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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


FORÇA DE UMA PAIXÃO / Corin Tellado
FORÇA DE UMA PAIXÃO / Corin Tellado

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

FORÇA DE UMA PAIXÃO

 

O quarto era modesto, sem pretensões. Objetos espalhados por todos os cantos. O chão de mosaico reluzente. Uma cama laqueada, bem no meio. Um armário peque­no colocado num canto. Duas cadeiras di­ante de uma escrivaninha e sobre ela pa­péis, livros, canetas, pacotes de tabaco...

Um pé de sapato jogado embaixo da ca­ma revolta. Mais adiante, um pijama amassado e desbotado. Sobre a mesinha de cabeceira um prato com restos de queijo.

Na parede vazia e sobre a cabeceira da cama estava pendurado um crucifixo. Era a única coisa de valor no quarto daquele homem alto e desengonçado que contemplava uma pintura colocada na parede oposta.

Daniel Rocero não se preocupava com o valor daquela pintura; o principal era que representava uma mulher que, pre­cisamente por ser pintada e não de carne não o intimidava. A ela poderia dizer tu­do que sentia dentro de seu coração sem envergonhar-se.

Os olhos de Daniel, claros e sem tona­lidade definida, cravaram-se fixamente na­quela pintura descolorida, enrugada e ve­lha. Para ele representava uma mulher morena, de grandes olhos castanhos e ca­belos compridos e sedosos.

— Escute, Helena! eu a quero mais do que a este quadro... Juro-lhe que meu amor é tão grande quanto o escritório do diretor de um banco... Ah!

Suspirou. Era um idiota! O que tinha a ver o amor com a sala do diretor do banco? Sempre tinha que sair pela tan­gente. Era inútil; ele não servia para de­clarar amor a uma mulher, apesar de trei­nar todos os dias diante daquele quadro para depois repetir à linda Helena, a jo­vem que todas as manhãs o contemplava com seus grandes olhos cheios de luz e do­çura...

Esticou o pescoço. Fez como se incli­nasse e exclamou como um cavalheiro que declamasse à sua dama:

— Corresponda ao meu amor, Helena. Nosso lar será invejado por todas as suas amigas. Uma casinha à margem de um rio, muitas flores. Nosso amor surgiria com tanta pureza e clareza como as contas do banco... Pronto! Acabo sempre me afas­tando do assunto. Sou uma calamidade, Helena — passou as mãos pelos cabelos, desesperado. — É inútil. Dentro da ca­beça só tenho o banco, o diretor, os auxiliares e o amor que sinto por você, Helena.

Retorceu o nariz — um gesto muito seu — e acrescentou, cansado:

— Helena, se eu não fosse um desas­tre, se eu tivesse coragem, audácia sufi­ciente para dizer-lhe o quanto a quero...

Olhou-se vagamente: era alto, magro, possuía um rosto atraente, cabelos negros, testa larga, nariz afilado. O queixo enér­gico, a boca grande e dentes perfeitos que sobressaíam naquele rosto moreno e cur­tido.

— Ei! — deu meia-volta. — Nove horas. Nossa! E ainda nem me vesti.

E enquanto dizia isso, começou a ves­tir-se. Pôs uma calça qualquer, uma ca­misa que, embora limpa, estava mal pas­sada e saiu à rua.

Na porta, sentiu um frio terrível nos pés... e olhou para baixo.

— Nossa! — gritou.

Um transeunte olhou-o assustado, pensando, sem dúvida, que se tratava de um louco. Estava des­calço!...

Voltou ao seu quarto. O relógio mar­cava nove e dez. Não olhou o que calçava.

Segundos mais tarde alcançava a rua de um salto.

Sentiu que todos o olhavam e caíam na gargalhada. Mas não imaginou que es­tivessem rindo dele.

 

Maria Helena Mambride, a bela datilo­grafa do banco, achava-se sentada diante de sua "Olivetti" quando a porta girató­ria do hall se abriu de um golpe para dar passagem ao caixa.

A gargalhada saiu espontânea da gar­ganta de Margui Tonelly, outra das datilógrafas que trabalhava ali, e aquela gar­galhada levou a outras, e logo, ouviu-se cochichos e risos abafados.

O caixa, alheio aos comentários de que era objeto seguiu direto, desaparecendo pe­la porta do seu departamento.

— É um pobre coitado — disse, pena­lizado, um dos rapazes que sentava perto de Maria Helena.

— Mas muito esperto — replicou a jo­vem, que trabalhava do outro lado. — Acha que se não fosse teria subido de posto tão rapidamente?

— Talvez tenha pistolão...

— Que nada! — interrompeu Helena, que até agora permanecera calada. — To­dos sabemos que quando ele entrou aqui era um joão-ninguém, sem apoio nem dos amigos. Hoje... é o caixa; e tudo isso de­vido ao seu esforço e à sua inteligência privilegiada, apesar de sempre parecer vi­ver no mundo da lua.

Aproveitando que o chefe do pessoal não estava na sala, um dos rapazes se aproxi­mou para conversar com Helena:

— Se o chefe o vir assim...

— Não se preocupe, Margui. Notaram os pés do caixa?

O pessoal voltou a rir.

— Não o entendo. Hoje está fazendo um frio terrível e ele vem de jaqueta es­porte. Na semana passada, que o sol quei­mava, apresentou-se com um terno de gabardine.

Helena interveio chateada. Era uma jovem doce e nobre. Pouco lhe importava o caixa, mas, como sempre, ficava do lado de todo aquele que era humilhado.

— Não brinque. Ele deve ter muito com o que se preocupar. Coitado.

— Mas, Helena, ele não deve ter mais de vinte e oito anos, e tem uma carreira brilhante. Por que sentir pena dele? — observou um dos colegas.

O chefe do pessoal apareceu na porta de repente e todos voltaram ao seu tra­balho.

A uma em ponto a campainha anunciou a hora do almoço.

Os comentários voltaram a ferver a res­peito do caixa e Helena pediu que paras­sem com a brincadeira.

Daniel passou por eles, cumprimentando-os com naturalidade.

— Viram? Continua com os sapatos da mesma maneira. Será que o chefe não lhe disse nada?

— Nao nos interessa.

— Mas, Helena, isto é digno de riso! — disse o rapaz que a acompanhava.

Os dois subiram no ônibus. Daniel Rocero também estava lá, com os olhos fixos num ponto indefinido e nem sequer notou que Helena o olhava com crescente curio­sidade.

Ela era nova no escritório e só conhecia o caixa de vista.

Nunca havia prestado muita atenção no homem que causava a hilaridade de seus companheiros. Observava-o agora de per­fil. Daniel continuava abstraído. Será que ele ainda não havia notado que estava com os sapatos do mesmo pé?

O ônibus se deteve no ponto. Todos des­ceram. Helena viu como Daniel Rocero an­dava apressadamente, sem olhar para trás.

— Nossa mãe, patrão! Olhe seus sa­patos!

— Hem?

— Olhe os sapatos que está calçando!

Daniel baixou a vista e assombrado fi­cou pensando no que Helena acharia da­quilo.

— Oh, Marieta! O que Helena pensará disso?

— Quem é ela, patrão?

— Uma beldade!

E dirigindo-se ao seu quarto, subiu a escada, pálido e desesperado.

 

— Do que está rindo, Helena?

— De algo realmente engraçado, ma­mãe. Não sei como pude me conter.

Sua irmã Sira interrogou-a, intrigado:

— O que houve?

A jovem riu alegremente, como não se atrevera a fazê-lo no banco.

— A verdade é que se não ri como os outros, foi porque senti pena do rapaz.

— Gostei de sua atitude, minha filha.

— Eu sei, mamãe. Se sou assim é gra­ças a você que me educa muito bem.

A senhora sorriu, orgulhosa. Era com­preensiva, doce e carinhosa. Depois que seu marido morrera, dedicou-se inteiramente às filhas. Teve de trabalhar para sustentá-las, enfrentar muitos problemas, mas tu­do valia a pena por aquelas crianças ma­ravilhosas.

Os anos se passaram e a pequena He­lena tornou-se mulher. Uma jovem boni­ta, inteligente e cheia de otimismo, que agora trabalhava para ajudar a família.

— Não vai nos contar o que aconteceu, Helena?

A voz de Sira rompeu o silêncio, fa­zendo as duas mulheres estremecerem.

— Claro que sim — sorriu Helena. — Há alguns dias contei-lhes sobre um rapaz que é todo esquisito, o caixa do banco. Pois hoje ele apareceu com uma roupa de verão e calçando dois sapatos de um mesmo pé.

Sira soltou uma gargalhada estridente. A mãe também não pôde conter o riso.

— E o que é mais engraçado, mamãe, é que passou a manhã toda sem se dar conta disso.

— Ele é velho, minha filha?

— Não! É um rapaz jovem e atraente e muito competente. Deve andar com a ca­beça cheia de contas para calcular.

— Ele tem família?

— Meus colegas dizem que não. Acho que é de Madri e vive aqui sozinho.

— Então é por isso, minha filha. Tal­vez não tenha quem cuide dele.

 

— Quer ir ao cinema, Helena?

— Não estou com muita vontade. Es­tou lendo um livro e gostaria de terminá-lo hoje.

— Pode ler à noite.

— E quem vai se levantar de manhã cedo por mim?

— Bem, não adianta insistir com você.

Estavam no ponto de ônibus. O dia de trabalho havia terminado e todos os em­pregados voltavam para suas casas.

— Vai à Praça da Luz, Helena?

As duas amigas voltaram a cabeça para olhar Pedro que, avançando para elas, per­guntou novamente:

— Querem ir ao cinema?

— Eu estava tentando convencer He­lena, mas ela é uma chata.

— Verdade, Helena?

— Saímos muito tarde...

— Que desculpa! Às quinze para às se­te passo para apanhá-las, de acordo?

— Está bem — ambas concordaram.

O ônibus chegou e todos correram para pegar lugar. Helena ficou de pé. Os ou­tros haviam-se acomodado lá na frente.

— Por favor, fique aqui. Estará me­lhor.

Olhou para onde procedia a voz, encon­trando os olhos sonhadores do caixa.

Sentiu um calor subir-lhe ao rosto. Era uma boba, pensou. Ele a olhava tão timi­damente.

— Lá na frente há muita gente. Aqui estará melhor.

— Obrigada.

— Helena! — gritou Pedro. — Venha para cá.

— Seus amigos estão chamando-a — dis­se ele, muito sério.

— Não importa. Ficarei aqui.

— Obrigado, Srta. Mambride.

A jovem ficou separada de seus colegas. Diante dela estava o caixa, que estendeu um braço e colocou-o perto da moça, com o fim de livrá-la da proximidade de outros corpos.

— Estou incomodando-a? É só para que ninguém a importune.

— Oh, não! Você é muito amável!

Ele ficou olhando-a e Helena sentiu al­go estranho: era a primeira vez que o dis­traído caixa falava com ela, que o obser­vou atentamente. Tinha um rosto comum, mas que irradiava simpatia e doçura. Seus olhos de uma cor indefinida contempla­vam as coisas vagamente...

Foi no momento em que seus olhos se encontraram que Helena compreendeu que aquele homem não era digno de compai­xão. Não... Não se podia catalogá-lo entre os infelizes. Seus olhos refletiam um po­der estranho que escapava à sua intuição.

O que expressavam aqueles olhos?

— Você não vem, Helena? — gritou Pedro.

— Obrigada, estou bem aqui.

— Verdade, senhorita? — perguntou o caixa.

— Não costumo mentir.

— A mentira é odiosa — disse ele, olhan­do vagamente pela janela.

— Também acho.

— No entanto, atualmente, parece que está na moda.

— No princípio do século também se po­dia observar...

Ele riu baixinho. Retorceu o nariz. A jovem não pôde deixar de rir, divertida.

— Já sei porque está rindo.

— Então sabe mais do que eu.

Ele voltou o rosto. Não queria olhá-la. Era mais bonita, mais atraente do que imaginara.

— Você estava rindo do meu gesto. — Atreveu-se a contemplá-la com aqueles olhos estranhos e acrescentou: — Sou um idiota. Esta mania de torcer o nariz é bem minha. E o pior é que não posso evitar isso. Seja sincera: não estava rindo disso?

— Vou-lhe falar francamente: ri por­que tenho uma irmã que torce a boca da mesma maneira que você faz com o nariz.

— Então temos algo em comum. Gos­taria de conhecê-la.

— É muito fácil. Todas as tardes ela toca na banda da Praça da Luz.

— Parece-se com você?

— Não. Somos completamente diferen­tes. Ela se parece com meu pai, que já morreu. E eu com mamãe.

— Sua mãe vive?

— Sim, graças a Deus.

— Tem tanto medo assim de perdê-la?

— Ora, que pergunta!

— Desculpe-me — entristeceu-se. — Sou um idiota. Como nunca conheci a mi­nha mãe, gostaria de saber o que se sente por ela.

— Mas mesmo sem conhecê-la nunca a amou?

— Sim, amo sua lembrança. É diferen­te... Morreu quando eu nasci.

— E seu pai?

— Morreu seis meses antes de minha mãe.

Ela se arrependeu de ter feito a per­gunta. Observou que ele se calou imedia­tamente, abstraído em seus pensamentos.

— Sinto tê-lo feito recordar...

Daniel pareceu ter saído de um sonho profundo.

— Não se preocupe.

O ônibus se deteve.

— Já chegamos — disse ela.

— Hoje o caminho pareceu mais curto. Não lhe importaria continuar essa conver­sa outro dia?

— Claro que não. Estava ficando muito interessante.

— Alegro-me que tenha gostado. Você me parece muito inteligente.

A jovem não pôde replicar. Estava na porta e Pedro exclamou diante deles:

— Como é, Helena? Olá, Sr. Rocero!

— Olá! Até outro dia, senhorita.

E se foi.

Maria Helena ficou observando ele se afastar, com toda a simpatia refletida em seus olhos.

 

A Praça da Luz estava soberba. No quiosque que se erguia no centro da po­pular praça, a Banda Municipal tocava o "Amor Bruxo".

Maria Helena, sentada num banco, olhava como Sira, em companhia de suas amigas, tocava entretida.

— Estou observando-a há algum tem­po. Perguntava-me se era você ou uma...

A jovem se voltou sobressaltada:

— Que susto!

— Posso sentar-me ao seu lado?

— Claro que sim.

— Pelo que vejo, gosta de músicá.

— Sim, ela nos diz tantas coisas...

— Você acha?

— Sinceramente.

Ele riu francamente.

— Talvez tenha razão.

— Você é um profano — disse, olhando-o fixamente.

— Pode ser — e mudando de assunto: — Já sei qual é a sua irmã.

— Ela lhe disse?

— Não; mas se parece com você.

— Essa não!

— Tem os mesmos gestos. Embora os traços sejam diferentes, tem algo de sua personalidade.

— Somos irmãs.

Calaram-se. Ele parecia inquieto e ner­voso. Helena compreendeu que aquele ho­mem além de ser distraído era muito tí­mido.

— Pensei que ia ao cinema com seus amigos.

Helena sorriu alegremente para animá-lo.

— Gosto mais de música clássica.

— Mística?

— Não, não. Simplesmente admiradora do belo e do bom. Bons livros, boa mú­sica, boa pintura... Sou admiradora de tu­do isso.

— O que lê de bom?

— Vai rir se lhe disser.

— Acha que rio muitas vezes?

Eles se olharam. Seus olhos enigmá­ticos lhe pareceram mais estranhos do que nunca. Baixou os seus. Apesar de tudo, seu olhar a intimidava. Era um homem tão estranho!

— Nunca o vi rir abertamente — dis­se, séria. — Claro que até hoje não con­versei com você, mas tampouco com o dire­tor do banco e já o vi rir várias vezes.

— Não sei rir. Nunca soube.

— Hein!

— Acha estranho?

— Francamente, sim.

— Bem, não sei explicar por que não sei rir, mas é assim. Jamais me detive pa­ra analisar isso — fez uma pausa. — Mas ainda não me disse o que lê.

Helena mordeu os lábios. Ele sempre mudava o rumo da conversa, quando não lhe convinha continuar.

— Leio Balmes.

— Mau. Muito mau — moveu a cabeça.

— Como? Acha Balmes ruim?

— Claro que não! Ele é um dos nossos melhores filósofos, mas muito pesado para uma jovem.

— Pois estou lendo-o. "O Critério".

Ele a olhou com curiosidade.

— E está gostando?

— É magnífico! No entanto, se preten­dêssemos viver daquela maneira, seríamos completamente infelizes.

— Ou o contrário.

— Acha?

— Não sei — sorriu, intimidado. — Não quero saber.

— Helena!... — gritou Sira, plantando-se diante deles. — Sabe o que a irmã de Margui me disse?

— Não me interessa — replicou a jo­vem, apressadamente, temendo uma gafe da irmã.

— Pois a mim interessa! Disse que o homem que estava com os sapatos troca­dos aquele dia está aqui e eu quero que você me diga quem é ele.

Helena empalideceu, não se atrevendo a olhar o caixa, que, levantando-se, disse tropegamente:

— Tenho que me retirar, senhorita. Até amanhã.

Ela não soube o que responder. Viu-o afastar-se e notou que ele estava pálido.

— Oh, Sira — reprovou a irmã. — Viu o que você fez? Quando é que vai aprender a ficar calada?

— O que foi, Helena? A irmã de Margui me disse...

— Ela não sabia quem estava sentado ao meu lado. E por isso lhe disse. Sabe quem era ele? O caixa.

— Oh!

— Viu como foi indiscreta?

Sira sentiu-se angustiada.

— Quer que eu corra atrás dele e peça-lhe...

— Não, mas espero que não faça mais isso. Este rapaz não vai me perdoar por ter contado o incidente em casa.

 

Haviam se passado quinze dias.

Desde aquela noite a jovem não voltou a ver Daniel Rocero.

— O caixa não trabalha mais aqui? — perguntou a um dos seus colegas.

— Claro que sim! Ontem mesmo me chamou para bater umas cartas para ele.

— Mas nunca o vejo entrar.

— É que há quinze dias que ele entra pela porta dos fundos.

— Será que descobriu que rimos dele? — perguntou Margui.

Helena não disse nada. Sabia porque ele agia assim e sentia remorsos... O que estaria pensando dela? Daniel Rocero lhe parecera um homem tão bom, tão since­ro...

Enquanto batia à máquina, nervosa­mente, seus companheiros continuavam fa­zendo comentários.

— Sabem que o diretor está muito mal?

— Talvez morra.

— Já é bem velho.

— Quem ficará no seu lugar?

— Não sei. Parece que ontem piorou muito e é uma doença incurável.

— Ele vive com sua família no segundo andar deste edifício, não?

— Sim. Deve ser um apartamento es­petacular.

— Silêncio, aí vem o chefe.

Dias depois, o velho diretor falecera, o chefe do pessoal se deteve diante deles, di­zendo:

— Nosso novo diretor é o Sr. Daniel Rocero.

— Oh! — muitas bocas se abriram, sur­presas.

— Estão surpresos? Pois deviam ter adivinhado há muito tempo.

E sem mais palavras, desapareceu, dei­xando-os sozinhos.

Helena olhou para aquele homem com simpatia. Sabia que era amigo do caixa e que dera a notícia daquela maneira justa­mente para chatear os invejosos.

Depois teve que tapar os ouvidos. A crí­tica a torturava. Sentiu raiva de todos seus companheiros. Será que eles não com­preendiam como aquele homem era fino e educado?

Chovia quando Helena saiu do banco. Os transeuntes corriam de um lado para o outro e o ônibus estava superlotado.

Helena começou a andar apressada­mente.

— Srta. Mambride.

Voltou o rosto.

— Ah, é você?

Não sabia o que dizer. Daniel Rocero estava diante dela.

— Como um dia me disse que gostava de ler bons livros, trouxe-lhe um muito in­teressante.

Ela sorriu. Aquele homem não sabia onde colocar as mãos. Notou que estava nervoso, intimidado... E como teve vontade de dizer-lhe que em sua presença podia falar à vontade, como se fossem bons amigos. Ele também a intimidava; e agora que era seu diretor, com muito mais motivo.

— E veio até aqui para trazê-lo?

— Não, não. Precisava passar por aqui.

Contemplou-o mais detidamente. Esta­va vestido como sempre, a gravata torta.

— Estamos nos molhando — observou ele, com voz inexpressiva. — Se me permi­tir acompanhá-la até a sua casa.

Pegou seu guarda-chuva e guiou-a com doçura.

— Por que saiu tão tarde? — pergun­tou-lhe, rompendo o embaraçoso silêncio e inclinando-se para vê-la melhor.

— Tinha muito trabalho.

Ele se deteve.

— Os empregados só devem ficar até as seis, nem um minuto a mais.

— Mas hoje era indispensável! — Fez uma pausa e acrescentou docemente: — Ainda não o felicitei, Sr. Diretor.

— Para você continuo sendo Daniel, o distraído.

— Sim, mas fico muito contente.

— Por que, Srta. Mambride?

— Não me chame assim. Diga simples­mente Helena.

— Obrigado. Diga-me por que fica con­tente?

— Por você.

— Então estou entre seus muitos ami­gos.

— Está entre os poucos amigos que tenho.

— Poucos.

— Não sou de fazer muitas amizades. Gosto de poucos, mas de bons. Geralmente me afeiçôo logo às pessoas e acabo sofren­do com isso.

— Espero que não tenha nenhuma queixa de mim — e como sempre fazia, disse para mudar de assunto: — Aqui está o livro! Shakespeare.

— Qual é o título?

— "Sonho de uma Noite de Verão".

Chegaram à portaria do edifício onde a jovem morava e se detiveram.

— Aqui está.

— Obrigada.

Mas não lhe disse que já o havia lido, porque sentiu que lhe trazia com tanto en­tusiasmo... e não seria bom decepcioná-lo.

— Lerei esta noite mesmo.

— Vai gostar muito. E agora, boa noi­te, Helena.

— Boa noite, Sr. Rocero.

Ele se voltou rapidamente e oprimindo a mão que ele lhe estendia, disse:

— Chame-me Daniel. Gosto do meu no­me pronunciado por você.

 

— Helena!

A jovem se deteve e virou o rosto.

— Olá, Nely! Há quanto tempo não a via!

— Claro! Você agora anda sempre tão bem acompanhada. Quem é ele? Seu noi­vo?

Helena riu, feliz.

— Não. É só um colega de trabalho.

— Hum! É interessante?

— É um homem como outro qualquer.

— Há alguma possibilidade?

— Jamais! Ele é o diretor do banco on­de trabalho.

— O quê? Você disse diretor do banco?

— Sim.

— Que sorte, Helena!

A jovem fez uma careta. Não lhe agra­dava que fizessem comentários sobre ela. Daniel saía e falava com ela porque am­bos postavam de conversar sobre as mes­mas coisas; fora disto, aquele homem era uma estátua. Nem sentia o amor, nem o compreendia. Vivia de realidades.

— Não entendo por que, sendo assim, você continua saindo com ele — replicou Nely.

— Porque ele me agrada.

— Ele já lhe falou da mulher dos seus sonhos?

— Você pensa em cada coisa! — es­pantou-se Helena. — Eu, particularmente, acho que nunca se casará. É um homem muito estranho, sabe? Vive para o seu es­tudo e para o seu trabalho. Você sabe como são os intelectuais, não têm tempo para pensar em sentimentalismos.

— Essa não! — desdenhou Nely. — Va­mos andar por aí? Aonde você ia?

— Pensava em ia ao cinema.

— Deixe isto para outro dia. Vamos passear um pouco.

Começaram a andar pela Rua do Ma­chado, até desembocar na Alameda.

— Você disse que os intelectuais vivem uma vida diferente — começou Nely, com ironia. — Eu não estou de acordo com es­sa teoria. Quando chega a hora de amar, amam como todo ser humano e vivem co­mo o resto dos mortais.

— Daniel Rocero não é como nós!

— O nome dele é bem bonito. Por que você não lhe fala de amor? Assim, talvez ele exteriorize o que vive dentro dele.

— Você ficou louca? — escandalizou-se Helena. — Continua a mesma de sempre.

— Nunca mudarei, posso assegurar-lhe — acrescentou sorrindo. — Se o seu dire­tor não fosse um homem como os outros, procuraria companhia entre muitas moças e não escolheria uma determinada: boni­ta, inteligente, culta e feminina.

Helena soltou uma gargalhada.

— Puxa, se você fosse um homem...

— Está vendo aqueles rapazes que vêm na nossa direção — perguntou Nely, in­terrompendo a amiga. — Um deles é Arthur e me interessa bastante e o outro é León.

— Eu sei. Você já me apresentou aos dois.

Os rapazes se detiveram diante delas.

— Olá, belezas.

— Nada de adulações, León — replicou a inquieta Nely.

Os quatro se cumprimentaram e con­versaram até nove e meia.

Cruzaram a Alameda e ao passarem pe­la "Cervejaria Alemã", León sugeriu:

— Que tal se entrássemos aqui? Eles servem umas batatas fritas deliciosas.

Entraram. A primeira pessoa que Hele­na viu foi o seu diretor apoiado no balcão, bebendo uma cerveja.

A jovem passou por ele, que virou a ca­beça para não olhá-la. E ela teve tanto azar que seus colegas sentaram-se numa mesa ao lado de Daniel.

— Há muito tempo que não a vejo, He­lena — murmurou León, voltando-se para ela.

A jovem fechou os olhos. Sabia que a conversa seria ouvida por Daniel e algo partiu-se dentro dela.

— Tenho tido muito trabalho — disse.

— No entanto tem saído muito bem acompanhada. Ele é seu namorado?

Que raiva lhe deu! Tinha que dar uma resposta, que Daniel ia ouvir.

— Não, não é meu namorado e nem nunca será. É um amigo, um amigo como você e muitos outros, nada mais!

— Não quis aborrecê-la, Helena!

Ela se recompôs. Talvez tivesse sido um pouco agressiva e León não merecia aquilo.

— Não, em absoluto. Só ando um pou­co nervosa estes dias.

— Gostaria de ser mais do que um ami­go para você, Helena — confessou León.

A voz de Nely impediu-a de dar uma resposta adequada.

— Vamos?

Todos concordaram. A jovem não olhou para Daniel, que continuava fumando e bebendo, totalmente abstraído.

Naquela noite, Helena custou a conci­liar o sono. Até então não se havia perguntado que espécie de sentimento nutria pelo diretor; e naquela noite, longa e pe­sada, não conseguia compreender seu co­ração.

— O que há com você, Helena?

— Ora!

A intrometida da sua irmã es­tava acordada e fazendo perguntas indiscretas.

— Nada. Vá dormir.

Sira sentara-se na cama.

— Sabe quem eu encontrei na Praça da Espanha hoje à tarde? Aquele cara dis­traído lá do banco.

— Hem?

— Ele também me viu, passou a mão pela minha cabeça e disse: "Já não lembra mais do homem que colocou os sapatos tro­cados?"

— Ele lhe disse isso?

— Sim e perguntou por você.

— O que você lhe disse?

— Que não sabia onde você estava. De­pois ele foi embora.

 

Desde que Daniel ocupara o segundo andar daquele edifício, tinha a impressão de se perder pelos corredores. Os quartos, enormes, luxuosos e as gigantescas salas impunham respeito... Decididamente ele precisava casar-se e ter muitos filhos pa­ra encher aquela casa.

O quarto que agora lhe servia de jaula lhe proporcionava vertigem. Puxa! Era magnífico, cheio de luxo e esquisitice. Mas ele o havia personalizado, convertendo o leito em seu sofá predileto. As cadeiras estavam cheias de mil objetos diferentes: calças, camisas, gravatas... Em troca, o armário se achava vazio. Era-lhe impossí­vel colocar sua roupa dentro deles; não en­tendia nada daquilo. Além do mais, sua paciência tinha um limite e era incapaz de procurar uma roupa num armário. Achava mais prático tê-la à mão, sobre uma das cadeiras.

— Nossa, patrão, isto está uma bagun­ça! — havia protestado a empregada que ele havia trazido consigo.

— Quer se calar, Maria.

— E esse retrato junto a esses quadros tão bonitos!

— Este retrato representa a mulher que eu amo. Entendeu?

— O quê? Isso parece um cachorro maltrapilho!

— Juro que se você voltar a repetir isso, vou mandá-la embora.

— O senhor está mesmo perdido, patrão.

Quando aquela manhã se deteve dian­te do quadro, sussurrou docemente, en­quanto o contemplava com paixão:

— Ela disse que se parecia com um cão maltrapilho. E o pior é que tenha de aguentá-la, Helena, porque sem ela não saberia o que fazer. Hoje mesmo cismou que te­nho que ir a essa reunião com uma roupa nova.

Retorceu o nariz, afastando os olhos do quadro para pousá-los num ponto inexis­tente.

— Mas, diabos! — exclamou. — Quem será aquele idiota que estava com Helena, na cervejaria?

Se pudesse se declarar... Mas não tinha coragem de dizer: "Eu a amo. Case-se comigo; seremos muito felizes". Como era fá­cil dizer tudo isso mentalmente!

Deu uns passos, furioso, pelo quarto. Parecia uma fera.

— Patrão.

— Entre, sua chata.

A simpática Maria estava acostumada àquelas expressões de Daniel, por isso, sem se preocupar em cumprimentá-lo, entrou resoluta:

— O que é isso aí?

— Sua roupa.

— Hem? Acha que vou vestir tudo isso?

— Claro que sim! E o casaco está lá embaixo. Esta tarde deve ir à reunião do banco... e irá muito bem vestido.

Daniel coçou o queixo.

— Bem, está na hora de se vestir — disse a empregada, com decisão. — E es­tou certa de que o fará com elegância...

— Onde você vai com as minhas rou­pas — gritou Daniel, vendo que Maria le­vava seus queridos "ternos".

— Vou dá-las a um pobre.

— Não! Maria volte aqui!

Mas a empregada já saíra e Daniel sus­pirou resignado.

Começou a se vestir e não havia dúvi­da que conseguiu fazê-lo maravilhosa­mente.

 

Aquela tarde, Nely e Helena passeavam pela Rua Larga quando viram três homens muito bem vestidos passarem.

— Olhe que cara! Você os conhece — perguntou Nely, vendo como os olhos de sua amiga estavam arregalados.

— O de terno azul-marinho é Daniel Rocero, nosso diretor.

— O quê... Está certa?

— Sim. Jamais suspeitei que pudesse vestir-se com tanta elegância. Veja, es­tá nos olhando!

— Está cumprimentando-a.

— Sim — disse Helena quase num sus­surro, enquanto inclinava, levemente, a cabeça.

Daniel Rocero passou por elas sem dar maior atenção.

As moças viram quando os três homens entraram num automóvel que se perdeu pela rua Eduardo Dato.

— Ele lhe interessa, não é, Helena?

— Não — respondeu a jovem fracamen­te — Estava só pensando que esse homem é... cheio de surpresas.

— Por que?

— Eu mesma não sei. Só que a cada dia que o vejo o encontro diferente...

— Acho que este homem lhe interessa mais do que você imagina.

— Bobagens! — e logo acrescentou, in­dicando um homem. — Olhe, aí vem Carlos.

— Vou levá-la em casa.

— Não; fique com ele. Irei sozinha.

A jovem tomou a Rua Monteiro, cami­nhando lentamente.

— Olá.

Ela se voltou assustada.

— Não me esperava ver, Helena?

Ela negou com a cabeça. Não pôde dizer nada. A presença dele, naquele momento, era o que menos esperava.

— Deixei aqueles senhores no hotel. Vim buscá-la para acompanhá-la até sua casa, se é que não a incomodo.

— Por que diz isso?

— No outro dia você estava tão bem acompanhada...

— Ah!

— Seu namorado?

— Não tenho namorado.

— Isto me alegra.

— Hem? — olhou-o de frente.

Notou que estava nervoso e sem jeito, mas terrivelmente atraente.

— Digo que me alegro por você — e fa­zendo como sempre, acrescentou: — Outro dia vi a sua irmã. Ela não lhe disse?

— Não — mentiu sem saber por que.

Chegaram à portaria do edifício que He­lena morava. Daniel a olhou em silêncio. Parecia que queria dizer algo, mas se calou. Contemplava-a fixamente, fazendo-a tremer de um modo que delatava o amor que sentia por ele.

Ambos estavam perturbados, mas ne­nhum dos dois fez qualquer coisa para rom­per aquele silêncio. Helena não se dava con­ta de que o corpo de Daniel estava muito próximo ao seu e que sentia no seu rosto o hálito quente dele.

— Gostaria de acompanhá-la mais ve­zes, Helena.

— E não está me acompanhando? — perguntou baixinho, sem deixar de olhá-lo.

Daniel se inclinou mais ainda. A jovem tremeu, mas não pôde impedir que ele pe­gasse sua mão e a estreitasse entre as suas.

— Não desta maneira — murmurou. — Quero acompanhá-la sozinha. Sem que pos­sa ser substituído por outro, entende?

— Acho que não.

— Helena!

E talvez pela primeira vez, ele se atreveu a fazer algo. Pegou-a pela cintura e aper­tou-a, apaixonadamente, contra o seu peito. Ela, assombrada, sentiu que os lábios do homem pousavam nos seus, queimando-os co­mo fogo. Nunca pôde dizer se se passaram dois minutos ou duas horas.

— Desculpe! Desculpe! — ouviu-o mur­murar debilmente.

Depois tudo aconteceu como num relâm­pago. Viu-se sozinha na portaria de sua casa; só e com a lembrança nos lábios que lhe chegava ao coração.

Aquele era o intelectual que não enten­dia de amor; que não o sentia!

— Santo Deus, se é que ainda não en­tende, imagina quando começar a senti-lo! — exclamou para si mesma, enquanto subia as escadas.

Tapou a boca. Desejava guardar aquele beijo para sempre.

 

Há muito Helena não abria seu diário. Mas naquela noite, aproveitando que Sira ainda estava na cozinha ajudando a mãe, abriu aquele caderno onde, desde pequena, deixava suas impressões. Havia transcorrido dois anos desde que o abrira pela ultima vez... Até então só havia coisa sem impor­tância... sonhos imprecisos... Hoje, tudo era diferente.

Já não era a menina de tranças e olhos ingênuos. Em seus lábios haviam pousado outros, e eles, talvez sem saber, despertaram em sua alma algo que jamais sentira.

"Faz uma semana que na portaria do edifício, procurou meus lábios e, no entanto, me parece que foi ontem. Ainda sinto em minha boca o calor da sua...

"Oh, mamãe! O que iria pensar de mim se soubesse! Mas juro-lhe que não tinha na­da disso dentro de mim... É a vida que nos forma para isso...

"No dia seguinte, quando fui ao trabalho, ainda estava ruborizada pela intensa recor­dação e... encontrei um homem insensível, frio e indiferente, como uma rocha. Olhou-me como se nada tivesse sucedido entre nós.

"Desde então não voltei a falar com ele. Só o vejo no banco e de longe. Quando passa por mim na rua, nem sequer me cumprimen­ta. E por quê? Será que me beijou mecani­camente? Mas não é possível que não tenha sentido como eu..."

— Helena!

A jovem guardou o caderno rapidamente e fez um esforço para aparentar serenidade.

— Entre, Sira — disse baixinho.

— Nely está aí. Veio buscá-la para ir ao teatro.

Saiu do quarto para falar com a amiga, mas não tinha a mínima vontade de sair. Sentia-se melhor em casa.

— Estamos à sua espera — disse Nely, quando Helena apareceu. — Meus irmãos chegaram dizendo que há uma peça formi­dável e vim buscá-la para ir conosco.

— Não estou com vontade, Nely. Agrade­ço-lhe, mas...

— É inútil. Não iremos sem você.

A jovem viu-se obrigada a aceitar o con­vite.

A primeira pessoa que Helena viu no hall do iluminado Grande Teatro, foi Daniel Rocero, conversando com dois outros rapazes.

Nely cutucou a amiga dissimuladamente.

— Não faça isso — pediu, sem graça. — Estão nos vendo.

Passaram por eles. Nely com seu "possí­vel" namorado, sua irmã e cunhada e León ao lado de Helena, que parecia muito alegre. Alegria que Daniel observava com tristeza, supondo que ela estivesse felicíssima com seu acompanhante. Mas isso não era verda­de...

Entraram na sala. Ocuparam seus luga­res e enquanto as luzes se apagaram, pen­sou que ele não a havia cumprimentado.

A peça teve início. Era uma comédia. Mas ela não via nada. Seus olhos se volta­vam para o lugar onde Daniel estava senta­do, e pôde observar que acompanhava duas distintas jovens da cidade.

Devia ter imaginado. O diretor do banco precisava demonstrar quem era. Tudo havia mudado, e ele também, entusiasmado com seu relevante cargo.

Sabia que não estava sendo justa julgando-o assim, já que ele nunca havia se mos­trado orgulhoso ou petulante. Talvez fosse o mundo que o tivesse mudado. Mas... e ela? Por que a beijara? Se existisse amor entre ambos, porque não havia sinceridade, franqueza...

Assim passou todo o tempo. Não ouvia o que León murmurava ao seu ouvido, nem se deu conta de que os olhos do diretor se­guiam todos os seus movimentos.

Helena só se deu conta de que a peça havia terminado quando encontrou-se no vestíbulo, arrastada pelo público.

 

— Srta. Mambride, o diretor pede que vá à sua sala.

Todas as máquinas pararam de fazer ba­rulho. Helena contemplou o rosto risonho do Chefe do Pessoal, enquanto caminhava para a porta que lhe indicavam.

Estava pálida e trêmula. Será que Daniel Rocero depois de havê-la esquecido durante dois meses, lembrava-se de que ela existia? O que aquele homem queria com ela?

Bateu à porta levemente.

Um "entre" seco e ela viu-se diante dele. Diante de um Daniel sério e circunspecto, vestido com um traje escuro elegante, tor­nando mais respeitável e distinta sua figura viril e enérgica.

— Bom dia — cumprimentou a datilo­grafa com respeito.

Seus olhos se cruzaram. E naquele mo­mento, Helena teve certeza de que passara pela mente daquele homem de negócios a re­cordação de uma noite na portaria de um edifício.

— Sente-se, Srta. Mambride — disse, indicando-lhe uma cadeira.

Ela obedeceu mecanicamente, enquanto pensava que ele já não a chamava de "He­lena".

— Mandei chamá-la porque desejava tê-la ao meu lado, nesta sala...

A jovem levantou a cabeça e olhou-o de frente, fixamente, com desespero. Ele virou o rosto e como se falasse consigo mesmo:

— Preciso de uma secretária e você é a única que tem capacidade para isso...

Seguiu-se um silêncio que ele voltou a interromper olhando desta vez abertamen­te para a jovem:

— A senhorita vê algum inconveniente?

A datilografa pareceu sair de um sonho. Logo, sem deixar de olhá-lo, falou:

— Estou de acordo, pois trabalho sob suas ordens.

— Não, não! Desta maneira não quero. Desejo que venha para cá por sua própria vontade.

— Então...

— Chamei-a porque me inspira total confiança. Mas se não quiser, arranjarei ou­tra.

E voltou a olhá-la fixamente.

— Quando devo começar?

— Amanhã. Seu salário será duplicado, está bem?

— Só quero o que mereço.

E a resposta rápida que ele lhe deu a fez compreender que, apesar de tudo, ele não havia esquecido certas coisas.

— Não teríamos dinheiro bastante para pagar o que merece... — depois, acrescen­tou, levantando-se: — Trabalhará nesta sa­la ao lado e sempre que desejar algo de mim, basta abrir a porta. Agora pode se retirar. Até amanhã, às nove.

Helena levantou-se e saiu sem responder, fechando a porta atrás de si... Estava tão confusa que não conseguia falar. A única coisa que compreendia era que ali ele era o chefe e ela a empregada.

O que sempre ignorou foi o que aconte­ceu no escritório do diretor. Jamais pôde imaginar que Daniel Rocero, com a cabeça inclinada sobre a mesa de trabalho, pensava nela com paixão.

Quando desceu do ônibus, ouviu León chamá-la da porta do Bar Espanhol.

— Quer tomar alguma coisa, Helena?

— Olá, León. Não o havia visto.

— Claro, você tem andado no mundo da lua.

— Imaginação sua.

— Talvez. Quer beber algo?

— Já é tarde, León. Mamãe está me es­perando...

— Só um instante, depois a levarei para casa.

— Você sempre sai ganhando — sorriu a jovem.

Entraram no bar.

— Sabe de uma coisa, Helena? Você está muito mudada. Antes saía mais, ria conver­sava conosco. Mas há uns seis meses afas­tou-se dos amigos, está sempre distraída.

— Pura imaginação sua, já lhe disse: não há nada comigo.

— Gostaria de acreditar — manifestou baixinho. — Além do mais, quando se ama alguém, tudo nos parece suspeito. Se está triste, achamos que pensa em outro ho­mem...

— Eu não...

— Não está me entendendo, Helena?

— Não, León, porque não posso corres­ponder ao seu amor.

— Não vai me dar nenhuma esperança? Mesmo que seja pequena... — pediu, en­quanto levava a moça para casa.

— Não, León, sinto muito.

 

Naquele mesmo dia, quando terminavam de comer, Helena disse, fechando os olhos:

— Amanhã ocuparei o cargo de secretá­ria particular do diretor.

— O que, minha filha?

— Isso mesmo, mamãe. E ganharei o dobro.

— Mas não me parece satisfeita. O que há, querida?

— A senhora sabe como se comenta quando alguém desempenha esse cargo.

Sua mãe não acreditou na desculpa, mas resolveu não insistir. Sabia que estava acon­tecendo algo com ela, mas esperava que um dia ela lhe contasse tudo.

 

Assim começou a nova odisséia de Hele­na, Daniel Rocero era um homem sério, que só sabia mandar e pedir sem rodeios, com a segurança do chefe que se sabe superior, mas sempre com educação e distinção.

O verão havia chegado em todo o seu es­plendor. Helena, sentada diante de sua má­quina, via com nostalgia como o sol, através da janela, brilhava como fogo. Observava como as pessoas iam e vinham com indolên­cia; bicicletas, grupos de jovens, todos iam em direção à praia da Vitória.

E eles fechados entre aquelas paredes, morriam de calor. Apoiou o cotovelo na mesa e suspirou profundamente. O calor era asfixiante.

— Cansada?

Um tremor sacudiu-lhe o corpo. Rapida­mente levantou a cabeça e seus olhos se en­contraram com o diretor.

— Desculpe-me — disse, fazendo um gesto para começar a bater. — Estava dis­traída.

Ele sorriu ligeiramente e sentou-se na mesa da jovem.

— Muito calor? — perguntou, olhando-a.

— Um pouco.

Ela fez um gesto para pegar um lápis e Daniel alcançou sua mão, oprimindo-a entre as suas.

— Deixe-me.

— Por quê? Não está gostando?

— Oh, por favor, deixe-me! Tenho muito o que fazer.

Ele a soltou, e começou a passear pela sala.

A jovem estremeceu. Pensou que ele ia dizer alguma coisa e esperou, tensa. Inclinou a cabeça, mas quando ele pronunciou as pri­meiras palavras, sentiu uma profunda tris­teza.

— Hoje vou à Sevilha e você terá de re­solver as coisas até que eu volte — se deteve diante dela.

— Está bem.

— Você nunca se rebela.

Ela moveu a cabeça com esforço.

— É meu dever.

— Sempre antepõe o dever ao desejo?

— Sempre.

— Ótimo para uma boa secretária, mas péssimo tratando-se de uma jovem.

Ela replicou com arrogância

— É que quando me sento diante desta máquina deixo de ser mulher para ser unicamente secretária. Quando piso na calçada, converto-me em mulher novamente.

Ele se aproximou, inclinou a cabeça e olhou-a demoradamente.

— Gostaria que dentro do escritório você fosse a mulher que pisa na calçada.

E ela, pela primeira vez, deixou de ouvir suas palavras. Virou o rosto, levantou a ca­beça altiva e disse, indiferente e fria.

— Se vai viajar esta tarde, terá que me dar instruções. Pode começar.

Talvez se ela fosse menos secretária e mais mulher como ele lhe pedia, ali mesmo teria surgido a declaração. Mas Daniel Rocero, diante daquela resposta, conteve sua paixão e disse:

— Tome nota.

 

— Por que não sai um pouco, minha fi­lha?

A jovem voltou a cabeça para olhar a mãe.

— Não tenho vontade.

— Por que está tão triste, Helena? Uma jovem como você deve sair, se divertir.

Helena sorriu. Era preciso não preocupar sua mãe. Devia sair um pouco para que ela não continuasse pensando que algo de anor­mal lhe acontecia.

— Não há nada comigo, mamãe — riu,alegremente, beijando-lhe o rosto. — Talvez seja o calor que me faça ficar preguiçosa.

A mãe também sorriu. Não acreditava no que ela dizia, mas sabia que não devia insis­tir.

— Vou sair.

— Realmente, minha filha?

— Claro que sim, mamãe! Por que me olha desta maneira?

— Acho que você se apaixonou.

O corpo da jovem foi sacudido por um forte tremor.

— Que bobagem, mamãe! — exclamou, dirigindo-se à porta.

— Talvez, mas...

— Até logo, mamãe.

E saiu, deixando sua mãe na metade da frase. Mas isso foi suficiente para que ela soubesse o que se passava com sua filha. Quem era ele?

Eram sete horas da noite. O calor era asfixiante. Na praça se agrupava um pú­blico heterogêneo.

Helena saíra com intenção de dar umavolta pela praça e tomar algo gelado e re­gressar à casa.

Caminhava devagar ecompletamente distraída.

— Boa noite à mulher que pisa a cal­çada.

— Hem? — voltou-se rapidamente. — Mas não ia viajar?

— Perdi o trem. E não há outro até ama­nhã às nove horas.

Continuaram caminhando, um ao lado do outro. Ela sentia que seu coração exultava de alegria. O que importava se ele fosse um homem estranho e não a quisesse? Es­tava ali agora e isto era o suficiente.

— Sente muito ter perdido o trem?

— A princípio senti muito, mas depois de encontrá-la, achei ótimo.

— Hem?

— Sabia que ia fazer os exames? — perguntou ele para mudar de assunto.

— Presumia.

— Termino o curso este ano, se não for reprovado.

— Estou certa de que passará.

— Rezará por mim?

— Farei uma promessa.

— Então, só a cumpra quando eu voltar, para acompanhá-la.

Os olhos imensos de Helena fixaram-se no rosto sorridente do homem que, sem dei­xar de olhá-lo, sussurrou:

— Vai me esperar?

— Sim.

Logo continuaram caminhando. Cada um abstraído nos seus pensamentos. Ela pensava nos dias em que o diretor ficaria ausente. Daniel pensava que aquele dia era propício à uma declaração.

Mas não se atrevia. Ouvindo-o falar, ven­do suas reações, ninguém poderia adivinhar a luta íntima que se travava em seu inte­rior. Dava a impressão de um homem enér­gico e audaz, mas no fundo nada disso exis­tia. Tinha forças para falar com ela, para beijá-la como naquela noite inesquecível, embora ela pensasse o contrário, mas pedir que fosse sua mulher, que se casasse com ele... isto era impossível.

— Helena, gostaria de ir ao terraço do Hotel Plaza? Tenho vontade de dançar com você.

Ela estremeceu. Ele voltava a chamá-la de "Helena".

— Adoraria.

Daniel tomou-a pelo braço e conduziu-a pelas ruas com delicadeza.

Os dois dançavam entre os demais ca­sais.

— Gostaria de esquecer que sou eu, He­lena. Gostaria de pensar que em mim vive outro homem.

Dançavam muito juntos, esquecendo-se de tudo, pensando somente que estavam ali, e que algo novo e poderoso os unia. Ele in­clinava-se para falar-lhe ao ouvido; ela ou­via enlevada, olhando-o de vez em quando.

— E pensar que você é meu diretor!

Ele a olhou apaixonadamente e sussur­rou com doçura:

— Não me chame de diretor. Hoje sou simplesmente um homem. O escritório não existe. Jamais existiu. E você é uma simples mulher que agora está nos meus braços.

Ela o ouvia abstraída. Parecia um sonho.

No terraço havia poucos casais. Eles, sen­tados diante de uma mesinha continuavam falando. Conversavam sobre mil temas dife­rente, todos alheios a eles mesmos, mas... o que importa. Se só com o fato de poderem se olhar já eram felizes.

Às onze da noite chegaram à portaria do edifício de Helena, cujo rosto se tornou triste, compreendendo que seu sonho estava por terminar.

— Boa viagem, Daniel — desejou bai­xinho, estendendo-lhe a mão. — Quando vol­tará?

— Gostaria de não ir.

— Mas tem que ir.

— É verdade — levantou a cabeça e aproximou-se dela. — Mas voltarei; voltarei e cumpriremos a promessa juntos, não é, Helena?

— Sim, Daniel.

— Chame-me de Daniel outra vez.

— Você é um egoísta, Daniel.

Em seguida sentiu-se apertada por bra­ços fortes.

— Dê-me um beijo, Helena, um só.

Seus rostos estavam muito próximos um do outro. Olhos nos olhos.

— A título de quê? — perguntou ela, voltando o rosto.

O homem suspirou.

— É verdade. A título de que!

Mas Helena não quis dominar-se.

Rodeou o pescoço de Daniel e disse, do­cemente:

— A título algum. Vou-lhe dar um beijo simplesmente para que se lembre de mim na viagem.

Sua boca trêmula apertou-se apaixona­damente contra a dele, cujos braços se crisparam na cintura dela, oprimindo-a com paixão. E ficaram assim durante muito tempo.

Finalmente, ela se afastou e, sem voltar o rosto, subiu as escadas, mas antes de abrir a porta do apartamento, pôde ouvi-lo dizer baixinho e intensamente:

— Obrigado, Helena, obrigado.

Entrou em casa quando sua mãe já começava a se preocupar com sua demora.

— Olá.

Olhou-a fixamente.

— Já é tarde, Helena.

— Sim, mamãe, desculpe-me.

— Sabe que não gosto que chegue em casa a estas horas.

Sira deu umas voltas ao seu redor; pare­cia cheirá-la.

— Você fumou. Está com um cheiro!

Helena voltou-se bruscamente:

— Não seja idiota.

Sira compreendeu que sua irmã não es­tava para brincadeira e voltou a sentar-se diante da mesa.

— Com quem esteve? — perguntou-lhe a mãe.

— Com uns amigos.

— León?

— Não.

As três mulheres comeram em silêncio. Sua mãe chegara à conclusão de que Helena havia passado a tarde com o homem que amava, mas não entendia porque ela voltava tão triste e intratável.

 

Aquela manhã foi trabalhar com eviden­te mau humor. Tudo lhe parecia difícil. Mas ainda assim, começou a pôr o expediente em dia. O subdiretor era um homem educado e simpático. Conversaram durante algum tempo e Helena soube por ele que Daniel Rocero era um homem predestinado para algo grande.

Desta maneira passaram-se os três dias, no final dos quais, quando todo o pessoal já havia ido embora, ele disse, aparecendo na porta de sua sala:

— Está tudo bem, minha filha. Mas ain­da lhe resta algo a fazer no segundo andar.

— Não entendo!

— Não se lembra? O diretor pediu que fosse saber se a empregada precisava de algo.

— Ah! Claro que me lembro!

— Pois quase que ela morre de fome. Vá até lá e pergunte o que ela quer.

Subiu e bateu à porta. Demorou algum tempo até que uma senhora de uns cinqüen­ta anos veio atender.

— O que quer?

A jovem teve que fazer um esforço para não rir. Apesar daquele recebimento tão pouco amável, teve de reconhecer que a mu­lher era simpática. Disse:

— Sou a secretária do Sr. Rocero e vim aqui saber se precisa de algo.

A velha pôs as mãos nas cadeiras.

— Sabe que estou esperando-a desde on­tem? Se demorasse mais um dia, me encon­traria morta.

— Não exagere.

— O quê? Sabe lá o que é ficar dois dias sem comer?

Helena teve que rir. Aquela mulher era engraçadíssima.

— Será que não vai deixar-me entrar? — perguntou em tom brincalhão.

— Ah! Desculpe-me. Entre, por favor.

Helena percorreu a sala com um olhar de admiração, sentou-se numa poltrona, pegou um bloco e lápis e perguntou:

— O que precisa? Pode começar...

A mulher começou a enumerar: açúcar, café, azeite, arroz, batata...

Os dedos da jovem doíam de tanto escre­ver.

— É só! — terminou. — Ah, estava me esquecendo; preciso de cera para o chão.

Helena se levantou e foi até o corredor.

— Mas tudo está tão limpo!

A simpática empregada voltou-se para ela e replicou:

— Venha, venha. Vou-lhe mostrar.

Helena a seguiu. Enquanto caminhava, admirava o luxo daquele apartamento. Tudo brilhava de limpeza. Não havia nada fora do lugar.

— Você cuida de tudo?

— Sim. Mas espere e verá. Há um quarto nesta casa que é um desastre. Claro, ele não me deixa tocar em nada.

Abriu uma porta e indicou:

— Entre e verá com seus próprios olhos como isto aqui está imundo.

A jovem olhou ao seu redor. Era um quarto de homem.

— Não está tão mal assim — disse.

— Claro! Há dois dias que venho limpando-o. Ele nunca deixa as coisas no lugar. Passa as manhãs falando com essa mulher do quadro.

Helena voltou-se bruscamente.

— O quê? Que mulher é esta. De que quadro está falando?

— Olhe.

E os olhos da secretária deram com o famoso quadro que dera tantas dores de cabeça à empregada.

— Aí está. Um dia lhe disse que parecia um cão maltrapilho e ele quase me mandou embora.

Helena fechou os olhos.

— Ele está apaixonado?

— Passa os dias contemplando este qua­dro e às vezes quase chora quando pergunto por que não se casa com ela.

— Anotarei a cera — disse, lentamente. — Este quarto precisa ser encerado nova­mente. Até logo.

— Já vai, senhorita?

— Sim, estou com pressa.

E saiu do quarto sem voltar a cabeça.

Chegou em casa mais cedo. Sua mãe e irmã haviam saído.

Fechou-se em seu quarto e estendeu-se na cama, desesperada.

Agora compreendia tudo. Ele estava apaixonado por outra mulher, que, naquele quadro, parecia rir dela, irônica.

Chorou baixinho e durante muito tempo.

Daniel Rocero estava apaixonado e só a procurava para ter companhia.

 

Aquela manhã não foi ao trabalho.

— Já são nove horas, Helena.

— Hoje não vou trabalhar, mamãe.

— Por quê?

— Estou com dor de cabeça.

A mulher sabia que sua filha não costu­mava faltar ao trabalho por isso. Compreen­deu que havia outros motivos e se calou.

— Vou telefonar, avisando — disse, mas Helena ergueu-se e manifestou, nervosa:

— Não é preciso. Saberão que não fui quando virem que não cheguei.

A mãe não pôde deixar de rir de seu modo de expressar-se. Sentou-se na cama e disse docemente:

— Não vai me contar o que há com você? Será que não tem confiança em mim?

— Não há nada comigo, mamãe.

— E o sofrimento que leio em seus olhos?

— É o trabalho.

— Não!

— Bem, mamãe — disse com esforço. — Já que insiste em saber: estou apaixonada.

— Quem é ele?

— Não me pergunte isso. É um homem, nada mais.

— E ele gosta de você, querida?

— Está apaixonado por outra.

A mãe contemplou-a com uma expressão de tristeza. Depois, lentamente, saiu do quarto.

 

— O que deseja, senhor?

O diretor levantou a cabeça e perguntou, olhando para o empregado:

— Uma e meia e minha secretária ainda não veio?

— Acaba de chegar, senhor. Está em sua sala.

— Obrigado. Pode se retirar.

Ficou sozinho. Olhou para a porta que se comunicava com a sala de sua secretária e teve vontade de transpô-la e correr até ela para dizer-lhe o quanto havia sentido a sua falta. No entanto...

Tocou a campainha. Segundos depois, uma Helena pálida, mas impressionante­mente fria e indiferente, perguntava, diante dele:

— O que deseja, senhor?

Ele estremeceu. Que atitude estranha na­quela mulher que dias antes estivera em seus braços, trêmula.

— Olá, Srta. Mambride.

Os dois sabiam que aquela cena era absurda, já que haviam passado uma noite inesquecível, tratando-se amigavelmente. Mas Helena achava-a natural, quando pen­sava no maldito quadro.

— Parabéns! — disse Helena, com abso­luta indiferença. — Soube que foi aprovado nos exames.

— Obrigado.

E, distraído, começou a ler as cartas que ela havia colocado sobre a mesa.

— Estas pertencem ao arquivo — expli­cou a secretária. — As outras devem ser enviadas ainda hoje.

— Pode se retirar. Quando terminar, chamarei.

Daniel ficou imóvel durante muito tem­po. O que havia acontecido com ela? Por que estava tão fria? Lembrou-se de suas pa­lavras: "No escritório sou apenas a secre­tária."

Pousou os olhos nas cartas. Era preciso esquecer tudo para consagrar-se ao traba­lho.

No fim da tarde, Daniel entrou na sala de Helena, que, sentada diante da máquina de escrever, não levantou a cabeça.

— Já estão assinadas. Só falta uma. Há um trecho que não me agradou.

— Se quiser ditar...

— Sim.

Ele sentou-se numa cadeira diante dela ecomeçou a ditar.

A campainha soou anunciando queo trabalho havia terminado.

— Aqui está. Pode assiná-la.

E enquanto ele assinava, fechou a má­quina e preparou-se para sair.

— Se me permitir, gostaria de levá-la em casa.

Que prazer poder desprezá-lo!

— Sinto muito, senhor — disse friamen­te, — mas estão me esperando.

— Então vá! — replicou com a boca crispada de raiva.

Aquela tarde passeou pela cidade, deses­perado.

Caminhava pela avenida, cabisbaixo. De repente, viu Helena ao lado de um homem, apoiados no muro junto ao mar.

Aquela jovem tinha estado em seus bra­ços, era sua. Ela o havia feito supor com suas frases, seus olhares e seu sorriso.

— Sempre tive fama de intrometido, no entanto, como venho apanhar a minha noi­va, creio que vai me desculpar.

Os dois se voltaram bruscamente. Daniel nem sequer olhou para o homem que acom­panhava Helena.

León se voltou para a moça.

— Quem é este homem, Helena?

Ela conteve a raiva e disse com indife­rença:

— Não o conheço. Certamente está en­ganado.

Daniel Rocero inclinou-se para frente, manifestando-se com voz inexpressiva:

— Desculpe-me. A senhorita tem razão; estava enganado. — E dando meia-volta, de­sapareceu.

— Que estranho, Helena! — disse León.

— Sim — replicou a jovem, abstraída em seus pensamentos. — É muito estranho.

Aquela noite chorou amargamente.

Quando na manhã seguinte apresentou-se no escritório, ele nem sequer a olhou.

Indiferente, ditou-lhe umas cartas e quando terminou, disse friamente:

— Pode tirar suas férias, Srta. Mambride.

Num arrebate de raiva, ela replicou vio­lenta:

— Não quero!

Ele inclinou a cabeça sobre o seu tra­balho.

— Vou autorizá-las.

— Também não quero!

Sem deixar de ser indiferente, ordenou:

— Vai tirar as férias. É um direito seu.

— Se me derem as férias agora, não vol­tarei a trabalhar aqui.

Ele se levantou, foi até ela e, sacudindo-a pelos ombros, disse:

— Vai tirar as férias e depois de vinte dias voltará ao trabalho porque eu quero.

Seus olhos brilhavam e a secretária, trê­mula e pálida, replicou:

— Está bem.

— Apesar de na rua me desconhecer, aqui sou seu superior e tem que obedecer as minhas ordens. Agora pode se retirar — or­denou voltando-lhe as costas.

 

— Olá, Daniel!

— Hem...

— Como está distraído...

— Perdoe-me, Luís — sorriu, levantando-se e cumprimentando o amigo. — Quan­do chegou à cidade?

— Há algumas horas e parto amanhã.

— Já?

— Trabalho, meu caro — disse, irônico. Logo acrescentou: — Pensava em Helena, não?

Eram amigos íntimos. Juntos haviam fei­to o curso de Direito e juntos lutaram contra o destino. Agora ambos ocupavam postos elevados. Luís sábia de tudo relacionado com Helena.

— Sim, pensava nela — disse Daniel, oferecendo-lhe um cigarro. — Mas é inútil. Ela está noiva.

— Tem certeza?

Daniel baixou a cabeça. Deu uns passos pela sala.

— Há dez dias que não a vejo. Está de férias.

— Por que diz que está noiva?

— Quando cheguei de Sevilha... — e contou o que acontecera na Alameda. — Sei que fiz mal — acrescentou, chateado — mas os ciúmes eram mais fortes. Além do mais, cheguei à cidade convencido de que ela me queria. No entanto...

— Você gosta mesmo dela?

— O suficiente para torná-la minha es­posa — respondeu secamente.

— Pois eu, em seu lugar, mandaria a ti­midez para o inferno. Tem tudo o que um homem pode ambicionar: posição, carreira, dinheiro. Pense nisso tudo e verá como con­seguirá destruir este acanhamento de uma vez por todas. Toda a mulher despreza os tímidos. Lute, amigo, lute! — Consultou o relógio e desculpou-se: — Preciso ir andan­do. Já é tarde.

— Espere! Acho que vou seguir o seu conselho. Vamos jantar juntos?

— Sim, é uma boa idéia. Estarei em sua casa às oito.

O amigo saiu e Daniel passeou pela sala, agitado. Olhou o telefone. Sabia seu núme­ro de cor... e se a chamasse? Lembrou-se dos conselhos do amigo: "Lute!"

— Vou chamá-la! — ouviu-se dizer a si mesmo.

Discou o número... Mas quando ouviu uma voz de mulher do outro lado, desligou com raiva.

Não queria falar com Helena. Isto não era timidez e sim amor-próprio... Ela havia dito que não o conhecia. Então, para poder falar-lhe, era preciso que alguém os apre­sentasse.

 

Aquela noite, no terraço do Hotel Plaza, a orquestra tocava uma melodia suave.

— Está ali... — disse Daniel, inclinando-se para seu amigo. — É aquela que está sentada na mesa da direita, junto com dois homens e uma garota. Como está bonita! — terminou, enlevado.

— Ora! Um deles é Arturo!

— Você o conhece?

— Muitíssimo. Vamos lá.

Aproximaram-se da mesa e Luís cumpri­mentou o seu conhecido.

— Olá! — disse o namorado de Nely. — Como está?

— Tudo bem — riu Luís, abraçando-o.

Os demais olhavam-nos curiosos. Hele­na, nervosa e inquieta, pousava os olhos na pista de dança para não ver Daniel Rocero.

Em seguida, Arturo apresentou seus ami­gos. Daniel estreitou a mão de sua secretá­ria, notando que tremia.

— Quando se casa, Luís? — perguntou Arturo.

— Acho que no mesmo dia que Daniel.

— E quando vai ser?

— Nos primeiros dias de novembro.

— Hum... isto é ótimo.

— Só falta pedi-la em casamento.

— Pensa em casar-se em novembro e ela ainda não sabe?

— Vamos dançar, Helena?

Todos se voltaram para León, que incli­nou-se bruscamente para Helena. Viram o casal se afastar e Daniel fez uma careta de raiva.

— São noivos? — perguntou, querendo parecer natural.

— Não... — começou Arturo. — Mas Nely entende melhor destas coisas.

— Não, não são noivos, mas León... — sorriu Nely. — Gostaria que Helena o acei­tasse.

— E ela o aceitará, claro.

— Isto eu não sei, Daniel. Acho que se houvesse outro de quem ela gostasse mais, León perderia tudo.

— Vocês mulheres são muito volúveis.

— Não se trata disso, Luís. Acontece que, como vocês, desejamos ser felizes, e nem todos os homens conseguem satisfazer as mulheres.

— Acha que León conseguirá?

— Hum! Não sei. Helena é muito estra­nha, mas maravilhosa. O homem que a amar...

O casal chegou e a conversa mudou de rumo.

A orquestra deu os primeiros acordes de uma música muito lenta. Daniel, quase sem se dar conta, viu-se inclinado diante de He­lena, cuja boca teve uma leve contração ao ouvir, baixinho e da mesma forma de sem­pre seu nome:

— Quer dançar, Helena?

Levantou-se. Um instante depois ele a apertava entre seus braços.

Dançaram em silêncio. Um pouco trêmu­la, a jovem recordava outra noite em que pensara viver um sonho.

— Não poderia ir ao escritório amanhã, Helena?

Ela não se afastou e replicou:

— Mandou-me embora...

— Não seja cruel!

— Estou mentindo?

— Sim; só quis que tirasse umas férias. Mas sem você tudo fica triste... É como o sol, torna minha sala mais acolhedora.

— Onde aprendeu a falar assim? Em Sevilha, com sua amada?

— Com você. Seus olhos me ensinaram.

Ela riu, baixinho. Afastou-se um pouco e ele perguntou:

— Por que disse que não me conhecia, quando entre nós existe algo que ninguém pode negar?

— O que está dizendo? Entre você e eu não existe nada!

— Desculpe-me se sou um pouco gros­seiro, Helena, mas gostaria de saber se cos­tuma beijar todos os seus amigos.

— Daniel!...

Ele a apertou, frenético.

— Como se atreve a dizer que não há nada entre eu e você?

A música havia terminado, mas ele a reteve entre seus braços:

— Venha, quero falar com você.

— Não vou a lugar nenhum.

— Virá porque eu quero.

Seus olhares se cruzaram. Helena viu em seu rosto uma resolução inquebrantável e o seguiu.

Ele a conduziu a um canto mais afas­tado.

— Escute, Helena, sei que está agindo assim por pensar que tenho alguém. Mas não tenho nenhuma "amada". Fui à Sevilha ansioso por voltar a vê-la e não sou de brin­car com as mulheres. Entre nós existe muita coisa, pois você me beijou e sei que não bei­jará outro do mesmo modo. Você é minha e ninguém, nem mesmo León conseguirá tirá-la de mim.

Ela retrocedeu, assustada. Nunca o havia visto falar assim. Lembrou-se do que no dia anterior uma de suas amigas havia dito... “Ele está louco por Liane Gomes e se se mos­tra com outras é para lhe fazer ciúmes”. Aqui­lo estava gravado em seu coração. Ela ja­mais seria joguete nas mãos de um homem.

Aproximou-se, e, contemplando-o com desprezo, disse brusca e friamente:

— Não sei por que o beijei. Talvez esti­vesse sugestionada por suas palavras. Já nem me lembrava mais disto.

Daniel avançou, pálido e trêmulo. Ela re­trocedeu, e, antes de desaparecer, disse:

— Você é um bobo!

E, sem lhe dar tempo de reagir, desapa­receu.

Nunca soube como chegou à portaria do edifício de Helena.

Viu-os ali, de pé e sem meditar no que fazia, aproximou-se.

Helena deu um passo atrás. Viu os dois homens pálidos e trêmulos de raiva. Sem he­sitar, subiu as escadas e desapareceu.

Nenhum dos dois notou sua ausência.

— Ela é minha — disse Daniel, com voz rouca. — e não vou permitir que passeie com ela.

— Sabe o que está dizendo, Daniel? He­lena não tem nada comigo. Se, como diz, tem algo com ela, me afastarei para sempre. Mas, caso contrário, vai se arrepender.

Daniel Rocero não se moveu. Era capaz de tudo para conseguir o que queria... até mesmo de usar meios sórdidos.

— Entre nós dois houve muita coisa.

León sacudiu-o pelos ombros.

— Sabe o que está dizendo?

— Sim.

— Então, faça bom proveito. Vocês dois souberam fingir muito bem...

E com amargura, deu meia-volta, afas­tando-se pela rua escura.

Daniel mordeu os lábios. Tinha conse­guido. Certo que, se conseguia o amor de He­lena era à custa de sua própria honra, mas ele a desejava desesperadamente e pensava que, depois daquilo, ela o aceitaria sem protestar.

 

Haviam-se passado oito dias e Helena ainda ignorava o que havia sucedido naque­la noite.

Não saía de casa, pois temia encontrar-se com Daniel, cujas atitudes a faziam so­frer demasiado.

Perguntava-se o que havia ocorrido para que León, seu melhor amigo, não lhe telefo­nasse mais, como antes.

Já não ia à praia. Nely havia viajado e ela ficara sozinha, atormentada pela idéia de voltar a encontrar Daniel, que considerava hipócrita e cruel.

E ainda ignorava o pior; ignorava que ele a havia difamado; ignorava que espe­rava encontrá-la para exigir-lhe que fosse sua esposa. Ignorava muitas coisas que aca­bariam por matar o amor que sentia por ele. Sim, porque já não o amava como antes.

Estava disposta a tudo, mas não pensava em voltar ao banco. Havia perdido a fé na­quele homem e até em si mesma.

— Pode me dizer o que há com você, minha filha? — perguntou-lhe a mãe, na hora do almoço.

Helena baixou a cabeça.

— Não vou voltar,mamãe — disse muito baixinho.

— O quê?

— Vou trabalhar em outro lugar — soluçou, desesperada. — Mas não quero voltar ao banco!

A mãe levantou-se e aproximou-se da filha.

— Não sei o que aconteceu, mas onde vai arranjar outro emprego que pague tanto assim quanto este?

— Não sei. Ganharei menos, mas não volto para lá.

 

Achava-se sentada num banco da Praça de Espanha quando viu León passar. Ob­servou também que ele hesitava em se aproximar.

Por que agia assim? Logo ele, que sem­pre fora tão solícito, tão educado!

— Olá, Helena! — cumprimentou sem entusiasmo. — É um milagre vê-la sozi­nha!

— Você quase nunca me viu acompa­nhada.

— Agora é diferente.

— Não vejo a diferença. Para mim é como sempre.

Ele havia permanecido de pé, diante de­la. Olhava-a fixamente, enquanto se per­guntava como aquela jovem de rosto tão inocente e puro podia ser o que Daniel dis­sera.

— Talvez — disse, sem querer ser mais explícito. — O que está fazendo aqui? Es­perando alguém?

Ela lamentava vê-lo tão indiferente e frio.

— Estou descansando — disse, baixi­nho. — Percorri toda a cidade à procura de trabalho e não consegui nada.

León, com assombro e muito desconcer­tado, sentou-se junto a ela.

— Procurando trabalho? Você deixou o banco?

— Por que está tão surpreso? Não acha natural que eu queira deixar meu em­prego?

— Não, não é isso. Você tinha um óti­mo salário e... ele é seu futuro esposo.

— Que absurdo!

Entreolharam-se sem pestanejar.

— Está mentindo, Helena!

— E você está me ofendendo, León. Da­niel não pode ser meu marido, porque sim­plesmente, não o amo.

— Mas você deve se casar com ele, já que... Bem, você sabe melhor do que eu.

Helena ergueu-se pálida e trêmula.

— O que está insinuando? Fale clara­mente. Estou pressentindo que ele além de canalha é um caluniador.

León compreendeu naquele momento que havia sido idiota dando ouvidos a Da­niel.

— Não queira saber, Helena! — supli­cou, tomando suas mãos. — Sou tão culpado quanto ele por ter acreditado nas suas palavras. Como pude acreditar que esses olhos mentiam? — contemplou-a com ca­rinho.

Ela o olhava assombrada,

— Eu o amei — disse, baixinho, como se falasse a si mesma. — Pensei que o que­ria com toda minha alma. Depois fui com­preendendo que ele não tinha nada, não tinha valor nenhum... É verdade que nos beijamos duas vezes... sim, beijou-me e eu correspondi, mas nada mais.

Permaneceram em silêncio.

— O que ele lhe disse, León, para que duvidasse de mim? — perguntou.

— Muitas coisas desagradáveis. Disse-me que você tinha que se casar com ele porque... porque havia, sido sua.

Ela riu com amarga ironia.

— E você acreditou...

— Estava cego.

A jovem levantou-se.

— Mamãe está me esperando. Saí de casa muito cedo.

León a acompanhou.

— Gostaria de trabalhar comigo no hos­pital? Poderia ser minha enfermeira.

— Não possuo conhecimentos para de­sempenhar este cargo.

— Não faz mal. Eu lhe ensinarei.

— Obrigada, León. Vou pensar.

Chegaram à portaria.

— Posso vir buscá-la para ir ao cine­ma, hoje à tarde?

— Você é muito bom — sussurrou a jovem. — Terei prazer em acompanhá-lo.

 

— Há um senhor que deseja falar-lhe — disse o empregado, entrando em sua sala.

— Mande-o entrar — replicou Daniel.

A figura de León apareceu na porta. Daniel já sabia o que ele desejava. Imagi­nava que toda a sua baixeza havia sido des­coberta e isso o inundava de desespero.

— Venho-lhe agradecer, Daniel.

— Sente-se, León — disse, baixinho. — Ontem fui à sua casa, mas não o encontrei.

— Já soube. E se foi com a intenção de falar sobre Helena não precisa se incomo­dar mais com isso.

— Fui à sua casa para esclarecer algo sobre aquela última noite que conversamos. Levantei uma calúnia monstruosa tratando-se de uma mulher como Helena. Fiz aquilo porque temia perdê-la. Embora não acredite, sou nobre e só desejo a feli­cidade dela. Bem... para que continuar, se não está me acreditando?

— Eu acredito, Daniel. Ela o amou e você destruiu tudo. Agora não sei o que sente.

— Agora está tudo terminado — Da­niel olhou León vagamente. — Você a me­rece, case-se com ela. Não voltarei a inco­modá-los.

— Não sei se a mereço. A única coisa que sei é que Helena dificilmente acredi­tará em outro homem.

— Fui um canalha!

León levantou-se para ir embora.

— Já vou, mas antes quero lhe dizer que Helena não voltará ao banco.

Daniel não disse nada. Deixou-se cair na cadeira e murmurou:

— É o fim!

 

Helena Mambride começou a trabalhar numa companhia de seguros. Não aceitou a oferta de León, pois sabia que não tinha capacidade para exercer o cargo de enfer­meira.

Os dias se passaram monótonos e len­tos.

Ainda não voltara a ver Daniel quando o inverno chegou. Os dias curtos a inunda­vam de tristeza. E à noite, sem conseguir dormir, perguntava-se por quê, apesar do mal que ele lhe havia feito, continuava pensando nele, naquela sala onde traba­lhava.

Não queria confessar a si mesma que ainda amava Daniel.

León já havia perdido as esperanças de conseguir conquistá-la.

— É impossível. Mesmo que quisesse, não poderia ser sua esposa — dizia ela. — Acho que vou ficar solteira... É meu des­tino!

E talvez tivesse razão; mas uma noi­te... O destino pareceu dar outra volta em sua existência.

 

O vento rugia lá fora. Na sala, o fogo dançava alegremente. As três mulheres estavam sentadas ao redor da lareira.

Sira fazia seus exercícios.

De repente, no silêncio da noite, mistu­rado com o violento soprar do vento, ou­viram-se fortes batidas na porta.

— É aqui — disse Sira.

As três olharam-se. As batidas voltaram a soar com insistência.

— Não vai abrir, mamãe?

— Sim, Helena. Quem pode ser com esse tempo?

Levantou-se e dirigiu-se à porta apres­sadamente. Quando abriu, Maria, a empre­gada de Daniel, entrou trêmula, sem se preocupar com as apresentações.

Ao vê-la, Helena estremeceu.

— O que houve, Maria? — perguntou ansiosamente.

A pobre mulher deixou-se cair numa poltrona e, ocultando o rosto entre as mãos, soluçou mais do que disse:

— Ele está morrendo, Helena. Não quer que chame o médico... Está ardendo em febre e no delírio chama por você. Não sei o que vou fazer. Vim aqui porque é a única pessoa mais chegada a ele.

Helena, trêmula, perguntou ansiosa:

— Há quanto tempo está assim, Ma­ria?

— Há uns três dias. Não quis queeu avisasse a ninguém.

— Santo Deus! Este homem está louco! — voltou-se para sua mãe e suplicou: — Preciso ir vê-lo. Não se pode deixar um ho­mem morrer assim só porque ele quer morrer. É preciso chamar o médico. Oh, mamãe, ele não pode morrer! — soluçou sob o olhar perscrutador da senhora. — Deixe-me ir, mãezinha! Juro que... Oh, mamãe! Ele não pode morrer!

E durante um momento só soube repe­tir estas frases. Maria e a senhora entreolharam-se. A empregada implorou com lá­grimas nos olhos.

— Deixe-a ir. Ele só chama por ela!

Aquilo bastou para que sua mãe com­preendesse o sofrimento que atormentava a filha. Logo se deu conta de quem era o homem que Helena amava e resolveu to­mar uma decisão.

— Você não deve ir — disse com gran­de doçura. — Se você o estima tanto, eu irei lá com um médico.

— Oh, mamãe Mas ele me chama.

— Sim, mas você não deve ir. Poderá fomentar comentários. Bem... vou agora mesmo.

Pegou o casaco, beijou as filhas e disse:

— Vamos, Maria.

 

— Não vá embora, Helena, não me dei­xe. Eu a amo... Ele não, ele não!

Daniel delirou toda a noite. Seu corpo se agitava convulsivamente; a tez pálida parecia de cera e a boca, ressecada pela fe­bre, não cessava de emitir frases, umas cla­ras, outras ininteligíveis.

O doutor levantou-se.

— Ele vai ficar bom. A febre deve ceder com estes antibióticos. Não é nada grave, mas não o deixem sozinho. É bom que ele se sinta acompanhado. Dentro de quinze dias poderá voltar ao trabalho.

Maria e a mãe de Helena ficaram sozi­nhas.

— Não me deixe, senhora — pediu a empregada, com lágrimas nos olhos.

— Só vou embora quando a febre ce­der.

— Oh, obrigada.

Resolveu telefonar para a filha e dar-lhe notícias do doente.

— Helena...

Do outro lado, ouviu-se a voz ansiosa:

— O que há, mamãe?

— Nada de grave. Ele logo ficará bom, mas permanecerei aqui até que a febre ceda.

— Vou aí, mamãe.

Sua voz soou enérgica e quase dura:

— Não. Cuide de sua irmã.

E desligou.

Silenciosa, sentou-se ao lado da cama do enfermo, cujo delírio fê-la compreender como aquele homem amava sua filha. Por isso, talvez, tratou dele durante quinze dias como se fosse seu próprio filho.

Daniel entreabriu os olhos e contem­plou o quarto escuro demoradamente. Sor­riu com uma careta. Reconhecia-o. E tam­bém não ignorava que durante quase um mês havia permanecido prostrado naquela cama. O que não conseguia explicar era quem poderia ser aquela senhora que ha­via visto sentada à sua cabeceira. Sabia que não era Maria.

Todo o corpo lhe doía, mas ainda assim conseguiu sentar-se e, estendendo o braço, tocou a campainha.

Instantaneamente o rosto da emprega­da assomou à porta.

— Venha cá, Maria.

A mulher se aproximou.

— Não pode falar. O médico disse que deve descansar.

— Estive muito doente?

— Sim. Pensei que ia ter de enterrá-lo.

Daniel teve de rir.

— Diga-me, Maria. Quem é essa senho­ra que esteve ao meu lado este tempo todo?

A empregada limpou as mãos no aven­tal e disse num tom brincalhão, mas pro­fundamente emocionada:

— Era a mãe de Helena.

— O que... o que está dizendo, Maria?

Viu-o mexer-se no leito, cheio de ansie­dade e emoção.

— Não minta, Maria — disse, deixan­do-se cair no leito, cansado. — Conte-me, conte-me tudo!

— Uma noite pensei que fosse morrer. Como não parava de chamar por Helena decidi ir à casa dela pedir ajuda.

— Oh! Como foi, Maria? O que pensa­rão de mim?

— Que o senhor é um louco.

— E ela, ela veio? — perguntou depois de um curto silêncio.

— Não, mas todas as manhãs telefona para saber como o senhor está passando.

— Sabe se voltou a trabalhar no ban­co?

— Voltou. O subdiretor a chamou e ela deixou o outro emprego que tinha.

Outro silêncio.

— Há quantos dias estou doente?

— Vinte dias, patrão. Mas agora chega de conversa. A mãe de Helena deve chegar daqui a pouco.

E lembrando-se de que tinha que pre­parar o jantar, disse, correndo para a por­ta:

— Já vou. Quando a senhora chegar vai brigar comigo e com toda a razão. Não fale, não pense.

Daniel ficou sozinho, olhando para a porta, sorridente, ainda, mas com o pensa­mento voltado para outro lugar. Pensava em Helena, em sua mãe, em León...

Helena... O que pensaria dele? Como é que o subdiretor a havia chamado de vol­ta? E León? O que havia sido dele? Será que estava namorando Helena?

Ficou abstraído, recostado com indolên­cia no espaldar da cama. Reconhecia sua atitude vil e suja, mas também não igno­rava que o amor e os ciúmes eram maus conselheiros e o havia cegado.

Não queria ser perdoado; desejava so­mente ficar bom, voltar ao escritório e olhá-la, tê-la perto de si; ouvi-la falar.

Com aqueles e muitos outros pensamen­tos, fechou os olhos pouco a pouco, até ador­mecer.

Uma estranha impressão afugentou seu sono. Sacudiu a cabeça e abriu os olhos.

— Adormeci — disse, timidamente.

Enquanto falava, sentou na cama, sem deixar de contemplar o rosto da senhora cuja boca se distendia num terno sorriso.

— Está com dor de cabeça? — pergun­tou, pousando sua mão fina na testa do ho­mem. — Maria já me disse que falou muito.

Ele beijou aquela mão, emocionado.

— Como poderei agradecer-lhe pelo que fez por mim?

— Não fale. O fato de vê-lo melhor já é uma recompensa.

Ficaram em silêncio. Ambos falavam de tudo, menos daquilo que os preocupava. A senhora não desejava que Daniel lhe agradecesse. Ele, por sua vez, gostaria de achar as palavras certas para expressar todo seu agradecimento. Mas não podia. Ela não deixava.

— Por que se incomodou em vir me atender? — perguntou, finalmente. — Ma­ria me disse...

— Cale-se! Não é bom falar muito. Ma­ria é uma fofoqueira e você não deve dar-lhe importância.

— Não mereço o que a senhora fez por mim.

— Não fiz nada de extraordinário... — e acrescentou: — Bem, já vou. Voltarei ou­tro dia. Maria saberá cuidar de você.

Estava lhe dando o adeus definitivo e Daniel compreendeu isso. E durante todo o tempo nenhum dos dois falara de He­lena.

 

Nos dias seguintes, a mãe de Helena pas­sou para vê-lo. Eram visitas rápidas: perguntava por sua saúde, se precisava de al­guma coisa e depois ia embora, sempre muito terna.

Finalmente pôde levantar-se. E uma se­mana depois, sem ainda ter ido ao banco, saiu à rua numa noite fria e sombria.

 

Bateram à porta. Sira se levantou.

— Vou abrir, mamãe.

— Faz muito frio. Deixe que eu vou.

A senhora deixou o tricô de lado e diri­giu-se à porta.

Eram onze horas da noite.

Helena lia um livro enquanto Sira fazia seus exercícios.

— Que alegria, Daniel! — ouviram sua mãe dizer.

Sira deu um salto da cadeira,

— Ouviu, Helena. É o seu chefe.

A jovem não disse nada. Voltou a cabeça e seus olhos se cravaram na porta, onde apareceu a figura de Daniel Rocero.

— Boa noite — cumprimentou.

— Olá.

Nada mais. Olharam-se. Daniel tinha uma expressão ansiosa no rosto. Helena estava indiferente...

A mãe da jovem compreendeu que am­bos não se sentiam à vontade, inclusive pareceu observar que sua filha não estava satisfeita com a chegada de Daniel.

— Sente-se, Daniel. Não devia ter saí­do a essa hora! — disse, carinhosa.

Daniel avançou uns passos, sentando-se ao lado de Sira.

— Não devia ter vindo a essa hora — disse, baixinho. — Mas desejava lhes agra­decer pelo que fizeram por mim. Temo ter incomodado com a minha presença.

Olhou primeiro para Helena, que conti­nuava na mesma posição, impassível. Uma dor muito aguda oprimiu-lhe o coração. Logo voltou-se para a senhora.

— Nem pense nisso, filho — sorriu a mãe de Helena. — Nossa casa sempre es­tará aberta para você.

— Obrigado — disse simplesmente.

Ela tentava distraí-lo com sua conversa para que não sentisse o desprezo que sua filha lhe dispensava. Até Sira achou odiosa a falta de educação da irmã.

— Quando pensa voltar ao trabalho, Daniel? — perguntou a senhora.

— Ainda não me sinto bem. Acho que daqui e uns quinze dias.

— Sim, deve procurar descansar bastan­te e pode nos visitar à vontade. Sira e eu quase não saímos de casa.

Ele se levantou, falou um instante com Sira. Logo se tornaram amigos e Daniel deu-lhe um pacote de caramelos.

— Mas Daniel, Sira é muito gulosa... — protestou a senhora.

— Gosto de meninas gulosas — riu, ca­rinhoso. — Bem... tenho de ir. Virei ou­tro dia com mais calma.

Beijou a menina, que notou uma caixa de bombons no bolso do seu paletó. Para quem seria? Quase adivinhou, mas não disse nada. A senhora foi acompanhar Da­niel até a porta.

Helena havia respondido ao cumpri­mento com um simples movimento de ca­beça.

Quando a mãe voltou, Sira comentou:

— Ele é muito simpático.

Seguiu-se um silêncio e a menina, com­preendendo que sua mãe desejava ficar a sós com Helena, disse:

— Acho que vou dormir. Boa noite,

A mulher foi sentar-se diante de Hele­na, cujo rosto mostrava uma indiferença absoluta.

— Acha que agiu bem, Helena?

— Não sei, mamãe, nem quero saber.

— Ele não merece o seu desprezo.

— Merece muito mais.

— Não, Helena.

— Sim, mamãe, e ele sabe disso.

— Escute, minha filha; sei que ele a ama. Durante os dias que permaneci à ca­beceira de seu leito, compreendi que era um infeliz; um homem sem família e muito simples e honrado.

— Viu pendurado na parede de seu quarto um velho quadro representando uma mulher? — perguntou, bruscamente.

— Sim, mas...

— Pois ele representa a mulher que ele ama. Ele não gosta de mim. Anda atrás de uma garota rica e só me segue para fazer-lhe ciúmes.

— Isto não é verdade!

— Por favor, mamãe, não o defenda. Eu gosto dele, não posso negar, mas sabe­rei prescindir dele.

Levantou-se.

A mãe contemplou-a fixamente.

— Durante o delírio só chamava por você. Falava também de uma culpa e lhe pedia perdão. Não entendi bem.

Helena dirigiu-se ao seu quarto.

— Vou dormir — disse, voltando-se pa­ra a mãe. — Não seria bom que ele viesse aqui com muita freqüência.

— Por quê?

— Alguém poderia interpretar mal... León, por exemplo...

— Você não gosta desse rapaz.

— Mas estimo a minha reputação — saiu.

E Meia hora depois, Helena deitada na ca­ma, chorava silenciosamente.

 

Na manhã seguinte, ela chegou ao ban­co pálida e cansada.

Fazendo um imenso esforço, começou a trabalhar, quando ouviu aquela voz incon­fundível falando com o subdiretor. Pouco depois a porta se abriu.

— Muito trabalho, Srta. Mambride?

Ela estremeceu e respondeu secamente:

— Bastante.

— Notaram minha falta?

— O subdiretor sabe substituí-lo.

— E é mais carinhoso que Daniel Rocero.

— Talvez.

— Helena!

A jovem levantou os olhos, contemplando-o com absoluta indiferença. O diretor sustentou aquele olhar e, sem poder se con­ter, inclinou-se sobre ela.

— Ontem levei-lhe bombons e não lhe dei porque temi que não os aceitasse. Será que agora... — começou, colocando a mão no bolso.

— Não gosto de bombons.

— Está me desprezando, Helena?

— Não; simplesmente não gosto de bombons. Mal talvez Liane goste e então...

Ele se ergueu.

— O que quer dizer com isso?

— Nada.

Daniel deu uns passos. Seu rosto adqui­riu uma expressão terrível.

— Estamos brigando como duas crian­ças. Sabe muito bem que é a única mulher que amei em toda a minha vida. Sei tam­bém que me ama e se nega é por rebel­dia... Também sei que agi mal... Mas tenho uma desculpa: fiquei louco de ciú­mes quando a vi com outro homem — apro­ximou-se e acrescentou baixinho: — Pode continuar resistindo, mas de hoje em di­ante passarei a ir à sua casa e direi a to­dos que é minha futura esposa.

— Não.

Daniel não lhe deu muita atenção.

— Não haverá força humana que me faça desistir. Hoje não a acompanharei por­que tenho uma reunião. Mas a partir de amanhã, sempre acompanharei minha noi­va. Esta manhã, antes de vir trabalhar, encontrei sua mãe e falei com ela sobre nós.

Helena levantou-se. Estava muito páli­da e trêmula.

— Direi que é mentira!

— É inútil, querida. Ontem à noite León me felicitou.

— Você é um canalha!

— Talvez. Mas sei que poderei fazê-la feliz.

— Nunca!

Daniel dirigiu-se à porta.

— Disse à sua mãe que ficamos noivos. Se tiver coragem, desminta-me. Até logo, Helena. Irei vê-la à noite.

Helena ficou sozinha. Estava desespera­da e não sabia o que fazer.

Quando chegou em casa na hora do al­moço, sua mãe a esperava radiante de ale­gria.

— Helena, querida! Finalmente!

Abriu a boca para desmentir, mas não o fez. Teve medo, medo de perdê-lo para sempre.

Sorriu, deixando-se abraçar. Agora era noiva oficial de Daniel Rocero, mas... fa­ria tudo para que não houvesse nada en­tre os dois.

 

Nos dias seguintes, Daniel passava al­gumas horas na casa de sua "noiva". Con­versava com Sira e tornou-se indispensável naquela casa. Só Helena continuava indi­ferente. Muitas vezes, a jovem, pretextan­do uma dor de cabeça, deixava-o sozinho com a mãe e a irmã, retirando-se para o seu quarto.

Sabia que ele estava diante dela, mas não levantou a cabeça para olhá-lo. Con­tinuava batendo à máquina, nervosa. So­bre seu rosto aquele olhar inquisidor que a intimidava.

— A partir de amanhã você não traba­lhará mais.

Ela parou de bater, bruscamente, e per­guntou com voz débil:

— Por quê?

— Porque vamos nos casar e já é hora de que comece a preparar a nossa casa.

Ela não se moveu.

— Hoje faz um mês que ficamos "noi­vos". Você se rebelou, desprezando-me cada vez mais. Não posso continuar assim. Seja compreensiva, Helena, e diga-me de uma vez que também me ama. Sei que sob esta aparência fria guarda um coração sensí­vel; sei que se domina porque ainda não me perdoou.

"Amo-a há tanto tempo, Helena. Desde o dia em que a vi pela primeira vez, tra­balhando aqui..." quando todos se riam de mim e você me contemplava com aqueles olhos imensos, cheios de doçura e compre­ensão. Parecia que você queria me defen­der...

— Quero me casar com você, Helena. Por isso peço que pare de trabalhar — to­mou suas mãos e apertou-as suavemente. — Não sabe perdoar nada, Helena?

— Deixe-me! — suplicou a jovem, vi­rando o rosto.

— Desde aquela noite na portaria da sua casa, você não voltou a beijar-me. Acha que posso suportar isso por muito tempo? Estou ansioso por tomá-la em meus braços, dizer-lhe o quanto a quero, fazê-la feliz...

Não pôde continuar. Estavam muito próximos um do outro. Ela contemplou-o e compreendeu que ia beijá-la.

— Por favor, Helena!

Depois tudo aconteceu de uma forma inesperada.

A jovem, fazendo um grande esforço, conseguiu afastar-se de Daniel.

— Não me beije! — gritou, mais do que disse. — Não faça isso ou eu o odiarei para o resto da minha vida.

Ele empalideceu. Por que ela insistia em fazê-lo sofrer?

Helena compreendeu que estava se com­portando como uma criança. Mas... ele lhe havia causado tanto mal! Havia feito com que seu melhor amigo acreditasse que ela era sua amante. Havia amargurado muitos dos seus dias.

Ainda continuava a amá-lo, não podia negar. Mas essas coisas não se esquece tão rápido. É preciso paciência, muito amor e muita compreensão. Ela sentia que ia per­doá-lo, mas não podia ser tão depressa as­sim...

— Amanhã voltarei ao trabalho, como sempre — disse, já mais calma. — Virei ao banco até o dia que resolver me casar.

— Gostaria de saber se pretende casar-se comigo — disse Daniel, temendo uma negativa.

— Sim, vou casar-me com você; mas quando... não sei.

Ele deu meia-volta. Acendeu um cigarro, e logo perguntou, indiferente:

— Se não gosta de mim, por que con­corda em casar?

— Você me comprometeu.

— Então, Helena, pode continuar a trabalhar aqui. Quando quiser se casar, avise-me. Enquanto isso, seremos dois noi­vos como outros quaisquer, mas eu terei outras mulheres.

— Isso não! — gritou sem sentir.

Ele riu alegremente.

— Eu o odeio! — replicou a jovem com raiva.

— Se soubesse como eu a adoro... — sussurrou, brincalhão.

Helena voltou a sentar-se.

— Vá embora — pediu. — Tenho muita coisa para fazer.

— Até logo, encanto.

Ela ficou sozinha. Fechou os olhos, com força, como se quisesse apagar todo o amor que tinha no coração.

 

— Quer ir para casa ou ao cinema?

Helena encolheu os ombros.

— É indiferente — disse.

— Então vamos tomar algo e depois ve­remos o filme do "Municipal".

— Está bem.

Ele pegou-a pelo braço e caminharam juntos até uma lanchonete.

— Não precisa me segurar. Sei andar sozinha.

— Não seja chata. Sabe muito bem que nunca a soltarei.

Entraram na lanchonete e pediram um sanduíche.

— Muitas vezes acho-a cruel.

— Não sei porque não acha sempre.

— Porque a amo demasiado.

Depois de comerem, dirigiram-se ao ci­nema. Quando o filme começou, Daniel in­clinou-se perigosamente sobre seu ouvido e disse:

— Não tenho a mínima vontade de ver o filme.

Helena estava com os olhos fixos na tela. Daniel beijou-lhe o pescoço.

— Não faça mais isso!

— Como você é orgulhosa! Mas... al­gum dia me pedirá para beijá-la e eu não me recusarei, porque a amo muito, Helena.

Ela se emocionou. E sem querer, disse baixinho:

— Você é um louco, um louco delicioso.

— Helena!

— Silêncio — tapou-lhe a boca com um dedo. — Estamos sendo observados.

Ele obedeceu. Durante o trajeto de vol­ta não trocaram uma palavra. Mas exis­tem silêncios mais eloqüentes do que qual­quer palavra...

— É muito tarde — disse ele, consul­tando o relógio. — Vou jantar e voltarei logo.

— Estou muito cansada. É melhor que não venha.

— Custa-lhe tanto assim me suportar?

Ela não replicou. Chegaram à portaria e a jovem se preparou para subir.

— Você é muito cruel, Helena. Mas não vou me vingar, juro.

Ela voltou-se bruscamente. Sabia que ele não dizia a verdade e temia sofrer no­vamente.

— Se tivesse a certeza...

— Diga, Helena, diga...

— Solte-me!

— Antes quero que me dê um beijo.

— Não!

Mas ele já não a escutava. Envolveu-a apaixonadamente pela cintura e procurou seus lábios com desespero.

Seus lábios se encontraram com paixão. A jovem não soube quanto tempo se pas­sou, mas sentiu que poderia ter ficado as­sim por toda a vida...

— Chega! — pediu, quase sufocada.

— Sou um bruto, querida. Mas amo-a tanto!

— Não sei se o amo ou não; só sei que estando ao seu lado esqueço tudo... até mesmo quem sou.

Afastou-se, correndo para casa. Ele per­maneceu imóvel, relembrando aquele bei­jo interminável que queimava seu sangue.

Lenta, muito lentamente, deu meia-volta e caminhou pela rua. Aquela noite não voltou à casa de Helena. Sabia que ela precisava pensar.

 

No dia seguinte, Daniel se cansou de esperar por Helena: ela não viera traba­lhar.

O que havia acontecido? Será que ela o deixaria? Será que ela nunca o perdoa­ria? Pulou da cadeira. Estava farto. E se Helena continuasse a agir assim ia acabar perdendo a paciência. Ele a queria como um homem e não podia suportar mais.

Passeou pela luxuosa sala. Depois pe­gou o telefone e discou o número de Hele­na. Era a terceira vez que ouvia a sua voz do outro lado do fio, mas como havia feito anteriormente, desligou sem dizer nada.

Não, não lhe falaria. Helena tinha que com­preender que ele não era um boneco e sim um homem enérgico, com vontade de ferro e coração.

Na hora do almoço, subiu ao seu apar­tamento. Não conseguiu comer nada. A ausência de Helena estava consumindo-o pouco a pouco.

Antes de voltar ao escritório, passou por seu quarto e, situando-se diante do quadro, exclamou pateticamente:

— Como você é cruel, Helena! Como você me faz sofrer!

Ficou ali durante algum tempo remo­endo seu sofrimento. Quando saiu estava muito mais sombrio e infeliz.

As horas transcorreram monótonas e frias... pareciam anos. Às seis da tarde, saiu à rua. Talvez tivesse acontecido algo. Não ignorava que era um pretexto sem fundamento, mas o amor não admite ra­zões ou orgulhos.

Helena estava sozinha em casa. Tinha certeza de que Daniel viria...

Por isso, quando ouviu a campainha to­car, ergueu-se rapidamente e tremeu de ternura, sacudida por uma onda de felici­dade. Seus olhos brilhavam intensamente.

Ao abrir a porta, encontrou Daniel mui­to sério. Teve vontade de abraçá-lo ali mes­mo, mas se conteve. Quis fazê-lo sofrer um pouco mais, como havia sofrido.

— Entre — disse lenta e friamente. — Mamãe e Sira não estão.

— Não importa. Vim ver você.

Entrou, fechando a porta atrás de si. Quando chegaram à sala, Helena sentou-se no sofá, assinalando a poltrona em frente.

— Sente-se. Está com uma cara que espanta, mas não tenho medo.

Daniel sentou-se. Contemplou-a fixa­mente e achou-a mais bonita do que nunca. Seus olhos brilhavam de uma forma estra­nha. Sua boca sorria continuamente. Será que para dar-lhe o golpe final teria estudado seus encantos?

— Por que me olha assim? — pergun­tou a jovem baixinho, fazendo-o estreme­cer.

— Por que não foi trabalhar? — per­guntou, tentando dominar-se.

— Você me disse que não deveria vol­tar e eu repliquei que só o faria quando resolvesse marcar a data do meu casa­mento...

Ele saltou da poltrona e como um raio foi sentar-se ao lado da jovem. Apertando-a em seus braços, gaguejou:

— Diga... Helena... diga-me!

Como resposta, Helena levantou os bra­ços e passou-os ao redor do seu pescoço.

— Você é um bobo, Daniel querido.

Não disse mais nada. Sua boca estava muito próxima da dele e num instante seus lábios se encontraram num beijo apaixo­nado.

— Chega, Daniel. Seja um pouco ajui­zado — pediu a jovem, acariciando-o.

— Helena, querida!

Só sabia beijá-la.

— Não me beije mais, Daniel — supli­cou.

E ele não a beijou, mas sem soltá-la, sussurrou:

— Querida, como sofri!

— Telefonou-me três vezes — riu alisando seus cabelos negros — Como você é orgulhoso, hem?

— Deixe-me beijá-la novamente, queri­da!

— Não, amor. Mamãe acaba de che­gar, vamos até lá.

— Só um!

Ela riu.

— Helena — chamou a mãe.

— Estamos aqui, mamãe.

— Ah! Você também está aí!

— Sim, senhora — sorriu feliz. — E quero lhe participar que sua filha concor­dou em se casar comigo.

A mãe abraçou a filha e o futuro gen­ro, emocionada.

Aquela noite jantaram juntos. A data do casamento foi fixada para o mês se­guinte. Isto contando que o apaixonado Daniel pudesse resistir tanto tempo...

 

Haviam-se casado naquele dia na Igre­ja de Santa Maria.

Foi uma cerimônia simples. O banque­te foi celebrado no "Viena" e às onze da noite os noivos se viram sozinhos.

Um táxi os levaria para Sevilha. No en­tanto, antes de sair da cidade, o chofer re­cebeu ordens para parar diante do banco.

— Quero ir ao apartamento antes de seguir viagem — pediu a jovem.

E Daniel, que se sentia o homem mais feliz do mundo, conduziu-a até o lar que, no futuro, pertenceria aos dois.

— Leve-me ao seu quarto.

Juntos penetraram na alcova. Helena deu uma olhada rápida. Os móveis já não eram os mesmos. Agora havia uma, cama de casal, um armário maior... e muitas coi­sas, mas Helena só teve olhos para o qua­dro que continuava pendurado na parede.

— Por que o olha assim? Sabia de sua existência?

Helena aproximou-se do marido.

— Lembra-se de que quando foi à Sevilha me pediu para saber se sua empre­gada precisava de algo?

— Sim.

— Pois estive neste quarto e Maria me disse que você amava esta mulher. Por que a deixou aí se agora me ama?

Ele sorriu, feliz.

Apertou-a entre seus braços e procurou sua boca com paixão.

— Agora compreendo porque quando cheguei de Sevilha encontrei-a fria e indi­ferente ... Esta mulher sempre foi você.

— Eu? Somos tão diferentes!

— Eu amei um ideal e forjei no qua­dro. O que importa se é diferente de você fisicamente?

— Louco, louco adorado! — sussurrou, abraçando-o com ternura. — Este quadro me roubou muitas horas de sono.

— Mas agora viveremos num sonho eterno.

 

                                                                                            Corin Tellado

 

 

                      

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