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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FOGUEIRAS À MEIA-NOITE / Mary Stewart
FOGUEIRAS À MEIA-NOITE / Mary Stewart

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FOGUEIRAS À MEIA-NOITE

 

Em primeiro lugar, acho que a culpa foi de meus pais, que me deram um nome bobo como Gianetta. O nome em si mesmo não deixa de ser gentil, mas sugere figuras de mu­lheres agradáveis e um pouco avantajadas nas telas menos respeitáveis de Ticiano e, embora eu reconheça que tenho a espécie de colorido que poderia interessar àquele mestre vene­ziano, acontece que eu sou o produto um tanto inibido de uma casa paroquial inglesa do interior. E se há alguma coisa mais afastada das Vênus de bagnio do período intermediário de Ti­ciano, eu não sei qual possa ser.

Para fazer justiça a meus pais, devo confessar sem rodeios-que havia na família o toque do bagnio bem recuado no passado, é claro, mas havia. E minha mãe era suficientemente vaga, artística e sentimental para não ver nenhum impedimento a dar a uma filha de cabelos ruivos o mesmo nome da Vênus Escandalosa, a linda loura Gianetta Fox, que fêz furor em Londres em outros tempos, e era uma Beleza na época em que se escrevia Beleza com um B grande, talvez porque valesse o seu peso em ouro. Não era ninguém a bela Gianetta. Creio que a mãe dela tinha sangue italiano e, se sabia quem era o pai, nunca o disse a este. Ela apareceu de repente, Vénus surgida da espuma da Whitechapel vitoriana, e fez sentir o seu impacto sobre Londres na primavera de 1858. Tinha apenas dezessete anos. Quando completou vinte, tinha sido pintada por todos os pintores importantes (Landseer foi a única exceção) em todas as poses alegóricas concebíveis e também, ao que se dizia, fora sucessivamente amante de todos eles, sendo preciso ainda neste particular excluir Landseer. Em 1861, colheu o justo prêmio das suas virtudes especiais e se casou com um baronete. Este conseguiu prendê-la o tempo suficiente para que ela lhe desse dois filhos antes de deixá-lo em favor de um pintor muito "moderno" da escola francesa, que se espe­cializava em nus. Ela abandonou o filho e a filha aos escandali­zados cuidados de Sir Charles. O filho seria meu avô materno.

Desse modo, minha boa mãe, vaga e artística, que passa o tempo na sua casa paroquial de Cotswold fazendo uma cerâmica delicada que prepara num forno no fundo do quintal, me deu o nome de minha desmoralizada e famosa bisavó sem pensar nas possíveis conseqüências para mim quando chegasse a minha vez de aparecer em Londres, o que aconteceu em 1945.

Eu tinha dezenove anos, havia concluído os estudos oito meses antes e, depois de fazer um curso para manequins no West End, estava ingenuamente tentando iniciar uma carreira glamurosa como modelo de vestidos numa casa de modas. Eu tinha sociedade num apartamento de quarto e sala, uma pequena conta de banco (presente de meu pai), dois vasos de plantas e um cinzeiro (presentes de minha mãe) e um diário com agenda (presente de meu irmão Lucius). Vivia no sétimo céu.

Ainda estava no sétimo céu quando a Galeria Morelli comprou a tela de Zollner intitulada "As Mangas Verdes" e Marco Morelli o conhecido Marco Morelli resolveu fazer baru­lho com ela. Lembram-se disso? Creio que a idéia de Morelli foi reativar o interesse pela arte depois das austeridades e das privações da guerra. Seria difícil escolhei uma tela mais apro­priada do que aquela.

"As Mangas Verdes" tinha toda a tumultuosa bravura do período de 1860 de Zollner. A bela mulher que enlanguesce em tamanho natural no centro da tela é o foco de uma complicada confusão de pedrarias, penas e sedas bordadas e eu duvido que alguma fazenda tenha sido já mais miraculosamente pintada do que o coruscante damasco das grandes mangas ver­des. Como um antídoto à austeridade era certamente impres­sionante. E até o transbordamento de cor de Zollner não conse­guia destruir a triunfante vitalidade do modelo ou atenuar o ardor de sua flamejante cabeleira. Fora a última aparição de Gianetta Fox numa tela e ela tinha todo o jeito de quem procurara aproveitar-se ao máximo da oportunidade.

Morelli e seu primo Hugo Montefior, o costureiro, que era meu patrão, queriam também aproveitar a oportunidade. Nada havia realmente contrário à idéia de que Montefior criasse de novo o vestido de mangas verdes e que eu o exibisse, provocando uma sensação nos círculos que interessavam e beneficiando as­sim extremamente os dois primos. E talvez a mim também, embora sinceramente isso não me ocorresse quando Hugo me expôs a sua idéia. Fiquei apenas lisonjeada, excitada e terri­velmente nervosa.

Desse modo, usei o vestido de mangas verdes na exposição, Morelli conseguiu a sensação que queria e eu fiquei tão intimi­dada diante da assistência elegante que, quando pude falar, foi numa voz constrangida e baixa que deve ter parecido a última palavra em sofisticação. Creio que devo ter parecido realmente uma pálida cópia da arrogante figura que se ostentava atrás de mim na tela de Zollner. Foi isso indubitavelmente o que pensou Nicholas Drury quando abriu caminho por entre a multidão e veio apresentar-se a mim. É claro que eu já o conhecia de nome e isso de maneira alguma me deu confiança. Ele tinha naquela ocasião — aos vinte e nove anos de idade — três bons romances a seu crédito e uma sólida reputação de língua ferina. Tão ferina era que eu fiquei inteiramente atordoada e, sob o seu olhar sardónico, murmurei alguma frase imbecil de colegial que, Deus nos proteja a ambos, ele considerou de um requintado coquetismo. Três meses depois, estávamos casados.

Não tenho a menor vontade de falar muito nos três anos que se seguiram. É claro que eu estava profunda, tremenda e loucamente apaixonada por ele e era uma adolescente tola e deslumbrada, mergulhada numa vida completamente estranha e um pouco apavorante. Quanto a Nicholas, logo se tornou evi­dente que ele também não sentia o chão firme debaixo dos pés. Tinha pensado em casar-se com uma Gianetta Fox moderna, uma complexa jovem sofisticada capaz de manter-se na socie­dade em ritmo febril a que ele estava habituado. Mas o que tinha conseguido era apenas Gianetta Brooke, recém-saída da escola, e cuja pose era uma técnica havia bem pouco adquirida nos salões de Montefior e na fábrica de modelos de Mayfair.

Mas esse engano inicial não foi a causa de nossa pequena tragédia. O amor é um grande construtor de pontes e pareceu que o que havia entre nós seria capaz de transpor qualquer abismo. Nicholas se esforçou tanto quanto eu. Olhando para trás agora, posso ver perfeitamente isso. Se adquiri sofisticação e um pouco de sabedoria, Nicholas se esforçou por tornar a descobrir a ternura. Mas era muito tarde. Quando nos conhece­mos, já era muito tarde. Os tempos estavam inteiramente desar­ticulados para nós, a separação era muito grande — não a diferença de dez anos entre as nossas idades, mas os mil anos de extensão de uma guerra mundial que para mim era apenas uma lembrança de adolescente que mal fazia mossa na super­fície de minha vida, mas constituía para Nicholas uma agonia ainda insistente de pesadelo que deixava cicatrizes no espírito, que só então a estava precariamente superando. Como podia eu, inatingida aos dezenove anos, compreender as tensões que impeliam Nicholas? E como poderia ele pressentir que no fundo de mim mesma, sob a minha precária confiança, rondavam os germes destruidores da insegurança e do medo?

Fosse como fosse, a ruptura não tardou. Dois anos depois, o nosso casamento estava praticamente acabado. Quando Nicho­las viajava, como fazia freqüentemente a fim de colher material para os seus livros, encontrava cada vez motivos novos e maio­res para não me levar com ele. Quando descobri que ele não estava viajando sozinho, não senti surpresa, mas fiquei magoada e humilhada e, por isso — afinal de contas, eu tinha cabelos vermelhos — fui impetuosamente franca.

Se tivesse querido conservar Nicholas, eu devia ter man­tido um freio na língua. Eu não era adversária para ele num campo de batalha onde o amor se havia tornado uma fraqueza e o orgulho era a única defesa contra um cinismo brutal e irrespondível. Ele venceu com muita facilidade e não pode saber com quanta crueldade...

Divorciamo-nos em 1949. Em atenção a minha mãe, que tinha tais convicções que, segundo meu pai, era quase católica, continuei a usar o nome de Nicholas e a minha aliança. Ao fim de algum tempo, cheguei a voltar para Londres, e para Hugo Montefior, que procedeu angelicamente comigo, me estafou de tanto trabalho e não mencionou uma só vez o nome de Nicholas. Assim fazia todo o mundo, menos mamãe, que de vez em quando perguntava por ele nas cartas que escrevia e até, em duas ou três ocasiões, estranhou que eu ainda não estivesse esperan­do... Depois de um ano mais ou menos, consegui até achar isso divertido, salvo quando estava tão cansada que o delicado-anacronismo de Mamãe e da casa paroquial de Tench Abbas se tornavam insuportáveis.

Assim, em meados de maio do ano passado, quando Lon­dres esteve repleta durante semanas com as multidões que já se acumulavam para assistir ao grande dia da Coroação, Hugo Montefior olhou para mim um dia, tornou a olhar e disse que eu podia tomar quinze dias de férias. Liguei o telefone para Tench Abbas e falei com Mamãe.

Férias? — disse Mamãe. — No começo de junho? Que bom, querida! Vem para cá ou isto aqui será muito triste para Nicholas?

Acontece, Mamãe...

Bem, não temos televisão, mas podemos escutar tudo o que queremos pelo rádio...

Olhei para as janelas do salão de Montefior, que abrem uma vista de arquibancada para Regent Street.

Seria ótimo, — disse eu. — Mas, Mamãe querida, a senhora se incomodaria se eu fosse a outro lugar primeiro? Um lugar longe de tudo... onde eu só pudesse ver monta­nhas, água e pássaros, coisas assim. Pensei no distrito dos Lagos.

Não é bastante longe, — disse Mamãe prontamente. — Por que não vai para Skye? Seu pai estava falando de lá outro dia na festa ao ar livre dos Dunhills. Choveu durante todo o tempo e nós tivemos de ficar dentro de casa. É claro que sempre chove quando os Dunhills fazem uma festa ao ar livre. E então Maisie Dunhill se lembrou. Passaram duas semanas lá e houve chuva todos os dias.

Em Skye?

Sim. E lá não há televisão.

É justamente o lugar que eu quero, — disse eu sem ironia. — A Sra. Dunhill lhe deu o endereço?

Está ouvindo os estalos no telefone? — perguntou Ma­mãe. — Não é possível que já tenham passado três minutos e eles sabem como isso me faz nervosa. Ah, sim, os Dunhills... Sabe que eles compraram um carro novo, muito grande, cha­mado Chacal ou Jague ou coisa assim...

Jaguar, Mamãe. Mas pode-me dar o endereço do hotel onde os Dunhills se hospedaram?

Ah, sim, vou dar. Mas sabe que o Coronel Dunhill nunca dirige a mais de cinqüenta quilômetros por hora? Seu pai diz... Que é, meu caro?

Ouvi a voz de meu pai indistintamente atrás dela. Minha mãe disse então:

Seu pai escreveu o endereço. Aqui está... É o Hotel Camas Fhionnaridh...

Como é mesmo o nome do hotel, Mamãe?

—        Vou dizer letra por letra, — disse Mamãe e assim fez. — Não me lembro bem... mas deve ser esse... Que é, meu caro?

Falou de novo com meu pai, afastando-se do receptor e me deixando para escutar os estalos que sempre fazem Mamãe pas­sar da sua abstração agradável e normal para um estado de embrulhada incoerência. — Seu pai diz que o nome é gaélico e que o hotel fica isolado de tudo. Vá para lá, portanto, querida, e divirta-se com os pássaros, com a água e com tudo mais de que você diz que está precisando.

Fiquei ali com o receptor na mão, acima do tumulto de Regent Street. No meu espírito, formava-se, fria e remota, uma visão de montanhas batidas pela chuva.

—        Acho que vou mesmo, Mamãe...

—        Está resolvido então. Tudo certo, querida. E como foi bom ter esse endereço à mão. Parece até que foi de propósito.

Quero pensar que Mamãe nunca perceberá toda a ironia dessa frase.

E assim aconteceu que no fim da tarde do sábado, 30 de maio de 1953, estava eu partindo para a última etapa de minha viagem para o Hotel Camas Fhionnaridh, na ilha de Skye. Descobri que meu pai tinha tido razão em dizer que o local era isolado de tudo. A última etapa tinha de ser feita de barco, pois só havia um caminho carroçável por terra de Strathaird a Camas Fhionnaridh, pelo qual o ônibus local não podia passar. Esse mesmo ônibus me havia levado até Elgol, do lado oriental de Loch Scavaig, e me havia mais ou menos atirado na margem com as minhas malas. Por fim, um barqueiro, com um pouco de atenção, me atirou dentro do seu barco e partiu comigo, minhas malas e outro passageiro, através do braço de mar para a distante baía de Camasunary.

Nada poderia ter aspecto mais tranqüilo. O braço de mar era na realidade uma grande baía formada pelo Atlântico dentro de um semicírculo de montanhas. A aldeia de pescadores de Elgol, no sopé de montanhas cobertas de urzes, ficava numa das pontas do semicírculo. Na outra, uma série de picos escarpados se elevava do mar, arroxeados pelo sol do poente.

Represada entre os grandes braços das montanhas, a água se estendia lisa como um escudo polido, refletindo num azul , e num ouro mais profundos a fantasmagoria das montanhas e do céu, Uma fina linha brilhante, ágil como um florete, tremia entre o mundo real e o mundo da água embaixo. Nosso barco viajava, com o seu motor cantando sonolentamente, perto da margem do braço de mar. A água lhe lambia mansamente a proa e se escoava sussurrante pelos costados. A maré ia em meio e as ondas calmas iam bater suavemente nas praias. A água estava coalhada de algas pretas, róseas e esverdeadas e o cheiro do mar se espalhava por tudo, acre e excitante. A praia passava por nós com os arbustos e a vegetação rasteira encimados por nuvens de bétulas e a nossa esteira flechava a seda da água em rugas de cobre e anil.

À frente, no centro da meia-lua das montanhas, avistava-se o côncavo de uma baía, onde um vale verde se estendia entre as montanhas até à beira do mar. Eu sabia que no alto daquele vale havia um lago entre as montanhas, do qual descia um rio. Distinguia-lhe o brilho serpenteante através do vale e, difícil de perceber daquela distância, um edifício branco levantado entre as bétulas. O barco prosseguia firmemente e eu pude ver a fumaça das chaminés do hotel, com um leve traço branco sobre o azul mais escuro das montanhas. Então, o brilho da água se apagou e as sombras da montanha avançaram pelo pequeno vale. Uma arrogante projeção de pedra se estendia so­bre o sol, atirando uma diagonal de sombra através da baía.

—        Garsven, — disse o outro passageiro ao meu lado.

Senti um sobressalto. Tinha sido tamanha a minha absor­ção com o cenário, era tão grande a impressão de solidão transmitida por aquelas imponentes montanhas que eu havia esque­cido que não estava só.

—        Como?

Ele sorriu e eu vi que era um homem simpático de talvez trinta anos, com olhos muito azuis e cabelos de um raro tom dourado-escuro. Era alto e de constituição franzina, mas parecia forte e sadio, com o rosto queimado de sol como se passasse a maior parte do tempo ao ar livre. Usava um velho capote sobre um terno que tinha sido outrora de muito bom tweed.

Deve ser essa a sua primeira visita, — disse ele.

De fato, é. E a vista intimida um pouco, não acha?

Claro. Conheço isto aqui como a palma de minha mão e, apesar disso, elas sempre me fazem perder o fôlego.

Elas?

As montanhas de Cuillin. Garsven é aquela que se levanta do mar num ângulo que parece impossível. — Conti­nuou, apontando: — Depois vem Sgurr nan Eag e aquela que está tapando o sol é a Montanha Pontuda, Sgurr Biorach.

Não, Sgurr Alasdair, — disse inesperadamente o bar­queiro atrás de nós. Era um robusto homem de Skye com um rosto moreno e quadrado e a voz macia das ilhas. Sgurr Alasdair, repetiu.

O passageiro sorriu e disse alguma coisa em gaélico, provocando um sorriso de resposta no rosto do barqueiro.

—        Murdo tem razão, — disse-me êle. A montanha figura nos mapas com o nome de Alasdair. Recebeu esse nome, se não me engano, em honra de algum montanhista. Mas eu prefiro os velhos nomes. Sgurr Biorach, portanto, e, logo depois, Sgurr Deard, a Montanha Vermelha. Por último, Sgurr nan Gillean, disse êle, apontando para o último pico, escuro contra o céu crepuscular. Depois, deixou cair a mão e olhou-me com a espécie de sorriso que encerra uma sugestão de descul­pas o arrependimento dos britânicos quando manifestam alguma emoção. Acrescentou: E não poderia vê-las pela primeira vez em melhores condições. O crepúsculo, Vésper no céu todo o espetáculo apresentado num tecnicolor maravi­lhoso.

O senhor deve ser um montanhista, disse eu.

Bem, de vez em quando faço minhas ascensões.

—        O Sr. Grant é ótimo numa montanha, disse Murdo. Grant tirou cigarros do bolso, ofereceu-os a mim e a Murdo,

jogando depois dentro da água o fósforo riscado. Perguntou-me então:

Vai ficar muito tempo por aqui?

Uma semana ou dez dias. Dependendo do tempo que fizer. Se continuar assim, será uma maravilha.

Mas não vai continuar. Que é que acha, Murdo ?

O barqueiro lançou um olhar de dúvida para os lados do sudoeste, onde o Atlântico se unia ao céu azul-escuro. Apontou nessa direção e disse lacônicamente:

Chuva.

Que pena! murmurei. Depois de estar ali, aquela perspectiva dourada me parecia infinitamente mais desejável do que as montanhas batidas de chuva de meus sonhos.

Não se incomode com isso, disse o passageiro. Com chuva, a pesca será melhor. Gosta de pescar, não gosta?

Nunca pesquei em minha vida. Mas posso aprender.

Faz alpinismo então?

Não, disse eu, sentindo-me de repente muito urbana. Vim à procura de repouso e sossego. Apenas.

Londres? perguntou êle, olhando para minhas malas e rindo. Escolheu bem o lugar se quer afastar-se da multi­dão. Não terá vizinhos a não ser as montanhas e a mais pró­xima é...

Calou-se de repente e eu olhei para o hotel, que estava bem mais perto, isolado no seu vale verde, ao pé de uma grande montanha isolada a leste.

—        E aquela montanha? Faz parte das outras? Não falou dela ainda. Como se chama?

Ele hesitou perceptivelmente.

—        Blaven.

O barqueiro tirou o cigarro da boca e cuspiu na água.

Blaven, — repetiu ele, na sua macia voz escocesa.

A Montanha Azul... — disse Grant numa voz quase abstrata. Jogou então o cigarro dentro da água e perguntou de repente: — Há muito movimento em Londres?

Nem pode imaginar! Há meses que se vem enchendo de gente e agitação. Agora, é como uma grande panela que está chegando pouco a pouco ao ponto de ebulição.

Murdo dirigiu o barco para a boca do rio.

Londres, hem? — exclamou ele com uma nota ingênua de admiração na voz, — Não quis ficar para ver a Coroação, moça?

Queria ficar, sim. Mas tenho trabalhado demais e achei que umas férias bem repousantes eram uma melhor idéia.

O que foi que a fez vir para cá? — perguntou Grant, com os olhos fitos na Montanha Azul.

A Skye? A bem dizer, não sei... Mas todo o mundo pensa em visitar Skye mais cedo ou mais tarde, não é mesmo? E eu quero sossego e uma mudança completa de ambiente. Pretendo dar longos passeios pelas montanhas.

Sozinha? — Havia alguma coisa na expressão de Murdo que me assustou.

Claro que sim, — disse eu, surpresa.

O barqueiro olhou por um momento para Grant e, então, voltou-se para olhar o cais do qual nos aproximávamos. Eu ri e disse:

—        Não me vou perder. Os passeios que pretendo fazer não serão tão compridos assim. Não se esqueçam de que eu sou da cidade. Não passarei do lago ou das mais baixas en­costas de... Blaven, não é esse o nome? Nada me pode aconte­cer ali. Ou Murdo pensa, Sr. Grant, que eu me perderei na neblina ou me deixarei raptar por um duende da água?

Ele me encarou nos olhos com uma expressão indefinida, mas eu hesitei, consciente de alguma obscura inquietação.

Os olhos azuis baixaram.

—        Creio que Murdo quer dizer...

Mas Murdo desligou o motor e o silêncio repentino nos interrompeu tão eficientemente quanto uma explosão.

Londres... — murmurou Murdo. — Está muito longe de nós... longe demais para que se possa ir lá... — Havia na voz dele uma admiração sincera, mas eu tive a embaraçosa impressão de que ele estava falando inteiramente a esmo. Além disso, o seu ar de simplicidade escocesa era um pouco exagerado. Dizem que é uma cidade esplêndida. Westminster, Piccadilly Circus, o Zoo.

Murdo, — perguntei enquanto atracávamos ao cais, — quando foi que esteve em Londres pela última vez?

Ele me olhou firmemente enquanto me estendia a mão para ajudar-me a sair do barco.

—        Há oito anos, quando voltei da Birmânia e de outros pontos do Oriente...

Grant tinha pegado minhas malas e havia começado a to­mar o caminho do hotel. Enquanto o seguia, tive consciência de que Murdo ficou a nos olhar por um longo momento antes de voltar para o seu barco. Que significava a atitude dele? Alguma espécie de cortina de fumaça? Mas que havia para esconder ali? E por que ele se mostrara tão ansioso em mudar de con­versa?

O caminho passava pela frente do hotel, voltado para o vale. Enquanto acompanhava o meu guia, senti os olhos irresistivelmente atraídos para a montanha que se erguia a leste, pairando sobre o vale como um gavião.

Blaven? A Montanha Azul?

Dando-lhe as costas, entrei no hotel.

 

Era uma hora depois. Tinha-me lavado, tirara com a escova a fuligem da estrada de ferro que me ficara nos cabelos e troquei de roupa. Sentei-me no salão de espera do hotel, gozando um momento de solidão antes que os outros hóspedes aparecessem para o jantar. Estava saboreando um excelente xerez, tinha os pés diante de um fogo bem agradável e dos três lados do salão o imponente cenário de montanhas se oferecia ao meu olhar. Sentia-me muito bem.

A porta do hotel se abriu e, através das vidraças do salão, vi duas mulheres entrarem e encaminharem-se para as escadas. Uma delas parecia ter minha idade. Era baixa, morena, robusta, com os cabelos cortados masculinamente baixos e roupas de alpinista slacks, botas e um suéter grosso acentuavam essa aparência masculina. A outra era uma moça de cerca de vinte anos, de aspecto muito jovem, de faces coradas e cabelos pretos corridos. Não parecia muito feliz e os seus ombros se curvavam para a frente sob a mochila, como se estivesse can­sada. As duas subiram firmemente o primeiro lanço de escadas e desapareceram na curva.

Cerca de um minuto depois, foram seguidas por um casal idoso, ambos altos, magros e um pouco encurvados, com rostos , tranqüilos e distintos e chapéus deploráveis. Carregavam os dois solenemente um cesto de pesca vazio e subiram a escada, aparecendo logo atrás deles outra mulher, com as mãos metidas nos bolsos do capote. Não pude ver-lhe o rosto, mas os ombros encolhidos e o andar desanimado denunciavam depressão ou cansaço.

Bocejei, estendi os pés para a lareira e bebi um pouco mais de xerez. Folheei displicentemente uma velha revista de modas que estava ao meu lado. Eram os habituais rostos surpreendidos cruelmente pelos flashes em jantares de caçada e bailes de cari­dade... belos cavalos, mulheres feias, homens bem vestidos... O catálogo de telefones de Londres talvez fosse mais interessan­te. Continuei a folhear as páginas. Havia, como era de esperar, uma fotografia minha, dessa vez apoiada numa prateleira de lareira de Adam, num dos mais inspirados vestidos de noite de Hugo Monteiior... Lembrava-me muito bem daquele vesti­do. Cheguei à página de teatro Alec Guinness numa barba impossível, Vivien Leigh enfeando todas as outras mulheres que a cercavam, Marcia Maling mostrando diante da máquina o seu famoso sorriso e olhando para o vazio com aqueles seus olhos espantosos...

A porta do salão se abriu. Marcia Maling entrou, sentou-se diante de mim e tocou a campainha para pedir um drinque. Olhei-a. Não havia engano possível. Os macios cabelos dourados, os belos olhos grandes, o nariz clássico e boca sem nada de clássica era certamente a estrela de inúmeros sucessos românticos que tinham lotado um dos maiores teatros de Lon­dres desde o primeiro ano da guerra e ainda o estavam lotando naquela ocasião.

O drinque chegou. Marcia Maling provou-o, olhou para mim, sorriu e acabou por me olhar com mais atenção.

—        Perdão, disse ela com a voz tão conhecida mas não nos conhecemos? Tenho certeza de que já a vi.

Sorri.

—        É muito gentil de sua parte dizer isso, Srta. Maling. Imagino que costuma fugir às pessoas que em geral fazem tudo para falar-lhe. Mas a verdade é que nunca nos encontramos.

Mas eu já a vi, tenho certeza.

Folheei as páginas da revista.

É muito provável. Sou modelo de modas.

Ah! É daí que a conheço. Trabalha para Montefior, não é?

Quase sempre, embora faça também algum trabalho avulso. Meu nome é Gianetta Drury. Claro que sei o seu e, ainda mais, vi a sua última peça, a penúltima, a antepenúlti­ma. ..

—        E assim por diante até à aurora dos tempos, minha cara. Mas é muito gentil. Devia ainda usar tranças quando eu estava representando em Wild Belles.

Ri e disse:

—        Cortei as tranças bem cedo. Tinha de ganhar a vida.

—        E como! — disse Mareia, tomando um gole de gim e olhando-me. — Mas já me lembro de onde foi que a vi. Não foi numa fotografia. Foi no show de modas de inverno de Leducq no ano passado. Comprei o divino vestido de coquetel..

—        O veludo topázio. Era um vestido celestial. A outra franziu a cara sobre o copo.

Acho que sim. Mas foi um erro que cometi. Sabe muito bem que um vestido como aquele só assentava numa loura.

E você não era loura quando o comprou, — disse eu sem pensar. Mas apressei-me em dizer: — Desculpe... eu...

Mas ela riu feliz e cristalinamente.

E não era mesmo. Estava com os cabelos castanhos para trabalhar em Mitzi. Não me ficavam bem e pouco adian­tou porque Mitzi não fez mesmo sucesso. — Esticou as belas pernas e me deu o sorriso famoso. — Gostei muito de que você tivesse chegado. Só estou aqui há três dias e já estou com uma saudade louca da cidade. É esta a primeira vez, desde que saí de lá, que posso conversar sobre coisas civilizadas como vestidos, que eu adoro. E você?

É claro. Deles é que eu vivo.

Eu sei. Mas aqui ninguém fala senão em pescar e escalar montanhas e eu os acho todos completamente chatos.

Que é então que está fazendo aqui?

A pergunta foi involuntária e pouco delicada, mas a res­posta foi dada sem qualquer ressentimento.

Estou descansando, meu bem.

Compreendo...

Procurei tirar toda a malícia da palavra, mas ela arqueou as sobrancelhas para mim e riu.

Não, estou realmente descansando. A peça terminou há uma semana. Adrian disse que eu devia positivamente vegetar, eu tinha acabado de ler um livro divino sobre Skye e aqui estou.

E Skye corresponde ao que dizia o livro?

De certo modo, sim. As montanhas são muito belas e tudo mais e eu vi outro dia uma corça com o filhote, uma verdadeira beleza, mas tudo é muito parado. Você gosta de cami­nhar, de caminhar para fazer exercício?

Gosto, sim.

—        Pois eu detesto. E Fergus se recusa terminantemente a sair com o carro por essas estradas.

—        Fergus? Está então aqui com seu marido?

Procurei em vão lembrar quem era o homem de Marcia Maling na ocasião.

Não, querida! No momento, não estou casada. Para variar, é uma verdadeira maravilha. — Deu um sorriso breve e delicioso a que eu correspondi pressurosamente. O charme dela era uma coisa tangível, radiosa e viva, impregnando todas as suas frases por mais comuns que fossem de uma vivacidade tão real quanto o fogo que crepitava aos nossos pés. — Não, querida. Fergus é meu chofer.

Marcia! — exclamei antes que percebesse que a estava tratando com tanta intimidade. Podia-se dizer que, de certo modo, isso era um tributo ao seu charme. — Não me diga que trouxe para cá um carro com chofer? É isso que você chama vegetar?

Acontece que eu não gosto de andar e, de qualquer maneira, não vou ficar todo o tempo aqui. Estou fazendo uma espécie de excursão pelas montanhas e pelas ilhas da Escócia. Vamos tomar outro drinque? Desta vez, é comigo. — Estendeu a mão, tocou a campainha chamando o garçom e continuou: — De certo modo, estou aqui em atenção a Fergus, que nasceu aqui. Na verdade, ele não dá muita importância ao fato, mas o lugar me pareceu tão bom quando qualquer outro para des­cansar.

Não pude deixar de olhá-la com espanto.

—        Você é atenciosa demais com seus empregados...

Ela fez brilhar para mim o sorriso famoso, dessa vez o mesmo que havia valorizado certo momento malicioso de Yes My Darling.

Acha mesmo? Mas Fergus... Um xerez seco para você, não? Para mim, um gim rosa... — Depois de falar com o garçom, voltou-se para mim. — Sabe que, se eu dissesse essas coisas aos outros hóspedes do hotel, eles ficariam paralisados como trutas empalhadas.

Quem são os outros hóspedes?

Deixe ver... O Coronel Cowdray-Simpson e senhora. São apagados, mas simpáticos. Pescam durante todo o tempo, dia e noite, mas, que eu saiba, nunca pegaram nada.

Acho que os vi entrar. Velhos, com um cesto vazio?

São eles, sim. Depois, ainda falando de peixe, Corrigan e a mulher e Braine.

Alastair Braine, por acaso?

Sim, creio que é esse o nome dele. Amigo seu?

Já o conheço. Trabalha em publicidade.

Bem, ele está com os Corrigans. E, se eu algum dia tiver coragem de sentir compaixão de uma mulher casada com um homem bonito como Hartley Corrigan, é dela que terei pena.

Por quê?

Peixe.

Peixe?

Exatamente. Ele e Alastair Braine são iguaizinhos aos Cowdray-Simpsons. De manhã, ao meio-dia e à noite. Peixe! E ela não faz nada, absolutamente nada, contra isso. Está assim há semanas, vivendo miseravelmente e sem fazer nada a não ser meter as mãos nos bolsos.

Lembrei-me da mulher de aspecto deprimido que havia subido a escada na esteira dos Cowdray-Simpsons.

—        Creio que já a vi. E não me pareceu muito feliz. Duvido muito de que haja alguma mulher neste mundo que possa com­petir com os peixes, depois que estes dominam um homem.

Marcia Maling se ajeitou na poltrona e disse:

Não?

Bem, pensando melhor, você ou talvez Rita Hayworth. Mas não uma mulher inferior.

Mas o pior é que ela nem sequer luta! — exclamou Marcia, indignada. — Deixe ver... Quem está mais aqui?

Vi duas mulheres...

Ah, sim, duas mulheres. Elas...

Não, Marcia. Não diga!

Mas a indignação era uma das constantes na vida de Marcia Maling. Os olhos faiscaram e ela exclamou:

Aquela menina! Não pode ter mais de dezenove anos e é arrastada para toda a parte por aquela mulher incrível com bigode e tudo! Ela está positivamente tiranizando a pobre menina!

Se ela não fosse amiga da outra, por que iria acom­panhá-la, Marcia?

Já lhe disse. Elas são...

Não, Marcia! Isso deve ser uma calúnia. Lembre-se de que estamos num hotel escocês para pescadores e não num coquetel de teatro.

Acho que tem razão, — disse com um suspiro. — Na realidade, as duas estão na mesma escola. A mais moça começou a ensinar lá e a outra ou ensina também ou faz algum curso, não sei bem...

Há mais alguém? Conheci no barco um homem que vinha de Elgol...

Deve ter sido Roderick Grant, Acho que ele quase vive aqui o ano todo. Um pouco alto, simpático, de cabelos muito bonitos.

—        É esse mesmo. E olhos azuis.

—        Ele é positivamente interessante ou seria se... Calou-se e tomou um gole de gim.

Cheia de uma crescente curiosidade em torno de Fergus, limitei-me a dizer:

Esse tal Roderick Grant com certeza também gosta de pescar.

Bem, todos os que estão aqui gostam. Mas devo dizer que não é fanático como os outros. Na maior parte do tempo, anda pelos arredores. Quase nunca está no hotel.

É montanhista, — disse eu.

Provavelmente. Há outro camarada que também gosta de escalar as montanhas, um tal Beagle.

Ronald Beagle?

Acho que sim. Outro amigo seu?

Não. Não nos conhecemos, mas tenho ouvido falar nele. É um montanhista famoso.

Marcia mostrou uma ponta de interesse.

É mesmo? Agora, que você falou nisso, eu me lembro de que ele fica todas as noites examinando mapas e livros ou com o ouvido colado ao rádio para escutar notícias dessa as­censão ao Everest que estão fazendo.

É ele então. Já escreveu um livro sobre o Nanga Parbat.

Foi? Bem, ele anda muito com outro homem, um tipo esquisito chamado Hubert Hay. Não sei se chegaram juntos, mas creio que ele é um escritor também. Pequeno, gordo e bem sorbo.

Sorbo?

Sim, incapaz de estourar.

—        Que palavra estranha. Sorbo. É italiano?

Ela riu.

—        Meu Deus, isso é quase uma certidão de idade. Tenho de tomar cuidado. Não, querida, não é italiano. Há muito tempo, antes de 1930 seguramente, vendiam umas bolas de encher que não estouravam. Tudo quanto era criança brincava com elas e o nome era "Sorbo".

—        E você brincou com elas?

—        Como você é gentil, querida! Mas, como lhe disse, o homem é positivamente sorbo de natureza e de aparência e usa coletes de fantasia. Há ainda um homem que eu não conheço e que chegou aqui ontem à noite. Tenho a impressão de que escreve também.

—        Meu Deus!

—        Eu sei. É uma verdadeira constelação de talentos, não acha? O ruim é que talvez nenhum deles valha grande coisa. Sorbo com toda a certeza não vale. Mas o que chegou ontem à noite deve ser importante... Tem uns olhos!... Infelizmente, pesca também...

—        É uma coleção de pessoas muito interessante, — dis­se eu.

Não é mesmo? — disse ela sem muita convicção. — Ah, sim, há uma velha, que eu acho que é a mãe de Cowdray-Simpson, que tricota o tempo todo com lãs de todas as cores. E três rapazes de calção que estão acampados na beira do rio. Vêm fazer as refeições aqui e andam sempre com martelos e foices...

Devem ser estudantes de geologia, — disse eu. — E du­vido que andem de foices. Mas creio que só há um remédio. Tenho de pescar também. Dizem que é muito bom para os nervos...

Ela me lançou um olhar de horror misturado com respeito.

Meu Deus! Mas faz muito bem! Você... — Nesse instante, viu a aliança em meu dedo e murmurou: — Eu devia ter sabido. Você é casada. Isso a obriga a pescar. Agora, se o tal Corrigan...

Não sou casada.

Oh...

Divorciada.

Oh... Eu também, querida.

Eu sei.

Três vezes, meu bem. E como cansa! Não são uns sujos?

Como?

Os homens, querida. Sujos.

Compreendo...

Não me diga que seu marido não foi um sujo também.

Foi, sim. — disse eu. — Sem dúvida alguma.

Eu sabia, — disse Marcia, toda feliz. — Como era o nome dele?

Nicholas.

Animal! Tome mais um drinque, Jeanette querida, e conte-me tudo.

Desta vez é comigo, — disse eu, tocando a campainha. — E meu nome é Gianetta. De origem italiana, como sorbo.

Bonito nome. Por que foi que lhe deram um nome italiano?

Ora, isso é história antiga... — Pedi as bebidas e fiquei satisfeita de poder encaminhar a conversa por outro ru­mo. — Minha bisavó se chamava Gianetta. É o tipo de parenta que todas as famílias gostam de guardar trancada dentro de um armário, mas minha bisavó nunca foi mulher para viver trancada, nem por um momento.

Que foi que ela fez?

Ora, seguiu o habitual caminho da perdição. Foi mo­delo de artistas, amante de artistas, casou-se depois com um baronete e...

O mesmo que me aconteceu, — disse Marcia, exul­tante. — Mas eu abandonei o meu baronete. E ela?

Também. Fugiu com um pintor francês muito avan­çado, para Paris, onde fez uma bela fortuna — como, não sei — e morreu num convento com a bela idade de oitenta e sete anos.

Bons tempos aqueles, — disse Marcia, com um tom de nostalgia na voz. — Não a parte do convento, mas o resto... Que bisavó maravilhosa para se ter, especialmente no que se refere à fortuna e ao título.

Eu ri.

—        Nada disso chegou até minhas mãos. Mamãe foi a única neta e Gianetta deixou tudo o que tinha para o convento, talvez como uma espécie de seguro contra o fogo... E eu hoje, ao contrário dela, vivo de me vestir...

Vi do outro lado da porta envidraçada os Cowdray-Simp-sons que desciam a escada. Uma empregada atravessou o hall rumo à sala de jantar. Lá fora, por trás da crista abrupta de Sgurr na Stri, o vermelho do céu se acobreava, dando um relevo maior ao agudo pico. Vi três jovens — os que estavam acampados, sem dúvida — que vinham pela margem do rio. Passaram sob as janelas do salão de espera e, um momento de­pois, abriram a porta da frente do hotel.

Em algum lugar, um relógio bateu sete horas.

—        Estou com fome, — disse eu. — Felizmente, já está na hora do jantar.

Levantei-me e fui até à janela voltada para o nascente. Diante do hotel, estendia-se o vale, quase dois quilômetros de relva roída pelos carneiros, que aqui e ali interrompiam pequenos regatos que desciam a caminho do mar. A estrada, estreita e irregular, curvava-se através do vale, seguindo o con­torno da praia até elevar-se entre as urzes e desaparecer. À di­reita, o mar murmurava, cor de estanho e sem luz à sombra das montanhas. Muito à esquerda, ao sopé de Blaven, um retalho de mar refletia o cobre do céu.

Uma galinhola retardatária deu um grito e ficou em si­lêncio. Na praia, uma gaivota abriu as asas como se fosse levantar vôo e tornou a dobrá-las. O mar parecia tranqüilo. Era uma vista bem desolada e melancólica. Não havia som, senão um balido de carneiro, nem movimento, senão o bater das asas de uma gaivota e o passo de alguém, atrasado, que palmilhava a grama sem pressa.

A pessoa pisou, então, no saibro da estrada. O som das botas na superfície áspera rasgou o silêncio. Assustada, uma galinhola levantou vôo ao lado dele e atravessou o vale apressa­damente. Vi o brilho prateado de suas asas uma ou duas vezes contra a altaneira ameaça de Blaven e, afinal, perdi-a de vista.

Blaven... — murmurei pensativamente. — Não sei... Marcia disse atrás de mim com voz incisiva e ríspida.

Não vamos falar mais disso. Você se importa?

Voltei-me para olhá-la com surpresa. Ela estava tomando o resto do seu terceiro gim e me olhava estranhamente. Desconcertada e um tanto abalada, como sempre se fica diante da rudeza alheia, refleti que havia mudado de assunto um tanto arbitrariamente para Gianetta e suas façanhas, porque não tinha querido falar de Nicholas. E ela havia parecido muito interes­sada. Se eu a estivesse aborrecendo... Mas não tinha parecido aborrecida. Muito ao contrário.

Desculpe, — disse ela com um breve sorriso de des­culpa. — Mas não vamos falar disso...

Como queira, — disse eu, um pouco agastada. — Des­culpe.

E virei-me para olhar pela janela. A montanha estava à minha frente, enorme e ameaçadora. De repente, percebi. Bla­ven. Tinha sido a minha menção de Blaven e não de Gianetta que fizera Marcia encolher-se no seu copo de gim como um caramujo na sua concha. Primeiro, Roderick Grant, depois Murdo e, por fim, Marcia Maling... Ou eu estava sendo vítima de um excesso de imaginação? Olhei para fora ao entardecer que se adensava. O retardatário estava a cerca de vinte metros da porta do hotel. Olhei-o de relance, tive um sobressalto, tornei a olhar...

—        Meu Deus! exclamei e recuei para dentro do salão de espera como uma pedra lançada de uma catapulta.

Parei junto à lareira, diante de uma Marcia Maling de olhos arregalados e dei um profundo suspiro.

Meu Deus! exclamei de novo.

Que é que há ? Foi porque eu...

Não, não é nada com você. Marcia. É o homem que está chegando neste momento à porta do hotel.

Que homem? perguntou ela, atônita.

Deve ser o seu escritor que chegou ontem à noite e tem uns olhos... Você não sabe o nome dele, mas eu sei. Chama-se Nicholas Drury.

Não me vá dizer que é...

Não é outro. Meu marido.

O sujo?

Ri, sem muita alegria.

—        Exatamente como você diz. Estas férias acrescen­tei, também sem nenhuma convicção vão ser muito di­vertidas.

 

Sim, lá estava autêntica e indiscutível, a arrogante assina­tura no livro de registro de hóspedes: Nicholas Drury, Lon­dres, 29 de maio de 1953. Olhei a assinatura por um instante, mordendo os lábios e tive a atenção chamada por outra assina­tura com a mesma letra na página anterior: Nicholas Drury, Londres, 28 de abril de 1953. Ele já tinha estado ali naquele verão, portanto. Franzi a testa, olhando para o livro de registro, sem poder saber o que êle estava fazendo em Skye. Devia estar colhendo material para algum livro. Não podia ter escolhido um lugar como aquele para passar férias ou um fim-de-semana. Aquele remoto recanto escocês, em que só havia trutas, monta­nhas e neblinas, com homens em surrados tweeds não se ajus­tava bem ao que eu conhecia da personalidade de Nicholas. Peguei a caneta, consciente de que não estava de modo algum com as mãos firmes. Toda a pose que eu havia cuidadosamente adquirido não me iria permitir encontrar-me de novo com Ni­cholas Drury e mostrar-lhe a gentil camaradagem, que era sem dúvida comum entre divorciados nos círculos de Londres.

Molhei a pena no tinteiro, hesitei e, por fim, escrevi: Gianetta Brooke, Casa Paroquial, Tench Abbas, Warwickshire. Tirei então com algum esforço a aliança do dedo e guardei-a na bolsa. Teria de explicar ao Major Persimmon, proprietário do hotel, por que a Sra. Drury se transformara de repente em Srta. Brooke. Tinha a impressão de que haveria muitos outros embaraços decorrentes do fato de haver um Sr. e uma Sra. Drury hospedados no mesmo hotel. Mareia Maling tinha-me prometido não dizer nada. E Nicholas não devia saber que eu não voltara a ser a Srta. Brooke quatro anos antes. Ele provavelmente ficaria tão aborrecido e sem jeito quanto eu quando nos encontrássemos e tentaria encerrar o penoso encontro o mais depressa possível. Foi o que eu pensei quando fechei o livro de registro do hotel, embora soubesse, conhecendo como havia conhecido meu belo e imprevisível marido, que não se podia confiar muito no bom comportamento de Nicholas Drury.

Dei um pulo, então, de gato nervoso quando uma voz de homem exclamou atrás de mim:

—        Sou capaz de apostar que é Janet Drury! Voltei-me prontamente e vi um homem que descia as esca­das ao meu encontro.

—        Alastair! Como é bom voltar a vê-lo! Onde andou me­tido todos esses anos?

Alastair Braine tomou-me as mãos nas dele e sorriu ra­diante. Era um homem grande e de rosto corado, com ombros fortes, cabelos castanhos perpetuamente desgrenhados e um sor­riso aparentemente ingênuo que escondia um cérebro excepcionalmente astuto. Parecia tudo menos o que era — um dos homens que subiam no impiedoso mundo da publicidade.

Andei principalmente pelos Estados Unidos, com umas fugidas para o Brasil e para o Paquistão. Sabia que eu estava trabalhando para a gente de Pergamon?

Lembro-me disso, sim. Já voltou há muito tempo?

Há umas seis semanas. Deram-me dois meses de licença e eu vim até aqui com um grupo de amigos à procura de um lugar para pescar.

Gostei muito de ver você de novo, Alastair, e devo-lhe dizer que esse rosto queimado de sol fica-lhe muito bem.

Ele sorriu.

—        É uma pena que eu não lhe possa retribuir o elogio, minha querida Janet. Não é que eu não tenha um imenso prazer em ver você, mas está-me parecendo londrina demais. Onde está aquela cor maravilhosa de colegial? Nick está batendo em você?

Olhei-o arqueando as sobrancelhas, mas ele não notou nada de estranho em minha expressão e continuou:

Sabe que o patife não me disse que vinha encontrar-se com você aqui?

Não me venha dizer que ainda não sabe, Alastair! Nós estamos divorciados...

Divorciados? Desde quando?

Há mais de quatro anos. É sério mesmo? Não soube de nada?

De nada. É verdade que tenho estado o tempo todo no estrangeiro e seria a pessoa que mais tem ódio de escrever cartas no mundo, se Nick ainda não fosse pior do que eu... Bem, sinto muito, Janet. Mas, afinal de contas, talvez não tenha sido uma surpresa para mim... Aborrece-se de eu dizer isso?

Nem um pouco... — Minha voz era despreocupada e frívola, em condições de fazer inveja a qualquer das amigas casuais de Nick em Londres. — Foi uma dessas coisas que não poderiam dar certo. Ninguém teve cuípa. Ele pensou que eu fosse uma pessoa inteiramente diferente do que eu era. Compreenda que, na minha profissão, é preciso manter as aparên­cias, ainda que estas não correspondam a nenhuma realidade.

Como é seu caso...

Era, não é mais. Tenho mais traquejo agora.

Três anos com meu grande amigo Nick, — disse Alastair, — tornariam sofisticada a alma de uma vestal. Mais uma vez, sinto muito, Janet. Mas, se me permite, posso saber o que está fazendo aqui?

Gozando férias como você e fugindo das multidões que foram ver a Coroação. Não é preciso dizer-lhe que eu não tinha a menor idéia de que Nicholas viria também para cá. Eu estava muito cansada, precisava de um lugar bem repousante e uns amigos da família me indicaram este hotel.

Um lugar repousante! — exclamou ele, rindo. — E vo­cê vem cair justamente onde Nick está. Já se encontraram?

Não. Isso é um prazer ainda à nossa espera.

Não fique assim assustada, menina. Nick não a vai agredir. Quem devia estar nervoso era ele e não você. Escute. Janet, posso jantar na sua mesa esta noite? Estou com um casal provavelmente ansioso por um pouco de solidão entre os dois.

Será um prazer para mim. Mas como foi que Nicholas não lhe disse nada a nosso respeito?

Eu, na verdade, não tenho conversado muito com ele. Acho que ele está em Skye colhendo informações folclóricas e coisas assim para um livro dele. Por isso, anda para cima e para baixo, fazendo, porém, disto aqui o seu centro de atividades. Fica ausente a maior parte do tempo. É claro que perguntei por você e ele me disse apenas: "Está bem. E ainda trabalha com Hugo. Vão dar um show muito em breve". Não dei muita importância ao fato.

Quando foi isso?

Logo que vim para cá e me encontrei com ele. Por volta do dia 10 de maio.

Estávamos mesmo preparando um show nessa ocasião. Mas como era que ele sabia?

Isso é que eu não sei, — disse Alastair jovialmente e voltou-se para cumprimentar o casal que atravessava o hall em direção a nós. A mulher era pequena e quase incaracterística se não fossem os olhos castanhos e salpicados de ouro, que eram realmente belos. O vestido, num tom desbotado de verde, era de um feitio indiferente. Os cabelos não tinham brilho e a boca descaia sem graça. O homem que estava com ela formava um contraste flagrante. Era moreno também, mas a sua magreza dava a impressão de grande vitalidade. Os olhos eram azul-escuros e o rosto era extraordinariamente belo, embora hou­vesse nos cantos da boca rugas que indicavam um temperamento contido com muita freqüência.

Disse rapidamente:

Meu nome é Brooke e não Drury, Alastair. Não se esqueça. Isso pode poupar alguns aborrecimentos...

Estou de pleno acordo com você... Ah... Hart e Alma, esta é Gianetta Frooke. Janet, o Sr. e a Sra. Corrigan.

Cumprimentamo-nos polidamente. Vi que a Sra. Corrigan estava examinando meu vestido. Os olhos azuis do marido me fitaram de relance, com uma espécie de distraído interesse, e em seguida ele se voltou para a porta do salão de espera, como se estivesse procurando alguém.

—        Se me perdoar, Alma, vou abandoná-la hoje na hora do jantar. A Srta. Brooke e eu somos velhos amigos e temos muito o que conversar.

A Sra. Corrigan pareceu um pouco decepcionada e eu che­guei a pensar que me fosse convidar para a mesa dela, até que compreendi que ela estava hesitando entre dois males, o risco da presença de outra mulher ao lado do marido e a perda da companhia do amigo do marido. Ela tinha de fato o ar de quem passa a vida a fazer pequenos cálculos dessa natureza. Tive pena dela. Enquanto Alastair discorria com fluência sobre insignificâncias convencionais, olhei para o rosto de Hartley Cor­rigan no momento exato em que a porta do salão de espera se abria atrás de nós e Marcia Maling deslizava em nossa direção envolta numa nuvem de Chanel n.° 5. A piedade que eu sentia por Alma Corrigan tornou-se então aguda. Ela parecia não ter quaisquer defesas. Limitou-se a ficar ali com o seu natural apagado e evidentemente ressentida, enquanto Mareia, abrangendo-nos a todos no seu jovial "Como vão os peixes, caros amigos?", cercou todo o grupo da quente exuberância.de sua personalidade. Mas, de algum modo, ela pareceu ter excluído Hartley Corrigan da sua atenção. Quanto ao alto irlandês, era evidente que, pelo conhecimento que ele tomava dos outros, pa­recia estar ali sozinho com ela.

Não me agradava ver os olhos de Alma Corrigan e olhei para outro canto. Estava desejando que tocassem logo o gongo anunciando a hora do jantar. O hall estava cheio. Todas as pes­soas constantes da relação que Marcia me fizera deviam estar presentes. Ali estavam os Cowdray-Simpsons, atentos a uma senhora de cabelos brancos que usava um dispositivo de auxílio à audição. Num cante, viam-se as duas professoras, silenciosas e com ar um tanto sombrio. Meu amigo do barco, Roderick Grant, consultava o barômetro em companhia de um indivíduo robusto, que devia ser Ronald Beagle. E, embebido na leitura de um jornal, estava sentado o inconfundível Hubert Hay, mui­to elegante e rotundo no mais amarelo dos coletes Regência.

De repente, Nicholas apareceu no alto das escadas e desceu rapidamente o último lanço para o hall.

Viu-me imediatamente. Fez uma pausa quase imperceptível e continuou.

—        Alastair, — disse eu em voz baixa, descobrindo com raiva que tinha a garganta apertada e seca.

Alastair voltou-se, viu Nicholas e mergulhou velozmente como um campeão olímpico de natação.

—        Olá, Nick! — disse ele — Veja quem está aqui! Lem­bra-se de Janet Brooke?

Acentuou um pouco o sobrenome. As sobrancelhas de Nicholas se levantaram uma fração de centímetro e alguma coisa lhe brilhou um instante nos olhos. Disse então:

—        É claro. Alô, Gianetta. Como vai?

Lembrei-me então incoerentemente de que Nicholas era a única pessoa que eu conhecia que nunca havia abreviado meu nome. Encarei-o com esforço e disse com suficiente calma:

Estou muito bem, obrigada. E você?

Otimamente. Está aqui em férias?

—        Umas férias breves que Hugo me deu...

Estava passado o momento difícil e temido. Passara suavemente por entre frases comuns e convencionais, a polidez me­cânica que às vezes não é tão vazia quanto parece. E a couraça que protege os nervos à flor da pele. Depois disso, tranqüiliza­dos, pudemos voltar a integrar-nos no grupo de que Marcia Maling era ainda o foco de radiação. Estava falando com Hartley Corrigan, mas eu podia ver que ela observava Nicholas. De repente, voltou-se para mim e perguntou:

—        Outro amigo seu, querida?

Eu me havia esquecido momentaneamente de que ela era uma atriz e olhei-a com surpresa, tamanha fora a naturalidade de sua pergunta. Notei então um brilho divertido no fundo dos olhos dela e disse friamente:

Sim, outro velho amigo. Parece que minha vida em Londres me está acompanhando até aqui. Nicholas, permita-me apresentar-lhe Marcia Maling, a famosa Marcia Maling. Marcia, este é Nicholas Drury.

O famoso Nicholas Drury? — perguntou Marcia, com uma voz modulada acompanhada de um olhar no qual pôs todo o seu encanto, um tanto com efeito que dizem ter uma pistola de raios cósmicos quando aplicada contra um ser humano. Mas Nicholas não mostrou o menor sinal de desintegração imediata. Parecia até levemente cauteloso quando murmurou alguma coisa convencional. Eu sabia que tinha percebido o subtom de diverti­mento no olhar de Marcia. Ele sempre fora ágil como um gato.

Hartley Corrigan disse então alguma coisa a Mareia e, no mesmo instante, o grupo começou a falar de peixes. Pelo menos, os homens falaram. Marcia estava observando Hartley Corri­gan, Alma Corrigan observava Marcia e eu me surpreendi estu­dando Nicholas.

Ele havia mudado em quatro anos. Tinha trinta e seis anos e estava parecendo mais velho. O rosto não se alterara muito, mas ele estava mais magro e, embora parecesse gozar de boa saúde, acusava tensão na posição dos ombros e nos olhos, como se a pele estivesse muito esticada sobre as maçãs do rosto. Que teria ele na cabeça? Não podia ser apenas a pressão de escrever outro livro, embora eu soubesse que, em alguns momentos, isso fosse para ele um verdadeiro inferno. Conhecendo-o como o conhecia, eu sabia que devia ser outra coisa, alguma obscura tensão que eu não podia identificar, mas que estava indiscutivelmente presente. De qualquer modo, não podia imaginar que fosse eu naquele momento a causa de sua tensão e nem tinha de inquietar-me com isso.

Estava dando parabéns a mim mesma porque não tinha de me preocupar mais com isso, quando o gongo tocou chamando para o jantar.

 

Tornou-se mais do que evidente depois do jantar que a estranheza de minha situação pessoal não era de modo algum a única tensão existente entre os hóspedes do hotel. Nunca fui muito imaginosa. A existência de correntes emocionais ocultas era aparente, mas não creio que tivesse percebido, desde logo, como eram fortes. Nunca pensei decerto que pudessem ser perigosas.

Quando voltei para o salão depois do jantar, os grupos se haviam desfeito e formado de novo, sendo geral a conversação. Vi com um pequeno baque de coração que Mareia Maling havia abandonado os Corrigans e estava sentada ao lado de Nicholas. Era, sem dúvida, uma mudança para melhor. Ela podia tanto deixar de ser atraída para a órbita do homem mais interessante à mão quanto deixar de respirar, mas eu desejava que ela dei­xasse Hartley Corrigan em paz. Era muito melhor ela gastar seu tempo com Nicholas, que podia cuidar de si mesmo.

Alastair me levou para uma cadeira num canto. Depois, pediu licença e foi tratar de pesar e despachar o salmão que tinha apanhado naquele dia. Vi Corrigan levantasse sem dizer uma palavra à mulher e seguir Alastair. Alma Corrigan continuou sentada, sem levantar os olhos, mexendo o seu café.

Quer café? Simples ou com leite?

Levantei os olhos e vi diante de mim a mais moça das duas professoras, com uma xícara em cada mão. Estava com um vestido côr de vinho, com um broche na gola. Era uma cor sofisticada e não devia assentar nela, mas assentava. Era como uma criança encantadora que se tivesse vestido com as roupas da irmã mais velha. Parecia mais jovem do que nunca e comoventemente vulnerável.

—        Simples, faça o favor. E muito obrigada. Mas por que me está servindo café?

Ela me entregou uma xícara.

Aqui não servem o café. Trazem uma grande bandeja e cada pessoa vai buscar a sua xícara. Chegou hoje, não foi?

Pouco antes do jantar. Por que não se senta? — dis­se eu, indicando uma cadeira ao meu lado. — Fui abandonada em favor de um peixe.

Ela hesitou e correu o olhar pelo salão até onde sua companheira estava entregue à leitura de uma revista. Sentou-se então, mas na beira da cadeira, como se estivesse pronta para uma fuga instantânea.

O peixe tem certamente voz ativa aqui, — disse ela. — Meu nome é Roberta Symes.

E o meu é Gianetta Brooke. Creio que não gosta de pescar, não é?

Não. Gostamos de caminhar, Marion e eu... Marion Bradford é minha amiga que está ali... Estamos juntas e temos praticado uma espécie de alpinismo.

Que quer dizer com isso? — perguntei. As montanhas de Skye não me pareciam suscetíveis de "uma espécie de alpinismo".

Bem, Marion é alpinista e eu não sou. Em vista disso, saímos andando e subimos até onde me é possível. É isso que eu chamo "uma espécie de alpinismo". Mas estou procurando aprender. Gostaria de ser tão boa quanto o Sr. Beagle e escalar todas as Cuillin, inclusive o Pináculo Inacessível!

— Uma ambição inteiramente indigna, — disse alguém.

—        Indigna? — perguntou Roberta, arregalando os olhos. — E é o senhor que diz isso? Por quê, Sr. Grant?

Ele se voltou e apontou para as montanhas através das janelas.

—        Olhem para as montanhas! Há trinta milhões de anos surgiram ali só Deus sabe de onde e foram açoitadas pelos gelos, pelos ventos e pelas tempestades, adquirindo a forma que têm hoje em dia. Estão ali há inúmeras idades, as mesmas pedras, erguidas sobre o mesmo mar, gastas pelos mesmos ventos. E você, minha filha, que mal tem vinte anos, fala em escalá-las como se elas fossem...

Dentes? perguntou Roberta e riu. Mas sei o que o senhor quer dizer. Fazem a gente sentir-se um pouco insignificante. Mas isso é um desafio a mais, não acha? Um simples homem ou, pior ainda, uma simples mulher, conquistando os gigantes do tempo, escalando...

O Everest!

A exclamação do Coronel Cowdray-Simpson foi tão imprevista que me assustou e fêz Roberta rir de novo. O coronel baixou o seu Times um pouco e disse a Nicholas, que estava perto do rádio:

—        Quer ligar o rádio, Drury? Vamos ver como eles estão indo?

Nicholas obedeceu. O noticiário estava quase terminado. Felizmente, tínhamos deixado de ouvir as notícias sobre as conferências, as greves, os progressos atômicos, os últimos rumores sobre a URSS e tínhamos chegado justamente a uma descrição dos preparativos para a Coroação, que se ia realizar daí a três dias. E nada havia aparentemente sobre o Everest...

Nicholas desligou.

Mas acho que vão conseguir, disse ele.

Emocionante, não é? murmurou Marcia.

É certamente um empreendimento magnífico, disse o Coronel Cowdray-Simpson. Merecem a sorte que têm. Que é que acha, Beagle? Quais são as probabilidades meteorológicas?

Bastante razoáveis.

Beagle não pareceu muito satisfeito de ser chamado assim a manifestar-se de público. Lembrei-me, com um novo interesse, de que aquele homem despretensioso tinha participado de uma tentativa anterior de escalada do Everest. Mas não parecia dis­posto a prosseguir no assunto. Meteu a mão no bolso e tirou o cachimbo, mudando abruptamente de assunto. Acho que eles têm melhores chances de bom tempo do que nós temos aqui. Não estou gostando desse céu. Vai chover.

É melhor para se pescar, disse plácidamente a Sra. Cowdray-Simpson, mas Roberta protestou.

Oh, não! Justamente amanhã é que eu ia começar a escalar as montanhas!

Está então decidida a escalar as Cuillin? perguntou Roderick Grant.

Claro!

Por onde pretende começar?

Não sei ainda. Isso é com Marion.

—        Garsven não é muito difícil, disse alguém, Alma Corrigan, se não estou enganada. Há uma rota que parte do fim do Coruisk...

Marion Bradford disse então:

—        Os melhores lugares para quem começa são Bruach na Frithe e Sgurr na Banachdich, mas estão muito longe. Garsven está perto, mas é completamente desinteressante.

A voz monótona e a maneira fria estavam a um passo da grosseria. Alma Corrigan se encolheu na sua cadeira, apertando um pouco os lábios. Roberta ficou um pouco vermelha e se inclinou para a frente.

Mas tenho certeza de que a Sra. Corrigan tem razão, Marion. Não parece difícil e a vista deve ser ótima...

A vista é maravilhosa do alto de qualquer das Cuillin, disse Marion secamente.

Já as escalou todas? perguntou Roderick.

Se a sua intenção é perguntar se eu sei do que estou falando, a minha resposta é afirmativa.

Houve uma breve pausa, durante a qual todos se sentiram mais ou menos constrangidos e eu me perguntei que era que fazia gente proceder assim sem a menor provocação. O Coronel Cowdray-Simpson e a mulher voltaram às palavras cruzadas do Times e Roderick Grant acendeu um cigarro, parecendo ao mesmo tempo incrivelmente indiferente e bem-educado. Nicholas parecia enfadado e eu sabia que isso nele era sinal de irritação. Mareia Maling piscou o olho para mim e, em seguida, disse a êle alguma coisa que o fez franzir a boca. Roberta continuava em silêncio, muito vermelha e deprimida.

Hubert Hay falou então pela primeira vez, sem tomar conhecimento nem da aspereza de Marion Bradford, nem do hiato nas conversas. Lembrei-me da designação de "sorbo" que Marcia lhe dera e observei-o com divertido interesse.

—        Se eu fosse você, disse êle jovialmente a Roberta, tentaria o Passo Mau. É preciso esperar até que a maré esteja cheia para não quebrar o pescoço, se cair. Poderá é morrer afogada. Dizem que é muito menos doloroso.

A voz dele era estridente e isso, aliado à sua estranha aparência, produziu uma espécie de jocoso alívio.

Mas eu sei nadar, disse Roberta, rindo.

É capaz de nadar com botas ferradas e uma mochila às costas?

Bem, assim talvez não.

Que é que chamam de Passo Mau? perguntei.

Hubert Hay apontou para as janelas do lado do oeste.

—        Está vendo aquele morro do outro lado da boca do rio, entre nós e as Cuillin?

—        Estou.

—        É Sgurr na Stri. Trata-se de uma alta língua de terra entre éste ponto e a baía ao pé do Garsven. Pode-se cortar caminho por lá, se se quiser subir um pouco. Mas, quem seguir a costa em torno de Loch Coruisk e das Cuillin, terá de atravessar o Passo Mau.

—        Parece terrível. É uma espécie de precipício?

—        Não. É apenas uma grande laje com uma inclinação terrível, cerca de sessenta graus...

—        Nem tanto, disse Roderick Grant.

Não? Talvez tenha razão. De qualquer maneira, está suspensa sobre o mar e é preciso atravessá-la por uma fenda nas pedras, onde as botas encontrarem um ponto de apoio.

Parece que está mesmo para mim! — exclamou Roberta, entusiasmada. E pouco me importa de morrer afogada! Vamos até lá, Marion, e poderemos voltar por Sgurr na Stri.

Já decidi aonde nós iremos, disse Marion com a sua voz antipática. Vamos subir o Blaven.

Houve um súbito silêncio. Olhei em torno. Tinha tido, então, razão em pensar que havia uma estranha reação sempre que esse nome era pronunciado. Dessa vez, não havia dúvida possível. E a nota de desafio na voz de Marion Bradford não era absolutamente imaginação minha. Ela tinha sabido que o que dissera faria cair sobre a sala justamente aquele silêncio.

Ronald Beagle disse então cautelosamente:

—        Acha isso conveniente, Srta. Bradford? Não é exata­mente uma ascensão para principiantes.

Do lado de cá é bem fácil, disse ela calmamente.

Sem dúvida. Mas se o tempo não estiver bom...

—        Um pouco de chuva não nos fará mal algum. E, se houver ameaça de neblina, não iremos. Isso basta.

Beagle não replicou. O silêncio dominou de novo por um momento a sala. Vi Nicholas mover-se inquietamente e achei que talvez estivesse sentindo, como eu, um desconforto no am­biente bem maior do que poderia ser produzido pela aspereza de Marion Bradford.

Esta decerto o sentiu também porque de repente apagou com raiva o cigarro no cinzeiro e levantou-se.

—        De qualquer maneira, — disse ela com sua voz agressiva, — já é tempo de alguém quebrar o azar que pesa sobre aquela maldita montanha, não acham? Vamos, Roberta?

Saiu do salão. Roberta me deu um sorriso contrafeito e se levantou para acompanhá-la. Tive vontade por um instante de aconselhá-la a ficar, mas refleti que, fossem quais fossem as correntes de emoção que agitavam o grupo, não me convinha aumentá-las. Limitei-me a retribuir-lhe o sorriso e ela acompa­nhou a amiga.

Houve então a inevitável pausa sem jeito em que todos queriam desesperadamente discutir Marion Bradford, mas natu­ralmente não podiam. Então Mareia que, como eu estava rapida­mente descobrindo, não tinha inibições de espécie alguma, excla­mou:

—        Francamente! Eu acho...

O Coronel Cowdray-Simpson tossiu um pouco apressada­mente e perguntou a Ronald Beagle:

Aonde pretende ir amanhã, Beagle?

Se as condições do tempo permitirem, vou subir Sgurr na Gillean. Mas creio...

Levantei-me. Para mim, chegava daquela conversa e eu me sentia um pouco entorpecida e sem ar depois de minha viagem. Se Murdo e Beagle estavam certos, ia chover na manhã seguinte e eu bem podia dar um passeio logo. Quando levei minha xícara de café para a bandeja, vi, alarmada, que Nicholas se levantara também e vinha na minha direção. Parecia que ia falar comigo ou sair em minha companhia e senti que uma conversa a sós com Nicholas naquele momento seria a gota de água que faria transbordar o copo. Olhei para a mulher mais próxima. Era Alma Corrigan.

—        Vou andar um pouco lá por fora, — disse eu, — e ainda não conheço isto por aqui. Quer fazer-me companhia?

Ela me olhou com surpresa e, segundo me pareceu, satisfeita. Mas o velho ar de desconfiança lhe apareceu de novo nos olhos e ela sacudiu a cabeça.

—        Gostaria imensamente, — disse ela, — mas peço-lhe que me dispense. Estou muito cansada. Afinal de contas, passamos o dia inteiro aí por fora.

Desde que ela já me havia dito antes do jantar que passara o dia sentada numa pedra enquanto os homens pescavam em Strath ha Creitheach, isso representava uma recusa categórica.

—        É claro, — disse eu, um pouco sem jeito. — Fica para outra vez, se for possível.

Voltei-me e encontrei Roderick Grant ao meu lado.

Estou às suas ordens... — disse ele com a voz incerta. — O passeio daqui até ao lago é muito agradável, se me permitir ser seu guia... Ou prefere ir sozinha?

De modo algum. — Nicholas havia parado ao ver Roderick Grant aproximar-se de mim e eu sabia que ele estava carrancudo. Sorri para Grant. — Terei muito prazer na sua companhia e lhe fico muito agradecida.

Nicholas continuou parado. Tive de passar por ele a caminho da porta. Por um segundo, nossos olhos se encontraram. Os olhos dele, duros e inexpressivos, me encararam durante uns três segundos. Depois, ele teve um sorriso contrafeito e voltou para junto de Marcia Maling.

Fui buscar meu casaco.

 

No verão, às nove e meia da noite, nas Hébridas, o crepús­culo mal começou ainda. Há talvez, com o abrandamento do fulgor do dia, um tom sombrio tocando as cores claras da areia, da relva e da pedra, mas isso não é mais do que o afastamento do primeiro véu azul. A bem dizer, a própria noite não é senão um leve sombreado do dia, uma onda de prata sobre o ouro ainda quente da tarde.

Tudo estava muito tranqüilo e, embora as nuvens que ameaçavam chuva se acastelassem lentamente atrás de nós para os lados do sudoeste, o resto do céu estava claro e luminoso. Acima da crista de Sgurr na Stri, acima e além dos picos pontiagudos das Cuillin, o calor do sol ainda pairava no ar. Através desse lago fluído de claridade, uma longa barra de nuvens se estendia como uma linha de sombra azulada, iluminada na parte inferior pelos raios de um sol invisível.

Subimos o vale rumo ao norte e nossos passos na relva cortada pelos carneiros não faziam o menor barulho no silêncio. A pastagem plana do estuário se estendia talvez um quilômetro pelo vale acima até que o terreno começava a elevar-se, para formar os mais baixos contrafortes do Blaven, Um destes, o maior, ficava bem à nossa frente, um morro coberto de urzes que bloqueava o centro do vale e formava a margem sul do lago. À sua esquerda, o rio se curvava. A leste, uma crista de pedra e urzes a unia às fraldas de Blaven.

—        Não há um caminho pela beira do rio? perguntei.

—        Há, mas se quiser subir a An't Stròn aquele morro ali em frente para ter uma boa vista do lago, temos de seguir pelo lado de Blaven que dá para o vale. Há um pântano mais adiante, perto do rio, que não é muito convidativo.

É perigoso?

Sem dúvida. Não sei se é capaz de abrir-se e tragar uma pessoa, mas o chão treme alarmantemente e os pés começam a afundar quando se fica parado. Os animais evitam o local.

Vamos então evitá-lo também, disse eu, com um arrepio. Foi muito bom ter vindo comigo!

Ele riu.

—        Na realidade, tudo foi puro egoísmo de minha parte. Quando se gosta muito de um lugar, tem-se prazer em mostrá-lo aos outros. Eu não iria perder essa oportunidade de ganhar um pouco de mérito por este cenário, que deve ser um dos cantos mais belos do mundo.

—- Este canto em particular ou Skye e as ilhas em geral?

Este canto de Skye, disse êle com as mãos metidas nos bolsos mas fitando por um instante os picos distantes e as alturas azuis do Blaven que dominavam o vale. Tudo isso.

Mora aqui, Sr. Grant?

Não. Nasci entre montanhas, mas muito diferentes des­sas. Meu pai era ministro de uma pequena paróquia nas Cairngorms, uma aldeia perdida atrás do vento norte. Chama-se Auchlechtie, ao pé de Bheinn a'Bhüird. Conhece?

—        Não. Ele riu.

—        Nunca encontrei ninguém que conhecesse... Foi lá que eu aprendi a amar as montanhas. Criei-me sem mãe. Meu pai era um tipo de homem muito remoto que pouco tempo me podia dar. A escola ficava bem longe e quase sempre estava chovendo.

—        Deve ter-se sentido muito sozinho em criança.

—        Talvez, mas não me lembro e não creio que me sentisse sozinho. Por fim, um tio morreu, deixou-nos muito dinheiro e meu pai me obrigou a calçar sapatos e ir para uma escola a fim de aprender a ter boas maneiras.

Pouca sorte.

Detestei tudo, é claro. Especialmente os sapatos.

E agora passa o tempo escalando montanhas?

—        Quase. Viajo muito mas sempre venho dar aqui, de qualquer modo em maio e junho. São os melhores meses, embora eu ache que nosso amigo Beagle está certo em relação ao tempo. Vai chover amanhã com certeza e as Cuillin, quando conseguem pensar uma boa chuva, só com dificuldade abrem mão dela.

E eu que estava querendo andar por aí. Já sei por que é que todo o mundo aqui gosta tanto de pescar. Pura legítima defesa.

É bem possível. Cuidado agora. Não é fácil andar por aqui com tão pouca luz.

Havíamos chegado ao sopé do pequeno morro chamado de An't Stròn e começamos a subir a encosta. A luz tinha-se desvanecido perceptivelmente. O Blaven se elevava sobre o vale como uma enorme nuvem de tempestade e, sobre sua maciça crista, aparecia o fantasma branco de uma lua além de cheia.

Roderick Grant parou por um momento e olhou pensativamente para as encostas da outra montanha.

—        Será mesmo que aquelas duas mulheres malucas vão subir ali amanhã?

—        É difícil a escalada?

—        Não, quando se sabe por onde ir. Pelo lado do sul, é fácil. Mas há lugares ruins mesmo desse lado.

Marion Bradford disse que sabia por onde ir.

Ele sorriu e disse:

Se ela acha assim, que é que se pode fazer?

—        Nada mesmo, — murmurei. Já estávamos no meio do morro e a subida se tornava cada vez mais áspera. — Sr. Grant?

—        Sim?

Hesitei e disse então diretamente:

—        Ela falou no azar que pesava sobre Blaven. Que é que há?

Ele me olhou surpreso e repetiu a frase quase mecani­camente:

—        Que é que há?

—        Sim. Por que todo o mundo evita falar nessa montanha? Tenho certeza disso. E, por falar nisso, que é que há com a gente do hotel? Tenho também certeza disso e se o senhor ainda não notou nada...

—        Não sabe então?

Claro que não sei! — disse quase com irritação. — Cheguei hoje mesmo, mas logo percebi que havia alguma coisa desagradável. Era como a cena inicial de uma peça de mistério.

Não está muito longe da verdade, — disse Roderick Grant. — Mas acontece que chegou no meio da peça e o mistério não mostra ainda o menor sinal de uma solução. E é um mistério terrível, o mais terrível de todos, um crime de morte.

—        Um crime de morte?

Sim. Há duas semanas e meia, no dia 13 de maio, uma moça do lugar foi assassinada no Blaven.

Compreendo, — disse eu, olhando para a outra monta­nha. Senti um arrepio no corpo e continuei a andar. — Vamos até ao alto do morro. Depois, se não se incomodar, vai-me contar tudo.

Sentamo-nos numa laje e acendemos os cigarros. Ao longe, abaixo de nós, no fundo da sua concavidade escura, Loch na Creitheach brilhava como prata polida.

—        Quem era a moça e quem foi o assassino? — perguntei. Ele respondeu à última pergunta em primeiro lugar.

Ainda não se sabe quem foi. Por isso é que eu disse que o mistério ainda estava longe de uma solução. A polícia... Mas é melhor eu começar do princípio, não é?

Faça o favor.

A moça se chamava Heather Macrae. O pai dela é um agricultor que no verão serve de guia de pescarias para os hóspedes do hotel. É muito provável que você o veja no hotel. A fazenda dele fica cinco ou seis quilômetros acima do Strath na Creitheach, o rio que se lança do fundo do braço de mar. Bem, parece que Heather Macrae estava de namoro com um rapaz da aldeia chamado Jamesy Farlane, de modo que quando ela começou a ficar longe de casa um pouco além da conta nas tardes longas da primavera, a família não se incomodou muito. Pensavam saber com quem ela estava.

E não foi Jamesy afinal de contas?

Jamesy diz que não. Diz isso com muita convicção, mas, ainda assim, pode ter sido ele.

E, não sendo Jamesy, quem poderia ser?

Jamesy diz que ele e Heather tiveram uma discussão. Não tem a menor dúvida em confessar isso. Diz que ela tinha começado a fugir dele e quando, por fim, ele lhe exigiu explicações, ela disse que tinha conseguido um homem melhor do que ele, um cavalheiro, segundo Jamesy afirma que ouviu dela, um hóspede do hotel.

Oh não!

Foi o que ele disse.

Mas isso não significa que o homem do hotel seja necessariamente...

—        O assassino? Claro que não, mas há uma forte probabilidade, se isso é de fato verdade. Temos apenas as declarações de Jamesy Farlane. O que sabemos de fato é que Heather Macrae saiu de casa na tarde de 13 de maio para encontrar-se com um homem. Disse aos pais que tinha um "encontro marcado".

—        E foi no Blaven?

A voz dele tornou-se sombria.

—- Essa parte é horrível, mas é melhor que saiba de tudo. Por volta da meia-noite, alguns homens que estavam no Loch Scavaig — suspeito de que estivessem pescando clandestinamente trutas do mar — viram o que parecia uma grande fogueira a meia encosta do Blaven. Ficaram intrigados, mas não alarmados. Como a face da montanha é de pedra, não havia receio de que o fogo se propagasse. Continuaram com o seu trabalho, fosse ele qual fosse, observando de vez em quando o fogo. Um deles observou o fogo por um binóculo e disse que era uma coluna de chama como uma grande fogueira, mas que a base estava escondida por trás de uma projeção de rocha e não podia ser vista,

Fez uma pausa e continuou:

Bem, os tais homens ficaram cada vez mais intrigados. Quem iria acender uma fogueira ali e o que poderia estar sendo queimado? Se refletiram assim depois do caso passado ou não eu não sei, mas um deles, Rhodri MacDowell, diz que pouco a pouco, vendo aquela coluna de fogo que subia onde não devia haver fogo, ficaram primeiro inquietos, depois alarma­dos e, por fim, amedrontados. E quando o camarada do binóculo viu um vulto escuro que se movia diante das chamas, os homens resolveram investigar.

"Quando chegaram lá, o fogo naturalmente estava extin­to, e foram somente os restos da fumaça lambendo o paredão de rocha que os guiaram. Encontraram uma larga plataforma, de acesso bem fácil, com restos de madeira e de urze calcinados e espalhados, sem dúvida deliberadamente, pela rocha. No centro do local enegrecido pelo fogo, o corpo de Heather estava esten­dido de costas. Não estava muito queimada mas já estava morta ao ser colocada ali. Tinham espalhado cinzas sobre seu corpo e o pescoço dela estava cortado.

—        Meu Deus! — exclamei.

—        Estava inteiramente vestida e tinha as mãos cruzadas sobre o peito. O mais estranho, entretanto, é que estava descalça e com todas as suas jóias desaparecidas.

—        Jóias? — exclamei espantada. — Mas então...

—        Não, não tinham sido roubadas. Ela nada tinha que valesse a pena roubar e, muito menos, assassiná-la por isso. Tudo estava ali empilhado num canto da plataforma: os sapatos, um cinto de couro e todas as pobres jóias de fantasia que usava — um anel, uma pulseira barata, um broche, brincos e até dois ganchos de cabelo. Estranho, não lhe parece?

Mas eu não estava pensando na estranheza e disse, indig­nada:

A pobre moça tinha-se enfeitado toda para ele: mise­rável!

Particularmente horrível, não é mesmo?

Evidentemente! E qual é a opinião da polícia? Inclina-se para culpar Jamesy ou o homem do hotel?

Ninguém sabe. A polícia anda de um lado para outro desde o dia do crime, interrogando-nos a todos, com muita polidez, mas minuciosamente. Compreende agora por que todos estão um pouco nervosos?

Compreendo. E parece um pouco estranho que o Major Persimmon não avise os novos hóspedes do que está acontecendo. Poderiam preferir ir para outro hotel.

É claro. Mas ele pensa evidentemente que Jamesy está falando apenas para proteger-se e que ninguém do hotel tem qualquer relação com o crime. O interrogatório está quase ter­minado e a polícia, de qualquer maneira, tem agido com muita discrição. Não é muito lógico esperar que Bill... o Major Persimmon arruíne a temporada e talvez o hotel.

Decerto, — disse eu, apagando o meu cigarro e levantando-me.

Espero que isso não a tenha perturbado muito...

Talvez tenha, mas que importância tem isso? O que importa é o fato terrível de que aquela moça tenha subido para a morte na montanha vestida com o que tinha de melhor. Agora, escute, quais eram precisamente os "cavalheiros" que estavam no hotel no dia 13 de maio?

Todos os que ali estão agora menos o chofer de Marcia Maling.

E qual de vocês apresentou um álibi? — perguntei, sentindo-me ao mesmo tempo infeliz e absurda.

Nenhum de nós que eu saiba. Dois daqueles rapazes que estão acampados à beira do rio juram que estavam juntos; o terceiro, não. O Coronel Cowdray-Simpson e o Major Persimmon são corroborados pelas esposas, mas isso representa muito pouco naturalmente. Corrigan e Braine estavam fora, pescando em Athain.

—        À meia-noite?

—        Muita gente gosta de pescar à noite. E nunca é inteiramente escuro nesta época do ano.

—        Estavam juntos?

—        Não. Separaram-se para tentar locais diferentes às onze horas e voltaram para o hotel cada qual na sua hora. A Sra. Corrigan diz que o marido voltou bem antes de meia-noite.

Havia uma nota estranha na voz dele e eu não perdi tempo:

—        Não acredita nela?

—        Não disse isso. Só acho difícil que êle tenha chegado ao hotel antes de meia-noite. Athain fica mais de um quilômetro e meio além de Creitheach e o caminho não é fácil.

Ninguém lhe abriu a porta no hotel?

Não era preciso. O hotel fica aberto a noite inteira.

Interessante. E o Sr. Hay?

Na cama. Um alibi muito difícil de desfazer.

Ou de provar.

É claro. O mesmo acontece com meu álibi.

—        Oh, desculpe, disse eu, sentindo-me de repente extremamente confusa. Tudo isso é fantástico, não é mesmo? Mas, seja como for, não tenho absolutamente o direito de interrogá-lo como se fosse o principal suspeito. Desculpe.

Ele riu.

Não tem importância. Além disso, tem o direito de saber de tudo, desde que vai ficar aqui. Terá de julgar por si mesma se algum dos hóspedes lhe merece confiança.

—        É verdade. Não havia pensado nisso...

—        E eu agi mal em ter falado nisso antes de voltarmos para onde há luzes e companhia... Vamos. — Tomou-me o braço e começou a ajudar-me a descer pelo caminho semeado de pedras. Vamos voltar para o hotel. Afinal de contas, na sua opinião, poderei ser o principal suspeito.

Fui com ele, surpresa de achar que o coração - me batia violentamente. A noite se tornara perceptivelmente mais escura. Havíamos dado as costas ao poente ainda iluminado e tínhamos diante de nós a lua fantasmal que flutuava num céu negro, onde a massa do Blaven se inclinava sobre nós como a montanha de Fausto, prestes a cair.

E a sua forma ameaçadora se repetia estranhamente numa sombra que se erguia no caminho bem à nossa frente... uma alta pilha de alguma coisa, como para marcar o alto do morro.

Roderick Grant passou sem olhar, mas não pude deixar de olhar e perguntar:

—        Que é isso?

Ele olhou displicentemente para a pilha e disse:

—        É uma fogueira.

Parei imediatamente e soltei-lhe o braço. Notei imediata­mente que as luzes do hotel estavam muito distantes e que o vale estava silencioso e deserto.

        Uma... fogueira? — perguntei com voz entrecortada.

Sim, por quê? — perguntou ele, mas de repente a voz mudou. — Meu Deus! Assustei-a de novo, não foi? Não tive essa intenção. Sou um desastrado... — Aproximou-se de mim e colocou as mãos em meus ombros. — Escute, Janet, — duvido muito que algum de nós notasse naquele momento a maneira pela qual ele me chamava — não se assuste, por favor. Isso é apenas uma fogueira que vão acender para festejar a Coroação. Há semanas, estão juntando material para essa fogueira. Não há nada de sinistro nela. E eu lhe asseguro que não sou assassino!

Nunca pensei que fosse, — disse eu tremulamente, — A culpada sou eu. Desculpe.

—        Vamos voltar então para o hotel, está bem?

Afinal de contas, não era tão tarde assim. O hotel estava iluminado, quente e seguro e duas ou três pessoas ainda estavam presentes. Pelas portas envidraçadas do salão, vi Hartley Corri­gan e Alastair sentados em volta de um derradeiro drinque e, perto, Ronald Beagle, que lia plácidamente.

A idéia de que qualquer daqueles homens pudesse cometer um crime ao mesmo tempo tão revoltante e tão estranho era um absurdo que tocava às raias da loucura. Foi com vergonha de mim mesma que dei boa-noite a Roderick Grant e subi para meu quarto.

O alto da escadaria se abria bem no centro do principal corredor superior que era como um grande E, com os seus três prolongamentos todos terminando em janelas voltadas para o nascente na frente do hotel. Meu quarto ficava no canto extremo do lado sudeste, na ponta do braço mais baixo do E. O banheiro vizinho ao meu quarto estava ocupado, de modo que, vestindo o meu robe de veludo branco, saí à procura de outro banheiro, que fui encontrar no fim do corredor principal. Passei muito tempo no banheiro e, quando acabei, o hotel pareceu mergulhado em silêncio pelo resto da noite. Saí do banheiro e atravessei o corredor já então escurecido.

Passei pelo alto da escadaria e, de repente, notei que havia alguém, imóvel e em silêncio, no fim do corredor que partia dali, silhuetado contra a janela. Quase sobressaltada, olhei com mais atenção.

Eram duas pessoas. Não me tinham visto e por uma razão muito simples. Estavam nos braços uma da outra, beijando-se apaixonadamente.

A mulher era Marcia Maling. Reconheci-lhe os cabelos claros soltos antes mesmo que lhe sentisse o perfume. Pensei vagamente em Fergus, então, reconheci também o jeito dos ombros do homem e o feitio de sua cabeça.

Não era Fergus; era Nicholas.

Apressadamente, virei a cabeça para o outro lado e conti­nuei rumo ao meu quarto, procurando não fazer barulho.

Às minhas costas, no outro lado do corredor, ouvi uma porta fechar-se mansamente.

 

Eram exatamente 1h45 da manhã quando cheguei à con­clusão de que não ia conciliar o sono e sentei-me na cama, estendendo a mão para o interruptor da luz. Os ponteiros lumi­nosos de meu despertador de viagem marcavam um quarto para as duas. Apertei o comutador. Nada aconteceu. Lembrei-me então de que o hotel tinha eletricidade própria e que esta era desligada à meia-noite. Lembrava-me de ter visto uma vela... Tateei à procura dela e encontrei-a. Risquei um fósforo e acendi a vela.

Saí da cama. Estava cansada e deprimida e sabia que já havia atingido o estado em que a incapacidade de dormir se tornara tão irritante que o sono passara a ser uma impossibili­dade. Pior ainda, sabia que estava condenada a uma das dilace­rantes dores de cabeça nervosas que me haviam atormentado com muita freqüência naqueles últimos três ou quatro anos. Já sentia o primeiro aviso numa espécie de corrente elétrica que passava pelos olhos e ameaçava uma dor bem pior logo depois.

Sentei-me na cama, apertando os olhos com as pontas dos dedos e tentando afugentar a dor, enquanto perpassavam pelo meu cérebro imagens turbilhonantes que, concorrendo para man­ter o sono à distância, tinham ligado a cruciante corrente nos meus nervos... Fogueira à meia-noite... fogueira no Blaven... um cavalheiro do hotel. Corrigan? Roderick? Alastair? Nicholas?

Estremeci e levantei-me. Não ia tentar agüentar a dor dessa vez. Ia-me livrar dela com comprimidos e o mais depressa possível. Os comprimidos salvadores estavam em minha bolsa e eu atravessei o quarto para pegá-la, passando vagamente entre as sombras grotescas que a vela projetava no quarto. Mas não encontrei a bolsa na mesinha de cabeceira. Não estava na prateleira da lareira. Ou no chão perto da pia. Ou junto à cama, nem — como verifiquei já aflita — debaixo dela. Não estava no quarto.

Sentei-me de novo na cama, pensei bem e descobri a verdade. Eu não havia apanhado minha bolsa quando saíra com Roderick Grant, Havia-a deixado no salão. Podia visualizá-la naquele momento, colocada no chão ao lado de minha poltrona, contendo aquele precioso vidro de comprimidos e tão remota como se estivesse numa jangada perdida no Mar Vermelho. E assim estava, pensei firmemente, sentindo uma fisgada impiedosa na testa, porque nada me faria sair do quarto naquela noite. Se alguém cometesse a loucura clássica de vaguear à meia-noite por entre os cavalheiros homicidas daquele hotel, não seria decerto eu.

Depois dessa decisão eminentemente acertada, apaguei a vela, deitei-me e dispus-me a agüentar a dor.

Dezessete minutos depois, sentei-me, acendi a vela, levan­tei-me e peguei o robe. Eu havia chegado, ao fim de dezessete minutos de dores erráticas, a uma decisão muito mais acertada — e só agora posso julgar exatamente o que entrava nela de lógica e de desespero. A conclusão a que eu chegara era a de que Jamesy Farlane matara Heather Macrae. E, desde que Jamesy Farlane não morava no hotel, eu poderia descer e pegar os meus comprimidos em perfeita segurança.

Convenci-me disso, enquanto calçava os chinelos e amarrava o cinto do robe. Era preciso apenas que eu fosse rápida e não fizesse barulho, devendo, porém, estar pronta a gritar desespe­radamente no momento em que visse alguma coisa de anormal...

Sem me dar ao trabalho de analisar rigorosamente a minha lógica, peguei a vela, abri a porta e saí.

Compreendi logo que não iria dar a caminhada clássica por uma casa infestada de assassinos desde que, embora as luzes do corredor estivessem apagadas, a claridade que vinha das janelas de leste era mais do que suficiente para mostrar-me o caminho e revelar o silêncio dos corredores desertos, com todas as suas portas fechadas. Desci mansamente o corredor principal, protegendo com a mão a chama da vela até chegar à escadaria.

Lá embaixo, tudo estava envolto em trevas e eu hesitei um momento, olhando involuntariamente para a janela junto à qual tinha visto Mareia e Nicholas. Dessa vez, não havia ninguém ali. O retângulo da janela emoldurava a noite pálida. Além dela, avistava-se, bem distinto contra o céu nebuloso, o contorno compacto da encosta do Blaven. A lua desaparecera.

Ouvi então o sussurro. Devia escutá-lo já havia alguns segundos porque, quando afinal o meu consciente registrou com sobressalto o fato de que duas pessoas estavam conversando num sussurro atrás da porta à minha direita, compreendi imedia­tamente que a conversa não começara naquele momento.

O fato devia ter-me tranqüilizado mostrando que havia mais alguém ainda acordado no hotel. Não devia absolutamente ter-me perturbado e amedrontado, mas foi esse o efeito que teve. É claro que não havia razão alguma para que outra pessoa no hotel não estivesse também atacada de insónia. Se o Coronel Cowdray-Simpson e a mulher ou os Corrigans estivessem acor­dados e com vontade de conversar àquela hora, certamente baixariam a voz para não perturbar os outros hóspedes. Mas havia alguma coisa mais naquele sussurro que era alarmante. Era como se aquela conversa a altas horas da noite contivesse alguma espécie de desespero, uma angústia, uma pressão de cólera, paixão ou medo, que percebi através da porta fechada, sentindo um arrepio como se uma lufada de vento frio me houvesse atingido.

Dei um passo para afastar-me e uma tábua do assoalho rangeu com o meu peso.

O sussurro parou, tão abruptamente quanto uma corrente desligada. O silêncio caiu sobre tudo como um pesado cobertor a tal ponto que, em coisa de segundos, a lembrança do som me pareceu ilusória, ao passo que o silêncio se povoou de milhões de ruídos, todos irreais. Mas a sensação de angústia continuava presente, mesmo no silêncio. Era como se houvesse uma respiração contida que pudesse a qualquer instante explodir num grito.

Afastei-me rapidamente e tropecei num par de sapatos que tinham sido deixados no corredor para serem limpos pela manhã. O tapete do corredor era grosso, mas o leve som, no silêncio, me deu a impressão de um trovão. Ouvi uma exclamação abafada atrás da porta. Houve uma pergunta entre­cortada e sibilante do outro lado da porta. Uma voz mais profunda disse alguma coisa em resposta.

Só havia um par de sapatos. Eram de mulher. Apanhei o pé que eu havia chutado e coloquei-o de novo ao lado do outro. Eram feitos à mão, por Laforgues, belos e absurdos com saltos de dez centímetros. Pertenciam a Mareia Maling.

Havia silêncio naquele momento por trás da porta. Quase corri pela escada abaixo, mergulhando nas profundezas sombrias do hall, sem dar muita atenção à chama vacilante da vela. Sentia-me aborrecida, envergonhada e nervosa, como se me tivessem surpreendido na prática de alguma ação ilícita. Na verdade, pensei amargamente enquanto atravessava o hall e abria a porta envidraçada do salão, aquilo não era da minha conta, mas apesar disso... Ela só conhecera Nicholas naquela noite. E qual era a posição de Fergus em tudo aquilo? Era certo que eu não havia interpretado mal as insinuações dela a respeito de Fergus. E qual era também a posição de Hartley Corrigan? Não me podia esquecer da expressão dele e, menos ainda, da expressão de Alma Corrigan.

E então paguei pela minha pressa a meu descuido, pois a porta se fechou automaticamente depois que eu passei e apagou a vela, deixando no ar o cheiro desagradável do pavio queimado. As sombras me envolveram, surgindo dos quatro cantos do salão. Tornei a estender a mão para a porta, já resolvida a voltar para a segurança de meu quarto. Mas o salão estava deserto. À claridade difusa do fogo de turfa coberto na lareira, podia ver tudo com suficiente clareza. Lancei um olhar preocupa­do para o hall através da porta envidraçada e atravessei o salão em direção ao lugar onde eu sabia que devia estar mi­nha bolsa.

Marcia e Nicholas... Os nomes associados dos dois me voltavam insistentemente à cabeça. Pensei que o mais estranho de tudo era o fato de que se tornava impossível não gostar de Marcia Maling embora eu pudesse pensar de maneira diversa se, como a Sra. Corrigan, tivesse um homem a perder. Contornei com muito cuidado uma mesa de café e pensei que Mareia não podia deixar de proceder como procedia. Havia um nome muito feio para designar uma espécie de mulher como ela era, mas, lembrando-a com a sua vívida e generosa beleza, quando se sentara perto de mim naquela mesma sala, achava difícil não gostar dela. Mareia era incorrigível e tremen­damente sexual, mas era também divertida, bela e certamente bondosa. Talvez até o procedimento dela naquela ocasião fosse ditado por pura bondade. Talvez tivesse exercido os seus poderes de atração sobre Nicholas porque vira que eu desejava fugir dele... Mas isso era talvez dar demasiado crédito ao desinte­resse de Marcia Maling.

Abaixei-me e procurei a bolsa no chão ao lado da cadeira em que estivera sentada. Mas não a encontrei. Corri as mãos pelo chão em círculos cada vez maiores sem qualquer resul­tado... De repente, vi o leve brilho do fecho de metal da bolsa não no chão, mas ao nível de meus olhos. Alguém devia ter pegado a bolsa do chão e a colocara na estante ao lado da cadeira. Apanhei-a, pegando também algumas revistas e dois livros e saí correndo pelo salão com as abas do robe voando atrás de mim.

Já estava abrindo a porta envidraçada com o ombro, quando ouvi a porta da frente do hotel ser aberta com muito cuidado. Parei imediatamente, apertando os livros, a bolsa e a vela apagada de encontro a um coração que batia descompassadamente.

Alguém entrou mansamente. Ouvi o ranger de um sapato ferrado nos ladrilhos da entrada e alguns ruídos enquanto a pessoa se movia entre os apetrechos de pesca e montanhismo que andavam sempre espalhados pela saleta ao lado da porta. Esperei. Roderick Grant me havia dito que o hotel ficava aberto toda a noite. Com certeza, nada havia de mais sinistro do que a volta de algum pescador retardatário que ali depositava o seu material. Devia ser isso.

Mas, apesar de tudo, eu não ia atravessar o hall e subir as escadas para ser vista pela pessoa, fosse quem fosse. Esperei, portanto, tentando tranqüilizar o coração, recuando um pouco da porta envidraçada ao lembrar-me de que estava com um robe branco.

Por fim, a porta da frente voltou a ser aberta e depois fechada com o mesmo cuidado e eu ouvi os passos da pessoa ressoarem de novo no saibro da alameda. Hesitei apenas um momento. Abri a porta envidraçada e corri através do hall até à entrada, olhando pela janela ao lado da porta.

O vale estava com uns farrapos de neblina e cheio de vagas sombras, mas vi o homem. Tinha saído do caminho de saibro para a grama e ia-se afastando rapidamente, de cabeça baixa, na direção de Strathaird. Era um homem magro e alto, que caminhava com passos muito largos. Parou um instante e olhou para trás, mas o seu rosto não era senão uma mancha indistinta. Em seguida, desapareceu na escuridão.

Virei-me da janela e olhei para a saleta ao lado da portaria. Meus olhos se ajustaram à penumbra e eu vi a balança, a mesa com as bandejas para os peixes, as cadeiras de vime carregadas de mochilas, botas, redes de pesca; rolos ovais de corda pendurados de pregos; casacos e capotes, mantas e gorros, caniços de pesca e bastões ferrados...

Atrás de mim, a porta se abriu e um homem entrou em silêncio no hotel.

Não dei um grito, não sei por quê. Talvez não pudesse. Mas deixei cair tudo o que tinha nas mãos com um estrondo que pareceu sacudir o hotel de alto a baixo e fiquei então, atordoada e paralisada, com a boca aberta.  

O homem teve uma exclamação absurda e, em seguida, acendeu uma lanterna e assestou-a na minha direção.

Riu então e exclamou:

—        Janet! Que susto levei! Que é que está fazendo por aqui a estas horas?

Pisquei os olhos sob o impacto da luz, que logo se apagou.

—        Àlastair?

—        Ele mesmo, — disse, tirando a mochila do ombro e começando a desabotoar o capote. — Que foi que você deixou cair? Tive a impressão de que era uma bomba atômica!

—        Livros que vim buscar, — disse eu. — Estava sem sono. Ele tornou a rir e jogou o capote em cima de uma cadeira.

Você parecia um fantasma, aí com essa brancura toda. Não vou dizer que tive medo, mas quase dei um grito.

E eu também, — disse eu, abaixando-me e apanhando as coisas que deixara cair. — É melhor eu voltar para a cama.

Ele tinha um pé em cima de uma das cadeiras.

—        Se você esperasse mais um minuto e ficasse com essa lanterna acesa, Janet, eu poderia desamarrar os cordões das botas que estão inteiramente molhadas.

Peguei a lanterna e perguntei:

Está chovendo lá fora?

De vez em quando cai uma pancada.

Estava pescando?

Estava. No Strath.

Pegou alguma coisa?

Não me posso queixar. Três bons peixes e Hart conse­guiu uma verdadeira beleza. Mais de um quilo.

Hart? Quer dizer, Hartley Corrigan?

Sim. Não trema tanto a luz, Janet.

-- Oh, desculpe. O Sr. Corrigan já voltou?

Já, sim. Mas eu estava com sorte e resolvi ficar. É claro agi ilegalmente, mas não me vá denunciar, está bem?

Ilegal como?

—        Já estamos no domingo e a pesca é proibida aos domin­gos, não sabia? Eu devia ter parado à meia-noite, com Hart.

Tirou a outra bota e aprumou o corpo.

O peixe dele não está na bandeja, — disse eu.

Como? — Os olhos dele se voltaram para a bandeja que eu iluminei com a lanterna. — É verdade... Isso é muito estranho.        

Alastair?

Que é?

Alguém esteve aqui há cinco minutos, mexeu um pouco nas coisas e saiu.

Como? Oh... — Riu e acrescentou: — Não fique tão preocupada assim. Deve ter sido Jamesy.

Jamesy Farlane. Estava conosco. Anda mais depressa do que eu e veio na frente porque estava com pressa. Mora para os lados de Strathaird.

Ah...

Pensou que fosse um ladrão? Aqui, não precisa preo­cupar-se com esses horrores urbanos, Janet. Ninguém tranca as portas nas Ilhas. Aqui não há ladrões.

Não, — disse eu, colocando a lanterna em cima da mesa e voltando-me para sair. — Há apenas assassinos.

Quem foi que lhe contou?

Roderick Grant.

E está preocupada?

Naturalmente.

—        Pois não deve estar. Seja o que for tudo isso, não a afeta.

Não era comigo que estava preocupada.

Com quem era então?

—        Com Heather Macrae, é claro. Com ela e com a gente dela. Que foi que ela fez para merecer esse fim grotesco? Que quer dizer tudo isso, Alastair? Acho tudo muito estranho. Não lhe posso explicar bem, mas é uma coisa particularmente revoltante.

—        Um crime de morte nunca é belo.

Mas pode não ser cruel e esse foi. Ela não foi assassi­nada num acesso de paixão humana. Foi morta deliberadamente e depois submetida a uma encenação. Foi um ato frio, calculado e perverso. Nunca poderia pensar que iria encontrar aqui tama­nha ruindade. Isso não me sai do pensamento, Alastair.

A polícia está trabalhando no caso, como sabe, e não descansará enquanto não apurar tudo.

Quem você acha que seja o culpado?

Janet...

Você deve ter pensado no caso. Quem foi? Jamesy Farlane?

Escute, Janet. Não convém falar muito sobre esse caso.

Porque pode ter sido alguém do hotel, não é?

Bem...

Acha que foi alguém do hotel?

Não sei, não sei mesmo! Escute, meu bem, se está com tanto medo assim, por que não vai para outro lugar? Broadford, Portree ou...

Vou ficar aqui, — disse eu com decisão. — Quero estar presente quando desmascararem o demônio, seja ele quem for.

Ele ficou em silêncio.

—        Boa noite, Alastair, — disse eu e subi para meu quarto.

 

Acabei não tomando os comprimidos. A minha caminhada pelo hotel altas horas da noite lado a lado talvez com o assassino deve ter sido a terapêutica de choque de que minha dor de cabeça precisava, pois quando cheguei de novo ao quarto, vi que não estava sentindo mais nada.

Deitei-me e examinei os resultados de meu saque. Descobri que havia apanhado dois números de uma revista de automo­bilismo. Os livros eram A Noiva de Lammermoor e uma edição abreviada do Galho Dourado de Frazer.

A Noiva de Lammermoor me fez dormir em menos de dez minutos.

 

Na manhã seguinte, estava realmente chovendo. Era uma chuva miúda, persistente, que encharcava até aos ossos. Os carneiros que pastavam no vale perto do hotel pareciam molhados e tristonhos e toda a paisagem havia desaparecido, salvo os pontos mais próximos. Até Sgurr na Stri, do outro lado do rio, estava quase invisível na sua mortalha cinzenta.

Quando desci um pouco atrasada para o café, encontrei tudo calmo, embora fosse mais uma calma de domingo do que uma depressão causada pela chuva. Alastair Braine e os Corrigans estavam sentados no salão lendo jornais, enquanto a Sra. Cowdray-Simpson e a velha estavam já em plena tricotagem. Havia sinais, porém, de que nem um domingo escocês de chuva conseguia vencer alguns entusiastas. O Coronel Cowdray-Simp­son, à porta da gerência, estava empenhado em solene discussão com o Major Persimmon e um homem do local vestido de preto. Debatiam o mérito das diversas moscas de pesca. Marion Bradford e Roberta Symes estavam na entrada, olhando para a paisagem chuvosa. Perto delas. Roderick Grant consertava uma rede de colher peixes com um pedaço de cordão.

Em dado momento, levantou os olhos, viu-me e sorriu.

Alô. É uma pena que seja domingo, não acha? Não gostaria de um belo dia de pesca sob a chuva?

Não, muito obrigada. Creio que é isso o que vocês, maníacos da pesca, chamam de tempo ideal, não é mesmo?

Excelente, disse ele, piscando o olho. Mas talvez o dia não seja tão ruim assim mesmo para os leigos. Nesta época do ano, a chuva pode parar de repente e tudo clarear. Pode ser que a Srta. Symes faça mesmo a sua subida.


Acha mesmo? — perguntou Roberta, olhando-o ansiosamente.

É possível, — disse ele, olhando cautelosamente para Marion Bradford, que continuava de costas. — Mas convém ter cuidado e não subir muito. A neblina pode cair com a mesma facilidade com que se dissipar,

Não tinha falado em voz alta, mas Marion Bradford ouviu-o. Voltou-se e lançou-lhe um olhar fulminante.

—        Tem mais conselhos para dar? — perguntou ela com a voz arrogante e ríspida que fazia qualquer coisa que ela dissesse parecer um insulto.

Roberta apressou-se em dizer:

—        É muito gentil a preocupação dele, Marion. — Ele sabe que eu nada entendo de montanhas.

Marion Bradford deu a impressão de que ia dizer alguma coisa muito desagradável. Mas limitou-se a apertar os lábios e olhar de novo pela janela. Roderick sorriu para Roberta e transferiu a sua atenção para a rede que estava consertando. Ronald Beagle apareceu então na entrada, com uma mochila às costas.

Ah! — exclamou Roberta. — O Sr. Beagle vai sair. Pretende mesmo escalar Sgurr na Gillean com esse tempo, Sr. Beagle?

Acho que o tempo vai levantar, — disse Beagle. — Em todo caso, irei até lá e, se o tempo melhorar dentro de uma hora mais ou menos, já estarei pronto.

Bem, — disse eu a Roberta, — os dois oráculos já falaram. Espero que faça mesmo a sua escalada.

Vai sair também?

Não tomei nem café ainda! E, se não me apressai, creio que não vou tomar!

Mas, quando ia atravessando o hall a caminho da sala de jantar, o Major Persimmon me chamou da porta da gerência e eu me aproximei. O homem do lugar ainda estava lá, examinando uma bandeja cheia de anzóis.

Bill Persimmon cumprimentou-me e disse:

Não me disse que queria alugar um caniço, Sra... quer dizer, Srta. Brooke?

Quero, sim, mas ainda não sei quando é que vai ser. Creio que ainda vou esperar um dia ou dois, para ver primeiro como são as coisas.

—        Como queira, mas... se realmente quer pescar ou aprender a pescar, pode combinar tudo desde já aqui com Dougal Macrae. Tenho certeza de que ele terá prazer em acompanhá-la.

O homem levantou os olhos. Tinha um rosto quadrado e curtido de sol, profundamente sulcado de rugas e olhos azuis miúdos que pareciam normalmente calmos, mas naquele momento se mostravam inexpressivos.

Disse então na voz admiravelmente macia dos homens das Ilhas:

Gostaria muito de mostrar à senhora como se apanha um peixe.

É muita bondade sua, — disse eu. — Vamos ver... Pode ser na quarta-feira?

Pode ser. Na quarta-feira, estou livre.

Então, muito obrigada.

Onde é que você vai esperar? — perguntou o Major.

—        Na parte mais alta do rio Camasunary, — respondeu Dougal Macrae. — Se não encontrarmos peixe lá, será muita falta de sorte.

Pegou o chapéu então e disse:

—        Bem, vou indo, senão chegarei atrasado à igreja. Bom dia, senhora. Bom dia, Sr. Persimmon.

Depois que ele saiu para a manhã cinzenta, fiquei a olhá-lo. A nossa conversa tinha sido a mais trivial possível, mas fora o meu primeiro contato com a cortesia simples e bela dos escoceses, a atitude natural, mas quase aristocraticamente cerimo­niosa do agricultor que tinha passado toda a sua vida nas Ilhas. Eu tinha ficado muito impressionada com aquele homem tranqüilo, Dougal Macrae, pai de Heather Macrae...

Agradeci ao Major Persimmon e fui tomar o meu café já tão retardado.

Estava receosa (talvez levianamente) do meu primeiro encontro com Marcia, de modo que fiquei alegre quando vi que ela não estava na sala de jantar. Entretanto, antes que eu. me tivesse servido da minha primeira xicara de café, vi um grande carro creme passar diante das janelas e parar à porta do hotel. Quase imediatamente, Marcia, encantadora e muito urbana num vestido azul-rei, saiu do hotel e foi acomodada na frente do carro por um belo homem de uniforme, que ajeitou mantas em torno dela com solícito cuidado. Em seguida, o carro partiu.

Tomei o café e senti não ter um jornal à mão para que pudesse fingir que não vira Nicholas que, além de Hubert Hay, era o único ocupante da sala de jantar.

Mas foi este último que, dentro em pouco, se levantou e chegou à minha mesa.

Caminhava num passo curto e saltitante que me fez pensar nas bolas de borracha de Marcia ou num passarinho descuidado. Essa última impressão era acentuada pelo pulôver vermelho que tornava ainda mais vistoso o terno de tweed verde. O rosto era bem redondo, a boca franzida e os olhos azuis se engas­tavam numa série de pequenas rugas. Tinha mãos bonitas e usava um grande anel de ouro com uma pedra escura.

Sorriu para mim, mostrando a boca cheia de ouro.

Srta. Brooke? Meu nome é Hay.

Muito prazer, disse eu polidamente.

Espero que não leve a mal eu vir-lhe falar assim, mas o fato é que hesitou, parecendo muito tímido o fato é que quero pedir-lhe um favor.

Às suas ordens, murmurei, sem fazer a menor idéia do que ele ia dizer.

Acontece, disse êle com a timidez que nele era de uma comicidade incrível, que eu sou Pé Leve.

É o quê? perguntei, espantada.

Pé Leve.

Foi o que eu ouvi, mas...

É meu pseudônimo. Sou escritor, disse ele e o pulôver vermelho se estufou alguns centímetros. Pé Leve.

Compreendo, um escritor... Muito bem, Sr. Hay. Escre­ve romances?

Não, livros de viagens, Srta. Brooke. Como se diz nas orelhas de meus livros, "levo ao recesso dos lares a beleza e a glória da paisagem inglesa". É por isso que estou aqui.

Colhendo material, não é?

Dando passeios, disse Hubert Hay. Escrevo então sobre os passeios que dou, juntando mapas. Marco os lugares como de classe A, B ou C, de acordo com a dificuldade de acesso e com uma, duas ou três estrelas, de acordo com a beleza.

Muito original isso, disse eu, meio sem jeito e consciente de que Nicholas nos estava ouvindo perfeitamente. Isso deve-lhe tomar muito tempo.

Mas é muito fácil, — disse Hubert Hay, sinceramente. — Quer dizer, quando se tem jeito para escrever, como eu tenho. E dá bom resultado.

Vou procurar ler os seus livros, — disse eu e ele me envolveu num olhar radiante.

Vou-lhe mandar um, fique certa disso. O último que eu escrevi se intitula As Belezas de Somersey. Sei que vai gostar. Na realidade, não se trata de livros e, sim, de folhetos. Creio que o melhor que já escrevi foi Através do País de Gales. Vou-lhe mandar esse também.

—        Desde já, muito obrigada.

Notei então que ele tinha nas mãos um velho número do Tatler e outro de Cuutry Life. Colocou as duas revistas em cima da mesa e bateu nelas com um dedo.

—        Vi fotografias suas nestas revistas, — disse ele. — É a senhora mesmo, não é?

—        Sou.

Folheou Country Life até encontrar a fotografia. Lá estava eu com um costume de tweed numa foto de David Gallier, ao lado de um casal de setters irlandeses que evidentemente roubavam a fotografia. Hubert Hay olhou para mim, de novo tímido.

—        Bato fotografias para meus livros, — disse ele, hesitante.

Esperei, sentindo-me um tanto indefesa. Pelo canto dos olhos, vi que Nicholas estava de pé, e começava calmamente a encher o cachimbo. Hubert Hay disse afinal, falando muito depressa:

—        Quando os geólogos batem uma fotografia de uma pedra, colocam um martelo ao lado para marcar as proporções. Pensei que, se eu tirasse uma fotografia das montanhas, gostaria de colocar uma moça em primeiro plano para mostrar o tamanho e a distância das montanhas.

Senti sem olhar que Nicholas estava sorrindo. Hubert Hay olhou para a fotografia da revista e me disse:

—        E a senhora fotografa muito bem, sabe?

Nicholas interveio nesse momento:

—        Acho bom saber antes quanto ela cobra. Vai achar que não é pouco...

Hubert Hay olhou para ele, depois para mim, numa espécie de ingênua perplexidade. Parecia tão confuso e tão imprevista­mente pronto a perder o ânimo, que esqueci meu embaraço e o provável ataque de apoplexia de Hugo Montefior que olhei furiosamente para Nicholas e disse prontamente:

—        O Sr. Drury está brincando. É claro que pode bater uma fotografia minha, se quiser, Sr. Hay. Terei prazer em aparecer no seu livro. Quando é que vai ser?

Ele ficou exultante e o pulôver vermelho se expandiu de novo às suas proporções de papo de passarinho.

Muita bondade sua, muita bondade. É uma honra para mim. Se o tempo melhorar, pode ser esta tarde, em Sgurr na Stri, com as Cuillins em segundo plano.

Muito bem, — disse eu.

Bill Persimmon tem um cachorro, — disse Nicholas calmamente.

É mesmo? — perguntou Hubert Hay. — Talvez seja uma boa idéia. Vou falar com ele para sabei se me quer emprestar o animal.

Afastou-se alegremente. Nicholas me olhou com a expressão de irônica malícia que eu detestava.

Que é que Hugo vai dizer quando vir você estrelando em Escapadas por Skye ou que outro título tenha a obra-prima dele.

Não vai ver nada, — disse eu, levantando-me. — Hugo só se interessa pelas viagens para Paris pela Air France.

Fiz menção de sair, mas Nicholas avançou para deter-me a passagem.

Quero falar com você, Gianetta.

Olhei-o com toda a frieza.

Não sei de nada que possamos ter a dizer um ao outro.

Ainda assim, quero falar com você.

Sobre quê?

Sobre nós. Levantei as sobrancelhas.

—        Já se esqueceu de que "nós" é coisa que não existe mais, Nicholas? Não estamos mais ligados os dois. Cada qual tem o seu eu separado e nada que nos una. Nem mesmo um nome.

—        Sei muito bem disso.

Perguntei então antes que soubesse bem o que estava dizendo:

Era você que estava com Mareia Mailing esta noite? Os olhos dele brilharam por um instante e ele respondeu:

Era.

Passei por ele e saí da sala.

Os oráculos estavam certos. Por volta das onze horas, a chuva tinha cessado e as nuvens começaram a dissipar-se com espantosa rapidez. Vi Marion Bradford e Roberta partirem cerca de meia hora depois e, um pouco mais tarde, Nicholas sair na direção de Strathaird.

Pouco antes do meio-dia, o sol apareceu e, aparentemente num momento, o céu se mostrou claro e azul e a neblina se dissolvia nos picos das montanhas como se fosse neve. A relva e as urzes cintilavam com milhares de pedras preciosas e as gotas de água que encurvavam as pontas das urzes pareciam tesouros de diamantes dignos de Titânia.

Pouco depois do almoço, Hubert Hay e eu partimos com o Spaniel de Bill Persimmon. Descemos pelo pequeno bosque de bétulas e atravessamos as pedras que davam passagem de um lado para outro do rio Camasunary. As bétulas eram velhas e tinham o tronco recoberto de liquens, mas oscilavam branda­mente ao vento e derramavam de vez em quando breves agua­ceiros serôdios.

Depois de mais ou menos uma hora de marcha não muito difícil, chegamos à crista de Sgurr na Stri. Apesar de sua rotundidade, Hubert Hay era ágil e se revelou, com surpresa para mim, um companheiro divertido. O conhecimento da paisagem e o amor que lhe tinha não eram tão superficiais quanto a nossa conversa me tinha levado a esperar. Falava com autori­dade das aves e dos animais das montanhas e mostrava saber muito a respeito de plantas. Falava sem parar enquanto escolnia o melhor ponto para a fotografia e instalava a sua máquina e, embora muito do que dizia fosse puro clichê, era profunda e sincera a sua satisfação quando falava na "vida ao ar livre". A semelhança dele com um passarinho era cada vez mais acen­tuada, mas a qualidade a que Mareia tinha dado o nome de "sorbo" era, como descobri, devida a uma alegria irreprimível, a uma curiosidade encantada em relação a tudo e não à vaidade. Tratava-se, na verdade, de um homenzinho bem agradável.

Batemos três fotografias. Do alto de Sgurr na Stri, pode ver-se toda a extensão das Cuillins Negras, o arco imponente que vai de Garsven no sul a Sgurr nan Gillean no norte, com o Loch Coruisk, preto como uma mancha de tinta, aninhado nas raízes das montanhas. Posei ao lado do spaniel, um animal de aspecto aristocrático mas pouco inteligente, contra um fundo de montanha, de céu e de água sucessivamente, enquanto Hubert Hay mexia na sua máquina e corria de um lado para outro com gritos de satisfação.

Quando se deu por satisfeito, sentamo-nos numa pedra e acendemos os cigarros. Ele parecia querer dizer alguma coisa. Fumou nervosamente durante algum tempo e então se voltou, para mim.

Srta. Brooke, incomoda-se se eu lhe disser uma coisa?'

Claro que não. Que é?

Está aqui sozinha, não está?

Estou.

—        Vou-lhe pedir encarecidamente uma coisa. Não saía do hotel com ninguém, Srta. Brooke. Comigo aqui e hoje, não corre perigo algum, embora não soubesse disso. Mas não saia com ninguém mais. É perigoso!

Fiquei calada durante algum tempo. Percebi então que, desde a hora do café naquela manhã, eu havia esquecido o perigo que rondava aquelas montanhas.

Não se aborreceu de eu lhe dizer isso? perguntou Hubert Hay, ansiosamente.

É claro que não. Tem toda a razão e eu lhe prometo que terei cuidado. Havia uma certa ironia na situação, pois era uma repetição da advertência que Roderick Grant me fizera na noite anterior. Podia eu, então, eliminar dois suspeitos entre os "cavalheiros do hotel" ou eram esses avisos apenas uma espécie de sutil despistamento ? Se eu continuasse a dar passeios com os "cavalheiros", em breve saberia de que se tratava. Estre­meci um pouco e puxei carinhosamente as orelhas do cachorro. Nada disso é muito agradável, não acha?

Ele ficou vermelho até à raiz dos cabelos.

—        É horroroso! — Voltou-se para mim com um gesto quase violento. Sabe, Srta. Brooke, que aquela moça, Heather Macrae, tinha apenas dezoito anos?

Eu nada disse.

—        E foi no dia do aniversário dela! — disse êle, tendo na voz estridente uma nota de transbordante raiva. No dia em que ela completou dezoito anos. Senti muito o que aconteceu, Srta. Brooke. Não sei se sabe, mas eu a conhecia.

—        Conhecia? E conhecia bem?

Oh, não. Apenas de cumprimento, como se diz. Passei algumas vezes pela fazenda quando estava percorrendo os arre­dores e ela me fazia chá. Era uma moça bonita, alegre e cheia de vida. Não fazia nela nem um pingo de maldade, nada que justificasse o que lhe aconteceu.

Não chegou a ter nenhuma idéia da pessoa com quem ela estava saindo?

Era uma pergunta tola e desnecessária, pois a polícia devia ter examinado minuciosamente todas as pistas, mas ele respondeu sem impaciência:

—        Não, nenhuma.

Mas a voz dele se havia alterado um pouco, de modo que o encarei e perguntei:

Percebeu alguma coisa?

Muito pouco. Disse-lhe que estava escrevendo um livro e ela se mostrou interessada. Isso é comum na minha vida de escritor, sabe? Mas ela me disse que muita gente aparecia pelas fazendas de uma maneira ou de outra, fazendo perguntas a respeito de costumes locais, superstições e assim por diante. Perguntei-lhe se ela tinha qualquer superstição especial e ela disse que não, pois era uma pessoa moderna. Eu disse então que não havia mais magia nas Ilhas como em outros tempos e ela se fechou como uma ostra e quase me botou para fora .da cozinha,

Magia? — disse eu. — É um absurdo!

Eu sei. Mas não posso deixar de ter uma impressão particular a respeito desse crime. Tudo deve ter sido bem planejado. O material para a fogueira foi reunido aqui e ali, pouco a pouco, deliberadamente. Havia urzes, pedaços de turfa

e galhos de bétula, uma grande acha de carvalho que mal se queimou e uma porção desses cogumelos secos — agarícos — que são encontrados nas bétulas.

Tive uma exclamação, mas ele não me ouviu e continuou.

—        Então, quando o assassino tinha tudo preparado, levou a moça lá para cima... Desculpe, mas pense um minuto... O fogo, os sapatos e as coisas dela numa pilha, a moça deitada com o pescoço cortado, as mãos cruzadas e as cinzas no rosto... Tudo isso não dá idéia de um sacrifício?

A última palavra foi proferida com ênfase. Levantei-me e fiquei a olhá-lo, sentindo um arrepio na espinha.

—        Mas isso é uma loucura!

Ele me olhou com ansiedade:

—        É mesmo, não acha? Só um louco poderia fazer uma coisa dessas. Entretanto, poderia proceder e agir normalmente a maior parte do tempo, como eu ou a senhora... É por isso que a estou aconselhando a não sair com ninguém.

— Claro que isso não vai acontecer! — disse eu. — Estou até com vontade de voltar para Londres quanto antes.

—        Seria uma boa idéia, — disse ele, pegando a máquina e começando a descer a montanha comigo.

Estava ainda em dúvida sobre se deixaria o hotel ou não, quando aconteceu alguma coisa que me fez decidir que, por enquanto ao menos, eu devia ficar.

Eu estava no salão, depois do jantar, quando os primeiros sinais de nova inquietação começaram a ser visíveis. Alastair Braine, com algumas xícaras de café, parou no meio do salão e disse com uma leve nota de surpresa:

Esperem! As montanhistas ainda não chegaram?

Não apareceram no jantar, disse Alma Corrigan. O Coronel Cowdray-Simpson exclamou:

É verdade. Espero que não tenha acontecido nada!

Aquela mulher é maluca! disse francamente a Sra. Cowdray-Simpson. Não devia ter saído num dia como o de hoje.

Creio que não nos devemos preocupar, disse Alastair. Com certeza, foram um pouco adiante do que pretendiam e, afinal de contas, ainda está claro.

Nicholas levantou os olhos de uma carta que estava escrevendo e disse:

—        O tempo estava levantando bem quando elas saíram e, durante a tarde, não houve neblina no Blaven. Não deve ter acontecido coisa alguma.

Marcia Maling exclamou:

Mas aquela mulher horrorosa pode ter feito alguma loucura, só por ostentação. E Roberta, aquela pobre menina...

Marion Bradford é na realidade uma excelente montanhista, disse calmamente Roderick Grant. Não se iria arriscar com uma principiante. Drury tem toda a razão quanto ao tempo. A verdade é que Ronald Beagle saiu para escalar Sgurr na Gillean e não teria feito isso se houvesse perigo.

—        Ele também ainda não voltou, — disse Hubert Hay.

Houve um breve silêncio e eu senti o desconforto e a inquietação crescerem.

É verdade, — murmurou Alma Corrigan, um tanto sem propósito. — Bem, eu creio...

Onde está seu marido? — perguntou a Sra. Cowdray-Simpson.

A pergunta foi um pouco abrupta, mas não a ponto de fazer Alma Corrigan ficar vermelha, como ficou.

—        Ele... continuou...

Estava tão evidentemente embaraçada, que todo o mundo se sentiu mal sem saber por quê. Alastair disse prontamente:

Todos nós saímos em grupo depois do almoço para subir o morro e ter uma vista sobre Loch Slapin. Trouxe a Sra. Corrigan de volta, mas Hart prosseguiu.

Foram então para aqueles lados? — perguntou o Coro­nel Cowdray-Simpson. — Viram as duas mulheres no Blaven?

Nem sombras. Vimos alguém — Drury, se não me engano — ao longe, mas ninguém mais.

Não estive no Blaven, — disse Nicholas, — e, portanto, não as vi também.

Roderick Grant colocou a xícara de café em cima de uma mesinha e levantou-se.

—        São apenas oito e meia e eu, pessoalmente, penso que ainda não há motivo para preocupação e que, dentro em pouco, elas estarão aí. Vou perguntar a Bill se elas disseram que iam chegar um pouco mais tarde.

Encaminhou-se prontamente para o hall e se inclinou sobre o balcão da gerência falando com o Major Persimmon.

—        Ele tem toda a razão, — disse o Coronel Cowdray-Simpson. — Não adianta nada ficarmos nervosos.

Mas Marcia não se contentava com tão pouco.

É horrível isso! Que é que pode ter acontecido com elas?

Muitas coisas podem acontecer nas Cuillins, — disse Alma Corrigan um pouco azeda, — e muitas coisas vêm acontecendo ultimamente.

Aquele caso? — exclamou Alastair. — Não pode haver a menor relação entre uma coisa e outra...

Não estou falando do crime, — disse Alma Corrigan brutalmente e eu ouvi Marcia dar um pequeno suspiro de espanto.

Estou falando de acidentes com montanhistas. Sabem quantas pessoas já morreram nas Cuillins, só neste ano?

Ela dera à frase um tom macabro e eu vi Marcia olhar para as montanhas e perguntar com voz aflita:

Muita gente?

Quatro pessoas até agora...

Senti a leve carícia fria do medo correr-me pelas costas e fiquei satisfeita quando o Coronel interveio de maneira prática.

—        A verdade é que, quando as pessoas pretendem escalar essas montanhas sem uma idéia muito clara do que devem fazer e dos riscos possíveis, não se pode deixar de esperar acidentes. Em quase todos os casos, esses acidentes são produzidos por ignorância ou negligência e eu tenho certeza de que nem Beagle nem a Srta. Bradford podem ser culpados disso. Estamo-nos preocupando à toa e creio que o melhor é deixarmos de falar sobre o caso para não nos assustarmos.

Virou-se para Alastair e disse alguma coisa sobre as pesca­rias no dia seguinte e em poucos minutos a tensão passou e a conversa se tornou geral.

—        Aonde foi hoje? perguntei a Macia Maling.

—        A Portree, minha cara, disse ela e o seu rosto se encheu com a sua habitual graça juvenil, pelas estradas piores deste mundo. Fergus reclamou o tempo todo porque tinha acabado de lavar o carro.

—        Pensei que houvesse uma boa estrada até Broadford.

—        E há... Mas se torce como uma cobra por precipícios, curvas fechadas e outras coisas...

—        E as vistas, Mareia?

As vistas foram deixadas de lado com um aceno da mão.

—        Mas o passeio foi divino, embora estivesse chovendo. Depois, Portree aos domingos é o fim. Mas consegui um tweed maravilhoso ali na sexta-feira. Vou-lhe mostrar daqui a pouco. Uma beleza!

Mas Roderick voltou ao salão e as conversas cessaram, pois todos valtaram os olhos para ele.

—        Bill Persimmon diz que não há o menor motivo de preocupação, disse ele calmamente, mas, quando ele atravessou o salão para onde eu estava, julguei ver uma ponta de inquietação no olhar dele.

Alguém ligou o rádio e o boletim meteorológico se insinuou lugubremente em nossa conversação. O Coronel Cowdray-Simpson se aproximou do rádio para escutar.

—        Está esperando noticias do Everest, — disse-me Rode­rick com um sorriso. — Isso e a ausência de peixes nos rios parecem ser as únicas preocupações do Coronel.

—        É muito boa pessoa, — disse eu. — Não gostaria de vê-lo decepcionado, mas tenho o mais estranho dos sentimentos em relação ao Everest... Quase tenho pena de vê-lo ser escalado.

—        Pena? Por quê?

Ri.

A bem dizer, não sei. Mas sempre considerei o Everest o último lugar inviolado onde o homem arrogante não havia posto os pés, um lugar remoto, branco, inatingível, imaculado numa palavra. Parece uma tristeza ver as pegadas do homem na neve pura do Himalaia.

Isso é simples poesia, Gianetta, — disse Nicholas, com um leve tom de zombaria. Chegara sem eu ver até à janela, logo atrás de minha cadeira. — Não sabia que era poetisa.

Fiquei vermelha e Roderick pareceu um pouco aborrecido.

—        E não tinha motivo algum de saber! — exclamou ele.

—        Já conhecia a Srta. Brooke?

A voz era ríspida e Nicholas o olhou por um momento.

—        Não tinha motivo algum! — repetiu desagradavelmente e olhou pela janela, exclamando então: — Se não estou enganado, lá vem nosso amigo Beagle!

Sozinho? — perguntou a Sra. Cowdray-Simpson.

Sim... É muito esquisito.

O quê? — perguntou Alastair, aproximando-se dele.

—        Ele está vindo da direção de Loch na Creitheach. E, se ele subiu Sgurr na Gillean, — disse Nicholas pensativamente,

—        seria mais fácil para ele descer pelo lado oeste do vale e atravessar o rio nas pedras.

Não quer dizer nada, — disse Alastair. — Tomou um caminho mais curto, embora difícil, ao passo que há um caminho que desce de Creitheach, pelo lado de Blaven.

Ele pode ter visto as duas mulheres, se veio pelo vale. Há ainda luz bastante para ver alguém que esteja no lado sul.

Mas, quando Beagle chegou, disse que não vira pessoa alguma. E a cara feia que fez quando soube que as duas profes­soras ainda não tinham voltado fez voltarem as apreensões de todos. Foi trocar de roupa e jantar tardiamente e todos ficamos sentados, falando com intermitencias e tentando não olhar muito pela janela enquanto passava mais meia hora de crescente ansie­dade.

Às nove e meia, já estava bem escuro. As nuvens de chuva que se acumulavam em grandes massas sombrias através do céu impediam que aparecesse qualquer resto de luz que pudesse haver ainda no poente. As garras do vento se cravavam nas janelas e arremessavam punhados espasmódicos de chuva contra as vidraças. Já então, segundo pensei, todos deviam estar conven­cidos de que acontecera alguma coisa às duas mulheres. Por isso, foi quase um alívio Bill Persimmon chegar ao salão exata­mente às nove e meia e dizer sem preâmbulos:

—        Acho que devemos ir procurá-las. O Sr. Corrigan acaba de chegar com Dougal e disseram que não há ainda sinal delas no vale.

Os homens se levantaram.

Tem certeza de que elas subiram o Blaven?

Tenho, — disse Persimmon. — Elas...

Podiam ter mudado de idéia, — disse Nicholas.

Bill Persimmon olhou para ele de maneira estranha, segundo me pareceu, e disse lentamente:

—        Foram para o Blaven, sem dúvida. Foram vistas lá.

Foram vistas? — perguntou Roderick. — Quando? A que altura?

—        No Sputan Dhu, — disse Persimmon secamente. Ronald Beagle aproximou-se.

—        Mas aquilo não é lugar para principiantes! O Repuxo Negro! É uma ascensão terrivelmente perigosa. Tem certeza, Persimmon?

Olhamos todos para Bill Persimmon, enquanto os receios de nossa imaginação se transformavam numa terrível realidade.

—        Quem foi que as viu? — perguntou Nicholas.

-— Dougal Macrae. Viu os três subindo para a ravina por volta das quatro horas.

Senti a garganta subitamente seca e perguntei com voz estranha:

—        Os três?

Ele confirmou com um aceno da cabeça e correu com os olhos os rostos do grupo em que uma nova espécie de medo surgia.

—        Dougal disse que viu três pessoas. E... todo o mundo mais voltou. Esquisito, não é?

Talvez tivessem um guia, — disse Nicholas.

Partiram sem guia, — disse Roderick.

—        Discutiremos isso depois que as tivermos encontrado e trazido, — disse Bill Persimmon. — Seria bom que as senhoras ficassem no hotel sem sair. Os homens têm cinco minutos para se aprontarem. Depois, venham para a cozinha, onde minha mulher terá café e sanduíches preparados para todos.

Nós não a podemos ajudar em alguma coisa? — per­guntei, levantando-me.

É muita bondade sua e acho que ela ficará contente com a sua ajuda.

Quando, afinal, todos saíram para a noite cortada de lufadas, voltei lentamente para o salão. Estava pensando no que dissera Dougal Macrae. Três pessoas? Como?

Talvez não houvesse qualquer relação, mas não pude deixar de pensar em Jamesy Farlane.

Alma Corrigan tinha ido deitar-se e a Sra. Cowdray-Simpson tinha subido com a sogra. Mareia e eu estávamos de novo sozinhas no salão. As cortinas tinham sido descidas em vista da tempestade, mas a chuva açoitava as vidraças e o vento uivava lá fora. De vez em quando, ouvia-se o gemido do mar.

Marcia estremeceu e estendeu as pernas para a lareira. Tinha os olhos arregalados e cheios de medo.

Não é bestial tudo isso? — perguntou ela e apesar da extravagância do adjetivo era evidente a tensão que a dominava.

Parece mesmo que aconteceu alguma coisa, — disse eu. — Olhe, Mareia, trouxe um drinque para nós duas.

Você é um anjo, — disse ela, pegando o copo e tomando um grande gole. — Palavra que estava mesmo precisando disso! — Inclinou-se para a frente em sua cadeira com os olhos maiores do que nunca. — Acha que há mesmo algum azar ligado à montanha, Janet?

Tive um riso que provavelmente não era muito convincente.

— Claro que não. Com toda a certeza, estavam subindo por um lugar muito difícil e ficaram sem poder descer devido à escuridão. É uma coisa que acontece com freqüência. Tudo acabará bem.

—        E a outra pessoa?

—        Fosse quem fosse, não era certamente um fantasma.

Ela deu um suspiro.

Bem, quanto mais depressa elas forem encontradas, mais cedo iremos dormir. Espero sinceramente que nada tenha acontecido a Roberta. É tão moça, tão meiga, tão comovente...

Era a outra que eu achava comovente, — disse eu e compreendi de repente que falava como se as duas estivessem mortas.

Mas Marcia não o notara.

Comovente aquela terrível Bradford? Nunca! Ela é impossível! Não desejo que lhe tenha acontecido coisa alguma, mas...

Ela deve ser uma mulher muito infeliz para ser como é. Deve saber que se está tornando antipática a todo o mundo e, entretanto, algum demônio a impele a hostilizar a todos.

É uma frustrada, — disse Marcia. — Gosta de Roderick Grant.

Bati meu copo na mesinha e disse, quase irritada:

—        É um verdadeiro absurdo isso, Mareia! Ela riu.

Não é absurdo. Não viu a maneira pela qual ela olha para ele?

Não diga tolices. Ela foi abominavelmente rude com ele ontem à noite e hoje de manhã. Eu ouvi.

E que tem isso? — disse Mareia num tom de zombaria. — Observe como ela o olha e como ele não olha para ela. Limita-se a baixar os olhos naquele jeito bem-educado que ele tem e aproveita qualquer oportunidade de sair com você! Se eu fosse você, querida, procuraria conservá-lo longe dela!

Tolice, — disse eu, sentindo-me pouco à vontade. — Acho que vou para a cama.

Mareia acabou de tomar o drinque.

—        Vou subir também. De qualquer maneira, não vou ficar sozinha aqui. Com certeza, ouviremos a volta deles e saberemos então o que aconteceu.

Subimos a escada de braço dado e ela me perguntou, sorrindo:

Aborrecida comigo?

Claro que não. Por quê?

Porque eu disse coisas que não devia, meu bem. E agora me lembro... Fui indiscreta em relação a você, mas sem intenção.

Foi indiscreta? Que quer dizer com isso?

Disse a Roderick Grant que você e Nicky eram divor­ciados. Não me lembro mais por que foi que disse... Foi quando você estava ajudando na cozinha...

Está certo.

Nicky! Ela já o chama de Nicky...

Espero que não tenha importância.

Por que iria ter? — disse eu, rindo. — Não creio que ele vá dizer a mais ninguém.

—        Ora, muito bem... — disse ela. Tínhamos chegado ao alto da escada. — Está tudo certo, então. Venha ver meu tweed antes de ir dormir.

Segui-a pelo corredor até ao quarto dela. A janela do fundo mostrava nessa noite apenas um retângulo cinzento no qual se mostravam as nossas imagens, deformadas e pálidas. Mareia empurrou a porta e entrou, procurando o interruptor de luz.

—        Um segundo, sim? A luz foi acesa.

Ouvi-a então soltar uma exclamação. Ficou parada como que petrificada, de costas para mim, com. as mãos erguidas até ao pescoço.

Deu então um grito forte e lacerante.

Durante um angustiado momento, não me pude mover. Senti o corpo gelado e fiquei ali sem fôlego.

Mareia tornou a gritar e voltou-se para mim, com uma das mãos crispada num gesto de horror e a outra no pescoço.

Corri para ela, segurei-lhe a mão e disse:

Que foi, pelo amor de Deus, Marcia?

Ela murmurou então com voz entrecortada:

O assassino... Meu Deus... O assassino...

Não há ninguém aqui, Marcia.

Ela tremia violentamente e me agarrou o braço com toda a força. Apontou para a cama com os lábios a tremer tanto que não podia articular uma só palavra.

Olhei para a cama e senti um arrepio correr-me pela espinha.

Uma boneca estava em cima da colcha. Era uma dessas bonecas de saia rodada que as Marcias deste mundo gostam de ter em divãs e sofás entre almofadas de cetim. Tinha visto dezenas delas — de cabelos amarelos, olhos azuis, róseas, brancas e sedosas.

Mas aquela era diferente.

Estava estendida na cama com as pernas esticadas e as mãos cruzadas no peito. Tinham derramado um cinzeiro sobre ela e havia um rasgão vermelho no pescoço, que fora cortado de ponta a ponta.

Não acharam sinais naquela noite nem de Marion Bradford, nem de Roberta.

A noite tinha sido escura e tempestuosa e, depois de várias horas infrutíferas e exaustivas de subida e de gritos dentro da escuridão, os homens da busca tinham voltado para o hotel às primeiras horas da manhã para comer e dormir um pouco, antes de recomeçar a busca. Bill Persimmon havia telefonado para a equipe de socorro local e, por volta das nove horas da manhã, um grupo de cerca de vinte homens partiu de novo para o local do acidente, como já se antecipava quase com certeza.

Acompanhei-os dessa vez. Ainda que eu não fosse capaz de efetuar ascensões, tinha bons olhos e poderia cobrir algumas das vastas áreas de cascalho e urze em torno do Repuxo Negro.

A manhã — lembrei-me com vaga surpresa de que estávamos na véspera do Dia da Coroação nascera cinzenta e ameaçadora. O vento ainda fustigava as encostas com inconseqüente violência e as freqüentes pancadas de chuva eram penetrantes e pesadas. Estávamos todos agasalhados até aos olhos e subimos o vale com a cabeça baixa a fim de resistir à chuva.

Foi um pouco melhor quando chegamos ao abrigo do morro onde Roderick e eu tínhamos conversado duas noites antes, mas quando chegamos ao alto do mesmo o vento nos apanhou em cheio. A chuva se nos cravava na pele como pregos e eu me virei de costas para ter um momento de descanso. A ventania passava por mim, açoitando o meu casaco, e fugia pelo vale em demanda do mar.


O hotel parecia muito distante, pequeno e isolado, tendo atrás de si o braço de mar, desfeito em espumas pelos pés nervosos do vento. Vi um carro afastar-se lentamente do hotel e tomar a estrada batida do vento de Strathaird. Era um grande conversível creme com capota preta.

É o carro de Marcia Maling, — disse uma voz ao meu lado. Era Alma Corrigan, preparada para tudo, com um pesado capote, uma manta vermelha e enormes sapatos ferrados. Notei também que era bonita, naquele momento em que o vento lhe dera cor ao rosto e brilho aos olhos belos. Acrescentou com uma nota de desprezo, enquanto subíamos a encosta: — Acho que seria querer demais que ela viesse ajudar-nos, mas não tinha necessidade de levar o chofer. Precisamos de todos os homens aqui...

Ela está indo embora, — disse eu.

Indo embora? Do hotel? Não diga!

Sim, vai voltar para Londres. Foi o que me disse ontem à noite.

Pensei que ela fosse ficar aqui mais uma semana, no mínimo. Com certeza, este caso, depois daquele outro...

Deve ser, — disse eu, vagamente.

Era claro que eu não ia contar a ninguém o motivo da decisão súbita de Marcia. A mulher de Bill Persimmon sabia e o Coronel Cowdray-Simpson, mas se os gritos de Mareia não haviam perturbado Alma Corrigan na noite anterior, tanto melhor. E eu estava mais do que nunca certa de que iria sair também do hotel no dia seguinte. Mas, desde que eu não tinha sido avisada, por assim dizer, como Mareia o fora, não queria ir sem saber do que acontecera a Marion e a Roberta.

Muito bem! — disse a Sra. Corrigan, com um estranho tom que era em grande parte de alívio e em parte de alguma coisa que não pude identificar de pronto. — Não posso dizer que fique com o coração partido de vê-la pelas costas. Ela só passou cinco dias aqui, mas... Bem, decerto compreenderia o que eu sinto, Srta. Brooke, se fosse casada...

Sem dúvida. Mas deve compreender que isso está na natureza dela e ela nada pode fazer... Tem sido muito mimada e é tão bela.

É mais generosa do que eu, — disse Alma Corrigan. — Mas também não tinha tanto a perder...

Não fingi que não a havia compreendido.

—        Ela precisa de ser admirada pelos homens constantemente, pouco lhe interessando quem se ofender com isso. Desculpe, mas se eu fosse a senhora, deixaria isso de lado. Não pode agir como se nada tivesse acontecido?

Ela teve um riso mais ou menos amargo.

—        É fácil ver que você não tem muita prática de lidar com os homens.

Não respondi. Pensei irritadamente que era difícil compreender por que as mulheres casadas adotavam tão freqüente­mente aquele tom, quase de superior satisfação nos sofrimentos que os homens lhes infligiam. Refleti, depois, que ela talvez tivesse razão. Eu tinha decerto falhado por completo em lidar com o homem com quem havia casado e, portanto, quem era eu para dar algum conselho? Por outro lado, a coisa mais certa neste mundo é que ninguém precisa de conselhos. O que quase todo o mundo pede aos outros é a confirmação das próprias opiniões.

Estávamos passando pela fogueira preparada para a Coroa­ção e eu mudei de assunto.

Acho que não vão mais acender esta fogueira. Se acon­teceu alguma coisa às duas moças, ninguém vai querer mais fazer comemorações.

De qualquer maneira, a lenha estará molhada demais e não pegará fogo, — disse ela e voltou ao assunto com a obstinação de um bêbado diante do copo: — O que não sei é como Hart pôde agir como agiu. Desde que ela chegou, ele começou a segui-la como um cachorrinho de colo, colocando-me numa posição ridícula. Bem, você não viu nem a metade do que aconteceu. Ela passou para o tal Drury na noite passada, mas na verdade... quero dizer, todo o mundo percebeu. É fácil dizer que ela não pode agir de outra maneira, mas o que é que se pode dizer de Hart? Por que faz o que fez sem lhe acontecer nada ? Tenho ímpetos de...

Quer continuar com seu marido ou não quer? — per­guntei abruptamente.

—        É claro que quero! Que pergunta mais tola!

—        Deixe-o em paz então. Não sabe que o orgulho é uma coisa que não cabe na vida de um casal? Terá de tomar uma decisão. Se não puder ficar calada, deve habituar-se à idéia de que vai perdê-lo. Se quiser ficar com ele, engula o seu orgulho e cale a boca. Essa ferida vai sarar. Tudo sara com o tempo e com um pouco de paz.

Ela abriu a boca, naturalmente para me perguntar como era que eu sabia de tudo isso.

Estamos muito atrasadas, disse eu, quase com rispi­dez. Vamos andar mais depressa.

Separei-me dela e segui rapidamente pelo caminho cada vez mais íngreme.

Tínhamos já atingido uma boa altura e notei com satisfação que, quando começamos a avançar pelos flancos ocidentais do Blaven, a força do vento diminuía. As lufadas eram menos freqüentes e menos violentas e, ao chegarmos às primeiras riban­ceiras de cascalho, a chuva tinha parado tão repentinamente como se uma torneira tivesse sido fechada.

O grupo estava estendido então em fila indiana, avançando num ângulo cada vez mais abrupto pela escarpa da montanha. Quase todos os homens carregavam mochilas. Alguns tinham Tolos de corda ao ombro. A subida se tornava mais difícil. As trilhas de animais se estreitavam e ficavam mais íngremes. Eram depressões nada mais do que isso de trinta centímetros de largura entre as urzes que chegavam à altura dos joelhos e a chuva as fazia escorregadias. De vez em quando, tínhamos de contornar grandes projeções de pedra, agarrando-nos precariamente a raízes e ramos de urzes, com os pés escorre­gando na estreita faixa de lama a que se reduzira a trilha.

Acima de nós, elevavam-se os enormes penhacos, rebrilhantes da chuva, recuando a pique do cascalho como monstros corcundas que se erguessem do mar. O próprio cascalho era de apavorar. Estendia-se do pé dos penhascos em dezenas de metros de pedras miúdas e quebradas, escorregadias e trai­çoeiras com buracos ocultos e pedras sotas, que davam a impres­são de que um passo em falso poderia fazer rolar toda a encosta numa avalancha mortal.

O lugar onde Dougal Macrae vira os montanhistas ficava a meia encosta do lado oeste do Blaven. Nesse ponto, a montanha se ergue acima do cascalho num enorme dorso de picos denteados, seiscentos metros e mais de rocha desolada e nua, subindo para o céu carregado. Parei e olhei para cima. Farrapos de neblina despedaçada pelo temporal se retorciam entre os terríveis baluartes de rocha. As nuvens batidas pelo vento se enovelavam sobre os precipícios. E negros e terríveis, acima da agitação do temporal, por trás do tumulto das nuverts cinzentas, os grandes pináculos surgiam, sumiam e ressurgiam, quebrando o céu e fendendo os ventos. O Blaven desfraldava as borrascas como uma bandeira.

De algum poço entre os picos, descia o filete de água que ia dar no Repuxo Negro. Era uma fina linha branca, apenas isso, que descia pela face remota e terrível da pedra e que parecia imóvel, salvo quando o vento a atingia e a fazia tremer um pouco. A água havia cavado, através das idades, um leito na pedra, uma fenda negra pela qual corria no flanco da montanha. Por ali corria, ora devagar, ora impetuosamente, mas durante todo o tempo engrossando e ganhando força até que chegava ao ponto mais baixo do pico e desaparecia na fenda que rachava a borda do precipício acima do cascalho.

De repente, desprendia-se da montanha. Da base da fenda, a cerca de trinta metros de altura, saltava como de um repuxo, um fino jato de água que esguichava da pedra para cair depois e rolar até à base numa confusão de espumas. Desaparecia então na ravina que tinha aberto no cascalho.

O grupo de busca subia pela borda dessa ravina. De vez em quando, alguém gritava, mas a única resposta era o grito de um corvo assustado, que levantava vôo dos picos.

Subi agarrando-me às pedras molhadas, escorregando em tufos de relva, com a respiração entrecortada, o rosto úmido e afogueado do esforço apesar das chicotadas intermitentes do vento frio. Os homens seguiam num passo aparentemente displicente, avançando com notável rapidez. Eu me arrastava atrás deles, levantando de vez em quando os olhos para a ameaça dos picos negros, indizivelmente sinistros e remotos, que pareciam correr acima das nuvens da tempestade. Embaixo, à nossa esquerda, no fundo da ravina, a água trovejava e espu­mava. À frente, havia uma fenda diabólica; uma fenda negra, de vinte metros de profundidade, que cortava o cascalho da encosta, de paredes íngremes, negras e úmidas, com um chão que era uma massa de pedras e de água tumultuosa.

De repente e pela primeira vez com absoluta clareza, compreendi que era ali naquela confusão de pedras e de água que as duas moças estavam, provavelmente mortas ou, na melhor das hipóteses, vivas e feridas, incapazes de fazerem-se ouvidas acima do intermitente rumor do vento e da água.

Murmurei ansiosamente.

—        Roberta... Roberta...

O homem que ia logo à minha frente era Alastair, que se voltou nesse momento, me deu um breve sorriso tranqüilizador e me estendeu a mão para ajudar-me a galgar um trecho difícil.

—        Não fique muito perto da borda, Janet... Assim, é melhor. Devemos encontrá-las em breve, se Dougal está certo. Esses camaradas da turma de socorro conhecem isto aqui, palmo a palmo.

Mas... Alastair, — disse eu, quase sem poder falar. — Elas não podem mais estar vivas... Devem estar... devem estar...

Se conseguiram atingir um ponto abrigado, podem perfeitamente estar vivas, desde que não se tenham machucado muito numa queda. A noite passada não foi fria.

—        Acho que havia três pessoas.

—        Bem, Douglas Macrae não é homem dado a exageros, disse Alastair.

Será que algum homem da aldeia está desaparecido?

Não me disseram.

—        Então, se havia três pessoas, a terceira só pode ser alguém do hotel. E lá também não está faltando ninguém.

—        Exatamente, — disse Alastair.

E, se ninguém do hotel comunicou o acidente, isso significa que...

Exatamente, — tornou a dizer Alastair. Parou então e agarrou meu braço. Com a outra mão, apontou para cima e um pouco à direita do lugar onde estávamos.

—        Era ali que estava a fogueira na outra noite, — disse ele.

Em seguida, largou meu braço e recomeçou a subida. Segui-o, pensando. Um crime de morte de novo? Quem iria querer assassinar Marion e Roberta? Era absurdo. Mas, neste caso, que motivo poderia haver para o assassinato de Heather Macrae e nas condições em que fora cometido? Mas tornei a pensar que não havia qualquer semelhança entre os dois acidentes. O desaparecimento de montanhistas era uma coisa, se não normal, ao menos destituído da atmosfera fantástica, quase ritual da morte da moça. Mas não sabíamos disso? Os corpos ainda não tinham sido encontrados...

Tirei os cabelos da testa com a mão incerta e olhei para o alto.

Os homens que iam à frente tinham parado e estavam reunidos na borda da ravina, no ponto em que a água dava o seu último salto de cerca de trinta metros do alto do penhasco. Alguém estava apontando para baixo. As cordas estavam sendo desenroladas.

Subi lentamente para onde estavam. Sentia medo, um medo terrível. Não haveria forças no mundo que me obrigassem a olhar para baixo e ver Roberta a me encarar com os olhos em alvo, o pescoço cortado como o da boneca de Marcia e com o sangue tomando um tom rosado sob a chuva...

Mas parecia que ainda não tinham sido vistos sinais de Roberta ou Marion, embora os olhos ansiosos esquadrinhassem as profundezas da ravina escura. Dougal Macrae apontou para os outros os lugares onde vira as pessoas... Na verdade, não as tinha visto no penhasco, mas subindo para ele numa direção que indicavam que pretendiam subir pela face do próprio Sputan Dhu ou atravessar pelas pedras acima da cascata.

Roderick Grant virou a cabeça e me viu e caminhou na minha direção, tirando do bolso um maço de cigarros um tanto amarrotado. Deu-me um cigarro e acendeu o meu e o dele, coisa que não foi fácil em vista da intensidade do vento.

—        Que é que vão fazer? — perguntei, ansiosamente.

—        Se Dougal está certo e elas estavam começando a subir através do Repuxo, a primeira coisa a fazer é efetuar a mesma ascensão. Deve haver alguns traços da passagem delas nas pedras acima da ravina. Ou então será preciso ir procurar lá embaixo, depois da cascata.

—        Chegou até aqui ontem à noite?

—        Chegamos, mas não pudemos ver nada no escuro. Pude­mos apenas gritar.

Olhei pela fenda, onde a água clara pulava e escachoava. Os lados da ravina cintilavam gotejantes e os tufos de fetos e de urzes eram agitados pelas correntes de ar que trovejavam pela fenda como num túnel aerodinâmico. A cada lufada de vento, a água era impelida para trás e ia bater, espadanando contra a rocha. O eco era fantasmal.

Estremeci e tornei a olhar para as sinistras alturas que ficavam sobre nossas cabeças.

—        É um lugar muito perigoso de se subir.

Ele fez uma cara grave.

É dificílimo para qualquer pessoa e para principiantes, então, é rematada loucura!

Os homens podem descer até ao fundo da ravina... se for preciso?

Podem. Beagle diz que descerá e Rhodri MacDowell irá com ele. É um homem da aldeia e muito bom montanhista.

Olhei para baixo e perguntei:

A ravina não é menos profunda na base da montanha? Não seria melhor começar lá embaixo e ir subindo a ravina até chegar a este ponto?

Assim é mais rápido. Levariam horas para vir de lá de baixo.

As operações para a descida estavam começando. Três homens, um dos quais Beagle, se amarravam com uma corda. O resto do grupo tinha-se dividido para explorar as proximidades em busca de algum sinal.

—        Que é que vamos fazer? — perguntei a Roderick.

—        Acho que deve esperar aqui. Se as encontrarem feridas, você estará em condições de ajudá-las. — Deu-me um sorriso tranqüilizador. — Talvez as coisas não sejam tão ruins quanto parecem, Janet. Dentro em pouco, ambas estarão no hotel a são e salvo.

Afastou-se então e eu fiquei ali com Alma Corrigan e alguns homens que guarneciam aquele ponto.

Não sei nada de montanhismo. Os três homens que se estavam movendo através da face do Sputan Dhu eram segura­mente peritos. Na verdade, moviam-se com tanta facilidade sobre o paredão de rocha que era difícil de acreditar que a travessia fosse tão perigosa quanto Roderick tinha dito.

Eu havia subido um pouco pelo cascalho até ao ponto onde a ascensão havia começado e sentei-me, olhando e fumando nervosamente, enquanto os três homens se moviam, trecho a trecho, pela face do penhasco molhado. O caminho que seguiam levava-os num ângulo agudo para um ponto a cavaleiro da estreita fenda acima do jato de água. Até aos meus olhos ignorantes era evidente que a rocha molhada e o vento forte aumentavam consideravelmente os riscos, mas os três homens pareciam inatingidos por essas circunstâncias. Ronald Beagle era o primeiro homem na corda, comandando o grupo com uma exatidão segura que era maravilhosa de se ver. Os outros dois, Rhodri MacDowell e um rapaz chamado Iain, faziam parte da equipe de socorro local. Parecia-me que os três faziam a ascensão muito lentamente com longas pausas entre os movi­mentos de cada homem, quando eu pensava que estivessem procurando vestígios das moças. Não davam sinal, porém, de ter encontrado alguma coisa e seguiam, sem pressa, vencendo a perigosa travessia.

Dougal Macrae disse de repente atrás de mim:

Que montanhista magnífico!

Ronald Beagle estava na metade do que parecia uma laje perpendicular de pedra cintilante um ponto terrivelmente exposto, desde que a laje ficava exatamente acima da ravina. Subia ritmicamente e com facilidade, encaminhando-se paira a próxima etapa, que era uma plataforma meio inclinada, cerca de três metros acima dele.

Acho que ele é ótimo, — disse eu com entusiasmo. Não entendo nada de montanhas, mas o que ele está fazendo me parece extremamente difícil.

A subida não é fácil, disse Dougal. E o trecho onde o Sr. Beagle está agora é o pior de todos.

E parece.

Ele deve estar bem acima da ravina. Ah, subiu. E se está amarrando agora.

Beagle tinha chegado à plataforma e tratava de amarrar a corda numa projeção de pedra ao lado dele. Virou-se então e gritou alguma coisa para os dois homens que o seguiam. Não o pude ouvir, mas devia tê-los mandado esperar porque nenhum deles se moveu do lugar onde estava. Beagle virou então o corpo e, apoiando-se na corda presa, curvou-se para olhar para o fundo da ravina.

—        Mas elas não podem estar ali, Sr. Macrae! exclamei. -— É impossível!

-— Se elas caíram daquela laje é onde devem estar.

Mas é isso mesmo que eu quero dizer, murmurei, acendendo outro cigarro. Elas nunca teriam passado por aquela laje. Roberta Symes nunca teria feito uma subida tão difícil! Era a primeira vez que ela subia por uma montanha!

É mesmo? perguntou Dougal, franzindo a testa.

Foi o que ela nos disse. E Marion era uma boa monta­nhista e nunca iria levar Roberta por um caminho assim.

Não. É de crer que não. Mas era para aquele ponto que se estavam dirigindo quando as vi. Tudo indicava que pretendiam atravessar o Sputan Dhu... Ah! Moveram-se de novo!

Rhodri MacDowell, o homem do meio da corda, já estava na plataforma, enquanto Beagle não era mais visto, estando por trás de uma pedra projetada para o outro lado da ravina. Iain, que era o último, ainda estava subindo.

Joguei o cigarro fora num movimento nervoso e perguntei com voz trêmula:

Será que viram alguma coisa lá embaixo?

Vamos esperar que a senhora esteja certa e que eles nunca tivessem deixado a moça tentar essa subida. Pode ser...

Eles? Ah! Foi o senhor mesmo que disse que tinha visto três pessoas na montanha. Creio que não podia ter-se enganado, não é? Mas tem certeza disso?

Claro que tenho. Havia três pessoas...

E a terceira era um homem ou uma mulher?

Não sei. Dessa distância, não é possível dizer, principalmente hoje em dia, quando todas as mulheres usam calças na montanha. Não houve nada que eu pudesse notar, a não ser que a pessoa do meio tinha um casaco vermelho.

Foi Roberta Symes então, — disse eu, lembrando-me, com um baque no coração, como o casaco vermelho tinha combinado bem com o rosto rosado de boneca holandesa e com os cabelos pretos de Roberta.

Esse casaco deve facilitar muito encontrá-la agora, — disse Dougal.

Sem dúvida.

Lá em cima, na plataforma, o segundo homem havia desaparecido também. A corda cintilava numa linha fina em torno da projeção para onde Iain se estava encaminhando. Depois que chegou à plataforma, amarrou-se. Ouvi-o gritar alguma coisa e, logo, Ronald Beagle reapareceu mais adiante, já no que parecia o fim da subida, uma plataforma larga acima do cascalho e do outro lado da ravina, de onde a descida não deveria apresentar qualquer dificuldade.

Daí a alguns minutos, os três homens estavam reunidos na outra plataforma e pareciam estar realizando uma espécie de conferência. As pessoas que estavam do nosso lado da ravina, Alma Corrigan, Dougal Macrae, eu e alguns homens olhávamos em petrificado silêncio, cheios de apreensões. Eu estava sentada, com o cigarro esquecido a arder entre meus dedos, apurando inutilmente os olhos e os ouvidos para interpretar os sons e gestos distantes da conversa dos três homens.

Dougal disse de repente:

Devem ter visto alguma coisa na ravina.

Não, — disse eu tolamente, como se pudesse com a minha negativa impedir a realidade. — Não!

Rhodri MacDowell está apontando. Já me havia parecido que ele tinha visto alguma coisa quando estava no penhasco.

Pisquei os olhos contra o vento e vi que um dos homens estava de fato gesticulando na direção da ravina. Os três homens se desembaraçaram da corda e começaram a descer rapidamente pelo cascalho para o outro lado da ravina. Havia neles um ar deliberado que confirmava sinistramente a presunção de Dougal.

Alma Corrigan se separou então do pequeno grupo ao lado e veio para onde nós estávamos.

—        Já estão lá embaixo, — anunciou ela.

Olhei-a sem poder dizer coisa alguma, mas levantei-me. Atrás dela, Bill Persimmon, o proprietário do hotel, disse:

Não sabemos ainda com certeza, mas parece que viram alguma coisa.

Vai descer para a ravina então, — disse Dougal Macrae.

Creio que sim, — disse Bill Persimmon, voltando-se para olhar os homens do outro lado.

Ouvimos atrás de nós um tropel de passos nas urzes molha­das. Nicholas descia a encosta, logo seguido de Roderick. Os olhos de Nicholas, meio fechados devido à chuva, não se despregavam de Beagle, do outro lado da ravina.

Está na hora de irmos ajudar, — disse ele de repente. — Se elas foram vistas na ravina, eu vou descer. E você, Bill?

Acho que é o que devemos fazer, — disse o Major Persimmon.

Viram alguma coisa lá embaixo? — perguntou ansiosamente Roderick. — Voltamos porque parecia que...

Viu-me então e veio rapidamente para perto de mim, dando-me um sorriso tranqüilizador.

Mas eu estava nervosa demais para que esse sorriso me bastasse e disse:

Dougal diz que um dos homens viu alguma coisa.

Foi Rhodri, — disse Roderick. — Nós o vimos apon­tando. Acho que... — Olhou de novo para mim e disse: — Por que não volta para o hotel, Janet?

Não se preocupe comigo, pelo amor de Deus! — disse eu, quase com rudeza. — Eu estou bem.

Os três homens chegavam nesse momento à beira da ravina. A voz de Beagle foi afinal ouvida, apesar do vento e da chuva.

—        Abaixo do poço... não se pode ver direito... pode ser... uma perna... Vou descer...

Sentei-me um tanto subitamente na minha pedra. Tive a surpresa de perceber que, diante da realidade, eu me sentia atordoa­da, mas não dominada pelo terror. As pequenas coisas — o des­conforto dos sapatos encharcados, a chuva que não parava, o lenço ensopado no bolso do casaco — cada qual desses detalhes parecia ocupar-me a atenção e fixá-la em mim mesma. Creio que é uma espécie de defesa automática essa variedade de choque.

De qualquer maneira, fiquei ali sentada, agitando os dedos dentro das luvas úmidas enquanto em volta de mim todos os prepara­tivos se faziam para o horror final da descoberta.

Beagle e Rhodri MacDowell desceram por fim. Para mim, que os olhava com aquele mesmo interesse desprendido e quase infantil, pareciam estar realizando uma espantosa operação. Mos­travam-se incrivelmente rápidos. Beagle ainda estava gritando as suas últimas informações do outro lado da ravina, quando Rhodri e o jovem Iain tinham passado a corda por uma pequena coluna de pedra que se projetava ao lado deles. As pontas da corda dobrada desceram até ao fundo da ravina e ficaram penduradas.

—        Deixe que eu desço, Bill, disse Roderick. Gritare­mos se precisarmos de reforços.

Rhodri tinha desaparecido. Iain observava a coluna pela qual estava passada a corda e Beagle já estava descendo. Nicholas se afastou da beira da ravina e disse simplesmente:

—        Vou descer.

Roderick, que estava tratando de prender a sua corda, disse, olhando-o cheio de dúvida:

—        Você? Nunca soube que entendia de montanhas.

—        Que tem isso? perguntou Nicholas, de maneira não muito delicada.

Os olhos de Roderick faiscaram, mas ele disse apenas com voz muito calma:

—        Talvez seja melhor eu ir primeiro.

E desceu tão depressa quanto Rhodri e talvez com menos esforço. Nicholas observou-lhe a descida de costas para mim, enquanto eu continuava sentada na minha pedra. Então, a um grito lá de baixo, agarrou, também as cordas e cuidadosamente deixou-se baixar.

O pequeno grupo de homens que esperavam se aproximou da borda da ravina e havia mais uma vez neles, quando olharam para baixo, aquele ar de premonição que se concretiza, através do temor, em certeza.

Quase imediatamente, ouviu-se um grito lá embaixo um som sem palavras que era entretanto horrivelmente claro. Com­para a frente e senti Dougal Macrae agarrar-me com a mão forte.

Calma!

Foram encontradas! — exclamei.

Acho que sim.

O Major Persimmon estava ajoelhado na beira da ravina. Houve nova troca de gritos dificultada pelo vento. Por fim, os homens passaram da imobilidade para uma atividade rápida e bem treinada. Mais dois homens da equipe de socorro local preparam-se para descer, enquanto os outros começavam a descer rapidamente pelo cascalho.

Aonde vão? — perguntei.

Vão buscar as macas, — disse Dougal.

Dizem que a esperança custa a morrer. Foi a minha febril esperança ou talvez a ignorância que me fizeram cega e surda ao tom de Dougal e à expressão dos outros homens. Consegui desvencilhar-me dele e fui até à beira da ravina.

—        Macas? Então estão vivas! Pode ser que ainda estejam vivas?

Vi então o que estava no fundo da ravina. Beagle e Nicholas carregavam alguém ao lado das lajes por entre as quais corria a água. E não havia dúvida possível quanto ao corpo que estavam trazendo das imediações da cascata... Eu havia esque­cido que um cadáver fica rígido, imobilizado como uma grotesca escultura de madeira na última posição em que o encontrou a morte. Calças escuras, casaco azul manchado e ensopado, mitenes amarelas sujas em dedos crispados de terror... Marion Bradford. Mas não era mais Marion Bradford. Era uma horrível boneca de madeira que os homens levavam e cuja cabeça se balançava pendendo de um pescoço desconjuntado...

Voltei em silêncio para minha pedra e fiquei ali sentada, olhando para os pés.

Não me movi nem mesmo quando as macas chegaram. Nada havia que eu pudesse fazer, mas recuava ante a idéia de voltar para o hotel sozinha e Alma Corrigan não mostrava a menor disposição a sair dali. Fiquei, por isso, onde estava, fumando sem parar e olhando para o outro lado, para o flanco cinzento da montanha, enquanto por trás de mim levantavam-se os ruídos da operação de socorro, que não era mais de socorro. O guinchar e o roçar das cordas; palavras rápidas em gaélico; um chamado de Roderick, ansioso e distante; a voz de Beagle, elevando-se num grito; o Major Persimmon, bem perto, excla­mando : "Como? Meu Deus!" e de novo uma torrente de gaélico ao meu lado, tão nervosa que tive um sobressalto e olhei.

Era Dougal querr tinha falado. Ele e o Major Persimmon estavam de joelhos ao lado um do outro olhando para a ravina. Persimmon disse de novo: "Meu Deus!" e então os dois homens se levantaram, olhando um para o outro

—        Ele tem razão, Dougal.

Dougal nada disse. O seu rosto tinha a imobilidade do granito,

—        Que foi? Que é que estão gritando lá embaixo? — perguntou Alma Corrigan.

Bill Persimmon respondeu:

—        Ela caiu do alto da laje mesmo. A corda está passada ainda em volta do corpo dela e foi cortada.

—        Como? Que é que está dizendo?

Bill Persimmon murmurou cansadamente:

—        É isso mesmo. Alguém cortou a corda e ela caiu...

—        Assassinada... — murmurou Alma Corrigan, num sussurro desalentado.

E Roberta Symes? — perguntei.

Não a encontraram ainda.

E não a encontraram, embora houvessem percorrido aquela terrível ravina de ponta a ponta e embora, no resto do dia, procurassem por todos os lados no interminável cascalho.

A busca se prolongou por todo o dia. Para o fim da tarde, o vento caiu só despertando de quando em quando em rápidas rajadas. A chuva parou, mas as nuvens cor de chumbo continuaram baixas, escondendo as Cuillin e acumulando-se obstinadamente sobre a crista do Blaven. O Marsco, que ficava mais ao norte, estava invisível e, muito abaixo de nós, o Loch na Creitheach se estendia parado e cor de estanho.

O corpo de Marion Bradford chegou afinal à boca da ravina às quatro horas da tarde. Do alto, vi o sinistro grupo descendo por entre as urzes molhadas, enquanto as tristes nuvens se estendiam no alto. Chegou a An't Sròn, atingiu lentamente o seu pico, passou pela patética ironia da fogueira comemorativa e desapareceu do outro lado do morro.

Voltei-me desanimadamente para as extensões de cascalho cinzento e peguei outro cigarro. A fogueira da Coroação... e no dia seguinte, em Londres, haveria repicar de sinos e estrugir de bandas, ao passo que ali não haveria quaisquer comemorações. O solitário pio de uma ave e o rumor distante do mar seriam os únicos sons que se ouviriam no vale no dia da festa, como se estavam ouvindo naquela tarde. E se Roberta ainda estivesse desaparecida...

Ouvi o bater de botas ferradas na pedra acima de mim e levantei os olhos para ver Roderick Grant que descia por uma das plataformas que se estendiam até ao penhasco acima do Sputan Dhu. Estava sem chapéu e os seus cabelos claros estavam escurecidos pela chuva. Parecia indescritivelmente triste e deprimido e uma de suas mãos estava ensangüentada. Lem­brei-me do que Marcia havia dito e pensei que ele talvez soubesse do interesse de Marion por ele, e sentisse naquele momento alguma espécie de arrependimento.

A sua expressão melhorou um pouco, mas logo a máscara da tensão lhe desceu sobre o rosto.

Devia ter voltado para o hotel, — disse-me ele. — Está parecendo muito abatida.

Acho que sim, — disse eu, cansadamente. As mãos estavam entorpecidas pela chuva e pelo frio e eu não consegui riscar um fósforo para acender um cigarro. Ele me pegou delicadamente pelos ombros e me fez sentar numa pedra. Acendeu meu cigarro com o isqueiro e, depois, tirou um embrulho do casaco.

Que foi que você comeu?

Talvez uns sanduíches. Não me lembro mais.

—        Não se lembra porque foi há muito tempo, — disse ele, abrindo o embrulho. — Ajude-me a comer isto. Tomou café?

—        Tomei.

Ele tirou um cantil de prata do bolso.

—        Tome uma gota disto que lhe vai fazer bem.

Tomei. Era uísque escocês puro e me fez voltar à consciência em cinco segundos. Levantei o corpo e peguei outro sanduíche.

Muito bem, — disse ele. — Mas, ainda assim, acho melhor você voltar para o hotel.

Não posso. Ainda não. Não poderei ficar por lá parada, esperando. Temos de encontrar Roberta. Outra noite na montanha...

Duvido muito de que mais uma noite faça muita dife­rença para Roberta, Janet.

Ela está viva, — disse eu obstinadamente. — Se tivesse caído na ravina junto com Marion Bradford, teria sido encontrada. Dougal Macrae diz que ela poderia ter sido detida mais acima, numa plataforma talvez. Deve haver lugares perto do alto da ravina...

Esquadrinhei duas vezes toda a parte superior da ravina, — disse ele. — Drury, Corrigan e eu estivemos lá o dia inteiro. Não vimos nem sinal dela.

Mas ela tem de estar em algum lugar. Deve estar ferida e não poderia ter ido muito longe. A menos que...

Senti os músculos se endurecerem nervosamente, pois só então percebi por inteiro o significado daquela corda cortada. Virei para ele os olhos espantados.

—        Roderick, — disse eu, chamando-o pelo primeiro nome sem pensar, — você estava lá embaixo e viu a corda de Marion. Aquela corda cortada só pode significar uma coisa, não é mesmo?

Ele tirou uma fumaça do cigarro e deu um suspiro.

—        Sim. Mais um crime...

—        Dougal jura que havia outra pessoa, mas não sabe dizer se era homem ou mulher...

Ele teve um pequeno gesto de impaciência

—        E acha que ele merece crédito?

—        Claro que sim. Nunca vi uma pessoa mais responsável do que Dougal Macrae. Se não havia outra pessoa, teremos então de acreditar que foi Roberta quem cortou a corda e isso seria absurdo.

Seria mesmo?

Você não pode acreditar que Roberta...

—        Ela era uma principiante. Se Marion caiu e o peso estivesse a ameaçá-la de cair também, ela poderia perder a cabeça e...

Não acredito! E não é só. Você também não acredita.

Não, — disse ele com um sorriso.

—        Havia então outra pessoa e foi ela quem cortou a corda e é a assassina. Estava ali quando Marion caiu. E Roberta, tenha caído ou não, não pode ser encontrada. Tudo isso não representa uma coisa muito bonita, não é mesmo?

—        Acha que o assassino levou Roberta para outro lugar?

—        E posso achar outra coisa? Ela não foi encontrada. Se estivesse morta, ele poderia deixá-la sem risco no mesmo lugar. Se estivesse apenas machucada, ele teria de silenciá-la. É possí­vel, pois, que ele a tivesse matado e escondesse o corpo, esperando que a demora na descoberta dos corpos o ajudasse de uma maneira ou de outra. Mas não sei de nada. Estou numa tremenda confusão, rezando todo o tempo para que ela ainda esteja viva e sabendo, ao mesmo tempo, que não pode estar.

Levantei-me.

—        Vamos continuar, — disse eu.

A tarde foi caindo e através das encostas da montanha os homens trabalharam infatigavelmente. Beagle e Rhodri MacDowell, que tinham descido com a maca, voltaram, trazendo comida, sopa, café e lanternas do hotel. Comemos e bebemos, reunidos ao crepúsculo que se adensava. Pouco se falou. Os rostos dos homens estavam tensos e abatidos e os seus movi­mentos eram lentos. As conversas rápidas só se relacionavam com os pontos já pesquisados e com sugestões para novos reconhecimentos.

Vi ao meu lado Ronald Beagle que, apesar do papel desta­cado que tinha desempenhando nas pesquisas, não mostrava muitos sinais de cansaço. Estava tomando a sua caneca de café quando Alastair apareceu e perguntou abruptamente:

— Como é o fundo da ravina logo depois do Sputan Dhu?

Beagle levantou os olhos para ele. Respondeu com um leve tom de surpresa na voz.

Muito acidentado. Muitos caldeirões e pedras caídas. A água desce por uma série de cascatas até à beira do cascalho. Por quê? Asseguro-lhe que não poderíamos deixar de tê-la visto.

Há cavernas ou fendas nos lados da ravina?

Muitas. Mas éramos quatro e pode ter certeza...

Escute, — disse Alastair, — pode dar-me certeza de que ao menos duas pessoas examinaram cada uma dessas fendas?

Houve silêncio por um momento. Vi a brasa do cigarro de Alastair avivar-se e esmaecer. Outro cigarro luziu então ao lado dele e ouviu-se a voz de Roderick.

Por quê? Que está sugerindo?

Estou sugerindo que um de nós aqui é o assassino, — disse Alastair, categoricamente.

Hartley Corrigan falou então:

É uma coisa terrível de dizer! Equivale a acusar Beagle, Grant ou Drury...

Mas ele tem toda a razão, — disse Beagle calmamente. — Pode perfeitamente ser um de nós. Mas por que interessaria ao assassino esconder o segundo corpo, uma vez que o primeiro foi encontrado? Seria certamente do seu interesse ser o primeiro a encontrá-la se ela estivesse viva, de modo a poder silenciá-la. Mas não o fez. Imagino que todas as fendas naquela ravina foram examinadas por todos nós isoladamente ou em companhia.

É a verdade, — disse Rhodri MacDowell, falando de repente da escuridão.

Está bem, está bem, — disse Alastair.

O grupo começou a mover-se e os homens se dividiram para recomeçar as buscas. Vi Nicholas ao meu lado. Disse brevemente, com a voz rouca de fadiga:

—        Isso é um absurdo, Gianetta. Volte imediatamente para o hotel.

Eu estava cansada demais para me aborrecer com esse tom.

—        Não posso ainda. Não agüentaria ficar lá sentada esperando, enquanto os Cowdray-Simpsons ouvissem notícias da escalada do Everest, sem saber do que está acontecendo.

—        Não adianta nada você ficar aqui, — disse Ronald Beagle. — Volte, procure descansar e não pensar em nada do que está acontecendo. E por falar em Everest... Esqueci-me de dizer que a notícia chegou ainda há pouco. O Everest acaba de ser escalado!

Houve um murmúrio de interesse e, por um momento, a sinistra tarefa em que aqueles homens estavam empenhados foi esquecida e várias perguntas ansiosas foram feitas a Beagle. Ele as respondeu com a sua calma habitual, mas logo se afastou sozinho e, em breve, o grupo se desfez e os homens saíram dentro da escuridão em diversas direções para continuarem as suas buscas. Ouvi-os afastarem-se, discutindo animadamente a notícia dada por Beagle. Ele havia deliberadamente guardado silêncio sobre a notícia para dá-la no momento em que isso fosse preciso para incentivar de novo os homens. Senti ainda maior admiração por ele.

Ao meu lado, Nicholas voltou a falar com voz irritada.

—        Escute aqui, Gianetta.

Roderick interveio.

—        Deixe-a em paz, sim?

Que diabo está dizendo? — Algumas lanternas estavam acesas nas proximidades e, à luz delas, vi que o rosto de Roderick estava pálido e contraído por uma espécie de fúria nervosa. Havia nos olhos com que encarava Nicholas uma expressão sombria e perigosa.

Ouviu muito bem o que eu disse! Não tem nada com o que Janet faça e eu tenho a impressão de que ela prefere que a deixe em paz.

Era uma cena violenta e se acendera tão rapidamente que eu fiquei sem saber ao certo o que estava acontecendo. Quando compreendi, atribui tudo a Marcia.

— Parem com isso, — disse eu com voz enérgica. — O que eu faço é exclusivamente de minha conta e de mais ninguém. Mas ele tem razão, Roderick. Não sou de nenhuma utilidade aqui e, portanto, vou voltar para o hotel. Quero é que ambos me deixem em paz. Estamos todos cansados e nervosos, de modo que uma cena não adiantará nada. Vou pegai essas garrafas térmicas e tudo mais para levar para o hotel. Chegando lá, irei diretamente para a cama.

Ajoelhei-me e comecei a arrumar as canecas e as garrafas térmicas numa cesta. Nem olhei para Nicholas. Ele não disse uma palavra, mas eu o vi jogar fora o cigarro com um gesto brusco. Virou-se depois e desapareceu na escuridão, tomando a mesma direção que Ronald Beagle. Roderick disse-me então:

—        Tem uma lanterna?

—        Tenho, sim. Não se incomode comigo que eu sei o caminho. Vá ajudar os outros. E, Roderick...

Sim?

Veja se a encontra, sim?

Vou fazer o possível.

Em seguida, desapareceu também. Arrumei na cesta tudo o que pude encontrar à luz de minha lanterna. Depois, descansei alguns minutos, acendendo um cigarro. Mas meus nervos estavam tensos e a rápida cena entre os dois homens com todos os seus curiosos subtons, me havia perturbado mais do que eu queria reconhecer.

Já estava bem escuro. Atrás de mim, as encostas cintilavam de vez em quando com a luz esparsa das lanternas e eu ouvia, deformados pelo vento, os gritos ocasionais dos homens. Chegava-me de vez em quando o som dos sapatos ferrados na pedra e duas vezes, à minha esquerda, ouvi um grito de animal, que me pareceu de uma raposa.

Levantei-me afinal, apaguei o cigarro com o pé, apanhei a cesta e comecei a descer a encosta. Afastei-me bem da ravina e fui descendo cuidadosamente com a ajuda da lanterna pelas pedras roladas do cascalho. Sabia que dentro em pouco iria encontrar a trilha que me levaria à subida para o morro An't Sròn. O vento me batia com força no rosto com o seu claro cheiro de mar, de relva e de turfa. Afinal, descobri que havia chegado à trilha para o morro.

Daí por diante, a marcha era mais fácil, mas eu ainda prosseguia lenta e cautelosamente, atrapalhada pela cesta e pela lanterna, que não me deixavam mão livre se eu escorregasse. Assim, só depois de uma hora do início da minha jornada de volta, cheguei às urzes da crista que ligava Blaven a An't Sròn.

Estava com tanto medo de tropeçar ou de afastar-me do caminho que desci a encosta com os olhos colados ao pequeno círculo de terreno alumiado pela lanterna. Mas quando cheguei ao nível das urzes na crista, senti algo de diferente no vento que me soprava no rosto. Mesmo quando identifiquei o cheiro de fumaça, continuei sem sentir alarma e sem compreender.

De repente, levantei os olhos e vi uma coluna de fumaça que se elevava cerca de cem metros à frente.

A fogueira estava acesa. A fumaça da madeira úmida se enovelava sobre o céu escuro, mas havia um núcleo escarlate de chama.

Creio que fiquei bem um minuto ali olhando a fogueira enquanto meu cérebro registrava lentamente o fato de que alguém, que não tinha sabido do acidente, acendera a fogueira comemorativa da Coroação. Vi então diante da fogueira o vulto escuro de um homem.

Foi como se uma mola fosse acionada em minha memória, mostrando uma velha imagem. Uma coluna de fogo com a sombra de um homem dançando grotescamente diante dela. Era uma pira fúnebre, na qual o corpo de uma moça assassinada estava estendido para o sacrifício...

Roberta!

Era para isso que o assassino havia reservado o corpo de Roberta!

Deixei cair a cesta no chão e corri como uma louca para a pira fumegante. Não sei bem o que pretendia fazer. Estava agindo simplesmente por instinto. Avancei gritando enquanto corria e levando a lanterna na mão como se fosse um martelo.

Ouvi um grito — de algum ponto às minhas costas — mas quase não lhe dei atenção. Continuei a correr desesperadamente, já sem poder gritar em vista de minha respiração ofegante. O fogo estava aumentando. A fumaça era tangida de lado pelo vento e turbilhonava em torno de mim numa nuvem sufocante.

Parei junto à pira e tentei proteger os olhos ao olhar para cima.

Vi que a fumaça se estendia em leque sob alguma coisa que estava no alto da pilha. Vi o vidro de um relógio de pulso luzir nas chamas. Vi uma bota que pendia com as traves da sola brilhando como pontas de fogo.

Avancei para a fogueira e estendi as mãos para agarrar o braço e a perna.

Uma sombra surgiu então da fumaça atrás de mim. As mãos fortes de um homem me agarraram e me puxaram para trás. Virei-me e dei uma pancada com a lanterna. O homem soltou uma praga e então me segurou com mais força. Debati-me desesperadamente e acho que gritei. A pressão do homem me esmagava. Por fim, ele tropeçou e eu fui jogada nas urzes molhadas, derrubada pelo pesado corpo do atacante.

Ouvi vagamente gritos, tropel de pés e uma voz que excla­mou ansiosamente "Gianetta!" Então, alguém afastou meu agressor de mim. Ouvi ainda a voz de Alastair, que dizia espantadamente:

—        Jamesy Farlane! Que é que está acontecendo, pelo amor de Deus?

Ao mesmo tempo, agarrou fortemente Jamesy. Foi Dougal Macrae quem me ajudou a levantar-me. Eu estava tremendo e, segundo creio, chorando.

—        Está bem, senhora? perguntou ele.

Agarrei-me a ele e sussurrei através dos lábios trêmulos:

—        Roberta... no fogo... depressa!

Ele me amparava com o braço. O seu enorme corpo tremia rambém e, quando compreendi por que, a compaixão me deu energia para refazer-me. Disse com voz mais calma:

—        Ela está morta?

Outra pessoa falou e eu voltei os olhos. Havia um homem de pé, um pouco afastado da fogueira. Era Hartley Corrigan e olhava para o que estava a seus pés.

—        Não é Roberta Symes, disse ele. É Beagle. Cor­taram-lhe o pescoço.

Dormi até tarde na manhã seguinte, depois de uma noite de pesadelos e acordei num mundo luminoso. A neblina ainda persistia em alguns picos e pousava como neve em algumas depressões das encostas, mas o vento havia amainado e o sol brilhava.

Mas não foi num estado de espírito correspondente ao esplendor do dia que eu desci para ter a notícia de que Roberta ainda não fora encontrada e de que a polícia tinha chegado. Não pude comer coisa alguma, mas tomei café e olhei pela janela da sala de jantar vazia até que Bill Persimmon apareceu, com um aspecto cansado e grave, e disse que a polícia queria dar-me uma palavra.

Por acaso, o detetive encarregado do caso de Heather Macrae havia chegado de Elgol naquela manhã para efetuar algumas investigações relativas ao caso anterior. Por isso, tomando conhecimento do novo crime mais depressa do que qualquer assassino teria esperado, o Inspetor Mackenzie, de Inverness, apareceu em cena, acompanhado de um sargento enorme, jovem e ruivo, chamado Hector Munro. Um médico, chamado apressa­damente pelo telefone de madrugada, já havia examinado os corpos de Marion e de Beagle e um guarda já fora mandado para o local da nova fogueira a fim de proteger quaisquer indícios porventura existentes, até que o Inspetor pudesse chegar ali depois dos seus interrogatórios preliminares no hotel.

Essas informações me foram dadas apressadamente por Bill Persimmon, enqfcanto me levava para uma pequena sala, onde o Inspetor se havia instalado.

Eu estava nervosa e não me senti de modo algum tranqüilizada quando vi que o Inspetor era um homem de meia-idade e aspecto bondoso, tom cabelos grisalhos e olhos cinzentos pro­fundos, muito enrugados nos cantos como se ele risse demais. Levantou-se quando entrei e me apertou a mão cerimoniosa­mente. Sentei-me na cadeira que indicou e, assim, ficamos um defronte do outro, diante de uma mesinha. Ao lado dele, o enorme sargento esperava com um bloco de apontamentos na mão, fazendo a mesa, a cadeira em que estava e, na verdade, a sala toda parecerem menores.

—        Muito bem, Srta. Brooke... — disse o Inspetor e olhou para uma pilha de papéis à sua frente, como se estivesse em dúvida quanto à minha identidade e quisesse certificar-se. — Chegou aqui no sábado à tarde, não é verdade?

—        Sim, Inspetor.

—        E, antes de chegar aqui, já tinha sabido alguma coisa sobre o assassinato de Heather Macrae?

Não pude dissimular a minha surpresa.

Claro que não!

Não chegou a ler alguma coisa nos jornais?

Que eu me lembre, não.

— Ah.. . — Olhou mais uma vez para os papéis na mesa e perguntou: — Quem foi que lhe disse?

Respondi cautelosamente, sem saber aonde ele queria chegar:

Percebi, em virtude de insinuações e meias-palavras de várias pessoas, que tinha acontecido alguma coisa terrível e perguntei ao Sr. Grant e ele me contou.

Teria sido o Sr. Roderick Grant? — perguntou ele, pegando em alguns papéis, enquanto o sargento fazia uma anotação.

Sim. E o Sr. Hay tornou a me falar do caso na manhã seguinte. — Voltei-me para o sargento e acrescentei polidamente: — Sr. Hubert Hay, Pega Leve.

Muito bem, — murmurou o Inspetor, apertando por um momento os olhos. — Fiquemos nisso por enquanto. Foi a senhora quem encontrou o corpo do Sr. Beagle na fogueira, não foi?

— Foi ou, ao menos, fui a primeira pessoa a chegar ao local. Não sei quem foi que tirou o corpo da fogueira.

O Inspetor olhou diretamente para mim pela primeira vez e eu vi que os olhos dele estavam impessoais, remotos e até muito frios. O efeito, naquele rosto bondoso, era desconcertante e um pouco alarmante.

—        Quando foi que notou que haviam acendido a fogueira?

—        Quando já estava bem perto dela. Conhece bem o morro. Inspetor Mackenzie?

—        Tenho andado muito por lá ultimamente.

—        É claro, disse eu. Que pergunta a minha! Ele sorriu.

—        E temos um mapa. Agora, Srta. Brooke, tenha a bon­dade de dizer o que aconteceu quando desceu da montanha a fim de voltar a este hotel.

Disse-lhe tudo. Ele escutou em silêncio, com os olhos cinzentos plácidamente fixos em mim. Ao lado dele, o sargento ruivo também placidamente tomava as suas notas.

... e vi então um vulto de homem perto da fogueira.

Só um?

Só.

Não o reconheceu?

Não.

Estava ele nessa ocasião carregando ou arrastando algum corpo?

Não. Estava apenas movendo-se à beira da fumaça e esta era impulsionada fortemente pelo vento. Lembrei-me então... do outro crime e pensei que Roberta estivesse sendo assassinada dessa vez...

Roberta?

Sim, Roberta Symes, a moça que está desaparecida. Por falar nisso, Inspetor, não acha que devíamos estar todos procurando...

Há gente que está tratando disso, murmurou ele calmamente. Continue.

Foi só isso. Corri para a fogueira. Não sei o que pensava que pudesse fazer. Vi alguma coisa um corpo no alto da fogueira e quando tentava tirá-lo de lá, o assassino me atacou.

Na realidade, disse o Inspetor calmamente, quem a atacou foi Jamesy Farlane.

—        Eu sei e é por isso...

Ele me interrompeu.

—        Bem, vamos ver se situamos bem as coisas. Compreende sem dúvida que o Sr. Beagle não poderia estar morto havia muito quando a senhora o encontrou. Não avistou, nem passou por ninguém quando descia para o An't Sròn?

Ninguém.

Ouviu alguma coisa ? Passos ou o que fosse?

Nada. De vez em quando ouvia os homens gritando lá em cima no cascalho, mas só isso. Quando vi a fogueira e dei um grito, alguém gritou muito perto atrás de mim, mas até esse momento eu não havia percebido essa pessoa. O vento estava muito forte e...

Está bem, — disse ele, parecendo estar mais uma vez com a atenção concentrada na mesa. — Viu o Sr. Beagle vivo pela última vez quando o grupo se separou para continuar as buscas ontem à noite?

Sim.

Reparou a direção que tomou?

Desceu a encosta.

Sozinho?

Sim.

Tem certeza?

Tenho.

Está bem. Vamos voltar à fogueira. Correu para ela e gritou. Reconheceu quem foi que gritou bem perto às suas costas?

Não, não reconheci, Mas presumi que fosse Alastair Braine, pois foi ele quem afastou Jamesy Farlaine de mim. Deve ter chegado sem demora. Dougal Macrae estava lá também

Quer dizer que o Sr. Alastair Braine foi o primeiro a chegar ao local e com muita rapidez? Quem mais estava lá?

O Sr. Corrigan. Estava de pé ao lado da fogueira. Ele tirou o corpo da fogueira. Deve ter descido juntamente com Alastair.

Não, — murmurou o Inspetor, olhando para cima da mesa. — Os dois me disseram que chegaram separadamente. Quem mais estava lá?

Ora... ninguém.

Jamesy Farlane e Dougal Macrae. o Sr. Braine e o Sr. Corrigan, todos ali segundos depois de seu grito. Quem mais?

Não sei. Não vi ninguém mais.

Está bem — disse ele, olhando-me firmemente e depois desviando o olhar. Tive a desagradável impressão de que ele chegara a alguma conclusão naqueles últimos cinco minutos. Arrumou displicentemente alguns papéis e disse sem olhar para mim: — Fez a reserva de seu quarto há uma semana ?

É verdade.

Depois do assassinato de Heather Macrae?

Acho que sim. Eu não sabia...

—        Está bem. O Sargento Munro já anotou a sua declaração nesse sentido... Fez a reserva de seu quarto com o nome de Sra. Nicholas Drury, não foi, Srta. Brooke?

Era absurdo que aquele homem me estivesse tratando como se eu fosse uma testemunha hostil que tivesse alguma coisa a esconder. Era absurdo que eu estivesse ali toda nervosa só porque a atitude do inspetor deixara de ser inteiramente cordial.

Mas esse é meu nome, — disse eu, sentindo-me ao mesmo tempo culpada e arrogante.

Por que então, mudou de nome logo que chegou aqui? E por que a senhora e seu marido têm feito tudo o que é possível para não tomar conhecimento da presença um do outro?

Ele não é mais meu marido. Divorciamo-nos há quatro anos. Eu não sabia que ele estava aqui. Assim que o vi, logo na primeira noite em que cheguei, troquei de nome no registro do hotel para evitar indagações e estranhezas desagradáveis.

Compreendo, — disse ele, sorrindo de repente. — Desculpe se lhe causei alguma inquietação. E a senhora nos ajudou muito, muito mesmo.

Mas isso, por mais estranho que fosse, não contribuiu absolutamente para tranqüilizar-me. Disse então incisivamente:

Mas que importância tem mais tudo isso? Já descobriram o assassino e...

Já descobrimos o assassino? — perguntou ele, arqueando as sobrancelhas.

Jamesy Farlane! — exclamei. — Quem mais poderia ser? Ele estava junto à fogueira e me atacou ali. Que mais quer o senhor?

Muito mais, — disse o Inspetor Mackenzie com um sorriso. Farlane diz que estava voltando do hotel depois de ter trazido a maca. Estava no sopé de An't Sròn, quando viu a fogueira se acender. Subiu mais que depressa e já estava quase no alto do morro quando ouviu o seu grito e a senhora chegar correndo e lançar-se contra a fogueira. Teve receio de que a senhora se queimasse e tratou de afastá-la de lá. A senhora bateu nele com a lanterna e, nessa luta, ambos rolaram pelo chão... Foi isso mesmo que ele disse, Hecky?

Exatamente, Inspetor, — disse o sargento.

Está vendo? — perguntou-me o Inspetor Mackenzie.

Pode ser verdade, — murmurei.

—        Claro que pode, principalmente em vista do fato de que Dougal Macrae estava com ele nessa ocasião.

Houve um breve silêncio. Por fim, ele se levantou e começou a juntar os seus papéis. Levantei-me também.

Se puder, falarei depois com a senhora, disse ele. Mas, no momento, tenho de subir ao An't Sròn. Abriu a porta para mim com toda a cortesia. Estará o dia todo aqui, não é?

Vou subir também, disse eu, sem poder dissimular a aspereza em minha voz. Há ainda uma pessoa desaparecida, sabe?

Não me esqueci disso, declarou ele, fechando a porta depois que eu passei.   

Duas noites e um dia eram um tempo excessivo para alguém passar na montanha. Creio que já então havíamtos abandonado todas as esperanças de encontrar Roberta viva. A princípio, eu ficara muito animada com o fato de que não se haviam encontrado quaisquer vestígios dela nas proximidades do local onde fora encontrado o corpo de Marion Bradford. Uma queda direta no mesmo lugar matá-la-ia com certeza. Desde que ela não fora encontrada, isso indicava que sofrera ferimentos leves e conseguira arrastar-se até algum lugar onde se abrigara. Mas, se ainda estivesse consciente, não poderia deixar de ter ouvido os grupos de socorro. E duas noites e um dia, mesmo no verão, era tempo demais...

Já havia desistido de minha sinistra hipótese, segundo a qual o assassino a terceira pessoa avistada em companhia das duas moças tinha levado do local Roberta, viva ou morta, por motivos próprios. Se o assassino das fogueiras e o assassino que cortara a corda de Marion eram a mesma pessoa e podia ter-se quase certeza disso não teria decerto atirado o pobre Beagle na sua segunda fogueira, se tivesse à mão o corpo de Roberta.

Não podia acreditar que ele tivesse qualquer motivo real para matar Ronald Beagle. Era mais lógico supor que estivéssemos lidando com um maníaco. Havia uma falta de motivos revoltante em todos aqueles crimes. O que Hubert Hay dissera, a respeito de um "sacrifício" se me impunha vigorosamente ao espírito.

Mas eu não fazia idéia da maneira pela qual esses dois crimes rituais na fogueira se ajustavam à morte de Marion e Roberta. Pelo menos, pensei, enquanto subia mais uma vez a trilha em companhia de Hubert Hay, havia alguma coisa que podíamos fazer. A descoberta de Roberta ou do corpo de Roberta poderia ajudar a policia na sua caçada a um assassino que era evidentemente um louco.

O sol brilhava fortemente no céu azul. No dia anterior, sob um céu cinzento e pesado, tinha sido fácil imaginar a montanha como um cenário para uma tragédia, mas naquele dia, com o sol traçando arabescos dourados nas folhas dos fetos e levantando do mato um forte cheiro de coco, o Blaven não era mais una montanha sinistra. O verão o fazia renascer. Os pássaros esvoaçavam e chilreavam e a vegetação surgia por toda a parte, nos menores recantos da rocha nua.

Os grupos de socorro pareciam afinal ter abandonado o Repuxo Negro e se haviam espalhado pela montanha, procurando no cascalho e nas encostas cobertas de urzes. Hubert Hay me disse que um dos grupos tinham subido aos penhascos acima de Sputan Dhu e tinha-se perdido de vista nas imediações do cume. Compreendi, vendo com mais nitidez a encosta, cheia de cavernas, fendas e ravinas, que um corpo podia ficar uma semana ou um mês na montanha sem ser encontrado. Hubert Hay me disse que alguns montanhistas se tinham perdido havia alguns anos e ainda não tinham sido encontrados.

Quando chegamos ao ponto onde eu vira na véspera Roderick descer do Sputan Dhu, ouvimos um grito e vimos, à nossa direita, um pequeno grupo de homens, um dois quais — parecia Hartley Corrigan — agitou os braços e gritou alguma coisa.

—        Será que a encontraram? — perguntei ansiosamente.

—        Não parece, — disse Hubert Hay. — Devem ter resol­vido adotar um novo plano de buscas. Vou descer e falar com eles.

Ele começou a se encaminhar para onde estava o grupo e eu, ficando sozinha, olhei durante algum tempo para as pedras que estavam acima de mim. Notei que estava quase diretamente abaixo do ponto onde fora encontrado o corpo de Heather Macrae, Tive por um momento a idéia macabra de que ali também, no alto daquela plataforma enegrecida, encontraríamos Roberta. Afugentei então esse pensamento como se fosse um resto dos pesadelos da noite e voltei os olhos para a estrada mais acessível que subia para o Repuxo Negro.

Sabia que aquela área já tinha sido vasculhada por homens que conheciam infinitamente mais a montanha do que eu. Mas há dentro de nós alguma coisa que se nega a contentar-se com o que dizem os outros por mais dignos de confiança que sejam. Os outros podem dizer à vontade que procuraram alguma coisa e não a encontraram, mas nós só ficamos satisfeitos quando procuramos pessoalmente. Pensei que era muito possível que algum canto tivesse passado despercebido.

Comecei teimosamente a subir pelas pedras e urzes ao lado do Sputan Dhu.

Não era nada fácil. As pedras estavam secas nesse dia e não havia vento, mas cada pedra representava uma dificuldade e, entre as pedras, havia buracos traiçoeiros ocultos por uma camada muito leve de vegetação. Comecei em breve a transpirar abundantemente e sentia a cabeça muito tonta de tanto olhar por baixo das plataformas entre os rochedos. Continuei, sem perceber a que altura havia chegado, quando a exaustão me fez parar e eu aprumei o corpo e me voltei para o caminho por onde havia subido.

Alguma coisa me feriu quase imediatamente a vista — um pontinho luminoso no meio das urzes, um reflexo de metal. Abaixei-me para ver melhor de que se tratava.

Era um broche de um tipo muito comum na Escócia, vendido em todas as lojas de curiosidades, um círculo de metal prateado com uma pedra semipreciosa chamada de cairngorm. Apanhei-o pressurosamente. Tive imediatamente certeza de que Roberta usara aquele broche naquela primeira noite no hotel. Limpei o broche, acendi um cigarro e sentei-me, pensando. Aquilo significava sem dúvida que Roberta passara por ali — e isso eu já sabia graças ao que dissera Dougal Macrae. Mas aquele broche tinha para mim todo o interesse da descoberta e me fez continuar com renovada esperança pelas encostas desertas.

Eu estava longe das vistas do grupo e não podia mais ouvir as vozes dos homens. Os únicos sons que atravessavam o ar do verão eram o murmúrio da cascata e o canto dos pássaros. Olhei para o íngreme paredão de pedra acima da ravina, tentando imaginar o que teria acontecido ali dois dias antes.

Pensando em tudo agora, compreendo que esse momento foi um dos mais estranhos de todo o caso. Se eu não tivesse sido tão ignorante — e tão sem juízo — dos riscos daquela subida nas imediações do Sputan Dhu, se eu me tivesse conten­tado com as aparências (como os outros estavam naquele mo­mento fazendo), eu também teria abandonado a ravina e iria procurar em outro canto e o caso poderia ter tido um final bem diferente. Mas fiquei ali ao sol fumando e pensando que.

acontecesse o que acontecesse, eu tinha de continuar e apurar por mim mesma se Roberta estava ou não daquele lado do Sputan Dhu. Apaguei, portanto, o cigarro e reiniciei a minha busca.

Não sei quanto tempo levei. Subi, esgueiriei-me, olhei, abrindo caminho por entre os matos e rastejando pelos lugares mais improváveis. A princípio, chamava-a de vez em quando pelo nome, mas, em breve, senti-me tão cansada que não gritei mais. Continuei a subir e a olhar, cada vez mais convencida de que Roderick tinha dito a verdade quando afirmara que havia procurado tudo ali palmo a palmo. Roberta não estava ali.

Afinal, quando já estava quase desistindo, escorreguei quan­do investigava no alto de uma plataforma. Esta era suficientemente larga e eu creio que não estava realmente correndo perigo, mas a borda da plataforma se projetava sobre a ravina e eu estava tão assustada que tive de sentar-me, recostada no paredão de pedra para recuperar a calma e a coragem.

O sol batia de chapa na plataforma. Os picos altaneiros vedavam todo o som, salvo o murmúrio da água que rolava. Eu podia estar a centenas de quilômetros de tudo. O silêncio era denso, fantástico, apavorante. Eu estava ali parada, ouvindo as batidas de meu coração.

Foi então que ouvi o gemido.

Vinha de algum ponto à esquerda e atrás de mim.

Levantei-me num instante, com a fadiga e o medo inteiramente esquecidos.

—        Roberta! — gritei com voz rouca e esperei.

Ouvi de novo o gemido como de um animal. Parecia vir de algum ponto da plataforma, um pouco afastada dela, dentro da própria pedra... Dei as costas resolutamente para a ravina, voltando-me para o penhasco e me encaminhei tão depressa quanto possível para o ponto de onde vinha o som.

Cheguei a uma projeção de pedra que fazia uma espécie de curva na plataforma e olhei para o outro lado, sentindo o coração bater desordenadamente. Além da projeção, a plataforma corria paralelamente à ravina, subindo pouco a pouco e terminava numa estreita fenda no penhasco. Podia ver tudo de onde eu estava. Nada havia ali. Nada.

Tornei a gritar:'

—        Roberta!

Esperei. Nada. O sol batia sobre a rocha nua.

—        Roberta!

Ouvi então, de novo, o leve gemido.

Passei cuidadosamente em torno da projeção de pedra e continuei pelo outro lado da plataforma. A princípio, houve espaço bastante até para mim, que não estou habituada a montanhas, mas quando a mesma se foi estreitando e, ao mesmo tempo, subindo, parei, desorientada e com medo. Não havia, sem dúvida, coisa alguma na plataforma. Mas era certo que alguém tinha estado ali. Eu tinha visto marcas de bota até à curva. Mas devia estar-me deixando levar pela imaginação.

Nesse momento, ouvi de novo o gemido, mas dessa vez à esquerda, num ponto por onde eu já havia passado.

Olhei para trás, quase tonta de confusão e excitação, com o coração batendo e com as mãos e as pernas não muito firmes.

Foi então que vi a solução do enigma. Eu tinha passado com o corpo muito encostado pela projeção de pedra e não havia percebido que, atrás dela e internando-se bem no paredão de rocha, havia uma estreita fenda. Era dissimulada por uma verdadeira esteira trançada de urzes e mato, mas havia um pequeno espaço embaixo, por onde alguém podia ter passado...

Puxei desesperadamente os matos. Não era fácil, mas arranquei-os aos poucos, deixando cair os pedaços lá embaixo. Algumas pedras rolaram, mas consegui arrancar a cortina verde e expor uma abertura, por onde o sol entrou a jorros, iluminando o que era na realidade uma caverna seca.

Ela estava ali decerto. Estava deitada, toda encolhida, com as costas para a parede da caverna. Uma das pernas encon­trava-se dobrada num ângulo estranho e as mãos estavam feridas e cobertas de terra e sangue seco.

Mas estava viva. Entrei correndo na caverna para ajoe­lhar-me ao lado dela. Os olhos estavam fechados e o rosto cheio de vivacidade de que eu me lembrava tão bem estava terrivelmente pálido e recoberto de uma leve transpiração que lembrava um envólucro de celofane. O rosto estava tão descar­nado que o nariz se projetava como um bico de pássaro.

Enfiei a mão trêmula por baixo do casaco vermelho e procurei sentir-lhe o coração...

A sombra de um homem se estendeu pelo chão da caverna.

Ouvi então a voz de Roderick, que dizia:

—        Meu Deus! Você a encontrou!

Voltei-me com um grande suspiro de alívio.

Oh, Roderick! Afinal alguém chegou, graças a Deus! Ela está viva e...

Viva? — exclamou ele, como se não acreditasse. Entrou na caverna, aproximou-se e tornou a perguntar: — Viva?

—        Está, sim. Estava gemendo. Foi por isso que a encontrei. Ficou de joelhos ao lado de mim, movendo as mãos pelo corpo de Roberta, com o rosto fechado.

—        Está viva, sim, Janet, mas apenas viva... Tenho receio...

Calou-se, examinando delicadamente a cabeça de Roberta. Ela gemeu e se agitou um pouco. Eu disse então:

—        Vou ficar com ela, Roderick. Vá chamar os outros. Irá mais depressa do que eu!

Ele deu a impressão de que não me tinha ouvido. Estava ainda examinando Roberta e parecia absorto. Por fim, disse com súbita autoridade:

—        Deixei minha mochila no começo da plataforma, Janet. Está com o meu cantil de conhaque. Quer ir buscá-la?

Saí no mesmo instante. O sol me envolveu em claridade e calor quando saí da porta da caverna. Ouvi Roberta gemer de novo e murmurar alguma coisa na voz confusa do delírio. Percebi uma palavra: "Marion..."

Parei de repente, quando as terríveis conseqüências do encontro de Roberta me ocorreram pela primeira vez. Olhei para Roderick no instante em que ele voltava a cabeça e nossos olhos se encontraram. Percebi que ele havia tido o mesmo pensamento que eu.

—        Roderick, — murmurei. — Ela sabe quem foi...

É claro que sabe, — disse ele. — E vai ficar viva até nos dizer quem foi. Vá buscar o conhaque, sim?

É preciso agasalhá-la. Tome meu casaco... Temos de dar-lhe um pouco de calor até chamarmos os outros.

Tirei o casaco e ele se ajoelhou para embrulhar Roberta nele.

Disse então com voz alterada:

—        Não pense que a vou deixar aqui, correndo perigo ao lado dela. Não vou deixar também você andar sozinha por estas montanhas. Vá buscar o conhaque enquanto eu olho a perna dela. Depois, chegue até à borda da plataforma e grite até aparecer alguém. Se desconfiar de quem aparecer, grite por mim, que estarei aqui. — Sorriu então e acrescentou: — Não tenha medo. Agora, vá buscar o conhaque.

—        Está bem, — disse eu.

Mas, quando fiz menção de levantar-me, Roberta voltou a agitar-se. Os lábios se entreabriram de novo num gemido e as pálpebras começaram a bater.

—        Está voltando a si, — disse eu num sussurro. O coração me batia violentamente. Roderick me agarrou o ombro.

Roberta abriu então os olhos. Olhou por um momento para mim, como que espantada e confusa, e olhou para o lado. Alguém mais vinha pela plataforma.

As mãos de Roberta se moveram febrilmente entre as minhas, como animais assustados. Os olhos se lhe dilataram numa expressão de puro terror. Em seguida, tornou a perder os sentidos.

Olhei para a entrada da caverna e vi Hartley Corrigan, seguido logo depois por Nicholas. E ouvi a voz de Alastair que seguia os outros pela plataforma.

Alma Corrigan estava esperando no início da plataforma e foi chamada com um grito. Com a chegada dos outros, minha responsabilidade diminuía e eu tive tempo de sentir o enfraque­cimento da tensão nervosa que acompanha a reação. De repente, a exaustão pareceu abater-se sobre mim como uma onda avassa­ladora e foi com inconfundível satisfação que me vi empurrada para um lado pela Sra. Corrigan que começou, com a ajuda de Roderick, a cuidar de Roberta. Ouvi-a dar rápidas ordens para os primeiros socorros, enquanto Roderick dizia a Nicholas que fosse chamar os outros e pedisse uma maca.

A caverna estava cheia de gente, mas, lembrando-me do terror que percebera nos olhos de Roberta, fiquei onde estava. Se qualquer dos presentes fosse o assassino que tinha levado Roberta quase à morte, parecia pouco provável que pudesse concluir a sua sinistra tarefa ali antes que ela pudesse falar e identificá-lo... mas eu não ia correr riscos. Continuei observando os outros que cuidavam de Roberta.

Por fim, ouvi um grito de Nicholas mais abaixo. Respon­deram com um grito mais distante. Depois disso, não pareceu que muito tempo houvesse passado quando os homens chegaram com as macas e eu pude afinal abandonar meu posto e deixar a plataforma para eles.

Dougal Macrae fazia parte do grupo, juntamente com o jovem Iain e com certeza Hubert Hay não era a terceira pessoa na ascensão, desde que estava comigo em Sgurr na Stri quando Marion caíra e morrera. Roberta estava em segurança — a não ser que o assassino tivesse já completado a sua obra e ela fosse morrer em conseqüência das provações por que passara.

Mas, pelo menos, fora encontrada. A longa tensão chegava ao fim. Fiquei sentada nas urzes, esperando que a maca fosse descida da plataforma. Levantei o rosto para o sol, fechando os olhos e sentindo, pela primeira vez em dois dias, algum sossego. A tarde quente, impregnada do cheiro doce das urzes, mostrava em cada canto de pássaro a normalidade do dia e do lugar. E quando, com murmúrios e o ranger nas pedras dos sapatos ferrados, a maca foi descida da plataforma e levada pela encosta, senti-me estranhamente aliviada, como se o pior tivesse passado.

Eu tinha esquecido que bastava Roberta abrir a boca e falar para que um homem — um homem que eu conhecia — acabasse enforcado e depois enterrado num pátio de prisão.

O Inspetor Mackenzie, em companhia do enorme sargento Hecky e de Neill, o jovem encarregado da polícia local, estava no Ant' Sròn quando a maca foi levada para o vale. O sargento ficou onde estava e prosseguiu na sua tarefa que parecia ser um exame minucioso do terreno em volta da fogueira, mas o Inspetor Mackenzie, depois de olhar para Roberta, afastou o jovem Neill do que fazia e o levou consigo para acompanhar a maca até ao hotel.

Logo que ele soube que eu é que havia encontrado Roberta, desligou-se comigo um pouco para trás do grupo principal e começou a interrogar-me. Disse-lhe tão exatamente quanto me era possível o que se havia passado. Ele escutou em silêncio, mas logo que eu acabei me fez repetir tudo, fazendo uma pergunta sobre isto ou sobre aquilo, de modo que eu devo ter repassado tudo o que fiz e disse desde o momento em que ouvi o primeiro gemido até à chegada do grupo com as macas. Enquanto eu falava, caminhando cansadamente ao lado dele no vale, percebi que a precária tranqüilidade que me havia animado no alto da montanha estava quase desaparecida e que eu voltara a vaguear pelos ermos cinzentos da incerteza e da desolação. E o terror me invadiu de novo, a tal ponto que eu me atrapalhei duas ou três vezes na minha narrativa. Mas contei, com absoluta since­ridade, tudo o que havia acontecido e de que eu me lembrava, deixando-o tirar as conclusões que quisesse.

Ele então me espantou. Olhou para mim e disse:

Vou colocar o jovem Neill de guarda permanente junto àquela moça e mandaremos pedir a remessa imediata de uma enfermeira. Mas, na melhor das hipóteses, ela só chegará aqui amanhã, pois o médico me disse hoje de manhã que a enfermeira do distrito está a braços com um caso difícil. Mas alguém tem de cuidar de Roberta Symes até a enfermeira chegar. Entende alguma coisa de enfermagem?

Muito pouco, mas...

Ótimo então. Fique com ela esta noite e tome conta dela. Quer fazer isso para mim?

É claro que sim. Mas não acha melhor que isso seja feito por alguém mais competente e com mais experiência? A Sra. Corrigan parece saber o que está fazendo e imagino que a Sra. Persimmon...

Sem dúvida, — disse ele secamente. — Mas será que ainda não compreendeu que a senhora é a única mulher que não estava aqui no hotel na época do primeiro crime?

Sim... acho que sim... Mas, Inspetor, não é possível que o senhor suspeite de alguma mulher!

Talvez não, mas acontece que a Sra. Corrigan e a Sra. Persimmon têm maridos. E eu não quero no quarto de Roberta Symes ninguém que possa estar envolvido. Ninguém, seja a que pretexto for, está entendendo?

Se está querendo referir-se a Nicholas, fique sabendo que não tenho mais nada com ele e que não o deixarei entrar de modo algum.

Não, não é a isso que me estou referindo, — disse ele, quase com indulgência. — Mas posso contar com a senhora ou não?

É claro que pode. Mas, escute, quer dizer com isso que eu sou a única pessoa aqui de quem o senhor não suspeita?

Vamos dizer que não suspeito de que a senhora queira matar Roberta Symes, está bem?"

E, com isso, chegamos ao hotel. Desde que o corpo de Marion Bradford estava no quarto onde ela se havia hospedado com Roberta, o qual tinha sido trancado pela polícia, sugeri que Roberta fosse levada para a outra cama no meu quarto. A sugestão foi aprovada pelo Inspetor e aceita com gratidão pelos Persimmons, que já estavam perturbados além da conta com tudo aquilo. Deixei Roberta quando a Sra. Persimmon e a Sra. Cowdray-Simpson a acomodavam na cama sob a vigilância de Neill e do Inspetor e fui tomar um banho.

Quando voltei para o meu quarto, achei a lareira acesa com a água de uma chaleira cantando nas barras. Entre outras coisas, havia meia garrafa de conhaque na mesinha de cabeceira.

O Inspetor havia saído, mas a Sra. Persimmon ainda estava ocupada com alguma coisa junto à lareira e Neill se levantou de uma cadeira e sorriu timidamente para mim. Era um rapaz desenvolvido de talvez vinte anos, de movimentos adolescentes de uma graça desajeitada e com os cabelos pretos e os olhos azuis de um verdadeiro celta.

—        O Inspetor Mackenzie me pediu que lhe dissesse que o médico em breve estará aqui. Deseja que a senhora fique aqui comigo até o médico chegar.

—        É claro. O que é preciso fazer por ela?

A Sra. Persimmon levantou-se e disse:

—        Colocamos algumas bolsas de água quente na cama e ela está bem aquecida. Temos agora apenas de aguardar o médico. — Curvou-se, preocupada, sobre a cama de Roberta, ajeitando desnecessariamente os cobertores. — Se ela recuperar os sentidos suficientemente para engolir, podemos dar-lhe um pouco de chá... e eu vou descer e fazer para ela uma boa xícara de caldo. Mas creio que é só o que podemos fazer no momento.

—        A não ser vigiá-la, — disse calmamente Neill. Olhamos ambas para ele e eu disse incertamente:

Tudo isso é de amedrontar, Neill. Acha mesmo que o assassino tentará entrar aqui para atingi-la?

Se ela falar, nós levaremos o assassino à forca, — disse ele simplesmente.

Aproximei-me da cama e olhei para Roberta. Estava muito inquieta e, embora me parecesse um pouco melhor, ainda estava alarmantemente pálida. O rosto parecia pequeno e insignificante e o corpo dava também a impressão de que se havia encolhido. Talvez aqueles lábios ressequidos nunca mais voltassem a falar. Era duvidoso que valesse a pena um assassino incorrer em tremendos riscos só para fazê-la calar-se.

Mas, justamente no momento em que eu a olhava, ela se moveu, gemeu e bateu as pálpebras. A cabeça foi agitada de um lado para outro no travesseiro.

—        Pronto, — disse a Sra. Persimmon da lareira. — Aqui está o chá.

Deixamos cair algumas gotas de chá entre os lábios dela e vimos com satisfação a contração dos músculos da garganta, enquanto ela engolia. Comecei a dar-lhe o chá bem açucarado às colheradas, esperando ansiosamente que ela recuperasse a consciência.

—        Vou buscar o caldo, — disse a Sra. Persimmon, saindo em seguida do quarto.

O telefone tocou. Levei um susto e derramei um pouco de chá em cima da cama. Neill atendeu, escutou e depois me disse:

O Inspetor já vai subir. O médico está aí.

Graças a Deus!

Um minuto depois, abrimos a porta para o Inspetor Mackenzie e para o médico e vimos a maneira competente pela qual este examinou Roberta. Por fim, levantou as cobertas e disse ao Inspetor:

—        Não vejo nada demais, a não ser a perna. Há algumas contusões e ferimentos, mas isso sarará com o tempo. Da perna é que temos de cuidar agora. Vou precisar de Mary Persimmon para ajudar-me e de mais uma pessoa.

Olhou para mim, mas o Inspetor apressou-se em dizer:

—        Não, a Srta. Brooke já fez bastante hoje e, além disso, vai ser a enfermeira da noite. Diga à Sra. Persimmon que traga uma das empregadas e eu também vou ficar aqui. Pode dar as suas ordens pelo telefone.

O médico pegou o telefone e o Inspetor Mackenzie se voltou para mim.

— Pedi à cozinheira que lhe preparasse alguma coisa. Desça daqui a pouco e vá comer. Telefonarei quando precisarmos de novo da senhora.

Roderick estava no hall. Devia estar à minha espera porque, logo que me viu, encaminhou-se ansiosamente para o pé da escada.

Ela está bem? Que é que diz o médico?

Não disse muito. Acha que a única coisa que ela tem de grave é a perna quebrada, mas eu penso que as duas noites que passou naquela caverna acabarão por matá-la.

O médico julga que ela tem chances?

Não me disse nada. Mas deve ter tantas chances quanto qualquer outra pessoa que passasse pelo que ela passou. Afinal de contas, é jovem e forte e achou um canto seco para ficar ao abrigo do vento e da chuva.

Ainda está inconsciente?

Está, sim.

Ela vai-se recuperar, disse ele com confiança. Depois que lhe encanarem a perna... É o que estão fazendo agora, não é?

Sim e a Sra. Persimmon está ajudando. Felizmente, mandaram-me descer.

Foi bom. O seu aspecto não está bom, Janet. Não vai mais voltar, não é?

Tenho de voltar. O inspetor quer que eu passe a noite no quarto com ela.

Mas é um absurdo! exclamou ele, irritado. Você já fez muito mais do que devia! Por que a Sra. Corrigan não fica com ela?

Está tão cansada quanto eu.

A Sra. Cowdray-Simpson então?

Bem, o Inspetor Mackenzie me deu a entender que eu não estou incluída na sua lista de suspeitos.

Não? — disse ele e apertou os olhos azuis. — Será que ele suspeita de alguma das mulheres?

Tenho a impressão de que ele suspeita de todo o mundo, — disse eu, contrafeita. — De qualquer maneira, não sou casada com qualquer suspeito, compreende?

Fez menção de dizer alguma coisa, mas calou-se, apertando os lábios. Baixou os olhos para o tapete.

Não se incomode comigo, Roderick, — disse eu. — Tenho apenas de fazê-la de vez em quando tomar alguma coisa e dormirei nos intervalos. Estarei bem confortavelmente lá, com o fogo aceso, uma chaleira para fazer chá e tudo o que é preciso!

E o Inspetor pensa... — murmurou ele, correndo os olhos pelo hall e então baixando a voz. — O Inspetor pensa que Roberta ainda corre algum perigo... do homem?

As últimas palavras soaram soturnamente no hall vazio. Baixei a voz para responder.

Acho que sim. Mas vai tomar providências. Roberta estará perfeitamente em segurança e eu também. Portanto, não se preocupe...

Está bem, não me vou preocupar. Na realidade, — disse ele com voz grave e um pouco abstrata, — na realidade, penso que você é talvez a única pessoa neste hotel que não...

—        Que não é suspeita dos crimes?

—        Não, que não corre perigo algum da parte do assassino. Lançou-me, então, um estranho olhar hesitante que poderia

ser uma mistura de compaixão e de temor, bem como de alguma coisa mais que achei difícil de interpretar. Senti um baque no coração e não lhe pude enfrentar o olhar. Voltei-me para a porta do salão e disse numa voz tensa:

—        Vou pedir um drinque.

Havia muita gente no salão, reunida em pequenos grupos em torno da lareira acesa. Havia um murmúrio de conversação, que cessou logo que entrei. Todos os olhos se voltaram para mim e houve então uma fuzilaria de perguntas.

—        Como está ela? — perguntaram quase a uma voz a Sra. Cowdray-Simpson, o Coronel, Hubert Hay e Alastair.

—        Já disse alguma coisa? — perguntou Alma Corrigan. Aproximei-me da lareira e estendi as mãos para o fogo.

—        O médico está agora com ela, tentando consertar-lhe a perna. A não ser isso, parece que as lesões são superficiais e o médico nada me disse a respeito das suas chances de recuperação. — Olhei para Alma Corrigan, que estava com um copo de uísque vazio na mão, com um aspecto assustado, e disse: — Não, ainda não disse nada.

Quando me virei para pedir um drinque, vi que Hartley Corrigan se havia aproximado da mulher e se sentara no braço da poltrona dela. Assim era muito melhor, pensei, lembrando-me de Mareia. Uma coisa era certa, ela estava livre de tudo aquilo, embora me tivesse sido muito agradável a presença de outra pessoa que estivesse na mesma posição equívoca em que eu estava. Nada havia nas maneiras das pessoas que estavam no salão que sugerisse que alguém se aborrecia com o fato de ser eu a única pessoa no hotel isenta de suspeita, mas eu me sentia isolada e inquieta entre elas. E tinha havido alguma coisa ofensivamente protetora na maneira pela qual Hartley Corrigan se aproximara da mulher.

A Sra. Cowdray-Simpson levantou os olhos do seu inevi­tável tricô e disse:

—        Espero que a polícia tome todas as precauções necessá­rias para proteger aquela moça dessa fera solta entre nós.

A frase pareceu curiosamente chocante e ela pareceu compreender isso, porque correu os olhos pelo salão por trás dos óculos e disse, quase como se estivesse a defender-se:

Há um assassino aqui no salão. Disso ninguém pode fugir.

Necessariamente não, — disse Alastair. — Não estamos todos aqui. Grant, Drury e Persimmon, para não mencionar Jamesy Farlane... diminuem um pouco as probabilidades, Sra. Cowdray-Simpson.

Quais são as probabilidades que eu faço diminuir? — disse Roderick, passando pela porta envidraçada, com um copo em cada mão.

Estamos começando a aceitar a sério o tato de que alguém neste hotel é um assassino, — disse Alastair.

Roderick me entregou um copo e disse com alguma frieza:

Que é que adianta discutirmos isso? Imagino que a polícia já deve estar bem dentro do caso. Em geral, pode-se ter confiança nessa gente para fazer um bom trabalho.

Se cuidarem bem de Roberta e a fizerem ficar boa, — disse a Sra. Cowdray-Simpson, — ela fará o trabalho por eles.

Um homem da polícia vai ficar de guarda a ela a noite toda, — disse eu.

O jovem Neil Graham? Será que ele é suficiente?

Vou ficar com ela também, — disse eu. — Ela está em meu quarto.

Oh...

Tornei a sentir a quase imperceptível retirada do grupo que me deixou isolada diante da lareira, ilhada pela minha inocência.

Não vai ter medo? — perguntou Alma Corrigan com um tom de malícia na voz, real ou imaginado por mim.

Creio que não, — disse eu, tomando um gole de bebida e olhando para o grupo por cima da borda do copo. — Onde está o Sr. Drury?

Acho que foi até à garagem, — disse Hubert Hay. — Foi ver se deixou um livro no carro.

— Por quê? — perguntou Alma Corrigan e, dessa vez, o veneno era inconfundível em sua voz. — O Inspetor lhe pediu que vigiasse todos os nossos movimentos?

Fiquei vermelha até à raiz dos cabelos, mas me contive e disse com voz bem calma:

Sra. Corrigan, não fui comissionada, como a senhora insinuou, para ser espiã da polícia. Acontece que estou na posição cômoda de não ser suspeita, apenas porque não estava aqui quando o primeiro crime foi cometido e, desde que tudo indica que há apenas um assassino e não dois, eu não posso ser culpada. Por isso é que o Inspetor pode deixar-me com Roberta até que a enfermeira chegue.

É monstruoso sugerir... — murmurou Roderick, irritadamente, olhando para Alma Corrigan, mas eu o interrompi.

Está certo, Roderick. E a sugestão, afinal de contas, não é tão monstruosa assim. Estou certamente cooperando com a polícia, e creio que todos nós estamos. E, se isso compreende dar parte dos movimentos de qualquer pessoa a qualquer tempo, eu farei tudo o que for possível nesse particular...

Bem, devo dizer... — murmurou Alma Corrigan, mas o ma.rido pousou a mão no braço dela e ela se calou.

Disse-lhe friamente:

—        Não é preciso dizer que não se trata de um caso da polícia contra um grupo de suspeitos. Trata-se do caso de um assassino contra todos os que estão aqui.

—        Muito bem! — exclamou inesperadamente Hubert Hay. O Coronel Cowdray-Simpson tossiu. O seu rosto pareceu de repente remoto e austero, com uma agudeza curiosamente reservada que a sua delicadeza havia escondido até então. Era ao mesmo tempo uma atitude imponente e compassiva, uma atitude mais de juiz que de soldado.

É mais do que isso, minha cara jovem, — disse-me ele. — Cada crime de morte é caso do assassino contra todo o ser humano civilizado. Quando um homem comete um crime de morte, desliga-se automaticamente do resto da humanidade. Digo mais, desde que a simples idéia da extrema violência física ocorre a um homem como uma solução aceitável para qualquer problema, perde ele o direito a ser considerado uma criatura civilizada.

É uma afirmação muito categórica, Coronel, — disse Roderick.

Assim o são os meus sentimentos a respeito do crime, — disse Cowdray-Simpson.

E, sendo militar, o senhor aplica os mesmos princípios às nações, como aos indivíduos?

Sem dúvida alguma.

A atos de guerra?

A atos de agressão. Parece-me a negação do progresso intelectual feito durante séculos que uma nação faça da violência um instrumento da sua política.

Apesar disso, — murmurou obstinadamente Alma Corrigan, — é absurdo que todos nós sejamos tratados como suspei­tos. A polícia deve ter alguma idéia sobre quem é o culpado.

Se ainda não tem, terá no momento em que Roberta Symes puder falar, — disse Hubert Hay.

Houve então um estranho silêncio.

Depositei meu copo com um baque no vidro de uma me­sinha.

—        Muito bem, — disse eu. — Para tranqüilidade de todos os que aqui estão e não são assassinos, prometo que Roberta ficará em segurança até que possa falar.

Saí então da sala.

Não havia necessidade de muita coisa, pensei, para fazer cair o verniz de polidez e civilização das pessoas que se viam ameaçadas de algum perigo. Tinha havido algumas fortes correntes ocultas no salão naquela noite e eu tinha a impressão de que, quem as pudesse seguir, estaria com meio caminho andado para desvendar o mistério. Diante dos fatos, pensei enquanto atravessava o hall e descia o corredor para a cozinha, eu absolveria o Coronel. Ele se havia mostrado inteiramente convencido dos seus princípios. Contudo, seria justamente assim que um assassino inteligente procederia e era indiscutível que o assassino que nos ameaçava era inteligente. Era um ator capaz de esconder os instintos de um lobisomem sob um exterior impecavelmente civilizado. Ninguém no salão naquela noite, ouvindo a sua condenação, e afirmação do seu completo isola­mento em relação aos outros, pestanejara sequer. Mas podia ser também que o assassino não estivesse naquele momento no salão... Havia outras possibilidades, como Alastair acentuara.

Dobrei um canto do corredor e dei de frente com Nicholas. Esbarrei nele e ele me pegou pelos braços para que eu não caísse.

—        Ora, ora, — disse ele brandamente. — Aqui está a nossa jovem auxiliar da polícia. O Inspetor não está por estes lados, querida.

Perdi então a calma e olhei furiosamente para ele, ao mesmo tempo que procurava desvencilhar-me.

—        Largue-me, está ouvindo? Largue-me! Como se atreve a falar comigo dessa maneira? Não tem esse direito...

Não se cansa de dizer isso? Aonde é que vai?

Não é da sua conta!

—        É da conta de qualquer pessoa nestes lugares perigosos impedir você de andar à noite sozinha.

—        Vou à cozinha comer alguma coisa e estou com pressa. — Onde está seu admirador?

— Que é que está dizendo?

—        Estou falando de seu belo apaixonado dos cabelos de ouro. Por que não a está escoltando?

—        Você sempre teve língua ferina, Nicholas.

—        Não é mesmo? Talvez para um escritor seja uma quali­dade valiosa, mas para um marido...

—        Exatamente. Agora, deixe-me passar.

Um momento apenas. Estou-lhe falando a sério, Gianetta. Acho que está abusando do direito de andar por todo canto aqui sozinha — ou com alguém que você não conhece. Se tivesse um pouco de juízo, compreenderia que o assassino não está brincando. Não tem medo?

Até há poucos minutos, não, — disse eu provocan­temente.

Não sei o que me fez dizer isso. Arrependi-me no instante em que falei, mas já era muito tarde. Ele me largou os braços e ficou olhando para mim. Pensei que devia estar ouvindo as batidas de meu coração...

        Ah... — disse ele depois de alguns instantes de silên­cio. — É essa então a sua idéia?

Eu tinha vontade de fugir dele para as luzes e o calor da cozinha, mas era mantida ali, colada à parede do corredoi pelas marteladas que sentia no coração.

Tem então receio de que eu a mate, Gianetta? Acha mesmo que eu poderia fazer isso, Gianetta? Julga que eu iria cortar esse lindo pescoço... e tudo por quê? Por amor aos tempos idos?

Precisa de uma razão? — minha voz era um sussurro que me pareceu muito estranho. Aquilo não podia estar acontecendo. Não podia estar havendo aquela conversa fantástica...

Ele ficou a me olhar em silêncio durante algum tempo, com o rosto imperscrutável à luz incerta. Por fim, perguntou num tom inteiramente diferente:

Quais são suas provas?

Não tenho provas.

E, se as tivesse, você me entregaria à polícia... sem pensar nos tempos idos?

A fantasia... se adensava em torno de nós como uma teia de aranha. Era como se Nicholas estivesse perguntando se eu queria mais dinheiro para as despesas de casa. Levei as mãos à cabeça.

Não sei.. - Nicholas...

E você... não... sabe...

O tom dele fez-me subir o sangue ao rosto.

Nicholas, — disse eu desesperadamente, — procure compreender...

Você foi minha mulher.

Eu sei, mas...

Você costumava dizer que não acreditava em divórcio.

Eu sei, — disse eu, um pouco aflita. Era mesmo como nos velhos tempos. Em todas as discussões, eu sempre acabava forçada à defensiva. Ouvi de novo insinuar-se em minha voz o tom habitual de justificação, fraco e irritante. — Não fui eu que tive a culpa de nosso divórcio.

Ainda assim, de acordo com o que costumava dizer, devia considerar-se ainda ligada a mim... ou já não... agora?

Agora? Não estou compreendendo...

Não? Estou falando de seu admirador louro.

—        Não me aborreça, Nicholas!

Ele teve um breve riso seco.

—        Você está às voltas com um problema difícil, não é, Gianetta? Lealdade moral contra dever cívico... ou a situação se simplifica a ponto de ser o velho amor contra o novo? Você se livraria de uma porção de dificuldades se me pudesse entregar à polícia neste momento, não é mesmo?

A revolta que me dominou foi tão real e material como uma pancada. Fiquei fria e falei com voz bem calma:

Se você estivesse no salão ainda há pouco, teria ouvido o Coronel Cowdray-Simpson externar opiniões que coincidem com as minhas. Disse ele que quando um homem comete um ato de violência, como um assassinato, se isola dos seus seme­lhantes e renuncia aos seus direitos humanos. Se eu ainda fosse sua mulher... legalmente... eu não concorreria para incri­miná-lo, ainda que pudesse, porque, como sua mulher, estaria identificada com você em tudo o que você fizesse... mas eu o abandonaria. Não poderia ficar ao seu lado, sabendo que você era...

Caim ?

Sim. . .

E na situação atual?

Na situação atual... — disse, vendo com horror que minha voz estava entrecortada por soluços, — na situação atual... eu não sei... Agora, deixe-me passar...

Ele se moveu sem dizer uma palavra e eu passei correndo por ele, rumo à cozinha.

Na cozinha, havia luz, calor e o cheiro bom da comida. A cozinheira estava ocupada no fogão e uma das moças que serviam às mesas estava às voltas com pilhas de pratos.

Chegando à porta, hesitei, subitamente consciente das mãos trêmulas e das lágrimas nos olhos, mas a cozinheira olhou para mim, sorriu e apontou para um lugar que estava preparado com prato, talher e guardanapo numa ponta da grande mesa da cozinha.

Já lhe vou dar seu jantar, disse ela. Não demora nada. O Inspetor disse que a senhora quer jantar agora.

É muita bondade sua. Espero que não lhe esteja dando muito trabalho.

Não é trabalho nenhum, disse a cozinheira, sem se afastar do fogão. Effie, sirva um prato de sopa à senhora.

Effie era magra e morena, com uns olhos muito grandes que me envolveram, cheios de curiosidade. Trouxe-me um prato de sopa fumegante e colocou-o à minha frente com cuidado, quase como se eu fosse capaz de mordê-la. Recuou então dois ou três passos, levantando a ponta do avental.

—        Depressa, Effie! disse a cozinheira. Leve agora o pão para a sala de jantar!

Effie saiu, lançando-me antes um olhar prolongado. Quando a porta de mola se balançou depois da saída dela, a cozinheira largou a grande colher que tinha na mão e disse com voz rouca:

—        Que horror todos esses crimes! Fazem o sangue da gente gelar nas veias!

Fiz mecanicamente um sinal de assentimento. A sopa quente era maravilhosamente reconfortante e as luzes fortes da cozinha concorriam para dissipar o efeito da conversa fantástica que se desenrolara havia pouco antes no corredor. A cozinheira apoiou as mãos gordas e vermelhas no outro lado da mesa e me olhou com uma espécie de prazer profissional.

Está gostando da sopa, hem?

Estou, sim. Está excelente.

Já está dando um pouquinho de cor ao seu rosto. Achei que estava muito branca quando entrou aqui. Ouvi dizer que foi a senhora quem encontrou a moça...

Fui eu, sim. Tive sorte.

Quem teve sorte foi ela de ainda estar viva, sabe? Muitas outras pessoas não tiveram a mesma sorte... e eu não me lembro de um verão pior do que este!

Bem, não é todos os anos que há crimes de morte. — disse eu.

Não, graças a Deus, — disse ela, tirando meu prato de sopa e pondo à minha frente um prato de carne de carneiro com ervilhas e batatas. — Mas eu não estava falando só disso. Estava pensando também nos acidentes nas montanhas.

Oh! — exclamei, lembrando-me de que já me haviam dito alguma coisa a esse respeito. — Quer dizer que este ano tem sido mesmo pior do que de costume?

Claro que sim, moça. Essas duas foram o terceiro aci­dente que tivemos nesta temporada, sem contar os crimes de morte.

Quais foram os outros?

Bem, houve um casal de Londres... Os dois subiram nas Cuillin sem mapas, nem bússola. Só foram, encontrados uma semana depois no fundo de um precipício.

Que horror! Perderam-se na neblina?

O dia em que subiram estava claro como um copo de água. Ninguém sabe o que aconteceu.

É triste ter de pagar com a vida alguma negligência.

De fato é, mas estas montanhas exigem muito cuidado, como disse o homem que está estendido lá em cima e homem que entendia de montanha estava ali. Torta de maçã?

Quero, sim. Muito obrigada, cozinheira. Deve estar boa como o resto de sua comida.

Não está má, — disse ela com complacência, vendo-me provar a sua torta deliciosa. — Depois, houve os dois estudantes da universidade. Rolaram por um precipício e tiveram o mes­mo fim.

Mortos?

—        Como pedras. A corda se partiu.

Depositei a colher e o garfo no prato vazio e fiquei a olhá-los. Mas não estava vendo. Via mentalmente dois pares de montanhistas que subiam as Cuillin... e em cada caso outro homem subia com eles e em presença dele as cordas se quebravam e as pessoas rolavam para a morte...

—        Café agora? — perguntou a cozinheira.

— Será muito bom, mas acho que vou levá-lo para cima. O médico já deve ter acabado o seu serviço e a Sr a. Persimmon há de estar querendo descer.

Como estava a moça quando saiu de lá? — perguntou a cozinheira, servindo-me café numa grande xícara azul.

Não estava muito bem. Mas eu tenho a impressão de que vai ficar boa.

Graças a Deus. Pronto o seu café. Ê melhor levar enquan­to está quente. Muito ou pouco açúcar?

Pouco. Muito obrigada. Tudo estava muito gostoso e me fez um grande bem.

Tenha muito cuidado, ouviu? Não se esqueça de trancar tudo muito bem à noite.

Fique descansada, — disse eu, saindo, enquanto ela voltava para o seu fogão.

Não havia ninguém no corredor. Percorri-o apressada­mente com um pouco de receio e cheguei ao hall. Nicholas estava lá, debruçado sobre o balcão da gerência a conversar com Bill Persimmon. Viu-me, mas, além de um breve arquear de sobrancelhas, não deu a menor demonstração disso. Passei sem dar-lhe atenção e subi a escada quase correndo, equilibrando a minha xícara de café.

Encontrei no patamar a Sra. Persimmon e uma empregada.

—        Ah, está de volta, Srta. Brooke! — disse a Sra. Per­simmon com um ar um tanto aflito que não era de espantar. — Já jantou?

Já e muito bem. Muito agradecida.

Ótimo. Acho que a polícia a está esperando agora.

Como está a Srta. Symes?

—        Quase não sei. Ainda está inconsciente e o médico não me quis dizer nada... Uma pena, uma pena...

Desceu então a escada, seguida pela empregada que levava uma porção de roupa suja. Ouvi-a lamentar-se quando segui pelo corredor e bati na porta de meu quarto.

O Inspetor abriu.

—        Ah, entre, Srta. Brook.

Fechou a porta cuidadosamente depois que eu passei. O médico não estava mais no quarto. Robertaj, na cama, estava muito quieta e pálida, tão pálida que eu perguntei:

Ela está bem, Inspetor Mackenzie?

O médico acha que sim. Diz que ela se vai recuperar.

Que bom!

E a senhora? Comeu alguma coisa?

Comi. A cozinheira me serviu o jantar na cozinha.

Como se sente agora? Sorri.

Pronta para tudo... Mas espero que me diga o que devo fazer, antes de me deixar sozinha com ela.

O médico deixou instruções minuciosas e eu as anotei para a senhora. Estão ali naquele papel em cima da mesinha de cabeceira. Quase que só tem é de encher as bolsas de água quente e conservar o quarto aquecido. Pode dar-lhe um pouco de caldo ou de chá com algumas gotas de conhaque, o que ela aceitar. O médico teve de sair para ir fazer um parto, mas se houver algum problema fale comigo e eu telefonarei para o hospital de Broadford pedindo orientação.

Quer dizer que eu terei de mandar Neill chamá-lo?

Não. Fale pelo telefone. Estarei no quarto em que estava Mareia Maling. Não hesite em telefonar até se se sentir nervosa ou preocupada.

Está bem.

Muito bem. — Voltou-se para Neill, que aparecia na porta. — Já sabe o que tem a fazer, Neill. Instale-se confortavelmente e vigie tudo. O Sargento Munro virá rendê-lo às duas horas da madrugada e eu aparecerei de vez em quando para ver se tudo está correndo bem. Duvido muito que algum de nós pregue olhos esta noite. — Olhou para a janela e acres­centou: — Vai haver cerração esta noite. É uma pena. Sempre atrapalha... — Estendeu a mão e fechou a janela, passando o trinco. — Não se importa de ficar um pouco abafada aqui dentro?

Em vista das circunstâncias, de modo algum.

Está bem, então. Vou deixá-la. Creio que temos à nossa frente uma noite muito comprida, mas segura. O Major Persimmon vai deixar o dínamo funcionando a noite inteira, de modo que não faltará luz. Tudo em ordem com você. Neill?

—        Tudo, Inspetor.

Ele olhou para mim.

Tem o sono leve ou pesado?

Muito leve, eu acho.

Não é preciso então ficar acordada a noite toda. A moça vai dormir e, se precisar de você, Neill a acordará. Repouse um pouco nos intervalos, certo?

Certo.

Então, boa noite.

Inspetor Mackenzie...

Ele já estava à porta e se voltou com a mão na maçaneta.

Sim?

Há algumas coisas... de que deve tomar conhecimento.

Importantes?

— Não sei ao certo...

É alguma coisa que me permita prender imediatamente o assassino?

Isso não...

Ele me olhou de maneira diferente e disse:

Acha que já sabe quem é, não é assim?

Não! — exclamei com tanta violência que fiquei espan­tada e o Inspetor também se surpreendeu.

—        Neste caso, o que é pode ficar para amanhã, — disse ele. Saiu. Atravessei o quarto e passei a chave na porta.

A noite foi-se arrastando. Eu cochilava perto do fogo com A Noiva de Lammermoor nas mãos, lutando contra o sentimento de desesperado cansaço que ameaçava dominar-me. Neill estava sentado ao lado da cama de Roberta, com o corpo comprido tranqüilo e descansando na cadeira de vime, de costas para mim e para o resto do quarto. Roberta se moveu uma ou duas vezes, mas a respiração dela parecia mais calma e a cor parecia bem melhor, de modo que foi com a consciência tranqüila que acabei largando o livro e decidi dormir um pouco.

Atravessei o quarto na ponta dos pés e me aproximei da cama.

—        Boa noite, Neill. Vou tirar um cochilo...

—        Boa noite, senhora, disse êle, sem virar a cabeça e, por mais absurdo que fosse, senti alívio ante essa calma resposta. Dava-me sossego e mostrava que, apesar de todas as precauções, apesar da presença de Neill, eu ainda me sentia muito nervosa. Senti-me aborrecida com isso enquanto dava corda em meu relógio na mesinha de cabeceira e tirava os pés das chinelas. O quarto estava com a porta e a janela trancadas e Neill, o sólido e firme Neill, estava ali ao alcance de minha voz, enquanto na outra ponta do fio do telefone o Inspetor Mackenzie montava guarda.

Levantei o edredão e me deitei, enrolando o robe em torno do corpo. Sentia um cansaço generalizado, mas tinha receio de que isso me fizesse dormir tão profundamente que eu não ouvisse Roberta mover-se. Havia outros receios que me conservavam muito perto do limiar da consciência...

E assim foi. Meu sono foi agitado e eu acordava ao fim de períodos de sono que podiam ser de alguns minutos ou até de uma hora de duração. Duas vezes, Roberta se mexeu e gemeu, fazendo-me acordar no mesmo instante. Mas ela logo voltava a dormir. Houve um momento, logo depois da meia-noite, em que ela pareceu acordar quase. Levantei-me então para aquecer uma xícara de caldo. Neill e eu conseguimos fazê-la engolir uma dez colheres até que ela virou a cabeça para o lado com um breve gesto voluntarioso e voltou a dormir. Em outra ocasião, lembro-me de que aqueci mais água para as bolsas de água quente e, depois, do revezamento dos guardas às duas horas da madrugada, quando o Sargento Hector Munro tomou o lugar de Neill. Lembro-me também, como num sonho que se repete, de ter ouvido duas vezes a voz do Inspetor Mackenzie do outro lado da porta, querendo saber se tudo estava correndo bem. Pela madrugada, o sargento preparou chá — bem forte — e eu bebi toda encolhida sob o edredão até que me levantei para encher de novo as garrafas de água quente.

Eu sabia que estava fazendo a minha tarefa com muita eficiência, mas devo ter passado aquela noite num estado inter­mediário entre a vigília e o sono, de modo que, procurando recordar tudo agora, não sei ao certo onde terminou a realidade e o pesadelo começou. Na verdade, a minha recordação agora é de uma noite de contínuo pesadelo, no qual a realidade comum das tarefas que me cabiam desempenhar não podia afugentar as sombras que pairavam inquietamente nos cantos daquele quarto iluminado pelo fogo da lareira. O tiquetaque do relógio, o zumbido doméstico da chaleira que fervia — esses sons tran­qüilos se tornavam para mim, que cochilava naquelas horas arrastadas, coisas deformadas de pesadelo — manifestações tão fantásticas e aterradoras como as sombras que as chamas da lareira faziam dançar no teto. Sombras e fogo... sombras através da claridade... sombras que se acumulavam no instante em que eu contemplava a imagem de um assassino gesticulando diante das chamas, dançando alucinadamente em torno de uma pira que crescia e se dilatava até tornar-se um vulcão rubro, uma verdadeira montanha do inferno... E então o próprio Blaven surgia diante de mim, iluminado pelas chamas. E um montanhista isolado e sem rosto passava por aquela maldita ravina, com um pedaço de corda cortada na mão. Em algum ponto, uma faca cintilava e eu ouvia o sussurro de duas vozes em contraponto, misturadas com o barulho da água corrente...


Você era minha mulher... Já sabe quem é, não sabe? Está com um problema difícil... Já sabe quem é... não sabe?

O meu "Não!" me acordou finalmente em tal sobressalto que eu fiquei sem saber se tinha falado em voz alta e procurei sentir a vibração de minha voz entre as sombras. Ou fora o sargento que havia falado? Ou talvez Roberta? Levantei o corpo, apoiando-me num cotovelo e olhei para ela. Ela se agitava como se estivesse sentindo pequenos acessos de dor, mas não foi isso que me fez o coração parar e o corpo enregelar-se no seu pequeno ninho sob o edredão. O sargento não estava no quarto.

Quando reagi a isso de uma maneira que traiu o lamentável estado de meus nervos, vi-o diante do fogo como se fosse o fantasma de meu sonho. Mas esse fogo não lançava mais sombras sinistras pelo quarto, e isso pela pior das razões. Estava quase apagado.

Olhei para o meu relógio e vi que eram quatro e um quarto. Eu não havia dormido muito e o sargento não devia ter dormido um só momento, mas, apesar disso, o fogo de turfa, mal arrumado, tinha diminuído e morrera numa massa inerte de blocos negros.

Ora, um fogo de turfa não é coisa muito fácil para um amador. Uma vez aceso, é admiravelmente quente, uma incan­descente massa vermelha como o centro de um alto-forno. A Sra. Persimmon tinha tratado do fogo com perícia e Neill sabia também como agir, mas o sargento era da cidade, ao passo que eu era a mais canhestra das amadoras. Devíamos ter procedido de maneira muito inábil, pois o fogo tinha-se apagado quase por completo e quando o sargento tentou reanimá-lo acabou de apagar-se.

Saí da cama e cairei as chinelas, correndo em seguida para a lareira.

Não está dando jeito, Sargento?

Não.

Não haverá mais turfa?

—        Há de sobra. Acender é que é difícil. Sabe como é que se faz, moça?

—        Não sei de nada, mas pode-se tentar.

Havia uma pequena pilha de turfa ao lado da lareira. Ajoelhei-me ao lado do sargento e nós juntos arrumamos o combustível sobre as brasas ainda quentes e tentamos soprá-las para que pegassem fogo. Mas não deu resultado. As brasas empalideceram e se apagaram e a turfa continuou preta e inerte. Já fazia frio dentro do quarto.

—        Não adianta, — disse eu.

Olhamos um para o outro, desanimados e então levantei-me, mordendo os lábios. Eu tinha de colocar mais bolsas de água quente na cama de Roberta e tinha de estar pronta para preparar-lhe alguma coisa para beber. Tinha também de aquecer o quarto nas horas frias do amanhecer.

Desculpe, — disse o sargento. — Eu...

A culpa é tão minha quanto sua. De fato, nenhum de nós tem culpa de não saber trabalhar com isso. O que devíamos ter feito era pedir à Sra. Persimmon um pouco de lenha para manter o fogo aceso. Mas confesso que isso não me ocorreu.

Ele se levantou e limpou as mãos.

Vou pedir então ao Inspetor Mackenzie que traga um pouco de lenha, não acha?

Não deve ser difícil encontrar lenha, — disse eu. — Lembro-me de que o fogo do salão era de lenha.

Sei onde é, — disse ele, indo para junto do telefone. — De vez em quando, venho aqui ao hotel e... — Tornou a colocar o fone no gancho e olhou para mim. — Não atendem. Ele deve estar fazendo uma ronda pelo hotel.

É melhor então esperarmos?

Não. O fogo vai-se apagar de todo dentro de alguns minutos. Eu é que devo ir num instante.

Acha mesmo que deve ir?

Não podemos deixar o fogo apagado, podemos?

Claro que não.

Eu irei então. E, se não abrir a porta enquanto eu não voltar, não haverá perigo.

Bem... acho que não. Mas como é que eu vou saber que é você, quando voltar?

Baterei na porta assim.

Aproximou-se de mim e bateu de leve no rebordo da lareira, produzindo uma espécie de som como de um gafanhoto que pousasse numa folha... Ninguém, a não ser eu que estava a meio metro dele, poderia ter ouvido a batida dos seus dedos.

Está bem, mas pelo amor de Deus, não demore, Sar­gento...

Quer mais alguma coisa?

Se houver uma chaleira quente na lareira, traga-a. Assim, pouparemos tempo.

Está bem.

Será que não lhe vai acontecer nada?

Não se preocupe comigo. Eu daria um ano de meus vencimentos para me encontrar cara a cara com esse camarada. Não me demorarei mais de cinco minutos e, se me encontrar com o Inspetor Mackenzie, mandá-lo-ei imediatamente para cá.

Ele saiu e eu fechei e tranquei a porta. Ouvi-o descer calmamente o corredor. Silêncio.

O coração me batia com força e mais uma vez tive de fazer um esforço para dominar-me. Afastei-me resolutamente da porta e fui olhar Roberta. Ela parecia um pouco mais calma, com a respiração mais regular, mas as pálpebras se contraíam de vez em quando, como se a luz a incomodasse. Tirei de uma gaveta a minha charpa de seda verde e estendi-a sobre o abajur da cabeceira, depois do que fui cuidar do resto de fogo na lareira até que o sargento voltasse.

Ele foi surpreendentemente ligeiro. Eu tinha arrancado algumas páginas da revista de automobilismo e com elas e alguns restos de turfa estava conseguindo uma boa língua de fogo quando ouvi a leve batida na porta.

Já estava no meio do quarto quando compreendi que o som não era absolutamente o mesmo que o sargento havia combinado comigo.

Tornaram a bater. Eu estava a um metro da porta, com as mãos cerradas fazendo pressão em minhas coxas. O coração me batia em golpes lentos e angustiosos. Fiquei parada diante da porta como se fosse de mármore, enquanto os segundos corriam rapidamente no relógio da mesinha de cabeceira.

Ainda que lentamente, a maçaneta foi girada. Ainda que mansamente, a porta estremeceu quando alguém fez pressão sobre ela.

Se eu gritasse,, os outros acordariam e encontrariam o assassino ali, tentando chegar a Roberta. Aproximei-me da porta.

—        Alô? — disse eu, surpresa de que minha voz parecesse normal. — É você, sargento?

É claro que não era, mas se ele dissesse que era...

—        Não. — O vigoroso sussurro não era certamente do sargento. — É o Inspetor Mackenzie. Vim ver a moça. Quer abrir?

No mesmo instante em que aceitei a declaração com um assomo de alívio, fiquei de novo surpresa comigo mesma. Disse calmamente:

—        Um minuto, Inspetor. Vou vestir o robe.

Em três passadas, cheguei ao telefone e tirei o receptor do gancho. O relógio desfiava loucamente os segundos ao meu lado... dois, três, quatro segundos, sete arrastados anos-luz até que atenderam do outro lado e eu ouvi a voz do Inspetor Mackenzie:

—        Fala Mackenzie. Que é?

Coloquei a mão em concha em torno do bocal e sussurrei:

—        Depressa! Venha depressa! Ele está à porta!

O telefone foi desligado. Senti os joelhos se dobrarem e me sentei lentamente na cama, com o fone ainda na mão. Voltei o corpo, com a cabeça dura como a de uma boneca, para olhar a porta.

Não havia som, nem estremecimento da porta, nem movimento da maçaneta.

Houve então um rápido tropel de passos pelo corredor e uma voz.

Houve alguma coisa, Inspetor?

Onde era que estava, Hector Munro?

—        Fui buscar lenha, Inspetor. Desculpe. Houve alguma coisa?

Abriram-se portas. Ouvi a voz de Hartlev Corrigan per­guntar irritadamente:

Que é que está acontecendo?

Logo depois, a voz da mulher dele:

Houve alguma coisa?

—        Nada, Madame. Quer fazer o favor de voltar para a cama?

A voz do Inspetor baixou para um murmúrio tranqüili­zador e, desde que eu estava ouvindo três ou quatro vozes murmurando no corredor, abri a porta.

Os Corrigans estavam-se retirando para o quarto deles, que ficava defronte do meu. As únicas outras pessoas que pareciam ter sido perturbadas eram o Coronel Cowdray-Simpson e Hubert Hay, cujos quartos ficavam perto, no corredor princi­pal. Quando abri a porta, o sargento, que estava meio enver­gonhado diante do Inspetor com um feixe de lenha debaixo do braço e uma chaleira ainda fumegante na outra mão, me viu e veio pelo corredor, cheio de satisfação.

O Inspetor Mackenzie acompanhou-o. A voz dele ainda era baixa, mas clara e firme.

—        Não toque nessa porta, Hecky! Srta. Brooke, afaste-se da porta, sim?

Escute, Inspetor, — disse o Coronel Cowdray-Simpson, ainda surpreendentemente cheio de autoridade, apesar de um robe deploràvelmente velho e da ausência da dentadura, que é que está havendo?

Por favor, aceite a minha declaração de que não há nada demais. Pode tranquilizar a Sra. Cowdray-Simpson. E o senhor também, Sr. Hay. Prometo que, se precisar de ajuda, irei chamá-los, mas no momento...

Está bem, disse Hubert Hay com relutância, num maravilhoso robe de seda.

O Inspetor se aproximou afinal de mim e perguntou:

—        Qual é o problema?

A frase e a atitude eram tão convencionais para um polícia que eu senti um desejo absurdo de rir. Disse com voz entrecortada:

        Ele... ele... chegou à porta... e quis entrar... O assassino... Disse que.,.

Ele me tomou pelo braço e me levou gentilmente para dentro do quarto e fez que eu me sentasse na cama.

—        Sente-se. Não procure falar. Lançou um rápido olhar a Roberta e ficou aparentemente satisfeito. Hecky, acenda esse fogo... Não, pensando melhor, deixe isso comigo. Vá até o meu quarto, pegue minha mala e veja se há impressões digitais na porta. Olhou para mim. Disse que ele esteve na porta. Acha que tocou nela?

—        Sim. Empurrou a porta e rodou a maçaneta. Deu um pequeno resmungo de satisfação.

—        A maçaneta, Hecky. Deixe a porta aberta para que nenhum fantasma limpe nada antes de você voltar.

Teve uma exclamação de satisfação quando a lenha pegou fogo e as chamas subiram, crepitantes, pela chaminé.

—        Não viu ninguém quando veio para cá? perguntei.

Não, disse ele, arrumando a turfa com conhecimento de causa.

Ele deve ter-me ouvido quando eu telefonava para o senhor. Sinto muito.

—        Ao contrário, acho que fez muito bem.

—        Bem, não devia ter feito o sargento descer. Fui culpada de deixar o fogo apagar-se, mas não podia deixá-lo assim.

O Inspetor colocou a chaleira sobre a turfa e levantou-se, dizendo:

—        Poderia ter sido um golpe de sorte, se tivéssemos visto o assassino. Conte-me agora o que aconteceu.

Contei-lhe tudo enquanto Hecky trabalhava na porta e Roberta estava estendida na cama sob a pequena luz verde da lâmpada de cabeceira.

Ele escutou em silêncio, com os olhos em meu rosto.

—        Hum, — disse ele afinal. — O homem deve ter percebido Hecky lá embaixo. Isso não nos dá muito avanço, salvo num ponto,

—        Qual é?

—        Isso prova que Roberta Symes pode condená-lo. Foi ele a terceira pessoa, sem dúvida. Foi ele quem cortou a corda.

Perguntei-lhe diretamente:

Sabe quem é o assassino, Inspetor?

Já acabou, Hecky?

Falta pouco...

Por favor, Inspetor...

E então, Hecky?

Nada, Inspetor! Limparam tudo...

—        Como? — O Inspetor atravessou o quarto em rápidas passadas e foi examinar a porta. Disse por fim: — Está bem, Hecky. Feche a porta e volte para a sua cadeira. — Voltou para o quarto de cara fechada, murmurando: — Lá se foi a minha prova.

—        Prova? — exclamei. —- Sabe então quem é?

Sei. Ou, melhor, tenho uma hipótese muito segura... Mas uma hipótese não basta para um policial, que precisa de provas e provas não temos, nem um simples indício. Se aquela moça ali na cama não falar quanto antes, não sei o que pode acontecer. Esta noite, por exemplo, o assassino assumiu um grande risco e quase se saiu bem. Deus nos ajude, mas a verdade éque ninguém em seu juízo perfeito iria arriscar-se como ele se arriscou.

Pode ser que ele tente a sorte mais uma vez e se dê mal, — disse eu.

Sorte? Matou Heather Macrae e acendeu uma fogueira de cinco metros de altura no lado mais exposto do Blaven. Matou Marion Bradford no meio da tarde, quando era perfei­tamente visível do vale. Cortou o pescoço de Beagle a poucos metros de várias testemunhas. E agora isto. Passei a noite quase toda nesse corredor. Só desci para o escritório há vinte minutos. E então — só então — o fogo aqui se apaga e ele vê Hecky Munro sair e deixar você sozinha.

—        Sinto muito...

Ele sorriu para mim.

Não diga isso. Já lhe disse que não teve culpa. A senhora nos tem ajudado muito... A chaleira já está fervendo. Quer que eu encha as bolsas?

Não, pode deixar, — disse eu, levantando-me.

Ele se aproximou da cama de Roberta e olhou-a como se quisesse arrancar-lhe o segredo da pálida barreira do rosto da moça. Tinha a testa franzida, os cabelos desgrenhados e o queixo embranquecido pela barba grande. Estava com as mãos nos bolsos e os ombros encurvados. Parecia preocupado como um homem de meia-idade que acorda no meio da noite com o choro de uma criança. Virou então a cabeça e os olhos vivos e inteligentes não confirmaram a impressão desfavorável.

Incomoda-se de continuar sua vigilância?

Não.

Não mande mais Hecky sair.

Claro que não.

Não estarei junto ao telefone. Tenho algumas coisas para fazer. Mas não se preocupe. Talvez tudo vá acabar mais cedo do que se pensa. Nós o pegaremos. Nós o pegaremos...

Não havia mais bondade em seus olhos, mas uma frieza inflexível.

Quando mais uma vez fechei e tranquei a porta depois que o Inspetor saiu, fui cuidar de Roberta. Só vinte minutos depois, conclui minhas tarefas e aí todo o sono havia desaparecido.

Afastei a cortina e olhei pela janela. Havia ainda neblina. O leve acinzentado da primeira luz da manhã se filtrava através da névoa como a luz por uma pérola. O tempo estava úmido e frio e eu fiquei contente de voltar ao quarto aquecido e iluminado pelo fogo da lareira.

Hecky tinha feito mais chá e eu levei uma xícara para a cama comigo, desejando de novo ter alguma coisa interessante para ler. Aquela hora, senti o coração pequeno ao pensar em A Noiva de Lammermoor e eu tinha arrancado muitas páginas da revista de automobilismo. Restava O Ramo Dourado, uma coisa decerto estranha de encontrar num remoto hotel da Escócia. O título era agradável, mas eu tinha a vaga impressão de que, no seu estilo, era uma leitura tão pesada quanto A Noiva de Lammermoor. Referia-se às religiões primitivas e dificilmente seria um livro para ler na cama ou, sequer, para passar o tempo durante um dia de chuva em Skye, salvo, sem dúvida, no domingo, quando não havia pesca.

Mas alguém o estava lendo. Havia entre as páginas um velho envelope servindo de marca e, quando peguei, o pesado livro se abriu no lugar assim marcado.

Olhei-o, com leve curiosidade, e li:

Fogueiras Beltane. Nas montanhas centrais da Escócia, fogueiras, conhecidas como Fogueiras Beltane, se acendiam antigamente com grande cerimônia no dia Primeiro de Maio e os vestígios de sacrifícios humanos nelas eram particularmente claros e inequívocos...

Sentei-me na cama, olhando incredulamente para o livro, com o cérebro num turbilhão. Era como se as palavras tivessem explodido no silêncio do quarto e eu olhei para as costas largas de Hecky Munro sem poder acreditar que ele não tivesse sentido o impacto delas. Tornei a correr os olhos pelo livro e palavras e frases se destacaram em rápida sucessão... "Os sacrifícios eram, portanto, oferecidos ao ar livre, quase sempre no alto das montanhas... uma pilha de madeira ou de outro combus­tível... nas ilhas de Skye, Mali e Tiree.... usavam uma espécie de agarico que cresce em velhas bétulas e é muito combus­tível..."

Surgiu então entre a página impressa e em mim uma vívida imagem de um bosque de bétulas, tocado de prata e do rendilhado do verão, com pedaços de cogumelos ainda juncando o chão úmido entre as árvores de troncos lisos. E os leques pardacentos dos agaricos, pendendo, de palmas para cima, de alguns troncos. "Muito combustível..."

Continuei a ler a fria prosa tranqüila que apresentava sucessivas imagens — nas Hébridas, em Gales, na Irlanda — em todos os cantos célticos da terra acendiam-se essas fogueiras e executavam-se ritos que imitavam de maneira grotesca mas inocente os ritos sinistros e sangrentos de uma era antiga. Fogueiras no Primeiro de Maio, fogueiras no solstício de verão, fogueiras em novembro, durante anos sem conta, tinham purifi­cado o solo, protegendo o gado da peste, queimando as feiti­ceiras ...

"Queimando as feiticeiras". Outra recordação se me apresentou angustiosamente. Uma moça deitada nas cinzas com o pescoço cortado; a voz de Hubert Hay falando de magia e folclore e de escritores que tinham interrogado Heather Macrae sobre velhas superstições.

Descobri que tinha as mãos úmidas de suor e que a página do livro dançava diante de meus olhos. Tudo aquilo era absurdo, flagrantemente absurdo. Nenhuma moça moderna de dezoito anos, ainda que vivesse no canto mais remoto da terra, podia ser sacrificada como uma feiticeira. Essa parte era simplesmente inaceitável. Mas então por que a haviam matado e daquela maneira inconfundivelmente ritual? Não podia ser para proteger as plantações. Nem Jamesy Farlane, nascido e criado naquelas montanhas, podia ainda acreditar nisso...

Interrompi os meus pensamentos e continuei a ler. Fiquei sabendo como a fogueira do sacrifício era erguida e acesa, não com um "fogo manso" mas com fogo novo, o "fogo vivo" conseguido com carvalho fresco e alimentado com o agarico. Soube que todos os que acendiam o fogo novo tinham de virar os bolsos pelo avesso a fim de que todas as moedas e todos os objetos metálicos estivessem ausentes de sua pessoa. Tomei conhecimento de que, em alguns lugares, a pessoa que ateava o fogo devia ser jovem e casta...

A página impressa dançou de novo diante de meus olhos numa selvagem confusão de palavras. Cobri o rosto com as mãos e pensei, num lento e doloroso esclarecimento, em Heather Macrae, que era jovem e casta, e que se havia despojado de todos os seus patéticos enfeites de metal para fazer o fogo para o seu assassino. Devia ter achado tudo aquilo uma aluci­nação, pensando, porém, que era divertido, era "diferente", era a espécie de insensatez romântica a que se podia entregar um inteligente e erudito cavalheiro de Londres.

Meus pensamentos se afastaram desse inteligente cavalheiro de Londres e tentei em vão ajustar os outros crimes ao mesmo quadro de um ritual primitivo. Onde, nos planos dessa primitiva regressão de um assassino, se situava o assassinato de Beagle? Ou a corda cortada de Marion Bradford? Ou os estudantes universitários? Ou a boneca de Mareia Maling?

Tornava-se cada vez mais certo, em face da evidência do livro, que a única espécie de lógica em condições de ligar crimes tão diversos era a lógica falha da loucura. E não havia dúvida de que o livro havia inspirado o assassino. Eram muitos os paralelos entre as suas calmas afirmações e o assassinato ritual no alto do Blaven. Não podia ser mera coincidência o fato de que o livro estivesse ali no hotel. Era muito provável que pertencesse ao assassino. Devia ser um homem que conhecia suficientemente, graças aos seus estudos, tais ritos e costumes. Um homem de espírito instável podia, no seu desequilíbrio mental, entregar-se a uma imitação grotesca do ritual como o fora o assassinato de Heather. Ou talvez...

Ainda tinha nas mãos o envelope que havia marcado a página. A mão me tremia um pouco quando o olhei. Olhei-o por muito tempo.

Havia no envelope a letra de meu pai. Não estava selado mas tinha um endereço traçado na sua bela caligrafia: Sr. Nicholas Drury Hotel Camas Fhionnaridh Ilha de Skye Inverness-shire

Com a manhã, chegaram um sol enevoado e a enfermeira. Era uma mulher ainda jovem e robusta, que parecia bondosa e imensamente competente. Com alívio, deixei Roberta aos seus cuidados e desci para o café.

Quando entrei na sala, as cabeças de todos se voltaram para mim e a Sra. Cowdray-Simpson perguntou prontamente:

—        Como vai a moça?

Tudo vai bem até agora, disse eu, sorrindo. A enfermeira já está com ela e está muito animada.

Que bom! Fiquei muito receosa com aquele movimento todo de madrugada.

Não foi nada, disse eu. Deixei o fogo apagar-se e o Inspetor ouviu o Sargento Munro descendo as escadas para ir buscar lenha para mim.

Ninguém mais falou comigo enquanto eu tomava café e isso me agradou também. Procurei não chamar a atenção para minha pessoa. Estava tomando a minha segunda xícara de café quando Effie, de olhos arregalados, se aproximou de mim.

—        O Inspetor disse que quando a senhora tiver acabado poderá fazer o favor...

A voz dela era muito estridente e foi ouvida por todos. Foi em completo, e atento silêncio que respondi:

—        Vou falar imediatamente com o Inspetor. Obrigada, Effie.

Peguei O Ramo Dourado que havia embrulhado em mais um pedaço da revista de automobilismo, segurei a xícara de café com a outra mão e saí da sala ainda sob desagradável silêncio.

Sentia o rosto arder. A quarentena da noite anterior parecia ainda isolar-me. As palavras zombeteiras de Nicholas me soavam aos ouvidos. Em todos os olhos que me seguiam havia ressen­timento e nos olhos de alguém devia haver medo também.

O Inspetor me recebeu cordialmente no seu escritório provisório, mas com um olhar que me fez dizer:

—        Eu bem poderia dispensar a distinção de não ser suspeita, Inspetor Mackenzie.

—        É assim? Continuam a não gostar disso?

Continuam, é claro. E o mais estranho é que quem se sente culpada sou eu. Gostaria de que tudo isso já tivesse terminado.

O mesmo desejo eu, — disse ele, estendendo a mão. — Isso é para mim?

Entreguei-lhe o livro. Senti que dessa maneira eu me estava de certo modo comprometendo e enveredava por um caminho do qual não poderia mais voltar. Sentei-me e disse:

—        Marquei o lugar.

Baixei os olhos para a minha xícara de café, mexendo-a desnecessariamente, concentrando-me na ondulação do líquido contra as paredes azuis da xícara.

Onde foi que encontrou isto? — perguntou o Inspetor. Disse-lhe.

E quando viu esta parte marcada?

Disse-lhe também. Mas não lhe falei do envelope. Este estava em meu bolso. Não podia ir tão longe assim. Ainda não.

—        Foi você que marcou essas passagens?

—        Fui eu, sim.

—        Sabe de quem é o livro?

—        Não, — disse eu, com o envelope a me queimar o bolso. Houve uma pausa. Levantei os olhos e vi que ele me observava. Disse ele então:

Creio que tinha outras coisas para me dizer. Foi o que me disse antes de encontrar este livro. Que é que acha que eu devo saber?

A primeira coisa, — disse eu, — refere-se à corda cortada que matou Marion Bradford.

—        Sim?

Falei-lhe então da minha descida na escuridão na primeira noite que passara no hotel e de como vira Jamesy Farlane e Alastair Braine na saleta da entrada do hotel.

—        E o Sr. Corrigan tinha pescado com eles. Alastair disse que ele tinha voltado para o hotel mais cedo, mas a mulher dele me disse que naquela noite êle só voltara às três da madrugada. Eram duas e meia quando falei com Alastair.

O Inspetor estava escrevendo rapidamente e levantou os olhos quando eu me calei.

O que está tentando dizer é que cada um desses três homens teve oportunidade de danificar a corda de ascensão das moças na noite anterior ao acidente.

É verdade, disse eu.

E o que se pode dizer da terceira pessoa vista por Dougal Macrae?

Podia estar inocente e ter ficado apavorada quando as viu cair...

—        Muito bem. Tem ainda alguma coisa para me dizer? Hesitei. O envelope? Não, ainda não... E a outra coisa?

A meia mentira que eu dissera sobre o que acontecera junto à segunda fogueira? Pensei desesperadamente que aquilo não provava nada e o Inspetor só se interessava por provas. Mas tinha ou não tinha de dizer a ele? Ainda não... Ele me olhava atentamente do outro lado da mesa. Comecei apressadamente a falar do episódio da boneca de Mareia Maling. Quando termi­nei, perguntei-lhe:

—        Já sabia?

Já. A Sra. Persimmon me contou. Mas não pense mais nisso. Não é mais um mistério e nunca fez parte do mistério que nos preocupa. Penso que lhe posso dizer que tudo foi um produto da rivalidade entre Alma Corrigan e Mareia Maling.

Foi então Alma Corrigan quem fez aquilo?

Foi. Ela me confessou hoje de manhã. Fez isso para amedrontar Mareia Maling e fazê-la sair do hotel.

Compreendo... — lembrei-me do rosto de Alma Corri­gan quando viu o carro de Mareia afastar-se pelo vale. Bem, parece que deu resultado.

De fato. Bem, agradeço-lhe muito ter-me dito essas coisas. Acho que agiu muito bem. Há mais alguma coisa?

Não, disse eu, mas não consegui dissimular o olhar.

Está mentindo, não está? — perguntou-me o Inspetor. — Há mais alguma coisa que me está escondendo.

Não, disse eu, mas em voz alta demais.

Êle me olhou gravemente durante alguns segundos. Por fim, disse num tom bondoso, que nada mais tinha de oficial:

—        Creio que me disse uma mentira na noite passada, não foi mesmo?

Eu? Uma mentira? Como?

Quando me disse que não tinha imaginado quem era o assassino.

Mordi os lábios e baixei os olhos para o chão.

Acha realmente, — continuou ele, — que uma mulher experiente como Marión Bradford não teria notado que a sua corda estava danificada, se de fato estivesse? Pensa que a corda tenha sido cortada na saleta do hotel naquela noite?

Podia ter sido.

Podia, mas você não pensa assim.

Não.

Vou-lhe dizer agora como penso que o crime foi come­tido. Em primeiro lugar, deve compreender que Roberta Symes nunca subiu ao Sputan Dhu.

Acrescentou, enquanto eu o olhava, espantada:

Não havia corda no corpo dela, havia?

Não, — disse eu, lentamente, — não havia. É claro que se ela tivesse sido a segunda pessoa na corda, o assassino não poderia ter cortado a corda entre ela e Marion. Como foi que eu não pensei nisso?

Foi muito bom que não tivesse pensado, pois, nesse caso, teria saído do Sputan Dhu para procurá-la em outro lugar.

Que aconteceu então?

Creio que o assassino se ofereceu para fazer a subida com Marion Bradford enquanto Roberta olhava. Quando ele levou Marion até um ponto que não é visível do outro lado, onde há uma projeção...

Sei onde é. Ele poderia cortar então a corda sem ser visto.

Assim, ele cortou a corda. Roberta devia ter pensado num "acidente", vendo-a cair. Em seguida, ouviu-o gritar, di­zendo que ia descer. Ele poderia voltar facilmente sozinho, subin­do um pouco mais acima da ravina. Ela o esperou angustiada­mente à beira da ravina. Quando ele chegou aonde ela estava, empurrou-a. Ela deve ter caído num ponto onde ele não a pôde ver, pois do contrário teria descido para matá-la, se suspeitasse de que ela não estava morta.

Eu nada disse. Não podia falar, nem pensai. Fechei os olhos e sei que estava tremendo.

Escute, — disse ele delicadamente, — um assassino como esse, perverso e demente, não merece defesa.

A lealdade... — murmurei.

Não se tratava disso. O homem está fora da lei. Deve lealdade é a nós, as pessoas comuns e de juízo que o querem preso para viverem em segurança.

Por que não o prende então, se tem tanta certeza?

Já lhe disse. Nada posso fazer sem ter provas. Estou à espera de algumas informações que me devem chegar de Londres. E estou à espera de que Roberta fale.

Por que me deixou com ela, se está tão certo de que eu iria proteger o criminoso?

Porque conheço bem as pessoas e sei que, quando chegar o momento decisivo, você ficará do lado certo, sejam quais forem as suas... lealdades.

Ou, melhor, meus instintos. Se tivesse estado no salão ontem à noite, ter-me-ia ouvido falar muito sobre os meus prin­cípios, mas agora... Nunca ninguém lhe disse que para as mulheres as pessoas têm mais valor do que os princípios? Eu sou uma mulher, Inspetor Mackenzie!

Heather Macrae também era.

Não sei por que me está fazendo um sermão sobre a lealdade, Inspetor! E, se eu tivesse alguma idéia sobre quem era o assassino, isso não passaria de uma hipótese que não iria ajudar o senhor a prendê-lo. Já lhe disse tudo...

Não, não acredito. E se esse fato, seja ele qual for, que está mantendo em segredo constituir justamente a prova que eu quero, devo avisá-la de que...

Prova? Não tenho provas de espécie alguma! Juro que não tenho! E, se tivesse, precisaria de tempo para pensar! — disse eu e saí quase correndo da sala.

Podia haver muita gente no hall, mas eu não vi ninguém. Passei por ele sem qualquer idéia coerente e saí pela porta para o ar livre e a liberdade do vale. Mas nesse momento vi à minha frente Dougal Macrae, que me cumprimentou gravemente.

Bom dia, senhora. Está um dia ótimo com um pouco de neblina chegando da baía. Quer ir agora?

Ir para onde?

Era hoje que eu ia levar a senhora para pescar. Já se esqueceu?

Pescar? — disse eu rindo. — Oh, desculpe. Mas parece muito estranho ainda pensar em pesca depois de tudo o que aconteceu.

Tem toda a razão. Mas não vale nada ficar parado à espera do que vai acontecer. Vai-se sentir muito melhor se for pescar comigo ao ar livre e deixar de pensar nas coisas que a afligem.

— Acho que sim... Está bem, Sr. Macrae. Irei, sim. Quer esperar cinco minutos?

Três quartos de hora depois, eu estava no ponto onde o rio Camasunary nasce no Loch na Creitheach e estava dando toda a razão a Dougal.

A névoa, que no começo da manhã havia coberto todo o vale, tinha-se levantado e recuara para só persistir em longos véus nas encostas mais baixas do Blaven e de Sgurr na Stri. Bem ao nosso lado, An't Sròn estava quase invisível dentro do seu manto cinzento e do seu sopé o lago se estendia para o norte até fundir-se com a névoa numa cambiante opalescencia. Mas, logo acima de nossas cabeças, o céu estava azul e claro e o sol brilhava, quente e firme. O rio, que fluía do lago num grande leque prateado, estreitava-se no ponto onde estávamos num canal mais profundo.

Dougal era um bom professor. Mostrou-me como devia armar o caniço, colocar o molinete e amarrar a mosca. Depois, com infinita paciência, tratou de me ensinar a lançar a linha. Nenhum de nós disse uma palavra a não ser sobre as coisas que nos interessavam no momento e, ainda assim, bem pouco. Não tardou que eu descobrisse, com grande surpresa, que a difícil arte que eu estava tentando aprender tinha de fato uma poderosa fascinação, diante da qual o passado se anulava, o futuro perdia o interesse e toda a experiência se resumia naquele trecho de água murmurosa e cintilante e na mosca que eu estava tentando lançar através dela. O cenário intemporal e a voz eterna da água criavam entre si uma poderosa hipnose sob cuja influência o hotel com os seus hóspedes e os seus problemas pareciam muito distantes e relativamente insignifi­cantes.

E, ainda que o meu problema não se afastasse como os outros, atenuou um pouco o seu domínio sobre o meu espírito, tamanha era a paixão com que eu me negava a enfrentá-lo.

Dougal tinha armado o seu caniço, mas não o usou logo. Ficou sentado na margem fumando e observando. De vez em quando, levantava-se para me ensinar o que eu devia fazer. E claro que não peguei nada; não tive nem a suspeita de uma mordida de peixe. Mas era tamanha a paz do lugar que, quando afinal Dougal começou a desembrulhar os sanduíches para o almoço, pude pensar e falar com relativa calma.

Comemos a princípio em silêncio, enquanto a água borbulhava a nossos pés e uma ave voava para cima e para baixo pelo centro do rio. Um peixe deu um salto fora da água num rápido arco prateado.

Era ali mesmo que eu estava pescando, disse eu, humildemente. Devia estar lançando a mosca sobre ele todo o tempo e nunca o peguei.

Mas pode pegar ainda. Já vi coisas mais difíceis acontecerem, disse Dougal.

A resposta não podia ser considerada muito animadora, mas creio que da parte de um escocês isso devia ser contado como um elogio. Ele olhou para o céu e disse:

Na verdade, o sol está luminoso demais para peixe. Se a névoa baixar um pouco e atenuar essa luminosidade, poderá ser melhor.

Parece errado desejar que o sol se vá embora.

Se estiver pescando, nem notará isso.

Acabamos o nosso almoço em silêncio. Dougal tirou o cachimbo enquanto eu procurava cigarros nos bolsos. Encontrei um maço já no fim e alguma coisa metálica e estranha.

Soltei uma exclamação quando me lembrei do que era. Dougal olhou para mim, curioso, por entre uma pequena nuvem de fumaça de cachimbo.

Acho que devia ter entregado isto ao Inspetor, — disse eu, tirando do bolso o broche de cairngorm. Tmha-me esquecido por completo. E de Roberta e...

Onde foi que encontrou isso? perguntou Dougal, deixando cair o cachimbo e estendendo a mão para pegar o broche.

Na montanha, ontem, disse eu. No cascalho, perto do Sputan Dhu. Achei que Roberta devia tê-lo deixado cair ali.

Isto era de Heather! — exclamou Dougal,

De Heather?

Tentei confusamente lembrar-me do ponto onde o havia encontrado... Sim, estava caído no cascalho acima da plataforma onde ela fora encontrada. Poderia o objeto ter rolado ou ter sido jogado da pequena pilha de metal num canto?

—        Foi um presente de aniversário que dei a Heather, disse Dougal com voz alterada. Ela estava usando o broche quando saiu naquela noite. Fique com êle, sim? Entregue ao Inspetor e diga onde foi que o achou. Talvez isso o ajude em alguma coisa...

Tornou a pegar o cachimbo no chão e se mostrou de novo impassível e firme. Olhou para a névoa que avançava e disse:

—        Será melhor para peixe, disse êle e caiu de novo em silêncio.

O sol havia desaparecido e a paz do lugar também. O broche havia feito renascer todos os horrores que pairavam sobre o vale.

—        Não acha que devemos voltar, Sr. Macrae? Quero entre­gar imediatamente este broche ao Inspetor.

Êle se levantou.

—        Está bem. Posso desarmar os caniços então?

Sim, temos de voltar. Tenho outros motivos para querer falar com o Inspetor. Não posso mais adiar isso. E não estou gostando desse nevoeiro.

Não se preocupe com o nevoeiro. Espere um minuto enquanto eu vou pegar o meu caniço e então voltaremos.

Voltou-se rio abaixo e, antes que andasse dez metros, desapareceu no nevoeiro. Apaguei o cigarro e fiquei esperando.

Foi a ave que me deu o aviso. Saiu do nevoeiro voando rio acima com pios alarmados que me sobressaltaram.

Ouvi então um grito. Depois, uma respiração ofegante e o baque surdo de uma pancada. E um grito forte de Dougal:

—        Corra, moça!

Depois, o som horrível de uma respiração estrangulada na garganta. Outro baque. E silêncio.

Não pude deixar de gritar. O som foi como um punhal brilhante de pânico rasgando o nevoeiro. Mas os novelos cinzen­tos amorteceram-no. Segui no rumo de onde chegara a voz de Dougal.

Não sou corajosa. Sentia-me terrivelmente apavorada, dominada por um terror frio e nauseante. Mas não creio que qualquer pessoa normal fosse capaz de fugir, sabendo que nas proximi­dades um amigo estava sendo atacado.

Corri em frente, mas tropecei e quase caí ao fim de cinco metros, tão denso era o nevoeiro que cobria tudo. Até à beira do rio estava invisível e um passo em falso poderia ter como resultado um pé torcido ou um mergulho no rio cheio de pedras. Estendi as mãos para a frente desesperadamente!, como se pudesse assim romper a cortina espessa. Embrenhei-me mais uns cinco metros por ela. De repente, não encontrei chão debaixo dos pés e rolei por uma pequena ribanceira até cair no meio das urzes.

Foi só então que notei como era profundo o silêncio. Os rumores da luta haviam cessado. Até o rio, do qual eu estava separada pela ribanceira, tinha um murmúrio abafado dentro do nevoeiro. Fiquei ali encolhida, abalada e aterrada, agarrando-me às urzes úmidas e tentando ver alguma coisa na muralha cinzenta que me cercava. Descobri que estava balançando a cabeça de um lado para outro como um animal recém-nascido que fareja o ar. Não sabia mais para que lado ficava o rio, nem onde os homens tinham lutado ou onde o assassino poderia estar.

Ouvi então a respiração dele.

Houve um passo cauteloso; outro mais. Depois, silêncio.

Estava diante de mim, à direita. Mas a que distância?

De repente, ouvi a respiração às minhas costas. Voltei a cabeça rapidamente, com os olhos arregalados e a boca escancarada de pânico.

A respiração parou. O rio prosseguia no seu murmúrio monótono. Atrás de mim? A minha frente? Não podia mais confiar em meus sentidos e isso agravou o pânico.

De repente, o nevoeiro se encheu de ruídos. O sussurrar das urzes era a respiração do assassino, as batidas de meu coração eram os seus passos. O latejar do sangue em minha têmporas se misturava com a corrente do rio invisível. Tudo se deformava pela ação do nevoeiro em puro terror...

Senti um gosto salgado na boca. Sangue... Os lábios me doíam onde eu os havia mordido, mas a dor dominava o pânico sem me mover do lugar, fechei os olhos e esperei.

Ele estava ali; disso eu não tinha dúvida. Estava bem perto, movendo-se em minha direção, mas um pouco para o lado, entre mim e o rio. Ouvia perfeitamente a água nesse momento, poucos metros à direita. Cosi-me mais ao chão como um animal caçado, contente com o nevoeiro que favorecia mais a caça do que o caçador. Tinha apenas de ficar quieta. Talvez, quando ele tivesse passado por mim, eu pudesse levantar-me e correr...

Ficou por fim entre mim e o no. A respiração era curta, rápida, nervosa. Parou.

Ouvi então mais alguma coisa a alguma distância na margem do rio. Eram passos pesados e incertos que soavam na urze e, às vezes, arranhavam a pedra. A voz de Dougal Macrae me chamava:

Está aí, moça?

Um grande suspiro de alívio me subiu à garganta, mas dominei-o, sem saber ao certo o que devia fazer. Se eu respon­desse ... Eu sabia que o assassino estava no máximo a uns cinco metros de mim. Ouvia-lhe a respiração ofegante. Devia saber que não tinha conseguido eliminar Dougal. Se eu chamasse Dougal, haveria alguma coisa que me salvasse o pescoço da faca daquele assassino a cinco metros de distância? Êle me liquidaria em questão de segundos e ficaria então à espera de Dougal quando viesse atender ao meu chamado...

Mas eu tinha de chamar Dougal... Não para pedir socorro, mas para adverti-lo. Devia dar um grito e dizer a Dougal que o assassino estava ali, perto de mim. Devia gritar e correr, embrenhando-me no nevoeiro, para fugir da faca e das mãos do assassino.

E Dougal vinha chegando. Avançou para nós, impetuoso e firme, como um touro enfurecido. Eu estava de joelhos e já ia abrir a boca para dar um grito de advertência quando de repente o assassino se virou e saiu correndo velozmente rio acima. Dougal ouviu-o. Deu um grito e lançou-se em perseguição ao homem que fugia. Vi-o surgir dentro do nevoeiro. Tinha uma faca no punho erguido e o rosto estava tão contorcido pela cólera que ele era quase irreconhecível. Parecia um gigante vingador de algum velho mito.

Passou por mim como se eu não estivesse ali e prosseguiu por dentro do nevoeiro no encalço do assassino. No momento em que eu gritei em pânico: "Dougal”, desapareceu rio acima. Devia ter avistado ou ouvido o assassino porque o meu grito foi abafado por uma imprecação que reboou pelo vale.

— Assassino miserável!

Voltei-me e corri longamente em sentido contrario.

Não sei quanto tempo durou a minha fuga desesperada através das urzes. Eu havia sucumbido finalmente ao pânico, a um pânico insensato e absoluto. Não tinha mais medo do assassino. Restava-me um pouco de raciocínio para saber que ele já não se interessava por mim. Atacar dentro do nevoeiro uma pessoa que de nada desconfiava era uma coisa; enfrentar um escocês armado e furioso em seu próprio terreno era outra. O assassino tinha de fugir de Dougal dentro do nevoeiro para então voltar a procurar-me e, primeiro, teria de encontrar-me.

Mas o pânico nada tem com a razão. A razão tinha saído dos eixos e meu cérebro girava descontroladamente. Corri aos saltos e aos arrancos, com as lágrimas a rolar-me pelas faces misturadas com as gotas de umidade. Atravessava a barreira intangível tateando no vácuo como cega e sentindo com o impacto a pele do rosto e das palmas das mãos contrair-se.

O que me fez parar de súbito, com o pânico varrido de mim como por uma chicotada, foi o fato de que o chão estava tremendo sob os meus pés.

Meio atordoada, olhei para os tufos de mato sobre os quais estava correndo. Experimentei dar outro passo. O chão tremeu e eu recuei prontamente, mas senti de novo o chão pantanoso oscilar como o fundo de um barco.

Fiquei imóvel.

Houve um barulho sinistro debaixo de meus pés como se o chão tivesse aspirado alguma coisa num hausto borbulhante.

Tinha-me custado bem caro o meu lapso de razão. Eu estava no meio do pântano de que Roderick me havia uma vez falado e não fazia idéia da distância a que estava da terra firme. Não poderia dizer com exatidão de que rumo eu vinha quando fiz essa apavorante descoberta.

O medo bateu de novo em torno de mim as asas de morcego. Fiquei exatamente onde estava, tentando esquecer o tremor sinistro do terreno e procurei ouvir o murmúrio do rio.

Mas pouco adiantava. Quanto mais eu apurava os ouvidos, mais confusos eram os sons que circulavam em torno de mim no nevoeiro. Ouvia fracamente o murmúrio abafado da água corrente, mas parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo, reverberando nas massas do nevoeiro e deformado pelo rumor da vida invisível do pântano — sorvos, borbulhas, milhares de respiração inquietas...

Meus pés estavam afundando. Com um esforço sobre-huma­no, concentrei os últimos farrapos de energia e me dirigi para uma moita de urzes a uns dois metros de distância. A sensação das raízes resistentes sob meus pés deu-me alguma tranqüilidade, mas o corpo estava tremendo descontroladamente e eu batia os dentes. Estava ilhada na minha pequena moita de urzes, os mesmos poucos metros de pântano verde, que oscilava e tremia sob a traiçoeira névoa.

Mas eu sabia que tinha de me mover, tinha de deixar a minha breve ilha de segurança e tomar alguma direção — qualquer direção... Refleti que era pouco provável que o pântano fosse realmente perigoso, mas, nesse ponto também, a razão de pouco me servia. Creio que era o fato de ter a visão tolhida que conservava o pânico tão perto de mim. Se eu pudesse ver quatro metros à minha frente, se pudesse ver onde ia pôr os pés cinco passos adiante, as coisas não seriam tão ruins assim. Mas eu tinha de caminhar sobre aquele pântano horrível e incerto, ignorando a verdadeira extensão do perigo e indo talvez mais longe e para um lugar pior...

Cerrei os punhos, virei-me na direção em que imaginava que devia estar o rio e segui vagarosamente em frente.

O simples esforço de controle necessário para que eu me movesse lentamente era tão grande que, felizmente, não pude pensar em nada mais. Tinha vontade de correr — só Deus sabe como queria correr! Mas me esforçava por andar bem devagar, experimentando cada passo. Uma vez, pisei descuidadamente num ponto que era de um verde mais claro e enterrei a perna até ao joelho numa lama negra. Quando consegui contornar esse ponto, de uma moita para outra, tinha perdido por completo todo o senso de orientação, a tal ponto que quando uma forma fantasmal surgiu no nevoeiro ao meu lado, o corpo todo me tremeu como o de uma marionete. Era apenas um tronco de bétula que apodrecia no pântano, mas parecia sólido no meio daquele charco e o ponto onde estava era cercado de um mato mais denso que prometia segurança.

Tive um assomo de esperança. Não me era desconhecida a forma que me parecera tão insubstancial através do nevoeiro. Roderick e eu tínhamos passado por uma bétula caída naquela primeira noite. Estava à nossa esquerda, a poucos metros de distância, entre nós e o rio. Bastava que eu me lembrasse da direção em que a vira em relação ao caminho para poder seguir sem demora para terreno firme.

Dirigi-me para lá cautelosamente, tentando recordar como vira o tronco naquela primeira noite. Era bem possível que não fosse a mesma árvore, mas na confusão do nevoeiro até esse débil ponto de reparo podia ser tão tranqüilizador quanto uma coluna de fogo no deserto. Fiquei ali, ancorada em sua enganosa solidez, e tentei recordar, enchendo-me de esperança.

O tronco estava na posição norte-sul, disso eu tinha certeza. Neste caso, se eil estava do lado do rio4 o terreno firme devia estar a uns trinta metros de distância. Se eu pudesse alcançá-lo, não me seria difícil chegar ao vale e ouvir o barulho do mar. Ou poderia achar algum filete de água que me levasse ao rio e ao hotel.

Foi então que me tornei plenamente consciente de alguma coisa que me vinha há algum tempo rondando os sentidos. O chão estava tremendo. Eu estava perfeitamente imóvel, mas o chão tremia.

Tão completa tinha sido a minha absorção em meu novo medo que eu me havia esquecido de que, em algum ponto daquele mundo opaco, havia um assassino à minha espera com uma faca... E naquele momento ele vinha atravessando o pân­tano trêmulo.

Estendi-me atrás do tronco de bétula. As moitas eram densas e altas. Abaixo de mim, o chão tremia e borbulhava. Eu estava imóvel, não tanto de medo, mas entorpecida, gelada, petrificada. Duvido até de que a faca, rompendo através do nevoeiro, tivesse podido arrancar-me do torpor.

—        Gianetta...

Era um sussurro, um leve ciciar. Podia ter sido o hálito do pântano, a exalação dos seus gases em milhões de diminutas borbulhas.

—        Gianetta.. . Gianetta. ..

Estava mais perto. Meu nome repercutia por dentro do nevoeiro. Flutuava em pequenos sussurros como folhas secas, revoluteando lentamente para pousar no chão que tremia.

Ele se movia lentamente. Podia sentir sob o corpo a vibração contida de seu passo. Devia estar com as mãos estendidas para a frente à minha procura. O seu sussurro sondava o silêncio, tentando encontrar-me.

Reconheci-o, é claro. Sabia já então, além de qualquer dúvida. Sabia que a minha infeliz conjectura era certa. Com­preendia por que o Inspetor tivera pena de mim e por que Alastair, duas noites antes, me envolvera num olhar de muda compaixão.

—        Gianetta...

Ali estava de novo o nome, o nome pelo qual ninguém senão ele me chamava... o nome que eu ouvira gritado na escuridão ao lado da pira fúnebre de Ronald Beagle... A voz flutuava através do nevoeiro um pouco mais débil como se ele tivesse voltado a cabeça para outro lado.

—        Onde está você, Gianetta? Pelo amor de Deus, onde está você?

Roderick tinha adivinhado também a verdade. Não me dissera, com absoluta certeza, que só eu, de todas as pessoas no hotel, estava a salvo do assassino?

—        Está-me ouvindo, Gianetta? Não tenha medo...

Não creio que tivesse medo depois de saber com absoluta certeza que era Nicholas. Não era porque acreditasse, como Roderick, que, graças ao passado, Nicholas nunca seria capaz de ferir-me. Era apenas porque, quando aquele terrível sussurro confirmou todas as minhas suspeitas, eu não me importava mais nem com a vida, nem com coisa alguma...

Gianetta... Gianetta... Gianetta.. .

As sílabas de meu nome se escondiam através do nevoeiro num contraponto fantástico. Encostei o rosto nos matos úmidos e chorei em silêncio, enquanto o nevoeiro dançava e ressoava com meu nome.

Por fim, tudo cessou. A voz se desvaneceu, ecoou e tornou a desaparecer. O tremor do pântano terminou. Uma ave passou em silêncio e sem receio pela relva. Tinha-se ido.

Levantei-me e saí por dentro do pântano indiferente, cegamente, para fugir do último eco daquela voz.

Quase no mesmo instante, vi-me em terreno firme, entre pedras e urzes. Estuguei instintivamente o passo. O chão se alteava firmemente, afastando-se do pântano e, por fim, notei que o nevoeiro se estava dissipando em torno de mim. Subi a encosta cada vez mais depressa, à medida que o meu raio de visão se ampliava. O nevoeiro se esgarçou, encolheu e desapareceu atrás de mim

Tão repentinamente quanto um nadador fura a crista espumante de uma onda para encontrar de novo o ar, eu emergi dos últimos farrapos de nevoeiro para o sol radioso.

O alívio foi tão imenso, a chance tão inacreditável que fiquei ali parada, piscando os olhos ante a luz forte do sol da tarde. Meus olhos, nublados pelo nevoeiro e ainda úmidos de choro, levaram alguns segundos para habituarem-se àquela caudal de luz.

Só então, vi onde estava. Tinha subido um pouco pela encosta mais baixa do Blaven, num ponto onde um grande dique de rochedos cortava o cascalho das pedras miúdas, num paredão que parecia um enorme baluarte diante dos penhascos mais acima.

A base desse baluarte ainda era lambida pelo nevoeiro que mantinha os terrenos mais baixos invisíveis sob a sua pálida torrente. O vale, o lago, o braço de mar do Atlântico, tudo isso ainda estava oculto sob o nevoeiro que se estendia como um parado lago branco do Blaven para Sgurr na Stri, do Garsven para Marsco. E, desse lago, levantavam-se por todos os lados as montanhas, tingidas de rosa, de azul, de púrpura e de um verde dourado pelos raios do sol, flutuando como ilhas fabulosas naquele mar vaporoso. Lá embaixo, o terror cego podia pairar ainda dentro daquele cinzento sufocante; em cima, onde eu estava, havia um mundo novo e dourado. Eu podia estar ali sozinha na alvorada dos tempos, vendo as primeiras montanhas surgirem das nuvens do caos...

Mas não estava sozinha.

Mal os meus olhos se ajustaram ao vasto esplendor do meu novo mundo acima das nuvens, tive consciência da presença de alguém a cerca de cinqüenta metros de distância. O homem não me tinha visto, mas estava perto do baluarte de rochedos, olhando, além dele, não para mim, mas para o horizonte aberto do sudoeste. Era Roderick Grant. O sol fazia-lhe brilhar os cabelos dourados.

—        Roderick! — gritei e fiquei surpresa com o tom rouco produzido por minha garganta seca.

Ele não se moveu. Eu sentia os joelhos trêmulos e foi com passos difíceis e incertos que me encaminhei para ele através do chão acidentado.

Tornei a chamá-lo:

—        Roderick!

Dessa vez, ele ouviu. Virou-se para mim.

—        Hem? Janet!

Havia surpresa na voz dele, mas isso eu podia compreen­der muito bem. Só Deus sabe qual era o meu aspecto, mortalmente pálida e trêmula, com o vestido molhado e sujo. trazendo ainda nos olhos esgazeados os fantasmas do terror e do desespero.

Deu alguns passos ao meu encontro e me segurou as mãos, pois, do contrário eu cairia. Fez-me sentar numa laje e recostar-me na pedra quente do baluarte. Fechei os olhos e o sol me bateu nas pálpebras em novelos de vermelho, ouro e violeta. Podia sentir-lhe o calor inundando-me em grandes ondas reani­madoras e, a esse influxo, descontraí-me e comecei a respirar com mais facilidade. Por fim, abri os olhos e olhei para Roderick.

Estava de pé à minha frente, observando-me e mostrando de novo nos olhos aquele temível ar de compaixão. Eu já sabia o que isso significava e me era muito penoso encará-lo. Desviei o olhar e tratei de tirar os sapatos encharcados e de desabotoar o casaco que me caiu dos ombros para ficar na pedra como uma trouxa molhada. A blusa estava quase seca e o calor do sol me cobriu reconfortante.

        Não... sabe? — perguntou ele, então.

Fiz um sinal afirmativo.

Ele falou então lentamente, com uma nota estranha na voz:

Disse-lhe uma vez que não seria atacada. Não lhe devia ter dito isso. Foi...

Isso pouco importa, — disse eu, cansadamente. — Só não sei é por que você pensou que Nicholas, depois do que me fez passar quando nos divorciamos, iria ter algum escrúpulo agora. — Minha mão esquerda estava espalmada sobre a pedra. A marca da aliança se mostrava visível e branca no dedo anular. — Cometi um erro, tentando protegê-lo depois de suspeitar do que ele era. Compreendo isso agora. Ninguém deve realmente colocar as pessoas acima dos princípios, especialmente quando as pessoas não o merecem.

Calei-me. Ele se voltara para o outro lado e contemplava os picos distantes das Cuillin, que emergiam do lago vaporoso.

Por que fez isso? — perguntou ele.

Por que fiz o quê?

Por que. . . o protegeu?

Havia na voz dele um tom curioso que podia ser de alívio.

Porque sou casada com ele, — disse eu, depois de breve hesitação.

Divorciada...

Decerto, mas isso em algumas coisas não faz diferença. .. Continua-se a ter lealdade.. .

Lealdade? Por que falar em lealdade, quando se trata de amor?

Não respondi.

Não estou certo?

Talvez...

Ele ficou durante algum tempo em silêncio e perguntou abruptamente:

Que aconteceu embaixo? Como foi que descobriu?

Ele estava à minha procura dentro do nevoeiro. Cha­mou-me e eu reconheci a voz dele...

Chamou-a? Mas certamente. . .

Eu estava pescando com Dougal Macrae, quando o nevoeiro nos envolveu. Dougal foi buscar o caniço. Ouvi o rumor de uma luta e Dougal deve ter sido derrubado. Ouvi então... Nicholas... que me procurava. Mas Dougal se recuperou e foi no encalço dele. Desapareceram ambos no nevoeiro e eu fugi, mas me perdi. E então...

Então?

Ouvi-o atravessar o pântano chamando-me. Dizia meu nome num sussurro. Calculo que se havia livrado de Dougal e não queria gritar para que Dougal não o ouvisse.

Ele deve ter sabido que você havia descoberto quem. .. o que ele era.

É verdade, — disse eu, estremecendo.

Ele olhou então para o denso véu que cobria o vale.

Quer dizer que Drury está lá embaixo?

Está.

A que distância?

Não sei. Creio que foi há poucos minutos que...

Ele se voltou para mim tão subitamente que tive um sobressalto.

Vamos, — disse ele, quase com rudeza. — Temos de sair daqui. Calce os sapatos.

Quer descer para o nevoeiro? Não é melhor esperar que se dissipe um pouco? Ele pode...

Quem falou em descer? Vamos é subir. ..

Que idéia! Para quê?

Ele riu, quase com alegria. Agarrou o meu casaco e sacudiu-o. Alguma coisa caiu dele, bateu na pedra e rolou.

Não pergunte nada, Janet. Faça o que estou mandando. Que é isso?

Oh! — exclamei, abaixando-me. — É o broche de Heather.

O broche de Heather? — exclamou ele, num tom que me fez olhá-lo com surpresa.

Sim, achei-o ontem debaixo daquela plataforma. Pensei que fosse de Roberta, mas Dougal disse...

A voz me morreu na garganta. Levantei-me, com o broche na mão, e encarei-o, dizendo:

—        Na primeira noite em que estive aqui, você me falou do assassinato de Heather. Disse-me que a pequena pilha de jóias fora encontrada na plataforma. Falou numa pulseira, num broche, em outras coisas... Mas o broche não estava na plataforma quando ela foi encontrada. E desde que o pai só lhe dera o broche naquele dia como presente de aniversário, você não podia saber disso, se não a tivesse visto com o broche, se não o tivesse colocado na pilha ao lado da fogueira.

Lá no alto, um pássaro cantava. Em torno de nós, as montanhas se erguiam serenas acima do nevoeiro. Roderick Grant sorriu para mim, com os olhos brilhando muito.

—        É verdade, — disse ele gentilmente. — Mas é uma pena que se tivesse lembrado disso, não acha?

E assim estávamos frente a frente, o assassino e eu, ilhados em nosso monte Arará acima do dilúvio do nevoeiro. Juntos e sozinhos acima do mundo silencioso, na montanha onde êle já matara três pessoas.

Sorria ainda e tornei a ver-lhe no rosto o ar de compaixão que afinal compreendia. Gostava de mim e ia matar-me. Sentia muito, mas ia matar-me.

Mas, por um momento ao menos, até esse conhecimento desaparecia diante do maravilhoso impulso de satisfação que me invadia. Todo aquele mundo estranho acima das nuvens estava cheio da luz do sol e do canto dos pássaros... transfigurado pela certeza de que eu errara de maneira criminosa, estúpida e cruel em relação a Nicholas. Creio que durante bem dois minutos olhei para os olhos azuis e loucos de Roderick Grant e o meu pensamento não foi: "Estou sozinha aqui com um assassino maníaco" mas: "Não foi Nicholas, não foi Ni­cholas!"

Roderick disse então:

—        Desculpe, Janet. Estou sendo sincero. Quando ouvi você conversar com Dougal na margem do rio, compreendi que mais cedo ou mais tarde você se lembraria. Não tinha a intenção de matá-la, mas agora sou forçado a isso.

Descobri com surpresa que minha voz estava muito calma quando disse:

Isso não lhe adiantará nada, Roderick. O Inspetor sabe.

Não acredito.

—        Ele me disse. Está à espera de informações que mandou pedir em Londres para confirmar o que já sabe. E depois, há Roberta.

Ele franziu a testa.

—        Sim, Roberta.

Uma sombra lhe cobriu os olhos enquanto ele pensava no seu insucesso com Roberta. Não sabia se ele matara Dougal ou se este, em companhia de Nicholas, ainda o estavam caçando dentro do nevoeiro... o nevoeiro seguro, poucos metros abaixo de nós.

—        Não tente fugir, — disse Roderick. — Eu a agarraria e traria de volta com a maior facilidade. E não grite, Janet, porque, nesse caso, eu teria de estrangulá-la e... — acrescentou com um sorriso, — prefiro matar, cortando o pescoço. É a maneira melhor.

Encostei-me à pedra do baluarte. Estava quente e sólida e havia pequenos tufos de vegetação sob meus dedos. Real. Normal. Com grande esforço, sorri para Roderick. Fosse como fosse, tinha de fazê-lo continuar a falar, conservá-lo naquela disposição demente, mas gentil. Eu devia falar com delicadeza e com calma. Se eu me apavorasse de novo, o meu medo poderia ser a fagulha que acenderia o estopim das idéias alucinadas do assassino.

Sorri então e perguntei:

—        Por que faz essas coisas, Roderick? Por que matou Heather Macrae?

Ele me olhou com surpresa e respondeu:

Elas exigiram.

Elas quem?

As montanhas. Esperam sonhando há muitos anos, há séculos assim, acima das nuvens, olhando a vida verde dos vales. Em outros tempo, os homens as adoravam, acendiam fogueiras para elas, ofereciam-lhes todos os anos o sacrifício de uma vida. Mas agora... vivem abandonadas e desprezadas. Uma vida por ano... Não precisam de mais nada. Sangue e fogo, como no tempo em que o mundo era jovem e simples e os homens conheciam os deuses que viviam nas montanhas.

Olhou para mim. Era fantástico e terrível olhar um rosto conhecido, ouvir uma voz conhecida e compreender que se tratava de uma pessoa inteiramente diferente.

—        Ela me ajudou a carregar a lenha e a turfa. Colhemos juntos as nove madeiras, os agaricos e o carvalho para fazer o fogo novo. Ela acendeu o fogo para mim e eu então lhe cortei o pescoço e...

Eu tinha de fazê-lo parar e disse abruptamente:

—        Mas por que matou Marion Bradford?

O rosto dele se contorceu de cólera.

Aquelas duas mulheres! Você ouviu a mais moça, a tal Roberta, naquela noite dizendo sacrilégios, falando que ia con­quistar as montanhas... E a outra, Marion, pensava da mesma forma... — Riu de repente e o riso pareceu de repente per­feitamente normal e encantador. — Foi tudo muito fácil. Creio que a mais velha, aquela mulher horrível e grosseira, estava um pouco apaixonada por mim. Ficou toda satisfeita quando me encontrei com ela na montanha e me ofereci para mostrar-lhe o caminho através do Sputan Dhu.

Com certeza deve ter pensado que as duas estavam mortas quando as deixou.

E deviam estar. Não foi falta de sorte?

Sem dúvida, — disse eu secamente, correndo os olhos pelas franjas do nevoeiro. Ninguém. Nada.

Sabe de uma coisa? Eu já tinha estado três vezes, naquela maldita plataforma onde você encontrou Roberta, mas nunca passei além daquela curva, ao ver que tudo estava vazio. É claro que quem queria encontrá-la primeiro era eu.

É claro.

Os pássaros tinham deixado de cantar. Não havia outro som naquele dia de ouro e azul além da nossa conversa polida e sinistra.

Mas foi você quem a encontrou, Janet, e quase, quase, me deu a oportunidade que eu queria.

Quando me mandou buscar o cantil! — gritei. — Você ia matá-la nessa ocasião!

Ia matá-la, sim. Uma leve pressão no pescoço e pronto! Mas você voltou, Tanet... — murmurou ele com um gesto horrível.

Quando ela abriu os olhos, — disse eu com voz rouca, — foi você que ela viu. Você de pé atrás de mim!

Ele riu.

—        É claro. Você pensou que tinha sido Drury, não foi? Do mesmo modo que pensou que ele havia matado Beagle...

—        Por que fez isso?

Ele hesitou e murmurou:

—        Para dizer a verdade, não sei. Eu o odiava há muito tempo, sem dúvida porque para ele as montanhas eram apenas outros tantos picos para serem escalados, outros nomes para serem registrados nos livros dele. E naquela noite, aqui na montanha, ele falou com tanta displicência do Everest conquis­tado, daquelas neves manchadas e ultrajadas, onde eu nunca pensara que homem algum poria os pés sacrílegos... Você disse isso, lembra-se, Janet? Foi porque você disse isso que eu pensei que nunca poderia fazer-lhe mal algum... Mas segui Beagle quando ele desceu a montanha. Ataquei-o pelas costas e matei-o. Não sei, acho que não estava em meu juízo per­feito...

Eu nada disse. Estava olhando ansiosamente para a borda do nevoeiro, onde este tocava a encosta vazia.

—        E agora, — disse Roderick, tateando os bolsos do casaco, — onde está minha faca? — Procurava a faca com a mesma displicência com que outro homem procuraria o cachimbo. — Ah, já me lembre... Eu estava amolando a faca. Deixei-a aí em algum lugar... Não a está vendo, Janet?

Breves espasmos histéricos me subiram à garganta. Arranhei com as unhas a pedra às minhas costas. Levantei o corpo num arranco e estendi o braço, apontando para o chão atrás dele.

—        Ali, Roderick! Lá está ela!

Ele se virou para trás a fim de olhar.

Eu não podia passar por ele, para internar-me de novo no nevoeiro. Tinha de subir.

Subi pelo baluarte de pedra como um gato, como um lagarto, achando pontos de apoio onde não havia, agarrando-me à rocha áspera com pés calçados de meias e dedos que pareciam miraculo­samente dotados de indizível força prênsil.

Ouvi-o gritar "Janet!" e o grito agiu como uma chicotada num cavalo a galope. Subi três metros de rocha numa incrível escalada e subi afinal para o alto plano do baluarte.

A enorme asa de rocha se estendia a minha frente até aos altos penhascos. O alto tinha talvez dois metros e meio de largura e se estendia para cima em ângulo vertiginoso, através de degraus e dentes sucessivos como uma enorme escadaria arruinada. Eu tinha caído no degrau mais baixo e me atirei desesperadamente ao degrau seguinte, quando o barulho de sapa­tos ferrados nas pedras me revelou que o assassino vinha no meu encalço.

Como escalei o que me pareceram mais de cinco metros de rocha perpendicular é coisa que não sei. Mas a perpendicular seguinte me barrava o caminho, pois era cortada de alto a baixo por uma fenda vertical ou chaminé. Corri para lá, mas parei ao ver que a rocha em que eu estava era um contraforte separado do baluarte principal e entre mim e a próxima laje ficava uma aberta que descia a prumo até ao nível do cascalho lá embaixo.

A aberta tinha cerca de um metro e vinte, no máximo. E do outro lado, na parede da chaminé, havia uma pequena plataforma triangular, acima da qual uma profunda fenda estendia um retalho de sombra.

Ali estavam o ponto de apoio para as minhas mãos e a plataforma para os meus pés, desde que eu transpusesse aquela aberta. Mas eu bem via que estava quase arrasada. A respiração era penosamente entrecortada. Tinha machucado um pé e as mãos estavam sangrando.

Hesitei ali, na borda da fenda aberta na pedra. Ouvi então o rolar de pedras soltas atrás de mim, bem perto. Virei-me, aterrorizada, procurando desesperadamente outro meio de fuga. Para qualquer dos lados, havia uma queda a prumo de dez metros até ao cascalho. Diante de mim, o abismo. Vi a mão do assassino agarrar a borda da plataforma onde eu estava. A cabeça apareceu logo depois e os olhos vaziop de qualquer sentimento de humanidade me fitaram.

Virei o corpo e dei o salto sem pensar nem um instante mais. Fui cair na pequena plataforma. Bati com o joelho numa pedra, mas quase não senti dor porque logo estendi desesperada­mente as mãos e consegui agarrar-me à fenda. Recolhi depois o joelho e com uma torção do corpo instalei-me na chaminé, que era suficientemente estreita para que eu me apoiasse num dos lados enquanto procurava pontos de apoio no outro. Subi assim por ela como um limpador de chaminés cujo patrão acen­desse o fogo embaixo

Cheguei afinal num último impulso ou, melhor, numa última convulsão ao alto da chaminé e fui sair numa profunda plataforma coberta por uma projeção de rocha como se fosse uma marquise.

Dessa vez estava acuada. Ainda que pudesse escalar a marquise que se estendia acima de mim, não teria mais forças para isso. O que eu fizera tinha sido um prodígio. Nada mais era possível. Estava perdida. E o lugar onde me encontrava era uma pequena laje de um metro por três. Estava juncada de pequenas pedras e de flores da montanha.

Agachei-me entre as flores perfumadas e olhei para baixo.

Roderick estava mais de cinco metros abaixo de mim na borda do abismo, com o rosto contorcido levantado à minha procura. Tinha a respiração ofegante, o suor lhe escorria do rosto e a faca lhe brilhava na mão...

Gritei então. O som se despedaçou de encontro às pedras em milhões de ecos fragmentados e ásperos que rasgaram o silêncio da tarde. Um corvo levantou vôo acima de mim com um grito assustado.

Alguma coisa me passou rapidamente ao lado do rosto sibilante como um chicote. A faca de Roderick bateu no penhasco atrás de mim e se partiu numa centena de notas tilintantes que desapareceram no fole do eco a novo grito meu.

Roderick soltou uma praga abaixo de mim e levantou as mãos vazias, com os dedos retorcidos como garras —            Vou subir! — gritou ele furiosamente e eu vi que dobrava os joelhos para o salto através do abismo.

Agarrei uma grande pedra irregular e equilibrei-a na borda da plataforma.

—        Não venha! — gritei com voz estrangulada. — Fique onde está ou eu lhe arrebentarei a cabeça com uma pedra!

Olhou para cima e recuou um pouco. Riu então e, com o riso, a situação se transformou por completo e se organizou em moldes novos e ainda mais loucos porque o riso dele era genuíno e cheio de sincera satisfação. No rosto levantado para mim, não havia mais ferocidade. Voltara a ter a sua alegria, o seu encanto e até um pouco de afeição.

Quebrei minha faca, Janet. Deixe-me subir. Agarrei-me aos resquícios do meu juízo.

Não! Fique onde está, senão vou jogar esta pedra! Ele tirou os cabelos que lhe caíam sobre os olhos.

— Você não iria fazer uma coisa destas, querida Janet!

—        disse ele e pulou sobre o abismo como um cabrito montês.

Passou então para a pequena plataforma triangular abaixo de mim com uma das mãos apoiada na fenda. Os músculos estavam tensos e ele se preparou para subir pela chaminé atrás de mim.

Tinha a cabeça inclinada para trás e os seus olhos azuis fitavam os meus.

—        Você não pode fazer uma coisa destas, pode? — disse ele. E Deus me ajude, mas eu não podia. Segurei a pedra,

levantei-a, pronta para jogá-la... mas alguma coisa me deteve-

—        o imaginado impacto da pedra na carne, o esfacelamento de ossos, misturados com olhos e cabelos.. . Não, eu não podia fazer isso. Senti-me tonta e nauseada e larguei a pedra entre as flores da plataforma.

—        Não, disse eu, estendendo as mãos à minha frente, como se quisesse afastar do espírito a visão da violência. Não, não posso...

Ele tornou a rir e continuou a subir. Alguma coisa bateu então na pedra a alguns centímetros da cabeça dele. A explosão do tiro repercutiu na montanha como o trovejar de um expresso que sai de um túnel.

—        Não se preocupe, Gianetta, eu posso, disse Nicholas carrancudamente, tornando a atirar.

Só então percebi que, um pouco para o norte, a orla do nevoeiro estava quebrada e revoluteava, enquanto vários homens emergiam dela e começavam a subir a toda pressa a encosta: o Inspetor, Hecky, Neill e Jamesy Farlane.

Nicholas, bem à frente deles, tinha chegado já à base do baluarte. O seu segundo tiro despedaçou em fragmentos a pedra em que estava apoiada a mão de Roderick. Ouvi o assobio da bala que ricocheteava e vi Roderick encolher o corpo e, então, ficar imóvel de encontro à pedra.

Os outros homens, que vinham correndo pelo cascalho acima estavam já quase à mesma altura que Nicholas. Ouvi o Inspetor gritar alguma coisa.

Roderick virou o corpo e desceu rapidamente a chaminé. Voltou à pequena plataforma e pulou para o outro lado. Depois, saiu correndo pelo alto do degrau. No mesmo instante, ouvi o tropel dos perseguidores que, espalhando-se, subiam pelo lado norte do baluarte.

Roderick parou um instante, equilibrado como se estivesse em posição de vôo. O sol lhe brilhava nos cabelos dourados en­quanto êle olhava para um lado, para outro... Saltou então para o lado sul, balançando o corpo e desapareceu.

Alguém gritou. Hecky estava um pouco mais abaixo do baluarte e tinha-o visto. Vi-o gritar e apontar, enquanto subia com mais empenho o penhasco.

Mas Roderick tinha uma boa dianteira e se movia com a agilidade de um cabrito montês. Em menos tempo do que é gasto em contar, pulou para o cascalho do lado sul do baluarte e começou a descer.

Mas Nicholas tinha sido mais rápido. Devia ter ouvido Roderick pular porque, apenas alguns segundos depois que o assassino iniciou a sua descida alucinada para procurar proteger-se com o nevoeiro, Nicholas começou a descer do lado norte do baluarte.

De onde eu estava, podia vê-los ambos. Aquela corrida dava àquele dia incrível um final tão fantástico quanto seria possível imaginar. Ali estava o grande dique de pedra, descendo pela encosta da montanha para perder-se no grande mar do nevoeiro e, de um lado e do outro, corriam os dois homens, saltando e escorregando sobre o perigoso cascalho num último duelo alucinado de velocidade.

Houve um momento em que Roderick escorregou e caiu sobre um joelho, apoiando-se nas mãos. Nicholas ganhou quatro largas passadas antes que ele se levantasse de novo e se preci­pitasse montanha abaixo ileso, em busca do abrigo do nevoeiro. Já faltava pouco... trinta metros, vinte... o baluarte de pedra entre eles não era mais que um muro baixo... e então Rode­rick viu Nicholas e mudou de rumo, correndo num ângulo que o afastava dele.

Vi Nicholas estender o pé para a frente e frear a descida como um esquiador, levantando as pedras. Alguma coisa lhe brilhou na mão.

Ouvi então o Inspetor gritar de algum ponto abaixo de mim:

—        Não atire!

Nicholas jogou a pistola nas urzes e, apoiando a mão no muro de pedra, saltou. Roderick lançou um rápido olhar para trás e em três grandes pulos alcançou a orla do nevoeiro, ficando dentro em pouco invisível.

Vinte segundos depois, Nicholas seguiu-o e desapareceu.

Então, em torno de mim, os penhascos e o claro ar azul dançaram diante de meus olhos e se dissolveram como o próprio nevoeiro. O cheiro das flores me envolveu, enjoado como vapores de éter, ao mesmo tempo que a luz do sol se partia em miríades de flocos dançantes de luz num vórtice para o qual eu era arrastada. Em redemoinho no qual eu flutuava leve como uma pena, insubstancial como uma partícula de pó...

Então, do meio desse caos surgiu a voz calma do Inspetor Mackenzie, que me dizia:

—        Acorde, moça. Está na hora de descer daí.

Descobri que estava comprimindo os olhos com as mãos. Tirei-as e a luz tornou a brilhar. As coisas voltaram aos seus lugares e eu olhei para baixo.

O Inspetor Mackenzie estava no alto do degrau, onde Roderick tinha estado, e Jamesy Farlane se mostrava ao lado dele.

Como foi que conseguiu subir até aí?

Não me lembro. E... não posso descer, Inspetor. Ele não discutia

Está bem. Temos de fazê-la descer. Fique onde está.

Os dois começaram a trabalhar com cordas. Depois, Jamesy atravessou o abismo com uma facilidade cômica e ficou ali parado, examinando a chaminé. Vi que o Inspetor estava olhan­do para trás.

Nicholas...murmurei com voz rouca, mas êle me interrompeu.

Não se preocupe com ele. Hecky e Neill foram também atrás do homem, como você teria visto se não tivesse feito a tolice de desmaiar. O seu homem não corre nenhum risco, moça.

No momento em que ele acabava de falar, vi Nicholas emer­gir lentamente do nevoeiro. Movia-se como um homem exausto, mas parecia estar ileso. Levantou a cabeça e olhou para nós. Em seguida, apressou o passo e ergueu a mão numa espécie de gesto que eu não pude interpretar, mas que pareceu satisfazer o Inspetor.

Não posso dizer que tenha sido senão uma dor de cabeça para o pobre Jamesy quando ele afinal apareceu ao meu lado com uma corda e procurou ensinar-me como eu devia descer.

Na verdade, não me posso lembrar de como essa descida foi afinal efetuada. Sei que ele amarrou a corda em torno de meu corpo e no corpo dele também, fazendo-a depois passar em volta de um espigão de pedra. Sei também que me deu uma porção de instruções, mas se as segui ou não é coisa de que não faço a menor idéia. Creio que Jamesy fêz descer o tempo todo meu corpo inerte.

Afinal, meus pés tocaram o cascalho e, no mesmo instante, alguém me tomou nos braços.

—        Oh. Nicholas! — murmurei e tudo desapareceu de novo diante de mim...

Quando Nicholas mergulhou no nevoeiro em perseguição a Roderick, não estava a mais de vinte metros atrás dele e, conquanto não pudesse ver coisa alguma através da espessa cortina, ouvia perfeitamente o barulho da fuga do outro. É pro­vável que Roderick acreditasse que Nicholas ainda tinha a pistola, ao passo que ele, tendo perdido a faca, estava desarmado. Podia ter ouvido também Neill e Hecky descendo a encosta logo depois de Nicholas. Ou talvez tivesse sido afinal dominado pelo pânico e continuasse a correr, sem poder mais parar. Fosse como fosse, não esboçou qualquer tentativa de atacar o homem que o perse­guia, mas fugiu através do nevoeiro até que ambos chegaram ao terreno plano do vale.

A marcha ali era mais fácil, mas Nicholas logo compreendeu que estava alcançando rapidamente o outro. Roderick já fizera esforços físicos excessivos naquela tarde e fraquejava visivel­mente, uma vez passado o impulso momentâneo que lhe dera o pânico. Nicholas ia-se aproximando, quinze metros, dez, sete... enquanto o intervalo entre os dois se fechava. Por fim, Roderick se voltou e atacou o seu perseguidor, emergindo do nevoeiro.

Foi uma luta feroz, sem quaisquer restrições. Mas não era muito igual pois, enquanto Nicholas tinha apenas, por assim dizer, o mandato de impedir a fuga do assassino, este queria matar o seu perseguidor, se fosse possível. Era difícil imaginar como teria a mesma terminado, mas Neill e Hecky, guiados pelo rumor da luta, chegaram dentro em pouco e Roderick, apesar da resistência desesperada que ofereceu, foi dominado.

E quando Dougal Macrae, ainda furioso, chegou ao local, tudo terminou. Completamente subjugado, Roderick foi levado para o hotel pelos três homens, onde ficaria até que chegasse transporte. Nicholas, com a respiração ofegante e um ferimento no rosto, viu-os desaparecer dentro de nevoeiro e voltou a subir a encosta, onde brilhava o sol.

 

De tudo isso eu tinha sabido, sentada ao lado de Nicholas, encostada a um rochedo aquecido pelo sol. Eu tinha sido forta­lecida com uísque e um cigarro e estava contente em ficar ali, ao sol, antes de tentar a volta ao hotel.

O Inspetor deveria partir imediatamente com o seu prisioneiro para Inverness. Parou diante de nós antes de seguir para o hotel.

—        Não está mesmo sentindo coisa alguma, moça?

—        Não, muito obrigada, — disse eu, sorrindo para ele através da fumaça de meu cigarro.

Ele olhou para Nicholas e me disse.

Parece que eu estava errado.

Que quer dizer com isso?

Pensei que estivesse escondendo provas importantes. Fiquei vermelha e perguntei:

Que foi que imaginou que eu sabia e não lhe disse?

Pensei que tivesse reconhecido o homem a quem viu diante da fogueira.

Não, não reconheci. É a verdade.

Acredito... — murmurou ele, mas seu olhar o des­mentia e eu senti o rubor aumentar. — Ainda assim, seria capaz de jurar que estava escondendo a verdade a respeito de alguma coisa.

E estava. Mas não sobre isso. Era sobre uma coisa que eu ouvi, não sobre uma coisa que vi.

Ele tornou a olhar para Nicholas e sorriu.

Está bem. Vou chegando. Estou contente de deixá-la em tão boas mãos. Tome conta dela, Sr. Drury. Passou maus momentos.

Sem dúvida alguma, — disse Nicholas.

Mais uma coisa, — disse o Inspetor Mackenzie com alguma severidade. — Tem licença para porte de arma?

—        Arma? — perguntou Nicholas. — Que arma?

O Inspetor franziu a testa e disse:

—        Era o que eu pensava. Está bem, veja se consegue a licença.

Afastou-se então de nós e desapareceu no nevoeiro.

Ficamos então sozinhos na montanha, ilhados pelo nevoeiro, dentro do qual flutuavam, nas distâncias douradas, os cumes das montanhas. Doces e acres, os cheiros das flores e dos matos nos envolviam e os pássaros tinham voltado a desfiar as suas notas cristalinas.

Dei um suspiro e reclinei-me contente na pedra quente.

Tudo acabou. murmurei. É difícil de acreditar, mas acabou.

Meu Deus, quanta preocupação você me causou! disse Nicholas. Eu sabia que Grant havia saído do hotel, mas o Inspetor havia destacado Neill para vigiá-lo. De repente, o nevoeiro caiu e Neill voltou dizendo que tinha perdido o homem de vista... Eu sabia onde você e Dougal estava pescando e me dirigi para lá o mais depressa possível. Os homens da polícia saíram imediatamente no encalço de Grant. Ouvi então uma exclamação de Dougal e, depois, um grito seu. Corri para lá. Encontrei o seu caniço, mas você tinha desaparecido e comecei a procurá-la. Atravessei o pântano...

Sei disso. Eu ouvi. Estava escondida bem perto.

Tolinha...

—        Bem, eu estava assustada. Pensava que o assassino era você e não me tranqüilizei quando ouvi você chamar o meu nome daquela maneira sinistra.

Ele riu.

—        Desculpe, mas eu sabia que Grant podia estar mais perto de você do que eu e, se você me respondesse de muito longe, ele poderia alcançá-la antes de mim. Queria você sob a minha guarda e então...

—        Sabia então que era Roderick?

Claro que sim. Havia já algum tempo que eu descon­fiava dele, o mesmo acontecendo com o Inspetor Mackenzie, mas não havia provas.

Qual era a informação que o Inspetor estava esperando de Londres ? Não, não... Comece do princípio, Nicholas. Con­te-me tudo...

Mas é esse o princípio. A informação que chegou hoje é realmente o princípio da história. Refere-se à família de Rode­rick Grant. Sabia que o pai dele era ministro?

Ele me falou um pouco sobre isso. Tive pena dele nessa ocasião. Era um menino solitário que vivia atrás do vento norte... Foi onde êle disse que ficava a casa dele.

A descrição não está muito longe daí realidade. Já estive em Auchlechtie. É um simples povoado de cerca de uma dúzia de casas num vale perto de Bheim u' Bhürid. A casa paroquial, onde os Grants moravam, ficava a cinco quilômetros da aldeia, ao lado das ruínas da igreja velha e do seu cemitério primitivo. Tinham construído uma igreja nova na aldeia, mas a casa do ministro era isolada, ao lado do velho cemitério murado cheia de lápides quebradas e mato.   — Ele me disse que vivia sozinho com o pai.

De fato. A mãe dele morreu quando êle nasceu e a avó paterna criou-o até aos nove anos. Morreu depois num asilo...

Que coisa horrível, Nicholas! Então, o pai, a família do pai...

Exatamente. O pai dele sempre foi o presbiteriano severo e inflexível que era comum na ficção e talvez o fosse ainda mais na realidade. Nesse homem, o desequilíbrio revelou-se a princípio apenas num excesso de austeridade e numa apaixonada absorção nos estudos do passado que acabaram por dominá-lo inteiramente e se tornaram mais reais do que a própria vida em torno dele se é possível chamar de real a vida que se levava naquela casa remota e isolada no vale deserto. Por fim, só tinha realidade para ele a história dos velhos ossos naquele velho cemitério. E o menino só interessava ao pai como alguém a quem ele podia transmitir as suas idéias, muitas delas fantás­ticas, sobre os antigos costumes e lendas da Escócia.

Roderick me disse que tinha aprendido a render culto às montanhas, disse eu. Nunca pensei que assim fizesse literalmente.

Mas fazia. Deve ter passado grande parte da infância escutando as histórias e as teorias do pai, sendo impregnado das suas versões dementes e deformadas dos velhos costumes populares do Norte, as tolices incoerentes e inexatas de que lhe falou hoje. Deve ter criado pouco a pouco, no seu espírito desarranjado, uma nova espécie de mitologia, de que o assassinato supostamente ritual de Heather Macrae foi um exemplo concreto. Uma mistura de fatos tirados dos livros e das pesquisas do pai, fragmentos mal lembrados e deformados de folclore que se juntavam como os vidros coloridos de um calidoscópio e formavam um quadro da violência que parecia perfeitamente lógico ao seu cérebro doentio.

Eu sei. Li algumas dessas coisas no Ramo Dourado.

Ah, sim, meu Ramo Dourado. O Inspetor me disse que estava com você. Procurei-o por toda a parte na noite passada. Pensei que o tivesse deixado no carro.

—        Peguei-o para ler, inteiramente por acaso.

Expliquei-lhe onde encontrara o livro e ele me olhou com uma expressão enigmática.

Entregou-o então ao Inspetor. Se tivesse sabido que era meu...

Mas eu sabia. Havia nele, marcando as páginas, um envelope com seu endereço escrito com a letra de Papai. Está em meu bolso.

Está mesmo? — perguntou ele, voltando para mim os olhos que eu não pude encarar. — Por que não entregou também o envelope ao Inspetor?

Não sei... Mas como foi que Papai soube que você estava aqui?

Como? — exclamou ele, percebendo um pouco desconcertado. — Ah, escrevi para ele pedindo que me mandasse o livro. Não havia ninguém em meu apartamento a quem eu pudesse pedir que me mandasse o meu. Acontece que Grant tinha dito algumas coisas que me intrigaram — pequenas afirmações inexatas que me pareceram citações incompletas de Frazer e de livros mais antigos que foram as fontes de Frazer. E quando eu vi que alguns dos detalhes do livro de Frazer coincidiam com os do sacrifício da pobre Heather Macrae... é claro que mostrei o livro ao Inspetor Mackenzie.

Mostrou o livro a ele? Quando?

Na semana passada.

Ele sabia então que o livro era seu?

Claro que sabia.

Então por que... — murmurei, lembrando-me do olhar bondoso e compassivo do Inspetor. — Ele nunca suspeitou de você, Nicholas?

Pode ter desconfiado a princípio e mesmo depois que eu lhe ofereci as provas do livro. Afinal de contas, eu, Hubert Hay e Grant tínhamos realizado alguns estudos folclóricos por aqui. Mas Hay tinha um álibi. Estava em sua companhia na hora em que Marion foi assassinada. E eu, se deixarmos de lado as possibilidades de blefe que ocorreriam a um criminoso experimentado, havia patenteado a minha inocência, apresentando provas à polícia. Só restava, portanto, Grant.

Por que então o Inspetor se mostrou tão bondoso e com tanta pena de mim hoje de manhã? Ele falou de lealda­de e...

E você pensou que ele estava insinuando que o culpado era eu? Por que devia você presumir que a sua lealdade era a mim que cabia, Gianetta?

Quer dizer que ele pensou que foi Roderick quem eu vi ao lado da fogueira?

— Claro que sim. Ele pensou que você estivesse gostando de Roderick Grant. Creio que o culpado fui eu. Disse-lhe isso, com muito pouca base, é certo, salvo o fato evidente de que Grant, ao seu modo, estava evidentemente interessado em você.

Fiquei estupefacta.

Foi dizer ao Inspetor que eu estava gostando de Rode­rick Grant?

Mais ou menos. Desculpe, Gianetta. Mas você sabe como é... O ciúme exagera as coisas.

Deixei isso passar. Ao fim de um momento, ele continuou.

Não sei se o Inspetor acreditou em mim, mas quando você deu a impressão de que estava protegendo Grant, ele pensou que você suspeitava dele e relutava em denunciá-lo.

Mas isso é um absurdo! É claro que jamais gostei dele. Achei-o simpático, atencioso, mas gostar dele, nunca! É uma tolice fantástica!

Por quê? — perguntou ele, brandamente.

Por quê? — exclamei e mordi os lábios. Senti a cor fugir-me do rosto e olhei para ele. Os olhos, apertados em conseqüência da fumaça do cigarro, estavam sonhadoramente voltados para a longa orla cintilante do nevoeiro. Mas havia um sorriso a enrugar-lhe os cantos da boca e eu me apressei em dizer: — Mas quando foi que o Inspetor se fixou em Roderick? Os outros hóspedes do hotel não eram suspeitos também?

É claro. Qualquer dos outros homens — Braine, Corrigan, Persimmon, Beagle — poderia ter um interesse inconfessado pelo folclore, mas o assassinato de Marion estreitou rigidamente as possibilidades, desde que ficou demonstrado que o assassino devia ser também um proficiente montanhista. Logo depois, o melhor montanhista do grupo — o pobre Beagle — foi assassi­nado também.

Mais uma vez, só restava Roderick.

Isso mesmo. Ontem de manhã, o Inspetor achou que Roderick estava virtualmente sozinho no campo dos suspeitos, mas sem dispor ainda da menor prova contra ele. Você então encontrou Roberta e ele poderia ter tido as provas desejadas, mas não teve coragem de esperar muito para que ela abrisse a boca. Deu então outro telefonema apressado para Londres a fim de obter qualquer informação sobre Grant que justificasse a prisão dele. Mas só conseguiu alguma coisa nesse sentido hoje de manhã.

—        O fato de que a avó dele morreu louca? Foi bastante?

—        Não foi só isso. O pai dele também morreu louco há dois anos.

—        Meu Deus!

Bem, isso era bastante para justificar a prisão preventiva dele, afastando-o da circulação até que Roberta pudesse falar. Mas foi tarde demais. O maldito nevoeiro caiu e Grant se desvencilhou de Neill e saiu à sua procura. Passou então o braço pelos meus ombros e me beijou os cabelos, murmurando : — Bobinha...

Não sei por que bobinha... Nada me teria acontecido com Dougal se o nevoeiro não tivesse caído... Mas diga-me uma coisa, Nicholas...

—        Sim?

Dougal tinha uma faca que eu vi. Quando capturaram Roderick, ele não o atacou?

Não. Apareceu furioso e com sede de vingança, mas se conteve quando viu Grant.

—        Por quê?

—        Grant se desarvorou. Quando consegui alcançá-lo, lutou ferozmente, mas quando Dougal apareceu também e ele viu que estava mesmo perdido, pareceu esvaziar-se, desmoronar-se. Tornou-se de um momento para o outro inofensivo e gentil. Não posso nem descrever direito o que aconteceu. Pareceu mudar de personalidade instantaneamente.

—        Fez o mesmo comigo.

—        Foi? Então você sabe do que eu estou falando. No momento em que acabei de lhe dar um soco no queixo, ele sorriu para mim da maneira mais gentil e limpou o sangue do rosto.

—        Não se lembrava mais de quem havia batido nele.

—        Creio que não. Sorria para todos nós. Foi nessa hora que Dougal guardou a faca, pegou-o pelo braço e disse: "Vamos, rapaz... Temos de sair de dentro deste nevoeiro". E ele se foi muito feliz, junto com os três. Pouco depois, ouvi a voz dele que cantava, todo feliz... Pobre diabo, pobre diabo maluco...

Não deverão enforcá-lo, Nicholas.

Não.

Apagou o cigarro e jogou-o bem longe como se dessa maneira pudesse livrar-se de todas as recordações desagradá­veis. Perguntou-me então de repente:

- Você me viu com Marcia Maling, não viu?

—        Vi.

—        Ouvi você passar quando ela... quando nós nos beijávamos à porta do quarto dela.

—        Você me ouviu? Mas se eu não fiz o menor barulho!

Não sabe que meus instintos trabalham dobrado em tudo o que se refere a você? Mesmo no escuro e até quando estou beijando outra mulher.

Talvez mais ainda quando você está beijando outra mulher.

Touché. Mas, naquela ocasião, posso garantir que fui mais beijado do que beijei.

—        Toda a noite?

Ele levantou as sobrancelhas.

—        Que quer dizer com isso?

Disse então que tinha ouvido uma voz de homem no quarto dela mais tarde naquela mesma noite.

Não podia deixar de presumir que fosse você. E quando lhe perguntei na manhã seguinte...

Compreendo. Pensei que se estivesse referindo ao beijo que tinha visto. Não, Gianetta, não passei a noite com ela. O que aconteceu foi que eu fui assaltado, por assim dizer, sem qualquer intenção de minha parte.

—        Tenho certeza de que resistiu o mais possível ao assalto. Ele riu e nada disse.

—        Então, o homem que estava com ela no quarto devia ser Hartley Corrigan! Foi por isso que ele voltou cedo da pesca naquela noite, mas Alma Corrigan disse que ele só foi para a cama às três da madrugada.

— Também acho. E quando Alma compreendeu o que tinha acontecido pegou o batom e assassinou a boneca de Mareia.

—        Pobre Alma!

—        Bem, está tudo acabado para ela, também. Acho que os dois levaram um susto e acabaram compreendendo o que representam um para o outro... — Olhou para mim um ins­tante e disse com uma voz completamente diferente: — E agora, vamos falar sobre nós?

Não respondi. Meu coração batia apressadamente e eu não podia confiar em minha voz. Sentia-lhe os olhos sobre mim e afinal ouvi-lhe a voz lenta, como se ele estivesse lutando com alguma dificuldade.

—        Gianetta, não vou começar com desculpas e justificações, embora Deus saiba que você tem muito que me perdoar. Mas Deus sabe também que motivos você teve para me perdoar. Mas disso falaremos depois. Deixe-me acabar... O que lhe quero dizer agora é muito simples e é tudo o que me interessa no mundo. Quero que volte para mim, Gianetta. Quero você de volta mais que tudo no mundo. Sei perfeitamente que fui um idiota absoluto e criminoso. Compreendi isso dois dias depois de brigarmos, mas então o meu orgulho interveio e me impediu de ir procurá-la.

Lembrei-me, de haver dito a Alma Corrigan que o orgulho não cabia no casamento. O que ele disse em seguida foi quase uma repetição disso. — E eu a amo, querida. Nunca deixei de amá-la. — Pegou-me gentilmente pelos ombros e fez-me olhar para ele. — Aceita-me de novo, Gianetta?

—        Nunca tive qualquer orgulho em nada que se referisse a você, Nicholas, — disse eu, beijando-o.

Depois, muito depois, ele me perguntou:

Tem certeza? Tem certeza, querida?

Absoluta, Nicholas querido...

Gianetta, mia...

Depois, muito depois, ele riu, com o braço passado pelos meus ombros.

Sabe que não foi por pura coincidência que nos encontramos aqui?

Não? Mas como...

Seu pai. Entrei de novo em contato com seus pais há algum tempo. Como deve saber, o nosso divórcio perturbou-os muito e eles estavam ansiosos para que voltássemos às boas. Pobre Gianetta, você não tinha muitas chances. Seu pai me disse categoricamente que você nunca seria feliz longe de mim e sua mãe... bem, acho que ela nunca aceitou realmente o fato de que estivéssemos divorciados.

Claro que não. Para Mamãe, divórcio é coisa que não existe.

Foi o que eu compreendi. Bem, eu estava aqui no começo de maio e escrevi a seu pai, pedindo-lhe que me mandasse o livro de Frazer. Pouco depois, telefonei para ele de Armadak e ele me disse que você tinha conseguido férias e que ele havia providenciado...

Que velho Maquiavel! — exclamei, rindo. — E Mamãe disse que tudo parecia de propósito...

Tudo foi feito de propósito realmente, — disse Nicholas. — Afinal, eu só precisava mesmo era de uma chance de falar com você... Mas você fugiu deliberadamente de mim e eu pensei que seu pai estava errado e que tudo estava acabado para mim... Eu tinha tido tanta certeza... Achava que merecia uma oportunidade. Tive essa oportunidade. Mas você chegou e eu não podia aproximar-me de você... Procedi então da pior maneira possível, como o idiota que eu sou. Não tenho justificativa senão o fato de que quase fico louco, vendo-a tão perto de mim... e mais distante do que nunca. O maior choque que levei foi quando descobri que você não usava mais meu nome, nem a aliança.

Só deixei de usá-los quando vi seu nome no registro do hotel. Veja. — Estendi a mão e mostrei a marca da aliança mais clara no anular da mão esquerda. Nicholas olhou-a por um instante e tomou-me nos braços.

Vai então deixar-me voltar à sua vida depois de tudo o que eu fiz?

Você disse que não falaríamos mais sobre essas coisas...

Não, Eu gosto de ter as coisas com facilidade. Seria bem feito se você agora me dissesse que eu voltasse para o meu canto e deixasse de perturbar a sua vida.

Não, não lhe vou dizer isso, Nicholas... Só lhe peço uma coisa: nunca mais me deixe. Não sei se seria capaz de suportar.

Ele me abraçou e me disse quase com ferocidade:

—        Nunca mais, Gianetta! Nunca mais!

Movi-me nos braços dele, num momento de pura felicidade.

E se, quando chegarmos a Tench Abbas, Mamãe nos receber como se nada tivesse acontecido e nos colocar calmamente no quarto dos hóspedes?

Então é melhor nos casarmos de novo antes de che­garmos lá, — disse Nicholas, — ou eu não responderei pelas conseqüências.

E foi o que fizemos.

 

                                                                                Mary Stewart  

 

                      

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