das sombras que via em seus olhos. Um sentimento indefinido cobria-lhe as pálpebras como um véu de tristeza e algo mais, indescritível. Talvez desafio, talvez obstinação. Ainda não lhe era possível compreender de todo o que se passava no coração daquela mulher. Ela voltara do local de um crime, estava impregnada dele, pólvora nos poros, sangue na roupa. Ela matara um homem.
Suspirou profundamente e jogou no piso de madeira a bagana, amassando-a com a sola da bota. Em seguida, juntou o resto do cigarro consumido e encaminhou-se para a cozinha a fim de pô-lo na lixeira e rumar em direção ao quarto.
Ao alcançar a porta de entrada, endereçou um rápido olhar para Karen e seus olhos colidiram com os dela. Pressentiu que uma tragédia ainda maior estava por vir. Era melhor, então, refugiar-se no silêncio. Afinal, o que estava feito não podia mais ser mudado.
Deixou-a sozinha em sua cadeira, após ela desviar a atenção dele para a estrada a alguns metros depois do portão aberto. Não olhava exatamente para um ou outro automóvel que passava em baixa velocidade, próximo ao Rio Verde, e sim olhava para dentro de si mesma, para o seu caos particular.
Ele não prosseguiu até a cozinha. Parou no meio da sala, incerto. Cumprimentou o enteado com um aceno de cabeça e um sorriso fraco, ficou aliviado quando o guri se voltou para o computador a fim de metralhar um patético zumbi. Por um momento Rodrigo observou a criatura que, mesmo já morta e em decomposição, jorrava sangue.
Talvez fosse sensato voltar e conversar com Karen, abrir o jogo com ela, ouvir a sua versão. Não queria interrogá-la ou deflagrar um discurso moralista. Apenas mover o braço em sua direção e oferecer-lhe o peito como apoio. Ele nunca matara alguém, nunca, nem mesmo um bandido. Mas sabia muito bem o quanto custava aos inocentes limpar o lixo da rua. Decidiu que após o banho, mais relaxado e propenso à conversação, iria procurá-la enfim.
Ao entrar no quarto, seu coração disparou num galope louco.
Era possível que tivesse arregalado os olhos e dilatado as narinas numa respiração rápida e pesada, a mesma provocada quando se levava um susto. E ele acabava de levar um susto daqueles. A adrenalina jorrou queimando em suas veias e, em vez de pô-lo em ação, paralisou-o diante de sua cama.
Levou a mão à testa, apertando-a com as pontas dos dedos a fim de liberar a pressão que sentia na cabeça. Girou nos calcanhares, pisando firme no assoalho de madeira, a sola da bota fazia um barulho seco.
Voltou ao alpendre para questioná-la, sacudi-la ou simplesmente amarrá-la até criar juízo. Encontrou-a já de pé à sua espera, o olhar duro e direto.
― Vou passar um tempo fora, preciso pensar...
Rodrigo sentia os maxilares doerem de tanto que os apertava controlando uma explosão de palavras de grosso calibre. Sobre a cama uma mala aberta expondo as suas vísceras, as roupas de Karen.
― É mesmo?, pensar sobre o quê especificamente?
Ela percebeu a ironia com nuances de rispidez.
― Sobre o fato de tê-lo arrastado para um monte de merda... especificamente. ― retrucou, segura de que a ideia de deixá-lo o salvaria de sua destruição.
― Sou adulto, Karen, e responsável por meus atos...
― Você é um homem bom e um delegado de polícia íntegro que se orgulha disso e tem de se orgulhar mesmo. Lutou a vida inteira para pôr os criminosos detrás das grades e proteger os cidadãos de bem. Sei que às vezes debocho de sua condição de bom-moço, mas tenha a certeza absoluta de que boa parte do amor que sinto por você tem a ver com o tipo de ser humano que você é, Rodrigo, e não quero corrompê-lo, não eu, logo eu... ― ela balançou a cabeça devagar e continuou em tom baixo, emocionado: ― Os grandões de Matarana tentaram tirá-lo do seu caminho, do caminho da integridade e da justiça, e você não apenas resistiu como se recusou a fazer a vontade deles. Esquece que já era o meu melhor amigo antes de ser o meu amor? Sei o quanto sofreu nos primeiros anos aqui, tentando impor a lei para todos, não apenas para os ladrões de galinha, e sempre com a firme intenção de não se aliar aos poderosos... E agora...por minha causa... por minha causa se sujou de lama até os ossos... Não posso conviver com isso na minha consciência, não posso olhar para você e não ver o quanto desceu por minha causa...não posso continuar a viver com alguém que um dia se olhará no espelho e sentirá repulsa de si mesmo e se perguntará por que se tornou um bandido em questão de minutos?, e, então, a resposta aparecerá no meu rosto, Rodrigo, e você me olhará também com repulsa e pensará: “Ah, claro, foi por causa dela.”
Karen parou de falar. A garganta seca e os olhos molhados.
Ele apertou os lábios e inspirou profundamente. Matou no peito toda a emoção que ameaçava se expandir e arrastá-lo para o vazio. Considerou a firmeza de cada palavra lhe dita após o seu tempo de maturação, ganhando corpo e densidade para seguir em frente em forma de plano. Karen estava pensando em abandoná-lo quando ele chegou e a encontrou com os olhos fixos na estrada. Ela decidira deixá-lo. Ela arrumara a mala pensando em largar para trás o que eles haviam vivido e o futuro.
― Jamais na minha vida olharei para você com repulsa... ― foi só o que conseguiu pronunciar, um nó na garganta obrigou-o a se calar. Olhou para cima e as lágrimas voltaram para os olhos. ― Não fui obrigado a fazer o que fiz e faria novamente. Acha mesmo que me importo com essa merda de moralidade? O que sigo é a minha consciência, Karen, e não um manual, como você costuma dizer. Sigo os meus princípios e o que considero certo, e o certo nessa situação específica era protegê-la. Jamais a trancafiaria numa cela por ter evitado o assassinato do Dolejal. O coronel apontava uma arma para a cabeça de uma pessoa inconsciente, desprotegida, e você fez o que eu ou qualquer outra pessoa teria feito... Se mirasse em outro lugar que não fosse a cabeça, o coronel teria puxado o gatilho, Karen. Você não teve escolha! E eu jamais falharia com você... e com o Franco também, se me permite incluí-lo no rol das pessoas as quais protejo com especial interesse...
Ela juntou as mãos, aproximando-se dele, o corpo em posição de súplica:
― Precisa me ouvir, pelo amor de Deus! Não entende, não entende o que isso significa? Ao me proteger, além de ter infringido a lei, se colocou inteiro na palma da mão do Thales, e ele vai tirar proveito disso. Não importa que salvou a vida dele, o Thales não é como nós, meu amor, ele é um predador voraz que há muito tempo quer tê-lo totalmente ao seu lado, comprometido com ele junto com seu exército de seguidores fanáticos... ― ela respirou fundo e controlou o tremor na voz ao declarar: ― Quero me entregar, delegado, eu matei o coronel Marau, essa é a minha confissão.
Rodrigo arou o cabelo com a mão e se postou de costas para ela, os braços sustentando o corpo sobre o peitoril da amurada de madeira.
― Estamos em casa, Karen, e aqui eu não sou delegado. ― ele se virou para ela e afirmou duramente: ― O que se passa entre mim e o Dolejal não diz respeito a você. A gente se entende de um jeito ou de outro. Posso estar na mão dele, mas ele também está na minha; esqueceu o dossiê sobre a morte de Onório Dolejal? ― completou com uma ponta de ironia. ― Se quer pular fora, arranja outra desculpa, minha filha. Mas pensa bem, porque não estou disposto a deixá-la cruzar esse maldito portão com aquela maldita mala!
Automaticamente ela olhou para o portão sempre aberto e depois para Rodrigo. E não foi difícil dar-lhe as costas, passar por ele com os olhos injetados de determinação e seguir para o quarto. Ao seu encalço, ele a seguia em silêncio, ainda aturdido pela atitude desafiadora da mulher. Oh, diabo de tinhosa era essa Karen Lisboa, ele pensava, apertando a boca com raiva, uma raiva inconformada.
Antes que ela alcançasse suas roupas, ele pegou a mala de qualquer jeito, as blusas caindo no chão, e o barulho do couro arremessado contra a parede. Uma mala se arreganhava cuspindo o seu conteúdo.
Karen não acreditou no que viu. Rodrigo havia se apossado da mala e a jogado longe, o semblante carregado, uma veia grossa pulsando no meio de sua testa. O homem estava possesso.
Ele se virou para ela com as mãos no quadril e um olhar de matar.
― Sabe, acho que sou o cara mais idiota do planeta, devo sinceramente ser um babaca, um ingênuo mesmo, imaginei que depois da minha declaração explícita de amor você fosse me abraçar agradecida e até mesmo fosse aceitar o meu sexto pedido de casamento, mas não, claro... resolveu ter uma crise de consciência pela primeira vez na vida, depois de TANTA MERDA que já fez... e tinha de ser comigo.
Ela engoliu o choro e se arranhou por dentro.
― Pela primeira vez não pensei em mim, não levei em consideração o quanto te amo e o quanto me fode a alma ter de me afastar porque não quero ser responsável por você ter se tornado... um sujo...um policial sujo...me desculpa, mas é que o você se tornou ajudando a ocultar a minha autoria no assassinato do coronel. Chegamos ao nosso limite a partir do momento em que minhas atitudes extremas te colocaram do lado oposto dos teus princípios. Fim da linha, meu chapa! ― afirmou, abaixando-se para juntar suas roupas e enfiar novamente na mala.
Rodrigo começou a zanzar pelo quarto feito uma fera enjaulada, os cabelos para todos os lados, os dedos pressionando a própria nuca. Olhava para o chão, para ela pegando seus pertences, para a escuridão que seria o resto da sua vida.
― O negócio é o seguinte, dona Karen Lisboa, não vou entrar nessa loucura de relacionamento entre tapas e beijos. Fiz o que fiz para ficar com você e, se me sujei ou não, o que não falta é um bom rio aqui por perto para me lavar... O importante é que o desgraçado que queria me matar morreu. Vou dormir muito bem com isso. ― ele apontou o dedo em riste se aproximando dela com a cara de poucos amigos ― E se, por acaso, você sair por aquela porta para me deixar, não pense em voltar, acabou tudo entre nós. Entendeu? Não vou atrás de você nem considerá-la como amiga, protegida ou o raio que a parta! Não vou aceitá-la mais comigo e, por Deus, juntarei meus trapos com a primeira mulher que passar na minha frente só para ver você sofrer, sofrer sozinha com o seu egoísmo e essa individualidade de merda. O que está esperando? Não é a fodona do pedaço? ― ele a pegou pelo antebraço e a puxou para si: ― Prova que vive melhor sem mim. ― e depois a empurrou em direção à porta.
Cada palavra que ela ouviu entrou por seus ouvidos cortando os tímpanos. Cacos de vidro, sílaba após outra, rasgando-a sem sangrar. O sangue era outro. A mágoa era o sangue, doía ser tratada com brutalidade... por ele, por aquele que a aquecia como o sol, sem queimar, raios brandos feito um abraço cheio de amor.
Ele, pálido, leu essa dor nos olhos dela.
Karen se adiantou em dizer com a veemência de uma apaixonada:
― Não quero viver outra vida que não seja com você.
Rodrigo havia arriscado suas fichas até o limite de sua relação com Karen. Noutros tempos, ela ultrapassaria a soleira da porta com passadas largas e o nariz empinado, nem que fosse para provar que ainda era dona de seus passos.
A questão era que o delegado também não era uma pessoa fácil e tinha para si uma situação ainda pendente:
― Então já está na hora de casarmos. ― afirmou, sério.
Karen, imediatamente, se voltou para a porta.
Rodrigo puxou-a para si e a abraçou com força, beijando-a no topo do crânio. A cota de risco do dia estava completa, pensou ele, agarrado nela.
― Acho que o Johnny me chamou... ― ela falou baixinho, o nariz enterrado na camisa xadrez dele.
Antes que o delegado comentasse o que fosse, Johnny surgiu com a feição desfigurada pelo medo.
― A Veridiana acabou de ligar.
Rodrigo sentiu o corpo de Karen endurecer para suportar o que estava por vir. E Johnny completou como se algo inacreditável tivesse acontecido:
― A vó está no hospital, mãe... Parece que ela teve um enfarte.
O dia se arrastou até se transformar em noite. Úmida e cheia de estrelas, assim era a noite em Matarana no inverno. Corujas sobre muros e até mesmo no gramado em frente às casas. A densidade da atmosfera era quase táctil, uma fina camada de frescor salpicava a pele de quem andava a céu aberto. E por ser tão agradável, a estação das chuvas, as pessoas se mantinham ativas por mais tempo, levando cadeiras para as rodas de conversa na calçada ou trabalhando no comércio.
Valéria Malverde fechou as portas do Vaca Louca uma hora antes do habitual, alegando enxaqueca e tentando disfarçar o nervosismo enquanto se despedia dos funcionários com um sorriso forçado. A sua sorte era que vó Ninita estava em casa, não fora à confeitaria trabalhar naquela tarde e, por isso, ela fora poupada de ser questionada a respeito de seu estranho comportamento. Val jamais tivera enxaqueca e, caso chegasse a tê-la, não explicaria a palidez, as mãos trêmulas, o olhar aflito para o relógio de pulso e a sensação de alheamento. Afinal, a avó de Karen saberia que o motivo de toda sua agitação era o fato de Franco, ao buscar Nova, informar que Thales Dolejal, vítima de uma emboscada, fora duramente espancado. Ela saberia também que Val tencionava correr pela cidade até ultrapassar os portões da Arco Verde, porque precisava vê-lo e curá-lo de sua dor; pelo menos a física. A bem da verdade, Ninita sabia coisas demais.
Pisou fundo no acelerador acompanhando as batidas ritmadas do seu coração. Nada havia a fazer senão correr para ele.
Ao alcançar a portaria com um número excessivo de seguranças em frente à guarita, ela compreendeu a realidade nua e crua resumida por Franco: o rei estava ferido e a segurança fora reforçada.
Assim que o carro parou, um rapaz com a espingarda ostensivamente sobre o ombro se aproximou. Val baixou o vidro e se identificou.
― Boa noite, dona Valéria. A senhora pode sair do carro para ser revistada, por favor?
Ela concordou e obedeceu-lhe. Observou o pistoleiro assobiar e fazer um sinal com a mão para a colega segurança. Virgínia se voltou, franziu o cenho ao reconhecer a irmã do delegado e foi até eles. Antes, porém, comentou com os seguranças da guarita:
― A dona Valéria tem de ser revistada? ― somente as duas mulheres estranharam o comportamento deles.
O rapaz da espingarda respondeu tranquilamente:
― Todo mundo o seu Franco disse; menos, é claro, a dona Karen.
Virgínia assentiu sem contestá-lo, estava de volta a Arco Verde e era tudo o que mais desejava. Voltou-se para Valéria e falou com polidez:
― A senhora pode se virar e pôr as mãos sobre o capô?
― Claro, sem problema. ― e foi o que Val fez, deixando-se ser examinada pela pistoleira.
Ao final da revista, Virgínia fez um sinal afirmativo com a cabeça para os homens, liberando a entrada da visita para o interior da fazenda.
Antes de Valéria entrar no seu carro, uma picape parou rente ao seu para-choque. Era Bronson, e ela somente o reconheceu quando ele desceu, ajeitou o chapéu na cabeça e apontou o dedo na sua direção acrescentando ao gesto a informação:
― A dona Valéria é convidada do patrão, ninguém põe a mão nela, ouviram?
Virgínia encolheu os ombros. E Bronson completou arrastando-se nas botas ao se aproximar da visita do dono de tudo:
― Desculpa o incômodo, mas é que o patrão não havia repassado a ordem aos outros, falha minha, viu? Aqui, na fazenda, a senhora entra e sai sem ter de dar explicação.
Valéria tentou sorrir, mas o lábio inferior tremeu. Bronson estava sujo e com respingo de sangue nas roupas.
― Obrigada, mas preciso ver o Thales.
O segurança notou o tom de aflição na voz, apertou os lábios e afirmou com discrição:
― Ele é duro na queda, não se preocupe.
― Posso entrar?
― Pode, sim, dona Valéria, mas acho que não passará da sala. O patrão se tranca no quarto quando não está bem, sempre foi assim.
Sim, como poderia ser diferente? Por anos se curara sozinho, talvez escondido do avô espancador. Ela sentia um ódio sem limite de Onório Dolejal.
― Mas vim cuidar dele. ― disse num fiapo de voz, sentindo a garganta se fechar.
O pistoleiro balançou a cabeça e ajeitou a aba do chapéu para frente e para trás, antes de afirmar com a convicção de quem vivera anos, vários deles, na vida:
― Bom, quem sou eu para impedir a senhora. Alguém tem de enfrentar o homem.
Ela sorriu depois de vê-lo sorrir. Entrou no carro e rumou para o casarão.
Irene abriu a porta depois da segunda batida e sorriu fracamente ao reconhecê-la. Nos olhos da governanta a preocupação de uma mãe para com o filho doente e recluso, como ela mesma asseverou em seguida, logo após a entrada de Valéria na sala.
― Uma covardia, é só o que posso dizer. ― afirmou, ainda assustada desde a primeira visão do patrão ensanguentado subindo lentamente os degraus da escadaria, impedindo com o olhar duro qualquer auxílio das mais de vinte pessoas ao seu redor, atentas a qualquer hesitação ou fraqueza de suas pernas. ― Depois de tudo, se enfiou no quarto. A gente não pode fazer nada, ele não permite. Uma vez estava com quase 41 graus de febre, tinha contraído uma virose terrível no Texas e voltou para o Brasil com princípio de pneumonia. Sabe o que o patrão fez? Simplesmente se trancou no quarto. O Franco ficou louco, arrombou a porta com um chutão e encontrou o patrão delirando de febre. ― ela parou com os olhos rasos de lágrimas e continuou: ― Não adiantou nada. Ele segurava uma 9 mm e apontou para o menino assim que ele se aproximou. A gente ficou com muito medo, o Chicão implorou para o patrão aceitar a visita de um médico, pelo menos. A peonada alvoroçada no pátio fazendo vigília e o Bronson tendo que segurar o Franco, porque ele queria carregar o patrão no colo e levá-lo para o hospital. Mas a gente não podia permitir isso, não importa o que aconteça. É a vontade do seu Thales, e ele nunca deixa ninguém cuidar dele, nunca. Ele disse que cuida de si mesmo.
― Meu Deus, podia ter morrido.
― É, podia. A senhora imagina então o nosso desespero.
Valéria endereçou o olhar para o alto da escadaria, que, seguida do corredor, levava até o quarto de Thales. Era para lá que ela iria. Ainda que ele não estivesse com pneumonia, o seu lugar era ao seu lado. E o fato de ter sido dispensada na noite anterior, bem, mero detalhe.
Voltou-se para Irene e avisou-a sobre o seu intento:
― Se a porta estiver trancada, tem uma chave reserva?
A governanta arregalou os olhos.
― Dona Valéria, a senhora ainda não viu o patrão zangado, realmente zangado. É melhor voltar para a sua casa, e eu aviso a senhora quando ele melhorar. Pode ser assim?
― Não, não pode. ― reafirmou Val e emendou determinada: ― Não tenho medo de birra de homem, não, Irene. Vou entrar naquele quarto e cuidar desse cabra teimoso, ah, se vou!
Irene tapou a boca para conter um riso nervoso.
― Ele bate em mulher?
A pergunta feita de forma brusca fez os olhos da governanta se arregalarem ainda mais.
― Não, não, pelo amor de Deus! O patrão manda bater é em quem bate em mulher, isso sim. ― asseverou convicta.
― Bom, então, o que tenho a temer? ― perguntou retoricamente.
Sorriu de um jeito que parecia nervosismo, mas tinha muito mais era de ansiedade. Antes de sentir apreensão, sentiu medo, medo de nunca mais vê-lo. Bom, ele estava vivo. Para o resto dava-se um jeito ― assim era a filosofia de vida de Valéria Malverde.
A governanta manteve-se no meio da sala de olho na mulher que subia com obstinação a escada. Balançou a cabeça devagar imaginando o tamanho da tempestade que viria a seguir, em questão de minutos, caso ele estivesse ainda acordado. Era possível que dona Valéria disparasse a correr escada abaixo e desaparecesse da Arco Verde para sempre. O que seria lamentável, Irene apostava que a moça simples e desajeitada consertaria o coração quebrado do patrão e o poria a funcionar direito como quando se formara embrião.
A mão girou a maçaneta dourada, a porta cedeu e a claridade de um abajur, um amarelo esmaecido, se jogou aos seus pés. Cogitou que ele não trancara a porta por estar acostumado a ser obedecido em suas ordens.
O primeiro pé pisou no seu reduto e não fez barulho, meio corpo ultrapassou a porta e a cabeça se enfiou pela fresta, permitindo a visão do campo do adversário. Encontrou então primeiro as botas sobre a cama, ainda nos pés cujas pernas vestidas no jeans jaziam prostradas sobre a colcha debaixo do dossel. O ângulo de sua visão abarcou também os janelões de vidro que davam para o terraço, fechados.
Notando que ele dormia, Valéria entrou e fechou a porta atrás de si, trancando-a à chave. Desencostou-se da porta e aspirou o cheiro forte de uísque. Sem surpresa alguma, a garrafa vazia no criado-mudo.
Livrou-se das próprias sandálias, pondo-as debaixo da cama. Precisava resguardar-se no silêncio. Era quase certo que Thales bebera até cair no sono. E quando ela se aproximou e viu o estado do seu rosto, a roupa rasgada, suja e com nódoas de sangue seco, compreendeu que a bebida servira como anestésico. Sentiu o coração se apertar de angústia.
Sentou-se ao lado dele, na beirada da cama, e afastou ligeiramente a barra lateral da camisa cujos botões haviam sido arrancados do tecido. Na pele clara, as marcas arroxeadas e filetes do sangue, agora seco, que desceram do seu rosto.
Ela deslizou a ponta dos dedos pelo caminho de pele ferida e sentiu o calor dele, o calor morno do corpo firme e grande, imponente e completamente a sua mercê, o corpo adormecido e desamparado do homem que mudava destinos. Desceu a mão até o cós do jeans e abriu o botão, abaixando em seguida, o zíper.
A ideia era limpá-lo para, depois, cuidar de seus ferimentos. Olhou ao redor, aturdida, perguntando-se sobre uma forma de banhar um homem daquele tamanho. Não poderia carregá-lo até o banheiro. Afinal, ele era alto e pesado e, além disso, poderia acordar com qualquer movimento brusco, estava bêbado e adormecido apenas; não inconsciente.
Mordiscou a cutícula do polegar, pensativa. Ao dar de cara com um objeto de decoração, a luz de uma ideia se acendeu em sua mente. Pegou a vasilha que sustentava uma jarra antiga de porcelana e se foi para o banheiro da suíte.
Abriu as torneiras da banheira e encheu-a com água morna. Teve o cuidado de fechar a porta atrás de si. Era só o que faltava ele acordar com o barulho da água!
Voltou para o quarto carregando consigo a bacia com a água e uma toalha de rosto felpuda. Tornou a se sentar ao seu lado, cuidando para não tocá-lo. Umedeceu a ponta da toalha e deslizou-a com delicadeza por sobre a testa e maxilares de Thales, a parte mais machucada de sua face. À medida que limpava o sangue seco, era possível perceber os cortes nos hematomas, arranhões fininhos e inchaços. Com ainda mais cuidado limpou as pálpebras ligeiramente inchadas.
O rosto de Thales estava limpo e, assim, exibia a agressividade da ação. Por um momento, ela perdeu a objetividade, vendo-o ferido, o choro subiu à sua garganta e ela teve de engoli-lo de volta. Para aliviar a sua própria dor, beijou-o no lábio inferior delicadamente.
Depois de beijá-lo na boca, não conseguiu mais refrear a vontade de absorver de alguma forma a agressão sofrida por ele. Desceu a ponta da toalha para o pescoço e, com o gesto, os seus lábios deslizaram em seguida como um iodo cicatrizante. Pelo tórax, ao redor dos hematomas e, mais para baixo, o abdômen enxuto. Na carne de sua boca sentia a maciez cheirosa e quente do corpo dele, a firmeza dos seus músculos. Beijou-o todo com a delicadeza de um arrastar de seda.
Depois se levantou para deixar a bacia sobre o criado-mudo. Precisava retirar a sua camisa rasgada e suja. Enganchou a mão debaixo do pescoço dele e ergueu bem devagar a sua cabeça, a outra mão puxou aos poucos a roupa, um braço, depois outro. A sincronia perfeita e cadenciada no movimento em câmera lenta, calma, muita calma, até jogar a camisa para o chão e deitá-lo novamente contra o travesseiro.
Suspirou profundamente. Não percebera que estivera segurando o ar nos pulmões durante a empreitada. A missão estava apenas no começo. Precisava agora livrá-lo das botas e do jeans, assim como arejar o quarto.
Com as botas já no chão, se viu diante de algo que particularmente a deixou nervosa. Não por ser um corpo masculino com apetrechos de acordo, mas por ser a intimidade do homem pelo qual ela estava completamente apaixonada. A questão era que ele estava ferido e toda a conotação erótica era ofuscada pela necessidade de atenuar o seu sofrimento.
Puxou o jeans, com bastante destreza, por uma perna e depois a outra. Dobrou-o com a intenção de entregá-lo a Irene, já que a camisa só tinha um único destino, a lixeira.
Encaminhou-se até os janelões e os abriu. Averiguou o posicionamento de seis ou sete pistoleiros nos fundos do casarão e, ao perceberem-na quarto do patrão, todos se viraram em sua direção.
Minutos depois, Bronson era avisado sobre o evento e chamado para constatar com os seus próprios olhos. Ele, então, sorriu e tirou o chapéu para Valéria, que retribuiu o sorriso como se dissesse “viu, não tenho medo de brincar com fogo”. Mas ao se voltar e ver o homem de 1.85, encorpado, metido na cueca boxer escura, as coxas duras cujos músculos marcavam a pele de pelos ralos e aloirados, o volume considerável entre elas, as pernas estiradas e a cabeça sobre o travesseiro deitada de lado, ela parou de sorrir... e começou a tremer. Que homem lindo, Senhor da Vodca!, foi o que Val pensou, admirando-o sob a penumbra do abajur.
O sangue subiu para as suas bochechas. Ela deveria estar ali para cuidar dele e não para pensar em sacanagem. Sentiu-se envergonhada por sua superficialidade. Não podia fugir de suas obrigações. Precisava limpá-lo, desinfetar os cortes e passar pomada sobre os inchaços.
Aproveitou para levar a garrafa de uísque para o banheiro. Depositando-a sobre o balcão da pia de mármore, imaginou-o chegando aos tropeços no quarto e enchendo a cara para aliviar a dor da surra. Estalou a língua no céu da boca com tristeza, suspirando pesadamente, e abriu o armarinho a fim de pegar o estojo de primeiros socorros. Voltou ao quarto e quase deixou tudo cair.
Ele estava com a cabeça ainda de lado, deitada no travesseiro, mas virada na direção oposta a que estava antes. As pálpebras se mexiam, e como estava com o rosto virado para baixo, não era possível ver se ele havia aberto os olhos ou se sonhava. Parecia mesmo era que ele olhava para baixo, imóvel, endurecido pela tensão na musculatura.
Valéria aproximou-se devagar, sem fazer barulho. Parou diante da cama e tentou adivinhar se Thales despertara.
Sentou-se na beirada da cama e esperou que ele se movesse. Cheia de amor no coração, estendeu o braço e tocou numa mecha de seu cabelo curtíssimo, tocou com carinho, ternura, com vontade de abraçá-lo o resto de sua vida. Ela não estava preparada para receber o olhar aturdido, congestionado, um azul aquoso e claríssimo, que a fitou segundos depois do toque. Prendeu a respiração e suportou com valentia a força do olhar de Thales, que parecia ainda perdido num mundo de densas brumas.
― Sonhei com você pela manhã... antes de tudo escurecer... ― mal descolava os lábios, o olhar esgazeado, a fala pastosa e baixa.
Um braço se estendeu para a mão alcançar-lhe o rosto, o afago em sua face fez a alma da mulher vibrar.
Ele ainda manteve os olhos nela, um sorriso suave. E a constatação de que estava bem acompanhado motivou-o a falar mais um pouco:
― Posso gostar de você... ele está dormindo... posso vê-la e dizer que tudo vai dar certo... o monstro está dormindo. ― ele fez um sinal com o dedo em gancho para ela se aproximar e confidenciou junto ao seu ouvido: ― Eu consegui.
Quando ela se afastou para fitá-lo, ele já estava com os olhos fechados e a respiração regular.
Por um instante, Valéria ficou imóvel, protegida pelo escudo invisível da substância que aquela declaração se consistia. Temia se mexer, piscar os olhos ou sentir um grama a mais de amor que sentia por ele e romper a bolha, a bolha que saía do seu peito e os protegia, a ambos, de tudo, inclusive, de si mesmos.
Quem acabara de falar? O verdadeiro Thales, sem trauma, sem tormentos, sem arrogância, sem a criatura que o manipulava vencida pelo álcool? Escapara o verdadeiro Thales da masmorra e se encostara à grade da jaula para lhe dizer que se libertara do monstro, que o confrontara e o vencera e que ao reviver os anos de espancamento, na fazenda do Marau, se curara enfim da violência do passado? E ele agora estaria pronto para aceitar uma nova vida e um novo amor. Por outro lado, ela poderia ter falado com o verdadeiro Thales, adorável e monstro, única criatura apenas entorpecida pelo uísque, ainda carregando correntes nos tornozelos e fazendo afirmações incoerentes.
Apertou na ponta dos dedos uma fina camada de Hirudoid e massageou com cautela os hematomas no abdômen, logo abaixo das costelas.
Os dedos continuaram a massagear a coxa, o movimento cadenciado e quase impessoal, embora houvesse um toque de ternura característico de quem se importava com o ferido, avançavam ao som de um ritmo que alcançava notas quentes. A pressão da palma acompanhou a extremidade da mão e subiu um pouco mais no terreno, tocando a barra da boxer, enfiando-se dois ou três centímetros por baixo dela.
Imediatamente ergueu os olhos para ele, para o seu rosto, à procura de evidências que comprovassem que ainda dormia. E, por isso, por ainda dormir, ela considerou que não deveria se aproveitar dele, não deveria repetir o comportamento lascivo do avô, que se escondia na escuridão da noite para tocá-lo. Valéria não tinha o consentimento de Thales para tocar suavemente por suas coxas mornas, nem por cima do tecido elástico e apertado da boxer, tampouco sobre a faixa no cós onde se lia Calvin Klein. Não, ela não tinha esse direito. Recolheu a mão e a vontade.
Baixou a cabeça e beijou-o na testa, imaginando que se ele a tocasse intimamente enquanto ela estivesse abatida na cama, seria, no mínimo, considerado um canalha. Valéria não era esse tipo de pessoa. Por isso resolveu protegê-lo com um lençol. Ela não queria se transformar no tipo de pessoa que se aproveita de homens irresistíveis adormecidos.
Só que não conseguiu sair da cama.
Ele olhava diretamente para ela. Sério, os maxilares duros projetados contra a pele.
Reconheceu a causa perdida. Valéria percebeu, assim que o fitou, a aparição do bom e velho Thales Dolejal, nos dias em que estava mal-humorado, sem arrogância, apenas a sinceridade cruel e venenosa. A expressão de agora era a tradicional, fechada e sagaz. Ele estava completamente desperto quando afirmou de posse do seu pulso:
― Termina o que começou.
Valéria tentou escapar puxando o braço de uma garra de ferro; impossível. Sustentou o seu olhar sem demonstrar altivez ou qualquer outro sentimento que o irritasse ainda mais.
― Só vim cuidar de você. ― falou baixinho.
― Já não foi dispensada?
A pergunta feita era a simples constatação do que ele pensava sobre ela estar ali no seu quarto, à noite, sem ter sido convidada.
― Não sou sua funcionária para ser dispensada. ― respondeu tentando não parecer magoada.
Ele percebeu.
― Valéria, não gosto de intrusos no meu quarto e não preciso de sua ajuda ou de você. Portanto... ― fez um gesto com a cabeça em direção à porta.
Ela o ignorou.
― Não vou embora; além disso, não sou uma intrusa. Ontem jantei com você e outro dia a gente se agarrou na cozinha da minha casa. Isso significa alguma coisa para mim. Não sou qualquer uma, vou ficar aqui até amanhã. Quero ter certeza de que ficará bem.
― Estou bem, pode ir. ― afirmou, impaciente.
― Sei, está bem é para encher a cara com outra garrafa de uísque. Não vou deixá-lo, isso é certo. ― teimou.
― É mesmo? Tenho pelo menos uns trinta homens lá fora prontos para escorraçá-la daqui. Quer sair com dignidade ou a pontapés?
Ela continuou fitando as próprias mãos sobre o colo, desconsiderava a questão posta haja vista que não sairia daquele quarto nem de arrasto. Que fosse para o diabo a sua autoestima tripudiada pela rejeição dele. Valéria aguentava. Era duro na queda também.
Ousou provocá-lo sem se voltar em sua direção:
― Por que você mesmo não me arranca do seu quarto?
Esperou pela resposta mordaz.
Minutos depois se voltou para vê-lo, e ele a olhava detidamente, o semblante imperscrutável, a cabeça encostada nos travesseiros.
― Levanta e me tira do quarto, vamos! ― provocou-o.
― Acredita que meia dúzia de socos me torna um moribundo? Me toma por um fraco? ― ironizou.
― Não, de jeito nenhum, você é tão forte que machuca. ― constatou num fio de voz.
Queria acreditar que lutava por ele e que essa luta a tornava uma guerreira. Mas, na verdade, se sentia uma pedinte.
― Como não quero machucá-la, peço para que saia da minha casa, da minha fazenda e, principalmente, da minha vida.
Ela sentiu os olhos se encherem de água. Se piscasse, transbordaria o dique que era vencido por uma enxurrada de sentimentos. O amor e a dedicação desperdiçados se derramando por cima da pálpebra, carregando junto a tristeza de amar um muro de concreto. Procurou se concentrar em algo além da cena, na repetida cena de desafeto, e contou mentalmente o número de passos que teria de dar entre a cama e a porta.
Ouviu-o suspirar baixinho ajeitando-se na cama. Em seguida, ele estava sentado ao seu lado passando a mão pelo cabelo curto a fim de ajeitar as camadas rebeldes. Ela sentiu que era observada e se virou para encará-lo.
Trinta passos, entre a cama e o fim de um sonho.
Ele tentou sorrir e disse numa voz sonolenta:
― Que tal fazermos uma boquinha antes de decidirmos qualquer coisa?
Valéria sorriu assentindo e, ao fazê-lo, piscou. Os sentimentos deslizaram pelo seu rosto como flores por sobre um caixão. O queixo tremeu, e ela chorou sem fazer barulho. Chorou por o terem machucado agora e no passado e, com isso, transformado a beleza em escuridão.
Thales não sabia ao certo o motivo das lágrimas, apenas que era o responsável por elas. Deveria se sentir feliz e vingado. Não fora essa a ideia original ao se aproximar da irmã de Rodrigo?
Olhou para si mesmo e viu que estava limpo e seus ferimentos com pomadas e iodo. Ela havia cuidado dele mesmo após ter sido maltratada. Como podia ser assim? Sem revide, sem gritos ou ameaças?
― Precisa aprender a não se expor desse jeito, Valéria. ― ele balançou a cabeça com pesar e completou dando-lhe um tapinha amistoso no ombro: ― Vem, vamos descer e conversar sobre um assunto bem mais importante que nós dois, que é o seu irmão e o falecido coronel.
Fez um movimento para se levantar e gemeu baixinho, levando a mão à testa. De pronto, Valéria limpou as lágrimas e foi até sua bolsa em busca de um analgésico.
― Preciso perguntar uma coisa...
Ele começou, mas parou ao aceitar e engolir a cápsula colorida que lhe era estendida. Depois retomou o que deixara incompleto, um sorriso se formava na comissura dos lábios e as pálpebras quase semicerradas sugeriam a intenção maliciosa do que viria a ser dito a seguir:
― Por acaso gostou do que viu?
Faltou-lhe a compreensão ao que ele se referia. Ela franziu o cenho, aturdida. E Thales, estreitando ainda mais os olhos desconfiado, insistiu:
― Está se fazendo de desentendida, Valéria? Você estava prestes a arrancar a minha cueca quando acordei... Mulheres gulosas como você sempre se satisfazem com o que eu tenho para oferecer. ― completou com uma arrogância misturada à diversão.
Ela não se fez de rogada. Já estava com as bochechas vermelhas e uma tremedeira dos diabos, o que tinha de fazer agora era continuar no mesmo caminho.
― Não toquei no seu membro.
Ele soltou uma risada tão espontânea e juvenil, que ela cogitou o efeito instantâneo do analgésico que normalmente a derrubava em dez minutos como o coice de um cavalo no meio da testa.
― Membro? “Membro” do meu conselho administrativo? ― escarneceu, divertindo-se. ― Você fica linda corada. Não lembro a última vez que vi uma mulher enrubescer... ― ele parou e estreitou os olhos, fitando-a detidamente: ― Ah, sim, você, ontem. ― se pôs de pé, circundou com certa lentidão a cama e deu-lhe as costas. Antes, contudo, parou, a mão massageava a parte atingida abaixo das costelas quando a interpelou sem rodeios: ― Quer o meu pau dentro de você?
No instante em que ela tentava se desfazer do choque provocado pela pergunta direta e debochada, ele afirmou com naturalidade:
― Desfaça essa carinha de donzela imaculada, hoje quase fui assassinado, preciso trepar para me sentir vivo. ― ele mudou o tom, expressando que falava a sério o que seguiu: ― Prefiro que seja com você. E sabe por quê? ― não a permitiu responder e completou num tom sério e profundo: ― Vou lhe dizer. Já fiz de tudo para espantá-la e você continua teimando em me rodear, talvez até seja a mulher da minha vida ou talvez seja só mais uma louca, mas a verdade é que não posso protegê-la de mim, já que não aceita os meus conselhos. Assim, ― continuou, dando de ombros, ― considero que fiz a minha parte e se, por acaso, não aguentar o meu inferno, saberá que não foi enganada nem iludida. Sou forte, Valéria, você viu as minhas costas, as minhas cicatrizes, mas eu sou forte por mim e não posso ser forte por você. Por isso, minha querida, faça a sua escolha, seja sensata, calce as suas sandálias de dona de casa bem-comportada e fuja.
Ela não o deixou fechar totalmente as portas da sua vida.
― Ou...o quê? Tem outra alternativa? Sempre tem.
Viu uma luz acender dentro dos olhos dele, labaredas de um fogo azul.
― Ou viva comigo no inferno. ― respondeu com bastante naturalidade.
O gemido rouco que escapou dos lábios de Valéria não devia ter ressoado pelo quarto. Porém, praticamente substitui o assentimento por meio das palavras.
Thales ainda estava sério, olhando-a demorada e profundamente.
― É isso que quer?
A irmã do delegado fez que sim com a cabeça.
― O preço é alto, Valéria. ― considerou, sondando-a atentamente.
― Acho que tenho crédito na praça. ― reforçou com simulada indiferença.
― Sou o dono da praça.
― Tenho então créditos com você, Thales?
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, endereçando-lhe um olhar avaliativo. Em seguida, esboçou a primeira expressão de tédio da noite.
― Estou com fome, ― afirmou, sem desviar a atenção do rosto afogueado dela e emendou brincando com a intenção subentendida: ― vamos comer alguma coisa que não seja nós mesmos.
Piscou o olho com charme e entrou no closet, saindo minutos depois vestido no robe preto de gola alta. Passou por ela e parou, mexendo a mão largada ao longo do corpo como o sinal para que lhe desse a sua; entrelaçaram-se os dedos e desceram para a cozinha.
Era como um túnel, engolida por uma dimensão que embaçava sua visão, e as pessoas passavam por ela; algumas tentavam contê-la e alguém, atrás de si, impedia a contenção. Respirava um ar viciado, lascas de cristais nos bronquíolos antecipando a dor da falta, o horror da saudade que jamais, nunca mais, seria morta no abraço, no encontro do nariz com o cheiro, no calor de amar a vida inteira a sua fonte e origem.
Karen estava devastada. E cega de sofrimento.
Os leoninos eram fortes, os leoninos não podiam morrer antes da hora e a hora era a que não deveria ser considerada.
A mulher que empurrou com a mão as portas duplas da minúscula UTI desprezava com asco a morte e todas as pessoas que se referiam a ela, com olhos chapados de maconheiro, como tão-somente uma passagem. Uma passagem que também era temida e desprezada pelos tais passageiros porque, na verdade, na mais profunda verdade, o mundo era um cão feroz babando raiva mas ainda assim era o lugar para ficar, amar e ser amado. Esse era o lado conhecido e vivido e o outro lado, o tal Jardim Florido da Eternidade, bem, para lá as pessoas eram forçadas a ir, ninguém queria viajar para um lugar sem direito a escolha. Apenas os suicidas.
O coronel fizera a tal passagem. E que fosse feliz depois da ponte, considerava a neta da senhora entubada no último leito próximo à janela.
Aos seus pés, Karen encurvou o corpo para frente, quase formando um arco, cedendo ao choro baixo e convulso. Não era para vê-la prostrada, a avó durona, sua companheira de viagem e de vida, sua mãe mais velha. Faltavam o cigarro, os óculos de aros grossos, o trejeito de mordiscar a parte interna do lábio inferior, a voz grossa quase masculina e todo o humor ácido e feroz que a tornava única, como uma espécie de vovozinha dos Irmãos Metralha.
― Isso não pode estar acontecendo... Vó, sua sacana, você jamais se deixaria ser pega...
Uma voz baixa e controlada ressoou junto ao seu ouvido:
― Não, ela jamais se deixaria ser pega.
As mãos de Rodrigo pousaram sobre os seus ombros com carinho e devagar, com muito cuidado, ele a virou para si e a fez erguer o rosto para enfrentar o seu olhar cheio de amor:
― Preste atenção no que vou lhe dizer...
― Não! Não quero ouvir!
Karen tentou se desvencilhar dele para ficar junto daquela que parecia decidida a partir. Mas Rodrigo impediu-a de deixá-lo ― talvez essa fosse a sua tarefa essencial no mundo: manter Karen consigo para sempre, e dois braços apertaram-na contra si quando ele baixou a cabeça e sussurrou com os lábios encostando na sua orelha:
― A vó já se foi...
― Não! Não!
A mulher gemeu alto e empurrou-o para escapar do abraço. Rodrigo não cedeu um milímetro sequer na ferrenha decisão de tê-la próxima até completar o que tinha de fazer. E o que ele tinha de fazer era contar tudo:
― Karen, meu amor, essa não é a vó, a “nossa” avozinha já se mandou do hospital, se foi, fugiu, escapou, entendeu? Olhe bem, ― afastou-se dela e indicou com a cabeça a senhora deitada no leito: ― não é a vó.
Karen olhou-o desconfiada; em seguida, virou a cabeça enquanto secava as lágrimas e descobria que a senhora entubada tinha cabelos brancos, e não loiros tingidos como os da sua avó.
― Filha da puta! ― constatou num fiapo de voz.
Rodrigo endereçou um olhar de agradecimento ao médico da UTI; afinal, a invasão de Karen, apesar de justificada, não cabia dentro do protocolo de visita do hospital. A questão era que ele conversara rapidamente com Veridiana, que logo o interpelara no saguão com olhos arregalados e aflitos. Narrara, aos tropeços, a odisseia de ambas naquele dia; desde o início das ferroadas no peito da avó de Karen até o posterior diagnóstico clínico que as confundiram.
Veridiana estava certa de que se tratasse de um enfarte e obrigara, assim, a amiga a passar por uma consulta de emergência. Ao chegarem, viu-a ser levada imediatamente para a UTI. Por isso telefonara para a sua casa avisando Johnny. No entanto, meia hora depois, médicos, enfermeiros e seguranças perguntavam-se pelo paradeiro da paciente, que, no final das contas, teve seu diagnóstico drasticamente corrigido, o enfarte substituído por uma crise de flatulência. Faltava agora encontrar a paciente para informá-la a respeito. E coube a Rodrigo, primeiro, seguir a namorada até a UTI, com a certeza de que se ele lhe dissesse que sua avó não estava na UTI, ela não acreditaria, tinha então de deixá-la ver para crer.
Agora, de mãos dadas com Karen, percorria o caminho inverso e voltava pelo corredor até o saguão.
Veridiana acelerara os passos, a bolsa colada contra o peito, a vontade de rir misturada ao alívio e à angústia que lhe haviam comprimido o peito. Talvez também não fosse somente angústia. Não fora apenas Ninita que comera repolho no almoço.
Ao alcançarem as portas duplas do saguão, o celular de Karen vibrou, e Cristiano aproximou-se de Rodrigo, jogando um pouco de luz às buscas:
― Acho que a dona Ninita estava à procura de vocês... ― comentou com casualidade, ainda que houvesse um traço de divertimento no olhar.
― Onde você a viu, Cris? ― indagou Rodrigo.
― Bom, ela me cumprimentou enquanto passava pela portaria. Confesso que achei estranho ela estar sozinha por aqui... Algum problema?
― Não, ela só aprontou mais uma vez. ― respondeu Karen quase contente e dirigindo sua atenção para o aparelho. ― A ligação é de casa. ― disse a Rodrigo enquanto esperava o reconhecimento da voz do outro lado da linha, e ele veio: ― Vó? Aonde se meteu, sua doida?
Rodrigo sorriu satisfeito com o rumo da história. Um pouco de leveza não limparia a mancha de sangue daquele dia, mas também não o tornaria inesquecível.
Do outro lado do celular, vó Ninita avisou que arrumara carona com um motoqueiro-caubói e esperava-os para o jantar. Acrescentou à declaração que se sentia muito bem para quem enfartara e que enfartar nem era tão ruim assim, as pessoas realmente exageravam muito esse lance de enfarte. Karen, por sua vez, suspirou e a informou sobre o verdadeiro diagnóstico:
― Vó, sacana do meu coração, você não teve um enfarte, nada.
― Eu sabia! Aquela neurótica da Veridiana me obrigou a ir ao hospital. Que fiasco! Foi crise de pânico, né? Sabe que tenho pânico de ficar em casa e limpar o banheiro...
Karen riu baixinho.
― Não, vó, foi crise de peido mesmo.
Ouviu a gargalhada da avó, sem deixar de perceber a mão do pediatra no antebraço de Rodrigo ao conduzi-lo para uma parte discreta do saguão do hospital.
O delegado deixou-se levar pelo amigo para um canto do corredor, próximo à máquina de café expresso, sentindo-se reanimado ante a perspectiva de emborcar um copo de café preto. Enfiou uma moeda pela fenda da máquina e aguardou o líquido descer no copo de isopor. Ao seu lado, o pediatra parecia agitado como se ele próprio já tivesse emborcado litros de cafeína.
― A cidade está em polvorosa, ninguém imaginava que o coronel estivesse envolvido com o tráfico de drogas. ― disse Cris, torcendo a comissura do lábio num esgar de desgosto.
Cuidou para não se queimar ao ingerir a bebida. Os olhos, por entre a fumaça, captavam a chegada de uma mulher que ele amava demais da conta. Ainda assim, não desconsiderou o estado emocional do camarada que tinha ao redor do pescoço um estetoscópio.
― A vó já está em casa. Vamos? ― ela falou.
Ele esticou a mão e fez um carinho na bochecha dela, sendo retribuído com um sorriso de acelerar o coração.
Karen abraçou-se nele.
― Vamos, sim. Precisamos descansar, não é mesmo?
― Me diz uma coisa, Rodrigo, a polícia suspeitava que o coronel também fosse traficante?, digo isso, porque desde que cheguei a Matarana nunca ouvi rumor algum a respeito.
Karen e Rodrigo perceberam o tom de falsa despreocupação do médico. A questão era que tudo o que envolvesse o coronel, a partir daquela manhã, corria o risco de respingar nela ou no delegado. Os músculos de seu corpo se tensionaram. E o homem que a apertava contra si com um braço ao redor dos seus ombros, beijou-a no topo da cabeça e considerou dar-lhe atenção antes de entrar naquele assunto com o médico:
― Por que não volta para casa, hã? Depois o Lucas passa aqui para me pegar, ainda tenho que resolver algumas coisas na DP.
Ele queria ficar a sós com Cris ― ela considerou sem muita dificuldade, acatando sua determinação e beijando-o ligeiramente na boca.
― Adoro beijo de café. ― sussurrou por entre os lábios dele, antes de se afastar para fitar o rosto bonito e cansado sorrindo.
Leve como uma pluma ― era assim que se sentia Rodrigo Malverde, naquele exato momento, paquerando ostensivamente a morena.
― Se por acaso eu chegar um pouco tarde...posso acordá-la?
― Não estarei dormindo quando você chegar.
Ela afirmou com um sorriso de promessa.
Ele precisou de meio minuto para se refazer da sensação de plenitude, antecipada plenitude, que logo mais teria ao seu lado. Admirou o corpo vestido no jeans gasto e sujo se afastar e respirou fundo, recompondo-se. O café estava quente, o dia fora quente, a noite prometia então um incêndio ― ele considerou, um sorriso malicioso dançava em seus lábios.
Voltou-se para Cristiano Bittencourt, que aguardava com bastante interesse a sua resposta.
― Pois é, o coronel Marau deve ter entrado na onda do filho, que trouxe o empreendimento de Brasileia. Mas não posso negar que também fiquei surpreso com essa história, inclusive, com a quantidade de droga apreendida pelos federais.
― É verdade que a família do coronel desapareceu?
― Olha, Cris, o que sei é que não encontramos nenhum outro Marau na Coração de Ouro, nem vivo nem morto. Além disso, o salão da Giovana está fechado há mais de três dias. Vamos começar as buscas, mas, para mim, o Leonardo pôs a família num jatinho e a mandou para fora do Mato Grosso. A coisa estava engrossando para o lado dele e ele salvou a pele de quem importava.
― E agora Matarana pertence aos Dolejal. Como está a sua relação com o nosso amigo?
Rodrigo engoliu o último gole, morno e amargo.
― Assim, assim, nada que emocione as nossas mães. Por quê?
Cristiano, Rodrigo e Thales um dia foram amigos. Pescavam juntos, conversavam sobre a cidade que os abrigara desde que eles próprios eram considerados pelos demais como forasteiros e, num determinado momento, a amizade entre os três degringolou. O médico permaneceu relacionando-se com o fazendeiro e com o delegado; o fazendeiro manteve a promessa de proteger o delegado, e o último, por sua vez, deixou passar algumas atitudes arbitrárias do fazendeiro. Porém, nem o delegado nem o fazendeiro poderiam supor que o médico, pacato burguês contrário ao uso de armas, pudesse ser beligerante ao ponto de propor uma traição de grosso calibre:
― O que acha de livrar Matarana também das mãos dos Dolejal?
O fazendeiro jamais traíra o delegado...
― O que? Acho que não entendi.
― Sei de algo que pode levar os Dolejal para detrás das grades. Só preciso saber o que é mais importante pra você, Rodrigo: sua inimizade com Thales ou sua amizade com o filho dele?
O delegado jamais traíra o fazendeiro.
Rodrigo farejou no ar uma nova tempestade.
― Não, Valéria, não sei onde estão guardados os pratos na cozinha. ― respondeu Thales calmamente, observando a mulher abrir portas e gavetas dos armários, sentado displicentemente à mesa ― Imagino que estejam bem escondidos, a Irene acredita ser a guardiã do casarão.
Ainda não se livrara de todo da dor, embora a massagem e os remédios tivessem feito um bom serviço, assim como o analgésico oferecido por Valéria que também nocauteara o latejamento nos maxilares. Era para as porradas com o soco inglês fraturarem os ossos, se ele não tivesse o corpo treinado para aguentar espancamentos.
Estreitou os olhos ao observar a barra do vestido da mulher se erguer expondo boa parte de suas coxas, quando se abaixou a fim de investigar o compartimento inferior do armário embutido. Usava um tecido macio e com estampas delicadas, ligeiramente ajustado à sua cintura e seios, alças finas e babados ao redor da gola. O tom era um alaranjado escuro, discreto; um modelo barato comprado em alguma loja cujos preços eram acessíveis às classes menos favorecidas economicamente ― supôs Thales, já que a textura da roupa permitia a exposição em relevo do contorno da calcinha e sutiã de quem o usasse. E foram nesses pontos estratégicos do corpo de Valéria que Thales concentrou a sua atenção enquanto esticava as pernas debaixo da mesa e acendia um cigarro com o isqueiro.
Ao vê-la levantar meio corpo, olhar ao redor pensativa e avançar em direção aos armários do outro lado do recinto, sugeriu sem conotação especial na voz, somente jogou a ideia no ar, sem mais nem menos:
― Pode estar lá em cima, a cozinheira é alta, uma alemoa que trabalhou anos na roça do Onório. ― apontou em direção ao local mencionado.
Valéria arreganhou as portas duplas e perscrutou o lugar indicado. Deu dois passos para trás e esbarrou na ponta da mesa.
― Merda! Não vejo nada... Essa sua funcionária deve ter uns dois metros de altura. ― comentou em tom de brincadeira, pondo-se na ponta dos pés, o corpo todo espichado.
― Ela é bem mais alta que você, sim. Que tal subir numa cadeira?, ou prefere que eu a pegue no colo?
Ela se voltou ao perceber o tom de troça na voz dele.
― Ou talvez você mesmo possa ver se os pratos estão lá dentro ou não. ― considerou com firmeza.
Ele sorriu um sorriso preguiçoso.
― Ah, não faça isso comigo, minha querida, estou ferido.
― Então pare de dar ordens. ― falou com mau humor, preparando-se para subir na cadeira de espaldar alto, posicionada junto ao balcão.
Encontrou os benditos pratos de pão no fundo do armário. Aliás, encontrou duas dezenas de pratos de cerâmica ladeadas por uma pilha de prato de porcelana. Não sabia qual o tipo que Irene permitia o uso. Pôs o dedo sobre os lábios, incerta. Aquele era o reduto da governanta, lugar onde nem mesmo Thales Dolejal possuía jurisdição. Valéria só estava ali para preparar um lanchinho inofensivo para ambos, embora as ordens de Thales e o seu olhar cravado em seu traseiro e peitos a deixassem inquieta.
Ouviu o estalo da cadeira atrás de si e quase despencou da sua.
― Opa!, cuidado para não cair, mulher! ― falou ele, a voz cheia de calor se arrastando rouca junto com a respiração.
Duas mãos se posicionaram ao longo de seu corpo, firmando-a nas coxas, a quentura das palmas atravessando o tecido da roupa.
Valéria sentiu os joelhos fraquejarem, respirou fundo, irritada consigo mesma. O que estava acontecendo com o seu cérebro que funcionava agora como se fosse, todo ele, um mero órgão sexual? Onde estavam enfiados aqueles bestas arrogantes chamados neurônios?
A cadeira balançou porque suas pernas oscilaram.
Ele estava lá para segurá-la, não sorria ao colidir seus olhos com os dela, apenas deixou os dedos longos descerem devagar até a barra do vestido para tocarem a pele de sua perna.
Decidida, deu-lhe as costas e pegou dois pratos antes de perder o equilíbrio.
Thales apertou-a ao seu tórax, os braços a envolveram para, em seguida, soltarem-na. Um sorriso superior nos lábios dele, a postura do predador em posição de ataque.
Quando ela desceu da cadeira e se virou para depositar a louça sobre a mesa, percebeu que fizera o movimento errado, jamais se dava às costas a um felino. E ele aproveitou o deslize sem hesitar um segundo, colando o corpo no dela, uma mão rodeou-lhe o abdômen puxando-a para si, para a dureza de seu quadril, para a força de sua musculatura e para a intenção explícita de tê-la, ali, sem grandes floreios.
― Acho que só um sanduíche não matará a minha fome. ― sussurrou ao seu ouvido, dedos subindo por baixo do tecido simples, a barra junto. ― Qual é o tamanho da sua fome, Valéria?
Num giro preciso, ela se pôs de frente diante dele. Ergueu a cabeça para olhá-lo e mostrar que dentro dos seus olhos, no fundo da retina, ele, Thales Dolejal, jazia deitado sobre uma grelha.
E ele se viu dentro dela. O fogo ao redor. A necessidade. Já era não mais uma questão de sedução ou um jogo de poder; era a necessidade dos instintos, da preservação da espécie e do que deveria ser feito quando um homem e uma mulher queriam.
Ela deixou o ar escapar pela boca ao sentir os dentes dele em seu pescoço, o mordiscar erótico na pele sobre a veia grossa que pulsava o sangue em brasa. Estendeu a cabeça para trás oferecendo-se toda e, com isso, o corpo em arco, pressionava ainda mais os seios volumosos contra o tecido do vestido. A fricção da textura do sutiã nos mamilos e o endurecimento deles em resposta às carícias do homem com a barba por fazer esfregando pele contra pele.
Até que ele parou. E ela foi obrigada a esperar que a cozinha parasse de girar para encará-lo. A missão não foi nada fácil, aceitar a intromissão da força do seu olhar, o azul destacado pela coloração avermelhada e escura dos hematomas nos maxilares, a feição congelada numa expressão séria, concentrada, que somente denunciava as chamas que o consumiam na dilatação das narinas ― a respiração pesada de quem subia de joelhos o pico mais alto do autocontrole. Adestrara as sensações e os sentimentos como um pugilista que treina os golpes no saco de areia antes da luta.
Thales só precisava decidir se continuaria por aquele caminho, a mulher em suas mãos, o quadril entre as pernas dela...
― Você me deixa louco, Valéria. ― admitiu com a voz rouca e, baixando a cabeça, um sorriso malévolo iluminou o que veio a seguir: ― E não é apenas o seu corpo delicioso que me enlouquece de tesão nem seus olhos verdes ou suas sardas... tampouco a intenção de tentar imitar a minha Karen... ― ele sorriu ainda mais e completou com genuíno prazer: ― Você é praticamente uma suicida se entregando a mim sem oferecer qualquer resistência e é isso que me atrai, que me joga para você, que me deixa completamente com fome de você. ― uma mão agarrou um punhado de mechas escuras e lisas do cabelo dela, sem puxar, apenas a manteve com a cabeça virada em sua direção: ― Confesso que tenho dedo podre para escolher mulher, mas definitivamente, dessa vez, eu me superei. ― completou com um sorriso quase feliz e depois a ergueu para a beirada da mesa e arrancou a calcinha dela.
Quando se enfiou fundo e duro entre as pernas dela e a ouviu gemer alto com os braços deitados para trás da cabeça, ao longo da superfície da mesa, os seios balançando até escapar do decote ― quando ele meteu com força e, em seguida, mal deslocou os quadris, intercalando o ritmo e retendo o extravasamento de si dentro dela até vê-la estremecer e transpirar enquanto afastava ainda mais as pernas para recebê-lo todo, grande, potente ― quando ele mandou que ela não tapasse a boca porque queria ouvi-la gemer, gritar, suplicar, e ela obedeceu-lhe e gritou, gemeu, arqueou a coluna ao ser atingida em cheio pelo orgasmo ― quando viu que queria e precisava beijá-la na boca antes e depois de gozar, descobriu também que o único caminho era continuar no mesmo caminho, com ela, com a falsa submissa que fatalmente o dominaria.
Ele virou a cabeça e beijou a parte lateral do seu pé. O prazer de vê-la arfando, exaurida, deitada na mesa e com as pernas abertas e postas sobre cada ombro dele, propiciava-lhe a visão da luxúria inebriante do proibido. Ela respirava com força e as abas do seu nariz se dilatavam, assim como o ar inflava o seu peito, fazendo-o subir e descer, estremecendo a cada golfada.
Pegou-a por baixo das nádegas e enterrou-se nela mais uma vez, até o fundo. Dentro dela era bom, ele queria ficar ali, apertado, aconchegado. Sentiu-a estremecer e se contrair. Ela gozou como se fosse morrer. E ele esperou a sua vez, a boca apertada, as veias nas têmporas latejando, as mãos apertando forte o volume macio que tinha em mãos. Despejou-se nela sem piedade, arremetendo como um desesperado que vencera a morte. Chupou o lóbulo da orelha dela enquanto esperava o coração e a respiração voltar ao ritmo normal.
Um sorriso maldoso se formou em seus lábios ao pensar a respeito do que fizera, agora, depois de fazer sexo com ela.
Comera a irmã mais nova de Rodrigo Malverde.
Puxou-a contra o seu tórax e beijou o primeiro filete de lágrimas que escorregou do rosto dela.
― Machuquei? ― perguntou baixinho, interessado.
Ela tentou sorrir e fez que não com a cabeça.
― Você me fez feliz, só isso.
Estalou a língua no palato e tornou a beijá-la no rosto. Depois a pegou no colo e subiu para a suíte principal. Ela não chorava mais, e ele a carregou para o quarto disposto a desmascará-la.
Jogou-a contra a cama debaixo do dossel e a olhou com desprezo. A dor da surra pela manhã ardia como uma picada de inseto perto do sentimento que o consumia. Mal descolando os lábios, indagou à mulher nua debaixo do vestido:
― Acha mesmo que tem cacife para se meter comigo?
Valéria engoliu em seco, confusa. Não sabia o que responder, visto que poucos minutos atrás fora beijada apaixonadamente.
― Moralista hipócrita.
O menosprezo era evidente ao lhe dar as costas para sair do quarto e deixá-la na cama dele marcada pelos arranhões de sua barba e perfumada com o cheiro da sua pele. Tensa. Os cotovelos cravados sobre os travesseiros, o peito arfando. O que estava acontecendo?, ela se perguntava.
Thales foi até a porta e estacou. Brigava consigo mesmo, quase era possível ver os soldadinhos atirando uns contra os outros com suas espingardas. Ele ganhava a batalha? Ele perdia?
Ao girar sobre os calcanhares, encará-la, cruzar o espaço até a cama e arrancar o próprio robe do corpo para possuí-la mais uma vez e outra vez, ela ainda não sabia se aquele homem seguia a vontade do seu coração ou a contrariava.
Mais tarde, sentia-o dentro dela, mas ele já não estava mais. Ela fitava o dossel, o antebraço sobre a testa, a sinfonia dos músculos latejando e o vazio que ainda parecia preenchido pelo sexo dele. Tentou não ficar feliz, era recomendável não exagerar na ingestão de sentimentos haja vista que a fonte de sua felicidade era um homem bastante complicado.
Olhou-o de esguelha, incapaz de se mexer debaixo do lençol, a pressão da boca masculina ainda tatuada em cada centímetro de pele depois de Thales Dolejal desbravar-lhe o corpo com o sexo, os dedos, a boca, os dentes, a língua, todo ele, inteiro. E, agora, fumava sem pressa, observando a fumaça subir e desaparecer engolida pela claridade fugidia do abajur sobre o criado-mudo. Nu, as pernas estiradas ao longo da cama displicentemente e recostado sobre vários travesseiros, fronhas brancas, cinza, pretas.
Ele se virou para vê-la, por entre a fumaça, com o cabelo desgrenhado e um sorriso juvenil. A mulher era mais perigosa do que ele supunha.
― Por que está enrolada no lençol? O que ainda não vi que está me escondendo?
Valéria um dia se acostumaria ao modo direto de Thales falar e agir. Diplomacia, rodeios, insinuações ou sutileza estavam fora de cogitação. Mas ainda era cedo para não sentir o impacto do que quer que fosse vindo dele. Baixou a cabeça meio sem jeito, tentou manter o sorriso, pois a felicidade que sentia ― afinal, fizera amor com o ogro que amava, era maior que a vergonha de dizer que ainda não se aceitava o suficiente para se expor fisicamente sem reservas. Ele não entenderia. Era preciso ser mulher para compreender que não era uma questão de se sentir inferior ao homem com o qual compartilhara a nudez e a cama; a questão essencial, nesse caso, era que simplesmente não se sentia segura nem bela. Se Thales a amasse de verdade, Valéria jogaria o lençol para o lado e se mostraria insinuante e sexy, mas eles tinham feito sexo.
― Nem tudo o que fazemos com o nosso corpo é bonito, Thales, prefiro manter certo mistério, não desvelar todos os véus.
Ele apertou os olhos, desconfiado. Ainda sorrindo, virou-se e apertou a bagana no cinzeiro pondo-se, em seguida, de joelhos e puxou com força e precisão o lençol do corpo dela. De posse da roupa de cama, afirmou, sem deixar qualquer sombra de dúvida a respeito a que se referia:
― Que frescura é essa, Valéria? Fez curso de etiqueta para se portar bem na cama?
Não conseguiu evitar o impulso de tapar os seios com um braço e o outro, disfarçadamente, desceu por sobre o abdômen. Odiava-se por se empanturrar e beber como se não houvesse amanhã, isso por anos, aplacando uma fome que não era reclamada pelo corpo. Subnutrida e esquálida estava a alma da mulher que vivia dentro daquele corpo grande.
― Essa ideia é minha mesmo... ― comentou sem graça, procurando disfarçar o constrangimento de ser vasculhada pelos olhos dele. ― Comecei a malhar há pouco tempo, falei pra você, né? Pois bem, aí perco essa barriguinha, nada como cinco mil abdominais por dia... ― riu um riso rápido e desviou os olhos dos dele, que pareciam armados para deflagrar um projétil certeiro em sua direção.
Mas ele nada fez que não fosse se espichar e apertar um dos botões num painel próximo ao criado-mudo, e as lâmpadas do lustre do teto acenderam seus 100 watts iluminando uma mulher que agora se encolhia.
― Por favor... Thales...
Ela já não mais sorria.
― Chega de jogos, para de bancar a complexada! Você não está vendo a mesma mulher que eu vejo, a maquiagem borrada e o olhar de quem foi bem comida mas ainda não está satisfeita. Quer jogar comigo? Quer fazer tipo? Não sou muito chegado a putinhas com falsa baixa autoestima. Aliás, a única coisa que não é falso em você é esse seu corpo...
― Por que é sempre tão agressivo comigo?
― Sabe a resposta.
Ele se encurvou e pegou-a pelos antebraços, afastando-os dos seios, e expondo-a aos seus olhos duros e ligeiramente irônicos.
― Ah, sim, sou uma hipócrita moralista... ― ela retrucou com amarga ironia, sem oferecer resistência a ele.
Segurando-a pelos braços presos no alto da cabeça dela, Thales baixou a boca até roçá-la no bico do seio e depois no outro, a ponta da língua, nada mais que isso. Afastou-se, sem, no entanto, soltá-la.
― Você é linda, linda mesmo. ― falou, o tom sério de quem comunicava algo solene; a seguir, completou com malícia: ― Linda e gostosa. A sua academia, minha querida, é foder comigo, entendeu? É assim que manterá a forma. Por mais que seja a farsante que é, uma safada manipuladora, quero tê-la por perto, tão perto que seja impossível haver espaço entre nós dois para que eu receba uma facada.
― Jamais o trairia...
― Perfeita, bem do jeito que as farsantes falam. ― debochou.
― Como protege as mulheres se as odeia?
― Preciso amá-las para protegê-las? O seu irmãozinho protege os bandidos dos meus homens e do linchamento público, mas tenho certeza de que ele não os ama. ― a voz carregada de amargura e ironia.
― Por que me odeia, Thales?
― Não se dê tanta importância.
― Já conseguiu se vingar. Você venceu; eu perdi.
Ele vasculhou sua expressão entristecida, atento.
― Venci? Como pode dizer que eu venci se é você quem está comigo? Acho que deveria ser a Karen, não?
Em resposta, ela tentou se soltar.
― Então nós dois perdemos! Agora me solta que quero ir para casa. Parece que se recuperou muito bem da surra, não precisa mais de mim. ― disse, ressentida.
― Nunca precisei de você, veio aqui para se sentir importante pra si mesma. Imagino que a sua missão na vida seja me salvar do tal monstro e ficou bem feliz me vendo fodido na cama, à sua mercê, aos cuidados da inútil da cidade.
― Me solta! ― gritou, as lágrimas na garganta.
― Mas não era isso que queria? Uma aventura erótica com um homem atormentado? ― debochou, ampliando o sorriso e completando: ― Você já passou dos trinta, Valéria, agora não dá mais para ficar escolhendo muito...
Ela ergueu o joelho para acertá-lo na virilha. Porém, a perna ficou presa numa garra firme, que, num gesto rápido e brusco, subiu para a parte interna da coxa e puxou-a para o lado, desprotegendo o sexo.
― O que quer que eu faça? ― ela perguntou num tom de desafio. ― Me diz, hein? Quer que eu traga a Karen amarrada? Eles se amam pra valer, Thales! Se me tratar bem ou mal, não vai mudar o fato de que nunca mais terá a Karen. Acabou, seu merda!
Ele riu com vontade.
― “Seu merda”? foi isso mesmo que ouvi?
― Um homem que pede em casamento uma mulher que acabou de meter a mão na cara dele e humilha outra que veio cuidar dos seus machucados só pode ser um legítimo merda. Não quero mais saber de você, jogo a toalha, vou embora pra minha casa...
Ele continuava rindo e segurando os pulsos dela com apenas uma mão. Divertia-se com a sua rebeldia.
― Quando fala grosso comigo me deixa de pau duro, Valéria.
― Não acredito que goste de ser maltratado, ninguém gosta! Eu pelo menos já estou farta disso!
Fechou os olhos e respirou fundo. Lutava contra as lágrimas e contra a realidade que não queria encarar. Thales não batia bem da cabeça. E ela era louca por ele.
― Se eu meter agora em você, vai considerar como um estupro?
A voz dele era tão calma que ela se obrigou a encará-lo parta ter certeza de que ouvira o que pensara ouvir:
― O que?
Ele entortou o canto do lábio para baixo e meio que se justificou:
― Sexo depois de uma briga é o melhor sexo.
― Será que não percebe que... ― ela parou, as palavras fugiram, um branco total. Impôs-se retomar o que ficara suspenso e concluiu, balançando a cabeça em negativo, água rasa nos olhos: ― Não pode me tratar como um objeto para sua satisfação sexual. Não pode me maltratar e depois... e depois querer fazer amor comigo. Isso está errado.
― Errado é você querer que eu faça isso, não é? ― provocou-a sagazmente. ― Que merda fazer parte de algo que condena e, ainda assim, querer ficar e viver isso até o talo. Que diabo se interessar por alguém que pode não valer nada e mais uma vez foder com os seus sentimentos e bagunçar a sua vida. Que coisa séria, né, minha querida?
― Está falando de mim?
― Estou falando de nós dois.
Ela deixou as lágrimas brincarem no seu rosto. A angústia a sufocava.
― Tem razão, quero fazer amor com você mesmo depois de ter me ofendido. Acho que para algumas pessoas o amor vem em forma de doença...
― E para outras ele nem dá as caras, Valéria, então somos dois sortudos.
Sim, dois sortudos. Ela o amava. E ele amava Karen.
Thales sorriu; não foi um simples sorriso, um espichar de lábios e os dentes à mostra, foi um gesto de cumplicidade e determinação.
Valéria sabia que ele faria o diabo com ela.
Thales não permitiria que ela fizesse o diabo com ele.
Eles erraram.
Acordou de um sono profundo, esticou o braço e percebeu que estava sozinha na cama. Valéria achou tão clichê despertar sem a companhia do homem que lhe proporcionara tanto prazer que estranhou ouvir um barulho do outro lado do quarto.
À luz do abajur, vislumbrou a silhueta alta e encorpada nua, as nádegas pequenas e duras encimando as coxas musculosas. Thales remexia o interior da bolsa dela.
― Perdeu alguma coisa aí? ― ela perguntou numa voz sonolenta e divertida.
Ele nem se voltou para responder por cima do ombro:
― Onde estão os analgésicos?
Ela pulou para fora da cama imediatamente. Se ele procurava remédios para aliviar a dor, era porque a coisa estava feia. A culpa era dela; afinal, fora para a fazenda a fim de cuidar dele e não para esgotá-lo de tanto fazer sexo.
Ao se encaminhar até ele, notou que também estava dolorida, ligeiramente dolorida, nos lugares em seu corpo onde ele se concentrara com mais vigor. Era uma dorzinha boa de quem se sentia muito bem, por sinal. Teve vontade de abraçá-lo por trás e beijar as marcas de suas cicatrizes. Não sabia qual seria sua reação a tal gesto. Entretanto, optou por manter a espontaneidade que sempre marcara a sua personalidade (para o bem e para as gafes) e fez o que o seu coração mandava. Rodeou-lhe a cintura com os braços e deitou a cabeça de lado contra o dorso largo e morno, sentiu na bochecha a aspereza de algumas cicatrizes. Afastou-se o suficiente para tocá-las suavemente com a boca, uma carícia terna que demonstrava que o amor que sentia por ele era mais que o amor sexual, muito mais.
Ele não se mexeu, além de abrir a embalagem e engolir o remédio.
Quando Valéria fez menção de se soltar a fim de não irritá-lo com suas manias de mulherzinha apaixonada, Thales, para variar, imprevisível, pegou sua mão e, virando-se para ela, beijou cada dedo, os olhos nos dela.
― Vamos para a hidro, meus músculos estão em frangalhos. ― determinou, uma nota de divertimento na expressão séria.
Ela continuou olhando para ele, entre aturdida e fascinada. O comportamento de Thales era um caleidoscópio de sentimentos, uma combinação arrebatadora de alguém que tentava combater os seus próprios extremos. Em poucas horas, Valéria fora tomada por um turbilhão de sensações e emoções, arrastada por ele, ao sabor da maré que fazia parte da vastidão do mar azul e profundo e misterioso que era aquele homem.
Percebeu a mão balançando ao longo do corpo, a mão dele, os dedos preparados para receber os dela, a intenção explícita no gesto que dizia: vou guiá-la como a minha vontade determinar. A questão era que entre eles não haveria quedas de braço. Para a irmã do delegado, criada num lar com amor, aceitar a força e o domínio de alguém que precisara se impor a vida inteira para sobreviver também era um gesto de amor, do seu amor por ele, a aceitação das suas determinações sem atingi-lo no ego ou, como o próprio Thales mencionara, a sua autoestima. Ela não queria o desgaste do domínio; preferia a zona de conforto da aceitação. Que Thales interpretava como um tipo de “rebeldia silenciosa”.
A preparação do banho na Jacuzzi foi feita por ela, enquanto Thales aguardava sentado numa poltrona próxima ao jardim de inverno no banheiro. A testa franzida expressava a dor que o analgésico ainda não havia combatido. Uma das mãos pressionava ligeiramente a têmpora esquerda.
― Temos de ir a Santa Fé consultar um médico. ― ela sugeriu.
Ele cruzou as pernas como as mulheres faziam ao sentar e respondeu desinteressado:
― Não tenho nada quebrado.
― A culpa é minha, vim para cuidar de você. Às vezes me falta maturidade e, talvez, vergonha na cara.
― É verdade, Valéria, você é uma sem-vergonha mesmo. ― afirmou com um meio sorriso: ― Mas não foi você quem me nocauteou totalmente; você apenas pôs na lona o meu pau.
Eles riram, e Valéria aproveitou o bom humor dele:
― Não sabia que gostava de tomar banho com sais perfumados. ― pegou a embalagem sofisticada e leu o rótulo: ― Hmm, morango...Dizem que é afrodisíaco.
― Pensei que fosse uma fruta. ― debochou.
Valéria era uma mulher estranhamente corajosa, mas, mais do que isso, curiosa:
― Já dividiu essa Jacuzzi com outra mulher?
Ele se levantou devagar, ainda apertando a parte lateral da testa, e se encaminhou até ela.
― Se eu disser que não pensará que, com isso, você é importante pra mim?
Ela sorriu um sorriso de desafio.
― Só quero saber se já trouxe alguém para o seu quarto, além da Karen e da sua ex-noiva texana...
― Pode perguntar o que quiser, minha querida, sinta-se à vontade para fuxicar, não me importo. E se, por acaso, levar nos cornos o problema é inteiramente seu. ― afirmou com um sorriso satânico.
― Então responde o que perguntei, ora.
― Certo. Para o quarto levei a Mary Jessica e uma vez a Karen.
― E aqui na Jacuzzi...?
Ele enfiou os olhos azuis nos dela. Detestava ter de admitir o que ela queria ouvir, sabia exatamente o que ela queria ouvir.
― Esse nível de intimidade ainda não foi compartilhado com nenhuma mulher, se é que quer saber. ― enganchou dois dedos debaixo do queixo dela e completou com bastante tranquilidade: ― O que não significa porra nenhuma, Valéria Malverde.
Os dedos desceram do seu queixo para o pescoço, a mão se abriu como se fosse esgoelá-la, embora não houvesse força alguma naquele gesto e fosse mais como um modo de firmar-lhe a cabeça para aceitar a violência do seu beijo. E ainda beijando-a, lábios e língua chupando a sua, as mãos puxaram-na para si, o corpo dela sem roupa, sem lençol, apenas vestido pela luz suave da iluminação indireta do ambiente. Ao fundo, a trilha sonora era a respiração baixa e rouca dele e o som da banheira se enchendo de água.
Após se desvencilhar dela, Thales admirou-a toda, fixando seu olhar ostensivamente no rosto dela, a feição impassível usada como uma máscara que sempre o protegera. Tenso, preocupado, encantado. Sempre se interessara por fêmeas combativas, guerrilheiras, loucas assassinas, mulheres movidas pela adrenalina, alfas, dominantes, briga de fodões na cama e fora dela.
― Você tem um vestido preto?
Nunca percebera a beleza da fragilidade.
Valéria, boca inchada e peito explodindo, sorriu sem compreender.
Ele indicou a banheira com um meneio de cabeça. A espuma transbordava, e Val teve de desligar as torneiras, pensando sobre o interesse dele em relação às suas roupas. Bom, isso já não era de hoje...
― Tenho aquele pedaço de pano que comprou pra mim.
― Pode ser esse mesmo. Temos um enterro para ir. ― comunicou enquanto se dirigia para a banheira, puxando-a pela mão. Como ela não saiu do lugar, se virou e perguntou de forma jocosa: ― Consegue pensar caminhando?
Ela esboçou um sorriso amarelo e entrou na banheira, postando-se do lado oposto ao dele. O cheiro da água era como o cheiro de uma plantação de morangos mornos. Procurou não molhar o cabelo, vendo que Thales fazia o contrário, deitando a cabeça para trás.
― Vida de rico é outra coisa. ― comentou, espirituosa.
Ele sorriu assentindo levemente.
― Vem para mais perto, não vou mordê-la...novamente.
Puxou-a para si até que suas costas encontrassem o tórax dele e os braços que a envolveram num abraço cheio de espuma.
― Acha apropriado ir ao enterro do coronel do jeito que está? Pensa bem, o coronel morre e você aparece ferido.
― Tenho de falar com o delegado para saber como está a minha situação. ― considerou, pensativo.
A menção ao seu irmão a fez endurecer a coluna.
― O Rodrigo não fará nada contra você.
Thales riu baixinho e apertou-a mais contra si:
― Não se preocupe com o maninho, ele sempre esteve seguro comigo, ainda que seja tão irritante quanto à irmã. Além disso, nós dois agora temos motivos para nos protegermos mutuamente.
Valéria se sentiu incomodada com a observação, tentou se afastar, mas foi impedida pela prisão de braços ao seu redor.
― Vai jogar na cara do Rodrigo que dormiu comigo, é isso?
Thales olhou-a, confuso, tentando completar as lacunas da ideia que, ao seu ver, parecia incoerente. Desistiu e foi direto ao ponto:
― Falo sobre a morte do coronel. Eu e ele estamos protegendo a mesma pessoa. ― em seguida, entortou o canto do lábio numa careta engraçada: ― Meu Deus, Valéria, você não precisa de muito material para distorcer as coisas, não é? Me diz, além de falsa é neurótica também?
― Não sei de onde tirou que sou falsa. ― reclamou com azedume.
― É falsa, sim.
Ela se virou, irritada, e o encontrou sorrindo.
― Não é? ― provocou-a.
A irritação se dissipou por entre a espuma. Suspirou pesadamente e o beijou, cuidando para não pressionar-lhe os maxilares. Depois se afastou dele e sugeriu:
― Por que não inventa que se machucou na fazenda ou algo do tipo? Sabe muito bem o quanto é fácil surgirem rumores.
― Ligarei para o Jornal, e eles publicarão na primeira página que Thales Dolejal caiu do cavalo. O que acha?
― Acho que amo você e o seu bom humor. ― disse com simplicidade.
― É mesmo? ― indagou, estreitando os olhos, desconfiado.
― E amo também essa banheira.
Ele riu, apertando possessivamente as nádegas dela.
― E eu, Valéria, amo a sua bunda. ― observando que o elogio não era bem o que ela esperava, ele se obrigou a amenizar a situação criada: ― Nem toda a história de amor começa pelo coração, as mais duradoras começam debaixo.
Bem, o que ela podia dizer? Ele dividira a banheira com ela e falara numa mesma sentença as palavras coração e amor. Val sorriu feito uma princesa de contos de fada, embora o príncipe em questão fosse bipolar.
E era óbvio que para encerrar a noite com chave de ouro, antes de decidirem voltar para a cama, ele avisou com ar superior:
― Caso eu continue bonzinho com você, agradeça a esse analgésico para derrubar cavalos.
Amanheceu do outro lado daquela vida que era o quarto com Thales. Ela não acordou, porque depois do banho não dormiu. Deitara a cabeça no peito dele, já na cama, e aproveitara os efeitos do paracetamol, como ele sugerira. Ficou quietinha recebendo o carinho dos dedos que se misturavam às mechas do seu cabelo até que a carícia parou, e ela notou que ele havia adormecido. Ajeitou os travesseiros para tornar mais confortável seu sono e juntou do chão o lençol que fora desprezado até poucas horas atrás. Cobriu-o até a cintura e tocou-o na testa com o dorso da mão. As horas, poucas, era verdade, passaram, e ela se distraiu vendo-o respirar.
Percebeu o amanhecer porque a fazenda acordou com o sol, com o dia vivo de azul. Saiu da cama com cuidado, abriu os janelões que davam para o terraço e, vestida no robe dele, acarinhada pelo cheiro que se desprendia da seda, postou-se à amurada com um sorriso de amor proibido.
Os pistoleiros não foram discretos ao virarem a cabeça em direção ao terraço da suíte do patrão. E ela sabia que em pouco tempo se tornaria a mulher mais falada da cidade, a nova vaca louca de Thales Dolejal. Seria apontada como a sua amante. Sabrina e Rodrigo também receberiam os respingos de sua má fama. A filha se preparava para trabalhar no hospital e começar sua carreira profissional, e, numa cidade pequena, o constrangimento a atingiria em cheio. E quanto ao delegado de polícia... Bem, ele meio que já estava acostumado, uma vez que vivia com Karen. Mas ela e sua filha, não. Valéria Malverde prezava a sua boa reputação.
Perdeu o sorriso.
Iria ao enterro do coronel com ele. Ainda mais que boa parte da cidade estaria lá, inclusive Rodrigo, e, dessa forma, ninguém desconfiaria que ela e Thales haviam-se tornado amantes.
Voltou para o quarto, e o encontrou esfregando devagar os olhos machucados ainda sonolentos. Bocejou e cravou os antebraços na cama, indagando sem rodeios:
― Está arrependida?
A sua expressão preocupada a delatara. Ela tentou sorrir e escapar da intromissão daquele olhar perscrutador. Antes que falasse qualquer coisa, ele atalhou com secura:
― Não precisa responder. A porta sempre estará aberta para você ir e voltar. Era assim com a Karen.
Depois se sentou na cama e bocejou mais uma vez, pressionando a nuca com a mão.
― Mas se vai ficar, é bom se preparar. Temos um enterro depois do almoço. Vou pegá-la na Confeitaria a uma da tarde. ― voltou-se para ela e continuou, informando-a: ― Almoço no Arizona quando tenho compromisso na cidade.
Apertou-se dentro do robe dele.
― O que foi, Valéria?
Como dizer que temia se tornar mal falada? Logo para ele, dizer isso “para ele”, que desprezava convenções e os tais “moralismos”?
― Nada.
― Então vamos tomar café. Precisamos trabalhar, não é mesmo?
― Sim, Thales.
Ele sorriu e estendeu-lhe a mão.
― Vem aqui, vem. ― puxou-a para a cama: ― Sabia que faz bem à saúde provar o gosto de uma mulher bonita antes do café da manhã?
Havia luxúria e algo mais no olhar quente que se demorou nos olhos dela. Deus, como o amava!, ela quase gemeu.
Ele soltou o cinto do robe e desceu a ponta dos dedos por seu abdômen, que se contraiu num espasmo como se tivesse recebido uma potente descarga elétrica. Ao encontrar o lugar tépido e úmido que ele tencionava buscar, baixou a cabeça e falou ao seu ouvido:
― Toda vez que disser “Sim, Thales” será gratificada por isso. É a recompensa pela devida obediência.
Pensou que ele estivesse brincando haja vista o humor estranho que possuía. Mas nada indicava que fosse brincadeira, nem o olhar determinado nem a intenção de levá-la ao orgasmo com a boca.
Ele sabia que não era assim que se conquistava a obediência de uma mulher, não era o sexo que as punham de joelhos.
Após voltar do núcleo da Terra, ela ainda estava trêmula, ofegante e apertava o lençol com força entre os dedos.
― Quero que fique comigo.
Era esse o momento certo para falar sobre os seus receios. Endereçou um longo olhar para ele. O coração batia forte. A garganta seca.
― Quero muito ficar com você.
Só conseguiu dizer a parte importante.
Ele suspirou fingindo impaciência e falou com um sorriso travesso:
― Se tivesse dito “Sim, Thales”, eu a foderia. Pois é, perdeu a chance, agora vamos enfim nos alimentar. ― acrescentou, levantando-se da cama com preguiça e se encaminhando lentamente, nu e lindo (como ela não pôde deixar de admirar), para o closet. ― Ah, minha querida, sua calcinha está debaixo da mesa da cozinha. Acho que a Irene deve tê-la guardado. ― piscou, satisfeito por vê-la vermelha de vergonha.
Karen acordou antes do sol e se espreguiçou sem dispensar do corpo os vestígios do ato de amor com o namorado. Sorriu antes de abrir os olhos, a ressaca de uma noite bem vivida e maldormida impressa no cansaço agradável de cada músculo.
Por estar só na cama, levantou-se e se abrigou vestindo a camisa xadrez do policial. Encontrou-o na academia improvisada na garagem.
Ele caminhava na esteira sem pressa. I Walk the Line estava alto e claro aos ouvidos. Mas ela prestou mais atenção no tórax nu, nos bíceps proeminentes e tríceps moldados e nos quadradinhos do seu abdômen, pouco acima do cós da calça de moletom cinza-chumbo.
Não resistiu, parou à sua frente e disse numa voz sonolenta:
― A visão do paraíso bem no meio da garagem.
Ele retirou os fones e franziu o cenho:
― O que?
― Eu disse que você é o homem mais lindo do mundo!
Ele sorriu sem jeito. Não perdeu a cadência das passadas ao falar:
― Ah, me perdoa por acordá-la, mas nada como forçar os músculos para pôr em ordem os pensamentos. ― brincou, um sorriso desanimado denunciava seu estado de espírito.
Ela não era uma mulher que enrolava fios ao redor de um novelo; na maior parte das vezes era aquela que criava os nós. Por isso foi direto ao ponto:
― Siga a sua consciência, é só isso que importa. O Thales tem uma equipe de advogados que não me deixarão passar mais de dez minutos na delegacia. Sabe como é a Justiça no Brasil para quem tem dinheiro, né?
Rodrigo assentiu levemente retesando os maxilares.
― Essa questão já está resolvida, Karen.
― Mas não parece.
― Minha preocupação agora é outra. ― justificou-se, descendo da esteira e se sentando ao lado da mulher: ― O Cris jogou uma bomba no meu colo e ainda não sei se a desarmo ou a deixo explodir.
― O Cris? O nosso querido e inofensivo pediatra?
― Pois é, ― ele torceu a boca para baixo num ricto de amargura ― parece que ele também foi picado pelo vespeiro envenenado de Matarana, como diz o Dolejal.
Karen passou a mão pelo cabelo dele e beijou-o na bochecha, um beijo de amiga ― como antes e sempre o fora.
― Não quero me meter nos seus assuntos, mas... Bem, qual é a potência dessa bomba? Um rojãozinho de festa Junina ou uma bomba nuclear?
Ele riu um riso cansado, desgostoso.
― Já viu uma fábrica de fogos de artifício explodir? É um espetáculo lindo e assustador, sobra pra todo mundo...
― Pra nós também?
― A bomba foi largada no “meu colo”, Karen. ― reafirmou, entristecido ― Indiretamente sobrará para nós também. Na verdade, uma família inteira será destruída.
Dois blocos de concreto caíram sobre os ombros dela. Rodrigo não era o tipo de cara que escondia suas emoções e elas estavam todas lá na feição sombria quase desolada. Ela não sabia o que Cris lhe falara, que denúncia ou segredo revelara. No entanto, vindo do ex-amigo de Nova o alvo só podia ser Franco e, assim, a família atingida: os Dolejal.
Encurvou-se colando os antebraços nos joelhos e virou a cabeça para ele, para o seu rosto voltado para o chão.
― Ai, meu Deus...me deixa te ajudar, por favor! ― pediu.
Ela percebeu que, mais uma vez, ele vivia um dilema moral quando respondeu secamente:
― Isso é assunto exclusivo da polícia.
Karen encolheu-se, pensativa.
― Polícia?
― O Cris me procurou como delegado e foi bem taxativo quanto a isso, me sondou antes para testar a calibragem dos meus princípios e depois se sentiu seguro para... ― ele parou, arou os cabelos com os dedos, impaciente consigo mesmo.
Precisava confortá-lo.
― Rodrigo, você é a melhor pessoa que conheço, não apenas o melhor homem, digo com toda a certeza do meu coração, você é o melhor ser humano que já conheci. O que decidir a respeito será o correto, não duvido nadinha disso.
Ele se voltou para ela e a olhou demoradamente. Puxou-a para si num abraço quente e apertado.
― Então casa comigo. ― murmurou ao seu ouvido.
Eles riram. Precisavam rir, porque o ar se tornou pesado demais para respirar. Era uma avalanche de problemas, um atrás do outro, que não lhes davam trégua.
― Daqui a alguns meses teremos um bebezinho...
Ela foi interrompida por um olhar direto e acrescido de uma indagação num tom desconfiado:
― Está grávida?
Karen sorriu sem graça.
― Não, meu amor, falo do bebê da Nova e do Franco. Bem, eles nos escolheram para sermos os padrinhos dele e isso é uma grande responsabilidade. ― ela ganhou um ar sonhador ao afirmar com um sorriso terno: ― Imagina um bebezinho aqui em casa, hein! Vamos poder ficar com ela um ou outro fim de semana. Claro, se a possessividade do Franco permitir.
Rodrigo fitou-a profundamente e revelou o que guardava para si havia anos:
― Acho que sou estéril, Karen.
Por um minuto ou dois, eles ficaram se olhando. Ele sondava os efeitos daquela declaração haja vista que por tantas vezes falara em ter filhos com ela.
Por fim, foi Karen quem tomou a iniciativa:
― Eu sei, teve uma época em que você e a Jasmine tentaram ter filhos, e ela acabou desistindo da ideia. ― tocou o rosto com carinho com carinho e continuou: ― Desde que estamos morando juntos não me preveni mais, então liguei uma coisa a outra.
Ele assentiu sem muita vontade, ainda mais triste, descendo fosso adentro.
― Já temos o nosso Johnny, Rodrigo, e, agora, a nossa afilhada. E ainda temos a dona Sabrina que pensa que já é adulta. Amor, sou muita egoísta para querer dividi-lo com mais alguém, ainda que seja um filho nosso. Você me tornou uma mulherzinha mimada demais da conta! Quero que nada mude. Pra falar a verdade, quero sim que algo mude.
O delegado tentou sorrir ao esperar pelo pedido dela, certo de que a atenderia.
― Quero que seja feliz comigo e que não carregue para si todo o peso do mundo. Você é feito de outra substância, sem dúvida alguma, mas ainda é apenas um ser humano.
Os olhos de Rodrigo se encheram de água e o queixo tremeu ligeiramente.
― Sou muito feliz com você. ― ele afirmou numa voz emocionada.
― Apesar de tudo?
― O “apesar de tudo” não é nada perto do meu amor por você. Nada.
Ele já sabia o que fazer desde que saíra do hospital, depois de ouvir o relato de Cris a respeito de sua investigação particular. A obsessão por Franco levara-o ao lugar onde supostamente o filho de Thales enterrara o corpo do matador de aluguel procurado pela polícia, Everaldo Viegas.
A polícia recebera a denúncia informalmente. Rodrigo não era como Thales, não podia fazer justiça como bem quisesse, tinha de seguir a lei. E ele sabia o que deveria fazer, estudara para isso, conhecia o procedimento a respeito.
O delegado de Matarana se levantou e falou numa voz clara e determinada:
― O doutor Cristiano Bittencourt indicou à polícia a localização do corpo do Everaldo, e ao meio-dia faremos uma diligência até lá.
Karen nem piscou ao ouvir a informação.
Rodrigo reafirmou sem se voltar para ela:
― Meio-dia, Karen, e isso não é meio-dia e cinco ou qualquer outro horário. ― acrescentou significativamente; em seguida, num tom menos sério continuou: ― Sei que fará bom uso dessa informação, assim como fez com a anterior.
― É para uma boa causa. ― balbuciou, surpresa e na defensiva.
― Claro que sim, por essa “boa causa” você se tornou uma criminosa. ― desferiu com escárnio.
― Viu só?, matei dois problemas com apenas um tiro. ― devolveu com um sorriso sem culpa.
Não era de hoje que Karen Lisboa o deixava sem palavras.
Valéria olhou com carinho para Thales ao lhe devolver o prato com a torrada coberta pela geleia, após servi-lo de café. A sincronia perfeita entre ambos, ela cumpria os pedidos dele, mesmo os silenciosos, antecipava-se a eles, inclusive; ao passo que Thales, dolorido o corpo e um pouco do ego depois da surra dos homens do coronel, mantinha-se calmo, pacificado e disposto a ficar de fato com a irmã do delegado, tomar conta dela, bancá-la, por exemplo.
Ele retribuiu o olhar sem demonstrar o que passava dentro de si, a revolução que ameaçava se irromper, guerrilheiros atacando o imperador vigente, o homem que lutava para se livrar de um antigo amor. Acontecia, no caso, que os olhos verdes cheios de luz e paixão, o sorriso belo e o jeito tranquilo de uma personalidade sem requintes de dominação e controle acalmavam-no, embalava a sua alma num tipo de acondicionamento refrescante. Ela tinha de ser verdadeira ― ele torcia silenciosamente. Ela não podia estar fazendo tipo ou inventando uma personalidade flexível para golpeá-lo mais para frente, quando as suas reservas de homem que já levara nas guampas lhe caíssem por terra. Ele era forte, era verdade; mas era forte contra outros da sua espécie. Em relação à docilidade de uma moça simples, Thales Dolejal se sentia perdido.
Então por que não se apaixonara por Mary Jessica, que também era dócil e submissa? ― pensou, precisando de poucos segundos para obter a resposta: porque Valéria não era submissa. Além disso, ele tinha de convir consigo mesmo, nunca vira nos olhos da ex-noiva texana o amor na sua forma mais explícita e intensa como via nos olhos de Valéria. Se ela era uma farsante, como ele lutava para acreditar que não, era excelente na intenção, excelente atriz. E Thales expulsaria a família Malverde inteira do centro-oeste se Valéria o enganasse.
― Acho que deveria acrescentar um pouquinho de leite nesse seu café. ― ela disse num tom meigo, pegando a alça do bule de inox com a intenção de servi-lo: ― Provavelmente passará a manhã inteira à base de expresso, não é mesmo?
Ele ergueu a mão para contê-la, fitando-a detidamente e inclinado a contrariá-la, mas foi difícil resistir àquele tom de voz suave e ao sorriso quase infantil. Permitiu-se ser novamente servido e, de certa forma, conduzido por ela.
― Bem pouco, por favor.
Ela assentiu, servindo-o, e franziu o cenho ao ouvir o celular vibrar sobre a mesa.
Thales, contrariado, pediu desculpas e o atendeu. Era visível a metamorfose em seu semblante, da contrariedade à aprovação, talvez fascínio.
Valéria já sabia quem estava do outro lado da linha e tal constatação a fez perder o sorriso.
― Não precisa se justificar, Karen, sei que tentou entrar em contato com Franco antes de mim... ― ele alçou a sobrancelha, surpreso, e indagou: ― Não...? E por que não? Pensei que o delegado a tivesse proibido de falar comigo...
Thales voltou-se para Valéria com um leve sorriso divertido nos lábios e piscou o olho para ela, apontando para o prato à sua frente:
― Coma, mulher! ― ordenou, parecia leve como uma pluma, bem-humorado; em seguida, ao ouvir qualquer coisa de Karen, franziu o cenho e a feição se fechou imediatamente: ― Sempre contei com a sua inteligência, minha querida, se tivesse passado essa informação ao Franco o estrago teria sido devastador. ― ele suspirou pesadamente e prosseguiu: ― Tudo será resolvido agora mesmo, inclusive o destino do nosso amigo. Sinceramente, por essa eu não esperava. Bem, o que se pode fazer quando os amigos se comportam como inimigos... Tratá-los de acordo, não é verdade?
Falavam sobre quem?, Valéria se perguntou, preocupada. Karen passava uma informação que, com certeza, não se referia a Rodrigo. Como Thales era um homem que possuía seguidores leais, mas não cultivava amizades... Cristiano.
― E como você está? Precisa de alguma coisa? ― perguntou, voltando seus olhos para a mulher ao seu lado. ― Jamais se esqueça do quanto você é importante para mim. ― depois, com um sorrisinho maldoso, perguntou com falsa naturalidade: ― Quer falar com sua amiga Valéria?
Val engoliu em seco e baixou a cabeça, fingindo se concentrar na xícara que levava a boca, o gosto amargo do café.
Ele desligou o celular e, no mesmo minuto, entrou em contato com Bronson, levantando-se da cadeira e se afastando, o gesto indicava que a conversa restringia-se aos homens da Arco Verde. E por isso ela só pôde acompanhá-lo com os olhos, vendo-o se afastar ainda mancando ligeiramente, a camisa social escura ajustada para dentro da calça do mesmo tom. Sério, gestos contidos, coluna ereta ― Thales determinava algo ao seu homem forte.
Por um momento considerou que se a cunhada ainda se mantinha leal a Arco Verde, traficando informações da polícia, especificamente do delegado, ela também continuaria ao lado do seu irmão. Lealdade não era um sentimento circunstancial.
Endereçou um rápido olhar ao homem ao telefone e digitou uma mensagem para Rodrigo: “Karen ligou para o Thales. Algo sobre traição de um amigo. Acho que o Cris cutucou a fera”. Apertou a tecla para enviar a mensagem, os pelos da nuca eriçados, um fio de eletricidade correndo pela coluna.
Thales voltava para a mesa, ainda ao celular, os olhos postos nela. O seu aparelho vibrou, arriscou um olhar para a tela que indicou uma mensagem recebida: “Por que está com o Dolejal a esta hora da manhã?”
Instintivamente desligou o aparelho, mordendo o lábio inferior, nervosa. Agora Rodrigo sabia que ela passara a noite com Thales.
― Então vamos rever nosso roteiro para o dia de hoje. ― Thales disse, sentando-se na cadeira e ignorando a refeição ao se postar novamente diante do Tablet, no qual até poucos minutos atrás, lia dois jornais on-line. ― Costumo almoçar a uma da tarde. Portanto, passarei na Confeitaria para pegá-la para almoçarmos no Arizona... Ah, me esqueci de lhe devolver... ― interrompeu-se, tirando do bolso lateral da calça um pedaço de tecido: ― Sua calcinha estava no bolso do meu robe, Valéria.
Recebeu o olhar significativo dele, e a cumplicidade os envolveu atando-os, deixando-os muito perto um do outro.
Ela aceitou de volta a lingerie, sentindo o calor a consumir subindo pelo pescoço e se espraiando pelas bochechas. Gaguejou um “obrigada”, embora seus pensamentos estivessem sobrevoando uma área beligerante na qual fatalmente teria de aterrissar.
Ele piscou o olho com charme, recostou-se contra o espaldar da cadeira e tornou a se concentrar na sua agenda:
― Agora às dez horas tenho uma reunião com um grupo de empresários norte-americanos. ― ele parou, esfregou os olhos com cuidado e continuou: ― Não sei se é interessante que me vejam com esses hematomas na cara. Bem, a senhorita Freitas pode transferir a reunião para outro dia. Então, mais tarde, me encontrarei com o chefe Aturi. Depois vou buscá-la para o enterro do coronel e voltamos para a fazenda. Você passará a noite comigo, por isso é melhor que avise a família. Aliás, você avisou a sua família sobre a noite anterior? ― indagou com curiosidade.
― Não.
― Não?
― Quando soube que estava ferido, saí feito uma louca da confeitaria...Meu Deus, não avisei nem a minha filha. ― constatou, assustada consigo mesma.
― Interessante... ― ele falou, avaliando-a. ― É certo que a Karen avisará o seu irmão sobre a sua...digamos, visita à minha propriedade.
― É claro, ainda mais que fez questão de que ela soubesse.
― Temos de nos esconder?
― Não, mas também não é preciso tocar trombetas avisando.
― E por que, não?
― Isso é um assunto que só diz respeito a nós dois.
― Três, a sua filha também merece ser comunicada.
― Comunicada sobre o quê?
Ele a fitou demoradamente antes de afirmar com bastante serenidade:
― Que estamos juntos.
― É mesmo? Juntos como? Como quando você estava com a sua ex-noiva? Ou como quando era amante da Karen?
― Aonde quer chegar com isso, Valéria? Parece o seu irmão me pondo contra a parede, vá direto ao ponto, por gentileza.
― Aceito ficar com você, mas de forma discreta. ― afirmou, determinada.
― E como seria isso, mocinha bem-comportada? ― perguntou com deboche.
― A gente se encontra somente aqui na fazenda. Não quero ser vista em público com você, Thales. Prezo a minha boa reputação, tenho uma filha, sou mãe de família e, além disso, sou irmã do delegado da cidade. Não quero que me chamem de vaca louca ou se refiram a mim como “a amante de Thales Dolejal”... Sei que você acha isso tudo uma palhaçada, mas essa cidade é muito cruel, e eu não aguentaria receber olhares de reprovação. Olha o que aconteceu com a Karen e, há pouco tempo, com a Nova, desde que começou o relacionamento com o Franco. Sinto muito ser assim, sinto muito não corresponder às suas expectativas.
Ele cruzou as pernas como os terapeutas o faziam ao analisar o material humano diante de si.
― Deixe-me ver se entendi... Você quer um relacionamento casual, é isso?
Ela ergueu rapidamente a cabeça, os olhos arregalados enfatizando o que veria a seguir:
― Não, nada de putaria! ― cobriu a boca com a mão, envergonhada.
Ele riu.
― Mas é o que parece. Encontros noturnos às escondidas...
― Só peço discrição. É difícil?
― Baixa o tom comigo, Valéria. ― determinou com secura.
Ela o olhou, aturdida.
― Desculpa. Preciso que me compreenda, que se ponha no meu lugar...
― Veja bem, é complicado, para mim, encarar a vida sob o ponto de vista de uma moralista hipócrita. ― ele começou a falar com uma serenidade cortante. ― Horas atrás abriu as pernas com bastante facilidade e gritou de prazer feito uma cadela no cio e agora está posando de Maria imaculada. Que tipo de mulher você, é, hein? Já chegou a alguma conclusão?
― O que faço entre quatro paredes não deve servir de assunto à comunidade. ― disse, ressentida.
― Mas nós não vamos trepar no coreto da Praça, Valéria. Nós vamos apenas almoçar juntos e depois iremos a um enterro. E, mais para frente, seremos vistos em solenidades públicas, em restaurantes e em vários lugares da cidade aonde eu quiser levá-la comigo. ― afirmou secamente.
Quando ela baixou a cabeça, mergulhada nos próprios pensamentos e dilemas, ele percebeu que a colocara numa posição que lhe exigiria uma força e uma determinação que talvez não fosse capaz de ter. Era possível que Valéria renunciasse à própria felicidade para não abalar o cotidiano da sua família.
― Você não fica bonita triste.
Ela tentou sorrir, e ele atalhou procurando uma solução para um problema que até então estava fora de pauta:
― Tenho um jeito de resolver isso, Valéria. ― digitou alguns números no celular e, ao ser atendido, comunicou: ― Bom dia, Gregório, a edição de hoje ficou excelente. Fez um ótimo trabalho. ― depois que o editor-chefe se recuperou da emoção de receber o primeiro elogio do dono do Jornal após sete anos de empresa, Thales continuou, agora, num tom quase divertido: ― Bem, para a edição de amanhã, quero na primeira página o comunicado a respeito do meu noivado com Valéria Malverde. Só não poderei mandar nossa foto juntos, porque caí do cavalo e machuquei o meu rosto. Mas Matarana inteira sabe como é a cara do dono da cidade, não é mesmo, meu querido?
Ele encerrou a ligação bem satisfeito consigo mesmo. Voltou-se para ela e afirmou com um esboço de sorriso:
― E, agora? Quem inventará apelidos ou fará qualquer maldade contra a minha noiva?
Ela olhava-o entre espantada e irritada. Não sabia exatamente o que sentir, porém nada perto de uma mulher que fora pedida em casamento. Ou ele não levava a sério os relacionamentos afetivos ou ele não a levava a sério.
― Uma mentira, inventou uma mentira... ― balbuciou, incrédula.
― Não de todo, vou comprar as nossas alianças, não se preocupe. Tudo sairá conforme o protocolo oficial das coisas certas a se fazer quando não se tem criatividade alguma; já ouviu falar nesse filme? ― perguntou com uma ponta de sarcasmo.
― Nada de noivado fajuto.
― Somos dois fajutos, Valéria, merecemos um noivado fajuto, depois um casamento fajuto e filhos fajutos. ― falou, a expressão se abrindo num divertimento que não combinava com a irritação crescente dela. ― Quero você e sua filha aqui na fazenda. Depois que os Lisboa e Malverde voltaram para casa, o casarão ficou grande demais. Tentei trazer o Franco e a Nova para cá, só que o meu filho sente uma necessidade quase imbecil por independência. Além disso, convenhamos, a Sabrina se adaptou muito bem ao meu estilo de vida. ― completou com um sorrisinho superior.
― É muito cedo. Precisamos nos conhecer melhor... ― tentou ponderar.
― Ah, claro, temos de seguir o guia oficial dos relacionamentos. Ridículo, minha cara! Posso trepar durante anos com uma mulher e não querer morar com ela, ou passar uma única noite com uma e desejar tê-la todas as outras noites à minha espera, obediente e carinhosa, para conversarmos e depois pormos fogo na cama.
Ele estava se divertindo.
― Thales...
Ouviu-o suspirar pesadamente e, com o gesto, demonstrava que a diversão estava se esvaindo.
― Qual é o problema agora?
― Você ama a Karen.
― Sim, amo e a amarei para sempre. Ela fez e faz parte da minha vida e, além disso, inclusive, salvou a minha vida. Se não fosse a Karen, o Rodrigo e o Franco também poderiam estar mortos. Sou leal a ela e o que ela quiser sempre terá de mim. E sabe o que ela mais quer? ― ele esperou os olhos verdes e aflitos, molhados de água, fitarem-no: ― Ela quer que eu mantenha o Rodrigo a salvo de qualquer perigo, e será isso que eu farei para ela e por ela. O amor que eu sinto pela Karen me faz querer vê-la feliz e se ela está feliz com o delegado... o que posso fazer?
― Ficar com a estepe, por exemplo. ― completou Valéria com amargura.
Ele se ergueu da cadeira, limpou a boca no guardanapo de linho e o jogou sobre a mesa.
― Agora você me ofendeu. Por acaso, sou um camarada que precisa aceitar uma “estepe”? ― perguntou com uma seriedade pincelada de exasperação.
― Não, Thales.
― Quer se casar comigo ou não?
Ela o olhou completamente confusa. Ele estava irritado, o cenho franzido, e pedindo-a em casamento.
― A senhorita Freitas comprará o seu anel, e hoje à noite eu o ponho no seu dedo. Só quero saber se vou gastar dinheiro à toa.
― Thales, eu... ― qual era a intenção daquele pedido?
― É muito simples, Valéria, para responder essa pergunta não precisa nem ser alfabetizado. Quer ser minha mulher? ― ele parou e estreitou os olhos, analisando-a; depois, completou incisivamente: ― Só faço esse pedido uma vez, entendeu?
Ela respirou fundo, uma tremedeira dos diabos.
― Pelo menos gosta um pouquinho de mim?
A expressão do homem permaneceu imperscrutável quando respondeu sem hesitar:
― O suficiente para casarmos.
E naquele momento foi tudo o que ela arrancou dele.
O Maverick estava no acostamento da estrada, uma vicinal de chão batido cercada por árvores de copas altas, que antecedia à clareira logo atrás. A motorista estava fora do automóvel e usava o chapéu de vaqueira para se proteger do sol, fumava, meio corpo escorado contra o capô.
Cris parou e fez um sinal com a mão para que Karen se aproximasse. Ainda estava meio desconfiado do telefonema que recebera logo pela manhã, convidando-o para um encontro na linha de fogo entre a Arco Verde e a Coração de Ouro; embora, com a morte do coronel, a linha houvesse praticamente desaparecido. Desde o dia anterior, notara uma estranha movimentação ao seu redor, como se fosse vigiado a distância.
Ela se aproximou com um sorriso misterioso, o quadril se remexendo com malemolência. E ele apenas abaixou o vidro, sem fazer qualquer menção de sair da trincheira:
― Algum problema, Karen? ― perguntou sem fazer rodeios.
― Tem uma pessoa que quer conversar com você.
Cris ameaçou sorrir.
― Ainda não recebi nenhuma intimação do delegado.
Foi a vez de Karen ameaçar e sorrir, todos os dentes à mostra.
― Na verdade, sou eu a intimação.
― Não entendi.
― Me diz uma coisa, Cris, se no meu lugar aqui nessa estrada estivesse o Bronson... você teria parado? ― ela o observou empalidecer e continuou: ― Pois é, segue o meu carro que vou te levar até o Thales.
― Por acaso agora é capanga dele?
― Sinceramente ainda não pensei sobre isso. São tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo que não pude planejar minhas metas profissionais para o ano. ― debochou.
O médico apertou os dedos ao redor do volante, pensativo.
― O Thales não pode me expulsar de Matarana.
― Bem, isso realmente não me interessa.
Ela o deixou refletindo com seus botões enquanto se dirigia para o próprio veículo, afivelou o cinto transversal e se pôs novamente na estrada.
O sol enviava seus raios que batiam em cheio contra o vidro frontal do Camaro. E no seu interior um homem apertava os lábios, irritado. Se a notícia chegara até Thales, era porque Rodrigo de fato o protegia ― segundo corriam os rumores pela cidade. Como fora estúpido ao acreditar na integridade moral de um delegado de cidadezinha comandada por latifundiários.
Estacionou ao lado do Ford, na vaga diante do centro comercial, onde se localizava o conjunto de escritórios do fazendeiro, um andar inteiro de salas, o último. Desligou o motor com vagar, dando tempo para perfilar os pensamentos e se antecipar ao que estava por vir.
Karen aguardava-o com os braços cruzados, fitando-o com bastante atenção, talvez à espera que ele desse marcha ré e fugisse.
Não, Cristiano Bittencourt jamais desistiria de Franco.
Desceu do automóvel e, mentalmente, somou as suas chances. De todos os seus amigos, com os quais poderia contar caso houvesse uma represália por parte de Thales Dolejal? Quem sobrava? Um ou outro médico do hospital; talvez o diretor... se não fosse ele próprio amigo do fazendeiro. Inferno! Rodrigo não era mais o seu maior trunfo.
A porta do elevador se abriu, ele entrou seguido por Karen. No entanto, ela apertou o botão que os levaria até o quinto andar apenas.
― Meu trabalho é pô-lo dentro do prédio, nada mais. ― informou.
A parede especular atrás de si mostrou um homem num beco sem saída. Preso no elevador. Maldizia o momento em que decidira largar a civilização para embarcar em uma aventura na qual perdera Nova e toda uma vida criada ao redor dela, seu amor de uma vida inteira, sua amiga, sua única amiga...
Até que ele se lembrou da mulher que sempre o defendera de todos.
A porta novamente se abriu e Cris deu de cara com Bronson, não gostou de ver a sua feição fechada numa carranca dos diabos.
Voltou-se para Karen e disse com ar superior:
― A Valéria receberá a pasta com as fotografias do cadáver do Everaldo enterrado nas terras do Thales, depois de ter sido assassinado pelo Franco.
A mulher do delegado fechou os punhos, controlando-se para não esmurrar o médico.
― A Nova está grávida.
― De um assassino.
― Grávida de um justiceiro. ― corrigiu-o e emendou, assim que saiu do elevador cedendo passagem a Bronson: ― O Franco é o justiceiro do cerrado, e você, doutor Bittencourt, é só um homenzinho com o ego destroçado. Mas quem sou eu para julgar você. Sou apenas uma mulher simples que acredita na justiça feita pela iniciativa privada. Convenhamos, o Estado está quebrado. ― debochou.
Cris expressou todo o asco que sentia a respeito da fama de justiceiro daquele que, para o pediatra, tratava-se apenas de um desequilibrado mental.
― A Valéria é a única pessoa sensata do nosso grupo.
― Você não faz mais parte do “nosso grupo”. ― afirmou ela com dureza; em seguida, pegando o jornal da mão de Bronson, jogou-o contra o peito de Cris e completou com visível prazer: ― Lê aí a bela notícia na primeira página.
O médico empalideceu ao saber que Valéria, em breve, passaria a ser uma Dolejal.
Na sala refrigerada, ele encontrou o dono de Matarana. Havia em suas mãos uma procuração assinada por Nova Monteiro Dolejal a qual dava plenos poderes ao seu sogro para dispor do imóvel onde Cristiano até então residia. Sem perder a cadência da música de despedida, Thales Dolejal providenciou a exoneração do pediatra junto ao diretor do hospital municipal.
Cris não seria expulso da cidade. De acordo com a conversa tensa e seca entre os antigos amigos, estabeleceu-se uma situação semelhante à época da guerra fria. O fazendeiro economizou palavras cravando os olhos irônicos e argutos naquele que se preservou ao evitar pronunciar o nome do bandido que se passava por justiceiro. Avaliou a posição dos ventos e percebeu que o seu barquinho, já à deriva, afundaria de vez.
Thales não levou em consideração o fato de Cris ser um excelente médico, uma vez que não o considerava mais um excelente ser humano, e o pai de Franco cagava para profissão alheia. Portanto, determinado a tornar os dias do ex-amigo os piores possíveis, informou a chegada de um novo tempo:
― Meu filho vai ser pai e precisa de um pouco de sossego. Não quero que acusações levianas o tirem do sério. Por outro lado, sei que você está fodido e acredita que se vingando passará para um nível superior da existência. Esse negócio de vingança raramente dá certo. Por isso, para que você se acalme e tenha algo mais útil para se ocupar em vez de cuidar da vida alheia, meus advogados irão processá-lo por calúnia e difamação. ― ele foi taxativo ao completar: ― Vou arrancar até o seu último centavo. O que falta a você, Cristiano, é humildade para aceitar a derrota. Então terei de ensiná-lo na marra a ser humilde.
Cris retesou os maxilares chispando fogo pelos olhos.
À porta, prestes a sair, ainda seguido de perto por Bronson, ele ouviu a voz beligerantemente mansa atrás de si:
― Está por sua conta e risco em Matarana. Boa sorte.
Pisava no carpete grosso sem sentir o chão debaixo dos sapatos. Fixou o olhar no elevador logo após o longo corredor envolvido pelo barulho característico dos escritórios, do caos organizado. Era certo que ele ainda estava anestesiado, vivendo aquela sensação fugidia de quase alienação, como quando se afastava da realidade o suficiente para enxergá-la bem de perto, um microscópio como olhos, uma 9 mm como cérebro e no peito: o vazio. Homem inteligente que era, lembrou-se de que não estava totalmente sozinho, tinha um aliado de peso, alguém capaz de se impor a Thales Dolejal. Afinal, Cristiano Bittencourt também fazia parte de uma família importante e possuía amigos influentes. Um desembargador, por exemplo.
Quando ultrapassaram o portal de Matarana pela primeira vez, Nova tinha cabelos longos, e o vento morno da cidade soprou-os para fora da janela do automóvel que os trouxeram da capital. Cinco anos. Cris ainda não sabia que a vida às vezes ― poucas, era verdade ― a vida abençoava. E a benção fora ter a menina que conhecera num parquinho e o esbofeteara, assim como o beijara pela primeira vez, era a mesma que marcaria a sua existência, dividindo-a como um personagem bíblico o mar. O amor podia nascer do costume, da convivência, da amizade de anos. Isso realmente não mais importava. Agora estava sem forças para sair do estacionamento e enfrentar o resto da sua vida.
O que teria pela frente? Encontros fugazes com corpos sem alma? Pedintes de amor e atenção. Todas elas, esboços malfeitos da mulher que agora era de outro. Tanto de si ele resguardara para mantê-la para sempre ao seu lado.
Em frente ao semáforo, cogitou a possibilidade de partir. Não temia Thales Dolejal; temia a si mesmo.
Vermelho, amarelo e uma picape desconhecida cujo motorista ao volante, chapéu, óculos Ray Ban, cigarro caído no canto da boca, cabelo loiro desgrenhado foi reconhecido pelo médico. O tumor latejou. Doeu. Doeu vê-lo. Até então Cris refugiara-se na anestesia que a prostração e a sensação de fracasso ofereciam-lhe. No entanto, o ódio deu-lhe vida, seiva bruta que lhe singrava veias e artérias. Renascido, posto novamente de pé, ereto. Acelerou seguindo a picape de Franco Dolejal.
Alcançaram juntos a 163 debaixo do azul do céu, e o coração do médico encheu-se de paz enquanto pisava no acelerador. O vento de Matarana beijava seu rosto e secava as suas lágrimas, cedendo espaço para as próximas deslizarem.
Emparelhou o automóvel com a picape e encarou o motorista. Por alguns segundos, os homens se avaliaram. Cris sentiu um profundo amor pela morte, apaixonou-se pela ideia do desaparecimento e a solução para tudo, e Franco, meio aturdido e um tanto angustiado, notou que o ex-amigo de sua mulher chorava.
Franco acelerou e partiu. A dor que estava no médico pulou para dentro dele, contaminando-o como um vírus de tristeza, melancolia e algo mais, indescritível e bem próximo do abismo, como a loucura. O desatino de se sentir vivo, sentir cada impulso elétrico, aspirar cada partícula de oxigênio e quase tocar com os dedos as pontas dos dedos de Deus para depois cair, de joelhos e de nariz, na terra.
Inquietou-se ao verificar pelo retrovisor que o Camaro avançava velozmente em direção ao seu para-choque e, ainda que ele pisasse fundo no acelerador, a batida foi inevitável. Como Leonardo Marau o fizera, o doutor Cristiano chamava-o para o confronto.
Só que dessa vez Franco não parou.
Cris não deixou passar barato, determinado que estava em fazer valer a vontade do seu coração que exigia o aniquilamento do inimigo. Enquanto Franco respirasse, Cris não teria a quantidade de ar que precisava para viver bem. Tornou a acelerar e jogou o carro contra a camionete. Como o outro não teve tempo para desviar, os veículos se chocaram.
Ele perdeu o controle da direção e foi impossível evitar a capotagem.
Os pneus ainda rodavam como se cumprimentassem o céu e o dia inteiro, cheio de luz, o mato verde. Rapidamente a gasolina se espalhou. O cheiro do combustível o fez sorrir. Fechou os olhos e ignorou os gritos desesperados ao seu lado, a mão estendida, os golpes contra a lataria retorcida que o protegia e o aprisionava contra o chão.
Voltou lentamente a cabeça em direção à janela e, por entre a neblina da vertigem e a devassidão dos sentimentos, viu um rapaz lutando para salvá-lo. O rapaz que Cris ainda odiava com todas as suas forças. Odiava-o tanto que o pusera em primeiro lugar em sua vida. Antes de si mesmo estava Franco.
O sangue na garganta não o impediu de sentir o gosto doce e delicado da vingança. Fechou os olhos e partiu. Cristiano Bittencourt sorria quando morreu com as costelas quebradas e enterradas nos pulmões feito estacas no vampiro.
Sorriu ao morrer porque acreditou que Nova culparia Franco por sua morte.
Morreu iludido.
Três Anos Depois
Estação do Estio
Bronson foi se chegando devagar, coçando o lóbulo da orelha, meio que se ajeitando para fazer uma observação ao jovem concentrado em uma tarefa importante. Parou, mirou os olhos no céu branco, empurrou a aba do chapéu para trás e, com tal gesto, deu uma coçadinha também na testa, falando em seguida o que tinha de falar.
Apontou o dedo em direção à cabeça de Franco e afirmou carrancudo:
― No meu tempo, homem usava cabelo de homem e mulher cabelo de mulher. Acho que não fica bem o patrãozinho ter cabelo de mulher, não. A peonada não respeita.
― É mesmo? Alguém aqui na minha fazenda não me respeita? Me diz aí, Bronson, tem alguém me chamando de bichona?
O pistoleiro apertou os olhos ao notar que o novo dono da antiga Coração de Ouro, arrematada em leilão por Thales Dolejal havia dois anos e que agora se chamava Fazenda Quatro Princesas, estava se divertindo à sua custa. Franco se tornara um homem de 25 anos, administrava uma propriedade com as dimensões e o poderio econômico da Arco Verde, chefiava um batalhão de funcionários, lidava com engenheiros, agrônomos, representantes comerciais, gerentes de banco e até mesmo com políticos ― aliado que era do prefeito apoiado pelo seu pai; entretanto, a parte de latifundiário sério contrastava com seu estilo de jovem irreverente.
― Está ficando uma belezura, não acha? Ainda falta a sombrinha. ― disse todo orgulhoso, pondo-se de pé para avaliar melhor a montagem da bicicleta da filha mais velha.
― A Paola prefere andar a cavalo.
― É, eu sei, influência da madrinha dela, mas já está na hora de ter o seu próprio veículo. Aro 12, rodinhas e cestinha. Coisa linda, né? ― brincou.
― E esse penteado aí, Franco? Quando vai cortar esse cabelo? ― Bronson insistiu, sabendo que o garoto pouco se importava com opinião alheia.
Franco até ia responder que o estilo do cabelo fora ideia de Nova, após assistir a Lendas da Paixão. Porém, estava com preguiça de explicar a Bronson o motivo de um filme servir de inspiração para o seu novo visual. E, além da preguiça, ele acabava de ver a filha de três anos tentando se livrar do vestido de algodão, levantando-o para acima da cabeça sem a mínima paciência, expondo a calcinha de renda com babados e as botinhas de vaqueira. Ela estava realmente irritada, as mãozinhas puxavam o tecido pela barra de modo a quase arrebentá-lo enquanto era possível ouvir de longe um rosnado exasperado.
Bronson se voltou para acompanhar o olhar carinhoso e divertido de Franco, assimilando rapidamente que a pequena Dolejal, inimiga das roupas, tentava se livrar de uma prisão sem sucesso.
Quando Paola começou a chorar histericamente ― e isso acontecia quando a loirinha de cabelos lisos até os ombros se encontrava no limite da sua frustração, o pai achou por bem interferir antes que a roupa levasse a pior.
Foi até a filha com a mesma calma que usava ao se aproximar de um cavalo xucro. Paola Monteiro Dolejal, segundo sua própria mãe, poderia ser considerada como a encarnação de Karen Lisboa, se a última não estivesse viva.
― Ai, ai, ai, que vestido atrapalhado! Deixa que o pai ajuda, ok?
Ele se ajoelhou diante dela e deu um beijo barulhento na barriguinha branca e saliente. A garota tinha a estrutura física de alguém que, no futuro, seria alta e encorpada. Não fora sem razão a sua pequena mãe ter precisado de uma cesárea. Como Nova dizia com bom humor: “Muita filha para pouca mãe”.
O beijo não amansou a garotinha.
― Tira essa méda! ― ela mandou na sua voz infantil.
Bronson caiu na gargalhada. E Franco se voltou olhando-o com cara feia; em seguida, retirando o vestido da filha, falou num tom sério:
― O que a mamãe disse sobre falar palavrões, hein?
Paola tentava olhar para além do pai, por cima de seus ombros, equilibrando-se na ponta dos pés.
― Hmm, ainda não ouvi a resposta.
Ela percebeu o tom incisivo e sorriu. Apesar da idade, tinha plena consciência do seu poder sobre o homem agachado à sua frente.
― Que é pra falá em voz báxa. ― cochichou de um jeito engraçado, como se tal afirmação fosse um segredo importante.
Franco se segurou para não rir. O modo como Nova educava era fascinante. No lugar de repreender, ela negociava. Sim, era impossível impedir que a filha ouvisse e repetisse os palavrões ditos pelos empregados da fazenda, pistoleiros e até mesmo pela madrinha desbocada. Além do mais, como poderiam mandar uma criança não falar o que ela mesma ouvia os outros falarem? Franco via nisso uma tremenda contradição. E Nova resolvera o problema.
Apertou suas bochechas com carinho e indicou com um meneio de cabeça a bicicleta montada no meio do jardim. O gramado verde e baixo, irrigado 24 h por dia, parecia um tapete felpudo. O resto da cidade ardia na seca, a aridez, a vegetação morta e as queimadas. Mas a paisagem das fazendas de grande porte era outra. O dinheiro não comprava o céu mas comprava a terra.
Admirou a filha correr até o seu presente, a primeira bicicleta. Ele sabia que vivenciava um momento único. A primeira filha e a sua primeira bicicleta. Sorriu feito um bobo quando a viu se sentar no banco e ensaiar as primeiras pedaladas sob o olhar atento de Bronson.
― Essas crianças já nascem sabendo andar de bicicleta e a mexer nessas máquinas de computador. ― constatou o pistoleiro do jeito que os das antigas faziam, um tom de lamento e rabugice incluídos na observação.
Franco assentiu sem deixar de sorrir com satisfação. Encaminhou-se até a garotinha que pedalava com calma, faceira, rindo alto. Manteve-se a postos caso ela precisasse dele.
― O que é uma bicicleta para quem anda a cavalo! ― havia um tom genuíno de admiração na voz do velho pistoleiro.
― É verdade, essa doidinha é gamadona no Prefontaine. ― e, virando-se para a filha, que era ladeada com cautela pelo pai, perguntou com interesse: ― Gostou da bicicleta, princesinha?
Pedalando agora com mais confiança, ela respondeu após apertar a buzina:
― Mais que muito. ― disse, sorrindo.
Paola era feliz, o espelho da família na qual vivia. Repetia o que ouvia dos outros, nem sempre eram palavrões. “Mais que muito” era o que Nova respondia quando Franco perguntava agarrado nela: “Me ama muito, princesa?”
Agora ele ajeitava o chapéu caminhando próximo à bicicleta da filha, preparado para ampará-la caso fosse preciso, era a primeira vez que ela testava as rodinhas sobre a grama. Pousou seus olhos na figura pequena com as duas mãos firmes no guidão, a voz infantil esganiçada, tropeçando nas letras, ao exclamar com alegria:
― Vô mostrá pro Pongo, pai!
Franco riu e comentou:
― Sim, amanhã ele vem almoçar aqui e você mostra pro Pongo, ok?
― Di verdadi? ― ela perguntou, sem se virar para trás, pedalando até alcançar a cerca que, sempre fechada, dividia o gramado da piscina.
― Ô se é verdade, todo domingo você vê o seu tio, e amanhã o churrasco vai ser aqui em casa. ― disse ele, achando graça do jeitinho dela e, voltando-se para Bronson, completou no mesmo tom: ― Não é meio estranho que a sobrinha saiba andar de bicicleta antes do tio?
O velho descansou o olhar gentil sobre a menina e disse ao pai dela:
― O Pongo é um tio que não tem nem dois anos de idade. ― afirmou, rindo-se; em seguida, o sorriso murchou e ele continuou de um modo menos alegre: ― Pra falar a verdade, nem sei mais o que é e não é estranho.
― O que foi, Bronson?
Ele deu de ombros antes de responder
― Tudo está mudando com muita rapidez, não gosto disso.
― Como assim? ― indagou Franco, interessado.
― Sei lá, você é um fazendeiro importante, tem até agenda de compromissos e só falta o escritório no centro da cidade para ficar igualzinho ao patrão. Parece mesmo que o pistoleiro se aposentou, o diabo loiro recebeu a graça divina e virou um anjo que cuida dos seus anjinhos... Gosto assim, como a Paola fala, “de verdade”, só que daqui a pouco, me diz, pra quê EU vou servir? A pobre da Lúcia não vai me aguentar caquético e resmungão.
― O Charles Bronson gringo jamais falaria assim. É por que a Karen é a chefe de todo mundo agora?
O pistoleiro levou a mão ao chapéu como se tivesse se assustado com algo e temesse perdê-lo da cabeça, amassou a grama com a sola da bota e falou meio que num resmungo:
― Epa, epa!, ela não é chefe de todo mundo, não; ela é a chefona da segurança das duas fazendas, a Arco Verde e a sua, Franco. Pode até mandar em todos os pistoleiros, mas ainda sou eu o braço direito do seu pai, viu? Isso francamente não me aborrece.
Franco estreitou os olhos avaliando o homem à sua frente, havia um rastro de divertimento no tom de voz que usou ao considerar:
― Não mesmo? Sabe que o pai confia em você da mesma forma que confia na Karen. Por acaso não baixou uma TPM aí, meu velho?
― Sei lá, sinto falta de ação, a coisa está calma demais. Parece até aquelas calmarias que vem antes de um puta temporal. Acho que é isso que me aborrece.
― Sabe por que essa tranquilidade toda? Vou te dizer, é porque a gente cuida direito do nosso povo e os nossos inimigos dormem o sono eterno debaixo da terra. ― afirmou, sério.
― Pode ser, Franco. Afinal, até o coronel Rodrigues parou de implicar com o pessoal do chefe Aturi.
― Ele não é um sujeito burro. Temos a prefeitura, a polícia e o povo do nosso lado. O coronel bunda mole não tem as mínimas condições de bater de frente com os Dolejal e acabar se fodendo como o outro coronel, o falecido.
Franco parou de caminhar ao lado da bicicleta da filha e deixou que ela seguisse sozinha o seu caminho. Ele não tinha a mesma preocupação que Bronson, havia um bom tempo que simplesmente não mais se preocupava. A última vez fora onze meses atrás, quando Nova foi para a maternidade dar a luz às gêmeas.
E foi ela quem apareceu, saindo do avarandado logo após a porta que levava à cozinha, vestida num short jeans e na regata cor-de-rosa, o cabelo sempre mantido curto e os pés arrastando a rasteirinha, no tornozelo esquerdo a pulseira que tantas vezes atrapalhava a sua boca ao beijá-la nos pés.
― O que vocês dois estão aprontando, hein? ― ela perguntou com um sorrisinho travesso.
Franco não se cansava de admirá-la, de encontrar nela, sorriso, olhar, voz, em tudo, a beleza que o encantava e que sempre, ainda após os anos de casamento, o levavam a esquecer-se de respirar por alguns segundos. E, depois das duas gestações, ela estava mais bela, radiante, madura e se tornando de fato a sua “dona”.
Ele sorriu de canto, um lado apenas dos lábios encurvou-se, acentuando uma das covinhas, um sentimento morno encharcou-o por dentro como aqueles banhos cheios de vapor que quase elevam o corpo centímetros do chão. Estendeu-lhe a mão e puxou-a para o abraço apertado. Ela gemeu e ele a soltou meio se rindo:
― Quebrei alguma costela, princesa?
Ela fez uma cara engraçada, esfregando a parte superior do braço e respondeu numa falsa censura:
― Não, mas podia, tem de aprender a controlar a sua força, caubói.
― Mas abraço de urso não é assim? ― indagou, se divertindo após receber um tapa no ombro.
Bronson balançou a cabeça e se meteu na conversa:
― Um urso não deve abraçar uma coelhinha.
Nova riu da comparação.
― Ai, que lindo, então eu sou uma coelhinha. Que meigo, Bronson!
― É, dona Nova, a senhora tem o tamanho de uma coelhinha, a inteligência de uma raposa e o gênio de uma leoa...com todo respeito, viu! ― completou meio sem jeito, tirando o chapéu e levando-o ao peito como uma breve reverência.
Bem, ela já apontara uma Glock na sua cara e mantivera o marido preso em casa, amarrado na cama... e isso era pouco: a mulher pequena, de fala mansa e palavras cortantes, aposentara o diabo loiro e, com isso, afrontara diretamente o pai da entidade, Thales Dolejal.
No final das contas, Bronson, observando as personalidades do famoso trio de amigas, denominado pelo delegado como As Mosqueteiras Tresloucadas, a que se parecia mais perigosa e a única que andava armada pela cidade era a menos beligerante. Afinal, Rodrigo Malverde continuava sendo quem era, o que não acontecia com Franco e o patrão.
Franco desatou a rir, chegando a dar dois passos para trás e dobrando o corpo.
― Obrigada?! ― Nova fitou Bronson e sorriu sem graça.
― É um elogio, sim, dona Nova, não tenha dúvida disso. O patrãozinho precisava de uma mulher assim como a senhora, pequena por fora e grande por dentro.
Nova gostou do que ouviu, ficou na ponta dos pés e deu um beijo na bochecha do pistoleiro. Bronson sentiu as bochechas queimarem, falou qualquer coisa e caiu fora.
― Era um elogio, viu, ô moleque? ― ela disse, puxando-o pelas fraldas da camisa e o abraçando.
― Claro que era um elogio, só que o Bronson resumiu a sua personalidade usando a bicharada certa. Incrível, né?
― Melhor que você, que já me chamou de égua bipolar.
Ele parou de rir e apertou a boca, lembrando-se da mancada pouco antes de se conhecerem de verdade, antes de tudo, do beijo no rio, da noite no hotel, da vida de ambos mudar.
― Eu era um babaca, não leve em consideração. ― disse, sério.
― Pelo amor de Deus, Franco, estou brincando também. ― ela afirmou, beijando a dobra do pescoço dele; em seguida, indicou com a cabeça a menina na bicicleta: ― Ela está indo muito bem, hein!
― Sim, claro, mas não duvido que após o primeiro tombo uma bicicleta não voe pelos ares....
― É, a nossa primogênita tem o gênio da madrinha. O que fiz para merecer isso? ― indagou num tom divertido.
― O pai disse que a Paola será a sucessora dele, que ela é a mulher que dominará Matarana. ― falou de um jeito jocoso.
― É mesmo? Sei que você não se interessa por esse lance de poder, mas ele tem outro filho, devia era planejar a vida do Theo, e não a da neta.
― Ah, princesa, o meu pai planeja a vida até da caturrita do Chicão, deixa ele, é um tipo de hobby, sabe? Além disso, acha mesmo que a Paola vai aceitar que alguém mande nela... Convenhamos Nova, nem você consegue. ― completou com um sorriso cúmplice.
― Consigo, sim, ora bolas! ― exclamou, afastando-se dele e, pondo as mãos na cintura, determinou a filha: ― Vamos entrar e comer uma fruta! Você está só com um copo de achocolatado na barriga e nós vamos ao mercado daqui a pouco. Vem, Paola!
A garota continuou a pedalar para mais longe ainda dos pais e, sem se voltar, gritou por cima do ombro:
― Agoia não, tô cupada!
Franco levou a mão à boca para esconder a risada. Sabia o quanto Nova se irritava quando ele ria das travessuras da filha. Impondo-se um ar sério, comentou:
― O que é cupada? Ela está se sentindo “culpada”?
Nova o olhou feio:
― Não se faça de bobo, ela disse que está “ocupada”, a malandrinha. ― voltou-se para a filha e começou a se encaminhar até ela, que, percebendo a atitude da mãe, acelerou o ritmo das pedaladas: ― Muito bem, então fica pedalando sozinha, que eu e suas irmãs vamos pegar o Pongo antes de irmos às compras. Tchau, filhota!
Ela deu às costas à filha e piscou o olho para o marido.
Franco viu uma garotinha jogar longe a bicicleta e quase se atrapalhar com as próprias pernas ao correr em direção à mãe.
Esbaforida, perguntou:
― Pongo vai, mãe?
― Sim, meu anjo. Agora, corre lá para cozinha que a Irene vai preparar um lanchinho pra você. ― disse com carinho.
Ao se virar para falar com Franco, encontrou-o já olhando para ela, sorriu e comentou:
― Falei com a Val há pouco, ela e o Theo vão comigo fazer as compras para o churrasco de amanhã.
― Não quer que eu leve vocês? Precisam de um macho para carregar as sacolas.
― Vamos empurrar o carrinho até a picape, amor lindo, o macho pode ficar e descansar um pouco, essa semana foi puxada pra você.
Ele suspirou e revirou os olhos ao mesmo tempo:
― Aguentar a Karen nos meus ouvidos foi a pior parte. Ela não aceita que os pistoleiros da Quatro Princesas não portem armas...
― Eu sei, mas falou pra ela que é inadmissível que num lugar onde há crianças haver também gente armada?
― Você tem toda a razão, Nova, já gastei saliva repetindo isso, mas a danada não aceita.
― Claro que não, é responsabilidade dela garantir a nossa segurança, entendo isso. O problema da Karen é que ela não é nem um pouco flexível. Não vou mudar de ideia, Franco, as coisas estão em paz há bastante tempo e não vejo necessidade alguma de expor nossas filhas a espingardas e automáticas. Nem sei o que faria se acontecesse um acidente desses com elas, um tiro, um tiro numa criaturinha do tamanho delas é o suficiente para matar.
― Não fala isso, Nova, ninguém vai usar arma aqui.
― Nem você.
― Só tenho o canivete na bota, e ele ninguém pega.
― Se a Karen passar dos limites, eu mesma falo com ela. ― declarou determinada.
Franco não estranhou a atitude da esposa. Desde que as meninas nasceram, ela havia se transformado, como Bronson afirmara, numa leoa.
― Deixa que eu resolvo.
Ela o fitou com um olhar que não deixava brechas para refutações:
― Então, resolve. Mas do meu jeito, Franco.
Coube a ele a resposta que já lhe saía naturalmente dos lábios:
― Sim, Nova, do seu jeito.
Thales guiou Nero pela estradinha de terra, por entre o mato baixo, que serpenteava até o rio. Era uma suave descida criada pela própria natureza numa das erosões que o solo sofrera na estação das chuvas. O cuidado, entretanto, se justificava uma vez que o cavalo poderia deslizar os cascos e se machucar, além de derrubá-lo da montaria. Mas valia a pena visitar aquele lugar na Arco Verde, cercado pelo bosque fechado e o Rio Verde, distante poucos quilômetros do casarão.
Apeou, pisando as botas sobre a sua terra morna debaixo do sol e úmida próxima à margem do rio. O mormaço de julho irrompia também do solo queimado sucessivas vezes. Ainda não se completara a metade do dia, a chuva de cinzas desceria mais tarde, quando por alguns minutos o dia se encontrava com a noite num beijo rápido de despedida, numa carícia chamada entardecer.
Ele se abaixou perto do rio, tirou o chapéu e, com as mãos em concha, lavou o rosto e o pescoço. Tirou do bolso do jeans a carteira de cigarros e se acomodou sobre a grama verde, sentando com displicência, os antebraços apoiados nos joelhos dobrados. O vento morno secava a água na sua pele, gotículas que insistiam em deslizar pelas têmporas. Olhando ao redor, viu a planície seca para depois do rio, na margem oposta, onde também eram suas as terras. Como agora quase tudo era seu, o seu reino; Matarana, a sua paixão.
Anos atrás, Thales cavalgava para cansar o corpo cuja vontade era a de ter Karen de volta e qualquer outra possibilidade desprezada. E embora não se julgasse um fraco que recorresse ao álcool para aniquilar a dor da perda e frustração, depois de cavalgar até quase a exaustão física, ele bebia, muito, uísque e vingança, o ácido corrosivo da vingança.
Tragou o cigarro e ouviu o barulho dos cascos de outro cavalo se achegar.
O prazer da vingança, doce como o melhor dos licores. Sorriu. Era um dia bonito aquele, considerou, à espera de sua companhia, sua companheira nas cavalgadas aos sábados pela manhã. Havia três anos que ele trocara as manhãs de sábado no escritório do centro pelos passeios a cavalo. Por pura vingança, por ter tentado se vingar de Rodrigo e casado com sua irmã. Vingara-se ainda mais tendo um filho com ela. E, antes disso, a levara a Paris na lua de mel e vira os seus olhos verdes se iluminarem de felicidade. Acompanhara todas as suas consultas durante a gravidez, pois fazia parte da vingança ser o seu suporte também na hora do parto, ao lado dela, entrelaçando os dedos, esperando o bebê ser retirado de sua barriga. Vingado sentia-se após o nascimento do seu filho com Valéria ao voltar para casa todos os dias antes do jantar, uma hora antes, pois, atrasando-se, deixava de jantar com o filho, que dormia cedo. Por causa da decisão de se vingar, nunca mais viajara para fora do centro-oeste, todas as noites dormia em casa, comprara a parte de Karen na confeitaria e amarrara uma mordaça na boca do monstro que dormia dentro dele.
Valéria conduziu o cavalo pelo caminho íngreme de terra e grama baixa, sorriu ao ver o marido se levantar calmamente de onde estava para se postar ao seu lado. Aceitou de bom grado os braços que se estenderam para ajudá-la a desmontar e aproveitou a proximidade para abraçá-lo, descansando a cabeça no tórax dele. Thales não era um homem de afagos, aceitava-os com certa indulgência, não se afastava, deixava-se ser acarinhado, mas também não fazia questão de retribuir o gesto. Andar de mãos dadas e beijar as dobras dos seus dedos era todo o seu arsenal de carinhos físicos que demonstrava publicamente.
Ela entendia aquela contenção de gestos como o mesmo mecanismo que barrava suas explosões emocionais — que nunca aconteciam, era uma maneira de ele se manter no controle do relacionamento, soltar as rédeas levemente, conduzindo o cotidiano de ambos de forma a não provocar fissuras inabaláveis. Era visível que ele preservava a sua paz de espírito, conquistada após aceitar o fim da relação com Karen.
Sentaram-se à beira do rio, e ela sentiu no rosto o ventinho morno. Voltou-se para o homem de chapéu de vaqueiro que a fitava com um esboço de sorriso. Ele era lindo e dedicado; o que mais poderia querer? E por mais que fosse contido em suas demonstrações de afeto a ela, aos filhos isso não acontecia. Era afável e protetor com o mais velho, Franco, e com Theo, o bebê de um ano e meio. Adotara inclusive Sabrina, numa disputa interessante e, como não dizer, engraçada, com Rodrigo. Afinal, o último tentava também ser o pai de Franco, nada mais natural que Thales apossar-se do papel paterno da sobrinha do delegado.
— Queria saber uma coisinha de você...
Thales enfim sorriu amplamente e as sobrancelhas formaram um arco que expressava um misto de ironia e diversão.
— Não combinamos que fuxico demais detona a relação?
Ela balançou a cabeça assentindo e disposta a prosseguir no assunto:
— Por acaso, é importante para você ou para os seus negócios que eu continue a participar das reuniões com as outras mulheres dos fazendeiros da região?
Ele a olhou longamente, avaliando o teor da pergunta feita numa voz doce e quase juvenil. Aquela ruiva que voltara a usar o cabelo vermelho natural, num corte Chanel à base da nuca, um penteado sofisticado, ainda era a pessoa simples e caseira que ele conhecera. E quando ela falava naquele tom delicado, para quem não a conhecesse de fato, pensaria que era um tom de doce submissão, meiguice até, mas Thales sabia que a ternura de Valéria era feita de um material que lembrava o mesmo usado pelos rebeldes contra o sistema imposto.
— Vá direto ao ponto. — disse, simplesmente.
Ele pensava seriamente em viver o resto de sua vida com aquela mulher. Ela era carinhosa e obediente. Contudo, às vezes, tentava inverter os papéis e comandar a relação, talvez gostasse de sonhar com o impossível, e era nessas vezes que ele tinha de pô-la em seu devido lugar.
Valéria tentou manter o sorriso diante do olhar desconfiado dele.
— É que não me sinto bem no meio daquelas mulheres, não me enquadro. Parece que elas estão sempre me avaliando, tentando entender como fui parar no meio delas, no mundo delas. Também não gosto desses desfiles de moda. Desfile mesmo, sabe? Uma moça de São Paulo traz roupas de butiques famosas e faz umas meninas gigantescas desfilarem para elas, e é assim que escolhem suas roupas. Nunca vi isso, nem em filme. Uma roupa mais cara que a outra, um absurdo.
Thales riu.
— E onde estão as suas compras?
— Imagina se eu vou pagar três mil reais por um vestido!
— É por isso que elas não conseguem entender a sua presença nessas reuniões. — considerou ele como um pai ensinando a filha; depois, continuou, agora, de um jeito displicente: — Compre uma coleção inteira, minha querida, e mande entregar na nossa casa. Mostre a elas que você sabe quem é, senhora Dolejal. Acho que já está na hora do seu lado Malverde sair de cena, não é mesmo?
Ela não gostou de ouvir aquele comentário.
— Até mesmo na riqueza tem de se ter bom senso.
— Não estamos falando sobre bom senso, e sim sobre você se impor diante dessas vacas, entendeu? — considerou calmamente, sem dispensar a fina ironia e continuou, a seguir, num tom mais determinado: — Você é casada com o homem que pode foder com a vida de qualquer um dos maridinhos delas e, ainda assim, se sente por baixo? Quero que se imponha de acordo com sua nova posição social e principalmente porque é minha mulher.
— Não quero me misturar com essa gente, Thales, não dá...
— Então não se misture.
— Posso?
— Pode fazer o que quiser, Valéria.
Ela baixou os olhos para as mãos e murmurou:
— Elas até fumam maconha.
Ouviu uma sonora gargalhada ao seu lado e, depois, um braço enganchou-se detrás do seu pescoço e foi beijada na boca pelo marido. Entre os seus lábios, ele perguntou num tom jocoso:
— Gostou de fumar maconha?
— Claro que não fumei, só fiquei pensando no meu irmão e no que ele diria se me visse no meio das maconheiras da alta roda. — resmungou.
Thales afastou-se centímetros e a fitou como se pretendesse provocá-la:
— Não fumou mesmo?
— Para, Thales! — exclamou, fingindo-se de ofendida. — Elas perguntaram se eu queria “relaxar”, aham, sei. Aí pensei que fossem me oferecer um chá de camomila ou um suco de maracujá... Que nada! E depois falam que os viciados estão na Vila Zumbi. Gente rica que usa drogas também é criminosa.
— E assim falou a irmã do delegado. — ele debochou.
Antes que ela tentasse responder à altura, ele a deitou contra a grama.
— Que tal trepar à beira do rio?
Valéria não esperava pela pergunta e ainda não se acostumara com a personalidade imprevisível do marido. Sorriu nervosa e perguntou com o coração aos pulos:
— Podemos ser vistos pelos seguranças?
Ele olhou ao redor rapidamente e se voltou para ela sorrindo:
— Sim.
— Ai, bem... tenho um pouco de vergonha, mas se você quer...
— Você quer, Valéria? — enfatizou.
— Sim, mas não levanta muito o meu vestido, ok?
— Acha mesmo que quero mostrar o seu corpo aos meus funcionários?
— Espero que não. — respondeu meio sem graça.
— Não sou exibicionista, minha cara, só estava testando a sua sem-vergonhice.
— Está brincando comigo?
Ele a olhou de um jeito engraçado e perguntou franzindo o cenho:
— Decepcionada?
— Você sabe que eu topo qualquer coisa, sempre estou preparada para qualquer aventura, só não quero cair na boca do povo.
O olhar que lhe endereçou era quente e cheio de más intenções.
— Realmente não tenho queixas a seu respeito, você é uma legítima depravada na cama, não é mesmo, minha ruivinha?
Ela não sentiu o rosto queimar ou qualquer outra sensação que expressasse vergonha ou constrangimento. Com o passar dos anos, fosse a maturidade ou a convivência com um homem autoconfiante como ele, Valéria transformara-se em outra mulher, mais aberta, suave e segura sexualmente. A cama com Thales era um mundo à parte e tê-lo para si pelas horas que fossem, se estendendo até o lanche da madrugada na cozinha e o amanhecer juntos, reafirmava o sentido de sua própria existência, que era amá-lo e amar o filho deles, a extensão de Thales.
Talvez ele tivesse percebido o fulgor no verde dos seus olhos; talvez, não. No entanto, a expressão de seu rosto tornou-se circunspecta e expectante, observando enquanto ela levava a mão até a parte frontal do jeans dele, sem sutileza alguma, explicitando a decisão de amá-lo diante dos pistoleiros da Arco Verde.
— Quero você. — ela murmurou num gemido rouco.
Ele desceu a cabeça e chupou o lábio inferior dela, mantendo-o por alguns segundos entre os seus dentes. Depois, esfregou o maxilar no pescoço da mulher, arranhando ligeiramente a pele sensível.
— Vamos voltar para casa então. — determinou, fitando-a com intensidade. — Sei que está louca de tesão, mas a conheço o suficiente para saber que não relaxará se perceber que é observada.
Tinha de dar o braço a torcer, ele estava certo, considerou.
— Além do mais, Valéria, a reclusão é o melhor ambiente para o ato de amor, longe dos olhos da rua. — afirmou, piscando o olho com charme.
O coração bateu forte na sua garganta e ela quase parou de respirar. Três anos de casamento e nenhuma declaração de amor. Jamais ouvira um “eu amo você” e tampouco forçara a barra nesse sentido. Assim, quando ele mencionava a palavra “amor”, ela ficava bem atenta.
Ele a amava? Ele ainda amava Karen?
— Sim, Thales. — ela assentiu com um sorrisinho travesso.
— Será gratificada em dobro por ter concordado comigo. — ele disse com espirituosidade. — Só não podemos acordar o Theo, — e completou de um jeito divertido: — portanto, terei de amordaçá-la para que não grite.
Fitou-o longamente, e ele deixou-se ser observado, admirado, analisado. Aceitou o olhar dela devolvendo outro, cheio de luxúria e interesse. Aproveitando o bom humor dele, ela fez o que havia jurado jamais fazer, perguntou de forma direta e precisa:
— Você me ama?
Assim que a pergunta saiu de seus lábios, Valéria arrependeu-se de tê-la feito. Mas era tarde demais, Thales tinha bons ouvidos. E um par de olhos que fulminavam de azul o seu adversário.
Pensou que ele fosse se afastar, levantar da grama e pular para cima do cavalo.
— O que você acha?
Mas ele ficou bem ali, deitado de lado, fitando-a sem piscar, consciente de que aquele momento era fundamental para ela.
— Prefiro não arriscar qualquer palpite. — hesitou.
— É mesmo?
— É, não estou dentro de sua cabeça para saber. Mas isso não importa, não precisa responder, temos um filho lindo e somos felizes. Você é feliz, não é?
— Sim, agora também faço parte do grupinho dos bem nutridos e alegrinhos. Satisfeita?
Ele parecia irritado.
— Satisfeita plenamente, embora não entenda essa sua incipiente irritação.
— Não estou irritado. — ele se pôs de pé e estendeu-lhe a mão: — Vamos?
Ela aceitou a mão e a resposta. Havia desistido de cutucá-lo nas entranhas de sua alma e acabar encontrando o que temia descobrir. Ele falava a verdade na cara, sem poupar ninguém, e ela não estava preparada para ouvir o que não queria ouvir.
Na verdade, ele já lhe havia respondido. Bastava um “sim” para destruir a força daquele silêncio, da falta daquela resposta, do não dito que gritava para ela o “não”.
Cavalgaram lado a lado numa quietude que combinava com a placidez da manhã no campo, aspirando o cheiro da relva aquecida pelo sol.
O trote dos cavalos, manso e cadenciado, era a deixa para ela se aproximar novamente dele.
— A Nova vai passar lá em casa logo mais para irmos ao supermercado. Espero que o Theo já tenha acordado, ele ainda tem de tomar banho. — considerou, agradecendo a si mesma por ter aceitado a contratação de uma babá assim que ele nascera.
— Vocês duas têm funcionárias para fazer as compras.
— E também temos braços e pernas, meu amor. — disse de um jeito engraçado.
Ele riu baixinho e indagou:
— O Franco vai levá-las?
Ela se voltou para tentar compreender o tom de falsa naturalidade. Sim, ele estava sondando-a.
— Não, mas a Irene também irá para poder ajudar a Nova com as gêmeas. E eu, bem, terei o auxílio da Paola, ela é apaixonada pelo Theo e não desgrudará um minuto sequer dele. — comentou, satisfeita.
Paola era apaixonada por Theo. E o apelido criado pela filha mais velha de Nova para o seu próprio tio, Pongo, fora em função de ter sido a única palavra pronunciada por ele até o momento. E nem fora “Pongo” e sim “Pôgo”, modificada sutilmente por Paola Monteiro Dolejal ou, como era mais conhecida pela cidade, a “loirinha do Franco”.
Ouviu quando Thales determinou numa voz quase neutra que elas sairiam da Arco Verde com escolta. Era desta forma que ela tinha certeza de que ele estava irritado.
Quando parava de falar ou economizava nas palavras, significava tão-somente que algo ou alguém o desagradara.
— Tudo bem, mas o Franco não viu necessidade de uma escolta. — ela disse como quem não queria nada.
— E isso significa exatamente o quê, Valéria?
— O que você acha, Thales?
Ele olhou em sua direção ao perceber a ironia na voz:
— É muito interessante vê-la mostrar as garras, ainda mais quando não estão afiadas. — sustentou o seu olhar sem mexer músculo algum da face — O que acho é bem simples de se entender, o Franco é o Franco e eu sou eu.
Ela meio que sorriu, sentiu-se inspirada para rebater:
—Ah, claro, esse argumento poderia ser considerado inteligente se estivesse falando com sua neta de três anos.
— Bom, o que posso fazer se não percebeu que considerei o seu comportamento imaturo e por isso lhe dei a devida consideração?
— Sinceramente não sei por que está irritado comigo. O que foi que fiz? Estava tudo bem até... até... — ela parou, mordendo o lábio inferior, incerta.
— Quer que eu complete a frase?
— Quero, sim. — disse, petulante.
— Até você pôr os pés pelas mãos. — afirmou com bastante serenidade.
Por essa ela não esperava.
Apertou firme as rédeas e conteve o animal. Precisava de um tempo para se recompor antes de encontrar o filho, não queria passar para ele a frustração que sentia.
O outro cavalo emparelhou junto ao seu, e o homem que o montava se aproximou mantendo uma distância segura entre os animais.
— Sei o que você quer. Para me tornar o marido perfeito terei de entoar as três palavrinhas mágicas, não é mesmo?, nem que depois de dizer que a amo, eu meta a mão na sua cara como alguns camaradas galantes costumam fazer. — declarou com seriedade e prosseguiu: — Você faz parte do grupo de mulheres que precisa ouvir qualquer merda adocicada para se sentir amada e menos carente e insegura, o tipo de mulher que precisa de elementos externos para a sua autoafirmação. Então se um cara diz que a ama ou simplesmente cospe qualquer coisa nesse sentido, como aquelas frases malucas...aquelas que vocês, mulheres, tanto amam...como são mesmo? Ah, sim, algo como “minha vida só tem sentido com você” ou “você é o ar que eu respiro”... e tem outra que é fantástica: “eu a amo mais do que a mim mesmo”. — ele riu um riso áspero e malévolo e concluiu, sem deixar de fitá-la com dureza: — Mulheres como você pedem, imploram para se tornarem vítimas de estelionatários, psicopatas ou apenas mentirosos oportunistas, porque essa necessidade estúpida de ouvir palavras floridas não pode ser mais importante do que os gestos concretos do cotidiano e se você, querida esposa, não é capaz de se sentir amada é porque deve rever o seu conceito de amor. — ele fechou a boca como se contivesse o disparo de uma munição com maior poder de fogo e os ossos dos maxilares se projetaram contra a pele.
Ouviu-o suspirar pesadamente para depois falar num tom menos severo:
— Mudei muita coisa na minha vida por você.
Ela se voltou para ele e tinha lágrimas nos olhos.
— Sei que sim, me perdoa por incomodá-lo.
— Acha que casei por dinheiro? — indagou com escárnio.
— Casou para encher a sua casa, se livrar da solidão e...
— É, você acredita mesmo em tudo que eu falo. — comentou com um sorrisinho — Bem, você disse que é feliz, não é mesmo?
Encarou os olhos azuis que raiavam uma luz de divertimento.
— Sim, sou muito feliz. — respondeu com um sorriso que recebia um fio de água escorrida dos seus olhos.
— Então, Valéria, como pode ser feliz se não é amada por mim?
Ele sorria com charme e expressava no olhar uma terna interrogação.
— Talvez porque eu o ame por nós dois. Sou tão apaixonada por você que acabo me sentindo completa. — ela fungou e o seu peito estremeceu. — Olha, Thales, não estou reclamando de nada, não, viu?
— Vê se presta atenção ao seu redor, mulher. — censurou-a brandamente: — Você é feliz porque se sente amada. Agora se pensa que ouvirá de mim essas baboseiras românticas, sinto muito, mas terá de se contentar em apenas ser feliz ao meu lado.
Ele estendeu a mão e pegou uma mecha do cabelo dela; depois, piscou o olho e conduziu Nero pelo campo aberto. Esperava ser seguido por ela, nem olhou para trás, ainda sorria ao imaginá-la naquele exato momento também sorrindo.
Valéria indicou o caminho à frente para o seu cavalo, lembrando-se nitidamente da cena que assistira na própria fazenda onde agora morava: Thales dizendo as três palavrinhas mágicas a Karen. Em alto e bom som, ele declarara o seu amor, a sua dita “baboseira romântica” e fora a cunhada, e não ela, a sua esposa, que ouvira o “eu amo você”.
Rodrigo Malverde estava sem chapéu. Sentado, uma perna dobrada sobre a outra, mascando discretamente o chiclé de hortelã agora sem sabor algum, diante da mesa que o separava de uma terapeuta de casais. Havia seis meses que começara a frequentar o consultório da doutora Catarina Leone Bertollo, e era a sétima ou oitava vez que Karen se atrasava e contando com suas dez faltas, em um conjunto de uma sessão por semana, ela até que estava se esforçando.
Agora o delegado esperava que sua namorada chegasse antes de terminar os cinquenta minutos de sessão. A situação só não era mais constrangedora porque a psicóloga — que chegara havia dois anos com o marido, um engenheiro italiano dono da empreiteira contratada para construir a ponte entre Matarana e Belo Quinto — sempre começava a sessão de psicoterapia com ele. Parecia até que era o próprio Rodrigo quem mais precisava de ajuda psicológica haja vista que para Karen tudo estava sempre indo muito bem.
Catarina era uma mulher bonita, na faixa dos quarenta, uma brasileira nascida no Rio Grande do Norte e criada no Ceará, onde conhecera Francesco Bertollo, vinte anos mais velho. E foi com um olhar clínico e um leve sorriso nos lábios que ela começou:
— Como se sente em relação ao fato de a Karen não estar aqui?
Ele devolveu o sorriso, cônscio que estava das implicações daquela pergunta. A bem da verdade, não se sentia à vontade ao ser revirado do avesso por uma estranha, o lance de abrir o coração e esparramar seus sentimentos pelo carpete não o animava. A ideia sempre fora a de estabelecer uma relação saudável com Karen, nem que para isso precisasse de intermediários da área da saúde mental. Às vezes se sentia estressado, exaurido emocionalmente, por conviver com uma fêmea alfa de pavio curto. Longe de suas intenções tentar domá-la, queria tão-somente mantê-la no seu campo de visão... e um pouco além.
Agora ele enfrentava uma terapeuta astuta e sua parceira de alfinetadas sarcásticas o abandonara outra vez. Optou por sorrir com charme, era melhor do que levantar, pôr o chapéu na cabeça e inventar um problemão qualquer na delegacia. Sorriu então e respondeu:
— “Sinto” que ela está ocupada e não pôde vir.
Ela devolveu o sorriso e o charme e foi direto ao ponto:
— Por que está na defensiva?
Antes que ele pudesse responder, a porta do consultório foi aberta pela morena que não tirou o chapéu depois de beijar o seu caubói e sentar ao seu lado, endereçando um sorriso encantador para a psicóloga.
— Perdi alguma coisa?
A terapeuta manteve o sorriso intacto, o mesmo que havia endereçado ao cliente ao perguntar sobre a intenção de proteger a namorada. Antes que ela retomasse a sessão, percebeu a ligeira inclinação de Rodrigo em direção a Karen antes de indagar com bastante interesse:
— Falou com o Franco sobre a cerca danificada?
Karen se voltou para Rodrigo com um restinho do sorriso endereçado à psicóloga, mas, agora, para ele, o sorriso mudava, era outro, assim como o tom ronronante que usou ao comentar:
— Hmmm, adoro o gosto de hortelã da sua boca, delegado. — ela tinha uma especial predileção por deixá-lo sem jeito e vê-lo corar e, para isso, bastava elogiá-lo ou falar qualquer coisa picante fora de hora, desse jeito, diante da mulher que os observava atentamente e anotava coisas.
Ele baixou a cabeça e sorriu, balançou o chapéu na mão e devolveu um olhar cheio de calor à espera da resposta para a questão da segurança da Quatro Princesas. Uma das cercas de arame da fazenda de Franco fora arrebentada e de acordo com a verificação de Bronson não fora por animal.
— E...? — ele insistiu, sabendo de antemão que a namorada não costumava falar sobre seu trabalho com ninguém.
— E é o seguinte, mandei meus homens averiguarem as cercanias, mas aquela fazenda é imensa, então, já viu, né? — falou com desânimo.
— Posso deslocar gente para auxiliar na busca.
— Primeiro, amor, auxiliar na busca por quem? Não tem como saber se houve algum tipo de invasão ou uma travessura qualquer da molecada que sai podre de bêbada das festas e quando volta para as suas fazendas apronta alguma.
— De qualquer forma, tem de ficar de prontidão, Karen. Tudo o que se relaciona aos Dolejal, normalmente, requer uma atenção maior. — aconselhou.
— É, eu sei, ainda mais que a dona Nova não deixa os pistoleiros andarem armados pela fazenda. — reclamou.
— Ela tem as suas razões.
— E eu as minhas, Rodrigo, isso atrapalha o meu trabalho.
— E o meu também.
O casal voltou-se para a terapeuta que ainda mantinha um sorriso gentil após tê-los sutilmente chamado a atenção.
Karen foi a primeira a tentar consertar a mancada, já que Rodrigo apenas esboçou um sorriso travesso.
— Caramba, doutora, a gente se empolga e esquece o resto do mundo.
— Já não é a primeira vez, mas foi bom mesmo isso ter acontecido novamente, digo, os dois começarem a conversar sem levar em conta a minha presença. — não havia tom de censura e sim um censo avaliativo e profissional: — Sinceramente, o que vocês fazem aqui? Não me entendam errado, minha função é auxiliá-los a desenvolver ao máximo a potencialidade do casal e não quero de forma alguma desmotivá-los a frequentar o meu consultório. O que vejo, na verdade, é que vocês estão perfeitamente sincronizados um com o outro, que ajam conflitos eventualmente isso é normal em qualquer relacionamento, mas não ao ponto de precisarem de terapia.
Karen quase deu um salto na cadeira de tamanha animação:
— Eu sempre disse isso pro Rodrigo, parece que a senhora tirou as palavras da minha boca!
— Calma, aí, Karen. — ele fez um gesto com a mão de modo a contê-la em seu entusiasmo: — A questão, doutora, é que talvez o problema não esteja relacionado à nossa relação como casal e sim à personalidade explosiva da moça aqui do meu lado.
— O que? Por acaso está insinuando que eu tenho problemas psicológicos?
— Não, não estou insinuando; estou é afirmando. Com todo o respeito, Karen, mas normal você não é. Essa raiva toda que sente já está se tornando incontrolável. — afirmou Rodrigo com bastante calma e segurança.
Karen bufou.
— Não vim aqui para ser insultada.
A terapeuta achou por bem interferir:
— Você encara como insulto uma observação sobre a sua personalidade?
A namorada do delegado piscou algumas vezes antes de responder, constrangida:
— É claro que não.
— Então escute o que o Rodrigo tem para falar.
— Eu sei muito bem o que ele tem para me falar, é sempre a mesma coisa, que tenho pavio curto, que sou descontrolada beirando a histeria... ah, e imatura. Só porque não sou calma que nem um octogenário sedado, como o delegado aqui do meu lado, não significa que eu não seja equilibrada emocionalmente. O meu equilíbrio é outro, não preciso falar baixo ou raciocinar friamente, me equilibro sobre arame farpado ou sobre brasas de carvão, é um tipo de autocontrole para quem vive em grandes altitudes, sabe? — afirmou em tom de desafio.
— Ou para quem não tem autocontrole nenhum. — concluiu Rodrigo e continuou sério: — Você tem porte de arma e lidera um bando de pistoleiros. Uma pessoa que anda armada não pode ter pavio curto, Karen. É preciso que controle a sua raiva, entendeu?
— Sei o que faço e nunca machuquei ninguém que não merecesse.
Um silêncio perturbador recaiu sobre eles.
Karen se sentia pressionada contra uma parede áspera, quem era para lhe ser o cúmplice mudara de lado. E a tal raiva a qual Rodrigo se referira começava a dar as suas caras, chacoalhando o sangue quente dentro das veias. Por outro lado, uma parte de seu cérebro captava a intenção do namorado e, de certa forma, era mais a intenção do amigo de longa data e esse amigo sempre lhe apontara o cerne de toda a sua danação: a raiva enrustida.
Quando um raio de sol deitou sobre a mesa de vidro da psicóloga, ela aproveitou para perguntar com suavidade:
— De onde vem tanta raiva, Karen?
Era uma voz meiga, uma voz parecida com outra, que ela não ouvia mais havia quase seis anos. Deu de ombros e respondeu baixinho, fitando as mãos cujos dedos eram estalados um a um:
— Sei lá, doutora.
— Quando era criança se sentia assim tão zangada?
— Não, me sentia um menino, mas não zangada.
— E na adolescência? Tinha raiva do mundo, dos seus pais? Se sentia deslocada ou deprimida, angustiada? Como foi a sua adolescência?
Karen sorriu com tristeza, a quentura do olhar de Rodrigo aderindo à pele do seu rosto.
— Casei aos 15 anos e, em seguida, engravidei. Acho que isso resume a minha “adolescência”.
— Me diz uma coisa, de tudo o que aconteceu na sua vida até agora, o que mais lhe causou ou causa raiva e por quê?
Ela se virou para Rodrigo com o semblante tomado por uma melancolia que ameaçava se transformar em lágrimas. O caso era que Karen também não queria revirar seus sentimentos como quando se revira gavetas para encontrar algo escondido lá no fundo.
— Vamos embora? — pediu, quase emendando um “por favor”.
Por mais que quisesse atendê-la, visto que a simples expressão de sua mágoa causava-lhe também extrema tristeza, ele sabia que a doutora Catarina alcançara o ponto inflamado e que, a partir dali, o espírito raivoso se libertaria dos grilhões para, enfim, encontrar a paz interior. Por isso respondeu numa voz serena e incisiva:
— O que lhe causa raiva é o que você não pode controlar, não é mesmo?
Ela baixou a cabeça e nesse gesto a denúncia de que ele estava no caminho certo.
A terapeuta recostou-se no encosto da cadeira e assentiu levemente com a cabeça para Rodrigo, permitindo-o que conduzisse a conversa.
— E o que não dá para controlar é a morte.
Karen mirou seus olhos nos olhos da psicóloga e afirmou numa voz abafada:
— Tenho raiva da morte, acredita? Raiva da separação, raiva dos meus pais e da Jasmine porque me deixaram para trás. Sinto um ódio tremendo de tudo o que está errado, de tudo o que é injusto. Não consigo estabelecer um meio termo, porque sei que nasci para perder. Vou perder quem mais gosto uma hora ou outra, então a raiva me protege do medo. Não sei falar como o Rodrigo, não estudei tanto quanto ele...mas ainda prefiro a minha raiva, que já é uma amiga e aliada, ao medo paralisante.
— Sente falta da Jas? — Rodrigo perguntou numa voz embargada, as lágrimas brilhando sem rolar pelo rosto.
— Ela era minha irmã, Rodrigo.
— Eu também a amava, e ela nos amava, isso nada e ninguém pode tirar de nós. O que aconteceu foi terrível, um acidente terrível, algo que não tínhamos como prever ou controlar. Destino ou seja lá o que for, Karen, não fomos nós que enchemos a cara de Martini e depois pisamos no acelerador até enfiar o carro numa árvore. Sim, eu também sinto muita raiva. As pessoas deveriam de fato ser responsáveis por quem cativam, não é mesmo? — falou, a ironia misturada à tristeza emprestava à sua fala a densidade apropriada, depois, concluiu num fiapo de voz: — Mas elas não o são.
— Eu também tinha bebido um pouco, a gente estava se divertindo à beira da piscina do condomínio, o dia estava quente e... — ela balançou a cabeça, vencida: — a Jasmine não quis cochilar na rede antes de voltar para casa, não quis. Mas eu também não a obriguei a ficar. Ela foi até o portão, se voltou e disse: “Você precisa conversar com ele.”
— Conversar sobre me deixar, eu sei, Karen. Agora, realmente, não me importa mais. Quero apenas que você entenda que não pode mais pular no pescoço dos outros ou se meter em brigas como um lutador de rua. Amor, você precisa de um pouco de paz, precisa dar a si mesma um pouco de paz.
Ela assentiu levemente, acatando as palavras carinhosas dele. Entretanto, sentia o olhar crítico e sério da terapeuta sobre si.
— Como era a sua relação com os seus pais?
Rodrigo franziu o cenho e se voltou para Karen, toda a atenção do mundo direcionada a ela.
Mal movendo os lábios, ela respondeu secamente:
— Meu pai me levava para passear e paquerava as mulheres na minha frente e, então, eu contava para a minha mãe e ela não acreditava. Meu pai, doutora, era um traidor mentiroso e a minha mãe, uma fraca iludida. Mais alguma coisa?
Rodrigo não sabia quanto à resposta da terapeuta, mas, para ele, não precisava saber mais nada. Enfim, alguém acessara o fundo da alma de Karen, o lugar onde estava escondida a raiva, pelo menos, dos homens.
Ele tinha de dar o seu melhor para curá-la.
Thales subiu a escadaria até o segundo andar de sua casa. No alto da escada, endereçou um último olhar à esposa que, parada à soleira da porta entre a sala e o corredor que a separava da cozinha, ainda o fitava de forma enigmática. Ele não gostava de quando aqueles olhos verdes escureciam-se ao ponto de esconder as emoções. A ideia inicial era a de chegar em casa e jogá-la na cama, mas as cozinheiras haviam posto o seu plano por terra, chamando-a para resolver qualquer coisa sobre o almoço. Ele ainda trazia consigo a incômoda sensação de que se declarara e, com isso, baixara perigosamente os seus escudos de proteção.
Foi ela quem desviou primeiro o olhar, a responsabilidade de dona de casa e matriarca da família Dolejal impondo-se aos desejos de mulher. A insegurança que sentia ao lado do marido que tanto amava a tornava ainda mais refém dele e das expectativas que ele tinha a respeito dela. Por outro lado, essa mesma insegurança potencializava a sua vontade de satisfazê-lo. Entregava-se às tarefas de anfitriã nos poucos jantares de negócios na fazenda, assim como organizava as atividades das arrumadeiras, cozinheiras e demais funcionários que trabalhavam na casa-sede. À tarde, administrava a Confeitaria Dolejal, agora, com dois andares, dispondo na cobertura de um jardim com mesas e cadeiras protegidas por guarda-sóis coloridos. Não havia mais concorrência; a confeitaria de Rita quebrara por não conseguir competir com a lealdade dos amigos, políticos, empresários e funcionários dos escritórios de Thales Dolejal. O plano de Karen dera certo com o auxílio de Thales, ainda que não tivesse sido seu objetivo. Valéria jamais perguntara são marido sobre suas intenções ao comprar a parte da sua sócia e ampliar o negócio, o tornando exclusivamente dela, de papel passado, o seu primeiro patrimônio. Quanto a Rita...Ela não precisava mais trabalhar, era bancada pelo coronel Rodrigues, após se separar de sua esposa de 20 anos de idade.
Valéria Malverde Dolejal tinha uma nova vida. Ela tinha de estar impecável, bem vestida e penteada para os eventos na prefeitura, na câmara de vereadores e em Brasília, ao lado do Homem que comprara Matarana. Mas não comprara o seu irmão delegado, considerou, entrando na cozinha com um leve sorriso nos lábios. Fazia-lhe um bem danado saber que, pelo menos, um Malverde não descansava na palma da mão de um Dolejal.
Thales parou à entrada do banheiro, na suíte do filho, cruzou os braços em frente ao corpo e observou-o na banheira, o cabelo fino e curto encharcado, os olhos atentos ao patinho de borracha que ora boiava, ora mergulhava conduzido pelas mãos da babá. Quando o bichinho desaparecia debaixo d’água, Theo arregalava os olhinhos numa tensa expectativa, antecipando o momento da emersão do brinquedo e, quando ele surgia num rápido impulso, o garotinho miúdo, de cabelos castanhos e enormes olhos verdes, estremecia o corpinho de susto e, em seguida, desandava a gargalhar até quase ficar vermelho.
O seu filho caçula tinha os traços faciais da mãe, um rosto delicado e meigo, um jeito de sorrir como se sempre estivesse com vergonha, um comportamento tímido e silencioso. Nascera de um parto tranquilo ao som de música clássica num hospital particular da capital e, no decorrer da gravidez de Valéria, Thales esteve presente e atento às necessidades dela. A calmaria dos novos tempos, em Matarana, os presenteou com momentos de leveza e paz, verdadeira paz, que, agora, fazia parte do DNA do seu filho, do bebê sereno, saudável, que adorava a sobrinha, dormir e caminhar pela fazenda com o velho Bronson. Uma criança alegre que jamais chorara, nem mesmo ao receber as primeiras vacinas.
Theo tinha a personalidade quieta e pacífica de sua mãe. Por certo, era muito mais um Malverde do que um Dolejal.
Thales, vendo-o se divertir no banho aos cuidados da babá, a filha mais nova da cozinheira e de Valentino, sentia uma quentura de amor dentro de si como se o seu coração, ao ver o filho feliz e saudável, soubesse enfim a intenção de cada sístole e diástole.
Ao notá-lo, Mariana sorriu e fez um sinal para Theo indicando o pai à porta.
O rosto do menino se iluminou, os olhos se arregalaram ainda mais, a surpresa e o contentamento se revezando no semblante que, tomado pelo susto feliz, mantinha a boquinha num formato engraçado como se ele tivesse congelado um “uuuu”. Meio segundo depois, refeito do impacto da aparição paterna, ele começou a se agitar, batendo as mãos freneticamente na água, ao ponto de criar ondas que empurravam a água para fora da banheira e, um pouco dela, para dentro da boca do menino.
A babá tentou pegá-lo pelos ombros para tirá-lo da banheira. Mas ele foi mais rápido e ensaiou uma escapada por cima da borda e, como estava encharcado, escorregou duas vezes antes de conseguir se firmar sobre a cerâmica do piso, vacilando sobre as perninhas curtas e molhadas.
Antes que o filho escorregasse na água que lhe deslizava pelo corpo, Thales deu alguns passos e se abaixou para pegá-lo, quando ele praticamente se jogou em seus braços. Levantou-se com o garotinho grudado no seu pescoço, o corpo tremia de uma emoção vista em pessoas desesperadas de saudade, mas não era o caso daqueles dois, já que o pai embalara o filho nos braços na noite anterior, enquanto assistia a um filme acompanhado de Valéria.
— Nossa, como o Pongo é agarrado com o senhor! — exclamou Mariana, sorrindo amplamente.
Concentrado que estava em acalmar o filho, trazendo-o para a constituição sólida e familiar de seu tórax e beijando a cabecinha molhada, ele apenas esboçou um sorriso em resposta, virando-se, em seguida, para a saída do banheiro.
Mariana ergueu-se rapidamente da beirada da banheira, pegou uma tolha infantil e se aproximou a fim de pô-la por cima do bebê:
— Ele acabou de sair da água, é capaz de fazer xixi na roupa do senhor. — avisou, desconcertada.
— Tenho outras. — murmurou o fazendeiro, ajeitando a toalha ao redor do filho mais com a intenção de protegê-lo de sentir frio, visto que ainda estava com a pele molhada, do que em sinal de uma preocupação com suas roupas.
Sentou-se numa cadeira no terraço da suíte principal, onde dormia com Valéria, e embalou o bebê ainda dobrado em seu colo, a cabeça agora deitada em seu ombro.
— O pai disse que ia passar o dia com você, não disse? — falou baixinho, num tom que usava para acalmá-lo após uma crise de tosse ou depois de se machucar.
Thales sorriu satisfeito ao encontrar o rosto sorridente de Theo voltado para o dele, beijou a bochecha redonda e o apertou contra o peito.
Muitas coisas ruins haviam-lhe acontecido na vida. Coisas que o tornaram quem ele era, que moldaram o seu caráter e sedimentaram a sua força. Ainda assim, Thales era um homem de sorte por ter um ímã que atraía para si aqueles constituídos por seus genes. Theo não era nada diferente do seu irmão mais velho. Só que agora Thales cuidaria do filho mais novo desde o início, como não pudera fazer com Franco.
Talvez ele estivesse ficando mais mole, a dedicação e o amor de Valéria e o segundo filho em seus braços; talvez essa segunda chance que a vida lhe dava fosse de fato a sua verdadeira fortuna. Não podia então perdê-la.
Não podia perdê-los.
Ao perceber que a respiração de Theo estava compassada e tranquila, sabia que ele adormecera. O bebê era um legítimo dorminhoco, ainda mais quando se sentia protegido no calor dos braços daquele que o amava.
Karen detestava supermercados, tinha verdadeira alergia a eles. E só de entrar em um desses estabelecimentos e dar de cara com prateleiras abarrotadas de porcarias coloridas e pessoas hipnotizadas por elas, cogitava dar meia-volta e cair fora. A questão era que suas amigas adoravam a vida doméstica, o que incluía o programa de sábado, as compras para o churrasco de domingo.
Era verdade que as Mosqueteiras Tresloucadas haviam unido três sobrenomes na invenção de uma nova e excêntrica família. Brigas e provocações à parte, a ideia de unirem os Malverde, Dolejal e Lisboa, todos os domingos, revezando apenas o local do churrasco, era uma forma de manterem a amizade intacta, como quando as três eram solteiras. No universo feminino era muito comum maridos, namorados ou noivos separarem as amigas, isolá-las de sua antiga vida de solteira. Entretanto, Karen jamais deixaria que Thales ou Franco a separasse de Val e Nova. E também de Paola.
Assim que entrou, pisando firme debaixo do seu chapéu de vaqueira, percebeu os olhares sobre si. Sim, era incomum a chefe de segurança dos Dolejal e namorada do delegado da cidade dar às caras naquele lugar.
Karen encontrou as mosqueteiras no corredor das frutas.
Val parecia palestrar sobre os poderes curativos da maçã, e Nova a ouvia atentamente, enquanto Irene passeava pelo corredor empurrando o carrinho com as gêmeas. A poucos metros dali, Paola testava o sabor de vários iogurtes furando-os, um a um, com o dedinho indicador e depois o levando à boca.
Parou em frente às amigas, pôs as mãos na cintura e disse de um jeito jocoso:
— Que vida dura ser mulher de fazendeiro, não? E, aí, como vão as ricaças?
Nova não deixou de desfazer o sulco entre as sobrancelhas, o que lhe conferia um ar sério de moça sensata, ao responder:
— Muito bem, obrigada. Temos de conversar.
Valéria atalhou antes de Karen engatilhar as palavras:
— A Sabrina me disse que o Johnny está voltando para passar as férias em casa.
— Sim, é verdade. — concordou ela, sorrindo, e completou com aquele seu jeitinho persuasivo que tanto a metia em confusões: — A gente vai convencê-lo a concluir o curso no campus de Santa Fé. Comprei um carro para ele e agora poderei chantageá-lo em alto estilo. Aprendi que não adianta fingir que vou me suicidar, os filhos nunca acreditam nisso.
— Meu Deus, Karen, fez isso mesmo?
— Até parece, Val. — respondeu Nova e, em seguida, se dirigiu a outra amiga: — Olha só, nada de pressionar o Franco a armar os pistoleiros da nossa fazenda, ok?
— O meu trabalho é garantir a sua segurança, a do seu amado diabo e das suas filhas, e é isso que farei. Não vou discutir esse assunto com você, Nova. — declarou, incisiva.
— Ah, mas vai discutir, sim! Sei que veio atrás de mim para me “convencer”, talvez até cogitando também comprar um presente para mim, para que eu aceite as suas decisões arbitrárias, mas não vou permitir a entrada de arma na minha casa.
— É o que o Franco pensa?
— É exatamente o que o Franco pensa.
Karen suspirou profundamente. Calculava que ficaria batendo boca com Nova até o sol raiar em 29 de setembro de 2030 se continuasse por aquele caminho. Ela tinha uma carta na manga, uma informação que faria até mesmo Nova andar com uma carabina enfiada no cós da calcinha. Mas agora ainda não era o momento de lançar a granada. Precisava da atenção de todos, isso significava também a atenção dos homens.
— É impossível trabalhar com gente ingênua e teimosa.
Nova começava a se irritar, e foi Val que contornou a situação:
— Por que não conversamos amanhã sobre isso? — e, virando-se para Karen, perguntou alegremente: — Ainda gosta de pudim de laranja?
Karen sorriu sem jeito diante da mudança no tom da conversa. Sua visão periférica percebia a hostilidade silenciosa de Nova. Incomodava-a, era verdade, a mulher de Franco havia se tornado um tanto prepotente após o nascimento das filhas.
— Gosto, sim. Deixa que eu faço a sobremesa que a Nova gosta, ainda é ambrosia? — tentou amansar a fera nanica.
— Não, não é. — respondeu, emburrada.
Val e Karen trocaram olhares entre curiosos e divertidos.
— Bom, por acaso é pavê de pau?, opa!, de chocolate? — debochou Karen.
Nova deu-lhe as costas e foi buscar a filha mais velha, que havia aniquilado uma bandeja com seis iogurtes de morango.
— A baixinha está cada dia mais terrível, hein?
Valéria riu e comentou enquanto juntava meia dúzia de maçãs e as punha num saco plástico:
— Ela sempre foi assim, só que antes era mais diplomática.
— É, mas a minha paciência tem limite, Val. — afirmou Karen com a expressão grave.
— Por que está tão preocupada com isso?
A outra suspirou novamente, pensando se a maternidade ou o casamento com homens fortes e poderosos havia mexido com a cabeça de suas amigas. Depois de tudo que acontecera, uma acreditava que os pistoleiros poderiam defendê-la usando apenas os seus chapéus e a outra, mal sabia o que se passava na cidade.
— Por causa do sobrenome de vocês.
Valéria assentiu levemente e fitou pensativa o saco de maçãs na sua mão.
— O Thales sempre fala isso.
Antes que Karen pudesse confirmar que Rodrigo também concordava com o cunhado, Nova voltou para junto delas trazendo Paola pela mão. O rosto da menina apresentava as evidências de um crime imperfeito, ao redor da boca e na ponta do nariz, a substância cremosa cor-de-rosa.
— O que pretende levar para o almoço? Você não é obrigada, não tem tempo pra nada, só para planejar estratégias em tempos de paz.
Karen pegou Paola no colo e, ignorando a mãe da garota, disse à menina:
— Vim com o Prefontaine, que tal? — piscou o olho para a menina.
— Vamu imboia! — a afilhada exclamou faceira da vida.
Para o bem de todos, a vaqueira decidiu bater em retirada.
— Decidi levar um bolo de maracujá para te acalmar, Smurfette. Agora, se me permitem, vou levar minha amiga para uma boa cavalgada pelas planícies e, depois, ela ficará na minha casa e eu a levarei amanhã para o churrasco.
Dizendo isso, deu as costas às amigas e incitou os primeiros passos em direção à saída do supermercado. Ouviu Nova reclamar:
— Nada disso! Preciso falar com o Franco.
Karen se virou com um sorriso e perguntou a Valéria:
— Cadê o Pongo? Preciso de duas crianças hoje, vamos jogar pôquer a dinheiro.
Valéria se controlou para não rir, queria ser solidária à Nova, compreendia sua irritação para com Karen e sua arbitrariedade na condução do seu trabalho como segurança. Queria não achar engraçado o jeito irônico e displicente da cunhada lidar com a brabeza de Nova, ela simplesmente pouco se importava.
— Ah, ele caiu no sono e ficou com o Thales.
Karen olhou ao redor e declarou:
— Bem, então terei de levar uma das gêmeas... Prefiro a gêmea má, faz mais o meu estilo. — afirmou, se encaminhando até o carrinho e pegando com um braço só o bebê leve feito uma pluma.
Nova deu passou à frente a fim de lhe barrar a passagem, e Valéria a conteve com um gesto de mão:
— Espera só.
A cunhada estava com uma criança em cada braço e, antes de atravessar as portas duplas do mercado, voltou-se e comentou com ar superior:
— Tentem me deter, peruas!
Três minutos depois, ela voltou a contragosto. Devolveu Paloma à mãe e comentou meio sem jeito:
— O Pre não quis baixar a rampa para deficientes, então não consegui montar com uma criança em cada braço.
Nova avaliou a distribuição dos convidados na grande mesa retangular para dez lugares. Uma toalha de renda clarinha cobria a madeira rústica e um tecido acolchoado decorava o assento das cadeiras de carvalho. Ao lado da mesa, o aparador no qual seriam depositadas as travessas com as saladas dividia o ambiente com o frigobar e uma mesa de sinuca.
A construção de tijolo aparente servia como o salão de festas da fazenda, sustentado por colunas do mesmo material e sem paredes laterais. Anexo à sala principal, a cozinha tão bem equipada quanto à da casa-sede e o lavabo. A área das churrasqueiras distava alguns metros da parte principal devido ao calor que liberavam ao serem usadas. Vários espetos na horizontal assados por churrasqueiros do interior do Paraná, gente que trabalhava nas churrascarias da região.
Ela mordeu um palito salgado enquanto fazia a recontagem do número de pessoas que viriam naquele domingo.
Johnny e Sabrina participariam do almoço. O filho de Karen chegara a Matarana durante a madrugada, e a filha de Valéria estava de folga do hospital. Por outro lado, vó Ninita viria sem a inseparável amiga. Veridiana fora passar o fim de semana com o namorado que conhecera havia seis meses no salão country.
Voltou sua atenção para a mesinha redonda ladeada pelas cadeiras infantis, o encosto de cada uma o formato da cabeça de um bichinho. Já era de praxe Nova alimentar as gêmeas antes do almoço. Não deixava Irene trabalhar nos finais de semana, ainda que a ex-governanta da Arco Verde insistisse em acompanhá-la ao centro aos sábados. Nova entendia o seu amor e apego pelas filhas do seu “menino” — como se referia a Franco, e também sabia o quanto ela precisava espairecer pela cidade, saber sobre as novidades ou simplesmente passear e tomar um sorvete. Sentia-se grata por ter Irene consigo e por Thales tê-la cedido, mesmo que continuasse a lhe pagar o salário, bem como Franco o fazia. Os dois adoravam a mãezona de pouca estatura e olhar doce. Nova também se rendera aos cuidados e conselhos dela. Afinal, fora Irene quem tentara diminuir as dores da rejeição do seu caubói.
E foi ele quem se postou ao seu lado, o chapéu puxado na aba para frente do rosto, enquanto um braço a atraía pelos ombros ao encontro do corpo dele.
— Está tudo do seu agrado?
Ela sorriu e, ao se voltar para ele, viu uma cabecinha com cabelo liso e castanho se virar na sua direção, como se espiasse escondida atrás do chapéu do pai. No outro braço de Franco estava uma das gêmeas, mas para saber qual delas Nova precisava ver um pouco mais que o seu rostinho redondo com olhos cor de mel protegidos por cílios longos tipicamente femininos, ou como Val dizia, “cílios de Betty Boop”.
— Tudo certinho, amor lindo. Agora, me diz, essa cabritinha limpou o prato?
Ele se virou para a filha e fez um meneio com a cabeça em direção à mãe:
— Mamãe quer saber se sobrou comida pro pessoal que está chegando. Acho que não, né, gordinha?
A menina sorriu bem faceira um sorriso de seis dentes e voltou a roer um osso de costela bovina.
— Meu Deus, Franco, isso já deve estar até sem gosto!
— Deixa, Nova, ela está gostando...
— Ela quem?
Franco sorriu sem graça, sabia muito bem que Nova sempre tentava pegá-lo na mesma brincadeira: descobrir com qual das gêmeas ele estava. Havia, sim, uma diferença. Era um sinal em forma de morango que uma delas tinha na coxa esquerda. O problema era que ele nunca memorizava qual delas tinha essa marca de nascença.
Ele tentou espiar rapidinho por baixo do vestido cor-de-rosa e encontrou o traseiro do Pato Donald. A fralda descartável terminava no início da coxa gorducha e cheia de dobras. Rendeu-se, por fim, desolado:
— Sei que é minha filha, princesa, mas não sei qual delas.
Nova desatou a rir.
— Você não se cansa da mesma pegadinha, né, dona? — indagou com falso tom de censura e enquanto ela ria, ele empurrou a fralda centímetros para cima e não viu marca alguma na coxa esquerda.
Muito bem, essa é a que não tem a marca, pensou satisfeito.
— Amor lindo, dá pra se dizer que você não tem uma memória de elefante. — ela debochou.
Ele sorriu torto, franziu o cenho e perguntou intrigado:
— Como podem existir duas crianças completamente iguais?
Ela não resistiu:
— Acho que a ciência chama isso de gêmeos univitelinos. — respondeu num tom de chacota.
Franco considerou que Nova não o levava a sério e talvez fosse porque ela não soubesse que ele havia matado várias aulas de biologia.
— Bem, a ciência pode chamar do que quiser, mas eu chamo essa criaturinha comilona de belezura do papai. — deu um beijo estalado na bochecha da filha, e ela caiu na gargalhada: — A Petra adora beijo na bochecha, e a Paloma fica irritada. — concluiu bem feliz da vida.
— Safado, você tem outros truques para identificá-las, né?
— É só prestar atenção nos detalhes. — rebateu numa altivez teatral.
— Pois bem, temos de cuidar de outros detalhes. Logo o pessoal chega, e quero que a bebida esteja muito gelada. — ela olhou para o céu e disse quase que como para si mesma: — Faz tempo que não chove cinzas, acho que pararam de assar os forasteiros.
O bebê riu alto quando o pai beijou a sua barriguinha e, com isso, distraída, não percebeu que ele tirava de sua mão o osso quase descorado.
Ele se virou para Nova e afirmou com um sorriso endiabrado:
— Nós, mataranenses, agora usamos a fornalha para assar somente os bandidos. — alfinetou.
Ela preferiu desconsiderar o comentário e não retrucou. Com um sorriso terno, pegou a filha dos braços dele e seguiu em direção a casa. Voltou-se ligeiramente e olhou-o por cima do ombro. Ainda encontrou o sorriso autoconfiante e desafiador do marido. Às vezes ela tinha a impressão de que o diabo loiro esperava a hora certa para voltar a agir.
Karen pegou o prato de Rodrigo e encaminhou-se à bancada para servi-lo. Encontrou Nova enfeitando a salada de maionese com rosas de tomate, pensou em comentar algo espirituoso ou apenas um leve deboche, mas não sabia o que receberia de volta.
— Eu e a Paola fizemos um bolo de laranja. — comentou, pisando em ovos. — É claro que tivemos que comer um pouco para saber se tinha dado tudo certo.
— E como ela se comportou na sua casa? — perguntou Nova, voltando-se para amiga.
— Ah, ela sempre se comporta bem, o problema é o Rodrigo.
Nova sorriu e relançou um olhar curioso para o seu melhor amigo.
— E por quê?
— Ele é meio neurótico, levantou umas três vezes para ver se a minha vaqueira estava bem. E, pela manhã, foi buscá-la no quarto e ficamos os três de lutinha na cama, quero dizer, as meninas demolindo os travesseiros no menino. — contou, rindo-se.
— Karen... — Nova começou, baixando a cabeça e fitando as rasteirinhas nos seus pés, precisava justificar o seu comportamento agressivo na última conversa; depois, encarou a amiga e falou com suavidade: — Espero não tê-la magoado com as coisas que falei pra você, saiba que não é nada pessoal, nada contra a sua pessoa, viu? E o problema mesmo não é você ou o seu trabalho com o Thales. A verdade é que preciso proteger a minha família e isso significa manter minhas filhas e meu marido longe de armas, tiros e confrontos. Não quero que as meninas vivam cercadas por automáticas e espingardas, esse não é o mundo real; esse é o mundo que foi corrompido por nós, já que não sabemos conviver como iguais. Além disso, o Franco-pistoleiro não existe mais, ele foi substituído pelo Franco-fazendeiro, e quero que continue assim. — ela percebeu a chegada da picape dos demais membros da família Dolejal e completou, olhando diretamente para Karen: — O Franco não é um assassino nem um justiceiro e não vou deixar você e o Thales tirá-lo de mim.
— Entendo o que quer dizer e não tiro a sua razão. Mas, veja bem, — Karen apontou para Bonnie, deitada no gramado com as patas para cima como se estivesse na praia se bronzeando, e completou séria: — você pode ficar a vida inteira pedindo para um cachorro miar que ele não vai miar. E sabe por quê? Porque não é da natureza dele miar. E isso é o mesmo que você está fazendo com o Franco, está contrariando a sua natureza de pistoleiro meio que fazendo com que ele “brinque de ser um fazendeiro”. É possível que ele lhe obedeça por anos, Nova, mas não a vida inteira.
Ela tinha consciência de que Karen estava certa e essa certeza encheu o seu peito de uma angústia que não sentia havia muito tempo. Suspirou profundamente para controlar as emoções. Às vezes usava um timbre de voz áspero e, ultimamente, bastante hostil. Queria ser firme, mas não antipática.
— É só você e o Thales o deixarem em paz.
Karen assimilou a afirmação como uma ameaça. Nova exercia um poder danado sobre Franco e o tinha resgatado da devoção cega pelo pai, o que, de certa forma, significava, para ela, que o resgatara para o seu lado, um lugar com gramado verde, crianças felizes correndo pela casa e o amor romântico de um casal que não se desgrudava. A questão era que esse mundo perfeito poderia sofrer abalos e um desses abalos havia fugido do presídio de Santa Fé e, possivelmente, vinha em rota de colisão contra a blindagem de cristal do mundo de Nova.
— Preciso falar com você. — afirmou ela num tom de urgência.
A mulher de Franco preferiu evitar continuar por aquele caminho. Amava Karen e precisava manter forte e intacta a sua amizade com ela e com Val. Sofreria muito se algo ou alguém interferisse no laço que as uniam. Por isso apenas tocou levemente no ombro da amiga e apontou para Valéria, que, ainda sentada no banco do passageiro, esperava o marido rodear o veículo para abrir a porta.
As duas ficaram olhando o gesto cavalheiresco do fazendeiro. Nova sorriu encantada. Ela própria estava acostumada a esse tipo de gentileza e consideração que o filho de Thales lhe concedia.
De sua parte, Karen estreitava os olhos e as engrenagens do seu cérebro giravam em alta rotação. Já não era a primeira ou segunda vez que analisava o comportamento de Thales para com sua esposa. Ele não apenas abria a porta para ela, isso não era novidade alguma; ele, agora, segurava-a pelo antebraço ajudando-a a descer da picape mantendo os olhos nela, um tipo de olhar penetrante, como se antes de se separarem e ele a devolver aos amigos, deixasse bem claro a sua pertinência, era um olhar de domínio, o tipo de olhar que sempre a irritara. Porém, Valéria aceitava-o com um sorriso de menina de 15 anos.
— Jesus Cristo, Nova, a nossa amiga está em apuros! — sussurrou, enquanto observava Valéria esperar que Thales tirasse o filho da cadeirinha no banco detrás.
— Ela está apaixonada pelo próprio marido, ora. — disse Nova, sem dar importância ao fato.
— Ai, que maravilha, hoje é o dia das analogias com a bicharada! — exclamou Karen com as mãos nos quadris e completou, virando-se para a amiga: — Ok, vamos lá! Se descobrisse que está apaixonada por um leão africano, por exemplo...
Nova perguntou com uma curiosidade dissolvida no deboche:
— Por que leão africano?
— Ah, não sabe? Bem, a caipira aqui de vez em quando lê... não livro, Deus me livre!, leio “coisas” na internet. — justificou-se meio sem jeito e esclareceu a sua linha de pensamento: — Bem, o leão africano é o predador mais feroz entre os animais. Agora, imagina o seguinte: o Thales é um predador, certo? E a nossa amiga é uma espécie de Bambi-balzaquiana-apaixonada. O que eu digo é que a Val precisa...
Imediatamente Karen se calou. Havia demorado demais diante do aparador com a comida e, mesmo sem se virar, percebeu que o dono do prato estava bem atrás dela. O cheiro da colônia de Rodrigo era o mesmo que impregnava a própria pele.
— O que a minha irmã precisa?
Ela revirou os olhos, e Nova disfarçou a vontade de rir pegando da sua mão o prato vazio e enchendo-o de salada.
Karen se virou com um sorriso sem graça e deu de cara com um rostinho que fazia o seu coração bater mais forte. Theo estava no colo do tio e sorria daquele jeitinho especial somente dele, meio que escondendo o rosto com a mão, envergonhado.
— Quando crescer, Pongo, você será tão sedutor quanto o seu tio. — afirmou ela, admirando o chapéu de caubói que ele usava, um modelo em tamanho menor para criança, presenteado por Rodrigo.
O garotinho vestia jeans, botinhas e uma camiseta xadrez azul. Val fazia questão de mantê-lo por dentro da última moda da indumentária country. E, assim, o que se via era a miniatura de um caubói de olhos verdes e sorriso tímido.
— Você não me respondeu.
Val apontou no horizonte com um sorriso de contentamento e, naquele instante, Karen considerou que a sua aparição tinha o mesmo valor que a aparição de um oásis para um azarado perdido no deserto.
O vestido pouco abaixo das coxas e cortado num caimento reto emprestava-lhe um ar juvenil. Ela agora comumente usava roupas caras, femininas e sensuais. Nada vulgar ou ostensivo. Entretanto, roupas que contornavam seu corpo e não que o disfarçavam ou oprimiam-no. O decote tomara-que-caia exibia as sardas em seus ombros nus.
O casamento com Thales modificara não apenas o estilo de vida dela, cogitava Karen abraçando a cunhada, sua aparência e o brilho no olhar haviam-se potencializado. Tal constatação a deixava satisfeita. Queria enfim que Thales fosse feliz ou menos infeliz. Não funcionavam juntos como homem e mulher, mas davam certo como aliados.
— Desculpa o atraso... — o rubor em suas bochechas parecia querer completar frase e, se o irmão não estivesse ali entre elas, Val teria dito que fazer amor pela manhã acabara atrasando-os para o almoço.
— A gente ia começar sem vocês.
— Sem problemas, Nova... O Theo recém tomou uma vitamina de banana com aveia.
— É por isso que está pesado como um elefante? — brincou Rodrigo, adorando ver o sobrinho esconder o rosto no seu ombro: — De onde vem tanta timidez, hein, Val? O pai não era assim e a nossa mãe continua bem saidinha.
Val deu de ombros.
— Nem a Sabrina, mais cara de pau que ela impossível.
— Essa timidez toda faz parte do charme do Pongo. — disse Nova, entregando o prato com comida a Karen: — Agora, eu fico com essa coisinha fofa e você, Rodrigo, vai almoçar.
E, dizendo isso, tentou pegar o garoto dos braços do amigo. Contudo, ele foi mais ágil e girou o suficiente para manter o sobrinho fora do alcance de suas mãos.
— Ele ficará no meu colo.
Nova olhou para Val como se pedisse ajuda.
— Podia ter matado a saudade indo nos visitar na fazenda, né, moço?
— Muito trabalho, Val.
Mentira, pensou a irmã do delegado. Embora Rodrigo tivesse aceitado o seu casamento com Thales, não fazia questão alguma de visitá-los na Arco Verde.
— Não gosto de quando mente pra mim. — reclamou.
Rodrigo fez um muxoxo e assentiu levemente:
— Ok, vou ser bem honesto, então. Não quero que o seu marido confunda as coisas, o fato de ele ter casado com a minha irmã não significa que tenhamos estreitado os nossos laços, porque não há laços para serem estreitados.
— Malverde e Dolejal agora são uma única família. Não adianta se recusar a ver.
Rodrigo se voltou para Nova ao ouvi-la falar como uma legítima representante dos Dolejal.
— É claro que sim, mas não precisamos gostar de todos os membros da família.
— Ai, Rodrigo... — reclamou Valéria.
— Não entendo, um dia você foi amigo, muito amigo, do Thales... Por que não retomam essa amizade?
Rodrigo trincou os maxilares e achou por bem encerrar a conversa naquele ponto. Não queria se indispor com Nova, mas também não cederia aos argumentos dela.
— Depois de almoçar, posso falar sobre essa retomada de amizade. Não penso direito de estômago vazio. — tentou sorrir.
Valéria olhou ao redor e encontrou Sabrina caminhando lado a lado com Johnny. O filho de Karen era um garoto moreno e bonito. Um universitário que pretendia se tornar delegado de polícia, como o seu padrasto o era.
— Caramba, Karen, não é só o meu filho que partirá corações por aí. Os ares da capital estão fazendo um bem danado para o Johnny!
Karen se encheu de orgulho.
— É verdade, caprichei no futuro delegado.
Valéria voltou-se para o irmão com um olhar curioso:
— Deve estar muito orgulhoso, não? Isso só pode ter dedo seu.
Antes que ele respondesse, Karen atalhou:
— Claro que sim. O Rodrigo tem medo que o Johnny tenha herdado a parte destrambelhada dos meus genes. Ele tem uma estranha teoria a respeito dos Lisboa, e isso inclui a minha inofensiva avozinha, sobre a nossa inclinação à prática de atividades ilegais. O que não corresponde à realidade, já que presto serviço como segurança particular para um fazendeiro, tudo dentro da lei, inclusive pago impostos.
Os irmãos se entreolharam. Karen tinha um jeito engraçado de expor suas ideias, sempre de uma forma direta, natural e de modo a amenizar a sua devida importância nelas.
— Pode-se dizer que as duas estão certas. Porém, ninguém tem maior influência na escolha profissional de uma pessoa que a sua própria vocação, e foi o que aconteceu com o Johnny. Pra falar a verdade, Val, nem se ele fosse meu filho biológico me deixaria mais orgulhoso. — ele declarou, incisivo; em seguida, concluiu no mesmo tom: — Aliás, as mosqueteiras tresloucadas são excelentes mães.
As três amigas sorriram encantadas com o elogio. Rodrigo não sabia, mas elas adoravam o apelido que ele lhes dera e pretendiam continuar a fazer jus a ele.
Thales observou a proximidade de Valéria com o irmão, tentou ler na expressão facial dela se o assunto sobre o qual tratavam merecia a sua atenção. Não nascera ontem, sabia que assim como Karen traficava informações da polícia para a Arco Verde, Valéria, a sua querida esposa, fazia o trabalho oposto. Isso de fato não o preocupava, uma vez que ela obtinha informações somente sobre o que ele permitia que soubesse e também porque admirava o senso de família entre os dois, a lealdade que tinham um para com o outro, traço de caráter marcante nos Malverde e quase que uma obsessão entre os Dolejal. Não havia nada mais importante, para Thales, que a lealdade. E era por isso que ele não se sentia traído por Valéria.
Ao se afastar da picape, varreu com os olhos o gramado amplo e a parte cercada ao redor da piscina à procura de Franco. A alguns metros de onde estava podia ver as gêmeas sentadas sobre um corpo estendido ao cumprido. Logo adiante, Paola se livrou do vestido e, usando apenas a calcinha com babados, correu em sua direção.
Ele se abaixou para pegá-la no colo.
— Não suporta usar roupas como o seu pai.
— É uma méda! — assim que ela deixou escapar o palavrão, olhou em direção à mãe e completou, rindo: — Não pode faiá paiavão, vô.
Thales riu baixinho.
— Mas eu não ouvi palavrão algum. Que tal salvarmos o seu pai, hein?
— Cadê o Nelo?
— Na fazenda, esperando por você.
Ela fez uma carinha de desapontamento. Paola era louca por bichos; principalmente por cavalos. E essa paixão da neta levara-o a cogitar a ideia de ter um haras.
Quando eles chegaram perto das gêmeas, viram que uma delas estava sentada, com sua bundinha protegida pela fralda descartável, em cima da cabeça de Franco e a outra sob os seus joelhos.
— É aqui que mora o pistoleiro mais perigoso do centro-oeste? — indagou Thales num tom de deboche.
Franco nem se mexeu, mas notou quando Paloma se virou para olhar o avô, pois sua bundinha fez pressão para baixo, apertando-lhe o nariz e provocando uma crise de espirros. Foi obrigado a tirá-la de cima de si e pô-la na grama. Depois de espirrar uma dezena de vezes, voltou-se para Thales, os olhos cheios d’água:
— Pois é, a gente estava brincando que eu era uma nave espacial, mas, na verdade, queria tirar um cochilo até o senhor chegar. As malandras tiveram insônia essa madrugada, e fiquei acordado com elas. Aproveitei para contar sobre a colonização de Matarana... Bem, só assim para elas dormirem. — declarou com bom humor.
— Interessante. — constatou enigmático, sem deixar, entretanto, de precavê-lo: — Cuidado, Franco, a vida doméstica pode castrar um homem.
Franco fechou um olho, pois um raio de sol parecia querer perfurá-lo, e achou graça da observação do pai.
— A minha madrasta castrou o senhor?
Thales notou que o assunto divertia o filho.
— Ainda não, mas todos os dias ela tenta. — respondeu no mesmo tom.
— Como estão as coisas na Arco Verde? O Bronson anda por aí de saco murcho...
— Saco muxu! — exclamou alto Paola, às risadas.
— Pronto, — comentou Franco: — agora ela vai chamar todo mundo de saco murcho. — virando-se para a filha disse: — Também é palavrão, viu? Então sabe como é, tem de falar baixinho.
Paola assentiu e pediu para descer do colo.
Thales a pôs no chão, e, antes que ela corresse em direção a Theo, ouviu-a gritar: “Saco muxu”.
— O que o Bronson tem? — o fazendeiro perguntou voltando-se para o filho.
— Crise da terceira idade, só pode. Está meio desconfiado dessa calmaria toda, ainda não se acostumou com as últimas mudanças. — respondeu, dando de ombros.
— Ou talvez ele queira se debandar para cá como a Irene e o Chicão, não duvido nada que não esteja com ciúme, ele também se sente responsável por você. — disse com evidente azedume.
— Eles me criaram, é normal que queiram viver perto de mim.
— Bom, que eu saiba ninguém está acorrentado na Arco Verde.
— No caso do Bronson é diferente, ele também criou o senhor. — Franco se ergueu do gramado e ajeitou novamente o chapéu na cabeça. — Mas a questão é outra. O velhote está cismado, só isso. A gente devia dar um bom dinheiro pra ele e a Lúcia e mandar os dois viajarem, tirar umas férias, conhecer o mundo, sabe?
Thales avaliou o que o filho falava.
— Um tiro no pé, Franco. O Bronson vai se sentir menosprezado. Ele nunca aceitou entrar em férias e não seria agora, depois da Karen ter assumido a chefia da segurança, que aceitaria se afastar.
— Foi bom ter tocado nesse assunto... O senhor precisa falar com a Karen, ela não sabe lidar com as pessoas como o Bronson. — Franco suspirou fundo e completou sério: — Ela está batendo de frente com a Nova, e eu não estou gostando nada disso.
— A Karen tem carta branca para agir, e o aconselho a não interferir. Elas acabarão resolvendo suas pendências, e você apenas se desgastará. A nossa função, nesse caso, é a de meros observadores. — considerou com bastante confiança no que dizia.
— Não consigo ficar só “observando”, como o senhor diz, quando o assunto se refere a minha mulher.
— Muito bem, então, o que pretende fazer? Apelar a uma instância superior? Bem, sou eu essa instância e garanto a você que a Karen tem o meu total apoio.
Franco bufou.
— Parece até que ela é dona das suas fazendas e, no entanto, a sua mulher é a Valéria.
Thales apenas sorriu; porém, conhecia a sua cria e ela não aceitava como resposta um mero sorriso.
— Está ressentido? Me parece que você se sente de alguma forma traído, o que é injusto, uma vez que lhe dei essa fazenda sem pedir nada em troca. Você não precisou fazer nada para se tornar um homem rico aos 25 anos.
— Não é isso, pai... — Franco estava chocado com o rumo da conversa. — Nunca tentei competir com a Karen por sua atenção. Na verdade, minha posição agora é mais como alguém que gosta da sua madrasta. A Valéria é muito legal comigo, a gente está se entendendo e é óbvio demais que ela é apaixonada pelo senhor, por isso...Ah, deixa pra lá, cacete, nem sei por que estou me metendo nisso.
— A minha situação com essas duas mulheres é bem fácil de entender, Franco. — afirmou de forma quase didática, um esboço de sorriso se formando no canto dos lábios: — A Karen é a mulher em quem mais confio, é a minha leal escudeira, a mulher que quero no comando de Matarana... E a Valéria, bem, é a mãe do meu filho e a garota que eu amo. E espero que isso fique entre nós dois, ok?
Franco coçou a testa, assentindo e, com isso, o chapéu meio que deslizou para trás quase caindo de sua cabeça. Era estranho ouvir aquela declaração de seu pai, pois havia poucas semanas Nova comentara a respeito da insegurança de Valéria em relação aos sentimentos do marido. E ele não soubera exatamente o que dizer. Por que, afinal, o pai estaria escondendo os seus sentimentos da própria esposa? Parecia coisa de gente doida, pensou Franco, pegando as gêmeas no colo e seguindo Thales até a mesa onde os demais os esperavam.
Karen observou que todos ali aceitavam com naturalidade a posição dos machos alfas à mesa, um em cada extremidade, Thales e Rodrigo, e o terceiro deles, sentado entre a sua mulher e a filha na cadeirinha para bebês. Ainda que o dono da casa fosse o mais novo, não havia em Franco qualquer vontade em impor algum tipo de poder ou domínio. Ele era simples, e ela gostava disso nas pessoas.
À esquerda de Thales, Sabrina se mexeu meio que se ajeitando para pronunciar algo solene. Pigarreou chamando a atenção de todos, menos a de Theo, que se ocupava em arrancar nacos de carne de uma coxa de galinha.
― Resolvi aceitar a sugestão de Thales e estudar na capital. ― ela afirmou, endereçando olhares ansiosos para a mãe e o tio.
Val parou o garfo com comida no ar e ficou olhando-a enquanto o seu cérebro processava a novidade.
― Como assim?
― Eu e o Thales conversamos... ― ela parecia sem jeito, como se tivesse traído alguém cujo sobrenome era o mesmo que o seu. ― Sempre tive vontade de estudar Enfermagem, mas a gente só tinha grana pra pagar o curso técnico...
Ela estava visivelmente constrangida, e o padrasto percebeu que deveria intervir ao seu favor:
― O hospital de Matarana precisa de profissionais qualificados, e a Sabrina tem vocação para a área da saúde. Portanto, comprei um apartamento para ela viver em Cuiabá e estudar em uma universidade particular. ― ele se voltou para a esposa e disse num tom determinado: ― A senhorita Freitas abriu uma conta bancária para ela, quero que a Sabrina se foque apenas nos estudos. Ela ficará por lá com outras amigas universitárias, porque acho imprudente que more sozinha, embora ela seja muito responsável. Mas já está tudo acertado e até o final do mês viajaremos para analisar o bairro onde ela viverá e o local onde fará seus estudos. Seria muito bom, Valéria, auxiliá-la com a decoração do apartamento.
Ela nem teve tempo de esboçar reação, já que Rodrigo interferiu com uma voz rascante, os cotovelos plantados na mesa, as mãos unidas entrelaçando os dedos. Tinha um olhar de águia quando afirmou:
― Sabrina, vamos conversar mais tarde sobre isso, eu, você e a sua mãe.
― A conversa que vocês terão será a respeito do novo endereço dela na capital. Não quero que os seus medos e inseguranças façam com que ela se acovarde, há um mundo inteiro lá fora para ela conhecer, e foi isso que ofereci ao Franco, mas ele preferiu ficar.
Ao ouvir seu nome, Franco parou de mastigar e sorriu sem jeito.
― E foi a melhor decisão da minha vida.
Nova deu-lhe um beijo estalado na bochecha, e ele riu.
― Claro que sim, mas nunca soube que outro tipo de vida poderia ter tido.
― Que coisa, né?, ainda acho que melhor que essa não seria, não.
Rodrigo se controlou para não voar no pescoço de Thales.
― A questão é que a Sabrina é uma Malverde e foi criada por mim também. ― ele se virou para sobrinha com o olhar entristecido: ― Podia ter me falado sobre seus planos, posso bancá-la na capital, não sou nenhum pé de chinelo sem eira nem beira.
― Não é isso, tio. ― retrucou com a voz magoada: ― Na verdade, nem eu sabia o que queria até poucos meses atrás, achei que não tinha condições de me manter em outra cidade para estudar, mas aí apareceu essa oportunidade...
Rodrigo endereçou um olhar zangado para Thales e este devolveu outro cheio de superioridade, uma sobrancelha chegou até a se arquear.
― Tem de parar de dividir a nossa família, delegado. A sua mulher trabalha comigo e a sua irmã é a minha mulher. Viu? Tudo entrelaçado, a dinâmica perfeita do destino. ― ironizou com um sorrisinho.
Karen observou o namorado crispar os lábios e falar duro, sem, no entanto, elevar a voz:
― E, por acaso, você se autointitulou o chefe dessa tal família?
― Não, Rodrigo, podemos conversar sobre o futuro de nossos filhos mais tarde. ― ele retrucou com brandura e, voltando-se para a enteada, completou sugestivo: ― Viu só como é a vida, antes a sua mãe dizia que tinha se autofecundado e agora você tem dois pais.
Valéria sentiu o sangue subir ao rosto.
A carranca de Rodrigo estava fechada como quando o céu de Matarana se preparava para a primeira tempestade do estio. Por um momento ele apenas mirou seus olhos nos olhos irônicos do fazendeiro e era como se pudesse puxar o gatilho com eles e meter uma bala na sua cabeça. Vontade não lhe faltava. Então respirou fundo e sentenciou bem devagar, para surpresa de todos:
― Que se meta com a filha da minha irmã ainda vá, mas não tente se aproximar do meu filho, entendeu?
Imediatamente Karen e Johnny se entreolharam, e ela viu o filho sorrir contente. Ele adorava Rodrigo.
Franco pensou em falar uma merda qualquer para acalmar aqueles dois, lançou um olhar aflito a Nova, mas ela estava concentrada em Rodrigo. Era claro que se ele precisasse, ela se meteria na discussão ao seu favor. Não podia negar que sentia uma pontada de ciúme. Se, pelo menos, Rodrigo fosse um tribufu... Voltou-se para Paola e a viu fazendo um boneco de modelar com a salada de maionese.
Thales absorveu a energia cheia de rancor que emanava do outro lado da mesa. Duvidava que um dia Rodrigo baixasse a guarda e aceitasse a situação estabelecida entre eles. Intimamente torcia para que ele se aliasse aos Dolejal e parasse de espernear. O problema era que o camarada que conhecia havia mais de 10 anos era uma mula teimosa e defendia o seu território com os dentes à mostra.
― Acalme-se, não pretendo lhe tirar a paternidade do filho da Karen, só quero que entenda que temos de nos unir, estamos todos do mesmo lado.
― Não, não estamos. ― disse o delegado.
Thales lançou um olhar impaciente para Valéria:
― O que o seu irmão tem?
Nova intercedeu com um sorriso nervoso:
― Vou chamar o churrasqueiro para trazer mais carne, ok?
― Valéria, estou falando com você.
Ele olhou demoradamente para a esposa e percebeu nela a oscilação de humor encontrada no irmão. Os Malverde eram pessoas sensíveis e complicadas, Thales considerou, repetindo pela segunda vez a pergunta.
Até que Valéria, desviando a atenção de um Rodrigo carrancudo, resvalando rapidamente por Karen e parando, enfim, no rosto de Thales, falou com um rastilho de emoção na voz:
― Acho apenas que às vezes você se mete demais na vida dos outros.
Thales continuou fitando Valéria, o rosto agora sem expressão tal qual um boneco de cera.
Nova aproveitou a deixa e se levantou indo atrás do churrasqueiro. Percebeu Franco nos seus calcanhares, resmungando:
― Por que não acabamos com esses almoços de domingo, hein? Toda vez dá em briga.
Antes de entrarem no compartimento das churrasqueiras, ela parou e o abraçou forte:
― O que foi? ― ele perguntou, gostando do carinho e puxando-a contra o seu tórax.
― Nada, só me deu vontade de dar uns amassos no meu amor.
Ele se afastou centímetros e capturou a atenção dela bem dentro dos seus olhos azuis.
― A dona é bonita demais da conta! Terei de beijar você bem nessa boca gostosa. ― baixou a cabeça e cumpriu o prometido, os lábios separando os dela, a língua avançando até encontrar outra e se enroscar, sugá-la com força, enquanto os braços se enroscavam a mulher puxando-a para si, quase a sufocando, esmagando os seios no tronco duro e sarado dele.
Ela deixou um gemido rouco escapar.
― Tenho de voltar à mesa antes que o teu pai e o Rodrigo atirem um no outro. ― disse, desgrenhada, o cabelo para todos os lados, a boca inchada e as pernas bambas.
Franco sorriu e assentiu levemente com a cabeça:
― Volta, sim, gostosa, porque do jeito que estou duro e que essa churrasqueira está quente, sou capaz de fazer uma loucura com a dona, perder a cabeça mesmo e te judiar até a gente cair desmaiados.
Ela sentiu um fio de eletricidade percorrer-lhe as vértebras da coluna e se posicionar entre suas pernas.
― Vamos pôr as crianças na cama mais cedo.
Ele sabia muito bem o que isso queria dizer.
― Pode deixar comigo.
Que iriam fazer amor durante a madrugada e não apenas antes de dormir.
O que ouviu depois foi um grito.
Fez um bem danado a Rodrigo observar a expressão estupefata, com direito a um ricto de desprezo na comissura dos lábios, de Thales para Valéria. Era evidente que ele não esperava pela declaração firme e provocativa dela. Talvez fosse o caso de considerar o lance da “última gota de paciência”. O que não tirava nem um pouco a beleza do momento, considerou ele com um sorriso secreto.
Thales examinou o rosto da ruiva que o fitava com os maxilares retesados. O verde dos seus olhos escureceu, e ele sabia o que isso significava, Valéria estava puta da cara. A questão era que ele estava muito mais do que ela.
Baixou bastante o tom de voz ao dizer com aspereza:
― Quando eu quiser que analisem a minha personalidade, pedirei a um profissional da área. Guarde as suas opiniões e o seu psicologismo para suas conversas no cabeleireiro.
Valéria sentiu as palavras baterem em seu rosto, que, em seguida e vertiginosamente, empalideceu. Queria sumir, ser pulverizada naquele exato momento. Mas apenas permaneceu olhando para ele, o queixo tremeu porque ela estava com vergonha. Por mais que ele tivesse falado baixo fora perfeitamente compreensível e claro na sua exasperação. Notou que Rodrigo se mexeu para confrontá-lo e foi contido pela mão de Karen em seu antebraço, pois ela mesma tinha algo a dizer:
― A Val tem razão, e isso não se refere apenas a você, Thales. Eu também sou um pouco metida e o caubói aqui do meu lado também sofre dessa doença. Só que isso não justifica tratar uma mulher como se fosse um bode. Por Deus, você tem de agradecer todos os dias aos céus por ter uma mulher que aguenta esse teu geniozinho do capeta. ― completou com bom humor.
Seu estado de espírito não foi compartilhado pelo fazendeiro, que apertou ainda mais os maxilares cerrando o semblante e se fechando em concha. Concentrou-se na comida cortada em pedaços pequenos e ignorou o resto ao seu redor, até mesmo a mão feminina e hesitante que acariciava o seu antebraço. Ele puxou discretamente o braço para não ser tocado por Valéria.
Ela captou a mensagem e encolheu-se na cadeira.
Rodrigo considerou tirar satisfação do comportamento do marido de sua irmã, da arrogância que ele teimava em manter intacta. Thales era muito bom na tarefa de despertar a raiva alheia. Viu quando Valéria se levantou tencionando se retirar. Não teve tempo de contê-la nem precisou, Thales foi incisivo ao mandá-la voltar para o seu lugar. O tom de ordem irritou o delegado:
― Acha que está lidando com seus pistoleiros?
O fazendeiro ergueu o olhar calmamente para o outro e falou:
― Não, claro que não, os meus pistoleiros são obedientes e leais.
A indireta enganchou entre duas vértebras de Valéria. Ele estava sendo injusto, não havia motivo para se irritar quando somente o que ela fizera fora dar a sua opinião a respeito do seu jeito controlador e prepotente, nada mais.
O clima estava por demais pesado.
Ninita baixou os olhos para suas unhas longas e postiças e quase teve um treco, deu um berro de susto que saiu esganiçado, chamando a atenção de todos. Logo que bateu os olhos na própria mão, cogitou que faltava uma parte do dedo, a ponta do indicador. Mas faltava mesmo era a unha de porcelana pintada de vermelho-puta.
― O que foi, vó? É o coração? ― perguntou a neta, preocupada.
― Que porra de coração, nada. E eu nem tenho problema cardíaco, sua besta. ― declarou a velhinha rabugenta. ― Acho que comi a minha unha.
Nova e Franco apontaram de mãos dadas e olhares assustados. Era evidente que acreditavam que alguém havia se pego com outro no tapa. Os churrascos de domingo haviam se tornado uma atração à parte, como a ida a um circo de horrores: a vontade quase incontrolável de participar de algo que tinha tudo para dar merda.
― Nossa, que susto, quase tive um filho! ― exclamou Nova com um sorriso nervoso.
― Que novidade você ter um filho, Nova. ― debochou Ninita. ― Vocês dois parecem um casal de coelhos.
Franco deu uma risadinha e piscou o olho para a avó de Karen.
Um dos rapazes que assava a carne surgiu com uma costela magra fincada no espeto.
Sem perder tempo, Paola deu um beliscão no ombro do pai e, com um sorriso cheio de charme, pediu para ele deitar uma “cáne” no seu prato. Atendida, ele teve de cortar o churrasco em pedacinhos para que ela não ficasse apenas sugando o suco da carne e cuspindo-a no prato, como fazia com os seus bifes no almoço.
E então um novo assunto veio à baila, e Karen se sentiu na obrigação de ser a portadora das últimas novidades.
Ela bebeu um gole de cerveja, molhou a garganta e, com isso, ganhou tempo enquanto observava os rostos à mesa. Franco cuidava da filha, Nova espiava por cima do ombro de Val o carrinho com as gêmeas adormecidas, e era essa família, a de Franco e Nova, que seria atingida por sua revelação.
Não sabia como dizer de uma forma que não causasse impacto, por isso foi direto ao ponto:
— O Pedro escapou do presídio de Santa Fé.
Nova parou de mastigar e fitou o próprio prato. Digeria a informação de que o seu passado voltara para assombrá-la. Não, não era mais essa a sua vida, a cheia de medos e apreensões. Ela simplesmente não queria mais isso para si nem para sua família. Ensaiou uma declaração de descaso, pois acreditava que um criminoso de Matarana, fugido da prisão, jamais voltaria à cidade onde fora preso. Notou que Franco não se manifestou, ainda concentrado que estava em supervisionar o almoço de Paola. Por certo, ele não sabia sobre a sua ligação com o ex-funcionário do coronel Marau. Franco entrara em sua vida no momento em que ela escapara de um emboscada na Coração de Ouro, quando fuxicava no alojamento do aliciador de trabalhadores, mas talvez Thales não houvesse lhe revelado toda a história, que começava desde as suas investigações e tocaia espreitando o bandido que, por causa dela, fora preso por Rodrigo.
Thales endereçou um olhar sério e perscrutador à chefe da segurança de suas fazendas e indagou secamente:
— Ele está na cidade?
Karen desviou a sua atenção dele e encarou a amiga, que fingia não se importar com o rumo da conversa, obcecada em cortar uma folha de alface em tiras finas.
— Há rumores de que ele tenha fugido justamente para acertar contas com alguém aqui em Matarana.
— Meus homens fizeram uma boa varredura, e o Pedro não foi encontrado. Portanto, por enquanto a presença dele em Matarana não passa mesmo de boato. — asseverou Rodrigo, com bastante calma, encostado com displicência contra a cadeira, um palito de dentes descansando no canto da boca, o olhar cravado no homem que o encarava do outro lado da mesa.
— É mesmo? O seu efetivo de dez homens da polícia militar ou o da civil, com o ex-ator pornô e a miss simpatia? — indagou Thales com um menosprezo misturado à ironia.
Rodrigo sorriu um sorriso preguiçoso que beirava a presunção.
— Sim, os mesmos policiais que prenderam os “seus homens” que não tinham porte de arma. Está lembrado, cidadão?
— Por que estamos falando sobre esse cara? — perguntou Johnny, manifestando-se pela primeira vez. A bem da verdade, ele preferia continuar na posição de ouvinte; porém, estava boiando no assunto.
Karen queria esclarecer todos os pontos para o filho. Entretanto, se o fizesse cutucaria o diabo loiro adormecido. E era isso que Nova queria dela, que não cutucasse o diabo loiro adormecido.
— Bem, ele era empregado do coronel e aliciava gente para trabalhar nas fazendas do falecido. Aí, um dia o Rodrigo o prendeu, e ele agora parece que está disposto a voltar para se vingar.
— Não tem sentido, mãe. Ele vai voltar para se vingar do delegado que o prendeu? O trouxa vai ser preso de novo. Que conversa é essa? — perguntou, desconfiado.
— É o tipo de conversa que as famílias malucas têm aos domingos. — declarou Ninita, levantando-se da cadeira. — Vou tirar um cochilo e espero não ser acordada por nenhuma tragédia. — ela se virou para Thales e falou com a voz morna e quase carinhosa: — Resolva suas diferenças com o Rodrigo, meu filho, senão vou acreditar que vocês dois têm uma ligação erótica muito maior do que eu pensava.
Sabrina e Johnny se entreolharam e caíram na gargalhada.
Então Karen notou o que não deveria perceber a olho nu, o que não era tangível, palpável e real. Permitiu-se mergulhar no ato e, sem usar qualquer tipo de raciocínio lógico, apenas se entregou à admiração da cena a sua frente, a intuição enxergou pelos seus olhos, a alma compreendeu pelo seu cérebro e assim ela viu, ela viu a comunicação instintiva e quase sobrenatural entre criador e criatura, entre o homem que sobrevivera e renascera das trevas e o seu filho, o diabo encarnado. Um fio de puro magnetismo os conectou sem palavras e isso aconteceu no momento em que Thales olhou para Franco e este sentiu a força do seu olhar, do chamado, da ancestralidade, da pertinência e do caos. Karen não deveria ter presenciado e ela não entendia como conseguira romper a bolha invisível que separava pai e filho dos demais, daqueles que não eram constituídos do mesmo material, da união beligerante do bem com o mal, sem mais de um nem menos do outro, tão-somente os dois, explosivos, unilaterais e prontos para defenderem os seus protegidos. Porque Thales sabia sobre tudo o que acontecia na cidade a qual fundara, o seu reino, e Pedro agora se tornara a maior das ameaças ao clã Dolejal. E assim como acontecera a Mendes e ao coronel, ele teria de ser eliminado. E foi isso que Franco entendeu olhando firmemente para a figura imponente e indestrutível que era o seu pai, o seu deus, o seu mentor.
Os insetos bateram selvagemente as asas dentro da sua cabeça e Franco assimilou que uma entidade se rebelava ao cárcere. Não queria deixá-lo emergir, a paz dos novos tempos quase o fazia voar de tamanha plenitude. Mas agora uma sensação de mal-estar o comprimia no estômago, a intuição de tantas vidas gritando como um maldito alarme de perigo e ele nem sabia por que precisava se preocupar. Até que Thales falou o que Nova tremeu ao ouvir:
— O Pedro é um pistoleiro tão vingativo quanto o Mendes, e por causa da nossa ex-jornalista, ele foi preso pelo delegado. É provável que esteja de tocaia no meio do mato e aproveite para atacar a sua fazenda, Franco. Ele quer se vingar é da sua mulher.
Nova empalideceu e endereçou um olhar aflito a Karen. Não era para isso ter acontecido, o olhar dizia, não era para evocar os espíritos dormentes. Ela não temia a volta de Pedro ou sua improvável vingança; temia aquele que estava ao seu lado com a coluna empertigada, o corpo duro, a posição de espera de um cão feroz pronto para o sinal de ataque. Podia ouvir a respiração pesada, contida e, loucura ou não, ela era entrecortada com o som baixo e perigoso de um rosnado, um pigarro grosso e rouco, o som de algo sendo expulso pelos bronquíolos. Assustada, virou-se para ele e o encontrou com a cabeça baixa como se fitasse a mesa ou através dela.
Rodrigo já havia presenciado em algumas ocasiões a insurgência da outra personalidade de Franco. E ela surgia ao comando de Thales. O problema era que Nova corria perigo de vida, embora o delegado não tivesse certeza disso. Pedro não fora localizado em Matarana. No entanto, caso ele de fato voltasse à cidade seria, sim, para cumprir o que lhe dissera atrás das grades anos atrás, ou seja, “jantar a galinha”.
— O Johnny tem razão, — começou Nova nervosamente e, virando-se para Franco, completou incisiva: — ele jamais voltaria para cá. O coronel o deixou na mão e, além disso, está morto. O que ele faria aqui senão bater de frente com a polícia e ser detido de novo? Franco, olha pra mim! Não quero esse tipo de terrorismo psicológico dentro da nossa casa, entendeu? Franco!
Ele se voltou para ela sem necessariamente fitá-la, enxergava para além do posto à sua frente.
— Vamos seguir com nossas vidas, está bem? — ela insistiu.
— Temos de armar os seguranças da Quatro Princesas. — determinou Karen, recebendo um olhar feroz da amiga.
— Já disse que não.
— Arme os pistoleiros, Karen. — ordenou Thales.
Imediatamente Nova se voltou para o sogro e tudo no seu rosto mostrava o quanto repugnava a ideia de ter gente armada perto das suas filhas.
— Não! Ninguém vai empunhar merda nenhuma de arma na minha casa!
Valéria estava tensa. Sempre ficava ao lado de Nova e queria continuar a apoiá-la. E iria apoiá-la. Foi o que fez.
— Dê armas apenas aos pistoleiros que ficam na portaria e deixem as demais armas por lá, caso os outros precisem delas. — sugeriu hesitante, mordendo o lábio inferior. Talvez recebesse chumbo grosso do homem que usava uma aliança de ouro com o seu nome na parte interna do aro.
Thales não se manifestou. E Val sabia o motivo: ele estava emburrado com ela. Entretanto, Karen, por sua vez, lançou-lhe um sorriso de agradecimento.
— Na mosca, Val, foi isso mesmo que pensei. O que acha, Nova?
A mulher de Franco não estava para brincadeiras nem diplomacia:
— Acho que já fui clara o suficiente quando disse que não quero porra de arma nenhuma perto das minhas filhas! Não quero que elas vejam uma automática! Não quero que elas saibam que as pessoas se matam atirando umas contra as outras! Não quero que elas descubram antes da hora que existe um mundo cão, um mundo de sangue, de vingança e de ganância! Elas crescerão dentro da mesma realidade que eu cresci, pura, feliz e infantil! Mais alguém aí vai me foder a paciência? — elevou a voz embargada.
Paola arregalou os olhos e se virou toda para ver a mãe.
Franco ergueu a cabeça, o queixo altivo, os olhos chispando o azul brilhante. Ele olhou para cada membro das famílias ali presentes, e todos ficaram em silêncio, uma quietude expectante, interessados em saber se ele bateria de frente com Nova. Era o que parecia.
Encarou a esposa com a expressão séria e afirmou taxativo:
— Não se preocupe, eu estou aqui.
Ela aproximou o rosto do dele, olhou detidamente aquele que se apresentava com tamanha serenidade e obstinação tal qual uma entidade metafísica. Tocou-o no maxilar com a ponta dos dedos e beijou seu rosto com suavidade. Ao se afastar, viu o sorriso jovial que tanto amava e agradeceu baixinho por ele ficar ao seu lado.
Rodrigo ajeitou-se na cadeira ligeiramente incomodado. Avaliou a atitude de Franco e a sua afirmação dita com uma tranquilidade que não fazia parte da sua personalidade. Suspeitava de algo. Farejou no ar uma possível encenação. E o seu instinto de policial ficou atento a cada detalhe ao seu redor, como a postura displicente e o sorriso de satisfação de Thales Dolejal enquanto admirava o casal abraçado. Ele sabia que Franco não estava mais lá.
Valéria sentia no corpo os efeitos do tenso churrasco na Quatro Princesas. Parecia que tinha corrido uma maratona, os músculos endurecidos. Assim, ao chegar em casa, pegou o filho no colo e se enfiou na banheira com ele e os seus patinhos de borracha.
Sabrina preferira sair com Johnny, e os dois se mandaram para o centro da cidade. A ideia era aproveitar os 32 graus — uma temperatura de primavera para os padrões climáticos de Matarana, e se refestelarem debaixo do guarda-sol de uma sorveteria. Assunto entre os dois jamais faltava.
Durante o caminho de volta, Thales permaneceu em silêncio, concentrado em ignorá-la. Em três anos de casamento, era a segunda vez que brigavam, sem, no entanto, brigar. Uma situação bastante peculiar, considerava Val, já que a briga entre ambos era silenciosa, mas não por isso menos agressiva. Ela odiava falar com as paredes. Da outra vez, o motivo também fora fútil, embora tenha estressado o marido ao ponto de castigá-la com a sua indiferença por duas semanas. O fato de Valéria ter saído de casa sem o celular e passado o dia inteiro num evento para mulheres empreendedoras, em Santa Fé, custou-lhe catorze noites sem fazer amor com ele, catorze longas madrugadas sem tê-lo no seu corpo, junto dele, colada a ele, mordida, beijada e chupada por ele, louca por ele. Sem a sua companhia nos lanchinhos das 3 da manhã, sem poder caprichar na geleia de sua torrada ao servi-lo no desjejum, sem dividir a banheira com ele, amá-lo sob as espumas, grudar-se nele, ser o seu selo, a saliva, a língua que lambe. Deus!, duas semanas no inferno sem Thales, gemeu Valéria baixinho, observando-o de esguelha. Os maxilares retesados projetando-se debaixo da pele demonstravam que sim, duas semanas no inferno, o veredicto final do juiz, o castigo. E o castigo de Thales era excluí-la de sua vida, fingir que ela era um fantasma pela casa ou simplesmente ficar emburrado no escritório. E à noite dormia num dos quartos de hóspedes. Ele também era expert na arte de se autopunir, como ela já havia constatado.
Depois do banho, pôs um vestido leve, com alças finas e decote rendado e vestiu Theo com suas fraldas descartáveis e um pijaminha curto, de algodão. Notou que a porta do escritório estava fechada e isso basicamente significava: “Valéria, minha querida, você foi dispensada até o meu humor determinar.” Ela deu de ombros, suspirando um “quê fazer...”
Acomodou-se na salinha da tevê. Um lugar que ela mesma havia decorado. A parte mais aconchegante do casarão onde se podia assistir a um filme descansando sobre imensos sofás, o tapete grosso e largo debaixo dos pés, a cortina de renda sobreposta ao blackout em tecido filtrando a claridade vinda dos janelões do terraço e o aparelho de televisão importado, de 75 polegadas. Nenhum móvel além dos sofás para quatro lugares e as poltronas. Tudo era caro, mas não visava à ostentação e sim ao conforto, ao fato de se sentir bem na própria casa.
Valéria podia passar o domingo inteiro ali, de pernas para o ar, vendo Theo apertando e abraçando o seu jacaré de pelúcia enquanto assistia ao DVD dos Teletubbies.
E era o que eles faziam naquele momento, enquanto a tarde se transformava em noite e o céu sem nuvens ficava alaranjado como o céu de uma terra mágica.
Percebeu de soslaio a figura alta parada à porta. Thales saíra da toca.
Antes de se isolar no escritório, ele havia tomado banho e trocado de roupa. E, agora, discretamente, ela via-o vestido num jeans e uma camiseta cinza, sem estampas. O cabelo úmido e penteado, a aparência de homem limpo que sempre lhe emprestara um charme irresistível, ainda mais quando se vestia de modo displicente e não calçava nada nos pés.
De onde estava ela aspirava a fragrância da sua loção pós-barba e o cheiro do sabonete. Tal constatação resgatou-a do refúgio da sua calmaria, queria se jogar em seus braços, senti-lo abraçando-a e beijá-lo na curva do pescoço, no queixo, na boca. Mas não podia, ele não queria a sua aproximação. Por isso ele ficara ali parado, olhando para o filho sentado em cima do seu jacaré de pelúcia, montando-o como se fosse um cavalo. A qualquer momento o pobre animalzinho cuspiria seu enchimento de espuma pela boca.
Thales fora atraído pelos gritinhos de felicidade de Theo a cada vez que Tinky Winky aparecia.
Ao perceber a presença do pai, o garoto se postou diante da tevê e, apontando para a tela onde o personagem roxo de bolsa vermelha aparecia e sumia detrás do morro, desandou a falar um dialeto confuso e ansioso que escapava por debaixo da chupeta.
Ele olhava para trás, a fim de se certificar de que o pai estava prestando atenção no seu ídolo da tevê e, ao mesmo tempo, tentava acertar o dedinho na mira do personagem correto, já que a todo o momento a cena mudava e apareciam os outros três e, pelo o que Valéria já conhecia sobre as preferências do filho, ele ria de Dipsy, Laa-Laa e Po, contudo, o com o triângulo invertido na cabeça o divertia ainda mais.
Tão logo Thales sentou no sofá, o bebezinho com o traseiro gordo de fraldas correu para o seu colo, o jacaré atrapalhou o movimento de suas pernas e por pouco não o levou ao chão. A mão do pai evitou a queda e, em seguida, apertou o corpo miúdo e magro contra o seu tórax.
Theo colou a sua testa contra a testa de Thales, sugando com força a chupeta demonstrando a sua ânsia por atenção, sempre faminto pela presença daquele que se havia doado inteiro desde o seu nascimento quase dois anos atrás.
Thales o acalmou, batendo com carinho no seu traseiro gorducho e puxando-o para si. Era certo que após tomar banho e jantar, meia dúzia de cafunés tornariam o bebê refém de um sono profundo. E, após ele adormecer, o poria no berço em seu quarto e voltaria ao escritório. Daria uma boa lição na senhora Dolejal refestelada no sofá sem qualquer interesse em se desculpar pela afronta à mesa diante de Rodrigo Malverde e seus fãs.
Relançou um olhar para ela e se descobriu também sendo observado. Um par de olhos verdes tentava adivinhar suas intenções. Era um inferno isso, Thales refletia a contragosto, ter de lidar com os extremos, com a vontade de discipliná-la, pô-la no devido lugar e a vontade de voltar a falar com ela, conversar, ouvi-la contar suas histórias de adolescência, suas fantasias de infância, as fofocas que ouvia no salão de beleza. E como Valéria falava, Deus do céu! Tinha munição para todos os assuntos, e não dominando um ou outro, desandava a perguntar a respeito até dominá-lo. Thales nunca fora muito falante, fazia mais o tipo que nascera para ouvir. E ele gostava de ouvir a ruiva empolgada com suas palavras, as mãos falando junto numa mímica exagerada.
Não se casara com Valéria por amor nem a amava quando a pedira em casamento. A verdade era que se casara com a única mulher com a qual podia passar madrugadas inteiras simplesmente conversando. O que não precisava fazer, visto que além de tagarela, Valéria era o fogo na forma humana. Quente e safada, concluiu ele, descendo os seus olhos para os lábios dela, úmidos, entreabertos, pervertidos.
— Posso pedir uma coisa?
Ela usou um tom doce e um olhar de pedinte.
Ele se retesou à espera do golpe bem no meio do seu crânio.
— Por acaso o que vai pedir são desculpas? — ironizou sem deixar de se manter sério.
— Devo pedir desculpas por expressar a minha opinião? Acho que não se justifica um pedido de desculpas, Thales, sinto muito.
— Não, você não sente porra nenhuma, Valéria. Você e o seu irmão estão tão imbuídos na missão de me afrontarem que acabarão quebrando a cara. Para todos, naquele churrasco, o único cretino sou eu e, na verdade, quase todo mundo ali também tem o rabo preso.
— Nunca disse que é um cretino...
Ele a interrompeu com um gesto vago de mão.
— Vamos listar... Bem, excluindo os inocentes que, para mim, são as crianças, os adolescentes, o Franco e a única idosa da família, o resto está sujo ou em vias de se sujar. A sua querida amiga Nova invadiu a fazenda do coronel, perseguiu um homem que supostamente era um aliciador, dopou o meu filho e o amarrou na cama e, ainda por cima, desarmou o delegado apontando uma arma para a cabeça dele. — ele fez uma pausa e sorriu com deboche antes de continuar: — A Karen é uma homicida, e o Rodrigo prende de acordo com a sua vontade e já até inventou leis para pôr gente atrás das grades e, além de tudo, roubou a minha mulher na primeira oportunidade... Bem, por último, você, minha querida. Tudo o que os seus ouvidinhos captam por aqui, na nossa fazenda, vai direto para os ouvidinhos do delegado. Sabia que tive de criar um código para conversar com o Bronson perto de você? Que feio, Valéria, espionando o próprio marido para fofocar com o irmão. Além disso, esse Malverde dos infernos sempre foi protegido por mim, pelos meus homens, pelos pistoleiros que são pagos com o meu dinheiro e se não fosse por isso, teríamos mais um funcionário público de merda debaixo da terra. E sabe como ele me agradece? Primeiro, novamente, roubando a minha mulher e, segundo, entregando um dossiê sobre o suicídio do meu avô às autoridades...
— O quê? — ela indagou, intrigada.
— O santinho do seu irmão elaborou um dossiê com supostas provas de que eu tenha assassinado o meu avô e forjado o seu suicídio. Até aí pouco me importa, esse boato já virou lenda urbana e faz parte da história da colonização de Matarana. — declarou dando de ombros. — O problema, minha querida, é que o Rodrigo entregou uma das cópias desse dossiê contra mim para o Franco. Entendeu a extensão desse gesto? A magnitude dessa maldade? O meu filho me denunciará como assassino do seu bisavô caso o delegado de Matarana sofra um arranhãozinho qualquer no seu rosto de galã de Hollywood. Isso é crueldade, e não para comigo, claro que não, estou me fodendo para as ameaças do seu irmão. A crueldade é para com o garoto que ele diz que se importa. Sou sim um filho da puta, Valéria, nunca neguei isso nem faço pose de bom-moço, mas não sou desleal e honro as minhas amizades, coisa que o seu irmão já me deixou na mão. E hoje você agiu como ele. Portanto, se não quer se desculpar, tudo bem, está no seu direito. Assim como eu também estou no meu direito de mandá-la à merda.
E, dizendo isso, se levantou com o filho adormecido no colo e deu-lhe as costas.
Então era isso, ela pensou, pasma, ainda fitando um Thales que não estava mais sentado ao seu lado.
— Ok, chega de cerveja, já está na hora de dançarmos.
Karen se voltou para Rodrigo, que se levantava da cadeira ao seu lado no alpendre e entrava em casa. Cinco minutos depois, ouviu a porta que separava a sala do corredor que levava aos quartos ser fechada, e My Love for You ressoou no aparelho de som. Ela sorriu encantada. A noite estava perfeita, crivada de brilhantes sob o fundo negro, a temperatura amena e um moreno lindo que ela amava pra cacete voltava sem chapéu e cheio de más intenções.
Para eles, dançar fazia parte das preliminares.
— De onde desencava tanta velharia, hein, caubói? — perguntou num tom divertido.
Ele meio que sorriu, agachando-se diante da cadeira dela, e respondeu com aquele jeitinho característico de homem jovem das antigas:
— Sempre encontro a canção certa que fale tudo por mim, sou bom nisso, amor. — ele piscou o olho para ela e continuou, as mãos escorregando pelas pernas dela: — Agora vamos tirar essas botas e mandar ver.
— Ah, certo, sei que não sou uma boa dançarina, mas consigo dar uns passinhos sem pisar nos seus pés. — fingiu-se de ofendida.
— Concordo plenamente, e se eu estivesse de botas, manteria as suas também. A questão é que prefiro não arriscar a integridade física dos meus dedos.
Ela riu, e ganhou um beijo estalado na bochecha.
— Vem, amor, gruda teu corpo no meu e me deixa te levar. — disse Rodrigo com um sorrisinho malicioso.
Virgem-Maria-do-tamanco-torto!, como esse homem é terrivelmente sexy!, pensou ela, quase verbalizando o pensamento. Conteve-se para não encher muito a bola do delegado. Era doida por ele e por isso mesmo precisava mantê-lo na rédea curta. Aprendera desde cedo que quem se abaixava demais mostrava a calcinha. E isso na área dos relacionamentos afetivos significava: não exagere na expressão dos seus sentimentos. Ao se dizer vinte vezes por dia “eu te amo”, com o passar do tempo, a expressão de um sentimento profundo acabava se tornando aquelas frases automáticas que se dizia na falta de algo mais criativo ou para se livrar de um silêncio incômodo. Além do mais, Karen não era uma mulher insegura e tampouco cega. Vivia com um homem gostosão, com jeito de caubói das antigas, lindo de morrer e com um bom número de interessadas no posto de senhora Malverde. A última coisa que deveria fazer era permitir que o namorado se sentisse seguro demais, com o jogo ganho, com a faca e o queijo na mão, o rei do pedaço. De jeito nenhum! Às vezes ele simplesmente tinha de levar nos cornos, uma patada básica, uma ignorada esnobe ou apenas fingir que não ouvia o que ele comentava à mesa, embora tudo o que ele dissesse a interessava sobremaneira. Era engraçado vê-lo repetir duas, três vezes algo que ela prestara atenção e, mais engraçado ainda, era perceber o quanto essa sua “indiferença” irritava-o.
Entretanto, naquele exato momento, tudo o que Karen queria na vida era dançar com ele. Deixou-se ser conduzida pelos braços fortes que, vez por outra, desciam para o seu traseiro e depois voltavam, puxando-a contra o corpo forte e ligeiramente musculoso.
Ele baixou a cabeça e colou seu rosto no dela, uma mão entrelaçava os dedos com a dela e era trazida ao encontro do tórax masculino. Mal tirava os pés do assoalho de madeira, mexendo-se lentamente enquanto sentia o corpo da sua morena segui-lo no ritmo lento e envolvente da música romântica.
Karen lembrou-se de outro assunto pendente, e que se repetia todos os anos, desde que Jasmine se fora. Não tencionava quebrar o clima, ainda mais quando Rodrigo se mostrava tão jovial e alegre, parecia até que a vida estava lhe dando uma folga de seus problemas. Mas, de certa forma, ele já sabia o que a incomodava ao ponto de fazê-la errar o compasso e pisar no seu pé.
Ele riu e comentou fazendo graça:
— Humm, boa ideia tirar as suas botas, não?
— É, sou meio desajeitada.
— Não, não é. — ele falou com ternura, enganchando o polegar debaixo do queixo dela e fazendo-a olhar diretamente em sua direção: — Sei exatamente qual o rumo que os seus pensamentos tomaram desde que começamos a dançar. Você se sentiu feliz e, ao mesmo tempo, culpada. Bobinha que é me imaginou com a Jas anos atrás, dançando aqui nesse alpendre e, em seguida, se deu conta de que amanhã seria o aniversário dela se ainda estivesse conosco.
Ela parou de dançar. Era estranho que sentisse um imenso vazio no peito, um peso, o estranho era que uma ausência lhe fosse tão presente. Era a dor da falta e o martírio da saudade que jamais seria aplacada.
— Vamos levar flores ao túmulo dela. — ela, por fim, disse, com um engasgo na voz.
— Sim, claro, como todos os anos.
— Certo... Ela gostava de tulipas, mas nunca encontrei tulipas em Matarana...
Rodrigo notou a emoção carregada na voz rouca da namorada, mais algumas palavras, e ela cairia no abismo do luto e da tristeza, das reminiscências inúteis também, uma vez que recordar não era viver; era parar de viver para lembrar o vivido. Longe de sua vontade deixá-la cair, por isso começou a contar como ele era de verdade à luz do luar.
— Sabe quando me apaixonei por você?
Ela fez que não com a cabeça e se abraçou nele que, por sua vez, passou seus braços ao redor do corpo dela, envolvendo-a como uma couraça de proteção.
Quando Karen se permitia dar vazão aos seus sentimentos, ele tinha a confirmação do que sempre soubera, a reafirmação de uma certeza que era acompanhada lado a lado de outra: primeiro, que ela era uma garotinha, durona, cheia de si, mas ainda uma garotinha, e sua; e, segundo, que a amava ao ponto de trapacear para tê-la para si.
Contou então uma história junto ao seu ouvido num sussurro rouco sem, no entanto, perder a firmeza na voz, nenhum pingo sequer de hesitação:
— Quando busquei sua cumplicidade para tentar impedir que a Jas me deixasse e voltasse para Porto Alegre, entrei na sua casa todo fodido de dor e autopiedade, e você disse para eu deixar de ser um egoísta idiota e esperar as coisas se ajeitarem por si mesmas. Você não queria impedi-la, nem tentou mantê-la conosco. Senti tanta raiva, tanta raiva de você. E sabe por quê?
Ela o encarou com lágrimas nos olhos e nada falou.
— Porque ela ficaria se você pedisse. A Jas era influenciável e superficial, bastavam meia dúzia de argumentos para impedi-la de nos deixar, como sobre a sua futura vida de volta ao sul morando novamente com os pais, procurando emprego após ficar sete anos fora do mercado de trabalho, apenas isso, sem se referir ao fato de que ela poderia ainda sentir um restinho de amor por mim. Mas você ficou do lado dela e pouco se importou consigo mesma... Anos mais tarde, a vó me contou que depois que saí você chorou. E que chorou também quando a Jas contou sobre a sua decisão de partir e nos deixar. Mas eu não sabia sobre isso, ainda não.
— Me odiou por isso, Rodrigo?
— Não, Karen, pior que isso. — ele enrijeceu os maxilares e completou numa expressão profunda: — Naquele mesmo dia, comecei a me desesperar porque descobri que o que me incomodava não era o fim do meu casamento ou a viagem da Jas. Havia algum tempo que o que me incomodava era não conseguir definir direito o que eu sentia por você e, pior que isso, o que sentia ao vê-la se relacionando com os homens que passavam pela sua vida.
Não havia acusação ou censura naquela declaração. Contudo, ela se sentiu compelida a se defender:
— Eles nunca representaram nada para mim.
— O Thales, sim. — rebateu com frieza.
Karen sustentou o olhar duro do namorado e assentiu:
— Sim, o Thales, sim.
— Ainda que ele a fizesse sofrer, que a induzisse a beber e brigar pela cidade, a se descontrolar e tentar se destruir, ainda que ele não a assumisse em público e a levasse para quartos de hotel, não a respeitando como mulher e mãe de família, uma boa mãe e, ainda que ele jamais a tenha merecido, tenho plena consciência da importância do Dolejal para você...
— Rodrigo... isso já passou...
— Claro que já passou; afinal, ele se casou com a minha irmã, e você está comigo. Acha mesmo, Karen, que descobrindo que era você a mulher da minha vida, e não a Jasmine, eu a deixaria viver o resto da sua vida com um homem que tentava subjugá-la para provar que, mesmo louco de amor por você, não precisava de ninguém? — ele tomou o rosto dela entre as mãos e fitou a expressão expectante: — Esperei minha hora chegar quieto no meu canto, mas também perto de você, o amigo para todas as horas, o cara que a tirava das enrascadas, que lhe cedia a cama...o cara com o qual você se desarmava, porque eu era apenas o viúvo de sua melhor amiga que se tornara o seu melhor amigo... Foi dureza me manter discreto sufocando todo esse amor e a vontade de trazê-la para debaixo do meu teto. Só que eu também sabia que o Thales uma hora ia pisar feio na bola e aí eu daria o bote...
Karen arregalou os olhos assustada diante da expressão de júbilo à referência do que até então parecia somente ser uma acusação leviana de Thales, um ato deliberado de se eximir da responsabilidade pelo desgaste do relacionamento entre ambos. Por certo, ele não era o primeiro nem seria o último ex a acusar o atual de ter a sua mulher roubada de si. Como se uma mulher fosse um objeto para ser possuído, doado ou roubado. A questão, para Karen, nem era mais essa. Pouco se importava com o machismo daquela terra. O que fazia jorrar o suco gástrico no seu estômago era ouvir a confissão de Rodrigo, a confirmação sobre algo que Thales ruminara durante anos, e ela jamais acreditara porque fora ele, Thales Dolejal, que a dispensara para ficar noivo da texana.
E foi o que ela disse a Rodrigo.
— Ele não me quis mais, e foi você quem me ajudou a não me expulsarem da cidade. Você não fez nada contra o Thales, nada.
Rodrigo lançou-lhe um sorriso charmoso, diabolicamente charmoso, como bem pôde constatar.
— Sim, meu amor, e era esse tipo de pisada na bola que eu esperava para acabar com aquele relacionamento de merda que você insistia em manter.
— Não, você não é assim... — ela falou, meneando a cabeça para os lados, se negando a acreditar que o seu caubói romântico e sensível fosse um articulador frio e oportunista.
— Sou o que sou, Karen, a fama de bom-moço quem me deu foi você. Somos diferentes em relação a muita coisa, mas me permito dizer que temos algo importante em comum, — ele sorriu com o canto da boca e a beijou levemente na ponta do nariz antes de fitá-la e completar: — o que eu quero, eu pego. — depois, encostando-se contra a amurada de madeira e acendendo um cigarro com a mão em concha, continuou, o semblante agora sério: — Quem manda em Matarana sou eu. Sou eu quem decide quem fica, quem vai pra detrás das grades, quem é solto, quem é invisível e quem eu tenho de vigiar. Matarana é minha. E, além disso, sou eu quem tem Thales Dolejal na palma da mão, pronto para ser esmagado. Aquele homem tem um ponto fraco e, agora, não é mais você, Karen, porque agora você é o meu ponto fraco. O ponto fraco do Thales é o Franco. — ele tragou fundo o cigarro e expeliu a fumaça pelas narinas: — E depois do que assisti hoje à mesa, tenho certeza de que a Val e o Theo também me servirão como trunfos. É engraçado como às vezes, só às vezes, o poder econômico não significa merda nenhuma, e isso só acontece quando você descobre que um figurão cheio da nota venderia até a alma para manter determinadas pessoas ao seu redor. E é esta a fraqueza do Thales: se pôr na mão dos outros acreditando piamente que tem todos sob o seu jugo e poder, coitado.
Karen engoliu em seco. Era essa a visão de Thales a respeito de Rodrigo. Ela conseguia enxergá-lo agora através dos olhos dele. Não sabia o que pensar. Medo? Decepção?
Deslumbramento.
— O que aconteceu com você? — perguntou quase sorrindo. Esse só podia ser o lado B do homem que ela amava.
— Simples, bem simples. Cansei de ser ofendido... — ele esmagou a bagana contra a amurada e completou determinado: — Bom-moço o cacete, jamais me sujei por dinheiro ou qualquer outra merda, mas não permito que deem as cartas onde quem faz o jogo sou eu. Roubei, sim, a mulher de Thales Dolejal, e Matarana não é o reino dele, não. Só não se esqueça de uma coisa, Karen. Por mais que a minha consciência tenha quase me feito perdê-la, cercá-la ao ponto de não permitir que tivesse uma recaída e voltasse para ele foi resultado da decisão do meu coração, não do meu ego ou coisa parecida. Se quase a perdi mandando você de volta a Arco Verde, foi porque jamais aceitaria que não fosse feliz comigo. Você é a minha vida, é o meu amor, é a minha parceira. E azar de quem não viu o seu valor. Quero mais é que se fodam. — concluiu, retesando os maxilares.
Ele se afastou de onde estava e a puxou contra o seu corpo. Fingiu que não percebeu as lágrimas nas bordas das pálpebras dela.
— E agora vamos pra cama que quero ficar dentro de você.
Com ele era assim, simples assim.
Os janelões que separavam o escritório da ampla sacada estavam abertos e as cortinas voejavam graciosamente. Um vento morno soprava para dentro do ambiente o cheiro da terra umedecida pelos irrigadores eletrônicos, um bafejo pungente e, para ela, familiar e reconfortante. Era o cheiro da terra dele, do homem parado diante da planície aberta e da lua camuflada pela fumaça das queimadas.
Abraçou-o por trás e deitou a cabeça contra as costas dele, sentindo-o imediatamente se retesar. Desconsiderou o movimento e deitou o nariz no tecido da sua camiseta, o cheiro morno e refrescante agindo sobre si como um potente e lânguido narcótico. As mãos se cruzaram em torno do tronco rijo e ela disse numa voz abafada contra o corpo dele:
— Não sabia sobre o dossiê, me perdoa. Respeito as razões do meu irmão e sei que você jamais faria mal algum contra ele, mas admito que fui grossa hoje no churrasco e acabei estragando o seu dia. — ela fez uma breve pausa e se grudou ainda mais nele: — Só peço para que não me deixe sozinha, por favor.
Ele olhou para os braços ao redor de sua cintura e se manteve impassível ao responder:
— Quando a deixei sozinha se desde que nos casamos não viajei mais?
— Sozinha pela casa, digo. — respondeu baixinho.
Thales exalou uma respiração pesada e lenta, como a de alguém cansado de ouvir a mesma ladainha e era o que se passava com ele naquele momento. Por isso tentou se desvencilhar do abraço e pôr fim a um assunto já tratado no dia anterior.
— Olha, não vamos nos prolongar com isso, ok? Preciso voltar ao trabalho, decidi que teremos um haras e estou analisando alguns empreendimentos. É possível que até o final da semana eu tenha de viajar para o interior de São Paulo para comprar os primeiros cavalos.
Então não seria apenas ignorada. Ele voltaria à sua vida de workaholic. Apertou-se ainda mais contra o corpo forte que procurava se afastar discretamente.
— E depois?
— O que quer saber?
Esperou que ele se virasse e a encarasse nos olhos, até tentou parecer segura ao sustentar o seu olhar. O problema era que por dentro tremia, tremia em função da notícia de que ele viajaria, ficaria longe dela, cederia ao seu vício por trabalho e talvez levasse uma assistente consigo. Um executivo do seu cacife não viajava sem uma excelente assessoria e, no caso de Thales, não seria a boa e velha senhorita Freitas, secretária do seu escritório, que o acompanharia.
— Não se esqueça de que você tem uma família. — foi incisiva, dando-se o direito de erguer ligeiramente o queixo em desafio.
Thales ameaçou um sorriso, mas como não estava com vontade de sorrir, o gesto se tornou mero esboço de uma reação tendendo à ironia.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Na verdade, é você que está confusa quanto a qual família pertence, por isso acho melhor lhe dar um tempo para se posicionar a respeito. Não se preocupe, será uma viagem de um dia apenas, não pretendo ficar mais tempo longe do meu filho. — declarou, olhando-a duramente.
— Claro, bem, mesmo assim ele notará a sua ausência...
— Sabe usar o Skype?
Ela fez que sim, atordoada.
— Agora preciso voltar ao escritório, com licença. — ele pediu, pondo as mãos nos antebraços dela e a afastando educadamente do seu caminho.
Entrou atrás dele. Viu-o se sentar detrás da mesa e digitar no notebook o que confiscava sua total atenção. Manteve-se parada no meio do escritório, sentindo a maciez do tapete persa debaixo dos pés, aspirando o cheiro da madeira dos móveis se misturando com o odor característico do campo. Balançou os braços devagar ao longo do corpo, sentindo-se deslocada e, ao mesmo tempo, apreensiva, frustrada.
— Bom, vou para cama. Vai demorar muito por aí?
Ele nem se deu ao trabalho de levantar a cabeça para responder:
— Não se preocupe comigo, dormirei no quarto de hóspedes. Boa noite.
Inferno!, ela pensou, fechando o punho.
— Já pedi desculpas. Pra quê continuar com isso?
Thales ergueu os olhos do computador e respondeu com bastante serenidade:
— Pediu desculpas por ter sido “grossa”, como se referiu, mas ainda assim respeitando as razões do seu irmão, ou seja, continua afirmando que sou um controlador de merda que me meto na vida de todo mundo. — ele parou, suspirou fundo e apertou as têmporas, cansado: — Detesto ficar me repetindo. O melhor que tem a fazer é ir se deitar e me deixar em paz. Pode fazer isso, Valéria? É possível?
Ela trincou os dentes contendo um palavrão. Ele a tratava como se fosse um subordinado.
— Sim, Thales.
Ele a olhou num misto de menosprezo e arrogância.
— Só é obediente quando lhe convém, não é mesmo? — constatou.
— Vim fazer as pazes, não quero que me ignore por sabe lá quanto tempo, me propus a pedir desculpas por ter expressado a minha opinião em público e sinceramente acho que você está exagerando isso tudo.
Ele se recostou contra o encosto da cadeira e até sorriu ao indagar mantendo o tom baixo e controlado da voz ligeiramente rouca:
— Um pedido falso que faço questão de dispensar.
— Não foi falso e nada do que eu faço é falso, senhor Dolejal. E já vou avisando: nada de levar acompanhantezinha na sua viagem a São Paulo. Estamos entendidos?
A expressão do rosto dele espelhava surpresa que foi enfatizada inclusive pelo arquear de uma das sobrancelhas.
— O que disse?
Valéria apertou os lábios e respirou fundo. Era uma dureza se impor diante de um homem dominador.
— O que ouviu. Meu marido, minhas regras.
Viu-o sorrir devagar, com preguiça, como se o cérebro processasse as suas palavras aos poucos e elas lhe soassem engraçadas.
— Ah, que merda se sentir insegura, não? Sabe por que isso acontece?
— Sei, sim, porque o marido quer se vingar da esposa e resolve arranjar uma viagem de última hora. — respondeu com aspereza.
O sorriso se ampliou ao ponto de marcar-lhe a face com dois sulcos ladeando os lábios.
— O que está achando de provar o sabor da sua própria estupidez, hein, querida esposa? Ação e reação, já ouviu falar? Toda a vez que me afrontar levará na cabeça. — ele parou de sorrir e emendou secamente: — Minha mulher, minhas regras.
Valéria balançou a cabeça como se estivesse diante de algo inacreditável, como um elefante com pantufas, por exemplo, ou um homem tremendamente cara de pau. Sentiu uma pontada aguda na cabeça e até olhou para trás, alguém lhe havia enfiado uma lança no crânio. Mas talvez fosse apenas o início de uma tempestade de eletricidade.
— Não seja louco de me trair.
Ela falou tão baixo que parecia ter gritado e, se o tivesse feito, seria aquele tipo de grito quando humanos deixam escapar um bicho selvagem de dentro de si. Uma fúria cega irrompeu de algum lugar onde estava escondida para não assustar os civilizados. Contudo, irrompera acionada por um gatilho, visto que não era da sua natureza ser uma pessoa furiosa. Naquele exato momento, entretanto, estava tomada por uma fúria assassina que quase a fazia levitar.
Thales surpreendeu-se ao ouvir a sentença dita numa voz grossa e grave, tão diferente do tom feminino e juvenil que Valéria usava para falar com ele. E não apenas a voz estava diferente. Notou as narinas se dilatando e o verde dos olhos se escurecendo. A respiração parecia mais pesada, pois seu peito arfava. Avaliou detidamente cada detalhe, uma vez que se acostumara a lidar com vendavais humanos desde a adolescência de Franco. E era isso o que acontecia diante de si.
— Acalme-se, depois conversamos a respeito. — declarou com bastante cuidado, sabendo por experiência que caminhava sobre um campo minado.
Era óbvio que o fato de tê-la dito para se acalmar a irritou ainda mais. Valéria ouviu o barulho da última gota e ela caiu dentro de um barril que se enchia de água desde a sua adolescência...
— Agora! Não tente olhar para outra mulher, nem pensar em outra mulher e, muito menos, trepar com outra mulher. Você pensa que me conhece, imagina que me controla, SONHA com a minha submissão, mas não faz ideia de como eu fico quando estou com raiva...
Ela avançou para frente da escrivaninha e pôs as mãos nela, o corpo posicionado para o ataque, como se a qualquer momento fosse pular no pescoço dele.
Thales estava tão surpreso com a mudança no comportamento dela que a única reação que esboçou foi a de se recostar ainda mais para trás numa atitude inconsciente de autodefesa.
Projetando-se para frente, ela então começou a gritar:
— Arranco teu pênis, Thales! Corto com uma machadada só! É só você ter a infeliz ideia de me pôr guampas, por Deus! Te mutilo e acabo com tua vida!
O fazendeiro piscou algumas vezes, e a surpresa do ataque cedeu lugar a um sentimento que lhe fugia da compreensão racional. Conjecturou rapidamente se não estava diante de um caso de possessão espiritual. Valéria estava transtornada.
Quando ele tentou se expressar no sentido de acalmá-la ou pelo menos tentar conduzi-la novamente à razão, ela continuou gritando ao ponto de a energia desprendida do surto (era somente assim que ele podia entender a situação) a pôr de joelhos sobre a ponta da escrivaninha, o corpo se curvando num meio arco para frente enquanto as mãos apertavam furiosamente o tecido do vestido que ela usava.
— Não se livrará jamais de mim! Sou o teu carma, a tua sina, o teu destino! É como aquele livrinho, meu amor, você se tornou responsável ETERNAMENTE por quem cativou, por mim, e se mijar fora do penico, terá de se sentar para as próximas mijadas. OUVIU BEM, THALES DOLEJAL?
Quando ela se inclinou para pular no seu pescoço, ele ergueu as mãos e pegou as dela, trazendo-a para si e, com o gesto, tudo o que estava sobre a mesa foi empurrado para o chão.
Ele a puxou com força e a apertou entre os braços, o corpo feminino tremia, com espasmos que lhe vinham da musculatura endurecida. Mas ela não chorava nem o abraçava, e foi essa reação que o assustou e o pôs de pé com ela junto a si, dura como estátua.
— O que está acontecendo com você? — perguntou com ternura e, ao mesmo tempo, apreensão.
Tentou mantê-la presa nos seus braços, porém isso estava fora de cogitação para ela, que o empurrou com as mãos contra o tórax dele.
— Não vai viajar com vadia nenhuma!
— Olha pra mim, Valéria, — pediu com toda a calma do mundo, porque precisava acalmá-la. — escute o que vou dizer, ok? Para de se debater, sossega um pouco, mulher.
— Não quero ouvir suas mentiras! Pensa que me engana? Todos os fazendeiros da região têm amantes! Todos! E sabe como eu sei? Não, claro que não, eu sou apenas a sua mulher gorda e obediente, não sou uma modelo americana nem a gostosona da Karen... — ela parou e o fitou com os olhos cheios de lágrimas: — As esposas dos fazendeiros sabem das aventuras dos maridos e tiram proveito disso, gastam horrores e ainda acham que são espertas! E nenhuma delas é tão sem graça quanto eu e nenhum delas se casou com um homem tão lindo como você! Mas você casou comigo, CASOU COMIGO, podia ter ficado solteiro, mas não quis, NÃO QUIS.
Ele se sentiu culpado alimentando por anos a insegurança dela e fizera isso movido pelo seu próprio medo, medo de perder o controle e uma segunda vez cair de joelhos diante de uma mulher. Cogitou que, no caso de Valéria, fora longe demais. Doeu vê-la sofrer, tão miserável e louca, se afundando no mar revolto do ciúme e de sua própria vulnerabilidade.
— Fidelidade é um traço de caráter, Valéria, e você sabe muito bem que nunca traí nem a Mary Jessica tampouco a Karen. Ou se é leal, ou não se é. Além disso, tenho bastante experiência como corno para saber o quanto dói um par de guampas e jamais tive qualquer pretensão de machucá-la. Você é o meu amor, a mulher que eu amo, a minha sina, se prefere assim... E não pretendo fazer nada que a contrarie, o que inclui viajar sem assistente ou, sei lá, talvez com um dos meus advogados, não importa, diga como você quer que seja e assim o farei. Olha pra mim, Valéria. — pediu numa voz firme e serena: — Já está na hora de mandar essa sua insegurança à merda, não? O que mais posso fazer para que acredite em mim quando digo que é linda, é perfeita e é a mulher da minha vida? Cacete, Valéria, você mesma me disse isso uma vez, gritou na minha cara, inclusive.
As lágrimas rolavam fartamente pelo rosto dela quando o queixo começou a tremer. Ele não suportou assistir ao seu sofrimento. Vê-la enfrentá-lo fora de si, como várias vezes Karen o fizera, não o excitara ou envenenara a sua alma de paixão. Valéria transtornada por sua causa deixara-o doente e com raiva de si mesmo.
— Não consigo imaginar minha vida sem você. — declarou numa voz cheia de emoção, os olhos presos nos dela, as mãos acariciando a parte detrás da cabeça, reconfortando-a. — De posse dessa informação, pode fazer o que quiser comigo, não tenho mais armas para me proteger de você.
Ela o abraçou com força. Como era possível amar um homem como se amasse um mundo, como se esse homem, mero ser humano do sexo masculino, fosse o universo inteiro?
Um dia pedira a Deus para que a livrasse das complicações afetivas e no lugar de uma paixão, a estabilidade pacífica do cotidiano. No entanto, ela não sabia sobre os planos da divindade brincalhona que escolhera entre tantos o mais complicado e adorável, o seu ogro encantado, o céu de sua vida e a terra firme onde enterrara o seu coração para sempre e ali estava abraçada, atada, amando e sendo amada por Thales Dolejal.
Ele se afastou o suficiente para pegar o queixo dela até fazê-la encará-lo. Perguntou com um sorriso charmoso:
— Posso continuar com o meu pau?
Ela sorriu por entre as lágrimas e fez que sim com a cabeça:
— Espero tê-lo assustado um pouquinho.
— Um pouco? — ele perguntou, rindo. — Quase me mijei, Valéria.
Eles riram e se abraçaram.
— A sua informação está segura comigo. — ela disse, aconchegando-se dentro do arco que fazia os braços dele ao seu redor, e continuou agora na conhecida e adorável voz juvenil: — E espero que o meu delicado surto também fique entre nós.
Ouviu-o rir e se voltou para ele:
— Isso não vai se repetir, Thales, juro!
— Espero que não. Mas agora já sei que dentro dessa ruivinha linda e safada mora uma psicopata e terei o bom senso de jamais me esquecer disso. — afirmou com bom humor. — Agora vamos fazer uma boquinha, que sua ira despertou a minha fome.
— Não sei...
— Muito bem, então é o seguinte: se não tiver carne pra eu me agarrar quando gozar, vou ter de apertar os seus ossos e provavelmente sofrerá algumas concussões ou até mesmo fraturas... Gosto de carne, mulher, quero carne, entendeu?
— Sei, mas não preciso de gordura na barriga...
Ele estalou a língua no céu da boca como se tivesse ouvido uma asneira qualquer.
— Vou ensiná-la a se ver no espelho como eu a vejo, a minha garota sardenta e fogosa.
Ela sorriu como se tivesse sido enfeitiçada e recebeu um beijo daqueles.
Ao se separarem, sondou-o com um sorriso cheio de segundas intenções:
— Vai continuar trabalhando?
Ele devolveu o sorriso e respondeu num tom de falsa censura:
— Como, se a senhora Dolejal quebrou meu notebook?
— Que bom! Vamos para o quarto e depois para a cozinha.
Thales olhou para aquela mulher que era tudo para ele e concordou com um o sorrisinho travesso:
— Sim, Valéria.
Ele sabia que seria recompensado pela sua obediência.
Nova abriu os olhos com lentidão, as pálpebras pesadas, a névoa da dormência dificultando o reconhecimento dos números no visor do despertador digital sobre o criado-mudo. Mal conseguia se mexer, sentindo-se comprimida contra o colchão. Ainda zonza, baixou a cabeça e percebeu um braço sobre seus seios e uma perna por cima de sua cintura. Franco parecia um polvo com seus tentáculos agarrados nela.
Tentou se desvencilhar do corpo masculino e nu deitado sobre si. Ainda permaneceu de costas para ele, procurando ajeitar-se para voltar a dormir. Bocejou, cogitando que a decisão de uma noitada regada a champanhe e sexo ainda estava em alta entre eles, e o fôlego juvenil do marido continuava surpreendendo-a positivamente. Ele lhe dava uma canseira tremenda, pensou com um sorriso de satisfação, virando a cabeça para trás a fim de se certificar de que o loiro ainda dormia.
Após contar a história dos Três Porquinhos para Paola (na versão de Franco era “As Três Porqueiras”), embalara no colo Paloma até o bebê dormir, enquanto Petra já estava adormecida no seu berço. Paloma nascera dez minutos antes de Petra e era a gêmea tinhosa, a que demorava a comer e dormir e também a que detestava os beijos barulhentos que o pai lhe dava nas bochechas e nas suas dobrinhas de gordura. A filha do meio gostava mesmo era de comer tudo o que via pelo chão e por isso mesmo vivia no carrinho, no colo ou sob a vigilância de alguém quando resolvia engatinhar pela casa.
Ao entrar na suíte principal, ele não era mais o pai de família. Um sorrisinho malicioso de canto de boca já se formava à medida que ele fazia um strip para a sua mulher, retirando bem devagar cada peça de roupa e a jogando para todos os lados. Até alcançá-la com um olhar de fome que a deixava nua mesmo vestida. Talvez fosse por isso, por esse jeito instintivo e natural de ser amada sexualmente por ele, que despertasse em Nova o seu lado meio canibal — como acontecia com mulheres loucas de amor. Então ela o punha na boca, todo, até o fundo. E era só o começo.
E até dormir de conchinha com Franco parecia uma posição do Kama Sutra, considerou, procurando uma posição confortável no travesseiro. Assim que se ajeitou, sentiu a carícia delicada quase imperceptível no seio e viu os dedos masculinos se mexerem lentamente por sobre o seu mamilo. Uma sensação agradável desandou a correr por debaixo da sua pele, arrepiando-a. Em seguida, junto à carícia, uma boca se esfregou na sua orelha e a ponta de um nariz deitou na dobra do seu pescoço. Sorriu entre incrédula e admirada com o vigor físico do marido. Ele se superava a cada ano. Haviam feito amor várias vezes e, nos intervalos, ele fumara fitando-a detidamente sem nada dizer, sério, concentrado, pensativo; depois enchera e esvaziara as duas taças com champanhe. Um clima de mistério sedutor e desejo os unia como se fossem dois estranhos completamente apaixonados um pelo outro.
Por outro lado, tinha de convir consigo mesma que Franco estava diferente. Mais introspectivo e caladão. O semblante jovial e a personalidade irreverente cederam lugar a uma postura altiva e sóbria, de um homem que refletia profundamente sobre algo importante. Era o reflexo da conversa à mesa poucas horas atrás, Nova tinha quase certeza disso.
Ele deslizou a mão lentamente pelo contorno do seu corpo, e Nova desistiu de retomar o sono perdido.
Girou o pescoço para beijá-lo. Fechou os olhos e apertou sua boca contra a dele, provando a firmeza de uma boca macia feita originariamente para ser beijada. Duas línguas se encontraram tocando-se com lentidão, acordavam também por certo. Um beijo longo, sem pressa, sem vontade de terminar. Franco tomou entre os dentes o lábio inferior dela para, depois, descer para o queixo, lambê-lo, mordiscá-lo, assim como o fazia com toda a extensão do pescoço feminino. E enquanto a beijava, erguia-lhe delicadamente uma coxa e entrava nela aos poucos, recuando e tornando a avançar, na cadência de uma música latina sensual, o ritmo sincronizado do vento avançando sobre palmeiras em câmera lenta, para frente, para trás.
Ela deixou escapar um gemido rouco junto com a respiração pesada e aos pedaços, arfando, os poros se enchendo de água. Ouviu-o exalar o ar baixinho, entre os lábios entreabertos, os pontos de barba no queixo raspando a lateral do pescoço dela.
— Não acredito... — murmurou, fitando os olhos fechados de Franco. — Acorda, Franco... — elevou um pouco a voz, tendo o cuidado para não sobressaltá-lo.
As pálpebras fechadas não se moveram, mas o resto dele, sim.
Lentamente ele deslocou os quadris e se mexeu dentro dela, acelerando o ritmo e gemendo como se sofresse terrível dor se não fosse a dor do prazer.
Nova não estava certa se Franco estava dormindo, não podia estar fazendo amor dormindo. Arqueou o corpo ao sentir a ferroada aguda e agonizante do orgasmo, o risco de fogo que cobria sua pele de suor e disparava o coração num galope enlouquecido. Em seguida, sentiu-o apertar-se contra ela, uma das mãos circundou o seu abdômen até trazê-la colada ao seu quadril, e assim ela pôde sentir contra o seu traseiro os músculos das coxas dele se estirarem pressionando-lhe a pele para depois tornarem a relaxar. Ele se jogou dentro dela enquanto tomava na mão um dos seios pequenos e a boca chupando-a no lóbulo da orelha. Um minuto depois, ele a virou de costas e tornou a se mexer, agora, com mais intensidade.
— Franco...?
Ele abriu um olho e sorriu.
— Depois ele volta, dona Nova. — disse, a voz misturada com a respiração carregada.
Nova dobrou os joelhos e os segurou flexionados, afastando ainda mais as pernas para recebê-lo, tê-lo todo para si.
Franco se enfiou até o fundo, os braços apoiados contra o colchão, as mãos espalmadas suportando o peso.
— Mais forte...Mais. Forte. — ela pediu, numa respiração entrecortada.
Ele se segurou contra a guarda da cama e arremeteu com força para dentro dela, observando-a quase gritar ao gozar.
Depois de exaustos, ela se aconchegou no peito dele e falou num resmungo contrariado:
— Temos de nos vestir, amor lindo, a Paola pode aparecer aqui no quarto logo pela manhã.
Ela se levantou ainda nua e acendeu a luz do abajur. Olhou ao redor à procura da calcinha e camisola que deviam estar atiradas por sobre algum móvel ou até mesmo debaixo da cama. Estalou a língua no palato ao verificar que ambas jaziam no tapete diante das portas duplas do terraço. Vestiu-se rapidamente e balançou a cabeça resignada ao ver Franco na mesma posição em que o deixara, deitado de bruços, o cabelo loiro espalhado pelo travesseiro, o traseiro durinho esperando ser beijado, como ela sempre o fazia pela manhã, um beijo na boca, um beijo na bundinha mais linda do cerrado — sorriu ao lembrar o quanto ele não gostava de ser beijado ou mordido na bunda.
— Acorda e se veste, cabra! Vamos!
Ele nem se mexeu ao falar com boca encostada no travesseiro:
— Preguiça, Nova, preguiça.
Ela suspirou contrariada e se sentou na beirada da cama.
— Quer que eu ponha pelo menos a cueca em você?
Ouviu-o rir baixinho.
— Nem pensar, já basta essa sua mania de me dar banho.
— É carinho, Franco, só isso.
— Sei, a dona continua doida, só isso.
Ok, ele a chamara de Nova, de dona e dissera poucos minutos atrás que o “Franco” já voltava. Bem, tudo levava a crer que ele não cruzara totalmente a fronteira do sono com a vigília.
— Se não se vestir, eu mesma farei isso por você. — determinou do mesmo jeito que lidava com a filha mais velha.
Franco girou o corpo até ficar de costas e fitá-la com seus olhos azuis cujas órbitas avermelhadas e brilhantes sugeriam que recém acordara. Arou o cabelo com os dedos e bocejou alto; depois, se apoiou nos cotovelos e deu uma boa olhada nela antes de dizer com um sorriso de moleque travesso:
— Quem disse que a noite acabou? Vem aqui, vem. — ele deu uma palmadinha no colchão e arqueou a sobrancelha com ar malicioso: — Vamos quebrar a cama, princesa.
Por um momento considerou acatar o seu pedido. Descabelado, olhos brilhando e um sorriso descaradamente luxuriante seduziam-na.
— São quase cinco da manhã, amor, e a gente tem de dormir um pouquinho.
— Está me rejeitando? — perguntou, fazendo beiço.
— Deus do céu, não faz essa carinha...
Ela pulou na cama e o abraçou com força. Sentiu que o corpo dele tremia, se afastou então para consolá-lo, até constatar que ele estava rindo.
— Porra, Franco! — xingou-o.
— Está me rejeitando? — tornou a perguntar numa voz infantilizada. — Ai, ai, ai, princesa, continua bobinha! Mas se não quer mais transar, tudo bem, me visto e volto a dormir, a senhora que manda.
— Para de bancar o coitadinho, seu sacana. Pra falar a verdade, estou meio dolorida, hoje foram batidos todos os nossos recordes sexuais desde a nossa primeira vez... Preciso me recuperar.
— Machuquei a sua flor? — indagou, divertido.
— Que graça! Você esfolou a flor, meu filho. — respondeu com falsa censura. — Agora pega essa cueca aqui e põe a bazuca pra dormir.
— Ah, não, quero transar mais um pouco, Nova, deixa, deixa vai!
Ela se virou para encará-lo, um sulco entre as sobrancelhas mostrava o quanto a intrigava aquele comportamento, até que percebeu que ele ria baixinho enquanto enfiava a roupa íntima pelos pés. Era o seu lado adolescente se divertindo com a cara dela. Era evidente que ele a provocava com bom humor e, como ela permaneceu quieta, se voltou com o semblante ainda tomado por um sorriso jovial.
— Não vai deixar, não?
— Chega de sexo, não quero me cansar de você. Agora volta a dormir, ok?
Ele parou de sorrir, saiu da cama e foi para o closet.
Nova tornou a se deitar, desligou a luz do abajur e, segundos depois, sentiu o colchão afundar ligeiramente e uma voz baixa e grave a chamou:
— Nova?
— Estou dormindo.
— Pode me responder uma coisa?
Ele parecia hesitante.
— O que é, amor? — perguntou, esticando a sua mão e pegando a dele, os dedos se entrelaçando.
— Vai responder com sinceridade?
—Não, Franco, vou mentir adoidada. Fala logo, não estou ficando mais jovem, não, viu?
— Tem alguma chance de você se cansar de mim? Digo, a gente se vê todos os dias... Não quero que enjoe da minha cara, Nova.
Ela acendeu a luz do abajur, ergueu meio corpo e o encarou com o semblante curioso:
— Está de brincadeira, né?
Ele voltou o olhar preocupado para ela. Nenhum rastro de brincadeira nele.
— Que pergunta idiota, puta merda!
— Responde, Nova.
— Boa noite, Franco, nos vemos pela manhã. Pede para a Irene diminuir a quantidade de farinha láctea do leite da Paola, senão ela vai virar um barrilzinho...
— Nova?
— Caramba, Fran-co!
Sim, ele não iria sossegar.
— Olha pra mim, caubói, é impossível que eu me canse de um homem lindo, um pai maravilhoso e um marido de outro mundo.
Ele sorriu satisfeito com a resposta.
Vinte minutos de silêncio imerso na escuridão do quarto.
— Eu te amo.
Ela se virou para ele, fez um carinho no seu rosto e o beijou nos lábios. Deitou a cabeça no tórax largo, sentindo-se segura e em paz.
— E eu muito mais.
Quando imaginou que ele enfim tivesse adormecido, ouviu-o falar baixinho:
— Impossível.
Ele esmagou a ponta do cigarro na sola da bota, seguro que estava de que a hora de se aproximar do alvo chegara. O relógio no pulso fora fabricado na China e marcavam as cinco horas de uma madrugada com cheiro de árvores queimadas. De onde ele viera o cheiro era quente e sujo, um suor grudento e uma fome de vingança. Fugir de Santa Fé não lhe fora uma opção. A clausura, de certa forma, não combinava com a sua personalidade de poeta amante da liberdade. E aguentar três anos encarcerado o tornara uma pessoa melhor, pois agora sabia como clonar cartões de crédito, como explodir um caixa eletrônico e outros truquezinhos bem-vindos ao seu retorno à sociedade. A vida de aliciador ficara no passado, visto que o único fazendeiro que cultivava escravos em seus pastos jazia debaixo da própria terra. Informação essa que Pedro descobrira assim que chegara a Matarana, antes de cortar o arame farpado da cerca da Coração de Ouro e depois de ler a placa de madeira com o novo nome da fazenda.
Leonardo Marau estava certo. Os Dolejal haviam dado o bote final invadindo a fazenda do coronel e delatando a droga à PF. Então, se podia lucrar com isso, lucraria. Ainda que o pai o tivesse deixado na mão, aceitaria de bom grado o dinheiro do filho do seu antigo patrão para recomeçar no sul. Pouco importava as intenções do rapaz.
O que ele tinha de fazer já estava fazendo. Entrar na fazenda de Franco e pegar uma das quatro princesas.
Sacou a automática do coldre e coçou o queixo ao lembrar-se das palavras de Leonardo:
— O único problema é passar pelo psicopata.
— Isso não é problema.
— Esqueceu quem é o ex-braço direito do Dolejal? Está tranquilo demais.
— Se ele casou com a jornalistinha, então sei quem devo acertar antes dele. Entendo de gente, doutor. Agora, o que não entendo é porque me ajudou a fugir daquela porra? Foi só pra cutucar o seu desafeto?
— Ué, não quer se vingar da mulher que pôs você detrás das grades?
— Pra quê? Quero mesmo é me mandar pro sul...
— Vou conseguir o dinheiro para nós dois recomeçarmos, mas preciso que invada a fazenda do meu pai e faça o que tem a fazer.
Pedro empertigou-se e seguiu o caminho traçado por um laivo de luar que conseguiu escapar através do colchão de fumaça. A luz iluminava os passos lentos e cuidadosos sobre a grama úmida próximo à piscina, uma bicicleta encostada na parede.
Ele parou e decidiu recuar.
Anos de experiência no lombo pareciam gritar para que tomasse cuidado, uma mina prestes a explodir na sua cara. Ignorou a intuição, mas retornou pelo mesmo caminho a fim de reavaliar a sua entrada no casarão. Guardou novamente a pistola no coldre.
Optou pelo facão que puxou do cós traseiro do jeans.
O corpo ao qual estava agarrado logo ao adormecer havia deixado um vazio na cama, e Franco acordou justamente por sentir que estava sozinho. Sentou-se e bocejou ainda atordoado pelo sono. Precisou de poucos segundos para descobrir que Nova não estava no quarto.
Vestiu o jeans por cima da boxer e alcançou o corredor, fazendo uma breve parada no primeiro quarto à sua esquerda. Meio que se encostou à soleira da porta e deu uma olhada para os corpinhos deitados em suas camas; as gêmeas nos berços e Paola na caminha cuja guarda era o rosto e cabelos da Pequena Sereia.
Sorriu satisfeito ao vê-las bem e dormindo. Esfregou os olhos e voltou a seguir pelo mesmo caminho, agora, em direção à escadaria que levava ao andar térreo.
E foi na cozinha que encontrou sua mulher, sentada à mesa, distraída olhando para frente e, por isso, ele via apenas a parte detrás de sua cabeça, o cabelo escuro lhe alcançava a linha dos ombros. A pouca claridade no ambiente vinha dos spots no jardim cujos reflexos ultrapassavam os vidros das janelas e da porta dupla que fazia a divisa entre a cozinha e o pátio detrás da casa-sede.
Pensou em falar alguma gracinha, mas ainda estava chapado de sono, descabelado e com a garganta seca.
Abriu a geladeira à procura de uma bebida gelada e sem álcool. Escolheu a garrafa de água mineral com gás. Por cima do ombro disse à esposa:
— Quase me desidratei, dona, a senhora ainda vai acabar comigo.
Sorveu a água gelada num gole só, tapando a boca em seguida ao conter um arroto daqueles. Nova já deixara bem claro o quanto detestava ouvi-lo arrotar alto ou “cantando” o nome das filhas.
Virou-se ao notar que fora ignorado e a encontrou ainda na mesma posição, coluna ereta, cabeça voltada para frente, imóvel, como se observasse atentamente algo diante de seus olhos.
Intrigado, ele olhou para o mesmo lugar que ela e viu a porta dos fundos aberta.
O coração disparou num galope louco enquanto o estômago era queimado pelo jato de ácido. Virou-se o mais devagar que pôde, como se houvesse uma cascavel em seu encalço, e se aproximou de Nova.
Murmurou com bastante calma:
— Vá para o quarto das meninas e tranque a porta. Agora, Nova.
Pela primeira vez, ela não lhe obedeceu.
Franco então se abaixou ao lado dela e pegou sua mão.
— Olha para mim, Nova.
Ela não olhou.
Ele suspirou contrariado e a ergueu pelos ombros, constatando o que a semiescuridão o ludibriou.
Na parte posterior do pescoço de Nova havia uma faixa branca de tecido presa junto a sua nuca, mantendo, assim, a cabeça de pé na ilusão de que ela fitasse a porta à sua frente. No tecido claro a nódoa vermelha do sangue novo, recente.
Franco viu os seus dedos apertarem as veias do pulso da sua mulher. Num nexo de tempo que ele jamais conseguiria traduzir, processou a ideia de que não havia mais pulsação.
O estrondo a seguir foi como a explosão de um avião contra um prédio e o efeito dessa catástrofe minou os últimos resquícios de humanidade que ainda prendiam a entidade na clausura que Franco forjara para contê-la.
Franco! Franco!
Ele abriu os olhos imediatamente e viu o semblante tenso de Nova.
Ela o abraçou com força.
— Você estava chorando, não sei bem o que era... parecia mais com um gemido de agonia como se estivesse, Deus me livre, morrendo... Horrível, horrível demais. Teve um pesadelo, amor lindo, vou cuidar de você.
O que ela não sabia ainda era que o homem que a olhava com visível terror não era conhecido como Franco Dolejal e jamais permitiria que aquele sonho ruim se tornasse real.
Ele se afastou dela, não aceitando o carinho, e saiu da cama.
Nova o acompanhou com o olhar, o medo crescendo e arrepiando a pele e, de certa forma, com a nítida sensação de que alguma coisa acordara o pistoleiro e a sua criatura.
Viu-o entrar no closet e era lá, no cofre, que estavam suas armas.
Quando ele saiu vestido no jeans, camiseta, botas, chapéu e armas automáticas, um gemido de dor e reconhecimento escapou dos lábios da mulher.
O diabo loiro voltara.
Karen acordou com o som do celular vibrando contra o móvel de madeira. Olhou o visor meio que apertando os olhos e leu o nome da amiga nele. Atendeu e apenas uma frase, dita num tom de preocupação, a fez jogar o lençol para o lado e pular para fora da cama:
— O Franco se armou para caçar.
Pediu para Nova se acalmar e ficar com as meninas. Endereçou um olhar para o delegado adormecido, de bruços, as mãos debaixo do travesseiro, o lençol descansando a barra sobre sua cintura.
Considerou protegê-lo de outra manobra que batesse de frente com seus princípios morais. Vestiu-se rapidamente, encilhou Prefontaine e deixou o Maverick e o seu ronco de motor V8 para trás.
Não tinha certeza sobre o que acontecia na Quatro Princesas, mas o fato de Franco se armar, contrariando a sua mulher, dava-lhe uma boa pista. Precisava pôr Thales a par do que ocorria com o seu filho.
Thales saiu do closet vestido e determinado a resolver o que quer que fosse na fazenda de Franco. Antes, porém, sentou-se à beira da cama e admirou o pé branco cujas unhas curtas estavam pintadas de vermelho, um vermelho vivo e sensual. A luz do terraço iluminou a silhueta de Valéria, nua debaixo do lençol, a respiração profunda e o semblante sereno.
Fez um carinho no tornozelo feminino e conteve o impulso de beijá-la nos pés. O que sentia por aquela mulher era digno do ato, não havia mais qualquer reserva nele em amá-la sem medidas, em entregar-se totalmente para continuar a ser feliz ao seu lado.
Valéria acordou com o toque de seda em sua pele e sorriu ao ver Thales fitando-a com um leve sorriso nos lábios:
— Por que está vestido?
Ele entortou o canto da boca numa expressão que sugeria que estava prestes a contrariar a própria vontade.
— Acho que a Nova aprontou alguma com Franco. Parece que sua amiga tem uma tendência a querer fazer do marido o que ele não é. — sentiu-se compelido a mentir. Valéria era impressionável e não cabia agora preocupá-la com uma situação que ele mesmo não sabia ao certo o que acontecia.
— Será?
— Será o quê, ruiva linda? — indagou com olhar entre divertido e malicioso.
Ela sorriu, baixou os olhos e tornou a fitá-lo:
— Será que você não está com ciúme?
Thales demorou com seu olhar pousado no rosto sorridente que o desafiava com a docilidade que já o havia posto na lona.
— Pode ser, sou possessivo em relação às pessoas que amo. — concordou, piscando o olho com charme.
— É mesmo? Eu, não. Comigo é viva e deixe viver. — afirmou, espichando as pernas e se espreguiçando.
Sentiu o traseiro quente e dolorido com o sonoro tapa que recebeu de Thales. Fitou-o assustada e encontrou um sorrisinho superior:
— Não brinca comigo, cachorra!
— Thales! — exclamou, espantada.
— É, ouviu bem, ca-chor-ra! E toda vez que bancar a “mulher independente” vai levar um tapa na bunda pra lembrar que sei que a senhora Dolejal é a doida que ameaçou me castrar, então nada de pose.
— Está zangado?
— Estou.
— Merda, não foi minha intenção...
— Você não tem culpa de nada, estou puto porque tenho de deixá-la sem poder aplicar um bom castigo.
Ele não parecia zangado, e sim descontraído e malicioso, um sorriso maldoso insistia em se manter intacto.
— Vou resolver tudo rapidamente e volto para bater bastante na sua bunda, sua sacana.
Ela deitou a cabeça para trás e desandou a rir, deliciando-se com a ideia. E somente parou de rir ao ser puxada pelos pés, sentindo, em seguida, um corpo pesado vestido na camiseta esporte e no jeans deitar sobre si.
Voltou-se para o marido e encontrou os olhos azuis límpidos, esperançosos e cheios de ternura. Diabos, como amava aquele homem! Puxou-o pela nuca e o beijou com paixão.
Ao se separarem, ele sussurrou em seu ouvido:
— Você mata o trabalho. Eu mato o trabalho.
A respiração morna contra a sua orelha provocou-lhe arrepios e ela respondeu num ronronar de gata manhosa:
— Hummm, é o paraíso.
—Sim, minha Valéria, o paraíso é aqui.
Ela sempre acreditou nele.
Diante da casa-sede, boa parte dos pistoleiros da Arco Verde o esperava. Bronson liderava-os, já que Karen decidira ir direto para a fazenda de Franco.
Thales Dolejal apertou os maxilares, consciente de que Franco não se armara à toa. Confiava nos instintos dele e, além disso, a conversa sobre Pedro ter voltado a Matarana para um acerto de contas com Nova parecia encaixar com perfeição à circunstância.
Tragou fundo o cigarro e comentou com Bronson:
— É certo que o Pedro está na Quatro Princesas.
— Não é possível que o homem seja tão burro, patrão.
— Burro ou não, meu caro, quero esse camarada enriquecendo o solo da nossa pátria amada. — o pistoleiro assentiu e, antes de bater em retirada, ouviu as próximas ordens: — Vamos fazer do nosso jeito, amigo, como nos velhos tempos...
— Sim, patrão, o delegado não vai nem desconfiar.
Thales fez que sim com a cabeça e emendou convicto:
— Nem o Franco.
Thales arregimentou um grupo de homens da Arco Verde, embora soubesse que os da Quatro Princesas já estariam a postos para o serviço. O clima de tensão e expectativa vibrava em seu sangue quando estacionou a picape em frente ao casarão, encontrando no alpendre uma Karen com o semblante fechado e a Glock enfiada no cós frontal do jeans. Notou que a polícia sutilmente fora deixada para trás. Não havia dúvidas, Karen Lisboa era uma das suas.
Juntou-se a ela e, apontando em direção à entrada da casa, indagou atento:
— Quem está com a Nova e as meninas?
— O Valentino e a Virgínia. — respondeu, sabendo antecipadamente que teria a aprovação de Thales para a indicação de um pistoleiro experiente e uma segurança superprotetora para se responsabilizarem pela vida da família de Franco.
Ele assentiu concordando e começou a despachar suas determinações, enquanto Bronson subia devagar os degraus e chegava até eles. Atrás do trio, ao longo da entrada de gramado verdejante e árvores de copas largas, pistoleiros armados e de sangue quente esperavam o som do primeiro estampido, o da largada, o da corrida feroz para se juntarem ao caçador-líder que desaparecera engolido pela escuridão noturna.
— Karen, siga com os homens no rastro do Pedro, ele não deve estar longe, já que foi a sua aproximação que despertou os instintos do meu filho... Traga-o vivo, mas pode descer o cacete no caminho, isso eu deixo ao seu critério, minha querida. — virando-se para Bronson, o ar grave sem mais os vestígios de ironia ao se referir ao criminoso, determinou: — Precisa encontrar o Franco. Se a sua argumentação não funcionar, subjugue-o, faça o que for preciso para trazê-lo para mim ileso e sem sangue nas mãos, entendeu? Sabemos que ele está fora de si e que a sua outra parte, aquela... “parte” dele, não quer mais matar, e nós vamos ajudá-lo com isso.
Bronson soltou a respiração pela boca e era um ar carregado de angústia. Doía no peito saber que o garoto corria pelo descampado alucinado com olhos de sangue. Quando ele teria paz na vida, meu Deus?, o velho pistoleiro murmurou consigo mesmo.
Thales postou-se junto à amurada com um cigarro no canto da boca e, através da fumaça, via seus comandados obedecerem às suas diretrizes. Até que vinte minutos depois, o celular vibrou e Karen o tirou de seus devaneios. O dono de Matarana pensava num modo de deixar bem claro aos seus habitantes que a cidade mudaria de ares e os criminosos seriam convidados a partir.
— O que foi?
— Estamos com o Pedro. — ela disse simplesmente, sem qualquer inflexão especial na voz.
Karen ainda não questionava as ações de Thales e nunca o faria. O nome disso era lealdade.
— Bom trabalho, pode trazê-lo para cá.
— Não, não posso.
— Por que, Karen? — ele estreitou os olhos avaliando uma forte possibilidade: — O Franco já fez o serviço?
Ouviu-a tossir do outro lado da linha, e a voz que ressoou ao fundo, como a de um psicótico na camisa de força, pareceu-lhe familiar.
— Três homens estão tentando conter uma pessoa bem parecida com o Franco, Thales. Você precisa vir aqui. Agora.
Ele suspeitava que um dia as coisas saíssem dos trilhos, tantos anos abusando da sorte e experimentando lidar com o desconhecido.
Parou a Silverado no terreno de grama baixa e descuidada, afastado alguns quilômetros do casarão, bem no meio das vastas extensões de terra da antiga propriedade do coronel Marau.
Os pistoleiros empunhavam suas armas na direção de um único homem, grandalhão, envelhecido, a cara malévola de quem nascera para destruir, não como um tornado ou qualquer fenômeno da natureza; nascera para destruir apenas para justificar o próprio nascimento. Erva daninha, pois então.
Mas não foi o cara de cavalo quem chamou a atenção do fazendeiro, nem foram os seus olhos o sentido atraído para o caos que se formava entre a terra e o céu, o redemoinho humano, o caos desesperado que se debatia selvagemente preso pelos braços e pernas e, ainda assim, quase escapulindo da prisão, foram os seus ouvidos que o captaram na sintonia aguda do flagelo.
Thales sentiu a garganta secar e o coração bateu forte estremecendo as veias de suas têmporas. O que viu levou-o a pensar em possessão espiritual ou surto psicótico, apesar de nem a religião nem a ciência poderem explicar a transformação do seu menino mais velho, do seu garoto.
Franco não queria perder mais ninguém porque ele não podia perder mais ninguém, desde que esmagada contra o asfalto perdera sim uma de suas vidas. E diante da ameaça imediata, a criatura se revoltou atingindo o seu limite. Dos olhos avermelhados as órbitas cuspindo fogo, as narinas dilatadas e o semblante inteiro desfigurado numa carranca de fúria, ele gritava xingamentos desconexos, cuspia-se, puxava os braços com força para se libertar dos pistoleiros, a cabeça balançava para frente e para trás como se recebesse uma potente descarga elétrica. A camisa rasgada, o jeans sujo, as armas no chão. Havia sangue no canto de sua boca, ele se mordia ao gritar, ao mandar soltarem-no para se jogar contra Pedro e estraçalhá-lo como um cão feroz treinado para o ataque mortal.
— VOU MATAR TODOS VOCÊS SE NÃO ME SOLTAREM!
Thales endereçou um olhar intrigado a Bronson e viu lágrimas nos seus olhos. Fez um sinal em negativo e se voltou para Karen, impressionou-o sua palidez e a expressão entre assustada e cheia de compaixão.
Não era uma imagem boa de se ver, um ser humano completamente louco.
E se ele não voltasse ao normal? E se ele tivesse herdado os problemas psiquiátricos de sua mãe? E se ele fosse solto e destroçasse o corpo de Pedro e, com isso, descarregando toda a ira acumulada, voltasse sim ao normal?
Bronson aproximou-se com o chapéu na mão, apertando-o nervosamente.
— Ele mal consegue respirar direito, patrão, vai acabar tendo um troço.
Thales assentiu, preocupado, e foi o próximo alvo do filho:
— ME SOLTA, AGORA! O SENHOR ME DEVE ISSO, SALVEI A SUA VIDA! ESSE DESGRAÇADO VAI MATAR A NOVA COMO O EVERALDO IA MATAR! NINGUÉM TOCA NA MINHA FAMÍLIA, NINGUÉM! MATEI PELO SENHOR, MATEI PELO SENHOR... — ele começou a chorar um choro de raiva, de um sofrimento instalado como um parasita que o comia vivo e insistiu entre lágrimas e engasgos: — ME DEIXA... VOLTAR... PARA A MINHA CASA EM PAZ. POR FAVOR!
Thales considerou o que Franco lhe disse e se pôs diante dele. Olhou-o nos olhos e apertou cabeça do filho entre as mãos. Ainda assim, ele tentou se soltar. Porém, quando o pai repetiu o gesto do filho mais novo, encostando a sua testa na testa dele, olhando-o firmemente nos olhos, Franco parou de se agitar ao ponto de machucar o próprio pai, embora não aceitasse a contenção forçada. Endureceu a musculatura, mas aceitou o gesto, a raiva não foi embora mas compreendeu o que aquilo significava.
— Não pense que só porque é feliz que a sua felicidade será roubada, meu filho. Antes de me proteger, de ser o meu segurança, fui eu que o protegi e não seria agora que o deixaria na mão. — a voz saiu calma, controlada.
Franco entendeu tudo e imediatamente se aquietou, a respiração ainda pesada e sendo exalada sofregamente, os olhos também brilhavam com lágrimas mas no fundo era a expectativa e a esperança que se agigantavam, era o amor por aquele homem que o fazia se acalmar e esperar que tudo desse certo. E tudo deu certo.
Com um sinal de cabeça, mandou os pistoleiros o soltarem e não tentou contê-lo. Ele não saiu do lugar e até sorriu ligeiramente, as lágrimas molhando a face manchada de exaustão e suor. Aceitou o abraço longo e apertado, mal percebendo quando o pai puxou do coldre do pistoleiro ao seu lado a Glock já destravada, que foi manejada com uma só mão, enquanto o corpo girava 180º com a rapidez de um pensamento de morte, expulsando da arma o projétil que encontrou o seu alvo sorrindo com escárnio.
Karen não pôde conter o grito e levou a mão ao próprio estômago, revirado, queimado pelo suco gástrico. Aquilo era demais para ela, pensou, com ânsia de vômito.
Bronson a fitou como se ela tivesse sido baleada, mas vira toda a ação e o seu resultado. O patrão atirara a sangue frio em Pedro, matara-o à vista de todos, com testemunhas que poderiam chantageá-lo resto de sua vida. A frieza de Thales também atingira o seu limite, ninguém jamais tentaria tocar um dedo sequer em outro Dolejal. Aproximou-se do bandido prostrado no chão e constatou que a sua única serventia agora era minar a terra de vermes.
Thales devolveu a arma ao pistoleiro, que o fitava ainda tomado pela surpresa, e se voltou para quem lhe era importante:
—Vamos voltar para casa, sim, e em paz. O pessoal cuida do resto.
Franco assentiu, a musculatura liberando os últimos espasmos.
— Obrigado. — balbuciou.
— Está tudo bem agora. — puxou-o para si e o abraçou, beijando-o no topo do crânio: — Precisa acreditar que merece ser feliz, ok? Merece a sua mulher e as suas filhas. Não quero mais vê-lo descontrolado desse jeito. — afastou-se o suficiente para poder encará-lo ao determinar com terna firmeza, algo bem típico de um pai que se importava: — Mantenha o diabo loiro no lugar certo, senão terei de levá-lo a um psiquiatra... — e, meio se rindo, completou com bom humor: — ou a um terreiro de umbanda, terá o direito de escolher. Embora eu tenha a certeza de que existe uma pessoa capaz de curá-lo e que até então estava se saindo muito bem.
Franco respirou fundo e se recompôs.
— As pessoas precisam do cérebro e do coração para viverem e, para mim, o senhor e a Nova são o meu cérebro e o meu coração... — a voz falhou antes de continuar: — E as minhas filhas são a minha alma, pai.
— Sei disso, Franco, sei muito bem o que é isso. — enfatizou.
Bagunçou o cabelo do filho num trejeito divertido e se voltou para Karen:
— Quando terminar de vomitar, volta para o teu marido e procure esquecer o que viu por aqui. Pode ser?
Ela assentiu limpando o canto da boca e se empertigando.
— Da próxima vez que atirar em alguém vê se me avisa antes. Levei um cagaço daqueles! — reclamou, encaminhando-se para Prefontaine. — Disse que queria o homem vivo, porra... Ora, vá se foder também.
Montou no cavalo, deu meia volta e disparou em direção ao Rio Verde. Tinha de chegar em casa antes de Rodrigo acordar ou estaria frita na manteiga.
Bronson se aproximou e perguntou curioso:
— O que deu nela?
— Ficou irritada porque não mandei um memorando avisando sobre a viagem eterna de mais um bandido. — respondeu Thales, encaminhando-se para a Silverado. — Franco, eu o levarei de volta para as suas princesas.
Franco sorriu, sorriu ainda mais quando viu o corpo de Pedro ser envolvido por uma lona preta como um maldito rocambole podre.
Eles chegaram a casa-sede e encontraram o alpendre cercado pelos seguranças da fazenda. Assim que o motor da picape foi desligado, a porta da casa se abriu e uma mulher pequena surgiu com o rosto tomado pela angústia.
Nova correu para os braços do homem que quase pulara da Silverado em movimento e, meio que se abraçando e se beijando, apalpavam-se em busca de ferimentos. Ele, ainda tomado pelo efeito do pesadelo; ela, assustada com o retorno do diabo loiro.
Quando enfim se soltaram, Nova o olhou com atenção, avaliando a expressão do rosto.
— Fez alguma coisa ruim, Franco?
Ele balançou a cabeça em negativo, ouvindo atrás de si a voz do pai:
— O problema foi resolvido da melhor forma possível, sem danos importantes. — em seguida, apertou o ombro do filho e se voltou novamente para a nora: — Agora ele precisa descansar um pouco e ficar com vocês.
Nova preparou-se para dizer algumas verdades ao pai de Franco, mas este a interrompeu com um sorriso e uma declaração que a surpreendeu:
— Quero que continue cuidando do meu filho e prometo não mais interferir. Você está fazendo um excelente trabalho, Nova. Muito obrigado. — afirmou, sério, e estendeu a mão numa oferta de paz.
Ela aceitou a proposta, a mão e o sorriso. Ao seu lado, Franco passou o braço por cima de seus ombros e a trouxe para si:
— E as meninas? Já amanheceu. Elas acordaram?
— As gêmeas acordaram, mamaram e dormiram novamente. E a Paola está maquiando a Virgínia para um baile de mentirinha. — a última informação soou-lhes engraçada, ao que Nova completou: — Ela está parecendo mais um zumbi do que uma dama.
Franco a trouxe ainda mais para si e afirmou de forma possessiva:
— Ninguém vai nos separar, princesa.
Ela o olhou detidamente, averiguando que, de fato, naquele momento, era mesmo Franco quem dizia aquelas palavras, porque o outro, o diabo loiro, não a chamava de princesa.
— Bem, — disse Thales, batendo em retirada, — vou para casa aproveitar o meu dia de folga. — brincou.
Antes de ele descer o primeiro degrau da escada, Franco puxou-o pelo antebraço e o abraçou. Foi um abraço forte e longo.
— Obrigado. — sussurrou ao seu ouvido.
O pai retribuiu o carinho.
— Está tudo no seu lugar. E agora quero que durma um pouco, entendeu?
Franco fez que sim com a cabeça e seguiu com o olhar a figura imponente que entrou no banco do motorista, acionou o motor e partiu para a Arco Verde. Voltou-se para a sua mulher e tentou controlar um bocejo:
— Nossa, parece que lutei a noite inteira. Estou morto.
Ela sabia como tirar o peso de seus ombros.
— Vamos entrar, amor lindo.
Ele aceitou o convite e a mão que entrelaçou os dedos nos seus. A porta foi fechada, e os pistoleiros armados posicionaram-se estrategicamente nos arredores da casa-sede.
Nova se sentou no sofá e deitou a cabeça de Franco sobre suas coxas. Ele se ajeitou como um bebê buscando o carinho morno e seguro até adormecer. Por um momento temeu se entregar ao sono profundo e ser dilacerado por outro pesadelo, mas, agora, sabendo que Nova velava seu sono e que ela o acordaria se o visse gemer ou manifestar qualquer ricto facial de dor, ele podia enfim aceitar o descanso.
E o guerreiro descansou.
“Vale mais uma vingança ou uma extorsão? Ou uma extorsão por meio de uma vingança?”
Leonardo Marau pagou o pão que o seu pai amassou. O coronel foi para a sua próxima encarnação deixando nesta, dívidas, uma família recomeçando no interior do Rio Grande do Sul e um bando de bolivianos no encalço do seu filho caçula. E agora tudo o que ele tinha de fazer era partir para o ataque. Três anos fugindo e se escondendo, isso não era vida. Precisava de dinheiro, muito e rápido.
O barulho da rodovia entrava no quarto do hotel, os motores dos caminhões carregados que se arrastavam pelo asfalto o situavam novamente na cidade que um dia ambicionara dominar e de onde teria começado o seu império. Acontecia, porém, que como sendo um Marau, em cada partícula do seu ser trazia a ganância inerente dos colonizadores, e como não bastasse o clamor dos genes, havia a urgência desesperada de se livrar dos traficantes bolivianos para os quais ainda devia o carregamento de coca apreendido pela Polícia Federal. Para um homem como Leonardo, tal combinação tinha a composição exata de um componente bem parecido com a nitroglicerina.
O celular tocou, e ele fitou o visor reconhecendo a origem da ligação.
― O que foi, mãe? ― indagou, curioso.
― Quero que volte para casa. Agora. ― o tom era áspero.
― Não posso, ainda não. ― retrucou, já sentado à mesa e mexendo na câmera digital, observando as fotografias que exibiam a rotina do seu próximo alvo.
Ouviu um suspiro exasperado do outro lado da linha. Por mais que ele tentasse nunca era bom o bastante para a sua mãe. Até aceitava o fato de ela ter-se decepcionado ao descobrir a sua ligação com o narcotráfico, mas, antes disso, quando todos acreditavam que se tornaria advogado, ainda àquela época, dona Catarina demonstrava mais interesse pela filha fútil mas amorosa do que pelo preferido do papai. Se ela soubesse o quanto Leonardo a amava e que se voltava ao ninho de víboras também era para devolver a ela a vida segura e confortável do passado, talvez amolecesse seu coração.
A questão era que ela não acreditava nele.
― Você não tem ideia da merda que está fazendo, guri. Se não voltar, te entrego pra polícia. Alguém tem de te pôr nos eixos!
― Mãe, espera, vou levantar uma grana, e a gente dará a volta por cima...
― Pelo amor de Deus, Leonardo, a tua irmã e o Augusto trabalham, e você também pode fazer o mesmo. Temos uma boa casa, ninguém aqui morrerá de fome, mas voltar a Matarana para chantagear o Dolejal vai te levar pra cova!
Ele trincou os dentes com raiva.
― Como pode aceitar a humilhação de fugir com o rabo entre as pernas da cidade que o meu pai fundou?
― Sabe muito bem que não fugimos.
― Fugimos, mãe, fugimos sim! Quando o Paulo delatou os planos do Dolejal, eu mesmo pus vocês todos num avião direto para Cuiabá e deixamos o velho resolver o pepino sozinho.
― Se quer pensar assim, então, fugimos, meu filho... mas foi do teu pai, porque ele falou que ia matar o Dolejal e depois o filho dele é que nos mataria. Agradeço pela ajuda e é por isso que quero que volte para casa.
― Só volto quando o Dolejal pagar o que nos deve, que é o quanto nos valia a Coração de Ouro. Antes disso, nada feito.
― Sabe o que vai acontecer? Ele vai ficar uma fera e nos caçar pelo país, pôr os seus detetives atrás de nós e depois os pistoleiros e nos matar! Entenda de uma vez por todas, que se não voltar agora, você não tem mais família, está solto no mundo, piá egocêntrico duma figa!
― Não fala isso, mãe. ― murmurou com mágoa.
― Precisa aprender a aceitar a derrota, teve três anos para aprender, seu bosta, e só o que fez foi viajar de um lado ao outro do país tentando conseguir dinheiro fácil. Fico me perguntando o que sobrou de você agora sem as tuas porcarias, hein? Pra se tornar traficante basta não servir para mais nada na vida e nem isso mais você é. Já disse e repito: avisarei a polícia sobre a tua localização. Tenha a certeza de que esse gesto demonstra muito mais amor do que a forma idiota que o teu pai te criou, com a ilusão de você não ser um inútil.
Ele permaneceu olhando fixo para o celular por alguns minutos, depois de a mãe interromper a ligação.
Voltou a atenção para a câmera digital e, passando uma fotografia após a outra, decidiu que a confusão que arranjara na fazenda do seu pai distrairia a todos, inclusive distrairia o marido do alvo. Enquanto pensavam que Nova Dolejal estava em perigo, seria a mulher do dono de tudo que mudaria a sua vida, servindo a ele como refém, uma mercadoria ainda mais cara e preciosa que o carregamento de coca perdido.
Ajeitou a automática no cós dianteiro do jeans e o chapéu no topo do crânio. Alugara um casebre caindo aos pedaços na Vila Zumbi, lugar que serviria como o cativeiro de Valéria Malverde Dolejal.
Olhou para o relógio no pulso e cogitou que Pedro, a essa altura, já estava morto e sendo embalado para descansar a sete palmos. A hora chegara e tinha de agir.
Um único alvo e atingiria as duas figuras mais importantes de Matarana, o dono da cidade e o seu braço da lei, o delegado ― sorriu satisfeito, o filho do coronel Marau.
Valéria ajustou a bermudinha de surfista na barriga redonda do filho, deu um passo para trás e sorriu satisfeita com o seu visual. Ele estava de pé, em cima da cama, vestido como se fosse à praia, uma camisetinha clara, a bermuda estampada pouco abaixo dos joelhos e a sandália exibindo os pezinhos rechonchudos.
Tentou pentear o cabelo fino e castanho, mas Theo não era amigo nem de pentes nem de escovas, aceitava de bom grado um chapéu ou boné e nada mais. A mãe então considerou proteger a sua pele clara com um boné e uma boa camada de protetor solar fator 100. Aproveitou para pegar uma garrafa de água mineral antes de sair de casa. Temia que o filho se desidratasse, apesar de que ele também aceitava muito bem as mamadeiras com água, sucos e chás gelados.
Avisou as funcionárias que daria uma passada rápida na confeitaria e, em questão de minutos, voltaria para casa.
Voltou-se para o bebê que caminhava ao seu lado como um patinho com traseiro gordo e a barriguinha projetada para frente e provocou-o com um sorriso:
— Vamos buscar uns macarons para o papai? Humm, que tal?
Ele olhou para ela já sorrindo de volta e espichou os braços pedindo colo como um bom preguiçoso que era.
— Pa-pa!
Valéria pegou-o do chão e franziu o cenho, intrigada:
— Está com fome, amorzinho?
Ele riu e pôs as mãos no rosto. Era um gesto que podia expressar muita coisa ou nada, mas, para quem o conhecia, entendia que Theo considerava uma tolice a pergunta feita. Repetiu para que a mãe o compreendesse:
— Pa-pa!
A vozinha clara e delicada ganhou certa ênfase na última sílaba, e era como lhe dissesse com impaciência: pô, mãe, estou falando “papai”!
— Ah, o papai? — ela perguntou meio que se rindo, e o filho fez que sim com a cabeça: — Ele está na casa do seu irmão, e nós vamos preparar um café da manhã bem especial pra ele e depois tentaremos levá-lo para a piscina. — a parte mais difícil do seu plano, uma vez que o marido jamais usufruíra daquela parte da sua propriedade.
O bebê bateu duas palmas em resposta, sempre sorrindo e feliz; em seguida, passou os braços ao redor do pescoço da mãe, que o apertou com carinho, aspirando o cheiro de sua pele que exalava a delicada fragrância da colônia infantil.
Sentado na cadeirinha de segurança, ele balançou os pés, adorando a ideia de passear na picape da mãe. Valéria, por sua vez, ajustou o cinto nele e ofereceu mais uma vez um pouco de água. O dia seria quente com direito a um mormaço pegajoso.
— Esquecemos o seu jacaré. — disse com pesar.
Theo não parecia decepcionado e apontou para a chupeta na mão da mãe.
— Meu.
Valéria sorriu encantada.
— Meu? Você falou “meu”, seu danadinho?
Ele riu e fez que sim com a cabeça:
— Meu! — repetiu.
Ela deu-lhe um beijo estalado na bochecha e devolveu a chupeta ao dono.
— Aqui está, senhor Dolejal. — brincou.
O bebê a sugou com vontade e deitou a cabeça para o lado, olhando para a mãe com um ar de sabido.
Valéria fechou a porta da Ford Ranger e se posicionou atrás do volante. Ligou o ar-condicionado e ultrapassou os limites da Arco Verde. No meio do caminho, apertou o play do MP3 e deixou rolar “Não olhe assim”, de Leandro e Leonardo.
Deu uma espiada no filho, pelo retrovisor, e o flagrou sacudindo as perninhas acompanhando o ritmo da música.
Eram tranquilas as manhãs naquela parte do interior onde se localizavam as fazendas. O campo vasto, coberto pelo mato baixo e ralo, entremeado pelo tom de queimado por sobre o verde e salpicado pelos arbustos e árvores de pequeno porte. Uma trilha de estrada feita pelo tráfego de anos dos pneus das picapes cortava em duas tiras a terra batida formando um canteiro de relva. Ladeando a vicinal sem acostamento, o prado coberto pelo tapete de gramíneas, pontuado ao largo por uma ou outra árvore de porte alto e copa de galhos quase nus de folhas. Recortando o cenário ao fundo o contorno dos planaltos fustigados pelo poderoso sol do centro-oeste.
A paisagem campestre exalava aquele tipo de plenitude silenciosa que somente era quebrada quando o perigo aparecia na forma de uma tempestade ou na forma humana.
Valéria começou a cantar com a dupla sertaneja até ouvir uma gargalhada divertida no banco detrás. Relançou um olhar por cima do ombro para o filho.
— Sei que não canto como a Nova, mas também não precisa rir, né, meu gatinho? — simulou um tom de censura, endereçando-lhe uma piscadela e voltando, em seguida, à cantoria.
Teve de reduzir a velocidade, embora não passasse dos 40 km/h, ao avistar outra picape atravessada na pista, o capô levantado, a placa de sinalização alguns metros à frente. Alguém estava encrencado na estrada.
Em uma cidade que não fosse Matarana, a natureza prestativa de Valéria a induziria imediatamente a pisar no freio e oferecer ajuda à pessoa. Entretanto, além de viver num lugar famoso pelas emboscadas, ela, agora, era a esposa do homem que detinha mais da metade das propriedades da cidade, além de ter o prefeito como seu testa de ferro e uma fama que o tornava temido pelos adversários e respeitado pelo resto da população.
Manteve os vidros fechados e o ar-condicionado na temperatura agradável dos 22 graus.
Mordeu o lábio inferior, indecisa. Teria de contornar o veículo, saindo da estrada, para poder seguir o seu caminho até o centro da cidade. Sabia que tinha feito merda ao escolher trafegar pelo atalho no meio do mato do que usar a rodovia federal, movimentada e segura. Optara pelo caminho mais curto usado apenas pelos pistoleiros quando estavam em grupo ou por Franco. Acontecia, porém, que Valéria detestava seguir a traseira de uma carreta atulhada de madeira se arrastando pelo asfalto. Queria economizar tempo chegando o mais rápido possível na confeitaria e, de igual forma, retornando à fazenda o quanto antes.
Girou o volante para a esquerda, reduzindo um pouco mais a velocidade, até circundar o veículo parado e vazio. Espichou a cabeça e, através da janela do passageiro, constatou que a porta do motorista estava aberta. Franziu o cenho tentando estabelecer uma lógica para o abandono da picape no meio do nada. Não teve como responder a si mesma a questão.
Instintivamente pisou no freio quando voltou a cabeça e viu diante de si, parado na estrada, um homem usando chapéu de caubói com uma arma apontada para ela.
O primeiro pensamento foi o de acelerar para atropelá-lo. Entretanto, foi obrigada a rapidamente descartar essa opção, pois o projétil alcançaria a sua testa antes de ela alcançar o corpo do homem. Não havia então o que fazer, além de nada fazer. Endereçou um olhar cheio de terror para o seu bebê na cadeirinha. Ele sugava a chupeta e olhava a paisagem ao redor, distraído.
A música continuava tocando enquanto o desconhecido se aproximava com cautela, sem pressa, a aba do chapéu abaixada, o braço estendido mostrava a mão com a arma de fogo que seria usada. Por isso Valéria tinha de proteger e salvar o seu filho.
Com muito cuidado, deslizou a mão pelo banco até alcançar a sua bolsa; dentro, o celular. Precisava apertar a tecla que enviaria a Rodrigo a mensagem de SOS. Havia algum tempo que ele configurava os seus celulares para uma situação de emergência. Esse momento enfim havia chegado.
A ponta dos dedos já tocava o zíper da bolsa, quando o cano da arma bateu contra o vidro da janela ao seu lado.
Ela sentiu o sangue congelar nas veias, o peito se encheu de uma angústia tão dolorida que parecia um ataque cardíaco. Não temia por si mesma. A sensação que tinha era de que já não estava mais lá. Observava a si mesma do alto, de uma parte do terreno, e cogitava que a única maneira de salvar Theo era não arriscar e ceder ao bandido.
Ergueu as mãos e virou o rosto para frente, evitando encará-lo. Mais uma vez lembrou as palavras do irmão ao recomendar que jamais encarasse um marginal, assim como não se encaravam cães raivosos.
— Abre essa porra! — ele ordenou.
O medo a paralisou. Ouviu a ordem, o cérebro queria obedecer-lhe porque isso era o mais sensato a se fazer. Porém, tremia e transpirava completamente imobilizada, fitando as próprias mãos deitadas sobre as coxas.
O outro se irritou e bateu mais uma vez com o cano da automática.
— Não quero machucar a senhora e espero que entenda a minha situação...
Ela o interrompeu ainda olhando para baixo:
— Pode pegar a picape e a minha bolsa... Por favor, não faça mal ao meu filho... —
a voz doeu para sair.
— Não sou ladrão, senhora Dolejal. Somente quero o que é meu por direito e o que o seu marido me roubou.
Valéria percebeu que estava mais fodida do que nunca. Agora podia se virar e olhar a cara do criminoso, ele havia-lhe dado o nome e sobrenome, e, além disso, o motivo para atacá-la.
— Você é o filho do coronel Marau? — indagou intrigada, ainda que já soubesse a resposta.
Leonardo sorriu com altivez, como se a família Marau não tivesse sido expulsa da cidade a qual fundara. A questão era que aquele sorriso tinha outro motivo: o fato de também ter o filho caçula de Thales Dolejal como moeda de troca.
Não pensou nem duas vezes, tinha de acabar com a conversa e levá-la para o cativeiro. A qualquer momento, um desavisado apontaria com seu veículo pela estrada e até mesmo o próprio Dolejal com o seu comboio vindo da Coração de Ouro (ele jamais aceitaria outro nome para a fazenda onde nascera).
— Vou ser bem direto com a senhora, — declarou, erguendo a aba do chapéu e cravando os olhos nela: — dois milhões de reais e um avião. Isso não é nada para o seu marido, uns trocados, eu diria. — ele esboçou um sorriso de escárnio e completou com um cinismo cortante: — Então simplesmente siga as minhas instruções, que tudo dará certo.
Eu pego o dinheiro e me mando para bem longe de Matarana, e a senhora nunca mais ouvirá falar de qualquer um dos Marau.
Ela assentiu lentamente, abriu a porta e desceu. Ao se encaminhar para retirar o filho da picape, a mão em seu antebraço a impediu:
— Não, senhora Dolejal, ele fica. O Dolejalzinho trancado na camionete será a ampulheta contando o tempo que o seu marido terá para pagar o resgate. — ele olhou para o céu branco cuja fumaça encobria o sol e disparou à queima-roupa: — Daqui a pouco a temperatura alcançará os 40 graus, o que levaria uma criança pequena a desidratar em questão de, sei lá, quatro ou cinco horas. Além disso, tenho a firme intenção de não acionar o ar-condicionado, apostando que se o baixinho ali não morrer por desidratação, será então por asfixia. Isso significa, senhora Dolejal, que quando falar com o seu marido ao telefone, repetirá tudo o que acabei de informar. Compreendeu? Agora se despeça do seu filho, tenho de levar a senhora para a vila dos desgraçados.
Ele a puxou novamente pelo antebraço, mas não conseguiu arrancá-la do chão. Virou-se irritado para a mulher:
— Nem tente! Sei lidar com vagabundas e, ainda que eu não queira machucar a senhora, farei o que for preciso para ter o meu dinheiro. Não tente contrariar um homem desesperado!
Valéria endereçou um olhar carinhoso para o bebê com a chupeta na boca e os olhos sérios presos nos dela. O motor do Ford estava desligado e os vidros fechados, o cabelinho já começava a se grudar na testa coberta de suor. Antes ela pensava que não havia nada a fazer. Agora, tudo o que precisava na vida era fazer. Fazer acontecer.
Quando sua voz saiu, ela mal a reconheceu:
— Não saio daqui sem o meu filho.
Ouviu o outro rir alto.
Então teve de repetir:
— Não saio daqui sem o meu filho.
O silêncio caiu do céu como um bloco de cimento na cabeça. Mas não foi o silêncio que acertou em cheio seu rosto; foi o punho de Leonardo Marau que a pôs no chão.
O golpe inesperado não a assustou nem doeu ao cair com a cabeça batendo no solo seco. As lágrimas, no entanto, turvaram sua visão, e ela precisava enxergar, não podia chorar naquele momento. Semicerrou os olhos e deixou-se ficar imóvel, prostrada. Via as botas de Leonardo paradas, ele também cogitava o próximo passo.
E ele veio. O homem abaixou-se e a pegou pelos ombros, arrastando-a para o seu próprio veículo que servira como obstáculo na pista.
Ela percebeu a sua força muscular e o quanto era alto e jovem. Um rival de peso, um adversário que deveria sucumbir de alguma forma. Entretanto, desarmada e sozinha, tencionou deixar-se levar. Enquanto o predador enchia-se de autoconfiança, o cérebro da presa girava com a velocidade e tensão de um motoqueiro no globo da morte.
— É incrível como mulher não facilita nada pra gente!
Ouviu-o resmungar exasperado, sem nem mesmo alterar a respiração ao carregá-la junto ao seu corpo, suportando o peso de outro, propositadamente, largado sem forças.
Faltavam poucos passos para chegarem à camionete, e Leonardo cometeu o primeiro erro, baixou a cabeça.
Ao longe, em um lugar onde as fêmeas abasteciam-se de poder para defender suas crias, Valéria lembrou também de outro predador. Franco dissera, certa vez, a ela e a Nova:
— Se vocês sofrerem um ataque e estiverem desarmadas, usem o próprio corpo como arma. E isso significa que não devem fazer o que o cretino espera, mas simulem o previsível como uma espécie de distração, meninas. Vou mostrar para vocês como.
E ele mostrou como.
Num gesto ágil, girou o corpo o suficiente para sair debaixo do arco do braço de Leonardo que, por sua vez, recuperou-se do susto em segundos, puxando-a novamente para si. Não era a reação que esperava, mas isso não a impediria de seguir adiante.
Ergueu o joelho para acertá-lo na virilha e ainda pôde ver o sorrisinho superior quando o homem pegou sua perna no ar.
— Muita ingenuidade para alguém que vive entre assassinos. — escarneceu.
Quando o encarou novamente, viu mais do que um par de olhos arregalados como se fitasse um bicho de sete cabeças, a sua própria mão, com o polegar e o indicador em forma de garra, apertava o pomo de adão com toda a sua força. Tinha plena consciência de que naquele momento fazia uma careta dos infernos, porque deslocava toda a sua energia para apertar o odioso pescoço do Marau. O que não lhe dava muita vantagem, visto que o braço livre do outro a atingiu furiosamente contra a bochecha, virando sua cabeça para o lado.
Ela perdeu o equilíbrio e o soltou. Sentiu o gosto do sangue dentro da garganta. Mas ele escorria do seu nariz e entrava pela boca. Não era muito sangue, pensou aturdida, não deveria o estar engolindo... Foi cortada de seus pensamentos ao ter uma mecha do cabelo puxada violentamente para trás, obrigando-a a arquear o corpo forçando a coluna vertebral. Deixou escapar um grito de dor que fez os pássaros decolarem dos galhos mais baixos das árvores.
Leonardo a pôs de joelho diante de si. Respirava agora pesado, arfante, numa mistura de desgaste e raiva.
— Não adianta espernear! Você vai entrar na minha picape, e nós vamos nos mandar pra Vila Zumbi. Enquanto perdemos tempo aqui, o anãozinho vai cozinhando lá no forninho. Será que fui claro AGORA?
— Como pode apostar assim com a vida de um inocente? — a voz embargada era real, não tinha como simular suas emoções diante de tamanha desumanidade. — É um bebê, pelo amor de Deus! Ele precisa ficar comigo, por favor... Leve nós dois com você, não faça nada contra o meu filho... — ela firmou a voz e mirou bem dentro dos olhos dele: — É certo que o pai dessa criança vai te matar.
O filho caçula do coronel tentou sorrir apostando que tal gesto o protegeria da declaração de uma mãe aterrorizada.
— Quando o seu marido pensar em me encontrar, estarei dentro do avião “dele” e me mandando com o dinheiro “dele” para muito longe daqui, amém! E se ele colaborar, vocês dois não terão um enterro para ir, ok? Agora, senhora Dolejal,entra na picape e não tente mais nenhuma gracinha.
Ele a puxou do chão pelo antebraço com a firme disposição de jogá-la para o interior de sua picape. Arrastou-a por poucos metros, percebendo que ela não o estava ajudando, a cabeça voltada para trás, os olhos marejados de lágrimas fixos no filho.
Jamais o deixaria.
Estacou e, imediatamente, teve uma garra apertada ao redor do seu braço puxando-a com força.
— Não seja besta! Continua!
Ao som gutural e raivoso da voz, o gesto de levar a mão ao coldre com a automática mostrou a intenção. Ele chegou a tocar na arma, acariciá-la com suavidade enquanto chispava fogo dos olhos.
Valéria tinha de tentar. Virou ligeiramente o corpo e, antes de Leonardo prever o que viria a seguir, ela ergueu o joelho para acertá-lo na virilha. Ele riu com vontade, nem um pouco surpreso com a segunda investida desastrada dela. Distraído, faltou o reflexo necessário para se proteger dos polegares que empurraram seus olhos para dentro do crânio.
Ele gritou de dor abaixando a cabeça e apertando as pálpebras cerradas com as duas mãos.
Ela não pensou duas vezes. Girou o corpo para correr de volta à picape. Podia entrar e acionar o motor o mais rápido possível, tiraria vantagem de alguns segundos que seriam usados para pôr o veículo em movimento.
Era agora. Impulsionou-se de modo a se afastar, o mato entrava pelas tiras das sandálias que lhe arranhavam os tornozelos.
Relançou um olhar apavorado para a Ford Ranger. Ouviu um barulho, um choro, um grito com choro. E viu os bracinhos do filho para frente do corpo, para ela, como quando fazia ao pedir colo. Ele chorava. Pela primeira vez, ela via Theo chorar.
Antes que pudesse disparar feito um animal selvagem em defesa do filhote, dois braços a puxaram para trás, jogando-a contra o capô da camionete. O abdômen colidiu com a lateral do veículo, enquanto duas mãos puxavam seu cabelo à altura da nuca e batiam com sua cabeça contra a lataria.
— Desgraçada! É melhor que eu te leve desmaiada mesmo! Vamos, sua vaca, vai dar uma de valentona de novo, é?
Valéria ouviu o choro convulso do seu bebê até o terceiro golpe. Aos poucos, desvencilhou-se da brutalidade que a cercava feito um arco de músculos e ressentimento. As luzes foram-se apagando, e ela não queria partir. O chão cedeu. O som do motor de um helicóptero a fez separar as pálpebras, embora nada visse que não fosse uma imagem turva, desfocada da realidade que desaparecia.
Num segundo Leonardo a puxou para si carregando-a pelos ombros, praticamente, arrastando-a até a sua picape. Depois, afastou a porta com o pé e jogou o corpo quase inerte por sobre os bancos.
Ela foi embora.
A luz traseira da Hilux foi acionada quando o motorista pisou no freio reduzindo a velocidade. Tal qual efeito dominó, os demais veículos do comboio constituído por três picapes vindas da Fazenda Quatro Princesas seguiram a mesma orientação.
Thales estava ao volante da Silverado e foi ele quem teve de reduzir a velocidade ao perceber o movimento de contenção do seu subordinado logo à frente. Franziu o cenho, intrigado. Porém, antes de ter a chance de pegar o celular sobre o painel e tirar satisfações do pistoleiro à frente, ouviu o som de um helicóptero sobrevoando a área.
Meio que abaixou a cabeça para vasculhar o céu, através do vidro frontal, à procura da aeronave. Considerou rapidamente que a polícia rondava o local, pois, em Matarana, apenas ele e a Polícia Civil se utilizavam de helicópteros.
Por quem, diabos, o Rodrigo procura? — pensou, com bastante interesse. Era só o que faltava ele estar atrás do maldito aliciador foragido do presídio de Santa Fé, cogitou entredentes.
Desceu da picape, seguido pelos demais pistoleiros que prontamente o cercaram entre curiosos e expectantes.
— O que está acontecendo aqui?
A pergunta era mais para si mesmo do que para o filho mais velho de Valentino, ao seu lado, com a mão nos quadris. Havia uma automática no coldre preso à coxa por cima do jeans justíssimo.
— É uma ação policial da pesada, patrão. — respondeu o rapaz de quase 23 anos.
A informação deixou-o ainda mais intrigado. O que estava acontecendo na sua cidade que ele não sabia?
Três viaturas da polícia militar faziam o cerco ao perímetro no qual uma dezena de policiais fortemente armados acompanhavam o que quer que fosse logo mais à frente. O helicóptero se afastava sem urgência, deixando a cargo dos homens em terra cumprirem o resto da tarefa.
Thales apressou o passo, o queixo duro revelando a tensão nos maxilares. Virgínia aportou em seus calcanhares, seguida pelo caubói com o coldre na coxa.
Um dos policiais fez menção de contê-lo, mas foi um ato reflexo. Reconhecendo o fazendeiro, cedeu passagem. Antes, porém, comunicou num tom bastante sério e solene:
— O delegado já controlou a situação.
Thales não ouviu, tampouco parou de caminhar, enfiando-se no meio dos homens fardados que se mantinham atentos a tudo ao seu redor, as mãos postas sobre as suas armas, ladeados por uma ambulância e, poucos metros à frente — como ele pôde facilmente reconhecer — a picape de Rodrigo. Ela estava vazia.
Foi nesse momento, quando se apartou do grupo de policiais e avançou até alcançar o outro lado da estrada, que descobriu o motivo daquela ação policial da pesada, como se referira o outro.
Estacou como se estivesse diante de um penhasco. Reconheceu a Ford Ranger cujas portas abertas revelavam o abandono do veículo.
Precisou de alguns minutos para tornar a respirar, o oxigênio no cérebro parecia tóxico e corrosivo, dificultando o raciocínio.
Era a camionete de Valéria.
Mas ela dissera que ficaria em casa. — pensou, aturdido.
Ninguém usava a Ford, somente ela.
Algo no mato, debaixo de uma árvore a poucos metros da estrada, capturou a sua atenção. Era uma lona preta, uma maldita lona preta, a ponta solta balançava no ar. Crispou os lábios sentindo debaixo da língua o amargor de uma vida inteira. A polícia em peso, a picape de sua mulher, a isca na Quatro Princesas distraindo a sua atenção e a de seus seguranças, a lona preta usada não apenas para erguer os barracos na fundação de Matarana...
Sentiu uma gota de água escorrer pelo seu maxilar, a ternura do deslize sobre a pele e a incredulidade do evento. Olhou para o céu cheio de fumaça e ardor. Tentou compreender de onde vinha a água salgada, se não chovia naquele momento. Não chovia.
Atordoado, levou a mão ao rosto, a ponta dos dedos acompanhou o trajeto contrário da trilha de água que lhe alcançou as pálpebras, nas bordas as lágrimas afluíam cegas de suicídio, loucas para se jogarem.
E então Thales Dolejal entendeu o que acontecia. Ele chorava.
Porque a lona preta enrolava um corpo, o dela.
Leonardo encarava o delegado com tanta raiva que, se não fossem as algemas ao redor dos pulsos, poderia agarrá-lo pelo pescoço e quebrar cada ossinho que sustentava sua cabeça. O ódio vinha-lhe em ondas de calor.
Rodrigo olhou com desprezo para o hospedeiro daquele corpo humano e era um verme, repulsivo e covarde, que o habitava. Nada de humanidade restava a alguém que agia contra inocentes. E não havia lei no país ou no mundo para se enquadrar criminalmente um alienígena.
Essa era a teoria de Rodrigo Malverde, ao decidir o destino de Leonardo Marau. Entretanto, as cartas ainda não seriam lançadas à mesa. Ele tinha de contar sobre o que sabia ao homem que espancara a sua irmã:
— Por que ainda não me perguntou sobre como o encontrei? — ele fez um gesto de contenção com a mão ― não estava interessado na resposta e retrucou jogando as palavras com asco: — Ligação anônima. Imagino que faça uma boa ideia sobre quem o delatou... Alguém com voz rouca e talvez de uns sessenta e poucos anos. Alguém que telefonou de longe para me alertar sobre o possível sequestro da mulher de Thales Dolejal, da minha irmã. Alguém que, por imenso respeito e consideração, eu jamais poderia te chamar, Leonardo Marau, de filho da puta.
Os dois ficaram se encarando, até que o mais jovem cuspiu no chão, revelando tudo o que sentia a respeito da situação. Estava fodido de qualquer jeito.
Rodrigo apontou para a linha da cintura do filho do coronel e ordenou ao policial militar mais próximo:
— Solte-o!
Assim que ouviu a ordem, Lucas apareceu com Theo no colo, o garoto sério, os bracinhos ao redor do pescoço do policial.
— Chefe, não faça nada que vá se arrepender depois.
O delegado pensou por alguns segundos e respondeu com cara de quem mastigava um negócio nojento que lhe causava náusea:
— Leve o meu sobrinho para a ambulância. — ordenou sem olhar para o investigador, pois sua atenção concentrava-se no espécime diante de si, sorrindo com escárnio, atiçando o seu lado mais obscuro.
Não havia na face da Terra ser humano sem o seu famigerado “demônio interior”. O que não significava que Rodrigo tivesse outro trauma que não fosse a perda abrupta e violenta do pai nas mãos de um bandido.
O policial prontamente se apoderou das algemas do criminoso e endereçou um olhar de expectativa ao delegado da Polícia Civil. O servidor da segurança pública, com o seu salário de merda e o seu peito cravado de injustiças que tentava combater às vezes com munição comprada do próprio bolso, cedeu espaço quando viu o homem de 1.90 e com a cara de poucos amigos se aproximar com a firme intenção de descer o sarrafo no meliante.
Ninguém ali, da força policial de Matarana, deteria o caubói da lei.
Os policiais dispersos pela área se voltaram para o lugar onde dois homens esmurravam-se violentamente. Eles não queriam perder o show. O delegado era famoso por bater em bandidos antes de encarcerá-los, era uma forma de garantir os direitos humanos... das vítimas; o direito, por exemplo, de terem a satisfação de verem o criminoso cheio de hematomas e, algumas vezes, fraturas.
Catalisando as atenções, Rodrigo e Leonardo trocavam socos, sem perceberem que uma força maior, tomado pelo pavoroso medo da perda, aproximava-se em passadas lentas, calculadas, como se arrastasse correntes pelas botas, ou mais como um felino flechado sagrando no flanco rastejando pelo mato, moribundo, até o lugar de sua morte.
Rodrigo desferiu o último soco no maxilar do homem que enfim tombou no chão, ainda consciente, mas cuja face desfigurada e tingida de vermelho dava sinais de que o embate chegara ao fim.
O delegado amparou o próprio corpo sobre os joelhos flexionados, a respiração arfante, o chapéu no chão e um pouco de sangue no lábio inferior. Estreitou os olhos ao encarar o filho do coronel combalido e indagou com rispidez:
— Deve se sentir muito macho batendo em mulher, não? Agora, me diz, onde está a tua macheza, ô covarde cretino?
O outro ameaçou responder, mas algo o deteve. Algo que fez suas pupilas se dilatarem e o azul dos olhos escurecerem. Alguém que ele via atrás do delegado, de pé, apontando o cano de uma pistola automática em direção à sua cabeça.
Rodrigo viu o pavor nos olhos de Leonardo e, antes de se voltar, sabia quem estava atrás de si. Virou a cabeça para o lado e falou incisivo por cima do ombro:
— Esse assunto já está resolvido, Thales.
Sem mexer um único músculo da face, o fazendeiro mantinha o cano da arma apontado para a mesma direção.
O delegado se ergueu devagar, não queria deflagrar qualquer reação precipitada no marido de sua irmã. Ao se endireitar e fitá-lo, notou a falta de cor no rosto do outro, a água nos olhos, a expressão de alguém que acabara de enterrar o coração a sete palmos de terra. E tal constatação, além de assustá-lo, o comoveu.
— Não faça nada “aqui”. — afirmou baixinho, enfatizando que o assunto se restringia a ambos, e completou, fitando-o nos olhos: — Confie em mim. Estamos juntos nessa.
Se Thales ainda estivesse vivo, a afirmação do homem que sempre protegera e mantivera ao seu lado teria soado como enfim o grito da vitória. Por anos ambicionara a cumplicidade irrestrita do delegado e a lealdade a toda prova do amigo Rodrigo Malverde. Mas agora nada mais importava.
Ele destravou a arma.
Rodrigo se interpôs entre os homens que digladiavam com os olhos. Leonardo mantinha a postura altiva de quem um dia fora filho de um latifundiário poderoso, enquanto Thales era o sofrimento em carne viva.
— Se não sair da minha frente, atiro em você também, Rodrigo. — ameaçou, a voz baixa, o som saindo rouco.
— Não seja idiota! Olha ao seu redor, estamos cercados por policiais. — e, baixando ainda mais o tom, num sussurro cúmplice, declarou: — O momento certo chegará, Thales. Entendeu?
O fazendeiro fitou-o desconfiado e, em seguida, endereçando um olhar de tristeza ao lugar onde a lona preta balançava como numa dança da morte, indagou com uma raiva que mal conseguia conter dentro do corpo:
— É isso que ela merece? Atirada no meio do mato? Eu quero o sangue dele. Agora.
Rodrigo acompanhou o olhar de Thales, encontrando o mesmo objeto que ele fitava com tanta dor e desespero. Precisou de alguns segundos para apreender a essência daquela circunstância. Faltavam-lhe algumas peças para encaixar e assimilar o quadro inteiro. Voltou-se para o outro e, meio confuso, perguntou franzindo o cenho:
— O que tem ali...?
Não precisou esperar pela resposta. Baixou a cabeça e juntou o chapéu do chão, pondo-o novamente em seu devido lugar. Sorria agora um leve sorriso, um gesto terno de empatia e piedade. Encarou o antigo amigo e lembrou, como num flash da memória, os motivos de mantê-lo por perto mesmo com um pé atrás.
— Preste atenção no que vou dizer. — começou, encaminhando-se até o fazendeiro sem se importar com a automática apontada para si: — Quando digo que deve confiar em mim é porque é isso o que tem de fazer. — alcançou-o, e não havia mais espaço entre a ponta da arma e pouco abaixo do seu tórax: — Se por acaso ele tivesse assassinado a minha irmã, Thales, eu mesmo o mataria.
Um clarão azul intenso raiou nos olhos do outro. E Rodrigo aproveitou o momento de confusão por parte do fazendeiro, um ou dois segundos de atordoamento, e comunicou com um sorriso gentil:
— Aquela lona ali é lixo, já estava aqui quando chegamos... — pôs a mão no ombro do amigo e indicou com a cabeça o lugar para onde Thales deveria seguir: — A Val está na ambulância, e o Lucas foi levar o Theo para ela. Só tenha muito cuidado com o que falar, porque ela está muito emotiva... e muito machucada.
Tudo o que ele conseguiu juntar de palavras saiu junto com a respiração:
— E o meu filho? — balbuciou, consciente de que brotavam novamente plantas debaixo dos seus pés, a vida retornava.
Rodrigo entortou a comissura dos lábios num ricto de amargor e respondeu:
— Quando cheguei, ele estava preso na picape... suado, chorando e vomitando de tanto nervosismo. O Lucas o retirou e tentou acalmá-lo, enquanto eu cuidava da Val, depois, é claro, de meter as algemas nesse canalha. — voltou-se ligeiramente para o canalha que era levado, já algemado, para a viatura; em seguida, deu atenção ao cunhado: — Ela estava meio grogue dos golpes, mas é forte a menina, não se preocupe. Lutou muito contra o desgraçado, fez o diabo para salvar o filho... O vagabundo armou uma cilada e tanto para vocês, só que acabou dando o tiro no próprio pé. — ajeitando a aba do chapéu para frente declarou com sagacidade: — A dona Karen hoje fez o café da manhã e tinha até ovos mexidos...Sinal claro de que andou aprontando. Só não quero esbarrar nos dedos do Pedro saindo debaixo da terra, ok? Enterrem bem fundo. — suspirou pesadamente e ordenou com um esboço de sorriso que sugeria cumplicidade: — Agora, Thales, para de me olhar como se eu fosse a versão feminina dos Malverde e vai cuidar da minha irmã. — recebeu em troca um olhar de gratidão.
Quando o outro se afastou meio que se refazendo do choque da ressurreição, Rodrigo ainda lhe endereçava um longo olhar avaliativo, considerando que uma revolução se processara no coração daquele homem. Se Val fora a responsável por um milagre e por despertar a parte arejada e clara de uma pessoa sombria como Thales Dolejal, tinha de ajudá-la na empreitada e também dar uma chance a ele.
Mas agora tudo o que o delegado da cidade pensava era num modo de se manter longe dos antiácidos enquanto tivesse Leonardo Marau detrás das grades na sua delegacia.
Valéria abriu os olhos após terminar de ser suturada. Era atendida na maca dentro da ambulância, e o profissional da saúde, um rapaz cuja idade devia ser próxima a de Sabrina, havia-se preocupado primeiramente em estancar o sangue que escorria do supercílio. Ele ainda tinha muitas avarias para consertar, Val considerou, num misto de nervosismo e ansiedade.
Ao ouvir o motor do helicóptero acreditou enfim que tudo se resolveria, embora todo o seu amor e preocupação se voltassem apenas para uma pessoa, o seu bebê. Lutou até o último momento para não se render à inconsciência e perdeu as forças somente ao perceber que do céu um dos seus anjos protetores salvaria Theo. E ele o salvou.
Voltou a si nos braços de Rodrigo, que sempre a protegera desde quando eram crianças. Ao vê-lo comovido, sorriu e perguntou se tudo estava bem. Ele disse que sim, e ela acreditou nele.
Ainda sentia uma dor latejante na cabeça e não tinha coragem de ver o estado de seu rosto. Sentira o gosto do próprio sangue e, no seu vestido, nódoas e respingos dele para comprovar a violência do ataque. Jamais fora agredida daquela forma e tinha certeza absoluta de que a cena que vivera poucos minutos atrás tão cedo não sairia de sua mente. Não precisava mais lutar pela vida do filho. Não precisava mais lutar. Podia então se entregar a qualquer sentimento ou a nenhum deles. Como agora anestesiada na alma ainda que ferida no corpo.
Levantou os olhos e deu de cara com Virgínia, que lhe lançou um breve sorriso e um olhar de simpatia. Ao seu lado, o primogênito de Valentino, com as mãos nos quadris e os maxilares retesados.
Se aqueles dois estavam ali, significava que Thales estava por perto. Conteve uma explosão de choro. Por Deus, não queria provocar uma tempestade elétrica nem causar nenhum terremoto em Matarana. Leonardo tinha de pagar pelo o que fez e inclusive pelo o que tentara fazer a Theo, mas tudo dentro da lei — conforme as determinações de Rodrigo.
Engoliu o choro, que caiu feito concreto no seu estômago, pesando muito. Era dureza digerir um trauma recente. Ela tinha de provar a si mesma que era forte e que estava à altura de ser uma Dolejal. Até mesmo Nova era durona, deixara de ser medrosa depois do nascimento da primeira filha. Então, ela, Valéria, esposa do homem mais importante da região, da lenda, do dono de tudo, tinha de também fazer valer a sua posição e o seu destino.
Quando o viu passar por entre os seus pistoleiros e o seu olhar encontrou o de Thales, quase não o reconheceu. Uma cortina de água toldou-lhe a visão e ela respirou fundo para manter as lágrimas na borda das pálpebras. E novamente teve de lutar, agora, consigo mesma, pois nos braços do homem que amava mais que a si mesma estava o seu bebezinho agarrado ao pescoço do pai.
Ele parou diante dela e nada falou. Porém, tudo nele parecia gritar. Cada músculo que marcava a pele dos maxilares, a profundidade das olheiras e os sulcos fundos ao lado dos olhos e na testa. A camisa para fora do jeans, amarfanhada. Os cílios longos, úmidos. Gritava a fortaleza combalida, o gigante posto de joelhos.
Valéria estendeu a mão para tocá-lo, porque precisava aplacar o sofrimento daquele menino judiado pelo passado e que pouco fora amado. Ela o amava por todos, pelo mundo inteiro; amava-o simplesmente por existir e respirar.
O que ele viu o fez emudecer. Queria dizer a ela o quanto se sentia mal por ter falhado, por não tê-la protegido como era a sua obrigação, não só como marido, mas também como guardião do amor que sentia por ela. Perdê-la, ainda que fora em pensamento e por alguns minutos, perdê-la, não estar com aquela mulher que o fitava com o amor devotado de uma garotinha pelo seu ídolo, perdê-la e perder esse olhar, preferia mil vezes perder a própria vida.
Mas ele não sabia como dizer o quanto ela era importante.
— Ele está bem? — ela perguntou, vendo o filho arquear o corpo para frente jogando os braços para ser aceito em seu colo.
Thales o conteve abraçando-o contra si.
— A mamãe está machucada. — falou baixinho ao filho, que, imediatamente, fitou a mãe com o cenho franzido, sugando a chupeta com ansiedade. — Depois, em casa, os dois vão descansar no quarto. — em seguida, ao ver o técnico se aproximando com algodão e iodo, antecipou-se comunicando com bastante serenidade: — Tenho essas coisas em casa, posso cuidar da minha mulher.
O rapaz nem pensou em contrariar o marido que não tirava os olhos da esposa.
— Sim, senhor Dolejal. Daqui a uma semana, a dona Valéria pode passar no hospital e tirar os pontos. — avisou solícito.
Thales assentiu levemente e tornou a fixar sua atenção em Valéria.
— Isso nunca mais acontecerá com você. — afirmou com obstinação.
— Eu sei, meu amor. Está tudo bem agora. — tentou sorrir.
— Não, Valéria, não está tudo bem. — declarou, encarando-a diretamente. — Pus a vida de vocês dois em risco e jamais me perdoarei por isso. Não consigo vê-la ferida desse jeito...Não posso aceitar que aquele...aquela coisa tenha tocado em você, machucado, espancado... Deus do céu, você é a minha garota... a garota que eu amo e que vou amar o resto da minha vida.
Ele parou de falar e puxou todo o ar que podia.
Valéria tentou sorrir e confortá-lo.
— Estou bem, e estamos juntos, meu amor. Não quero vê-lo angustiado assim, por favor. Olha a carinha do Theo pra você.
Ele olhou para o filho, que estava sério, concentrado, como se avaliasse o que acontecia com o seu altivo pai.
— Sou louco por sua mãe, sabia? — declarou para o bebê, sem nenhuma intenção de fazer graça; falou com seriedade e ternura.
Theo se virou para a mãe e espichou novamente os braços para ganhar um colo.
Ela se levantou da maca onde até então estava sentada e o pegou.
— Ele está se sentindo inseguro.
— Todos nós estamos, minha Valéria.
Antes de ter o filho no colo, ficou na ponta dos pés e beijou o rosto do marido.
— Lutei como você para proteger o nosso filho, Thales. Aprendi muito ao seu lado. Muito obrigada.
Ele viu de perto os hematomas nos maxilares dela, o corte suturado no supercílio e o sangue seco e escurecido em uma das narinas. E viu também a beleza dos cabelos vermelhos, dos olhos verdes, das sardas, a beleza que era toda ela.
Tentou sorrir, mas ainda lhe era complicado sentir coisas boas vendo-a daquele jeito, imaginando-a sendo espancada por Leonardo Marau, agredida e humilhada.
— Vou cuidar de você.
Abaixou-se e a beijou com delicadeza nos lábios.
— Eu também vou cuidar de você. — ela disse de forma incisiva e com um sorriso juvenil.
— Quero que me entenda, Valéria, que não vou cuidar de você apenas agora. Planejarei todo um esquema de segurança em torno de você e o Theo, além de levá-la em todas as minhas viagens. Tomarei conta de você de tal forma que nenhum filho da puta chegará perto. Vou cuidar de você para sempre. Entende, agora? Você é a minha prioridade. — assegurou com firmeza.
Ela o abraçou e aceitou em torno do seu corpo o braço que a puxou ao encontro do tórax largo e acolhedor. O cheiro dele a fez mais uma vez engolir as lágrimas, era o cheiro do lar, do porto seguro, do amor correspondido.
Roçou o nariz contra o tecido da camisa masculina e respondeu quase num sussurro, sentindo a mãozinha do filho bagunçar os seus cabelos num carinho desajeitado:
— Sim, Thales, como quiser.
Mas Thales queria mais:
— Como nós quisermos, minha Valéria.
A confeitaria Dolejal fora decorada especialmente para a ocasião. A ideia era uma recepção privativa para receber a dona do estabelecimento novamente ao trabalho, após a semana se recuperando em casa cercada pelos filhos, amigos e o marido, que não tirara os pés da fazenda nem para trabalhar. E tal comportamento, dedicado e amoroso, provocou no irmão da convalescente a vontade de se reaproximar do amigo de longa data, que se tornara rival e depois cunhado.
Rodrigo terminou de fumar à porta da delegacia, mirando do outro lado da rua a fachada de vidro da confeitaria protegida pelas cortinas fechadas. As três famílias estavam lá dentro, Dolejal, Malverde e Lisboa, junto com os funcionários do local, comendo doces e salgados nas mesas dispostas pelo recinto.
A última tragada foi dada com genuíno prazer, mandando para os pulmões todas as porcarias contidas no cigarro. Pensava em parar de fumar; sabia que não pararia. Voltou-se para o interior da delegacia e piscou o olho para Adele. Pensava que devia parar de brincar de paquerá-la; gostava de pôr um sorriso nos lábios dela.
Fez um gesto com a cabeça em direção a Lucas e comentou com estudada naturalidade:
— Que tal vocês dois irem dar um abraço na Val, hã? Ela ia gostar muito, ainda está toda dengosa depois do sufoco que passou e... — nessa parte, ele deu uma risadinha e completou: — pelos mimos do marido. Não pode ver ninguém que abraça e beija como se não houvesse amanhã. — riu-se, ajeitando a aba do chapéu até ficar do mesmo jeito de antes.
Adele se levantou da cadeira de imediato, jamais recusaria uma festinha regada a coisinhas que a engordavam de felicidade. Endereçou um olhar para o outro policial que preenchia relatórios atrasados e atirou à curta distância:
— Vamos, Lucas, quero vê-lo em ação... comendo.
O outro ergueu a cabeça exibindo um sorriso sacana que era sua marca registrada.
— Não sou um exibicionista.
— E, por acaso, é um voyeur?
Rodrigo balançou a cabeça rindo baixinho. Adele era uma figura e tanto! E Lucas não fazia o tipinho que fugia de indiretas sexuais femininas:
— Está com muita fome, parceira?
Ela sorriu com todos os dentes à mostra.
— Não faz ideia, parceiro.
Lucas não se intimidou nem um pouco, mas seus pensamentos voaram em direção ao chefe que os observava com uma expressão divertida no semblante.
— E o preso lá embaixo?
Leonardo Marau ainda estava detido na delegacia aguardando a transferência para Santa Fé.
O delegado deu de ombros e respondeu sem muito interesse:
— Fico por aqui, e depois nos revezamos. Prefiro dar um abraço na Val no finalzinho da comemoração para poder voltar com a Karen pra casa.
Os policiais assentiram. Lucas cedeu passagem para Adele andar a sua frente, mas ela preferiu se manter atrás dele. O jeans justo no traseiro era uma paisagem que fazia muito bem aos seus sentidos.
Ao chegarem à calçada, o agente da lei deu uma paradinha e se voltou para a colega de profissão:
— E, aí, qual é a mais bonita?
— Não dou palpites sobre suas namoradas, Lucas. — respondeu num resmungo.
Ele sorriu ainda mais.
— Quem possui muitas não tem nenhuma, sou um solitário. — debochou; em seguida, passou o braço ao redor dos ombros da escrivã e se fez claro: — Qual é a bunda mais bonita, a minha ou a do chefe?
Adele voltou-se para o homem que a cutucava próximo demais da jaula. Deu um passo para trás e averiguou a retaguarda do rapaz. A resposta foi dada num tom sério e quase solene:
— A do chefe.
Lucas gargalhou, apertando-a contra si:
— É tão má comigo que ainda vou e gamar por você.
— E aí te esmago no asfalto.
— Jura? — indagou, os olhos cheios de admiração.
— Promessa é dívida, meu bem.
— A gente não presta. — afirmou com um sorriso endiabrado.
Adele circundou a cintura de Lucas e fingiu que eles tinham um tórrido caso de amor. Embora continuasse a considerar o seu chefe como o homem mais sexy e perfeito do universo.
O caubói da lei observou o seu pessoal atravessar a rua e entrar na confeitaria. Escorou-se contra o batente da porta e inspirou preguiçosamente, sentindo os raios do sol, frágeis àquela hora da tarde, perto das seis, lamberem seu rosto. Estreitou os olhos e fez uma busca rápida pelo perímetro. Sorriu levemente ao reconhecer quem deveria ser reconhecido.
Deu um tapinha na ponta da aba do chapéu, erguendo-a ligeiramente para cima, expondo seus olhos cor de mel, a tez morena e as mechas do cabelo castanho claro. Espiou com curiosidade os ponteiros do seu relógio de pulso ao mesmo tempo em que se desencostava de onde parecia ter criado raízes, as raízes da preguiça. Os dias quentes sem confrontos causavam-lhe sono.
Ao assegurar-se de que os policiais estavam distraídos na recepção do outro lado da rua, o delegado fechou a porta da delegacia atrás de si.
Entrou na picape e ajeitou o retrovisor, recortando no retângulo especular a fachada da confeitaria Dolejal. E alguém na esquina.
Entortou o canto dos lábios para baixo e relançou um último olhar para a entrada da delegacia, despedindo-se provisoriamente. Em seguida, acelerou em direção a 163 como se tivesse perdido o coração por lá.
Sabrina diminuiu o volume de She's in Love with the Boy e postou-se detrás do balcão para retirar a torta de chocolate, com recheio de sorvete de abacaxi e rum e cobertura de chantili. Considerou que bancar a anfitriã conferia algumas vantagens, como comer um bom pedaço da sua torta preferida antes dos demais convidados, por exemplo.
A confeitaria estava cheia, e ninguém permanecia muito tempo em sua própria mesa. A ideia da recepção para a mãe partira da vontade de amenizar o trauma sofrido por ela e evitar que caísse em depressão. Revezara-se com o padrasto nos cuidados físicos dela, embora fosse uma dureza fazer com que Thales lhe cedesse espaço e oportunidade para tanto. Agora, contudo, o que via era uma mulher refeita, com algumas marcas no rosto, era verdade, mas ainda sorridente e gentil.
Sentiu que era observada por um dos caubóis do recinto e sorriu consigo mesma. Havia feito uma loucurinha às vésperas de partir para a capital. Um tipo de doideira gostosa que a deixara meio distraída com um sorriso besta nos lábios. Suspirou, balançando a cabeça se autocensurando mentalmente. Não cometera nenhum crime que não fosse o de amor. Apesar de que fazer amor não era crime algum.
Do outro lado do ambiente decorado com balões dourados, com um copo de refrigerante na mão e encostado contra parede, cercado por Karen e Nova, o menino de 18 anos também sorria do mesmo jeito que Sabrina, o mesmo tipo de sorriso cúmplice.
Johnny ajeitou o chapéu na cabeça, o chapéu presenteado por Rodrigo havia mais de três anos, e o imitava também no gesto de acomodar o Stetson meticulosamente sobre o crânio. Piscou o olho para a sobrinha do delegado e considerou levá-la ao cinema mais tarde, na sessão das 22 horas, um filme de terror. E então ela mais uma vez se grudaria nele buscando o seu afeto e proteção, além da amizade. E depois a deixaria seguir o seu caminho, porque ele sempre estaria entre Matarana e Santa Fé, com as botas preparadas para subir no Maverick da mãe e passar um fim de semana em Cuiabá.
Karen abraçou o filho pela cintura, por trás, e o balançou consigo de um lado para o outro:
― Eta-ferro!, enfeitiçado por um Malverde?
Ele riu e quase teve o refrigerante espirrado pelo nariz.
― Que é isso, mãe? Nunca ouviu falar em amizade entre homem e mulher?
― Sim, claro, amizade com benefícios, você quer dizer.
Thales e Valéria, de mãos dadas, se aproximaram dos dois. A mãe de Sabrina aproveitou para tecer um comentário a respeito do filho da amiga:
― O Rodrigo me falou que pretende ser delegado da Polícia Federal. Saiba, Johnny, que deixou o seu padrasto muito feliz.
O garoto sentiu as bochechas pegarem fogo.
― Falta...bem, falta muito ainda. ― tropeçou nas palavras.
Thales notou o constrangimento de Johnny e procurou contornar a situação, falando com bom humor:
― Terei de elaborar novos códigos de comunicação com os meus funcionários quando o federal estiver na cidade visitando a família.
Agora, sim, Johnny tinha o rosto em chamas.
Karen beijou a bochecha do filho e respondeu para o homem que tinha dificuldade de parar de sorrir. Afinal, a mulher de cabelos vermelhos estava bem ao seu lado exalando o cheiro de sua plenitude.
― O Johnny jamais esquecerá, sendo um federal ou não, que as leis em Matarana são outras.
― Vejo que educou muito bem o seu filho, minha querida. ― afirmou Thales com um sorriso satânico.
― Não tanto quanto você com o Franco, meu querido. ― rebateu Karen no mesmo nível.
Valéria se acostumara aos embates verbais entre os dois e considerava que era essa excêntrica dinâmica o fio condutor da amizade de ambos. O que não deixava de ser engraçado.
Thales deu uma olhada no relógio de pulso e comentou ainda sorrindo, seus olhos brilhavam de prazer:
― Daqui a pouco teremos um espetáculo de fogos na praça.
Valéria se virou para ele entre encantada e se controlando para não rir:
― Não acredito!
― Um presente completo, minha Valéria, com direito a uma doce vingança. ― afirmou bem satisfeito consigo mesmo.
O sorriso da mulher do fazendeiro murchou.
― Vingança? Está tudo bem, agora. Nada de vingança.
― Aproveite a sua festa, que depois eu aproveitarei a minha.
Karen sorriu para a amiga e falou com deboche:
― A gente não tem circo, Val, tivemos de improvisar. Desmancha essa ruga da testa, porque você é a rainha do baile. Vem, vamos prosear com a dona Nova e a vó, ok?
Valéria relançou um olhar expectante ao marido e recebeu em troca um sorriso misterioso. Mas não teve outro jeito senão seguir a cunhada que a puxava pela mão.
Thales se voltou para o filho mais velho e fez um sinal afirmativo com a cabeça.
De posse do celular, Franco deu a ordem.
A árvore da vida e do conhecimento do bem e do mal, as folhas da figueira que cobriram a nudez dos personagens bíblicos, agora, debaixo do céu noturno que explodia em estrelas artificiais que se desintegravam e, na morte, coloriam a noite em Matarana, sustentava em um dos seus galhos altos o aviso da chegada dos novos tempos por aquelas bandas, na terra que não mais era de ninguém porque ela já tinha um dono.
E foi o dono de Matarana quem primeiro se aproximou da árvore frondosa no meio da praça, perto do coreto, diante do templo católico.
Ele estava sério enquanto se postava ao lado de Leonardo Marau, desmaiado, com visíveis marcas de espancamento, amarrado pelos pés, de cabeça para baixo. A razão de sua exposição em praça pública, como os antigos enforcamentos no Velho Oeste norte-americano. Um evento, por assim dizer.
Para Thales Dolejal não era um evento sem a dimensão de um relevante recado:
― Povo de Matarana, eis as boas novas: a paz se constrói sustentada por vários alicerces. E, aqui, na nossa terra, o fundamento está em uma antiga lei que, ao contrário das falhas e brechas da justiça formal brasileira, funciona para refrear a perversidade dos criminosos contra os inocentes. ― encarando cada indivíduo diretamente no olhar, a postura altiva de um faraó, ele citou as palavras de aviso: ― "Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé". É isso que está na Bíblia, e que Deus seja louvado!
Primeiro o silêncio da multidão, o espanto, o choque. A constatação.
Alguém gritou "Moisés".
E aplaudiram fervorosamente.
Os cascos do cavalo batiam contra o solo seco e o som reverberava pelo prado no silêncio daquela noite no descampado.
Era por uma estrada longa, de chão batido, que ela cavalgava. Os cabelos negros soltos debaixo do chapéu de vaqueira dançavam soprados pelo vento morno que também agitava a crina de Prefontaine. Amazona e animal, ambos selvagens e livres, ganhavam o horizonte a caminho da estrada federal.
Nada para aquela mulher fora fácil e, se o fosse, seria desprezado, ignorado, sem valor. Por isso ela podia abrir os braços para abraçar a própria vida que a arrebatava de paixão e plenitude, sentindo o coração galopar no mesmo ritmo do cavalo e da loucura de ser tantas mulheres em uma só. E enquanto corria e sorria, as lágrimas lavavam o seu rosto sem maquiagem e qualquer artifício, e ela passava pela fachada imponente dos muros da Arco Verde, e ainda galopando arrastada pela velocidade dos seus sentimentos, sempre extremos, vencia o território da Quatro Princesas, despedindo-se momentaneamente de seus moradores. Poucos metros à frente, a casa onde morava com o delegado, o filho e a avó, sem se esquecer de Bonnie, que um dia se tornaria sua amiga. Então ela sorriu e continuou.
Ao passar pelo seu antigo condomínio de bangalôs, bateu levemente na aba do chapéu e cumprimentou o segurança da propriedade, que, comprada por Thales, era agora um hotel de luxo para executivos de fora.
E não foi sem emoção que alcançou as ruas pavimentadas do centro e deixou o Colono Tranquilo e o Bar do Gringo para trás, os erros e os acertos eram largados no meio-fio da calçada, quem se interessasse que os juntassem. Porque ela estava diante do Salão Country e bem perto da confeitaria Dolejal e da Delegacia de Polícia.
Puxou levemente as rédeas do manga-larga e optou por outro caminho que não enfrentasse a multidão na praça.
Ao passar pelo Dolejal Center, lembrou-se dos almoços com as mosqueteiras tresloucadas, no Arizona, e tal pensamento também a fez sorrir. E quando não se aguentou mais de tamanha ansiedade e vontade de estar com alguém especial o resto de sua vida, exigiu um pouco mais de sua montaria. Até chegar à reta asfaltada criada para ligar pessoas a lugares e a BR 163 a recebeu como fazia para com todos que procuravam por dias melhores, ali, no centro-oeste, ou saindo dele, retornando, recomeçando, vivendo de novo o que tinham por destino viver.
Seguiu pelo acostamento até encontrar o amor.
Debaixo do portal da cidade, um grupo de funcionários da prefeitura vestidos em seus uniformes azuis apontou a direção certa.
Desceu do cavalo sorrindo por encontrar sem muita dificuldade o delegado, encostado contra a picape, observando o trabalho dos homens à sua frente.
Assim que a viu, Rodrigo Malverde sorriu e a chamou para um abraço e um beijo.
Abraçados, Karen Lisboa prometeu a si mesma que seria feliz com aquele caubói. Ao encará-lo e revelar a sua intenção em relação ao futuro, ele antecipou-se e disse num sério e decidido, embora não faltasse o carinho na voz:
― É um recomeço, Karen, para todos nós. ― ele então meio que sorriu como um garoto travesso e completou com paixão no olhar: ― Sabe de uma coisa? Não quero mudar nadinha dessa boniteza que é a minha vida com você.
― Senhor delegado, a hora que quiser estarei pronta para o altar.
Ele achou graça e apertou-a contra si.
― Certo, senhorita Lisboa, depois do almoço a gente casa então.
Eles riram e se voltaram em direção à placa que era pendurada junto ao portal da cidade. O anúncio dos novos tempos em letras garrafais:
BEM-VINDO A MATARANA
AS PESSOAS BOAS MORAM AQUI
E ESTÃO ARMADAS
Janice Diniz
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