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Willow, a linda, muito desejada e adorada filha de Charlotte O'Keefe, nasceu com osteogénese imperfeita - uma forma grave de fragilidade óssea. Se escorregar e cair pode partir as duas pernas, e passar seis meses enfiada num colete de gesso.
Depois de vários anos a tratar de Willow, a família enfrenta graves problemas financeiros. É então que é sugerida a Charlotte uma solução. Ela pode processar a obstetra por negligência - por não ter diagnosticado a doença de Willow numa fase inicial da gravidez, quando ainda fosse possível abortar. A indemnização poderia assegurar o futuro de Willow. Mas isso implica que Charlotte tem de processar a sua melhor amiga. E declarar em tribunal que preferia que Willow não tivesse nascido...
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.....
"Estavas a dormir profundamente deitada de barriga para cima, sobre a espuma ondulada com que forraram o berço de plástico. Tinhas ligaduras nos bracinhos, nas perninhas e no tornozelo esquerdo.
À medida que fosses crescendo, seria mais fácil perceber que tens OI - as pessoas que soubessem o que procurar vê-la-iam na curvatura dos teus braços e pernas, na forma triangular do rosto e no facto de nunca vires a crescer muito mais para além de um metro de altura - mas naquele momento, mesmo com as ligaduras, parecias perfeita. Tinhas a pele da cor do mais pálido pêssego, a boca era uma pequena framboesa. Os cabelos eram esvoaçantes, loiros, as pestanas do tamanho da unha do meu dedo mindinho. Estendi a mão para te tocar e, lembrando-me, afastei-a.
Estivera tão ocupada a desejar que sobrevivesses que não tinha pensado muito nos desafios que isso implicava. Tinha uma filha linda, que era tão frágil como uma bola de sabão. Como tua mãe, devia proteger-te. Mas e se tentasse e acabasse por te fazer mal?"
14 de Fevereiro de 2002
Há sempre coisas que se quebram. Vidro, pratos e unhas. Carros, contratos e batatas fritas. Podemos quebrar um recorde, quebrar a fúria bravia de um cavalo para
o domar, quebrar um dólar em trocos. Podemos quebrar o gelo. Há quebras no trabalho para fazer um intervalo para o café ou para almoçar, para se evadir da prisão.
Quebra-se a noite para ceder o lugar ao alvorecer, quebram-se as ondas, quebram-se as vozes. Podem-se quebrar as correntes. Também o silêncio e a febre.
Ao longo dos últimos dois meses da minha gravidez, fiz listas destas coisas, na esperança de tornar mais fácil o teu nascimento.
Quebram-se as promessas.
Quebram-se os corações.
Na noite antes de nasceres, fiquei sentada na cama com qualquer coisa para acrescentar à minha lista. Vasculhei na mesa-de-cabeceira à procura de lápis e papel,
mas o Sean colocou a sua mão quente na minha perna. "Charlotte?", perguntou. "Está tudo bem?"
Antes que pudesse responder, abraçou-me, encostou-me a ele, e adormeci sentindo-me segura, esquecendo-me de anotar o que sonhara.
Só passadas algumas semanas, quando já aqui estavas, é que me lembrei do que me tinha acordado naquela noite: falhas tectónicas. São os locais em que a terra se
quebra e se divide. São os sítios onde se originam os terramotos, onde nascem os vulcões. Ou, por outras palavras: o mundo está a desmoronar-se por baixo de nós; o chão firme que pisamos é que é uma ilusão.
Chegaste durante uma tempestade que ninguém previra. De nordeste, disseram mais tarde os meteorologistas, uma tempestade de neve que devia dirigir-se para norte,
para o Canadá, em vez de avançar num frenesim e fustigar a costa da Nova Inglaterra. Os noticiários deixaram de parte as reportagens sobre namorados de liceu que
voltaram a encontrar-se num lar e casaram, sobre a história dos rebuçados em forma de coração e, em vez disso começaram a transmitir constantemente boletins meteorológicos
sobre a intensidade da tempestade e das comunidades onde o gelo cortara a electricidade. Amélia estava sentada à mesa da cozinha, a recortar corações num papel
dobrado enquanto eu observava a neve a acumular-se em montes de um metro e oitenta junto aos vidros. Na televisão viam-se imagens de carros a deslizarem para fora
das estradas.
Semicerrei os olhos para o ecrã, para as luzes azuis a piscarem de um carro da polícia que parara atrás de um veículo virado ao contrário, tentando ver se o polícia
que estava ao volante seria Sean.
Qualquer coisa a bater no vidro fez-me dar um salto.
- Mamã! - gritou Amélia, assustando-se também. Virei-me mesmo a tempo de ver uma saraivada de granizo
atingi-lo pela segunda vez, fazendo uma racha no vidro que não era maior do que a minha unha e que se alargou diante dos nossos olhos numa rede de vidro partido
do tamanho do meu punho.
- O papá depois arranja isto - disse eu.
Foi nessa altura que me rebentaram as águas. Amélia olhou para baixo, entre os meus pés.
- Descuidaste-te.
Dirigi-me pesadamente para o telefone e, visto que Sean não atendeu o telemóvel, telefonei para a Central.
- Fala a mulher do Sean O'Keefe - disse. - Estou em trabalho de parto. - O operador da central disse que podia enviar-me uma ambulância, mas que provavelmente demoraria
algum tempo: estavam assoberbados com acidentes de viação.
- Não faz mal - disse, lembrando-me do longo trabalho de parto que tive da tua irmã. - Provavelmente ainda tenho algum tempo.-
De repente dobrei-me com uma contracção tão forte que o telefone me caiu da mão. Vi Amélia observar, de olhos muito abertos.
- Estou bem - menti, sorrindo até me doerem as faces. - O telefone escorregou-me da mão. Apanhei-o e dessa vez telefonei a Piper, em quem confiava mais do que em qualquer outra pessoa no mundo, para me salvar.
- Não podes estar em trabalho de parto - disse ela, embora soubesse que não devia ser assim. Não só era a minha melhor amiga, como também era a minha obstetra. - A cesariana está marcada para segunda-feira.
- Acho que o bebé não recebeu o recado - arquejei e cerrei os dentes para aguentar outra contracção.
Ela não disse o que ambas estávamos a pensar: que eu não te podia dar à luz por parto natural.
- Onde está o Sean?
- Não... sei... oh, Piper!
- Respira - disse Piper automaticamente, e comecei a arfar, ha-ha-hee-hee, tal como ela me tinha ensinado. - vou telefonar à Gianna e dizer-lhe que vamos a caminho.
Gianna era a Dr.a Del Sol, a obstetra de medicina materno-fetal que entrara em cena havia apenas três semanas a pedido de Piper.
- Vamos?
- Estavas a pensar em ires tu a conduzir?
Passados quinze minutos, tinha calado as perguntas da tua irmã instalando-a no sofá para ver As Pistas das Blue. Sentei-me ao lado dela, com o casaco do teu pai
vestido, o único que na altura me servia.
Da primeira vez que estive em trabalho de parto, tinha uma mala feita à espera junto à porta. Tinha um plano para o parto e uma cassete de músicas variadas para
pôr a tocar na sala de partos. Sabia que ia doer, mas a recompensa era um prémio inacreditável: a criança que há meses estava à espera de conhecer. Da primeira vez que estive em trabalho de parto, estava tão entusiasmada!
Desta vez, estava aterrorizada. Estavas mais segura dentro de mim do que ficarias quando saísses cá para fora.
Nesse preciso momento a porta abriu-se de rompante e Piper preencheu o espaço todo com a voz segura e a gabardine rosa-vivo. O marido, Rob, vinha atrás, com Emma, que trazia uma bola de neve.
- As Pistas da Blue? - disse ele, instalando-se ao lado da tua irmã.
- Sabes, é o meu programa preferido... a seguir ao Jerry Sprínger.
Amélia. Nem sequer tinha pensado em quem ficaria a tomar conta dela enquanto estivesse no hospital para te dar à luz.
- com que intervalo? - perguntou Piper.
As minhas contracções surgiam de sete em sete minutos. Enquanto outra me assolava como uma vaga, agarrei-me ao braço do sofá e contei até vinte. Concentrei-me na racha da porta de vidro.
Rastos de gelo saíam em espiral do ponto de origem, espalhando-se para fora. Era lindo e ao mesmo tempo aterrorizador.
Piper sentou-se ao meu lado e segurou-me na mão.
- Charlotte, vai correr tudo bem - prometeu e, porque fui uma idiota, acreditei nela.
O serviço de urgências estava cheio de gente ferida em acidentes de viação durante a tempestade. Jovens seguravam toalhas ensanguentadas junto à cabeça; crianças
gemiam em macas. Piper levou-me rapidamente dali, passando por todos eles, para a maternidade, onde a Dr.a Del Sol já estava a andar de um lado para o outro no corredor.
Passados dez minutos, estavam a administrar-me uma epidural e a levarem-me para a sala de operações para fazer uma cesariana.
Fazia jogos comigo própria: se houver um número par de lâmpadas fluorescentes no corredor, então Sean chegará a tempo. Se estiverem mais homens do que mulheres no
elevador, tudo o que os médicos me disseram afinal estava errado. Sem eu ter de pedir nada, Piper vestira uma bata médica para poder tomar o lugar de Sean como acompanhante
no parto.
- Ele vai chegar a tempo - disse ela, olhando para mim.
A sala de operações era clínica, metálica. Uma enfermeira de olhos verdes - era tudo o que conseguia ver acima da máscara e abaixo da touca - levantou-me a bata
e passou-me uma gaze com Betadine na barriga. Comecei a entrar em pânico quando colocaram a cobertura esterilizada no lugar. E se não me tivessem dado anestesia
suficiente na parte inferior do corpo e sentisse o bisturi a dilacerar-me? E se, apesar das minhas esperanças, nascesses e não sobrevivesses?
De repente a porta abriu-se. Sean entrou de rompante na sala com uma lufada de ar frio de Inverno, segurando uma máscara junto ao rosto, com a bata médica amarfanhada.
- Esperem - gritou. Aproximou-se da cabeceira da mesa de operações "e tocou-me na face. - Querida - disse ele. - Desculpa. Vim assim que soube...
Piper deu uma palmadinha no braço de Sean.
- Três é demais - disse ela, afastando-se de mim, mas só depois de me apertar o braço mais uma vez.
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E então, Sean estava ao meu lado, o calor das palmas das suas mãos nos meus ombros, o hino da sua voz a distrair-me enquanto a Dr.a Del Sol erguia o bisturi.
- Pregaste-me um susto de morte - disse ele. - Onde é que tu e a Piper estavam com a cabeça para virem as duas de carro?
- Por não querermos que o bebé nascesse no chão da cozinha?
Sean abanou a cabeça.
- Podia ter acontecido qualquer coisa terrível.
Senti um puxão debaixo da coberta branca e sustive a respiração, virando a cabeça para o lado. Foi nessa altura que a vi: a tua ecografia aumentada das vinte e sete
semanas com os teus sete ossos partidos, os teus membros como rebentos de feto, curvados para dentro. "Já aconteceu alguma coisa terrível", pensei.
E então choraste, apesar de te terem segurado como se fosses feita de algodão doce. Estavas a chorar, mas não era o choro entrecortado, simples, de um recém-nascido.
Berravas como se te tivessem cortado ao meio.
- Cuidado - disse a Dr.a Del Sol à enfermeira. - Tem de apoiar todo o...
Ouviu-se um estalido, como uma bolha a rebentar, e embora não julgasse possível, berraste ainda mais alto.
- Oh, meu Deus - disse a enfermeira, com a voz a subir em histeria. - Foi uma fractura? A culpa foi minha? - Tentei ver-te, mas só consegui distinguir uma boca,
o rubor ardente de rubi das tuas faces.
A equipa de médicos e enfermeiras reunida à tua volta não conseguiu parar o teu pranto. Acho que até ao momento em que te ouvi chorar, estava preocupada por não
saber como te havia de amar.
Sean espreitou por cima dos ombros deles.
- Ela é perfeita - disse ele, virando-se para mim, mas as palavras enrolaram-se no fim como a cauda de um cachorrinho, à procura de aprovação.
Os bebés perfeitos não choravam tanto que nos fizessem sentir o coração dilacerar-se no seu âmago. Os bebés perfeitos pareciam perfeitos por fora, e eram perfeitos
por dentro.
- Não lhe levante o braço - murmurou uma enfermeira. E outra:
- Como quer que eu a envolva sem lhe tocar?
E tu sempre a berrar, numa nota que nunca tinha ouvido antes.
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- Willow - sussurrei, o nome que o teu pai e eu escolhemos. Tive de convencê-lo. "Não vou dar-lhe esse nome", dissera ele. "Os salgueiros1 choram." Mas eu queria
dar-te uma profecia para levares contigo, o nome de uma árvore que verga em vez de quebrar.
- Willow - voltei a sussurrar, e através da cacofonia do pessoal médico, do ruído da maquinaria e da tua dor estridente e febril, ouviste-me.
- Willow - disse em voz alta e voltaste-te para o som como se a palavra fosse os meus braços a envolverem-te. - Willow - repeti,
e sem mais nem menos, paraste de chorar.
Quando estava grávida de cinco meses, recebi uma chamada do restaurante onde trabalhara. A mãe do chefe de pastelaria tinha fracturado a anca e, nessa noite, estavam
à espera de um crítico gastronómico do Boston Globe. Embora fosse incrivelmente presunçoso e com certeza nada agradável para mim, queriam saber se podia ir até lá
e fazer o meu mil-folhas de chocolate, aquele com o gelado de chocolate e especiarias, abacate e bananas caramelizadas.
Admito, estava a ser egoísta. Sentia-me letárgica e gorda, e queria recordar-me de que já fora boa a fazer outras coisas sem ser a jogar ao Peixinho com a tua irmã
e a separar a roupa suja em claros e escuros. Deixei Amélia com uma baby-sitter adolescente e dirigi-me para o Capers.
A cozinha não mudara desde que eu lá estivera, há anos, embora o novo chefe de cozinha tivesse mudado o lugar das coisas dentro das despensas. Comecei imediatamente
a libertar o meu espaço de trabalho e a fazer a minha massa folhada. Algures, no meio de tudo aquilo, deixei cair uma barra de manteiga e baixei-me para apanhá-la
antes que alguém escorregasse e caísse. Mas nessa altura, quando me inclinei para a frente, apercebi-me de que já não conseguia dobrar a cintura. Senti que me tiravas
o fôlego, como eu te tirava o teu.
- Desculpa, bebé - disse em voz alta, e voltei a endireitar-me. Agora interrogo-me: Terá sido nessa altura que ocorreram , aquelas sete fracturas? Ao tentar impedir
que alguém se magoasse, ter-te-ei magoado a ti?
Dei à luz pouco depois das três da tarde, mas só voltei a ver-te às oito da noite. De meia em meia hora, Sean saía para obter
1. Willow, na versão original em inglês, significa salgueiro. (N. da T.)
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informações actualizadas: "Estão a radiografá-la. Estão a tirar-lhe sangue. Acham que talvez também tenha o tornozelo partido." E então, às seis horas, deu-me a
melhor notícia de todas: "Tipo III", disse. "Tem sete fracturas a sarar e quatro novas, mas está a respirar bem." Fiquei deitada na cama de hospital, a sorrir incontrolavelmente,
certa de que era a única mãe naquela maternidade que alguma vez fora agraciada com tais notícias.
Já há dois meses que sabíamos que ias nascer com OI - osteogénese imperfeita, duas letras do alfabeto que se tornariam numa segunda natureza. Era um defeito no colagénio
que tornava os ossos tão quebradiços que podiam partir-se com um tropeção, um mau jeito, um espirro. Há vários tipos - mas apenas dois apresentavam fracturas dentro
do útero, como as que tínhamos visto na ecografia. Além disso a radiologista ainda não conseguia dizer conclusivamente se tinhas o Tipo II, que era fatal à nascença,
ou o Tipo III, que provocava deformações graves e progressivas. Agora sabia que podias sofrer centenas de outras fracturas ao longo dos anos, mas isso quase não
importava:
terias uma vida em que elas pudessem ocorrer.
Quando a tempestade amainou, Sean foi a casa buscar a tua irmã para te conhecer. Fiquei a observar o radar meteorológico a localizar a tempestade de neve a dirigir-se
para sul, transformando-se numa chuva gelada que deixaria os aeroportos de Washington D.C. paralisados durante três dias. Ouvi alguém bater à porta e esforcei-me
para me sentar, apesar de sentir os pontos recentes arderem.
- Olá - disse Piper, entrando no quarto e sentando-se na beira da cama. - Já soube as notícias.
- Eu sei - disse eu. - Tivemos tanta sorte.
Hesitou muito ligeiramente antes de sorrir e acenou com a cabeça.
- Ela já vem cá para baixo - disse Piper e, precisamente nessa altura, uma enfermeira empurrou um berço para dentro do quarto.
- Aqui está a mamã - disse alegremente.
Estavas a dormir profundamente deitada de barriga para cima, sobre a espuma ondulada com que forraram o berço de plástico. Tinhas ligaduras nos bracinhos, nas perninhas
e no tornozelo esquerdo.
À medida que fosses crescendo, seria mais fácil dizer que tens OI - as pessoas que soubessem o que significa vê-la-iam na curvatura dos teus braços e pernas, na
forma triangular do rosto e no
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facto de nunca vires a crescer muito mais para além de um metro de altura - mas, naquele momento, mesmo com as ligaduras, parecias perfeita. Tinhas a pele da cor
do mais pálido pêssego, a boca era uma pequena framboesa. Os cabelos eram esvoaçantes, loiros, as pestanas do tamanho da unha do meu dedo mindinho. Estendi a mão
para tocar-te e, lembrando-me, afastei-a.
Estivera tão ocupada a desejar que sobrevivesses que não tinha pensado muito nos desafios que isso implicava. Tinha uma filha linda, que era tão frágil como uma
bolha de sabão. Como tua mãe, devia proteger-te. Mas e se tentasse e acabasse por fazer-te mal?
Piper e a enfermeira trocaram um olhar.
- Queres pegar-lhe ao colo, não queres? - disse ela, e enfiou o braço para servir de apoio por baixo do forro de espuma enquanto a enfermeira levantava as pontas
como asas parabólicas que te apoiariam os braços. Devagar, colocaram-me a espuma na curva do braço.
- Olá - sussurrei, aconchegando-te para mais perto de mim. A mão, presa debaixo de ti, sentia as bordas ásperas da almofada de espuma. Interroguei-me sobre quanto
tempo teria que passar antes de te poder pegar, sentir o teu corpo, sentir a tua pele na minha. Lembrei-me de todas as vezes em que Amélia chorara quando era recém-nascida;
de como lhe dava de mamar na cama e adormecia com ela nos braços, sempre com medo de virar-me e magoá-la. Mas no teu caso, até tirar-te do berço podia ser um perigo.
Até esfregar-te as costas.
Olhei para Piper.
- Talvez devesses levá-la...
Ela sentou-se ao meu lado e passou um dedo pela moleirinha da tua cabeça.
- Charlotte - disse Piper - ela não se parte.
Ambas sabíamos que era mentira, mas antes que eu pudesse confrontá-la, Amélia entrou repentinamente no quarto, com neve nas luvas e no gorro de lã.
- Ela está aqui, ela está aqui - cantarolou a tua irmã. No dia em que lhe disse que vinhas a caminho, perguntou se podias vir à hora de almoço. Quando lhe disse
que tinha de esperar cerca de cinco meses, decidiu que isso era muito tempo e fingiu que já tinhas chegado, transportando a sua boneca preferida e chamando-lhe Maninha.
Às vezes, quando Amélia ficava aborrecida ou distraída, deixava cair a boneca de cabeça e o teu pai ria. "Ainda bem que é a versão de treino", dizia ele.
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Sean apareceu à entrada da porta no momento em que Amélia subia para cima da cama, para o colo de Piper, para dizer de sua justiça.
- Ela é demasiado pequena para patinar comigo - disse Amélia. - E porque é que está vestida de múmia?
- São fitas - disse eu. - É como num embrulho de oferta.
Foi a primeira vez que menti para te proteger e, como se soubesses, escolheste aquele momento para acordar. Não choraste, não te mexeste.
- O que aconteceu aos olhos dela? - arquejou Amélia, enquanto todos olhávamos para a característica distintiva da tua doença: a parte branca das escleróticas, que
refulgiam num azul-vivo, eléctrico.
A meio da noite, as enfermeiras do turno da madrugada entraram de serviço. Tu e eu estávamos a dormir profundamente quando a mulher entrou no quarto. Recuperei a
consciência, concentrando-me na farda dela, na placa de identificação, nos seus cabelos ruivos frisados.
- Espere - disse eu, enquanto ela alcançava o teu cobertor. Tenha cuidado.
Ela sorriu indulgentemente.
- Tenha calma, mãe. Só verifiquei fraldas umas dez mil vezes. Mas isso foi antes de eu ter aprendido a ser a tua voz e,
quando ela desentalou a ponta do cobertor que te envolvia, puxou demasiado depressa. Viraste-te de lado e começaste a guinchar - não era o choramingar que fizeras
pouco antes, quando estavas com fome, mas o guincho penetrante que ouvi quando nasceste.
- Magoou-a!
- Ela só não gosta de ser acordada a meio da noite...
Não conseguia imaginar nada pior do que os teus gritos, mas então a tua pele ficou tão azul como os teus olhos, e a respiração transformou-se numa sucessão de arquejos.
A enfermeira debruçou-se com o estetoscópio.
- O que aconteceu? O que é que ela tem? - perguntei.
Ela franziu a testa enquanto te auscultava o peito e então de repente ficaste inerte. A enfermeira carregou num botão por trás da cama.
- Paragem cardio-respiratória - ouvia-a dizer, e o pequeno quarto ficou subitamente cheio de gente, apesar de estarmos a meio da noite. As palavras voavam como mísseis:
"hipoxémica...
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gás do sangue arterial... SO2 a quarenta e seis por cento... administrando FIO2."
- vou começar as compressões torácicas - disse alguém.
- Ela tem OI.
- É melhor viver com algumas fracturas do que morrer sem elas.
- Precisamos de um aparelho de radiologia torácica portátil...
- Não havia ruídos respiratórios do lado esquerdo quando isto começou...
- Não vale a pena esperar pela radiografia. Pode haver um pneumotórax de tensão...
Por entre as colunas de corpos a deslocarem-se, vi o reflexo de uma agulha afundar-se entre as tuas costelas e, depois, passados alguns instantes, um bisturi a fazer
um corte um pouco abaixo, a gota de sangue, a pinça, a extensão de tubo que estava a ser inserida dentro do teu peito. Vi-os coserem o tubo no lugar, saindo do teu
corpo a serpentear.
Quando Sean chegou, de olhos desvairados, muito agitado, já tinhas sido levada para a unidade de cuidados intensivos neonatais.
- Eles fizeram-lhe um corte - solucei, as únicas palavras que consegui encontrar e, quando ele me envolveu nos braços, finalmente deixei correr todas as lágrimas
que não chorara por estar demasiado aterrorizada.
- Sr. e Sr.a O'Keefe? Sou o Dr. Rhodes - um homem que parecia ter idade para estar no liceu espreitou para dentro do quarto, e Sean apertou-me a mão com força.
- A Willow está bem? - perguntou Sean.
- Podemos vê-la?
- Em breve - disse o médico, e o nó que tinha dentro de mim dissolveu-se. - Uma radiografia torácica confirmou uma costela fracturada. Esteve hipoxémica durante
alguns minutos, o que deu origem a um pneumotórax em expansão, um desvio do mediastino e uma paragem cardio-respiratória.
- Na nossa língua - rugiu Sean. - Por amor de Deus.
- Esteve alguns minutos sem oxigénio, Sr. O'Keefe. O coração, a traqueia e os vasos sanguíneos mais importantes desviaram-se para o lado oposto do corpo devido ao
ar que lhe encheu a cavidade torácica. O tubo torácico permitirá que voltem para o seu lugar.
- Sem oxigénio - disse Sean, e as palavras ficaram-lhe presas na garganta. - Está a falar de lesões cerebrais.
- É possível. Só saberemos daqui a algum tempo.
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Sean inclinou-se para a frente, de mãos tão firmemente cruzadas que os nós dos dedos sobressaíam num relevo muito branco.
- Mas o coração...
- Agora ela está estável... embora haja a possibilidade de ter outro colapso cardiovascular. Mas não temos a certeza de como reagirá o corpo ao que fizemos para
a salvar.
Irrompi num pranto.
- Não quero que ela volte a passar por aquilo. Não posso deixá-los fazerem-lhe isso, Sean.
O médico parecia abalado.
- Talvez queiram considerar uma ONR. É uma ordem de não reanimação que ficará registada no ficheiro clínico dela. Basicamente diz que se voltar a acontecer algo
semelhante a isto, não querem que sejam tomadas medidas extraordinárias para reanimar a Willow.
Passei as últimas semanas de gravidez a preparar-me para o pior e, afinal, nem sequer cheguei lá perto.
- Pensem nisso - disse o médico.
- Talvez - disse Sean -, ela não esteja destinada a ficar aqui connosco. Talvez seja a vontade de Deus.
- Então e a minha vontade? - perguntei. - Eu quero-a. Sempre a quis.
Ele olhou para mim, magoado.
- E achas que eu não?
Pela janela, via a encosta do relvado do hospital coberta de neve resplandecente. Estava um dia luminoso, ofuscante; nunca poderíamos adivinhar que há algumas horas
houvera uma violenta tempestade de neve. Um pai empreendedor, tentando distrair o filho, levara um tabuleiro da cantina lá para fora. O rapaz estava a deslizar pela
encosta abaixo, aos gritos de entusiasmo, levantando um rasto de neve atrás de si. Levantou-se e acenou para o hospital, onde alguém devia estar a olhar lá para
fora por uma janela igual à minha. Interroguei-me se a mãe estaria no hospital, a ter outro bebé. Se estaria no quarto ao lado, naquele preciso momento, a ver o
filho deslizar.
"A minha filha", pensei distraidamente, "nunca poderá fazer aquilo."
Piper segurou-me na mão enquanto olhava para ti na UCIN. O tubo torácico ainda serpenteava por entre as tuas costelas maltratadas; braços e pernas firmemente ligados.
Vacilei um pouco, de pé.
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- Estás bem? - perguntou Piper.
- Não é comigo que deves preocupar-te - olhei para ela. Perguntaram-me se queria assinar uma ONR.
Piper abriu muito os olhos.
- Quem te perguntou isso?
- O Dr. Rhodes...
- Ele é um médico interno - disse ela, com tanto desagrado como se tivesse dito "Ele é um nazi." - Ainda nem sabe o caminho para a cantina, quanto mais qual o protocolo
para falar com uma mãe que acabou de ver a filha recém-nascida sofrer uma paragem cardio-respiratória com os seus próprios olhos. Nenhum pediatra recomendaria uma
ONR a um recém-nascido antes de serem realizados exames cerebrais que provem lesões irreversíveis...
- Eles cortaram-na à minha frente - disse, com a voz trémula.
- Ouvi as costelas dela partirem-se quando tentaram pôr o coração a bater outra vez.
- Charlotte...
- Assinarias uma?
Visto que ela não respondeu, dirigi-me ao outro lado do berço, e tu ficaste presa entre nós como um segredo.
- É assim que vai ser o resto da minha vida?
Piper não respondeu durante bastante tempo. Ficámos a ouvir a sinfonia de zumbidos e apitos que te rodeava. Vi-te acordar sobressaltada, os dedinhos dos pés a enrolarem-se
para cima, os braços muito abertos.
- O resto da tua vida não - disse Piper. - O resto da vida da Willow.
Mais tarde, nesse dia, com as palavras de Piper a ressoarem-me nos ouvidos, assinei uma ordem de não reanimação. Era um apelo de misericórdia preto no branco, até
lermos nas entrelinhas: foi a primeira vez que menti e disse que desejava que nunca tivesses nascido.
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"A maioria das coisas quebra-se, incluindo os corações. As lições da vida não se medem em sabedoria, mas em cicatrizes e calosidades."
WALLACE STEGNER, THE SPECTATOR BIRD
Engrossar: tornar mais consistente.
Na maioria das vezes, quando nos referimos a uma pessoa grossa, estamos a referir-nos a uma pessoa mal educada. Mas na cozinha, engrossar é tornar qualquer coisa
mais consistente sem pressas. Engrossamos os ovos acrescentando um líquido quente em pequenas quantidades. A ideia é aumentar a temperatura sem que coagulem. O resultado é um creme que pode ser usado como molho de uma sobremesa ou ser incorporado numa sobremesa complexa.
Eis uma coisa interessante: a consistência do produto acabado não tem nada a ver com o tipo de liquido utilizado para aquecer. Quanto mais ovos se utilizarem, mais espesso e rico será o produto acabado.
Ou, por outras palavras, é a substância que temos de início que determinará o resultado.
CREME PATISSERIE
2 chávenas de leite gordo
6 gemas à temperatura ambiente
150 gramas de açúcar
50 gramas de amido de milho
1 colher de chá de baunilha
Deixar o leite levantar fervura numa frigideira antiaderente. Numa tigela de aço inoxidável bater as gemas, o açúcar e o amido de milho. Engrossar as gemas utilizando
leite. Voltar a aquecer a mistura de leite e gemas, mexendo sempre. Quando a mistura começar a ficar mais espessa, mexer mais depressa até levantar fervura, depois
retirar do lume. Juntar a baunilha e deitar numa tigela de aço inoxidável. Polvilhar com um pouco de açúcar e colocar película aderente mesmo por cima do creme.
Colocar no frigorífico e servir fresco. Pode ser usado como recheio para tartes de fruta, mil-folhas, choux, éclairs, etc.
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Amélia
Fevereiro de 2007
Nunca tive férias em toda a minha vida. Nem sequer nunca saí de New Hampshire, a menos que contemos com aquela vez que fui contigo e com a mãe ao Nebraska - e até
tu terás de admitir que ficar sentada num quarto de hospital durante três dias a ver desenhos animados muito antigos do tom e jerry enquanto te faziam exames no
hospital pediátrico Shriners é muito diferente de ir à praia ou ao Grand Canyon. Por isso podes imaginar como fiquei entusiasmada quando soube que a nossa família
estava a planear ir ao Disney World, íamos durante as férias escolares de Fevereiro. Ficaríamos num hotel que tinha um monocarril que passava mesmo a meio.
A mãe começou a fazer uma lista dos divertimentos em que podíamos andar: Small World, Dumbo o Elefante Voador; o Voo do Peter Pan.
- Esses são para bebés - queixei-me.
- São aqueles que são seguros - disse ela.
- Space Mountain - sugeri.
- Piratas das Caraíbas - respondeu ela.
- Boa - gritei. -vou de férias pela primeira vez na vida e nem sequer vou divertir-me. - Depois saí dali intempestivamente dirigindo-me para o nosso quarto e, embora
já nem sequer estivesse lá em baixo, era capaz de imaginar o que os nossos pais estavam a dizer: "Lá está a Amélia a ser difícil outra vez."
É engraçado, quando acontecem coisas destas (ou seja, a toda a hora), não é a Mãe que tenta suavizar as coisas. Está demasiado ocupada a ver se estás bem, por isso
essa tarefa cabe ao pai. Ah, estás a ver, é outra coisa de que tenho ciúmes: ele é o teu verdadeiro pai, mas é só o meu padrasto. Não conheço o meu verdadeiro pai;
ele e a minha mãe separaram-se mesmo antes de eu nascer e ela jura que a ausência dele foi o
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melhor presente que me podia ter dado. Mas o Sean adoptou-me e parece que gosta de mim tanto quanto gosta de ti - embora eu tenha aquela nuvem negra a pairar sobre
a minha cabeça que não me deixa esquecer que isso pode não ser verdade.
- Meei - disse ele quando entrou no quarto (é a única pessoa que deixo que me trate assim, faz-me lembrar os vermes que aparecem na farinha, mas não quando é o pai
a dizê-lo) - sei que estás preparada para andar nos divertimentos para os mais crescidos. Mas estamos a tentar que a Willow também se divirta.
"Porque quando a Willow está a divertir-se, todos estamos a divertir-nos." Ele não disse isso, mas eu ouvi na mesma.
- Só queremos ser uma família de férias - disse ele. Hesitei.
- O carrossel das chávenas - ouvi-me dizer.
O pai disse que ia interceder por mim e, embora a mãe estivesse firmemente contra - e se batesses nas paredes rígidas de gesso da chávena? - ele convenceu-a de que
podíamos rodopiar em círculos contigo, enfiada no meio de nós, para não te magoares. Depois sorriu para mim, tão orgulhoso de si próprio por ter mediado este acordo
que não tive coragem de lhe dizer que me estava nas tintas para o carrossel das chávenas.
Lembrei-me dele porque há alguns anos tinha visto um anúncio do Disney World na televisão. Mostrava a Fada Sininho a voar por cima das cabeças dos alegres visitantes.
Havia uma família com duas filhas da nossa idade, e iam no carrossel das chávenas do Chapeleiro Louco. Não conseguia tirar os olhos delas - a filha mais velha até tinha cabelos castanhos, como eu; e se semicerrássemos os olhos, o pai delas era muito parecido com o pai. A família parecia tão feliz que me fez doer o estômago só de vê-la. Sabia que as pessoas do anúncio provavelmente nem sequer eram uma família verdadeira - que a mãe e o pai provavelmente eram dois actores solteiros, que o mais provável era terem conhecido as filhas a fingir; naquela mesma manhã, ao chegarem ao cenário para filmarem o anúncio - mas eu queria que fossem. Queria
acreditar que riam, sorriam, enquanto rodopiavam descontroladamente.
Escolham dez desconhecidos ao acaso, metam-nos numa sala e perguntem-lhes de qual de nós sente mais pena - de ti ou de mim - e todos sabemos quem escolherão. É um
bocado difícil ignorar os teus moldes de gesso; e o facto de seres do tamanho de uma criança de dois anos, embora tenhas cinco; e o movimento estranho das tuas ancas quando tens saúde suficiente para andar Não estou a dizer que seja fácil para ti. Só que para mim é pior, porque de cada vez que acho que a minha vida
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é uma porcaria, olho para ti e fico a odiar-me ainda mais por ter pensado primeiro em mim própria.
Eis um exemplo de como é estar no meu lugar:
"Amélia, não saltes em cima da cama, vais magoar a Willow."
"Amélia, quantas vezes te disse que não deixes as meias no chão porque a Willow pode tropeçar nelas?"
"Amélia, desliga a televisão" (embora só estivesse a ver há meia hora, e tu já estivesses a fitá-la como um zombie há cinco horas a fio).
Sei como isto me faz parecer egoísta, mas, por outro lado, saber que uma coisa é verdade não faz com que não a sintamos. E posso só ter doze anos, mas acreditem,
é tempo suficiente para saber que a nossa família não é como as outras, e nunca será. Um exemplo ilustrativo: Que família leva uma mala suplementar cheia de ligaduras
e moldes de gesso à prova de água, só para prevenir? Que mãe passa dias a investigar os hospitais de Orlando?
Era o dia da partida e, enquanto o pai punha as coisas no carro, tu e eu estávamos sentadas à mesa da cozinha a jogar à Pedra, Papel ou Tesoura.
-Vai - disse eu, e ambas fizemos tesoura.Já devia saber; fazes sempre tesoura. -Vai - disse eu outra vez, e desta vez fiz pedra. - A'pedra quebra a tesoura - disse
eu, colocando o punho por cima da tua mão.
- Cuidado - disse a mãe, embora estivesse virada para o lado oposto.
- Ganhei.
- Ganhas sempre. Ri de ti.
- Isso é porque fazes sempre tesoura.
- O Leonardo da Vinci inventou as tesouras - disseste tu. De maneira geral, eras um poço de informações que mais ninguém sabia ou se dava ao trabalho de saber, porque
estavas sempre a ler, ou a navegar na Internet ou a assistir a programas do Canal de História que me faziam dormir As pessoas ficavam impressionadas por se depararem
com uma criança de cinco anos que sabia que os autoclismos se despejavam em Mi bemol ou que a palavra mais antiga da língua inglesa é town, mas a mãe disse que
muitas crianças com OI aprendem a ler com facilidade e possuem capacidades verbais avançadas. Calculei que fosse como um músculo: o teu cérebro habituou-se melhor do que
o resto do corpo, que estava sempre a partir-se; não admira que parecesses um pequeno Einstein.
- Não me esqueci de nada? - perguntou a mãe, mas estava a falar sozinha. Verificou a lista pela enésima vez. - A carta - disse, e depois virou-se para mim. -Amélia, precisamos do bilhete do médico.
Era uma carta do Dr Rosenblad a afirmar o óbvio: que tens OI e que, em caso de emergência, estás a ser tratada por ele no Hospital Pediátrico
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- o que era realmente bastante engraçado, visto que as tuas fracturas eram uma emergência atrás da outra. Estava no porta-luvas da carrinha, ao lado do registo de
propriedade e do livrete daToyota, juntamente com um mapa rasgado do Massachusetts, um recibo da Jiffy Lube um pedaço de pastilha elástica que perdera o papel de
embrulho que estava cheio de pêlos. Tinha feito uma vez o inventário quando a mãe estava a pagar a gasolina.
- Se está na carrinha, porque não podes tirá-la quando formos a caminho do aeroporto?
- Porque vou esquecer-me - disse a mãe quando o pai entrou.
- já está tudo pronto - disse ele. - O que dizes, Willow? Vamos visitar o Mickey?
Mostraste-lhe um enorme sorriso, como se o Rato Mickey fosse real e não apenas uma rapariga adolescente a usar uma grande cabeça de plástico num emprego durante as férias.
- O aniversário do Rato Mickey é no dia dezoito de Novembro anunciaste, enquanto ele te ajudava a descer da cadeira. - A Amélia ganhou-me à Pedra, Papel ou Tesoura.
- Isso é porque fazes sempre tesoura - disse o pai.
A mãe franziu a testa ao olhar para a lista uma última vez.
- Sean, arrumaste o Motrin?
- Dois frascos.
- E a máquina fotográfica?
- Bolas, tirei-a cá para fora e deixei-a em cima da cómoda lá em cima...
- olhou para mim. - Querida, podes ir buscá-la enquanto eu ponho a Willow no carro?
Acenei com a cabeça e subi as escadas. Quando desci, com a máquina fotográfica na mão, a mãe estava de pé, sozinha na cozinha a virar-se lentamente num círculo, como se não soubesse o que fazer sem a Willow ao seu lado. Desligou as luzes, trancou a porta de entrada, e eu corri para a carrinha. Dei a máquina fotográfica ao pai e apertei o cinto ao lado da tua cadeirinha e admiti para mim própria que por mais pateta que fosse ter doze anos e estar entusiasmada com uma viagem ao Disney World, eu estava mesmo. Estava a pensar no sol, nas canções da Disney e nos monocarris, em tudo menos na carta do Dr Rosenblad.
O que significa que tudo o que aconteceu foi por minha culpa.
Nem sequer chegámos a ir às malditas chávenas. Quando aterrámos e chegámos ao hotel já era fim de tarde. Dirigimo-nos para o parque temático e tínhamos acabado de
chegar à Main Street, EUA - o Castelo da Gata Borralheira estava ali à vista - quando se abateu sobre nós a tempestade perfeita. Disseste que estavas com fome e
fomos a uma geladaria
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tradicional. O pai ficou à espera na fila enquanto a mãe trazia guardanapos para a mesa onde eu estava sentada.
- Olha - disse eu, apontando para o Pateta a apertar a mão a uma criança pequena aos berros. No preciso instante em que a mãe deixou cair ao chão um guardanapo e
o pai te largou a mão para tirar a carteira, correste para a janela para ver o que eu queria mostrar-te e escorregaste no pequeno quadrado de papel.
Todos ficámos a ver em câmara lenta, a forma como as tuas pernas simplesmente cederam debaixo de ti e caíste com força com o traseiro no chão. Olhaste para nós e o branco dos teus olhos refulgiu azul, como acontece sempre que partes alguma coisa.
Era quase como se as pessoas no Disney World estivessem à espera que isto acontecesse. Assim que a mãe disse ao homem que servia o gelado que tinhas fracturado a perna, dois homens do departamento médico apareceram com uma maca. com a mãe a dar ordens, como costuma fazer sempre quando está ao pé dos médicos, conseguiram colocar-te em cima dela. Não estavas a chorar mas também quase nunca choras quando fracturas qualquer coisa. Uma vez, fracturei o dedo mindinho quando estava a jogar tetherball na escola e não consegui evitar perder o controlo quando começou a ficar vermelho e inchado como um balão, mas tu nem sequer choraste quando partiste um braço numa fractura exposta.
- Não te dói? - murmurei, enquanto levantavam a maca para que ganhasse subitamente rodas.
Estavas a morder o lábio inferior e acenaste com a cabeça.
Estava uma ambulância à nossa espera quando chegámos ao portão do Disney World. Lancei um último olhar a Main Street, EUA, para o cimo do cone de metal que albergava a Space Mountain, para as crianças que corriam lá para dentro, em vez de estarem a sair e então entrei no carro que alguém tinha arranjado para que o pai e eu pudéssemos
ir contigo e com a mãe para o hospital.
Era esquisito ir a um serviço de urgências que não era o habitual.Toda a gente no hospital da nossa zona te conhecia e os médicos ouviam sempre aquilo que a mãe
lhes dizia. Mas aqui ninguém lhe prestava atenção. Disseram que podia ser não apenas uma mas duas fracturas femorais, e isso podia significar hemorragia interna.
A mãe entrou na sala de exames contigo para fazeres uma radiografia, e o pai e eu ficámos sentados em cadeiras de plástico verdes na sala de espera.
-Tenho muita pena, Meei - disse ele, e eu limitei-me a encolher os ombros. -Talvez não seja uma fractura complicada e possamos voltar ao parque amanhã. - Um homem de fato preto no Disney World disse ao
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meu pai que seríamos compensados, o que quer que seja que isso signifique, se quiséssemos voltar noutro dia.
Era sábado à noite e as pessoas que entravam no serviço de urgências eram muito mais interessantes do que o programa da televisão que estava a dar. Havia dois rapazes que pareciam ter idade suficiente para estarem na faculdade, ambos a sangrarem do mesmo sítio na testa e a rirem sempre que olhavam um para o outro. Havia um homem idoso, de calças de lantejoulas, agarrado ao lado direito do estômago e uma rapariga que só falava espanhol, com dois bebés gémeos a chorarem.
De repente, a mãe saiu de rompante pela porta dupla à direita, com uma enfermeira a correr atrás dela e outra mulher de saia justa às riscas finas e sapatos de
salto alto vermelhos.
- A carta - gritou. - Sean, o que lhe fizeste?
- Que carta? - perguntou o pai, mas eu já sabia ao que ela se referia e de um momento para o outro achei que ia vomitar.
- Sra O'Keefe - disse a mulher - por favor Vamos fazer isto num local mais privado.
Tocou no braço da mãe, e... bem, a única forma de descrever a cena é dizer que a mãe se dobrou ao meio. Fomos levados para uma sala com um sofá vermelho muito gasto,
uma pequena mesa oval e flores artificiais numa jarra. Havia uma fotografia de dois pandas na parede, e fiquei a olhar para ela enquanto a mulher da saia justa - disse que se chamava Donna Roman, e que era do Departamento de Crianças e Famílias - falava com os nossos pais.
- O Dr Rice contactou-nos porque tem algumas preocupações acerca das lesões da Willow - disse ela. - A curvatura do braço e as radiografias indicam que esta não foi a sua primeira fractura, não é verdade?
-A Willow sofre de osteogénese imperfeita - disse o pai.
- Já lhe disse - disse a mãe. - Ela não quis saber
- Sem a declaração de um médico, temos de investigar isto mais pormenorizadamente. É apenas um protocolo, para proteger as crianças...
- Eu gostava de proteger a minha filha - disse a mãe, numa voz afiada como uma lâmina. - Gostava que me deixasse voltar lá para dentro para poder fazê-lo.
- O Dr Rice é um especialista...
- Se fosse um especialista saberia que estou a dizer a verdade - ripostou a mãe.
- Pelo que percebi, o Dr Rice está a tentar contactar o médico da sua filha - disse Donna Roman - mas, visto que é sábado à noite, está a
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ter dificuldade em fazê-lo. Por isso, entretanto, gostaria que assinassem autorizações para podermos fazer um exame completo à Willow: uma cintigrafia óssea e um
exame neurológico e, entretanto, podemos conversar um pouco.
- A última coisa de que a Willow precisa é de fazer mais exames disse a mãe.
- Olhe, Sr.a Roman - interrompeu o pai. - Sou um agente da polícia. Acha realmente que ia mentir-lhe?
- Já falei com a sua mulher, Sr O'Keefe, e também quero falar com o senhor... mas primeiro gostaria de conversar com a irmã da Willow.
Abri e fechei a boca, mas não disse nada. A mãe estava a olhar para mim como se quisesse usar percepção extra-sensorial e eu olhei para o chão até ver aqueles sapatos de salto alto vermelhos pararem à minha frente.
- Deves ser a Amélia - disse ela, e eu acenei com a cabeça. - Porque não vamos dar um passeio?
Quando saímos dali, um agente da polícia, que parecia o pai quando vai para o trabalho, entrou pela porta.
- Separe-os - disse Donna Roman, e ele acenou com a cabeça. Então levou-me até à máquina dos doces ao fundo do corredor. O que preferes? Eu sou viciada em chocolate, mas talvez prefiras as batatas fritas!
Era muito mais simpática para mim quando os pais não estavam lá apontei imediatamente para uma barra de Snickers, calculando que o melhor era aproveitar enquanto
podia.
- Calculo que não era bem isto que esperavas das tuas férias - disse ela, e eu abanei a cabeça. - Isto já aconteceu à Willow antes?
- já. Está sempre a partir algum osso.
- Como?
Embora devesse ser uma pessoa inteligente, a verdade é que esta senhora não parecia. Como é que as pessoas partem ossos?
- Cai, acho eu. Ou qualquer coisa lhe bate.
-Alguma coisa lhe bate? - repetiu Donna Roman.- Ou queres dizer alguém?
Houve uma vez no jardim-de-infância em que uma criança te deu um encontrão no recreio. Eras perita em esquivares-te, mas naquele dia não foste suficientemente rápida.
- Bem - disse eu - às vezes isso também acontece.
- Quem estava com a Willow quando ela se magoou desta vez, Amélia?
Recordei-me do balcão da geladaria, do pai, a dar-te a mão.
- O meu pai.
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A boca dela apertou-se numa linha. Enfiou moedas noutra máquina e saiu uma garrafa de água. Abriu a tampa. Queria que ela ma oferecesse, mas tinha vergonha de pedir
- Estava perturbado?
Lembrei-me do rosto do meu pai enquanto nos dirigíamos para o hospital a acelerar atrás da ambulância. Dos punhos dele apoiados nas coxas enquanto esperávamos para que nos dissessem alguma coisa sobre a última fractura da Willow.
- Sim, muito perturbado.
Donna Roman ajoelhou-se para olhar-me nos olhos. -Amélia - disse ela - podes contar-me o que aconteceu verdadeiramente. Eu garanto que ele não vai magoar-te.
De repente, apercebi-me do que ela achava que eu queria dizer
- O meu pai não estava zangado com a Willow - disse eu. - Não lhe bateu. Foi um acidente!
- Acidentes desses não têm de acontecer
- Não, não está a perceber., é por causa da Willow...
- Nada do que as crianças possam fazer justifica os maus tratos resmungou Donna Roman em voz baixa, mas eu conseguia ouvi-la perfeitamente. Naquela altura já estava a regressar à sala onde estavam os meus pais e, embora eu gritasse tentando fazê-la ouvir-me, não me prestava atenção.
- Sr e Sr.a O'Keefe - disse ela - vamos colocar as vossas filhas sob protecção legal.
- Porque não vamos até à esquadra conversar? - dizia o polícia ao pai. A mãe abraçou-me.
- Protecção legal? O que significa isso?
com uma mão firme - e a ajuda do polícia - Donna Roman tentou afastá-la de mim.
-Vamos apenas manter as crianças em segurança enquanto esclarecemos este assunto. A Willow vai passar aqui a noite. - Ela começou a levar-me para fora da sala, mas eu agarrei-me à ombreira da porta.
- Amélia - disse a minha mãe, extremamente agitada. - O que disseste?
-Tentei dizer-lhe a verdade!
- Para onde levam a minha filha?
- Mãe! - gritei, e tentei alcançá-la.
-Vem, minha querida - disse Donna Roman, e puxou-me as mãos até ter de largar, até ser arrastada para fora do hospital aos pontapés e aos gritos. Fiquei assim durante cinco minutos, até ficar completamente inerte. Até perceber porque não choras, mesmo que doa: há algumas dores que não podemos exprimir em voz alta.
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Já vira e ouvira as palavras lar de acolhimento antes, em livros que li e em programas de televisão que vi. Achei que se destinavam a órfãos e crianças de bairros
degradados cujos pais eram traficantes de droga e não para raparigas como eu que viviam em boas casas, recebiam muitos presentes no Natal e nunca se deitavam com fome. Mas, afinal, a Sr.a Ward, que dirigia aquele lar de acolhimento temporário, podia ter sido uma mãe normal. Acho que já tinha sido, a avaliar pelas fotografias que cobriam todas as superfícies como papel de parede. Recebeu-nos à porta de roupão vermelho e chinelos que pareciam porquinhos cor-de-rosa.
- Deves ser a Amélia - disse ela, ao abrir a porta um pouco mais. Estava à espera de um grupo de crianças, mas afinal eu era a única que
ia ficar em casa da Sr.a Ward. Levou-me para a cozinha que cheirava a detergente da loiça e a massa cozida. Colocou um copo de leite e um monte de Oreos à minha frente.
- Deves estar cheia de fome - disse ela e, embora estivesse, abanei a cabeça. Não queria aceitar nada dela; podia parecer que estava a ceder.
O meu quarto tinha uma cómoda, uma pequena cama e um edredão com cerejas estampadas. Havia um televisor com comando. Os meus pais nunca me deixariam ter um televisor
no quarto; a minha mãe dizia que era a Raiz de Todo o Mal. Disse isso à Sr.aWard e ela riu.
-Talvez seja - disse ela - mas, por outro lado, às vezes Os Simpson são o melhor remédio. - Abriu uma gaveta e tirou uma toalha limpa e uma camisa de noite dois tamanhos acima do meu. Interroguei-me de onde teria vindo. Interroguei-me durante quando tempo a última rapariga que a usou teria dormido naquela cama.
- Estou mesmo ali ao fundo do corredor se precisares de mim - disse a Sra Ward. - Queres mais alguma coisa?
A minha mãe.
O meu pai.
Tu.
Ir para casa.
- Durante quanto tempo - consegui dizer, as primeiras palavras que disse em voz alta naquela casa - tenho de ficar aqui?
A Sra Ward sorriu tristemente.
- Não sei, Amélia.
- Os meus pais... também estão num lar de acolhimento? Ela hesitou.
- É mais ou menos isso.
- Quero ver a Willow.
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- Amanhã logo de manhã, vamos ao hospital - disse a Sr.a Ward. Que achas?
Acenei com a cabeça. Queria tanto acreditar nela. com aquela promessa aconchegada nos braços como se fosse o meu alce de peluche lá de casa, conseguiria dormir a noite toda. Conseguiria convencer-me de que as coisas tinham de melhorar.
Deitei-me e tentei recordar-me daquelas informações inúteis que costumavas enumerar antes de dormir quando eu estava sempre a mandar-te calar: as rãs têm de fechar
os olhos para engolir Um lápis consegue traçar uma linha de cinquenta e seis quilómetros de comprimento. Cleveland, lida ao contrário é DNA levei C.
Estava a começar a perceber porque trazias contigo todos aqueles factos estúpidos como outras crianças trazem uma mantinha - se os repetisse vezes sem conta, quase
me fazia sentir melhor. Só não tinha a certeza se era porque isto me ajudava a saber mais qualquer coisa, quando o resto da minha vida parecia ser um grande ponto
de interrogação, ou se era porque me fazia lembrar de ti.
Ainda tinha fome, ou estava vazia, não sabia muito bem. Depois de a Sra Ward ter ido para o quarto dela, saí da cama em bicos de pés. Acendi a luz do corredor e
fui à cozinha. Ali, abri o frigorífico e deixei que a luz e o frio me incidissem nos pés descalços. Fiquei a olhar para a carne do almoço, guardada em embalagens
de plástico; para a mistura de maçãs e pêssegos num recipiente; para os pacotes de sumo de laranja e leite alinhados como soldados. Quando me pareceu ter ouvido um rangido lá em cima, agarrei no que pude: um cacete, um Tupperware de esparguete já cozinhado, uma mancheia daquelas Oreos. Corri de volta para o quarto e fechei
a porta, espalhando o meu tesouro em cima dos lençóis à minha frente.
Ao princípio foram só as Oreos. Mas depois o meu estômago roncou e comi o esparguete todo - com os dedos, porque não tinha garfo. Comi um pedaço de pão, e depois
outro, e mais outro, e quando dei por isso, só restava a película aderente. "O que se passa comigo?" pensei, olhando para o meu reflexo ao espelho. "Quem come um
cacete inteiro?" O meu aspecto já era suficientemente repulsivo - cabelos castanhos sem graça que ficavam todos frisados quando o tempo estava mau, olhos demasiado
afastados, aquele dente da frente torto, gordura suficiente para me sair um pneu da cintura das calças de ganga - mas por dentro era ainda pior. Imaginei-me como
um buraco negro, como aqueles que aprendemos em ciências no ano passado, que sugam tudo para o seu âmago. "Um vazio cheio de nada", chamou-lhe o professor.
Tudo o que eu tinha de bom e generoso, tudo o que as pessoas pensavam que eu era, fora envenenado pela parte de mim que desejava, no recesso mais escuro da noite,
ter uma família diferente. O meu verdadeiro
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ser era uma pessoa repulsiva que imaginava uma vida em que não tivesses nascido. O meu verdadeiro ser via-te a seres enfiada numa ambulância e desejara, por meio
segundo, poder ficar para trás no Disney World. O meu verdadeiro ser era uma alma sem fundo que era capaz de comer um cacete inteiro em dez minutos e ainda ter espaço
para mais.
Odiava-me a mim própria.
Não sei dizer-te o que me fez ir à casa de banho ao lado do quarto
- com papel de parede salpicado de rosas cor-de-rosa, sabonetes com formas que se enroscavam em pratinhos junto ao lavatório - e enfiar o dedo pela garganta abaixo.
Talvez fosse por sentir aquela substância tóxica a penetrar na corrente sanguínea e quisesse fazê-la sair cá para fora.Talvez fosse um castigo. Talvez quisesse controlar
uma parte de mim, que era incontrolável, para que o resto voltasse ao seu lugar "As ratazanas não conseguem vomitar", disseste-me uma vez; ocorreu-me naquela altura.
Segurando nos cabelos com uma mão, vomitei para a sanita até estar afogueada, a suar, vazia e aliviada por saber que, sim, podia fazer uma coisa certa, embora me
fizesse sentir-me pior do que antes. com o estômago às voltas e o gosto amargo da bílis por trás da língua, sentia-me pessimamente - mas daquela vez havia uma razão
física a apontar.
Fraca e vacilante, voltei aos tropeções para a minha cama emprestada e alcancei o comando da televisão. Os olhos pareciam lixa e doía-me a garganta, mas não conseguia
dormir. Em vez disso mudei os canais de televisão, passando por programas de decoração de interiores, desenhos animados, talk shows e concursos de culinária
do Iron
Chef. Foi no Nick ot N/te, quando o D/ck van Dyke Show já estava a dar há vinte e dois minutos, que o velho anúncio da Disney foi transmitido - como uma piada, uma
brincadeira, um aviso. Foi como um murro no estômago: tinha a Fada Sininho, tinha gente alegre; tinha uma família que podíamos ser nós no carrossel das chávenas.
E se os meus pais nunca mais voltassem?
E se não melhorasses?
E se tivesse de ficar aqui para sempre?
Quando comecei a chorar, enfiei a ponta da almofada na boca para que a Sra Ward não ouvisse. Carreguei no botão do comando da televisão para tirar o som, e fiquei a ver a família no Disney World andar às voltas.
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Sean
É engraçado como podemos ter a certeza absoluta da nossa opinião sobre uma coisa até nos acontecer a nós. Como prender alguém - as pessoas que não pertencem à autoridade
acham aterrador saber que, mesmo quando existe causa provável, se cometam erros. Se for esse o caso, liberta-se a pessoa e diz-se que se estava apenas a cumprir o dever. É melhor do que correr o risco de deixar um criminoso em liberdade, sempre disse, e que se danem os defensores dos direitos civis que não seriam capazes de reconhecer um perpetrador se este lhes cuspisse em cima. Era nisto que acreditava, do fundo do coração, até ser levado para a esquadra da polícia de Lake Buena Vista sob suspeita de maus tratos infantis. Bastou olharem uma vez para as tuas radiografias, para as dúzias de fracturas saradas, para a curvatura do teu braço direito, que devia estar recto - para os médicos ficarem completamente descontrolados e telefonarem para o Departamento de Crianças e Famílias. O Dr. Rosenblad deu-nos um bilhete há anos que devia ter servido para nos tirar da prisão, visto que muitos pais de crianças com OI são acusados de maus tratos infantis quando se desconhecem
os antecedentes do caso - e Charlotte trá-lo sempre na carrinha, para prevenir. Mas naquele dia, com tudo aquilo que tínhamos de lembrar-nos de levar na viagem,
a carta ficou esquecida e, em vez disso, fomos levados para a esquadra da polícia para sermos interrogados.
- Isto é um disparate - gritei. - A minha filha caiu em público. Houve pelo menos dez testemunhas. Porque não os arrastam a eles para aqui? Aqui não há casos a sério que vos mantenham ocupados?
Estava a alternar, assumindo o papel de polícia bom e de polícia mau, mas, afinal, nenhum deles resulta quando se está perante
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outro polícia de uma jurisdição que não nos é familiar. Já era quase meia-noite de sábado - o que significava que o Dr. Rosenblad talvez só resolvesse o assunto
na segunda-feira. Já não via Charlotte desde que nos levaram para a esquadra para sermos interrogados
- em casos como este, separamos os pais para terem menos hipóteses de inventar uma história. O problema era que até a verdade parecia disparatada. Uma criança escorrega
num guardanapo e acaba com fracturas compostas em ambos os fémures? Não são precisos dezanove anos de serviço, como eu tenho, para suspeitar dessa história.
Imaginava que Charlotte estivesse muito abalada - estar longe de ti, enquanto estavas a sofrer, deixá-la-ia dilacerada e saber que Amélia estava sabia Deus onde era ainda mais devastador. Não conseguia deixar de pensar em como Amélia detestava dormir de luzes apagadas, em como tinha de entrar sorrateiramente no quarto a meio da noite para desligá-las quando já estivesse a dormir. "Tens medo?" perguntei-lhe uma vez, e ela disse que não. "Só não quero perder nada." Vivemos em Bankton, New Hampshire uma cidadezinha em que é possível percorrermos a rua e as pessoas buzinarem ao reconhecerem o carro; um lugar onde, se nos esquecermos do cartão de crédito, a rapariga da caixa da mercearia nos deixa levar as compras e voltar mais tarde para pagar. Não quer dizer que não tenhamos a nossa dose de coisas escabrosas
- os polícias vêem para além das vedações brancas de madeira e das portas envernizadas, onde se escondem todo o tipo de pesadelos: pessoas importantes da comunidade
que batem nas mulheres, alunos exemplares toxicodependentes, professores com pornografia infantil nos computadores. Mas parte do meu objectivo, enquanto agente da polícia, é deixar toda essa imundície na esquadra e garantir que tu e Amélia cresçam numa ignorância abençoada em relação a tudo isto. E em vez disso o que acontece? Vês a polícia da Florida entrar no serviço de urgências para levar os teus pais. Amélia é levada para um lar de acolhimento. Que marcas deixaria esta viagem de férias em ambas?
O detective deixou-me sozinho após duas rondas de interrogatório. Sabia que aquela era a maneira de ele me apertar - presumindo que a informação que estava a recolher entre as nossas sessõezinhas seria suficiente para me levar a confessar ter-te partido ambas as pernas.
Interroguei-me se Charlotte estaria algures naquele edifício, noutra sala de interrogatório ou numa cela. Se queriam que ficássemos aqui durante a noite, teriam de prender-nos - e tinham
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argumentos para isso. Uma nova lesão ocorrera ali, na Florida - e isso, juntamente com as lesões mais antigas que surgiam na radiografia, constituíam uma causa provável, até que alguém pudesse corroborar as nossas justificações. Mas que se dane - estava cansado de esperar. Tu e a tua irmã precisavam de mim.
Levantei-me e bati no vidro espelhado através do qual sabia que o detective estava a observar-me.
Ele voltou a entrar. Magro, ruivo, com borbulhas - ainda não devia ter trinta anos. Eu peso cem quilos - tudo músculo - e tenho um metro e noventa de altura; nos últimos três anos ganhei o concurso não oficial de levantamento de pesos da nossa esquadra. Podia tê-lo partido ao meio se quisesse. O que me fez recordar a razão pela qual estava a interrogar-me.
- Sr. O'Keefe - disse o detective. - Vamos recapitular isto mais uma vez.
- Quero ver a minha mulher.
- Agora não será possível.
- Pelo menos pode dizer-me se ela está bem?
A minha voz vacilou naquela última palavra e foi o suficiente para amolecer o detective.
- Ela está bem - disse. - Está com outro detective neste momento.
- Quero fazer um telefonema.
- Não está detido - disse o detective. Ri.
- Pois, está bem.
Ele indicou o telefone a meio da secretária com um gesto.
- Marque nove para ter linha - disse ele e, recostando-se na cadeira, cruzou os braços, como se quisesse deixar claro que não me daria privacidade.
- Sabe o número do hospital onde a minha filha está internada?
- Não pode telefonar-lhe.
- Porque não? Não estou detido - repeti.
- É tarde. Nenhum bom pai desejaria acordar a filha. Mas você não é um bom pai, pois não, Sean?
- Nenhum bom pai deixaria a filha sozinha no hospital, assustada e a sofrer - argumentei.
- Vamos recapitular o que precisa de ser recapitulado e talvez possa falar com a sua filha antes de ela adormecer.
- Não vou dizer nem mais uma palavra até poder falar com ela
- negociei. - Dê-me o número e eu conto-lhe o que aconteceu realmente hoje.
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Ficou a olhar para mim durante um minuto - também conhecia aquela técnica. Quando se faz isto há tanto tempo como eu faço, pode ler-se a verdade nos olhos de outra
pessoa. Quem sabe o que terá visto nos meus. Desilusão, talvez. Ali estava eu, um agente da polícia, e nem sequer era capaz de manter-te em segurança.
O detective agarrou no telefone e marcou. Pediu que ligassem para o teu quarto e falou numa voz suave com a enfermeira que atendeu. Depois passou-me o telefone.
- Tem um minuto - disse.
Estavas meio adormecida, depois de teres sido acordada pela enfermeira. O teu fio de voz era tão ténue que podia enfiá-lo no bolso.
- Willow - disse eu. - É o papá.
- Onde estás? Onde está a mamã?
- Vamos voltar para o pé de ti, querida. Vamos visitar-te amanhã, logo de manhã - não sabia se isso era verdade, mas não ia deixar que pensasses que te tínhamos
abandonado. - De um a dez? - perguntei.
Era um jogo que costumávamos jogar quando fazias uma fractura - dava-te uma escala de dor, e tu mostravas-me como eras corajosa.
- Zero - sussurraste, e foi como um soco.
Devias saber uma coisa sobre mim: não choro. Não choro desde que o meu pai faleceu, quando tinha dez anos. Já estive lá perto, deixa-me que te diga. Como quando nasceste, e quase morreste logo a seguir. Ou quando vi aquela expressão no teu rosto quando, aos dois anos, tiveste de voltar a aprender a andar depois de teres estado cinco meses engessada devido a uma fractura da anca. Ou hoje, quando vi Amélia a ser levada para longe. Não é que não me apeteça ceder - é que alguém tem de ser forte, para que vocês todas não tenham de o ser.
Por isso recompus-me e pigarreei.
- Diz-me qualquer coisa que eu não saiba, amor.
Era outro jogo que tínhamos: chegava a casa e recitavas qualquer coisa que tivesses aprendido naquele dia - sinceramente, nunca vi uma criança absorver informação como tu. O teu corpo pode estar sempre a atraiçoar-te, mas o teu cérebro compensou essa falha.
- Uma enfermeira disse-me que o coração de uma girafa pesa onze quilos - disseste.
- É enorme - respondi. Quanto pesaria o meu? - Agora, Wills, quero que te deites e tenhas uma noite descansada, para estares bem acordada amanhã de manhã quando
for buscar-te.
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- Prometes? Engoli.
- Claro, amor. Dorme bem, está bem? - voltei a dar o telefone ao detective.
- Que comovente - disse ele friamente, desligando. - Muito bem, sou todo ouvidos.
Apoiei os cotovelos na mesa que estava entre nós.
- Tínhamos acabado de chegar ao parque e havia uma geladaria perto da entrada. A Willow estava com fome, por isso decidimos ir lá. A minha mulher foi buscar guardanapos, a Amélia sentou-se à mesa e a Willow e eu ficámos à espera na fila. A irmã viu qualquer coisa pela janela e a Willow foi a correr para ver também. Caiu e fracturou ambos os fémures. Sofre de uma doença chamada osteogénese imperfeita e isso significa que os ossos dela são extremamente quebradiços. Uma em dez mil crianças nasce
com essa doença. Que raio de merda quer saber para além disto?
- É precisamente o depoimento que prestou há uma hora - o detective deixou cair a caneta. - Achei que ia contar-me o que aconteceu.
- E contei. Só que não lhe disse o que queria ouvir. O detective levantou-se.
- Sean O'Keefe - disse ele. - Está detido.
Às sete da manhã de domingo, estava a andar de um lado para o outro na sala de espera da esquadra da polícia e era um homem livre, à espera que Charlotte fosse libertada. O sargento de serviço que me deixou sair da cela arrastava os pés atrás de mim, pouco à vontade.
- Tenho a certeza de que compreende - disse ele. - Dadas as circunstâncias, estávamos apenas a cumprir o nosso dever.
Os meus maxilares cerraram-se.
- Onde está a minha filha mais velha?
- Alguém do Departamento de Crianças e Famílias vem cá trazê-la.
Disseram-me - por cortesia profissional - que Louie, o operador da central da esquadra de Bankton, confirmou que eu era um agente da polícia e também lhes disse que tinhas uma doença que fazia os teus ossos quebrarem-se facilmente, mas o Departamento de Crianças e Famílias só liberou a Willow depois de obter confirmação de um médico. Por isso fiquei metade da noite a rezar embora deva admitir que atribuo mais mérito à tua mãe do que a Jesus pela tua liberação. Charlotte viu episódios suficientes de Law
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Order para saber que assim que lhe lessem os direitos podia fazer uma chamada telefónica - e, para minha surpresa, não a utilizou para te contactar. Em vez disso,
telefonou a Piper Reece, a melhor amiga.
Gosto de Piper, a sério, é verdade. Deus sabe que a adoro pelos conhecimentos a que recorreu para telefonar a Mark Rosenblad às três da manhã num fim-de-semana e
convencê-lo a telefonar para o hospital onde estavas a ser tratada. Até devo o meu casamento a Piper - ela e Rob é que me apresentaram a Charlotte. Mas dito isto, às vezes Piper é... um bocadinho de mais. É inteligente, opinada e a maior parte das vezes está frustrantemente certa. A maioria das discussões que tive com a tua mãe basearam-se em coisas em que Piper a pôs a pensar. A questão é que, enquanto Piper consegue exibir aquela confiança e ousadia, em Charlotte isso parece um pouco deslocado - como uma criança a vestir as roupas da mãe. A tua mãe é mais sossegada, mais misteriosa; a força dela envolve-nos sem nos apercebermos em vez de nos atingir directamente. Se é em Piper que reparamos quando entramos numa sala, com os cabelos loiros curtos à rapaz, as pernas intermináveis e sorriso rasgado, é em Charlotte que damos por nós a pensar muito depois de termos saído. Mas, por outro lado, aquela ferocidade directa que torna Piper às vezes tão cansativa foi também o que me levou a eu ter sido libertado da prisão em Lake Buena Vista. Acho que significa, no grande registo cósmico, que tenho mais uma coisa a agradecer-lhe.
De repente a porta abriu-se e eu vi Charlotte - fatigada, pálida, com os caracóis castanhos a caírem-lhe do elástico do rabo-de-cavalo. Estava a repreender o polícia que a acompanhava:
- Se a Amélia não estiver aqui antes de eu contar até dez, juro que...
Meu Deus, como amo a tua mãe. Ela e eu pensamos exactamente o mesmo, quando é mesmo importante. Então reparou em mim e parou bruscamente.
- Sean! - gritou, e correu para os meus braços.
Quem me dera que soubesses o que é encontrar o pedaço que nos falta, aquilo que nos torna mais fortes. Charlotte para mim é isso. É pequena, só mede um metro e cinquenta e sete, mas debaixo das curvas sinuosas - com as quais está sempre a preocupar-se, por não vestir um tamanho trinta e seis como Piper - há músculos que nos deixariam surpreendidos, desenvolvidos ao longo de anos a pegar em sacas de farinha quando era chefe de pastelaria e - mais tarde - em ti e no teu equipamento.
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- Estás bem, querida? - murmurei junto aos cabelos dela. Cheirava a maçãs e a protector solar. Obrigou-nos todos a pô-lo mesmo antes de chegarmos ao aeroporto de Orlando. "Para ficarmos protegidos", disse ela.
Não respondeu, limitou-se a acenar com a cabeça junto ao meu peito.
Ouvimos um grito vindo da porta e ambos olhámos para cima a tempo de vermos Amélia correr para nós.
- Esqueci-me - soluçava ela. - Mãe, esqueci-me de levar o bilhete do médico. Desculpa. Desculpa.
- Ninguém teve culpa - ajoelhei-me e limpei-lhe as lágrimas com os polegares. - Vamos embora daqui.
O sargento de serviço ofereceu-se para nos levar ao hospital num carro da polícia, mas eu pedi-lhe para chamar um táxi; queria que ficassem a remoer o erro que cometeram em vez de tentarem compensar-nos. Quando o táxi parou em frente à porta da esquadra da polícia, os três movemo-nos em bloco saindo pela porta principal. Deixei Charlotte e Amélia entrarem no táxi antes de mim.
- Para o hospital - disse ao condutor. Fechei os olhos e encostei a cabeça ao apoio do assento.
- Graças a Deus - disse a tua mãe. - Graças a Deus que acabou.
Nem sequer abri os olhos.
- Ainda não acabou - disse eu. - Alguém vai ter de pagar.
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Charlotte
Basta dizer que a viagem de regresso não foi agradável. Colocaram-te um molde de gesso - certamente um dos piores aparelhos de tortura alguma vez criados pelos médicos. Era uma cobertura de gesso que ia dos joelhos às costelas. Estavas numa posição semi-reclinada, porque os teus ossos precisavam disso para poderem unir-se. O gesso mantinha as tuas pernas bem abertas para que os fémures pudessem sarar na posição correcta. Foi isto que nos disseram:
1. Ias ficar com este gesso durante quatro meses.
2. Depois seria cortado ao meio, e ficarias algumas semanas sentada nele como uma ostra na concha, para que os músculos do estômago recuperassem a força e conseguisses voltar a sentar-te direita.
3. A pequena abertura cortada na zona da barriga permitiria que o teu estômago pudesse expandir-se enquanto comias.
4. A ranhura entre as pernas era para poderes ir à casa de banho.
Foi isto que não nos disseram:
1. Não podias sentar-te completamente direita, nem deitares-te por completo.
2. Não podias voltar para New Hampshire num assento normal de avião.
3. Nem sequer podias deitar-te no assento de um carro normal.
4. Não podias sentar-te confortavelmente por longos períodos de tempo na tua cadeira de rodas.
5. As tuas roupas não te serviam por cima do gesso.
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Devido a tudo isto, não partimos imediatamente da Florida. Alugamos uma Suburban, com três assentos corridos, e instalámos Amélia atrás. Tu tinhas o banco do meio
todo para ti e almofadámo-lo com cobertores que comprámos no Wal-Mart. Também comprámos T-shirts e boxers de homem - as cinturas elásticas podiam ser esticadas por
cima do gesso e apertadas com um elástico de cabelo se puxássemos o tecido que sobrava para o lado e, se não olhássemos com muita atenção, quase passavam por calções.
Não eram bonitos, mas tapavam-te o meio das pernas que estavam abertas devido à posição do gesso.
Então começámos a percorrer o longo caminho para casa. Dormias; os analgésicos que te deram no hospital ainda te corriam nas veias. Amélia alternava entre fazer quebra-cabeças
e perguntar se faltava muito para chegarmos a casa. Comemos em restaurantes onde podíamos levar a comida ao carro porque não conseguias sentar-te à mesa.
Quando já viajávamos há sete horas, Amélia remexeu-se no banco de trás.
- Sabes como a professora Grey nos obriga sempre a escrever sobre coisas divertidas que fizemos nas férias? vou falar de vocês a tentarem arranjar maneira de levar a Willow à sanita para fazer chichi.
- Não te atrevas - disse eu.
- Bem, então a minha composição vai ser mesmo curta
- Podíamos tornar o resto da viagem mais divertida - sugeri a dada altura. - Parávamos em Memphis, em Graceland ou em Washington, D.C....
- Ou podíamos ir directos a casa e despachar isto - disse Sean. Olhei para ele. No escuro, uma faixa de luz verde do tablier
reflectia-se-lhe em volta dos olhos como uma máscara
- Podíamos ir à Casa Branca? - perguntou Amélia, mais animada.
Imaginei como Washington estaria uma estufa cheia de humidade; imaginei-nos a carregar-te em volta das nossas ancas ao subirmos os degraus do Museu do Ar e do Espaço. Pela janela a estrada negra era uma fita que estava sempre a desenrolar-se à nossa frente; não conseguíamos chegar à ponta.
- O teu pai tem razão - disse.
Quando finalmente chegámos a casa, já todos sabiam o que tinha acontecido. Havia um bilhete de Piper na bancada da cozinha, com uma lista de todas as pessoas que nos tinham trazido
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guisados que ela enfiara no frigorífico e um sistema de classificações: cinco estrelas (come este primeiro), três estrelas (melhor do que o Chef Boyardee), uma estrela
(alerta de botulismo). Aprendi há muito tempo, por causa de ti, que as pessoas que tentam ser amáveis preferem fazê-lo com um prato de macarrão com queijo
em vez de se envolverem pessoalmente. Entrega-se uma travessa, cumpre-se o dever - não é preciso envolver-se pessoalmente e fica-se com a consciência limpa. A comida
é a moeda de troca da
ajuda.
As pessoas estão sempre a perguntar-me como tenho passado, mas a verdade é que não querem realmente saber. Olham para os teus moldes de gesso - com padrão de camuflagem, ou rosa-vivo ou laranja-fluorescente. Vêem-me descarregar o carro e colocar o teu andador com os pés de bolas de ténis para poder subir o passeio enquanto, atrás de nós, os filhos balançam-se em barras de ferro e jogam ao mata e fazem todas aquelas coisas que te provocariam fracturas. Sorriem porque querem ser educadas ou politicamente correctas, mas estão sempre a pensar, "Graças a Deus. Graças a Deus que foi ela, em vez de ter sido eu".
O teu pai diz que não estou a ser justa quando digo estas coisas. Que algumas pessoas, quando perguntam, querem realmente dar uma ajuda. Digo-lhe que se quisessem realmente ajudar, não traziam tachos de macarrão com queijo - ofereciam-se antes para levar a Amélia a apanhar maçãs ou a patinar no gelo para poder sair de casa quando tu não podes, ou limpavam as sarjetas aqui de casa, que estão sempre a entupir-se depois das tempestades. E se quisessem ser realmente os nossos salvadores, telefonavam para a companhia de seguros e passavam quatro horas ao telefone a discutir por causa das contas, para eu não ter de o fazer.
Sean não percebe que a maioria das pessoas que se oferecem para ajudar fazem-no para se sentirem melhor e não para nos fazerem sentir melhor. Para ser sincera, não as censuro. É superstição: se ajudarmos uma família que precisa de ajuda... se lançarmos sal para trás das costas... se não pisarmos em rachas, então talvez fiquemos imunes. Talvez possamos convencer-nos de que isso nunca poderia acontecer-nos. ;
Não me interpretem mal; não estou a queixar-me. As outras pessoas olham para mim e pensam: "Coitada daquela mulher; tem uma filha incapacitada." Mas quando olho para ti só vejo uma menina que aos três anos já tinha decorado a letra toda da "Bohemian Rhapsody", a menina que vem ter comigo à cama sempre que há uma trovoada
- não porque tenhas medo, mas sim
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porque eu é que tenho - a menina cujo riso sempre vibrou dentro do meu corpo como um diapasão. Nunca desejaria uma criança com um corpo são, porque essa criança
não serias tu.
Na manhã seguinte passei cinco horas ao telefone com a companhia de seguros. Os percursos de ambulância não estavam cobertos pela nossa apólice; contudo, o hospital
na Florida não daria alta a ninguém com um molde de gesso como o teu a menos que a pessoa em questão fosse transportada numa ambulância. Era um paradoxo, mas eu
era a única pessoa a aperceber-me disso e deu origem a uma conversa que parecia um teatro do absurdo.
- Deixe-me esclarecer isto - disse eu ao quarto funcionário com quem falava naquele dia. - Está a dizer-me que não tinha de ir de ambulância; portanto não vão cobrir os custos.
- Exactamente, minha senhora.
No sofá, estavas apoiada em almofadas, a desenhar riscas no gesso com marcadores.
- Pode dizer-me qual seria a alternativa? - perguntei.
- Parece que podia ter mantido a paciente no hospital.
- Sabe que ela deve ficar com o gesso durante meses. Está a sugerir que mantenha a minha filha hospitalizada durante tanto tempo?
- Não, minha senhora. Só até poder ser disponibilizado um transporte.
- Mas a ambulância é o único transporte em que o hospital nos permite sair! - disse. Nessa altura a tua perna já parecia uma bengala de rebuçado. - A apólice cobriria a estadia adicional?
- Não, minha senhora. O número máximo de noites permitido para lesões como esta é...
- Pois, já falámos sobre isso - suspirei.
- Parece-me - disse o funcionário num tom áspero - que, considerando a hipótese de ter que pagar por noites extra no hospital ou por uma viagem não autorizada de ambulância, não tem muito de que se queixar.
Senti as faces em chamas.
- Bem, parece-me que o senhor é um perfeito imbecil! - gritei, e desliguei o telefone violentamente. Virei-me para trás e vi-te, com o marcador na mão, precariamente perto do tecido das almofadas do sofá. Estavas torcida como uma rosca, com a metade inferior do corpo no gesso ainda virada para a frente, a cabeça inclinada para trás, por cima do ombro, para poderes olhar pela janela.
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- Boião dos palavrões - murmuraste. Tinhas um boião de vidro que cobriste com fita de embrulho iridescente e, cada vez que Sean praguejava à tua frente, tiravas-lhe
vinte e cinco cêntimos. Só naquele mês juntaste quarenta e dois dólares - estiveste a contar durante todo o caminho para casa, desde a Florida. Tirei vinte e cinco
cêntimos do bolso e coloquei-os no boião que estava em cima da mesa ali perto, mas não estavas a ver; ainda estavas concentrada a olhar lá para fora, para um charco gelado junto ao relvado onde Amélia patinava.
A tua irmã fazia patinagem no gelo desde, bem, desde que tinha a tua idade. Ela e a filha de Piper, Emma, tinham lições juntas duas vezes por semana e aquilo que mais querias era imitar a tua irmã. Só que patinar era um desporto que nem nunca sequer poderias experimentar. Uma vez partiste um braço quando estavas a fingir que patinavas só com um pé no linóleo da cozinha, de meias.
- Entre os meus palavrões e os do teu pai vamos juntar dinheiro suficiente para comprar um bilhete de avião e sairmos daqui muito em breve - gracejei, tentando distrair-te. - Para onde? Las Vegas?
Desviaste o rosto da janela e olhaste para mim.
- Isso seria uma estupidez - disseste. - Só posso jogar Blackjack quanto tiver vinte e um anos.
Sean ensinou-te a jogar. Também te ensinou a jogar às Copas, Texas Hold'Em e Síud de cinco cartas. Fiquei horrorizada, até perceber que jogar ao Peixinho horas seguidas
podia ser oficialmente considerado uma forma de tortura.
- Então as Caraíbas?
Como se alguma vez fosses poder viajar livremente, como se alguma vez fosses de férias sem pensar nestas últimas.
- Estava a pensar em comprar alguns livros. Por exemplo, do Dr. Seuss.
Lias como uma criança do sexto ano, embora os teus colegas ainda soletrassem o alfabeto. Era um dos poucos aspectos positivos da OI: quando tinhas de estar imóvel, lias livros ou navegavas na Internet. Por acaso, quando Amélia queria irritar-te, chamava-te Wikipedia.
- Do Dr. Seuss? - perguntei. - A sério?
- Não são para mim. Pensei que podíamos enviá-los para aquele hospital na Florida. A única coisa que havia para ler era Where's Spot? e isso torna-se mesmo aborrecido
à quinta ou sexta vez.
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Isso deixou-me sem fala. Só queria esquecer-me daquele estúpido hospital, amaldiçoar o pesadelo das apólices de seguro que causou e o facto de teres de estar presa
num inferno de quatro meses naquele molde de gesso - e ali estavas tu, já tinhas ultrapassado a parte da comiseração. Embora tivesses todo o direito de sentir pena
de ti própria, nunca aproveitaste a oportunidade para o fazeres. Por acaso, às vezes, tinha a certeza de que a razão pela qual as pessoas olhavam para ti, com as
tuas muletas e cadeira de rodas, não tinha nada a ver com a tua incapacidade mas sim com o facto de teres capacidades que elas não tinham nem em sonhos.
O telefone voltou a tocar - por um instante fugaz imaginei que era o presidente executivo da companhia de seguros a telefonar para pedir desculpas pessoalmente.
Mas era Piper, para ver se estava tudo bem.
- É boa altura?
- Nem por isso - respondi -, porque não voltas a telefonar daqui a alguns meses?
- Ela está com muitas dores? Telefonaste ao Dr. Rosenblad? perguntou Piper. - Onde está o Sean?
- Sim, não e espero que esteja a ganhar o dinheiro suficiente para pagar as contas do cartão de crédito por causa das férias que não tivemos.
- Bem, olha, amanhã, quando for levar a Emma, vou buscar a Amélia para as aulas de patinagem. É menos uma coisa com que te preocupares.
Preocupar? Nem sequer sabia que a Amélia tinha treino. Não era só estar no fim da minha lista de prioridades, era nem sequer constar dela.
- De que mais precisas? - perguntou Piper. - Qualquer coisa da mercearia? Gás? O Johnny Depp?
- Ia dizer Xanax... mas agora sou capaz de aceitar o terceiro.
- Já calculava. És casada com um homem que parece o Brad Pitt, com um corpo melhor, e ficas caidinha pelos que têm cabelos compridos e ar de artistas.
- Acho que a relva é sempre mais verde do outro lado da vedação. - Observei-te distraidamente a agarrar no computador portátil que estava ao teu lado e a tentar equilibrá-lo no colo. Estava sempre a tombar para o lado por causa da posição do gesso, por isso agarrei numa almofada do sofá e coloquei-a no teu colo como se fosse uma mesa. - Infelizmente, neste preciso momento, as coisas estão bastante negras do meu lado da vedação - disse-lhe.
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- Ups, tenho de desligar. Parece que a minha paciente está a ter a criança.
- Se tivesse um dólar por cada vez que ouvi essa desculpa... Piper riu.
- Charlotte - disse ela - tenta deitar abaixo a vedação. Desliguei. Estavas a escrever ao computador febrilmente com
dois dedos.
- O que estás a fazer?
- Estou a abrir uma conta de Gmail para o peixinho dourado da Amélia - disseste.
- Duvido muito que ele precise de uma...
- Foi por isso que ele ma pediu a mim e não a ti... "Deitar abaixo a vedação."
- Willow - anunciei - desliga o portátil. Tu e eu vamos patinar.
- Estás a brincar.
- Não.
- Mas disseste...
- Willow, queres discutir ou queres ir patinhar? - Esboçaste um sorriso radioso como já não via desde antes de irmos para a Florida. Vesti uma camisola e calcei
as botas, depois fui buscar o meu casaco de Inverno ao bengaleiro para te tapar a parte superior do corpo. Envolvi as tuas pernas em cobertores e apoiei-te na anca.
Sem o gesso eras leve como um elfo. com ele, pesavas vinte e quatro quilos.
A única coisa para que um molde de gesso daqueles servia era quase feito para isso - era para te apoiar na anca. Ficavas um pouco afastada de mim, mas ainda conseguia colocar um braço à tua volta para passar pela sala e descer os degraus da entrada.
Quando Amélia nos viu chegar, lentas como uma tartaruga, percorrendo montes de neve e faixas de gelo enlameado, parou de rodopiar.
- vou patinar - cantarolaste, e os olhos de Amélia fixaram-se
nos meus.
- Ouviste o que ela disse.
- Vais trazê-la para patinar. Não eras tu que querias que o pai atulhasse o charco onde costumamos patinar? Disseste que era um castigo cruel e inusitado para a Willow.
- vou deitar abaixo a vedação - disse.
- Que vedação?
Coloquei os cobertores debaixo do teu traseiro e pousei-te delicadamente em cima do gelo.
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- Amélia - disse - agora preciso da tua ajuda. Quero que fiques a tomar conta dela, nunca deixes de olhar para ela, enquanto eu vou buscar os meus patins.
Voltei para casa a correr, parando apenas à entrada da porta para me assegurar de que Amélia ainda estava a olhar para ti, tal como a tinha deixado. Os meus patins estavam no fundo de um cesto cheio de botas, na arrecadação - já nem me lembrava da última vez em que os usara. Os atacadores prendiam-nos um ao outro como amantes. Atirei-os por cima do ombro e depois agarrei na cadeira do computador com as suas rodinhas. Lá fora, virei-a ao contrário, para apoiar o assento na cabeça. Lembrei-me
das mulheres africanas com as suas saias de cores garridas, com cestos de fruta e sacas de arroz em cima da cabeça enquanto caminhavam em direcção a casa para alimentarem
as famílias.
Quando cheguei ao pequeno charco, pousei a cadeira no gelo. Inclinei as costas e afastei os braços para que acomodassem o teu molde de gesso. Depois peguei em ti
e instalei-te no aconchego do assento.
Sentei-me para atar os patins.
- Agarra-te bem, Wiki - disse Amélia, e agarraste-te aos braços da cadeira. Ela pôs-se atrás de ti e começou a mover-se no gelo. Os cobertores que te envolviam as pernas enfunaram-se, e eu gritei à tua irmã para que tivesse cuidado. Mas Amélia já estava a ser cuidadosa. Debruçava-se sobre as costas da cadeira de forma a agarrar-te bem com um braço junto ao assento enquanto patinava cada vez mais depressa. Então mudou de direcção rapidamente, virando-se de frente para ti, puxando os braços da cadeira enquanto andava para trás.
Inclinaste a cabeça para trás e fechaste os olhos enquanto Amélia te fazia girar em círculos. Os caracóis escuros de Amélia saíam-lhe do gorro de lã às riscas; o teu riso esvoaçava pelo gelo como um estandarte.
- Mãe - gritaste. - Olha para nós! Levantei-me, com os tornozelos a vacilarem.
- Esperem por mim - disse, ganhando confiança a cada passo.
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Sean
No meu primeiro dia de volta ao trabalho entrei no vestiário e encontrei um poster a dizer PROCURA-SE pendurado ao lado da farda limpa. Escrito por cima da minha
cara, a marcador vermelho, estava a palavra APREENDIDO.
- Muito engraçado - resmunguei, e arranquei o panfleto.
- Sean O'Keefe! - disse um dos rapazes, fingindo ter um microfone na mão enquanto a colocava em frente a outro polícia. Acabou de ganhar a Super Taça. O que vai
fazer a seguir?
Dois punhos erguidos no ar.
- vou ao Disney World!
O resto dos rapazes desatou a rir-se.
- Olha, a tua agente de viagens telefonou - disse um deles. Reservou os teus bilhetes para Guantanamo, para as próximas férias.
O meu capitão mandou-os calar e aproximou-se de mim.
- A sério, Sean, sabes que estamos só a brincar contigo. Como está a Willow?
- Está bem.
- Bem, se pudermos fazer alguma coisa... - disse o capitão, e deixou o resto da frase dissipar-se como fumo.
Franzi o sobrolho, fingindo que aquilo não me afectava, que estava a entrar no jogo em vez de ser alvo de chacota.
- Não têm nada de construtivo para fazer? O que acham que isto é, a esquerda de Lake Buena Vista?
Ao ouvirem isto, todos riram às gargalhadas e saíram do vestiário, deixando-me a vestir-me sozinho. Dei um soco na estrutura de metal do meu cacifo e a porta abriu-se. Saiu de lá um pedaço de papel a esvoaçar - outra vez a minha cara, com orelhas de Rato Mickey na cabeça. E no fundo: "Afinal o Mundo é Pequeno."
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Em vez de me vestir, percorri os corredores da esquadra até ao gabinete da central e tirei uma lista telefónica de um monte que estava numa prateleira. Olhei para o anúncio até encontrar o nome que procurava, que vira em inúmeros anúncios na televisão, à noite: "Robert Ramirez, Advogado de Defesa das Vítimas: Porque você merece o melhor."
"Pois mereço", pensei. "E a minha família também."
Então marquei o número.
- Sim - disse. - Gostaria de marcar uma entrevista.
Eu fora nomeado guarda. Depois de vocês as duas estarem a dormir profundamente e Charlotte ter tomado duche e estar a enfiar-se na cama, competia-me a mim apagar as luzes, trancar as portas, dar uma última volta pela casa. Visto que ainda tinhas o molde de gesso, a tua cama improvisada era o sofá da sala. Quase desliguei a luz da cozinha, mas depois lembrei-me, aproximei-me, puxei-te o cobertor até ao queixo e beijei-te na testa.
Lá em cima, fui ver Amélia e depois entrei no nosso quarto. Charlotte estava de pé na casa de banho enrolada numa toalha, a lavar os dentes. Ainda tinha os cabelos molhados. Aproximei-me dela por trás e coloquei-lhe as mãos nos ombros, enrolando um caracol nos dedos.
- Adoro a maneira como os teus cabelos fazem isto - disse eu, observando-os a voltarem a enrolar-se na mesma espiral de há um minuto atrás, como uma mola. - Têm
memória própria.
- É mais uma vontade própria - disse ela, sacudindo os cabelos antes de debruçar-se para lavar a boca. Quando voltou a endireitar-se, beijei-a.
- Frescura de mentol - disse eu. Ela riu.
- Escapou-me alguma coisa? Estamos a filmar um anúncio de pasta de dentes?
Ao espelho, os nossos olhares cruzaram-se. Sempre me interroguei se ela verá o que eu vejo quando olho para ela. E também se repara que estou a ficar com pouco cabelo no cimo da cabeça.
- O que queres? - perguntou.
- Como sabes que quero alguma coisa?
- Porque já sou casada contigo há sete anos?
Entrei no quarto atrás dela e vi-a deixar cair a toalha e vestir uma T-shirt demasiado grande para dormir. Sei que não deves querer ouvir isto - que criança haveria de gostar? - mas isso é outra coisa que adoro na tua mãe. Mesmo depois de sete anos, ainda
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parece esconder-se um pouco quando troca de roupa à minha frente, como se já não soubesse de cor cada centímetro dela.
- Preciso que tu e a Willow venham comigo amanhã a um sítio
- disse. - A um escritório de advogados.
Charlotte sentou-se no colchão.
- Para quê?
Esforcei-me para transmitir por palavras os sentimentos que eram a minha justificação.
- A forma como fomos tratados. A detenção. Não posso deixá-los escaparem impunes a tudo isso.
Ela ficou a olhar para mim,
- Pensei que tu é que querias ir para casa para continuarmos a viver as nossas vidas.
- Pois, e sabes o que isso implicou hoje? A esquadra inteira acha que eu sou uma enorme piada. vou ser sempre o polícia que arranjou maneira de ser preso. No trabalho só tenho a minha reputação. E eles arruinaram-na. - Sentei-me ao lado de Charlotte, hesitante. Defendia a verdade todos os dias, mas nem sempre gostava de dizê-la, sobretudo quando isso implicava dizer qualquer coisa que me deixasse vulnerável. - Eles levaram a minha família. Estava naquela cela, a pensar em ti, na Amélia e na Willow, e só me apetecia fazer mal a alguém. Só me apetecia transformar-me na pessoa que pensavam que eu era.
Charlotte olhou-me nos olhos.
- Quem são eles? Entrelacei os dedos nos dela.
- Bem - disse - é isso que espero que o advogado nos diga.
As paredes da sala de espera do escritório de advogados de Robert Ramirez estavam forradas com os cheques de indemnizações que ele obtivera para antigos clientes.
Andava de um lado para o outro com as mãos cruzadas atrás das costas, debruçando-me para ler alguns deles. "Pagamento de 350 000 dólares." "1,2 milhões de dólares."
"890 000 dólares." Amélia estava de volta da máquina de café, um aparelho fabuloso que nos permitia colocar uma única chávena, carregar num botão e escolher o aroma
que quiséssemos.
- Mãe - perguntou ela - posso beber um?
- Não - disse Charlotte. Estava sentada ao teu lado no sofá, tentando impedir que o gesso escorregasse no couro rígido.
- Mas há chá. E cacau.
- Não, é não, Amélia!
A secretária levantou-se atrás da secretária.
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- O Dr. Ramirez pode receber-vos agora.
Apoiei-te na anca e fomos todos atrás da secretária ao longo do corredor até uma sala de reuniões com paredes de vidro martelado. A secretária segurou na porta,
mas, apesar disso, tive de inclinar-te para o lado para que as tuas pernas passassem pelo espaço livre. Mantive os olhos fixos em Ramirez; queria observar a reacção
dele quando te visse.
- Sr. O'Keefe - disse ele, e estendeu a mão. Apertei-a.
- Apresento-lhe a minha mulher, Charlotte, e as minhas filhas, Amélia e Willow.
- Minhas senhoras - disse Ramirez, e depois virou-se para a secretária. - Briony, pode ir buscar os lápis de cera e alguns livros de colorir?
Atrás de mím, ouvi Amélia bufar: sabia que ela estava a pensar que aquele tipo não tinha a menor noção que livros de colorir eram para crianças pequenas e não para
raparigas que já usavam sutiã.
- O centésimo bilionésimo lápis de cera feito pela Crayola foi o Azul-Pervinca - disseste.
Ramirez ergueu as sobrancelhas.
- É bom saber - respondeu, e depois indicou com um gesto uma mulher que estava junto a ele. - Gostaria de apresentar-lhes a minha colega, Marin Gates.
Tinha o aspecto apropriado. com os cabelos negros presos atrás com um gancho e fato azul-marinho, podia ser bonita, mas alguma coisa nela destoava. A boca, decidi.
Parecia que tinha acabado de cuspir qualquer coisa com um péssimo sabor.
- Convidei Marin para assistir a esta reunião - disse Ramirez.
- Por favor, sentem-se.
Mas antes que pudéssemos sentar-nos, a secretária voltou a aparecer com os livros de colorir. Entregou-os a Charlotte, uns panfletos a preto e branco que diziam
DR. ROBERT RAMIREZ na parte de cima em letras grandes.
- Oh, olha - disse a tua mãe, lançando-me um olhar fulminante. - Quem adivinharia que iam inventar livros de colorir sobre acidentes pessoais?
Ramirez sorriu.
- A Internet é assombrosa.
As cadeiras da sala de reuniões eram demasiado estreitas para acomodarem o teu molde de gesso. Após três tentativas abortadas para sentar-te, acabei por voltar a
apoiar-te na anca e virei-me para o advogado.
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- Como podemos ajudá-lo, Sr. O'Keefe? - perguntou ele.
- Sargento O'Keefe - corrigi. - Trabalho na polícia de Bankton, New Hampshire; já trabalho lá há dezanove anos. A minha família e eu acabámos de regressar do Disney
World, e é por isso que estou aqui hoje. Nunca fui tão maltratado em toda a minha vida. Quero dizer, o que há de mais normal do que uma viagem ao Disney World, não
é verdade? Mas não, em vez disso a minha mulher e eu acabámos por ser detidos, tiraram-me as minhas filhas e colocaram-nas sob protecção legal. A minha filha mais
nova ficou sozinha no hospital, absolutamente aterrorizada... - inspirei. - A privacidade é um direito fundamental e a privacidade da minha família foi inacreditavelmente
violada.
Marin Gates pigarreou.
- Vejo que ainda está muito perturbado, agente O'Keefe. Vamos tentar ajudá-lo... mas precisamos que recue um pouco e fale mais devagar. Porque foi ao Disney World?
Então contei-lhe. Falei-lhe da tua OI, e do gelado e de como caíste. Falei-lhe dos homens de fato preto que nos levaram para fora do parque temático e chamaram a
ambulância, como se quanto mais depressa se livrassem de nós melhor. Falei-lhe da mulher que levara Amélia, sobre os interrogatórios que se prolongaram por horas na esquadra da polícia, como ninguém acreditava em mim. Falei-lhe das piadas que disseram sobre mim na minha própria esquadra.
- Quero nomes - disse eu. - Quero processar, e depressa. Quero que alguém seja responsabilizado no Disney World, no hospital, no Departamento de Crianças e Famílias. Quero os empregos dessas pessoas, quero dinheiro para compensar o inferno por que passámos.
Quando acabei, tinha o rosto quente. Não conseguia olhar para a tua mãe; não queria ver a cara dela depois de tudo o que tinha dito. Ramirez acenou com a cabeça.
- O tipo de caso que está a sugerir é muito dispendioso, sargento O'Keefe. Qualquer advogado que aceite defendê-lo, terá de fazer primeiro uma análise dos custos e benefícios e, posso dizer-lhe desde já que, embora queira um julgamento para obter uma indemnização, não é isso que terá.
- Mas todos aqueles cheques na sala de espera...
- São de casos em que o queixoso apresentou uma queixa válida. A avaliar pelo que nos descreveu, as pessoas que trabalhavam no Disney World, no hospital e no Departamento de Crianças e Famílias estavam só a cumprir o seu dever. Os médicos têm uma
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responsabilidade legal de comunicar suspeitas de maus tratos infantis. Sem a carta do vosso médico, a polícia tinha uma causa provável para efectuar a detenção no estado da Florida. O Departamento de Crianças e Famílias tem a obrigação de proteger as crianças, sobretudo quando a criança em questão é demasiado jovem para fazer um relato detalhado dos seus próprios problemas de saúde. Como agente da autoridade, tenho a certeza de que se recuar um pouco e mantiver as emoções afastadas dos factos, perceberá que, assim que receberam as informações médicas de New Hampshire, as suas filhas foram-lhe imediatamente devolvidas; o senhor e a sua mulher foram libertados... claro, fê-lo sentir-se pessimamente. Mas a vergonha não é uma causa justa para tomar medidas.
- E os danos emocionais? - disse intempestivamente. - Faz ideia do que isso significou para mim? Para as minhas filhas?
- Tenho a certeza de que não foi nada comparado com a sobrecarga emocional de viver o dia-a-dia com uma criança com estes problemas de saúde - disse Ramirez e, ao meu lado, Charlotte olhou para mim. O advogado sorriu compreensivamente para ela. - Quero dizer, deve ser bastante exigente. - Inclinou-se para a frente, franzindo um pouco a testa. - Não sei muito sobre, como se chama? Osteo...
- Osteogénese imperfeita - disse Charlotte numa voz suave.
- Quantas fracturas já sofreu a Willow?
- Cinquenta e duas - disseste. - E sabia que o único osso que ainda ninguém partiu num acidente de esqui se situa no ouvido interno?
- Não sabia - disse Ramirez, surpreendido. - Ela é extraordinária, não é?
Encolhi os ombros. Eras pura e simplesmente a Willow. Não há ninguém como tu. Soube-o no primeiro instante em que te peguei ao colo, envolta em espuma para não te magoares nos meus braços: a tua alma é mais forte do que o corpo e, apesar do que os médicos me disseram vezes sem conta, sempre acreditei que era essa a razão das tuas fracturas. Que esqueleto normal poderia conter um coração do tamanho do mundo?
Marin Gates pigarreou.
- Como foi concebida a Willow?
- Ugh - disse Amélia; até àquela altura tínhamo-nos esquecido de que ela estava connosco - isso é absolutamente nojento. Abanei-lhes a cabeça, num aviso.
- Foi difícil - disse Charlotte. - Estávamos prestes a experimentar in vitro quando descobri que estava grávida.
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- Ainda mais nojento - disse Amélia.
- Amélia! - Passei-te para o colo da tua mãe e puxei a tua irmã pela mão. - Podes ficar à espera lá fora - disse em voz baixa.
A secretária olhou para nós quando voltámos para a sala de espera, mas não disse nada.
- De que vão falar a seguir? - perguntou Amélia em tom de desafio. - Da vossa experiência pessoal com hemorróidas?
- Basta - disse eu, tentando não perder a calma em frente à secretária. - Saímos daqui a pouco.
Quando me dirigia para o fundo do corredor, ouvi os sapatos de salto alto da secretária ao aproximar-se de Amélia.
- Queres uma chávena de cacau? - perguntou ela. Quando voltei a entrar na sala de reuniões, Charlotte ainda
estava a falar.
- ... mas eu tinha trinta e oito anos - dizia. - Sabem o que escrevem nas nossas fichas, quando temos trinta e oito anos? "Gravidez geriátrica." - Estava preocupada por poder ter uma criança com Síndroma de Down: nem sequer tinha ouvido falar em OI.
- Fez amniocentese?
- A amniocentese não diz automaticamente se um feto tem OI; temos que saber se é hereditário. Mas no caso da Willow foi uma mutação espontânea. Não foi herdado.
- Então antes de a Willow nascer não sabia que ela tinha OI?
- perguntou Ramirez.
- Soubemos quando a segunda ecografia da Charlotte revelou uma série de ossos partidos - respondi. - Olhe, já terminámos? Se não quer aceitar este caso, tenho a
certeza de que poderei encontrar...
- Lembras-te daquela coisa estranha na primeira ecografia? disse Charlotte, virando-se para mim.
- Que coisa estranha? - perguntou Ramirez.
- A técnica achou que a imagem do cérebro estava demasiado nítida.
- Isso é impossível - disse eu. Ramirez e a colega trocaram um olhar.
- E o que disse a sua obstetra?
- Nada - Charlote encolheu os ombros. - Ninguém mencionou sequer a OI até fazermos outra ecografia às vinte e sete semanas, e virmos todas aquelas fracturas.
Ramirez virou-se para Marin Gates.
- Veja se alguma vez foi diagnosticada ainda no útero tão precocemente - ordenou, e depois virou-se novamente para Charlotte.
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- Estaria disposta a ceder-nos os seus ficheiros clínicos? Teremos de fazer alguma pesquisa para ver se temos ou não motivo para tomar medidas...
- Achei que não tínhamos bases para instaurar um processo legal - disse eu.
- Talvez tenha, sargento O'Keefe - Robert Ramirez olhou para ti como se estivesse a memorizar as tuas feições. - Só que não é aquele que pensava.
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Marin
Há doze anos estava no último ano do liceu, sem rumo, quando me sentei à mesa da cozinha para conversar com a minha mãe (mais tarde falarei mais sobre esse assunto).
- Não sei o que quero ser - disse eu.
Isto era imensamente irónico no meu caso porque também não sabia o que tinha sido. Desde os cinco anos que sei que sou adoptada, que é o termo politicamente correcto
para não fazermos nenhuma ideia sobre as nossas próprias origens.
- O que gostarias de ser? - perguntou a minha mãe, bebendo um pouco de café. Tomava-o forte e simples; eu tomava o meu fraco e doce. Era uma das milhares de discrepâncias
entre nós que conduziam sempre a perguntas silenciosas: A minha mãe que me deu à luz também tomaria o café fraco e doce? Também teria os olhos azuis, as maçãs do
rosto altas, e seria canhota como eu?
- Gosto de ler - disse eu, e depois revirei os olhos. - Isto é uma estupidez.
- E gostas de argumentar. Soltei um risinho afectado.
- Ler. Argumentar. Querida - disse a minha mãe, animada foste feita para seres uma advogada.
Avancemos nove anos: fui chamada ao consultório médico devido a uma citologia anómala. Enquanto esperava que o ginecologista entrasse, a vida que nunca tive passou-me
diante dos olhos: os filhos que fui adiando por estar demasiado ocupada na faculdade de direito e a construir a carreira; os homens com quem não saí por querer publicar
artigos jurídicos; a casa de campo que não comprei por trabalhar tanto que nunca poderia desfrutar daquele dispendioso alpendre de teca, daquela paisagem de montanha.
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- Vamos recapitular os seus antecedentes médicos familiares disse o meu médico, e eu dei a minha resposta habitual:
- Sou adoptada; não conheço os antecedentes médicos da minha família.
Embora afinal estivesse tudo bem - os resultados anómalos foram um erro de laboratório - acho que foi nesse dia que resolvi procurar os meus pais verdadeiros.
Sei o que estão a pensar: não era feliz com os meus pais adoptivos? Bem, a resposta é sim - e foi por isso que só pensei em procurá-los aos trinta e um anos. Sempre me senti feliz e grata por poder ter crescido com a minha família; não precisava nem queria outra. E a última coisa que desejava fazer era dar-lhes um desgosto ao dizer que estava a fazer uma busca.
Mas, apesar de ter sabido sempre que os meus pais adoptivos me queriam desesperadamente, algures, na minha cabeça, sabia que os meus verdadeiros pais não. A minha mãe tinha vindo com aquela conversa de eles serem demasiado novos e não estarem preparados para terem uma família - e logicamente compreendi isso - mas, emocionalmente, sentia-me posta de lado. Acho que queria saber porquê. Por isso, depois de ter tido uma conversa com os meus pais adoptivos - em que a minha mãe esteve sempre a chorar enquanto me prometia que ia ajudar-me - empenhei-me com alguma hesitação na busca em que andara a pensar nos últimos seis meses.
Ser adoptada era como ler um livro cujo primeiro capítulo foi arrancado. Podemos estar a gostar da intriga e dos personagens, mas provavelmente também gostaríamos de ler aquela primeira parte. Mas ao voltarmos à livraria com o livro para dizer que lhe faltava o primeiro capítulo, dizem-nos que não poderão vender um exemplar intacto. E se lêssemos aquele primeiro capítulo e descobríssemos que detestávamos o livro e colocássemos uma crítica negativa na Amazon? E se magoássemos os sentimentos do autor? O melhor é ficarmos com a cópia incompleta e desfrutarmos do resto da história.
Os registos de adopção não estão acessíveis a toda a gente nem a uma pessoa como eu que sabia como funcionavam as coisas legalmente. Isso implicava que cada passo era um esforço hercúleo e que havia muito mais falhanços do que êxitos. Passei os primeiros três meses da minha busca a pagar mais de seiscentos dólares a um detective privado para depois me dizer que não tinha descoberto absolutamente nada. Isso podia ter feito eu de graça.
O problema era que o meu trabalho estava sempre a interferir.
Assim que acompanhámos os O'Keefe até à porta do escritório de advogados, interpelei o meu chefe.
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- Quer mesmo ir para a frente com isto? Este tipo de processo legal é completamente intragável para mim - disse eu.
- Vai continuar a dizer isso - disse Bob pensativamente - se acabarmos por receber a maior indemnização devido a negligência médica no diagnóstico pré-natal em New
Hampshire?
- Não sabe se isso vai acontecer... Ele encolheu os ombros.
- Depende do que revelarem os ficheiros clínicos.
Um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal implica que, se a mãe soubesse durante a gravidez que a criança nasceria com uma incapacidade grave,
teria decidido abortar. Isso coloca o ónus da responsabilidade pelas incapacidades subsequentes da criança no obstetra. Do ponto de vista do queixoso, trata-se de
um processo por negligência médica. Para a defesa, torna-se numa questão de moral: quem tem o direito de decidir se uma vida demasiado limitada merece, ou não, ser
vivida?
Muitos estados baniram os processos legais por negligência médica no diagnóstico pré-natal. New Hampshire não é um deles. Houve várias indemnizações para os pais
de crianças nascidas com espinha bífida ou fibrose quística e houve o caso de um rapaz deficiente mental profundo, numa cadeira de rodas, devido a uma anomalia genética
- apesar de a doença nunca ter sido diagnosticada antes, muito menos notada ainda no útero. Em New Hampshire, os pais têm a responsabilidade de cuidarem dos filhos
com incapacidade durante toda a vida - e não apenas até aos dezoito anos - o que constitui uma razão tão boa como qualquer outra para procurar uma indemnização por
danos. Não havia dúvida de que Willow O'Keefe tinha uma história triste, com aquele molde de gesso enorme, mas sorriu e respondeu a perguntas quando o pai saiu da sala e Bob fê-la falar. Para ser franca: ela era gira, inteligente e exprimia-se com clareza - e portanto seria um caso muito mais difícil de apresentar a um júri.
- Se a médica da Charlotte não lhe prestou os cuidados devidos
- disse Bob - então devia ser responsabilizada, para que isto não volte a acontecer.
Revirei os olhos.
- Não pode invocar questões de consciência quando pretende receber alguns milhões, Bob. E vai ser difícil: se um obstetra decidir que uma criança com ossos de vidro não devia nascer, o que virá a seguir? Um teste de diagnóstico pré-natal para um QI reduzido, para eliminarmos os fetos que, quando crescerem, não forem para Harvard?
Deu-me uma palmada nas costas.
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- Sabe, é bom ver uma pessoa tão arrebatada. Pessoalmente, sempre que as pessoas começam a falar sobre curar demasiadas doenças através da ciência, fico sempre satisfeito por ainda não se falar em bioética no tempo da poliomielite, da tuberculose e da febre amarela
- dirigíamo-nos para os nossos gabinetes individuais, mas ele de repente parou e virou-se para mim. - É neonazi?
- O quê?
- Bem me parecia. Mas se lhe pedissem para defender um cliente que fosse neonazi num processo criminal, seria capaz de fazer o seu trabalho mesmo que achasse repulsivas as suas ideias?
- Claro, e isso é uma pergunta que se faz a um estudante do primeiro ano de direito - disse imediatamente. - Mas isto é completamente diferente.
Bob abanou a cabeça.
- A questão é essa, Marin - respondeu. - Por acaso não é.
Fiquei à espera que ele fechasse a porta do gabinete e depois soltei um gemido de frustração. No meu gabinete, tirei os sapatos de salto alto e dirigi-me para a secretária, para me sentar. Briony trouxera-me a correspondência bem presa com um elástico. Seleccionei-a, separando os envelopes em pilhas por cada caso, até me deparar com um remetente que não me era familiar.
Há um mês, depois de despedir o investigador privado, tinha enviado uma carta para o tribunal do Condado de Hillsborough para obter a minha sentença de adopção. Por dez dólares, podemos obter uma cópia do documento original. Munida disso, e do facto de ter nascido no Hospital St. Joseph, em Nashua, planeava reunir algumas informações e descobrir o nome da minha mãe verdadeira. Tinha esperança de que um estagiário do tribunal que talvez não soubesse o que estava a fazer, se esquecesse de apagar o nome com que primeiro me registaram no documento. Em vez disso, deparei-me com uma secretária chamada Maisie Donovan, que já trabalhava no tribunal do condado desde a extinção dos dinossáurios - e que me enviara o envelope que agora segurava nas mãos trémulas.
TRIBUNAL DO CONDADO DE HILLSBOROUGH,
NEW HAMPSHIRE
ASSUNTO: ADOPÇÃO DE BEBÉ DO SEXO FEMININO.
SENTENÇA FINAL
E NO PRESENTE dia 28 de Julho de 1973, após ter sido considerada a petição anexa e a audiência, e após o tribunal ter investigado para confirmar as afirmações feitas na petição e
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outros factos para que o tribunal tenha todas as informações relativas à exequibilidade da adopção proposta; O Tribunal, tendo ficado esclarecido, declara que as
afirmações feitas na petição são verdadeiras, e que o bem-estar da pessoa proposta para adopção será promovido, deverá ter direitos de filha e herdeira de Arthur William Gates e Yvonne Sugarman Gates e estará sujeita a todos os respectivos deveres; e de hoje em diante deverá assumir o nome de MARIN ELIZABETH GATES.
Li-o uma segunda vez, e depois uma terceira. Fiquei a olhar para a assinatura do juiz - Alfred qualquer coisa. Por dez dólares fiquei a saber surpreendentemente que:
1. Sou do sexo feminino.
2. O meu nome é Marin Elizabeth Gates.
Bem, de que estava à espera? De um postal ilustrado da minha mãe verdadeira e um convite para a reunião familiar deste ano? Suspirando, abri o armário dos ficheiros e coloquei a sentença na pasta que tinha marcado como PESSOAL. Depois tirei outra pasta e escrevi O'KEEFE na etiqueta.
- Negligência médica no diagnóstico pré-natal - disse em voz alta, só para testar o efeito verbal; era (tal como esperava) amargo como grão de café. Tentei concentrar-me num processo legal com a mensagem vagamente velada de que há crianças que nunca deviam ter nascido e enviei o meu agradecimento à minha mãe verdadeira por não ter pensado o mesmo.
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Piper
Teoricamente, eu sou tua madrinha. Parece que isso significa que sou responsável pela tua educação religiosa, o que é uma grande anedota visto que nunca ponho os
pés na igreja (por causa daquele receio saudável de que o telhado de repente irrompa em chamas), enquanto a tua mãe raramente perde uma missa de domingo. Em vez
disso, prefiro pensar na versão dos contos de fadas. Que um dia, com ou sem a ajuda de ratinhos vestidos com jardineiras minúsculas, hei-de fazer-te sentir como uma princesa.
Para isso, raramente apareço em tua casa de mãos vazias. Charlotte diz que te estrago com mimos, mas não te cubro de diamantes nem te entrego as chaves de um Hummer. Trago-te truques de magia, barras de chocolate, cassetes de vídeo infantis que a Emma já não vê. Mesmo quando te visito vinda directamente de um turno no hospital, costumo improvisar: uma luva de látex a que dou um nó, cheia como um balão. Uma rede para prender os cabelos, da sala de operações. "No dia em que lhe trouxeres um especulo", costumava dizer Charlotte, "deixas de ser oficialmente bem-vinda."
- Olá - gritei ao entrar pela porta da frente. Para ser sincera, não me lembro de alguma vez ter batido à porta. - Cinco minutos - disse, quando Emma subiu as escadas a correr para ir ter com Amélia. - Nem tires o casaco. - Percorri o corredor até à sala de Charlotte, onde estavas apoiada no teu molde de gesso, a ler.
- Piper! - disseste, e o teu rosto iluminou-se.
Às vezes, ao olhar para ti, não vejo a curvatura comprometedora dos teus ossos nem a baixa estatura que faz parte da tua doença. Em vez disso, lembro-me da tua mãe a chorar quando me disse que não conseguira engravidar mais uma vez; lembro-me de ela me tirar o Doptone dos ouvidos numa visita ao consultório para
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também poder ouvir o bater do teu coração, como o de um beija-flor.
Sentei-me ao teu lado no sofá e tirei o teu presente do dia do bolso do casaco. Era uma bola de praia - acredita, não é fácil encontrar uma em Fevereiro.
- Não chegámos a ir à praia - disseste. - Caí.
- Ah, mas isto não é só uma bola de praia - corrigi, e enchi-a até estar firme e redonda como a barriga de uma mulher no nono mês de gravidez. Depois enfiei-a entre
os teus joelhos, a bola ficou bem entalada no gesso, e comecei a bater-lhe com a palma da mão aberta. Isto - disse eu - é um tambor.
Riste-te, e começaste também a bater na superfície. O som fez Charlotte vir à sala.
- Estás com péssimo aspecto - disse. - Quando dormiste pela última vez?
- Caramba, Piper, também gostei muito de te ver...
- A Amélia já está pronta?
- Para quê?
- Patinar?
Ela bateu na testa.
- Esqueci-me completamente. Amélia! - gritou, e depois virou-se para mim: - Acabámos de chegar do escritório de advogados.
- E? O Sean ainda está com aquela fúria de processar o mundo inteiro?
Em vez de responder, bateu com a mão na bola de praia. Não gostava que eu troçasse de Sean. A tua mãe é a minha melhor amiga no mundo inteiro, mas o teu pai conseguia deixar-me doida. Metia uma coisa na cabeça e estava decidido - não havia maneira de o demover. O mundo para Sean era simplesmente a preto-e-branco e acho que sempre fui daquelas pessoas que prefere um pouco de cor.
- Sabes uma coisa, Piper - interrompeste. - Também fui patinar. Olhei para Charlotte, que acenou com a cabeça. Normalmente
estava sempre aterrorizada por causa do charco nas traseiras e a tentação constante que representava. Mal podia esperar por saber os pormenores daquela história.
- Acho que se te esqueceste das aulas de patinagem, também deves ter-te esquecido da feira dos bolos?
Charlotte retraiu-se.
- O que fizeste?
- Fiz bolinhos de chocolate - disse-lhe. - com a forma de patins. com atacadores e lâminas de glacê. Percebeste? Patins para gelo com glacê?
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- Fizeste bolinhos de chocolate? - perguntou Charlotte, e eu fui atrás dela quando se dirigiu para a cozinha.
- Sozinha. O resto das mães já me pôs na lista negra por ter faltado ao espectáculo da Primavera por causa de um congresso médico. Estou a tentar redimir-me.
- Então quando os fizeste? Enquanto estavas a suturar uma episiotomia? Depois de estares de serviço há trinta e seis horas? Charlotte abriu a despensa e procurou nas prateleiras, agarrando por fim num pacote de Chips Ahoy! e, deitando-as numa travessa, exclamou. - Sinceramente, Piper, tens de ser sempre assim tão perfeita?
Estava a atacar as bordas das bolachas com um garfo.
- Bolas. Quem te deixou assim de tão mau humor?
- Bem, de que estavas à espera? Chegas aqui e dizes-me que estou com péssimo aspecto e depois fazes-me sentir completamente imprestável...
- És chefe de pastelaria, Charlotte. Eras capaz de fazer o que quisesses... mas que diabo estás a fazer?
- A dar-lhes um aspecto caseiro - disse Charlotte. - Porque já não sou chefe de pastelaria. Há muito tempo.
Quando conheci Charlotte, ela tinha acabado de ser nomeada a melhor chefe de pastelaria de New Hampshire. Até li um artigo sobre ela numa revista que elogiava a sua capacidade de agarrar em ingredientes inusitados e criar os doces mais notáveis. Nunca vinha a minha casa de mãos vazias - trazia queques com cobertura de fios de caramelo, tartes de frutos silvestres que explodiam como fogo de artifício, pudins que eram como bálsamos. Os souflés dela eram leves como nuvens de Verão; o fondant de chocolate tirava-nos da cabeça todos os obstáculos que nos bloquearam o dia. Disse-me que, quando cozinhava, sentia-se completamente preenchida, que tudo o resto não importava e fazia-a lembrar quem ela realmente era. Fiquei com inveja. Tenho uma vocação - e sou uma boa médica - mas Charlotte tem um dom. Sonhava em abrir uma pastelaria, em escrever o seu próprio livro de receitas, um bestseller. Na realidade, nunca imaginei que encontraria algo que amasse mais do que a pastelaria, até apareceres tu.
Afastei a travessa.
- Charlotte. Estás bem?
- Deixa-me ver. Fui presa no fim-de-semana passado; a minha filha está toda engessada; não tenho tempo nem para tomar um duche: sim, estou óptima. - Virou-se para a porta e para as escadas lá para cima. - Amélia! Vamos embora!
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- A Emma também está com surdez selectiva - disse eu. - Juro que me ignora de propósito. Ontem, pedi-lhe oito vezes para tirar as coisas de cima da bancada da cozinha...
- Sabes uma coisa - disse Charlotte, cansada. - Estou-me nas tintas para os teus problemas com a tua filha.
Abri a boca de espanto - sempre fora a confidente de Charlotte e não o seu saco de boxe - e ela abanou a cabeça e pediu desculpa.
- Desculpa. Não sei o que se passa comigo. Não devia estar a descarregar isto em ti.
- Não faz mal - disse eu.
Precisamente nessa altura as raparigas mais velhas desceram as escadas ruidosamente e passaram por nós num turbilhão de segredinhos e gargalhadas. Pousei a mão no braço de Charlotte.
- Para que fiques a saber - disse num tom firme. - És a mãe mais dedicada que já conheci. Abdicaste de toda a tua vida para tomares conta da Willow.
Baixou a cabeça e acenou antes de olhar para mim.
- Lembras-te da minha primeira ecografia? Fiquei a pensar por um instante e depois sorri.
- Vimo-la chuchar no dedo. Nem sequer tive de vos apontar; estava absolutamente nítida.
- Pois - repetiu a tua mãe. - Absolutamente nítida.
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Charlotte
Março de 2007
E se alguém tivesse a culpa?
A ideia era apenas uma semente a germinar que trazia no peito quando saímos do escritório de advogados. Mesmo deitada ao lado de Sean, ouvia-a como o bater de um tambor no sangue: "E se, e se, e se." Já há cinco anos que te amava, que andava sempre à tua volta, pegava-te ao colo quando sofrias uma fractura. Tinha recebido precisamente aquilo que desejara: uma bebé linda. Então como podia admitir a alguém - muito menos a mim própria - que não só eras a coisa mais maravilhosa que alguma vez me aconteceu... mas também a mais desgastante, a mais avassaladora?
Ouço as pessoas queixarem-se dos filhos por serem mal-educados ou mal-humorados, ou até por arranjarem problemas com a autoridade, e fico com inveja. Quando esses jovens fizerem dezoito anos, ficam por sua conta, para cometerem os seus próprios erros e serem responsáveis por eles. Mas tu não és uma criança que eu possa largar solta no mundo. Afinal, o que aconteceria se caísses?
E o que te acontecerá quando eu já aqui não estiver para te amparar?
Depois de passar uma semana, e mais outra, comecei a aperceber-me de que no escritório de advogados de Robert Ramirez encarariam uma mulher que albergasse aqueles pensamentos secretos com a mesma repulsa que eu. Em vez disso, concentreime em fazer-te feliz. Joguei Scrabble até saber de cor todas as palavras de duas letras; vi programas do Animal Planet até ter decorado os guiões. Naquela altura, o teu pai já tinha voltado a entrar na rotina do trabalho; Amélia tinha regressado à escola.
Naquela manhã, tu e eu encolhemo-nos para caber na casa de banho de baixo. Fiquei virada para ti, com os braços debaixo
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dos teus, equilibrando-te por cima da sanita para que pudesses fazer chichi.
- Os sacos - disseste. - Estão a atrapalhar!
com uma mão, ajeitei os sacos do lixo que estavam enrolados em volta das pernas enquanto gemia sob o peso do teu corpo. Tinha feito uma série de tentativas falhadas
para arranjar uma maneira de ires à casa de banho com um molde de gesso como o teu - mais uma informaçãozinha que os médicos não partilham. Através de fóruns de
pais online aprendi a entalar sacos de plástico para o lixo na borda da abertura do gesso, uma espécie de forro para que o gesso se mantivesse seco e limpo. Nem preciso de dizer que demoravas cerca de trinta minutos para ires à casa de banho e, após alguns acidentes, começaste a prever muito bem quando precisavas de ir, em vez de esperar até ao último minuto.
- Quarenta mil pessoas por ano magoam-se nas sanitas - disseste.
Rangi os dentes.
- Por amor de Deus, Willow, concentra-te antes que sejam quarenta mil e uma a contar contigo.
- Está bem, já estou despachada.
com mais um número de equilibrismo, passei-te o rolo de papel higiénico e deixei-te limpar entre as pernas.
- Boa - disse eu, debruçando-me para puxar o autoclismo e depois recuei com cautela para passar pela porta estreita da casa de banho. Mas o meu sapato de ténis ficou preso na borda do tapete, e senti-me cair para o chão. Virei-me para cair primeiro, para que o meu corpo te amparasse a queda.
Não sei bem qual de nós começou a rir primeiro, e quando a campainha da porta e o telefone começaram a tocar ao mesmo tempo, rimos ainda mais. Talvez devesse mudar a minha mensagem. "Desculpe, agora não posso atender. Estou a segurar na minha filha, com vinte e quatro quilos de gesso, por cima da sanita."
Apoiei-me nos cotovelos, endireitando-te juntamente comigo. A campainha da porta voltou a tocar, impaciente.
- Já vou - gritei.
- Mamã! - guinchaste. - As minhas calças!
Ainda estavas meio nua depois da ida à casa de banho, e vestir-te as calças de flanela do pijama era tarefa para demorar mais dez minutos. Em vez disso, agarrei num dos sacos do lixo que ainda estava entalado no gesso e enrolei-o à tua volta como uma saia preta de plástico.
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No alpendre estava a Sr.a Dumbroski, uma vizinha que vivia ao fundo da rua. Tem dois netos gémeos da tua idade que a visitaram no ano passado, roubaram-lhe os óculos e lançaram fogo a um monte de folhas secas que se teria propagado à garagem se o carteiro não tivesse aparecido no momento certo.
- Olá, minha querida - disse a Sr.a Dumbroski. - Espero não ter vindo em má altura.
- Oh não - respondi. - Estávamos só... - olhei para ti, com o saco do lixo, e começámos as duas a rir outra vez.
- Vinha buscar o meu prato - disse a Sr.a Dumbroski.
- O seu prato?
- Aquele que vinha com a lasanha que eu fiz. Espero que tenha tido oportunidade para prová-la.
Devia ser uma das refeições que tínhamos à nossa espera quando regressámos do inferno que foi o Disney World. Para ser sincera, só comemos algumas; o resto estava a secar no congelador naquele preciso momento. Uma pessoa não conseguia comer toda aquela quantidade de macarrão com queijo, lasanha e massa.
Se tivermos feito uma refeição para uma pessoa que está doente, parece-me um descaramento ir perguntar se já a comeu para poder devolver-nos o nosso Pyrex.
- E se eu procurar o prato, Sr.a Dumbroski, e depois pedir ao Sean para ir levá-lo a sua casa?
Franziu os lábios.
- Bem - disse - então acho que vou ter de esperar para fazer o meu guisado de atum.
Por um instante pensei em pôr-te nos braços flácidos da Sr.a Dumbroski e vê-la vacilar sob o teu peso enquanto eu ia ao congelador procurar a estúpida lasanha e atirá-la para o chão junto aos pés dela - mas em vez disso limitei-me a sorrir.
- Obrigada por ser tão amável. Agora tenho de ir deitar a Willow para fazer uma sesta - disse eu, e fechei a porta.
- Eu não faço a sesta - disseste.
- Eu sei. Só disse aquilo para que ela se fosse embora, para não a matar - virei-te para entrar na sala e coloquei-te uma legião de almofadas atrás das costas para poderes sentar-te confortavelmente. Depois fui buscar as calças do pijama e debrucei-me para carregar no botão que piscava no atendedor de chamadas.
- Primeiro a perna esquerda - disse, passando a larga cintura de elástico pelo gesso.
"Tem uma mensagem nova."
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Enfiei-te a perna direita nas calças e puxei-as por cima do gesso nas ancas.
"Sr. e Sr.a O'Keefe... fala Marin Gates do escritório de advocacia de Robert Ramirez. Gostaríamos de discutir um assunto com os senhores."
- Mãe - queixaste-te, quando as minhas mãos ficaram imóveis na tua cintura.
Prendi o tecido que sobrava com um nó.
- Sim - disse eu, com o coração aos saltos. - Já está quase.
Daquela vez a Amélia estava na escola, mas, mesmo assim, tivemos de levar a Willow para o escritório do advogado. E daquela vez eles estavam preparados: junto à máquina de café havia pacotes de sumo; junto às revistas lustrosas de arquitectura havia uma pequena pilha de livros ilustrados. Quando a secretária nos acompanhou para sermos recebidos pelos advogados, não nos levou para a sala de reuniões. Em vez disso abriu a porta de um gabinete com centenas de tons de branco: desde o chão de madeira tratada, aos painéis creme das paredes e aos dois sofás pálidos de couro. Esticaste o pescoço para observar tudo. Devia parecer o paraíso? E se fosse esse o caso, então o que seria Robert Ramirez?
- Achei que o sofá talvez fosse mais confortável para a Willow
- disse ele num tom suave. - E também pensei que ela talvez preferisse ver um filme em vez de estar a ouvir conversas aborrecidas de adultos. - Mostrou o DVD do Ratatui, o teu preferido, embora ele não soubesse isso. Depois de o teres visto pela primeira vez, fizemos o verdadeiro ratatouille para o jantar.
Marin Gates trouxe um leitor de DVDs portátil e um par de auscultadores Bose muito elegantes. Ligou-o, instalou-te no sofá, ligou o leitor de DVDs, e enfiou a palhinha
num pacote de sumo.
- Sargento O'Keefe e Sr.a O'Keefe - disse Ramirez. - Achámos melhor discutir este assunto com os senhores sem que a Willow estivesse presente, mas também percebemos que isso seria uma impossibilidade física, devido ao seu estado. Foi a Marin que teve a ideia do DVD. Também tem trabalhado muito ao longo das duas últimas semanas. Examinámos os ficheiros clínicos e dêmo-los a outra pessoa para os examinar. O nome Marcus Cavendish diz-vos alguma coisa?
Sean e eu olhámos um para o outro e abanámos a cabeça.
- O Dr. Cavendish é escocês. É um dos maiores especialistas do mundo em osteogénese imperfeita. E, segundo a sua opinião,
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parece que têm uma boa causa para processarem a vossa obstetra por negligência médica. Lembra-se que a ecografia que fez às dezoito semanas estava demasiado nítida,
Sr.a O'Keefe... É uma evidência suficientemente forte que a sua obstetra ignorou. Devia ter sido capaz de reconhecer a doença do bebé nessa altura, muito antes de
serem visíveis as fracturas na ecografia seguinte. E devia ter-vos dado a informação nessa altura da gravidez... que talvez lhes permitisse alterar o resultado final.
Tinha a cabeça a andar à roda e Sean parecia totalmente confuso.
- Espere um instante - disse ele. - De que tipo de processo legal estamos a falar?
Ramirez olhou para ti.
- Chama-se negligência médica no diagnóstico pré-natal disse ele.
O advogado olhou para Marin Gates, que pigarreou.
- Um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal dá direito aos pais de instaurarem um processo por danos, devido ao nascimento e cuidados de
uma criança com incapacidades graves - disse ela. - A questão é que se a sua médica tivesse dito antes que o bebé ia nascer com incapacidades graves, teriam podido
fazer escolhas e opções relativamente à continuação ou interrupção da gravidez.
Lembro-me de me zangar com Piper há algumas semanas atrás: "Tens sempre de ser assim tão perfeita?"
E se no teu caso fosse a única vez em que ela não foi perfeita?
Fiquei colada ao assento, tal como tu; não conseguia mexer-me, não conseguia respirar. Sean falou por mim:
- Está a dizer que a minha filha nunca devia ter nascido? acusou. - Que foi um erro? Não vou ficar a ouvir estes disparates.
Olhei para ti: tinhas tirado os auscultadores e estavas a ouvir cada palavra.
Quando o teu pai se levantou, Robert Ramirez fez o mesmo.
- Sargento CKKeefe, sei como isto parece horrível. Mas o termo negligência médica no diagnóstico pré-natal é apenas um termo legal. Não desejamos que a sua filha
não tivesse nascido: ela é simplesmente linda. Só achamos que, quando um médico não consegue providenciar os cuidados que um paciente merece, devia ser responsabilizado - deu um passo em frente. Trata-se de negligência médica. Pense em todo o tempo e dinheiro que gastou para cuidar da Willow: e que vai gastar para cuidar dela no futuro. Por que razão tem de pagar pelo erro de outra pessoa?
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Sean era muito mais alto do que o advogado e, por um instante, pensei que talvez fosse empurrar Ramirez para poder passar. Mas em vez disso espetou um dedo no peito
do advogado.
- Eu amo a minha filha - disse Sean, numa voz grossa. Amo-a.
Pegou-te ao colo arrancando a ficha dos auscultadores, derrubando o leitor de DVDs, entornando o pacote de sumo para cima do sofá de couro.
- Oh - gritei, procurando um lenço de papel dentro da mala para limpar a mancha. Aquele couro creme magnífico ficaria estragado.
- Não faz mal, Sr.a O'Keefe - murmurou Marin, ajoelhando-se ao meu lado. - Não se preocupe com isso.
- Papá, o filme ainda não acabou - disseste.
- Já sim - Sean arrancou-te os auscultadores e atirou-os para o chão. - Charlotte - disse ele - vamos embora daqui.
Já ia a meio do corredor, irado, enquanto eu limpava o sumo. Percebi que ambos os advogados estavam a olhar para mim e recuei, apoiada nos calcanhares.
- Charlotte! - a voz de Sean ressoou vinda da sala de espera.
- Hum... obrigada. Lamento imenso ter-vos incomodado - pus-me de pé, cruzando os braços, como se tivesse frio ou tivesse de me abraçar para me manter inteira. - Só
queria... há uma coisa... - olhei para os advogados e respirei fundo. - O que acontece se ganharmos?
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"Lancem-me ao fundo do mar.
Mandem-me para a água salgada.
Não há arado que me toque nos ossos.
Nem Hamlet que me segure nos maxilares para dizer
Como os gracejos se foram e a minha boca está vazia.
Necrófagos longos de olhos verdes furar-me-ão os olhos,
Peixes púrpura jogarão às escondidas,
E eu serei o ribombar do trovão, o rebentar das ondas,
Nas profundezas de água salgada.
Lancem-me... ao fundo do mar."
- CARL SANDBURG, "BONÉS"
Envolver: processo delicado no qual uma mistura é acrescentada a outra, utilizando uma grande colher ou espátula de metal.
A maioria das vezes, quando falamos em dobrar2, há um vinco. Dobramos roupa, dobramos notas ao meio. com a massa é diferente: juntamos duas substâncias distintas,
mas aquele espaço entre elas não desaparece completamente - uma mistura que foi envolta correctamente é leve, cheia de ar, com ambas as partes ainda a travarem conhecimento.
É uma combinação no limite, à medida que uma mistura cede diante da outra. Pensem num mau jogo depóquer, numa discussão, em qualquer situação em que, uma das partes, simplesmente se rende diante da outra.
SOUFFLÉ DE FRAMBOESAS E CHOCOLATE
2 litros de puré de framboesas passado por um coador
8 ovos, separados
120 g de açúcar
100 g de farinha
250 g de chocolate amargo de boa qualidade, cortado em pedaços
0,5 dl de licor Chambord
2 colheres de sopa de manteiga derretida
Açúcar para polvilhar as formas de porcelana
Aquecer o puré de framboesas, até ficar morno, numa frigideira pesada. Bater as gemas com 80 gramas de açúcar numa tigela grande; juntar a farinha e o puré de framboesas
e voltar a colocar a mistura na frigideira.
Cozinhar em lume brando, mexendo sempre, até obter um creme espesso. Não deixar ferver. Retirar do lume e deitar o chocolate mexendo sempre até estar todo derretido.
Juntar o licor. Tapar a mistura de base com plástico para impedir que se forme uma película.
2. Folding, na versão original em inglês significa envolver e dobrar simultaneamente. (N. da T.)
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Entretanto, untar seis formas de porcelana com manteiga e polvilhar com açúcar. Pré-aquecer o forno a
220? C.
Bater as claras em castelo com o restante açúcar. E aqui verão como é - a junção de duas misturas muito diferentes - ao envolver as claras no chocolate. Nenhuma
delas se mostrará disposta a abdicar da sua substância: o chocolate escuro tornar-se-á parte da espuma das claras, e vice-versa.
Deitar a mistura nas formas com uma colher, ficando a meio centímetro das bordas. Meter no forno de imediato. Os soufflés estão prontos quando estão bem crescidos,
dourados por cima, com as extremidades com aspecto seco - cerca de 20 minutos. Mas não se surpreendam se, quando os retirarem do forno, se afundarem sob o peso das suas promessas.
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Charlotte
Abril de 2007
Não podemos viver sem impacto. Foi uma das primeiras coisas que os médicos nos disseram quando começaram a explicar o paradoxo que é a osteogénese imperfeita: temos de ser activos, mas não podemos sofrer fracturas, porque se sofrermos fracturas, não podemos ser activos. Os pais que mantinham os filhos sedentários ou que os obrigavam a andar de joelhos para terem menos probabilidades de cair e sofrer uma fractura, também corriam o risco de que os músculos e as articulações deles nunca se desenvolvessem o suficiente para protegerem os ossos.
Era Sean quem gostava de correr riscos. No entanto, não era ele quem ficava em casa a maior parte das vezes quando sofrias uma fractura. Passou anos a convencer-me que, para teres uma vida normal, alguns moldes de gesso não seriam um custo demasiado alto a pagar; talvez agora eu conseguisse convencê-lo de que palavras tolas como negligência médica no diagnóstico pré-natal não significavam nada em comparação com o futuro que podiam assegurar-te. Apesar de Sean ter abandonado o escritório de advogados, eu não tinha perdido as esperanças de que talvez voltassem a telefonar. Adormecia a pensar no que Robert Ramirez dissera. Acordava com um gosto estranho na boca, agridoce; demorei dias a perceber que era apenas esperança.
Estavas sentada numa cama de hospital com um cobertor por cima do gesso, a ler um livro de perguntas e respostas enquanto esperavas pela infusão de pamidronato. Ao princípio vinhas de dois em dois meses; agora só tínhamos de vir duas vezes por ano a Boston. O pamidronato não é uma cura para a OI, apenas um tratamento, que
permite aos doentes do tipo III, como tu, andarem, em vez de ficarem presos a uma cadeira de rodas. Antes
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disto, até colocar os pés no chão podia provocar-te microfracturas nos pés.
- Nem ia acreditar, olhando para as fracturas dos fémures, mas os níveis dela estão muito melhores - disse o Dr. Rosenblad. Está no menos três.
Quando nasceste e fizeste um exame DEXA para verificar a densidade óssea, o teu nível era menos seis. Noventa e oito por cento da população situa-se entre valores positivos e menos dois. Os ossos estão sempre a renovar-se e a absorver o tecido ósseo velho; o pamidronato atrasa o ritmo a que o teu corpo absorve o osso; permite que te movimentes o suficiente para que os ossos criem resistência. Uma vez, o Dr. Rosenblad explicou-me mostrando uma esponja da cozinha: o osso é poroso, o pamidronato preenche um pouco os buracos.
Sofreste mais de cinquenta e duas fracturas em cinco anos com tratamento; nem posso imaginar como seria a vida sem ele.
- Hoje tenho um facto bom para ti, Willow - disse o Dr. Rosenblad. - Em breve, se precisarmos de um substituto para o plasma sanguíneo, podemos usar a água de coco.
Abriste muito os olhos.
- Já fez isso alguma vez?
- Estava a pensar em experimentar hoje... - sorriu-te. - Estou só a brincar. Queres fazer-me alguma pergunta antes de metermos mãos à obra?
Enfiaste a mão na minha.
- Duas picadas, está bem?
- É essa a regra - disse eu. Se uma enfermeira não conseguisse introduzir o cateter intravenoso na tua veia em duas tentativas, obrigava-a a chamar outra pessoa para fazê-lo.
É engraçado - quando saía com Sean, outro polícia e a mulher, eu é que era a mais tímida. Nunca era a alma da festa; não metia conversa com as pessoas que estavam atrás de mim na fila da mercearia. Mas quando estou num hospital, sou capaz de lutar por ti até à morte. Fui a tua voz até seres capaz de falar por ti própria. Nem sempre fui assim - quem não gosta de acreditar que os médicos é que sabem? Mas alguns não se deparam com um único caso de OI ao longo de toda a carreira. O facto de as pessoas me dizerem que sabem o que estão a fazer não me faz confiar nelas.
Excepto Piper. Acreditei nela quando me disse que seria impossível saber antes que ias nascer assim.
- Acho que podemos avançar - disse o Dr. Rosenblad.
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Os tratamentos duravam quatro horas cada, durante três dias seguidos. Após duas horas em que várias enfermeiras e médicos internos entravam para verificarem os teus
dados (sinceramente, achariam que o teu peso e altura poderiam alterar-se em meia hora?), chamavam o Dr. Rosenblad e então fazia-se uma colheita de urina. Depois disso era a colheita de sangue - seis tubos de ensaio enquanto agarravas na minha mão com tanta força que deixavas marcas de pequenas meias luas com as unhas na minha pele. Finalmente, a enfermeira colocaria o cateter intravenoso - a parte em que te mostravas mais renitente. Assim que ouvi os passos dela no corredor, tentei distrair-te referindo factos do teu livro.
"Na Roma antiga comiam-se línguas de flamingo como iguaria." "No Kentucky é ilegal trazer um gelado no bolso de trás."
- Olá, minha querida - disse a enfermeira. Tinha uma nuvem de cabelos de um amarelo pouco natural e um estetoscópio com um macaco preso de lado. Trazia um pequeno tabuleiro de plástico com uma agulha intravenosa, compressas com álcool e dois pedaços de adesivo branco.
- As agulhas são uma porcaria - disseste tu.
- Willow! Cuidado com a linguagem!
- Mas porcaria não é um palavrão. Os aspiradores limpam a porcaria.
- São uma porcaria, sobretudo se formos nós a fazer as limpezas - murmurou a enfermeira, passando uma compressa pelo teu braço. - Agora, Willow, vou contar até três antes de te picar. Estás pronta? Um... dois!
- Três - gemeste. - Mentiu!
- Às vezes é mais fácil se não estivermos à espera - disse a enfermeira, mas voltou a tirar a agulha. - Não ficou bem. Vamos tentar outra vez...
- Não - interrompi. - Não há outra enfermeira neste piso que possa fazer isso?
- Já coloco cateteres intravenosos há treze anos...
- Mas na minha filha não.
O rosto dela ficou duro como uma pedra.
- vou chamar a minha supervisora. Fechou a porta atrás de nós.
- Mas foi só a primeira picada - disseste. Sentei-me ao teu lado na cama.
- Ela era traiçoeira. Não vou correr riscos.
Passaste os dedos pelas páginas do livro, como se estivesses a ler Braille. Uma informação factual chamou-me a atenção: "O ano
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mais seguro da vida, em termos estatísticos, é quando temos dez anos."
Já estavas a meio caminho.
A parte melhor de passares a noite num hospital era eu não ter de preocupar-me por poderes ter de ir para lá por causa de uma escorregadela na banheira ou de prenderes um braço na manga do casaco. Assim que terminaram a primeira infusão e limparam o cateter, já dormias profundamente. Saí sorrateiramente do quarto às escuras e fui até à fileira de telefones públicos junto aos elevadores para telefonar para casa.
- Como está ela? - perguntou Sean assim que atendeu.
- Aborrecida. Inquieta. O costume. Como está a Amélia?
- Teve um Muito bom no teste de matemática e teve um ataque quando lhe disse que tinha de lavar a loiça depois do jantar.
Sorri.
- O costume - repeti.
- Adivinhas o que foi o jantar? - disse Sean. - Frango cordon bleu, batatas assadas e feijões verdes salteados.
- Pois, está bem - disse eu. - Nem sequer és capaz de cozer
um ovo.
- Não disse que fui eu que cozinhei. O balcão de pronto a comer estava particularmente bem fornecido esta noite.
- Bem, a Willow e eu banqueteámo-nos com pudim de tapioca, canja e gelatina vermelha.
- Quero telefonar-lhe amanhã de manhã, antes de ir para o trabalho. A que horas acorda?
- Às seis, para a mudança de turno das enfermeiras - disse eu.
- vou acertar o despertador - respondeu Sean.
- A propósito, o Dr. Rosenblad perguntou-me outra vez se queria fazer a cirurgia.
Isto era o pomo da discórdia entre Sean e eu. O teu cirurgião ortopédico queria fixar os teus fémures com varetas depois de tirares o molde de gesso para que, mesmo que houvesse fracturas no futuro, estes não se deslocassem. As varetas também impediriam a curvatura, visto que um osso afectado por OI cresce em espiral. Como o Dr. Rosenblad disse, era a melhor maneira de lidar com a OI, visto não poder ser curada. Mas embora eu seja fanática por fazer tudo o que te possa poupar algum sofrimento no futuro, Sean estava concentrado no presente - e no facto de uma cirurgia implicar que ficasses novamente incapacitada. Quase o ouvia fincar os calcanhares no chão.
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Não imprimiste um artigo qualquer sobre como as varetas impedem o crescimento das crianças com OI...
- Estás a pensar nas varetas para fixar a coluna vertebral disse eu. - Assim que fossem colocadas para combater a escoliose, a Willow não iria crescer mais. Mas
isto é diferente. O Dr. Rosenblad até disse que as varetas se tornaram tão sofisticadas que crescem quando ela crescer: são telescópicas.
- E se ela não sofrer mais nenhuma fractura nos fémures? Então vai fazer a cirurgia para nada.
As hipóteses de não voltares a fracturar uma perna eram mais ou menos iguais às de o Sol não nascer amanhã de manhã. Essa é a outra diferença entre Sean e eu - eu sou a pessimista de serviço.
- Queres mesmo ter de lidar com outro molde de gesso como este? Se ela tiver de ficar assim aos dez ou doze anos, quem vai conseguir pegar-lhe ao colo?
Sean suspirou.
- Ela é uma criança, Charlotte. Não devia poder andar por aí a correr durante algum tempo antes de voltares a tirar-lhe essa oportunidade?
- Eu não estou a tirar-lhe nada - disse, magoada. - A verdade é que ela vai cair. A verdade é que vai sofrer uma fractura. Não me faças passar por má da fita, Sean, só por estar a tentar ajudá-la a longo prazo.
Houve uma hesitação.
- Sei como é difícil - disse ele. - Sei o quanto fazes por ela. Estava o mais próximo possível de aludir à visita desastrosa ao
escritório de advocacia.
- Não estava a queixar-me...
- Nunca disse que estavas. Só estou a dizer... sabíamos que não ia ser fácil, não sabíamos?
Sim, sabíamos que não ia ser. Mas acho que não nos apercebemos de que ia ser assim tão difícil.
- Tenho de desligar - disse eu, e quando Sean disse que me amava, fingi não ter ouvido.
Desliguei e telefonei imediatamente a Piper.
- Qual é o problema dos homens? - perguntei.
Em ruído de fundo, ouvia a água a correr e os pratos a tilintarem no lava-loiça.
- Isso é uma pergunta retórica? - perguntou ela.
- O Sean não quer que a Willow faça a cirurgia de fixação com varetas.
- Espera lá. Não estás em Boston por causa do pamidronato?
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- Sim, e o Rosenblad mencionou o assunto hoje quando o vimos - disse eu. - Tem estado a incitar-nos para fazê-la há um ano, e o Sean está sempre a adiar, e a Willow continua a sofrer fracturas.
- Apesar de ficar melhor a longo prazo?
- Apesar disso.
- Bem - disse Piper - então tenho uma palavra para ti: Lisístrata.
Desatei a rir.
- Há um mês que durmo com a Willow no sofá da sala. Se eu dissesse ao Sean que ia deixar de fazer sexo com ele, isso seria uma ameaça bastante fraca.
- Então aí está a tua resposta - disse Piper. - Traz as velas, as ostras, o negligé, tudo a que tem direito... e quando ele estiver a deleitar-se num coma hedonístico, volta a perguntar-lhe. - Ouvi uma voz lá ao fundo. - O Rob diz que é infalível.
- Agradece-lhe o voto de confiança.
- Olha, a propósito, diz à Willow que o comprimento do polegar de uma pessoa é igual ao comprimento do nariz.
- A sério? - levei a mão ao rosto para verificar. - Ela vai adorar isso. :
- Oh, bolas, tenho uma chamada em espera. Por que é que os bebés não podem nascer às nove da manhã!
- Isso é uma pergunta retórica? - disse eu.
- E voltamos ao princípio. Amanhã falamos, Char.
Depois de ter desligado, fiquei a olhar para o auscultador durante bastante tempo. "Ela vai ficar melhor a longo prazo", dissera Piper.
Acreditaria nisso, incondicionalmente? Não só na cirurgia de fixação por varetas, mas também em qualquer acto de uma boa mãe?
Não sabia sequer se ia arranjar coragem para instaurar um processo por negligência médica no diagnóstico pré-natal. Dizer em abstracto que há crianças que nunca
deviam ter nascido já era difícil, mas isto ia mais além. Significava dizer que uma criança em particular - a minha filha - não devia ter nascido. Que tipo de mãe anunciaria diante de um juiz e de um júri que desejava que a filha nunca tivesse existido? O tipo de mãe que não ama a filha... ou o tipo de mãe que a ama demais? O tipo de mãe que diria qualquer coisa para que ela tivesse uma vida melhor.
Mas, mesmo que chegasse a uma conclusão relativamente a este dilema moral, o problema adicional era que a pessoa que ia ser processada não me era estranha - era a minha melhor amiga.
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Lembrei-me da almofada de espuma com que costumávamos forrar a cadeirinha do carro e o berço, de como, às vezes, quando te pegava ao colo, ainda conseguia ver a
marca do teu corpo, como uma memória ou um fantasma. E então, como por magia, desaparecia. A marca indelével que deixei em Piper, a marca indelével que ela deixou
em mim - bem, talvez não fossem permanentes. Durante anos, acreditei em Piper quando ela me disse que os exames nunca revelariam precocemente que sofrias de OI, mas ela estava a referir-se a análises ao sangue. Nem sequer aludiu que outros exames pré-natais - como as ecografias
- podiam revelar a tua OI. Teria andado a arranjar desculpas para mim, ou para si própria?
"Não irá afectá-la", murmurou uma voz na minha cabeça. "É para isso que servem os seguros contra negligência." Mas irá afectar-nos a nós. Para garantir que possas confiar em mim, perderei a amiga em quem confio desde antes de teres nascido.
No ano passado, quando Emma e Amélia estavam no sexto ano, o professor de ginástica veio por trás de Emma e apertou-lhe os ombros enquanto ela estava à espera, junto ao campo de jogos, de um jogo de softball. O mais provável era ter sido um gesto inócuo, mas Emma chegou a casa a dizer que tinha ficado assustada. "O que hei-de fazer?" perguntou-me Piper. "Dou-lhe o benefício da dúvida, ou vou ser uma mãe galinha?" Antes mesmo que eu pudesse dar-lhe a minha opinião, ela já estava decidida. "É a minha filha", disse ela. "Se não for lá e disser qualquer coisa, posso vir a arrepender-me."
Adorava Piper Reece. Mas sempre hei-de adorar-te muito mais.
com o coração aos saltos, tirei um cartão-de-visita do bolso de trás das calças e marquei o número antes que perdesse a coragem.
- Marin Gates - disse uma voz do outro lado da linha.
- Oh - hesitei, surpreendida. Estava à espera de um atendedor de chamadas àquela hora da noite. - Não estava à espera que atendesse...
- Quem fala?
- Charlotte O'Keefe. Estive no seu escritório há duas semanas com o meu marido por causa...
- Sim, eu lembro-me - disse Marin.
Torci o fio de metal em volta do braço, imaginando as palavras que ia enviar por ele, mandá-las para o mundo, tornar tudo aquilo real.
- Sr.a O'Keefe?
- Estou interessada em... tomar medidas legais.
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Fez-se um breve silêncio.
- Porque não marcamos uma hora para a senhora vir aqui falar comigo? Posso pedir à minha secretária para telefonar-lhe amanhã.
- Não - disse, e depois abanei a cabeça. - Quero dizer, está bem, mas não vou estar em casa amanhã. Estou no hospital com a Willow.
- Lamento muito.
- Não, ela está bem. Bem, não está bem, mas são tratamentos de rotina. Chegamos a casa na quinta-feira.
- vou tomar nota.
- Óptimo - disse eu, expirando subitamente. - Óptimo.
- Dê os meus cumprimentos à sua família - respondeu Marin.
- Tenho só uma pergunta - disse eu, mas ela já tinha desligado o telefone. Coloquei-o junto aos lábios, senti o sabor amargo do metal. - Se estivesse no meu lugar,
faria isto?
"Se deseja fazer uma chamada", disse a voz mecânica de uma operadora, "por favor desligue e tente novamente."
O que diria Sean?
Nada, apercebi-me, porque não ia dizer-lhe o que tinha feito.
Voltei a percorrer o corredor em direcção ao teu quarto. Estavas a ressonar suavemente na cama. O vídeo que estavas a ver quando adormeceste projectava um reflexo em tons vermelhos, verdes e dourados por cima da cama, um vislumbre extemporâneo de Outono. Deitei-me no divã estreito em que uma enfermeira prestável transformara uma das cadeiras para as visitas; deixara-me um cobertor puído e uma almofada que rangia como gelo polar.
O mural na parede do fundo era um mapa antigo, com um navio pirata a navegar nas margens. Não há muito tempo, os marinheiros acreditavam que os mares tinham abismos, que as bússolas podiam indicar os locais onde, mais além, haveria dragões. Pensei nos exploradores que navegaram com os seus navios até ao fim do mundo. Como deviam estar aterrorizados ao arriscarem-se a cair no precipício; como deviam ter ficado maravilhados ao descobrirem que, em vez disso, havia lugares que apenas tinham visto em sonhos..
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Piper
Conheci Charlotte há oito anos, num dos rinques mais frios de New Hampshire, quando estávamos a vestir as nossas filhas de quatro anos de estrelas cadentes para
uma exibição de quarenta e cinco segundos no espectáculo de patinagem de Inverno do clube. Estava à espera que Emma acabasse de atar os patins enquanto as outras
mães prendiam com facilidade os cabelos das filhas em carrapitos e atavam as fitas dos fatos cintilantes em volta dos pulsos e tornozelos. Conversavam acerca da
feira de papel de embrulho para o Natal que o clube de patinagem ia realizar para angariar fundos e queixavam-se dos maridos, que não tinham posto as baterias da
câmara de vídeo a carregar o tempo suficiente. Em contraste com esta competência extemporânea, Charlotte estava sozinha, a um canto, a tentar convencer uma Amélia muito teimosa a prender os longos cabelos.
- Amélia - disse ela - a tua professora não te vai deixar ir para o gelo assim. Todas têm de estar iguais.
Parecia-me familiar, embora não me lembrasse de alguma vez ter falado com ela. Ofereci alguns ganchos para o cabelo a Charlotte e sorri.
- Se precisar - disse eu - também tenho supercola e verniz ultra-resistente. Não é o nosso primeiro ano no Clube de Patinagem Nazi.
Charlotte desatou a rir e aceitou os ganchos.
- Elas têm quatro anos!
- Parece que se não começarem cedo, não vão ter nada que dizer quando estiverem a fazer terapia - gracejei. - Sou a Piper. Uma mãe patinadora orgulhosamente rebelde.
Estendeu-me a mão.
- Charlotte.
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- Mãe - disse Emma - aquela é a Amélia. Falei-te nela na semana passada. Mudou-se para cá há pouco tempo.
- Viemos por causa do trabalho - disse Charlotte.
- Do seu ou do do seu marido?
- Não sou casada - disse ela. - Sou a nova chefe de pastelaria do Capers.
- É daí que a conheço. Li um artigo sobre si naquela revista. Charlotte corou.
- Não acredite em tudo o que lê...
- Devia estar orgulhosa! Eu nem sequer sei preparar as misturas para bolos da Betty Crocker sem as estragar. Felizmente, isso não faz parte do meu trabalho.
- O que faz?
- Sou obstetra.
- Bem, isso vence-me de caras - disse Charlotte. - com o meu trabalho, as pessoas ganham peso. com o seu, perdem-no.
Emma enfiou o dedo num buraco do fato.
- O meu fato vai cair porque não sabes coser - acusou ela.
- Não vai cair - suspirei, e depois virei-me para Charlotte. - Estava demasiado ocupada a suturar para coser um fato, por isso colei-lhe as bainhas a quente.
,
- Da próxima vez - disse Charlotte a Emma - eu coso o teu quando coser o da Amélia.
Isso agradava-me - a ideia de que ela já estava a contar com o facto de nos tornarmos amigas. Estávamos destinadas a ser parceiras no crime, mães subversivas que não se ralavam com o que ditavam as convenções. Precisamente nessa altura, a professora enfiou a cabeça no vestiário.
- Amélia? Emma? - disse ela bruscamente. - Estamos todas à vossa espera lá fora!
- Meninas, é melhor despacharem-se. Ouviram o que disse a Eva Braun.
Emma franziu o sobrolho.
- Mamã, ela chama-se Miss Helen. Charlotte riu.
- Partam uma perna3! - disse ela enquanto elas se apressavam a entrar no rinque. - Ou será que isso só funciona se o palco não for feito de gelo?
Não sei se consegue olhar para o passado e encontrar, escondido como os símbolos ocultos de um mapa do tesouro, o caminho que
3. Expressão para desejar boa sorte em palco. (N. da T.)
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indica o nosso destino, mas já tenho pensado muitas vezes nesse momento, na fase de boa sorte de Charlotte. Será que me lembro dela por causa de como nasceste? Ou
será que nasceste assim por causa de eu me lembrar dela?
Rob estava debruçado por cima de mim, com a perna a mover-se entre as minhas enquanto me beijava.
- Não podemos - sussurrei. - A Emma ainda está acordada...
- Ela não vai entrar aqui...
- Não sabes...
Rob escondeu o rosto no meu pescoço.
- Ela sabe que fazemos sexo. Se não, não estaria aqui.
- Gostas de imaginar os teus pais a fazerem sexo? Fazendo uma careta, Rob afastou-se de mim.
- Pronto, isso sem dúvida arruinou o momento. Ri.
- Dá-lhe dez minutos para que adormeça que eu volto a atiçar o fogo.
Deitou a cabeça nos braços, olhando para o tecto.
- Quantas vezes por semana achas que o Sean e a Charlotte o fazem?
- Não sei!
Rob olhou para mim.
- Claro que sabes. As mulheres falam dessas coisas.
- Muito bem, em primeiro lugar, não, não falamos. Em segundo, mesmo que falássemos, eu não ando por aí a pensar em quantas vezes por semana a minha melhor amiga faz sexo com o marido.
- Pois, sim - disse Rob. - Então nunca olhaste para o Sean e pensaste em como seria dormir com ele?
Apoiei-me num cotovelo. -E tu? Ele sorriu.
- O Sean não faz o meu género...
- Muito engraçado - olhei para ele. - A Charlotte? A sério?
- Bem... tu sabes... é só por curiosidade. Até o Gordon Ramsay4 tem de pensar em Big Mães de vez em quando, de passagem.
- Então, eu sou a refeição gourmet requintada e a Charlotte é comida rápida?
- Foi uma metáfora infeliz - admitiu Rob.
4. Chefe de cozinha famoso, detentor de várias estrelas Michelin, com vários programas na televisão. (N. da T.)
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Sean O'Keefe é alto, forte, fisicamente violento - o oposto da estrutura leve de corredor de Rob, das suas mãos cuidadosas de cirurgião, do seu vicio da leitura.
Uma das razões pelas quais me apaixonei por Rob foi o facto de ele parecer estar mais impressionado com a minha mente do que com as minhas pernas. Se é que alguma
vez pensara em como seria estar com uma pessoa como Sean, o impulso devia ter sido rapidamente refreado: passados todos aqueles anos, e depois de todas as conversas
com Charlotte, conhecia-o demasiado bem para achá-lo atraente.
Mas a intensidade de Sean também se notava no seu papel de pai
- é doido pelas filhas; é muito reservado e protector relativamente a Charlotte. Rob é cerebral e não visceral. Como seria ser o alvo de tanta paixão de uma vez?
Tentei imaginar Sean na cama. Usaria calças de pijama, como Rob? Ou não usaria nada?
- Hum - disse Rob. - Não sabia que podias corar até... Puxei os lençóis até ao queixo.
- Para responder à tua pergunta - disse eu - nem sequer tenho a certeza de que seja uma vez por semana. Entre a Willow e o horário de trabalho do Sean, provavelmente
nem sequer estão no mesmo quarto à noite a maior parte das vezes.
Apercebi-me de que era estranho que Charlotte e eu não falássemos sobre sexo. Não por eu ser a melhor amiga dela, mas por ser sua médica - parte do meu questionário
médico incidia sobre se a paciente tinha ou não problemas durante as relações sexuais. Ter-lhe-ia perguntado isso? Ou teria saltado essa parte por parecer demasiado
pessoal fazer essa pergunta a uma amiga em vez de a uma desconhecida? Nessa altura, o sexo era um meio para atingir um fim: um bebé. Mas e agora? Charlotte seria
feliz? Ela e Sean deitar-se-iam na cama a compararem-se comigo e com Rob?
- Bem, imagina. Tu e eu estamos no mesmo quarto à noite - Rob debruçou-se por cima de mim. - E se maximizássemos esse potencial?
- A Emma...
- Agora está perdida em sonhos - Rob puxou-me a camisola do pijama pela cabeça e ficou a olhar para mim. - Por acaso, eu também estou...
Coloquei os braços em volta do pescoço dele e beijei-o devagar.
- Ainda estás a pensar na Charlotte?
- Qual Charlotte? - murmurou Rob e beijou-me também.
Uma vez por mês Charlotte e eu íamos ao cinema e depois a um bar pouco sofisticado chamado Maxie's Padb - um lugar cujo nome me
5. Maxi pad significa toalhete para higiene íntima. (N. da T.)
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dá vontade de rir, dada a conotação ginecológica, embora tenha a certeza de ter passado despercebida ao próprio Maxie, um velho pescador grisalho do Maine que, quando
pedimos Chardonnay pela primeira vez, nos disse que não havia. Mesmo quando os únicos filmes em exibição eram filmes de terror mesmo maus ou comédias de adolescentes,
arrastava Charlotte para sair de casa à noite. Se não o fizesse, havia alturas em que nem sequer saía de casa.
A melhor coisa do Maxie's era o neto dele, Moose, um defesa de futebol americano que fora expulso da faculdade por causa de um escândalo desportivo. Tinha começado a trabalhar no bar do avô há três anos, quando veio para casa para avaliar as suas opções, e nunca mais foi embora. Tinha quase dois metros de altura, era loiro, musculoso e tinha a acuidade mental de uma espátula.
- Aqui tem, minha senhora - disse Moose, colocando uma cerveja pale ale em frente a Charlotte, que mal olhou para ele.
Havia qualquer coisa que não batia certo em Charlotte naquela noite. Tinha tentado cancelar o nosso encontro marcado, mas eu não deixei e nas últimas horas estava distante e distraída. Atribuí o facto a estar preocupada contigo - com o tratamento com pamidronato, as fracturas dos fémures e a cirurgia de fixação por varetas, tinha bastante em que pensar - e eu estava determinada a distraí-la.
- Ele piscou-te o olho - anunciei, assim que Moose virou costas para atender outro cliente.
- Oh, deixa-te disso - disse Charlotte. - Sou demasiado velha para que se metam comigo.
- Os quarenta e quatro anos são os novos vinte e dois.
- Pois, fala comigo quando tiveres a minha idade.
- Charlotte, só tenho menos dois anos do que tu! - ri e bebi um pouco de cerveja. - Meu Deus, somos patéticas. Ele provavelmente está a pensar, "Coitadas daquelas senhoras de meia-idade; o mínimo que posso fazer é fazê-las ganhar o dia fingindo que as acho minimamente sensuais."
Charlotte ergueu a caneca.
- A não sermos casadas com um homem demasiado novo para poder alugar um carro na Hertz.
Fui eu que apresentei a tua mãe ao teu pai. Acho que faz parte da natureza humana, aqueles que são casados não descansam enquanto não encontrarem parceiros para os amigos solteiros. Charlotte nunca se casara - o pai de Amélia era um toxicodependente que tentou recuperar-se durante a gravidez de Charlotte, falhou redondamente e foi para a índia com uma stripper de dezassete anos. Por isso, quando um polícia mesmo muito atraente, sem aliança de
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casamento, me mandou encostar à berma por excesso de velocidade, convidei-o para jantar para que pudesse conhecer Charlotte.
- Não saio com ninguém que não conheça - disse-me a tua mãe.
- Então faz uma pesquisa no Google.
Passados dez minutos ela telefonou-me, muito agitada, porque Sean O'Keefe também era o nome de um pedófilo recentemente em liberdade condicional. Passados dez meses, casou com o outro Sean
O'Keefe.
Observei Moose a empilhar copos atrás do balcão, com a luz a reflectir-se-lhe nos músculos.
- Como vão as coisas com o Sean? - perguntei. - Já conseguiste convencê-lo?
Charlotte ficou sobressaltada, quase derrubando a cerveja.
- A fazer o quê?
- A cirurgia de fixação por varetas da Willow. O que havia de ser?
- Pois - disse Charlotte. - Esqueci-me que te tinha dito.
- Charlotte, falamos todos os dias - olhei para ela com mais atenção. - Tens a certeza de que estás bem?
- Só preciso de uma boa noite de sono - respondeu ela, mas estava a olhar para a cerveja, passando um dedo pela borda do copo até fazê-lo cantar. - Sabes, estive a ler uma coisa no hospital, numa revista. Tinha um artigo sobre uma família que processou o hospital depois de o filho ter nascido com fibrose quística.
Abanei a cabeça.
- Essa mentalidade de colocar as culpas nos outros deixa-me fora de mim. O que é preciso é culpar outra pessoa qualquer para se sentirem melhor.
- Talvez a culpa fosse mesmo de alguém.
- É puro azar. Sabes o que um obstetra diria se um casal tivesse um bebé com FQ? "Oh, tiveram um bebé com um defeito." Não é uma questão de apreciação, é apenas
a constatação de um facto.
- Um bebé com um defeito - repetiu Charlotte. - É isso que achas que me aconteceu?
Às vezes, falo sem pensar - como naquele momento, ao lembrar-me demasiado tarde de que o interesse de Charlotte naquele assunto não era apenas teórico. Senti o calor a inundar-me o rosto.
- Não estava a falar da Willow. Ela é...
- Perfeita? - disse Charlotte em tom de desafio.
Mas és. Fazes a imitação mais engraçada da Paris Hilton que já vi; és capaz de dizer o alfabeto de trás para a frente; as tuas feições são delicadas, como um elfo, como num conto de fadas. Aqueles ossos frágeis são a parte menos importante de ti.
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De repente, Charlotte cedeu.
- Desculpa, não devia ter dito aquilo.
- Não, a sério, a minha boca só devia poder funcionar quando o cérebro estivesse envolvido no processo.
- É que estou exausta - disse Charlotte. - Devia ir-me embora. Quando comecei a levantar-me do banco, ela abanou a cabeça. - Fica aqui, acaba a tua cerveja.
- Deixa-me acompanhar-te até ao carro.
- Já sou uma mulher adulta, Piper. Esquece o que eu disse. Acenei a cabeça. E, estúpida, esqueci.
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Amélia
Ali estava eu na biblioteca da escola, um dos pouco sítios em que era capaz de fingir que a minha vida não era completamente dominada pela tua
OI, quando me deparei com ela: uma fotografia numa revista de uma mulher igualzinha a ti. Era estranho, era como uma daquelas fotografias do FBI em que envelhecem artificialmente uma
criança raptada há dez anos, para podermos reconhecê-la na rua. Tinha os teus cabelos finos e sedosos, o queixo pontiagudo, as pernas curvadas. Já tinha visto outras
crianças com OI e sabia que todas têm características semelhantes, mas aquilo era mesmo caricato.
E ainda mais estranho era o facto de esta senhora ter um bebé ao colo, e estar ao lado de um gigante. Ele tinha o braço em volta dela e sorria na fotografia com
uma saliência do maxilar superior mesmo horrível.
"Alma Dukins", estava escrito no texto mais abaixo, "mede apenas noventa e sete centímetros; o marido, Grady, mede um metro e noventa e três."
- O que estás a fazer? - perguntou Emma.
Era a minha melhor amiga; éramos melhores amigas desde sempre. Depois de todo aquele pesadelo da Disney, quando os miúdos na escola descobriram que tinha passado a noite num lar de acolhimento, ela (a) não me tratou como uma leprosa, e (b) ameaçou bater em quem o fizesse. Naquele momento, apareceu por trás de mim e apoiou o queixo no meu ombro.
- Olha, aquela senhora parece a tua irmã. Acenei com a cabeça.
-Também tem OI.Talvez a Wills tenha sido trocada à nascença. Emma sentou-se na cadeira vazia ao meu lado.
- Esse é o marido dela? O meu pai era capaz de lhe arranjar os dentes na boa - olhou para a revista. - Meu Deus, como é que conseguem sequer fazê-lo?
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- Isso é nojento - disse eu, embora estivesse a pensar o mesmo. Emma fez um balão com a pastilha elástica.
- Acho que toda a gente é da mesma altura quando está na cama disse ela. - Pensei que a Willow não pudesse ter filhos.
Eu também pensava. Acho que nunca ninguém falou contigo sobre isso, porque só tens cinco anos, e acredita que não queria pensar numa coisa tão repulsiva como isto, mas se podias partir um osso ao tossires, como é que um bebé poderia sair de dentro de ti, ou um tu sabes o quê
entrar?
Sei que se quiser ter filhos, um dia poderei tê-los. Mas se tu quiseres ter filhos, não será fácil, embora seja possível. Não é justo, mas por outro lado, no teu caso, o que há de justo?
Não podes patinar. Não podes andar de bicicleta. Não podes esquiar E mesmo quando jogas um jogo físico - como as escondidas - a Mãe costuma insistir para que eu conte até vinte. Finjo ficar furiosa com isso para que não sintas que estás a receber um tratamento especial, mas no fundo sei que está certo - não conseguirias movimentar-te tão depressa como eu, com os teus suportes, muletas ou cadeira de rodas, e demorarias mais tempo a esconder-te. "Amélia, espera!" dizes sempre quando vamos a pé a algum sítio e eu espero, porque sei que há um milhão de outras coisas em que te deixarei para trás.
vou crescer enquanto tu vais ficar do tamanho de uma criança pequena.
vou para a universidade, vou sair de casa, e não terei de preocupar-me com coisas tais como se vou chegar à bomba de gasolina ou aos botões do multibanco.
Talvez encontre um homem que não ache que eu sou um completo desastre, case com ele, tenha filhos e possa andar com eles ao colo sem me preocupar por poder fazer microfracturas na coluna.
Li o texto em letras mais pequenas no artigo da revista:
"Alma Dukins, de 34 anos, deu à luz no dia 5 de Março de 2007 uma bebé saudável. Dukins, que sofre de osteogénese imperfeita do Tipo III, mede noventa e sete centímetros
de altura e pesava dezanove quilos antes de engravidar. Aumentou oito quilos e meio durante a gravidez e a filha, Lulu, nasceu de cesariana às 32 semanas, quando
o pequeno corpo de Alma deixou de poder acomodar o útero dilatado. Pesava dois quilos e media quarenta e dois centímetros à nascença."
Quando brincas com bonecas é como se estivesses a representar num palco. A Mãe diz que eu também costumava fazer isso, embora só me lembre de desmembrar as minhas e de lhes cortar os cabelos. Às vezes
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apanho a mãe a observar-te a enrolar o braço do bebé improvisado, em gesso, e é como se uma nuvem de tempestade lhe ensombrasse o rosto - provavelmente pensa que o mais provável é que não venhas a ter um bebé a sério e, ao mesmo tempo, fica aliviada por não teres de saber o que é ver a tua própria filha partir um milhão de ossos, como ela.
Mas apesar do que a minha mãe pensa, ali estava a prova de que uma pessoa com OI podia ter uma família. Aquela Alma era do Tipo III, como tu. Não conseguia andar
como tu andas - estava presa a uma cadeira de rodas. E, apesar disso, encontrou um marido, com um sorriso pateta e tudo, e teve um bebé.
- Devias mostrar à Willow - disse Emma. - Leva-a. Quem irá reparar?
Então verifiquei para ver se a bibliotecária ainda estava ao computador; a encomendar roupa em Gap.com (tínhamos andado a espiá-la), e depois fingi um ataque de
tosse. Dobrei-me para a frente e enfiei a revista dentro do casaco. Sorri debilmente quando a bibliotecária olhou para mim para se certificar de que não estava a
cuspir um pulmão para o chão nem nada disso.
Emma estava à espera que guardasse a revista para ti, para te mostrar; ou até à Mãe, que um dia podias crescer; casar e ter um filho. Mas eu roubei-a por uma razão completamente diferente. Estás a ver; neste ano ias entrar para a pré-primária. E um dia vais estar no sétimo ano, como eu. E podes estar sentada nesta biblioteca e deparares-te com aquela estúpida revista e veres o que eu vi quando olhei para ela; o espaço entre Alma e o marido, aquele bebé, demasiado grande no colo dela.
Para mim, aquela não parecia uma família feliz. Era um espectáculo de circo, sem a tenda. Por que outra razão estaria numa revista? As famílias normais não aparecem nas notícias.
Na aula de inglês pedi para ir à casa de banho. Ali, arranquei a página da revista e rasguei a fotografia nos pedaços mais pequenos que consegui. Deitei-os pela sanita abaixo. Era o melhor que podia fazer para te proteger.
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Marin
As pessoas pensam na lei como um tribunal virtual consagrado, mas a verdade é que a minha profissão se assemelha muito mais a uma série cómica de má qualidade. Uma
vez representei uma mulher que estava a transportar um peru congelado da Stop-n-Save das redondezas, na véspera da Acção de Graças, quando o peru escorregou através do saco de plástico e lhe fracturou o pé. Processou a Stop-n-Save, mas também incluímos a empresa que fabricava os sacos de plástico, e ela foi para casa - sem muletas, reparem - várias centenas de milhar de dólares mais rica.
Depois houve o caso da mulher que ia para casa às duas da manhã, numa estrada secundária, a cento e trinta quilómetros por hora, quando colidiu com uma camioneta com um atrelado, que andava perdida e estava a fazer inversão de marcha. Teve morte instantânea e o marido queria processar a empresa que fazia os atrelados por estes não terem luzes de lado, para que a sua mulher pudesse vê-lo. Instaurámos um processo de morte por negligência ao condutor da camioneta, alegando perda do cônjuge - e pedimos milhões para compensar o facto de o marido ter perdido a companhia da sua querida mulher. Infelizmente, durante o julgamento, o advogado de defesa revelou que a mulher do meu cliente ia a caminho de casa vinda de um encontro com o amante.
Umas vezes ganhamos, outras vezes perdemos.
Olhando para Charlotte O'Keefe, que estava sentada no meu gabinete agarrada ao telemóvel, tive a certeza de como o caso ia desenrolar-se.
- Onde está a Willow? - perguntei.
- Na fisioterapia - disse Charlotte. - Vai lá estar até às onze.
- E as fracturas? Estão a sarar bem?
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- Estou a fazer figas - respondeu Charlotte.
- Está à espera de um telefonema?
Ela olhou para baixo, como se tivesse ficado admirada por estar a segurar no telemóvel.
- Oh, não, quero dizer, espero que não. Mas tenho de estar sempre contactável se a Willow se magoar.
Sorrimos educadamente uma para a outra.
- Deveríamos... esperar mais um pouco pelo seu marido?
- Bem - disse ela, corando. - Ele não virá ter connosco hoje. Para ser sincera, quando Charlotte me telefonou para marcar
uma reunião e falar sobre representação legal, fiquei surpreendida. Sean O'Keefe deixara bem clara a sua opinião quando saiu intempestivamente do gabinete de Bob.
O telefonema dela indicava que ele se acalmara o suficiente para avançar com a litigação, mas agora olhando para Charlotte - estava a começar a ter um mau pressentimento.
- Mas ele quer mesmo instaurar um processo legal, não quer? Ela remexeu-se na cadeira.
- Não percebo porque não posso fazer isso sozinha.
- Para além da resposta óbvia: que o seu marido vai ficar a saber mais tarde ou mais cedo, existe uma razão legal. A senhora e o seu marido são ambos responsáveis
por criarem e cuidarem da Willow. Digamos que a senhora contrata um advogado por sua iniciativa e faz um acordo com o médico, e depois é atropelada por um carro
e morre. O seu marido pode, por sua vez, processar o médico por não ter participado no acordo e, além disso, não ilibar o médico de futuras responsabilizações. Por causa disso, qualquer arguido irá insistir : para que, qualquer acordo a que se chegue ou sentença no julgamento, inclua ambos os pais. O que implica que, mesmo que o sargento O'Keefe não queira participar neste processo legal, vai ser implicado - ou seja vai ser implicado no processo legal - para que não haja litigação
no futuro.
Charlotte franziu o sobrolho.
- Compreendo.
- Isso vai ser um problema?
- Não - disse ela. - Não, não vai ser. Mas... não temos dinheiro para contratar um advogado. Mal nos chega para viver, com tudo o que a Willow precisa. É por isso... é por isso que estou aqui hoje para falar sobre o processo legal.
Todos os escritórios de advocacia - incluindo o de Robert Ramirez - dão início a um caso com uma análise para avaliar os custos e os benefícios. Foi por isso que demorámos tanto tempo a
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contactar os O'Keefe: tinha de verificar a validade da alegação junto de especialistas, tinha de proceder às diligências necessárias para verificar os processos
semelhantes a este e ver quais foram as indemnizações. Logo que soubesse que a estimativa de indenização pelo menos cobriria os custos do tempo que gastaríamos
e os honorários dos especialistas, telefonava aos nossos potenciais futuros clientes e dizia-lhes que a sua queixa era válida.
- Não tem de preocupar-se com os honorários dos advogados - disse num tom suave. - Faria parte do acordo judicial. No entanto, realisticamente, deve saber que na maioria dos processos por negligência médica no diagnóstico pré-natal se chega a acordo judicial fora do tribunal com uma indemnização menor do que a que um júri
concederia, porque as companhias de seguros não querem ser pressionadas. Dos casos que vão realmente a tribunal, em setenta e cinco por cento das vezes a decisão é a favor do arguido. No seu caso em particular, que se baseia na má interpretação de uma ecografia, pode não apelar ao júri: as ecografias não constituem provas muito convincentes em tribunal. E ficará sujeita a um considerável escrutínio do público. Acontece sempre que alguém instaura um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal.
Ela olhou para mim.
- Quer dizer que as pessoas vão pensar que faço isto pelo dinheiro.
- Bem - disse simplesmente. - E não é?
Os olhos de Charlotte encheram-se de lágrimas.
- Faço isto pela Willow. Fui eu que a pus neste mundo, por isso compete-me a mim fazer com que ela sofra o mínimo possível. Isso não me transforma em nenhum monstro. - Encostou os dedos aos cantos dos olhos. - Ou transforma?
Rangi os dentes e dei-lhe uma caixa de Kleenex. Bem, e essa não é a questão fundamental?
Era provável que, quando este processo legal chegasse ao tribunal, tivesses idade suficiente para compreender perfeitamente as implicações daquilo que a tua mãe estava a fazer - como um dia eu compreendi, quando me falaram acerca da minha adopção. Sabia como era saber que a nossa própria mãe não nos quisera. Por acaso, passei toda a minha infância a inventar desculpas para ela. Devaneio I: Estava desesperadamente apaixonada por um rapaz que a engravidara, e a família não conseguiu suportar
a mancha da vergonha, por isso enviaram-na para a Suíça e disseram a toda a gente que estava num colégio interno quando, em vez disso, estava a dar-me à luz. Devaneio
2: Ia para as Forças de Manutenção de Paz para salvar o
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mundo quando descobriu que estava grávida - e percebeu que tinha de colocar as necessidades dos outros acima do seu próprio desejo de ter um bebé. Devaneio 3: Era
actriz, a menina querida da América, que perderia a audiência com valores familiares tradicionais do midwest se se soubesse que era mãe solteira. Devaneio 4: Ela
e o meu pai eram muito pobres, produtores de leite que queriam que a filha tivesse uma vida melhor do que aquela que podiam oferecer-lhe.
Calculei que houvesse um momento seminal em que uma mulher percebesse o que significava ser mãe. Para a minha mãe verdadeira, talvez tivesse sido quando me entregou
a uma enfermeira e se despediu. Para a mãe que me criou, foi quando me fez sentar-me à mesa da cozinha e me disse que eu tinha sido adoptada. Para a tua mãe, era tomar a decisão de instaurar este processo legal, apesar das consequências públicas e privadas. Parecia-me que ser uma boa mãe significava correr o risco de perder o próprio filho.
- Queria tanto ter outro bebé - disse Charlotte num tom suave.
- Queria ter essa experiência, com o Sean. Queria que nós a levássemos ao parque e a empurrássemos nos baloiços. Queria fazer biscoitos com ela e assistir às peças de teatro da escola. Queria ensinar-lhe a montar a cavalo e a fazer esqui aquático. Queria que ela cuidasse de mim quando eu fosse velha - disse ela, olhando para mim. - E não ao contrário.
Senti um arrepio na nuca. Não queria acreditar que uma pessoa que tivesse posto um bebé neste mundo desistisse assim tão facilmente quando as coisas se tornavam difíceis.
- Acho que a maioria dos pais sabe que também há coisas más, juntamente com as boas - disse pausadamente.
- Não era ingénua: já tinha uma filha. Sabia que teria de tomar conta da Willow quando ela se magoasse. Sabia que teria de levantar-me a meio da noite quando tivesse pesadelos. Mas não sabia que ela ia estar magoada semanas a fio, anos a fio. Não sabia que ia estar acordada com ela todas as noites. Não sabia que ela nunca ficaria melhor.
Olhei para baixo, fingindo endireitar alguns papéis. E se a minha mãe tivesse abdicado de mim por eu não estar à altura daquilo que ela esperava?
- E a Willow? - disse eu, fazendo, sem rodeios, de advogada do diabo. - É uma menina inteligente. Como acha que ela lidará com o facto de a mãe afirmar que ela nunca
devia ter nascido?
Charlotte retraiu-se.
- Ela sabe que isso não é verdade - disse ela. - Nunca conseguiria imaginar a minha vida sem ela.
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Surgiu um sinal de aviso na minha cabeça.
- Pare imediatamente. Não diga isso. Nem sequer pode insinuá-lo. Se instaurar este processo legal, Sr.a O'Keefe, terá de ser capaz de afirmar, sob juramento, que
se soubesse da doença da sua filha mais cedo, se tivesse tido escolha, teria terminado a gravidez. - Fiquei à espera até ela olhar para mim. - Isso vai ser um problema?
Desviou os olhos, concentrando-se em qualquer coisa do outro lado da janela.
- É possível sentirmos falta de alguém que nunca tenhamos conhecido?
Alguém bateu à porta e a recepcionista espreitou.
- Desculpe interromper, Marin - disse Briony - mas o cliente das onze horas já está aqui.
- Onze? - disse Charlotte, pondo-se de pé num salto. - Estou atrasada. A Willow vai entrar em pânico. - Agarrou na mala, colocou-a ao ombro, e saiu apressadamente do meu gabinete.
- Entrarei em contacto consigo - disse, quando ela ia a sair. Só naquela tarde, quando comecei a pensar no que Charlotte
O'Keefe me dissera, é que me apercebi de que respondera à minha pergunta sobre aborto com outra pergunta.
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Sean
Às dez horas de sábado à noite, tornou-se claro que eu ia para o inferno.
As noites de sábado são sempre as que nos fazem lembrar que todas as cidades da Nova Inglaterra, tão tranquilas, de postal ilustrado, têm dupla personalidade, que os tipos sorridentes e saudáveis que vemos na revista Yankee podem desmaiar de bêbedos num bar perto de casa. Nas noites de sábado, os jovens solitários tentam enforcar-se nos varões dos roupeiros dos seus dormitórios e as raparigas do liceu são violadas por rapazes da faculdade.
Também é nas noites de sábado que apanhamos uma pessoa com o carro aos ziguezagues na estrada e torna-se só uma questão de tempo até o condutor embriagado embater em alguém. Naquela noite estava estacionado atrás do parque de estacionamento de um banco quando um Camry branco passou devagar, praticamente a pisar a linha amarela
tracejada. Liguei as luzes azuis intermitentes e segui o condutor, esperando até o carro encostar à berma.
Saí e aproximei-me da janela do condutor.
- Boa noite - disse eu - sabe porque... - mas antes que pudesse terminar de pedir ao condutor que me dissesse porque achava que o tinha mandado parar, a janela abriu-se
e dei por mim a olhar para o nosso padre.
- Oh, Sean, é você - disse o padre Grady. Tinha uma cabeleira branca que Amélia dizia que era o seu penteado à Einstein, e usava o colarinho clerical. Os olhos estavam vidrados e brilhantes.
Hesitei.
- Padre, vou ter de ver a sua carta de condução e o registo do automóvel...
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- Não há problema - disse o padre, procurando no porta-luvas. - Está só a cumprir o seu dever. - Vi-o esgravatar, deixando cair a carta de condução três vezes antes
de conseguir entregar-ma. Olhei para dentro do carro mas não vi garrafas nem latas.
- Padre, estava a andar aos ziguezagues na estrada.
- Estava?
Senti o cheiro a álcool no hálito dele.
- Tomou alguma bebida hoje à noite, padre?
- Não, não tomei...
Os padres não podiam mentir, pois não?
- Importa-se de sair do carro?
- Claro, Sean - saiu atrapalhadamente pela porta e apoiou-se no capo do Camry, de mãos nos bolsos. - Ultimamente não tenho visto a sua família na missa...
- Padre, o senhor usa lentes de contacto?
- Não...
Era esse o início do teste do nistagma, um movimento lateral involuntário do globo ocular que podia sugerir embriaguez.
- vou pedir-lhe que siga esta luz - disse eu, tirando uma pequena lanterna do bolso e segurando-a a alguns centímetros do rosto dele, um pouco acima do nível dos olhos. - Siga-a apenas com os olhos, não mexa a cabeça - acrescentei. - Percebeu?
O padre Grady acenou com a cabeça. Verifiquei se o tamanho das pupilas era igual e se seguia o feixe de luz, assinalando um movimento irregular e um nistagma final enquanto movia o feixe em direcção à orelha esquerda.
- Obrigado, padre. Agora, pode apoiar-se apenas no pé direito, assim? - demonstrei, e ele levantou o pé esquerdo. Vacilou mas manteve-se de pé. - Agora no esquerdo - disse eu e, desta vez, inclinou-se para a frente.
- Muito bem, padre, só mais uma coisa: pode caminhar com o calcanhar encostado à ponta do pé? - mostrei-lhe como devia fazer e vi-o tropeçar nos próprios pés.
Bankton era uma cidade tão pequena que não andamos acompanhados por um colega. Provavelmente podia ter deixado o padre Grady ir embora; ninguém ficaria a saber e talvez ele até intercedesse por mim no paraíso. Mas deixá-lo ir também implicaria mentir a mim próprio - e com certeza isso seria tão grave como um pecado. Quem poderia andar nas estradas que conduziam a sua casa... Um adolescente a caminho de casa vindo de um encontro amoroso? Um pai de regresso de uma viagem de negócios fora da cidade? Uma mãe com um filho doente, dirigindo-se para o
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hospital? Não era o padre Grady que eu estava a tentar salvar, eram as pessoas que ele podia magoar no estado em que estava.
- Detesto ter de fazer isto, padre, mas vou ter de detê-lo por conduzir sob efeito de álcool - li-lhe os direitos e conduzi-o delicadamente para o assento de trás do carro da polícia.
- E o meu carro?
- Será rebocado. Pode ir buscá-lo amanhã - disse eu.
- Mas amanhã é domingo.
Estávamos apenas a oitocentos metros da esquadra, o que era uma bênção, porque acho que não ia ser capaz de fazer conversa de circunstância com o meu padre depois de tê-lo detido. Na esquadra, expliquei os meandros do consentimento inerente e disse ao padre Grady que queria que ele fizesse um teste de alcoolemia.
- Tem o direito de submeter-se a outro teste ou testes semelhantes feitos por uma pessoa à sua escolha - disse eu. - Tem a possibilidade de requerer este teste adicional, se quiser. Se não permitir que lhe seja feito um teste por indicação do agente da autoridade, pode ficar sem a carta de condução por um período de cento e oitenta dias se for declarado culpado de conduzir sob efeito de álcool.
- Não, Seanie, confio em si - disse o padre Grady. Não fiquei surpreendido quando o resultado foi 0,15.
Visto que o meu turno estava a terminar, ofereci-me para levá-lo a casa. A estrada serpenteava à minha frente enquanto passava pela igreja e subia uma colina em
direcção a uma casinha branca que servia de residência ao padre. Estacionei na via de acesso e ajudei-o a caminhar relativamente a direito até à porta.
- Esta noite estive num velório - disse ele, dando a volta à chave na fechadura.
- Padre - suspirei. - Não precisa de explicar.
- Era um rapaz: só tinha vinte e seis anos. Foi um acidente de moto na terça-feira passada, provavelmente sabe o que se passou. Sabia que tinha de conduzir para casa. Mas ali estava a mãe, num pranto, e os irmãos, completamente destroçados: e eu queria deixar-lhes um tributo, em vez de toda aquela perda.
Não queria ouvir. Não precisava dos problemas de outra pessoa para me preocupar. Mas dei por mim a acenar com a cabeça para o padre, apesar disso.
- Por isso fizemos alguns brindes, foram alguns shots de whiskey - disse o padre Grady. - Não perca o sono por causa disto, Sean. Sei perfeitamente que fazer por
outra pessoa o que é certo pode, por vezes, implicar fazer o que não se quer.
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A porta abriu-se à nossa frente. Nunca tinha estado na casa do padre - era acolhedora e pequena, com salmos emoldurados pendurados nas paredes a servir de decoração,
uma taça de cristal cheia de MM's em cima da mesa da cozinha e uma faixa dos Patriots atrás do sofá.
- vou deitar-me - murmurou o padre Grady, e estendeu-se no sofá.
Descalcei-lhe os sapatos e tapei-o com um cobertor que tinha encontrado num armário.
- Boa noite, padre. Entreabriu os olhos.
- Vemo-nos amanhã na missa?
- Claro - disse eu, mas o padre Grady já estava a ressonar.
Quando disse a Charlotte que queria ir à igreja na manhã seguinte, ela perguntou-me se estava a sentir-me bem. Habitualmente tem de arrastar-me para ir à missa, mas uma parte de mim queria saber se o padre Grady ia dar um sermão sobre o nosso encontro da noite anterior. "Pecados dos padres, era o que devia chamar-lhe", pensei naquele momento, e soltei um risinho abafado. Ao meu lado, no banco da igreja, Charlotte beliscou-me.
- Chiu - disse ela baixinho.
Uma das razões que me fazia não gostar de ir à igreja eram os olhares. Piedade e pena são palavras demasiado parecidas para meu gosto. Ouvia uma senhora de cabelos azulados dizer-me que estava a rezar por ti, sorria e agradecia, mas por dentro ficava furioso. Quem lhe pediu para rezar por ti? Não percebia que eu já rezava o suficiente?
Charlotte dizia que oferecermo-nos para ajudar não queria dizer assumirmos a fraqueza de outra pessoa, e que um agente da policia devia saber isso. Mas caramba, se é que querem mesmo saber o que penso quando pergunto a um forasteiro se precisa de indicações ou quando dou o meu cartão a uma mulher maltratada pelo marido e lhe digo para me telefonar se precisar de ajuda, é o seguinte: recomponha-se e arranje maneira de sair da confusão onde se meteu. Em minha opinião, há uma grande diferença entre um pesadelo em que acordamos inesperadamente e um pesadelo que nós próprios criámos.
O padre Grady retraiu-se quando o organista começou a tocar uma versão particularmente entusiástica de um hino e eu deixei de sorrir. Em vez de deixar um copo de água ao pobre homem, devia ter-lhe juntado um remédio para a ressaca.
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Atrás de nós, um bebé começou a chorar. Mesmo que fosse condenável, era bom ver toda a gente fixar-se noutra família que não na nossa. Ouvi os sussurros furiosos dos pais a decidirem quem deveria levar o bebé para fora da igreja.
Amélia estava sentada do outro lado. Deu-me uma cotovelada e pediu uma caneta por gestos. Enfiei a mão no bolso e dei-lhe uma esferográfica. Virando a palma da mão para cima, fez sete tracinhos e uma forca. Sorri e tracei a letra A na coxa dela.
Escreveu: _A_A_A_
M, escrevi com o dedo.
Amélia abanou a cabeça.
T?
_ATA_A_
Tentei o L, o P e o R, mas não tive sorte. S?
Amélia sorriu e escreveu no quebra-cabeças: SATA_AS
Ri alto, e Charlotte olhou para nós, num aviso. Amélia agarrou na caneta e escreveu o N e depois estendeu a mão para eu poder ver. Precisamente nessa altura, disseste
bem alto:
- O que é Satanás? - e a tua mãe ficou muito vermelha, pegou-te ao colo, e apressou-se a sair lá para fora.
Passado um momento, Amélia e eu também saímos. Charlotte estava sentada contigo nos degraus da igreja, com o bebé que tinha estado a chorar durante a missa toda,
ao colo.
- O que estão aqui a fazer? - perguntou.
- Achei que estávamos mais seguros quando cair o relâmpago
- sorri para o bebé, que estava a meter erva na boca. - Arranjámos outro pelo caminho?
- A mãe está na casa de banho - disse Charlotte. - Amélia, toma conta da tua irmã e do bebé.
- E pagam-me para isso?
- Nem acredito que tenhas coragem para perguntar isso depois do que acabaste de fazer na missa - Charlotte levantou-se.
- Vamos dar um passeio.
Acertei o passo com o dela. Charlotte sempre cheirou a biscoitos - mais tarde vim a saber que é baunilha, que costuma esfregar nos pulsos e atrás das orelhas, um
perfume próprio para uma chefe de pastelaria. É em parte por causa disso que a amo. Eis uma dica para as senhoras: para todas as que pensam que só queremos uma rapariga
como a Angelina Jolie, de cotovelos ossudos e angulosa; a verdade é que preferimos aconchegar-nos junto a uma mulher como Charlotte - que é macia quando a abraçamos;
que pode ter uma mancha de farinha na camisola o dia todo sem reparar nem se
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ralar com isso, mesmo quando vai a uma reunião da Associação de Pais; uma mulher que não se parece com umas férias exóticas mas é o lar a que ansiamos regressar.
- Sabes uma coisa? - disse alegremente, colocando um braço à volta dela. - A vida é óptima. Está um dia lindo. Estou com a minha família, não vou ficar naquela igreja que parece uma gruta...
- E tenho a certeza de que o padre Grady também gostou bastante de ouvir aquela intervençãozinha da Willow.
- Acredita, o padre Grady tem mais com que se preocupar disse eu.
Tínhamos atravessado o parque de estacionamento, dirigindo-nos para um campo cheio de cravos.
- Sean - disse Charlotte - tenho de confessar-te uma coisa.
- Então talvez o melhor seja voltares lá para dentro.
- Fui falar outra vez com a advogada. Parei de andar.
- O guê?
- Fui falar com a Marin Gates sobre instaurar um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal.
- Meu Deus, Charlotte...
- Sean! - lançou um olhar para a igreja.
- Como foste capaz de fazer isso? Nas minhas costas, como se a minha opinião não importasse?
Ela cruzou os braços.
- Então e a minha opinião? Não é importante para ti?
- Claro que sim, mas estou-me nas tintas para a opinião de um advogado aproveitador. Não percebes o que eles estão a fazer? Querem dinheiro, pura e simplesmente.
Não querem saber de ti, nem de mim, nem da Willow; não se ralam com quem vão destruir ao longo do processo. Somos apenas meios para atingir um fim - aproximei-me um pouco mais dela. - A Willow tem alguns problemas, mas quem é que não os tem? Há miúdos hiperactivos, miúdos que à noite saem de casa para fumar e beber e miúdos que apanham tareias na escola por gostarem de matemática: não vês esses pais a tentarem culpar outras pessoas para poderem receber dinheiro.
- Como é que estavas disposto a processar o Disney World e metade da administração pública da Florida em troca de dinheiro? Qual é a diferença?
Levantei o queixo.
- Eles tomaram-nos por idiotas.
- E se os médicos tiverem feito o mesmo? - argumentou Charlotte. - E se a Piper tiver cometido um erro?
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- Então cometeu um erro! - encolhi os ombros. - E isso teria alterado o resultado? Se tivesses sabido sobre todas as fracturas, as idas às urgências, tudo o que teríamos de fazer pela Willow, tê-la-ias desejado menos?
Ela abriu a boca, e depois fechou-a resolutamente. Fiquei deveras assustado com isso.
- E o que tem se ela tiver de ser engessada imensas vezes? disse eu, agarrando na mão de Charlotte. - Também sabe o nome de todos os ossos do corpo humano, detesta amarelo e disse-me ontem à noite que quer ser apicultora quando crescer. Ela é a nossa menina, Charlotte. Não precisamos de ajuda. Já lidamos com esta situação há cinco anos; vamos continuar a lidar com ela sozinhos.
Charlotte afastou-se de mim.
- Qual nós, Sean? Tu vais trabalhar. Sais com os teus amigos para jogar póquer. Até parece que estás com a Willow vinte e quatro horas por dia, mas não fazes ideia do que isso é.
- Então contratamos uma enfermeira. Uma empregada...
- E vamos pagar-lhe como? - ripostou Charlotte. - E já que falamos nisso, como vamos poder pagar um carro novo suficientemente grande para poder transportar a cadeira de rodas da Willow e as muletas, visto que o nosso já está com trezentos e vinte e dois mil quilómetros? Como vamos pagar as cirurgias dela, o que não estiver coberto pelo seguro? Como vamos poder garantir que a casa dela tenha uma rampa para deficientes e um lava-loiça suficientemente baixo para uma cadeira de rodas?
- Estás a afirmar que não sou capaz de sustentar a minha própria filha? - disse eu, levantando a voz.
De repente, a fúria abandonou Charlotte.
- Oh, Sean. És o melhor pai do mundo. Mas... não és mãe.
Ouviu-se um guincho e - por instinto - Charlotte e eu começámos a correr pelo parque de estacionamento, à espera de encontrar Willow toda torta no chão com um osso fracturado a sair-lhe pela pele. Em vez disso, Amélia estava a pegar no bebé a chorar, afastado dela, com uma mancha na frente da camisola.
- Vomitou para cima de mim! - lamuriou-se. A mãe do bebé saiu da igreja a correr.
- Lamento imenso - disse-nos ela, enquanto Willow estava sentada no chão a rir do azar da irmã. - Acho que está a ficar doente...
Charlotte aproximou-se e tirou o bebé a Amélia
- Talvez seja um vírus. Não se preocupe. Acontece. Afastou-se quando a mulher deu algumas toalhitas de bebé a
Amélia, para poder limpar-se.
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- Esta conversa acabou - murmurei a Charlotte. - Ponto final. Charlotte balançou o bebé ao colo.
- Claro, Sean - disse ela, com demasiada facilidade. - Como queiras.
Às seis da tarde daquele dia, Charlotte tinha apanhado o que o bebé tinha, e estava mesmo doente. A vomitar sem parar, fechara-se na casa de banho. Eu devia fazer o turno da noite, mas era bastante óbvio que isso não ia acontecer.
- A Amélia precisa de ajuda para fazer os trabalhos de casa de ciências - murmurou Charlotte, limpando o rosto com uma toalha húmida. - E as meninas precisam de jantar...
- Eu trato disso - disse eu. - De que mais precisas?
- De morrer? - gemeu Charlotte, e afastou-me da frente para se ajoelhar outra vez diante da sanita.
Saí da casa de banho, fechando a porta atrás de mim. Lá em baixo, estavas sentada no sofá da sala a comer uma banana.
- Vais ficar sem fome - disse eu.
- Não estou a comê-la, papá. Estou a consertá-la.
- A consertá-la - repeti. Em cima da mesa à tua frente estava uma faca, em que não devias mexer. Procurei não me esquecer de ralhar com a Amélia por te ter dado uma. Havia um corte mesmo no meio da banana.
Abriste a tampa de um estojo de costura que tínhamos trazido do quarto do hotel na Florida, tiraste uma agulha já com linha e começaste a coser o corte na casca de banana.
- Willow - exclamei -, o que estás a fazer? Olhaste para mim, pestanejando.
- Uma cirurgia.
Fiquei a ver-te dar alguns pontos para me certificar de que não te espetavas na agulha, e depois encolhi os ombros. Longe de mim levantar obstáculos à ciência.
Na cozinha, Amélia estava debruçada por cima da mesa com marcadores, cola e uma folha de cartolina.
- Podes dizer-me o que está a Willow ali a fazer com uma faca? - perguntei.
- Ela pediu-me uma.
- Se ela te tivesse pedido uma serra eléctrica, tê-la-ias ido buscar à garagem?
- Bem, isso seria um bocado drástico para cortar uma banana, não achas? - olhando para o projecto, Amélia suspirou. - Isto é mesmo uma chatice. Tenho de fazer um jogo de tabuleiro sobre o
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aparelho digestivo, e toda a gente vai gozar comigo porque todos sabemos onde é que o aparelho digestivo acaba.
- Era engraçado que usasses essa palavra - disse eu.
- Isso é nojento, pai.
Comecei a tirar panelas e frigideiras que estavam debaixo da bancada e decidi-me por uma frigideira.
- O que acham de comermos panquecas ao jantar? - embora não houvesse escolha; era a única coisa que eu sabia preparar, para além de sandes de manteiga de amendoim
e geleia.
- A mãe fez panquecas ao pequeno-almoço - queixou-se Amélia.
- Sabem que os pontos absorvíveis são feitos de tripas de animais? - gritaste.
- Não, e agora acho que preferia não saber... Amélia passou um tubo de cola pela cartolina.
- A mãe já está melhor?
- Não, querida.
- Mas ela prometeu que me ajudava a desenhar o esófago.
- Eu posso ajudar - disse.
- Não sabes desenhar, pai. Quando jogamos ao Pictionary fazes sempre uma casa, mesmo quando não tem nada a ver com a resposta.
- Bem, será que desenhar um esófago é assim tão difícil? É um tubo, não é? - procurei uma caixa de preparado Bisquick.
Ouviu-se um baque; a faca rebolou para debaixo do sofá. Estavas a contorcer-te desconfortavelmente.
- Espera aí, Wills, eu vou buscar - gritei.
- Já não preciso dela - disseste, mas não paraste de contorcer-te.
Amélia suspirou.
- Willow, deixa de ser um bebé antes que faças chichi nas cuecas.
Olhei para a tua irmã e depois para ti.
- Precisas de ir à casa de banho?
- Está a fazer aquela cara que costuma fazer quando está aflita...
- Amélia, já chega - fui para a sala e agachei-me ao pé de ti.
- Querida, não precisas de ficar com vergonha.
Cerraste os lábios.
- Quero que a mamã me leve.
- A mamã não está aqui - disse Amélia bruscamente. Levantei-te do sofá para te levar à casa de banho de baixo.
Tinha acabado de passar as tuas pernas engessadas pela porta quando disseste:
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- Esqueceste-te dos sacos do lixo.
Charlotte contara-me como forrava o gesso com eles antes de ires à casa de banho. Ao longo de todo aquele tempo em que estiveste engessada, não tinha precisado de
fazer isso - tinhas vergonha que eu te puxasse as calças para baixo. Estendi a mão pela ombreira da porta para alcançar a máquina de secar onde Charlotte escondera
uma caixa de sacos do lixo.
- Pronto - disse eu. - É a primeira vez que faço isto, por isso tens de me dizer o que devo fazer.
- Tens de jurar que não espreitas - disseste.
- Juro.
Desataste o nó que segurava as boxers gigantescas que vestias por cima do gesso, e eu levantei-te para que caíssem pelas ancas. Quando as tirei, queixaste-te:
- Olha aqui para cima!
- Está bem - fixei resolutamente os meus olhos nos teus, tentando tirar-te os calções sem ver o que estava a fazer. Depois levantei o saco do lixo, que ia ter de
ser entalado junto à virilha. Queres ser tu a fazer isto? - perguntei, corando.
Segurei-te debaixo dos braços enquanto te esforçavas por forrar o gesso com o plástico.
- Já está - disseste, e coloquei-te por cima da sanita.
- Não, mais para trás - disseste, e eu ajeitei-te e esperei. E esperei.
- Willow - disse eu - vá lá, faz chichi.
- Não consigo. Estás a ouvir.
- Não estou a ouvir...
- Estás sim.
- A tua mãe ouve...
- Isso é diferente - disseste, e começaste a chorar.
Assim que as comportas se abriam, abriam-se completamente. Olhei para a sanita e começaste a chorar ainda mais.
- Disseste que não ias espreitar!
Virei os olhos para norte, equilibrei-te no braço esquerdo e alcancei o papel higiénico com o direito.
- Pai! - gritou Amélia. - Acho que está qualquer coisa a queimar-se...
- Oh, merda - resmunguei, lembrando-me apenas fugazmente do boião dos palavrões. Meti-te um bocado de papel na mão. - Despacha-te, Willow - disse eu, e depois puxei
o autoclismo.
- Tenho de lavar as mãos - soluçaste.
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- Depois - disse rispidamente, e levei-te outra vez para o sofá, atirando-te os calções para o colo antes de ir a correr para a cozinha.
Amélia estava de pé em frente ao fogão, onde as panquecas estavam carbonizadas.
- Desliguei o lume - disse ela, tossindo por causa do fumo.
- Obrigado.
E ela acenou com a cabeça e estendeu a mão para a bancada para ir buscar... Aquilo seria o que eu pensava? Amélia sentou-se e agarrou na pistola de cola. Tinha colado cerca de trinta das minhas fichas de póquer profissionais em volta das bordas da cartolina.
- Amélia! - gritei. - Essas são as minhas fichas de póquer!
- Tens imensas. Só precisava de algumas...
- E eu disse-te que podias usá-las?
- Não me disseste que não podia - disse Amélia.
- Papá - chamaste da sala - as minhas mãos!
- Pronto - disse em voz baixa. - Pronto - contei até dez, e depois levei a frigideira para junto do caixote do lixo para raspar o conteúdo. A borda de metal roçou-me no pulso e deixei cair a frigideira.
- Filha da mãe - gritei, e abri a torneira da água fria colocando o braço debaixo dela.
- Quero lavar as minhas mãos - lamuriaste-te. Amélia cruzou os braços.
- Estás a dever vinte e cinco cêntimos à Willow - disse ela.
Às nove horas vocês já estavam a dormir, as panelas já estavam lavadas e a máquina de lavar a loiça zumbia na cozinha. Dei uma volta pela casa, apaguei as luzes e depois entrei suavemente no quarto às escuras. Charlotte estava deitada com um braço por cima da cabeça.
- Não tens de andar em bicos de pés - disse ela. - Estou acordada.
Deitei-me ao lado dela.
- Sentes-te melhor?
- Diminuí um tamanho de roupa. Como estão as meninas?
- Bem. Embora lamente dizer que o paciente da Willow não sobreviveu.
-Ha?
- Nada - virei-me de barriga para cima. - Comemos sandes de manteiga de amendoim e geleia ao jantar.
Ela deu-me umas palmadinhas no braço, distraidamente.
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- Sabes o que adoro em ti? -Hum?
- Fazes-me parecer tão competente em comparação contigo... Coloquei os braços atrás da cabeça e fiquei a olhar para o
tecto.
- Já não fazes bolos.
- Pois, mas não queimo as panquecas - disse Charlotte, sorrindo um pouco. - A Amélia denunciou-te quando veio dizer boa noite.
- Estou a falar a sério. Lembras-te de como costumavas fazer leite-creme, petit fours e éclairs de chocolate?
- Acho que outras coisas se tornaram mais importantes - respondeu Charlotte.
- Costumavas dizer que um dia terias a tua própria pastelaria. Querias que se chamasse Sílaba...
- Syllabub - corrigiu ela.
Podia não me lembrar bem do nome, mas sabia o que significava porque te tinha perguntado: syllabub é a sobremesa inglesa mais antiga, feita quando as leiteiras deitavam o leite ainda morno tirado directamente das vacas para uma celha com cidra ou xerez. Era parecido com o eggnog, disseste-me, e prometeste que a farias para eu provar, e na noite em que fizeste, mergulhaste um dedo no creme doce e passaste-o no meu peito, limpando o rasto com beijos.
- É o que acontece aos sonhos - disse Charlotte. - A vida mete-se no caminho.
Sentei-me, puxando um ponto da colcha.
- Queria ter uma casa, um quintal, um bando de filhos. Umas férias de vez em quando. Um bom emprego. Queria ser treinador de softball, levar as minhas filhas a esquiar e não saber o nome de todos os malditos médicos do serviço de urgências do Hospital Regional de Portsmouth - virei-me para ela. - Posso não estar sempre com ela,
mas quando ela sofre uma fractura, Charlotte, eu sinto. Juro que sim. Faria tudo por ela.
Ela virou-se de frente para mim.
- A sério?
Sentia o peso no colchão: o processo legal, a verdade óbvia a ser ignorada.
- Parece... feio. Parece que estamos a dizer que não a amamos, por ela ser... como é.
- É por a amarmos, por a desejarmos que jamais pensámos nisto como uma prioridade - disse Charlotte. - Não sou estúpida,
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Sean. Sei que as pessoas vão falar, dizer que quero uma indemnização choruda. Sei que vão pensar que sou a pior mãe do mundo, a mais egoísta, o que quiseres. Mas
não me interessa o que digam sobre mim, interessa-me a Willow. Quero ter a certeza de que ela vai poder ir para a universidade, viver sozinha e fazer tudo o que sonha fazer. Mesmo que isso implique que toda a gente ache que sou horrível. Será que é assim tão importante o que os outros dizem, quando eu sei porque vou fazê-lo? - Virou-se para mím. vou perder a minha melhor amiga por causa disto - disse ela. Não quero perder-te também.
Quando ela era chefe de pastelaria, sempre me espantou ver Charlotte, tão pequena, a carregar sacas de farinha de vinte e cinco quilos de um lado para o outro. Tinha uma força que ultrapassava largamente o seu tamanho e resistência. Eu vejo o mundo a preto e branco; é por isso que sou um profissional da polícia. Mas, e se aquele processo legal com um nome incómodo fosse, apenas, um meio para atingir um fim? Algo que parecia tão errado por fora poderia revelar-se inegavelmente certo?
A minha mão passou por cima da colcha para cobrir a de Charlotte.
- Não vais perder-me - disse.
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Charlotte
Fim de Maio de 2007
As tuas primeiras sete fracturas ocorreram antes de vires a este mundo. As quatro seguintes ocorreram minutos após o nascimento, quando uma enfermeira te tirou de dentro de mim. Outras nove, quando estavas a ser reanimada no hospital, depois da paragem cardio-respiratória. A vigésima primeira: quando estavas deitada no meu colo e de repente ouvi um estalido. A vigésima segunda foi quando te viraste e bateste com o braço na borda do berço. A vigésima terceira e a vigésima quarta foram fracturas femorais; a vigésima quinta foi uma tíbia; a vigésima sexta uma fractura por compressão da coluna. A vigésima sétima foi ao saltares de um alpendre; a vigésima oitava foi quando uma criança chocou contigo num parque infantil; a vigésima nona foi quando escorregaste numa capa de um DVD que estava em cima do tapete. Ainda não sabemos o que provocou a número trinta. A número trinta e um foi quando Amélia estava aos pulos na cama onde estavas sentada; a trigésima segunda foi quando uma bola de futebol te bateu com demasiada força na perna; a trigésima terceira foi quando descobri os materiais ortopédicos à prova de água e comprei o suficiente
para abastecer um hospital inteiro e que agora estavam guardados na garagem. A trigésima quarta aconteceu enquanto dormias; a trigésima quinta e a trigésima sexta
ocorreram numa queda para a frente na neve que te fez fracturar ambos os braços de uma só vez. A trigésima sétima e a trigésima oitava foram fracturas graves, o perónio e a tíbia que romperam a pele numa festa do Dia das Bruxas de um jardim-de-infância, em que, ironicamente, estavas disfarçada de múmia, cujas ligaduras usei para ligar as fracturas. A trigésima nona ocorreu durante um espirro; a quadragésima e a quadragésima primeira foram costelas
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que fracturaste na beira da mesa da cozinha. A quadragésima segunda foi uma fractura da anca que precisou de uma chapa de metal e seis parafusos. Depois disso deixei de contar, até às do Disney World, que não numerámos, mas demos nomes: Mickey, Donald e Pateta.
Quatro meses depois de te terem engessado, o molde foi aberto. Isso queria dizer que foi partido em dois e preso com molas baratas que se partiram passadas algumas horas, por isso substituí-as por tiras de velcro de cores vivas. Gradualmente, íamos tirando a parte de cima, para poderes sentar-te como uma amêijoa na metade inferior da concha, e poderes fortalecer os músculos do estômago e da barriga das pernas, que se tinham deteriorado. Segundo o Dr. Rosenblad, ficarias umas duas semanas na parte inferior da concha; depois passavas a só dormir lá. Passadas oito semanas, estarias a ir à casa de banho sozinha.
Mas a parte melhor era poderes voltar à escola. Era uma escola privada, que funcionava todas as manhãs durante duas horas na cave de uma igreja. Eras um ano mais velha do que as outras crianças da turma, mas faltavas tanto à escola por causa das fracturas que decidimos que devias repetir o ano - lias como uma criança do sexto ano, mas precisavas de estar com crianças da tua idade por causa do convívio. Não tens muitos amigos - as crianças ou ficavam assustadas com a tua cadeira de rodas e andador, ou, estranhamente, com inveja dos moldes de gesso com que aparecias na escola. Nesse dia, enquanto conduzia em direcção à igreja, olhei pelo espelho retrovisor.
- Então, o que vais fazer primeiro?
- A mesa do arroz - a professora Katie, que para ti estava apenas um pouco abaixo de Jesus na escala de adoração, tinha colocado uma enorme caixa de areia cheia de grãos de arroz coloridos que as crianças podiam deitar em recipientes de vários tamanhos. Adoravas o som que fazia; disseste-me que parecia chuva. - E o pára-quedas.
Era um jogo em que uma criança ia a correr por baixo de um círculo de seda colorida enquanto as outras seguravam nas pontas.
- Terás de esperar algum tempo até poderes fazer isso, Wills disse eu, e virei para o parque de estacionamento. - Um dia de cada vez.
Tirei a cadeira de rodas da parte de trás da carrinha e instalei-te nela, depois empurrei-te pela rampa que a escola acrescentara no Verão anterior, depois de te teres inscrito. Lá dentro, os outros
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alunos estavam a pendurar os casacos nos cacifos; as mães enrolavam pinturas já secas, feitas com os dedos, que estavam penduradas num suporte para roupas.
- Estás de volta! - disse uma mulher, sorrindo para ti. Depois olhou para mim.
- A Kelsey fez a festa de aniversário no fim-de-semana passado: guardou um saco de guloseimas para a Willow. Nós queríamos convidá-la, mas, bom, foi na Cabana da Ginástica e tive receio que ela se sentisse posta de parte.
"Ao contrário de não ser convidada?" pensei. Mas em vez disso sorri.
- Foi muito atenciosa.
Um rapazinho tocou na ponta do teu molde de gesso.
- Uau - disse em voz baixa. - Como é que fazes chichi com isso?
- Não faço - disseste sem esboçar um sorriso. - Já não faço há quatro meses, Derek, por isso é melhor teres cuidado porque posso explodir como um vulcão a qualquer instante.
- Willow - murmurei - não precisas de ser sarcástica.
- Foi ele que começou...
A professora Katie veio até ao corredor quando ouviu o tumulto da nossa chegada. Hesitou muito ligeiramente quando te viu no molde de gesso aberto a meio, mas depressa se recompôs.
- Willow! - disse ela, ajoelhando-se para ficar ao teu nível. É tão bom ver-te! - Chamou a assistente, a professora Sylvia. Sylvia, pode ficar a tomar conta da Willow enquanto a mãe dela e eu conversamos?
Segui-a até ao fundo do corredor, passando pelas casas de banho com as sanitas incrivelmente baixas, até chegar ao espaço que servia de sala de música e de ginásio.
- Charlotte - disse Katie - devo ter percebido mal. Quando telefonou para dizer que a Willow vinha, pensei que já tinha tirado aquele molde de gesso!
- Bem, e vai tirar. É um processo gradual - sorri-lhe. - Ela está mesmo entusiasmada por estar outra vez aqui.
- Acho que está a apressar as coisas...
- A sério, não há problema. Faz-lhe falta a actividade. Mesmo que sofra outra fractura, uma fractura depois de algumas semanas de brincadeira é melhor para o corpo dela do que ficar em casa inactiva. E não tem de se preocupar por as outras crianças poderem magoá-la mais do que o normal. Nós brincamos com ela. Fazemos-lhe cócegas.
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- Sim, mas fazem isso em casa - fez notar a professora. - Na escola... Bem, é mais arriscado.
Recuei, percebendo perfeitamente o que ela queria dizer: "nós somos os responsáveis quando ela está no nosso estabelecimento." Apesar da Lei dos Cidadãos Americanos com Incapacidade, lia habitualmente nos fóruns online sobre OI que escolas privadas sugeriam amavelmente que uma criança em recuperação devia ficar em casa. Aparentemente seria para bem da criança, mas o mais provável seria ficar a dever-se ao aumento dos prémios dos seguros. Isto é um paradoxo: legalmente, há motivos claros para processar por discriminação, mas assim que fizéssemos isso, mesmo que ganhássemos o caso, o nosso filho seria tratado de maneira diferente quando regressasse.
- Mais arriscado para quem? - perguntei, sentindo um calor no rosto. - Paguei as mensalidades para que a minha filha pudesse frequentar a escola. Kate, sabe muito bem que não pode dizer-me que ela não é bem-vinda.
- Tenho todo o gosto em devolver-lhe as mensalidades do período em que ela faltar. E nunca lhe diria que a Willow não é bem-vinda: gostamos muito dela e sentimos a sua falta. Só queremos ter a certeza de que ela fica em segurança - abanou a cabeça. - Coloque-se no nosso lugar. No próximo ano, quando a Willow estiver na pré, terá uma auxiliar a tempo inteiro. Aqui não temos esses recursos.
- Então eu serei a auxiliar dela. Ficarei com ela. Mas deixe-a
- a minha voz cedeu, como um ramo -, deixe-a sentir-se normal.
Kate olhou para mim.
- Acha que ser a única criança com a mãe na sala de aulas a vai fazer sentir-se normal?
Sem fala -furiosa - percorri o corredor a passos largos até ao sítio onde a professora Sylvia estava contigo, a ver-te exibires as tiras de Velcro do molde de gesso.
- Temos de ir embora - disse eu, pestanejando para conter as lágrimas.
- Mas eu quero brincar na mesa do arroz...
- Sabes uma coisa? - disse Kate. - A professora Sylvia vai arranjar-te um saco para levares para casa! Obrigada por teres vindo dizer olá aos teus amigos, Willow.
Confusa, viraste-te para mim.
- Mamã? Porque não posso ficar?
- Falamos sobre isso depois.
Sylvia regressou com um saco de plástico Ziploc cheio de grãos de arroz violeta.
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- Toma, fofinha.
- Digam-me uma coisa - disse eu, olhando para cada uma das professoras à vez. - De que serve uma vida que não pode ser vivida?
Empurrei-te para fora da escola, ainda tão zangada que demorei um instante a perceber que estavas absolutamente silenciosa. Quando chegámos à carrinha, tinhas lágrimas nos olhos.
- Não faz mal, mãe - disseste, com uma resignação na voz que nenhuma criança de cinco anos devia ter. - Também não queria ficar.
Era mentira; sabia como estavas ansiosa por ver os teus amigos.
- Sabes como quando há uma pedra dentro de água e a água se move junto dela como se ela não estivesse lá? - disseste. - Foi mais ou menos isso que os outros miúdos fizeram enquanto estiveste a falar com a professora Katie.
Como podiam aquelas professoras - ou aquelas crianças - não verem como te magoavas com tanta facilidade? Beijei-te na testa.
- Tu e eu - prometi - vamos divertir-nos tanto esta tarde que nem imaginas. - Debrucei-me para te levantar da cadeira de rodas, mas uma das fitas de Velcro do gesso soltou-se.
- Bolas - resmunguei, e enquanto te equilibrava de lado na anca para prendê-la, deixaste cair o saco de plástico.
- O meu arroz! - disseste, e torceste-te instintivamente nos meus braços para apanhá-lo. Foi precisamente nesse instante que ouvi um estalido: como um ramo a partir-se, como a primeira dentada numa maçã de Outono.
- Willow? - disse eu, mas já sabia: o branco dos teus olhos refulgia, azul como um relâmpago, e estavas a afastar-te de mim, a entrar naquele transe sonolento que se apoderava de ti quando a fractura era particularmente grave.
Quando acabei de te instalar no banco de trás da carrinha, tinhas os olhos quase fechados.
- Querida, diz-me onde dói - implorei, mas não respondeste. Começando no pulso, apalpei-te suavemente o braço, tentando encontrar o ponto sensível. Tinha acabado de tocar numa depressão abaixo do ombro quando gemeste. Mas já tinhas sofrido fracturas no braço antes, e esta não tinha perfurado a pele nem torcia o braço num ângulo de noventa graus, nem apresentava nenhuma das características distintivas que eu associava àquelas fracturas graves que te faziam cair num estado de estupor. O osso teria perfurado algum órgão?
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Podia ter voltado à escola e pedido que ligassem para o 112, mas um técnico de emergências médicas não podia fazer nada por ti que eu não soubesse fazer também. Por isso procurei na parte de trás da carrinha e encontrei uma velha revista People. Utilizando-a como tala, enrolei uma ligadura em volta do teu braço e rezei para que não tivesses de ser engessada - reduzia a densidade óssea e cada sítio que tivesse de ser engessado seria um ponto fraco onde poderia ocorrer uma futura fractura. Na maioria das vezes conseguias ficar apenas com uma bota ortopédica Wee Walker, um molde ortopédico pneumático Aircast ou uma tala - excepto quando se trata de uma fractura da anca, vértebras ou fémures. Eram essas as fracturas que te deixavam quieta e calada, como agora. Eram essas as fracturas que me faziam ir directa às urgências, por ter medo de lidar com elas sozinha.
No hospital, estacionei num lugar para deficientes e levei-te para a triagem.
- A minha filha tem osteogénese imperfeita - disse à enfermeira. - Fracturou o braço.
A mulher franziu os lábios.
- E se fizesse o diagnóstico depois de tirar o curso de medicina?
- Trudy, há algum problema? - um médico que parecia nem sequer ter idade para fazer a barba estava de repente de pé à nossa frente, a olhar para ti. - Será que a ouvi dizer OI?
- Sim - disse eu. - Acho que é o úmero.
- Eu trato deste caso - disse o médico. - Sou o Dr. Dewitt. Quer colocá-la numa cadeira de rodas...
- Estamos bem assim - disse eu, levantando-te um pouco mais nos braços. Enquanto percorríamos o corredor em direcção à Radiologia, expliquei-lhe os teus antecedentes
médicos. Interrompeu-me apenas uma vez - para convencer o técnico a arranjar-nos uma sala depressa.
- Muito bem - disse o médico, debruçando-se sobre ti na marquesa das radiografias, com a mão no teu antebraço. - vou só deslocar-te um bocadinho...
- Não - disse eu, avançando. - Pode deslocar a máquina, não pode?
- Bem - disse o Dr. Dewitt, confuso. - Normalmente não o fazemos.
- Mas pode.
Voltou a olhar para mim e depois ajustou o equipamento, colocando-te o pesado colete de chumbo sobre o peito. Fui para o fundo da sala para poderem tirar a radiografia.
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- Muito bem, Willow. Agora só mais uma do antebraço - disse o médico.
- Não - disse eu.
O médico olhou para cima, exasperado.
- com todo o respeito, Sr.a O'Keefe, preciso mesmo de fazer o meu trabalho.
Mas eu também estava a fazer o meu. Quando sofrias alguma fractura, tentava limitar o número de radiografias que te faziam; às vezes evitava completamente fazê-las, se não fossem alterar o resultado do tratamento.
- Já sabemos que ela tem uma fractura - argumentei. - Acha que está deslocado?
O médico abriu muito os olhos quando lhe falei na sua própria linguagem.
- Não.
- Então não precisa realmente de fazer uma radiografia à tíbia e ao perónio, pois não?
- Bem - admitiu o Dr. Dewitt. - Depende.
- Faz ideia de quantas radiografias a minha filha terá de fazer ao longo da vida? - perguntei.
Ele cruzou os braços.
- Ganhou. Realmente não precisamos de radiografar o antebraço.
Enquanto esperávamos que a película fosse revelada, esfreguei-te as costas. Devagar, estavas a regressar de onde quer que fosses quando sofrias uma fractura. Estavas mais agitada, gemias. Estavas a tremer, o que ainda agravava mais as dores.
Espreitei pela porta para perguntar a uma técnica se tinha um cobertor em que pudesse embrulhar-te e vi o Dr. Dewitt aproximar-se com as tuas radiografias.
- A Willow está com frio - disse eu, e ele tirou a bata e colocou-ta por cima dos ombros assim que entrou na sala.
- As boas notícias - disse ele - são que a outra fractura da Willow está a sarar bem.
Que outra fractura?
Só percebi que tinha falado em voz alta quando o médico indicou um sítio no teu braço. Era difícil de ver - o defeito no colagénio deixava os teus ossos leitosos - mas claro, estava lá a saliência calosa que sugeria uma fractura a sarar.
Senti uma punhalada de culpa. Quando te tinhas magoado e como é que eu não tinha reparado?
- Parece que tem cerca de duas semanas - disse o Dr. Dewitt pensativamente e, sem mais nem menos, lembrei-me: uma noite,
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quando te levava para a casa de banho a meio da noite, quase te deixara cair. Embora tivesses insistido que estavas bem, estavas a mentir por minha causa.
- Estou admirado, Willow, por ver que fracturaste um dos ossos mais difíceis de fracturar no corpo humano: a omoplata apontou para a segunda imagem no quadro luminoso,
para uma racha mesmo a meio da omoplata. - Movimenta-se tanto, que raramente se fractura quando há impacto.
- Então o que vamos fazer? - perguntei.
-Bem, ela já está toda engessada... é quase uma mumificação, provavelmente o melhor será uma faixa. Vai doer durante alguns dias, mas a alternativa parece um castigo particularmente cruel. Ligou-te o braço ao peito como a asa partida de uma ave. - Está muito apertado?
Olhaste para ele.
- Uma vez parti a clavícula. Doeu mais. Sabia que clavícula significa "pequena chave", não apenas porque parece uma chave, mas porque liga todos os outros ossos do peito?
O Dr. Dewitt ficou de boca aberta.
- És uma menina-prodígio do género do Doogie Howser?
- Ela lê muito - disse, sorrindo.
- Omoplata, esterno e xifóide - acrescentaste. - Também sei escrevê-los.
- Caraças - disse o médico em voz baixa, e depois corou. Quero dizer, caramba. - Olhou para mím por cima da tua cabeça.
- Ela é a minha primeira paciente com OI. Deve ser de loucos.
- Sim - disse eu. - De loucos.
- Bem, Willow, se quiseres vir trabalhar aqui como médica ortopedista interna, há uma bata branca com o teu nome - acenou-me com a cabeça. - E se a senhora precisar
de alguém com quem falar... - tirou um cartão-de-visita do bolso da camisa.
Enfiei-o no bolso de trás das calças, envergonhada. Provavelmente não era tanto boa vontade da parte do médico, era mais querer proteger a Willow - o médico tinha provas da minha incompetência, duas fracturas ali a preto e branco. Fingi estar ocupada a procurar qualquer outra coisa na mala, mas, na verdade, estava apenas à espera que ele se fosse embora. Ouvi-o oferecer-te um chupa-chupa e despedir-se.
Como podia afirmar que sabia o que era melhor para ti, o que merecias, se a qualquer momento o destino podia pregar-me uma partida e perceber que não te protegera tão bem quanto devia?
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Estaria a pensar naquele processo legal por tua causa ou para compensar tudo aquilo que fizera de mal até à altura?
Tal como desejar um bebé. Todos os meses, quando me apercebia que Sean e eu não tínhamos concebido, costumava despir-me e ficar de pé no duche com a água a correr
no rosto, a pedir a Deus; a rezar para engravidar, a qualquer custo.
Peguei-te ao colo, apoiando-te na anca esquerda, visto que era o ombro direito que estava fracturado, e saí da sala de exames. O cartão do médico estava a queimar-me o bolso de trás, abrindo um buraco. Estava tão distraída que quase atropelei uma menina que estava a entrar pela porta do hospital quando nós estávamos a sair.
- Oh, querida, desculpa - disse eu, e recuei. Tinha mais ou menos a tua idade, e vinha de mão dada com a mãe. Vestia um tutu cor-de-rosa e calçava botas de borracha
com rãs na ponta. Era completamente careca.
Fizeste precisamente o que mais detestavas que te fizessem: ficaste a olhar para ela.
A menina também ficou a olhar para ti.
Aprendeste cedo que os desconhecidos ficam a olhar para uma menina de cadeira de rodas. Ensinei-te a sorrir-lhes, a dizer olá, para que percebessem que és uma pessoa e não apenas uma curiosidade da natureza. Amélia era a tua mais acérrima defensora - se visse alguma criança especada a olhar para ti, ia ter com ela e dizia-lhe que era isso que lhe aconteceria se não arrumasse o quarto ou comesse os vegetais todos. Uma ou duas vezes, fez a criança desatar a chorar, e eu quase nem a repreendi, porque isso fazia-te sorrir e endireitares-te na cadeira de rodas, em vez de tentares ser invisível.
Mas isto era diferente; era de igual para igual.
Apertei-te a cintura.
- Willow - repreendi suavemente.
A mãe da menina olhou para mim. Mil palavras passaram entre nós, embora ninguém tivesse falado. Ela acenou-me com a cabeça, e eu acenei-lhe também.
Tu e eu saímos do hospital num dia de final de Primavera com aroma de canela e asfalto. Semicerraste os olhos, tentando levantar o braço para protegê-los, mas lembraste-te que tinhas o braço ligado junto ao corpo.
- Aquela menina, mamã - disseste. - Porque tinha aquele aspecto?
- Porque está doente e fica assim quando toma os remédios dela.
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Reflectiste sobre isso durante alguns instantes.
- Tenho tanta sorte... os meus remédios deixam-me ter cabelo.
Tinha o cuidado de não chorar à tua frente, mas daquela vez não consegui evitar. Ali estavas tu, com três das tuas quatro extremidades fracturadas. Ali estavas tu, com uma fractura a sarar que eu nem sequer sabia que tinha ocorrido. Ali estavas tu, ponto final.
- Sim, temos sorte - disse eu. Encostaste-me a mão à face.
- Não faz mal, mãe - disseste. E tal como te fizera nas urgências, deste-me umas palmadinhas nas costas, precisamente no mesmo local que fracturaste no teu próprio corpo.
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Sean
- Pára, caraças! - gritei enquanto corria pelo parque vazio, com a lata de tinta em spray na mão. O miúdo levava-me um bom avanço, para além de ter a vantagem de
ser trinta anos mais novo, mas eu não ia deixá-lo escapar. Nem que isso me matasse, o que, a avaliar pela dor que sentia de lado, talvez fosse mesmo acontecer.
Era um daqueles dias de Primavera invulgarmente quentes que me fazia lembrar, quando era jovem, o ruído dos chinelos das raparigas a passar na piscina municipal. Admito, durante o intervalo do almoço, vesti uns calções e dei um mergulho rápido. Há tempos que não nadávamos - por solidariedade para contigo, visto que não podias ir à piscina até tirares o gesso. Não havia nada que desejasses mais fazer do que nadar - ainda não tinhas aprendido devido às várias fracturas. Mesmo depois de Charlotte ter descoberto os moldes de fibra de vidro - que são à prova de água e extraordinariamente caros - acabaste por deixar passar a época das aulas de natação. Quando Amélia estava a passar uma fase particularmente difícil da pré-adolescência, gabava-se, à tua frente, que ia a uma festa na piscina ou que ia à praia. Depois passavas o dia a amuar ou, numa ocasião inesquecível, a fazer ofertas num leilão na Internet para comprar uma piscina - para a qual não tínhamos espaço nem dinheiro. Às vezes pensava que estavas obcecada por água - gelada no Inverno ou com cloro no Verão; só querias precisamente o que não podias ter.
Tal como todos nós, suponho.
Agora, os meus cabelos ainda estavam molhados; cheirava a cloro - e estava a tentar arranjar maneira de esconder isso de ti quando voltasse para casa. Tinha as janelas do carro abertas
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enquanto passava pelo parque local, onde um jogo de basebol com equipas juniores tinha acabado havia pouco tempo. Então reparei num rapaz a fazer graffiti no
banco
dos jogadores em pleno dia.
Não sei o que me deixou mais frustrado, se o facto de este rapaz estar a danificar propriedade pública, se o facto de o estar a fazer mesmo debaixo do meu nariz,
sem sequer parecer esconder-se. Estacionei o carro longe e apareci sorrateiramente atrás dele.
- Olha - gritei. - És capaz de me dizer o que estás a fazer? Ele virou-se, apanhado em flagrante. Era alto e muito
magro, com cabelos amarelos finos e uma triste tentativa de bigode por cima do lábio superior. Cruzou o olhar com o meu, penetrante e desafiador, e depois deixou
cair a lata de spray e começou a correr.
Eu também corri. O rapaz acelerou, saindo do parque e atravessando por baixo de um viaduto, onde escorregou com o sapato de ténis numa poça de lama. Tropeçou, o
que me deu o tempo suficiente para me atirar para cima dele e encostá-lo a uma parede de betão, com o braço encostado à garganta.
- Fiz-te uma pergunta - disse de dentes cerrados. - Mas que merda andavas tu a fazer?
Arranhou-me o braço, sufocando e, de repente, vi-me através dos olhos dele.
Não era um daqueles polícias que gostam de servir-se da profissão para intimidar as pessoas. Então o que me fizera perder as estribeiras tão depressa? Quando recuei,
percebi: não era o facto de o rapaz estar a pintar os bancos dos jogadores com spray, nem não ter demonstrado remorsos quando cheguei ao local. Foi o facto de ele
ter fugido. De ele poder fugir.
Estava furioso com ele porque tu, na mesma situação, não podias ter escapado.
O rapaz estava dobrado para a frente, a tossir.
- Caramba! - arquejou.
- Desculpa - disse eu. - Desculpa, a sério.
Ele ficou a olhar para mim como um animal encurralado.
- Acabe lá com isto. Prenda-me. Virei-me para o outro lado.
- Vai-te embora. Antes que mude de ideias.
Fez-se um momento de silêncio e depois novamente o som de passos a correr.
Encostei-me à parede do viaduto e fechei os olhos. Ultimamente, parecia que a raiva era um geiser dentro de mim destinado
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a explodir em intervalos regulares. Às vezes acontecia que um rapaz como aquele se tornava o alvo. Outras vezes era a minha própria filha - dava por mim a gritar
com Amélia por qualquer coisa sem importância, como deixar a taça de cereais em cima da televisão, quando isso era uma infracção que eu próprio também cometia. E
por vezes queixava-me a Charlotte - por fazer rolo de carne quando eu queria frango panado, por não manter as crianças em silêncio quando eu estava a dormir depois
do turno da noite, por não saber onde deixara as chaves, por fazer-me achar que devia era estar zangado com outra pessoa.
Os processos legais não me eram estranhos. Uma vez processei a Ford, depois de ter andado num carro da polícia que me provocou uma hérnia discal. E, quem sabe,
talvez
a culpa fosse deles, talvez não fosse, mas deram-me uma indemnização e usei o dinheiro para comprar uma carrinha para poder transportar a tua cadeira de rodas e
o equipamento adaptativo de um lado para o outro - e tenho a certeza de que a Ford Motor Company nem sequer pestanejou ao passar o cheque de vinte mil dólares por
danos. Mas isto era diferente; não se tratava de um processo legal devido a qualquer coisa que nos tivesse acontecido - era um processo legal devido ao facto de
estares aqui. Embora pudesse nomear facilmente o que poderíamos fazer por ti com uma grande indemnização, não conseguia deixar de pensar que, para poder obtê-la,
teria de mentir.
Para Charlotte isso não parecia constituir um problema. E isso fez-me pensar sobre que mais estaria a mentir, neste preciso momento, sem que eu me apercebesse? Seria
feliz? Desejaria poder começar de novo, sem mim, sem ti? Amar-me-ia?
Em que tipo de pai me tornaria ao recusar-me a instaurar um processo legal que podia render dinheiro suficiente para poderes viver confortavelmente para o resto da vida, e, em vez disso, andasse a poupar dinheiro aqui e ali e a fazer turnos extra em jogos de basquetebol do liceu e em bailes de finalistas para podermos ter dinheiro suficiente para te comprar um colchão de espuma com memória, uma cadeira de rodas eléctrica, um carro adaptado para conduzires? Por outro lado, em que tipo
de pai me tornaria se a única maneira de conseguir essa recompensa fosse fingir que não queria que estivesses aqui?
Encostei a cabeça para trás, no betão, de olhos fechados. Se tivesses nascido sem OI e acabasses por ter um acidente de automóvel que te deixasse paralisada, teria
ido a um escritório de advogados para que examinassem todos os relatórios de acidentes em
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que estivessem envolvidos os mesmos modelos de carros para ver se o veículo teria algum defeito que pudesse ter conduzido ao acidente - para que as pessoas responsáveis
por te terem magoado tivessem de pagar por isso. Um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal seria assim tão diferente?
Era. Era porque, mesmo quando sussurrava as palavras para comigo próprio em frente ao espelho enquanto estava a fazer a barba, ficava com náuseas.
O meu telemóvel começou a tocar, lembrando-me que já estava longe do carro há mais tempo do que planeava estar.
- Estou?
- Pai, sou eu - disse Amélia. - A mãe não chegou a vir buscar-me.
Olhei para o relógio.
- As aulas já acabaram há duas horas! "
- Eu sei. Ela não está em casa, e não atende o telemóvel.
- vou já para aí - disse.
Passados dez minutos, uma Amélia amuada entrou no carro da polícia.
- Óptimo. Adoro que me levem a casa num carro da polícia. Imagina só o que vão dizer.
- Tens sorte por toda a gente da cidade saber que o teu pai é polícia. Diva do Drama.
- Falaste com a mãe?
Tinha tentado, mas, tal como Amélia tinha dito, não atendia o telemóvel. A razão tornou-se perfeitamente evidente quando virei para casa e a vi tirar-te com cuidado do assento de trás - não só confinada pelo gesso, mas exibindo uma nova ligadura que te prendia o braço ao peito.
Charlotte virou-se ao ouvir-me chegar e retraiu-se.
- Amélia - disse ela. - Oh, meu Deus. Desculpa, esqueci-me completamente.
- Pois, e qual é a novidade? - resmungou Amélia, entrando em casa.
Tirei-te dos braços da tua mãe.
- O que aconteceu, Wills?
- Foi a omoplata, acreditas? - disse Charlotte. - Mesmo a meio.
- Não atendeste o telemóvel.
- Fiquei sem bateria.
- Podias ter telefonado do hospital. Charlotte olhou para cima.
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- Não podes estar a zangar-te comigo, Sean. Estive um bocadinho ocupada...
- Não achas que mereço saber quando a minha filha se
magoa?
- Podes baixar a voz?
- Porquê? - perguntei. - Porque não hei-de deixar que toda a gente ouça? De qualquer maneira vão ficar a saber assim que instaures...
- Recuso-me a discutir esse assunto em frente à Willow...
- Bem, é melhor ultrapassares isso depressa, querida, porque ela vai ficar a saber tudo até à última palavra mais horrível.
O rosto de Charlotte ficou vermelho, tirou-te dos meus braços e levou-te para dentro de casa. Instalou-te no sofá, deu-te o comando da televisão e foi para a cozinha, esperando que eu fosse atrás dela.
- Mas que raio se passa contigo?
- Comigo? Foste tu que deixaste a Amélia à espera durante duas horas depois de terem acabado as aulas...
- Foi um acidente...
- Falando em acidentes - disse eu.
- Não foi uma fractura grave.
- Sabes uma coisa, Charlotte? A mim parece-me bastante grave.
- O que terias feito se eu te telefonasse? Saías mais cedo do trabalho outra vez? Era menos um dia que te pagavam, o que significava que estávamos duplamente lixados.
Senti a pele da parte de trás do pescoço retesar-se. Eis a mensagem subjacente naquele maldito processo legal, a tinta invisível que ia revelar-se nas entrelinhas de todos os documentos do tribunal: "Sean O'Keefe não ganha dinheiro suficiente para suprir as necessidades especiais da filha... e é por isso que se chegou a este ponto."
- Sabes o que eu acho? - disse eu, tentando manter a voz pausada. - Que se fosse ao contrário, se eu é que estivesse com a Willow quando ela se magoou, e não te tivesse telefonado, terias ficado furiosa. E sabes o que acho mais? Que a razão por que não me telefonaste não tem nada a ver com o trabalho nem com a bateria do telemóvel. É que já resolveste. Vais fazer tudo o que quiseres, quando quiseres, diga eu o que disser. - Saí intempestivamente de casa entrando no carro da polícia que ainda estava parado na via de acesso a casa, porque Deus me livrasse de sair do trabalho mais cedo.
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Bati no volante com a mão, buzinando inadvertidamente. O barulho fez Charlotte vir à janela. O rosto dela era pequeno e branco, uma forma oval cujas feições estavam
esbatidas àquela distância.
Pedi Charlotte em casamento com petit fours. Fui a uma pastelaria e pedi que escrevessem uma letra em glacê em cima de cada um deles: MARRYME6, e depois misturei-os
e servi-os numa travessa. É um quebra-cabeças, disse-lhe. Tens de colocá-los por ordem.
ARMY REM1
Charlotte ainda estava à janela, a observar-me de braços cruzados. Mal conseguia ver nela a rapariga a quem tinha dito para tentar outra vez. Já não conseguia lembrar-me
da expressão no rosto dela quando, da segunda vez, acertou.
6. Casa comigo. (N. da T.)
7. Gestor de eficiência de recursos do exército. (N. da T.)
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Amélia
Quando naquela noite a mãe me chamou para ir jantar; movi-me com o moribundo entusiasmo de um prisioneiro a dirigir-se para a execução. Quero dizer não era preciso ser nenhum génio para perceber que ninguém estava feliz naquela casa e que isso estava relacionado com aquele escritório de advogados a que tínhamos ido. Os meus pais não se esforçavam muito por baixar a voz quando estavam a gritar um com o outro. Nas três horas em que o pai tinha saído e voltado novamente a casa, e em que a mãe tinha chorado para dentro da tigela onde estava a misturar o rolo de carne, tu estiveste sempre a gemer Por isso fiz o que fazia sempre que estavas com dores: enfiei os auscultadores do iPod nos ouvidos e aumentei o som.
Não o fiz pela razão que pensas - para abafar o barulho que estavas a fazer. Sei que é isso que os meus pais pensam: que eu sou absolutamente indiferente.Também não
ia tentar explicar-lhes, mas a verdade é que precisava daquela música. Precisava de distrair-me do facto de que, quando estavas a chorar; eu não podia fazer nada
para impedi-lo, o que me fazia odiar-me ainda mais.
Todos - até tu, na parte de baixo do teu molde de gesso, com o braço ligado ao peito - estavam já sentados à mesa para jantar quando eu cheguei. A mãe tinha cortado o teu rolo de carne em pequenos quadrados, como selos do correio. Fez-me lembrar de quando eras pequena, sentada na cadeirinha de bebé. Costumava brincar contigo - a fazer rolar uma bola ou a empurrar-te num carrinho - e diziam-me sempre a mesma coisa: "Tem cuidado."
Uma vez, estavas sentada na cama e eu estava a saltar lá em cima, e caíste. Num minuto éramos astronautas a explorar o planeta Zurgon e, no minuto seguinte, a tua canela esquerda estava virada num ângulo de noventa graus e estavas a entrar naquele transe sinistro em que costumas
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entrar quando sofres uma fractura grave. A mãe e o pai esforçaram-se ao máximo para dizer que a culpa não tinha sido minha, mas quem achavam eles que estavam a enganar?
Eu é que estava aos saltos, mesmo que a ideia tivesse sido tua. Se eu não estivesse lá, não te tinhas magoado.
Sentei-me na cadeira. Não temos lugares marcados, como nalgumas famílias, mas sentámo-nos sempre nos mesmos em cada refeição. Ainda tinha os auscultadores, com a
música alta - emo, músicas que me faziam achar que havia pessoas com vidas ainda mais ranhosas do que a minha.
- Amélia - disse o meu pai. - À mesa não.
Às vezes penso que tenho um monstro a viver dentro de mim, na caverna onde o meu coração devia estar e que, de vez em quando, me preenche cada centímetro de pele, até eu não poder evitar fazer qualquer coisa desapropriada. Tem um hálito cheio de mentiras; cheira a despeito. E, naquele preciso momento, decidiu recuar a cabeça
horrorosa. Olhei para o meu pai, pestanejando, aumentei o som, e disse - demasiado alto:
- Passa-me as batatas.
Parecia a miúda mais mal comportada do mundo, e talvez quisesse sê-lo: como o Pinóquio, se me comportasse como uma adolescente egocêntrica, acabaria por me tornar numa, e todos reparariam em mim e satisfariam os meus pedidos, em vez de te darem o rolo de carne à boca e te observarem para terem a certeza de que não estavas a escorregar pela cadeira. Por acaso, ficaria satisfeita se apenas alguém reparasse que eu pertenço a esta família.
- Wills - disse a mãe - tens de comer alguma coisa.
- Sabe a chulé - respondeste.
- Amélia, não vou voltar a pedir-te - disse o pai.
- Mais cinco garfadas... -Amélia!
Não olhavam um para o outro; tanto quanto sabia nem sequer tinham falado desde a tarde. Interroguei-me se perceberiam que seria exactamente igual se, neste momento, estivessem a jantar e a conversar em lados opostos do globo.
Afastaste-te do garfo que a Mãe agitava à tua frente.
- Pára de tratar-me como um bebé - disseste. - Lá por ter partido o ombro não quer dizer que tenhas de me tratar como se tivesse dois anos!
- Para provar isto, tentaste alcançar o copo com o braço livre, mas derrubaste-o. O leite derramou-se em parte sobre a toalha, mas a maior parte caiu mesmo em cima do prato do pai.
- Caramba! - gritou ele e estendeu o braço na minha direcção arrancando-me os auscultadores dos ouvidos.
- Fazes parte desta família e vais comportar-te como tal à mesa do jantar.
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Fiquei a olhar para ele.
-Tu primeiro - disse.
O rosto dele ficou vermelho-vivo.
- Amélia, vai para o teu quarto.
- Óptimo! - arrastei a cadeira para trás com um guincho e corri lá para cima. De lágrimas nos olhos e o nariz a pingar, tranquei-me na casa de banho. A rapariga no espelho era uma pessoa que eu não conhecia: tinha a boca contorcida, os olhos escuros e vazios.
Ultimamente parecia que tudo me irritava. Ficava irritada quando acordava de manhã e estavas a olhar para mim como se eu fosse algum animal no jardim zoológico; ficava irritada quando ia para a escola e o meu cacifo ficava ao pé da sala de aulas de francês, uma vez que a Madame Riordan tinha feito sua missão pessoal transformar-me a vida num inferno; ficava irritada quando via um bando de chefes de claque, com as suas pernas perfeitas e as suas vidas perfeitas, que se preocupavam com coisas como quem iria convidá-las para o próximo baile e se o verniz vermelho dava um ar ordinário, em vez de se as mães se lembrariam de ir buscá-las à escola ou se estariam mais ocupadas no serviço de urgências. As únicas vezes em que não estava irritada, estava com fome - como naquele momento. Ou pelo menos pensava que estava com fome. Parecia que estava a ser consumida de dentro para fora; já não conseguia distinguir a diferença.
Da última vez que os meus pais discutiram - o que foi para aí no dia anterior - tu e eu estávamos no nosso quarto e ouvíamo-los perfeitamente bem. As palavras passavam por baixo da porta, embora estivesse fechada: "negligência médica no diagnóstico pré-natal... testemunho... depoimento." A dada altura ouvi mencionarem a televisão:"Não achas que os jornalistas ficariam a saber? É mesmo isso que queres?" disse o pai, e por um instante pensei como seria fixe aparecer nas notícias, até que me lembrei de que ser o exemplo de uma criança pertencente a uma família disfuncional não era propriamente a forma como eu queria gastar os meus quinze minutos de fama.
"Estão zangados comigo", disseste.
"Não. Estão zangados um com o outro."
Então, ambas ouvimos o pai dizer: "Achas mesmo que a Willow não vai descobrir?"
Olhaste para mim. "Descobrir o quê?"
Hesitei, e em vez de responder; agarrei no livro que tinhas no colo e disse-te que ia ler em voz alta.
Normalmente não gostas disso - ler, é talvez a única coisa que consegues fazer excepcionalmente bem, e habitualmente, gostas de te exibir; mas provavelmente naquele instante apetecia-te que eu o fizesse: como se
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tivesses um esfregão de arame no estômago que te dilacerasse as entranhas de cada vez que te mexesses.Tinha amigas com pais divorciados. Não era assim que tudo começava?
Abri numa página ao acaso, de factos, e comecei a ler-te em voz alta sobre mortes improváveis e horripilantes. Havia o guarda de um carro blindado para transporte de dinheiro que morreu quando cinquenta mil dólares em moedas de vinte e cinco cêntimos caíram da camioneta e o esmagaram. Uma rajada de vento empurrou o carro de um homem para dentro de um rio perto de Nápoles, em Itália, por isso ele partiu o vidro da janela, saiu cá para fora e nadou para a margem, acabando por ser morto por uma árvore que foi derrubada pelo vento e o esmagou. Um homem caiu nas cataratas do Niágara dentro de um barril, em 1911, partindo quase todos os ossos do corpo, escorregou mais tarde numa casca de banana na Nova Zelândia e morreu da queda.
Gostaste mais daquele último, e eu fiz-te sorrir outra vez, mas, por dentro, ainda estava triste: como era possível ganhar quando o mundo estava sempre a derrubar-te?
Foi nessa altura que a mãe entrou no quarto e se sentou à beira da tua cama.
-Tu e o pai detestam-se um ao outro? - perguntaste.
- Não, Wills - disse ela, sorrindo, mas de uma forma que fazia parecer que a pele estava demasiado esticada dos lados do rosto. - Está tudo bem.
Levantei-me, de mãos nas ancas.
- Quando vais dizer-lhe? - perguntei.
O olhar da minha mãe podia ter-me cortado ao meio, juro.
- Amélia - disse ela num tom que não admitia argumentos - não há nada para dizer.
Agora, sentada na borda da banheira, percebi como a minha mãe era uma mentirosa. Interroguei-me se seria para aquilo que eu estaria destinada, se podíamos herdar essa tendência da mesma forma que ela me transmitiu a capacidade de dobrar muito os cotovelos ou de dar um nó num pé de cereja com a língua.
Debrucei-me para a sanita, enfiei o dedo na garganta e vomitei, para que, desta vez, quando dissesse para comigo que estava vazia e a sofrer, estivesse finalmente a dizer a verdade.
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Cozedura de massa para tarte: o processo de cozer a massa de uma tarte sem o recheio.
Às vezes, quando estamos a lidar com uma massa frágil, esta abaterá apesar das nossas melhores intenções. Por esta razão, a massa de algumas tartes deve ser cozida
antes de se acrescentar o recheio. O melhor método é forrar a forma para tartes com a massa tendida e colocar no frigorífico durante pelo menos 30 minutos. Quando
estiver pronta para cozer, picar a superfície em vários sítios com um garfo, forrar a forma para tartes com folha de alumínio ou papel vegetal e enchê-la com arroz
ou feijões secos. Cozer como indicado, e depois remover cuidadosamente a folha de alumínio e os feijões - a massa terá mantido a sua forma por causa deles. Gosto
de ver como uma substância pesada pode acabar por crescer; gosto de sentir os feijões, como um problema a escapar-se por entre os dedos. Acima de tudo, gosto de
tender a massa-, são as coisas que temos de suportar que nos fazem aquilo que somos.
MASSA DOCE PARA PASTELARIA
1 chávena de farinha, 1 Pitada de sal
1 colher de sopa de açúcar
1 chávena; duas colheres de sopa de manteiga sem sal fria, em pedacinhos 1 gema grande
1 colher de sopa de água gelada
Numa batedeira, juntar a farinha, o sal, o açúcar e a manteiga. Bater até obter uma massa grosseira. Numa pequena tigela, bater a gema de ovo com a água gelada.
com a batedeira a funcionar, juntar a mistura da gema à farinha e à manteiga até formar uma bola. Retirar a massa, embrulhá-la em película aderente, achatando-a
até formar um disco, e colocar no frigorífico durante uma hora.
Tender a massa com o rolo numa superfície levemente polvilhada com farinha e colocá-la numa forma para tartes com fundo amovível. Colocar no frigorífico antes de
cozer.
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Pré-aquecer o forno a uma temperatura de 200?C. Retirar a forma do frigorífico, picar a superfície da massa com um garfo, cobrir com folha de alumínio e colocar
os feijões secos. Meter no forno durante dezassete minutos, retirar a folha de alumínio e os feijões e deixar continuar a cozer durante mais seis minutos. Deixar
arrefecer completamente antes de colocar o recheio.
TARTE DE ALPERCE
Base de tarte de Massa Doce para Pastelaria - previamente cozida
2-3 alperces
2 gemas
1 chávena de natas para bater
Um quarto chávena de açúcar
1,5 colheres de sopa de farinha
2 chávena de avelãs picadas
Descascar os alperces, cortar e colocar no fundo de uma base de tarte previamente cozida.
Misturar as gemas, as natas, o açúcar e a farinha. Deitar por cima dos alperces e polvilhar com as avelãs. Cozer em forno pré-aquecido a 180? C durante 35 minutos.
Quando provamos isto, ainda sentimos o peso que fica para trás. É a sombra por baixo do doce, a pergunta na ponta da língua.
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Marin
Junho de 2007
O Facebook é suposto ser uma rede social, mas a verdade é que, a maior parte das pessoas que conheço - incluindo eu - passa tanto tempo online a compor os seus perfis
e a escrever comentários no Facebook dos outros que acaba por, na realidade, sociabilizar muito pouco. Talvez não fosse muito próprio abrir o Facebook a meio de
um dia de trabalho, mas, uma vez, apanhei Robert Ramirez às voltas com a sua página no MySpace e percebi que lhe seria difícil desculpar-se sem parecer hipócrita.
Ultimamente andava a usar o Facebook para me juntar a grupos
- Pesquisa de Mães Biológicas, Registo para Pesquisa de Crianças Adoptadas. Alguns membros encontraram realmente as pessoas que procuravam. Embora isso não me tivesse
acontecido, era agradavelmente reconfortante ligar-me e ler as mensagens que atestavam que eu não era a única pessoa que estava frustrada com todo este processo.
Liguei-me à Internet e abri as minhas mensagens. Tinha sido contactada por uma antiga colega do liceu que, há uma semana, me convidara para ser sua amiga mas que
eu já não via há quinze anos. Tinha sido desafiada pela minha prima em Santa Barbara para responder a um questionário no Flixster. Tinha sido eleita pelos meus outros
amigos a pessoa a cujo Facebook preferiam pertencer.
Olhei para a informação mesmo por cima disto, o meu perfil.
NOME: Marin Gates REDES: Portsmouth, NH/UNH Alumni/ Ordem dos Advogados do NH
SEXO: Feminino INTERESSES: Homens ESTADO CIVIL: Solteira
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Solteira?
Voltei a carregar a página. Durante os últimos quatro meses essa linha do Facebook tivera escrito: "Numa relação com Joe Mclntyre." Abri a página principal e examinei as notícias. Ali estava: uma fotografia do rosto dele e uma actualização: "Joe Mclntyre e Marin Gates terminaram a sua relação."
Fiquei de boca aberta; parecia que tinha levado um soco inesperado.
Agarrei no casaco e dirigi-me intempestivamente para a recepção.
- Espere! - disse Briony. - Aonde vai? Tem uma chamada em conferência marcada para as...
- Marque para outra altura - ripostei. - O meu namorado acabou de me deixar através do Facebook.
Joe Mclntyre não era o homem da minha vida. Conheci-o num jogo dos Bruins a que tinha ido assistir com clientes; passou por mim entre os assentos e entornou a sua cerveja para cima da minha camisola. Não foi um princípio auspicioso, mas tinha olhos anil e um sorriso que contribuía para o aquecimento global e, quando dei por mim, não só lhe tinha prometido que podia pagar a conta da lavandaria como também lhe tinha dado o meu número de telefone. No primeiro encontro, descobrimos que trabalhávamos a menos de um quarteirão de distância um do outro - ele era um advogado especializado em questões ambientais - e que ambos éramos licenciados pela Universidade de New Hampshire. No segundo encontro, fomos para minha casa e não saímos da cama durante dois dias seguidos.
Joe é seis anos mais novo do que eu, o que quer dizer que aos vinte e oito anos ainda evitava os compromissos e que eu, aos trinta e quatro, tinha trocado o relógio de pulso pelo relógio biológico. Estava à espera de divertir-me um pouco com aquele romance: ter alguém com quem ir ao cinema no sábado à noite e receber flores no Dia dos Namorados. Não estava a pensar que seria para sempre; achava que em determinada altura nos próximos meses lhe diria que naquele momento estávamos à procura de coisas diferentes nas nossas vidas.
Mas sem dúvida que não lhe ia dizer isso através do Facebook.
Virei a esquina e entrei na recepção do escritório de advocacia onde ele trabalhava. Era muito menos grandioso do que o de Bob, mas isso pouco importa, nós somos simplesmente advogados de vítimas, não estamos a tentar mudar o mundo. A recepcionista sorriu.
- Posso ajudá-la?
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- O Joe está à minha espera - disse eu, e dirigi-me para o fundo do corredor.
Quando abri a porta do gabinete dele, estava a ditar para um gravador digital.
- Para além disso, acreditamos que é do interesse da Cochran e Filhos... Marin, o que estás aqui a fazer?
- Acabaste a nossa relação no Facebook?
- Ia enviar-te uma mensagem, mas achei que ia ser pior - disse Joe, levantando-se de um salto para fechar a porta enquanto um colega passava ali perto. - Então,
Marin. Sabes que não tenho muito jeito para lamechices - sorriu -, bem, para as lamechices metafóricas...
- És um monstro insensível - disse eu.
- Assim foi muito mais civilizado, na minha opinião. Qual era a alternativa? Uma grande discussão em que me mandavas à merda?
- Sim! - disse eu, e depois respirei fundo. - Há outra pessoa?
- Há outra coisa - disse Joe num tom sério. - Por amor de Deus, Marin. Descartaste-te de mim das últimas três vezes em que tentei marcar um encontro. O que estavas
à espera que eu fizesse? Ficasse sentado à espera que tivesses tempo para mim?
- Isso não é justo - disse eu. - Estive a ler certidões de casamento...
- Precisamente - respondeu Joe. - Não queres sair comigo. Queres sair com a tua mãe biológica. Olha, ao princípio achei que era apaixonante: sabes, falavas tão apaixonadamente
sobre como encontrá-la. Só que afinal essa é a única coisa que fazes apaixonadamente, Marin. - Enfiou as mãos nos bolsos. - Estás tão ocupada a viver no passado
que agora não tens nada para dar.
Sentia o pescoço a ferver debaixo da gola do casaco.
- Lembras-te daqueles dois dias fabulosos, e noites, em minha casa? - disse eu, debruçando-me sobre ele até ficar a centímetros de distância. Vi as pupilas dilatarem-se.
- Se me lembro - murmurou.
- Fingi. Todas as vezes - disse eu, e saí do gabinete de Joe de cabeça erguida.
A minha data de nascimento é 3 de Janeiro de 1973. Como é óbvio sempre soube isto. O certificado de adopção que recebi do Condado de Hillsborough tinha a data de
fim de Julho, por causa do
8. Touchy-feely na versão original em inglês faz também uma alusão a tocar ou apalpar. (N. da T.)
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período de espera de seis meses para uma adopção poder ser finalizada e do tempo que demora a marcar a audiência. Há um grande debate acerca deste período de seis
meses na comunidade de adopção. Algumas pessoas acham que devia ser mais longo, para dar tempo à mãe biológica para mudar de ideias; outras pessoas acham que devia
ser mais curto, para dar paz de espírito aos pais adoptivos e terem a certeza de que o bebé recém-nascido não lhes vai ser tirado. O facto de nos identificarmos
com um lado ou com o outro depende de termos um bebé para dar ou um bebé a receber, claro.
Eu atrasei-me alguns dias. O meu pai costumava dizer que estava a contar que eu fosse a sua deduçãozinha aos impostos, mas eu frustrei-lhe os planos ao chegar no
ano seguinte. No papel que veio comigo para casa, quando saí do hospital, guardado no meu livro de bebé, estava um cartão com o meu nome rasgado - mas ainda conseguia
ver um arco a meio do último nome que não tinha sido rasgado: um y, ou um g, ou um j, ou um q. Sabia isto sobre a minha identidade anterior, e sabia que os meus
pais biológicos viviam no Condado de Hillsborough, e que a minha mãe tinha dezassete anos. Nos anos setenta ainda era bastante provável que uma rapariga de dezassete
anos casasse com o pai do seu filho, e isso conduziu-me ao registo civil.
Utilizando uma calculadora para calcular a data do parto num site sobre gravidez, achei que devia ter sido concebida por volta do dia dez de Abril para que a data
prevista para o parto fosse a véspera de Ano Novo. (Dez de Abril. Um baile de Primavera no liceu, imaginei. Uma viagem de carro até à costa à meia-noite. As ondas
na areia, o sol a despontar como uma gema de ovo sobre o oceano, de madrugada, ele e ela, a dormir nos braços um do outro.) De qualquer forma, se ela tivesse descoberto
que estava grávida um mês depois, isso significava que deviam ter-se casado no princípio do Verão de 1972.
Em 1972, Nixon foi à China. Onze atletas israelitas foram mortos nos Jogos Olímpicos. Um selo custava oito cêntimos. Os Oakland As ganharam o campeonato, e M't'ASH
estreava-se na CBS.
No dia 22 de Janeiro de 1973, dezanove dias após eu ter nascido e quando já estava a viver com a família Gates, o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos
da América deliberou no caso Roe contra Wade?
9. A partir da deliberação do Supremo Tribunal de Justiça neste caso, as leis extremamente restritivas em relação ao aborto praticadas na maioria dos estados nos
EUA desde meados do século XIX, foram em grande medida revogadas. (N. da T.)
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A minha mãe teria ouvido falar nisso e amaldiçoado o seu sentido de oportunidade?
Há algumas semanas comecei a examinar os registos do Condado de Hillsborough em busca de certidões de casamento datadas do Verão de 1972. Se a minha mãe tinha dezassete
anos, devia haver um formulário de consentimento parental anexo. Sem dúvida que isso limitaria o número de documentos que eu teria de escrutinar.
Tinha-me descartado de Joe por dois fins-de-semana seguidos para examinar mais de três mil certidões de casamento e fiquei a saber coisas incrivelmente sinistras acerca do meu Estado (como por exemplo, uma rapariga entre os treze e os dezassete anos e um rapaz entre os catorze e os dezassete anos podem casar com o consentimento dos pais), mas não encontrei uma certidão que parecesse ser dos meus pais biológicos.
A verdade é que, mesmo antes de Joe me ter deixado, já estava resignada a desistir da minha busca.
Voltei para o trabalho depois de ter saído do gabinete dele e, na verdade, passei o resto do dia sem fazer nada de especial. Naquela noite, voltei para casa, abri uma garrafa de vinho e uma embalagem de gelado Coffe Heath Bar Crunch Ben Jerrys, e encarei a verdade: tinha de decidir se queria mesmo encontrar a minha mãe biológica. Supostamente, ela tinha-se debatido com um dilema moral bastante difícil de ultrapassar: decidir se ia abdicar de mim ou não; certamente devia-lhe o mesmo tipo de auto-avaliação para decidir se devia ou não ir à procura dela. A curiosidade não bastava; nem o receio de alguma complicação médica que me deixara a pensar nas minhas origens. Descobria um nome: e depois? Saber de onde vim não significa necessariamente que seja suficientemente corajosa para ouvir as razões pelas quais fui dada para adopção. Se ia prosseguir com isto, ia abrir as portas a uma relação que mudaria ambas as nossas vidas.
Agarrei no telefone e marquei o número da minha mãe.
- O que estás a fazer? - perguntei.
- A tentar descobrir como hei-de gravar The Colbert Report - disse ela. - O que estás tu a fazer?
Olhei para o gelado a derreter, para a garrafa de vinho meio vazia.
- Estou a começar a fazer uma dieta líquida - disse eu. - E tens de carregar no botão vermelho para aparecer o menu correcto no ecrã.
- Oh, aqui está ele. Óptimo. O teu pai fica rabugento quando eu vejo o programa e ele adormece.
- Posso perguntar-te uma coisa?
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- Claro.
- Sou apaixonada? Ela riu.
- As coisas devem andar a correr mesmo muito mal para estares a fazer-me essa pergunta.
- Não quero dizer a nível romântico. Quero dizer, tu sabes, em relação à vida. Tinha passatempos quando era pequena? Coleccionava cromos dos Garbage Pail Kids ou
implorava para me inscrever na equipa de natação?
- Querida, tiveste um medo terrível da água até aos doze anos.
- Pronto, se calhar não foi um exemplo muito bom - apertei a cana do nariz. - Não desistia das coisas, mesmo quando eram difíceis, ou costumava desistir?
- Porquê? Aconteceu alguma coisa no trabalho?
- Não, no trabalho não - hesitei. - Se estivesses no meu lugar, procuravas os teus pais biológicos?
Fez-se uma bolha de silêncio.
- Uau. É uma pergunta bastante difícil. E achei que já tínhamos falado sobre isso. Disse que te apoiava...
- Eu sei o que disseste. Mas isso não te magoa? - perguntei directamente.
- Não vou mentir, Marin. Ao princípio, quando começaste a fazer perguntas, sim. Acho que uma parte de mim achava que se me amasses o suficiente, não precisarias
de ir à procura de outras respostas. Mas quando apanhaste aquele susto no ginecologista, apercebi-me de que a questão principal aqui não sou eu. És tu.
- Não quero magoar-te.
- Não te preocupes comigo - disse ela. - Sou velha e rija. Isso fez-me sorrir.
- Não és velha, e és um coração de manteiga. - Inspirei. - É que estou sempre a pensar, sabes, que isto é uma questão muito importante. Desenterramos o baú e talvez
encontremos um tesouro escondido, mas talvez encontremos uma coisa podre.
- Talvez tenhas medo é de te magoares a ti própria.
A minha mãe acerta sempre em cheio. E se, por exemplo, eu fosse aparentada com o Jeffrey Dahmer10 ou com o Jesse Helms"? Não seria melhor não o saber?
10. Assassino em série, mais conhecido como o Canibal de Milwakee. (N. da T.)
11. Senador conservador da Carolina do Norte conhecido por ser um opositor implacável às iniciativas liberais. (N. da T.)
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- Ela livrou-se de mim há mais de trinta anos. E se eu for intrometer-me na vida dela e ela não quiser ver-me?
Ouviu-se um suspiro suave do outro lado da linha. Apercebi-me de que esse era o som que eu mais associava ao meu crescimento. Ouvi-o ao correr para os braços da minha mãe quando um rapaz me empurrou de um baloiço no parque infantil. Ouvi-o num abraço antes de o meu belo par do baile de finalistas e eu irmos para a festa; ouvi-o quando ela ficou à porta do meu dormitório na universidade, tentando não chorar ao deixar-me sozinha pela primeira vez. Toda a minha infância estava contida naquele som.
- Marin - disse simplesmente a minha mãe. - Quem é que não haveria de te querer?
Sinceramente, não sou daquele tipo de pessoa que acredita em fantasmas, no karma e na reencarnação. Mas no dia seguinte dei por mim a meter baixa no trabalho para poder ir a Falmouth, no Massachusetts, para falar sobre a minha mãe biológica com uma médium. Dei mais um gole no café do Dunkin' Donuts e imaginei como seria a
reunião; se sairia dela com informações que me colocariam na direcção certa para a minha busca sobre a adopção, como a mulher que me recomendou Meshinda Dows e as
suas profecias.
Na noite anterior estive em dez grupos de apoio para casos de adopção oníine. Criei um nome para mim própria (SeparStedatbirth@yahoo.com) e fiz listas a partir dos
sites num bloco Moleskine em branco.
1. UTILIZAR OS REGISTOS CIVIS ESTADUAIS.
2. REGISTAR-ME NO ISRR12 - o índice de Recursos de Busca e Reunião, o maior registo que existe.
3. REGISTAR-ME NO REGISTO MUNDIAL.
4. FALAR com OS PAIS ADOPTIVOS... E PRIMOS, TIOS, IRMÃOS MAIS VELHOS...
5. DESCOBRIR O INTERMEDIÁRIO. Por outras palavras, quem mediou a adopção? Uma igreja, um advogado, um médico, uma agência? Podem ser uma fonte de informação.
6. ASSINAR A RENÚNCIA À CONFIDENCIALIDADE, para que, se a nossa mãe biológica vier à nossa procura, saber que queremos ser contactados.
12. índex of Search and Reunion Resources, na versão original em inglês. (N. da T.)
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7. PUBLICAR REGULARMENTE INFORMAÇÕES. Há pessoas que realmente enviam as mensagens para toda a gente na esperança de que as informações cheguem ao local certo!
8. COLOCAR ANÚNCIOS NOS PRINCIPAIS JORNAIS DA CIDADE NATAL.
9. ACIMA DE TUDO, IGNORAR QUALQUER FIRMA DE INVESTIGAÇÃO QUE VEJAM EM ANÚNCIOS OU PROGRAMAS DA TELEVISÃO! SÃO TODOS FRAUDULENTOS!
Às duas da manhã ainda estava online num chat sobre adopção, a reagir às histórias de horror de pessoas que queriam poupar-me o trabalho de cometer os mesmos erros do que elas. Havia o RiggleBoy, que tinha contactado um número azul de busca, dando informações sobre o seu cartão de crédito, e foi surpreendido por uma conta de
6500 dólares ao fim de um mês. Havia a Joy4Eva, que descobriu que fora retirada da família por negligência e maus tratos. AllieCapone688 deu-me uma lista de três livros que usou quando começou - que lhe custaram menos do que os investigadores privados que contratou. Só uma mulher tinha um final feliz para contar: tinha ido consultar uma médium chamada Meshinda Dows que lhe dera informações tão precisas que ela encontrou a mãe biológica passada uma semana. "Experimente", sugeriu FantaC. "O que tem a perder?"
Bem, o respeito por mim própria, por exemplo. Mas, apesar disso, dei por mim a pesquisar Meshinda Dows no Google. Tinha um daqueles sites que demoram uma eternidade a carregar, por ter um ficheiro de música acoplado - neste caso, uma mistura lúgubre de espanta espíritos e canções de baleias-corcundas. "Meshinda Dows", estava escrito na página principal, "Conselheira psíquica certificada."
Quem certificaria os conselheiros psíquicos? O Departamento de Banha da Cobra e Charlatães dos Estados Unidos?
"Servindo a comunidade de Cape Cod há 35 anos."
O que significava que ficava a uma distância da minha casa em Bankton que podia ser percorrida de carro.
"Deixe-me ser a sua ponte para o passado."
Antes que perdesse a coragem, acedi ao email e enviei-lhe uma mensagem a explicar que estava à procura da minha mãe biológica. Passados trinta segundos após a ter enviado, recebi uma resposta:
Marin, acho que posso ser uma grande ajuda para si. Está livre amanhã à tarde?
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Não fiquei a pensar por que razão estaria aquela mulher online às três da manhã. Não pensei por que razão uma médium bem-sucedida teria uma vaga tão rapidamente.
Em vez disso, aceitei pagar os sessenta dólares da consulta e imprimi as indicações que ela me deu para chegar lá.
Cinco horas depois de ter saído de casa naquela manhã, estacionei em frente à casa de Meshinda Dows. Ela vivia numa casinha pintada de púrpura debruada com uma faixa
vermelha. Tinha à vontade sessenta anos, mas tinha os cabelos que lhe chegavam à cintura pintados de negro.
- Deve ser a Marin - disse ela.
Uau, já estava a mostrar as suas qualidades.
Conduziu-me para uma sala separada da entrada por uma cortina feita de lenços de seda. Lá dentro havia dois sofás virados um para o outro e no meio uma otomana quadrada
branca. Em cima da otomana havia uma pena, um leque e um baralho de cartas. As prateleiras da sala estavam cobertas por bonecos Beanie Babies, cada um fechado num pequeno saco de plástico com protectores de etiquetas em forma de coração. Pareciam estar todos a sufocar.
Meshinda sentou-se, e eu apressei-me a imitá-la.
- Primeiro recebo o dinheiro - disse ela.
Oh - enfiei a mão na mala e tirei três notas de vinte dólares, que ela dobrou e enfiou no bolso.
- Porque não começamos dizendo-me que razão a trouxe aqui? Olhei para ela, pestanejando.
- Não devia já saber isso?
- Os dons psíquicos nem sempre funcionam dessa maneira, minha querida - disse ela. - Está um bocadinho nervosa, não está?
- Acho que sim.
- Não devia estar. Está protegida. Tem espíritos à sua volta disse ela. Fechou os olhos e franziu-os. - O seu... avô? Ele quer que saiba que agora respira muito melhor.
Fiquei de boca aberta. O meu avô morreu quando eu tinha treze anos por complicações associadas a um cancro do pulmão. Fiquei aterrorizada quando o visitei no hospital e o vi a definhar.
- Ele sabia qualquer coisa importante sobre a sua mãe biológica
- disse Meshinda.
Bem, isso era conveniente, visto que o avô já não podia confirmar nem desmentir isso agora.
- Ela é magra e tem cabelos escuros - continuou a médium. Era muito jovem quando aconteceu. Estou a captar um sotaque...
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- Do sul? - perguntei.
- Não, do sul não... não consigo identificá-lo - Meshinda olhou para mim. -Também estou a captar alguns nomes. Nomes estranhos. Allagash... e Whitcomb... não, Whittier.
- Allagash Whittier é um escritório de advocacia em Nashua disse eu.
- Acho que têm alguma informação. Talvez fosse um advogado que ali trabalhasse a tratar da adopção. Se fosse a si contactava-os. E à Maisie. Uma pessoa chamada Maisie
também possui algumas informações.
Maisie era o nome da secretária do Condado de Hillsborough que me tinha enviado o certificado de adopção.
- Tenho a certeza de que sim - disse eu. - Tem acesso ao ficheiro completo.
- Estou a referir-me a outra Maisie. Uma tia ou uma prima... ela adoptou um bebé de África.
- Não tenho nenhuma tia nem prima chamada Maisie - disse eu. -Tem, sim - insistiu Meshinda. - Ainda não a conhece. -
Franziu o rosto, como se estivesse a chupar um limão. - O seu pai biológico chama-se Owen. Está relacionado com o direito.
Inclinei-me para a frente, intrigada. Teria sido por isso que me senti atraída pela carreira?
- Ele e a sua mãe biológica tiveram mais três filhos.
Fosse ou não verdade, senti um aperto no peito. Como é que aqueles três puderam ficar, mas eu fui dada para adopção? O velho adágio que me repetiram vezes sem conta
- que os meus pais biológicos gostavam muito de mim mas não podiam tomar conta de mim
- nunca me tinha soado completamente verdadeiro. Se gostavam assim tanto de mim, porque abdicaram de mim?
Meshinda levou a mão à cabeça.
- E é tudo - disse ela. - Já não estou a captar mais nada. - Deu-me umas palmadinhas no joelho. - Aquele advogado - aconselhou. É por aí que deve começar.
A caminho de casa, parei no McDonald's para comer qualquer coisa e sentei-me lá fora no espaço de diversão semelhante a um Habitrail13 humano cheio de crianças
pequenas
acompanhadas pelos pais. Telefonei para as informações e fizeram a ligação para Allagash Whittier. Ao dizer-lhes que era colaboradora de Robert Ramirez,
13. Conjunto de tubos e esferas de plástico para servir de habitação a pequenos animais de estimação como os hamsters. (N. da T.)
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consegui convencer os assistentes jurídicos a passarem a ligação para um dos advogados.
- Marm - disse a mulher - em que posso ajudá-la?
No pequeno banco onde estava sentada, enrolei-me um pouco mais sobre mim própria, para tornar a conversa mais privada.
- É um pedido um pouco estranho - disse eu. - Estou a tentar encontrar algumas informações sobre uma cliente que a sua firma pode ter tido no princípio dos anos setenta. Era uma rapariga muito jovem, de dezasseis ou dezassete anos.
- Não deve ser difícil de encontrar: não temos muitos clientes assim. Qual é o apelido dela?
Hesitei.
- Não sei propriamente o apelido. Fez-se silêncio do outro lado da linha.
- Trata-se de um caso de adopção?
- Bem. Sim, da minha adopção. A voz da mulher era fria.
- Sugiro que se dirija ao tribunal - disse ela, e desligou.
Agarrei no telemóvel com força entre as mãos e vi um rapazinho guinchar enquanto deslizava num escorrega violeta às curvas. Era asiático, a mãe não. Seria adoptado? Um dia, estaria ali sentado como eu, num beco sem saída?
Voltei a telefonar para as informações e, passado um instante, ligaram-me a Maisie Donovan, que dirigia o registo de adopções do Condado de Hillsborough.
- Provavelmente não se lembra de mim - disse. - Há alguns meses, enviou-me o meu certificado de adopção...
- Nome?
- Bem, era isso que eu queria saber...
- Estava a referir-me ao seu nome - disse Maisie.
- Marin Gates - engoli. - É a coisa mais disparatada - disse eu. - Hoje consultei uma médium. Quero dizer, não sou uma desequilibrada que costume consultar médiuns nem nada... embora não tenha nenhum problema em relação a isso, sabe, se uma pessoa gostar de ir de vez em quando... mas em todo o caso, fui a casa desta senhora
e ela disse-me que uma pessoa chamada Maisie possuía informações sobre a minha mãe biológica. - Forcei uma gargalhada. - Não me deu muitos mais pormenores, mas nisso
acertou, não foi?
- Senhora Gates - disse Maisie secamente -, em que posso ajudá-la?
Curvei a cabeça para o chão.
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- Não sei que mais posso fazer - admiti. - Não sei o que fazer a seguir.
- Por cinquenta dólares posso enviar-lhe a sua informação não identificativa numa carta.
- O que é isso?
- Tudo o que estiver no seu ficheiro que não implique revelar nomes, moradas, números de telefone, datas de nascimento...
- As coisas sem importância - disse eu. - Acha que vou ficar a saber alguma coisa através disso?
- A sua adopção não foi feita através de uma agência; foi privada - explicou Maisie - por isso não deve haver muita coisa, suponho. Provavelmente ficará a saber que é branca.
Lembrei-me do certificado de adopção que ela me enviou.
- Estou quase tão certa disso como de que sou do sexo feminino.
- Bem, por cinquenta dólares, terei todo o gosto em confirmá-lo.
- Sim - ouvi-me dizer. - Gostaria que o fizesse.
Depois de anotar, nas costas da mão, a morada para onde tinha de enviar o cheque, desliguei o telemóvel e fiquei a ver as crianças aos saltos como moléculas numa solução aquecida. Para mim, era difícil imaginar ter um filho. Era impossível imaginar dar um para adopção.
- Mamã! - gritou uma menina do cimo de uma escada. - Estás a ver?
Na noite anterior, nos quadros com as mensagens, vi pela primeira vez as designações mãea e mãeb. Não eram classificações, como pensei de início - só abreviaturas
para mãe adoptiva e mãe biológica. Afinal, há uma enorme controvérsia por causa desta terminologia. Algumas mães biológicas acham que a designação as faz parecer
procriadoras, e não mães, e gostariam de ser designadas por primeira mãe ou mãe natural. Mas segundo essa lógica, a minha mãe tornar-se-ia na segunda mãe, ou na
mãe artificial. Será o acto de dar à luz que nos torna mães? Será que perdemos esse estatuto quando abdicamos do nosso filho? Por um lado, se as pessoas fossem classificadas
pelos seus actos, há uma mulher que decidiu abdicar de mim; por outro lado, há uma mulher que ficou junto de mim à noite, quando estava doente, em criança, que chorou por causa dos meus namorados, que bateu palmas entusiasticamente quando me licenciei na faculdade de Direito. Qual das coisas nos torna mais mães?
Ambas, apercebi-me. Ser mãe não é só conceber uma criança. É estar lá para testemunhar a vida dela.
De repente, dei por mim a pensar em Charlotte O'Keefe.
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Piper
A paciente estava quase com trinta e cinco semanas de gravidez e acabara de mudar-se para Bankton com o marido. Não a tinha examinado em nenhuma consulta de rotina, mas fora introduzida no meu horário de consultas, no intervalo para o almoço, por se queixar de febre e outros sintomas que me pareciam típicos de uma infecção. Segundo a enfermeira que tinha anotado os antecedentes clínicos, a mulher não tinha problemas médicos.
Abri a porta com um sorriso no rosto, esperando acalmar quem eu tinha a certeza que seria uma futura mãe em pânico.
- Sou a Dr.a Reece - disse eu, apertando-lhe a mão e sentando-me. - Parece que não se tem sentido muito bem.
- Pensei que era gripe, mas nunca mais passava...
- É sempre bom verificar essas coisas quando estamos grávidas - disse eu. - A gravidez tem sido normal até ao momento?
- Uma maravilha.
- E há quanto tempo tem estes sintomas?
- Há cerca de uma semana.
- Bem, vou deixá-la vestir uma bata e depois vamos ver o que se passa - saí e voltei a ler os dados dela enquanto esperava alguns momentos para que se vestisse.
Adoro a minha profissão. Na maior parte das vezes, quando somos obstetras, estamos presentes num dos momentos mais felizes da vida de uma mulher. Claro, há incidentes que não são assim tão alegres - já tive a minha dose de ter de dizer a uma mulher grávida que ocorreu uma morte fetal; já fiz cirurgias em que uma placenta acreta
dá origem a uma coagulação intravascular disseminada e a paciente nem sequer chega a recuperar a consciência. Mas tento não pensar nestes casos; em vez disso gosto
de me concentrar no momento em
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que o bebé, escorregadio e a contorcer-se como um vairão nas minhas mãos, vem a este mundo num arquejo. Bati à porta.
- Está pronta?
Estava sentada na marquesa, com a barriga apoiada no colo como uma dádiva.
- Óptimo - disse eu, colocando o estetoscópio nos ouvidos. Vamos começar por auscultar-lhe o tórax. - Bafejei o disco de metal: enquanto obstetra, era particularmente
sensível a colocar objectos de metal frios no corpo de uma pessoa, e encostei-o suavemente às costas da mulher. Os pulmões dela estavam completamente limpos; nada
de expectoração, nada de ruídos. - Parece-me bem - disse eu. - Agora vamos ver o coração.
Afastei o decote da bata e vi uma grande cicatriz de uma esternotomia mediana, do tipo vertical, que ia até abaixo do peito.
- Isto é de quê?
- Oh, é só do meu transplante de coração. Ergui as sobrancelhas.
- Pensava que tinha dito à enfermeira que não tinha problemas médicos.
- E não tenho - disse a paciente, a sorrir. - O meu coração novo tem estado a funcionar muito bem.
Charlotte só começou a consultar-me como minha paciente quando estava a tentar engravidar. Antes disso, éramos apenas mães a fazer troça das professoras de patinagem das nossas filhas nas costas delas; guardávamos lugar uma à outra nas reuniões de pais na escola; juntávamo-nos ocasionalmente com os respectivos maridos para jantar fora num bom restaurante. Mas um dia, quando as miúdas estavam a brincar no quarto de Emma, Charlotte contou-me que ela e Sean já estavam a tentar engravidar há mais de um ano, sem acontecer nada.
- Já tentei tudo - confidenciou. - Testes para prever a ovulação, dietas especiais, botas para a neve: tudo o que possas imaginar.
- Já consultaste um médico? - perguntei.
- Bem - disse ela. - Estava a pensar em consultar-te a ti.
Não aceito pacientes que conheço pessoalmente. Apesar do que toda a gente diz, não podemos ser médicos objectivos quando, na mesa de operações, está uma pessoa de quem gostamos. Podemos argumentar que as expectativas são sempre altas relativamente ao trabalho de um obstetra - e não há dúvida que me empenho sempre a cem por cento de cada vez que entro numa sala de partos - mas as
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expectativas são um pouco mais altas se a paciente estiver pessoalmente ligada a nós. Se falharmos, não estamos apenas a deixar uma paciente ficar mal. Estamos a
deixar ficar mal uma amiga.
- Não me parece que seja uma boa ideia, Charlotte - disse eu. É uma fronteira difícil de ultrapassar.
- Estás a referir-te àquela parte de teres a mão enfiada no meu colo do útero e por isso ser difícil olhares-me nos olhos quando formos às compras?
Sorri.
- Não é isso. Os úteros são todos iguais - disse eu. - É que uma médica deve ser capaz de manter a distância, em vez de estar envolvida pessoalmente.
- Mas é precisamente por isso que és perfeita para mim - argumentou Charlotte. - Outro médico vai ajudar-nos a conceber mas na verdade está-se nas tintas. Quero uma pessoa que se interesse para além da responsabilidade profissional. Quero uma pessoa que queira que eu tenha um bebé tanto como eu quero.
Dito dessa forma, como podia eu negar-lhe isso? Telefonava a Charlotte todas as manhãs para podermos dissecar as cartas ao editor no jornal regional. Ela era a primeira pessoa que procurava quando estava furiosa com Rob e precisava de desabafar. Sabia que champô usava, de que lado do carro se situava o depósito de gasolina do seu carro, como costumava tomar o café. Era, pura e simplesmente, a minha melhor amiga.
- Está bem - disse eu.
Um sorriso explodiu-lhe no rosto.
- Começamos agora? Desatei a rir.
- Não, Charlotte, não vou fazer um exame pélvico no chão da sala enquanto as crianças estão a brincar lá em cima.
Em vez disso, pedi-lhe para ir ao meu consultório no dia seguinte. Afinal, não havia nenhuma razão médica para ela e Sean terem dificuldade em conceber. Falámos sobre os óvulos e sobre o seu declínio em qualidade após as mulheres terem trinta anos, o que significava que podia demorar mais tempo a acontecer - mas que ainda seria possível. Receitei-lhe ácido fólico e pedi-lhe que registasse a temperatura basal do corpo. Disse a Sean (na que certamente terá sido a conversa que gostou mais de ter comigo até à data) que deviam ter relações sexuais com mais frequência. Durante seis meses, registei o calendário menstrual de Charlotte na minha própria agenda; telefonava-lhe no vigésimo oitavo dia a perguntar-lhe se já iniciara o período - e durante seis meses, isso aconteceu.
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- Talvez devêssemos falar sobre medicamentos para aumentar a fertilidade - sugeri e, no mês seguinte, mesmo antes da consulta com um especialista, Charlotte engravidou
da maneira tradicional.
Tendo em conta o tempo que demorou, a gravidez em si foi tranquila. As análises ao sangue e à urina de Charlotte apresentaram sempre resultados normais; a tensão
arterial nunca esteve alta. Estava sempre enjoada e telefonava-me depois de vomitar à meia-noite para me perguntar porque raio se chamavam enjoos matinais.
Na décima primeira semana de gravidez, ouvimos o batimento cardíaco pela primeira vez. Na décima quinta, fiz-lhe o triplo teste ao sangue para verificar a existência de defeitos neurais e síndroma de Down. Passados dois dias, quando chegaram os resultados, fui a casa dela no intervalo para o almoço.
- O que se passa? - perguntou, quando me viu de pé à porta.
- Os resultados dos testes. Temos de conversar.
Expliquei que o triplo teste não é cem por cento exacto, que foi criado especificamente para ter uma taxa de cinco por cento de resultados positivos, o que significa que cinco por cento das mulheres vão ser informadas que têm um risco mais elevado do que o normal de ter um bebé com síndroma de Down.
- Tendo em conta apenas a tua idade, o teu risco de teres um bebé com síndroma de Down é de um em duzentos e setenta - disse eu. - Mas os resultados do teste dizem que realmente o teu risco é maior do que a média: um em cento e cinquenta.
Charlotte cruzou os braços por cima do peito.
- Tens algumas opções - disse eu. - Tens uma ecografía marcada para daqui a três semanas. Podemos ver se há alguns sinais reveladores durante a ecografía. Se houver qualquer coisa, podes fazer uma ecografía de nível dois. Se não, podemos voltar a reduzir as hipóteses para um em duzentos e cinquenta, que está quase na média, e presumir que o teste foi um falso positivo. Mas lembra-te: não podes ficar completamente descansada com uma ecografia. Se quiseres uma resposta definitiva, tens de fazer uma amniocentese.
- Achava que isso podia provocar um aborto - disse Charlotte.
- E pode. Mas o risco disso acontecer é de um em duzentos e setenta. Neste momento do que a probabilidade de o bebé ter síndroma de Down.
Charlotte passou uma mão pelo rosto.
- Então essa amniocentese - disse ela. - Se se verificar que o bebé tem... - a voz dela desvaneceu-se. - Então e depois?
Sabia que Charlotte era católica. Também sabia, como médica, que era da minha responsabilidade dar toda a informação disponível
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a toda a gente. O que eles decidissem fazer com ela, segundo as suas crenças pessoais, era com eles.
- Então poderás decidir se queres ou não terminar a gravidez disse pausadamente.
Ela olhou para mim.
- Piper, esforcei-me muito para ter este bebé. Não vou desistir assim tão facilmente.
- Devias discutir o assunto com o Sean...
- Vamos fazer a ecografía - decidiu Charlotte. - E depois logo
vemos.
Por todas essas razões, lembro-me muito bem da primeira vez que te vimos no ecrã. Charlotte estava deitada na marquesa; Sean segurava-lhe na mão. Janine, a técnica de ecografias que trabalhava no meu consultório, estava a tirar as medidas antes de eu interpretar os resultados. Ia procurar hidrocefalia, um defeito do septo aurículo-ventricular
ou um defeito da parede abdominal, espessamento da prega da nuca, ausência ou redução do osso nasal, intestino ecogénico, úmeros ou fémures curtos: todas elas características distintivas utilizadas no diagnóstico do síndroma de Down através de uma ecografia. Certifiquei-me de que a máquina utilizada era a que chegara recentemente, nova em folha, tecnologia de ponta da altura.
Janine entrou no gabinete assim que terminou a ecografía.
- Não vejo nenhuma das habituais características suspeitas de síndroma de Down - disse ela. - A única anomalia são os fémures: estão no percentil seis.
Estão sempre a sair resultados desses - uma fracção de milímetro num feto pode fazê-lo parecer mais pequeno do que o normal e, na ecografía seguinte, estar tudo perfeitamente bem.
- Pode ser genético. A Charlotte é muito pequena. Janine acenou com a cabeça.
- Pois, vou só assinalar para poder ser seguido - fez uma pausa.
- Mas havia uma coisa estranha.
Levantei a cabeça da ficha que estava a preencher.
- O quê?
- Verifique as imagens do cérebro quando estiver lá dentro. Senti um aperto no coração.
- O cérebro?
- Anatomicamente tem uma aparência normal. Mas é incrivelmente... nítido - abanou a cabeça. - Nunca vi nada assim.
A máquina de fazer ecografias funcionava excepcionalmente bem - percebia por que razão Janine estava encantada com ela, mas não tinha tempo para falar sobre o novo equipamento.
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- vou dar-lhes as boas notícias - disse eu, e entrei na sala de ecografías.
Charlotte sabia; soube assim que me viu.
- Oh, graças a Deus - disse ela, e Sean debruçou-se para beijá-la. Depois ela agarrou-me na mão. - Tens a certeza?
- Não. As ecografias não são cem por cento fiáveis. Mas eu diria que as probabilidades de teres um bebé normal e saudável aumentaram radicalmente - olhei para o ecrã, com uma imagem parada de ti a chuchares no dedo. - O vosso bebé - disse eu - é perfeito.
No meu consultório não somos apologistas de ecografias recreativas - em termos gerais, isso engloba as ecografias que não sejam clinicamente necessárias. Mas, a dada altura, na vigésima sétima semana da gravidez de Charlotte, ela veio buscar-me para irmos ao cinema e eu ainda estava a fazer um parto no hospital. Passada uma hora, encontrei-a no meu gabinete com os pés apoiados na secretária a ler uma revista médica recente.
- Isto é fascinante - disse ela. - Gestão Contemporânea da Neoplasia Trofoblástica Gestacional. Lembra-me de levar uma destas para a próxima vez que estiver com
insónias.
- Desculpa - disse eu. - Não pensei que ia atrasar-me assim tanto. Dilatou até aos sete centímetros e depois parou completamente.
- Não faz mal. Também não queria ir ao cinema. O bebé tem estado a tarde toda a dançar em cima da minha bexiga.
- Uma futura bailarina?
- Ou jogador de futebol, na opinião do Sean - olhou para mim, tentando encontrar pistas sobre o sexo do bebé no meu rosto.
Sean e Charlotte decidiram não saber com antecedência. Quando os pais nos dizem isso, assentamo-lo nas fichas deles. Tive de fazer um esforço hercúleo para não espreitar na ecografia, para não revelar inadvertidamente o segredo.
Eram sete horas; a recepcionista já tinha ido para casa: as pacientes já se tinham ido todas embora. Charlotte pôde ficar à minha espera porque toda a gente sabia que éramos amigas.
- Não precisávamos de dizer-lhe que sabemos - disse eu.
- Sabemos o quê?
- O sexo do bebé. Lá porque não fomos ao cinema não quer dizer que não possamos ver um filme...
Charlotte abriu muito os olhos.
- Queres dizer, uma ecografia?
- Porque não? - encolhi os ombros.
- É seguro?
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- Completamente - sorri para ela. - Vá lá, Charlotte. O que tens a perder?
Passados cinco minutos, estávamos na sala de ecografías de Janine. Charlotte puxara a camisola para cima, abaixo do sutiã, e as calças para baixo do abdómen. Deitei-lhe gel na barriga e ela guinchou.
- Desculpa - disse eu. - Está frio. - Depois agarrei no transdutor e movimentei-o por cima da pele dela.
A tua imagem surgiu no ecrã como uma sereia a emergir à superfície das águas: num instante estava tudo negro e, depois, solidificando-se devagar numa imagem reconhecível. Ali estava uma cabeça, uma coluna vertebral, a tua mão minúscula.
Coloquei o transdutor num ponto entre as tuas pernas. Em vez dos ossos cruzados de um feto encolhido dentro do útero, as plantas dos teus pés praticamente tocavam uma na outra, com as pernas quase a formarem um círculo. A primeira fractura que vi foi a do fémur. Era anguloso, dobrado num ângulo, em vez de direito. Na tíbia via uma linha negra, uma nova fractura.
- Então? - disse Charlotte alegremente, esticando o pescoço para te ver no ecrã. - Quando é que eu posso ver as jóias da família?
Engoli, movimentando o transdutor para cima para a caixa torácica em forma de barril, as costelas semelhantes a contas. Ali havia cinco fracturas a sarar.
A sala começou a girar à minha volta. Ainda a segurar no transdutor, inclinei-me para a frente, colocando a cabeça entre os joelhos.
- Piper? - disse Charlotte, apoiando-se nos cotovelos.
Estudei a osteogénese imperfeita na faculdade de Medicina, mas nunca vira realmente um caso. O que me lembrava sobre ela eram imagens de fetos com fracturas dentro do útero como as tuas. Fetos que tinham morrido à nascença ou pouco tempo depois.
- Piper? - repetiu Charlotte. - Estás bem? Endireitando-me, respirei fundo.
- Estou - disse, com a voz a ceder. - Mas Charlotte... a tua filha não está.
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Sean
A primeira vez que ouvi as palavras osteogénese imperfeita foi depois de Piper ter trazido Charlotte a casa, histérica, depois daquela ecografia imprevista no consultório
de Piper. com Charlotte a soluçar nos meus braços, tentei encontrar alguma lógica nas palavras com que Piper me bombardeava, como se fossem mísseis: deficiência
no colagénio, ossos angulosos e espessos, costelas semelhantes a fios de contas. Já tinha telefonado para uma colega, a Dr.a Del Sol, que era especialista em medicina
materno-fetal de alto risco no hospital. Tínhamos outra ecografia marcada para as sete e meia da manhã.
Tinha acabado de chegar a casa do trabalho - uma obra infernal porque chovera durante a tarde e a noite toda. Ainda tinha os cabelos molhados do duche, com a camisola
colada à pele húmida das costas. Amélia estava lá em cima a ver televisão no nosso quarto e eu estava com uma embalagem de gelado na mão, a comer directamente com
uma colher, quando Piper e Charlotte entraram em casa.
- Bolas - disse eu. - Apanharam-me mesmo em flagrante. Depois percebi que Charlotte estava a chorar.
Nunca deixava de me surpreender com a forma como um dia vulgar podia transformar-se em algo invulgar num abrir e fechar de olhos. Por exemplo, a mãe que num instante
está a dar um brinquedo ao filho pequeno no assento de trás do carro e, no instante seguinte, a sofrer um violento acidente de viação. Ou o estudante universitário
a beber uma cerveja no alpendre, quando chegamos para detê-lo por ter violado uma colega. A mulher que abre a porta e vê um polícia no alpendre que lhe traz notícias
da morte do marido. Na minha profissão estive muitas vezes presente no
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momento de transição em que o mundo que conhecemos se transforma numa tragédia que nunca esperaríamos - mas nunca tinha estado do outro lado antes.
Parecia que tinha algodão na garganta.
- É muito grave? Piper desviou o olhar.
- Não sei.
- Esta osteopato...
- Osteogénese imperfeita.
- Como é que se trata?
Charlotte afastara-se de mim, de rosto inchado, olhos vermelhos.
- Não se trata - disse ela.
Naquela noite, depois de Piper se ter ido embora e Charlotte finalmente ter caído num sono agitado, fui à Internet e pesquisei OI no Google. Há quatro tipos, mais
outros três que foram recentemente identificados, mas apenas dois provocam fracturas dentro do útero. Os bebés do Tipo II morrem antes do nascimento, ou pouco depois.
Os bebés do Tipo III podem sobreviver, mas podem sofrer fracturas das costelas que dão origem a dificuldades respiratórias que os colocam em risco de vida. As anomalias
dos ossos agravam-se cada vez mais. Estas crianças podem até nunca chegar a andar.
Outras palavras começaram a aparecer no ecrã:
Ossos suturais. Achatamento vertebral. Varetas intramedulares. Baixa estatura - algumas pessoas não crescem mais de noventa centímetros.
Escoliose. Perda de audição.
A falha respiratória é a causa de morte mais frequente, seguida de trauma acidental.
Dado que a OI é uma doença genética, não tem cura.
Quando é diagnosticada antes do nascimento, a maioria destas gravidezes acaba em interrupção voluntária.
Por baixo disto havia uma fotografia de um bebé morto com OI do Tipo II. Não conseguia tirar os olhos das pernas nodosas, do tronco torcido. Era aquele o aspecto
do nosso bebé? Se fosse, não seria melhor morrer à nascença?
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Perante aquela ideia, cerrei os olhos e rezei a Deus para que Ele não estivesse a ouvir. Amar-te-ia mesmo que nascesses com sete cabeças e uma cauda. Amar-te-ia
mesmo que nunca chegasses a respirar nem a abrir os olhos para me ver. Já te amava; e isso não ia mudar só porque tinhas um problema nos ossos.
Limpei rapidamente o registo da pesquisa para que Charlotte não acedesse acidentalmente à fotografia quando estivesse a navegar na Internet, e subi as escadas silenciosamente.
Despi-me às escuras e deitei-me na cama ao lado da tua mãe. Quando coloquei os braços em volta dela, ela aproximou-se mais de mim. Deixei a mão cair por cima do
volume da barriga dela mesmo quando deste um pontapé, como se quisesses dizer-me para não me preocupar, para não acreditar numa só palavra do que tinha lido.
No dia seguinte, depois de outra ecografia e de uma radiografia, a Dr.a Gianna Del Sol reuniu-se connosco no consultório para examinar o relatório.
- A ecografia revelou um crânio desmineralizado - explicou ela. Os ossos longos dela apresentam três desvios à média padrão, são angulosos e espessos, de uma forma
que indica a existência tanto de fracturas a sarar como de novas fracturas. A radiografia deu-nos uma imagem melhor das fracturas das costelas. Tudo isto indica
que a vossa bebé sofre de osteogénese imperfeita.
Senti a mão de Charlotte deslizar debaixo da minha.
- Baseando-me no facto de existirem múltiplas fracturas, parece-me que estamos perante um Tipo II ou um Tipo III.
- Um é pior do que o outro? - perguntou Charlotte. Olhei para o colo, porque já sabia a resposta.
- Os casos de Tipo II normalmente não sobrevivem após o nascimento. Os casos de Tipo III são gravemente incapacitantes e por vezes apresentam uma mortalidade precoce.
Charlotte começou novamente a chorar; a Dr.a Del Sol deu-lhe uma caixa de lenços de papel.
- É muito difícil distinguir se uma criança tem o Tipo II ou o Tipo III. O Tipo II pode por vezes ser diagnosticado através de ecografia às dezasseis semanas, o Tipo
III às dezoito. Mas cada caso é diferente, e a sua ecografia anterior não revelou nenhuma fractura. Por causa disso, não posso dar-lhe um prognóstico totalmente exacto:
para além de que no melhor dos casos será grave, e no pior será letal.
Olhei para ela.
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- Então mesmo que pense que se trata de um caso do Tipo II, e que o bebé não tem hipóteses de sobreviver, pode ir contra todas as probabilidades?
- Já aconteceu - disse a Dr.a Del Sol. - Li um caso de estudo em que apresentaram um prognóstico letal aos pais, mas estes decidiram continuar a gravidez e acabaram
com uma criança com o Tipo III. Mas as crianças do Tipo III são gravemente incapacitadas. Sofrem centenas de fracturas ao longo da vida. Podem não ser capazes de andar.
Pode haver problemas respiratórios, dores nos ossos, fraqueza muscular, deformações cranianas e da coluna vertebral - hesitou. - Há sítios onde vos podem ajudar,
se estiverem dispostos a considerar terminar a gravidez.
Charlotte estava grávida de vinte e sete semanas. Que clínica aceitaria fazer um aborto às vinte e sete semanas?
- Não estamos interessados em terminar a gravidez - disse eu, e olhei para Charlotte para que ela confirmasse, mas estava a olhar para a médica.
- Já nasceu aqui algum bebé com Tipo II ou Tipo III? - perguntou.
A Dr.a Del Sol acenou com a cabeça.
- Há nove anos. Não estava cá nessa altura.
- Quantas fracturas tinha esse bebé quando nasceu? -Dez.
Então Charlotte sorriu, pela primeira vez desde a noite anterior.
- A minha só tem sete - disse ela. - Já é melhor, não é? A Dr.a Del Sol hesitou.
- Aquele bebé não sobreviveu - disse ela.
Uma manhã, quando o carro de Charlotte estava na oficina, levei-te à fisioterapia. Uma rapariga muito simpática, com os dentes da frente separados, chamada Molly
ou Mary (esqueço-me sempre) mandou-te equilibrares-te numa grande bola vermelha, o que gostavas de fazer, e mandou-te fazer abdominais, que não gostavas. De cada
vez que te enrolavas do lado da omoplata a sarar, cerravas os lábios e escorriam-te lágrimas dos cantos dos olhos. Acho que nem sequer sabias que estavas a chorar
- mas depois de assistir a isto durante cerca de dez minutos, já não aguentava mais. Disse a Molly/Mary que tínhamos outra consulta, uma mentira, e instalei-te na
cadeira de rodas.
Detestavas estar na cadeira, e não posso dizer que te censurava. Uma boa cadeira de rodas pediátrica era melhor quando era feita por medida, porque assim ficavas
confortável, em segurança e
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com mobilidade. Mas essas cadeiras custam mais de 2800 dólares, e o seguro só paga uma de cinco em cinco anos. A cadeira de rodas em que andavas naquela altura fora
feita quando tinhas dois anos, e tinhas crescido bastante desde essa altura. Nem sequer imaginava como conseguirias enfiar-te lá aos sete anos.
Nas costas tinha pintado um coração cor-de-rosa e as palavras FRÁGIL. Empurrei-te até ao carro e coloquei-te na cadeirinha, depois dobrei a cadeira de rodas e meti-a
na parte de trás da carrinha. Quando me sentei no assento do condutor e verifiquei se estavas bem, através do espelho retrovisor, estavas agarrada ao braço magoado.
- Papá - disseste - não quero lá voltar.
- Eu sei, querida.
De repente soube o que fazer. Deixei passar a nossa saída na auto-estrada, e segui até ao Comfort Inn em Dover, onde paguei sessenta e nove dólares por um quarto
que não fazia intenções de usar. Empurrei-te na direcção da piscina coberta, presa à cadeira de rodas.
Estava vazia, numa terça-feira de manhã. O espaço cheirava intensamente a cloro e havia seis cadeiras reclináveis em vários estados de desarranjo espalhadas por
ali. Uma clarabóia era responsável por uma dança de diamantes à superfície da água. Uma pilha de toalhas às riscas verdes e brancas estava pousada em cima de um
banco debaixo de um letreiro: NADE POR SUA CONTA E RISCO.
- Wills - disse eu - tu e eu vamos nadar. Olhaste para mim.
- A mãe disse que eu não podia até o meu ombro...
- A mãe não está aqui para descobrir, pois não? Um sorriso iluminou-te o rosto.
- E os nossos fatos de banho?
- Bem, isso faz parte do plano. Se fôssemos a casa buscar os nossos fatos de banho, a mãe ia ficar a saber que andávamos a tramar alguma, não ia? - despi a minha
T-shirt, descalcei os ténis e fiquei com um par de calções de caqui desbotados. - Eu estou pronto.
Riste e tentaste tirar a camisola pela cabeça, mas não conseguias levantar o braço o suficiente. Ajudei-te e depois despi-te os calções para que ficasses sentada na cadeira de rodas de cuecas. Diziam QUINTA-FEIRA, na parte da frente, embora fosse terça. Na parte de trás tinham o rosto sorridente de um Smile amarelo.
Depois de teres estado quatro meses engessada, as tuas pernas eram brancas e magras, demasiado frágeis para aguentarem o
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teu peso. Mas segurei-te por debaixo dos braços enquanto caminhavas para junto da água e depois sentei-te nos degraus. Tirei um colete salva-vidas para criança,
de um contentor encostado à parede do fundo, e coloquei-to. Levei-te nos meus braços até ao meio da piscina.
- Os peixes são capazes de nadar a cento e dez quilómetros por hora - disseste tu, agarrada aos meus ombros.
- É impressionante.
- O nome mais vulgar para um peixinho dourado é Jaws - agarraste-te ao meu pescoço, num abraço mortal. - Uma lata de Coca-Cola Light flutua numa piscina. A Coca-Cola normal afunda-se...
- Willow? - disse eu. - Sei que estás nervosa. Mas se não fechares a boca, vai entrar muita água - e larguei-te.
Como seria previsível, entraste em pânico. Os braços e as pernas começaram a rodar, e a força combinada fez-te virares-te de costas, debatendo-te na água a olhares para o tecto.
- Papá! Papá! Estou a afogar-me!
- Não estás a afogar-te. - Endireitei-te. - São aqueles músculos do estômago. Os que não querias exercitar hoje na fisioterapia. Pensa em movimentares-te devagar e em ficares direita - soltei-te, desta vez com mais delicadeza.
Gargarejaste, com a boca debaixo de água. Lancei-me imediatamente para te alcançar, mas tu endireitaste-te.
- Eu consigo - disseste, talvez a mim, talvez a ti própria. Moveste um braço na água, e depois o outro, compensando o ombro que ainda estava a sarar. Bateste as pernas. E estavas cada vez mais perto de mim. - Papá! - gritaste, embora estivesse apenas a meio metro de distância. - Papá! Olha para mim!
Vi-te avançar, centímetro a centímetro.
- Olha para ti - disse eu, enquanto nadavas sob o peso da tua própria convicção. - Olha para ti.
- Sean - disse Charlotte naquela noite, quando pensava que ela já tinha adormecido ao meu lado - a Marin Gates telefonou hoje.
Estava virado de lado, a olhar para a parede. Sabia porque a advogada telefonara a Charlotte: porque eu não tinha respondido às seis mensagens que ela me tinha deixado no telemóvel a perguntar-me se já tinha devolvido os documentos assinados a declarar que aceitava instaurar um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal - ou se se teriam extraviado nos correios.
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Sabia exactamente onde estavam esses documentos: dentro do porta-luvas do meu carro, onde os tinha enfiado depois de Charlotte mos ter entregado há um mês.
- vou tratar disso - disse eu. Pousou-me a mão no ombro.
- Sean... Virei-me de barriga para cima.
- Lembras-te do Ed Gatwick? - perguntei.
- O Ed?
- Pois. O tipo que se formou ao mesmo tempo do que eu na academia? Estava de serviço em Nashua. Respondeu a uma chamada na semana passada por causa de actividades
suspeitas numa residência, feita por um vizinho. Disse ao colega que estava com um mau pressentimento em relação àquilo, mas entrou mesmo a tempo de o laboratório de metanfetamina, na cozinha, lhe explodir na cara.
- Que horror...
- O que eu quero dizer - interrompi - é que devemos sempre dar ouvidos aos nossos instintos.
- E eu dou - disse Charlotte. - Eu dei. Ouviste o que a Marin disse. A maior parte destes casos resolve-se fora do tribunal. É dinheiro. Dinheiro que podíamos gastar
com a Willow.
- Pois, e a Piper é que paga por isso. Charlotte ficou calada.
- A Piper tem um seguro contra negligência médica.
- Não me parece que isso a proteja de ser apunhalada pelas costas pela melhor amiga.
Puxou os lençóis à sua volta, sentando-se na cama.
- Ela faria o mesmo se fosse a filha dela. Fiquei a olhar para ela.
- Não me parece. Acho que a maioria das pessoas não o faria.
- Bem, não quero saber o que pensam os outros. A opinião da Willow é a única que conta - disse Charlotte.
Apercebi-me de que era precisamente por isso que ainda não tinha assinado aqueles malditos documentos. Tal como Charlotte, estava a pensar só em ti. Estava a pensar
no momento em que te apercebesses de que não sou um cavaleiro andante. Sabia que isso acabaria por acontecer - faz parte do crescimento. Mas não queria apressar
as coisas. Queria ser o teu cavaleiro enquanto acreditasses em mim.
- Se a opinião da Willow é a única que conta - disse eu como vais explicar-lhe o que vais fazer? Quero dizer, se quiseres
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mentir no banco das testemunhas, dizer que tê-la-ias abortado, isso é contigo. Mas à Willow isso vai parecer-se muito com a verdade.
Os olhos de Charlotte encheram-se de lágrimas.
- Ela é inteligente. Vai compreender que não importa o que as coisas parecem à superfície. Ela vai saber bem lá no fundo que a
amo.
Era um paradoxo. A minha recusa em assinar aqueles documentos não implicava que Charlotte não tentasse avançar sem mim. Se me recusasse a assinar aqueles documentos,
o abismo entre nós magoar-te-ia também. Mas, e se as previsões de Charlotte se concretizassem, se o dinheiro que recebêssemos de indemnização quase justificasse
o mal que tivéssemos feito para obtê-lo? E se este processo legal te possibilitasse teres todos os instrumentos adaptativos de que precisasses, toda a fisioterapia
que o seguro não cobria?
Se queria mesmo o melhor para ti, como podia assinar aqueles documentos?
Como podia não os assinar?
De repente, queria fazer Charlotte ver como tudo aquilo estava a dilacerar-me por dentro. Queria que ela sentisse aquele nó nauseante que eu sentia de cada vez que
abria o porta-luvas e via o envelope. Era como a caixa de Pandora - ela abrira-a, e de lá só saíra a solução para um problema que nunca imaginámos que pudesse ser
solucionado. Fechar a tampa não ia alterar nada; não podíamos ignorar o que agora sabíamos ser possível.
Acho que, para ser sincero, queria castigá-la por me ter colocado naquela situação, onde não havia preto e branco mas sim mil tons de cinzento.
Ela ficou surpreendida quando a agarrei e beijei. De início recuou, olhando para mim, e depois inclinou-se para junto do meu corpo, confiando em mim para a levar
a percorrer aquela estrada estonteante aonde a levara milhares de vezes antes.
- Amo-te - disse eu. - Acreditas?
Charlotte acenou com a cabeça e, assim que o fez, cerrei os dedos nos cabelos dela, forçando-a a baixar a cabeça para trás, prendendo-a ao colchão.
- Sean, estás a esmagar-me - sussurrou, e eu tapei-lhe a boca com uma mão e arranquei-lhe as calças do pijama com a outra. Forcei o caminho para dentro dela, mesmo
quando lutou contra mim, mesmo quando vi as costas dela arquearem-se de surpresa e talvez dor, mesmo quando os olhos dela se encheram de lágrimas.
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- Não importa o que as coisas parecem à superfície - sussurrei, as suas próprias palavras a fustigarem-na como um chicote. Bem lá no fundo sabes que te amo.
Tinha começado aquilo por querer que Charlotte se sentisse mesmo mal, mas também eu acabei por ficar a sentir-me mesmo mal. Por isso saí de cima dela, puxando as
boxers para cima. Charlotte virou-se para o outro lado, enrolando-se numa bola.
- Seu sacana - soluçou ela. - Seu sacana de merda.
Ela tinha razão; era um sacana. Tinha de ser, se não não teria sido capaz de fazer o que fiz a seguir: fui até ao carro para ir buscar aqueles documentos ao porta-luvas.
Fiquei sentado às escuras, na cozinha, toda a noite, a olhar para eles, como se as palavras pudessem reorganizar-se em algo mais aceitável. Bebi um shot de whisky
por cada linha em que Marin Gates colocara uma pequena seta amarela Post-it, apontando para o espaço onde devia estar a minha assinatura.
Adormeci na mesa da cozinha, acordando antes de o Sol nascer. Quando entrei em bicos de pés no quarto, Charlotte ainda estava a dormir. Estava deitada de lado, enrolada
como um caracol, com o lençol e o edredão amachucados numa bola aos pés da cama. Puxei-os para cima dela delicadamente, como às vezes te fazia quando soltavas os
cobertores.
Deixei os documentos, assinados em todos os sítios certos, na almofada ao lado dela. com um bilhete preso com um clipe na parte de cima. "Desculpa", escrevi. "Perdoa-me."
Depois fui de carro para o trabalho, sempre a pensar se aquele bilhete seria para Charlotte, para ti ou para mim próprio.
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Amélia
Fim de Agosto de 2007
O melhor é dizer logo que vivemos nas berças, e embora os meus pais parecessem achar que isso seria uma enorme vantagem para a minha vida futura (Porquê? Para eu
saber reconhecer o cheiro da relva? Por não termos de trancar a porta de casa?), pelo menos eu desejava ter direito a dar a minha opinião relativamente ao sítio
para onde fôssemos morar. Fazem alguma ideia do que é não podermos ter um modem de banda larga quando até os esquimós os têm? Ou ir comprar roupa para levar para
a escola no Wal-Mart porque o centro comercial mais próximo fica a hora e meia de caminho? No ano passado, em estudos sociais, quando estávamos a estudar os castigos
cruéis e desumanos, escrevi uma composição inteira sobre viver num sítio em que a oferta de lojas variava entre zero e nada, e embora toda a gente da minha turma tivesse concordado totalmente comigo, só tive um bom, porque a minha professora era daquele género de hippy de Birkenstock e cereais integrais que achava que Bankton,
no New Hampshire, era o melhor lugar da terra.
Mas hoje todos os planetas deviam estar alinhados, porque a minha mãe tinha concordado em ir ao Target contigo, com a Piper e com a Emma.
A ideia foi da Piper - mesmo antes do ano lectivo começar; às vezes decidia ir às compras com a filha. A minha mãe normalmente tinha de ser convencida a ir também, porque parecia que estava sempre com falta de dinheiro. Como seria inevitável, Piper acabaria por comprar-me coisas, e a minha mãe sentir-se-ia culpada jurando que nunca mais voltaria a ir às compras com a Piper "Qual é o problema?" diria Piper "Gosto de fazer as miúdas felizes." E qual era o problema? Se Piper queria aumentar o meu guarda-roupa, não ia negar-lhe essa pequena alegria.
Quando Piper telefonou naquela manhã, achei que a mãe ia aproveitar a oportunidade. Tinhas conseguido mais uma vez que um par de sapatos que nem sequer tinhas usado
te deixasse de servir Normalmente - era
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só um deles - o esquerdo era usado enquanto o pé direito estava engessado durante alguns meses - mas com o molde de gesso que usaste naquela Primavera, ambos os
pés aumentaram um número e as solas dos sapatos antigos estavam praticamente novas. A verdade - passados seis meses, quando estavas oficialmente a voltar a aprender
a andar - é que a mãe tinha demorado uma semana para perceber que a razão por que te retraías sempre que ela te obrigava a usar o andador para ires à casa de banho sozinha, não tinha nada a ver com dores nas pernas, mas sim com os pés estarem enfiados em ténis muito apertados.
Para meu espanto, a mãe não queria ir. Estava mesmo esquisita; quase deu um salto quando eu apareci por trás dela enquanto bebia um café e lia uns documentos legais que pareciam completamente entediantes e cheios de palavras como NO QUE DIZ RESPEITO e QUEM QUER QUE SEJA. E quando a Piper telefonou e eu lhe passei o telefone,
a mãe deixou-o cair duas vezes.
- Não posso - ouvi-a dizer a Piper-Tenho umas coisas mesmo muito importantes para fazer
- Por favor, mãe! - disse eu, saltitando à volta dela. - Prometo, nem sequer vou aceitar uma pastilha da Piper. Não vai ser como da última vez.
Qualquer coisa que eu disse deve ter surtido efeito porque ela olhou para aqueles documentos e depois para mim.
- Pela última vez - repetiu distraidamente e, quando dei por mim, íamos a caminho de Concord para ir às compras.A nossa mãe ainda estava um bocado ausente, mas eu
não reparei. A carrinha da Piper tem um sistema de DVD e tu, a Emma e eu tínhamos auscultadores sem fios para podermos ouvir De Repente, já nos 30!, que é o melhor filme de sempre. Vira-o da última vez em nossa casa e a Piper fizera a coreografia toda do Thriller com a Jennifer Garnen levando a Emma a declarar que ia morrer ali mesmo de vergonha, embora eu achasse, em segredo, que era mesmo fixe que a Piper se lembrasse de todos os passos.
Passadas duas horas, a Emma e eu estávamos na secção dos jovens. Embora a maior parte das roupas parecessem ter sido criadas pela Rameira Rasca, Lda, com decotes em V que chegavam ao umbigo e calças tão descaídas que pareciam meias pelo joelho, era emocionante fazer compras numa secção que não era a das crianças. Do outro lado do corredor, Piper estava a empurrar a tua cadeira de rodas. Entretanto, a mãe - que estava ainda de pior humor; se é que é possível - estava sempre a ajoelhar-se para experimentar sapatos nos teus pés.
- Sabias que aquelas coisinhas de plástico nas pontas dos atacadores se chamam agulhetas?
- Por acaso até sabia - disse ela, exasperada - porque me disseste da última vez que fizemos isto.
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Vi Emma pôr-se em bicos de pés para pegar numa camisola que, como diria a minha mãe, mostrava tudo a toda a gente.
- Emma! - disse eu. - Deves estar a brincar!
- Usa-se com uma camisola justa - disse ela, e eu fingi que já sabia. A verdade é que a Emma provavelmente podia vesti-la e parecer que tinha dezasseis anos, porque já media um metro e sessenta e cinco e era alta e magra como a mãe. Eu não usava camisolas justas. Era demasiado deprimente saber que o pneu na minha barriga sobressaía mais do que as mamas.
Enfiei a mão no bolso da camisola. Lá dentro estavam sacos de plástico com fecho. Andava com eles desde a semana anterior. Já me tinha obrigado a vomitar em lugares
que não eram casas de banho, duas vezes - uma vez por trás do ginásio da escola, outra vez na cozinha da Emma, enquanto ela estava lá em cima à procura de um CD.
Fazia-o quando chegava a um ponto em que não conseguia pensar noutra coisa "Seria descoberta? Faria passar a dor que sentia na barriga?" e só passava quando cedia e fazia isso logo de uma vez, só que quando isso acontecia, ficava a odiar-me a mim própria por não ter aguentado.
- Isto ia ficar-te bem - disse Emma, mostrando um par de calças de fato de treino que serviriam a um elefante.
- Não gosto de amarelo - disse eu, e deambulei pelo corredor.
Piper e a mãe estavam a meio de uma conversa. Bem, não era bem assim. Piper estava a meio de uma conversa e a mãe estava fisicamente presente no mesmo espaço. Estava
completamente distraída, acenava com a cabeça nas alturas certas mas não estava propriamente a ouvir. Pensava que era capaz de enganar as pessoas, mas não era assim
tão boa actriz. Como tu, por exemplo. Quantas discussões ela e o pai tiveram sobre se deviam ou não contratar um advogado, enquanto tu estavas na sala ao lado? E
depois, quando perguntavas porque estavam a discutir, ela insistia que não estavam. Pensaria realmente que estavas assim tão absorta pelos episódios de Drake josh que não estivesses a escutar cada palavra?
Quem me dera que ela ouvisse. Quem me dera que ela ouvisse as coisas que me perguntavas quando estávamos deitadas na cama à noite, antes de adormecermos: "Amélia, vamos viver todos aqui para sempre? Amélia, ajudas-me a lavar os dentes para eu não ter de pedir à mãe? Amélia, os nossos pais podem voltar a mandar-nos para o sítio de onde viemos?"
Era assim tão surpreendente que eu desse por mim a olhar para o meu rosto repugnante e para o meu corpo ainda mais repugnante no espelho? A minha mãe ia contratar um advogado para instaurar um processo por causa de uma filha que não tinha nascido perfeita.
- Onde está Emma? - perguntou Piper
- Na secção dos jovens, a ver fops.
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- Decentes, ou daqueles que parecem anúncios de pornografia? perguntou Piper - Algumas roupas que fazem para as miúdas da vossa idade devem ser ilegais.
Ri.
- A Emma pode sempre contratar um advogado. Nós conhecemos um bom.
-Amélia! - gritou a minha mãe. - Olha o que me fizeste fazer! - Mas disse isto antes de derrubar todo o suporte de cabides das camisolas.
- Oh, bolas - disse Piper, apressando-se a arranjar os cabides. Por cima da cabeça dela, a nossa mãe abanou a cabeça de lábios cerrados.
Estava zangada comigo e eu nem sequer sabia porquê. Passei pela floresta de roupas para raparigas, de mãos abertas a roçarem nas lianas das pernas das calças e das mangas. Baixei a cabeça ao passar outra vez pela Emma. O que teria eu feito de mal?
Por outro lado, o que é que eu não fazia mal? ,
Era quase como se ela estivesse zangada comigo por ter mencionado o advogado em frente de Piper Mas Piper é a melhor amiga dela. Aquele assunto legal estava no centro de tudo em nossa casa, como um dinossáurio à mesa de jantar que todos fingíamos não estar a enfiar a grande cabeça peçonhenta no puré de batata. Era impossível ter-se esquecido de referir o assunto à Piper, não era?
A menos que... não o tivesse feito propositadamente.
Teria sido por isso que não queria ir às compras com a Piper? Que não tinha ido a casa dela recentemente quando estávamos lá perto, como costumávamos fazer? Quando a nossa mãe falava em danos e em receber o dinheiro suficiente para poder tomar conta de ti e ajudar-te ao máximo, eu não tinha pensado muito na pessoa que estava
do outro lado do processo legal. Se era o médico que ela tinha consultado durante a gravidez... bem, esse médico era Piper.
De repente eu não era a única pessoa na vida da minha mãe que se tinha revelado uma desilusão. Mas, em vez de me sentir livre desse peso, senti-me apenas enjoada.
Levantei-me, virando as esquinas às cegas, até dar por mim na secção de lingerie. Nessa altura estava a chorar; e que sorte a minha, a única empregada da Target que não estava nas caixas registadoras por acaso estava mesmo à minha frente.
- Querida - perguntou. - Estás bem? Estás perdida?
Como se eu tivesse cinco anos e tivesse sido separada da minha mãe. O que, realmente, não estava assim tão longe da verdade.
- Estou bem - disse eu, baixando a cabeça. - Obrigada. - Passei por ela, dirigindo-me para os sutiãs, quando um me ficou preso na manga. Era
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cor-de-rosa, de cetim, com pintinhas castanhas. Parecia daquele tipo de coisas que Emma costumava usar
Em vez de voltar a colocá-lo no cabide, enfiei-o no bolso, junto aos sacos de plástico. Apertei-o com os dedos e verifiquei se a empregada estava a olhar. O cetim
era frio entre os dedos. Era capaz de jurar que pulsava num bater de coração secreto.
-Tens a certeza de que estás bem? - voltou a perguntar-me a mulher -Tenho - disse eu, e a mentira saiu com facilidade, lembrando-me de que, por muito que a detestasse
naquele momento, eu era filha da minha mãe.
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Piper
Setembro de 2007
Sempre disse que a melhor coisa na minha profissão é que não sou eu que tenho de fazer o trabalho: isso é com a futura mãe e eu basicamente vigio o que está a acontecer e faço com que as coisas corram bem.
- Muito bem, Lila - disse eu, retirando a mão de entre as pernas dela. - Está com dez centímetros. Está quase. Agora tem de fazer força.
Ela abanou a cabeça.
- Faça a doutora - disse ela entre dentes.
Estava em trabalho de parto há dezanove horas; compreendia perfeitamente porque queria descartar-se.
- És tão bonita - disse o marido numa voz doce, segurando-lhe nos ombros.
- E tu és um mentiroso - rosnou Lila, mas quando uma contracção se abateu sobre ela como uma rede, debruçou-se para a frente e fez força. Vi a cabeça do feto aproximar-se e segurei-a com a mão para impedir que saísse demasiado depressa e rasgasse o períneo.
- Outra vez - insisti. Desta vez, a cabeça do feto avançou como uma maré, e quando a boca e o nariz passaram pela pele de Lila, aspirei-os. O resto da cabeça saiu e passei o cordão por cima dela, apoiando-a enquanto virava o bebé para controlar os ombros. Passados cinco segundos, o bebé estava equilibrado na balança das minhas mãos.
- É um rapaz - disse eu, enquanto ele anunciava a sua presença com um choro saudável.
Prendi o cordão com pinças e o marido de Lila cortou-o.
- Oh, querida - disse ele, beijando-a na boca.
- Oh, querido - repetiu Lila, enquanto a enfermeira parteira lhe colocava o filho recém-nascido nos braços.
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Sorri e voltei para o meu lugar aos pés da cadeira de partos. Agora vinha a parte pouco cerimoniosa do evento feliz: ficar à espera que surgisse a placenta, como
um convidado retardatário; verificar a vagina, o colo do útero e a vulva para ver se há lacerações e repará-las se necessário; fazer um exame digital rectal.
Para
ser sincera, os pais normalmente estavam tão absortos com o novo membro da família que nem sequer reparavam que eu continuava a trabalhar abaixo da cintura.
Passados dez minutos, dei os parabéns ao casal, descalcei as luvas, lavei as mãos e fui lá para fora para preencher o monte de papelada. Mas mal tinha dado dois passos fora da sala de partos, um homem de calças de ganga e pólo aproximou-se. Parecia perdido, como um pai a entrar no bloco de partos à procura da mulher.
- Posso ajudá-lo? - perguntei.
- É a Dr.a Reece? A Dr.a Piper Reece?
- Culpada.
Tirou o que parecia uma brochura azul dobrada do bolso de trás das calças e entregou-ma.
- Obrigado - disse ele, e deu meia volta.
Abri o documento e vi as palavras "ACÇÃO LEGAL POR NEGLIGÊNCIA MÉDICA NO DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL."
"Nascimento de uma criança doente.
O direito dos pais a serem indemnizados baseia-se no facto de a arguida ter privado, por negligência, os pais do seu direito de não conceberem uma criança ou de impedirem o nascimento da mesma.
Negligência médica.
A arguida não prestou os cuidados devidos.
Os queixosos sofreram perdas ou danos."
Nunca tinha sido processada antes embora, tal como quase todos os obstetras, tivesse seguro contra negligência médica. Até certo ponto sabia que o facto de ainda
não ter sido processada se devia a pura sorte - que isso ia acontecer mais cedo ou mais tarde. Só que não estava à espera que parecesse uma afronta tão pessoal.
Sem dúvida que tinham ocorrido tragédias ao longo da minha carreira - bebés nados-mortos, mães cujas complicações durante o
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parto conduziram a hemorragia excessiva e até mesmo a morte cerebral. Esses acidentes estavam sempre comigo, todos os dias; não precisava de um processo legal para
revivê-los vezes sem conta e pensar no que podia ter sido feito de maneira diferente.
Que tragédia teria precipitado aquilo? Os meus olhos examinaram novamente a página, lendo os nomes dos queixosos, em que não reparara da primeira vez.
"SEAN E CHARLOTTE O'KEEFE contra PIPER REECE."
De repente deixei de ver. O espaço entre os meus olhos e o papel ficou vermelho, como o sangue que latejava tão alto nos meus ouvidos que não ouvi uma enfermeira perguntar-me se estava tudo bem. Fui a cambalear até ao fundo do corredor e entrei na primeira porta que encontrei - um dispensário cheio de gaze e roupa de cama.
A minha melhor amiga ia processar-me por negligência médica.
Por negligência médica no diagnóstico pré-natal.
Por não lhe ter falado mais cedo na tua doença para que pudesse abortar a criança que me implorara que a ajudasse a conceber.
Atirei-me para o chão e apoiei a cabeça nas mãos. Há uma semana tínhamos ido ao Target com as miúdas. Convidei-a para almoçar num restaurante italiano. Charlotte experimentou um par de calças pretas e rimos das cinturas descaídas e de como devia haver tangas com suporte para mulheres com mais de quarenta anos. Comprámos pijamas iguais para Emma e Amélia.
Tínhamos passado sete horas juntas e ela nunca me disse que ia processar-me.
Tirei o telemóvel do cinto e liguei para ela com marcação rápida era a tecla número 3, depois de Casa e do consultório do Rob.
- Está? - Charlotte atendeu. Demorei um instante a recuperar a voz.
- O que é isto?
- Piper?
- Como foste capaz? Esteve tudo bem durante cinco anos, e agora de repente processas-me sem mais nem menos?
- Não me parece que devêssemos estar a falar sobre isto ao telefone...
- Por amor de Deus, Charlotte. Achas que mereço isto? O que foi que eu te fiz?
Fez-se um silêncio.
- Foi o que não fizeste - disse Charlotte, e desligou.
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Os ficheiros clínicos de Charlotte estavam no meu consultório, a dez minutos de carro do bloco de partos do hospital. Quando entrei, a minha recepcionista olhou
para cima.
- Pensava que estava a fazer um parto - disse ela.
- Já acabou - passei por ela e entrei na sala de registos, depois fui outra vez lá para fora, para o carro.
Sentei-me atrás do volante com a pasta no colo. "Não penses nisto como sendo a Charlotte", disse para comigo. "Trata-se apenas de uma paciente qualquer." Mas depois tentei arranjar coragem para abrir a pasta de cartão castanho-amarelado com as etiquetas de cores vivas na ponta, e não consegui.
Fui ao consultório do Rob. Era o único ortodontista em Bankton, no New Hampshire, e podia dizer-se que detinha o monopólio do mercado de adolescentes, mas mesmo assim esforçava-se por transformar a ida ao dentista em algo que os miúdos gostassem. A um canto do consultório havia um televisor com um grande ecrã onde na altura estava a dar uma comédia de adolescentes. Havia uma máquina de pinball e um computador onde os pacientes podiam jogar videojogos. Dirigi-me à recepcionista dele, Keiko.
- Olá, Piper - disse ela. - Uau, acho que já não a via aqui há uns bons seis meses...
- Preciso de falar com o Rob - interrompi. - Já. - Agarrei na pasta que tinha nas mãos com mais força. - Pode dizer-lhe que estou à espera no gabinete?
Ao contrário do meu, que era de todas as cores do mar e projectado para deixar as mulheres à vontade, apesar dos moldes de gesso a ilustrar o desenvolvimento fetal, nas prateleiras, como pequenos Budas, o de Rob era luxuoso, forrado com painéis, masculino. Tinha uma secretária enorme, estantes de mogno, fotografias de Ansel Adams nas paredes. Sentei-me na cadeira estofada de cabedal e girei-a uma vez. Ali sentia-me pequena. Inconsequente.
Fiz a única coisa que desejava fazer há duas horas: comecei a chorar.
- Piper? - disse Rob quando entrou e me encontrou a soluçar. O que foi? - passado um segundo estava ao meu lado, a cheirar a pasta de dentes e café quando me abraçou. - Estás bem?
- vou ser processada - consegui dizer. - Pela Charlotte. Ele afastou-se.
- O quê?
- Negligência médica. Por causa da Willow.
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- Não percebo - disse Rob. - Nem sequer assististe ao parto.
- É por causa do que aconteceu antes - olhei para a pasta, ainda em cima da secretária. - Do diagnóstico.
- Mas diagnosticaste-a. Encaminhaste-a para o hospital onde descobriram.
- Aparentemente a Charlotte acha que devia ter-lhe dito mais cedo, porque assim podia ter abortado.
Rob abanou a cabeça.
- Pronto, isso é ridículo. Eles são católicos fundamentalistas. Lembras-te daquela vez em que tu e o Sean começaram a discutir sobre a lei do aborto e ele saiu do
restaurante?
- Isso não importa. Tenho outras pacientes que são católicas. Aconselhamos a terminar a gravidez independentemente disso, se constituir uma opção. Não tomamos a
decisão pelo casal com base naquilo que pensamos acerca deles.
Rob hesitou.
- Talvez seja por causa do dinheiro.
- Ias arruinar a reputação médica do teu melhor amigo só para receberes uma indemnização?
Rob olhou para a pasta.
- Se bem te conheço, documentaste aí, até ao mais ínfimo pormenor, a gravidez da Charlotte, não foi?
- Não me lembro.
- Bem, o que está escrito na ficha?
- Não... não consigo abri-la, Rob.
- Querida, se não te lembras, provavelmente não há nada para te lembrares. Isto é um disparate. Examina a ficha, e entrega o caso aos advogados. É para isso que tens seguro, não é?
Acenei com a cabeça.
- Queres que fique contigo? Abanei a cabeça.
- Estou bem - disse eu, embora não acreditasse. Quando a porta se fechou atrás dele, respirei fundo e abri a pasta. Comecei mesmo pelo princípio, com a história clínica de Charlotte.
"Que não deve ser confundida", pensei para comigo, "com a nossa história pessoal."
ALTURA: 1,57 m
PESO: 66 kg
A paciente tentou conceber, sem êxito, durante um ano.
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Virei a página - resultados de análises laboratoriais que confirmavam a gravidez; as análises ao sangue para VIH, sífilis, hepatite B, anemia; análises à urina para
bactérias, açúcar, proteínas. Estava tudo normal, até ao triplo teste e ao risco elevado de síndroma de Down.
A ecografia da décima oitava semana fazia parte dos exames de rotina na gravidez, mas também a examinei para confirmar síndroma de Down. Estaria tão concentrada nessa tarefa que nunca tivesse pensado em procurar outras anomalias? Ou elas simplesmente não estariam lá?
Examinei o relatório da ecografia, escrutinei as imagens à procura do mínimo sinal de fractura que pudesse ter-me passado despercebido. Fique a olhar para a coluna vertebral, para o coração, para as costelas, para os ossos longos. Um feto com 01 pode apresentar fracturas nessa fase da gestação, mas o defeito no colagénio nos ossos teria dificultado ainda mais a sua identificação. Não se pode realmente culpar um médico por não assinalar algo que parece normal, para todos os efeitos.
A última imagem do relatório da ecografia era do crânio do feto.
Coloquei as mãos abertas de cada um dos lados da página, enquadrando a imagem de um cérebro nítida e bem focada.
Absolutamente nítida.
Não se devia à qualidade do nosso novo equipamento, como eu presumira na altura, mas a uma cúpula craniana desmineralizada, um crânio que não ossificara correctamente.
Como médicos, somos ensinados a procurar coisas que pareçam anómalas - e não coisas que sejam demasiado perfeitas.
Saberia na altura, muito antes de te conhecer a ti e à tua doença, que uma cúpula craniana desmineralizada era uma das características distintivas de OI? Devia saber?
Teria carregado delicadamente na barriga de Charlotte para ver se o crânio do feto cedia à pressão? Não me lembrava. Não me lembrava de nada, só me lembrava de lhe
ter dito que a bebé dela não parecia ter síndroma de Down.
Não me lembro se tinha tomado medidas que pudessem agora ser usadas para provar que eu não tive culpa.
Procurei na mala e tirei a carteira. Mesmo lá no fundo, entre os papéis das pastilhas e canetas de companhias farmacêuticas, havia uma pilha de cartões-de-visita enrolados num elástico que eu tinha acumulado. Procurei entre eles até encontrar aquele que procurava. Agarrando no telefone do Rob, marquei o número do escritório de advocacia.
- Booker, Hood Coates - disse a recepcionista.
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- Sou uma das suas clientes com seguro contra negligência médica - respondi. - E acho que preciso de ajuda.
Naquela noite não conseguia dormir. Fui à casa de banho e fiquei a olhar para a minha imagem no espelho, tentando ver se já estaria diferente desde o início do dia. Seria possível ver dúvida estampada num rosto? Instalar-se-ia nas rugas finas em volta dos olhos, aos cantos da boca?
Rob e eu decidimos não dizer nada à Emma sobre o que tinha acontecido, pelo menos até termos qualquer coisa de concreto para dizer. Lembrei-me de que Amélia podia mencionar o assunto agora que já tinham começado as aulas mas, por outro lado, Amélia podia nem sequer saber o que os pais estavam a fazer.
Sentei-me no tampo da sanita e fiquei a olhar para a Lua. Cheia, alaranjada, parecia estar pousada no parapeito. A luz banhava a casa de banho, espalhando-se pelo chão de ladrilhos, acumulando-se na banheira. Já não faltava muito para o alvorecer, e depois devia ir trabalhar e cuidar de pacientes que estavam grávidas ou a tentar engravidar, e já não podia confiar no meu discernimento.
As poucas vezes que estive tão perturbada que não conseguia dormir - como depois de o meu pai morrer e quando o chefe de escritório roubou vários milhares de dólares do consultório - telefonei a Charlotte. Embora eu é que costumasse receber chamadas telefónicas a meio da noite por causa de uma emergência, ela não se tinha queixado. Foi como se estivesse à espera que eu lhe telefonasse e, apesar de eu saber que ela tinha milhares de coisas para fazer no dia seguinte com a Willow ou com a Amélia, ficou acordada durante horas, a falar sobre tudo e nada, até finalmente eu deixar de ter a cabeça a andar à roda e poder relaxar.
Estava a lamber as feridas e queria telefonar à minha melhor amiga. Só que, desta vez, tinha sido ela que as causara.
Um aranhiço estava a trepar pela parede. Fiquei quase sem fôlego. Tudo o que sabia sobre física e gravidade dizia-me que ele devia cair para o chão. Quanto mais se aproximava do tecto, mais eu estava fascinada. Enfiou duas patas na saliência na parte de cima do papel de parede, onde este começara a descolar-se.
Já tinha pedido ao Rob para arranjá-lo, milhares de vezes e ignorou-me. Mas agora que estava a olhar para ele - a olhar com atenção
- apercebi-me de que não gostava mesmo nada daquele papel de parede. Precisávamos era de começar de novo. De uma boa camada de tinta nova.
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Pus-me de pé na borda da banheira, estiquei a mão direita e com um puxão rápido arranquei uma longa língua de papel.
Mas a maior parte da faixa ainda estava colada à parede.
O que sabia eu sobre remover papel de parede?
O que sabia eu sobre alguma coisa?
Precisava de um vaporizador. Mas, às três da manhã, não ia conseguir arranjar nenhum, por isso abri as torneiras de água quente da banheira e do lavatório, deixando
o vapor inundar a casa de banho. Tentei enfiar as unhas debaixo do papel, para soltar a faixa.
Senti uma lufada de ar frio.
- Mas que raio estás tu a fazer? - perguntou Rob, ensonado, de pé, à porta.
- A arrancar o papel de parede.
- A meio da noite? Piper - suspirou.
- Não conseguia dormir. Fechou as torneiras.
- Tens de tentar - Rob levou-me pela mão, de volta para a cama, onde me deitei e me tapei com os cobertores. Enrolei-me virada de lado e ele colocou-me o braço em
volta da cintura.
- Podia remodelar a casa de banho - sussurrei quando, pela respiração regular dele, percebi que já estava outra vez a dormir.
Charlotte e eu tínhamos passado o Verão anterior a ler todas as revistas de remodelação de cozinhas e casas de banho nos escaparates do Barnes at Noble. "Talvez
devesses optar pelo minimalismo", sugerira Charlotte, e depois, virando a página, "estilo francês?"
"Compra uma banheira de hidromassagem", sugerira ela. "Uma sanita TOTÓ. Um toalheiro aquecido."
Ri. "Uma segunda hipoteca?"
Quando me encontrasse com Guy Booker no escritório de advocacia, ele faria um inventário desta casa? Dos nossos fundos mútuos, PPRs, poupanças para a universidade
da Emma e dos outros bens que nos podiam ser retirados para pagar uma indemnização?
Resolvi que amanhã ia arranjar um daqueles vaporizadores e todas as outras ferramentas necessárias para arrancar o papel de parede. Ia fazer tudo sozinha.
- Acho que cometi um erro - admiti ao sentar-me em frente de Guy Booker a uma mesa de reuniões lustrosa e imponente.
O meu advogado fazia-me lembrar o Cary Grant - cabelos brancos com negro asa de corvo nas têmporas, fato feito por medida e até aquela covinha no queixo.
- Porque não me deixa ser eu a avaliar isso? - disse ele.
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Tinha-me dito que dispunha de vinte dias para entregar uma resposta à queixa que fora instaurada - um apelo formal ao tribunal.
- Diz que a osteogénese imperfeita pode ser diagnosticada às vinte semanas de gravidez? - perguntou.
- Sim, pelo menos a de tipo letal, através de uma ecografia.
- Mas a filha da paciente sobreviveu.
- Pois - disse eu. Graças a Deus.
Gostava do facto de ele se referir a Charlotte como "a paciente." Fazia-me sentir o processo mais impessoal. Colocava uma maior distância.
- Então ela sofre do tipo mais grave: o Tipo III.
- Sim.
Ele voltou a folhear novamente o ficheiro.
- O fémur estava no percentil seis?
- Estava. Isso está documentado.
- Mas não se trata de um sinal definitivo de OI.
- Pode significar muitas coisas. Síndroma de Down, displasia esquelética... ou um dos pais com baixa estatura, ou uma medida mal feita. Muitos fetos com desvios
à média padrão, como a Willow às dezoito semanas, acabam por ser absolutamente saudáveis. Só numa ecografia posterior, quando esse número sair fora das tabelas, é que sabemos que estamos a lidar com alguma anomalia.
- Então o seu conselho seria esperar para ver, independentemente de qualquer outra coisa?
Fiquei a olhar para ele. Dito assim, parecia que eu não tinha cometido erro nenhum.
- Mas o crânio - disse eu. - A minha técnica assinalou-o...
- Ela disse-lhe que achava que podia ser um problema médico?
- Não, mas...
- Disse que era uma imagem muito nítida do cérebro - olhou para mim. - Sim, a sua técnica de ecografías chamou a atenção para uma coisa invulgar: mas não necessariamente sintomática. Podia ser uma questão técnica relacionada com a máquina, ou com a posição do transdutor, ou então era uma imagem mesmo muito boa.
- Mas não era - disse eu, sentindo as lágrimas arranharem-me a garganta. - Era OI e eu não reparei.
- Está a falar sobre um procedimento que não é um teste conclusivo para detectar a presença de OI. Ou, por outras palavras, se a paciente fosse consultar outro médico,
teria acontecido a mesma coisa. Isso não é negligência médica, Piper. É despeito por parte dos pais. - Guy franziu o sobrolho. - Conhece algum médico que tivesse
diagnosticado OI baseando-se numa ecografia às dezoito semanas de
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gestação que revelasse uma cúpula craniana desmineralizada, um fémur curto e nenhuma fractura óbvia?
Olhei para a mesa. Quase conseguia ver o meu reflexo.
- Não - admiti. - Mas teriam mandado Charlotte fazer mais exames: uma ecografia mais avançada e uma biópsia coriónica.
- Já tinha sugerido que a paciente fizesse mais exames - fez notar Guy - quando os resultados do teste triplo dela mostraram uma probabilidade maior do que o normal
de ter um bebé com síndroma de Down.
Olhei directamente para ele.
- Aconselhou-a a fazer uma amniocentese nessa altura, não aconselhou? E qual foi a resposta dela?
Pela primeira vez desde que me entregaram aquela pastinha azul, senti o nó que tinha no peito soltar-se.
- Ela ia ter a Willow, acontecesse o que acontecesse.
- Bem, Dr.a Reece - disse o advogado. - Não há dúvida de que isso não me parece ser negligência médica no diagnóstico pré-natal.
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Charlotte
Comecei a mentir a toda a hora.
De início eram apenas mentiras inofensivas: respostas a perguntas como, "Minha senhora, sente-se bem?" quando a recepcionista do consultório do dentista me chamou
três vezes e eu não a ouvi; ou quando o operador de telemarketing telefonou e eu disse que estava demasiado ocupada para responder a uma sondagem, quando, na verdade, estava sentada à mesa da cozinha a olhar para o ar. Depois comecei a mentir a sério. Fazia um assado para o jantar, esquecia-me completamente dele no forno e dizia ao Sean, enquanto cortava a carne enegrecida e carbonizada, que de certeza que era da carne de má qualidade que agora vendiam no mercado. Sorria aos vizinhos e dizia-lhes, quando me perguntavam, que estávamos todos bem. E quando a tua professora da pré-primária me telefonou a pedir-me que fosse à escola porque tinha havido um incidente, fingi que não fazia ideia do que podia ter-te perturbado.
Quando cheguei, estavas sentada na sala de aulas vazia, numa cadeirinha ao lado da secretária da professora Watkins. A transição para a escola pública tinha sido menos divinal do que eu esperava. Sim, tinhas uma auxiliar a tempo inteiro paga pelo Estado de New Hampshire, mas tive de negociar cada direito teu
- desde a possibilidade de ires à casa de banho sozinha, à oportunidade de interagires na aula de ginástica quando o jogo não fosse demasiado extenuante e não corresses perigo de sofreres uma fractura. O aspecto positivo era que isso me distraía do processo legal. O aspecto negativo era que eu não podia ficar para me certificar
de que estavas bem. Estavas numa turma com colegas novos que não te conheciam - e que não sabiam nada sobre OI. Quando te perguntei como tinha corrido o primeiro
dia de aulas,
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disseste-me que tu e a Martha brincaram com barras Cuisenaire e que ficaram na mesma equipa no jogo de Apanhar o Lenço. Fiquei muito entusiasmada por ouvir falar
naquela nova amiga e perguntei se querias convidá-la para ir a nossa casa.
- Acho que ela não pode vir, mãe - disseste-me. - Tem de fazer o jantar para a família.
Tanto quanto sabia, a única amiga que tinhas naquela turma era a tua auxiliar.
Olhaste para mim quando apertei a mão à professora, mas não disseste nada.
- Olá Willow - disse eu, sentando-me ao teu lado. - Ouvi dizer que hoje tiveste um problema.
- Queres contar à tua mãe o que aconteceu ou queres que seja eu a contar? - perguntou a professora Watkins.
Cruzaste os braços e abanaste a cabeça.
- A Willow foi convidada a participar numa encenação com duas crianças, hoje de manhã.
O meu rosto iluminou-se.
- Mas... isso é fantástico! A Willow adora representar - virei-me para ti. - Fingiram que eram animais? Ou médicos? Exploradores espaciais?
- Estavam a brincar às casinhas - explicou a professora Watkins. - A Cassidy fazia de mãe; o Daniel era o pai...
- E queriam que eu fosse o bebé - explodiste. - Não sou um bebé.
- A Willow é muito sensível em relação à altura - expliquei.
- Nós gostamos de dizer que ela é espacialmente eficiente.
- Mãe, estavam sempre a dizer que, como eu sou a mais pequena, tenho de ser o bebé. Eu queria ser o pai.
Também percebi que isso era novo para a professora Watkins.
- O pai? - disse eu. - Porque não queres ser a mãe?
- Porque as mães vão para a casa de banho chorar e põem a água a correr para que ninguém consiga ouvir.
A professora Watkins olhou para mim.
- Sr.a O'Keefe - disse ela - porque não vamos conversar um pouco lá para fora?
Ficámos no carro em silêncio durante cinco minutos.
- Não está certo pregares uma rasteira à Cassidy quando ela passa por ti para ir buscar o lanche - apesar de ter de conceder-te algum mérito por seres tão engenhosa, visto que para ti era muito difícil magoar alguém sem te magoares também, e aquela táctica
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ser bastante astuciosa, até mesmo diabólica. - A última coisa que deves querer é que a professora Watkins ache que causas problemas depois de uma semana de aulas.
Não te disse que, quando fomos para o corredor e a professora Watkins perguntou se estava a acontecer alguma coisa em casa que pudesse influenciar o teu comportamento na escola, menti-lhe descaradamente. "Não", disse eu, depois de fingir estar a reflectir por um minuto. "Não imagino onde ela terá ido buscar isso. Mas, por outro lado, a Willow sempre teve uma imaginação notável."
- Então? - incitei, ainda à espera que reconhecesses que tinhas ultrapassado um limite que não devias ter ultrapassado. Tens alguma coisa a dizer?
Olhei pelo espelho retrovisor para ver a tua reacção. Acenaste com a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas.
- Por favor, não te vejas livre de mim, mamã.
Se não estivesse parada num sinal vermelho, provavelmente teria embatido no carro da frente. Os teus ombros estreitos tremiam; tinhas o nariz a pingar.
- vou portar-me melhor - disseste. - vou ser perfeita.
- Oh, Willow, minha querida. Tu és perfeita - senti-me presa pelo cinto de segurança, pelos dez segundos que o semáforo demorou a ficar verde. Depois, virei para a primeira rua secundária que encontrei. Desliguei o motor e sentei-me no banco de trás para te tirar da tua cadeirinha. Tinha sido adaptada, tal como o teu berço de bebé para ser transportado no automóvel - a cadeira ficava direita mas o cinto era forrado com espuma, porque senão até uma travagem podia provocar-te uma fractura. Soltei-te delicadamente e embalei-te nos braços.
Não tinha falado contigo sobre o processo legal. Disse para mim mesma que estava a tentar salvaguardar-te o máximo tempo possível - a mesma razão por que não dissera nada à professora Watkins. Mas quanto mais adiasse essa conversa, mais provável seria que ficasses a saber através de um colega e não podia deixar que isso acontecesse.
Estaria realmente a proteger-te? Ou estaria apenas a proteger-me a mim própria? Seria aquele o momento que identificaria, meses mais tarde, como sendo o início da nossa separação: sim, estávamos em Appleton Lane, debaixo de um ácer, no momento em que a minha filha começou a detestar-me.
- Willow - disse eu, com a garganta de repente tão seca que não conseguia engolir. - Se alguém se portou mal, fui eu.
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Lembras-te de quando fomos visitar aqueles advogados depois das tuas fracturas no Disney World?
- O senhor ou a senhora?
- A senhora. Ela vai ajudar-nos. Pestanejaste.
- Ajudar-nos em quê?
Hesitei. Como é que ia explicar o sistema legal a uma criança de cinco anos?
- Sabes que existem regras? - disse eu. - Em casa, e na escola? O que é que acontece se alguém quebrar essas regras?
- Fica de castigo.
- Bem, também há regras para os adultos - continuei. - Por exemplo, não podemos magoar ninguém. E não podemos tirar uma coisa que não é nossa. E, se quebrarmos as regras, somos castigados. Os advogados podem ajudar-nos quando alguém quebra uma regra e nos magoa por causa disso. Certificam-se de que a pessoa que fez uma coisa errada assuma a responsabilidade.
- Como quando a Amélia me roubou o verniz com purpurinas e a obrigaste a comprar-me outro com o dinheiro que recebeu por ficar a tomar conta de crianças?
- É precisamente isso - disse eu.
Os teus olhos encheram-se novamente de lágrimas.
- Eu quebrei as regras na escola e a advogada vai obrigar-me a sair de casa - disseste.
- Ninguém vai sair de casa - disse eu num tom firme. Muito menos tu. Não quebraste as regras. Foi outra pessoa que as quebrou.
- Foi o papá? - perguntaste. - É por isso que ele não quer contratar um advogado?
Fiquei a olhar para ti.
- Não foi o papá. E também não foi a Amélia - respirei fundo.
- Foi a Piper.
- A Piper roubou alguma coisa de nossa casa?
- É aqui que as coisas se tornam mais complicadas - disse eu.
- Ela não roubou uma coisa, como um televisor, ou uma pulseira. Só que não me disse uma coisa que devia ter dito. Uma coisa muito importante.
Olhaste para o colo.
- Foi uma coisa sobre mim, não foi?
- Sim - disse eu. - Mas não é nada que fosse alguma vez mudar o que sinto por ti. Há só uma Willow O'Keefe neste planeta,
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e eu tive a sorte de ficar com ela - beijei-te o alto da cabeça, porque não tive coragem de olhar-te nos olhos. - Mas é engraçado disse eu com a voz a enrolar-se à volta de um fio de lágrimas. Para que esta advogada possa ajudar-nos, tenho de jogar um jogo. Tenho de dizer coisas que na realidade não sinto. Coisas que podiam magoar-te se as ouvisses e não soubesses que na verdade eu estava apenas a representar.
Naquele momento, observei-te com atenção para ver se estavas a compreender-me.
- Como quando alguém leva um tiro na televisão mas na vida real não? - perguntaste.
- Isso - disse eu. São balas falsas, então porque me parece que estou a esvair-me em sangue! - Vais ouvir coisas, e talvez ler coisas, e vais pensar para contigo, "A minha mãe nunca diria isto." E tens razão. Porque quando estiver no tribunal, a falar com aquela advogada, estarei a fingir que sou outra pessoa, apesar de ter o mesmo aspecto e a mesma voz. Posso enganar toda a gente, mas não quero enganar-te a ti.
Olhaste para mim, pestanejando.
- Podemos treinar?
- O quê?
- Para poder distinguir se estás a representar ou não. Respirei fundo.
- Está bem - disse. - Fizeste muito bem em pregar uma rasteira à Cassidy hoje.
Olhaste para mim intensamente.
- Estás a mentir. Quem me dera que não estivesses, mas estás a mentir.
- Linda menina. A professora Watkins precisa de depilar a sobrancelha única.
Passou-te um sorriso no rosto.
- Essa é uma questão traiçoeira, mas ainda estás a mentir porque, apesar de ela parecer mesmo que tem uma lagarta peluda entre os olhos, isso é uma coisa que a Amélia era capaz de dizer em voz alta, mas tu não.
Desatei a rir.
- Sinceramente, Willow.
- Verdade!
- Mas eu ainda não disse nada!
- Não tens de dizer adoro-te para dizeres adoro-te - disseste, encolhendo os ombros. - Só tens de dizer o meu nome que eu sei.
- Como?
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Quando olhei para ti, fiquei impressionada por ver tanto de mim própria no formato dos teus olhos, na luz do teu sorriso.
- Diz Cassidy - instruíste.
- Cassidy.
- Diz... Ursula.
- Ursula - repeti.
- Agora... - e apontaste para o teu próprio peito.
- Willow.
- Não ouves? - disseste. - Quando gostamos muito de uma pessoa, dizemos o nome dela de maneira diferente. Como se estivesse em segurança dentro da nossa boca.
- Willow - repeti, sentindo a almofada de consoantes e o balançar das vogais. Terias razão? Poderia abafar tudo o resto que eu tivesse para dizer? - Willow, Willow, Willow - entoei, uma canção de embalar, um pára-quedas, como se pudesse amparar-te dos golpes que estavam para vir.
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Marin
Outubro de 2007
Para se levar a cabo um processo legal é necessária uma quantidade de tempo interminável. Uma vez, durante um processo legal contra um padre por abuso sexual, assisti ao depoimento de um psiquiatra que durou três dias. A primeira pergunta era: "O que é a psicologia?" A segunda: "O que é a sociologia?" A terceira: "Quem foi Freud?" O especialista estava a ser pago a 350 dólares por hora e queria fazê-lo sem pressas. Acho que perdemos três estenógrafas devido à síndroma do túnel cárpico antes de finalmente termos os registos das respostas dele.
Tinham passado oito meses desde que me reunira com Charlotte O'Keefe e com o marido pela primeira vez e ainda estávamos na fase de aprendizagem. Basicamente, os clientes continuavam a viver as suas vidas quotidianas e, de vez em quando, recebiam um telefonema meu a dizer que precisava de um determinado documento ou de uma determinada informação. Sean fora promovido a tenente. Willow começara a ter aulas a tempo inteiro na pré-primária. E Charlotte passava as sete horas em que a Willow estava na escola à espera que o telefone tocasse, caso a filha sofresse outra fractura.
A preparação para os depoimentos envolve, em parte, questionários chamados interrogatórios que ajudam os advogados como eu a perceber os pontos fracos e os pontos fortes do caso, e se será provável receber uma indemnização. A instrução tem um nome apropriado: devemos averiguar se o nosso caso é um caso perdido e onde se encontram os buracos negros, antes de sermos sugados por eles.
O interrogatório de Piper Reece aparecera no meu correio electrónico naquela manhã. Ficara a saber, através de rumores, que estava de licença sem vencimento no consultório e que o mentor dela tinha interrompido a reforma para a substituir.
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Todo este processo legal se baseava no pressuposto de que ela não tinha informado Charlotte sobre o estado clínico do bebé logo de início - não lhe dera as informações
que podiam ter conduzido à interrupção da gravidez. E uma pequena parte de mim interrogava-se se fora um lapso da parte da obstetra ou se fora um deslize subconsciente.
Haverá obstetras que - em vez de recomendarem abortos
- recomendam a adopção? Teria um desses médicos cuidado da minha
mãe?
Finalmente recebera a carta com informações não identificativas do Registo dos Tribunais do Condado de Hillsborough. "Cara Sr.a Gates", estava escrito na carta.
"A informação seguinte foi compilada do registo do tribunal onde decorreu a sua adopção. A informação que se encontra no registo indica que o obstetra da mãe biológica contactou o seu advogado em busca de aconselhamento para uma paciente que estava a ponderar a adopção. O advogado tinha conhecimento do interesse dos Gates em adoptarem
uma criança. O advogado reuniu-se com os pais biológicos após o seu nascimento e tratou da adopção.
Nasceu num hospital em Nashua às 17h34 no dia 3 de Janeiro de 1973. Teve alta do hospital no dia 5 de Janeiro de
1973 e foi entregue aos cuidados de Arthur e Yvonne Gates. A sua adopção, por parte deles, tornou-se oficial no dia 28 de Julho de 1973, no Tribunal do Condado de Hillsborough.
A informação registada na certidão de nascimento original indica que a mãe biológica tinha dezassete anos quando deu à luz. Residia no Condado de Hillsborough na altura. Era caucasiana e estudante. O pai biológico não está identificado na certidão de nascimento. Na altura da adopção, ela vivia em Epping, New Hampshire. A petição de adopção identifica a sua afiliação religiosa como Católica Romana. A mãe biológica e a avó materna assinaram o consentimento para a sua adopção.
Por favor, não hesite em me contactar se entender que a posso ajudar em mais alguma coisa.
com os melhores cumprimentos, Maisie Donovan."
Apercebi-me de que o propósito de uma carta com informações não identificativas era dar informações que não fossem específicas -
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mas havia tantas outras coisas que eu desejava saber. O meu pai e a minha mãe ter-se-iam separado durante a gravidez? A minha mãe teria tido medo, ali sozinha naquele hospital? Ter-me-ia pegado ao colo sequer uma vez ou teria deixado que a enfermeira me levasse?
Interroguei-me se os meus pais adoptivos, que me criaram inegavelmente como protestante, saberiam que eu tinha nascido católica.
Interroguei-me se Piper Reece teria percebido que, se Charlotte O'Keefe não quisesse criar uma criança como Willow, outra pessoa podia ter ficado mais do que satisfeita por ter essa oportunidade.
Desanuviando a cabeça, agarrei no interrogatório que ela tinha preenchido e folheei as páginas para ler a sua versão da história. Comecei com perguntas genéricas, tornando-as clinicamente mais específicas para o fim do documento. Por acaso, a primeira fora muito fácil: "Quando conheceu a Charlotte O'Keefe?"
Examinei a resposta e pestanejei, certa de que tinha lido mal.
Agarrando no telefone, liguei a Charlotte.
- Estou? - disse ela, sem fôlego.
- Fala Marin Gates - disse eu. - Temos de conversar sobre os interrogatórios.
- Oh! Ainda bem que telefonou. Deve haver um erro, porque recebemos um com o nome de Amélia.
- Não é um erro - expliquei. - Ela consta da lista das nossas testemunhas.
- Amélia? Não, isso é impossível. Ela não vai de maneira nenhuma testemunhar em tribunal - disse Charlotte.
- Pode descrever a qualidade de vida da vossa família e como a OI a afectou. Pode falar sobre a viagem ao Disney World e como foi traumático ser levada sob custódia e colocada num lar de acolhimento...
- Não quero que ela reviva isso...
- Quando o julgamento começar, ela será um ano mais velha disse eu. - E pode não ser chamada a testemunhar. Está na lista só como precaução, faz parte do protocolo.
- Então talvez nem sequer devesse dizer-lhe nada - murmurou Charlotte, o que me fez lembrar a razão pela qual lhe tinha telefonado.
- Tenho de conversar consigo sobre o interrogatório da Piper Reece - disse eu. - Perguntei-lhe quando a conheceu, e ela disse que eram as melhores amigas desde há oito anos.
Fez-se um silêncio do outro lado da linha.
- Melhores amigas?
- Bem - disse Charlotte. - Sim.
- Sou sua advogada há oito meses - disse eu. - Já nos encontrámos
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pessoalmente meia dúzia de vezes e falámos três vezes mais ao telefone. E nunca achou que pudesse ser um bocadinho importante informar-me desse pequeno pormenor?
- Não tem nada a ver com o caso, pois não?
- Mentiu-me, Charlotte! - disse eu. - Isso tem tudo a ver com
o caso!
- Não me perguntou se eu era amiga da Piper - argumentou Charlotte. - Não menti.
- É uma mentira por omissão.
Agarrei no interrogatório de Piper e li em voz alta.
- "Em todos estes anos em que fomos amigas, nunca tive nenhuma indicação de que Charlotte se sentisse assim relativamente aos seus cuidados pré-natais. Até fomos às compras com as nossas filhas na semana anterior a ter sido alvo do que considero ser um processo legal sem nenhum fundamento. Deve imaginar como fiquei chocada." Foi às compras com ela na semana antes de a processar? Faz alguma ideia de como isto a faz parecer fria e calculista diante de um júri?
- Que mais disse ela? Ela está bem?
- Não está a trabalhar. Já não trabalha há dois meses - disse eu.
- Oh - disse Charlotte, num fio de voz.
- Olhe, sou advogada. Sei muito bem que a minha profissão implica destruir as vidas das pessoas. Mas parece que a Charlotte tem uma relação pessoal com esta mulher, para além da relação profissional. Isso não vai fazê-la parecer simpática.
- E dizer em tribunal que não queria a Willow também não disse Charlotte.
Bem, não podia discordar.
- Pode conseguir o que quer deste processo legal, mas vai pagar caro por isso.
- Quer dizer que toda a gente vai pensar que sou uma cabra disse Charlotte. - Por lixar a minha melhor amiga e por servir-me da doença da minha filha para receber dinheiro. Não sou estúpida, Marin. Sei o que vão dizer.
- E isso vai ser um problema? Charlotte hesitou.
- Não - disse com firmeza. - Não vai.
Já tinha confessado que estava a ter dificuldades em fazer o marido participar no processo legal. Agora descobri que tinha um passado oculto com a arguida. O que
não dizemos às pessoas é tão debilitante como o que dizemos; bastava-me olhar para a minha estúpida carta não identificativa para sentir isso em primeira mão.
- Charlotte - disse eu - basta de segredos.
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O objectivo de um depoimento é averiguar o que acontece a uma pessoa quando esta é lançada nas trincheiras de uma sala de audiências. Conduzido pelo advogado da outra parte, envolve tentar arruinar a credibilidade de uma testemunha baseando-se em afirmações tiradas dos interrogatórios. Quanto mais sincera - e imperturbável - for uma pessoa, melhores as perspectivas do nosso caso.
Naquele dia, Sean O'Keefe ia depor, e isso deixava-me aterrorizada.
Era alto, forte, atraente - e completamente imprevisível. De todos os encontros cara a cara que tivera com Charlotte para a preparar, ele assistira apenas a um.
-Tenente O'K.eefe - perguntei - está empenhado neste processo legal?
Ele olhou para Charlotte e houve uma conversa inteira entre eles, num silêncio absoluto.
- Estou aqui, não estou? - disse ele.
Achava que Sean O'Keefe preferia ser esquartejado do que conduzido ao banco das testemunhas para depor e o problema não devia ser meu - só que era. Porque ele era pai da Willow e, se metesse os pés pelas mãos no banco das testemunhas, o meu caso ficaria arruinado. Para que este processo fosse bem-sucedido, os advogados especializados em negligência médica tinham de acreditar que, no caso de negligência médica no diagnóstico pré-natal, os O'Keefe constituíam um bloco.
Charlotte, Sean e eu subimos juntos no elevador. Tinha marcado especificamente o depoimento durante o teu período de aulas, para que não fosse preciso alguém ficar a tomar conta de ti.
- Faça o que fizer - disse eu, dando-lhe instruções de última hora - não relaxe. Eles vão levá-lo ao Inferno. Vão distorcer as suas palavras.
Ele sorriu.
- Vá lá, faça-me ganhar o dia.
- Não pode armar-se em Dirty Harry com estes tipos - disse eu, entrando em pânico. - Eles já conhecem isso bem e vão apanhá-lo com a sua própria ousadia. Lembre-se de que tem de se manter calmo, e de contar até dez antes de responder a qualquer pergunta. E...
As portas do elevador abriram-se antes que conseguisse terminar a frase. Entrámos nos escritórios luxuosos onde uma assistente jurídica de fato azul já estava à espera.
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- Marin Gates?
- Sim - respondi.
- O Dr. Brooker está à sua espera - conduziu-nos pelo corredor até uma sala de reuniões, com janelas panorâmicas do chão até ao tecto que davam para a cúpula dourada
do Capitólio. A estenógrafa estava enfiada a um canto. Guy Brooker estava absorto a conversar, com a cabeça grisalha curvada. Levantou-se quando nos aproximámos,
deixando ver a sua cliente.
Piper Reece era mais bonita do que eu esperava. Era loira, alta e magra, com olheiras escuras debaixo dos olhos. Não estava a sorrir; observava Charlotte como se tivesse sido trespassada por uma espada.
Charlotte, por seu lado, estava a fazer todos os possíveis para não olhar para ela.
- Como foste capaz? - acusou Piper. - Como foste capaz de fazer isto?
Sean semicerrou os olhos.
- É melhor parares por aqui, Piper... Coloquei-me entre ambos.
- Vamos despachar isto, está bem?
- Não tens nada para dizer? - continuou Piper, quando Charlotte se instalou à mesa. - Nem sequer tens a decência de me olhar nos olhos e de o dizer na minha cara?
- Piper - disse Guy Brooker, pousando-lhe a mão no braço.
- Se a sua cliente for verbalmente abusiva com a minha - anunciei - vamos já embora.
- Ela quer ser abusiva? - perguntou Sean entre dentes. - Eu mostro-lhe o que é ser abusivo...
Agarrei-lhe no braço e fi-lo sentar-se.
- Cale-se - murmurei.
Era talvez a primeira e única vez na minha vida em que teria qualquer coisa em comum com Guy Brooker - nenhum de nós desejava estar presente neste depoimento.
- Tenho a certeza de que a minha cliente é capaz de se controlar
- disse ele, virando-se para Piper enquanto sublinhava aquela última palavra. Virou-se para a estenógrafa. - Claudia, está pronta para começar?
Olhei para Sean e pronunciei silenciosamente com os lábios a palavra "calma." Ele acenou com a cabeça e fez estalar o pescoço de cada um dos lados, como um lutador pronto para entrar no rinque.
Aquele estalido, aquele ruído audível: fez-me lembrar-me de ti, a fracturares um osso.
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Guy Brooker abriu uma pasta de cabedal. Era macia, muito provavelmente italiana. Em parte, a razão pela qual Brooker, Hood Coates ganhavam tantos casos era por causa
do factor intimidação - pareciam vencedores, desde os gabinetes opulentos aos fatos Armani e às canetas Waterman. Provavelmente os blocos jurídicos deles eram feitos
à mão e gravados com uma marca de água com o selo da firma. Seria de admirar que metade dos seus adversários reconhecesse a derrota após um único olhar?
- Tenente O'Keefe - disse ele. A voz era suave, sem fricção entre as palavras, "Sou seu amigo, sou seu companheiro", sugeria este tom.
- Acredita na justiça, não acredita?
- Acredito, sou agente da polícia - respondeu Sean com orgulho.
- Acha que a justiça pode ser feita através de processos legais?
- Claro - disse Sean. - É assim que este país funciona.
- Considera-se particularmente litigioso? -Não.
- Então presumo que deve ter tido uma boa razão para processar a Ford Motor Company em 2003?
Voltei-me para Sean chocada.
- Processou a Ford?
Ele estava de sobrolho franzido.
- O que é que isso tem a ver com a minha filha?
- Recebeu uma indemnização, não recebeu? De vinte mil dólares? - procurou na pasta de cabedal. - Pode explicar a natureza da sua queixa?
- Fiz uma hérnia discal por estar sempre sentado no carro o dia todo. São projectados para bonecos de testes de colisão e não para pessoas de carne e osso que
estão a trabalhar.
Fechei os olhos. "Teria sido mesmo bom", pensei, "se qualquer um dos meus clientes tivesse sido sincero comigo."
- Relativamente à Willow - disse Guy - quantas horas por dia diria que passa com ela?
- Talvez doze - disse ele.
- Dessas doze horas, quantas passa a dormir?
- Não sei, oito, numa noite boa.
- Se não for esse o caso, quantas vezes diria que tem de se levantar para ir ter com ela?
- Depende - disse Sean. - Uma ou duas vezes.
- Então, quer dizer que a quantidade de tempo que passa com ela, sem estar a tentar adormecê-la outra vez, provavelmente serão cerca de quatro ou cinco horas por dia?
- Acho que sim.
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- Durante essas horas, o que é que o senhor e a Willow fazem?
- Jogamos Nintendo. Ela ganha-me sempre no Super Mário.
E jogamos às cartas... - corou um pouco. - tem um dom natural para jogar ao Stud de cinco cartas.
- Qual é o programa de televisão preferido dela? - perguntou Guy Brooker.
- Lizzie McCuire, esta semana.
- Cor preferida?
- Magenta.
- Que tipo de música costuma ouvir?
- A Hannah Montana e os Jonas Brothers - disse Sean. Lembrava-me de estar sentada no sofá com a minha mãe a ver
The Cosby Show. Fazíamos uma taça de pipocas no microondas e comíamo-la toda. Nunca mais foi o mesmo desde que a Keshia Knight Pulliam cresceu e foi substituída
pela Raven-Simone. Se eu tivesse sido criada pela minha mãe biológica, a minha infância teria sido colorida de forma diferente? Teríamos ficado viciadas em telenovelas,
documentários da televisão pública, na Dinastia!
- Sei que a Willow agora está na pré-primária.
- Sim, começou há dois meses - disse Sean.
- A Willow costuma divertir-se na escola?
- Às vezes é difícil para ela, mas diria que sim.
- Ninguém contesta que a Willow seja uma criança com incapacidades - disse Guy - mas essas incapacidades não a impedem de ter uma experiência pedagógica positiva,
pois não?
-Não.
- E não a impedem de partilhar momentos de diversão com a família, pois não?
- Certamente que não.
- Na verdade, como pai da Willow, diria que foi bem-sucedido em garantir que ela viva uma vida boa e enriquecedora?
"Oh não", pensei.
Sean endireitou-se um pouco, orgulhoso.
- Claro que fui.
- Então, por que razão - perguntou Guy, atirando a matar está a dizer que ela nunca devia ter nascido?
As palavras trespassaram Sean como uma bala. Inclinou-se para a frente, colocando as mãos abertas sobre a mesa.
- Não coloque palavras na minha boca. Eu nunca disse isso.
- Por acaso, até disse - Guy tirou uma cópia da queixa que tinha na pasta e empurrou-a para o outro lado da mesa, para Sean. Está aqui mesmo.
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- Não - Sean cerrou o maxilar.
- A sua assinatura neste documento representa a verdade, tenente.
- Repare, eu adoro a minha filha.
- Adora-a - repetiu Guy. - Tanto que acha que seria melhor que estivesse morta.
Sean agarrou na queixa e amachucou-a na mão.
- Não vou fazer isto - disse ele. - Não quero isto; nunca quis.
- Sean... - Charlotte levantou-se, agarrou-lhe no braço e ele virou-se contra ela.
- Como podes dizer que isto não vai magoar a Willow? - disse ele, com as palavras arrancadas a custo da garganta.
- Ela sabe que são só palavras, Sean, palavras que não têm significado nenhum. Ela sabe que a adoramos. Sabe que é por isso que estamos aqui.
- Sabes uma coisa, Charlotte - disse ele. - Isso também são palavras. - E ao dizer isso, saiu da sala de reuniões.
Charlotte ficou a olhar para ele e depois olhou para mim.
- Eu... eu tenho de ir - disse ela. Levantei-me, sem ter a certeza se devia segui-la ou ficar ali para tentar minimizar os estragos com Guy Brooker. Piper Reece tinha o rosto vermelho, olhava para o colo. Os sapatos de salto raso de Charlotte pareciam disparos, enquanto se dirigia apressadamente para o fundo do corredor.
- Marin - disse Guy, recostando-se na cadeira. - É impossível que ache que tem um caso viável.
Sentia uma gota de suor escorrer-me entre as omoplatas.
- Eis o que sei - disse eu, com muito mais convicção do que realmente tinha. - Acabou de ver em primeira mão como esta doença dilacerou esta família. Parece-me que um júri também vai ver isso.
Reuni as minhas notas, agarrei na pasta e dirigi-me para o fundo do corredor de cabeça erguida, como se realmente acreditasse no que tinha dito. E só quando estava sozinha no elevador e as portas se fecharam atrás de mim, é que fechei os olhos e admiti que Guy Brooker tinha razão.
O meu telemóvel começou a tocar.
- Merda - murmurei, limpando os olhos e enfiando a mão na pasta para atender. Não que quisesse fazê-lo; ou era Charlotte a pedir desculpa pelo que devia ser o maior fiasco da minha carreira até ao momento, ou Robert Ramirez a despedir-me porque as más notícias espalham-se depressa. Mas não havia nenhum número a piscar no ecrã; era um número privado. Pigarreei.
- Estou a falar com Marin Gates?
196
- É a própria.
As portas do elevador abriram-se. Ao fundo da entrada vi Charlotte tentar convencer Sean, que abanava a cabeça.
Por um instante quase esqueci que ainda estava a falar ao telefone.
- Fala Maisie Donovan - disse uma voz débil. - Sou secretária
de...
- Eu sei quem é a senhora - disse muito depressa.
- Sr.a Gates - respondeu - tenho aqui a morada actual da sua mãe biológica.
197
Amélia
Estava à espera que rebentasse a bomba. A melhor parte daquele estúpido processo legal era ter sido instaurado mesmo quando as aulas estavam a começar - quando saber
quem andava com quem era muito mais interessante do que uma batalha legal qualquer, por isso a notícia não se tinha espalhado pelos corredores como electricidade
através de um condutor. As aulas já tinham começado há dois meses, estávamos a estudar vocabulário e a assistir a reuniões sobre assuntos entediantes, com pessoas
entediantes e a fazer os testes de avaliação e, todos os dias, quando tocava a campainha pela última vez, ficava maravilhada com o facto de ter escapado mais uma
vez.
Nem será preciso dizer que Emma e eu já não andamos juntas. No primeiro dia de aulas, encostei-a à parede quando íamos para o ginásio.
- Não sei o que os meus pais andam a fazer - disse. - Sempre disse que eles eram extraterrestres e isto vem prová-lo. - Normalmente, isso teria feito Emma rir, mas, em vez disso, limitou-se a abanar a cabeça.
- Pois, isso é mesmo muito engraçado, Amélia - disse ela. - Lembra-me de dizer piadas da próxima vez que alguém em quem tu confies te lixe.
Depois disso, fiquei demasiado envergonhada para lhe dirigir a palavra. Mesmo que lhe dissesse que estava do seu lado e que achava ridículo que os meus pais estivessem a processar a mãe dela, porque haveria ela de acreditar? Se estivesse no seu lugar; presumiria que andava a espiar e que qualquer coisa que dissesse podia ser usada contra mim. Não contava às pessoas o que tinha acontecido entre nós - afinal, isso também a envergonharia - por isso achei que devia dizer apenas que tínhamos tido uma enorme discussão. E foi isto que fiquei a saber por manter-me afastada de Emma: que as pessoas que sempre achara que eram minhas amigas, na realidade eram amigas dela, e que se limitavam a tolerar a minha
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presença. Não posso dizer que tivesse ficado surpreendida ao descobrir isso, mas não quer dizer que não tivesse ficado magoada quando passava de tabuleiro na mão
à hora de almoço pela mesa onde estavam todas sentadas sem que nenhuma delas arranjasse espaço para mim. Ou quando tirava a minha sandes de manteiga de amendoim
e geleia que, como habitualmente, ficava esmagada pelo livro de matemática no cacifo e a geleia escorria como sangue a empapar a roupa de uma vítima, sem que Emma dissesse, "Toma, come metade da minha sandes de atum."
Passadas algumas semanas, quase me tinha habituado a ser invisível. Por acaso, tornei-me bastante hábil nisso. Ficava sentada na sala de aulas tão quieta que, às vezes, as moscas pousavam-me nas mãos; sentava-me na parte de trás do autocarro, afundando-me tanto no assento que, um dia, o motorista regressou novamente à escola sem sequer se dar ao trabalho de parar na minha paragem. Mas uma manhã, entrei na sala de estudo e imediatamente soube que alguma coisa estava diferente. A mãe de Janet Effingham era recepcionista num escritório de advocacia e contou a toda a gente que os meus pais tinham tido uma discussão acesa numa sala de reuniões durante um depoimento. Toda a gente na escola sabia que a minha mãe ia processar a mãe da Emma.
Achei que isto ia voltar a colocar-nos às duas no mesmo barco patético e miserável, mas tinha-me esquecido de que a melhor defesa é um bom ataque. Estava sentada na aula de matemática, que para mim era a mais difícil porque a minha cadeira estava atrás da da Emma e costumávamos trocar bilhetinhos ("O professor Funke não está mais giro agora que está em processo de divórcio? A Verónica Thomas fez implantes de silicone durante o fim-de-semana prolongado do Dia de Colombo, ou quê?"), quando Emma decidiu tornar o assunto público - angariando a simpatia de toda a gente na escola.
O professor Funke tinha um acetato no ecrã.
- Então se estivermos a referir-nos a vinte por cento dos ganhos do Marvin Milionário, e ele tiver ganho seis milhões de dólares este ano, qual é a pensão que terá de pagar à Vanda Vencedora?
Foi nessa altura que Emma disse:
- Pergunte à Amélia. Ela sabe tudo sobre como ser uma caçadora de fortunas.
Seja como for, o professor Funke parecia não ter ouvido o comentário - embora o resto da turma tivesse começado a rir e eu sentisse as faces arderem.
-Talvez ajudasse se a idiota da tua mãe aprendesse a fazer o estúpido trabalho dela - ripostei.
- Amélia - disse o professor Funke secamente. -Vai ao gabinete da directora Greenhaus.
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Levantei-me e agarrei na minha mochila - mas a bolsa da frente onde guardava os lápis e o dinheiro do almoço ainda estava aberta e uma chuva de moedas de vinte e cinco e dez cêntimos espalhou-se pelo chão em frente da minha secretária. Quase me ajoelhei para apanhá-las, mas depois achei que toda a gente acharia isso ainda mais hilariante - a filha de uma caçadora de fortunas a apanhar moedas? - e em vez disso limitei-me a deixar as moedas para trás e a sair a correr.
Não tinha intenções de ir ao gabinete da directora. Em vez disso, virei à direita quando devia ter virado à esquerda e dirigi-me para o ginásio. Durante o dia, os
professores de educação física deixavam a porta dupla aberta para ventilação. Entrei em pânico por um instante, por um professor poder ver-me a sair da escola, depois lembrei-me de que ninguém reparava em mim. Não era suficientemente importante.
Lá fora, coloquei a mochila às costas, e comecei a correr. Corri pelo campo de futebol e pelas árvores que ladeavam o bairro mais próximo da escola. Corri até chegar
à estrada principal que atravessava a cidade e então finalmente abrandei.
A loja de conveniência CVS era o último edifício por que se passava quando se saía da cidade e não pensem que isso não me ocorreu. Deambulei pelos corredores. Enfiei uma barra de Snickers no bolso. E depois vi uma coisa ainda melhor.
O único problema em ser invisível na escola é que, quando chegava a casa, ainda conseguia ver-me. Podia correr muito depressa que não conseguiria escapar a isso.
Os meus pais pareciam não querer as filhas que tinham. Então talvez lhes mostrasse uma filha completamente diferente.
200
Charlotte
- Hoje de manhã estive num site - argumentei - e soube que uma rapariga do Tipo III partiu o pulso ao tentar levantar dois litros de leite, Sean. Como podes dizer
que a Willow não vai precisar de cuidados especiais ou de ajuda? E de onde virá esse dinheiro?
- Então passa a comprar dois pacotes de leite de um litro disse Sean. Sempre dissemos que não íamos deixá-la definir-se a si própria pelas suas incapacidades: mas aqui estás tu, a fazer precisamente isso.
- Os fins justificam os meios. Sean virou para a nossa casa.
- Pois. Diz isso ao Hitler - desligou o motor; lá atrás ouvia o som suave do teu ressonar; o que quer que fosse que tivesses feito na escola naquele dia deixara-te completamente esgotada. - Não te reconheço - disse ele num tom suave. - Não compreendo a pessoa que está a fazer isto.
Tentei acalmá-lo depois do depoimento no escritório do advogado de Piper - o depoimento que não chegara realmente a acontecer - mas ele não estava disposto a isso.
- Dizes que farias qualquer coisa pela Willow, mas se não consegues fazer isto, então estás a mentir a ti próprio - disse eu.
- Eu estou a mentir - repetiu Sean. - Eu estou a mentir? Tu é que estás a mentir! Ou pelo menos dizes que estás e que a Willow vai compreender que, quando disseres todas aquelas coisas horríveis em frente ao juiz, ora bem, nunca estiveste a falar a sério. Ou pelo menos espero sinceramente que estejas a mentir porque senão andaste a mentir-me todos estes anos quando dizias que querias ficar com o bebé.
201
Saímos ambos do carro; fechei a porta com mais força do que era preciso.
- É tão conveniente armares-te em superior quando vives no passado, não é? E daqui a dez anos? Estás a dizer-me que quando a Willow tiver uma cadeira de rodas topo de gama e estiver inscrita num campo de férias para Pessoas com Baixa Estatura, quando tiver uma piscina no quintal para poder fortalecer a massa óssea e os músculos e um carro adaptado para poder conduzir como os outros jovens da sua idade, quando não fizer diferença que a companhia de seguros se recuse a pagar outro conjunto de suportes porque sempre podemos pagá-los do nosso bolso sem teres de fazer turnos extra: estás a dizer que ela vai lembrar-se do que foi dito numa sala de audiências quando ainda era criança?
Sean ficou a olhar para mim.
- Sim. Por acaso estou.
Recuei um passo, afastando-me dele.
- Amo-a demasiado para perder esta oportunidade.
- Então tu e eu - disse Sean - temos maneiras muito diferentes de mostrar amor.
Debruçou-se sobre o assento de trás e soltou o cinto da cadeirinha. Tinhas o rosto afogueado; emergias lentamente dos teus sonhos.
- Estou fora disto, Charlotte - disse Sean simplesmente enquanto te levava ao colo para casa. - Faz o que tiveres de fazer, mas não me arrastes contigo para o fundo.
Não era a primeira vez que pensava que, noutras circunstâncias, uma discussão como aquela levar-me-ia directamente a falar com Piper. Ter-lhe-ia telefonado para
contar a minha versão da história e não a de Sean. Sentir-me-ia melhor ao saber que ela me tinha ouvido.
E teria feito o que aprendi contigo: deixar que o tempo cure a fractura que surgira entre o teu pai e eu, uma fractura que doía sempre, independentemente do lado para que se virasse.
- Mas que raio? - perguntou Sean, olhei para cima e vi Amélia de pé no corredor.
Estava a comer uma maçã e tinha os cabelos pintados de um azul eléctrico artificial. Sorriu-me com desdém.
- Radical - disse ela. Ficaste a olhar para ela.
- Porque é que a Amélia tem algodão doce no cabelo? Respirei fundo.
202
- Agora não posso lidar com isto - disse eu - não posso. E subi as escadas como se cada degrau fosse feito de vidro.
Durante as últimas oito semanas de gravidez, todas as manhãs havia três segundos que eram perfeitos. Flutuava até à superfície da consciência e, durante esses fugazes momentos de felicidade, esquecia-me de tudo. Sentia o teu movimento lento, o tamborilar dos teus pontapés e pensava que tudo ia correr bem.
A realidade fechava-se sempre sobre mim como uma cortina: aquele pontapé podia ter provocado uma nova fractura na tua perna. Aquela volta que deste dentro de mim podia ter-te magoado. Ficava deitada muito quieta na almofada a pensar se morrerias durante o parto, ou momentos a seguir. Ou se teríamos a sorte de ganhar a lotaria: sobreviverias e ficarias gravemente incapacitada. Era uma grande ironia, pensei, que os teus ossos se partissem e o meu coração também.
Uma vez, tive um pesadelo. Tinha dado à luz e ninguém falava comigo, ninguém me dizia o que estava a acontecer. Em vez disso, a obstetra, a anestesista e as enfermeiras viravam-me todas
as costas.
- Onde está o meu bebé? - perguntava, e até mesmo Sean abanava a cabeça e afastava-se. Esforçava-me para me sentar para poder ver entre as pernas e olhar para ele: o que devia ser um bebé era apenas um monte de vidros estilhaçados; entre os estilhaços via as tuas unhas minúsculas, o cérebro, uma orelha, uma curva do intestino.
Acordei a gritar; demorei horas a voltar a adormecer. Naquela manhã, quando Sean me acordou, disse que não era capaz de me levantar da cama. E estava a falar a sério: estava certa de que o próprio acto de viver, para mim, seria uma ameaça à tua sobrevivência. A cada passo que dava podias sofrer um impacto; por outro lado, com cuidado, podia impedir que te partisses.
Sean telefonou a Piper, que foi lá a casa e falou-me na logística da gravidez como a descreveria a uma criança pequena: o saco amniótico, o fluído, a protecção entre o meu corpo e o teu. Sabia isso tudo, claro, mas por outro lado, também achava que sabia outras coisas que afinal estavam erradas: que os ossos ficavam cada vez mais fortes, e não mais fracos; que um feto que não sofresse de síndroma de Down era saudável. Ela disse a Sean que talvez eu precisasse de um dia a dormir para que me passasse, que mais tarde viria ver como eu estava. Mas Sean ainda estava preocupado e, depois de ter telefonado para o trabalho a dizer que estava doente, telefonou ao nosso padre.
203
Ao que parece, o padre Grady fazia visitas ao domicílio. Sentou-se numa cadeira que Sean trouxera para o quarto.
- Ouvi dizer que está um pouco preocupada.
- Isso é um eufemismo - disse eu.
- Deus não dá às pessoas fardos que elas não consigam carregar - fez notar o padre Grady.
Isso era muito bonito de dizer, mas que tinha feito o meu bebé para irritá-Lo? Porque teria de passar pela provação de sofrer mesmo antes de vir a este mundo?
- Sempre acreditei que Ele guarda os bebés mesmo especiais para os pais em que confia - disse o padre Grady.
- O meu bebé pode morrer - disse secamente.
- O seu bebé pode não ficar neste mundo - corrigiu ele. - Em vez disso poderá ficar com Jesus.
Senti lágrimas nos olhos.
- Ora bem, Ele que leve o bebé de outra pessoa qualquer.
- Charlotte! - disse Sean.
O padre Grady olhou para mim com grandes olhos calorosos.
- O Sean achou que podia ajudar se eu benzesse o bebé. Importa-se? - levantou a mão, deixando-a a pairar sobre o meu abdómen.
Acenei com a cabeça; não ia recusar uma bênção. Mas enquanto ele rezava por cima da colina da minha barriga, rezei a minha oração em silêncio: Deixai-me ficar com
ela e podeis ficar com tudo o resto que é meu.
Deixou-me uma pagela na mesa-de-cabeceira e prometeu rezar por nós. Sean acompanhou-o até lá abaixo e eu fiquei a olhar para a pagela. Jesus estava pregado ao crucifixo.
Ele sofreu dores, apercebi-me. Sabia como era sentir um prego perfurar a pele, estilhaçar o osso.
Passados vinte minutos, depois de ter-me vestido e tomado um duche, encontrei Sean sentado à mesa da cozinha com a cabeça apoiada nas mãos. Parecia tão abatido,
tão indefeso. Estava tão ocupada a preocupar-me comigo própria, que não tinha percebido como ele estava a sofrer. Imaginem como será fazer carreira a proteger as
outras pessoas e depois não ser capaz de salvar a própria filha.
- Estás levantada - afirmou o óbvio.
- Pensei em ir dar um passeio.
- Óptimo. Ar fresco. vou contigo - levantou-se demasiado depressa, abanando a mesa.
- Sabes - disse eu, tentando sorrir - preciso de estar sozinha.
204
- Oh... está bem, não há problema - disse, mas parecia um pouco magoado. Não conseguia perceber aquela situação: estávamos juntos na confusão mais inextricável,
mais sufocante; como podíamos sentir-nos tão distantes um do outro?
Sean presumiu que eu quisesse desanuviar a cabeça, pensar, reflectir. Mas a visita do padre Grady tinha-me feito pensar numa mulher que deixara de ir à igreja há
um ano. Vivia ao fundo da rua, a seiscentos metros, e de vez em quando via-a pôr o lixo cá fora. Chamava-se Annie, e só sabia que tinha estado grávida, que um dia deixou de estar, e que depois disso nunca mais voltou a ir à missa. Dizia-se que tinha feito um aborto.
Tinha sido criada como católica. Fui ensinada por freiras. Havia raparigas que engravidaram, mas, ou desapareciam da lista de nomes da turma ou iam para fora durante um semestre, regressando mais caladas e nervosas. Mas, apesar disso, voto nos Democratas desde os dezoito anos. Pode não ser a minha escolha pessoal, mas acho que as mulheres devem poder escolher.
No entanto, ultimamente, interrogava-me se esta minha escolha pessoal seria por ser católica ou simplesmente porque nunca fora obrigada a fazê-la na prática, só em teoria.
A casa de Annie era amarela, com decorações de conto de fadas e jardins cheios de lírios de São José no Verão. Dirigi-me à porta de entrada e bati, pensando no que lhe diria se atendesse. "Olá, sou a Charlotte. Por que razão fez aquilo?"
Fiquei aliviada quando ninguém atendeu; parecia-me cada vez mais uma ideia estúpida. Tinha começado a descer a via de acesso quando de repente ouvi uma voz atrás de mim.
- Oh, olá. Achei que tinha ouvido alguém no alpendre. Annie estava de calças de ganga, blusa vermelha sem mangas e luvas de jardinagem. Tinha os cabelos presos num nó na nuca, e sorria. - Vive ao cimo da rua, não vive?
Olhei para ela.
- O meu bebé tem um problema - desabafei.
Cruzou os braços por cima do peito e o sorriso desapareceu-lhe do rosto.
- Lamento - disse, rigidamente.
- Os médicos disseram-me que se sobreviver, se, será tão doente! Tão, tão doente! E eu não devo pensar nisso, mas não sei porque há-de ser pecado amar uma pessoa
e querer impedir que ela sofra - limpei o rosto com a manga. - Não posso dizer nada ao meu marido. Nem sequer posso dizer-lhe que pensei nisto.
Ela levantou a terra com o sapato de ténis.
205
- A minha bebé teria hoje dois anos, seis meses e quatro dias de idade - disse ela. - Ela tinha um problema, um problema genético. Se tivesse sobrevivido seria deficiente mental profunda. Como um bebé de seis meses, para sempre - respirou fundo. - Foi a minha mãe que me convenceu. Disse-me: "Annie, mal consegues tomar conta de ti própria. Como vais tomar conta de um bebé assim? És jovem. Vais ter outro." Por isso cedi e o médico fez o aborto às vinte e duas semanas - Annie desviou o rosto, de olhos brilhantes. - Mas o que ninguém nos diz - continuou ela - é que quando damos à luz um feto, recebemos uma certidão de óbito, mas não recebemos uma certidão de nascimento. E depois surge o leite e não podemos fazer nada para impedi-lo - olhou para mim.
- Não é possível ganhar. Ou temos o bebé e envergamos o nosso sofrimento exteriormente, ou não temos o bebé e mantemo-lo dentro de nós para sempre. Sei que o que fiz não foi errado. Mas também não me parece que tivesse sido certo.
Apercebi-me de que há legiões de mulheres como nós. As mães de bebés dilacerados, que passam o resto da vida a pensar se não deviam tê-los poupado. E as mães que abdicaram dos seus bebés, que olham para os nossos filhos e vêem os rostos daqueles que nunca chegaram a conhecer.
- Eles deixaram-me escolher - disse Annie - e, mesmo hoje, quem me dera que não o tivessem feito.
206
Amélia
Naquela noite deixei-te escovar o meu cabelo e pôr-lhe elásticos em todo o lado. Normalmente fazias uns nós enormes e aborrecias-me, mas adoravas fazer isto - tinhas os braços demasiado curtos para poderes sequer fazer um rabo-de-cavalo, por isso, enquanto as meninas da tua idade faziam penteados, punham fitas e faziam tranças, tu estavas à mercê da Mãe, cuja experiência em tranças se limitava às tranças doces. Não penses que de repente desenvolvi uma consciência ou qualquer coisa assim - só que me sentia mal por causa de ti. A mãe e o pai tinham estado aos gritos a falar de ti como se não estivesses em casa desde que tinham chegado. Quero dizer; a maioria das vezes tens um vocabulário melhor do que o meu - por amor de Deus, era impossível que achassem que não ias perceber tudo.
- Amélia? - chamaste, agarrando numa trança que estava pendurada mesmo por cima do meu nariz. - Gosto do teu cabelo desta cor.
Examinei-me ao espelho. Não parecia uma miúda punk cheia de estilo, apesar das minhas melhores intenções. Parecia mais o Gualter da Rua Sésamo.
- Amélia? A mãe e o pai vão divorciar-se? Cruzei o olhar com o teu no espelho.
- Não sei.Wílls.
Já estava à espera da pergunta seguinte.
- Amélia? - perguntaste. - A culpa é minha?
- Não - disse ferozmente. - A sério. -Tirei os ganchos e os elásticos do cabelo e comecei a desembaraçar os nós. - Pronto, já chega. Não tenho jeito para ser modelo. Vai para a cama.
Toda a gente se esquecera de vir aconchegar-te na cama naquela noite - embora eu já estivesse à espera disso, com o nível patético de cuidados parentais a que andava
a assistir ultimamente. Subiste para a cama
207
pela parte aberta - ainda tinha grades de cada lado do colchão, que detestavas, porque dizias que eram para bebés, mesmo que te mantivessem em segurança. Debrucei-me
e aconcheguei-te. Até te beijei na testa desajeitadamente.
- Boa noite - disse eu, e enfiei-me debaixo dos cobertores, desligando a luz.
Às vezes, no escuro, a casa parecia que tinha um coração. Ouvia-o bater, uaa uaa uaa, nos meus ouvidos. Naquela altura estava ainda mais alto. Talvez o meu cabelo
fosse uma espécie de supercondutor.
- Sabes o que a mãe costuma dizer, que posso ser o que quiser quando for grande? - sussurraste. - É mentira.
Apoiei-me num cotovelo.
- Porquê?
- Não posso ser um rapaz - disseste. Sorri.
- Pergunta isso à mãe um dia destes. ,
- E não posso ser a Miss América.
- Porquê? , ;:
- Não podemos usar suportes para as pernas num concurso de beleza - disseste.
Lembrei-me daqueles concursos com raparigas demasiado bonitas para serem reais, altas e magras, com uma perfeição plástica. E depois pensei em ti, baixa, atarracada e torta, como uma raiz a sair do tronco de uma árvore, com uma faixa colocada sobre o peito.
MISS COMPREENSÃO.
MISS INFORMADA.
MISS ERRO.
Isso fez o meu estômago doer
- Dorme - disse eu, num tom mais áspero do que desejava, e contei até 1036 antes de começares a ressonar
Lá em baixo, fui em bicos de pés até à cozinha e abri o frigorífico. Não havia comida absolutamente nenhuma naquela casa. Provavelmente teria de comer sopa de massa ao pequeno-almoço. Sinceramente, estava a chegar ao ponto em que se os meus pais não fossem à mercearia, poderiam ser castigados por maus tratos infantis.
Isso não era novidade,
Procurei no compartimento das frutas e encontrei um limão fossilizado e um pedaço de gengibre.
Fechei a porta do frigorífico e ouvi um gemido.
Aterrorizada - as pessoas invadiam casas para violarem raparigas de cabelos azuis? - dirigi-me sorrateiramente para a porta da cozinha e olhei para a sala. Enquanto os meus olhos voltavam a adaptar-se à escuridão, vi: a
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colcha pendurada nas costas do sofá e a almofada que o pai colocara por cima da cabeça ao virar-se.
Senti a mesma dor no estômago que senti quando estavas a falar sobre as rainhas da beleza. Voltando à cozinha, silenciosa como a neve, passei os dedos pela bancada
até se cerrarem sobre o cabo de uma faca de trinchar. Levei-a comigo lá para cima, para a casa de banho.
O primeiro corte ardeu. Observei o sangue a emergir como uma maré e a escorrer-me pelo cotovelo. Merda, o que fui eu fazer? Abri a torneira da água fria, colocando
o braço lá debaixo até o sangue abrandar
Depois fiz outro corte paralelo.
Não estavam nos pulsos, não acho que estivesse a tentar suicidar-me. Só queria sofrer e saber precisamente por que razão me doía. Aquilo fazia sentido: cortamo-nos,
sentimos dor; ponto final. Senti tudo a acumular-se dentro de mim como vapor e estava apenas a soltar uma válvula. Fez-me lembrar a minha mãe, quando fazia bases
para tartes. Fazia buraquinhos por todo o lado. "Para poder respirar", dizia ela.
Eu estava só a respirar.
Fechei os olhos, antecipando cada corte fino, sentindo aquela vaga de alívio quando estava terminado. Meu Deus, era tão bom - aquela acumulação, e o doce alívio.
Teria de esconder aquelas marcas, porque preferia morrer a deixar alguém ver que tinha feito aquilo. Mas também estava orgulhosa de mim própria, um pouco. As raparigas
doidas faziam-no - as que escreviam poesia sobre os seus órgãos serem preenchidos com alcatrão e que usavam tanto eyeliner preto que pareciam egípcias - e não
raparigas bem-comportadas de boas famílias. Isso também queria dizer que ou eu não era uma rapariga bem-comportada, ou que não vinha de boas famílias.
É só escolher.
Abri o reservatório do autoclismo e enfiei a faca lá dentro.Talvez voltasse a precisar dela.
Fiquei a olhar para os cortes, que agora estavam a latejar tal como o resto da casa, uaa uaa uaa. Pareciam os carris de uma linha de caminho de ferro. Como um escadote,
daqueles que existem nos palcos. Imaginei um desfile de pessoas feias como eu, nós as rainhas da beleza que não éramos capazes de andar sem suportes. Fechei os olhos e imaginei aonde conduziriam esses degraus.
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"Não há dúvida de que nesta terra abundante Quase não há lugar para as coisas gastas: Desdenhamo-las, quebramo-las, deitamo-las fora! E se antes de os dias se terem tornado difíceis Outrora fomos amados, usados - está certo, Acho que nos afastámos, o meu coração e eu."
- ELIZABETH BARRETT BROWNING, "MY HEART AND I"
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Ponto de rebuçado: um dos pontos do açúcar para a preparação de doces, que ocorre de 120?C a 130?C.
Os nougats, os marshmallows, os rebuçados, as gomas - todos são cozinhados em ponto de rebuçado, quando a concentração de açúcar é muito elevada e o xarope
forma fios grossos ao escorrer da colher. (Cuidado. O açúcar continua a queimar muito depois de entrar em contacto com a pele; é fácil esquecer que uma coisa tão doce
possa deixar uma cicatriz.) Para testar a solução, deixar cair um pouco em água fria. Está pronto quando formar uma bola rija que não se achate quando é retirada,
mas cuja forma ainda consiga ser alterada aplicando uma pressão considerável.
O que, claro, nos leva à definição mais coloquial de ponto de rebuçado'4 diz-se que uma pessoa está em ponto de rebuçado quando está pronta a aceitar ser moldada
à vontade de outros; também significa o ponto mais quente de uma discussão.
DIVINITY
2 chávenas de açúcar
2 chávena de xarope de milho '/ chávena de água Pitada de sal
3 claras grandes
1 colher de chá de baunilha
0,2 chávena de nozes pecas picadas
meia chávena de cerejas, mirtilos ou arandos secos.
Sempre achei interessante que um doce com um nome como DivinityH seja feito com tanta brutalidade.
Numa frigideira de dois litros, misturar o açúcar, o xarope de milho, a água e o sal. Usando um termómetro de cozinha, aquecer até ao ponto de rebuçado, mexendo
apenas até o açúcar estar
14. Harclhall, na versão original em inglês, não tem exactamente o mesmo significado de ponto de rebuçado em português. (N. da T.)
15. Divindade. (N. da T.)
213
dissolvido. Entretanto, bater as claras em castelo. Quando o xarope atingir os 130?C, adicionar gradualmente às claras batendo em alta velocidade numa batedeira
eléctrica. Continuar a bater até o doce tomar forma - cerca de 5 minutos. Juntar a baunilha, as nozes e as frutas secas. Deixar cair rapidamente o doce de uma colher
de chá para papel vegetal, terminando cada um com uma espiral, e deixar arrefecer à temperatura ambiente.
Ponto de rebuçado, bater, bater novamente. Talvez este doce devesse chamar-se Submissão.
214
Charlotte
Janeiro de 2008
Tinha começado por ser uma mancha com a forma de uma raia no tecto da sala de jantar - uma mancha de humidade, uma indicação de que havia algum problema nos canos da casa de banho lá de cima. Mas a mancha de humidade alastrou-se até já não se parecer com uma raia mas com uma maré inteira, e metade do tecto parecer ter sido mergulhado em folhas de chá. O canalizador andou a ver debaixo dos lavatórios e debaixo da banheira durante cerca de uma hora e só depois apareceu na cozinha, onde eu estava a fazer molho para esparguete.
- Ácido - anunciou.
- Não... é só molho de tomate.
- Nos canos - disse ele. - Não sei o que anda a deitar ali, mas está a corroê-los.
- A única coisa que andamos a deitar é o que toda a gente deita. As miúdas não andam propriamente a fazer experiências químicas no duche.
O canalizador encolheu os ombros.
- Posso substituir os canos, mas se não solucionar o problema, vai voltar a acontecer.
Só a visita dele já estava a custar-me 350 dólares, pelos meus cálculos - mal podíamos pagá-la, quanto mais uma segunda visita.
- Está bem.
Seriam mais trinta dólares pela tinta para pintar o tecto e isso era se fôssemos nós a pintá-lo. E ali estávamos nós a comer massa pela terceira vez naquela semana porque era mais barato do que carne, porque tinhas precisado de comprar sapatos novos. Estávamos realmente sem dinheiro.
Eram quase seis horas - a hora a que Sean normalmente chegava a casa. Já se tinham passado cerca de três meses desde o seu
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depoimento desastroso, embora, a avaliar pelas nossas conversas, parecesse que nunca tinha chegado a realizar-se. Falávamos sobre o que o comandante da polícia tinha
dito a um jornal local sobre um acto de vandalismo no liceu, sobre se Sean devia fazer o exame para ser detective. Falávamos sobre Amélia, que dias antes tinha entrado
em greve de palavras e insistia em fazer mímica. Falávamos sobre como, naquele dia, tinhas dado a volta ao quarteirão sem que fosse preciso ir buscar a cadeira por
as tuas pernas não estarem a ceder.
Não falávamos sobre este processo legal.
Eu cresci numa família em que, se não se discutisse uma crise, ela não existia. A minha mãe já estava doente com cancro da mama há meses quando eu percebi, e então
já era tarde de mais. O meu pai perdeu três empregos durante a minha infância, mas isso não era assunto de conversa - um dia voltava a vestir um fato e a dirigir-se
para um escritório novo, como se não tivesse havido nenhuma interrupção na rotina. O confessionário era o único sítio a que devíamos recorrer, com os nossos medos
e preocupações; Deus dava-nos o único conforto de que precisávamos.
Jurei que, quando tivesse a minha família, as cartas estariam todas na mesa. Não teríamos objectivos ocultos, segredos ou óculos cor-de-rosa que nos impedissem de
ver todos os nós e sinuosidades dos problemas de uma família vulgar. Mas esqueci-me de um elemento fundamental: as pessoas que não falavam sobre os seus problemas
podiam fingir que não tinham nenhuns. Por outro lado, as pessoas que discutiam o que estava mal, brigavam, sofriam e sentiam-se miseráveis.
- Meninas - gritei. - Jantar!
Ouvi o ruído distante dos teus pés a moverem-se ao longo do corredor lá em cima. Hesitavas - um pé num degrau e depois o outro - enquanto Amélia quase entrou na
cozinha a patinar.
- Oh, meu Deus - gemeu ela. - Outra vez esparguete?
Para ser honesta, não tinha propriamente aberto um pacote de Prince. Fiz a massa, tendia-a, cortei-a às tiras.
- Não, desta vez é fettuccine - disse eu, imperturbável. - Podes pôr a mesa.
Amélia enfiou a cabeça no frigorífico.
- Notícia de última hora, não há sumo.
- Esta semana bebemos água. Faz-nos melhor.
- E é mais barata, convenientemente. Fazemos assim. Tiras vinte dólares do meu fundo universitário e esbanjamo-los em panados de frango.
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- Humm, que é isto? - disse eu, olhando em volta de sobrolho franzido. - Oh, é verdade. Sou eu que não estou a rir-me.
Ao ouvir isto, Amélia esboçou um sorriso.
- Amanhã é melhor arranjarmos algumas proteínas.
- Lembra-me de comprar um pouco de tofu.
- Que nojo - colocou alguns pratos em cima da mesa. - Então lembra-me que tenho de suicidar-me antes de jantar.
Entraste na cozinha e subiste para a tua cadeirinha. Não a chamávamos de cadeirinha - tinhas quase seis anos e eras rápida a fazer notar que eras uma menina crescida - mas não chegavas à mesa sem ter algo que te elevasse; eras simplesmente demasiado pequena.
- Para cozer quinhentos milhões de quilos de massa é preciso água suficiente para encher setenta e cinco mil piscinas disseste.
Amélia sentou-se na cadeira ao teu lado, afundando-se nela.
- Para comer quinhentos milhões de quilos de massa, só temos de pertencer à família O'Keefe.
- Se continuarem a queixar-se, talvez faça um prato gourmet amanhã à noite... como lulas. Ou haggis. Ou mioleira. São proteínas, Amélia...
- Há muito tempo, havia um homem, Sawney Beane, na Escócia, que comia pessoas - disseste. - Para aí umas mil.
- Bem, felizmente não estamos assim tão desesperados.
- Mas se estivéssemos - disseste, de olhos radiantes - eu nem teria ossos.
- Muito bem, já chega - coloquei-te uma dose de massa fumegante no prato. - Bon appetit.
Olhei para o relógio; eram 18h10.
- Então e o pai? - disse Amélia, lendo os meus pensamentos.
- Vamos esperar por ele. Tenho a certeza de que deve estar a chegar.
Mas passados cinco minutos, Sean ainda não tinha chegado. Estavas a remexer-te no assento e Amélia estava a brincar com o monte de massa coagulada que tinha no prato.
- A única coisa mais nojenta do que massa, é massa gelada resmungou ela.
- Comam - disse eu, e tu e a tua irmã lançaram-se sobre o jantar como dois falcões.
Olhei para o meu prato, já sem fome. Passados alguns minutos, vocês levaram os vossos pratos para o lava-loiça. O canalizador desceu as escadas para dizer que tinha acabado e deixou-me
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uma conta em cima da bancada da cozinha. O telefone tocou duas vezes, e uma de vocês atendeu.
Às sete e meia, telefonei para o telemóvel de Sean, que passou imediatamente para o gravador de chamadas.
Às oito, deitei o conteúdo do meu prato para o caixote do lixo.
Às oito e meia, fui aconchegar-te à cama.
Às oito e quarenta e cinco, telefonei para a central, para a linha que não era das emergências.
- Fala Charlotte O'Keefe - disse eu. - Sabe dizer-me se o Sean está a fazer outro turno hoje à noite?
- Ele saiu por volta das dezoito e quarenta e cinco - disse a operadora da central.
- Oh, sim, claro - respondi de ânimo leve, como se já soubesse, porque não queria que ela pensasse que eu era daquele tipo de mulheres que não faz ideia de onde
anda o marido.
Às 23:06, estava sentada às escuras no sofá da nossa sala, a pensar se ainda poderia chamar-se nossa sala quando a nossa família se está a separar, quando a porta
de entrada se abriu suavemente. Sean entrou no vestíbulo em bicos de pés e eu liguei o candeeiro que estava ao meu lado.
- Uau - disse eu. - O trânsito devia estar mesmo horrível, - Ele ficou petrificado.
- Estás acordada.
- Esperámos por ti para jantar. O teu prato ainda está na mesa, se te apetecer fettuccine fossilizado.
- Fui ao O'Boys com alguns dos rapazes depois de ter terminado o turno. Ia telefonar...
Acabei-lhe a frase.
- Mas não querias falar comigo.
Então ele aproximou-se e eu senti o cheiro do aftershave. Alcaçuz e um ligeiro aroma a fumo. Era capaz de distinguir Sean no meio de uma multidão, de olhos vendados, com os meus outros sentidos. Mas a identificação não é o mesmo do que conhecer a fundo uma pessoa - o homem por quem nos apaixonámos há anos pode parecer o mesmo, dizer o mesmo, e ter o mesmo cheiro, mas ser completamente diferente.
Acho que Sean também podia dizer o mesmo de mim.
Sentou-se numa cadeira à minha frente.
- O que queres que te diga, Charlotte? Queres que minta e diga que estou ansioso por voltar para casa à noite?
- Não - engoli. - Quero... queria só que as coisas voltassem a ser como eram.
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- Então pára - disse ele num tom suave. - Larga aquilo que começaste.
As escolhas são curiosas - se perguntarem às pessoas de uma tribo nativa, que sempre comeram larvas e raízes, se são infelizes, encolherão os ombros. Mas dêem-lhes
filet mignon e molho de trufas e depois peçam-lhes para voltarem a viver do que a terra lhes oferece, e ficarão sempre a pensar naquela refeição requintada.
Se não
soubermos que existe uma alternativa, não sentimos falta dela. Marin Gates ofereceu-me um anel de bronze em que nunca teria pensado, nem nos meus sonhos mais loucos
- mas agora que o fizera, como poderia não tentar agarrá-lo? A cada fractura futura, a cada dólar que fazia aumentar a nossa dívida, pensaria em como devia tê-lo agarrado.
Sean abanou a cabeça.
- Bem me parecia.
- Estou a pensar no futuro da Willow...
- Bem, eu estou a pensar no presente. Ela está-se nas tintas para o dinheiro. Preocupa-se é se os pais gostam dela ou não. Mas não é isso que ela vai ouvir quando estiveres naquela maldita sala de audiências.
- Então diz-me tu, Sean, qual é a solução? Devemos ficar sentados na esperança de que a Willow deixe de sofrer fracturas? Ou que tu... - interrompi a frase bruscamente.
- Que eu o quê? Arranje um emprego melhor? Ganhe a merda da lotaria? Porque não o dizes de uma vez, Charlotte? Achas que não sou capaz de sustentar-vos a todas.
- Nunca disse isso...
- Não foi preciso dizeres. Percebi perfeitamente - disse ele. Sabes, costumavas dizer que eu te tinha salvo, a ti e à Amélia. Mas acho que, a longo prazo, desiludi-vos.
- Não és tu, Sean. É a nossa família.
- Que estás a destruir. Meu Deus, Charlotte, o que achas que as pessoas vêem quando olham para ti agora?
- Uma mãe - disse eu.
- Uma mártir- corrigiu Sean. - Nunca ninguém trata tão bem da Willow como tu. Não confias em mais ninguém. Não percebes como isso é perverso?
Senti um aperto na garganta.
- Ora bem, desculpa por não ser perfeita.
- Não - disse Sean. - Mas esperas que os outros sejam. Suspirando, aproximou-se da lareira onde estavam uma almofada e uma colcha cuidadosamente colocadas. - E, se me dás licença, estás sentada na minha cama.
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Consegui conter o soluço até chegar lá acima. Deitei-me do lado de Sean no colchão, tentando encontrar o sítio onde ele costumava dormir. Virei o rosto para a almofada, que cheirava ao champô dele. Embora tivesse mudado os lençóis da cama quando ele passara a dormir no sofá, não tinha lavado a fronha, de propósito - e agora interrogava-me porque não o fizera. Para fingir que ele ainda estava ali? Para ter alguma coisa dele se nunca mais voltasse?
No dia do nosso casamento, Sean disse-me que se colocaria diante de uma bala para me salvar. Sabia que ele queria que eu dissesse o mesmo, mas não podia. Amélia precisava que eu tomasse conta dela. Por outro lado, se aquela bala se dirigisse para a Amélia, não pensaria duas vezes antes de me atirar para a frente.
Isso tornava-me muito boa mãe, ou péssima esposa?
Mas isto não era uma bala e não foi disparada contra nós. Era um comboio que se aproximava e, para salvar a minha filha, tinha de lançar-me para os carris. Só havia um contratempo: a minha melhor amiga estava presa a mim.
Uma coisa é sacrificarmos a nossa vida pela de outra pessoa. Outra coisa completamente diferente é envolver uma terceira pessoa - uma terceira pessoa que nos conhece, que tem uma confiança cega em nós.
Parecia tão simples: um processo legal que reconhecia como a vida era difícil para nós e que melhoraria tanto as coisas. Mas, na minha pressa de ver os aspectos positivos, não reparei nos negativos: o facto de que acusar Piper e convencer Sean cortaria as minhas relações com eles. E agora era demasiado tarde. Mesmo que telefonasse a Marin e lhe dissesse para pôr termo a tudo, Piper não me perdoaria. Sean não deixaria de julgar-me.
Podemos dizer a nós próprios que estaríamos dispostos a perder tudo para ter uma coisa que desejamos. Mas é um paradoxo: todas essas coisas que estamos dispostos a perder são o que nos definem. Se as perdemos, perdemo-nos a nós próprios.
Durante um instante imaginei que descia as escadas em bicos de pés e me ajoelhava em frente de Sean para lhe pedir desculpa. Imaginei que lhe pedia para começarmos de novo. Depois olhei para cima e vi que a porta se entreabrira um pouco e o teu pequeno rosto triangular espreitava.
- Mamã - disseste, aproximando-te mais no teu passo desajeitado e a subir para a cama - tiveste algum pesadelo?
Aconchegaste-te, com as costas encostadas a mim.
- Tive, Wills. Tive sim.
- Precisas que fique aqui contigo?
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Envolvi-te nos meus braços, como um parêntese.
- Para sempre - disse.
O Natal tinha sido demasiado quente naquele ano, verde em vez de branco, a confirmação da Mãe Natureza de que a vida não estava como devia estar. Após duas semanas
de temperaturas a rondar os cinco graus, o Inverno regressou em força. Naquela noite, nevou. Acordámos com as gargantas secas e o calor a sair dos radiadores. Lá fora, o ar cheirava a fumo de lareira.
Sean já tinha saído quando desci as escadas às sete horas. Deixara uma pilha de roupa de cama bem dobrada na divisão de tratamento de roupas e uma caneca de café vazia no lava-loiça. Desceste as escadas, a esfregar os olhos.
- Tenho os pés frios - disseste.
- Então calça as pantufas. Onde está Amélia?
- Ainda está a dormir.
Era sábado; não havia nenhuma razão para acordá-la cedo. Observei-te a esfregares a anca, provavelmente nem sequer tinhas consciência de que estavas a fazê-lo. Tinhas de exercitar os músculos da pélvis, apesar de ainda te doerem por causa das fracturas dos fémures.
- Fazemos assim. Se fores buscar o jornal, podemos comer waffles ao pequeno-almoço.
Vi-te fazer cálculos mentais - a caixa do correio ficava a trezentos metros de casa, na via de acesso; estava um frio de rachar lá fora.
- com gelado?
- Morangos - negociei.
- Está bem
- Foste ao bengaleiro para vestir o casaco por cima do pijama, e eu ajudei-te a apertar os suportes antes de enfiares os pés em botas de cano baixo onde estes cabiam.
- Tem cuidado na via de acesso. - Apertaste o casaco. Willow? Estás a ouvir?
- Sim, ter cuidado - repetiste, abriste a porta de entrada e saíste lá para fora.
Fiquei à porta a observar-te por alguns instantes, até que te viraste para trás na via de acesso, de mãos nas ancas, e disseste:
- Não vou cair! Pára de olhar!
Por isso recuei e fechei a porta - mas, pela janela, segui-te por mais alguns momentos. Na cozinha, comecei a tirar os ingredientes do frigorífico e liguei a chapa para fazer waffles. Tirei a tigela de
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plástico de que gostavas tanto, por ser suficientemente leve para poderes pegar nela e verter o polme.
Dirigi-me novamente para o alpendre, à tua espera. Mas quando saí lá para tora, tinhas desaparecido. Tinha a visão total da via de acesso até à caixa do correio
e tu não estavas em lado nenhum. Em pânico, enfiei os pés num par de botas e corri pela via de acesso. A meio caminho, vi pegadas na neve, que ainda cobria a erva espetada, a dirigirem-se para o lago de patinagem.
- Willow! - gritei. - Willow!
Maldito Sean, que não enchera o lago de terra como lhe tinha pedido.
De repente, ali estavas tu, à beira dos juncos que bordejavam o gelo fino.
Tinhas um pé apoiado na superfície.
- Willow - disse numa voz suave, para não te assustar, mas quando te voltaste, a bota escorregou e inclinaste-te para a frente de mãos estendidas para amparar a queda.
Já estava a prever que isso ia acontecer. Já estava a prever e, por isso, já estava a aproximar-me quando te viraste para mim. Pus os pés no gelo, que ainda era demasiado recente e fino para aguentar qualquer peso, e senti a borda frisada estilhaçar-se debaixo do pé. A bota encheu-se de água gelada, mas consegui envolver-te nos braços, para impedir que caísses.
Fiquei encharcada até meio da coxa, e o teu corpo ficou pendurado do meu braço como uma saca de farinha, sem fôlego. Cambaleei para trás, tirando o pé do lodo e das ervas que cobriam o fundo do lago, e sentei-me pesadamente para amparar-te a queda.
- Estás bem? - arquejei. - Partiste alguma coisa? Fizeste uma rápida avaliação interna e abanaste a cabeça.
- Qual foi a tua ideia? Já devias saber...
- A Amélia pode andar no gelo - disseste, num fio de voz.
- Primeiro, não és a Amélia. E segundo, este gelo não está suficientemente forte.
Torceste-te.
- Como eu.
Virei-te delicadamente, para ficares sentada ao meu colo, com as pernas de cada lado das minhas. Uma aranha, era isso que as crianças lhe chamavam quando faziam o mesmo nos baloiços, apesar de nunca te deixarmos. Era muito fácil prenderes uma perna numa corrente ou ficar entrelaçada nos membros de uma amiga.
- Não é como tu - disse num tom firme. - Willow, és a pessoa mais forte que eu conheço.
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- Mas mesmo assim desejavas que eu não tivesse de usar uma cadeira de rodas. Ou estar sempre a ir para o hospital.
Sean insistira em que estivesses bem consciente do que se passava à tua volta; eu presumira, ingenuamente, que, depois da conversa que tínhamos tido há meses, se duvidasses das minhas palavras, essas dúvidas tivessem sido esclarecidas pelos meus actos. Mas estava preocupada com as coisas que me ouvirias dizer - e não com as mensagens que poderias ler nas entrelinhas.
- Lembras-te quando te disse que tinha de dizer coisas que não sentia? É isso, Willow - hesitei. - Imagina que estás na escola e uma amiga te pergunta se gostas dos ténis dela, e tu não gostas: achas que são absolutamente horrorosos. Não ias dizer-lhe que os detestas, pois não? Porque ela ficaria triste.
- Isso é mentir.
- Eu sei. E não se deve fazer, na maior parte das vezes, a menos que seja para evitar ferires os sentimentos de outra pessoa.
Ficaste a olhar para mim.
- Mas tu estás a ferir os meus sentimentos.
A faca que tinha cravada no estômago torceu-se.
- Não é essa a minha intenção.
- Então - disseste, reflectindo bastante - é como quando a Amélia joga ao Dia do Oposto?
Amélia tinha inventado esse jogo quando tinha mais ou menos a tua idade. Beligerante já nessa altura, recusava-se a fazer os trabalhos de casa, e depois desatava a rir quando lhe gritávamos, dizendo que era o Dia do Oposto e que já tinha acabado de fazê-los. Ou aterrorizava-te, chamava-te Miúda de Vidro, e quando vinhas ter connosco lavada em lágrimas, Amélia insistia que, no Dia do Oposto, isso queria dizer que eras uma princesa. Nunca fui capaz de perceber se Amélia inventou o Dia do Oposto por ter muita imaginação ou por ser subversiva.
Mas talvez fosse uma maneira de desenredar o emaranhado intricado que era a negligência médica no diagnóstico pré-natal, dourando uma mentira, como Rumpelstiltskin.
- Precisamente - disse eu. - Tal e qual o Dia do Oposto. Sorriste-me com um sorriso tão doce que senti o gelo
derreter-se à nossa volta.
- Então está bem - disseste. - Também desejava que tu não tivesses nascido.
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Quando Sean e eu começámos a namorar, deixava-lhe iguarias na caixa de correio. Biscoitos com a forma das iniciais dele, uma torta babka, pãezinhos doces com nozes,
peca cobertas de açúcar, nougat de amêndoas com cobertura de chocolate. Levei à letra o termo o amor é doce. Imaginava-o a meter a mão para tirar as contas e catálogos
e, em vez disso, tirar uma torta de geleia, um bolo de mel, cubos de caramelo.
- Vais continuar a amar-me depois de engordar quinze quilos? - perguntava Sean, e eu ria dele.
- O que te faz pensar que te amo? - dizia eu.
Amava, claro. Mas para mim sempre foi mais fácil mostrar amor do que afirmá-lo. A palavra fazia-me lembrar pralinés: pequenos, preciosos e quase insuportavelmente
doces. Ficava radiante na presença dele; sentia-me um sol na constelação do seu abraço. Mas quando tentava exprimir o que sentia por ele em palavras, o sentido tornava-se
de certa forma amesquinhado. Era como espalmar uma borboleta debaixo de um vidro ou filmar um cometa com uma câmara de vídeo. Todas as noites me abraçava e me dizia
aquela frase ao ouvido, bolhas que rebentavam ao mínimo contacto: "Amo-te." E depois ficava à espera. Esperava, e embora soubesse que não queria pressionar-me antes
de eu estar preparada para fazer a minha confissão, sentia a desilusão dele naquele silêncio.
Um dia, quando saí do trabalho ainda a sacudir a farinha das mãos para poder ir a correr buscar Amélia à escola, encontrei um pequeno cartão entalado debaixo do
limpa pára-brisas. "AMO-TE", dizia.
Enfiei-o no porta-luvas e, naquela tarde, fiz trufas e deixei-as na caixa de correio de Sean.
No dia a seguir, quando saí do trabalho, estava um papel de vinte e dois por vinte e oito centímetros preso no limpa pára-brisas: "AMO-TE."
Telefonei a Sean.
- vou ganhar - disse eu.
- Acho que vamos ganhar os dois - respondeu ele.
Tinha feito uma panna cotta de lavanda e deixara-a em cima da conta do seu MasterCard.
Ele contra-atacou com um poster. Conseguia ler-se a mensagem da janela do restaurante, o que me transformou no alvo de muitas piadas da parte do chefe de mesa e
do chefe de cozinha.
- Qual é o teu problema? - perguntara Piper. - Diz-lhe o que sentes e pronto. - Mas Piper não compreendia e eu não conseguia explicar-lhe. Quando mostramos a alguém
o que sentimos, é
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espontâneo e sincero. Quando dizemos a alguém o que sentimos, por trás das palavras pode haver apenas hábito ou expectativa. Aquelas palavras são as que toda a gente
usa; simples sílabas não podem conter algo tão raro como o que eu sentia por Sean. Queria que ele sentisse o que eu sentia quando estava com ele: aquela incrível
combinação de consolo, habituação e admiração; saber que bastaria provar para ficar viciada nele. Por isso fiz tiramisú e deixei-o entre uma encomenda da Amazon.com
e um prospecto de uma empresa de pinturas.
Dessa vez, Sean telefonou-me.
- Abrir a caixa de correio de outra pessoa é um crime, sabias?
- perguntou ele.
- Então prende-me - respondi.
Naquele dia, saí do trabalho - seguida pelo resto dos empregados que vinham assistir ao nosso namoro como se fosse algum espectáculo desportivo - e encontrei o meu carro completamente embrulhado em papel plastificado. A mensagem de Sean estava escrita em letras do meu tamanho: "ESTOU A FAZER DIETA."
E sim, fizera-lhe scones com sementes de papoila, e estes ainda estavam na caixa do correio no dia seguinte quando lhe deixei uns biscoitos de gengibre. E, no outro dia, visto que ambos permaneciam intactos, a tarte de morango nem sequer cabia. Então levei-a a casa dele e toquei à campainha. Os seus cabelos loiros estavam iluminados por trás e a T-shirt branca esticada sobre o peito.
- Porque não comeste o que eu fiz para ti? - perguntei. Ele esboçou um sorriso vagaroso.
- Porque não o dizes também?
- Não vês?
Sean cruzou os braços.
- Vejo o quê?
- Que te amo?
Ele abriu a porta, agarrou-me e beijou-me intensamente.
- Já não era sem tempo - disse ele, sorrindo. - Estou a morrer de fome.
Naquela manhã tu e eu não nos limitámos a fazer waffles. Fizemos pão de canela, biscoitos de aveia e blondies. Deixei-te lamber a colher, a espátula, a tigela. Por volta das onze, Amélia entrou na cozinha acabada de sair do duche.
- Temos um exército para almoçar? - perguntou ela, mas então agarrou num pãozinho de milho, abriu-o e inspirou o vapor.
- Posso ajudar?
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Fizemos bolo aveludado de framboesa e uma tarte Tatin de ameixas, folhados de maçã, bolachas em espiral e macaroons. Cozinhámos até quase não haver nada na
despensa,
até me esquecer do que disseste junto ao lago, até se acabar o açúcar mascavado, até não repararmos que o teu pai esteve fora o dia todo, até não conseguirmos comer
nem mais uma garfada.
- E agora? - perguntou Amélia, quando cada centímetro da bancada estava coberto por qualquer das coisas que tínhamos feito.
Já não fazia isto há tanto tempo que, quando comecei, não fui capaz de parar. E acho que uma parte de mim ainda estava a cozinhar para um restaurante e não para
uma única família - ainda por cima à qual faltava um dos membros.
- Podíamos dar aos vizinhos - sugeriste.
- Nem pensar - disse Amélia. - Eles que os comprem.
- Não temos uma pastelaria - fiz notar.
-Porque não? Podia ser como uma banca de verduras, ao fundo da via de acesso. A Willow e eu podíamos fazer um grande letreiro a dizer Doces da Charlotte, e podias embrulhar tudo em película aderente...
- Podíamos tapar uma caixa de sapatos - disseste - e fazer uma ranhura na tampa para receber o dinheiro e depois cobrávamos dez dólares por cada um.
- Dez dólares? - disse Amélia. - É mais um dólar, cérebro de ervilha.
- Mãe! Ela chamou-me cérebro de ervilha...
Estava a imaginar paredes pintadas de branco, uma montra de vidro, mesas de ferro forjado com tampo de mármore. Imaginava fileiras de pãezinhos de pistáchio num
fogão industrial, merengues que se derretiam na boca, o tilintar da caixa registadora, como o som das asas de um anjo.
- Syllabub - interrompi, e ambas se viraram para mim. - É esse o nome que deve estar escrito no letreiro.
Naquela noite, quando Sean chegou a casa, eu estava a dormir profundamente e, quando acordei, ele já tinha saído. Só sabia que ele tinha realmente vindo a casa porque estava uma caneca suja, sozinha, no lava-loiça.
Senti um nó no estômago; fingi que era fome e não ressentimento. Na cozinha fiz uma torrada e coloquei um filtro novo de café na máquina.
Quando Sean e eu éramos recém-casados, ele fazia café para mim todas as manhãs. Ele não bebia café, mas levantava-se cedo
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para ir Para o trabalho e programava a máquina de café Krups para que, quando eu saísse do duche, tivesse uma cafeteira de café acabado de fazer à minha espera.
Descia as escadas e via uma caneca à espera, com duas colheres de chá de açúcar já lá dentro. Às vezes, estava em cima de um bilhete: "ATÉ LOGO" ou "JÁ ESTOU com
SAUDADES."
Naquela manhã a cozinha estava fria, a máquina de café silenciosa e vazia.
Medi a água e os grãos de café, carreguei num botão para que o líquido escorresse para a cafeteira. Fui buscar uma caneca ao armário e depois, pensando melhor, tirei a que Sean usara do lava-loiça. Lavei-a e servi-me de café. Estava demasiado forte, amargo. Pensei se os lábios de Sean teriam tocado no mesmo sítio da caneca do que os meus.
Sempre suspeitei das mulheres que descreviam a dissolução dos seus casamentos como qualquer coisa que tivesse acontecido de um dia para o outro. "Como é possível que não saibam?" pensava. "Como é possível não repararem em todos os sinais?" Bem, deixem-me que vos diga como: estamos tão ocupadas a apagar o fogo que temos à nossa frente que não vemos o incêndio a deflagrar atrás de nós. Nem me lembrava da última vez que Sean e eu rimos de qualquer coisa juntos. Nem me lembrava da última vez que o beijei, só por me apetecer. Estava tão concentrada em proteger-te que fiquei completamente vulnerável.
Às vezes tu e a Amélia jogavam jogos de tabuleiro e, quando lançavas os dados, ficavam presos numa reentrância do sofá ou rebolavam para o chão. "De novo", dizias, e era tão fácil teres uma segunda oportunidade. Era isso que agora eu queria: fazer de novo. Só que, para ser sincera para comigo própria, não sabia por onde começar.
Deitei o café para o lava-loiça e observei-o a escorrer num turbilhão pelo cano abaixo.
Não precisava de cafeína. E também não precisava que alguém me fizesse café de manhã. Saindo da cozinha, agarrei num casaco (o de Sean, tinha o cheiro dele) e fui lá fora buscar o jornal.
A caixa verde onde costumava estar o jornal da região estava vazia; Sean devia tê-lo levado ao sair, para onde quer que fosse. Frustrada, virei-me e reparei no carrinho de mão cheio de produtos de pastelaria que tínhamos colocado ontem ao fundo da via de acesso.
O carrinho de mão estava vazio, só lá estava uma caixa de sapatos. Amélia transformara-a numa caixa registadora baseada num sistema de honestidade e o letreiro de cartolina, que tinhas pintado com purpurinas, dizia "SYLLABUB."
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Agarrei na caixa de sapatos e corri para casa, para o teu quarto.
- Meninas - disse eu - vejam!
Ambas se viraram, ainda ensonadas. :,
- Meu Deus - gemeu Amélia, olhando para o relógio. Sentei-me na tua cama e abri a caixa de sapatos.
- Onde foste arranjar esse dinheiro todo? - perguntaste, " bastou isso para que Amélia se sentasse na cama.
- Que dinheiro? - perguntou.
- É das coisas que fizemos - disse eu.
- Dá-me isso - Amélia agarrou na caixa e começou a organizar o dinheiro em montes. Havia notas e moedas de todos os valores. - Estão aqui para aí cem dólares!
Saíste da cama e subiste para a da Amélia.
- Estamos ricas - disseste, e agarraste num punhado de dólares e atiraste-os para o ar.
- O que vamos fazer com isto? - perguntou Amélia.
- Acho que devíamos comprar um macaco - disseste.
- Os macacos são muito mais caros do que isto - disse Amélia num tom desdenhoso. - Acho que devíamos comprar uma televisão para o nosso quarto.
E eu pensei que devíamos pagar a conta do MasterCard, mas duvidava que vocês concordassem.
- Já temos uma televisão lá em baixo - disseste. .
- Ora bem, não precisamos de um macaco!
- Meninas - interrompi. - Só há uma maneira de termos tudo o que queremos. Fazemos mais bolos para recebermos mais dinheiro. - Olhei para as duas, uma de cada vez. - Bem, de que estamos à espera?
Tu e Amélia correram para a casa de banho adjacente, e depois ouvi a água a correr e o esfregar metódico das escovas de dentes. Puxei os lençóis da tua cama e entalei os cobertores. Fiz o mesmo na cama de Amélia, mas desta vez, quando alisei a colcha debaixo do colchão, os meus dedos soltaram dezenas de papéis de rebuçados, o saco de plástico de um pão, pacotes de bolachas. "Adolescentes", pensei, deitando tudo no caixote do lixo.
Na casa de banho, ouvi-as discutirem sobre quem tinha deixado o tubo de pasta de dentes sem tampa. Enfiei a mão na caixa de sapatos e lancei outra mancheia de dinheiro ao ar, ouvindo o tilintar de moedas de prata, a melodia da possibilidade.
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Sean
Provavelmente não devia ter levado o jornal. Foi isso que pensei para comigo quando estava sentado à mesa de um restaurante a duas cidades de distância de Bankton,
agarrado a um copo de sumo de laranja à espera que o cozinheiro fritasse os meus ovos. Afinal era a primeira coisa que Charlotte fazia todas as manhãs: bebia um
café enquanto lia os títulos. Às vezes até lia as cartas ao editor em voz alta, sobretudo aquelas que pareciam ter sido escritas por malucos a um passo de igualarem
os confrontos de Ruby Ridge16. Quando saí de casa às seis da manhã, hesitando antes de agarrar no jornal, apercebi-me de que isso ia deixá-la irritada. E, é verdade,
talvez isso tivesse bastado para que eu o levasse. Mas agora que o abri e examinei a primeira página, soube categoricamente que devia tê-lo deixado onde estava,
na caixa.
Porque ali mesmo, por cima da dobra, estava uma notícia sobre mim e a minha família.
AGENTE DA POLÍCIA LOCAL INSTAURA PROCESSO LEGAL DE NEGLIGÊNCIA MÉDICA NO DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL
Willow O'Keefe é, em muitos aspectos, uma menina normal de cinco anos. Frequenta a pré-primária da Escola Primária de Bankton, a tempo inteiro, onde estuda leitura,
matemática e música. Brinca com os colegas no recreio. Almoça na cantina da escola. Mas, num aspecto, Willow não é como as outras meninas de cinco anos. Às vezes
Willow anda numa cadeira de rodas, outras vezes com uma bengala e, outras ainda, com
16. Local de um polémico cerco policial a uma família em Idaho. (N. da T.)
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suportes para as pernas. Isso deve-se a ter sofrido mais de sessenta e duas fracturas ao longo da sua curta vida, por causa de uma doença chamada osteogénese imperfeita, de que Willow sofre desde a nascença e que os pais, alegadamente, acham que devia ter sido diagnosticada pela obstetra numa fase inicial da gravidez e que permitisse fazer um aborto. Embora os O'Keefe adorem a filha, as despesas médicas ultrapassaram em muito o total coberto por uma apólice de seguro normal, e agora os pais - o tenente Sean O'Keefe, do Departamento da Polícia de Bankton e Charlotte O'Keefe estão entre o número crescente de pacientes que estão a processar os ginecologistas obstetras por não fornecerem a informação sobre anomalias fetais que, segundo afirmam, os teria levado a terminar a gravidez.
Mais de metade dos estados nos EUA reconhecem os processos legais por negligência médica no diagnóstico pré-natal e, muitos destes casos, resolvem-se fora dos tribunais com indemnizações menores do que as que um júri poderia atribuir, porque as companhias de seguros contra negligência médica não querem que uma criança como Willow seja colocada diante de um júri. Mas os processos legais como este muitas vezes trazem consigo um verdadeiro manancial de complicações éticas: o que sugerem estes processos legais relativamente ao valor que a sociedade atribui às pessoas com incapacidade? Quem pode julgar os pais, que assistem ao sofrimento diário dos filhos com incapacidade? Quem terá o direito - se é que alguém o tem - de escolher que tipo de incapacidade deve justificar um aborto? E qual é o efeito que surtirá numa criança como Willow que já tem idade suficiente para ouvir o testemunho dos pais?
Lou St. Pierre, presidente da delegação da Associação Americana de Pessoas com Incapacidade de New Hampshire, afirma que compreende a razão que leva pais como os
O'Keefe a decidirem instaurar um processo legal. "Pode ajudar a aliviar os encargos financeiros incrivelmente elevados que uma criança com incapacidade exerce sobre
uma família", diz St. Pierre, que nasceu com spina bífida e anda numa cadeira de rodas. "Mas fica aqui um aviso relativamente à mensagem que está a ser transmitida a essa criança: que as pessoas com incapacidade não podem ter uma vida rica e preenchida; que se não formos perfeitos, não devíamos estar aqui."
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Mais recentemente, em 2006, o Supremo Tribunal de New Hampshire revogou uma indemnização de 3,2 milhões de dólares relativa a um caso, instaurado em 2004, de negligência
médica no diagnóstico pré-natal.
Até havia uma fotografia nossa, dos quatro - que tinha sido tirada para uma circular emitida há dois anos pelo Departamento de Polícia de Bankton numa iniciativa
para que todos ficassem a conhecer o agente da polícia da vizinhança. Amélia ainda não usava aparelho.
Tinhas um braço engessado.
Atirei o jornal para o outro lado da mesa, aterrando no assento mais afastado. Jornalistas de merda. O que andariam a fazer, à espera à porta do tribunal, para ver o que viria a seguir na lista dos julgamentos? Qualquer pessoa que lesse aquele artigo (E quem não o leria? Era o jornal da região!) pensaria que estava envolvido nisso por causa do dinheiro.
Não estava e, para prová-lo, tirei a carteira e deixei vinte dólares em cima da mesa para pagar uma refeição de dois dólares que nem sequer ainda fora servida.
Passados quinze minutos, após uma paragem rápida na esquadra para ver qual era o endereço de Marin Gates, fui a casa dela. Não era nada do que esperava. Tinha estatuetas
de gnomos no jardim e a caixa do correio era um porco cujo focinho se abria. As portadas das janelas estavam pintadas de púrpura. Parecia o estilo de casa em que Hansel e Gretei viveriam e não onde uma advogada séria viveria.
Quando toquei à campainha, Marin veio à porta. Vestia uma T-shirt "Revolver" dos Beatles e calças de fato-de-treino com a sigla UNH impressa na perna.
- O que está aqui a fazer?
- Preciso de falar consigo.
- Devia ter telefonado - olhou em volta, tentando encontrar Charlotte.
- Vim sozinho - disse. Marin cruzou os braços.
- O meu número não está na lista telefónica. Como descobriu onde vivo?
Encolhi os ombros.
- Sou polícia.
- Isso é invasão de privacidade...
- Óptimo. Pode processar-me quando acabar de processar a Piper Reece - mostrei-lhe o jornal matutino. - Leu esta porcaria?
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- Li. Não podemos fazer quase nada relativamente à imprensa, a não ser declarar: "Não comento."
- Estou fora disto.
- Desculpe?
- Desisto. Quero desistir deste processo legal - só por dizer aquelas palavras senti-me como se tivesse passado todo o peso do mundo para as costas de outro tanso.
- Assino tudo o que quiser que eu assine, só quero tornar isto oficial.
Marin hesitou.
- Entre para podermos conversar - disse ela.
Se fiquei surpreendido pelo exterior da casa, o interior deixou-me estupefacto. Havia uma parede inteira coberta por figurinhas de porcelana Hummel em prateleiras e as outras paredes estavam cheias de quadros com bordados. Os naperons floresciam como algas na superfície do sofá.
- Linda casa - menti.
Ela limitou-se a olhar para mim, impassível.
- Aluguei-a completamente mobilada - explicou. - A dona da casa vive em Fort Lauderdale.
Em cima da mesa da sala de jantar estava uma pilha de pastas, e um bloco jurídico. Havia pedaços de papel amachucados espalhados pelo chão; o que quer que fosse que estava a escrever, não estava a correr bem.
- Olhe, tenente O'Keefe, sei que o senhor e eu não começámos muito bem, e sei que o depoimento foi... difícil para si. Mas vamos fazer mais uma tentativa, e as coisas vão correr de maneira diferente quando estivermos em tribunal. Sinto-me realmente confiante que a indemnização que o júri estará disposto a atribuir...
- Não quero dinheiro sujo - disse eu. - Ela pode ficar com tudo.
- Acho que estou a perceber qual é o problema - respondeu Marin. - Mas a questão aqui não é o senhor nem a sua mulher. É a Willow. E se realmente quer dar-lhe a vida que ela merece, tem de ganhar um processo legal como este. Se desistir agora, só vai dar à defesa mais uma vantagem...
Ela apercebeu-se, demasiado tarde, de que isso talvez fosse o que eu realmente queria.
- A minha filha - disse rigidamente - lê como uma criança do sexto ano. Ela vai ver esse artigo no jornal e dúzias de outros semelhantes, suponho. Vai ouvir a mãe dizer a toda a gente que não era desejada. Diga-me, Dr.a Gates. Prefere que eu me sente na sala de audiências a aniquilar activamente as hipóteses que tem de vencer
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este caso, ou que me afaste, para que a Willow tenha uma pessoa a quem recorrer quando precisar de saber que alguém a ama como
ela é?
- Tem a certeza de que está a fazer o melhor para sua filha?
- E a senhora? - perguntei. - Não vou sair daqui enquanto não me der os documentos para assinar.
- Não pode estar à espera que eu escreva qualquer coisa num domingo de manhã quando nem sequer estou no escritório...
- Vinte minutos. vou lá ter consigo - tinha acabado de abrir a porta para sair quando a voz de Marin me deteve.
- A sua mulher? - perguntou. - O que pensa ela de si, por estar a fazer isto?
Virei-me devagar.
- Ela não pensa em mim - disse eu.
Naquela noite não vi Charlotte, nem na manhã seguinte. Achei que Marin ia demorar esse tempo a comunicar à minha mulher que eu tinha desistido do processo legal. Mas até um homem de convicções fortes tem uma noção de auto-preservação; nem pensar que ia para casa falar com a tua mãe sem umas quantas bebidas fortificantes - e, visto que sou um polícia, deixei passar o tempo suficiente para que o álcool fosse eliminado do organismo de forma segura antes de conduzir.
Talvez então tivesse a sorte de ela estar a dormir.
- Tommy - disse eu, fazendo sinal ao empregado do bar, e empurrei o copo de cerveja vazio na direcção dele. Viera ao O'Boys com alguns colegas de patrulha depois de acabar o turno, mas já tinham todos ido embora para casa, para irem jantar com as mulheres e os filhos. Era demasiado tarde para um aperitivo antes de jantar e demasiado cedo para os noctívagos; para além de Tommy e de mim, a única pessoa que estava no bar era um senhor de idade que tinha começado a beber às três da tarde e só parou quando a filha o veio buscar ao fim da noite.
A campainha por cima da porta tilintou e uma mulher entrou no bar. Despiu o casaco justo com padrão de pele de leopardo para revelar um vestido cor-de-rosa vivo ainda mais justo. Eram vestidos daqueles que lixavam sempre os casos de violação para a acusação.
- Está frio lá fora - disse ela, sentando-se num banco ao lado do meu. Fiquei resolutamente a olhar para o copo de cerveja vazio. "Experimenta usar alguma roupa", pensei.
Tommy deu-me outra cerveja e virou-se para a mulher.
- O que deseja tomar?
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- Um martini - disse ela, e depois virou-se para mim e sorriu.
- Nunca experimentou?
Dei um golo na cerveja.
- Não gosto de azeitonas.
- Gosto de chupar os pimentos - admitiu ela. Soltou os cabelos loiros, encaracolados, caindo como um rio pelo meio das costas.
- Cá para mim a cerveja sabe a areia para gatos.
Ri do que ela disse.
- Quando foi a última vez que provou areia para gatos? Ela arqueou as sobrancelhas.
- Nunca olhou para uma coisa e soube logo o gosto dela? Ela disse uma coisa, não disse? Não disse uma pessoa? Nunca enganei Charlotte. Nem sequer pensei em enganá-la.
Deus sabe que já me cruzei com muitas mulheres jovens na minha carreira e, se quisesse aproveitar-me, tinha tido essa oportunidade. Para ser sincero, Charlotte era tudo o que eu sempre quis - mesmo agora, passados oito anos. Mas a mulher com quem tinha casado a que prometera comprar-me gelado de baunilha nos votos de matrimónio, apesar de ser um fraco substituto do de chocolate não era a mesma que ultimamente via lá em casa. Aquela mulher era obcecada e distante, tão concentrada no que podia obter que nem sequer via o que tinha.
- Chamo-me Sean - disse eu, virando-me para a mulher.
- Taffy Lloyd - disse ela, e bebeu um gole de martini. - Como o doce. Taffy, Lloyd não.
- Pois, eu percebi. Semicerrou os olhos.
- Não o conheço?
- Tenho a certeza de que não ia esquecer-me de si se a tivesse visto antes... :,
- Não, tenho a certeza. Nunca esqueço um rosto... - interrompeu a frase a meio, estalando os dedos. - Apareceu no jornal disse ela. - Tem uma filha muito doente, não é? Como está ela?
Ergui o copo, interrogando se ela conseguiria ouvir o meu coração bater tão alto como eu ouvia. Reconheceu-me do artigo? Se esta mulher me reconheceu, quantas mais pessoas me reconheceriam?
- Ela está bem - disse secamente, terminando a cerveja com um longo trago. - Por acaso, tenho de ir para casa ter com ela. Que se lixasse a condução; ia a pé.
Comecei a levantar-me do banco mas a voz dela deteve-me.
- Ouvi dizer que já não vai avançar com um processo.
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Virei-me devagar.
- Isso não vinha no jornal.
De repente, não parecia nada tonta. Os olhos eram de um azul-penetrante e estavam fixos nos meus.
- Porque quis desistir?
Seria jornalista? Seria uma cilada? Demasiado tarde, pus-me na defensiva.
- Estou só a tentar fazer o que é melhor para a Willow - disse entre dentes, vestindo o casaco, praguejando quando a manga ficou presa.
Taffy Lloyd colocou um cartão-de-visita em cima do balcão à minha frente.
- O melhor para a Willow - disse ela - é que este processo legal não chegue a existir. - Acenando com a cabeça, atirou o casaco de leopardo por cima do ombro e saiu porta fora, deixando ficar o martini quase todo.
Agarrei no cartão e passei o dedo por cima das letras pretas com relevo:
Taffy Lloyd, Investigadora Jurídica Booker, Hood Coates
Conduzi. Conduzi por estradas que costumava percorrer com o meu carro da polícia, grandes oitos sinuosos que chegavam cada vez mais perto do centro de Bankton. Observei
as estrelas cadentes e conduzi para onde pensava que aterravam. Conduzi até quase não conseguir manter os olhos abertos, até depois da meia-noite.
Entrei em casa num sussurro e, no escuro, segui às apalpadelas até à divisão de tratamento de roupas para ir buscar os lençóis e a fronha para o sofá. De repente, fiquei tão exausto, tão cansado que nem sequer era capaz de ficar de pé. Deitei-me no sofá e escondi o rosto nas mãos.
Não percebia como tinha chegado àquele ponto, tão depressa. Num instante estava a sair do escritório de advogados; no instante seguinte, Charlotte tinha marcado outra entrevista. Não podia proibi-la de o fazer - mas, para ser sincero, nunca pensei que avançasse com um processo legal. Charlotte não era pessoa de correr riscos. Mas foi aí que me enganei: a questão que ela tinha em mente aqui, não era a Charlotte. Eras tu.
- Papá?
Olhei para cima e vi-te de pé à minha frente, com os pés descalços, brancos como os de um fantasma.
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- O que estás a fazer acordada? - disse eu. - Ainda é de noite.
- Fiquei com sede.
Entrei na cozinha, contigo atrás de mim. Estavas a apoiar-te mais na perna direita - apesar de outro pai talvez se limitar a pensar que a filha ainda estava meio a dormir, eu estava a pensar em micro fracturas e deslocamentos da anca. Dei-te um copo de água e encostei-me à bancada enquanto bebias.
- Muito bem - disse eu, pegando-te ao colo por não conseguir ver-te subir as escadas. - Já passa muito da tua hora de deitar.
Colocaste-me os braços em volta do pescoço.
- Papá, por que é que já não dormes na tua cama? Parei, a meio das escadas.
- Gosto do sofá. É mais confortável.
Entrei sorrateiramente no teu quarto, com cuidado para não incomodar Amélia, que ressonava suavemente na cama ao lado da tua. Enfiei-te debaixo dos cobertores.
- Aposto que se eu não fosse assim - disseste -, se os meus ossos não fossem doentes, ainda dormias aqui em cima.
No escuro, via o brilho dos teus olhos, a curva da face, como uma maçã. Não respondi. Não tinha resposta.
- Dorme - disse. - É demasiado tarde para falar sobre isto. De repente, sem mais nem menos, como se alguém tivesse
colocado um frame futuro num filme, vi em quem te tornarias quando crescesses. Aquela determinação obstinada, a aceitação tranquila de uma pessoa resignada a lutar uma batalha desigual bem, a pessoa com quem mais te parecias nessa altura era com a tua mãe.
Em vez de descer as escadas, entrei no quarto de casal. Charlotte estava a dormir virada para o lado direito, para o lado vazio da cama. Sentei-me cuidadosamente na beira do colchão, tentando fazer com que não se mexesse quando me deitei em cima dos cobertores. Virei-me de lado, para ficar de frente para ela.
Estar ali, na minha cama, parecia inevitável e confortável ao mesmo tempo - como chegar ao fim de um quebra-cabeças e forçar a última peça a encaixar-se, embora os contornos não sejam iguais como deviam ser. Fiquei a olhar para a mão de Charlotte, cerrada num punho por cima dos cobertores, como se ainda estivesse pronta para lutar mesmo quando estava inconsciente. Quando lhe toquei ao de leve no pulso, os dedos abriram-se como uma rosa. Quando olhei para cima, vi que ela me observava.
- Estou a sonhar? - sussurrou.
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- Estás - disse eu, e a mão dela fechou-se em volta da minha. Observei Charlotte a voltar a adormecer, tentando localizar o
momento em que estava ali comigo e se perdeu no sono, mas aconteceu demasiado rápido para eu conseguir detectar. Tirei delicadamente a minha mão da dela. Esperava
que ela se lembrasse de que eu estivera lá, por um momento, quando acordasse. Esperava que compensasse o que estava prestes a fazer.
Havia um tipo no departamento cuja mulher tinha tido cancro da mama há alguns anos. Por solidariedade, alguns de nós raparam a cabeça quando ela fez quimioterapia; todos fizemos o que podíamos para ajudar George a ultrapassar aquele inferno. E depois a mulher recuperou, e todos comemoraram e, uma semana depois, ela disse-lhe que queria o divórcio. Na altura, pensei que era a coisa mais insensível que uma mulher podia fazer: abandonar o homem que ficou do lado dela nos maus momentos. Mas agora, estava a começar a perceber que o que parece lixo visto de uma perspectiva, pode ser arte visto de outra. Talvez fosse mesmo necessária uma crise para ficarmos a conhecer-nos; talvez precisássemos que a vida nos desse um grande abanão para ficarmos a compreender o que queremos.
Não me agradava estar ali - era como reviver um mau momento. Agarrando num guardanapo que estava debaixo de um jarro, a meio da enorme mesa envernizada, limpei a testa. Mas o que eu queria mesmo fazer era admitir que aquilo era um erro e fugir. Saltar pela janela, talvez.
Mas antes que pudesse concretizar aquela ideia tão ponderada, a porta abriu-se. Entrou um homem de cabelos prematuramente grisalhos - não tinha reparado da primeira vez? - seguido por uma jovem loira de óculos sofisticados e fato abotoado quase até ao pescoço. Fiquei de boca aberta; Taffy Lloyd estava completamente diferente. Acenei-lhe silenciosamente com a cabeça e depois a Guy Booker - o advogado que me fez fazer figura de parvo naquele mesmo gabinete há alguns meses.
- Vim para lhe perguntar o que posso fazer - disse eu. Booker olhou para a investigadora.
- Não sei bem se compreendi o que disse, tenente O'Keefe...
- Quero dizer - disse eu - que agora estou do vosso lado.
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Marin
O que podemos dizer à mãe que nunca chegámos a conhecer?
Desde que Maisie me contactara a dizer que tinha um endereço válido para a minha mãe biológica, escrevi centenas de rascunhos de cartas. Era assim que funcionava: apesar de Maisie aparentemente ter localizado a minha mãe biológica, eu não podia contactá-la directamente. Em vez disso, devia escrever-lhe uma carta e enviá-la a Maisie, que serviria de intermediária. Contactaria a minha mãe e dir-lhe-ia que tinha um assunto pessoal, muito importante, para discutir e deixaria um número de telefone. Supostamente, quando a minha mãe biológica ouvisse isso, saberia de que assunto pessoal se tratava e telefonaria. Logo que Maisie verificasse que a mulher era realmente a minha mãe biológica, ler-lhe-ia ou enviar-lhe-ia a carta que eu escrevesse.
Maisie enviara-me uma lista de orientações que deviam ajudar-me a escrever a carta.
Esta é a sua apresentação à mãe biológica que procurava. Para si é virtualmente uma desconhecida, por isso a sua carta deixará uma primeira impressão. Para não confundir a mãe biológica, recomenda-se que a carta não tenha mais de duas páginas. Desde que a letra seja legível, é preferível receber uma carta escrita à mão, visto que dá uma noção da sua personalidade à destinatária.
Deve decidir se quer que este contacto a identifique ou não. Se desejar usar o seu nome, por favor compreenda que isso torna possível que a outra parte a localize. Pode querer esperar até conhecer a outra parte antes de revelar a sua morada ou número de telefone.
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A carta deverá conter informações gerais sobre si - idade, educação, profissão, talentos ou passatempos, estado civil e se tem ou não filhos. É muito preferível
incluir fotografias suas e da sua família. Pode desejar explicar porque procura a sua mãe biológica nesta altura.
Se os seus antecedentes incluírem alguma informação difícil, esta não será a melhor altura de a revelar. Informações negativas acerca da adopção - tais como a inserção
numa família abusiva - não são apropriadas. É melhor partilhar estas informações mais tarde, depois de se estabelecer uma relação. Muitos pais biológicos comunicam
sentimentos de culpa relativamente a terem dado um filho para adopção e receiam que a decisão, feita em benefício do mesmo, talvez não tenha resultado tão bem quanto desejariam. Se a informação negativa for partilhada numa fase inicial, poderá ensombrar todos os aspectos positivos de estabelecer uma relação consigo no futuro.
Se se sentir grata para com a sua mãe biológica devido à decisão que tomou, pode partilhá-lo sucintamente. Se desejar obter informações sobre os antecedentes médicos familiares, poderá referi-lo. Talvez seja melhor esperar para perguntar pelo pai biológico. De início, poderá ser um assunto incómodo.
Para garantir à sua mãe biológica que deseja uma relação mutuamente proveitosa, pode referir que gostaria de telefonar ou marcar um encontro, mas que respeitará a sua escolha da altura certa para o fazer.
Já tinha lido as orientações de Maisie tantas vezes que praticamente conseguia dizê-las de cor, palavra por palavra. Parecia-me que a informação realmente útil tinha ficado de fora. Quanto devíamos partilhar para mostrarmos quem realmente somos, mas de maneira a não afastar ninguém? Se lhe dissesse que era Democrata, por exemplo, e ela fosse Republicana, deitaria a minha carta para o lixo? Devia referir como participei na manifestação para angariar fundos para a investigação relativamente à SIDA e que defendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo? E já para não falar nas decisões que teria de tomar quando chegasse a altura de escrever a carta, preto
no branco. Queria enviar um cartão, causaria melhor impressão, em vez de ser só uma missiva rabiscada num bloco jurídico. Mas os cartões que eu tinha exibiam imagens
tão diferentes como Picasso, Mary Engelbright e Mapplethorpe. O Picasso parecia demasiado comum; o Engelbright com demasiados frufrus; mas Mapplethorpe - bem, e
se ela o detestasse por
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princípio? "Deixa-te disso, Marin", disse para comigo. "O cartão não tem nus; é uma maldita flor."
Agora só tinha de arranjar um conteúdo para colocar lá dentro.
Bnony abriu a porta do meu gabinete e apressei-me a enfiar as notas numa pasta. Talvez não fosse totalmente correcto dar azo à minha obsessão pessoal no horário
de trabalho, mas quanto mais me envolvia no caso O'Keefe, mais difícil era tirar a minha mãe biológica da cabeça. Por muito disparatado que parecesse, contactá-la
fazia-me sentir como se estivesse a salvar a minha alma. Se tinha de representar uma mulher que desejava ter-se visto livre da filha, então o mínimo que eu podia
fazer era encontrar a minha própria mãe e elogiá-la por ter pensado de maneira diferente.
A secretária atirou um envelope castanho para cima da minha secretária.
- Correspondência do diabo - disse ela. Olhei para baixo e vi o remetente: Booker, Hood Coates.
Abri-o e li a lista de interrogatórios corrigida.
- Só podem estar a brincar - murmurei, e levantei-me para ir buscar o casaco. Era altura de fazer uma visita a Charlotte O'Keefe.
Uma rapariga de cabelos azuis abriu a porta e fiquei a olhar para ela por uns bons cinco segundos antes de reconhecer a filha mais velha de Charlotte, Amélia.
- Seja o que for que está a vender - disse ela - não queremos comprar.
- És a Amélia, não és? - forcei um sorriso. - Eu sou a Marin Gates. A advogada da tua mãe.
Ela escrutinou-me.
- Como queira. Ela agora não está. Deixou-me a fazer de ama-seca.
De dentro de casa ouviu-se um berro:
- Não sou nenhum bebé! Amélia voltou a olhar para mim.
- O que eu queria dizer era que ela me deixou a tomar conta de uma inválida.
De repente o teu rosto espreitou pela ombreira da porta.
- Olá - disseste, e sorriste. Não tinhas um dente da frente. Pensei: "O júri vai adorar-te."
Depois fiquei a odiar-me por ter pensado isso.
- Quer deixar recado? - perguntou Amélia.
Bem, não podia propriamente dizer-lhe que o pai se tornara numa testemunha da defesa.
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- Queria falar pessoalmente com a tua mãe. Amélia encolheu os ombros.
- Não devemos deixar entrar desconhecidos.
- Ela não é uma desconhecida - disseste, estendeste a mão e puxaste-me para dentro de casa.
Não tinha muita experiência com crianças e, ao ritmo que ia, talvez nunca viesse a ter, mas havia algo em ter a tua mão na minha, macia como uma pata de coelho,
e talvez igualmente afortunada. Deixei-me levar para o sofá da sala e olhei em volta, para o tapete oriental feito à máquina, o ecrã poeirento do televisor, as caixas
de cartão de jogos usados em pilhas altas junto à lareira. Pelos vistos o Monopólio era o que estava a dar; havia um tabuleiro colocado em cima da mesa de café em
frente ao sofá.
- Pode substituir-me - disse Amélia, de braços cruzados. - Em todo o caso, sou mais comunista do que capitalista.
Desapareceu escadas acima, deixando-me a olhar para o tabuleiro do jogo.
- Sabe em que rua acertamos mais?
- Hum - sentei-me. - Não deviam ser todas iguais?
- Não quando consideramos os cartões Saia da Prisão e coisas assim. E Illinois Avenue.
E Amélia deixara-me sessenta dólares.
- Como é que sabes? - perguntei.
- Leio. E gosto de saber coisas que mais ninguém sabe. Aposto que sabias muitas coisas que nenhum de nós sabia, nem
chegaria a saber. Era um pouco desconcertante estar ao pé de uma criança com quase seis anos cujo vocabulário seria provavelmente equivalente ao meu.
- Então diz-me qualquer coisa que eu não saiba - disse eu.
- Foi o Dr. Seuss que inventou a palavra nerd17. Ri à gargalhada.
- A sério?
Acenaste com a cabeça.
- Em If I Ran the Zoo. Que não é tão bom como Green Eggs and Ham. Mas que de qualquer forma é para bebés - disseste. - Gosto mais da Harper Lee.
- Harper Lee? - repeti.
- Pois. Nunca leu Por Favor Não Matem a Cotovia!
- Claro. Só não acredito é que tu o tenhas lido.
17. Pessoa desinteressante, empenhada e versada em conhecimentos científicos ou técnicos, mas socialmente desajustada. (N. da T.)
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Foi a primeira conversa que tive com a menina que estava no centro daquele processo legal tempestuoso, e apercebi-me de uma coisa extraordinária: gostava de ti. Gostava muito de ti. Eras genuína, divertida e inteligente, e os teus ossos talvez se partissem de vez em quando. Gostava de ti por rejeitares a tua doença, tornando-a a parte menos importante de ti - quase tanto quanto a tua mãe me desagradava por realçá-la.
- Então, era a vez da Amélia. O que quer dizer que é a sua vez de lançar os dados - disseste.
Olhei para o tabuleiro.
- Sabes uma coisa? Detesto Monopólio - e detestava, a sério. Tinha más recordações de infância, de um primo que roubava dinheiro quando era banqueiro, de jogos que duravam quatro noites seguidas.
- Quer jogar a outra coisa?
Virando-me novamente para a lareira, e para o monte de brinquedos, vi uma casa de bonecas. Era uma miniatura da vossa casa, com as portadas negras e a porta pintada de um vermelho-vivo; até havia arbustos floridos e longos tapetes tecidos.
- Uau - disse eu, tocando nas telhas com reverência. - Isto é espantoso.
- Foi o meu pai que fez.
Peguei na casa de bonecas, na sua plataforma, e coloquei-a em cima do tabuleiro de Monopólio.
- Antigamente tinha uma casa de bonecas.
Era o meu brinquedo preferido. Lembro-me das cadeiras estofadas a veludo vermelho na sala de estar em miniatura e do piano antigo que tocava quando dava à manivela.
Uma banheira com pés em forma de patas de animal e papel de parede às riscas, como um chupa-chupa. Parecia completamente vitoriana, muito diferente da casa moderna
em que cresci; mas costumava fingir, enquanto organizava as camas, os sofás e os armários da cozinha, que era um universo alternativo, a casa onde podia viver se não tivesse sido adoptada.
- Olhe para isto - disseste, e mostraste-me como o assento da pequena sanita de porcelana se levantava. Interroguei-me se os bonecos do sexo masculino que viviam na casa de bonecas também se esqueceriam de voltar a baixá-lo.
No frigorífico havia pequenos bifes e garrafas de leite de madeira, e uma pequena caixa de ovos alinhados como pequenas pérolas. Levantei a tampa de um cesto e vi duas agulhas de tricotar e um novelo de lã.
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- É aqui que as irmãs vivem - disseste, e colocaste colchões nas camas de bronze iguais no quarto lá em cima. - E é aqui que a mãe delas dorme. - No quarto ao lado,
na cama grande, colocaste duas almofadas e uma colcha incrível do tamanho da palma da minha mão. Depois agarraste noutro cobertor e noutra almofada e fizeste uma
cama no sofá de cetim cor-de-rosa da sala. - E esta - disseste é para o papá.
"Oh, meu Deus", pensei. "O que te fizeram."
De repente, a porta de entrada abriu-se e Charlotte entrou, com um ar gelado de Inverno nas pregas do casaco. Trazia mercearias em sacos verdes reciclados presos
nos braços.
- Oh, é o seu carro - disse ela pousando os sacos no chão. Amélia! - gritou lá para cima. - Já cheguei!
- Boa - ouviu-se a voz de Amélia vinda lá de cima, sem nenhum entusiasmo.
Talvez não estivessem a destruir-te só a ti. Charlotte debruçou-se e beijou-te na testa.
- Como estás, fofinha? Estás a brincar com a casa de bonecas? Já não te via ir buscar isso há uma eternidade...
- Temos de conversar - disse eu, levantando-me.
- Está bem - Charlotte dobrou-se para apanhar alguns sacos com as mercearias; fiz o mesmo e segui-a para a cozinha. Começou a tirar as coisas dos sacos: sumo de
laranja, leite, brócolos. Macarrão com queijo, detergente para lavar a loiça, sacos de plástico com fecho.
Bounty. Joy. Life:18 marcas que são a receita para a existência.
- O Guy Booker acrescentou uma testemunha a favor da defesa
- disse eu. - O seu marido.
Num momento, Charlotte tinha um boião de picles na mão e, no momento seguinte, estava estilhaçado no chão.
- O quê?
- O Sean vai testemunhar contra si - disse eu secamente.
- Ele não pode fazer isso, pois não?
- Bem, visto que pediu para ser liberado do processo legal...
- Ele fez o quê?
Sentiu-se o cheiro a vinagre, o líquido espalhou-se pelo chão de ladrilhos.
- Charlotte - disse eu, estupefacta. - Ele disse-me que tinha falado consigo primeiro.
18. Marcas de produtos bastante conhecidas nos EUA, que significam dádiva, alegria e vida, respectivamente. (N. da T.)
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- Já não fala comigo há semanas. Como foi capaz de fazer isto? Como foi capaz de fazer-nos isto, a nós?
Nessa altura entraste na cozinha.
- Partiu-se alguma coisa?
Charlotte pôs-se de gatas e começou a apanhar os pedaços de vidro.
- Não entres na cozinha, Wíllow - agarrei num rolo novo de toalhas de papel precisamente no momento em que Charlotte soltou um grito agudo; um pedaço de vidro cortara-lhe o dedo.
Estava a sangrar. Ficaste de olhos muito abertos e voltei a levar-te para a sala de estar.
- Vai buscar um penso rápido para a tua mãe - disse eu. Quando voltei a entrar na cozinha, Charlotte estava com a mão
a sangrar agarrada à camisola.
- Marin - disse ela, olhando para mim. - O que devo fazer?
Provavelmente foi uma experiência nova para ti, ir ao hospital sem ser por tua causa. Mas rapidamente se tornou claro que o corte da tua mãe era demasiado fundo, que só um penso rápido não era a solução. Levei-a às urgências, contigo e Amélia sentadas no banco de trás do carro, os teus pés apoiados em caixas de cartão cheias de documentos legais. Fiquei à espera enquanto um médico deu dois pontos na ponta do dedo anelar de Charlotte, contigo sentada ao lado dela e agarrada com força à mão sã. Ofereci-me para parar na farmácia e aviar a receita de Tylenol com codeína, mas Charlotte disse que ainda tinham bastantes analgésicos em casa, que tinham sobrado da tua última fractura.
- Estou bem - disse-me. - A sério.
Quase acreditei nela, também, e depois lembrei-me de como agarrara a tua mão quando estava a levar os pontos, e daquilo que pensava em dizer diante de um júri sobre ti, dali a algumas semanas.
Voltei para o escritório apesar de o dia já estar estragado. Tirei da gaveta de cima da secretária as orientações de Maisie para se escrever uma carta à mãe biológica e li-as uma última vez.
As famílias nunca são como desejamos que sejam. Todos queremos o que não podemos ter: a filha perfeita, o marido devotado, a mãe que abdicou de nós. Vivemos nas nossas casas de bonecas para adultos completamente alheios a que, a qualquer momento, uma mão possa lá entrar e alterar tudo a que estamos acostumados.
"Olá", escrevi.
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"Provavelmente escrevi esta carta mil vezes na minha cabeça, reformulando-a para me certificar de que ficava bem. Demorei trinta e um anos a iniciar a minha busca,
embora sempre me tivesse interrogado de onde vinha. Acho que primeiro tinha de perceber a razão da minha busca - e, finalmente, sei a resposta. Devo um agradecimento aos meus pais biológicos. E, quase tão importante como isso, acho que têm o direito de saber que estou viva, bem e feliz.
Trabalho num escritório de advocacia em Nashua. Frequentei a Universidade de New Hampshire e depois estive na faculdade de Direito da Universidade do Maine. Voluntario-me mensalmente para prestar aconselhamento jurídico àqueles que não o podem pagar. Não sou casada, mas espero um dia ser. Gosto de andar de caiaque, de ler e de comer tudo o que tenha chocolate.
Durante muitos anos tive relutância em procurá-la porque não queria intrometer-me nem destruir a vida de ninguém. Depois tive um problema médico e apercebi-me de que não sabia o suficiente sobre as minhas origens. Para isso, gostaria de encontrar-me consigo para poder agradecer-lhe pessoalmente por ter-me dado a oportunidade de me tornar na mulher que agora sou - mas também respeitarei a sua vontade se não estiver preparada para se encontrar comigo agora ou se nunca vier a estar.
Escrevi e reescrevi esta carta, li-a e reli-a. Não é perfeita, e eu também não o sou. Mas, finalmente, arranjei coragem e gostaria de pensar que talvez tenha herdado isso de si.
Afectuosamente, Marin Gates."
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Sean
Os homens que estavam a repavimentar aquele trecho da Route 4 tinham passado os últimos quarenta minutos a debater" quem era mais sexy, a Jessica Alba ou a Pamela Anderson.
- A Jessica é cem por cento real - disse um dos homens, de luvas sem dedos e sem um terço dos dentes na boca. - Não tem implantes.
- Como se soubesses - disse o capataz da equipa de trabalhadores.
Junto da fila de trânsito, outro trabalhador segurava num sinal de Andamento Lento que podia servir de aviso aos carros, mas que também se podia aplicar a ele próprio.
- A Pam é um trinta e seis triplo D, oitenta e seis-sessenta-oitenta e seis - disse ele. - Sabes quem mais tem essas medidas? Uma boneca Barbie.
Encostei-me ao capo do meu carro da polícia, embrulhado na farda de Inverno, a tentar fingir que era surdo como uma porta. Policiar obras era o trabalho que menos gostava de fazer, mas eram um mal necessário. Sem as luzes azuis a piscarem, as probabilidades de algum idiota atropelar um dos trabalhadores aumentavam drasticamente. Aproximou-se outro homem com a expiração assemelhando-se a balões brancos a saírem da boca.
- Não ia escorraçar nenhuma delas da minha cama - disse ele.
- E era ainda melhor se estivessem lá as duas ao mesmo tempo.
Aí estava o mais engraçado: se perguntassem a qualquer um daqueles homens, eles diriam que eu era um tipo duro. Que o meu distintivo e a minha Glock bastavam para que me tivessem em alta conta. Fazem o que eu lhes disser para fazerem, e estão à espera que os condutores também façam o que eu lhes disser para fazerem. O que eles não sabem é que sou um cobarde da pior espécie. No
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trabalho talvez possa dar ordens, deter criminosos e impor respeito; em casa, acostumei-me a sair antes de qualquer outra pessoa acordar; abandonara o processo legal
de Charlotte sem sequer ter tido coragem para lhe dizer.
Tinha passado demasiado tempo acordado à noite a tentar convencer-me de que isso era ser corajoso - que estava a tentar encontrar um meio-termo para saberes que eras amada e desejada - mas a verdade era que isto também era vantajoso para mim. Tornei-me outra vez num herói, em vez de ser um homem que não consegue cuidar da sua própria família.
- Quer dar a sua opinião, Sean? - perguntou o capataz.
- Não quero estragar-vos o divertimento - disse diplomaticamente.
- Oh, não faz mal. O Sean é casado. Não pode passar os olhos, nem no Google...
Ignorando-o, avancei alguns passos quando um carro passou pelo cruzamento a acelerar, em vez de abrandar. Bastava-me apontar para o condutor para que tirasse o pé do acelerador. Era simples: o medo de que lhe passasse realmente uma multa era suficiente para fazê-lo pensar duas vezes no que estava a fazer. Mas este condutor não tinha abrandado e quando os travões chiaram até o carro parar a meio do cruzamento, apercebi-me de duas coisas em simultâneo: (1) era uma mulher que estava ao volante e não um homem; e (2) era o carro da minha mulher.
Charlotte saiu da carrinha e bateu com a porta atrás dela.
- Seu filho da puta - disse ela, avançando até estar suficientemente perto para me bater.
Agarrei-lhe nos braços, bem consciente de que, não só fizera parar o trânsito, como também os trabalhos na estrada. Sentia os olhos deles fixos em mim.
- Desculpa - disse entre dentes. - Tinha de fazê-lo.
- Achas que podia ficar em segredo até ao julgamento? - gritou Charlotte. - Talvez nessa altura toda a gente pudesse assistir a quando eu ficasse a saber que o meu marido é um mentiroso.
- Qual de nós é mentiroso? - disse eu, incrédulo. - Desculpa-me por não estar disposto a prostituir-me por causa do dinheiro.
As faces de Charlotte ficaram intensamente afogueadas.
- Desculpa-me por não estar disposta a deixar a minha filha sofrer por estarmos sem dinheiro.
Nesse instante reparei em algumas coisas: que o farol traseiro direito da carrinha de Charlotte estava fundido. Que tinha um penso no dedo da mão esquerda. Que começara de novo a nevar.
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- Onde estão as meninas? - perguntei, tentando espreitar pelas janelas escuras da carrinha.
- Não tens o direito de perguntar - disse ela. - Abdicaste desse direito quando foste ao escritório do advogado.
- Onde estão as meninas, Charlotte? - exigi.
- Em casa - afastou-se de mim, de olhos brilhantes de lágrimas. - Um sítio onde não te quero voltar a ver.
Dando meia volta, voltou a dirigir-se para o carro. Mas antes que conseguisse abrir a porta, bloqueei-lhe o caminho.
- Como é que não percebes? - sussurrei. - Até dares início a isto, a nossa família não tinha nenhum problema. Nenhum. Tínhamos uma casa decente...
- com infiltrações no telhado...
- Eu tenho um emprego estável...
- Que não dá dinheiro nenhum...
- E as nossas filhas tinham uma vida boa - terminei.
- O que sabes tu sobre isso? - perguntou Charlotte. - Não és tu que costumas estar com a Willow quando passamos pelo recreio na escola e ela vê as outras crianças fazerem coisas que ela nunca poderá fazer, coisas simples, como saltar dos baloiços ou darem pontapés na bola. Deitou fora o DVD de O Feiticeiro de Oz, sabias? Estava no caixote do lixo da cozinha porque um miúdo horrível, na escola, disse que ela era um Munchkin.
Sem mais nem menos, tive vontade de desancar aquele estuporzinho - apesar de só ter seis anos de idade.
- Ela não me disse nada.
- Porque não queria que viesses em defesa dela - disse Charlotte.
- Então - perguntei - porque estás fu a fazer o mesmo? Charlotte hesitou e percebi que tocara num ponto sensível.
- Podes enganar-te a ti próprio, Sean, mas a mim não me enganas. Vá lá, deixa que eu seja a cabra, a má da fita. Finge que és uma espécie de cavaleiro andante, se te sentes bem assim. Parece bem à primeira vista, e podes dizer a ti próprio que sabes a cor preferida dela, o nome do seu peluche favorito e de que geleia gosta de pôr nas sandes de manteiga de amendoim. Mas isso não é o que a define. Sabes do que ela costuma falar quando vamos a caminho de casa depois da escola? Ou do que tem mais orgulho? com que se preocupa? Sabes porque desatou a chorar ontem à noite e porque, há uma semana, se escondeu debaixo da cama durante uma hora? Admite, Sean. Pensas que és o herói dela, mas na verdade não sabes nada sobre a vida da Willow.
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Retraí-me.
- Sei que é uma vida que vale a pena ser vivida. Afastou-me da frente e entrou no carro, batendo com a porta
e avançando. Ouvi as buzinas furiosas dos carros que tinham ficado parados atrás da carrinha de Charlotte e virei-me e vi que o capataz ainda estava a olhar para
mim.
- Fazemos assim - disse ele -, pode ficar com a Jessica e a
Pam.
Nessa noite fui a Massachusetts. Não tinha nenhum destino em mente, mas saí em desvios ao acaso e passei por bairros bem aconchegantes para passar a noite. Desliguei as luzes dos faróis e percorri as ruas como um tubarão nas profundezas do oceano. Há tantas coisas que podemos ficar a saber sobre uma família a partir do lugar onde habita: os brinquedos de plástico informam-nos acerca das idades das crianças; luzes de Natal comunicam a sua religião; os tipos de carro estacionados à porta revelam-nos uma mãe doméstica dos subúrbios, um adolescente ou um adepto de NASCAR. Mas mesmo nas casas incaracterísticas, não tinha qualquer problema em imaginar as pessoas que estavam lá dentro. Fechava os olhos e imaginava um pai à mesa de jantar, a fazer as filhas rirem. Uma mãe a levantar a mesa, depois de tocar no ombro do homem ao passar. Via uma estante cheia de contos para adormecer, um pisa-papéis de pedra, toscamente pintado para parecer uma joaninha, a prender a correspondência do dia, um monte de roupa lavada. Ouvia o jogo dos Patriots numa tarde de domingo, e o iTunes de Amélia a tocar através de um altifalante parecido com um donut, e os teus pés descalços a percorrerem o corredor.
Devo ter ido a cinquenta casas destas. Ocasionalmente, encontrava uma luz acesa - normalmente no andar de cima, habitualmente via uma cabeça de adolescente recortada contra o brilho azul de um ecrã de computador. Ou um casal que adormecera com a televisão ainda acesa. A luz de uma casa de banho, para manter os monstros afastados de uma criança. Não importava se estava num bairro de brancos ou de negros, se era uma comunidade rica ou muito pobre - as casas são como as paredes de uma célula, impedem que os nossos problemas se alastrem para os problemas dos outros.
O último bairro que visitei naquela noite foi o que me atraiu como um iman, o polo magnético do meu coração. Estacionei ao fundo da rampa da nossa garagem, de luzes apagadas, para não denunciar a minha presença.
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A verdade é que Charlotte tinha razão. Quanto mais turnos extra fazia para pagar os teus acidentes, menos tempo passava contigo. Uma vez, pegueí-te ao colo enquanto dormias, vendo os sonhos passarem-te pelo rosto; nessa altura amava-te na teoria mesmo que isso não acontecesse na prática. Estava demasiado ocupado a proteger e a servir o resto de Bankton para me concentrar em proteger-te e servir-te; essa tarefa tinha cabido a Charlotte. Era uma tarefa sem fim, e eu fui afastado dela por este processo legal para vir a descobrir o que era impossível de negar: que estavas a crescer.
Isso ia mudar, jurei. Continuar aquilo que começara quando me dirigi a Brooker, Hood Coates, implicava que ia passar mais tempo contigo. Ia voltar a deixar-me cativar por ti.
Precisamente nessa altura, o vento entrou pela janela aberta da carrinha, enrolando os papéis dos bolos e fazendo-me lembrar por que tinha voltado ali naquela noite. Os biscoitos, bolos e doces" que tu, Amélia e Charlotte tinham feito nos últimos dias.
Meti-os todos na carrinha - à vontade umas trinta embalagens, cada uma atada com um cordel verde e um coração de papel de lustro. Foste tu que os cortaste; conseguia perceber. Doces de Syllabub, estava escrito. Imaginei as mãos da tua mãe a amassar a massa dos bolos, a expressão no teu rosto ao partires um ovo com cuidado, Amélia frustrada a dar um nó num avental. Vinha aqui algumas vezes por semana. Comia os primeiros três ou quatro; o resto deixava à porta do lar mais próximo para pessoas sem-abrigo.
Agarrei na carteira e tirei o dinheiro todo que tinha, a soma de todos os turnos extra que fizera no trabalho para não ter de vir para casa. Enfiei-o, nota a nota, na caixa de sapatos, pagando a Charlotte na mesma moeda. Antes que conseguisse conter-me, tirei o coração de papel de um embrulho de biscoitos. com um lápis, escrevi uma mensagem nas costas em branco: "Adoro."
No dia seguinte, lê-la-iam. As três ficariam radiantes, presumiriam que o escritor anónimo se referia aos bolos, e não às pasteleiras.
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Amélia
A caminho de casa, vindas de Boston, num fim-de-semana, a minha mãe reinventou-se como o raio de uma nova Martha Stewart Para isso, tivemos de fazer um desvio brutal para Norwich, em Vermont, para King Arthur Flour, para podermos comprar um monte de formas industriais para pastelaria e farinhas especiais. Já estavas de mau humor por teres tido de passar a manhã no Hospital Pediátrico para experimentares novos suportes para as pernas - eram quentes e rígidos e deixavam marcas e equimoses onde o plástico roçava na pele, o que os especialistas tentaram solucionar com uma pistola de calor; mas parecia não estar a resultar. Querias ir para casa e tirá-los, mas em vez disso, a Mãe subornou-nos com uma ida ao restaurante - uma recompensa que nenhuma de nós podia recusar.
Podia parecer que não era nada de especial, mas para nós era. Não costumávamos comer fora. A nossa mãe sempre disse que cozinhava melhor do que a maior parte dos
chefes de cozinha, e era verdade, mas isso apenas nos fazia parecer menos desgraçados do que éramos: não tínhamos dinheiro para isso. Por essa razão não dizia nada
aos nossos pais quando as calças de ganga começavam a ficar curtas, porque nunca comprava almoço, embora as batatas fritas da cantina tivessem um aspecto incrivelmente delicioso; era por essa razão que a Viagem ao Inferno do Disney World foi uma desilusão tão grande. Tinha vergonha de ouvir os nossos pais dizerem que não tínhamos dinheiro para comprar o que eu precisava ou queria ter; se não pedisse nada, não tinha de ouvi-los dizerem que não.
Uma parte de mim estava zangada por a mãe estar a usar o dinheiro dos bolos para comprar aquelas formas todas quando podíamos estar a comprar uma camisola com capuz, de caxemira, da juicy Couture, que faria as outras raparigas da escola olharem para mim com inveja, em vez de me olharem como se eu fosse alguma coisa colada às solas dos sapatos delas.
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Mas não, era fundamental que tivéssemos essência de baunilha mexicana e cerejas Bing secas do Michigan. Tínhamos de ter formas de silicone para queques, uma forma
para bolachas de manteiga e tabuleiros sem bordas para biscoitos. Estavas totalmente alheia ao facto de que cada cêntimo que gastávamos em açúcar turbinado e farinha
para bolos era menos um cêntimo gasto em nós, mas por outro lado, de que estava eu à espera: também ainda acreditavas no Pai Natal.
Por isso, devo admitir que fiquei um pouco surpreendida quando me deixaste escolher o restaurante onde fomos almoçar
- A Amélia nunca pode escolher - disseste e, embora me detestasse por isso, achei que ia chorar
Para compensar isso, e porque toda a gente estava à espera que eu fosse uma idiota, e para quê desiludir, disse:
- McDonald's.
- Bah - disseste tu. - Fazem quatrocentos hambúrgueres de uma vaca.
- Fala comigo quando fores vegetariana, hipócrita - respondi.
- Amélia, já chega. Não vamos ao McDonalcTs.
Por isso, em vez de escolher um restaurante italiano simpático de que todas provavelmente teríamos gostado, obriguei-a a parar num sítio absolutamente reles.
Parecia o tipo de restaurante com baratas na cozinha.
- Bem - disse a minha mãe, olhando em volta. - É uma escolha interessante.
- É nostálgico - disse eu, e lancei-lhe um olhar zangado. - Que mal tem isso?
- Nada, desde que o botulismo não seja uma das tuas recordações há muito perdidas.
Depois de olhar para o letreiro que dizia Sente-se Num Lugar À Escolha, dirigiu-se a uma mesa vazia.
- Quero sentar-me ao balcão - disseste.
A mãe e eu olhámos para os bancos instáveis, para a altura deles.
- Não - dissemos em simultâneo.
Arrastei uma cadeirinha de bebé para a mesa para poderes sentar-te. Uma empregada de mesa mal-humorada atirou-nos as listas com o menu e uma caixa de lápis de cera para ti.
-Volto já para anotar o vosso pedido.
A mãe enfiou-te as pernas na cadeirinha, o que era uma provação porque, com os suportes, as tuas pernas não se mexiam assim tão facilmente. Viraste imediatamente o individual e começaste a desenhar no lado em branco.
- Então - disse a mãe -, que bolos vamos fazer quando chegarmos a casa?
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- Donuts - sugeriste. Estavas bastante fascinada com a forma que tínhamos comprado, que parecia ter dezasseis olhos de alienígena.
- Amélia, e tu?
Escondi o rosto nos braços.
- Bolos de haxixe.
A empregada voltou com um bloco de notas na mão.
- Ora bem, és tão querida que apetece pôr-te numa bolacha e comer
- disse ela, olhando para ti. - E também és uma grande artista!
Olhei para ti e revirei os olhos. Enfiaste dois lápis de cera no nariz e deitaste a língua de fora.
- Queria um café - disse a mãe. - E uma sandes de peru.
- Uma chávena de café tem mais de cem substâncias químicas - disseste, e a empregada quase caiu para o lado.
Visto que não costumávamos sair muito, tinha-me esquecido de como os estranhos reagem à tua presença.Tens a altura de uma criança de três anos, mas falas, lês e desenhas como uma criança com muito mais do que a tua idade real - quase seis anos. Era de certo modo sinistro, até as pessoas te conhecerem.
- E é tão faladora! - disse a empregada, recompondo-se.
- Queria o queijo grelhado, por favor - respondeste. - E uma Coca-Cola.
- Pois, parece-me bem. São dois - disse eu, quando o que me apetecia mesmo era mandar vir um de cada coisa que estava no menu. A empregada observava-te enquanto fazias um desenho mais ou menos normal para uma criança de seis anos, mas que era praticamente um Renoir para o bebé que ela achava que eras. Parecia que ia dizer-te qualquer coisa, por isso virei-me para a mãe.
-Tens a certeza de que queres peru? Isso é uma intoxicação alimentar iminente...
- Amélia!
Estava zangada, mas consegui fazer a empregada deixar de fitar-te e sair dali.
- Ela é uma idiota - disse eu assim que a empregada se foi embora.
- Ela não sabe que... - a mãe interrompeu a frase abruptamente.
- O quê? - disseste num tom acusador- Que eu tenho um problema?
- Eu nunca diria isso.
- Pois, está bem - disse entre dentes. - Só quando o júri estiver presente.
- Podes ter a certeza, Amélia, se não mudares de atitude...
Fui salva pela empregada, que voltou com as bebidas em copos que provavelmente numa vida anterior foram de plástico transparente, mas que agora pareciam opacos. A tua Coca-Cola vinha num copo de bebé.
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Automaticamente a mãe agarrou nele e começou a desatarraxar a parte de cima. Pegaste num dos copos e depois agarraste no lápis de cera e começaste a escrever na
parte de cima do desenho: Eu, Amélia, Mamã, Papá.
- Oh, meu Deus - disse a empregada. - Tenho uma menina de três anos em casa e, deixe-me que lhe diga, mal consigo fazê-la deixar as fraldas. Mas a sua filha já escreve?
E bebe num copo normal. Minha querida, não sei o que anda a fazer assim tão bem, mas quero que me conte.
- Não tenho três anos - disseste.
-Três anos e meio, não? Esses meses contam quando são bebés...
- Não sou bebé!
- Willow - a mãe pousou-te a mão no braço, mas afastaste-a, derrubando o copo e espalhando Coca-Cola por todo o lado.
- Não sou!
A mãe agarrou num monte de guardanapos de papel e começou a limpar.
- Desculpe - disse à empregada.
- Ora, isto - a empregada acenou com a cabeça - parece mais próprio dos três anos.
Uma campainha tocou, e ela voltou para a cozinha.
- Willow, já devias saber - disse a nossa mãe. - Não podes ficar zangada com uma pessoa por ela não saber que tens OI.
- Porque não? - perguntei. - Tu estás.
A minha mãe ficou de boca aberta. Recompondo-se, agarrou na mala e no casaco e levantou-se.
-Vamos embora - anunciou, e tirou-te da cadeira. No último instante lembrou-se das bebidas e escarrapachou uma nota de dez dólares em cima da mesa. Depois levou-te
para o carro, comigo atrás.
Afinal fomos ao McDonald's, a caminho de casa, mas em vez de ficar satisfeita, fez-me ter vontade de desaparecer por baixo dos pneus, do pavimento, de tudo.
Também usava aparelho, mas não servia para evitar que as minhas pernas ficassem curvadas. O meu era vulgar; daqueles que alteravam a forma do maxilar ao progredirem
de expansor palatal para os elásticos ortodônticos e arames. Tinha isso em comum contigo: assim que coloquei o aparelho, comecei a contar os dias para poder tirá-lo. Para aqueles que nunca experimentaram o desconforto, é esta a sensação de usar aparelho: sabem aqueles dentes brancos de vampiro, postiços, que enfiamos na boca no Dia das Bruxas? Bem, imaginem isso, e depois imaginem que não os podem tirar durante os próximos três anos, a babarem-se e a cortarem as gengivas nos pedaços de plástico irregulares, e é assim o aparelho.
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E foi por isso que numa determinada segunda-feira de finais de janeiro, tinha o maior e mais tolo sorriso no rosto. Não me importei quando Emma e o grupo dela escreveram
a palavra PUTA no quadro atrás de mim, na aula de matemática, com uma seta a apontar para a minha cabeça. Não me importei que tivesses comido os cereais de chocolate
e que eu tivesse de comer os de trigo integral ao lanche, depois das aulas. A única coisa importante era que às 16h30 ia tirar o aparelho, depois de trinta e quatro
meses, duas semanas e seis dias.
A minha mãe estava incrivelmente tranquila - parecia que não percebia como isto era importante. Tinha verificado; estava marcado na agenda dela, tal como nos últimos
cinco meses. Mas comecei a entrar em pânico quando ela enfiou um cheesecoke no forno às quatro horas. Quero dizer, como podia levar-me de carro à cidade para ir
ao ortodontista sem se preocupar se a faca saía limpa dali a uma hora, quando fosse ver se já estava pronto?
O meu pai, era essa a resposta. Ultimamente não estava muito tempo em casa, mas por outro lado, isso não era nada de especial. Os polícias trabalhavam quando tinham
de trabalhar, e não quando queriam - pelo menos era o que ele costumava dizer-me. A diferença era que, quando estava em casa, o ar entre ele e a minha mãe podia
ser cortado com a mesma faca que ela usava para ver se o cheesecoke já estava pronto.
Talvez isto tudo fizesse parte de um plano delineado para se verem livres de mim. O meu pai ia chegar a tempo de me levar ao ortodontista; a minha mãe acabaria de
fazer o cheesecoke (que era o meu preferido) e tudo terminaria num jantar à antiga com coisas como maçarocas de milho assadas, maçãs caramelizadas e pastilha elástica
- tudo comidas proibidas que estavam escritas num íman colado ao frigorífico com uma grande cruz por cima e, para variar, seria de mim que ninguém conseguiria tirar
os olhos.
Estava sentada à mesa da cozinha, a roçar com o sapato de ténis no chão.
- Amélia - suspirou a minha mãe. Guincho.
- Amélia, por amor de Deus. Estás a causar-me dores de cabeça. Eram 16h04.
- Não estás a esquecer-te de nada? Limpou as mãos a um pano da loiça.
- Que eu saiba não...
- Bem, quando é que o pai chega? Ela ficou a olhar para mim.
- Querida - disse ela, uma palavra doce, para ficarmos a saber que o que se segue tem de ser horrível. - Não sei onde o teu pai está. Ele e eu... nós não temos...
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- A minha consulta - desabafei, antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa. - Quem vai levar-me ao ortodontista?
Por um momento, ficou sem fala.
- Deves estar a brincar
- Passados três anos? Não me parece - levantei-me, espetando o dedo no calendário que estava na parede. - Hoje vou tirar o aparelho.
- Não vais ao consultório do Rob Reece - disse a minha mãe. Pronto, foi esse o pormenor que não referi; o único ortodontista de
Bankton - aquele que tinha andado a consultar durante todo aquele tempo
- por acaso era casado com a mulher que ela estava a processar Claro, devido àquele drama todo, tinha faltado a duas consultas desde Setembro, mas não tinha nenhuma intenção de faltar àquela.
- Lá por teres embarcado numa cruzada para arruinares a vida da Piper, eu tenho de ficar com o aparelho até aos quarenta anos!
A minha mãe levou a mão à testa.
- Até aos quarenta anos não. Só até arranjar outro ortodontista. Por amor de Deus, Amélia, esqueci-me. É óbvio que ultimamente tenho tido muito em que pensar.
- Pois, tu e qualquer outra pessoa do planeta, mãe - gritei. - Sabes uma coisa? Nem tudo gira à tua volta, nem daquilo que queres e do que faz com que toda a gente
tenha pena da tua triste vida com uma triste...
Deu-me uma estalada na cara.
A minha mãe, nunca, nunca me bateu. Nem quando eu fui para o meio da estrada aos dois anos, nem quando entornei acetona para cima da mesa da sala de jantar, destruindo o acabamento. Doía-me a face, mas o peito doía-me mais. O meu coração transformara-se numa bola de elásticos, e estavam a rebentar, um por um.
Queria magoá-la tanto quanto ela me magoara a mim, por isso proferi as palavras que me queimavam a garganta como ácido.
- Aposto que também querias que eu não tivesse nascido - disse, e saí a correr.
Quando cheguei ao consultório de Rob (nunca lhe chamei Dr Reece), estava a suar e afogueada. Acho que nunca tinha corrido oito quilómetros na minha vida, mas era
isso que acabara de fazer. A culpa dá-nos mais energia do que aquilo que podemos imaginar. Eu era praticamente o Coelhinho Duracell, e tinha mais a ver com o desejo
de fugir da minha mãe do que com a vontade de chegar ao consultório do ortodontista. Ofegante, dirigi-me à secretária da recepcionista, onde havia um fabuloso quiosque
com um computador para nos registarmos. Mas mal tinha acabado de pousar os dedos no teclado reparei que a recepcionista estava a olhar para mim. E a higienista. E todas as pessoas que estavam no consultório.
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- Amélia - disse a recepcionista. - O que estás aqui a fazer? -Tenho uma consulta marcada.
- Acho que todos nós pensámos...
- Pensaram o quê? - interrompi. - Que por a minha mãe ser uma idiota, eu também sou?
De repente, Rob apareceu na recepção, tirando um par de luvas de látex das mãos. Costumava enchê-las de ar para a Emma e para mim, e desenhar-lhes pequenos rostos.
Os dedos pareciam a crista de um galo e eram macios como a pele de um bebé.
- Amélia - disse ele numa voz tranquila. Não estava a sorrir, nem um bocadinho. - Acho que estás aqui por causa do aparelho.
Parecia que estivera a vaguear por uma floresta ao longo dos últimos meses, por um lugar onde até as árvores podiam estender os ramos para nos agarrar e onde ninguém
falava a minha língua - e Rob dissera a primeira frase racional e normal que ouvia desde há muito tempo. Ele sabia o que eu queria. Para ele era tão fácil, por que
razão mais ninguém percebia?
Segui-o para o gabinete, passando pela recepcionista e a higienista antipáticas que abriram tanto os olhos que parecia que iam saltar-lhes das órbitas. "Ah", pensei,
caminhando orgulhosamente ao lado dele. "É para aprenderem."
Estava à espera que Rob dissesse qualquer coisa como, "Olha, vamos despachar isto e manter uma relação exclusivamente profissional", mas em vez disso, enquanto me
colocava a protecção de papel por cima dos ombros, disse:
- Está tudo bem contigo, Amélia?
Meu Deus, porque é que o Rob não era meu pai? Porque é que eu não vivia em casa dos Reece e a Emma vivia na minha, para eu poder detestá-la em vez de ela me detestar
a mim?
- Comparado com o quê? O Armagedão?
Tinha uma máscara, mas estou convencida que por baixo dela esboçou um sorriso. Sempre gostei do Rob. Era um bocado cromo e franzino, nada parecido com o meu pai.
Quando dormíamos em casa uma da outra, Emma costumava dizer-me que o meu pai era lindo como um actor de cinema e eu dizia-lhe que era nojento que ela sequer pensasse
nele daquela maneira; e ela dizia que se o pai alguma vez participasse num filme, seria a A Vingança dos Nerds. E talvez fosse verdade, mas ele também não se importava
de nos levar ao cinema para ver filmes com a Amanda Bynes ou a Hilary Duff, e deixava-nos brincar com a cera dos aparelhos e moldá-la em ursinhos e póneis
quando estávamos aborrecidas.
- Já me tinha esquecido de como eras engraçada - disse Rob. Muito bem, abre a boca... Podes sentir um pouco de pressão. - Agarrou
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num alicate e começou a cortar as ligações entre os bráquetes e os meus dentes. Era estranho, como se eu fosse biónica. - Dói-te? Abanei a cabeça.
- A Êmma ultimamente não tem falado muito de ti.
Não podia falar porque ele tinha as mãos na minha boca aberta. Mas isto era o que teria dito: "Porque se tornou numa megacabra que me detesta."
- É óbvio que é uma situação muito desconfortável - disse Rob. Tenho de admitir que nunca pensei que a tua mãe te deixasse voltar aqui para as consultas de ortodontia.
"E não deixou."
- Sabes, a ortodontia é apenas física - disse Rob. - Se colocássemos só bráquetes ou elásticos nos dentes tortos, não serviria de nada. Mas quando aplicamos força em sentidos diferentes, as coisas mudam - olhou para mim, e eu sabia que já não estava a falar sobre os meus dentes. - Cada acção tem uma reacção oposta igual.
Rob estava a retirar a substância adesiva e o cimento dos dentes. Levantei a mão e coloquei-a no pulso dele, para que tirasse a escova de dentes eléctrica. A minha saliva tinha um gosto metálico.
- Ela também estragou a minha vida - disse eu e, por causa da saliva, parecia que estava a afogar-me.
Rob desviou o rosto,
- Vais ter de usar um retentor, senão pode haver deslocamentos. Vamos fazer umas radiografias e moldes para podermos fazer-te um... depois franziu a testa, tocando na parte de trás dos meus dentes da frente. -Aqui o esmalte está muito gasto.
Bem, claro que estava; estava a forçar-me a vomitar três vezes por dia, embora não soubesses. Estava mais gorda do que nunca, porque quando não estava a vomitar, estava a empanturrar-me. Sustive a respiração, interrogando-me se seria aquele o momento em que alguém descobriria o que eu andava a fazer. Pensei se não estaria
à espera daquele momento desde o início.
-Tens bebido muitos refrigerantes?
A desculpa fez-me sentir fraca. Apressei-me a acenar com a cabeça.
- Não bebas - disse Rob. - Usa-se Coca-Cola para limpar as manchas de sangue nas auto-estradas, sabias. Queres que isso entre no teu corpo?
Parecia daquelas coisas que costumas dizer dos teus livros de curiosidades. E os meus olhos encheram-se de lágrimas.
- Desculpa - disse Rob, levantando as mãos. - Não quis magoar-te. "Eu também não", pensei.
Ele concluiu o polimento dos dentes com uma pasta que parecia areia e deixou-me bochechar
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- É uma oclusão linda - disse ele, e segurou num espelho. - Sorri,
Amélia.
Passei a língua pelos dentes, uma coisa que já não podia fazer há quase três anos. Os dentes pareciam enormes, lisos, como se fossem de outra pessoa. Mostrei-os - não era um sorriso, era mais o esgar de um lobo. A rapariga no espelho tinha lindas fileiras de dentes, como o colar de pérolas que estava na caixa de jóias da minha mãe e que eu roubara e escondera numa das minhas caixas de sapatos. Nunca o usei, mas gostava do toque delas, tão macias e uniformes, como um pequeno exército a marchar em volta do pescoço. A rapariga no espelho quase podia ser bonita.
O que queria dizer que não podia ser eu.
- Tens aqui uma coisa que costumamos dar aos jovens que terminaram o tratamento - disse Rob, entregando-me um pequeno saco de plástico com o nome dele.
- Obrigada - murmurei, e saltei da cadeira, arrancando a protecção de papel.
- Amélia, espera. O teu retentor.. - disse Rob, mas nessa altura, já tinha corrido para a recepção e saído porta fora. Mas em vez de descer as escadas e sair do edifício, corri lá para cima, onde ninguém se lembraria de vir procurar-me (Mas não iam procurar-me. Eu não era assim tão importante, pois não?), e tranquei-me na casa de banho. Abri o saco. Havia caramelos Twizzlers, ursinhos de goma e pipocas, todos os alimentos que eu já não comia há tanto tempo que já nem me lembrava do seu paladar. Havia uma T-shirt que dizia: OS DESLOCAMENTOS ACONTECEM, POR ISSO USA O TEU RETENTOR.
A sanita tinha um tampo preto. Segurei nos cabelos com uma mão e com a outra, enfiei o indicador pela garganta abaixo. Aqui está aquilo em que Rob não tinha reparado:
a pequena crosta naque e dedo, por raspar nos dentes da frente de cada vez que fazia isto.
Depois, os meus dentes pareciam ásperos e sujos, novamente familiares. Limpei a boca com água no lavatório e olhei para o espelho. Tinha as faces coradas, os olhos brilhantes.
Não parecia uma pessoa cuja vida estava a desmoronar-se. Não parecia uma rapariga que se forçava a vomitar para sentir que era capaz de fazer alguma coisa certa.
Não parecia uma filha que era detestada pela mãe, ignorada pelo pai.
Para ser sincera, já nem sabia quem eu era.
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Piper
Em quatro meses, renasci. Antigamente, usava uma fita métrica de papel para medir a linha média do abdómen, agora usava-a para calcular aberturas para janelas. Antigamente,
usava um estetoscópio Doppler para ouvir os batimentos cardíacos fetais; agora uso um magnetómetro para localizar os pontos mais favoráveis por trás de uma parede falsa. Antigamente, fazia rastreios pré-natais com múltiplos marcadores bioquímicos, agora fechava alpendres. Tinha-me aplicado na tarefa de aprender tanto sobre remodelações como sobre medicina, podendo já ser certificada como empreiteira.
Primeiro remodelei a casa de banho, depois a sala de jantar. Arranquei a alcatifa dos quartos para colocar chão de parquet. Naquela semana estava a pensar em começar a pintar a cozinha com pinturas decorativas. Depois de acabar uma divisão, voltava a colocá-la na lista para eventualmente vir a ser remodelada outra vez.
Claro que a minha loucura tinha um método. Em parte fazia-me sentir novamente especialista em alguma coisa - alguma coisa que eu não sabia fazer antes ser-me-ia
impossível estragá-la. E em parte pensava que se mudasse tudo o que estava à minha volta, talvez encontrasse um lugar onde voltasse a sentir-me confortável.
Aubuchon Hardware transformou-se no meu refúgio de eleição. Enquanto podia encontrar-me casualmente com pacientes na mercearia ou na farmácia, no Aubuchon deambulava
alegremente pelos corredores num estado de absoluto anonimato. Ia lá três ou quatro vezes por semana e ficava a olhar para os níveis laser e para as brocas, as filas de bitolas perfiladas como soldados, os tubos de PVC e as suas primas mais delicadas, os canos de cobre. Sentava-me no
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chão com amostras de tintas, sussurrando os nomes das cores: Vinho de Amora, Azul Riviera, Lava Fria. Pareciam fotografias de férias de lugares que sempre quis visitar.
Azul Newburyport pertencia à colecção de Cores Históricas de Benjamin Moore. Era um azul-escuro-acinzentado, como o oceano quando chove. Por acaso já tinha estado em Newburyport. Num Verão, Charlotte e eu alugámos uma casa em Plum Island para as nossas famílias. Ainda eras suficientemente pequena para poderes ser transportada, com todo o equipamento, através das ervas altas até à praia. Em teoria, pareciam ser as férias perfeitas: a areia era suficientemente macia para te amparar as quedas; Emma e Amélia podiam fingir que eram sereias, com cabelos de algas que vinham dar à costa; e era suficientemente perto para Sean e Rob puderem vir ter connosco nos
dias de folga. Só havia um senão que nos tinha escapado: a água era tão fria que até pelos tornozelos nos fazia doer até ao âmago. Vocês passavam o dia a chafurdar
em pocinhas suficientemente rasas para serem aquecidas pelo sol, mas Charlotte e eu éramos demasiado grandes.
E foi por isso que, num domingo, quando os homens levaram as crianças ao Mad Martha para tomarem o pequeno-almoço, Charlotte e eu decidimos experimentar fazer bodyboard,
apesar de poder resultar em hipotermia grave. Enfiámo-nos nos fatos ("Devem ser apertados", disse eu a Charlotte quando ela se queixou do tamanho das ancas) e levámos
as pranchas para a beira de água. Mergulhei o pé na espuma e arquejei.
- Nem pensar - disse eu, saltando para trás. Charlotte esboçou um sorriso trocista.
- Estás com medo de molhar os pés?
- Que graça - disse, mas para minha surpresa, ela já tinha começado a galgar as ondas, geladas como eram, e a nadar para o ponto onde podia apanhá-las.
- Está muito mau? - gritei.
- É como uma epidural... não tenho sensibilidade abaixo da cintura - respondeu gritando também e, de repente, o oceano elevou-se, flectindo um longo músculo que levantou Charlotte em cima da prancha, lançando-a aos gritos através da espuma para aterrar aos meus pés na areia.
Levantou-se, afastando os cabelos do rosto.
- Medricas - acusou, e para provar-lhe que estava enganada, sustive a respiração e comecei a entrar na água.
Meu Deus, estava fria. Nadei por cima da prancha balançando para cima e para baixo ao lado de Charlotte.
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- Vamos morrer - disse eu. - Vamos morrer aqui e alguém vai encontrar os nossos corpos na costa, como a Emma encontrou aquele sapato de ténis ontem...
- Cá vamos nós - gritou Charlotte, olhei por cima do ombro e vi uma enorme muralha de água erguer-se sobre nós.
- Nada - gritou Charlotte, e eu fiz o que ela me mandou.
Mas não apanhei a onda. Em vez disso, abateu-se sobre mim, tirando-me o ar dos pulmões, fazendo-me andar às voltas debaixo de água. A minha prancha, presa ao pulso, bateu-me na cabeça duas vezes, e depois senti areia no cabelo e a arranhar-me o rosto, os dedos a roçarem nas conchas partidas, enquanto o fundo do oceano se erguia inclinado debaixo de mim. De repente, uma mão agarrou nas costas do meu fato e arrastou-me para a frente.
- Levanta-te - disse Charlotte, usando todo o seu peso para me levar para suficientemente perto da areia para não ser levada pela corrente.
Tinha engolido um litro de água salgada; tinha os olhos a arder e sangue na face e nas palmas das mãos.
- Caramba - disse eu, tossindo e limpando o nariz. Charlotte bateu-me nas costas.
- Respira.
- É mais difícil... do que parece.
Senti-me lentamente a voltar a mim, e isso era pior, porque a onda dera-me uma tareia.
- Obrigada... por me salvares.
- Que se lixe - disse Charlotte. Não queria ter de pagar a segunda metade da renda da casa sozinha.
Ri às gargalhadas. Charlotte ajudou-me a levantar-me e começámos a caminhar pela praia, arrastando as pranchas atrás de nós como cachorrinhos pela trela.
- O que lhes vamos dizer? - perguntei.
- Que o Kelly Slater nos inscreveu no campeonato do mundo.
- Pois, isso explica a minha face ensanguentada.
- Ficou siderado com a beleza do meu rabo neste fato de surf e, quando se atirou a mim, tiveste de o afastar à pancada - sugeriu Charlotte.
Os juncos sussurravam segredos. À esquerda havia uma faixa de areia onde Amélia e Emma tinham estado a brincar no dia anterior, escrevendo os nomes com pauzinhos. Queríamos ver se ainda estariam ali hoje ou se a maré os teria apagado.
"Amélia e Emma", estava escrito.
"MAPS." Melhores amigas para sempre.
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Dei o braço a Charlotte e, juntas, percorremos a longa subida até
casa.
Naquele momento, sentada no chão de Aubuchon Hardware, com um leque de flamenco de amostras de cores na mão, apercebi-me de que nunca mais tinha voltado a Newburyport
desde aquela altura. Charlotte e eu tínhamos falado nisso, mas ela não quis comprometer-se a alugar uma casa sem saber se estarias engessada no Verão seguinte. Talvez Emma, Rob e eu pudéssemos ir lá no próximo Verão.
Mas eu sabia que não iria. Não queria ir, sem Charlotte.
Tirei um litro de tinta da prateleira e dirigi-me para o balcão ao fundo do corredor.
- Azul Newburyport, por favor - disse, embora ainda não estivesse a pensar em nenhuma parede em particular para aplicá-la. Ia guardá-la na cave, não fosse precisar dela.
Estava escuro quando saí de Aubuchon Hardware e, quando voltei para casa, Rob estava a passar pratos por água e a colocá-los na máquina de lavar louça. Nem sequer olhou para mim quando entrei na cozinha e foi por isso que soube que estava furioso.
- Diz lá - disse eu.
Fechou a torneira e bateu com a porta da máquina de lavar louça.
- Onde raio estiveste?
- Eu... perdi a noção do tempo. Estive na loja de bricolage.
- Outra vez? Mas o que precisavas de comprar lá? Sentei-me numa cadeira.
- Não sei, Rob. É o sítio onde me sinto bem agora.
- Sabes o que me faria sentir-me bem? - disse ele. - A minha mulher.
- Uau, Rob, não pensei que te armasses em Ricky Ricardo comigo...
- Não te esqueceste de nada hoje? Fiquei a olhar para ele.
- Que eu saiba, não.
- A Emma ficou à tua espera para a levares ao rinque.
Fechei os olhos. Patinagem. Já começara o novo período; eu devia tê-la inscrito nas lições particulares para poder entrar na competição naquela Primavera - algo que a última treinadora achara finalmente que ela estava preparada para fazer. As vagas eram preenchidas por ordem de chegada; talvez tivesse arruinado a sua oportunidade.
- vou compensá-la...
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- Não é preciso, porque ela me telefonou, histérica, e eu saí do consultório para levá-la a horas - sentou-se à minha frente, inclinando a cabeça. - O que fazes
tu o dia todo, Piper?
Queria indicar-lhe o chão novo da arrecadação ou a instalação eléctrica que eu substituíra precisamente por cima daquela mesa. Mas em vez disso, fiquei a olhar para as mãos.
- Não sei - murmurei. - Não sei mesmo.
- Tens de voltar à tua vida. Senão, ela já venceu.
- Não sabes como é...
- Não sei? Não sou médico, também? Não tenho um seguro contra negligência médica?
- Não foi isso que quis dizer e tu...
- Hoje vi a Amélia. Fiquei a olhar para ele.
- A Amélia?
- Foi ao consultório para retirar o aparelho.
- A Charlotte nunca a deixaria...
- Não há fúria no Inferno igual à de uma adolescente que quer retirar o aparelho ortodôntico - disse Rob. - Tenho quase a certeza absoluta de que a Charlotte não fazia ideia de que ela estava ali.
Senti o calor subir-me ao rosto.
- Não achas que as pessoas podem ficar a pensar porque estás a tratar da filha da mulher que está a processar-nos?
- A ti - corrigiu ele. - Ela está a processar-te a ti. Cambaleei para trás.
- Nem acredito que acabaste de dizer isso.
- E eu nem acredito que estivesses à espera que eu expulsasse a Amélia do consultório.
- Ora bem, sabes uma coisa, Rob? Devias tê-la expulsado. És meu marido.
Rob levantou-se.
- E ela é uma paciente. E é o meu trabalho. com o qual, ao contrário de ti, eu me preocupo.
Saiu da cozinha e eu esfreguei as têmporas. Sentia-me como um avião à espera de aterrar, a dar voltas com o aeroporto à vista e sem permissão para aterrar. Naquele momento estava tão ressentida com Charlotte que parecia que tinha uma pedra na barriga, sólida e fria. Rob tinha razão - tudo o que eu sou, tudo o que eu era - fora colocado na prateleira por causa do que Charlotte me fizera.
E, naquele instante, apercebi-me de que Charlotte e eu ainda tínhamos alguma coisa em comum: ela sentia-se exactamente da mesma maneira por causa do que eu lhe fizera.
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Na manhã seguinte, estava determinada a mudar. Liguei o despertador e, em vez de ficar a dormir até depois de o autocarro da escola passar, fiz torradas com bacon
para o pequeno-almoço da Emma. Desejei um bom dia a um Rob desconfiado. Em vez de remodelar a casa, limpei-a. Fui às compras, à mercearia - apesar de ter ido a uma cidade a quase cinquenta quilómetros de distância, onde não ia encontrar ninguém conhecido. Fui ter com Emma à escola com o saco da patinagem.
- Vais levar-me ao rinque? - perguntou ela quando me viu.
- Há algum problema?
- Acho que não - disse Emma, e após um instante de hesitação inicial, lançou-se numa diatribe sobre como era injusto o professor ter feito um teste de álgebra quando sabia que ia faltar naquele dia e não ia poder responder às perguntas de última hora.
"Senti falta disto", pensei. "Tive saudades da Emma." Estendi o braço e passei-lhe a mão pelos cabelos.
- O que foi?
- Adoro-te. Só isso.
Emma ergueu uma sobrancelha.
- Pronto, agora estás a assustar-me. Não vais dizer-me que tens cancro ou qualquer coisa assim, pois não?
- Não, sei que não tenho propriamente estado... presente... nos últimos tempos. E lamento.
Estávamos num semáforo vermelho e ela virou-se para mim.
- A Charlotte é uma cabra - disse, e eu não a repreendi por usar aquela linguagem. - Toda a gente sabe que não tens culpa deste assunto da Willow.
- Toda a gente?
- Bem - disse ela. - Eu sei. "É o suficiente", apercebi-me.
Passados alguns minutos, chegámos ao rinque de patinagem. Rapazes de faces vermelhas saíam pelas portas de vidro da entrada, com os enormes sacos de hóquei às costas, como carapaças de tartarugas. Sempre achei curiosa a dicotomia entre a graciosidade das patinadoras artísticas e a agressividade dos jogadores de hóquei.
Assim que entrei apercebi-me daquilo que tinha esquecido - não, esquecido não, apenas bloqueado completamente da memória: Amélia também estaria ali.
Estava tão diferente desde a última vez que a vira - vestida de preto, com luvas sem dedos, calças de ganga rasgadas e botas de
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combate - e aqueles cabelos azuis. E estava a discutir acaloradamente com Charlotte.
- Não quero saber de quem oiça - disse ela. - Já te disse que não quero continuar a patinar.
Emma agarrou-me no braço.
- Vai - disse ela em voz baixa.
Mas era tarde de mais. Estávamos numa cidade pequena e esta era uma história importante; toda a gente que estava na sala, as raparigas com as mães, estava à espera para ver o que ia acontecer. E tu, sentada num banco ao lado do saco de Amélia, também reparaste em mim.
Tinhas o braço direito engessado. Como o terias fracturado daquela vez? Há quatro meses, saberia todos os pormenores.
Bem, ao contrário de Charlotte, não tinha intenções de lavar a roupa suja em público. Respirei fundo e puxei Emma para mais perto de mim, arrastando-a para o vestiário.
- Muito bem - disse eu, afastando os cabelos dos olhos. - Então, esta lição particular dura quanto tempo? Uma hora?
- Mãe.
- Talvez vá buscar a roupa à lavandaria, em vez de ficar aqui a ver-te...
- Mãe - Emma agarrou-me na mão, como se ainda fosse pequena. - Não foste tu que começaste isto.
Acenei com a cabeça, sem ter confiança em mim própria para dizer qualquer coisa. Era isto que eu esperava da minha melhor amiga: sinceridade. Se passou os últimos seis anos da tua vida a pensar que eu tinha feito algo terrivelmente errado durante a gravidez, porque nunca falou sobre isso? Porque nunca disse "Olha, porque é que nunca...?" talvez eu fosse ingénua por pensar que o silêncio implicava complacência, em vez de uma pergunta insidiosa. Talvez fosse tola por acreditar que as amigas devem qualquer coisa umas às outras. Mas eu acho que devem, pelo menos, uma explicação.
Emma terminou de atar os patins e apressou-se a ir para o gelo. Fiquei à espera um momento, depois empurrei a porta do vestiário e fiquei em frente da barreira curva de Plexiglas. Numa das extremidades do rinque estava um amontoado de principiantes - uma centopeia de crianças de calças para a neve e capacetes de bicicleta, com
as pernas abertas em triângulo. Quando uma caía, as outras também caíam: como dominós. Emma era assim não há muito tempo, mas agora ali estava ela na outra ponta
do rinque, a executar uma pirueta sentada enquanto a professora patinava à sua volta, corrigindo-a em voz alta.
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Não via Amélia - nem a ti nem a Charlotte, em lado nenhum.
A minha pulsação tinha voltado quase ao normal quando cheguei ao carro. Sentei-me no lugar do condutor, liguei o motor. Quando ouvi alguém bater no vidro da janela,
quase dei um salto.
Charlotte estava ali de pé, com um cachecol enrolado por cima do nariz e da boca, com os olhos a lacrimejar devido ao vento frio. Hesitei, depois abri um pouco a janela.
Ela parecia tão infeliz como eu.
- Eu... eu só queria dizer-te uma coisa - disse ela, detendo-se. A questão aqui nunca foi tu e eu.
O esforço de não falar doía: estava a ranger os dentes de trás.
- Tive oportunidade de poder dar à Willow tudo o que ela venha a precisar - a respiração dela formava um aro em volta do rosto, no ar frio. - Não te censuro por me odiares. Mas não podes julgar-me, Piper. Porque se a Willow fosse tua filha... Eu sei que terias feito o mesmo.
Deixei as palavras ressoarem entre nós, presas na guilhotina do vidro da janela.
- Não me conheces tão bem quanto julgas, Charlotte - disse friamente, e arranquei, afastando-me do rinque sem olhar para trás.
Passados dez minutos, entrei de rompante no consultório de Rob, durante uma consulta.
- Piper - disse ele pausadamente, lançando um olhar para os pais, com a filha pré-adolescente, que estavam a observar os meus cabelos revoltos, o nariz a pingar, as lágrimas que me escorriam pelo rosto. - Estou a meio de uma consulta.
- Hum - apressou-se a dizer a mãe. - Talvez devêssemos sair para que possam conversar.
- Sr.a Spifield...
- Não, a sério - disse ela, levantando-se e reunindo o resto da família. - Podemos sair por um minuto.
Apressaram-se a deixar o gabinete, à espera que eu me autodestruísse a qualquer momento, e talvez não estivessem assim tão longe da verdade. - Estás satisfeita? - explodiu Rob. - Provavelmente acabaste de fazer-me perder uma paciente nova.
- Então e se dissesses "Piper, o que aconteceu? Diz-me o que posso fazer para ajudar-te?"
- Bem, perdoa-me por já ter gasto toda a minha compreensão. Caramba, estou a tentar gerir um consultório médico.
- Acabei de encontrar-me por acaso com a Charlotte no rinque de patinagem.
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Rob ficou a olhar para mim, pestanejando.
- E então?
- Estás a brincar?
- Vivem na mesma cidade. Uma cidade pequena. É um milagre ainda não se terem cruzado. O que fez ela? Foi atrás de ti com uma espada? Desafiou-te no rinque? Vê se cresces, Piper.
Senti-me como um touro deve sentir-se quando é largado na arena. Liberdade, alívio... e depois vem o toureiro, espetá-lo.
- Vou-me embora - disse num tom suave. - vou buscar a Emma e, hoje à noite, antes de vires para casa, espero que penses na forma como me trataste.
- A forma como eu te tratei? - disse Rob. - Só te tenho apoiado. Não disse uma palavra, mesmo depois de teres deixado de exercer e de te teres transformado numa
espécie de Ty Pennington no feminino. Recebemos uma conta de dois mil dólares de madeira? Não faz mal. Esqueces-te do recital do coro da Emma porque estavas a conversar
sobre canalizações no Aubuchon Hardware? Esquece. Quero dizer, não é irónico que te tenhas tornado na rainha do faça você mesmo? Porque não queres a nossa ajuda. Em vez disso preferes afundar-te em autocomiseração.
- Não é autocomiseração - tinha as faces a arderem. Os Spifield conseguiriam ouvir-nos a discutir na sala de espera? E os higienistas?
- Sei o que queres de mim, Piper. Mas não tenho a certeza se consigo dar-te isso - Rob dirigiu-se para a janela, olhando para o parque de estacionamento. - Tenho pensado muito no Steven - disse ele, passado um instante.
Quando Rob tinha doze anos, o irmão mais velho suicidou-se. Foi Rob que o encontrou, enforcado no varão do roupeiro. Eu já sabia a história toda; mesmo antes de nos casarmos. Demorei algum tempo a convencer Rob a ter filhos porque ele tinha medo que a doença mental do irmão pudesse estar gravada nos seus genes. Mas o que eu não sabia era que, naqueles últimos meses, estar comigo arrastara Rob de volta àquela altura da sua infância.
- Naquele tempo ninguém sabia da existência da doença bipolar, nem como devia ser tratada. Por isso, durante dezassete anos, para mim e para os meus pais foi um Inferno. Toda a minha infância foi condicionada pelo que Steven sentia: se era um dia bom ou um dia mau. E - disse ele - foi assim que aprendi a tomar tão bem conta de uma pessoa completamente fixada em si própria.
Senti uma farpa de culpa alojar-se no coração. Charlotte magoara-me; e eu magoara Rob. Talvez seja isso que fazemos às pessoas que
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amamos: damos tiros no escuro, e depois apercebemo-nos tarde de mais que ferimos as pessoas que estávamos a tentar proteger.
- Tenho estado a pensar nisso desde que foste processada. E se os meus pais soubessem com antecedência? - disse Rob. - E se lhes tivessem dito, antes de o Steven
nascer, que ele ia suicidar-se antes de fazer dezoito anos?
Senti-me ficar completamente imóvel.
- Teriam escolhido os dezassete anos para poderem conhecê-lo? Ter aqueles bons momentos que ocorriam entre as crises? Ou ter-se-iam poupado, e a mim, da montanha-russa emocional?
Imaginei Rob a entrar no quarto do irmão para chamá-lo para jantar, e encontrar o jovem inerte no roupeiro. Nunca vi um sorriso no rosto da minha sogra chegar-lhe aos olhos. Seria por causa disso?
- Não é uma comparação justa - disse secamente.
- Porque não?
- A doença bipolar não pode ser diagnosticada no útero. Estás a fugir da questão.
Rob ergueu os olhos para os meus.
- Estarei? - disse ele.
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Marin
Fevereiro de 2008
- Ajam naturalmente - instruí. - Não queremos que façam nada de especial por causa da câmara. Finjam que não estamos aqui.
Esbocei um sorrisinho nervoso e olhei para as vinte e duas carinhas redondas que me fitavam: a turma da professora Watson na escola. - Alguém quer fazer perguntas?
Um rapazinho levantou a mão.
- Conhece o Simon Cowell?
- Não - disse eu, sorrindo. - Mais alguém?
- A Willow é uma estrela de cinema?
Olhei para Charlotte, que estava de pé mesmo atrás de mim, com o operador de câmara que eu tinha contratado para filmar Um Dia na Vida de Willow, para ser transmitido diante do júri.
- Não - disse eu. - Ela ainda é só a vossa amiga.
- Oh! Oh! Eu. - uma menina de beleza clássica destinada a ser chefe de claque agitava a mão no ar como um pistão até eu apontar para ela. - Se eu fingir que sou
amiga da Willow hoje, vou aparecer no Entertaínment Tonight?
A professora avançou.
- Não, Sapphire. E não devias ter de fingir ser amiga de ninguém aqui. Somos todos amigos, não somos?
- Sim, professora Watkins - entoou a turma.
Sapphire? Aquela rapariga chamava-se mesmo Sapphire? Tinha olhado para a fita que estava colocada por cima dos cacifos de madeira quando entrámos... com nomes como
Flmt, Frisco e Cassidy. Já ninguém chamava aos filhos Tommy ou Elizabeth?
Pensei, e não era a primeira vez que o fazia, se a minha mãe biológica teria escolhido nomes para mim. Se me chamara Sarah ou Abigail, um segredo entre nós as duas
que fora revolvido, como terra
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fresca, quando os meus pais adoptivos vieram e começaram a minha vida de novo.
Hoje estavas na cadeira de rodas, e isso significava que as crianças tinham de afastar-se para te dar lugar se viesses com a tua auxiliar trabalhar na mesa de artes
ou usar as barras Cuisenaire.
- Isto é tão estranho - disse Charlotte num tom suave. - Nunca posso vê-la na escola. Parece que entrei num lugar sagrado.
Tinha contratado a equipa de filmagens para filmar um dia inteiro contigo. Apesar de falares suficientemente bem para poderes testemunhar no julgamento, colocar-te no banco das testemunhas seria desumano. Não conseguia levar-te para a sala de audiências enquanto a tua mãe estivesse a prestar testemunho falando alto e em bom som sobre terminar a gravidez.
Aparecemos à porta da tua casa às seis da manhã, a tempo de ver Charlotte entrar no quarto para te acordar a ti e à Amélia.
- Oh, meu Deus, isto é uma chatice - gemeu Amélia quando abriu os olhos e viu o operador de câmara. -Toda a gente vai ver-me sem estar penteada.
Levantou-se da cama de um salto e correu para a casa de banho, mas tu demoraste mais tempo. Cada transição era feita com cuidado
- da cama para o andador, do andador para a casa de banho, da casa de banho de volta para a cama para te vestires. Porque as manhãs eram a altura mais dolorosa do dia para ti - a maldição de dormir sobre uma fractura a sarar - Charlotte deu-te um medicamento para as dores trinta minutos antes de chegarmos, depois deixou que
fizesse efeito no braço dorido enquanto dormitavas mais um pouco antes de te ajudar a levantares-te da cama. Charlotte escolheu uma camisola com um fecho à frente
para não teres de levantar os braços para vesti-la pela cabeça - o último molde de gesso só tinha sido retirado há apenas uma semana e o braço ainda estava rígido.
- Para além do braço, o que te dói hoje? - perguntou Charlotte. Parecias estar a fazer um inventário mentalmente.
- A anca - disseste.
- Como ontem, ou pior?
- A mesma coisa.
- Queres andar? - perguntou Charlotte, mas abanaste a cabeça.
- O andador faz-me doer o braço - disseste.
- Então vou buscar a cadeira.
- Não, não quero a cadeira...
- Willow, não tens outra hipótese. Não vou andar contigo ao colo o dia todo.
- Mas detesto a cadeira...
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- Então terás de esforçar-te para saíres dela mais depressa, não é?
Charlotte explicou para a câmara que estavas entre a espada e a parede - a lesão no braço, uma fractura antiga, ainda estava a sarar, mas a dor na anca era recente.
O equipamento adaptativo - um andador para ajudar-te a estar de pé apoiada - aplicava pressão no braço, que só aguentavas por curtos períodos de tempo, restando apenas a horrível cadeira de rodas manual dobrável. Não te faziam uma nova desde os dois anos de idade; aos seis, tinhas quase o dobro do tamanho e queixavas-te de dores nas costas e nos músculos depois de a usares um dia inteiro - mas o seguro só permitia a compra de uma nova quando tivesses sete anos.
Esperava encontrar uma azáfama matinal ainda mais exigente devido às tuas necessidades, mas Charlotte movia-se metodicamente
- deixando que Amélia andasse por ali à procura dos trabalhos de casa, escovou-te os cabelos prendendo-os em duas tranças, fez ovos mexidos com torradas para o pequeno-almoço e enfiou-te no carro com o andador, uma cadeira de rodas de quinze quilos, uma mesa de apoio e os suportes - para usar durante a fisioterapia. Não podias ir de autocarro - os solavancos podiam causar-te microfracturas - por isso Charlotte levava-te, deixando Amélia no liceu, pelo caminho.
Fui atrás na minha carrinha.
- Qual é o problema? - disse o operador de câmara quando estávamos sozinhos no carro. - Ela é pequena e tem uma deficiência, e depois?
- Também pode fracturar um osso numa travagem - disse eu. Mas uma parte de mim sabia que o operador de câmara tinha razão. Um júri que visse Charlotte atar os sapatos
da filha e prendê-la na cadeirinha do automóvel como uma criança pequena pensaria que a tua vida não era pior do que a de um bebé. Precisávamos de qualquer coisa mais dramática - uma queda, ou melhor ainda, uma fractura.
Meu Deus, que tipo de pessoa seria eu, a desejar que uma criança de seis anos se magoasse?
Na escola, Charlotte tirou o equipamento da carrinha e colocou-o a um canto da sala de aula. Houve uma troca de impressões rápida com a professora e a auxiliar, e Charlotte explicou que lesões estavam a incomodar-te naquele dia. Entretanto, ficaste sentada na cadeira junto aos cacifos enquanto as crianças passavam por ti para pendurarem os casacos e descalçarem as botas. Os cordões dos teus sapatos estavam desapertados e, apesar de tentares debruçar-te para os apertares, os braços curtos não conseguiam abarcar a distância. Uma menina agachou-se para ajudar.
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- Aprendi há pouco a apertar os cordões - disse casualmente, dando um laço. Observaste-a ao afastar-se a saltitar.
- Eu sei apertar os cordões dos sapatos - disseste, mas tinhas uma amargura na voz.
Quando chegou a hora da merenda, a auxiliar teve de levantar-te para lavares as mãos, porque o lavatório era demasiado alto para a cadeira de rodas. Cinco crianças correram para se sentarem ao teu lado, mas tinhas apenas cerca de três minutos para comer porque tinhas de ir à fisioterapia. Fiquei a saber que só naquele dia íamos filmar-te na fisioterapia, osteoterapia, terapia da fala e numa consulta com um especialista em próteses. Fez-me pensar se alguma vez terias tempo para seres apenas uma criança.
- Como acha que está a correr até agora? - perguntou Charlotte enquanto percorríamos o corredor em direcção à sala de fisioterapia, contigo na cadeira de rodas mais a tua auxiliar.
- Acha que vai ser suficiente para um júri?
- Não se preocupe - disse eu. - Essa é a minha função.
A sala de fisioterapia era adjacente ao ginásio. Lá dentro, no chão refulgente, uma professora estava a colocar uma série de bolas em linha. Havia uma parede de vidro através da qual podia ver-se o que estava a acontecer no ginásio. Parecia-me cruel. Isso deveria inspirar uma criança como tu a esforçar-se mais? Ou seria para ficares irremediavelmente deprimida?
Tinhas sessões de fisioterapia duas vezes por semana com a Molly, na escola. Uma vez por semana ias ao consultório dela. Era uma ruiva magrinha com uma voz surpreendentemente
grave.
- Como está a anca?
- Ainda dói - disseste-lhe.
- Dói-te como: "Preferia morrer do que andar, Molly"? Ou só "Au, dói"?
Riste.
- Só au.
- Muito bem. Então mostra-me.
Tirou-te da cadeira e pôs-te de pé no chão. Sustive a respiração nunca te tinha visto andar sem o andador - e começaste a arrastar os pés em pequenos solavancos.
Levantaste o pé direito do chão, arrastavas o esquerdo, até que paraste à beira de um colchão vermelho. Só tinha dois centímetros e meio de espessura, mas demoraste dez segundos a levantar a perna esquerda o suficiente para poderes passar.
Ela lançou uma grande bola vermelha para o meio do colchão.
- Queres começar com isto hoje?
- Sim - disseste, e o teu rosto iluminou-se.
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- Os teus desejos são ordens - disse Molly, e sentou-te em cima da bola. - Mostra-me até onde consegues chegar com a mão esquerda.
Estendeste a mão por cima do corpo, curvando a coluna em S. Mesmo esforçando-te ao máximo, mal conseguias impedir os ombros de ficarem completamente virados para a frente. Nessa posição, os teus olhos ficaram apontados para a janela, onde os teus colegas estavam a jogar entusiasticamente ao mata.
- Quem me dera poder fazer aquilo - disseste.
- Continua a esticar-te, Super Mulher, e pode ser que consigas
- respondeu Molly.
Mas isso não era verdade - mesmo que conseguisses ter flexibilidade suficiente para te esquivares, os teus ossos não aguentariam uma pancada forte.
- Não perdes nada - disse eu. - Detestava jogar ao mata. Era sempre a última a ser escolhida.
- Eu nunca sou escolhida - disseste. "Isso", pensei, "vai ser uma bela declaração." Aparentemente, não era a única a pensar nisso. Charlotte olhou
para a câmara e depois virou-se para a fisioterapeuta, que te dobrara a barriga por cima da bola e balançava-te para trás e para a frente.
- Molly, e se usasse a argola?
- Ia esperar mais uma semana ou duas antes de fazer exercícios com pesos...
- Talvez pudéssemos trabalhar os tecidos moles? Para melhorar o alcance dela?
Pousou-te no chão. As plantas dos pés tocavam uma na outra, numa posição de ioga que eu só conseguia fazer num dia bom. Aproximando-se da parede, Molly soltou o que parecia ser uma argola de ginástica, pendurada do tecto. Ajustou a altura até ficar a pairar por cima da tua cabeça.
- Desta vez é o braço direito - disse ela. Abanaste a cabeça.
- Não quero.
- Experimenta só. Se doer muito, paramos.
Levantaste um pouco mais o braço, até as pontas dos dedos roçarem na argola de borracha.
- Podemos parar agora?
- Vá lá, Willow, sabes que consegues aguentar mais do que isso
- disse Molly. - Agarra nela com os dedos e aperta...
Para conseguires fazer isso, tiveste de levantar ainda mais o braço. Vieram-te lágrimas aos olhos, o que fazia a tua esclerótica
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parecer eléctrica. O operador de câmara fez um zoom no teu rosto, um primeiro plano.
- Au - disseste, e começaste a chorar a sério ao agarrares na argola. - Por favor, Molly... posso parar?
De repente Charlotte já não estava sentada ao meu lado. Tinha corrido para junto de ti, soltado os teus dedos. Aconchegando o braço junto ao teu corpo, embalou-te.
- Está tudo bem, querida - disse numa voz suave. - Desculpa. Desculpa por a Molly te ter obrigado a experimentar.
Ao ouvir isto, Molly olhou bruscamente em seu redor - mas ficou de boca calada quando viu a câmara a filmar.
Charlotte tinha os olhos fechados; talvez também estivesse a chorar. Parecia que estava a intrometer-me em algo muito íntimo. Por isso estendi a mão e coloquei-a
na longa objectiva da câmara, obrigando-a delicadamente a focar o chão.
O operador de câmara desligou-a.
Charlotte ficou sentada de pernas cruzadas contigo aconchegada ao colo. Parecias embrionária, exausta. Vi-a afagar-te os cabelos
e sussurrar-te qualquer coisa ao levantar-se, contigo nos braços. Charlotte virou-se, para poder olhar para nós, mas tu não.
- Filmaram isto? - perguntou ela.
Uma vez vi uma notícia na televisão sobre dois casais cujos bebés recém-nascidos tinham sido trocados por acidente na maternidade. Só alguns anos mais tarde é que ficaram a saber, quando se descobriu que um dos bebés sofria de uma doença hereditária atroz que os pais não tinham nos genes. Localizaram a outra família e as mães tiveram de trocar os filhos. Uma das mães - que por acaso era a que ia receber o seu filho saudável de volta - ficou absolutamente inconsolável.
- Não é a mesma coisa quando está ao meu colo - não parava de soluçar. - Não tem o cheiro do meu menino.
Interroguei-me sobre quanto tempo demoraria para que um bebé se tornasse nosso, para que a familiaridade se instalasse. Talvez fosse o mesmo tempo que um carro novo demorava a perder aquele odor, ou uma casa nova a ganhar pó. Talvez fosse o processo mais vulgarmente descrito como criar laços: o acto de ficarmos a conhecer o nosso filho tão bem como nos conhecemos a nós próprios.
Mas e se um filho nunca chegasse a conhecer os pais assim tão bem?
Como eu, e a minha mãe biológica. Ou tu. Alguma vez te interrogaste por que razão a tua mãe me contratou? Por que razão
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andavas a ser seguida para todo o lado por uma equipa de filmagens? Pensaste, quando regressámos à sala de aula, se a tua mãe te fez chorar de propósito, para que o júri se remexesse nos assentos?
As palavras de Charlotte não paravam de ressoar-me nos ouvidos: "Desculpa por a Molly te ter obrigado a experimentar." Mas Molly não tinha. Charlotte insistira nisso. Tê-lo-ia feito por estar realmente interessada na tua amplitude de movimentos do braço direito depois da última fractura? Ou porque sabia que isso te faria chorar para a câmara?
Não sou mãe; talvez nunca venha a ser. Mas sem dúvida tenho a minha dose de amigas que não suportam as próprias mães - ou foram demasiado ausentes ou demasiado sufocantes; queixavam-se de mais ou reparavam de menos. Em parte, crescer é distanciarmo-nos das nossas mães.
Para mim era diferente. Cresci com um pequeno espaço amortecedor entre mim e a minha mãe adoptiva. Uma vez, em química, aprendi que os objectos nunca chegam realmente a tocar uns nos outros - por causa da repulsão iónica, existe sempre um espaço infinitesimal, por isso, mesmo quando parece que estamos de mão dada ou encostados a alguma coisa, a nível atómico não estamos. Era assim que eu ultimamente me sentia em relação à minha família adoptiva: a olho nu, parecíamos inseparáveis, um grupo feliz. Mas eu sabia que, por muito que me esforçasse, nunca fecharia aquela fenda microscópica.
Talvez fosse normal. Talvez as mães - consciente ou subconscientemente - repelissem as filhas de formas diferentes. Algumas sabiam o que estavam a fazer - como a minha mãe biológica, ao entregar-me a outra família. E outras, como Charlotte, não sabiam. O facto de ela se aproveitar de ti nas filmagens para obter um benefício maior fazia-me odiá-la, odiar este caso. Queria acabar de filmar: queria afastar-me dela o máximo possível antes que fizesse qualquer coisa proibida na minha profissão: dizer-lhe o que pensava realmente dela e daquele processo legal.
Mas foi precisamente quando estava a tentar arranjar uma maneira de terminar aquilo depressa que obtive o que desejava, uma crise. Não foi uma queda, mas sim uma
falha do equipamento: enquanto Charlotte estava a arrumar o teu equipamento depois das aulas, viu que o pneu da cadeira de rodas estava completamente vazio.
- Willow - disse ela, desesperada. - Não reparaste?
- Não tem um sobresselente? - perguntei, interrogando-me se em casa dos O'Keefe haveria algum armário com peças extra para
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cadeiras de rodas e suportes, como havia um repleto de talas, ligaduras, e gesso.
- Não - disse Charlotte - mas na loja de bicicletas talvez haja um _ Agarrou no telemóvel e telefonou a Amélia.
- vou chegar um bocadinho atrasada... Não, não partiu nada. poi a cadeira de rodas.
A loja de bicicletas não tinha um pneu de tamanho vinte e dois em armazém, mas achavam que talvez conseguissem encomendar um até ao final da semana.
- O que significa - explicou Charlotte - que ou gasto o dobro numa loja de artigos médicos em Boston, ou então a Willow vai ficar sem cadeira de rodas para o resto da semana.
Chegámos ao liceu uma hora atrasados. Amélia estava sentada em cima da mochila, de sobrolho franzido.
- Para que saibas - disse ela - amanhã tenho três testes.
- Porque não estudaste enquanto estavas à nossa espera? - perguntaste.
- Pedi-te que desses a tua opinião?
As quatro horas estava exausta. Charlotte estava no computador a tentar encontrar fabricantes de cadeiras de rodas online que fizessem desconto. Amélia estava a escrever cartões de memória com vocabulário de francês. Estavas lá em cima, sentada no chão, com um porquinho mealheiro cor-de-rosa de loiça, no colo.
- Lamento o que aconteceu à tua cadeira - disse eu. Encolheste os ombros.
- Estas coisas estão sempre a acontecer. Da última vez, na loja de bicicletas, tiveram de retirar cabelos das rodas da frente porque pararam de girar.
- Isso é bastante nojento - disse eu.
- Pois... acho que sim.
Instalei-me ao teu lado enquanto o operador de câmara se colocou, discretamente, a um canto do quarto.
- Parece que tens muitos amigos na escola.
- Nem por isso. A maior parte dos miúdos dizem coisas estúpidas. Dizem que tenho muita sorte por poder andar na cadeira de rodas enquanto eles têm de ir a pé até ao ginásio ou até ao parque infantil, ou isso.
- Mas tu não achas que isso é uma sorte.
- Não, porque só é divertido da primeira vez. Não é assim tão divertido se fizermos isso a vida inteira - olhou para mim. - Aqueles miúdos de hoje? Não são meus amigos.
- Todos queriam sentar-se ao teu lado ao lanche...
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- O que eles queriam era aparecer no filme - sacudiste o porco de loiça que tinhas no colo. Tilintou. - Sabia que os porcos a sério pensam, como nós pensamos? E conseguem aprender a fazer habilidades, como os cães, só que aprendem mais depressa.
- Isso é impressionante. Estás a poupar dinheiro para comprares um?
- Não - disseste. - vou dar o dinheiro da mesada à minha mãe para ela poder comprar o pneu para a cadeira de rodas sem se preocupar com o preço. - Tiraste a tampa preta entre as patas do porquinho e um gotejar de moedas de dez e cinco cêntimos, com um dólar ocasional, caíram cá para fora. - Da última vez que contei, tinha sete dólares e dezasseis cêntimos.
- Willow - disse eu devagar. - A tua mãe não pediu que pagasses o pneu.
- Não, mas se não tiver de pagar nenhum dinheiro extra, não vai precisar de ver-se livre de mim.
Fiquei sem palavras.
- Willow - disse eu - sabes que a tua mãe te adora. Olhaste para mim.
- Às vezes as mães dizem e fazem coisas como se não quisessem os filhos... mas quando observamos com mais atenção, percebemos que estão a fazer um favor àquelas crianças. Só estão a tentar dar-lhes uma vida melhor. Percebes?
- Acho que sim - voltaste a virar o mealheiro. Parecia que estava cheio de vidros partidos.
- Posso falar consigo? - disse eu ao entrar no escritório onde Charlotte estava a examinar os resultados de uma busca na Internet.
Deu um salto.
- Desculpe. Eu sei. Não veio cá para filmar-me a navegar na Internet à procura de remendos para pneus de cadeiras de rodas.
Fechei a porta atrás de mim.
- Esqueça a câmara, Charlotte. Estive mesmo agora lá em cima com a Willow, a contar o dinheiro que tinha no mealheiro. Ela quer dar-lho. Está a tentar comprar a sua aceitação em relação a ela.
- Isso é ridículo - disse Charlotte.
- Porquê? A que conclusão chegaria se tivesse seis anos e soubesse que a sua mãe tinha instaurado um processo legal por alguma coisa ter corrido mal quando nasceu?
- A Marin não é a minha advogada? - disse Charlotte. - Não devia estar a ajudar-me em vez de me dizer que sou uma péssima mãe?
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- Estou a tentar ajudá-la. Não sei como hei-de editar um vídeo para o júri a partir destas imagens, para ser sincera. Porque neste momento, se eles as vissem, podiam
ficar com pena da Willow... mas iam odiá-la a si.
De repente, Charlotte perdeu toda a beligerância. Voltou a sentar-se na cadeira onde estava sentada quando entrei no escritório.
- Quando mencionou negligência médica no diagnóstico pré-natal pela primeira vez, senti o mesmo que o Sean. Que era o termo mais repugnante que já ouvira na minha vida. Durante todos estes anos, simplesmente fiz aquilo que precisava de fazer. Sei que as pessoas me viam com a Willow e pensavam, "Coitada daquela menina. Coitada daquela mãe." Mas sabe, nunca vi as coisas dessa maneira. Ela é minha filha e eu tenho de cuidar dela, e pronto - Charlotte olhou para mim. - Depois, a Marin e o Robert Ramirez começaram a falar, a fazerem-me perguntas. E eu pensei, "Há alguém que percebe." Era como se estivesse a viver debaixo da terra e, por um instante, tivesse um vislumbre do céu. Depois de ver isso, como podemos voltar para donde viemos?
Senti as faces arderem. Sabia perfeitamente ao que Charlotte se referia, e não me agradava pensar que tinha alguma coisa em comum com ela. Mas lembrei-me do dia em que fiquei a saber que sou adoptada, quando me apercebi que tinha outra mãe, outro pai algures que nunca chegara a conhecer. Durante anos, mesmo quando não estava sempre a pensar nisso, estava presente, como uma comichão debaixo da pele.
Os advogados são conhecidos por arranjarem casos nos sítios mais inusitados, sobretudo aqueles com potencial para indemnizações gigantescas. Mas eu seria mesmo culpada pela dissolução daquela família? Bob e eu teríamos criado um monstro?
- A minha mãe agora está num lar - disse Charlotte. - Não se lembra de mim, por isso tornei-me na guardiã das memórias. Sou eu que lhe falo da altura em que ela fazia bolinhos de chocolate para toda a turma do décimo segundo ano quando me candidatei para a associação de estudantes, e de como ganhei com uma larga vantagem. Ou de como ela costumava apanhar, comigo, pedaços de vidro erodidos pelo mar, no Verão, e colocá-los num boião junto à minha cama. Quem sabe que recordações terá a Willow para me contar, se chegarmos a esse ponto. Quem sabe se há uma diferença entre ser-se uma mãe responsável e ser-se uma boa mãe.
- Há sim - disse eu, e Charlotte olhou para mim, na expectativa. Apesar de não conseguir articular a diferença enquanto adulta,
em criança, sentira-a. Fiquei a pensar por um instante.
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- Uma mãe responsável é alguém que segue cada passo que o filho dá - disse eu.
- E uma boa mãe? Olhei para Charlotte.
- É alguém que o filho deseja seguir.
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Agentes Interferentes: Uma substância que é acrescentada ao xarope de açúcar para impedir que cristalize.
Todos nós já tivemos um daqueles momentos em que, de repente, tudo começa a encaixar-se... quer queiramos, quer não. Acontece o mesmo quando fazemos doces - há uma
altura em que a mistura começa a transformar-se numa coisa que não era há alguns instantes. Um único cristal de açúcar pode alterar a textura, de macia a granulosa,
e acabamos por obter um rebuçado, se não fizermos nada para impedi-lo. Mas alguns ingredientes adicionados ao xarope de açúcar antes de ferver podem impedir a cristalização.
Os agentes interferentes mais comuns são o xarope de milho, a glicose e o mel; o cremor tártaro, o sumo de limão ou o vinagre.
Se não estamos a impedir que os doces se tornem transparentes como o cristal, mas sim a nossa vida, então o melhor agente interferente é uma mentira bem contada.
PUDIM FLAN CARAMELO
1 chávena de açúcar 0,5 chávena de água
2 colheres de sopa de xarope de milho Um quarto de colher de chá de sumo de limão
PUDIM
1,5 chávenas de leite gordo
1,5 chávenas de natas magras para bater
3 ovos grandes
2 gemas grandes
1,5 chávena de açúcar
1,5 colheres de chá de extracto de baunilha
pitada de sal
Pode fazer-se um pudim flan grande, mas eu gosto de fazer pudins individuais em tacinhas. Para fazer o caramelo, misturar o açúcar, a água, o xarope de milho e o
sumo de limão numa frigideira
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antiaderente (de cor clara, para podermos ver a cor do xarope). Colocar em lume médio-alto, limpando as bordas da frigideira com um pano húmido para ter a certeza
de que não há cristais de açúcar que possam provocar a cristalização. Deixar ferver durante cerca de oito minutos, até o xarope ficar dourado, rodando a frigideira
para ter a certeza de que o processo de caramelização ocorre de maneira uniforme. Continuar a ferver durante mais 4 ou 5 minutos, girando constantemente a frigideira, até grandes bolhas cor de mel se formarem à superfície da mistura. Retirar imediatamente a frigideira do lume e deitar uma porção do caramelo em cada uma das tacinhas de cerca de 150 ml, não untadas, próprias para irem ao forno. Deixar o caramelo arrefecer e endurecer durante cerca de 15 minutos. (As tacinhas podem ser tapadas com película aderente e colocadas no frigorífico até dois dias, mas devem ser colocadas à temperatura ambiente antes da fase seguinte.)
Para fazer o pudim, aquecer o leite e as natas numa frigideira média em lume médio, mexendo ocasionalmente até o termómetro no líquido marcar 70?C. Retirar a mistura
do lume. Entretanto, bater os ovos, as gemas e o açúcar numa tigela grande até estar tudo bem misturado. Verter a mistura morna de leite, baunilha e sal na mistura
dos ovos, batendo sempre até estar misturada mas sem espuma. Passar a mistura por um passador para um grande jarro medidor e reservar.
Ferver dois litros de água. Entretanto, dobrar um pano da loiça para caber no fundo de um tabuleiro grande de forno. Dividir a mistura do pudim pelas tacinhas e colocar no tabuleiro, assegurando-se de que não tocam umas nas outras. Colocar o tabuleiro na grelha central do forno pré-aquecido a 180?C. Encher o tabuleiro com
a água a ferver até chegar a meio das tacinhas e cobrir folgadamente todo o tabuleiro com folha de alumínio, para que o vapor possa sair. Deixar cozer durante 35
a 40 minutos, até poder espetar uma faca no centro da tacinha e esta sair limpa.
Transferir os pudins para uma grelha e deixar arrefecer à temperatura ambiente. Para desenformar, enfiar uma faca entre as bordas de cada pudim, colocar um prato de servir por cima da tacinha, inverter, e abanar delicadamente para soltar o pudim. Servir imediatamente.
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Charlotte
Agosto de 2008
A Convenção Bienal de Osteogénese Imperfeita de 2008 estava a realizar-se em Omaha, num Hilton enorme, com um centro de conferências, uma grande piscina e mais de
570 pessoas parecidas contigo. Quando chegámos à zona de registo, senti-me subitamente como um gigante, e tu viraste-te para mim na cadeira de rodas com um enorme
sorriso no rosto.
- Mãe - disseste - aqui sou normal.
Nunca tínhamos ido a uma conferência. Nunca conseguimos arranjar dinheiro para ir. Mas Sean já não dormia em casa há meses - e, embora não tivesses perguntado porquê, isso devia-se menos ao facto de não teres reparado do que ao facto de não quereres ouvir a resposta. Sinceramente eu também não queria. Sean e eu não usámos a palavra separação, mas o facto de não nomearmos uma coisa não implica que ela não esteja presente. Às vezes dava por mim a pensar no que Sean quereria jantar ou a agarrar no telefone para lhe telefonar para o telemóvel antes de me lembrar de que não devia fazê-lo. O teu rosto iluminava-se quando ele vinha visitar-te; eu queria dar-te mais qualquer coisa que te desse satisfação. Por isso, quando o prospecto desta conferência chegou via email da Fundação de Osteogénese Imperfeita, soube que tinha encontrado a recompensa perfeita.
Agora, ao ver-te olhar para um grupo de raparigas de cadeira de rodas, percebi que devíamos ter feito isto antes. Nem Amélia estava a fazer comentários sarcásticos - apenas a olhar para os pequenos grupos de pessoas de cadeira de rodas, andadores, ou a pé, a cumprimentarem-se umas às outras como familiares que não se viam há muito tempo. Havia raparigas pré-adolescentes algumas parecidas com Amélia, outras de baixa estatura, como tu
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- a tirarem fotografias umas às outras com máquinas fotográficas descartáveis. Rapazes da mesma idade estavam a aterrorizar as escadas rolantes, ensinando uns aos outros como deviam andar para cima e para baixo nelas de cadeira de rodas.
Uma menina de canudos pretos aproximou-se de ti, com os suportes a tilintarem.
- És nova aqui - disse ela. - Como te chamas?
- Willow.
- Eu sou a Niamh. É um nome esquisito porque não tem v mas parece que tem. Tu também tens um nome esquisito - olhou para Amélia. - É a tua irmã? Ela tem OI?
- Não.
- Ah - disse Niamh. - Bem, azar o dela. Os programas mais fixes são para as crianças como nós.
Havia quarenta sessões de esclarecimento ao longo de um fim-de-semana de três dias - um pouco de tudo, desde "Planeamento Financeiro para o Seu Filho com Necessidades Especiais", a "Escrever o Plano Individual de Educação" e "Pergunte a Um Médico". Tinhas os teus próprios eventos no Clube das Crianças - artes, caça ao tesouro, natação, competições de videojogos, como ser mais independente, como melhorar a auto-estima. Não fiquei muito convencida em deixar-te sozinha durante um dia inteiro de actividades, mas estas eram geridas por enfermeiras. Os pré-adolescentes com OI tinham a Noite de Jogos e As Aventuras de Boné Boy e Milk Maid. Até Amélia podia
assistir a palestras especiais para irmãos sem OI.
- Niamh, estás aqui! - uma rapariga adolescente que parecia ter a idade da Amélia aproximou-se com um grupo de crianças atrás. - Não podes fugir assim - disse ela,
agarrando na mão de Niamh. - Quem é a tua amiga?
- A Willow.
A rapariga agachou-se para ficar ao teu nível, na cadeira.
- Que bom conhecer-te, Willow. Estamos ali do outro lado a jogar às cartas se quiseres juntar-te a nós.
- Posso? - perguntaste.
- Se tiveres cuidado. Amélia, podes empurrá-la...
- Eu faço isso - um rapaz avançou e agarrou nos manipules da cadeira. Tinha cabelos loiros cinza que lhe caíam para cima dos olhos e um sorriso capaz de derreter um glaciar - ou a Amélia, para quem estava sempre a olhar. - A menos que também queiras vir?
Amélia, para minha incredulidade, corou.
- Talvez mais tarde - disse ela.
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Embora houvesse no hotel quartos preparados para receberem deficientes não reservámos um. Amélia e eu não desejávamos propriamente ter um duche acessível a cadeiras
de rodas, e só de pensar em usares um assento de duche alugado ficava com arrepios. Podias lavar-te facilmente na banheira e lavar o cabelo debaixo da torneira.
Tínhamos assistido ao discurso de apresentação sobre as mais recentes investigações sobre OI, seguindo-se um jantar informal com buffet - com mesas baixas para que as pessoas de cadeira de rodas ou de muito baixa estatura pudessem ver e servir-se da comida.
- Apaguem as luzes - disse eu, e Amélia escondeu-se debaixo dos cobertores ainda com os auscultadores do iPod nos ouvidos. O ecrã brilhava debaixo dos lençóis. Viraste-te de lado, com o rosto já rodeado de sonhos.
- Adoro isto aqui - disseste. - Quero ficar cá para sempre. Sorri.
- Bem, não ia ser muito divertido depois de todos os teus amigos com OI se terem ido embora para casa.
- Podemos vir outra vez?
- Espero que sim, Wills.
- Da próxima vez, o papá pode vir connosco?
Fiquei a olhar para o despertador digital, um número a transformar-se no número seguinte.
- Espero que sim - repeti.
Foi assim que acabámos por vir à convenção: Uma manhã, quando tu e a Amélia estavam na escola, eu estava a fazer bolos. Nessa altura era o que eu fazia quando vocês não estavam em casa; bater o açúcar com a manteiga, incorporar as claras, ferver o leite, tudo isto tinha um ritmo zen. A cozinha fumegava com os aromas da baunilha e caramelo, canela e anis. Batia glacê real, tendia bases de tarte perfeitas; sovava a massa. Quanto mais mexia as mãos, menos deixava soltos os pensamentos.
Nessa altura, estávamos em Março - Sean abandonara o processo legal há dois meses. Durante duas semanas após a nossa discussão no meio da estrada, deixei as almofadas e a roupa de cama junto à lareira, não fosse ele regressar. Isto era o mais perto que conseguia chegar de um pedido de desculpas. De vez em quando ele vinha a casa
para ver as meninas, mas, quando vinha, sentia-me como se me estivesse a intrometer. Fazia as contas do livro de
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cheques, limpava a casa de banho, enquanto ouvia as vossas gargalhadas lá em baixo.
Era isto que desejava ter coragem para lhe dizer: cometi um erro, mas tu também cometeste. Não estaremos quites?
Às vezes sentia visceralmente falta de Sean. Às vezes ficava zangada com ele. Outras só queria poder fazer o tempo voltar para trás, para poder regressar ao instante em que ele perguntara: "O que achas de umas férias no Disney World?" Mas, na maioria das vezes, perguntava-me porque a cabeça é tão rápida a mudar enquanto o coração é tão lento. Mesmo quando me sentia segura e confiante, mesmo quando começava a pensar que vocês e eu íamos ficar bem sozinhas, ainda o amava. Parecia algo permanente que tinha desaparecido mas de que se sentia a falta: um dente arrancado, uma perna amputada. Sabemos que não está lá, mas a língua está sempre a tocar no buraco na gengiva e o membro fantasma continua a doer.
Por isso, todas as manhãs, fazia bolos para esquecer, até as janelas estarem embaciadas e o simples facto de respirar fazia parecer que estava sentada à mesa mais requintada. Fazia bolos até as mãos ficarem vermelhas e em carne viva e ter as unhas cobertas de farinha. Fazia bolos até deixar de pensar por que razão um processo legal avançava assim tão lentamente. Fazia bolos até deixar de pensar de onde viria o dinheiro para pagar a próxima prestação do empréstimo da casa. Fazia bolos até estar tanto calor na cozinha que usava só um top de alças e uns calções de corrida debaixo do avental, até me imaginar debaixo da cúpula dourada de uma tarte que eu própria fizera, pensando se Sean a quebraria antes de eu sufocar.
Foi por isso que fiquei estupefacta quando a campainha da porta tocou a meio de uma série de beignets. Não estava à espera de ninguém - já não havia nada a esperar, ponto final. Estava um desconhecido no alpendre, fazendo-me ainda estar mais consciente do facto de estar meio despida e de ter os cabelos embranquecidos com açúcar de pasteleiro.
- A senhora é a Sr.a Syllabub? - perguntou o homem.
Era baixo e obeso, com um duplo queixo e uma curva a condizer nas entradas profundas. Tinha um saco de plástico na mão cheio das minhas bolachas de manteiga, atado com uma fita verde.
- É só um nome - disse eu. - Mas não é o meu.
- Mas... - olhou para a minha figura. - A senhora é que é a pasteleira?
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- Sim - respondi. - Sou a pasteleira. Não a caçadora de fortunas, não a cabra, nem sequer a mãe. Algo separado, à parte, uma identidade tão clara e refulgente como
aço inoxidável. Estendi a mão. - Charlotte O'Keefe.
Colocou firmemente os pés em cima do capacho.
- Gostava de comprar os seus bolos.
- Oh, não precisava de vir aqui para comprá-los - disse eu. Basta deixar alguns dólares na caixa.
- Não, não está a perceber. Quero comprá-los todos - estendeu-me um cartão, daqueles com letras em relevo. - Chamo-me Henry DeVille. Sou gerente de uma cadeia de lojas de conveniência Gas-n-Get, no New Hampshire, e gostava de vender lá os seus produtos de pastelaria. - Corou. - Sobretudo porque não consigo parar de comê-los.
- A sério? - disse eu, com um sorriso vagaroso no rosto.
- Uma vez, no mês passado, fui visitar a minha irmã... ela vive duas ruas acima da sua, mas perdi-me e estava esfomeado. E desde essa altura já fiz oito viagens de duas horas só para comprar o que estivesse a vender num determinado dia. Posso não ser o melhor avaliador de negócios, mas sou doutorado no que toca a uma boa sobremesa.
Demorei uma semana a aceitar. Não tinha tempo nem disposição para andar de carro por todo o New Hampshire a entregar queques de manhã; não sabia que quantidade podia prometer. Por cada entrave que colocava, Henry arranjava uma solução, e passado uma semana tinha entregado a minuta de um contrato a Marin que foi bastante amável ao convencer-me aceitar. Para comemorar, fiz um bolo de café com amêndoas e amoras. Ele sentou-se à mesa da minha cozinha a beber café e a comer o bolo com uma mulher de negócios recém-criada.
- Já tentei identificar - disse pensativamente, observando-me a assinar o contrato. - Há qualquer coisa nos seus bolos que não se parece com nada do que já provei. É realmente viciante.
Sorri-lhe o melhor que consegui e empurrei o papel por cima da mesa antes que ele mudasse de ideias. Porque Henry DeVille tinha razão - havia um ingrediente nos meus bolos mais concentrado do que qualquer extracto, mais pungente do que qualquer especiaria; um ingrediente que qualquer pessoa reconheceria e ninguém era capaz de nomear: era mágoa, e surgia quando menos esperávamos.
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Na manhã seguinte, fazendo parte da campanha Sempre em Forma que pautava o festival naquele ano, tu e eu dirigimo-nos para a passadeira de exercício onde os participantes podiam andar de cadeira de rodas ou caminhar quatrocentos ou oitocentos metros. Quando terminaste, segurando um certificado junto ao peito, tomámos um pequeno-almoço
rápido antes das pequenas sessões de grupo diárias. Amélia estava a dormir, mas eu queria assistir a uma sessão sobre imagem corporal de meninas com OI.
Assim que voltaste à Zona Infantil - reparei que a enfermeira que te cumprimentou, levantando a mão e batendo na tua, conseguiu fazer-te levantar o braço direito mais do que qualquer fisioterapeuta durante os quatro meses anteriores - dirigi-me para a casa de banho para lavar as mãos antes de começar a sessão. Tal como tudo o resto no hotel, as casas de banho eram acessíveis a pessoas com OI: a porta exterior estava aberta para acesso fácil; havia uma mesa baixa com sabonetes e toalhas extra.
Quando abri a torneira, entrou outra mulher com um copo de leite - serviam-no de acordo com o tema geral de manter-se saudável; o problema da OI é uma deficiência no colagénio, e não no cálcio.
- Adoro isto - disse ela, a sorrir. - Deve ser a única conferência em que servem leite entre as sessões em vez de café e sumo.
- Deve ser mais barato do que shots de pamidronato - disse eu, e ela riu.
- Acho que ainda não fomos apresentadas. Eu sou a Kelly Clough, a mãe do David, Tipo V.
- Willow, Tipo III. Sou a Charlotte O'Keefe.
- A Willow está a divertir-se?
- A Willow está no paraíso - disse eu. - Mal pode esperar para ir ao jardim zoológico hoje à noite. - O Jardim Zoológico Henry Doorly ia abrir as suas instalações
fora de horas para os participantes da convenção, naquela noite; durante o pequeno-almoço, fizeste uma lista dos animais que querias ver.
- Para o David o mais importante é a natação - ela olhou para mim no espelho. - Há qualquer coisa em si que me é bastante familiar.
- Bem, nunca estive numa convenção antes - disse.
- Não, o seu nome...
Ouviu-se um autoclismo e, passado um momento, uma mulher da nossa idade saiu de uma das casas de banho. Colocou o andador em frente do lavatório acessível a pessoas com deficiência e abriu a torneira.
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- Costuma ler o blog do Tiny Tim? - perguntou.
- Claro - disse Kelly. - Quem não o lê? Bem. Eu, por exemplo.
- É ela que está a processar por negligência médica no diagnóstico pré-natal - a mulher virou-se, limpando as mãos à toalha antes de olhar para mim. - Acho repugnante,
sinceramente. E ainda acho mais repugnante que esteja aqui. Não pode tomar partido dos dois lados. Não pode processar porque acha que uma vida com OI não vale a
pena ser vivida e depois vir aqui e dizer que a sua filha está muito entusiasmada por estar com outras crianças como ela e que é óptimo irem ao jardim zoológico.
Kelly dera um passo atrás.
- É a senhora?
- Não queria...
- Nem acredito que alguma mãe pense assim - disse Kelly. Todas nós temos de contar os tostões das nossas contas bancárias para que as coisas funcionem. Mas eu nunca,
nunca desejaria não ter tido o meu filho.
Senti-me tremer incontrolavelmente. Queria ser uma mãe, como Kelly, que encarava naturalmente a incapacidade do filho. Queria que crescesses, como aquela outra
mulher, directa e confiante. Mas também queria ter os recursos para que pudesses fazê-lo.
- Sabe o que estive a fazer nos últimos seis meses? - disse a mulher com OI. - A treinar para os Paraolímpicos. Estou na equipa de natação. Se um dia a sua filha
regressasse a casa com uma medalha de ouro, ficaria convencida de que a vida dela não é um desperdício?
- Não está a perceber...
- Por acaso - disse Kelly - a senhora é que não está.
Deu meia volta, saindo da casa de banho com a outra mulher atrás. Abri a torneira no máximo e passei o rosto, que parecia estar a arder, por água. Depois, com o coração ainda aos saltos, dirigi-me para o corredor.
As sessões das nove horas estavam a encher-se de pessoas. Tinha sido desmascarada; sentia as picadas de centenas de olhos fixos em mim e cada sussurro trazia o meu
nome. Mantive os olhos fixos no padrão da alcatifa ao passar por um aglomerado de rapazes a lutarem e por um bebé a ser transportado por uma rapariga com OI não
muito maior do que ele. Cem passos até chegar aos elevadores... cinquenta... vinte.
As portas do elevador abriram-se e eu esgueirei-me lá para dentro e carreguei num botão. Quando as portas estavam quase a
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fechar-se, uma muleta meteu-se entre elas. O homem que nos inscrevera no dia anterior estava de pé, à porta, mas em vez de sorrir para dar-me as boas vindas, como fizera há doze horas, os olhos dele estavam escuros como breu.
- Para que saiba: não é a minha incapacidade que torna a minha vida numa luta constante - disse ele. - São as pessoas como a senhora. - Depois, com um ruído metálico, recuou e deixou as portas do elevador fecharem-se.
Fui para o quarto e enfiei o cartão na porta, lembrando-me de que Amélia estaria provavelmente ainda a dormir. Mas, graças a Deus, não estava lá, estava lá em baixo a tomar o pequeno-almoço, ou em parte incerta, e naquele preciso momento não queria saber. Deitei-me na cama e tapei a cabeça com os cobertores. Depois, finalmente, comecei a chorar.
Era pior do que ser julgada pelos meus pares. Estava a ser julgada pelos teus pares.
Era, pura e simplesmente, uma desgraçada. O meu marido deixara-me; as minhas capacidades enquanto mãe foram distorcidas para incluir o sistema legal americano. Chorei até ter os olhos inchados e as faces doridas. Chorei até não restar mais nada dentro de mim. Depois sentei-me e dirigi-me para a pequena secretária junto à janela.
Tinha um telefone, um mata-borrão e um bloco com os serviços disponibilizados pelo hotel. Lá dentro estavam dois postais e duas folhas brancas para faxes. Tirei-as cá para fora e agarrei na caneta que estava ao lado do telefone.
"Sean", escrevi. "Sinto a tua falta."
Até ele ter saído de casa, Sean e eu nunca tínhamos estado longe um do outro, a menos que contemos com a semana antes do casamento. Apesar de ele se ter mudado para a casa onde eu e Amélia vivíamos, eu quis criar pelo menos um pouco de emoção. Nos dias anteriores à cerimónia, passou a dormir no sofá em casa de outro agente da polícia. Detestou. Via-o passar no carro da polícia enquanto estava a trabalhar no restaurante e esgueirávamo-nos para a câmara frigorífica na cozinha para nos beijarmos intensamente. Ou então ele ia lá a casa para aconchegar Amélia à noite e depois fingia adormecer no sofá a ver televisão. "Não me enganas", disse-lhe. "Não vai resultar." Na cerimónia, Sean surpreendeu-me com votos que ele próprio escrevera: "Ofereço-te o meu coração e a minha alma", dissera. "vou proteger-te e servir-te. vou dar-te uma casa e nunca mais vou deixar que me expulses de lá." Toda a gente riu, incluindo eu - imagine-se, a pequena
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tímida Charlotte a ser a sedutora tórrida com tanto poder sobre um homem! Mas Sean fazia-me sentir como se fosse capaz de derrotar um gigante com uma só palavra
ou toque suave. Fazia-me sentir poderosa e era uma faceta que eu nunca imaginara ter.
Algures, nas profundezas da mente - os recessos onde a esperança fica presa - acreditava que o que quer que estivesse errado entre mim e Sean, era reparável. Tinha de ser, porque quando amamos alguém - quando temos um filho dessa pessoa - não perdemos subitamente essa ligação. Tal como qualquer outra energia, não pode ser destruída, apenas canalizada para qualquer outra coisa. E talvez naquele momento eu tivesse virado toda a minha atenção para ti. Mas isso era normal; os níveis de amor no seio de uma família estavam sempre a alterar-se e a fluir. Na próxima semana, podia ser Amélia; no mês seguinte, Sean. Assim que o processo legal estivesse encerrado, ele voltaria para casa. Tudo voltaria a ser como dantes.
Tinha de ser assim, porque não conseguia encarar a alternativa: que seria obrigada a escolher entre o teu futuro e o meu.
A segunda carta que tive de escrever era mais difícil. "Querida Willow", escrevi.
"Não sei quando lerás esta carta ou o que terá acontecido nessa altura. Mas tenho de escrevê-la porque, acima de tudo, devo-te uma explicação. És a coisa mais maravilhosa que já me aconteceu, e a mais dolorosa. Não por causa da tua doença, mas por eu não poder curá-la, e detesto assistir àqueles momentos em que te apercebes de que não podes fazer o que as outras crianças fazem.
Adoro-te e vou adorar-te para sempre. Talvez mais do que devia. É a única explicação que posso dar para tudo isto. Achei que, se te amasse o bastante, seria capaz de mover montanhas por ti; podia fazer-te voar. Para mim não interessava como isso se tornaria realidade - desde que acontecesse. Não estava a pensar em quem podia magoar, apenas em quem seria capaz de salvar.
Da primeira vez que fizeste uma fractura, nos meus braços, não consegui parar de chorar. Acho que passei todos estes anos a compensar-te por esse momento. É por isso que agora não consigo parar, embora haja alturas em que queira. Não consigo parar, mas não há um só instante em que não me preocupe com aquilo de que te lembrarás a longo prazo. Serão as discussões que tive com o teu pai? A forma como a tua irmã
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se transformou em alguém que não reconhecemos? Ou vais lembrar-te de como tu e eu uma vez passámos uma hora a observar um caracol a atravessar o alpendre? Ou como eu cortava as sandes para o teu almoço com a forma das tuas iniciais? Vais lembrar-te de como, quando te embrulhava na toalha depois do banho, te segurava nos braços um pouco mais do que era preciso para te secar?
Sempre sonhei contigo a viver sozinha. Vejo-te como médica e interrogo-me se será por te ter visto com tantos. Imagino um homem que te ame desmedidamente, talvez até com um bebé. Aposto que lutarás por ele tão ferozmente como eu tentei lutar por ti.
No entanto, nunca consegui descobrir como lá chegarias
- até me terem dado os materiais para construir uma ponte. Soube demasiado tarde que a ponte era feita de espinhos, que podia não ser suficientemente forte para aguentar com todos nós.
No que toca a recordações, as boas e as más nunca se equilibram. Não sei bem como acabei por mediar a tua vida pelos momentos em que tudo estava num caos - cirurgias, fracturas, emergências - em vez de pelos momentos entre elas. Talvez seja pessimista, talvez seja realista. Ou talvez seja apenas mãe.
Vais ouvir as pessoas dizerem coisas sobre mim. Algumas são mentira, outras, verdade. Há apenas um facto importante: não quero que voltes a sofrer outra fractura.
Sobretudo uma entre ti e mim, porque essa pode nunca mais vir a sarar devidamente."
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Sean
Estava a gastar desmesuradamente.
Não só andava a esticar o ordenado para pagar as prestações da casa e do carro, e os juros do cartão de crédito, como agora gastava todo o dinheiro que conseguira
poupar, pagando quarenta e nove dólares por noite no motel Sleep Inn onde vivia desde que Charlotte viera ter comigo às obras na estrada para me pôr fora de casa.
Foi por isso que, quando Charlotte me disse numa sexta-feira que ia levar as meninas a uma convenção de OI durante o fim-de-semana, saí do Sleep Inn e voltei para
casa.
É esquisito voltar para casa como um estranho. Sabem, é como quando entramos em casa de alguém e cheira, às vezes a roupa lavada, às vezes a pinheiros, mas o cheiro
é diferente de umas casas para as outras. Não reparamos quando lá vivemos, até estarmos ausentes durante algum tempo. Na primeira noite, andei pela casa a absorver
tudo o que me era familiar; o poste do corrimão que ainda estava mal encaixado porque nunca cheguei a arranjá-lo; a manada de peluches em cima da tua cama; a bola
de basebol que tinha apanhado numa viagem a Fenway, com um grupo de polícias, nos anos 90, um lançamento do tom Burnasky para o meio campo, num jogo que colocou os Sox em primeiro lugar, acima de Toronto, naquela época.
Também entrei no meu quarto e sentei-me na cama, no lado de Charlotte. Naquela noite, dormi na almofada dela.
Na manhã seguinte, enquanto arrumava os meus artigos de toilette, interroguei-me se Charlotte, ao lavar o rosto, conseguiria sentir o meu aroma nas toalhas. Se repararia que eu acabei com o pão e a carne assada. Se se importaria.
Era o meu dia de folga, e eu sabia o que tinha de fazer.
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A igreja estava tranquila àquela hora, numa manhã de sábado. Sentei-me num banco a olhar para uma janela de vitral que projectava longos dedos azuis pela nave da igreja.
"Perdoa-me, Charlotte, porque pequei."
O padre Grady, que estava junto ao altar, reparou em mim.
- Sean - disse ele. - A Willow está bem?
Provavelmente pensou que a única vez em que eu poria voluntariamente os pés na igreja seria para rezar pela saúde débil da minha filha.
- Ela está bem, padre. Por acaso, estava a pensar em falar consigo por um minuto.
- Claro - sentou-se no banco à minha frente, virado de lado.
- É sobre a Charlotte - disse devagar. - Estamos a ter dificuldades em pensar da mesma maneira.
- Tenho muito gosto em falar com os dois - disse o padre.
- Já se passaram meses. Acho que já passámos essa fase.
- Espero que não esteja a falar de divórcio, Sean. Para a Igreja Católica não existe divórcio. É um pecado mortal. Foi Deus que celebrou o vosso casamento e não um pedaço de papel. Sorriu-me. - As coisas que parecem impossíveis, de repente tornam-se muito melhores, quando deixamos Deus entrar na nossa vida.
- Deus deve fazer excepções de vez em quando.
- Nem pensar. Se fizesse, as pessoas casavam-se a pensar que havia uma saída quando as coisas se tornassem mais difíceis.
- A minha mulher - disse secamente - pensa em jurar sobre a Bíblia diante de um tribunal e dizer que desejava ter abortado a Willow. Acha que Deus quer que eu esteja casado com uma pessoa assim?
- Sim - disse o padre imediatamente. - O principal objectivo do casamento, depois dos filhos, é apoiar e ajudar o cônjuge. Talvez seja o Sean a fazer a Charlotte ver que está errada.
- Já tentei. Não consigo.
- Um sacramento, como o casamento, implica viver uma vida melhor do que sob os nossos instintos naturais, tendo Deus como modelo. E Deus nunca desiste.
Isso não era inteiramente verdade, pensei para comigo. Havia muitas passagens da Bíblia em que Deus recuou para um canto e, em vez de aguentar, simplesmente começou de novo. Reparem no Dilúvio, em Sodoma e Gomorra.
- Jesus não largou a Cruz - disse o padre Grady. - Carregou-a até ao cimo do monte.
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Bem, num aspecto o padre tinha razão. Se permanecesse neste casamento, ou Charlotte ou eu acabaríamos por ser crucificados.
- E se o Sean e a Charlotte viessem falar comigo os dois na próxima semana? - disse o padre Grady. - Podíamos resolver isto.
Acenei com a cabeça, e ele deu-me uma palmadinha na mão e voltou para junto do altar.
Mentir a um padre também era pecado, mas essa era a menor das minhas preocupações.
O gabinete de Adina Nettle era completamente diferente do de Guy Booker, embora aparentemente tivessem ambos sido colegas na faculdade de Direito. Guy dissera que Adina era a pessoa com quem deveríamos falar se quiséssemos divorciar-nos. Ele próprio já recorrera aos serviços dela duas vezes.
Tinha sofás muito estofados com aquelas coisas de renda, que pareciam decorações do Dia dos Namorados, por cima das costas. Serviu chá, mas café não. E parecia uma avozinha.
Talvez fosse por isso que conseguia aquilo que queria nos acordos judiciais.
- Não tem frio, Sean? Posso baixar o ar condicionado...
- Estou bem - disse eu. Ao longo da última meia hora, tinha bebido três chávenas de Earl Grey e falado a Adina sobre a minha família. - Andamos para trás e para a frente, em diferentes hospitais, consoante o problema - disse eu. - Omaha, para ortopedia, Boston, para o pamidronato. Hospitais regionais para a maioria das fracturas.
- Deve ser muito difícil não saber o que vai acontecer.
- Ninguém sabe o que vai acontecer - disse eu num tom grave.
- Só que nós temos mais emergências do que a maioria das pessoas.
- Então a sua mulher não deve poder trabalhar - disse Adina.
- Não. Andamos a contar os tostões até chegar ao fim do mês desde que a Willow nasceu - hesitei. - E não posso dizer que seja mais fácil, comigo a viver num motel.
Adina escreveu qualquer coisa no bloco de notas.
- Sean, o divórcio é devastador a nível financeiro para a maioria das pessoas, e ainda mais para si, porque o Sean e a Charlotte estão a viver com dificuldades. Para além disso tem o problema da doença da sua filha. E aqui também há um estranho paradoxo: se quiser a custódia, isso implica que tenha de trabalhar menos, ganhando ainda menos dinheiro. Quando não estiver a trabalhar, as suas filhas estarão consigo. Já não terá tempos livres.
- Isso não importa - disse eu.
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Adina acenou com a cabeça.
- A Charlotte tem habilitações?
- Antigamente era chefe de pastelaria - disse eu. - Já não trabalha desde que a Willow nasceu, mas no Inverno passado começou a vender numa pequena banca à porta de casa.
- Uma banca?
- Como uma banca de vegetais. Mas a vender queques.
- Se reduzir o horário de trabalho para estar com as suas filhas, vai conseguir manter a casa? Ou terá de ser vendida para que possam ter duas casas mais pequenas?
- Eu... não sei - as nossas poupanças foram todas pelo cano abaixo, isso era evidente.
- com base no que me disse, com todo aquele equipamento adaptativo da Willow e os horários dela, parece-me que mantê-la num só local seria mais fácil para toda a
gente... e mesmo no que diz respeito às visitas... - Adina olhou para mim. - Existe uma outra opção. Podia ficar a viver em casa até o divórcio estar terminado.
- Não seria... um pouco desconfortável?
- Sim. Mas também é mais barato, e é por isso que a maioria dos casais em processo de divórcio escolhe fazê-lo. E é mais fácil para as crianças.
- Não compreendo...
- É muito simples. Estabelecemos um plano a ser acordado, para que esteja em casa quando a sua mulher não estiver e vice-versa. Dessa forma, cada um de vocês pode passar algum tempo com as meninas enquanto o divórcio estiver a decorrer, e as despesas da casa não serão maiores do que agora.
Olhei para o chão. Não sabia se conseguia ser assim tão generoso. Não sabia se conseguiria suportar ver Charlotte embrenhada neste processo legal sem ter vontade de matá-la pelas coisas que diria. Mas por outro lado, ficaria mesmo ali, bem perto, se precisasses de alguém que te abraçasse a meio da noite. Se precisasses de alguém que te dissesse que o mundo não seria nem por sombras tão luminoso sem ti.
- Só há um problema - disse Adina. - Não é vulgar no New Hampshire que um pai obtenha a custódia de uma criança, sobretudo quando a criança tem necessidades especiais e a mãe ficou em casa para tomar conta dela a vida toda. Por isso, como vai convencer um júri de que ficar consigo é o melhor para a criança?
Olhei a advogada nos olhos.
- Não fui eu que iniciei um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal.
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Depois de ter saído do escritório de advogados, o mundo parecia diferente. A estrada estava demasiado nítida, as cores demasiado intensas. Era como comprar uns óculos
com graduação a mais, e dei por mim a movimentar-me com mais cuidado.
Num sinal vermelho, olhei pela janela e vi uma mulher jovem atravessar a rua com um copo de café na mão. Ela olhou para mim e sorriu. No passado, teria desviado o olhar, envergonhado: mas e agora? Podia retribuir-lhe o sorriso, olhar, reconhecer a presença de outras mulheres, depois de ter dado o primeiro passo para terminar o casamento?
Tinha duas horas antes de o meu turno começar, e dirigi-me para Aubuchon Hardware. A ironia não me passou despercebida - ia fazer compras na Meca das remodelações
caseiras, apesar de nem sequer ter casa na altura. Mas, ao passar o fim-de-semana em casa, tinha reparado que a rampa que construíra para a tua cadeira de rodas
há três anos estava a apodrecer num sítio onde caiu água na Primavera. O meu plano era construir-te uma nova naquele dia, para que pudesses vê-la quando regressasses
da conferência.
Pelos meus cálculos precisava de três ou quatro placas de madeira prensada de dois centímetros de espessura, mais uma faixa de alcatifa para exteriores e interiores,
para dar tracção debaixo dos pneus da cadeira de rodas. Dirigi-me ao balcão para tentar calcular os custos.
- Está a falar em 34,10 dólares por placa - disse o empregado, e eu dei por mim a recuar ao fazer as contas. Se só a madeira custaria mais de cem dólares, teria
de fazer mais horas extra, e nem sequer estava a contar com os custos da alcatifa. Quanto mais horas trabalhasse, menos tempo teria para estar convosco. Quanto mais dinheiro gastasse na rampa, menos teria para passar outra noite no motel.
- Sean?
Piper Reece estava a um metro de distância.
- O que estás aqui a fazer? - perguntou, mas antes que eu pudesse responder, ela estendeu as mãos, revelando uma embalagem de cabos eléctricos e uma tomada GFCI. - vou substituir uma. Ultimamente tenho feito muitos trabalhos em casa, mas é a primeira vez que mexo na electricidade - riu nervosamente. Estou sempre a ver o título nos jornais: "Mulher Encontrada Electrocutada na Sua Própria Casa. A bancada da cozinha não estava limpa na hora da morte." Deve ser fácil, não deve? Por
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exemplo, a probabilidade de ser electrocutada quando se está a fazer bricolagem deve ser quase tão grande como a probabilidade de termos um acidente de viação a
caminho da loja de materiais de construção, não é?
Abanou a cabeça e corou.
- Estou a dizer disparates.
"Tenho de ir embora." As palavras estavam na minha boca, macias e redondas como caroços de cereja, mas o que saiu foi:
- Posso ajudar-te.
Estúpido, estúpido, estúpido idiota. Era isso que não parava de dizer para comigo mesmo depois de ter colocado três placas de madeira prensada e alcatifa no carro
e me dirigir à casa de Piper Reece. Não havia uma explicação concreta para eu não ter simplesmente virado costas, afastando-me dela, a não ser isto: em todos estes
anos que conheço a Piper, sempre a vi confiante e segura - ao ponto de ser demasiado perspicaz, demasiado arrogante. Mas naquele dia estava muito perturbada.
Gostava mais dela assim.
Sabia o caminho para casa dela, claro. Quando virei para a rua dela, tive uma ligeira sensação de pânico: Rob estaria em casa? Acho que não conseguiria lidar com
os dois ao mesmo tempo. Mas o carro dele não estava lá, e quando desliguei o motor, respirei fundo. "Cinco minutos" disse para comigo. "Instalar a maldita tomada
GFCI e sair dali."
Piper estava à espera à porta.
- Foste realmente muito simpático - disse ela quando eu entrei.
O corredor nem sempre fora daquela cor. E quando comecei a percorrê-lo, vi que a cozinha tinha sido remodelada.
- Fizeste algumas obras aqui.
- Por acaso, fui eu mesma que as fiz - admitiu Piper. - Ultimamente tenho tido muito mais tempo.
Um silêncio incómodo abateu-se sobre nós como uma mortalha.
- Bem. Parece tudo completamente diferente. Ela ficou a olhar para mim.
- Está tudo completamente diferente.
Enfiei as mãos nos bolsos das calças de ganga.
- Então, a primeira coisa que tens de fazer é desligar o quadro - disse eu. - Suponho que esteja na cave?
Levou-me lá abaixo e desliguei o disjuntor. Depois dirigi-me para a cozinha.
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- Qual delas é? - perguntei, e Piper apontou.
- Sean? Como vão as coisas?
Fingi deliberadamente que ouvi mal.
- Estou a retirar a que está avariada - disse. - Olha, é fácil, depois de termos desaparafusado. E depois tens de tirar todos os fios brancos e entrançá-los numa
destas pequenas tampas. Depois, tiras a tomada GFCI nova e usas a chave de fendas para ligar a trança aqui: vês onde diz "linha branca"?
Piper aproximou-se mais. Cheirava a café e a remorso.
- Sim.
- Faz o mesmo com os fios pretos e liga-os ao terminal que diz "ligação à corrente." E finalmente, ligas o fio de terra ao parafuso verde e metes tudo dentro da
caixa. - com a chave de fendas, voltei a aparafusar a tampa e virei-me para ela. - É simples.
- Nada é simples - disse ela, e ficou a olhar para mim. - Mas tu sabes. Como, por exemplo, passar para o lado negro.
Pousei a chave de fendas delicadamente.
- Tudo é o lado negro, Piper.
- Mesmo assim. Acho que devo agradecer-te. Encolhi os ombros, desviando o olhar.
- Lamento muito que tudo isto te tenha acontecido.
- E eu lamento muito que te tenha acontecido isto - respondeu Piper.
Pigarreei, recuando um passo.
- Talvez queiras ir lá abaixo ligar o quadro, para podermos testar a tomada.
- Deixa estar - disse Piper, e sorriu-me timidamente. - Acho que vai resultar.
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Amélia
Muito bem, deixa-me dizer-te que não é fácil guardar um segredo no meio de tanta gente. Em minha casa já era suficientemente mau, mas já reparaste em como as paredes
de uma casa de banho de hotel são finas? Quero dizer, ouve-se tudo - o que significava que quando precisava de vomitar, tinha de ir às grandes casas de banho públicas
na recepção e tinha de ficar sentada numa delas até conseguir espreitar para a esquerda e para a direita sem ver mais nenhum par de sapatos.
Depois de ter acordado naquela manhã e ter encontrado um bilhete da mãe, fui lá para baixo para comer e depois fui ter contigo ao espaço infantil.
- Amélia - disseste ao ver-me. - Não são fixes? - Estavas a apontar para umas barrinhas coloridas que algumas das crianças tinham colocado nas rodas das cadeiras. Faziam um tilintar irritante ao empurrar; o que, para ser sincera, acabava por fartar bastante depressa, mas - para ser justa eram bastante impressionantes quando brilhavam no escuro.
Quase conseguia ver-te fixar alguns pormenores enquanto observavas as outras crianças com OI. Quem tinha a cadeira de rodas de que cor; quem colava autocolantes
nos andadores, que raparigas conseguiam andar e quais delas tinham de usar uma cadeira de rodas, que crianças conseguiam comer sozinhas e quais delas precisavam de ajuda para se alimentarem. Estavas a enquadrar-te naquela mistura, a encontrar o teu lugar e a calcular o teu grau de independência por comparação.
- Então o que está marcado para hoje de manhã? - perguntei. E onde está a mãe?
- Não sei... acho que deve estar numa das outras reuniões - disseste, e depois mostraste-me um grande sorriso. - Nós vamos nadar. Já vesti o meu fato-de-banho.
- Isso parece ser divertido...
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- Não podes vir; Amélia. É para pessoas como eu.
Sei que não tinhas intenção de parecer assim tão presunçosa, mas mesmo assim fiquei magoada por ser excluída. Quero dizer, quem mais restava para me ignorar? Primeiro
a mãe, depois a Emma, agora até a minha irmãzinha incapacitada estava a rejeitar-me.
- Bem, também não estava a fazer-me convidada - disse eu, ofendida.
- De qualquer modo tenho de ir a um sítio. - Mas fiquei a observar-te a juntares-te ao grupo na tua cadeira de rodas, enquanto uma das enfermeiras chamava o primeiro
grupo de crianças para se dirigirem à piscina. Estavas a rir, aos segredinhos com uma rapariga que tinha um autocolante nas costas da cadeira de rodas: EX-ALUNA
DE HOGWARTS.
Saí do espaço infantil e dirigi-me para o corredor principal das salas de conferências. Não fazia ideia a que apresentação a minha mãe estaria a pensar em assistir,
mas, antes que pudesse sequer pensar nisso, um dos letreiros junto a uma das portas chamou-me a atenção: SÓ PARA ADOLESCENTES. Espreitei lá para dentro e vi um grupo
de jovens da minha idade com OI - alguns de cadeira de rodas, outros de pé - a atirarem balões pelo ar
Só que não eram balões. Eram preservativos.
- Vamos começar - disse a mulher lá à frente. - Querida, podes fechar a porta?
Apercebi-me de que estava a falar comigo. Não devia estar ali - havia programas especiais para os irmãos como eu que não sofriam de OI. Mas por outro lado, olhando
em volta, vi que havia bastantes jovens que não estavam tão mal como tu - talvez ninguém percebesse que os meus ossos estavam perfeitamente bem.
Depois reparei no rapaz do dia anterior- aquele que tinha vindo buscar aquela menina, a Niamh, quando ainda estávamos a inscrever-nos. Parecia o tipo de rapaz que
tocava guitarra e fazia músicas sobre a rapariga que amava. Sempre achei que seria maravilhoso que um rapaz cantasse para mim; embora que raio acharia ele de interessante
em mim para escrever uma canção? "Amélia, Amélia... Take off your shirt and let me feel ya"19?
Entrei na sala e fechei a porta atrás de mim. O rapaz sorriu e eu fiquei com as pernas dormentes.
Sentei-me num banco ao lado dele e fingi que era demasiado desligada para reparar que ele estava tão perto que sentia o calor do seu corpo.
- Bem-vindos - disse a mulher lá à frente. - Sou a Sarah, e se não estão aqui para ouvir falar de Cegonhas e de Fracturas, estão no sítio errado. Senhoras e senhores,
hoje vamos falar sobre sexo, sexo e apenas de sexo.
19. Amélia, Amélia... tira a camisola e deixa-me toca-te. (N. da T.)
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Ouviu-se um riso nervoso; as pontas das minhas orelhas começaram a arder
- Não há nada como pôr as mãos na massa - disse o rapaz ao meu lado, e depois sorriu. - Ups. Foi uma metáfora infeliz.
Olhei em volta, mas era bastante evidente que estava a falar comigo.
- Muito infeliz - sussurrei.
- Sou o Adam - disse ele, e eu fiquei paralisada. -Tens nome, não tens? Bem, sim, mas se lhe dissesse, ele podia ficar a saber que não devia
estar ali.
- Willow.
Meu Deus, outra vez aquele sorriso.
- É um nome mesmo bonito - disse ele. - Condiz contigo.
Olhei para a mesa e corei violentamente. Era uma palestra sobre sexo e não uma aula de laboratório onde fôssemos fazê-lo. Mas ninguém me tinha dito nada que sequer
se assemelhasse remotamente a um piropo, a menos que "Olha, parola, tens um lápis a mais?" contasse. Seria subliminarmente irresistível para Adam por os meus ossos
serem fortes?
- Quem sabe qual é o maior risco do sexo para uma pessoa com OI?
- perguntou Sarah.
Uma rapariga levantou hesitantemente a mão.
- Fracturar a pélvis?
Os rapazes que estavam atrás de mim soltaram um risinho abafado.
- Por acaso - disse Sarah - já falei com centenas de pessoas com OI que são sexualmente activas. E a única pessoa que fracturou um osso a ter relações sexuais, fê-lo
por ter caído da cama.
Desta vez todos riram às gargalhadas.
- Para as pessoas com OI, o maior risco de ser sexualmente activo é contrair uma doença sexualmente transmissível, o que quer dizer - olhou em volta - que não são
diferentes das pessoas sexualmente activas sem OI.
Adam empurrou um pedaço de papel por cima da mesa na minha direcção. Abri-o: "ÉS TIPO I?"
Sei o suficiente sobre a tua doença para perceber por que razão pensou isso. Havia pessoas com OI do Tipo I que viviam toda a vida sem saber
- apenas fracturavam mais ossos do que as pessoas normais. Por outro lado, havia outras pessoas com Tipo I que fracturavam tantos ossos como tu. Muitas vezes, as
pessoas com Tipo I eram mais altas e nem sempre tinham aqueles rostos em forma de coração que vemos nas de Tipo III, como tu. Eu tenho uma altura normal; não ando
de cadeira de rodas; não tenho escoliose - e estava numa sessão para jovens com OI. Claro que ele achou que eu tinha Tipo I.
Escrevi no outro lado do papel e entreguei-lho: "Por acaso, sou gémeos."
302
Ele tinha dentes mesmo bonitos. Os teus eram um pouco esquisitos - isso acontecia muitas vezes às crianças com OI, juntamente com perda de audição - mas os dele
eram brancos e perfeitamente regulares, ao estilo de Hollywood, como se fosse uma estrela de um filme do Disney Channel.
- E engravidar? - perguntou uma rapariga.
- Qualquer pessoa com OI, de qualquer tipo, pode engravidar - explicou Sarah. - Mas os riscos variam, consoante a situação individual.
- O bebé também nasceria com OI?
- Não necessariamente.
Lembrei-me daquela fotografia que tinha visto na revista, da senhora com Tipo III com um bebé ao colo quase do tamanho dela. Mas o problema não estava no próprio
corpo. Estava no parceiro. Não havia uma convenção de OI todos os dias; cada um destes jovens provavelmente era o único com OI na escola que frequentava.Tentei avançar
no tempo, para quando tivesses a minha idade. Se eu nem sequer conseguia que um rapaz reparasse na minha existência, como é que tu - minúscula, assustadoramente
inteligente, na tua cadeira de rodas ou andador, conseguirias? Senti a minha mão levantar-se, como se tivesse um balão atado ao pulso.
- Só há um problema - disse eu. - E se ninguém quiser ter relações sexuais connosco?
Em vez das gargalhadas que eu esperava, fez-se um silêncio mortal. Olhei em volta, estupefacta. Não era a única pessoa da minha idade com a certeza absoluta de que ia morrer virgem?
- Essa - disse Sarah - é uma pergunta bastante pertinente. Quantos de vocês tiveram namorado ou namorada quando estavam no quinto ou sexto ano? - ergueram-se algumas mãos. - Quantos tiveram namorado ou namorada depois disso?
Duas mãos, em vinte pessoas.
- Muitos jovens que não têm OI impressionam-se com a cadeira de rodas ou com o facto de não terem o mesmo aspecto do que eles. E é uma banalidade absoluta, mas acreditem,
esses são aqueles cuja companhia vocês também não desejariam.Vocês querem alguém que se interesse por quem vocês são, e não por o que vocês são. E mesmo que tenham
de esperar por isso, vai valer a pena. Só precisam de olhar à vossa volta nesta convenção para verem que as pessoas com OI se apaixonam, casam, têm sexo, engravidam:
não necessariamente por esta ordem. Quando toda a gente na sala desatou a rir novamente, ela começou a deslocar-se por entre nós, distribuindo preservativos e bananas.
Talvez afinal fosse uma aula de laboratório.
Já tinha visto casais aqui, ambos com OI; já tinha visto casais em que um deles tinha e o outro não. Se alguém saudável se apaixonasse por ti, talvez isso acabasse
por aliviar algumas das preocupações da mãe. Voltarias a
303
uma convenção como esta para namorar com um rapaz como o Adam? Ou com um dos rapazes rebeldes que andavam de cadeira de rodas para cima e para baixo nas escadas rolantes? De qualquer maneira não imaginava que fosse fácil - nem em termos práticos, no dia-a-dia, nem emocionalmente. Teres outra pessoa com OI na tua vida implicaria
que terias de preocupar-te contigo e com ele.
Por outro lado, talvez não tivesse nada a ver com OI e tudo a ver com amor
- Acho que devemos ficar juntos - disse Adam, e sem mais nem menos, deixei de respirar Depois percebi que ele estava a referir-se à estúpida banana com o preservativo.
- Queres ser a primeira?
Rasguei o invólucro de papel de alumínio. Seria possível ver a pulsação de alguém? Porque não havia dúvida de que a minha estava suficientemente acelerada para se notar debaixo da pele.
Comecei a desenrolar o preservativo ao longo da banana. Ficou todo enrugado em cima.
- Acho que assim não está bem - disse Adam.
- Então faz tu.
Ele retirou o preservativo e abriu uma segunda embalagem. Observei-o a colocar o pequeno disco em cima da banana e a alisá-lo ao longo desta num movimento fácil.
- Oh, meu Deus - disse eu. - Fazes isso bem de mais.
- É porque a minha vida sexual consiste inteiramente em frutas, neste momento.
Ri.
- Acho difícil de acreditar. Adam olhou para mim.
- Bem, e eu acho difícil de acreditar que tenhas dificuldade em encontrar alguém que queira ter relações sexuais contigo.
Tirei-lhe a banana da mão.
- Sabias que a banana é o órgão reprodutivo da planta em que cresce? Meu Deus, parecia uma idiota. Parecia tu, a debitares os teus factos. ,
- Sabias que as uvas explodem se as colocares no microondas? - disse Adam.
- A sério?
- Completamente - fez uma pausa. - Um órgão reprodutivo? Acenei com a cabeça.
- Um ovário.
- Então, onde vives?
- Em New Hampshire - disse eu. - E tu?
Sustive a respiração a pensar que ele talvez também morasse em Bankton e andasse no liceu, e era por isso que eu não o conhecia.
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- Anchorage - respondeu Adam. Logo vi.
- Então tu a tua irmã têm as duas OI?
Ele já me tinha visto contigo na cadeira de rodas.
- Sim - disse eu.
- Até deve ser bom. Ter alguém em casa que compreende, sabes? sorriu.- Sou filho único. Os meus pais olharam uma vez para mim e partiram o molde.
- Ou o molde partiu-se - ri.
Sarah passou pela nossa mesa e apontou para a banana.
- Uma maravilha - disse ela.
E éramos. Só que ele pensava que eu me chamava Willow e tinha OI.
Começou um jogo improvisado de balões de preservativos, enquanto grupos de jovens batiam nos preservativos cheios de ar pela sala.
- Willow não é aquela rapariga cuja mãe está a instaurar um processo por causa da OI dela? - perguntou Adam.
- Como sabias isso? - disse eu, estupefacta.
- Está nos blogues todos. Não os lês? -Tenho... estado ocupada.
- Pensava que a rapariga era muito mais nova...
- Bem, pensaste mal - interrompi. Adam inclinou a cabeça.
- Queres dizer que és tu?
- Podias guardar segredo? - perguntei. - Quero dizer, não é um assunto do qual me apeteça falar
- Aposto que não - disse Adam. - Deve ser horrível.
Imaginei como devias sentir-te. Tinhas dito algumas coisas no nosso quarto, naqueles minutos cinzentos antes de adormecermos, mas acho que guardaste muita coisa para ti. Pensei em como seria ser reconhecida apenas por uma característica - como ser canhota ou morena, ou ter hipermobilidade nas articulações - em vez da totalidade delas. E ali estava Sarah a falar sobre encontrar alguém que te amasse por quem és, e não pela tua aparência - e nem a tua própria mãe parecia consegui-lo.
- É como o jogo de tracção com uma corda - disse eu num tom suave - e eu sou a corda.
Por baixo da mesa senti Adam apertar a minha mão. Entrelaçou os dedos nos meus, com os nós a cerrarem-se sobre os meus.
- Adam - sussurrei, quando Sarah começou a falar sobre doenças sexualmente transmissíveis, hímenes e ejaculação precoce, e continuámos de mãos dadas debaixo da mesa.
Era como se tivesse uma estrela na garganta, como se bastasse abrir a boca para que a luz irradiasse de dentro de mim. - E se alguém nos vê?
305
Ele virou a cabeça; senti a respiração dele na curva da orelha.
- Então vão pensar que sou o rapaz com mais sorte nesta sala. com aquelas palavras, o meu corpo ficou electríficado, com toda
aquela energia que se gerava no sítio onde as palmas das nossas mãos se tocavam. Não ouvi nem mais uma só palavra do que Sarah disse durante os trinta minutos seguintes. Não conseguia pensar em mais nada a não ser em como a pele de Adam era diferente da minha, como estava perto e como não me largava a mão.
Não era um encontro amoroso, mas também não deixava de ser. Estávamos os dois a pensar em ir ao jardim zoológico nas actividades familiares daquela noite, por isso
Adam fez-me prometer que me encontrava com ele junto aos orangotangos às seis horas.
Pronto, ele pediu à Willow que fosse ter com ele ali.
Estavas tão entusiasmada por ires ao jardim zoológico que mal conseguias estar sentada e sossegada no caminho para lá, no mini-autocarro. Não temos jardim zoológico em New Hampshire e aquele perto de Boston não era nada de especial. Tínhamos pensado em ir ao Reino Animal da Disney durante a visita ao Disney World, mas lembras-te de como Isso acabou. Ao contrário de ti, a mãe era praticamente uma estátua de porcelana. Olhava para a frente, no autocarro, e nem tentava conversar com ninguém,
ao contrário do dia anterior, quando estava a falar pelos cotovelos. Parecia que podia estilhaçar-se se o condutor passasse por cima de uma lomba demasiado depressa.
Também não era a única.
Eu olhava tantas vezes para o relógio que parecia a Gata Borralheira. Por acaso, sentia-me como ela por várias razões. Mas em vez de vestir um vestido azul cintilante, estava a usar a tua identidade e a tua doença, e o meu príncipe, por acaso, já tinha partido quarenta e dois ossos.
- Grandes primatas - anunciaste assim que atravessámos os portões do jardim zoológico. Tinham aberto as instalações para a convenção de OI após as horas normais
de funcionamento, o que era fixe porque parecia que tínhamos ficado aqui presos depois de os portões terem sido trancados à noite, e prático porque tenho a certeza
de que era - bem - um jardim zoológico durante o dia, e a maioria das pessoas com OI teria andado aos ziguezagues para evitar ser derrubada pela multidão. Agarrei
na tua cadeira e comecei a empurrar-te por uma rampa ligeiramente inclinada e foi nessa altura que percebi que a mãe devia estar com algum problema grave.
Normalmente teria olhado para mim como se me tivesse crescido uma segunda cabeça e perguntado porque estava a oferecer-me para empurrar a tua cadeira, quando habitualmente
me desfazia em lamúrias se ela sequer me pedisse para soltar a tua estúpida cadeira do automóvel.
306
- Em vez disso, limitou-se a andar como uma morta-viva. Se lhe tivesse perguntado por que animais passámos, aposto que se teria virado paramim e dito "Ha?"
Empurrei-te perto do muro para veres os orangotangos, mas tiveste de pôr-te de pé para ver por cima. Equilibraste-te junto à baixa barreira de betão, e os teus olhos
iluminaram-se ao veres a mãe e o bebé. A mãe orangotango estava a embalar o macaquinho mais pequeno que já vi e, outra cria, provavelmente alguns anos mais velha,
não parava de importuná-la, puxando-a, balançando um pé à frente deles e sendo completamente insuportável.
- Somos nós - disseste tu, encantada. - Olha, Amélia!
Mas eu estava ocupada a olhar em volta à procura de Adam. Eram seis horas em ponto. E se ele não aparecesse? E se nem sequer conseguisse manter um rapaz interessado
em mim fingindo ser outra pessoa?
De repente, ali estava ele com um pouco de suor a brilhar na testa.
- Desculpa - disse ele. - A rampa foi de morte - olhou para a minha mãe e para ti, de frente para os orangotangos. - Aquela é a tua família, não é?
Devia tê-lo apresentado. Devia ter dito à minha mãe o que ia fazer Mas se dissesses o meu nome - o meu nome verdadeiro - e Adam percebesse que eu sou uma mentirosa? Por isso, agarrei-lhe na mão e puxei-o para um caminho lateral que conduzia a um bando de papagaios vermelhos e a uma jaula onde devia estar um mangusto, mas que aparentemente era invisível.
- Vamos embora - disse eu, e corremos para o aquário.
Devido à sua localização no zoo, não tinha muita gente. Estava lá uma família com uma criança pequena com o corpo todo engessado - pobre miúdo - a olhar para os
pinguins no seu falso traje formal.
- Achas que sabem que fizeram um mau negócio? - perguntei.- Que têm asas mas não podem voar?
- Em comparação com um esqueleto que está sempre a cair aos pedaços? - disse Adam. Puxou-me para outra sala, um túnel de vidro. A luz era azul, sinistra: os tubarões
nadavam à nossa volta. Olhei para cima, para a barriga macia e branca de um tubarão, as fileiras de dentes serrilhados, como diamantes; para os tubarões-martelo, a nadarem para trás e para a frente como criaturas da Guerra das Estrelas ao passarem por nós.
Adam encostou-se à parede de vidro, a olhar para o tecto transparente,
- No teu lugar, não faria isso - disse eu. - E se se partir?
- Então o jardim zoológico de Omaha fica com um grande problema
- riu Adam
- Deixa-me ver as outras coisas - disse eu.
307
- Qual é a pressa?
- Não gosto de tubarões - admiti - provocam-me arrepios.
- Acho que são fantásticos - disse Adam. - Não têm um único osso no corpo.
Fiquei a olhar para ele, com o rosto azul à luz do aquário. Os olhos dele eram da mesma cor da água, de um azul-cobalto puro, profundo.
- Sabias que quase nunca encontram fósseis de tubarão porque eles são feitos de cartilagens e decompõem-se muito depressa? Sempre me interroguei se isso também aconteceria às pessoas como nós.
Porque sou uma idiota, destinada a viver sozinha para o resto da vida com uma dúzia de gatos, naquele preciso momento desatei a chorar
- Então - disse Adam, abraçando-me, o que me parecia familiar e completamente estranho ao mesmo tempo. - Desculpa. Foi uma coisa mesmo estúpida para se dizer - Tinha uma das mãos nas minhas costas, a afagar cada uma das pérolas da minha coluna. Outra estava entre os cabelos. - Willow? - disse ele, puxando-me o rabo-de-cavalo
para que eu olhasse para ele. - Fala comigo.
- Não sou a Willow - desabafei.- Esse é o nome da minha irmã. Nem sequer tenho OI. Menti porque queria assistir àquela aula. Queria sentar-me ao teu lado.
Os dedos dele cerraram-se na parte de trás do meu pescoço.
- Eu sei. - Tu... o quê?
- Fiz uma busca da tua família no Google, no intervalo depois da aula de sexo. Li tudo sobre a tua mãe, o processo legal e a tua irmã, que tem a idade que diziam que tinha nos blogues sobre OI.
- Sou uma pessoa horrível - admiti.- Desculpa. Desculpa por não ser a pessoa que querias que eu fosse.
Adam ficou a olhar para mim com um ar sério.
- Não, não és. És melhor. És saudável. Quem não haveria de desejar isso a uma pessoa de quem gostasse mesmo a sério?
E então, de repente, a boca dele estava a tocar na minha, e embora eu nunca o tivesse feito e só tivesse lido sobre isso na Seventeen, não foi molhado, nojento nem
embaraçoso. De certa forma, sabia para que lado devia virar-me e quando devia abrir e fechar os lábios, e como devia respirar. As mãos dele abriram-se sobre as minhas
omoplatas, no sítio onde uma vez fizeste uma fractura, no sítio onde teria asas se tivesse nascido anjo.
A sala fechava-se à nossa volta, apenas água azul e aqueles tubarões sem ossos. E apercebi-me de que a palestra sobre sexo de Sarah estava em parte errada: não era
com as fracturas que tínhamos de preocupar-nos, era com dissolvermo-nos - perdermo-nos voluntariamente, abençoadamente, noutra pessoa. Os dedos de Adam eram quentes na minha cintura, roçando
308
parte de baixo da minha camisola, mas eu tinha medo de tocar-lhe, com medo de abraçá-lo com demasiada força e magoá-lo.
- Não tenhas medo - sussurrou ele, e colocou-me a mão sobre o coração dele para que eu o sentisse bater.
Inclinei-me para a frente e beijei-o. E mais uma vez. Como se estivesse a transmitir-lhe todas aquelas palavras silenciosas que não podia dizer - aquelas que explicavam
o meu maior segredo: que eu podia não ter OI, mas sabia como era. Que também eu estava a partir-me por dentro, a toda a hora.
309
Charlotte
Quando estávamos a regressar a casa depois da convenção, formulei um plano. Quando aterrasse, telefonaria a Sean a perguntar-lhe se ele podia ir lá a casa para conversarmos. Dir-lhe-ia que queria lutar pelos sentimentos que tínhamos, com a mesma força como queria lutar pelo teu futuro. Dir-lhe-ia que queria acabar o que tinha começado, mas que achava que não conseguiria fazê-lo sem a sua compreensão e apoio.
Dir-lhe-ia que o amava.
Foi uma viagem estranha. Estavas exausta depois de três dias de interacção com outras crianças com OI, e adormeceste imediatamente, ainda agarrada ao pedaço de papel com a lista dos endereços de email dos teus novos amigos. Amélia estava absorta em pensamentos desde que tínhamos ido ao jardim zoológico embora presumisse que fosse um efeito residual da forte reprimenda depois de ter desaparecido durante duas horas. Depois de termos aterrado e recolhido a bagagem, disse-vos para irem à casa de banho, visto que desde o aeroporto de Logan até Bankton seria uma longa viagem. Instruí Amélia para te ajudar se precisasses e fiquei cá fora a guardar o nosso carrinho das bagagens. Vi algumas famílias passarem, crianças pequenas com orelhas de Rato Mickey, mãe e filhas com trancinhas iguais e belos bronzeados, pais a arrastarem cadeirinhas para o automóvel. Toda a gente no aeroporto ou está entusiasmada por partir para algum lado ou aliviada por regressar a casa.
Eu não estava nem uma coisa nem outra.
Agarrei no telemóvel e marquei o número de Sean. Ele não atendeu, mas por outro lado, raramente o fazia quando estava a trabalhar.
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- Olá - disse. - Sou eu. Só queria dizer-te que já aterrámos. Estive a pensar. Achas que podes ir lá a casa hoje à noite? Para conversar? - hesitei, como se estivesse
à espera de uma resposta logo na altura, mas era uma conversa unilateral: não muito diferente das outras que tínhamos tido ultimamente. - Bem, de qualquer forma,
espero que a resposta seja sim. Adeus - disse eu, e desliguei o telemóvel quando vocês saíram da casa de banho, à espera que eu tomasse a iniciativa.
As caixas de correio eram óptimos locais de procriação: tinha a certeza de que às vezes, naquele túnel aconchegado e escuro, as contas multiplicavam-se exponencialmente. Assim que chegámos a casa, mandei-vos para o vosso quarto para desfazer as malas enquanto eu examinava a correspondência.
Não estava na caixa, em vez disso fora colocado num monte em cima da bancada, para mim. Havia leite, sumo e ovos no frigorífico, e a rampa que costumavas usar para ires de cadeira de rodas até à porta de entrada tinha sido reconstruída. Sean estivera ali depois de termos ido embora e isso fez-me pensar que talvez também ele estivesse a pedir tréguas.
Havia uma conta do cartão de crédito, com os juros astronómicos. Outra do hospital - prestações devido a uma visita de há seis meses atrás. Havia uma factura do prémio do seguro. Uma prestação da casa. Uma conta do telefone. Uma conta da televisão por cabo. Comecei a separar as cartas nas que eram contas e nas que não eram, fazendo dois montes, e provavelmente consegues adivinhar qual era o monte mais alto.
No monte das cartas que não eram contas havia alguns catálogos, publicidade, um cartão de parabéns atrasado para a Amélia, de uma tia muito idosa que vivia em Seatle,
e uma carta do Tribunal de Família do Condado de Rockingham. Interroguei-me se aquilo teria alguma coisa a ver com o julgamento, embora Marin me tivesse dito que
ia decorrer no Tribunal Superior.
Abri a carta e comecei a ler.
"Relativo a Sean P. O'Keefe e Charlotte A. O'Keefe; Caso Número 2008-R-0056
Cara Sr.a Charlotte A. O'Keefe,
Por favor considere-se informada de que recebemos neste gabinete um Pedido de Divórcio relativo ao assunto mencionado acima. Se desejar, a senhora ou o seu advogado
poderão
311
dirigir-se ao Tribunal de Família do Condado de Rockingham dentro do prazo de dez dias e tomar conhecimento.
Até nova ordem do tribunal, cada uma das partes está impedida de vender, transferir, onerar, hipotecar, ocultar, ou de qualquer outra maneira desfazer-se de quaisquer bens, imobiliários ou pessoais, pertencentes a qualquer uma das duas ou a ambas as partes à excepção (1) de acordo por escrito de ambas as partes ou (2) para fazer face às despesas razoáveis e necessárias para a vida do dia-a-dia ou (3) durante as actividades normais e habituais.
Se não tomar conhecimento dentro do prazo de dez dias, o autor do Pedido poderá escolher informá-la por meios alternativos.
Os melhores cumprimentos,
Micah Healey, Coordenadora"
Só me apercebi de que tinha gritado quando Amélia entrou a correr na cozinha.
- O que foi?
Abanei a cabeça. Não conseguia respirar, não conseguia falar. Amélia arrancou-me a carta da mão antes que eu conseguisse recompor-me.
- O pai quer o divórcio?
- Tenho a certeza de que é algum engano - disse eu, levantando-me e recuperando a carta. Claro que estava à espera disto, não estava? Quando o marido sai de casa
durante meses, não podemos iludir-nos a pensar que está tudo normal. Mas mesmo assim... dobrei a carta ao meio e depois voltei a dobrá-la. "Um truque de magia", pensei desesperadamente. "E quando a desdobrar, terão desaparecido todas as letras."
- Onde está o engano? - ripostou Amélia. - Acorda, mãe. É uma maneira bastante clara de dizer que já não lhe apetece que faças parte da vida dele - abraçou a cintura
com força. - Pensando nisso, ultimamente tem acontecido com bastante frequência.
Deu meia volta para correr lá para cima, mas agarrei-lhe no braço.
- Não digas nada à Willow - implorei.
- Ela não é tão estúpida como pensas. Percebe o que se passa, mesmo quando tentas esconder.
- É precisamente por isso que não quero que ela saiba. Por favor, Amélia.
Amélia libertou-se.
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- Não te devo nada - disse entre dentes, e fugiu. Sentei-me numa cadeira da cozinha. Grandes áreas do meu
corpo pareciam estar dormentes. Seria assim que Sean se sentia? Como se tivesse perdido todo o senso - literal e figurativamente?
Oh, meu Deus. Ele ia receber a minha mensagem no telemóvel, o que - à luz deste documento - me transformava na maior tola deste mundo.
Não fazia ideia de como funcionavam os divórcios. Ele poderia divorciar-se se eu dissesse que não queria? Seria possível mudar de ideias depois de ter feito o pedido
ao tribunal? Conseguiria fazer Sean mudar de ideias?
De mãos trémulas, agarrei no telefone e liguei para a linha privada de Marin Gates.
- Charlotte - disse ela. - Como foi a convenção?
- O Sean pediu o divórcio.
Fez-se silêncio do outro lado da linha.
- Lamento - disse por fim Marin, e acho que era verdade. Mas passado um momento, já assumira um tom profissional. - Precisa de um advogado.
- A Marin é advogada.
- Mas não daquelas que a pode ajudar neste caso. Telefone a Sutton Roarke: vem nas páginas amarelas. É a melhor advogada de divórcios que conheço.
Respirei fundo.
- Sinto-me... tão miserável. Como se fosse um número nas estatísticas.
- Bem - disse Marin num tom suave. - Ninguém gosta de ouvir que não é desejada.
As palavras dela fizeram-me pensar nas de Amélia, e foi como um golpe de chicote. E fizeram-me pensar no meu testemunho no tribunal, que Marin e eu andávamos a treinar. Mas antes que pudesse responder, ela voltou a falar.
- Desejava mesmo que as coisas não tivessem chegado a este ponto, Charlotte.
Tinha tantas perguntas para fazer: Como haveria de contar-te sem que ficasses magoada? Como poderia eu avançar com este processo legal, sabendo que havia outro pendente? Mas quando ouvi a minha voz, estava a fazer uma pergunta completamente diferente.
- O que vai acontecer a seguir? - disse eu, mas Marin já tinha desligado o telefone.
313
Marquei uma consulta com Sutton Roarke e depois comecei a fazer o jantar para vocês.
- Posso telefonar ao pai? - perguntaste assim que nos sentámos. - Quero contar-lhe tudo sobre este fim-de-semana.
Tinha a cabeça a latejar, a garganta parecia que tinha sido espancada por dentro com punhos cerrados. Amélia olhou para mim e depois para as ervilhas.
- Não tenho fome - disse ela. Passados alguns instantes, pediu licença para se levantar da mesa e eu nem sequer a quis manter ali. Para quê, quando a mim também não me apetecia estar lá?
Coloquei os pratos sujos na máquina de lavar louça. Limpei a mesa. Pus um monte de roupa a lavar, como se fosse um autómato. Não parava de pensar que, se fizesse aquelas coisas vulgares, talvez a minha vida voltasse ao normal.
Enquanto estava sentada na borda da banheira, a ajudar-te a tomar banho, falavas pelas duas.
- A Niamh e eu temos as duas contas de Gmail - tagarelaste.
- E todas as manhãs, às seis e quarenta e cinco, quando acordarmos, antes de irmos para a escola, vamos ficar online para conversar uma com a outra - viraste-te para olhar para mim. - Podemos convidá-la para vir cá a casa um dia?
- Hmm?
- Mãe, nem sequer estás a ouvir. Perguntei-te sobre a Niamh...
- O que tem ela? Reviraste os olhos.
- Esquece.
Ajudei-te a vestir o pijama e deitei-te na cama, dando-te um beijo de boa noite. Passada uma hora, quando fui ver, a Amélia já estava debaixo dos cobertores, mas depois ouvi-a sussurrar e puxei os lençóis para trás e vi que estava a falar ao telefone.
- O que foi! - disse ela, como se a tivesse acusado de qualquer coisa, e encostou o telefone ao peito como um segundo coração. Saí do quarto demasiado esgotada emocionalmente para pensar no que estaria ela a esconder, vagamente consciente de que o mais provável era que tivesse aprendido isso comigo.
Quando fui lá para baixo, uma sombra moveu-se na sala de estar, pregando-me um susto de morte. Sean avançou.
- Charlotte...
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Não. Não... não digas nada, está bem? - disse eu, com a mão ainda por cima do coração aos saltos. - As meninas já estão na cama, se vieste para visitá-las.
- Elas sabem?
- E isso interessa-te sequer?
- Claro que interessa. Porque achas que estou a fazer isto? Um leve som desesperado soltou-se da minha garganta.
- Sinceramente não sei, Sean - disse eu. - Sei que as coisas não têm estado a correr muito bem entre nós...
- Isso é o maior eufemismo do século...
- Mas é como termos uma pele a soltar-se de lado na unha e amputarem-nos o braço para a tratar, não é?
Ele foi atrás de mim para a cozinha, onde deitei detergente na máquina de lavar louça e carreguei com força nos botões.
- É mais do que isso. É uma hemorragia. Podes dizer o que quiseres a ti própria sobre o nosso casamento, mas não quer dizer que seja verdade.
- Então a única solução é o divórcio? - perguntei eu, chocada.
- Não vejo outra alternativa.
- E tentaste ver, sequer? Sei que tem sido difícil. Sei que não estás habituado a ver-me lutar por uma coisa que eu queira, em vez de por uma coisa que tu queiras. Mas, meu Deus, Sean. Acusas-me, a mim, de ser litigiosa, e depois pedes o divórcio? Sem sequer falares comigo? Sem tentares o aconselhamento matrimonial ou ir falar com o padre Grady?
- De que serviria, Charlotte? Já há muito tempo que não ouves mais ninguém a não ser a ti própria! Isto não foi uma coisa decidida de um dia para o outro, como tu pensas. Já se passou um ano. Um ano em que estive à espera que acordasses e visses o que fizeste à tua família. Um ano a desejar que te empenhasses tanto no nosso casamento como te empenhas em cuidar da Willow.
Fiquei a olhar para ele.
- Fizeste isto por eu estar demasiado ocupada para fazer sexo?
- Não, estás a ver, é precisamente a isto que me refiro. Agarras em tudo o que eu digo e distorce-lo. Não sou eu que estou a agir mal, Charlotte. Fui eu que sempre quis que nada mudasse.
- Pois. Então devemos ficar na mesma, a tentar manter-nos à tona durante mais quantos anos? Quando é que enfrentaríamos a execução da hipoteca da casa ou declararíamos falência...
- Pára de tornar isto numa questão de dinheiro...
- Mas é uma questão de dinheiro - gritei. - Acabei de passar o fim-de-semana com centenas de pessoas que têm vidas
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preenchidas, felizes e produtivas, e que também têm OI. Será um crime desejar que a Willow tenha as mesmas oportunidades?
- E quantas dessas pessoas têm pais que processaram por negligência no diagnóstico pré-natal? - acusou Sean.
Vislumbrei, por um instante, os rostos das mulheres na casa de banho que me tinham julgado tão duramente. Mas não ia falar nelas a Sean.
- Os católicos não se divorciam - disse eu.
- Também não pensam em abortar - disse Sean. - És católica quando te convém. Isso não é justo.
- E tu sempre viste o mundo a preto e branco, quando o que eu estou a tentar provar... e tenho a certeza disso... é que na verdade tem mil tons de cinzento.
- Foi por isso - disse Sean numa voz suave - que consultei um advogado. Foi por isso que não te pedi para irmos procurar aconselhamento ou falar com um padre. Esse teu mundo é tão cinzento que já nem distingues as fronteiras. Não sabes para onde te diriges. Se quiseres perder-te lá, estás à vontade. Mas não deixo que leves as meninas contigo.
Sentia as lágrimas escorrerem-me pelo rosto; limpei-as com a manga.
- Então acabou? Assim? Já não me amas?
- Amo a mulher com quem casei - disse ele. - E ela desapareceu. Foi nessa altura que soçobrei. Passado um instante de hesitação, senti os braços de Sean à minha volta.
- Deixa-me em paz - gritei, mas as minhas mãos agarraram a camisa dele ainda com mais força.
Detestava-o e, ao mesmo tempo, fora a ele que tinha recorrido em busca de conforto nos últimos oito anos. Os velhos hábitos são difíceis de deixar.
Quanto tempo demoraria a esquecer a temperatura das mãos dele na minha pele? Até já não me lembrar do cheiro do seu champô? Quanto tempo até não ouvir o som da sua voz, mesmo quando não estava a falar? Tentei armazenar cada sensação, como cereais para o Inverno.
O momento arrefeceu, até eu ficar desconfortavelmente nos seus braços, embaraçosamente consciente de que ele não me queria ali. Enchendo-me de coragem, dei um passo para trás, aumentando a distância entre nós.
- Então e agora o que fazemos?
- Acho - disse Sean - que temos de ser adultos. Não devemos discutir em frente das meninas. E talvez, se não te importares, eu
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pudesse voltar para casa. Para o quarto não - apressou-se a acrescentar. - Só no sofá. Nenhum de nós tem dinheiro para sustentar duas casas e as meninas. A advogada
disse-me que a maioria das pessoas que estão a divorciar-se permanece na mesma casa. podíamos arranjar maneira de, quando estivesses aqui, eu não estivesse, sabes. E vice-versa. Mas podíamos ficar os dois com as meninas.
- A Amélia sabe. Ela leu a carta do tribunal - disse eu. - Mas a Willow não.
Sean esfregou o queixo.
- Eu digo-lhe que estamos a resolver umas coisas entre nós.
- Isso é mentira - disse eu. - Sugere que ainda há uma hipótese.
Sean ficou calado. Ele não tinha dito que havia alguma hipótese. Mas também não tinha dito que não havia.
- vou buscar-te mais um cobertor.
Nessa noite fiquei deitada na cama, acordada, a tentar enumerar o que realmente sabia sobre divórcios.
1. Demoravam muito tempo.
2. Muito poucos casais eram capazes de fazê-lo graciosamente.
3. Tínhamos de dividir tudo o que pertencia a ambos, o que incluía carros, casas, DVDs, filhos e amigos.
4. É caro remover cirurgicamente uma pessoa que amamos da nossa vida. As perdas não eram só financeiras, mas também emocionais.
É claro que conhecia pessoas que se tinham divorciado. Inexplicavelmente, parecia acontecer sempre quando os filhos estavam no quarto ano - de repente, no registo da escola com os números de telefone dos encarregados de educação, os pais surgiam individualmente em vez de estarem juntos. Interrogava-me sobre o que teria esse quarto ano de tão desgastante para um casamento, ou talvez fosse apenas o problema dos dez ou quinze anos de casamento. Se fosse esse o caso, Sean e eu éramos precoces na nossa idade matrimonial.
Fui mãe solteira durante cinco anos antes de conhecer e me casar com Sean. Embora considerasse Amélia como a única coisa boa numa relação desastrosa, e nunca me teria casado com o pai dela, também sabia bem o que era ver as outras mulheres examinarem a minha mão esquerda à procura de uma aliança de
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casamento, ou não ter outro adulto em casa para conversar depois de as crianças estarem a dormir. Uma das razões porque gostava tanto de estar casada com Sean, era por causa da facilidade da nossa relação - deixá-lo ver-me quando os meus cabelos estavam despenteados, ao estilo dos da Medusa, logo de manhã e beijar-me ainda antes de lavar os dentes, saber que programa de televisão seleccionar quando nos sentávamos no sofá com um suspiro mútuo, reconhecer instintivamente em que gaveta estava guardada a roupa interior, as T-shirts ou as calças de ganga dele. Grande parte do nosso casamento era implícita e não verbal. Ter-me-ia tornado tão complacente que me esquecera de comunicar?
Divorciados. Murmurei a palavra em voz alta. Parecia o sibilar de uma serpente. As mães divorciadas pareciam ter evoluído para uma espécie à parte. Algumas frequentavam incessantemente o ginásio, determinadas a casarem-se de novo o mais brevemente possível. Outras apenas pareciam estar sempre exaustas. Lembrava-me de que uma vez Piper fez um jantar em sua casa e ficou na dúvida se havia ou não de convidar uma mulher recentemente divorciada, por não saber se seria ou não incómodo ser a única pessoa sozinha numa sala cheia de casais.
- Graças a Deus que não somos nós. Imaginas como seria ter de voltar a namorar? - Piper estremecera. - É como ser adolescente duas vezes.
Sabia que havia casais que decidiam em conjunto que a sua relação já não tinha remédio, mas era sempre um deles que referia o divórcio como solução. E mesmo que o outro concordasse, secretamente ficaria sempre a estupefacção de ver como alguém que afirmara gostar tanto do outro, pudesse imaginar a vida sem ele.
Meu Deus.
Sean fizera-me exactamente o mesmo que eu tinha feito a Piper.
Agarrei no telefone que estava em cima da mesa-de-cabeceira, apesar de serem 2h46 da manhã, e marquei o número de Piper. O telefone também estava do lado dela da
cama, embora dormisse do lado esquerdo e eu do direito.
- Está? - disse Piper, numa voz pastosa e não familiar. Tapei o telefone.
- O Sean quer o divórcio - sussurrei.
- Está? - repetiu Piper. - Está! - ouviu-se um suspiro abafado e zangado e o som de qualquer coisa a ser derrubada. - Quem quer que seja que telefonou, não devia fazê-lo a esta hora.
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Quando exercia o cargo de obstetra, Piper estava habituada a acordar a meio da noite pois estava de serviço a maior parte do tempo- A vida dela devia ter mudado
muito para ter aquela reacção, em vez de presumir que alguém estava em trabalho de parto.
A vida de todos tinha mudado muito e eu fora o catalisador.
A gravação da voz da telefonista encheu-me os ouvidos. "Se desejar fazer uma chamada, por favor desligue e tente outra vez."
Fingi que em vez dela era a Piper. "Oh, meu Deus, Charlotte", diria ela. "Estás bem? Conta-me tudo. Conta-me tudo até ao mais pequeno pormenor."
Na manhã seguinte acordei com o pânico de alguém que sabe que dormiu de mais por o sol estar demasiado alto e brilhante no céu.
- Willow? - chamei, saltando da cama e correndo para o teu quarto. Todas as manhãs chamavas-me para eu te ajudar a sair da cama e a ir à casa de banho, e depois a voltar para o quarto para te vestires. Estaria a dormir nessa altura? Ou tu também estarias?
Mas o quarto estava vazio e os lençóis e o edredão estavam cuidadosamente puxados para cima. Junto à cama de Amélia estavam as vossas malas vazias, fechadas e prontas a serem levadas para o sótão.
Ao descer as escadas, ouvi o teu riso. Sean estava de pé junto ao fogão com um pano da loiça enrolado na cabeça, a virar panquecas.
- Devia ser um pinguim - disseste - os pinguins não têm orelhas.
- Porque não pediste uma coisa normal, como a tua irmã? disse Sean. - Ela tem ali um urso perfeito.
- O que seria fixe - disse Amélia - se eu não tivesse pedido um lagarto. - Mas estava a sorrir. Quando teria sido a última vez que eu vira Amélia sorrir antes do meio-dia?
- Um pinguim-barra-burro a sair - disse Sean, colocando uma panqueca no teu prato.
Ambas repararam em mim ali de pé na cozinha.
- Mãe, olha quem me acordou hoje de manhã! - disseste.
- Acho que talvez tenhas dito ao contrário, Wills - disse Sean. O sorriso não lhe chegava totalmente aos olhos quando olhei para ele. - Achei que talvez pudesses dormir mais algumas horas.
Acenei com a cabeça e apertei mais o roupão. "Como origami", pensei. "Podia dobrar-me ao meio e depois mais uma vez, e assim por diante, até ser outra pessoa completamente diferente."
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- Obrigada.
- Papá! - gritaste. - A panqueca está a arder!
Não propriamente a arder, mas carbonizada e a deitar fumo.
- Oh, bolas - disse Sean, virando-se para raspá-la da frigideira.
- E eu que pensava que tinhas aprendido a cozinhar.
Sean olhou para mim por cima da tampa aberta do caixote do lixo.
- É extraordinário o que o desespero e uma embalagem de Bisquick podem fazer por um homem - admitiu. - Como hoje estou de folga, pensei passar o dia com as miúdas e acabar a rampa para a cadeira de rodas da Willow.
Apercebi-me de que estava a dizer-me que aquele era o primeiro passo em direcção à nossa situação de custódia partilhada, casa partilhada e casamento desfeito.
- Oh - disse eu, tentando parecer despreocupada. - Então acho que vou tratar de algumas coisas.
- Devias sair e divertires-te - sugeriu ele. - Ir ao cinema. Visitar uma amiga.
Já não tinha amigas.
- Pois - disse eu, forçando um sorriso. - Parece-me óptimo. Havia uma fronteira ténue, pensei passada uma hora ao sair
de carro, entre ser expulsa de casa e não ser bem-vinda lá, mas do meu ponto de vista, era mais ou menos o mesmo. Dirigi-me à bomba de gasolina e enchi o depósito, e então... bem... comecei a andar às voltas no carro. Durante toda a tua vida, ou estava contigo ou à espera de um telefonema que me dissesse que tinhas sofrido uma fractura; aquela liberdade era quase esmagadora. Não me sentia aliviada, apenas à deriva.
Sem me aperceber, dirigi-me ao escritório de Marin. Isso ter-me-ia feito rir se não fosse tão gritantemente deprimente. Agarrando na mala, entrei e subi lá para
cima de elevador. Briony, a recepcionista, estava a falar ao telefone quando entrei, mas fez sinal para eu me dirigir para o fundo do corredor.
Bati à porta do gabinete de Marin.
- Olá - disse eu, espreitando pela porta. Ela olhou para cima.
- Charlotte! Entre - enquanto eu me sentava numa das cadeiras de cabedal, ela levantou-se e encostou-se à secretária. - Falou com a Sutton?
- Sim, é... avassalador.
- Imagino.
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- O Sean está em minha casa agora - desabafei. - Estamos a tentar estabelecer um horário, para tomarmos conta das meninas os
dois.
- Parece-me bastante sensato.
Olhei para ela.
- Como posso sentir mais a falta dele quando está a meio metro de distância do que quando não está por perto?
- Provavelmente não sente mesmo falta dele. Sente falta da ideia do que ela podia ter sido.
- Ele - corrigi, e Marin pestanejou.
- Pois - disse ela. - Claro. Hesitei.
- Sei que está no seu horário de trabalho, mas quer tomar um café? Quero dizer, podemos fingir que é um assunto entre advogada e cliente...
- É um assunto entre advogada e cliente, Charlotte - disse Marin secamente. - Não sou sua amiga... sou sua advogada e, para ser absolutamente sincera, para isso já tive de colocar de lado alguns sentimentos pessoais.
Senti um rubor subir-me pelo pescoço.
- Porquê? O que foi que eu lhe fiz?
- Não foi a Charlotte - disse Marin. Também ela parecia estar pouco à vontade. - Só que eu... Este não é o tipo de caso com o qual eu concorde pessoalmente.
A minha própria advogada achava que não devia instaurar um processo por negligência médica no diagnóstico pré-natal? Marin levantou-se.
- Não estou a dizer que não tem boas hipóteses de ganhar esclareceu, como se me tivesse ouvido falar em voz alta. - Só estou a dizer que moralmente, filosoficamente, bem, compreendo a posição do seu marido, só isso.
Levantei-me, cambaleando.
- Nem acredito que estou a discutir com a minha própria advogada sobre justiça e responsabilidades - disse eu agarrando na mala. - Talvez devesse contratar os serviços de outro escritório. Já estava a meio do corredor quando ouvi Marin chamar-me. Estava de pé à porta, de punhos cerrados ao lado do corpo.
- Estou a tentar encontrar a minha mãe biológica - disse ela. É por isso que não estou assim tão entusiasmada com o seu caso. É por isso que não quero tomar café consigo, nem espero que me convide para dormir em sua casa para fazermos penteados uma à outra. Se este mundo fosse como a Charlotte quer, podendo ver-nos livres
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dos bebés quando estes não são exactamente como uma mulher quer ou sonha que sejam, a Charlotte nem sequer teria advogada neste momento.
- Eu adoro a Willow - disse eu, engolindo com dificuldade. Estou a fazer o que acho que é melhor para ela. E está a julgar-me por isso?
- Estou - admitiu Marin. - Da mesma forma que julgo a minha mãe por fazer o que ela achou que era melhor para mim.
Durante alguns momentos, após ela ter voltado para o seu gabinete, fiquei de pé no corredor, encostada à parede para me apoiar. O problema daquele processo legal era que não existia no vazio. Podíamos olhar teoricamente para ele e pensar, "Hm, sim, faz sentido." Mas nenhum pensamento ocorria em condições assim tão estéreis. Ao lerem um artigo no jornal sobre o facto de eu estar a processar a Piper, ao assistirem ao vídeo Um Dia na Vida de Willow, as pessoas traziam consigo ideias preconcebidas, opiniões, uma história.
Era por isso que Marin tinha de engolir a raiva enquanto trabalhava no meu caso.
Era por isso que Sean não conseguia perceber o meu raciocínio.
E era por isso que eu tinha tanto medo de admitir que um dia, ao lembrares-te disto, pudesses odiar-me.
O Wal-Mart tornou-se no meu local de diversão.
Andava para a frente e para trás nos corredores, a experimentar chapéus e sapatos, a olhar-me ao espelho, a empilhar caixotes de plástico Rubbermaid uns dentro dos outros. Pedalava numa bicicleta de exercício, carregava nos botões das bonecas falantes e ouvia as mesmas faixas dos CDs. Não tinha dinheiro para comprar nada, mas era capaz de passar horas a ver.
Não sabia como havia de sustentar-vos sozinha. Sabia que a pensão de alimentos e o apoio às crianças estavam de alguma forma relacionadas com isso, mas nunca ninguém me explicara como funcionava. Mas tinha de conseguir sustentar-vos se algum tribunal me considerasse uma mãe responsável.
"Podia fazer bolos."
A ideia serpenteou na minha cabeça antes de rejeitá-la. Ninguém ganhava a vida a fazer queques, bolos. Era verdade, já há alguns meses que os vendia; tinha ganho dinheiro suficiente para irmos de avião até Omaha para participarmos na convenção de OI e para atrair a atenção de uma cadeia de estações de serviço. Mas não podia trabalhar num restaurante nem expandir o meu
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mercado para além do Gas-n-Get. A qualquer momento, podias cair e precisar de mim.
- É bastante fixe, não é?
Virei-me e encontrei um empregado do Wal-Mart de pé ao meu lado, a olhar para um trampolim que fora parcialmente montado para mostrar o seu tamanho real. Parecia
ter cerca de vinte anos, tinha tanta acne que o rosto parecia um tomate inchado.
- Quando era miúdo, o que eu mais queria no mundo era ter um trampolim.
Quando era miúdo? Ele ainda era um miúdo. Tinha ainda uma vida inteira de erros para cometer.
- Então, tem filhos que gostam de saltar? - perguntou ele.
Tentei imaginar-te naquele trampolim. Os teus cabelos esvoaçariam atrás de ti; darias um salto mortal sem partires nada. Olhei para a etiqueta com o preço, como se aquele artigo fosse uma coisa que eu pensasse realmente em comprar.
- É caro. Acho que vou ter de procurar um pouco mais antes de me decidir.
- Não há problema - disse ele, e afastou-se despreocupadamente, deixando-me a passar as mãos pelas prateleiras cheias de raquetes de ténis e pranchas de skate ásperas, a sentir o cheiro acre dos pneus das bicicletas penduradas lá em cima como peças de carne num talho, a imaginar-te aos saltos e saudável, uma menina que nunca serias.
A igreja aonde fui mais tarde não era aquela a que costumava ir. Ficava cinquenta quilómetros a norte, numa cidade que conhecia apenas por ver o letreiro na auto-estrada. Cheirava intensamente a cera, e a missa da manhã acabara havia pouco tempo, por isso alguns membros da paróquia rezavam em silêncio nos bancos. Sentei-me num deles, rezei um Pai Nosso em voz baixa e olhei para cima, para a cruz no altar. Toda a minha vida me disseram que se caísse de um precipício, Deus estaria lá para me agarrar. Porque não seria isso verdade, fisicamente, no caso da minha filha?
Ultimamente havia uma recordação que não me deixava: uma enfermeira na maternidade olhou para ti no teu berço forrado de espuma, com pequenas ligaduras enroladas em volta dos membros.
- A senhora é jovem - disse ela, dando-me palmadinhas no braço. - Pode ter mais um.
Não conseguia lembrar-me se tinhas acabado de nascer ou se fora alguns dias depois. Se estaria lá mais alguém para ouvi-la, ou
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se ela era real ou apenas uma ilusão provocada pelos medicamentos que eu estava a tomar para as dores. Tê-la-ia inventado para que pudesse dizer em voz alta o que
eu pensava em silêncio? "Este não é o meu bebé; quero aquele com que sonhei."
Ouvi a cortina abrir-se e dirigi-me para o confessionário vazio. Abri a grade entre mim e o padre.
- Perdoe-me, padre, porque pequei - disse eu. - Já se passaram três semanas desde a minha última confissão - respirei fundo.
- A minha filha é doente - disse eu. - Muito doente. E iniciei um processo legal contra a médica que vigiou a minha gravidez. vou fazer isso pelo dinheiro - admiti. - Mas para poder recebê-lo terei de dizer que teria feito um aborto, se tivesse sabido da doença da minha filha mais cedo.
Fez-se um silêncio viscoso.
- É pecado mentir - disse o padre.
- Eu sei... mas não foi isso que me trouxe aqui hoje.
- Então o que foi?
- Ao dizer estas coisas - sussurrei - tenho medo de estar a dizer a verdade.
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Marin
Setembro de 2008
A selecção de um júri é uma arte combinada com pura sorte. Toda a gente tem teorias sobre a melhor maneira de seleccionar júris para os diferentes tipos de caso,
mas só sabemos se a nossa hipótese estava certa depois do veredicto. E é importante notar que não podemos realmente escolher quem faz parte do nosso júri - só quem
não faz. Uma diferença subtil - e fundamental.
Havia um conjunto de vinte jurados para seleccionar. Charlotte estava agitada ao meu lado na sala de audiências. A coabitação com Sean, ironicamente, possibilitou
a presença dela ali naquele dia; senão, estaria preocupada em arranjar quem tomasse conta de ti - o que já ia ser suficientemente difícil durante o julgamento.
Normalmente, quando levava um caso a julgamento, esperava um certo juiz - mas desta vez era difícil saber o que devia desejar. Uma juíza com filhos podia compreender
Charlotte - ou podia achar a alegação dela absolutamente repugnante. Um juiz conservador podia opor-se ao aborto por questões morais - mas também podia concordar
com a posição da defesa de que não devia ser um médico a determinar que crianças são demasiado incapacitadas para poderem nascer. No fim, calhara-nos o juiz Gellar,
o que estava há mais tempo no tribunal superior do Estado de New Hampshire e que, por vontade dele, morreria no seu assento no tribunal.
O juiz já tinha chamado os potenciais jurados e explicado os pormenores do caso - a terminologia de negligência médica no diagnóstico pré-natal, a queixosa e a arguida,
as testemunhas. Perguntou se alguém conhecia as testemunhas ou as partes envolvidas naquele caso, se ouvira falar sobre o mesmo ou se tinha algum problema pessoal
ou logístico por participar neste caso tais como problemas em arranjar alguém para tomar conta dos
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filhos ou ciática que impossibilitasse ficar sentado durante horas seguidas. Várias pessoas levantaram a mão e contaram as suas histórias: tinham lido todos os artigos
nos jornais sobre o processo legal; tinham sido multados por Sean O'Keefe; iam estar fora da cidade para estarem presentes na festa do nonagésimo aniversário da
mãe. O juiz fez o discurso habitual sobre como, no caso de serem dispensados, não deveriam levar isso muito a peito e que todos nós apreciávamos bastante o serviço
que tinham prestado - aposto que a maioria dos jurados esperava poder ser liberado para poder voltar à sua vida. Por fim, o juiz pediu-nos que nos aproximássemos
para conferenciar sobre se alguém deveria ser dispensado. No final, eliminou dois jurados: um homem que era surdo e uma mulher cujo parto dos filhos gémeos fora
assistido por Piper Reece.
Isso deixou-nos com um grupo de trinta e oito indivíduos a quem foram entregues questionários que Guy Booker e eu leváramos semanas de trabalho árduo a fazer. Destinada
a dar uma ideia das pessoas que formavam o grupo - e para eliminar jurados com base nas suas respostas ou para formular mais perguntas durante as entrevistas individuais
- a sondagem que criáramos envolvia uma coreografia complicada. Eu perguntava:
"Tem filhos pequenos? Em caso afirmativo, encarou o parto como uma experiência positiva?"
"Faz trabalho voluntário?" (Um voluntário no Planeamento Familiar seria óptimo para nós. Um voluntário num lar para mães solteiras da igreja, nem por isso).
"Já instaurou algum processo legal ou algum membro da sua família já instaurou um processo legal? Já foi arguido num processo legal, algum membro da sua família
já foi arguido num processo legal?"
Guy acrescentara:
"Acha que os médicos devem tomar decisões médicas para benefício dos pacientes ou deixá-los tomarem essas decisões?"
"Tem alguma experiência pessoal com incapacidade ou com pessoas com incapacidade?"
Mas essas eram as mais fáceis. Ambos sabíamos que este caso se baseava em jurados com uma mentalidade suficientemente aberta para compreenderem o direito de uma
mulher terminar uma gravidez: para isso, queria eliminar pessoas que defendessem o movimento pró-vida, enquanto a defesa de Guy seria muito beneficiada se no júri não houvesse defensores da escolha. Ambos queríamos colocar a pergunta "É a favor da vida ou a favor da escolha?" mas o juiz não tinha permitido. Após três semanas de diálogo, Guy e eu
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-formuláramos a pergunta: "Tem alguma experiência real com o aborto, quer pessoal quer profissional?"
Uma resposta afirmativa significava que podia tentar que essa pessoa fosse dispensada. Uma resposta negativa significava que abordaríamos o assunto com mais cuidado
quando chegasse a altura da escolha individual.
E era finalmente nesse ponto que estávamos naquele preciso momento. Depois de examinar os questionários, separei-os em montes: das pessoas que me agradavam para
este júri e daquelas que não. O juiz Gellar colocaria cada jurado no banco das testemunhas para ser interrogado, e Guy e eu tínhamos de dispensar a testemunha, aceitá-la para pertencer ao júri ou utilizar uma das nossas preciosas eliminações peremptórias - uma carta-branca que nos permitia eliminar um jurado sem razão nenhuma. Mas era preciso saber quando devíamos usar estas eliminações peremptórias e quando devíamos guardá-las no caso de aparecer uma pessoa mais odiosa.
O que eu queria para o júri de Charlotte eram donas de casa que davam tudo sem pensar nisso. Pais cujas vidas giravam em torno dos filhos. Mães suburbanas, mães da Associação de Pais, pais que não trabalhavam para tomar conta dos filhos. Vítimas de violência doméstica que toleraram o intolerável. Resumindo, queria doze mártires.
Até essa altura, Guy e eu tínhamos entrevistado três pessoas: um estudante de mestrado da Universidade de New Hampshire, um vendedor de automóveis usados, e uma senhora que trabalhava na cantina de um liceu. Tinha usado a minha primeira eliminação peremptória para dispensar o estudante quando soube que era o presidente dos Jovens Republicanos no campus. Agora, estávamos no quarto jurado em potencial, uma mulher chamada Juliet Cooper. Tinha cinquenta e poucos anos, uma boa idade para um jurado, uma pessoa com maturidade, que não tivesse apenas opiniões impulsivas. Tinha duas filhas adolescentes e trabalhava como telefonista num hospital. Quando se sentou no banco das testemunhas tentei pô-la à vontade mostrando-lhe um grande sorriso.
- Obrigada por estar aqui presente hoje, Sr.a Cooper - disse eu.
- Ora bem, trabalha fora de casa, não é verdade?
- Sim.
- Como conseguiu conciliar isso com os filhos?
- Quando eram pequenas não trabalhava. Achei que era importante estar em casa com elas. Só quando foram para o liceu é que voltei a arranjar um emprego.
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Até ali estava a correr bem - uma mulher que colocava os filhos em primeiro lugar. Voltei a examinar o questionário dela.
- Disse aqui que instaurou um processo legal?
Apenas declarei um facto que ela própria escrevera, mas Juliet Cooper parecia ter recebido uma estalada.
- Sim.
A diferença entre interrogar testemunhas e seleccionar um júri é que, no primeiro caso, só fazíamos perguntas para as quais já sabíamos as respostas. Mas no último caso, fazíamos perguntas completamente abertas - porque descobrir algo que não sabemos pode ajudar-nos a eliminar o jurado em potencial. E se, por exemplo, Juliet Cooper tivesse instaurado ela própria um processo por negligência médica que lhe tivesse corrido mal?
- Pode explicar? - insisti.
- Nunca chegou a ser julgado - murmurou. - Eu retirei a queixa.
- Teria algum problema em ser justa e imparcial para com uma pessoa que avançasse com um processo legal?
- Não - disse Juliet Cooper. - Só acho que ela é mais corajosa do que eu.
Bem, isso parecia ser um bom augúrio para Charlotte. Sentei-me para deixar Guy começar o seu interrogatório.
- Sr.a Cooper, referiu um sobrinho de cadeira de rodas?
- Cumpriu o serviço militar no Iraque e perdeu ambas as pernas quando um carro armadilhado explodiu. Só tem vinte e três anos; tem sido devastador para ele - olhou
para Charlotte. - Acho que há tragédias que não conseguimos ultrapassar. A nossa vida nunca volta a ser exactamente a mesma, por muito que tentemos.
Adorava aquela jurada. Queria cloná-la.
Estava a pensar se Guy eliminaria aquela jurada. Mas o mais provável era ser tão sensível aos benefícios que as incapacidades poderiam trazer-lhe quanto eu. Enquanto
ao princípio tinha pensado que as mães de crianças com incapacidade seriam favoráveis a Charlotte, tinha reconsiderado. Negligência médica no diagnóstico pré-natal
- um termo que Guy ia usar abundantemente em tribunal - poderia ser terrivelmente ofensivo para elas. Parecia-me que o melhor jurado, do meu ponto de vista, seria
alguém que mostrasse simpatia, mas que não tivesse experiência em primeira mão com incapacidade, ou, como Juliet Cooper, uma pessoa que soubesse tanto de incapacidade
que compreendesse como a tua vida era difícil.
- Sr.a Cooper - disse Guy - na pergunta sobre crenças religiosas ou pessoais sobre aborto, escreveu uma coisa e depois riscou-a, e não consigo ler o que era.
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- Eu sei - respondeu. - Não sabia o que dizer.
- É uma pergunta muito difícil - admitiu Guy. - Compreende que a decisão de abortar um feto é crucial para julgar este caso?
- Sim.
- Já fez um aborto?
- Objecção! - gritei. - É uma violação da privacidade, meritíssimo!
- Dr. Booker - disse o juiz - o que raio pensa que está a fazer?
- É o meu dever, senhor doutor juiz. As crenças pessoais dos jurados são fundamentais, dada a natureza deste caso.
Sabia exactamente o que Guy estava a fazer - corria o risco de irritar a jurada, o que ele achava menos importante do que arriscar-se a perder o julgamento por causa dela. As hipóteses de ter sido eu a fazer uma pergunta igualmente contenciosa eram as mesmas. Estava satisfeita que tivesse sido Guy a fazê-la, porque isso me permitia fazer o papel de boazinha.
- O que a Sr.a Cooper fez ou não fez no passado não tem nenhuma relevância neste caso - declarei, virando-me para o grupo de jurados. - Deixem-me pedir-vos desculpa pela invasão de privacidade do meu colega. O que o Dr. Booker está convenientemente a esquecer é que o assunto mais importante aqui não é o direito ao aborto na América mas um caso individual de negligência médica.
Guy Booker, enquanto advogado de defesa, recorreria a vários truques para sugerir que Piper Reece não tinha cometido nenhum erro de avaliação: que a OI não pode ser diagnosticada de forma conclusiva no útero, que não podemos ser culpados por não vermos uma coisa que não se consegue ver, que ninguém tem o direito de dizer que uma vida não vale a pena ser vivida quando existe incapacidade. Mas por muita poeira que Guy Booker deitasse para os olhos do júri, eu ia contra interrogar, para lhes relembrar que aquele era um processo por negligência médica e que uma pessoa tinha de pagar por ter cometido um erro.
Estava vagamente consciente da ironia de estar a defender o direito à privacidade médica de uma jurada quando - a nível pessoal
- isso tornara a minha vida num pesadelo. Se os ficheiros clínicos não estivessem selados, já saberia o nome da minha mãe biológica há meses: assim, ainda estava
na imensidão negra do vazio da sorte, à espera de receber notícias do Tribunal de Família do Condado de Hillsborough e de Maisie.
- Pode parar de chamar a atenção sobre si, Dr.a Gates - disse o juiz. - E quanto a si, Dr. Booker, se voltar a fazer uma pergunta como esta, vou detê-lo por desrespeito para com o tribunal.
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Guy encolheu os ombros. Terminou o questionário e depois ambos voltámos a aproximar-nos do juiz.
- A queixosa não tem nenhuma objecção a que a Sr.a Cooper seja escolhida para este júri - disse eu. Guy concordou, e o juiz chamou a próxima jurada em potencial.
O nome dela era Mary Paul. Tinha cabelos grisalhos apanhados num rabo-de-cavalo junto ao pescoço, vestia um vestido azul sem forma e calçava sapatos de sola de borracha. Parecia uma avó e esboçou um sorriso amável a Charlotte ao sentar-se no banco das testemunhas. "Isto", pensei, "pode ser prometedor."
- Sr.a Paul, diz aqui que é reformada?
- Não sei bem se reformada é a palavra certa...
- Que tipo de trabalho fazia anteriormente? - perguntei.
- Oh - disse ela. - Era Irmã da Caridade. Ia ser um dia muito longo.
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Sean
Quando Charlotte chegou finalmente a casa depois da selecção do júri, estavas a dar-me uma valentíssima tareia num jogo de Scrabble.
- Como correu? - perguntei, mas percebi antes que ela dissesse uma só palavra; parecia gue tinha sido atropelada por um camião.
- Estavam todos a olhar para mim - disse ela. - Como se fosse alguma coisa que nunca tivessem visto antes.
Acenei com a cabeça. Não sabia realmente o que dizer. De que estava ela à espera?
- Onde está a Amélia?
- Lá em cima, juntamente com o seu iPod.
- Mãe - disseste - queres jogar? Podes juntar-te a nós, não faz mal que tenhas perdido o início.
Nas oito horas que estivera contigo naquele dia, não tinha conseguido falar sobre o divórcio. Tínhamos feito uma visita à loja de animais e vimos uma cobra a comer
um rato morto, assistimos a um filme da Disney, fomos comprar comida e comprámos Spaghetti au Chef Boyardee, a que a vossa mãe chamava Chefe Glutamato de Monosódio.
Resumindo, tivemos um dia perfeito. Não gueria ser eu a tirar-te o brilho dos olhos. Talvez Charlotte o soubesse e por isso sugerira ser eu a dizer-te. E talvez
fosse também por isso que agora estava a olhar para mim, a suspirar.
- Só podes estar a brincar - disse ela. - Sean, já se passaram três semanas.
- Não era a altura certa... Meteste a mão no saco das letras.
- Ficámos reduzidos a palavras de duas letras - disseste. O papá tentou pôr Oz, mas isso é um lugar e não é permitido.
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- Nunca vai ser a altura certa. Querida - disse ela, virando-se para ti -, estou mesmo exausta. Pode ficar para outra vez? Dirigiu-se para a cozinha.
- Volto já - disse-te, e fui atrás dela. - Sei que não tenho o direito de pedir-te isto, mas... quero que estejas presente quando falar com ela. Acho que é importante.
- Sean, tive um dia horrível...
- E eu estou prestes a torná-lo ainda mais horrível. Eu sei - olhei para ela. - Por favor.
Sem dizer nada, entrou na sala de estar comigo e sentou-se à mesa. Tu viraste-te, encantada.
- Então sempre queres jogar?
- Willow, a tua mãe e eu temos uma coisa para te dizer.
- Vais voltar para casa de vez? Eu sabia. Na escola a Sapphire disse que assim que o pai saiu de casa apaixonou-se por uma badalhoca e agora os pais já não estão juntos, mas eu disse-lhe que tu nunca farias uma coisa dessas.
- Eu avisei-te - disse-me Charlotte.
- Wills, a tua mãe e eu... vamos divorciar-nos. Ela olhou para cada um de nós.
- Por minha causa?
- Não - dissemos ambos em uníssono.
- Ambos gostamos muito de ti, e da Amélia - disse eu. - Mas a tua mãe e eu já não podemos ser um casal.
Charlotte aproximou-se da janela, de costas voltadas para mim.
- Vais poder estar com os dois na mesma. E viver com os dois. Vamos fazer tudo o que pudermos para facilitar-te as coisas, para que nada mude muito...
O teu rosto estava a ficar cada vez mais franzido, tornando-se num rosa afogueado e furioso.
- O meu peixinho dourado - disseste. - Ele não pode viver em duas casas.
Tinhas um beta que tínhamos comprado no Natal anterior, a cedência mais barata a um animal de estimação que pudéramos fazer. Para grande admiração de todos, vivera mais de uma semana.
- Compramos-te outro - sugeri.
- Mas eu não quero ter dois peixinhos dourados!
- Willow...
- Odeio-te - gritaste, começando a chorar. - Odeio-vos aos dois!
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Levantaste-te da cadeira como um relâmpago, correndo mais depressa do que pensei que fosses capaz em direcção à porta de entrada.
- Willow! - chamou Charlotte. - Tem... "Cuidado."
Ouvi o grito antes de poder alcançar a porta. Na tua pressa de te afastares de mim, desta notícia, não tiveste cuidado, e estavas deitada no alpendre onde escorregaste. O teu fémur esquerdo estava dobrado num ângulo de noventa graus, saindo da superfície ensanguentada da coxa; as escleróticas tinham um azul insidioso.
- Mamã? - disseste, e depois reviraste os olhos.
- Willow! - gritou Charlotte, e ajoelhou-se junto a ti. - Chama uma ambulância - ordenou, e depois aproximou-se mais de ti e começou a sussurrar.
Por uma fracção de segundo, ao olhar para as duas, acreditei que ela era a melhor de nós dois.
Se conseguirem evitar, o melhor é não fracturarem nenhum osso numa noite de sexta-feira. Ainda mais importante, não fracturem um fémur no fim-de-semana da convenção anual de cirurgiões ortopédicos da América. Deixando Amélia sozinha em casa, Charlotte foi contigo na ambulância e eu fui atrás na minha carrinha. Apesar da maioria das tuas fracturas mais graves ter sido tratada no departamento de cirurgia ortopédica de Omaha, esta era demasiado grave para simplesmente te imobilizarem até poderes ser examinada; fomos levados para o hospital local, e disseram-nos nas urgências que o cirurgião ortopédico que estava de serviço era um médico interno.
- Um médico interno? - disse Charlotte. - Olhe, sem ofensa, mas eu não vou deixar que um médico interno coloque uma vareta no fémur da minha filha.
- Já fiz este tipo de cirurgia, Sr.a O'Keefe - disse o médico.
- Mas não numa menina com OI - argumentou Charlotte. E não na Willow.
Queria colocar-lhe uma vareta Fassier-Duvel - telescópica, que acompanharia o teu crescimento - no teu fémur. Era a vareta mais recente que havia, e era inserida
na epífise, o que quer que isso fosse, impedindo-a de migrar, como acontecia às outras varetas mais antigas. Mais importante de tudo, não tinhas de ficar toda engessada, que era o tratamento pós-operatório para a colocação de varetas no fémur, no passado - em vez disso, colocar-te-iam um suporte funcional, uma longa tala na perna, durante três
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semanas. Era incómodo, sobretudo no Verão, mas nem por sombras tão debilitante.
Estava a afagar-te a testa enquanto esta batalha deflagrava. Tinhas recuperado a consciência, mas não falavas, simplesmente olhavas em frente. Isso assustava-me imenso, mas Charlotte disse que acontecia muitas vezes quando se tratava de uma fractura grave; tinha qualquer coisa a ver com as endorfinas libertadas pelo organismo para se auto-medicar. No entanto, começaste a tremer, como se estivesses em estado de choque. Tirei o casaco para te tapar visto que o cobertor fino do hospital parecia não resultar.
Charlotte insistiu e argumentou; mencionou alguns nomes - e finalmente consegui que o médico telefonasse ao seu superior que estava no centro de convenções em San Diego. Era desconcertante observar, como uma batalha orquestrada: a investida, a retirada, a atenção voltada para ti antes da ronda seguinte. E apercebi-me de que era algo que a tua mãe sabia fazer muito, muito bem.
O médico interno voltou a aparecer alguns minutos mais tarde.
- O Dr. Yaeger pode apanhar um voo nocturno e estar aqui para fazer a cirurgia às dez horas amanhã de manhã - disse ele. É o máximo que podemos fazer.
- Ela não pode ficar uma noite assim - disse eu.
- Podemos dar-lhe morfina para sedá-la. Transferiram-te para a ala de pediatria onde os murais com
balões e animais do circo destoavam completamente dos berros dos bebés a chorarem e dos rostos fatigados dos pacientes que vagueavam pelos corredores. Charlotte ficou a olhar enquanto as enfermeiras te transferiam da maca para a cama - um grito agudo e estridente quando te moveram a perna - e deu instruções à enfermeira (cateter intravenoso do lado direito, por seres canhota) quando te colocaram a morfina.
Estava a matar-me ver-te sofrer.
- Tinhas razão - disse para Charlotte - querias pôr uma vareta na perna dela e eu não deixei.
Charlotte abanou a cabeça.
- Tinhas razão. Precisava de tempo para se levantar e correr por aí para fortalecer os músculos e os ossos, senão isto podia ter acontecido antes.
Ao ouvir isto, gemeste, e depois começaste a coçar-te. Arranhavas os braços, a barriga.
- O que foi? - perguntou Charlotte.
- Os insectos - disseste. - Estão em cima de mím.
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- Querida, não há insecto nenhum - disse eu, vendo-te coçar os braços até ficarem em carne viva.
- Mas tenho comichão..,
- E se jogássemos um jogo? - sugeriu Charlotte. - Ao Poodle? agarrou-te no pulso e colocou-o ao lado do teu corpo. - Queres ser tu a escolher a palavra?
Estava a tentar distrair-te, e resultou. Acenaste com a cabeça.
- Podes poodle debaixo de água? - perguntou Charlotte, e abanaste a cabeça. - Podes poodle enquanto estás a dormir?
- Não - disseste.
Olhou para mim, acenando com a cabeça.
- Hum, podes poodle com um amigo? - perguntei. Quase sorriste.
- Claro que não - enquanto começavas a semicerrar os olhos.
- Graças a Deus - disse eu. - Talvez agora durma.
Mas, como se eu tivesse dado azar, de repente deste um salto
- um tremor exagerado que te percorreu o corpo todo e que te fez levantar da cama e te deslocou a perna. Imediatamente deste um grito.
Tínhamos acabado de te acalmar outra vez quando voltou a acontecer a mesma coisa: assim que adormecias, estremecias como se estivesses a cair de um penhasco. Charlotte carregou no botão para chamar a enfermeira.
- Ela está a estremecer - explicou Charlotte. - Está sempre a acontecer.
- A morfina tem esse efeito em certas pessoas - disse a enfermeira. - O melhor que podem fazer é manterem-na imóvel.
- Podemos cortar o efeito?
- Se fizermos isso, ela vai mexer-se muito mais do que agora
- respondeu a enfermeira.
Quando saiu do quarto, voltaste a estremecer, e um longo gemido grave soltou-se da tua garganta.
- Ajuda-me - disse Charlotte, e subiu para a cama de hospital, imobilizando a parte superior do teu corpo.
- Estás a esmagar-me, mãe...
- vou só ajudar-te a ficares quieta - disse Charlotte numa voz calma.
Segui o exemplo dela, colocando-me cuidadosamente sobre a parte inferior do teu corpo. Gemeste quando toquei na perna esquerda, que estava fracturada. Charlotte e eu ficámos os dois à espera, a contar os segundos até o teu corpo voltar a ficar tenso, os músculos contraírem-se. Uma vez assisti a uma explosão numa
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obra, um local que estava coberto por uma barreira feita de pneus velhos e borracha para conter a explosão, controlando-a: desta vez, quando o teu corpo deu um salto
sob os nossos, não gritaste.
Como soubera Charlotte que devia fazer isso? Seria por ter estado contigo um número incontável de vezes quando sofrias uma fractura? Seria por ter aprendido a ser proactiva, em vez de reactiva, num hospital? Ou seria por saber reagir melhor do que eu alguma vez saberia?
- A Amélia - disse eu, lembrando-me de que a tínhamos deixado para trás e que já se tinham passado algumas horas.
- Temos de telefonar-lhe.
- Talvez eu devesse ir buscá-la... Charlotte virou a cabeça, encostando-a à tua barriga.
- Diz-lhe para telefonar à vizinha do lado, a Sr.a Monroe, se houver alguma emergência. Tens de ficar. Temos de ficar os dois a manter a Willow quieta durante a
noite.
- Os dois - repeti, e antes que conseguisse censurar-me, toquei nos cabelos de Charlotte.
Ela ficou paralisada.
- Desculpa - murmurei, afastando-me.
Debaixo de mim, mexeste-te, como um pequeno tremor de terra, e eu tentei ser um cobertor, um tapete, um conforto. Charlotte e eu aguentámos os tremores, absorvendo a tua dor. Ela entrelaçou os dedos nos meus e as nossas mãos ficaram como um coração a bater entre os dois.
- Não peças desculpa - disse ela.
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Amélia
Era uma vez uma menina que queria atravessar um espelho com a mão. Dizia a toda a gente que queria fazê-lo para poder ver o que havia do outro lado, mas, na verdade,
era para não ter de olhar para a sua imagem. Foi por isso que pensou que talvez pudesse roubar um pedaço de vidro, quando ninguém estivesse a ver; e usá-lo para arrancar o coração do peito.
Assim, quando ninguém estava a ver, dirigiu-se para o espelho e obrigou-se a ter coragem de abrir os olhos só mais uma vez. Mas, para sua admiração, não viu o seu reflexo. Não viu absolutamente nada. Confusa, estendeu a mão para tocar no espelho e percebeu que não tinha vidro, que podia atravessar para o outro lado.
Foi precisamente isso que aconteceu.
Mas as coisas tornaram-se ainda mais estranhas quando começou a percorrer aquele mundo novo e viu as pessoas olharem para ela - não por sertão repelente mas por quererem ser como ela. Na escola, os jovens que estavam sentados nas várias mesas da cantina, ao almoço, lutavam entre si para que ela se sentasse ao pé deles. Sabia sempre a resposta certa quando a professora lhe fazia alguma pergunta nas aulas. A caixa de entrada do seu email estava sempre a transbordar de mensagens de amor dos rapazes que não conseguiam viver sem ela.
Ao princípio, parecia incrível, como se fosse levantada por um foguetão sempre que estava em público. Mas depois, tornou-se um pouco monótono. Não queria dar autógrafos quando comprava um pacote de pastilhas elásticas na estação de serviço. Vestia uma camisola cor-de-rosa, e à hora de almoço, toda a gente na escola também tinha camisolas cor-de-rosa. Cansou-se de estar sempre a sorrir em público.
Apercebeu-se de que as coisas não eram assim tão diferentes daquele lado do espelho. Ninguém se interessava realmente por ela ali. As pessoas copiavam-na e procuravam a sua atenção não por ela ser
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quem era, mas por quem desejavam que ela fosse, para compensar o vazio das suas vidas.
Decidiu que queria voltar para o outro lado. Mas tinha de o fazer quando ninguém estivesse a ver senão segui-la-iam. O único problema é que havia sempre alguém a ver. Tinha pesadelos com as pessoas que a perseguiam e que seriam capazes de se cortarem em pedaços nos vidros partidos ao rastejar através do espelho atrás dela, como ficariam estendidas no chão e como a expressão no olhar se alteraria ao vê-la do outro lado, impopular e vulgar.
Quando já não conseguia aguentar nem mais um minuto, começou a correr. Sabia que vinham pessoas atrás dela, mas não podia parar para pensar nelas. Ia voar através
do espaço no espelho, acontecesse o que acontecesse. Mas quando lá chegou, bateu com a cabeça no vidro - fora arranjado. Estava inteiro e resistente, impossível
de atravessar. Espalmou as mãos nele. "Para onde vais?" perguntaram todos. "Podemos ir também?" Não respondeu. Limitou-se a ficar ali parada, a olhar para a sua antiga
vida, sem ela lá.
Sentei-me na tua cama com muito cuidado.
- Olá - sussurrei, porque ainda estavas bastante abalada e talvez estivesses a dormir.
Entreabriste os olhos.
-Olá.
Parecias mesmo muito pequenina, mesmo com aquela grande tala na perna. Supostamente, com a nova vareta no fémur, qualquer fractura futura não seria tão grave quanto
aquela. Uma vez vi num programa de televisão uma cirurgiã ortopédica com brocas, serras, placas de metal, tudo - parecia mais uma operária da construção civil do que uma médica, e só de pensar naqueles martelos a baterem dentro do teu corpo dava-me a sensação de que ia desmaiar
Também. Não podia dizer-te porque aquela fractura me tinha assustado mais. Talvez a misturasse com as outras coisas que aconteceram no mesmo período, igualmente aterradoras:
a carta do divórcio, o telefonema do pai no hospital a dizer-me que tinha de passar a noite sozinha em casa. Não tinha dito a ninguém, porque obviamente a mãe e o pai estavam completamente absortos pelo que estava a acontecer-te, mas não cheguei a dormir. Fiquei acordada, sentada à mesa da cozinha, a olhar para a faca maior
que tínhamos, no caso de alguém arrombar a porta e entrar em casa. Mantive-me acordada por pura adrenalina, a pensar no que aconteceria se o resto da minha família
nunca chegasse a voltar a casa.
Mas em vez disso, aconteceu o oposto. Não só regressaste, mas a mãe e o pai também - e não estavam só a representar por tua causa, estavam realmente juntos.Tomavam conta de ti por turnos; terminavam as frases um
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do outro. Era como se eu tivesse atravessado aquele espelho de conto de fadas e aterrasse no universo alternativo do meu passado, Uma parte de mim acreditava que
a tua última fractura tinha voltado a juntá-los e, se isso fosse verdade, valia a pena as dores que tiveste de suportar Mas outra parte de mim achava que se tratava
de uma alucinação, que aquela família feliz era apenas uma miragem.
Não acreditava realmente em Deus, mas também não rejeitava completamente a ideia, por isso rezei em silêncio, pedindo; se voltarmos a ser uma família, não vou queixar-me
mais. Não vou ser má para a minha irmã.
Não vou voltar a vomitar Não vou cortar-me mais. "Não vou, não vou, não vou." Parecias não estar assim tão optimista. A mãe disse que, desde que
saíste da cirurgia, não paraste de chorar e não quiseste comer nada.
Supostamente seria a anestesia que te deixava chorosa, mas decidi assumir
a missão pessoal de animar-te.
- Então, Wills - disse eu - queres MM's? Fazem parte da minha provisão de doces da Páscoa.
Abanaste a cabeça.
- Queres usar o meu iPod?
- Não quero ouvir música - murmuraste. - Não tens de ser simpática para mim, porque não vou ficar aqui durante muito mais tempo.
Isso causou-me um arrepio na espinha. Não me teriam contado tudo sobre a cirurgia? Ias morrer?
- De que estás a falar?
- A mãe quer ver-se livre de mim porque estão sempre a acontecer-me estas coisas - limpaste as lágrimas com as mãos. - Sou daquelas crianças que ninguém quer.
- O que é que estás a dizer? Não és nenhuma assassina em série. Não torturas esquilos nem fazes nada de repugnante, a não ser tentares cantar "God Bless America"
em arrotos à mesa do jantar..
- Só fiz isso uma vez - disseste. - Mas pensa bem, Amélia, ninguém guarda coisas que se partem. Mais tarde ou mais cedo, deitam-nas fora.
- Willow, ninguém te vai mandar embora, acredita em mim, E se te mandarem, eu fujo contigo primeiro.
Soluçaste.
- Prometes?
Entrelacei o dedo mindínho no teu e puxei.
- Prometo.
- Não posso ir de avião - disseste num tom sério, como se precisássemos de programar o nosso itinerário naquele momento. - O médico disse que vou accionar os detectores de metais no aeroporto. Deu uma carta à mãe.
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De que eu provavelmente me esqueceria, como me tinha esquecido da outra carta do médico nas nossas últimas férias.
- Amélia - perguntaste - para onde podemos ir?
"Para trás", pensei de imediato. Mas não conseguia dizer-te como havíamos de lá chegar.
Talvez Budapeste. Não sabia ao certo onde ficava Budapeste, mas gostava da forma como a palavra me explodia na língua. Ou Xangai. Ou as Galápagos, ou a ilha de Skye. Tu
e eu podíamos viajar pelo mundo as duas, no nosso próprio espectáculo de aberrações: a rapariga que se parte e a rapariga que não consegue controlar-se.
- Willow - disse a mãe.-Acho que precisamos de ter uma conversa. -Tinha estado de pé à porta do quarto, a observar-nos há não sei quanto tempo. - Amélia, podes deixar-nos
a sós por um instante?
- Está bem - disse eu, e saí lá para fora. Mas em vez de ir lá para baixo, fiquei no corredor, onde conseguia ouvir tudo.
- Wills - ouvi a mãe dizer - ninguém te vai mandar embora.
- Desculpa pela minha perna - disseste, chorosa. - Achei que se não partisse nada durante muito tempo, tu ias pensar que eu era como as outras crianças...
- Os acidentes acontecem, Willow - ouvi a cama ranger quando a mãe se sentou nela. - Ninguém está a culpar-te.
- Tu estás. Desejavas que eu nunca tivesse nascido. Ouvi-te dizer isso.
O que aconteceu depois disso - bem, foi como um tornado na minha cabeça. Estava a pensar naquele processo legal e em como tinha arruinado as nossas vidas. Estava a pensar no pai, que estaria lá em baixo apenas mais alguns segundos ou minutos. Estava a pensar no ano anterior, quando não tinha cicatrizes nos braços, quando
ainda tinha uma melhor amiga, não era gorda e conseguia comer sem que a comida parecesse chumbo no estômago. Estava a pensar nas palavras que a minha mãe te tinha
dito em resposta, e em como devia tê-las ouvido mal.
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Charlotte
- Charlotte?
Tinha ido para a divisão de tratamento de roupas para me esconder, achando que as roupas que estavam a girar na máquina de secar ocultariam qualquer som que eu fizesse
ao chorar, mas Sean estava de pé atrás de mim. Apressei-me a limpar os olhos às mangas.
- Desculpa - disse eu. - As meninas?
- Estão as duas a dormir profundamente - deu um passo em frente. - O que se passa?
O que não se passava? Tinha acabado de convencer-te de que te adorava, com fracturas e tudo - algo que nunca tinhas posto em causa até eu ter instaurado aquele processo legal.
Toda a gente mente, não é? E não haverá uma diferença entre, por exemplo, matarmos uma pessoa e dizermos à polícia que não fomos nós e sorrir para uma bebé particularmente feia e dizer à mãe que é linda? Há mentiras que dizemos para nos salvarmos a nós próprios, e há mentiras que dizemos para salvar os outros. O que contaria mais, a inverdade, ou um bem maior?
- Não se passa nada - disse. Lá estava eu a mentir outra vez. Não podia contar ao Sean o que tu me tinhas dito; não suportaria ouvi-lo a dizer "Eu bem te disse." Mas, meu Deus, tudo o que me saía da boca seria mentira? - Foram apenas uns dias muito difíceis
- cruzei os braços com força na cintura. - Precisas, hum, precisas de mim para alguma coisa?
Apontou para cima da máquina de secar.
- Vim buscar os meus lençóis.
Sei que devia estar a treinar, mas não compreendia os antigos casais que continuavam a manter boas relações. Sim, era para benefício das crianças. Sim, era menos stressante. Mas como
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podíamos esquecer que aquele "amigo" em particular nos tinha visto nuas? Procurara realizar os nossos sonhos quando estávamos demasiado cansadas para fazê-lo? Podíamos refazer a nossa história da forma que quiséssemos que veríamos sempre aquelas primeiras pinceladas.
- Sean? Ainda bem que estás aqui - disse eu, finalmente dizendo a verdade. - Tornou tudo... mais fácil.
- Bem - disse ele simplesmente - ela também é minha filha.
- Deu um passo na minha direcção para ir buscar os lençóis, e recuei instintivamente. - Boa noite - disse Sean.
- Boa noite.
Começou a agarrar nas almofadas e na colcha e depois virou-se.
- Se eu fosse como a Willow e precisasse que alguém lutasse por mim com determinação quando eu não pudesse, escolhia-te a ti.
- Não tenho a certeza de que a Willow concorde com isso sussurrei, pestanejando para afastar as lágrimas.
- Então - disse ele, e senti os braços dele a envolverem-me. A respiração era quente no cimo da minha cabeça. - O que foi?
Inclinei o rosto para o dele. Queria contar-lhe tudo - o que me disseste, como estava tão cansada, como me sentia vacilar mas em vez disso ficámos a olhar um para o outro, a telegrafar mensagens que nenhum de nós tinha coragem de dizer em voz alta. E então, devagar, para que ambos soubéssemos o erro que estávamos a cometer, beijámo-nos.
Não me lembrava da última vez que tinha beijado Sean, pelo menos assim, sem ser aquele beijo superficial de despedida por cima do lava-loiça. Era profundo, rude e devorador, como se ambos devêssemos ficar em cinzas quando acabasse. A barba dele deixou-me o queixo em carne viva, os dentes morderam, a respiração dele encheu-me os pulmões. A sala cintilava ao canto do olho e afastei-me para poder respirar.
- O que estamos a fazer? - arquejei. Sean escondeu o rosto na minha garganta.
- Que interessa, desde que continuemos a fazê-lo.
Então as mãos dele deslizaram-me debaixo da camisola, marcando-me; tinha as costas encostadas à porta de metal e vidro da máquina de secar roupa quando Sean me empurrou contra ela. Ouvi o tilintar da fivela do cinto dele a cair no chão e só depois percebi que tinha sido eu a atirá-la para o lado. Enrolando-me à volta dele, tornei-me numa trepadeira, luxuriante, entrelaçada. Atirei a cabeça para trás e desabrochei.
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Terminou tão depressa quanto tinha começado e, de repente, éramos o que fôramos quando começámos: duas pessoas de meia-idade demasiadamente sós para se tornarem
desesperadas. As calças de ganga de Sean estavam enroladas nos tornozelos; as mãos dele agarravam-me nas coxas. A pega da máquina de secar roupa estava a magoar-me
as costas. Deixei uma perna cair no chão e enrolei um lençol dele em volta da cintura.
Ele estava a corar, um rubor profundo e desgarrado.
- Desculpa.
- Estás arrependido? - ouvi-me dizer.
- Talvez não - admitiu.
Tentei afastar os cabelos emaranhados do rosto penteando-os com os dedos.
- Então e agora o que fazemos?
- Bem - disse Sean. - Não podemos voltar atrás. -Não.
- E tens o meu lençol de cima em volta do teu... tu sabes. Olhei para baixo.
- E o sofá é mesmo muito desconfortável - acrescentou.
- Sean - disse eu, sorrindo. - Vem para a cama.
Pensei que no dia do julgamento ia acordar com um nó no estômago ou uma violenta dor de cabeça, mas à medida que os meus olhos se adaptaram à luz do Sol, só conseguia pensar, "Vai correr tudo bem." Os músculos deliciosamente doridos não me incomodavam, virei-me para o lado e espreguicei-me, ouvindo a música do chuveiro a correr, com Sean lá dentro.
- Mãe?
Vesti um robe e corri para o teu quarto.
- Wills, como te sentes?
- Inquieta - disseste. - E tenho de fazer chichi. Coloquei-me em posição para te levar ao colo. Estavas
pesada, mas era uma bênção comparado com a alternativa do molde de gesso de corpo inteiro. Ajudei-te a levantar a camisa de noite e a instalar-te no assento da sanita, depois fiquei à espera que voltasses a chamar-me para poder ajudar-te a lavar as mãos. Decidi que ia comprar-te um grande frasco de Purell quando regressasse a casa vinda do tribunal. E lembrei-me de que não ias ficar satisfeita com as combinações que tinha feito em relação a ti. Depois de muito discutir com Marin sobre deixar-te em casa enquanto estivesse na sala de audiências, deixou-me entrevistar e escolher uma enfermeira pediátrica para ficar
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contigo durante o julgamento. Disse que os custos astronómicos seriam deduzidos da indemnização que recebêssemos. Não era a situação ideal, mas pelo menos não teria de ficar preocupada com a tua segurança.
- Lembras-te da Paulette? - perguntei. - A enfermeira?
- Não quero que ela venha...
- Eu sei, querida, mas não temos outra hipótese. Tenho de ir a um sítio importante hoje, e tu não podes ficar sozinha.
- E o papá?
- O que tem o papá? - disse Sean, e arrancou-te dos meus braços e levou-te lá para baixo como se não pesasses nada.
Estava de casaco e gravata em vez da farda. "Vai comigo para o tribunal", pensei, começando a sorrir de dentro para fora.
- A Amélia está no duche - disse Sean por cima do ombro enquanto te instalava no sofá. - Disse-lhe que hoje vai ter de ir de autocarro. A Willow...
- Uma enfermeira vem tomar conta dela. Ele olhou para ti.
- Bem, vai ser divertido. Fizeste uma careta.
- Pois, está bem.
- Então que tal panquecas para o pequeno-almoço, para compensar-te?
- Só sabes cozinhar isso? - perguntaste. - Até eu sei fazer sopa de massa.
- Queres sopa de massa para o pequeno-almoço? -Não...
- Então pára de te queixares das panquecas - disse Sean, e depois olhou para mim com um ar sério. - Grande dia.
Acenei com a cabeça e apertei mais o cinto do meu robe.
- Posso estar pronta daqui a quinze minutos.
Sean ficou imóvel a meio do processo de te tapar com um cobertor.
- Calculei que fôssemos em carros separados - hesitou. Tenho de encontrar-me com o Guy Booker antes.
Se ele ia encontrar-se com Guy Booker, isso queria dizer que ainda pensava em testemunhar a favor da Piper.
Estivera a mentir a mim própria porque era mais fácil do que enfrentar a verdade: sexo não é amor e um simples paliativo de uma noite não podia remediar um casamento desfeito.
- Charlotte? - disse Sean, e apercebi-me de que me fizera uma pergunta. - Queres panquecas?
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Tinha a certeza de que ele não sabia que as panquecas eram os bolos mais antigos da América; que no século XVIII, quando não havia fermento, as faziam crescer batendo
os ovos para incorporar ar na massa. Tinha a certeza de que ele não sabia que já havia panquecas na Idade Média, quando eram servidas na Terça-Feira de Carnaval,
antes da Quaresma. Que se a grelha estivesse demasiado quente, as panquecas ficavam duras e elásticas; e que se estivesse demasiado fria, ficavam secas e duras.
Também tinha a certeza de que não se lembrava de que o primeiro pequeno-almoço que lhe servi como sua mulher foi de panquecas, quando regressámos da lua-de-mel. Fiz o polme e verti-o para um saco, cortando-lhe um dos cantos e utilizando-o para dar forma às panquecas. Servi a Sean uma pilha de corações.
- Não tenho fome - disse eu.
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Amélia
Deixem-me contar-vos porque não fui de autocarro naquela manhã: ninguém se tinha dado ao trabalho de ir ver lá fora, e só quando Paulette, a enfermeira, chegou,
totalmente desvairada por ter de afastar um exército de fotógrafos e jornalistas, é que nos apercebemos de quantas pessoas se tinham ali reunido para tirarem a tão
desejada fotografia dos meus pais a saírem de casa para se dirigirem ao tribunal.
- Amélia - disse o pai, tenso - para o carro. Já! Para variar; limitei-me a fazer o que ele disse.
Isso já era suficientemente mau, mas alguns deles seguiram-nos até à minha escola. Observava-os pelo espelho retrovisor.
- Não foi assim que a princesa Diana morreu?
O pai não disse uma só palavra, mas tinha os maxilares tão cerrados que achei que era capaz de partir um dente. No semáforo vermelho, olhou para mim.
- Sei que vai ser difícil, mas tens de fingir que este é um dia normal como os outros.
Sei que estás a pensar: foi naquela altura que a Amélia fez algum comentário sarcástico e pouco próprio, como "Foi isso que também disseram no 11 de Setembro",
mas não me lembrei de nenhum. Em vez disso, dei por mim a tremer tanto que tive de enfiar as mãos debaixo das coxas.
- Já nem sei o que é normal - ouvi-me dizer, num fio de voz. O pai estendeu a mão e afastou-me os cabelos do rosto.
- Quando tudo isto estiver acabado - disse ele -, achas que gostarias de viver comigo?
Aquelas palavras, fizeram o meu coração ficar aos pulos. Alguém me queria; alguém estava a escolher-me. Mas também fiquei com náuseas. Era uma linda fantasia, mas, para sermos completamente realistas, que tribunal atribuiria a custódia a um homem que nem sequer era do meu sangue? Isso
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queria dizer que tinha de ficar com a minha mãe que, nessa altura, já saberia ? que tinha sido a minha segunda escolha. E para além disso, o que te aconteceria a
ti? Se eu vivesse sozinha com o pai, talvez finalmente recebesse alguma atenção, mas também te deixaria para trás. Detestar-me-ias
por isso?
Visto que eu não respondi e o semáforo ficou verde, o nosso pai começou novamente a conduzir
- Podes pensar no assunto - disse ele, mas eu percebi que estava um pouco magoado.
Passados cinco minutos, estávamos na via de acesso circular à minha
escola.
- Os jornalistas vão comigo lá para dentro?
- Não podem - disse ele.
- Bem - coloquei a mochila no colo. Pesava quinze quilos, o que era um terço do meu peso. Sabia isso porque na semana anterior a enfermeira da escola tinha preparado uma balança onde podíamos pesar a nossa mochila e depois pesarmo-nos, visto que os jovens da minha idade não devem carregar mochilas demasiado pesadas. Se dividíssemos o peso da mochila pelo peso do corpo e obtivéssemos mais de 15 por cento, íamos acabar por ficar com escoliose, raquitismo ou urticária, ou Deus sabe mais o quê. Toda a gente tinha mochilas demasiado pesadas, mas isso não impediu os professores de mandarem a mesma quantidade de trabalhos de casa.
- Hum, boa sorte para hoje - disse eu.
- Queres que eu entre e fale com o teu orientador ou com o director? Para lhes dizer que hoje talvez precises de mais atenção...?
Era a última coisa de que precisava - evidenciar-me ainda mais.
- Estou bem - disse eu, e abri a porta da carrinha.
Os carros foram atrás da carrinha do meu pai, o que me fez respirar de alívio. Pelo menos foi o que pensei, até ouvir alguém chamar-me.
- Amélia - disse uma mulher - o que achas deste processo legal? Atrás dela estava um homem com uma câmara de televisão ao
ombro. Outros alunos que estavam a entrar na escola abraçaram-me, como se fosse amiga deles.
- Meu! - disse um deles. - Podemos fazer isto na televisão? - Esticou o dedo do meio.
Outro jornalista materializou-se vindo de trás dos arbustos à minha esquerda.
- A tua irmã costuma falar contigo sobre como se sente, sabendo que a mãe vai instaurar um processo por negligência médica no diagnóstico pré-natal?
"Foi uma decisão familiar?"
"Vais testemunhar?"
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Até ouvir isso, tinha-me esquecido: o meu nome fazia parte de uma estúpida lista, não fosse ser preciso. A minha mãe e Marin disseram que era provável que nunca chegasse a testemunhar, que era apenas por precaução, mas eu não gostava de fazer parte de listas. Parecia-me que alguém estava a contar comigo, e se eu os desiludisse?
Porque não andavam atrás da Emma? Ela também andava naquela escola. Mas eu já sabia a resposta: aos olhos deles, aos olhos de todos, Piper era a vítima. Eu é que pertencia à família da vampira que queria deixar a melhor amiga sem pinga de sangue.
- Amélia? "Aqui, Amélia..." "Amélia!"
- Deixem-me em paz! - gritei. Tapei os ouvidos com as mãos e entrei na escola aos empurrões, passando às cegas por alunos que estavam ajoelhados juntos aos cacifos
e por professores a deslocarem-se com as canecas de café e por casais aos beijos como se fossem estar anos sem se verem, em vez de apenas os quarenta e cinco minutos da aula. Entrei na primeira porta que encontrei - uma casa de banho dos professores - e tranquei-me lá dentro. Fiquei a olhar para a borda limpa de porcelana da sanita.
Sabia como se chamava o que estava a fazer. Mostraram-nos filmes sobre isso nas aulas de saúde; chamavam-lhe distúrbio alimentar. Mas estava completamente errado:
ao fazê-lo, tudo se encaixava no lugar
Por exemplo, ao fazê-lo, detestar-me fazia todo o sentido. Quem não detestaria alguém que comesse como Jabba the Hutt e depois vomitasse tudo? Alguém que se desse ao trabalho de se ver livre da comida que tinha dentro de si mas que, apesar disso, estivesse mais anafada do que nunca? E percebia que o que eu estava a fazer não
era tão mau como a rapariga lá da escola que era anoréctica. Os membros dela pareciam palitos, cheios de tendões; ninguém no seu juízo perfeito me confundiria com
ela. Não estava a fazer isto por me olhar ao espelho e ver uma rapariga gorda, apesar de ser magra - eu era gorda. Aparentemente, nem sequer era capaz de passar fome.
Mas tinha jurado que ia parar. Tinha jurado que ia parar de vomitar, em troca de uma família que permanecesse junta.
"Prometeste", disse a mím própria.
"Há menos de doze horas."
Mas, de repente, ali estava eu, a enfiar o dedo pela garganta abaixo, a vomitar, à espera do alívio que surgia sempre.
Só que daquela vez isso não aconteceu.
348
Piper
Aprendi com a Charlotte que fazer bolos tem tudo a ver com a química. A levedação é um processo biológico, químico ou mecânico e dá origem a vapores ou gases que
fazem a mistura crescer. O mais importante nos fabricos dos bolos é escolher o agente certo de levedação para o polme ou a massa, para o pão ficar com uma textura
macia, os bolos aumentarem, os merengues ficarem espumosos e os soufflés crescerem.
- É por isso - disse-me Charlotte um dia, enquanto estava a ajudá-la a fazer um bolo de aniversário para a Amélia -, que os bolos resultam bem. - Escreveu num guardanapo:
KC4H506 + NaHC03 - C02 f + KNaC4H406
+ H20
- Tive um. Satisfaz a química orgânica - disse-lhe.
- Cremor tártaro mais bicarbonato de sódio dá dióxido de carbono em gás, tartarato de potássio e sódio e água - explicou.
- Exibicionista - respondi.
- Só estou a dizer que não é assim tão simples como bater os ovos com a farinha - disse Charlotte. - Estou a tentar ensinar-te alguma coisa.
- Passa-me a porcaria do extracto de baunilha - disse eu. - Isso apreende-se mesmo na escola de culinária?
- Não se costumam apenas entregar bisturis aos estudantes de medicina, pois não? Primeiro temos de aprender porque fazemos aquilo que fazemos.
Encolhi os ombros.
- Aposto que a Betty Crocker não seria capaz de reconhecer uma equação científica nem que ela lhe saísse de dentro do forno.
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Charlotte começou a misturar os ingredientes.
- Mas conhecia o princípio: um ingrediente numa tigela é um começo. Mas dois ingredientes, ora bem, é uma história completamente diferente.
Eis o que Charlotte não disse: que às vezes até mesmo o pasteleiro mais cuidadoso pode cometer um erro. Que o equilíbrio entre o ácido e o bicarbonato de sódio podia estar desregulado, os ingredientes mal misturados, os sais isolados.
Que nos deixaria um travo amargo na boca.
Na manhã do julgamento, fiquei no duche durante muito tempo, deixando que a água me caísse sobre as costas como um castigo. Ali estava ele: o momento em que enfrentaria Charlotte no tribunal.
Já me tinha esquecido do som da sua voz.
Além da diferença óbvia, não havia grande dissemelhança entre perder a melhor amiga e perder um amante: estava tudo relacionado com a intimidade. Num momento, temos alguém com quem partilhar os maiores triunfos e as falhas fatais; no momento seguinte, temos de guardá-los dentro de nós. Num momento, vamos telefonar-lhe para contar as últimas novidades ou para desabafar, para falar sobre o dia horrível que tivemos, antes de nos apercebermos de que já não temos esse direito; no momento seguinte, já não conseguimos lembrar-nos do seu número de telefone.
Depois de ter passado o choque de ter sido processada, fiquei furiosa. Quem raio pensaria Charlotte que era, arruinando-me a vida para melhorar a sua? No entanto, a raiva é uma chama demasiado intensa para durar muito tempo e, quando se esgotou, fiquei dormente, a pensar. Ela obteria aquilo que desejava? E o que desejaria ela? Vingança? Dinheiro? Paz de espírito?
Às vezes acordava com palavras a pesarem-me na língua como pedras, sobras de um pesadelo recorrente em que Charlotte e eu nos encontrávamos frente a frente. Tinha mil coisas para lhe dizer, e não era capaz de dizer nenhuma. Ao olhar para ela, vendo que também não conseguia falar, reparava que tinha a boca cosida.
Não tinha voltado a trabalhar. Da única vez que tentei, estava a tremer tanto quando me aproximei da porta que nunca cheguei a entrar. Sabia de outros médicos que foram processados por negligência e regressaram à sua rotina, mas aquele processo legal ia além de ter sido ou não possível que eu diagnosticasse osteogénese imperfeita no útero. Não tinham sido as fracturas do esqueleto que eu não tinha visto com antecedência, mas sim os desejos da minha melhor amiga, cuja maneira de pensar, pensava conhecer de trás para a frente. Se não
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fui capaz de interpretar Charlotte correctamente, como podia confiar as minhas capacidades para compreender as necessidades das clientes, que eram completas desconhecidas?
Pensei pela primeira vez na terminologia de gerirmos o nosso próprio consultório médico. Chama-se exercer10. Mas não devemos ter prática suficiente quando abrimos
um?
Estávamos a sofrer um grande rombo financeiro. Tinha prometido ao Rob que ia voltar a trabalhar até ao fim do mês, independentemente de o julgamento ter ou não terminado.
Mas não tinha especificado que tipo de trabalho ia fazer. Ainda não conseguia imaginar-me a vigiar uma gravidez de rotina. Que rotina tinha uma gravidez?
Enquanto estava a preparar-me com Guy Booker, tinha revisto os meus apontamentos e memórias milhares de vezes. Quase acreditei nele quando disse que nenhum médico
podia ser culpado por não diagnosticar OI numa ecografia feita às dezoito semanas de gravidez; que mesmo que suspeitasse vagamente, o procedimento recomendado seria
esperar várias semanas para determinar se o feto sofreria do Tipo II ou do Tipo III. Comportara-me de forma responsável enquanto médica.
Só que não me comportara de forma responsável enquanto amiga.
Devia ter olhado com mais atenção. Devia ter examinado os ficheiros de Charlotte tão metodicamente como teria examinado os meus, se fosse eu a paciente. Mesmo que
tivesse razão numa sala de audiências, desiludira-a como amiga. E, de forma indirecta, desiludira-a também como médica - devia ter recusado quando ela me pediu para
a seguir, no meu consultório. Devia saber que, de alguma forma, a relação que tínhamos fora da sala de observação influenciaria a relação que tínhamos dentro dela.
Agora a água do duche estava a ficar fria; fechei a torneira e enrolei-me numa toalha. Guy Booker dera-me instruções muito específicas relativamente ao que devia
vestir naquele dia; nada de fatos de executiva, nada preto, os cabelos soltos. Comprei um conjunto de camisola e casaco de malha no T.J. Maxx porque era algo que
nunca usava mas que Guy dissera que seria perfeito. A ideia era fazer-me parecer uma mãe vulgar, uma pessoa com quem qualquer mulher no júri se identificasse.
Quando desci as escadas, ouvi música na cozinha. Emma já saíra em direcção à paragem do autocarro mesmo antes de eu ter entrado no duche, e Rob - bem, Rob há três
semanas que chegava ao trabalho às sete e meia da manhã. Isso estava menos relacionado
20. Practice, na versão original em inglês significa igualmente prática. (N. da T.)
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com uma nova ética laboral, achava eu, do que com um desejo ardente de sair de casa antes de eu acordar, no caso de termos alguma conversa educada sem a Emma presente
para servir de amortecedor.
- Até que enfim - disse Rob quando entrei na cozinha. Estendeu a mão em direcção ao rádio e baixou o som, depois apontou para uma travessa que estava em cima da
mesa cheia de roscas.
- Na loja só havia uma rosca de centeio integral - disse ele. Mas também trouxe de malaguetas e Chedar, e de canela e passas...
- Mas eu ouvi-te sair de casa - disse eu. Rob acenou com a cabeça.
- E voltei. Queijo creme vegetal, ou normal?
Não respondi, limitei-me a ficar ali de pé muito quieta, a observá-lo.
- Não sei se cheguei a dizer-te - disse Rob - mas a cozinha está muito mais luminosa desde que a pintaste. Davas uma óptima decoradora de interiores. Quero dizer,
não me interpretes mal, acho que tens mais vocação para obstetra, mas mesmo assim...
A minha cabeça estava a começar a latejar.
- Olha, não quero parecer ingrata, mas o que estás aqui a fazer?
- A torrar uma rosca?
- Sabes o que eu quero dizer.
A torradeira saltou, Rob ignorou-a.
- Há uma razão para termos de dizer "Na alegria e na tristeza." Tenho sido um autêntico idiota, Piper. Desculpa - olhou para baixo, para o espaço entre nós. - Não
fizeste nada para te processarem; este processo veio ter contigo. Tenho de admitir, fez-me pensar em coisas que pensava que nunca mais teria de recordar. Mas independentemente
de tudo isso, não fizeste nada de mal. Sempre providenciaste à Charlotte e ao Sean os cuidados médicos devidos. Pelo contrário, até te esforçaste mais.
Senti um soluço subir-me à garganta.
- O teu irmão - consegui dizer.
- Não sei se a minha vida seria muito diferente se ele nunca tivesse nascido - disse Rob num tom suave. - Mas uma coisa sei: gostei muito dele, enquanto aqui esteve.
- Olhou para mim. - Não posso retirar aquilo que te disse, e não posso apagar o meu comportamento ao longo dos últimos meses. Mas mesmo assim estava à espera que
não te importasses que eu fosse contigo.
Não sabia como ele conseguira arranjar tempo ou quanto tempo teria livre. Mas olhei para Rob e vi atrás dele os novos armários que eu tinha instalado, a iluminação
azul, a pintura acobreada e quente 352
nas paredes e, pela primeira vez, não vi uma divisão que precisava ser aperfeiçoada; vi um lar.
- com uma condição - avancei. Rob acenou com a cabeça. -Diz.
- Eu fico com a rosca de centeio integral - disse eu, e dirigi-me para os seus braços abertos.
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Marin
Uma hora antes de o julgamento começar, não sabia ao certo se a minha cliente estava a pensar em aparecer ou não. Tentara telefonar-lhe durante todo o fím-de-semana
e não tinha conseguido contactar com ela através da linha fixa nem do telemóvel. Quando cheguei ao tribunal e vi as equipas de jornalistas a cobrirem os degraus,
tentei novamente telefonar-lhe.
"Tentou contactar com os O'Keefe", entoou o atendedor de chamadas.
Isso não era inteiramente verdade se Sean avançasse com o divórcio. Mas, por outro lado, pelo que conhecia de Charlotte, uma informação transmitida ao público podia não corresponder ao que estava a acontecer nos bastidores e. para ser sincera, nem isso me interessava particularmente, desde que ela não se confundisse com a retórica no banco das testemunhas.
Soube quando ela chegou. O troar nas escadas era audível e, quando finalmente entrou pela porta do tribunal, os jornalistas entraram atrás dela. Dei-lhe imediatamente o braço, dizendo entre dentes "Não faça comentários" enquanto arrastava Charlotte pelo corredor para dentro de uma sala privada, trancando a porta atrás de mim.
- Meu Deus - disse ela, ainda estupefacta. - São tantos.
- Hoje há poucas notícias em New Hampshire - concluí. Gostaria de ter ficado à sua espera no parque de estacionamento para a levar pelas traseiras, mas para isso seria preciso que tivesse respondido às sete mil mensagens que lhe enviei neste fim-de-semana, para podermos combinar uma hora para nos encontrarmos.
Charlotte ficou a olhar distraidamente pela janela para as carrinhas brancas com as suas antenas parabólicas.
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Não sabia que tinha telefonado. Não estive em casa. A Willow
fracturou o fémur. Passámos o fim-de-semana no hospital, para lhe implantarem uma vareta cirurgicamente.
Senti as faces arderem de vergonha. Charlotte não tinha ignorado os meus telefonemas; estivera a atender uma emergência.
- Ela está bem?
- Fracturou o fémur ao fugir de nós. O Sean contou-lhe sobre o divórcio.
- Não me parece que alguma criança goste de ouvir uma coisa dessas - hesitei. - Sei que tem muito em que pensar, mas gostaria de conversar alguns minutos consigo, sobre o que vai acontecer hoje...
- Marin - disse Charlotte. - Não consigo.
- Desculpe?
- Não consigo - olhou para mim. - Acho que não vou ser capaz de avançar com isto.
- Se é por causa da comunicação social...
- É por causa da minha filha. É por causa do meu marido. Não me interessa o que o resto do mundo pensa de mim, Marin. Mas interessa-me o que eles pensam.
Pensei nas inúmeras horas que passei a preparar-me para aquele julgamento, todas as testemunhas especializadas que entrevistara e todas as moções que preenchera. De alguma forma, na minha cabeça, estava relacionado com a busca infrutífera pela minha mãe que, finalmente, retribuíra o telefonema de Maisie, a secretária do tribunal, a pedir-lhe que lhe enviasse a minha carta.
- Agora é um pouco tarde para me dar esta notícia, não lhe parece?
Charlotte virou-se para mim.
- A minha filha acha que eu não a quero, por causa das fracturas.
- Em quem acha que ela acreditaria?
- Em mim - disse Charlotte num tom suave. - Achei que ela acreditaria em mim.
- Então faça-a acreditar. Sente-se naquele banco das testemunhas e diga-lhe que a adora. Não quero que minta quando estiver a testemunhar. Mas com certeza que não quero que se julgue a si própria antes que o júri o faça.
- Como poderão eles não me julgar? Até a Marin me julgou. Chegou mesmo a admitir que se a sua mãe fosse como eu, não estaria aqui hoje.
- A minha mãe era como a Charlotte - confessei. - Não teve escolha. - Sentei-me a uma secretária em frente de Charlotte. - Passadas apenas algumas semanas depois de eu nascer o aborto tornou-se legal.
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Não sei se teria tomado a mesma decisão se eu tivesse sido concebida nove meses depois. Não sei se a vida dela teria sido melhor. Mas sei que teria sido diferente.
- Diferente - repetiu Charlotte.
- Há um ano e meio disse-me que queria que a Willow tivesse oportunidade de fazer coisas que de outra forma não poderia fazer disse. - A Charlotte não acha que merece o mesmo?
Sustive a respiração até Charlotte levantar o rosto para mim.
- Quanto tempo falta para começarmos? - perguntou.
O júri, que parecera tão díspar na sexta-feira, na segunda-feira de manhã já parecia um grupo unificado. O juiz Gellar tinha pintado os cabelos, no fim-de-semana, de um negro profundo que me atraíra o olhar como um íman, fazendo-o parecer um sósia do Elvis - nunca era uma boa imagem para se associar a um juiz que desesperamos por impressionar. Quando instruiu as quatro câmaras que tinham sido autorizadas a entrar para fazer a reportagem do julgamento, quase fiquei à espera que começasse a entoar o coro retumbante de "Burning Love".
A sala de audiências estava repleta - da comunicação social, de defensores dos direitos das pessoas com incapacidade, de pessoas que gostavam de assistir a um bom espectáculo. Charlotte estava a tremer ao meu lado, a olhar para o colo.
- Dr.a Gates - disse o juiz Gellar. - Quando estiver pronta. Apertei a mão de Charlotte e depois levantei-me, virando-me
para o júri.
- bom dia, senhoras e senhores - disse eu. - Gostaria de falar-vos de uma menina chamada Willow O'Keefe.
Aproximei-me deles.
- A Willow tem seis anos e meio - disse eu -, e já fracturou sessenta e oito ossos durante a sua vida. A fractura mais recente ocorreu na sexta-feira à noite, quando a mãe regressou a casa depois da selecção do júri. A Willow estava a correr e escorregou. Fracturou o fémur e teve de ser submetida a uma cirurgia para lhe colocarem uma vareta dentro dele. Mas a Willow já fracturou ossos ao espirrar. Ao dar um encontrão numa mesa. Ao virar-se a dormir. Isso acontece porque a Willow sofre de osteogénese imperfeita, uma doença que talvez conheçam como síndroma dos ossos de vidro. Significa que é susceptível, e sempre será, de fracturar ossos.
Levantei a mão direita.
- Uma vez parti o braço quando estava no segundo ano. Uma rapariga chamada Lulu, que era a mais agressiva da turma, achou que
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seria engraçado empurrar-me da estrutura de ferro para nos balançarmos no recreio, para ver se eu era capaz de voar. Não me lembro muito bem da fractura, só que
doía terrivelmente. De cada vez que a Willow fractura um osso, dói-lhe tanto como se vocês ou eu fracturássemos um osso. A diferença é que os dela fracturam-se muito mais rapidamente, e com maior facilidade. Por causa disso, desde o nascimento, a osteogénese imperfeita implicou uma vida cheia de percalços, reabilitação, terapia e cirurgias para a Willow, uma vida de sofrimento. E a osteogénese imperfeita interrompeu a vida da sua mãe, Charlotte.
Voltei a dirigir-me para a nossa mesa.
- Charlotte O'Keefe era uma chefe de pastelaria bem-sucedida, cuja força era uma vantagem. Estava habituada a carregar sacas de farinha de vinte quilos e a sovar
a massa: e agora cada movimento dela é feito com delicadeza, visto que só por pegar ao colo na filha pode provocar-lhe uma fractura. Se perguntarem a Charlotte,
ela dir-vos-á o quanto ama a Willow. Dir-vos-á que a filha nunca a desilude. Mas não pode dizer o mesmo sobre a sua obstetra, Piper Reece, que era sua amiga, senhoras e senhores, que sabia que o feto tinha algum problema e não disse nada a Charlotte, de forma a que ela pudesse tomar a decisão que todas as futuras mães têm o direito de tomar.
Voltando-me novamente para o júri, abri bem as mãos.
- Não cometam nenhum erro, senhoras e senhores, neste caso não estão em causa os sentimentos. Não está em causa o facto de Charlotte O'Keefe adorar a filha. Isso
é um dado adquirido. O que está em causa neste caso são os factos: factos de que Piper Reece tinha conhecimento e que ignorou. Factos que não foram comunicados à
paciente por uma médica em quem ela confiava. Ninguém culpa a Dr.a Reece pela doença de Willow; ninguém está a dizer que ela provocou a doença. A Dr.a Reece é culpada
por não transmitir aos O'Keefe toda a informação que possuía. Estão a ver, na ecografia das dezoito semanas de gravidez de Charlotte, já havia sinais de que o feto
sofria de osteogénese imperfeita: sinais que a Dr.a Reece ignorou
- disse eu.
- Imaginem que os senhores, membros do júri, entravam nesta sala de audiências à espera que eu vos explicasse os pormenores deste caso, e eu explicava, mas não vos dava uma informação crucial. Agora imaginem que, semanas depois de terem anunciado o veredicto, ficavam a saber essa informação. Como se sentiriam? Zangados? Perturbados? Enganados? Talvez até perdessem o sono à noite a pensar que se aquela informação fosse apresentada mais cedo, teria mudado o vosso voto - continuei. - Se eu ocultasse informações
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durante o julgamento, isso seria motivo para apresentar recurso. Mas quando um médico oculta informações a um paciente, é negligência.
Examinei o júri.
- Agora imaginem que as informações que ocultei afectavam não apenas o resultado do julgamento ao qual presidiam... mas todo o vosso futuro. - Voltei a dirigir-me para o meu assento. - É precisamente por isso, senhoras e senhores, que Charlotte O'Keefe está aqui hoje.
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Charlotte
Sentia Piper fitar-me.
Assim que Marin se levantou e começou a falar, Piper conseguiu ver-me directamente do outro lado da sala, onde estava sentada a uma mesa com o seu advogado. O olhar
dela estava a abrir-me um buraco na pele; tive de desviar o rosto para não me queimar.
Algures atrás dela estava Rob. Os olhos dele também estavam fixos em mim, como picadas de alfinete, como lasers. Eu era o vértice, e eles eram os raios do ângulo. Agudo, de alguma forma menor do que o todo.
Piper já não parecia a Piper. Estava mais magra, mais velha. Vestia uma roupa de que teríamos troçado enquanto íamos às compras, que teríamos atribuído ao grupo das Mães das Patinadoras.
Imagino que também eu estaria diferente - se é que isso seria sequer possível, visto que assim que a processei me transformei numa pessoa que ela nunca pensou que eu fosse.
Marin sentou-se na cadeira ao meu lado com um suspiro.
- Lá vai ele - sussurrou ela quando Guy Booker se levantou e abotoou o casaco do fato.
- Eu não duvido que Willow O'Keefe tenha partido... o que foi que a Dr.a Gates disse?... sessenta e oito ossos. Mas a Willow também teve uma festa de aniversário temática, do cientista maluco, em Fevereiro. Tem um poster da Hannah Montana pendurado por cima da cama, e teve a nota mais alta num teste de leitura a nível distrital
no ano passado. Detesta cor-de-laranja, o cheiro a couve cozida e pediu um macaco ao Pai Natal, no Natal passado. Por outras palavras, senhoras e senhores, em muitos
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aspectos Willow O'Keefe não é diferente de qualquer menina de seis anos.
Aproximou-se do banco dos jurados.
- Sim, tem uma incapacidade. E sim, tem necessidades especiais. Mas isso implica que não tem o direito de estar viva? Que o nascimento dela não devia ter acontecido? Porque é disso que este caso realmente trata. O ilícito chama-se negligência médica no diagnóstico pré-natal por uma razão e, acreditem-me, é difícil de entender. Mas sim, é verdade, esta mãe, Charlotte O'Keefe, afirma que desejava que a filha não tivesse nascido.
Senti um choque percorrer-me, tão nítido como um relâmpago.
- Vão ouvir a mãe de Willow falar sobre o sofrimento da filha. Mas também vão ouvir o pai dela dizer que Willow adora a vida. E vão ouvi-lo falar na alegria que esta criança trouxe à sua vida e o que ele pensa deste alegado nascimento indevido. É verdade. Não estão a ouvir mal. O próprio marido de Charlotte O'Keefe discorda deste processo legal que a mulher instaurou e recusou-se a participar num esquema para explorar os vastos recursos das companhias de seguros médicos.
Guy Booker aproximou-se de Piper.
- Quando um casal sabe de uma gravidez, imediatamente deseja que a criança seja saudável. Todos querem filhos perfeitos. Mas a verdade é que não há garantias. A verdade, senhoras e senhores, é que Charlotte O'Keefe está aqui por duas razões, e duas razões apenas: para receber algum dinheiro e para apontar o dedo a outra pessoa.
Às vezes, quando estava a fazer bolos, abria o forno ao nível dos olhos e era atingida por um calor tão forte e intenso que me cegava temporariamente. As palavras de Guy Booker tiveram o mesmo efeito naquele momento. Apercebi-me de que Marin tinha razão. Podia dizer que te amava e podia instaurar um processo por negligência médica no diagnóstico pré-natal sem me contradizer. Era um pouco como dizer a alguém, depois de ter visto a cor verde, que se esquecesse completamente da sua existência. Nunca seria capaz de apagar a marca da tua mão a segurar na minha ou da tua voz nos meus ouvidos. Não conseguia imaginar a vida sem ti. Se nunca te tivesse conhecido, a história seria diferente, não seria a nossa história.
Nunca me permiti pensar que alguém pudesse ser responsável pela tua doença. Disseram-nos que fora causada por uma mutação espontânea, que Sean e eu não éramos portadores.
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Disseram-nos que não podia ter feito nada durante a gravidez que te impedisse de sofrer fracturas dentro do útero. Mas eu sou tua mãe e transportei-te ao abrigo
do meu coração. Fui eu que convoquei a tua alma a este mundo; fui eu a razão de teres ficado neste corpo partido. Se não me tivesse esforçado tanto por ter um bebé, não terias nascido. Pelo que percebia, era culpada por inúmeras
razões.
A menos que a culpa fosse de Piper. Se fosse esse o caso,
então eu estava exonerada.
O que significava que Guy Booker também tinha razão.
Aquele processo legal, que instaurei por ti, que jurara que fora só a pensar em ti, afinal fora a pensar em mim.
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"Ainda te lembras das estrelas cadentes
que percorriam os céus como cavalos velozes
e de repente saltavam as barreiras
dos nossos desejos - lembras-te? E nós
tínhamos tantos! Pois havia inúmeras
estrelas: cada vez que olhávamos para cima ficávamos
estupefactos com a rapidez do seu jogo ousado,
enquanto nos nossos corações estávamos protegidos e seguros
a ver aqueles corpos brilhantes desintegrarem-se,
sabendo que, de alguma forma, sobrevivêramos à sua queda."
- REINER MARIA RILKE, "FALLING STARS"
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Levedar: a parte da receita em que se deixa a massa crescer.
É necessário deixar levedar a massa duas vezes quando se faz o pão. A levedura é deixada levedar em água e um pouco de açúcar
para termos a certeza de que ainda está activa antes de avançarmos com a receita. Mas levedar também é a fase em que a massa duplica de tamanho, o momento em que,
de repente, cresce em proporções dinâmicas em relação à quantidade inicial.
O que faz a massa crescer? A levedura, que transforma a glicose e outros bidratos de carbono em gás dióxido de carbono. Pães diferentes levedam deforma diferente.
Alguns precisam apenas de levedar uma só vez; outros, muitas. Entre estas fases, o padeiro deve sovar a massa.
Não me surpreende que - para fazer o pão, e também na vida
- o crescimento implique sempre um pequeno acto de violência.
ROLINHOS CARAMELIZADOS
MASSA
2,5 chávenas de farinha
0,4 chávena de açúcar
1 colher de chá de sal
2 pacotes de levedura seca activa
1 chávena de leite aquecido
1 ovo
0,5 chávena de manteiga, amolecida
CARAMELO
0,5 chávena de açúcar mascavado,
2 chávena de manteiga sem sal
1/4 chávena de xarope de milho
Meia chávena de nozes peca cortadas em metades
2 colheres de sopa de manteiga, amolecida
RECHEIO
Meia chávena de nozes peca, picadas
2 colheres de sopa de açúcar
2 colheres de sopa de açúcar mascavado
1 colher de chá de canela.
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Uma vez disseste-me que a melhor parte de um domingo ocioso era acordar e cheirar qualquer coisa tão deliciosa que acabamos por descer as escadas atrás desse aroma.
Esta é uma daquelas receitas que, como a maior parte dos pães, precisa de planeamento - mas, por outro lado, quando é que não estou a fazer planos para ti?
Para fazer a massa, misturar as 2 chávenas de farinha, um terço de chávena de açúcar, sal e levedura numa tigela grande. Acrescentar o leite aquecido, o ovo, um terço de chávena
de manteiga e bater a baixa velocidade por um minuto. Acrescentar farinha se necessário para tornar a massa mais fácil de dar forma.
Numa superfície levemente polvilhada com farinha, amassar durante 5 minutos. Aproveito para dizer que esta era a tua parte preferida - punhas-te de pé numa cadeira
e apoiavas todo o peso do teu corpo. Após terminar, colocar a massa numa tigela untada e virá-la uma vez, para que a parte engordurada fique virada para cima. Tapar
e deixar levedar até ter o dobro do tamanho, cerca de 1 hora. Está pronta quando carregar com um dedo e ficar marca.
A seguir é o caramelo: mexendo sem parar, juntar três quartos de chávena de açúcar mascavado e 'A chávena de manteiga até ferver. Retirar do lume e acrescentar o xarope de
milho.
Colocar a mistura num tabuleiro de 33 por 23 por 5 centímetros sem untar. Polvilhar a mistura com as metades de nozes peca.
Para o recheio, misturar as nozes peca picadas, as 2 colheres de sopa de açúcar, as 2 colheres de sopa de açúcar mascavado e a canela. Reservar.
Sovar a massa com os punhos. Depois, numa superfície levemente polvilhada com farinha, achatá-la para formar um rectângulo de cerca de 40 por 25 centímetros. Barrar com 2 colheres de sopa de manteiga e depois polvilhar uniformemente com a mistura das nozes peca picadas. Começando pelo lado do rectângulo de 25 centímetros, enrolar a massa bem apertada e fechar as extremidades. Enrolar, esticar e moldar até ficar cilíndrica.
Cortar em oito fatias iguais e colocar num tabuleiro, sem que se toquem. Cobrir bem o tabuleiro com folha de alumínio e colocar no frigorífico durante pelo menos doze horas. Sonhe com eles a crescerem, a levedarem outra vez, uma prova de que às vezes as coisas ficam muito maiores do que poderíamos imaginar.
Aquecer o forno a 180? C e deixar cozer durante 35 minutos. Quando estiverem dourados, retirar do forno. Colocar imediatamente numa travessa e servir quentes.
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Marin
Alguns minutos depois
Sempre pensei no termo prestar testemunho. Testemunhar será assim tão difícil? Ou seria um jargão a ideia de que uma testemunha traz algo de novo ao julgamento?
Isso sem dúvida que era verdade, mas não como seria esperado. O depoimento das testemunhas tem sempre falhas. É melhor do que provas circunstanciais, claro, mas
as pessoas não são câmaras de vídeo; não gravam cada acção e reacção, e o próprio acto de recordar implica escolher palavras, frases e imagens. Por outras palavras,
cada testemunha que apresente factos perante o tribunal, está apenas a transmitir uma versão ficcionada.
Charlotte O'Keefe, que naquele momento estava no banco das testemunhas, nem sequer era capaz de testemunhar sobre a sua própria vida, apesar de a ter vivido. Ela
própria admitira que não era imparcial; ela própria admitira que só se lembrava da sua história quando esta estava entrelaçada na de Willow.
Eu seria uma péssima testemunha. Não sabia quando começava a história da minha vida.
Charlotte cruzara as mãos no colo e respondera às três primeiras perguntas:
"Como se chama?" ( "Onde mora?"
"Quantos filhos tem?"
Mas hesitara na quarta pergunta:
"É casada?" -
Teoricamente, a resposta era sim. Mas, na prática, teria de ser averiguado - ou Guy Booker usaria a separação de Charlotte e Sean em seu proveito.
Tinha treinado Charlotte para dizer a resposta certa, e ainda não tínhamos conseguido ensaiá-la sem ficar lavada
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em lágrimas. Enquanto esperava pela resposta, dei por mim a suster a respiração.
- Agora sou - disse Charlotte pausadamente. - Mas ter uma filha com necessidades tão especiais... isso causou muitos problemas no meu casamento. O meu marido e eu
estamos presentemente separados - expirou, num assobio lento.
"Muito bem", pensei eu.
- Charlotte, pode falar-nos da forma como a Willow foi concebida? - ao ouvir uma jurada mais idosa arquejar, acrescentei não propriamente o acto em si... mas sim
a decisão que tomou de ser mãe.
- Já era mãe - disse Charlotte. - Fui mãe solteira durante cinco anos. Quando conheci o Sean ambos sabíamos que queríamos ter mais filhos... mas parecia que isso
não nos estava destinado. Tentei engravidar durante quase dois anos e estávamos prestes a iniciar tratamentos de fertilidade quando, bem, aconteceu.
- Como se sentiu?
- Ficámos extasiados - respondeu Charlotte. - Sabe como às vezes a nossa vida é tão perfeita que receamos o instante seguinte, por ser impossível que seja tão bom?
Era assim que nos sentíamos.
- Que idade tinha quando engravidou?
- Trinta e oito - Charlotte sorriu um pouco. - Uma gravidez geriátrica, dizem.
- Ficou preocupada com isso?
- Sabia que as probabilidades de ter uma criança com Síndroma de Down são maiores acima dos trinta e cinco anos.
Aproximei-me do banco das testemunhas.
- Falou nisso à sua obstetra?
- Sim.
- Pode dizer perante o tribunal quem era a sua obstetra na altura?
- Piper Reece - disse Charlotte. - A arguida.
- Como escolheu a arguida para ser sua obstetra? Charlotte olhou para baixo, para o colo.
- Era a minha melhor amiga. Confiava nela.
- O que fez a arguida para responder às suas preocupações por poder ter uma criança com Síndroma de Down?
- Recomendou que eu fizesse algumas análises ao sangue... um teste triplo... para ver se eu tinha mais probabilidades do que o normal de ter um bebé com defeitos neurais, ou Síndroma de Down. Em vez de um risco de um em duzentos e setenta, tinha um risco de um em cento e cinquenta.
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- O que recomendou ela? - perguntei.
- Uma amniocentese - respondeu Charlotte - mas eu sabia que também implicava riscos. Visto que tinha uma ecografia de rotina marcada para as dezoito semanas, ela
disse que primeiro podíamos interpretar os resultados desta ecografia e depois tomar uma decisão relativamente à amniocentese com base nos mesmos. Não era tão exacto
como uma amniocentese, mas supostamente há alguns sinais cuja presença podiam sugerir Síndroma de Down ou excluí-lo como menos provável.
- Lembra-se dessa ecografia? - perguntei. Charlotte acenou com a cabeça.
- Estávamos tão entusiasmadas por ver o bebé! E, ao mesmo tempo, eu estava nervosa: porque sabia que a técnica ia procurar esses sinais do Síndroma de Down. Estive sempre a observá-la, à procura de pistas. A determinada altura ela inclinou a cabeça e disse, "Hum." Mas quando lhe perguntei o que vira, disse-me que a Dr.a Reece ia interpretar os resultados.
- O que lhe disse a arguida?
- Piper entrou na sala, e eu soube, só de olhar para a cara dela, que o bebé não tinha Síndroma de Down. Perguntei-lhe se tinha a certeza, e ela disse que sim, que a técnica até tinha comentado que as imagens eram muito nítidas. Obriguei-a a olhar-me nos olhos e a dizer-me que estava tudo bem, e ela disse que havia apenas uma medida que se desviava um pouco do normal, um fémur que estava no percentil seis. Piper disse que não era nada com que devesse ficar preocupada, visto que sou baixa, e que na ecografia seguinte, essa mesma medida poderia já estar no percentil cinquenta.
- Ficou preocupada por as imagens da ecografia serem muito nítidas?
- Porque haveria de ficar? - perguntou Charlotte. - Piper parecia não estar preocupada, e eu presumi que esse era o objectivo de uma ecografia: obter boas imagens.
- A Dr.a Reece aconselhou uma ecografia mais detalhada? -Não.
- Fez mais alguma ecografia durante a gravidez?
- Sim, às vinte e sete semanas. Não foi bem um exame, foi mais uma brincadeira: fizemo-la no consultório dela depois do horário de expediente, para descobrir o sexo do bebé.
Virei-me para o júri.
- Lembra-se dessa ecografia, Charlotte?
- Sim - disse ela num tom suave. - Nunca irei esquecê-la. Estava deitada na marquesa e Piper tinha o transdutor encostado à
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minha barriga. Estava a olhar para o ecrã do computador. Perguntei-lhe quando podia ver, mas ela não respondeu. Perguntei-lhe se ela estava bem.
- Qual foi a resposta dela?
Charlotte olhou para o outro lado da sala e fixou os olhos nos de Piper.
- Que ela estava bem. Mas que a minha filha não.
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Charlotte
- O que estás a dizer? O que foi? - apoiei-me nos cotovelos a olhar para o ecrã, a tentar perceber as imagens que se deslocavam com os meus movimentos.
Piper apontou para uma linha negra que me parecia igual a todas as linhas negras no ecrã.
- Ela tem ossos partidos, Charlotte. Alguns.
Abanei a cabeça. Como era possível? Não tinha caído.
- vou telefonar à Gianna Del Sol. É a directora do departamento de medicina materno-fetal no hospital; ela poderá explicar mais pormenorizadamente...
- Explicar o quê! - gritei, na corda bamba do pânico.
Piper afastou o transdutor da minha barriga e o ecrã ficou vazio.
- Se é o que eu acho que é, osteogénese imperfeita, é mesmo muito raro. Só li sobre isso, quando estava na faculdade de Medicina. Nunca vi um paciente que sofresse dessa doença - disse ela.
- Afecta os níveis de colagénio, por isso os ossos fracturam-se mais facilmente.
- Mas o bebé - disse eu. - Vai ficar bem, não vai?
Era nessa altura que a minha melhor amiga me abraçava e dizia, "Sim, claro, não sejas tola." Era nessa altura que Piper me dizia que era daqueles problemas de que daí a dez anos nos riríamos na nossa festa de aniversário. Só que Piper não disse nada disso.
- Não sei - admitiu. - Sinceramente não sei.
Deixámos o meu carro no consultório de Piper e voltamos para casa para contar a Sean. Durante todo o caminho, estive sempre a pensar na mesma coisa, a tentar lembrar-me de quando aquelas fracturas podiam ter acontecido: no restaurante, quando
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deixei cair aquela barra de manteiga e me baixei para apanhá-la? No quarto de Amélia, ao tropeçar numas calças de pijama enrodilhadas? Na auto-estrada, quando fiz uma travagem brusca e o cinto de segurança me apertou a barriga?
Fiquei sentada à mesa da cozinha enquanto Piper contava a Sean o que sabia - e o que não sabia. De vez em quando, sentia-te dentro de mim, num tango lento. Tinha medo de tocar na barriga e sentir-te. Durante sete meses tínhamos sido uma só integradas e inseparáveis - mas, naquele momento, parecias-me estranha. Às vezes no duche, quando fazia o auto-exame da mama, interrogava-me o que faria se me fosse diagnosticado um cancro - quimioterapia, radioterapia, cirurgia? - e decidi que queria que me tirassem imediatamente o tumor, que não aguentaria passar uma noite sabendo que estava a crescer debaixo da minha pele. Tu - que há algumas horas atrás eras tão preciosa para mim
- de repente parecias-me assim: estranha, perturbante, outra.
Depois de Piper ir embora, Sean transformou-se num homem de acção.
- Vamos procurar os melhores médicos - jurou. - Faremos tudo o que for preciso.
Mas e se não pudéssemos fazer nada?
Observei Sean no seu zelo febril. Eu nadava através de um xarope viscoso, pendular. Mal conseguia mexer-me, quanto mais assumir o comando. Tu, que anteriormente nos aproximaste tanto, eras agora o holofote que iluminava as nossas diferenças.
Naquela noite, não consegui adormecer. Fiquei a olhar para o tecto até o clarão vermelho dos números do rádio despertador se espalharem como fogo descontrolado; fiz uma contagem decrescente daquele momento até ao momento da tua concepção. Quando Sean se levantou da cama silenciosamente, fingi que estava a dormir, mas só porque sabia aonde ele ia: procurar osteogénese imperfeita na Internet. Também tinha pensado em fazer isso, mas não era tão corajosa como ele. Ou talvez fosse menos ingénua: ao contrário dele, acreditava que o que ficávamos a saber podia ser pior do que o que já sabíamos.
Acabei por cair no sono. Sonhei que tinham rebentado as águas, que estava a ter contracções. Tentei virar-me para dizer a Sean, mas não fui capaz, não conseguia mexer-me. Os braços, as pernas, o maxilar; de alguma forma sabia que estava quebrada irremediavelmente. E de alguma forma sabia que o que quer que fosse que tive dentro de mim todos aqueles meses se tinha liquefeito, ensopando os lençóis debaixo de mim, já não era um bebé.
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O dia seguinte foi um turbilhão: desde uma ecografia de alto nível em que até eu conseguia ver as fracturas, até uma consulta com Gianna Del Sol para discutir os resultados.
Ela referiu termos que na altura não significavam nada para mim: Tipo II, Tipo III. Colocar varetas. Macrocefalia. Disse-nos que tinha nascido outra criança com OI
naquele hospital, alguns anos antes, com dez fracturas - e que tinha morrido no espaço de uma hora.
Depois encaminhou-nos para o geneticista, o Dr. Bowles.
- Vejamos - disse ele, indo directo ao assunto, sem dizer "lamento muito que tenham tido de ouvir estas notícias". - Aqui, o melhor cenário - será uma bebé que sobreviva ao nascimento, mas, mesmo nesse caso, um Tipo III pode sofrer hemorragias cerebrais provocadas por trauma durante o nascimento ou um perímetro cefálico aumentado comparado com o resto do corpo. O mais provável é que venha a desenvolver escoliose, que tenha de ser submetida a diversas cirurgias devido a múltiplas fracturas
ósseas, que necessite de colocar varetas na coluna, ou tenha vértebras fundidas. A forma da caixa torácica não permitirá o crescimento dos pulmões, o que pode conduzir a repetidas infecções respiratórias, ou até mesmo à morte.
Surpreendentemente, aquele era um conjunto de sintomas completamente diferente do que a Dr.a Del Sol já nos tinha informado.
- E claro, estamos a falar em centenas de ossos partidos e, realisticamente, de grandes hipóteses de nunca chegar a ser capaz de andar. Basicamente - disse o geneticista - embora curta, será uma vida de sofrimento.
Sentia Sean ao meu lado, enrolado como uma cobra, pronto a descarregar a sua própria raiva e desgosto naquele homem que estava a falar connosco como se não se tratasse de ti, a nossa filha, mas de um carro a precisar de mudar o óleo.
O Dr. Bowles olhou para o relógio.
- Alguma pergunta?
- Sim - disse eu. - Por que razão ninguém nos disse nada antes? Lembrei-me de todas aquelas análises ao sangue que tinha
feito, da ecografia anterior. com certeza que se a minha bebé era assim tão doente - que viesse a sofrer assim tanto durante toda a vida - não devia ter-se notado alguma coisa antes?
- Bem - disse o geneticista - nem o senhor nem a sua mulher são portadores de OI, daí não ter sido feito um exame de rotina
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antes da concepção, nem ter sido algo que a obstetra estivesse a vigiar. Mas até é uma boa notícia que a doença tenha resultado de uma mutação espontânea.
"O meu bebé é um mutante", pensei. "Seis olhos. Antenas. Levem-me ao vosso líder."
- Se tiverem outro filho, não há nenhuma razão para pensar que isto vá acontecer outra vez - disse ele.
Sean levantou-se da cadeira, mas eu pus-lhe a mão no braço para o acalmar.
- Como podemos saber se o bebé vai... - não fui capaz de dizer. Baixei os olhos, para que ele soubesse o que eu queria dizer.
- ... à nascença, ou viver mais tempo?
- É muito difícil de dizer nesta altura - disse o Dr. Bowles. Vamos fazer várias ecografias, claro, mas, por vezes, os pais cujo bebé tem um prognóstico fatal, acabam
por ficar com uma criança que sobrevive, ou vice-versa. - Hesitou. - Há uma outra opção: há vários locais neste país onde se pode terminar uma gravidez por razões clínicas relacionadas com a mãe ou com o feto, mesmo numa gravidez tão avançada.
Observei Sean cerrar os dentes em volta da palavra que não queria dizer em voz alta.
- Não queremos fazer um aborto. O geneticista acenou com a cabeça.
- Como? - perguntei.
Sean ficou a olhar para mim, horrorizado.
- Charlotte, sabes como fazem isso? Já vi fotografias...
- Há muitos métodos diferentes - respondeu Bowles, olhando directamente para mim. - A dilatação e extracção é um deles, mas também há a indução após paragem cardíaca do feto.
- Feto? -explodiu Sean. - Não é um feto. É da minha filha que estamos a falar.
- Se o terminar a gravidez não for uma opção...
- Opção? Que se lixe a opção. Nem sequer devia ter sido considerada - disse Sean. Agarrou-me, puxando-me para que me levantasse. - Achas que a mãe do Stephen Hawking teve de ouvir este monte de tretas?
O meu coração batia descontroladamente e não conseguia recuperar o fôlego. Não sabia para onde Sean me levava e nem me interessava particularmente. Só sabia que não era capaz de ficar a ouvir aquele médico, nem mais um minuto, a falar da tua vida, ou da ausência dela, como se fosse algum manual que estivesse a ler sobre o Holocausto, a Inquisição, Darfur: verdades tão terríveis e
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gráficas que as evitávamos, admitindo o seu horror sem saber os pormenores.
Sean arrastou-me pelo corredor, para dentro de um elevador que estava a fechar-se.
- Desculpa - disse ele, encostando-se à parede. - Eu... não fui
capaz.
Não estávamos sozinhos lá dentro. À minha direita estava uma mulher cerca de dez anos mais velha do que eu a empurrar uma daquelas cadeiras de rodas do último modelo com uma criança lá sentada. Era um rapaz adolescente, magro e anguloso, a cabeça estava apoiada por um suporte nas costas da cadeira. Os cotovelos estavam torcidos, e os braços virados para fora; tinha os óculos tortos na cana do nariz. Tinha a boca aberta e a língua grossa e gelatinosa - enchia-lhe a boca.
- Aaaaah. - entoava o rapaz. - Aaaaah! A mãe tocou-lhe na face.
- Sim, pois é.
Interroguei-me se realmente entenderia o que ele estava a tentar dizer. Haveria uma linguagem da perda? Todos aqueles que sofriam falariam num dialecto diferente?
Dei por mim a olhar para os dedos da mulher a afagarem os cabelos do filho. Aquele rapaz conheceria o toque da mãe? Sorrir-lhe-ia? Alguma vez diria o nome dela?
E tu?
Sean agarrou-me na mão e apertou-ma com força.
- Nós conseguimos fazer isto - sussurrou ele. - Juntos conseguimos.
Não disse nada até o elevador parar no terceiro andar e a mulher empurrar a cadeira de rodas do filho para o corredor. As portas fecharam-se novamente, isolando-nos num vazio.
- Está bem - disse eu.
- Fale-nos do nascimento da Willow - disse Marin, trazendo-me de novo para o presente.
- Foi antes do tempo. A Dr.a Del Sol tinha marcado uma cesariana mas, em vez disso, eu entrei em trabalho de parto e aconteceu tudo muito depressa. Quando ela nasceu
estava a chorar e levaram-na para fazer radiografias, exames. Só vi a Willow passadas algumas horas e, quando a vi, estava deitada numa almofada de espuma num berço, com ligaduras enroladas à volta dos braços e pernas. Tinha sete fracturas a sarar e quatro novas provocadas pelo nascimento.
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- Aconteceu mais alguma coisa no hospital?
- Sim, a Willow fracturou uma costela, que perfurou o pulmão. Foi... foi a coisa mais assustadora que vi na minha vida. Ficou azul e, de repente, estavam dezenas
de médicos no quarto, que começaram a fazer-lhe reanimação cardio-respiratória e espetaram-lhe uma agulha entre as costelas. Disseram-me que tinha a cavidade torácica cheia de ar, o que fez a traqueia e o coração deslocarem-se para o outro lado do corpo e depois o coração deixou de bater. Fizeram massagem cardíaca: fracturando ainda mais costelas, e colocaram-lhe um tubo no peito para obrigar os órgãos a voltarem ao lugar. Cortaram-na - disse eu. - Enquanto eu estava
a ver.
- Falou com a arguida depois? - perguntou Marin. Acenei com a cabeça.
- Outro médico disse-me que a Willow tinha ficado sem oxigénio durante algum tempo, e que não se sabia se haveria lesões cerebrais. Sugeriu que assinasse uma ONR.
- O que é isso?
- Quer dizer que não deveria ser reanimada. Se acontecesse outra coisa assim à Willow, os médicos não iam intervir. Deixariam a Willow morrer - olhei para o colo. - Pedi à Piper que me aconselhasse.
- Por ela ser a sua médica?
- Não - disse eu. - Por ela ser minha amiga.
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Piper
Tinha falhado.
Foi o que pensei, ao olhar para ti, maltratada e enfaixada, com um tubo no peito a despontar debaixo da quinta costela do lado esquerdo. A minha melhor amiga pedira-me
para ajudá-la a conceber e o resultado fora aquele. Depois da pergunta difícil, se tinhas ou não lugar neste mundo, parecia que estavas a dar a Charlotte a tua resposta. Sem dizer uma palavra, aproximei-me de Charlotte, que estava a olhar para ti a dormir, como se ao desviar o olhar por um só instante pudesses entrar novamente em paragem cardio-respiratória.
Tinha lido a tua ficha. A costela fracturada provocara um pneumotórax de tensão, um desvio do mediastino e uma paragem cardiopulmonar. A intervenção resultante provocara mais nove fracturas. O tubo no peito fora inserido através da faseia, penetrando no espaço pleural da caixa torácica, e suturado no lugar. Parecias um campo de batalha; a guerra travara-se no terreno acidentado do teu corpo minúsculo.
Sem dizer uma palavra, aproximei-me de Charlotte e agarrei-lhe na mão.
- Estás bem? - perguntei.
- Não é comigo que tens de te preocupar - respondeu. Tinha os olhos orlados de vermelho; o robe do hospital torto. - Perguntaram-me se queríamos assinar uma ordem de não reanimação.
- Quem perguntou isso? - nunca tinha ouvido nada tão estúpido. Até à Terri Schiavo só concederam uma ordem de não reanimação depois de os exames indicarem lesões
cerebrais graves e irreversíveis. Já era difícil convencer um pediatra a não interferir em casos de bebés extremamente prematuros com uma elevada taxa de mortalidade
ou de incapacidade para toda a vida - sugerir uma
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ordem de não reanimação a um recém-nascido que apenas tinha sido submetido aos procedimentos habituais depois de uma paragem cardio-respiratória parecia improvável
e impossível.
- O Dr. Rhodes...
- Ele é um médico interno - disse eu, porque isso explicava tudo. Rhohdes mal sabia atar os sapatos, quanto mais falar com uma mãe que sofrera um trauma grave por
causa de um filho. Rhodes nunca devia ter mencionado a ordem de não reanimação a Charlotte e Sean: sobretudo visto que Willow ainda não fora sujeita a exames para
ver se o cérebro estava bem. Por acaso, enquanto ele estava a pedir esse exame, talvez fosse bom fazer ele próprio um.
- Eles cortaram-na à minha frente. Ouvi as costelas dela partirem-se quando eles... quando eles... - o rosto de Charlotte estava branco, atormentado. - Assinarias uma? - sussurrou ela.
Fizera-me a mesma pergunta, por outras palavras, ainda antes de teres nascido. Foi no dia a seguir à ecografia das vinte e sete semanas, quando a encaminhei para a Gianna Del Sol e para a equipa médica de gravidezes de alto risco no hospital. Eu era uma boa obstetra, mas conhecia os meus limites - e não podia dar-lhe os cuidados de que ela na altura precisava. Charlotte ficara traumatizada com um estúpido geneticista cuja conduta para com os pacientes seria mais adequada para aqueles que já estivessem na morgue, e agora eu estava a reparar os estragos enquanto ela soluçava no meu sofá.
- Não quero que ela sofra - disse Charlotte.
Não sabia como havia de abordar delicadamente o assunto de um aborto tardio. Mesmo alguém que não fosse católico, e Charlotte era, teria dificuldade em aceitar essa opção - e, mesmo assim, nunca era tomada de ânimo leve. Os abortos por dilatação e extracção só eram executados por muito poucos médicos no país, médicos altamente especializados e empenhados em terminar gravidezes que envolvessem um grande risco para a saúde da mãe ou do bebé. Em certos casos em que as doenças não pudessem
ser detectadas antes do prazo de doze semanas para os abortos, estes médicos forneciam uma alternativa ao nascimento de um bebé sem hipóteses de sobrevivência.
Podemos argumentar que qualquer um dos resultados deixa marcas nos pais, mas, novamente, tal como Charlotte referira, naquele caso não havia finais felizes.
- Não quero que tu sofras - respondi.
- O Sean não quer fazê-lo.
- O Sean não está grávido. Charlotte desviou o rosto.
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- Como podemos atravessar o país de avião com um bebé dentro de nós e saber que vamos regressar sem ele? - Se é isso que queres, eu vou contigo.
- Não sei - soluçou ela. - Não sei o que quero. - Olhou para mim. - o que farias tu?
Passados dois meses, estávamos de cada um dos lados do teu berço de hospital na unidade de cuidados intensivos neonatais. A sala, repleta de tantas máquinas para
manter os seus pequenos protegidos vivos e funcionais, estava banhada de uma luz de um azul-profundo, como se estivéssemos a nadar debaixo de água.
- Assinarias uma? - Charlotte voltou a perguntar-me, visto não ter respondido da primeira vez.
Podíamos argumentar que seria menos traumatizante terminar uma gravidez do que assinar uma ordem de não reanimação para uma criança que já estivesse neste mundo.
Se Charlotte tivesse tomado a decisão de terminar a gravidez às vinte e sete semanas, a sua perda teria sido devastadora, mas teórica - ainda não te conheceria. Naquele momento, via-se forçada a questionar de novo a tua existência - mas já no hospital, via a dor e o sofrimento com os seus próprios olhos.
O que faria eu?
Voltaria ao instante em que Charlotte me pedira para ajudá-la a ter um bebé, e encaminhá-la-ia para outro médico.
Voltaria à altura em que era mais provável rirmos juntas do que chorarmos.
Voltaria à altura em que ainda não te tinhas metido entre nós.
Faria o que fosse preciso para impedir que sentisses que estava tudo a desmoronar-se.
Se decidissemos parar com o sofrimento de um ente querido antes de começar ou durante o processo - seria assassínio ou misericórdia?
- Sim - sussurrei. - Assinaria.
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Marin
- Tinha de aprender extraordinariamente depressa - disse Charlotte. - Desde como pegar na Willow ao colo ou como mudar-lhe uma fralda sem partir nenhum osso, a saber
que podíamos estar simplesmente com ela ao colo e ouvir um leve estalido que significava que sofrera uma fractura. Descobrimos onde podíamos encomendar camas para
transportar no automóvel e cadeirinhas de bebé adaptadas para que os cintos não lhe fracturassem as clavículas. Começámos a perceber quando tínhamos de ir às urgências e quando nós próprios podíamos colocar uma tala na fractura. Armazenámos os nossos próprios moldes ortopédicos à prova de água na garagem. Viajámos para o Nebraska, porque lá havia cirurgiões ortopédicos especializados em OI, e pusemos a Willow a fazer um tratamento com infusões de pamidronato no Hospital Pediátrico de Boston.
- Alguma vez... bem, à falta de um termo melhor... quebraram o ritmo?
Charlotte sorriu um pouco. :
- Nem por isso. Não fazemos planos. Não nos damos ao trabalho porque nunca sabemos o que vai acontecer. Há sempre umnovo trauma com que temos de aprender a lidar. Uma costela fracturada, por exemplo, não é como uma fractura na coluna - hesitou.
- Aconteceu isso à Willow no ano passado.
Alguém no júri susteve a respiração, um som sibilante que fez Guy Booker revirar os olhos e que me deixou absolutamente encantada.
- Pode dizer perante o tribunal como conseguiu pagar tudo isto?
- Isso é um problema enorme - disse Charlotte. - Antigamente trabalhava, mas depois de a Willow nascer deixei de poder fazê-lo.
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Mesmo quando ela estava no jardim-de-infância, tinha de estar preparada para ir ter com ela a correr se sofresse uma fractura e não se pode fazer isso quando se
é chefe de pastelaria num restaurante. Tentámos contratar uma enfermeira em quem confiássemos para tomar conta dela, mas custava mais do que o meu salário, e por
vezes a agência enviava mulheres que não sabiam nada acerca de OI, que não falavam inglês, que não percebiam o que lhes dizia sobre como deviam cuidar da Willow.
Tinha de defendê-la e de estar sempre presente. - Encolheu os ombros. - Não damos presentes de aniversário ou de Natal caros. Não temos PPRs nem fundos para a universidade das meninas. Não tiramos férias. Todo o nosso dinheiro serve para pagar o que os seguros não cobrem.
- Como por exemplo?
- Willow faz parte de um estudo clínico para receber o pamidronato, por isso é de graça, mas assim que atingir determinada idade deixa de poder participar no estudo, e cada infusão custa mais de mil dólares. Os suportes para as pernas custam cinco mil dólares cada, as cirurgias para a colocação de varetas são cem mil dólares. Uma fusão espinal, que a Willow vai ter de fazer quando for adolescente, pode ser várias vezes mais cara do que isso, sem contar com os bilhetes de avião para Omaha, para a fazer. Mesmo que os seguros cubram uma parte dos custos, o resto temos nós de pagar. E há bastantes artigos menos dispendiosos que se vão acumulando: manutenção da cadeira de rodas, pele de ovelha para forrar os moldes de gesso, embalagens de gelo, roupas que possam ser vestidas por cima do gesso, almofadas diferentes para que a Willow fique mais confortável, rampas de acesso, para pessoas com incapacidade, em casa. E precisará de mais equipamento à medida que vai crescendo: alcançadores de objectos, espelhos e outros equipamentos adaptativos para pessoas de baixa estatura. Até mesmo um carro com pedais mais fáceis de calcar, para não provocarem microfracturas nos pés, custa dezenas de milhar de dólares para ser adequadamente equipado, e a Reabilitação Vocacional apenas paga um veículo: o resto é da nossa responsabilidade, para a vida inteira. Ela pode frequentar a universidade, mas até isso custará mais do que o habitual, por causa de todas as adaptações necessárias, e as melhores escolas para as crianças como a Willow também não ficam perto, o que implica mais despesas de viagem. Já levantámos a poupança-reforma do meu marido e fizemos uma segunda hipoteca. Já esgotei o limite de dois cartões de crédito. Charlotte olhou para o júri. - Eu sei o que vos pareço. Eu sei que acham que estou nisto para receber uma grande indemnização, que foi por isso que instaurei este processo legal.
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Fiquei imóvel, sem saber bem o que ela estava a fazer; não fora isto que ensaiáramos.
- Charlotte, já...
- Por favor - disse ela. - Deixe-me acabar. Os custos são importantes. Mas não os custos financeiros. - Pestanejou para conter as lágrimas. - Não durmo de noite. Sinto-me culpada quando me rio de uma piada na televisão. Vejo meninas da idade da Willow no parque infantil e às vezes odeio-as: acabo por me tornar amarga e invejosa quando vejo como é fácil para elas. Mas no dia em que assinei aquela ordem de não reanimação no hospital, fiz uma promessa à minha filha. Disse: "Se lutares, eu
também vou lutar. Se viveres, vou esforçar-me para que a tua vida seja a melhor possível." É isso que uma boa mãe faz, não é? - Abanou a cabeça. - Normalmente, os
pais tomam conta dos filhos até que, passados alguns anos, os papéis se invertem. Mas no nosso caso, serei sempre eu a tomar conta dela. É por isso que estou aqui hoje. É isso que quero que me digam. Como poderei tomar conta da minha filha depois de já ter morrido?
Podia ouvir-se um alfinete a cair, o bater de um coração.
- Meritíssimo - disse. - Não tenho nada mais a acrescentar.
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Sean
O mar era um monstro, negro e furioso. Estavas igualmente aterrorizada e fascinada por ele; imploravas para ver as ondas a rebentarem no muro de sustentação, mas
cada vez que rebentavam, estremecias nos meus braços.
Tirei folga no trabalho porque Guy Booker tinha dito que todas as testemunhas têm de estar presentes no julgamento no primeiro dia. Mas, de qualquer modo, não podia estar na sala de audiências, até testemunhar. Fiquei lá durante dez minutos - o tempo suficiente para que o juiz me mandasse embora.
Naquela manhã, apercebi-me de que Charlotte pensara que eu ia ao tribunal para apoiá-la. Conseguia perceber por que razão, depois da noite anterior, ela estaria à espera disso. Nos braços dela, fui explosivo, enraivecido e terno, à vez - como se estivéssemos a demonstrar os nossos sentimentos numa pantomina debaixo dos lençóis. Percebi que ficou perturbada quando lhe disse que ia encontrar-me com Guy Booker, mas, devia compreender, melhor do que ninguém, porque continuava a ter de testemunhar contra ela naquele processo legal: fazemos tudo o que for preciso para protegermos os nossos filhos.
Depois de sair do tribunal, tinha ido para casa e dito à enfermeira contratada para tirar folga à tarde. Era preciso ir buscar Amélia à escola às três horas, mas entretanto, perguntei-te o que querias fazer.
- Eu não posso fazer nada - disseste. - Olha para mim.
Era verdade, tinhas a perna toda imobilizada por talas. Mas, ao mesmo tempo, não via por que razão não podíamos ser um pouco criativos para ficarmos mais animados. Levei-te para o carro, embrulhada em cobertores, e aconcheguei-te de lado no assento
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de trás para que a tua perna pudesse ficar esticada. Dessa forma ainda conseguias usar o cinto de segurança e, quando começaste a detectar as características familiares da paisagem que conduzia ao oceano, ficaste mais animada.
Não estava ninguém na praia em finais de Setembro por isso conseguimos estacionar de lado no parque de estacionamento mais perto do muro de sustentação, dando-te uma vista de cima. A cabina da carrinha era suficientemente alta para poderes ver as ondas a avançarem rastejando e a esgueirarem-se para trás, como grandes gatos cinzentos.
- Papá? - perguntaste. - Porque é que não podemos patinar no oceano?
- Acho que podemos, lá no Árctico, mas o resto da água tem demasiado sal para congelar.
- Se congelasse, não seria fantástico se ainda houvesse ondas? Como esculturas de gelo?
- Isso seria fixe - concordei. Olhei por cima do apoio para a cabeça, para ti. - Wills, estás bem?
- Não me dói a perna.
- Não estava a falar da tua perna. Estava a falar do que está a acontecer hoje.
- Havia muitas câmaras de televisão hoje de manhã.
- Pois havia.
- As câmaras fazem-me doer o estômago.
Estendi o braço à volta do assento para agarrar-te na mão.
- Sabes que eu nunca deixaria nenhum daqueles jornalistas incomodar-te.
- A mãe devia fazer bolos para eles. Se eles gostassem mesmo muito dos brownies dela, ou das barras de caramelo, talvez agradecessem e se fossem embora.
- Talvez a tua mãe possa juntar arsénico à massa - pensei em voz alta.
- O quê?
- Nada - abanei a cabeça. - A tua mãe também gosta muito de ti. Sabes isso, não sabes?
Lá fora, o Atlântico atingiu um crescendo.
- Acho que há dois oceanos diferentes: aquele que brinca connosco no Verão, e aquele que fica tão zangado no Inverno - disseste. - É difícil lembrarmo-nos de como é o outro.
Abri a boca, a pensar que não tinhas ouvido o que eu dissera sobre a Charlotte. Mas então percebi que sim.
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Charlotte
Guy Booker era daquele tipo de pessoas de quem Piper e eu teríamos rido se nos tivéssemos cruzado com ele no Maxie's Pad um advogado tão convencido que tinha personalizado
a matrícula, que dizia O MAIOR, do seu T-Bird verde mentol.
- O que lhe interessa mesmo é o dinheiro, não? - perguntou ele.
- Não. Mas o dinheiro é a diferença entre bons e maus cuidados para a minha filha.
- A Willow recebe um subsídio do Programa Katie Beckett através do Programa Healthy Kids Gold, não recebe?
- Sim, mas mesmo assim, isso não cobre todas as despesas de saúde e não cobre nenhuma das outras. Por exemplo, quando uma criança tem o corpo todo engessado, necessita
de um tipo especial de assento para o automóvel. E os problemas dentários associados à OI podem ascender a milhares de dólares por ano.
- Se a sua filha fosse uma pianista dotada, pediria dinheiro para lhe comprar um piano de cauda? - perguntou Booker.
Marin disse-me que ele ia tentar fazer-me zangar, para que o júri ficasse a gostar menos de mim. Respirei fundo e contei até cinco.
- Isso é como comparar maçãs e laranjas, Dr. Booker. Não estamos a falar de educação artística. É a vida da minha filha.
Booker aproximou-se do júri; tive de reprimir o desejo de ver se ele deixava um rasto de óleo.
- A senhora e o seu marido não estão de acordo relativamente a este processo legal, Sr.a O'Keefe, não é verdade?
- Não, não estamos.
- Acha que a causa do seu divórcio poderá ser o facto de o seu marido, Sean, não a apoiar neste processo legal?
- Sim - disse num tom suave.
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- Ele não acha que o nascimento da Willow se deve a negligência médica no diagnóstico pré-natal, pois não?
- Objecção - gritou Marin. - Não pode perguntar-lhe qual é a opinião dele.
- Deferido.
Booker cruzou os braços.
- Mas em todo o caso vai avançar com o processo legal, mesmo que muito provavelmente separe a sua família, não vai?
Imaginei Sean com o seu casaco e gravata naquela manhã, aquele ligeiro ânimo que senti quando pensei que me acompanharia ao tribunal em vez de ficar contra mim.
- Continuo a achar que é o que devo fazer.
- Já conversou com a Willow sobre este processo legal? - perguntou Booker.
- Sim - disse eu. - Ela sabe que eu estou a fazer isto porque gosto muito dela.
- Acha que ela compreende isso?
Hesitei.
- Só tem seis anos. Acho que grande parte da mecânica do processo legal a ultrapassa.
- E quando for mais velha? - perguntou Booker. - Aposto que a Willow é bastante boa a mexer em computadores, não é?
- Claro.
- Já pensou na altura em que, daqui a alguns anos, a sua filha estiver na Internet a pesquisar o seu próprio nome? O seu? Este caso?
- Bem, Deus sabe que não desejo isso, mas espero que, se acontecer, seja capaz de lhe explicar por que razão foi necessário... e que a qualidade de vida que terá na altura será o resultado directo deste processo legal...
- Deus sabe... - repetiu Booker. - Uma escolha interessante de palavras. A senhora é católica praticante, não é?
- Sou.
- Enquanto católica praticante está ciente de que é pecado mortal fazer um aborto?
Engoli.
- Estou, sim.
- Mas a base deste processo legal é que, se tivesse sabido da doença da Willow mais cedo, teria terminado a gravidez, não é verdade?
Sentia os olhos dos jurados fixos em mim. Sabia que a determinado ponto ficaria exposta - como uma atracção de feira, um animal no jardim zoológico - e chegara o momento.
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- Sei o que o senhor está a fazer - disse numa voz tensa. Mas este caso é um caso de negligência médica e não de aborto.
- Isso não é uma resposta, Sr.a O'Keefe. Vamos tentar outra vez: se tivesse ficado a saber que estava grávida de um bebé completamente surdo e cego, teria terminado a gravidez?
- Objecção - gritou Marin. - Isso é irrelevante. A filha da minha cliente não é surda e cega.
- Está relacionado com a ideia de a mãe da criança ser ou não capaz de fazer o que ela diz que teria feito - argumentou Booker.
- Temos de conferenciar - disse Marin, e aproximaram-se ambos do assento do juiz, continuando a discutir em voz alta à frente de toda a gente. - Doutor Juiz, isto é prejudicial. Ele não pode perguntar qual é a decisão da minha cliente relativamente a factos médicos reais que a arguida não partilhou com ela...
- Não me diga como devo defender o meu caso, minha querida - disse Booker.
- Seu grande arrogante...
- vou permitir a pergunta - disse o juiz devagar. - Acho que todos temos de ouvir o que a Sr.a O'Keefe tem para dizer.
Marin lançou-me um olhar controlado ao passar pelo banco das testemunhas - para me lembrar que tinha sido desafiada e que devia estar à altura.
- Sr.a O'Keefe - repetiu Booker - teria abortado uma criança completamente surda e cega?
- Eu... não sei - disse eu.
- Não sabe que Helen Keller era completamente cega e surda? -perguntou ele. - E se descobrisse que estava grávida de um bebé que não tivesse uma mão? Teria terminado a gravidez?
Mantive os lábios cerrados, em silêncio.
- Sabe que Jim Abbot, um lançador com uma só mão, fez um lançamento na primeira liga de basebol e venceu a medalha de ouro olímpica em 1988? - perguntou Booker.
- Não sou a mãe do Jim Abbot. Nem da Helen Keller. Não sei o quanto foram difíceis as infâncias deles.
- Muito bem, então voltamos à questão original: se soubesse da doença da Willow às dezoito semanas de gravidez, tê-la-ia abortado?
- Nunca me deram essa opção - disse numa voz tensa.
- Por acaso até deram - contrariou Booker. - Às vinte e sete semanas. E, segundo o seu próprio testemunho, nessa altura não conseguiu tomar essa decisão. Por isso, porque haveria um júri de acreditar que seria capaz de toma-la algumas semanas antes?
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"Negligência médica", metera-me Marin na cabeça vezes sem conta. "Foi por isso que instaurou este processo legal. Independentemente do que Guy Booker alegar, trata-se de cuidados e escolhas que não teve."
Estava a tremer tanto que enfiei as mãos debaixo das coxas.
- Este caso não é sobre aquilo que eu podia ter feito.
- Claro que é - disse Booker. - De resto, é uma perda de tempo.
- Está enganado. Este caso é sobre aquilo que a minha médica não fez...
- Responda à pergunta, Sr.a O'Keefe...
- Especificamente - disse eu - ela não me deu a hipótese de terminar a gravidez. Devia ter percebido que havia algum problema através daquela primeira ecografia, e devia ter...
- Sr." O'Keefe - berrou o advogado - responda à pergunta. Encostei-me à cadeira e pressionei as têmporas com os dedos.
- Não posso - sussurrei. Olhei para o grão da madeira na balaustrada à minha frente. - Não posso responder-lhe a essa pergunta agora, porque agora a Willow existe. Uma menina que gosta de tranças soltas mas não delas presas, e que fracturou o fémur este fim-de-semana, e que dorme com um porquinho de peluche. Uma menina que me tem tirado o sono nestes seis anos e meio a pensar em como poderei passar o dia seguinte sem nenhuma emergência, e a planear, caso isso aconteça, como hei-de avançar de crise em crise. - Olhei para o advogado. - Às dezoito semanas de gravidez, às vinte e sete semanas de gravidez, não conhecia a Willow como a conheço hoje. Por isso não posso responder à sua pergunta agora, Dr. Booker. Mas a verdade é que ninguém me deu a oportunidade de responder naquela altura.
- Sr.a O'Keefe - disse o advogado secamente. - vou perguntar-lhe pela última vez. Teria abortado a sua filha?
Abri a boca e depois fechei-a.
- Não tenho nada mais a acrescentar - disse ele.
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Amélia
Naquela noite, jantei sozinha com os nossos pais. Estavas sentada no sofá da sala com um tabuleiro a ver Jeopardy para poderes ter a perna levantada. Da cozinha,
ouvia a buzina de vez em quando e a voz do Alex Trebek: "Ooh, lamento, está errado." Como se realmente se interessasse.
Sentei-me entre a mãe e o pai, um condutor entre dois circuitos separados. "Amélia, podes passar o feijão-verde à tua mãe?"; "Amélia, serve um copo de limonada ao
teu pai." Não falavam um com o outro e não comiam
- nenhum de nós estava a comer.
- Então - disse eu alegremente. - Na quarta aula, o Jeff Congrew encomendou uma pizza para a aula de Francês e a professora nem reparou.
- Vais contar-me o que aconteceu hoje? - perguntou o nosso pai.
- A mãe baixou os olhos.
- Não me apetece mesmo falar sobre isso, Sean. Já foi suficientemente mau ter de passar por tudo aquilo.
O silêncio era um cobertor tão imenso que parecia tapar a mesa inteira.
- Foi uma entrega de pizza do Domino - disse eu. O pai cortou dois bocados de frango iguais.
- Bem, se não me disseres o que aconteceu, acho que sempre posso ler amanhã no jornal. Ou talvez, olha, até pode aparecer no noticiário das sete.
O garfo dela tilintou no prato.
- Achas que isto é fácil para mim?
- Achas que é fácil para algum de nós?
- Como foste capaz? - explodiu ela.- Como foste capaz de fingir que estava tudo bem entre nós e depois... depois fizeste isto?
- A diferença entre tu e eu, Charlotte, é que eu nunca finjo.
- Era de pepperoni - anunciei.
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Ambos se viraram para mim.
- O quê? - disse o pai.
- Não é importante - resmunguei. "Como eu." Chamaste da sala.
- Mãe, já acabei.
E eu também. Levantei-me e raspei o conteúdo do prato, que ainda tinha tudo, para o lixo.
- Amélia, não estás a esquecer-te de perguntar uma coisa? - disse a mãe.
Fiquei a olhar para ela sem perceber. Havia milhares de perguntas, claro, mas eu não queria ouvir as respostas dela.
- Posso levantar-me da mesa? - incitou a mãe.
- Não devias perguntar isso à Willow? - disse num tom sarcástico. Quando passei por ti na sala, olhaste para cima.
- A mãe não me ouviu?
- Nem pensar - respondi, e subi as escadas a correr.
O que se passava comigo? Tinha uma vida decente. Era saudável. Não passava fome, não estava mutilada devido a uma mina terrestre, não era órfã. Mas de certa forma isso não bastava. Tinha um buraco dentro de mim e tudo o que eu tomava como certo deslizava por ele como areia.
Parecia que tinha engolido levedura, que aquele mal que tinha a crescer dentro de mim tinha duplicado de tamanho. Na casa de banho, tentei vomitar; mas não tinha
comido o suficiente ao jantar. Queria correr descalça até ter os pés em sangue; queria gritar; mas estava calada há tanto tempo que me tinha esquecido de como se
fazia.
Queria cortar-me.
Mas.
Tinha prometido.
Agarrei no telefone que estava do lado da minha mãe junto à cama e levei-o para a casa de banho para ter privacidade, visto que, a qualquer instante, virias cá para cima para te preparares para ir para a cama.Tinha inserido o número do Adam. Já não falávamos há alguns dias porque ele tinha partido a perna e fora submetido a
uma cirurgia - tinha-me enviado um e-mail do hospital - mas tinha esperança de que já estivesse em casa. Precisava que ele estivesse em casa.
Tinha-me dado o número do telemóvel dele - mas eu era com certeza a única adolescente com mais de treze anos que não tinha um; não tínhamos dinheiro para o comprar.
Tocou duas vezes, e depois ouvi a voz dele e quase comecei a chorar.
- Olá - disse ele - ia telefonar-te agora mesmo.
Era a prova de que havia alguém neste mundo que achava que eu era importante. Senti-me como se me tivessem puxado da beira do abismo.
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- Os grandes cérebros pensam da mesma maneira.
- Pois - disse ele, mas a sua voz parecia fraca e distante.
Tentei lembrar-me do gosto dele. Detestava ter de fingir que me lembrava, quando, na verdade já se desvanecera, como uma rosa que colocamos entre as folhas de um
dicionário debaixo dos Qs, na esperança de podermos recordar o Verão em qualquer altura, mas da qual em Dezembro já não restam mais do que pedaços acastanhados e
quebradiços. Às vezes, à noite, murmurava para comigo própria, fingindo que as palavras surgiam na curva suave da voz grave de Adam: "Amo-te, Amélia. Foste feita
para mim." E depois entreabria muito ligeiramente os lábios e fingia que ele era um espírito, e que o sentia afundar-se em mim, na minha língua, pela minha garganta,
dentro da minha barriga, a única refeição que me satisfazia verdadeiramente.
- Como está a perna?
- Dói como tudo - disse Adam. Aproximei mais o telefone.
- Sinto mesmo a tua falta. Aqui está tudo uma loucura. O julgamento já começou e o meu relvado estava cheio de jornalistas. Os meus pais estão completamente doidos,
juro-te...
- Amélia - a palavra soou como uma bola a cair do Empire State Building. - Queria falar contigo por causa, hum, isto não está a resultar. Esta relação à distância...
Senti uma pontada entre as costelas.
- Não faças isso.
- Não faço o quê?
- Não digas - sussurrei.
- Eu só... quero dizer, talvez até nem nos tornemos a ver.
Senti um gancho puxar-me o coração para baixo.
- Podia visitar-te - disse eu, num fio de voz.
- Pois, e depois? Empurravas-me por aí numa cadeira de rodas? Como se eu fosse um coitadinho?
- Eu nunca...
- Arranja um jogador de futebol americano... é isso que as raparigas como tu querem, não é? E não um tipo que dê um encontrão numa merda de uma mesa e parta a perna
ao meio...
Nessa altura já estava a chorar.
- Isso não interessa...
- Interessa sim, Amélia. Mas tu não percebes. Nunca vais perceber. Teres uma irmã com OI não te transforma numa especialista.
Tinha o rosto em chamas. Desliguei o telefone antes que Adam pudesse dizer mais alguma coisa e coloquei as mãos nas faces.
- Mas eu amo-te - disse, embora soubesse que ele não podia ouvir-me.
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Primeiro vieram as lágrimas. Depois a fúria: agarrei no telefone e atirei-o contra a parede da banheira. Agarrei na cortina do duche e puxei-a com força.
Mas não estava zangada com Adam; estava zangada comigo própria.
Uma coisa era cometer um erro; outra era continuar a cometê-lo. Sabia o que acontecia quando nos aproximávamos de alguém, quando começávamos a acreditar que essa pessoa nos amava: ficávamos desiludidos. Quando confiamos em alguém, o melhor é admitir que vamos ser pisados, porque quando precisarmos mesmo dessa pessoa, ela não vai estar lá. Ou isso, ou fazemos-lhe confidências e trazemos-lhe mais problemas do que os que já tem. Só podemos contar mesmo connosco, e isso é mau, se não formos absolutamente fiáveis.
Disse a mim própria que se não me ralasse, não sofreria tanto - claro que isso provava, de uma vez por todas, que estava viva e que era humana, e todas essas lamechices que se dizem não constituíam um alívio, pelo menos quando me sentia como um arranha-céus com dinamite em cada andar.
Foi por isso que estendi a mão para a banheira e abri a torneira: para afogar os meus soluços, para que, ao agarrar na lâmina de barbear que escondera numa caixa de tampões e ao passá-lo pela pele como um arco de violino, ninguém ouvisse a canção da minha vergonha.
No Verão anterior, a minha mãe ficou sem açúcar e foi à loja de conveniência ali perto, a meio de uma receita, deixando-nos sozinhas durante vinte minutos - que não é assim tanto tempo como seria de pensar Mas foi o tempo suficiente para começar a discutir contigo sobre o programa de televisão a que íamos assistir; foi o
tempo suficiente para gritar "Há uma razão para a mãe desejar que morras"; foi o tempo suficiente para ver-te franzir o rosto e sentir um peso na consciência.
- Wills - disse eu. - Eu não queria mesmo dizer isso.
- Cala-te, Amélia...
- Pára de seres um bebé...
- Bem, pára tu de seres uma cara de eu!
Aquela palavra, na tua boca, bastou para me fazer ficar imóvel.
- Onde ouviste isso?
- De ti, sua estúpida idiota - disseste.
Precisamente nessa altura, uma ave esbarrou na janela com um ruído tão alto que ambas demos um salto.
- O que foi aquilo? - perguntaste, subindo para cima das almofadas para veres melhor
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Subi para junto de ti, com cuidado, porque tinha sempre de ter cuidado. A ave era pequena e castanha, uma andorinha ou um pardal, nunca conseguia distingui-los.
Estava estendida na erva.
- Está morto? - perguntaste.
- Bem, como hei-de saber?
- Não achas que devíamos verificar?
Então fomos lá para fora, dando meia volta à casa. Que grande surpresa, a ave estava exactamente no mesmo sítio de há momentos antes. Agachei-me para tentar ver
se o peito se movia.
Nada.
- Temos de enterrá-lo - disseste com ar grave. - Não podemos deixá-lo ficar aqui.
- Porquê? Estão sempre a morrer coisas na natureza...
- Mas este foi por nossa culpa. A ave provavelmente ouviu-nos gritar e foi por isso que voou contra a janela.
Duvidava bastante que a ave nos tivesse sequer ouvido, mas não ia discutir contigo.
- Onde está a pá? - perguntaste.
- Não sei - pensei por um instante. - Espera aí - disse eu, e corri para dentro de casa. Agarrei na grande colher de metal que a Mãe tinha na tigela e levei-a lá
para fora. Ainda tinha restos de massa, mas talvez não fizesse mal, talvez fosse como enviar as múmias egípcias para a vida após a morte com comida, ouro e animais
de estimação.
Escavei um pequeno buraco a cerca de doze centímetros de onde a ave estava. Não queria tocar-lhe - isso causava-me arrepios - por isso empurrei-a para dentro do
buraco com a ponta da colher.
- E agora? - perguntei, olhando para ti.
- Agora temos de rezar uma oração - disseste.
- Como uma Ave-Maria? O que te faz achar que a ave era católica?
- Podíamos cantar uma canção de Natal - sugeriste. - Não é bem religioso. É só bonito.
- E se em vez disso disséssemos qualquer coisa bonita sobre as aves? Concordaste.
-Têm as cores do arco-íris - disseste.
- Voam bem - acrescentei. Pelo menos até há dez minutos atrás. E fazem uma linda música.
- E as aves fazem-me lembrar frango e frango é mesmo muito bom
- disseste.
- Pronto, já chega - coloquei terra em cima da ave morta com a pá, e depois agachaste-te e fizeste um padrão em cima com pedaços de erva, como uma decoração num
bolo. Caminhámos lado a lado de regresso a casa.
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-Amélia? Podes ver o que quiseres na televisão.
Virei-me para ti.
- Não queria que morresses - admiti.
Quando voltámos a sentar-nos no sofá, enrolaste-te ao meu lado, como costumavas fazer quando eras pequena.
O que eu queria dizer-te, mas não disse, era o seguinte: "Não me tomes como modelo a
seguir. Sou a última pessoa que devias admirar."
Durante semanas, depois de termos enterrado a estúpida ave, cada vez que chovia não me sentava perto daquela janela. Nem mesmo agora, me aproximava daquela parte do
quintal.Tinha medo de ouvir qualquer coisa a estalar e olhar para baixo e ver os ossos partidos de um esqueleto, as asas quebradiças, o bico aguçado. Era suficientemente
inteligente para desviar o olhar, para nunca ter de ver o que podia emergir à superfície.
As pessoas querem sempre saber como é, por isso vou dizer: o primeiro corte arde e depois o coração fica acelerado quando vemos o sangue, porque sabemos que fizemos algo que não devíamos, mas conseguimos escapar impunemente. Depois entramos numa espécie de transe, porque é realmente estonteante - aquela linha de um vermelho-vivo, como uma auto-estrada num mapa que queremos percorrer para ver aonde conduz. E meu Deus - a doce libertação, é a melhor forma que tenho de descrever, como um balão
preso à mão de uma criança que se solta e flutua em direcção ao céu. Sabemos que aquele balão está a pensar, "Ah, afinal não te pertenço"; e ao mesmo tempo "Farão
ideia de como é bela a vista daqui de cima?" E depois o balão lembra-se, depois de lá estar em cima, que tem um medo terrível das alturas.
Quando caímos em nós, agarramos num pedaço de papel higiénico ou numa toalha de papel (é melhor do que uma toalha, porque as manchas nunca desaparecem completamente)
e pressionamos o corte com força. Sentimos a nossa vergonha; é um ritmo de fundo na nossa pulsação. Aquele alívio que sentíamos há instantes coagula-se, como molho
frio, num punho cerrado no estômago. Literalmente ficamos com náuseas, porque prometêramos a nós próprios que a próxima vez seria a última e, mais uma vez, nos desiludimos. Por isso, escondemos as provas da nossa fraqueza debaixo de camadas de roupas suficientemente compridas para esconder os cortes, mesmo no Verão, quando ninguém usa calças de ganga nem mangas compridas. Atiramos os papéis ensanguentados para a sanita e vemos a água ficar cor-de-rosa antes de puxarmos o autoclismo, enviando-os para o esquecimento, e desejamos que fosse assim tão fácil.
Uma vez vi um filme em que cortaram a garganta a uma rapariga e, em vez de um grito, ouviu-se um longo suspiro - como se não doesse, como se finalmente tivesse a oportunidade de largar tudo. Sabia que essa
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sensação estava próxima, por isso esperei um momento entre o meu segundo e terceiro corte.Vi o sangue a acumular-se na coxa e tentei esperar o máximo possível até
voltar a passar a lâmina pela pele.
- Amélia?
A tua voz. Olhei para cima, em pânico.
- O que estás aqui a fazer? - disse eu, dobrando as pernas para cima, para não poderes ver melhor o que provavelmente já tinhas visto. - Nunca ouviste falar em privacidade?
Estavas a vacilar nas tuas muletas.
- Só queria ir buscar a minha escova de dentes e a porta não estava trancada.
- Estava sim - argumentei. Mas talvez estivesse enganada. Estava tão concentrada em telefonar a Adam que talvez me tivesse esquecido. Lancei-te o meu olhar mais maldoso. - Sai daqui! - gritei.
Voltaste para o teu quarto a cambalear, deixando a porta aberta. Baixei rapidamente as pernas e pressionei os cortes que fizera com um pedaço de papel higiénico. Normalmente esperava que parassem de sangrar antes de sair da casa de banho, mas vesti as calças de ganga com aquele penso estrategicamente colocado e entrei no nosso quarto. Fiquei a olhar para ti, praticamente a desafiar-te a dizeres-me qualquer coisa sobre o que tinhas visto, para poder voltar a gritar contigo, mas estavas sentada na cama, a ler. Não me disseste absolutamente nada.
Detestava quando as cicatrizes começavam a desaparecer porque, enquanto as visse, sabia porque estava a sofrer. Pensei se sentirias o mesmo, quando os ossos saravam.
Deitei-me nas almofadas. A coxa latejava.
- Amélia? - disseste. - Aconchegas-me na cama?
- Onde estão a mãe e o pai? - não era preciso responderes a essa pergunta: embora estivessem fisicamente lá em baixo, estavam tão distantes de nós que era como se estivessem na Lua.
Ainda me lembrava da primeira noite em que não precisei que os pais me aconchegassem na cama.Tinha mais ou menos a tua idade, por acaso. Antes daquela noite, havia uma rotina - apagar as luzes, aconchegar bem os lençóis, um beijo na testa - e monstros nas gavetas da secretária e escondidos atrás dos livros na estante. E então um dia, simplesmente pousei o livro que estava a ler e fechei os olhos. Eles teriam ficado orgulhosos da filha independente? Ou teriam sentido que tinham perdido algo que nem sequer conseguiam nomear?
- Bem, já lavaste os dentes? - perguntei, mas depois lembrei-me de que estavas a tentar fazer precisamente isso quando eu estava ocupada a cortar-me. - Oh, esquece os dentes. Uma noite não vai fazer diferença. Saí da cama e debrucei-me desajeitadamente sobre a tua. - Boa noite -
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disse, e depois inclinei-me para baixo como um pelicano, a pescar; e beijei-te ao de leve na testa.
- A mãe costuma contar-me uma história.
- Então vai pedir à mãe que te deite - disse eu, voltando a deitar-me no meu colchão. - Não sei nenhuma história.
Ficaste calada durante um segundo.
- Podíamos inventar uma as duas. :
- Como queiras - suspirei.
- Era uma vez duas irmãs. Uma delas era mesmo muito forte, e a outra não era - olhaste para mim. - É a tua vez.
Revirei os olhos.
- A irmã mais forte foi lá para fora à chuva e apercebeu-se de que era forte por ser feita de ferro, mas estava a chover e enferrujou. Fim da história.
- Não, porque a irmã que não era forte foi lá para fora quando estava a chover e abraçou-a com muita força até o Sol voltar a aparecer.
Quando éramos pequenas, às vezes dormíamos na mesma cama. Nunca era assim logo de início, mas a meio da noite acordava e encontrava-te enrolada junto a mim. Aproximavas-te
do calor; e eu gostava de procurar os sítios frios nos lençóis. Passava horas a tentar afastar-me de ti na cama estreita, mas nunca pensei em levar-te novamente para a tua. O norte polar não pode escapar de um íman; o íman encontra-o, aconteça o que acontecer
- E depois o que aconteceu? - sussurrei, mas tu já tinhas adormecido e fiquei a sonhar com o meu próprio fim.
396
Sean
Por acordo tácito, dormi no sofá naquela noite. Só que, "dormir", era um resultado demasiado optimista. Basicamente dei voltas e voltas. A única vez em que dormitei,
tive um pesadelo em que estava no banco das testemunhas e olhei para Charlotte e, quando comecei a responder às perguntas de Guy Booker, moscas negras começaram a sair-me da boca.
O muro que Charlotte e eu derrubáramos na noite anterior fora reconstruído com o dobro da altura e da grossura. Era estranho ainda amar a minha mulher e não saber se gostava dela. O que aconteceria quando tudo isto terminasse? Seria possível perdoar uma pessoa que nos magoou, a nós e às pessoas que amamos, se ela acreditasse genuinamente que estava apenas a tentar ajudar?
Tinha pedido o divórcio, mas não era realmente isso que eu queria. O que eu queria realmente era que todos nós voltássemos atrás dois anos e começássemos de novo.
Será que alguma vez realmente lho disse?
Atirei o cobertor para trás e sentei-me, esfregando o rosto com as mãos. Vestindo apenas as boxers e a T-shirt do departamento da polícia, subi as escadas e entrei no nosso quarto. Sentei-me na cama.
- Charlotte - sussurrei, mas não obtive resposta.
Toquei no monte de colchas, e apercebi-me de que era uma almofada que ficara debaixo dos lençóis. - Charlotte? - disse em voz alta. A porta da casa de banho estava completamente aberta; acendi a luz, mas não estava lá dentro. Começando a ficar preocupado - estaria apenas tão perturbada com o julgamento como eu estava? Estaria sonâmbula? - percorri o corredor, verificando na
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vossa casa de banho, no quarto de hóspedes, nas escadas estreitas que conduziam ao sótão.
A última porta era a do vosso quarto. Entrei e vi-a imediatamente. Charlotte estava enrolada na tua cama, com o braço à tua volta. Mesmo a dormir, não queria largar-te.
Toquei-te nos cabelos, e depois nos da tua mãe. Toquei ao de leve na face da Amélia. E depois deitei-me no tapete no chão e apoiei a cabeça no braço. Calculem: com todos juntos de novo, adormeci passados minutos.
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Marin
- Sabe de que se trata? - perguntei, enquanto me apressava a percorrer o corredor do tribunal ao lado de Guy Booker.
- Sei tanto quanto a Marin - disse ele.
Tínhamos sido convocados ao gabinete do juiz antes do início do segundo dia de julgamento. Ser chamado ao gabinete do juiz numa fase tão inicial normalmente não era bom - sobretudo se Guy Booker também não soubesse a razão. Fosse qual fosse o assunto premente que o juiz Gellar tinha de abordar, o mais provável era ser algo que eu não desejasse ouvir.
Entrámos e deparámo-nos com o juiz sentado à secretária, com os cabelos demasiado pretos, como um capacete. Fazia-me lembrar aquelas figurinhas de acção antigas
do Super-Homem - sabíamos que o cabelo do Super-Homem nunca esvoaçava ao vento quando ele voava, uma maravilha da física e do gel - e distraiu-me o suficiente para
nem sequer ter reparado na segunda pessoa que estava na sala, que estava sentada de costas para nós.
- Senhores advogados - disse o juiz Gellar. - Ambos conhecem Juliet Cooper, a jurada número seis.
A mulher virou-se. Era aquela que, durante a selecção do júri, fora alvo das perguntas intrusivas de Guy sobre o aborto. Talvez a insistência do advogado no mesmo assunto com Charlotte, no dia anterior, tivesse dado origem a uma queixa. Endireitei-me um pouco mais, convencida de que o juiz nos tinha chamado não por minha causa mas devido às práticas questionáveis de Guy Booker.
- A Sr.a Cooper vai ter licença para abandonar o júri. A partir deste momento, o jurado alternativo irá ser inserido no grupo.
Nenhum advogado gosta que o júri seja alterado a meio de um julgamento, mas os juizes também não. Se esta mulher ia ter licença para abandonar o júri, devia ser por uma boa razão.
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Ela estava a olhar para Guy Booker, e não olhava para mim deliberadamente.
- Lamento - murmurou ela. - Não sabia que tinha um conflito de interesses.
Conflito de interesses? Presumira que se tratasse de um problema de saúde, alguma emergência que a fizesse ter de ir a correr para junto da cama de um familiar moribundo, ou começar fazer imediatamente quimioterapia. Um conflito de interesses significava que sabia qualquer coisa sobre a minha cliente, ou sobre a de Guy mas com certeza ter-se-ia apercebido durante a selecção do júri.
Aparentemente Guy Booker achava o mesmo.
- Podemos saber de que conflito se trata, exactamente?
- A Sr.a Cooper está relacionada com uma das partes deste caso
- disse o juiz Gellar, e olhou para mim. - Consigo, Dr.a Gates.
Costumava imaginar que via a minha mãe biológica em todo o lado sem saber. Sorria durante um pouco mais tempo para a senhora que me entregava o bilhete de cinema; metia conversa sobre o tempo com a empregada do banco. Ouvia a voz trabalhada de uma recepcionista de um escritório rival e imaginava que era ela; esbarrava com uma senhora de casaco de caxemira na recepção, lá em baixo, e ficava a olhar para o rosto dela enquanto pedia desculpa. Havia algumas pessoas com quem podia cruzar-me e que podiam ser a minha mãe; podia cruzar-me com ela dezenas de vezes por dia sem saber.
E agora estava sentada à minha frente, no gabinete do juiz Gellar.
Ele e Guy Booker deixaram-nos sozinhas durante alguns minutos. E, para minha surpresa, mesmo com trinta e seis anos de perguntas, a barreira não se quebrava facilmente. Dei por mim a olhar para os cabelos dela - que eram ruivos e muito encaracolados. Toda a minha vida fui diferente das outras pessoas da minha família e sempre presumi que seria uma cópia exacta da minha mãe biológica. Mas não era nada parecida com ela.
Ela estava a agarrar na mala com uma força mortal.
- Há um mês recebi um telefonema do tribunal - disse Juliet Cooper a dizer que tinham umas informações para me dar. Pensei que uma coisa destas podia acontecer um dia.
- Então - disse eu, mas estava sem fôlego, com a voz seca. - Há quanto tempo sabe?
- Só desde ontem. A secretária enviou-me o teu postal há uma semana, mas eu não consegui abri-lo. Não estava preparada - olhou para mim. Tinha os olhos castanhos. Isso queria dizer que os do meu
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pai eram azuis, como os meus? - Foi por causa do que aconteceu no tribunal ontem... todas aquelas perguntas sobre a mãe querer ver-se livre do bebé... isso fez-me
finalmente arranjar coragem para abri-la.
Sentia-me como se estivesse cheia de hélio: então com certeza que isso significava que ela não quisera realmente abdicar de mim, tal como Charlotte não quisera realmente
abdicar de Willow.
- Quando cheguei ao fim do postal, vi o teu nome, e apercebi-me de que já o conhecia, do julgamento - hesitou. - É um nome bastante invulgar.
- Sim - "Que nome queria pôr-me em vez deste? Suzy, Margaret, Theresa?"
- És extraordinária - disse Juliet timidamente. - No tribunal, quero dizer.
Havia um espaço de um metro entre nós. Porque é que nenhuma de nós o atravessava? Tinha imaginado aquele momento tantas vezes, e terminava sempre com a minha mãe
a abraçar-me com força, como se tivesse de compensar-me por me ter deixado ir.
- Obrigada - disse eu. Eis o que não me tinha apercebido: a mãe que não víamos há quase trinta
e seis anos não é nossa mãe, é uma desconhecida. Partilhar ADN não
nos torna logo amigas. Aquele não era um reencontro feliz. Era apenas embaraçoso.
Bem, talvez ela se sentisse tão pouco à vontade como eu; talvez tivesse receio de ultrapassar os limites ou achasse que eu guardava ressentimento por ela me ter dado para adopção. Então competia-me a mim quebrar o gelo, não era?
- Nem acredito que passei todo este tempo à sua procura e depois apareceu no meu júri - disse eu, sorrindo. - O mundo é pequeno.
- Muito - concordou ela, e depois ficou novamente em silêncio.
- Sabia que tinha gostado de si durante a selecção - disse eu, tentando fazer uma piada, mas não teve graça. E depois lembrei-me de outra coisa que Juliet Cooper tinha dito durante a selecção do júri: tinha ficado em casa para tomar conta dos filhos. Só voltara a trabalhar quando os filhos foram para o liceu. - Tem filhos. Outros filhos.
Ela acenou com a cabeça.
- Duas raparigas.
Para uma filha única, isso era extraordinário: não só tinha encontrado a minha mãe biológica como tinha ganho irmãs. ;
- Tenho irmãs - disse em voz alta.
Ao ouvir isso, algo se fechou nos olhos de Juliet Cooper.
401
- Não são tuas irmãs.
- Desculpe. Não quis...
- Ia escrever-te uma carta. Ia enviá-la para o tribunal de Hillsborough e pedir-lhes que ta enviassem - disse ela. - Ao ouvir Charlotte O'Keefe voltei a lembrar-me de tudo: há bebés que era melhor não terem nascido. - Juliet levantou-se abruptamente. - Ia escrever-te uma carta - repetiu - para te pedir que não voltasses a contactar-me.
E sem mais nem menos, a minha mãe biológica abandonou-me pela segunda vez na minha vida.
Quando somos adoptados, podemos ter a vida mais feliz do mundo, mas há sempre uma parte de nós que pensa que se fôssemos mais bonitos, mais sossegados, que se o nosso parto tivesse sido mais fácil - bem, talvez então a nossa mãe biológica não nos tivesse dado para adopção. É um disparate, claro - a decisão de dar um filho para adopção é tomada meses antes - mas isso, em todo o caso, não nos impede de pensarmos nesse assunto.
Tive vintes na faculdade. Fui a melhor da turma no curso de direito. Fi-lo, claro, para fazer a minha família ter orgulho de mim mas não especifiquei a que família me referia. Aos meus pais adoptivos, claro. Mas também aos meus pais biológicos. Penso que acreditei sempre, em segredo, que se me cruzasse com a minha mãe biológica e ela visse como eu era inteligente, tão bem-sucedida, seria inevitável que gostasse de mim.
Quando, na realidade, teve de abandonar-me.
A porta da sala de reuniões abriu-se e Charlotte entrou.
- Estava uma jornalista na casa de banho das senhoras. Veio atrás de mim com um microfone enquanto eu estava a entrar... Marin, Esteve a chorar?
Abanei a cabeça, embora isso fosse evidente.
- Entrou-me alguma coisa no olho.
- Nos dois! Levantei-me.
- Vamos - disse bruscamente, e ela teve de ir atrás de mim.
O Dr. Mark Rosenblad, que te tratou no Hospital Pediátrico de Boston, era a minha testemunha seguinte. Decidi sair do piloto automático para mostrar o melhor desempenho
da minha vida diante do jurado que tomara o lugar de Juliet Cooper que, por acaso, era um homem de cerca de quarenta anos, de óculos grossos e dentes saídos. Sorriu
para mim enquanto eu olhava na sua direcção, ao fazer a descrição das credenciais do Dr. Rosenblad.
402
com a minha sorte, ia perder o julgamento e aquele tipo ia acabar por me convidar para sair.
- Conhece a Willow, Dr. Rosenblad? - disse eu.
- Já a trato desde os seis meses de idade. É uma miúda extraordinária.
- Que tipo de OI tem ela?
- Tipo III: ou OI progressivamente deformante.
- O que quer isso dizer?
- É a forma mais grave de OI não letal. As crianças do Tipo III sofrem centenas de fracturas durante a vida: não apenas por contacto, mas também enquanto se viram
durante o sono ou alcançam qualquer coisa em cima de uma prateleira. Desenvolvem frequentemente infecções respiratórias graves e complicações devido à forma em barril
da caixa torácica. As crianças do Tipo III apresentam frequentemente perda de audição ou articulações soltas e fraco desenvolvimento muscular. Sofrem de escoliose
grave que implica a colocação de varetas na coluna ou até a fusão das vértebras embora seja uma decisão complicada, porque a partir desse momento a criança não irá
crescer mais, e estas crianças já de si apresentam uma baixa estatura. Outras complicações podem incluir macrocefalia: fluido no cérebro, hemorragias cerebrais provocadas
por traumas à nascença, dentes quebradiços e, em algumas pessoas do Tipo III, invaginação basilar: a segunda vértebra desloca-se para cima e fecha a abertura no crânio
por onde a espinal medula passa para o cérebro, provocando tonturas, dores de cabeça, períodos de confusão, dormência, ou até mesmo a morte.
- Pode dizer-nos como serão os próximos dez anos para a Willow? - perguntei.
- Tal como muitas crianças da idade dela com OI do Tipo III, tem feito um tratamento com pamidronato desde bebé. Melhorou-lhe a qualidade de vida significativamente:
antes dos biofosfonatos, as crianças do Tipo III raramente andavam e estavam presas a cadeiras de rodas. Em vez de sofrer várias centenas de fracturas ao longo da
vida, graças ao pamidronato, poderá vir a sofrer apenas cem, não temos a certeza. Alguns dados da investigação que agora estamos a obter de adolescentes que começaram
a receber as infusões de pamidronato em bebés, como a Willow, mostram que os ossos, quando realmente se fracturam, não se partem consoante os padrões de fractura
normais, e isso torna-os mais difíceis de tratar. Os ossos ficam mais densos devido às infusões, mas não deixam de ser ossos imperfeitos. Também há evidências de
anomalias do maxilar, mas não é claro se isso está relacionado com o pamidronato ou se faz apenas
403
parte da dentinogénese que acompanha a OI. Por isso poderão ocorrer algumas destas complicações - disse o Dr. Rosenblad. - Para além disso, ela ainda vai sofrer
mais fracturas e ser submetida a cirurgias para as tratar. Colocou recentemente uma vareta num dos fémures; imagino que o outro venha a seguir. Eventualmente será
submetida a uma cirurgia à coluna vertebral. Tem tido pneumonias todos os anos. Virtualmente todas as pessoas do Tipo III desenvolvem algum tipo de anomalia da caixa
torácica, colapso vertical e cifoscoliose, e todas elas conduzem a doenças pulmonares e perturbações cardiopulmonares. Alguns indivíduos com Tipo III morrem devido
a complicações respiratórias ou neurológicas, mas, com sorte, a Willow será um dos nossos casos de sucesso: entrará na idade adulta e viverá uma vida funcional e
importante.
Por um instante, limitei-me a ficar a olhar para o Dr. Rosenblad. Depois de te conhecer, e falar contigo, e até de ver-te esforçares-te por subir uma rampa de cadeira de rodas ou alcançar qualquer coisa em cima de um balcão demasiado alto, achava difícil conceber que todos aqueles pesadelos médicos te aguardavam. Claro que foi nisso que Robert Ramirez e eu planeámos basear este processo legal desde o início, mas até eu tinha começado a tomar a tua vida como certa.
- Se a Willow sobreviver até chegar à idade adulta será capaz de cuidar de si própria?
Não fui capaz de olhar para Charlotte enquanto lhe perguntava isso; achei que não ia aguentar ver a cara dela quando disse "se" em vez de "quando."
- Até certo ponto, vai precisar de alguém para tomar conta dela, por muito independente que se torne. Sofrerá sempre fracturas, hospitalizações e fisioterapia. Conservar um emprego será difícil.
- Para além dos desafios físicos - perguntei - também haverá desafios emocionais?
- Sim - disse o Dr. Rosenblad. - As crianças com OI muitas vezes sofrem de ansiedade devido à preocupação e ao comportamento evasivo que apresentam para evitarem sofrer uma fractura. Por vezes desenvolvem perturbações de stress pós-traumático, sobretudo após fracturas particularmente graves. Para além disso, a Willow já começou a reparar que é diferente das outras crianças e limitada devido à OI. À medida que as crianças com OI vão crescendo, querem tornar-se independentes, mas não podem ser tão independentes como os adolescentes saudáveis. Essa luta pode tornar os jovens com OI introvertidos, deprimidos, talvez até mesmo suicidas.
404
Quando me virei, vi Charlotte. Tinha o rosto escondido nas
mãos.
Talvez aparentemente não parecesse uma mãe. Talvez Charlotte tivesse processado Piper Reece por amar demasiado Willow para abdicar dela. Talvez a minha mãe biológica tivesse abdicado de mim por saber que não conseguiria amar-me.
- Nos seis anos em que tratou da Willow teve oportunidade de ficar a conhecer melhor Charlotte O'Keefe?
- Sim - respondeu o médico. - A Charlotte está incrivelmente sintonizada com a filha. Tem quase um sexto sentido relativamente ao nível de desconforto da Willow e para garantir que se tomem as medidas certas antes que a situação fique fora de controlo. - Olhou para o júri. - Lembram-se da Shirley MacLaine em Laços de Ternura! A Charlotte é assim. Às vezes é tão teimosa que me apetece bater-lhe: mas é assim porque é comigo que ela tem de se confrontar.
Voltei a sentar-me, deixando Guy fazer o interrogatório.
- Trata desta criança desde os seis meses de idade, não é assim?
- Sim. Na altura trabalhava no Shriners em Omaha e a Willow participava nas nossas experiências com pamidronato. Quando fui para o Hospital Pediátrico em Boston, fazia mais sentido passar a tratá-la mais perto de casa.
- Agora com que frequência costuma examiná-la, Dr. Rosenblad?
- Duas vezes por ano, a menos que haja alguma fractura entretanto. E digamos que nunca examinei a Willow só duas vezes por ano.
- Há quanto tempo usa o pamidronato para tratar crianças com OI?
- Desde o início dos anos noventa.
- E disse que, antes de existir o tratamento com pamidronato para a OI, estas crianças tinham uma vida muito mais limitada em termos de mobilidade, não é verdade?
- Sem dúvida.
- Então diria que o avanço da tecnologia médica na sua área aumentou o potencial de saúde da Willow?
- Radicalmente - disse o Dr. Rosenblad. - Ela agora é capaz de fazer coisas que as crianças com OI não podiam fazer há quinze anos.
- Então se este julgamento se tivesse realizado há quinze anos, o cenário que nos estaria a descrever ainda seria mais negro relativamente à vida da Willow, não acha?
O Dr. Rosenblad acenou com a cabeça.
- É verdade. :
405
- Visto que vivemos na América, onde a investigação médica está diariamente em franca expansão nos laboratórios e hospitais como o seu, não será provável que a Willow
assista a mais avanços médicos ao longo da sua vida?
- Objecção - disse eu. - Especulativo.
- Ele é um especialista na sua área, senhor doutor juiz - contrariou Booker.
- Pode dar a sua opinião - disse o juiz Gellar - com base nos seus conhecimentos sobre que investigações médicas estão a ser desenvolvidas presentemente.
- É possível - respondeu o Dr. Rosenblad. - Mas também gostaria de fazer notar que os remédios milagrosos que achávamos que os bifosfonatos eram, podem talvez fazer surgir, a longo prazo, outros problemas nos pacientes com OI com os quais não tínhamos contado. Ainda não sabemos.
- Mas a Willow poderá chegar à idade adulta? - perguntou Booker.
- Sem dúvida.
- Poderá apaixonar-se?
- Claro.
- Poderá ter um bebé?
- Possivelmente.
- Poderá trabalhar fora de casa?
- Sim.
- Poderá ser independente dos pais?
- Talvez - disse o Dr. Rosenblad. Guy Booker abriu as mãos por cima da balaustrada do baitéo
dos jurados.
- Doutor, o senhor trata as doenças, não trata?
- Claro.
- Alguma vez trataria um dedo partido amputando um braço?
- Isso seria um pouco radical.
- Então não será radical tratar a OI impedindo que o paciente nasça?
- Objecção - gritei.
- Deferido - o juiz lançou um olhar ameaçador a Guy Booker.
- Não vou permitir que transforme a minha sala de audiências num comício pró-vida, doutor.
- vou reformular. Alguma vez se deparou com um pai ou uma mãe a cujo filho fosse diagnosticada OI no útero e que decidisse terminar a gravidez?
Rosenblad acenou com a cabeça.
406
- Sim, muitas vezes na forma letal da OI, o Tipo II.
- E na forma grave?
- Objecção - disse eu. - O que tem isso a ver com a queixosa?
- Quero ouvir isto - disse o juiz Gellar. - Pode responder à pergunta, Doutor.
Rosenblad entrou no terreno minado da resposta.
- Terminar uma gravidez desejada não é a primeira opção de ninguém - disse ele - mas quando se trata de um feto que se tornará numa criança com incapacidades graves, famílias diferentes têm níveis diferentes de tolerância. Algumas famílias sabem que conseguirão providenciar apoio à criança com incapacidades, outras são suficientemente inteligentes para saberem, antecipadamente, que não conseguirão fazê-lo.
- Doutor - disse Booker - diria que o nascimento de Willow O'Keefe resultou de negligência médica no diagnóstico pré-natal?
Senti qualquer coisa ao meu lado e apercebi-me que Charlotte estava a tremer.
- Não estou em posição de tomar essa decisão - disse Rosenblad. - Sou apenas o médico.
- É exactamente aí que eu queria chegar - respondeu Booker.
407
Piper
Já não via a minha técnica de ecografias, Janine Weissbach, desde que saíra do meu consultório, há quatro anos, para ir trabalhar para um hospital em Chicago. Os
cabelos dela, que antigamente eram loiros, eram agora de um castanho brilhante, e tinha rugas finas aos cantos da boca. Interroguei-me se me acharia igual, ou se a traição me teria envelhecido, deixando-me irreconhecível.
Janine era alérgica a frutos secos e uma vez houve uma pequena guerra entre ela e uma enfermeira que costumava fazer café com sabor a avelã. Janine ficou cheia de urticária só de sentir o cheiro que chegava à nossa salinha; a enfermeira jurou que não sabia que as avelãs liquidificadas também podiam provocar alergias; Janine perguntou-lhe como conseguira passar no exame da escola de enfermagem. Por acaso, essa questiúncula fora a maior contrariedade que ocorrera no meu consultório... até, claro, surgir isto.
- Como conheceu a queixosa deste caso? - perguntou a advogada de Charlotte.
Janine aproximou-se mais do microfone no banco das testemunhas. Costumava cantar karaoke numa discoteca das redondezas, lembrei-me. Referia-se a si própria como patologicamente solteira. Mas agora usava uma aliança de casamento.
As pessoas mudavam. Mesmo aquelas que pensamos conhecer tão bem como nos conhecemos a nós próprios.
- Era uma paciente do consultório onde eu trabalhava - disse Janine. - O consultório de ginecologia-obstetrícia de Piper Reece.
- É empregada da arguida?
- Fui durante três anos, mas agora trabalho no Northwestern Memorial Hospital.
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A advogada estava a olhar para uma parede, como se não estivesse a ouvir.
- Dr.a Gates - incitou o juiz.
- Desculpe - disse ela, recuperando a concentração. - É empregada da arguida?
- Acabou de fazer-me essa pergunta.
- Pois. Hum, pode dizer-nos em que circunstâncias conheceu a Charlotte O'Keefe?
- Veio fazer uma ecografia às dezoito semanas.
- Quem mais estava presente?
- O marido - disse Janine.
- A arguida estava presente?
Pela primeira vez, Janine olhou para mim.
- Ao princípio não. Eu fazia a ecografia e discutia-a com ela; ela interpretava os resultados e falava com a paciente, era assim que fazíamos.
- O que aconteceu durante a ecografia de Charlotte O'Keefe, Sr.a Weissbach?
- Piper disse-me para estar atenta a qualquer coisa que pudesse implicar síndroma de Down. Os testes da paciente tinham revelado um risco ligeiramente elevado. Eu estava entusiasmada por ir trabalhar com uma máquina nova: tinha acabado de chegar e era do último modelo. Instalei a Sr.a O'Keefe na marquesa, coloquei-lhe gel no abdómen, e depois movi o transdutor para obter várias imagens nítidas do feto.
- O que viu? - perguntou a advogada.
- Os fémures eram um pouco pequenos, o que por vezes pode ser um sinal de síndroma de Down, mas nenhum dos outros indicadores estava presente.
- Mais alguma coisa?
- Sim - disse Janine. - Algumas das imagens eram incrivelmente nítidas. Sobretudo do cérebro fetal.
- Referiu essas conclusões à arguida?
- Sim. Ela disse que o fémur não estava fora das tabelas, que podia simplesmente dever-se à mãe ser baixa - respondeu Janine.
- E a nitidez das imagens? A arguida disse alguma coisa sobre isso?
- Não - disse Janine. - Não disse.
Na noite em que levei Charlotte a casa depois da ecografia das vinte e sete semanas, aquela em que estavam visíveis todos aqueles ossos partidos, deixei de ser amiga dela e passei a ser sua médica.
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Sentei-me à mesa da cozinha e usei terminologia médica, o que, por si só, quase actuava como um sedativo: a dor estampada nos olhos de Charlotte e Sean foi amortecendo à medida que eu os bombardeava com informação que não podiam compreender. Falei-lhes sobre a médica a quem já tinha telefonado para marcar uma consulta.
A dada altura, Amélia entrou na cozinha. Charlotte apressou-se a limpar os olhos.
- Olá, meu amor - disse ela.
- Vim dizer boa noite ao bebé - disse Amélia, e correu para Charlotte, sentando-se e colocando os braços em volta da barriga da mãe o melhor que podia.
Charlotte soltou um leve som, um gemido.
- Não apertes tanto - conseguiu dizer, e eu sabia o que ela estava a pensar: teria aquele amor ávido fracturado alguns dos teus ossos?
- Mas eu quero que ela saia cá para fora - disse Amélia. - Estou farta de esperar.
Charlotte levantou-se.
- Acho que também me vou deitar - estendeu a mão a Amélia, e saíram as duas da cozinha.
Sean sentou-se no lugar que ela desocupara.
- Sou eu, não sou? - olhou para mini, atormentado. - É por minha causa que o bebé está assim.
- Não...
- A Charlotte teve uma filha perfeitamente saudável - disse ele.
- É só juntares dois mais dois.
- Provavelmente trata-se de uma mutação espontânea. Não podiam ter feito nada para evitá-lo - eu também não podia ter feito nada para evitá-lo. Mas isso não me impedia de sentir-me culpada, como Sean. - Tens de tomar conta dela porque ela não pode deixar-se abater nesta altura. Não a deixes pesquisar isto na Internet antes de falarem com a médica amanhã; não lhe digas que estás preocupado.
- Não posso mentir - disse Sean.
- Bem, vais mentir, se a amares.
Agora, passados todos aqueles anos, interrogo-me porque não fui capaz de perdoar Charlotte por seguir aquele mesmo conselho.
Não gostava de Guy Booker, mas, por outro lado, quando escolhemos advogados para nos defenderem em caso de negligência médica, não vamos escolher pessoas que gostaríamos de convidar para o jantar de Natal. Ele era bom a fazer as pessoas remexerem-se no banco das testemunhas, como um insecto a ser espetado num alfinete por um coleccionador que o queria examinar com mais atenção.
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- Sr.a Weissbach - disse Booker, levantando-se para fazer o contra interrogatório - já viu outro feto com valores semelhantes nas medidas dos fémures?
- Claro.
- Por acaso sabe qual foi o resultado? A advogada de Charlotte levantou-se.
- Objecção, Meritíssimo. A testemunha é apenas uma técnica, não é médica.
- Ela vê isto todos os dias - argumentou Booker. - Teve uma formação especial para interpretar as ecografias.
- Deferido.
- Bem - disse Janine, irritada. - Para sua informação, não é assim tão fácil interpretar os resultados de uma ecografia. Posso ser apenas uma técnica, mas também devo assinalar coisas que possam ser problemáticas. - Inclinou a cabeça na minha direcção. - A Piper Reece era a minha chefe. Só estava a fazer o meu trabalho.
Não disse mais nada, mas eu conseguia ouvir na mesma: "Ao contrário de si."
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Charlotte
A minha advogada estava com algum problema. Estava inquieta; estava sempre a saltar perguntas e a esquecer-se das respostas. Comecei a pensar: A dúvida seria contagiosa?
Seria pelo facto de Marin ter estado tanto tempo sentada ao meu lado que acordara com a mesma sensação que eu: de reprimir o impulso de me levantar e de pôr um termo a tudo aquilo?
Tinha chamado uma testemunha que eu não conhecia - o Dr. Thurber, que era britânico, mas que se tornara no director do departamento de radiologia do Hospital Pediátrico Lucile Packard, em Stanford, antes de se mudar para o Shriners, em Omaha, e aplicar os seus conhecimentos de radiologista em crianças com OI. Segundo a lista interminável de credenciais que Marin lhe pedira para referir, o Dr. Thurber interpretara milhares de ecografias ao longo da sua carreira, dera palestras pelo mundo inteiro, e doava duas semanas de férias todos os anos para tratar de futuras mães em países pobres.
Basicamente era um santo. E um santo mesmo muito inteligente.
- Dr. Thurber - disse Marin - para as pessoas como eu, que não estejam familiarizadas com ecografias, pode explicar qual é a tecnologia?
- É uma ferramenta de diagnóstico, em obstetrícia - disse o radiologista. - O equipamento faz um exame em tempo real. Um transdutor, que emite ondas sonoras, colocado no abdómen da mãe e movimentado para reflectir o conteúdo do útero. A imagem é projectada num monitor: uma ecografia.
- Para que são utilizadas as ecografias?
- Para diagnosticar e confirmar a gravidez, avaliar o batimento cardíaco fetal e malformações fetais, para medir o feto, para avaliar
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o tempo de gestação e o crescimento, para ver a localização da placenta, para determinar a quantidade de líquido amniótico, entre outras coisas.
- Normalmente, quando costumam fazer-se ecografias durante a gravidez? - perguntou Marin.
- Não há nenhuma regra fixa, mas por vezes as ecografias podem fazer-se às sete semanas para confirmar a gravidez e eliminar gravidez ectópica ou molar. A maioria das mulheres faz pelo menos uma ecografia entre as dezoito e as vinte semanas.
- O que acontece durante essa ecografia?
- Nessa altura, o feto já é suficientemente grande para se verificar a anatomia e para se procurarem malformações congénitas disse o Dr. Thurber. - Medem-se determinados ossos para verificar se o bebé tem o tamanho certo com base na data da concepção. Certificam-se se os órgãos se encontram no sítio certo e se a coluna está intacta. Basicamente é uma confirmação de que tudo está onde devia estar. E, claro, vão para casa com uma imagem que vai ficar colada ao frigorífico durante os próximos seis meses.
Ouviram-se algumas gargalhadas no júri. Teria alguma imagem tua, da tua ecografia? Não me lembrava. Quando me recordo desse dia, só sinto aquela imensa vaga de alívio, quando a Piper me disse que eras saudável.
- Dr. Thurber - perguntou Marin - teve oportunidade de examinar a ecografia das dezoito semanas, feita a Charlotte O'Keefe?
- Tive.
- E o que viu? Olhou para o júri.
- com base naquela ecografia, havia claras causas de preocupação. Normalmente, quando fazemos uma ecografia, olhamos para o cérebro através do crânio, por isso fica sempre um pouco desfocado, um pouco escuro, devido às reverberações das partes laterais do crânio que o raio de ultra-sons atinge primeiro. Mas, na ecografia da Sr.a O'Keefe, o conteúdo intracraniano era absolutamente nítido: até aquela zona mais próxima do hemisfério cerebral que normalmente se encontra obscurecido. Isso sugere uma cúpula craniana desmineralizada. Há várias doenças em que os crânios se apresentam desmineralizados, incluindo a displasia esquelética e a OI. Então temos a obrigação de olhar para os ossos longos e, de facto, o comprimento do fémur faz parte de todas as ecografias obstétricas. No caso da Sr.a O'Keefe, o fémur também era um pouco curto. A combinação de um fémur curto com um crânio desmineralizado sugere vivamente osteogénese imperfeita -
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deixou as palavras pairarem na sala de audiências. - Por acaso, se a técnica tivesse carregado na barriga da Sr.a O'Keefe enquanto fazia a ecografia, teria visto no ecrã o crânio do feto ser esmagado, perdendo a forma.
Cruzei as mãos sobre o estômago como se ainda estivesses dentro de mim.
- Se a Sr.a O'Keefe fosse sua paciente, doutor, o que teria feito?
- Teria feito mais imagens do peito: à procura de fracturas das costelas. Teria medido todos os outros ossos longos para confirmar que se tratava de uma condição generalizada de ossos curtos. E, no mínimo, tê-la-ia encaminhado para um centro com mais experiência.
Marin acenou com a cabeça.
- E se eu lhe dissesse que a obstetra da Sr.a O'Keefe não fez nenhuma dessas coisas?
- Então - disse o Dr. Thurber - diria que essa médica cometeu um grande erro.
- Não tenho nada mais a acrescentar - disse Marin, e sentou-se na cadeira ao meu lado. Soltou de imediato um grande suspiro.
- O que foi? - sussurrei. - Ele é muito bom.
- Alguma vez lhe ocorreu que a Charlotte não é a única pessoa com problemas? - disse Marin bruscamente.
Guy Booker começou a fazer o contra-interrogatório ao radiologista.
- Diz-se que a visão em retrospectiva é perfeita, não é, Dr. Thurber?
- Já ouvi dizer.
- Há quanto tempo apresenta o seu depoimento como testemunha especializada?
- Há dez anos - disse o médico.
- Suponho que não faça isto de graça?
- Não, sou pago, tal como todas as testemunhas especializadas - respondeu Thurber.
Booker olhou para o júri.
- Pois. Parece-me sem dúvida que há muito dinheiro a voar por aí ultimamente, não há?
- Objecção - disse Marin. - Está realmente à espera que a testemunha responda a essa pergunta retórica?
- Retiro a pergunta. Doutor, é verdade que a osteogénese imperfeita é muito rara?
- Sim.
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- Então uma obstetra de uma cidade pequena, por exemplo, pode nunca chegar a ver nenhum caso ao longo de toda a sua vida
profissional?
- É verdade - respondeu Thurber.
- Não será justo dizer que só um especialista procuraria sinais de OI numa ecografia?
- Existe um velho ditado sobre ouvir-se o som de cascos e presumir-se que se trata de um cavalo e não de uma zebra - concordou Thurber - mas qualquer obstetra experiente deve ser capaz de olhar para uma ecografia e detectar sinais de alarme. Pode não ser capaz de determinar o seu significado, mas deve conhecer a anomalia e reconhecer que a paciente deve receber cuidados mais específicos.
- Existe outra doença, para além da osteogénese imperfeita, que possa dar uma imagem assim tão nítida do campo próximo do cérebro durante uma ecografia?
- A forma letal de hipofosfatasia congénita, mas é extremamente rara e não alteraria a necessidade de encaminhar a paciente para um centro de cuidados terciários.
- Dr. Thurber - disse Booker - alguma vez obteve uma imagem particularmente nítida do conteúdo craniano... num bebé saudável?
- Ocasionalmente. Se o plano da ecografia numa determinada imagem por acaso atravessar uma das estruturas cranianas normais, em vez do osso, o interior do cérebro ficará bastante nítido. No entanto, fazemos múltiplas imagens do cérebro para examinar várias estruturas cranianas diferentes, e as suturas são muito finas. Seria quase impossível ver múltiplas imagens do cérebro em múltiplas projecções em que o transdutor tenha conseguido sempre atravessar uma sutura. Se eu visse uma imagem que mostrasse o campo próximo do cérebro muito nítido, mas as outras imagens não, presumiria que essa única imagem teria sido obtida através de uma sutura craniana. Mas, neste caso, todas as imagens do cérebro mostram o conteúdo craniano invulgarmente bem.
- E o comprimento do fémur? Já alguma vez mediu um fémur curto numa ecografia feita às dezoito semanas de gravidez, vendo depois nascer um bebé perfeitamente saudável?
- Sim. Por vezes as medidas dos técnicos podem não estar correctas por um fio de cabelo, porque o feto estava a mexer-se ou numa posição estranha. Medem três ou quatro vezes, e escolhem o eixo mais longo, mas mesmo estando incorrectos às dezoito semanas... estamos a falar de milímetros... podem fazer
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descer o percentil de forma significativa. Muitas vezes, quando vemos um fémur curto no limite das tabelas, trata-se apenas de uma submedida.
Booker aproximou-se dele.
- Por muito útil que a tecnologia das ecografias seja, não é uma ciência exacta, pois não? Certas imagens podem ser mais nítidas do que as outras?
- A nitidez com que vemos as estruturas do feto é variável. Depende de muitas coisas: do tamanho da mãe, da posição do feto. Na verdade há uma continuidade. Num determinado dia podemos não conseguir vê-las muito bem, ou pelo contrário, podemos ver tudo com muita nitidez.
- Doutor, numa ecografia feita às dezoito semanas de gravidez, pode afirmar definitivamente que uma criança vai nascer com OI do Tipo III?
- Podemos dizer que o esqueleto apresenta algum problema. Podemos ver os sinais: como aqueles que estavam presentes nos ficheiros da Sr.a O'Keefe. À medida que aumenta
o tempo de gestação, se virmos ossos partidos, podemos supor que o feto tem OI do Tipo III.
- Doutor, se Charlotte O'Keefe fosse sua paciente e tivesse visto os resultados da ecografia que ela fez às dezoito semanas de gravidez, e não visse nenhum osso
partido, teria recomendado que ela recebesse um acompanhamento especial?
- com base no reduzido comprimento do fémur e na cúpula craniana desmineralizada? com certeza.
- E assim que visse os ossos fracturados numa ecografia subsequente, teria feito o que Piper Reece fez: encaminhar a Sr.a O'Keefe de imediato para uma médica especialista em medicina materno-fetal num centro de cuidados terciários?
- Sim.
- Mas teria diagnosticado de forma conclusiva OI no feto da Sr.a O'Keefe às dezoito semanas de gravidez, exclusivamente com base na primeira ecografia?
Hesitou.
- Bem - disse Thurber. - Não.
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Amélia
Às vezes interrogo-me sobre o que será realmente uma "emergência." Quero dizer, todos os professores na minha escola sabiam do julgamento e que os meus pais não
só participavam nele, como estavam em lados opostos. Todo o Estado sabia, e talvez até o país inteiro, graças à cobertura dos jornais e da televisão. com certeza
que, mesmo que pensassem que a minha mãe era doida ou estava atrás do dinheiro, sentiriam alguma pena de mim, metida no meio de tudo isso. Mas não deixavam de gritar-me na aula de matemática por não estar a prestar atenção.Tinha um teste de inglês muito importante no dia seguinte, de vocabulário, com noventa palavras que, o mais provável, seria nunca vir a utilizar em toda a minha vida.
Para isso, estava a fazer cartões de memória. "Hipersensível", escrevi. "Extremamente sensível." Mas não seria essa a questão? Se formos sensíveis, não estaremos destinados a levar as coisas demasiado a sério?
"Temor: medo." Utilize a palavra numa frase: "Tenho temor de fazer este estúpido teste."
- Amélia!
- Ouvi-te chamar; mas também sabia que não tinha de responder. Afinal, a minha mãe - ou talvez a Marin - estava a pagar àquela enfermeira que cheirava a bolas de naftalina para tomar conta de ti. Era o segundo dia que a encontrava lá em casa quando saí do autocarro e, para te dizer a verdade, não fiquei impressionada. Estava a ver o Hospital Central quando devia estar a brincar contigo.
- Amélia! - gritaste, desta vez mais alto.
Arrastei a cadeira para trás, afastando-a da secretária com um rangido e desci as escadas a correr
- O que foi? - perguntei. - Estou a tentar estudar. Então vi: a enfermeira Ratched tinha vomitado no chão.
Estava encostada à parede, com o rosto da cor de plasticina.
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- Acho que devia ir para casa... - disse ela, ofegante. - Bem, dah. Não queria apanhar peste bubónica.
- Achas que consegues tomar conta da Willow até a tua mãe voltar? - perguntou.
Como se eu não tivesse feito isso toda a minha vida.
- Claro - hesitei. - Mas primeiro vai limpar isso, não vai?
- Amélia! - sibilou Willow. - Ela está doente!
- Bem, eu não vou limpar - sussurrei, mas a enfermeira já estava a dirigir-se para a cozinha para limpar a porcaria com a esfregona.
- Mas tenho de estudar - disse eu, depois de estarmos sozinhas. Deixa-me ir lá acima para ir buscar o caderno e os cartões de memória.
- Não, eu vou lá para cima - respondeste. - Apetece-me deitar-me. Por isso levei-te ao colo - eras tão leve - e instalei-te na cama com
as muletas ao lado. Agarraste no livro mais recente e começaste a ler "Escrutinar: examinar com muita atenção." "Estatura: tamanho de uma pessoa; altura de um ser
vivo." Olhei para ti por cima do ombro. Eras do tamanho de uma criança de três anos, apesar de teres seis anos e meio. Interroguei-me de que altura ficarias. Pensei
em como há espécies de peixinhos dourados que crescem mais quando são colocados num lago grande e perguntei-me se isso ajudaria: e se, em vez de estares sentada naquela cama, naquela estúpida casa, eu te mostrasse o mundo inteiro?
- Eu podia fazer-te perguntas - disseste.
- Obrigada, mas ainda não estou preparada. Tal vez mais tarde.
- Sabias que o Sapo Cocas é canhoto? - perguntaste.
- Não
"Dissipar: espalhar; dispersar; derramar" "Eludir: evitar com destreza." Quem me dera.
- Sabes de que tamanho é uma sepultura quando é cavada? -Willow - disse eu - estou a tentar estudar. És capaz de te calares?
- Dois metros e trinta e três centímetros, por um metro, por um metro e oitenta e três - sussurraste,
-Willow!
Sentaste-te.
-vou à casa de banho.
- Óptimo. Não te percas - disse bruscamente. Observei-te a levantares cuidadosamente as muletas para poderes saltar da cama. Normalmente a mãe ia contigo à casa de banho - ou ficava lá - e depois mandava-la embora e fechavas a porta para teres privacidade. - Precisas de ajuda? - perguntei.
- Não, só um bocado de colagénio - disseste, e eu quase esbocei um sorriso.
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Passado um momento, ouvi a porta da casa de banho trancar-se. "Escrupuloso, devoto, aniquilar. Letárgico, aluir." O mundo seria um sítio muito mais fácil se, em
vez de estarmos sempre a usar sílabas emproadas a toda a hora, simplesmente disséssemos o que queríamos realmente dizer. AS palavras atrapalham. As coisas mais difíceis - como a sensação de um rapaz nos tocar como se fossemos feitas de luz ou ser a única pessoa na sala em que ninguém repara - não eram frases; eram nós na madeira dos nossos corpos, sítios em que o sangue circulava no sentido inverso. Se me pedissem a minha opinião, embora nunca ninguém o faça, a única palavra que vale a pena
dizer é "desculpa".
Estudei a Lição 13 e a Lição 14 - "tortuoso, aterrado, rústico" - e olhei para o relógio. Eram só três horas.
- Wills - disse eu - a que horas disse a mãe que chegava... - e então lembrei-me de que não estavas ali.
Já não estavas ali há uns bons quinze ou vinte minutos.
Ninguém precisava de tanto tempo para ir à casa de banho.
O meu coração ficou acelerado. Estaria tão concentrada em aprender a definição de "arbitragem" que não ouvira uma queda reveladora? Corri para a porta da casa de banho e abanei a maçaneta.
- Willow? Estás bem?
Não obtive resposta.
Às vezes interrogo-me no que constitui realmente uma emergência.
Levantei a perna e usei o pé para arrombar a porta.
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Sean
A sopa que sai da máquina de venda automática do tribunal tinha o mesmo aspecto - e o mesmo gosto - do café. Já era a terceira caneca que tomava naquele dia, e ainda
não tinha bem a certeza do que estava a tomar.
Estava sentado junto da janela do meu esconderijo - o meu feito mais importante do segundo dia de julgamento. Pensara em ficar sentado na recepção até Guy Booker precisar de mim - mas não tinha contado com a imprensa. Aqueles que não tinham conseguido esgueirar-se para dentro da sala de audiências rapidamente perceberam quem eu era e acorreram em massa, restando-me apenas recuar e dizer entre dentes: "Não faço comentários."
Percorri os corredores labirínticos do tribunal, experimentando as maçanetas das portas até encontrar uma que se abrisse. Não fazia ideia para que era usada habitualmente aquela sala, mas situava-se quase por cima da sala de audiências onde Charlotte se encontrava naquele preciso momento.
Não acreditava realmente em percepção extra-sensorial nem em nada dessas tretas, mas tinha esperança de que ela sentisse a minha presença ali. Acima de tudo, tinha esperança de que isso fosse uma coisa positiva.
Eis o meu segredo: apesar de ter passado para o outro lado, apesar de o meu casamento estar arruinado, uma parte de mim ainda se interrogava sobre o que aconteceria se Charlotte ganhasse.
com algum dinheiro, podíamos mandar-te para um campo de férias no Verão, para poderes conhecer outras crianças como tu.
com algum dinheiro, podíamos comprar uma carrinha nova, em vez de, na medida do possível, arranjar a velha, que já tinha sete anos.
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com algum dinheiro, podíamos pagar a divida dos cartões de crédito e a segunda hipoteca que fizéramos depois de as contas do seguro de saúde terem subido astronomicamente.
com algum dinheiro, podia passar uma noite fora com Charlotte e voltar a apaixonar-me por ela.
Acreditava sinceramente que o nosso sucesso não devia ser o fracasso de uma boa amiga. Mas, e se eu não conhecesse Piper pessoalmente? E se só a conhecesse como médica? Teria apoiado um caso como aquele contra outra médica? Estaria contra o envolvimento de Piper, ou contra todo o processo legal?
Havia tantas coisas que não me tinham dito:
Qual a sensação de fracturar uma costela, quando apenas estou a embalar-te.
Como dói ver a expressão no teu rosto ao veres a tua irmã mais velha patinar.
Como até as pessoas que te podem ajudar têm primeiro que te causar dor: os médicos que voltam a colocar os ossos na posição correcta, as pessoas que fazem os moldes dos suportes para as pernas deixando-te brincares com eles e ficares com bolhas, para saberem onde devem ajustá-los.
Como os teus ossos não são as únicas coisas que se partem. Havia fissuras, em que não repararíamos durante anos, nas minhas finanças, no meu futuro, no meu casamento.
De repente queria ouvir a tua voz. Agarrei no telemóvel e comecei a marcar o número, ouvindo um apito sonoro quando ficou sem bateria. Fiquei a olhar para ele. Podia ir ao carro buscar o carregador, mas isso implicava passar de novo pelos jornalistas. Enquanto ponderava as vantagens e desvantagens, a porta do meu santuário abriu-se e ouviu-se algum ruído vindo do corredor, seguido por Piper Reece.
- Vais ter de encontrar o teu próprio esconderijo - disse eu, e ela deu um salto.
- Pregaste-me um susto de morte - disse Piper. - Como sabes que era isso que eu estava a fazer?
- Porque é por isso que eu estou aqui. Não devias estar no tribunal?
- Fizemos um intervalo.
Hesitei, depois percebi que não tinha nada a perder.
- Como está a correr?
Piper abriu a boca, como se fosse responder, e depois fechou-a.
- vou deixar-te fazer o teu telefonema - murmurou, com a mão na maçaneta da porta.
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- Não tem bateria - disse eu, e ela virou-se. - O meu telefone. Ela cruzou os braços.
- Lembras-te de quando não havia telemóveis? Quando não tínhamos de ouvir as conversas de toda a gente?
- Há algumas coisas que é melhor ficarem em privado - disse eu. Piper olhou para mim.
- É horrível ali dentro - admitiu ela. - A última testemunha trabalhava numa seguradora e apresentou uma estimativa dos custos dos cuidados da Willow não cobertos
pelos seguros e o valor total com base na esperança de vida dela.
- O que disseram?
- Trinta mil dólares anuais.
- Não - disse eu. - Quero dizer, quanto tempo viverá ela? Piper hesitou.
- Não penso na Willow em termos numéricos. Como se ela já fosse uma estatística.
- Piper.
- Não há razões para não ter uma esperança de vida normal
- disse Piper.
- Mas uma vida normal não - terminei.
Piper encostou-se à parede. Não tinha acendido as luzes - não queria que ninguém soubesse que estava ali, afinal - e, nas sombras, o rosto dela parecia marcado e cansado.
- Ontem à noite sonhei com a primeira vez que te convidámos para jantar: para conheceres a Charlotte.
Lembrava-me daquela noite como se tivesse sido ontem. Perdi-me a caminho da casa de Piper por estar tão nervoso. Por razões óbvias, nunca tinha sido convidado para ir a casa de alguém depois de ter passado uma multa por excesso de velocidade; e não teria ido, mas no dia antes de ter mandado parar o carro de Piper por andar a oitenta quilómetros por hora numa estrada cujo limite de velocidade era de cinquenta quilómetros por hora, tinha ido a casa do meu melhor amigo - outro polícia - e tinha encontrado a minha namorada na cama dele. Não tinha nada a perder quando Piper telefonou para a esquadra uma semana depois e me convidou; foi impulsivo, estúpido e desesperado.
Quando cheguei a casa de Piper e fui apresentado a Charlotte, ela estendeu a mão para apertar a minha e uma faísca ficou presa entre as palmas das nossas mãos, dando-nos um choque. As duas meninas comeram na sala enquanto os adultos se sentaram à mesa; Piper tinha acabado de servir-me uma fatia de bolo de noz-peca com caramelo que
Charlotte fizera.
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- O que acha? - perguntou Charlotte.
O recheio ainda estava morno e era doce; a cobertura dissolvia-se na boca como uma recordação.
- Acho que devíamos casar - disse eu, e todos riram, mas eu não estava totalmente a brincar.
Falámos do nosso primeiro beijo. Piper contou uma história sobre um rapaz que a seduzira num bosque atrás do parque infantil com o pretexto de ver um unicórnio atrás de um freixo; Rob contou que uma rapariga do sétimo ano lhe tinha pago cinco dólares para treinar. Charlotte, por seu lado, só tinha sido beijada aos dezoito anos.
- Não acredito - disse eu.
- Então e o Sean? - perguntou Rob.
- Não me lembro - nessa altura já tinha perdido a noção de tudo, excepto de Charlotte. Era capaz de dizer a quantos centímetros de distância estava a perna dela da minha debaixo da mesa. Era capaz de dizer como os caracóis dela reflectiam intensamente a luz do candeeiro. Não me lembrava do meu primeiro beijo, mas podia afirmar que o de Charlotte seria o meu último.
- Lembras-te de termos deixado a Emma e a Amélia na sala de estar? - dizia agora Piper. - Estávamos a divertir-nos tanto que ninguém se lembrou de ir ver o que estavam a fazer.
De repente, era como se estivesse a ver - todos enfiados na pequena casa de banho lá de baixo, Rob a gritar com a filha, que tinha pedido a Amélia para a ajudar a deitar a ração de cão para dentro da sanita.
Piper começou a rir.
- A Emma não parava de dizer que tinha sido só uma taça cheia.
Mas absorvera a água toda e inchara até encher a sanita. Era verdadeiramente espantosa a rapidez com que se perdeu o controlo da ração.
Ao meu lado o riso de Piper fez uma viragem e, daquela maneira que as emoções têm de ultrapassar os limites, subitamente começou a chorar.
- Meu Deus, Sean. Como chegámos a este ponto?
Fiquei ali de pé, embaraçado, e depois, passado um instante, coloquei um braço em volta dela.
- Está tudo bem.
- Não, não está - soluçou Piper, e escondeu o rosto no meu ombro. - Nunca, nunca na minha vida fui a má da fita. Mas cada vez que entro naquela sala de audiências, é exactamente o que sou.
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Já tinha abraçado Piper Reece antes. Era o que os casais casados faziam - íamos a casa de alguém e entregávamos a garrafa de vinho da praxe e beijávamos a anfitriã na face. Talvez tivesse uma vaga noção de que Piper era mais alta do que Charlotte e que cheirava a um perfume pouco familiar, em vez de a sabonete e extracto de baunilha. Em todo o caso, o abraço era triangular: tocávamo-nos na face, e depois os nossos corpos dobravam-se, afastando-se um do outro.
Mas naquele momento, Piper estava encostada a mim, as lágrimas dela eram quentes no meu pescoço. Sentia a curva e o peso do seu corpo. E distingui o momento exacto
em que ficou consciente do meu.
E depois estava a beijar-me, ou talvez eu estivesse a beijá-la, ela tinha um gosto a cerejas e eu fechei os olhos e, nesse instante, só conseguia ver a Charlotte.
Afastámo-nos ambos um do outro, desviando o olhar. Piper levou as mãos às faces. "Nunca, nunca na minha vida fui a má da fita", dissera ela.
Há uma primeira vez para tudo.
- Desculpa - disse eu, e Piper começou a falar ao mesmo tempo.
- Não devia...
- Não aconteceu nada - interrompi. - Vamos considerar que não aconteceu nada, está bem?
Piper olhou para mim com um ar triste.
- Lá por não quereres encarar um facto, Sean, isso não significa que ele não exista.
Não sabia se estávamos a falar daquele momento ou do processo legal ou de ambos. Havia milhares de coisas que eu queria dizer a Piper, e todas elas começavam com um pedido de desculpa, mas em vez disso, o que me saiu dos lábios foi:
- Eu adoro a Charlotte - disse eu. - Eu adoro a minha mulher.
- Eu sei - sussurrou Piper. - Eu também a adorava.
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Charlotte
O filme que fora feito para mostrar um dia da tua vida era a última prova que Marin tinha para oferecer ao júri. Era a prova mais emocional aos factos que o colaborador
da companhia de seguros referira sobre quanto custava ter uma criança com incapacidade neste país. Parecia ter sido há uma eternidade que a equipa de filmagens andara atrás de ti na escola e, para ser sincera, tinha ficado preocupada com o resultado. E se o júri olhasse para a tua rotina diária e não a achasse assim tão extraordinariamente diferente da do resto das pessoas?
Marin dissera-me que fazia parte do seu trabalho garantir que a apresentação resultasse a nosso favor e, assim que as primeiras imagens foram projectadas no ecrã da sala de audiências, apercebi-me de que não devia ter ficado preocupada. A edição é uma coisa maravilhosa.
Começou com uma imagem do teu rosto, reflectida no vidro da janela por onde espreitavas. Não estavas a falar, mas não era preciso. Havia uma vida inteira de ânsia nos teus olhos.
Então a imagem mudou para fora da janela, para mostrar a tua irmã a patinar no lago.
Depois ouviram-se os primeiros acordes de uma canção quando me ajoelhei para apertar os teus suportes para as pernas, antes de ires para a escola, porque não eras capaz de os alcançar sozinha. Passado um momento, reconhecia-a: "I Hope You Dance."
No bolso do casaco, o meu telemóvel começou a vibrar.
Não eram permitidos telemóveis num tribunal, mas eu tinha dito a Marin que tinha de estar contactável no caso de acontecer alguma coisa - e fizéramos essa cedência. Enfiei a mão no bolso e olhei para o ecrã para ver quem estava a telefonar.
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CASA, estava escrito.
No ecrã do projector estavas nas aulas e as crianças andavam à tua volta como um cardume de peixes, a fazer uma espécie de dança, quando chegou a altura de se disporem
em círculo enquanto ficaste sentada imóvel na tua cadeira.
- Marin - sussurrei.
- Agora não.
- Marin, o meu telefone está a tocar...
Ela aproximou-se mais de mim.
- Se atender o telefone agora, em vez de ver o filme, o júri vai crucificá-la por ser insensível.
Por isso sentei-me em cima das mãos, cada vez mais agitada. Talvez o júri pensasse que fosse por não ser capaz de ver aquilo. O telemóvel deixava de vibrar e depois
recomeçava passado um instante. No ecrã vi-te na fisioterapia a dirigires-te para o colchão, mordendo o lábio inferior. O telemóvel vibrou novamente e soltei um ligeiro som do fundo da garganta.
E se tivesses caído? E se a enfermeira não soubesse o que fazer? E se fosse outra coisa ainda pior do que uma fractura?
Ouvia sons de pessoas fungarem atrás de mim, abrindo as malas à procura de Kleenex. Via o júri fascinado pelas tuas palavras, pelo teu rosto élfico.
O telemóvel voltou a vibrar, como um choque eléctrico no meu organismo. Dessa vez tirei-o do bolso para ver o ícone de uma mensagem de texto. Escondi o telemóvel debaixo da mesa e abri-o.
"WILLOW FERIDA - AJUDA."
- Tenho de sair daqui - sussurrei a Marin.
- Daqui a quinze minutos... Não podemos mesmo pedir um intervalo agora.
Voltei a olhar para o ecrã, com o coração aos saltos. Ferida, como? Porque não estava a enfermeira a fazer qualquer coisa?
Estavas sentada no colchão, de pernas dobradas. Por cima de ti estava pendurada uma argola vermelha. Retraíste-te quando tentaste alcançá-la. "Podemos parar agora?"
"Vá lá, Willow, sei que és mais forte do que isto... agarra-a com os dedos e aperta."
Tentaste, pela Molly. Mas as lágrimas escorriam-te dos olhos, e o som que soltaste era agudo, entrecortado. "Por favor, Molly... posso parar?"
O telemóvel estava novamente a vibrar. Agarrei-o com a mão.
E então eu estava em cima do colchão contigo, a abraçar-te, a embalar-te e a dizer-te que ias ficar melhor.
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Se estivesse mais atenta ao que estava a acontecer na sala de audiências teria reparado que todas as juradas estavam a chorar e alguns jurados também. Teria visto
as câmaras de televisão ao fundo da galeria que estavam a gravar para depois passarem as imagens nos telejornais da noite. Teria visto o juiz Gellar fechar os olhos e abanar a cabeça. Mas em vez disso, assim que o ecrã ficou negro, levantei-me de um salto.
Sentia que toda a gente estava a observar-me ao correr para o corredor e sair pela porta dupla, e provavelmente pensaram que eu estava muito emocionada ou demasiado fragilizada para olhar para ti no grande ecrã. Assim que passei pelos oficiais de justiça carreguei na tecla do telemóvel para remarcar.
- Amélia? O que aconteceu?
- Ela está a sangrar - soluçou Amélia, histérica. - Havia sangue para todo o lado e ela não se mexia e...
De repente, ouvi uma voz desconhecida ao telefone.
- Estou a falar com a Sr.a O'Keefe? -Sim?
- Chamo-me Hal Chen, sou um dos técnicos de emergência médica que...
- O que se passa com a minha filha!
- Perdeu bastante sangue, é só isso que sabemos neste momento. Pode vir ter connosco ao Portsmouth Regional?
Nem sei se disse que sim. Não disse nada a Marin. Limitei-me a correr - através da recepção, para fora das portas do tribunal. Passei pelos jornalistas, que foram apanhados desprevenidos, que se recompuseram mesmo a tempo de focar as câmaras e apontar os microfones para a mulher que estava a fugir daquele julgamento, em direcção a ti.
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Amélia
Quando era mesmo muito pequena e o vento soprava loucamente à noite, tinha dificuldade em dormir. O meu pai vinha para o pé de mim e dizia-me que a casa não era
feita de palha nem de madeira, que era de tijolos, e como os três porquinhos sabiam, nada podia derrubá-la. Eis o que os três porquinhos não sabiam: o lobo mau era apenas o início dos seus problemas. A maior ameaça, na realidade, estava dentro de casa, com eles, e não se via. Não se tratava de gás rádon nem de monóxido de carbono, mas apenas da maneira como três personalidades muito diferentes conseguem coabitar num espaço reduzido. Não me digam que o porquinho preguiçoso - aquele que fez a casa de palha podia dar-se bem com o porquinho que construiu a casa sofisticada de tijolo. Não me parece. Aposto que se esse conto de fadas continuasse por mais dez páginas, os três porquinhos estariam todos a digladiarem-se e aquela casa de tijolo teria afinal explodido.
Quando arrombei a porta da casa de banho com o meu pontapé ninja, a verdade é que cedeu mais facilmente do que estava à espera, mas a casa era velha e a ombreira da porta ficara toda lascada. Estavas bem à vista, mas eu não te vi. Como podia ver-te, como todo aquele sangue por todo o lado?
Comecei a gritar e depois corri para dentro da casa de banho e agarrei-te nas bochechas.
- Willow, acorda. Acorda!
Não resultou, mas mexeste o braço, e da tua mão caiu a minha lâmina de barbear,
O meu coração disparou. Tinhas-me visto cortar-me naquela noite; estava tão zangada que não me lembrava se tinha voltado a colocar a lâmina no seu esconderijo habitual.
E se tivesses imitado o que tinhas visto?
Isso queria dizer que a culpa era minha.
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Tinhas cortes no pulso. Naquele momento já estava histérica e a chorar. Não sabia se devia enrolar uma toalha à tua volta e tentar estancar a hemorragia, chamar uma
ambulância ou telefonar à nossa mãe.
Fiz as três coisas.
Quando os bombeiros chegaram na ambulância, subiram as escadas a correr, com as botas enlameadas no tapete.
- Tenham cuidado - gritei, ficando à porta da casa de banho. - Ela tem a doença dos ossos de vidro.Vai fazer uma fractura se lhe mexerem.
- Vai esvair-se em sangue se não lhe mexermos - disse um dos bombeiros entre dentes.
Um dos técnicos de emergência médica levantou-se, tapando-me a visão.
- Conta-me o que aconteceu.
Estava a chorar tanto que tinha os olhos inchados e quase fechados.
- Não sei. Estava a estudar no meu quarto. Estava cá uma enfermeira, mas foi para casa. E a Willow... E ela... - tinha o nariz a pingar, as palavras saiam com dificuldade. - Ela esteve muito tempo na casa de banho.
- Quanto tempo? - perguntou o bombeiro. -Talvez dez minutos... cinco?
- Qual deles?
- Não sei - solucei. - Não sei.
- Onde arranjou a lâmina de barbear? - perguntou o bombeiro. Engoli em seco e forcei-me por olhar para ele.
- Não faço ideia - menti.
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Buckle21: um bolo de uma só camada com frutos silvestres na massa.
Quando não temos o que queremos, temos de querer o que temos. Foi uma das primeiras lições que os colonos aprenderam quando chegaram à América e perceberam que não
podiam fazer os cremes e pudins que adoravam em Inglaterra porque não havia os ingredientes ali. Isso deu azo à inovação e os colonos usaram fruta da época e frutos
silvestres para fazerem receitas rápidas que serviam ao pequeno-almoço ou mesmo como prato principal. Tinham nomes como buckle, grunt, crumble, cobbler, crisp, brown
Betty, sonker, slump e panctowdy. Escreveram-se livros inteiros sobre a origem desses nomes- grunt é o som da fruta a ser cozinhada; Louisa May Alcott chamava afectuosamente
à casa da família em Concord, Massachusetts, "Slump de Maçã" - mas alguns dos nomes estranhos nunca chegaram a ser explicados.
Por exemplo, buckle.
Talvez seja devido à cobertura parecer um streusel, o que lhe dá um aspecto esfarelado, como um crumble. Mas então porque não dizer que se trata de um crumble, quando
realmente se parece mais com um crisp?
Fazia buckles quando não conseguia acertar em mais nada. Imaginava uma colona cercada, debruçada sobre o fogão, com uma frigideira de ferro, a soluçar para dentro
da massa - e é daí que imagino que o nome venha. Um buckle é o momento em que cedemos, nos rendemos, porque quando fazemos um, simplesmente não podemos fazer asneira.
Ao contrário dos bolos e das tartes, não temos de preocupar-nos em arranjar os ingredientes certos ou em amassar a massa até ter uma determinada consistência. Trata-se
de uma receita para as pessoas que não sabem fazer bolos; é por aqui que começamos, quando tudo o resto à nossa volta está a desmoronar-se.
BUCKLE DE PÊSSEGO E MIRTILOS
COBERTURA
Um terço de chávena de manteiga sem sal, cortada em pedacinhos.
meia chávena de açúcar amarelo
21. Buckle, também significa cecler. (N. da T.)
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meia chávena de farinha
1 colher de chá de canela
Meia colher de chá de gengibre fresco, descascado e ralado
MASSA
1 a 1,5 chávenas de farinha
Meia colher de chá de fermento
Pitada de sal
Meia chávena de manteiga sem sal, à temperatura ambiente
Meia chávena de açúcar mascavado
1 colher de chá de extracto de baunilha
3 ovos grandes
2/3 chávenas de mirtilos selvagens (se não se encontrarem disponíveis frescos, podem ser substituídos por congelados)
2 pêssegos maduros, descascados, sem caroço e cortados em fatias
Untar com manteiga e polvilhar com farinha uma forma de 20 por 20 cm; pré-aquecer o forno a 180?C.
Primeiro, fazer a cobertura -, numa pequena tigela, misturar a manteiga, o açúcar mascavado, a farinha, a canela e o gengibre até ficar com uma textura grosseira.
Reservar.
Depois, fazer a massa peneirando a farinha com o fermento e o sal. Colocar também esta mistura de lado.
Na taça da batedeira eléctrica, utilizando o acessório em forma de remos, misturar a manteiga com o açúcar mascavado até ficar cremosa e macia (3-4 minutos). Juntar
a baunilha. Bater os ovos com a mistura de farinha, juntando um de cada vez até ficar tudo misturado. Incorporar os mirtilos e os pêssegos. Deitar a massa na forma
já preparada e espalhar a cobertura por cima. Cozer durante
45 minutos ou até espetar um palito e sair limpo e a parte de cima do buckle estar dourada.
A melhor maneira de descascar os pêssegos é fazer uma pequena cruz na base de cada pêssego e deitar o fruto numa panela de água a ferver durante um minuto. Retirar
com uma escumadeira e mergulhar o pêssego imediatamente em água gelada. Descascar - a casca sai imediatamente - e cortar em fatias finas ou pedacinhos para usar no Buckle.
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Charlotte
Acho que podemos amar demasiado uma pessoa.
Colocamo-la num pedestal e, de repente, dessa perspectiva, percebemos o que está errado - um cabelo fora do lugar, uma malha na meia, um osso fracturado. Gastamos
todo o nosso tempo e energia a cuidá-la, e, entretanto, somos nós que estamos a desmoronar-nos. Nem nos apercebemos do nosso aspecto, da extensão da nossa deterioração, porque só temos olhos para essa outra pessoa.
Não serve de desculpa, mas é a única resposta que consigo dar para me encontrar ali, junto da tua cama, e tu com o pulso ligado e partido onde os médicos tiveram de pressionar para estancar a hemorragia; tu com as costelas partidas da reanimação cardio-respiratória que começaram a fazer quando o teu coração parou.
Já estava habituada a ouvir que fracturaste um osso, ou que precisavas de ser operada ou de ser engessada. Mas havia palavras saídas das bocas dos médicos naquele dia que nunca esperaria ouvir: "perda de sangue, auto-infligido, suicídio."
Como podia uma menina de seis anos suicidar-se? Seria essa a única maneira de fazer-me parar para reparar? Porque, sim, tinhas a minha atenção.
Já para não falar da minha mágoa paralisante.
Durante todo aquele tempo, Willow, só quis que visses como eras importante para mim, como eu era capaz de fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para te dar a melhor vida possível... e tu não querias essa vida.
- Não acredito - sussurrei furiosamente, embora ainda estivesses a dormir, medicada para poderes descansar durante a noite.
- Não acredito que quisesses morrer.
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Passei a mão pelo teu braço, até os dedos roçarem na gaze enrolada à volta do corte profundo no pulso.
- Adoro-te - disse eu, numa voz oca repleta de lágrimas. Adoro-te tanto que não sei quem seria sem ti. E mesmo que demore toda a minha vida, vou fazer-te ver porque
é que a tua fez a diferença.
Venceria aquele processo legal e, com o dinheiro, ia levar-te a veres os Paraolímpicos. Ia comprar-te uma cadeira de rodas de desporto, um cão de serviço. Ia
levar-te
ao outro lado do mundo para conheceres pessoas que, tal como tu, contra todas as expectativas, se tornaram mais importantes do que toda a gente alguma vez imaginaria.
Ia provar-te que ser diferente não é uma sentença de morte mas um apelo à guerra. Sim, ias continuar a quebrar: não ossos, mas sim barreiras.
Os teus dedos mexeram-se junto dos meus e abriste lentamente os olhos.
- Olá, mamã - murmuraste.
- Oh, Willow - disse eu, agora chorando abertamente. - Pregaste-nos um susto de morte.
- Desculpa.
Levantei a tua mão incólume e beijei-te a palma para poderes guardar esse beijo como um doce, até derreter. :
- Não - sussurrei. - Eu é que te peço desculpa.
Sean mexeu-se na cadeira onde estava a dormir, ao canto do quarto. "
- Olá - disse ele, com o rosto a iluminar-se ao ver-te acordada. Sentou-se na beira da cama. - Como está a minha menina?
- Afastou-te os cabelos do rosto.
- Mãe? - perguntaste.
- O que foi, querida?
Então sorriste, o primeiro sorriso a sério que te via no rosto há imenso tempo.
- Estão os dois aqui - disseste, como se fosse isso que desejasses desde o início.
Deixando Sean contigo, fui lá abaixo à recepção telefonar a Marin; ela tinha deixado várias mensagens no meu voice mail.
- Até que enfim - disse ela bruscamente. - Tenho uma notícia para si, Charlotte. Não pode sair de um julgamento a meio, sobretudo sem dizer à sua advogada para onde vai. Faz ideia da figura de idiota que fiz quando o juiz me perguntou pela minha cliente e eu não soube responder?
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- Tive de ir para o hospital.
- Por causa da Willow? O que foi que ela fracturou desta vez?
- perguntou Marin.
- Cortou-se. Perdeu muito sangue, e a intervenção dos médicos provocou-lhe algumas fracturas, mas vai ficar bem. Vai ficar internada até amanhã para ficar em observação. - Inspirei. Marin, não posso ir ao tribunal amanhã. Tenho de ficar com ela.
- Um dia - disse Marin. - Posso obter um adiamento de um dia. E... Charlotte? Ainda bem que a Willow está bem.
Exalei, arquejando.
- Não sei o que faria sem ela. ; Marin ficou em silêncio por um instante.
- É melhor não deixar o Guy Booker ouvi-la dizer isso - disse ela, e depois desligou.
Não queria voltar para casa, porque lá, teria de ver o sangue. Devia estar por todo o lado - na cortina do duche, no chão de ladrilhos, no cano da banheira. Imaginei-me
a usar lixívia e um pano molhado e ter de torcê-lo para dentro do lavatório dúzias de vezes, com as mãos a arder e os olhos inflamados. Imaginei a água a ficar cor-de-rosa e, mesmo depois de uns bons trinta minutos de limpeza, ainda sentiria o cheiro do medo de perder-te.
Amélia estava lá em baixo, na cantina, onde a deixara com um copo de chocolate quente e uma embalagem de papel de batatas fritas.
- Olá - disse eu. - Ela quase se levantou da cadeira. - A Willow...
- Acabou de acordar.
Amélia parecia que ia desmaiar e não a censurava - fora ela quem te descobrira, quem chamara a ambulância.
- Ela disse alguma coisa?
- Não muito - estendi a mão e coloquei-a sobre a dela. - Hoje salvaste a vida da Willow. Não há nada que eu possa dizer para fazer-te compreender o quando quero
agradecer-te.
- Não ia deixá-la esvair-se em sangue - disse ela, mas estava a tremer.
- Queres vê-la?
- Eu... não sei se posso. Estou sempre a vê-la naquela casa de banho... - enrolou-se sobre si própria, como as adolescentes costumam fazer, como rebentos de feto. - Mãe, o que teria acontecido se a Willow tivesse morrido?
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- É melhor nem pensares nisso, Amélia.
- Não estava a dizer agora... hoje. Estava a dizer há anos. Quando nasceu - olhou para mim e percebi que não estava a tentar irritar-me, estava a perguntar sinceramente
como teria sido a sua vida se não tivesse ficado em segundo lugar perante uma irmã com uma incapacidade grave.
- Não sei dizer-te, Amélia - disse sinceramente. - Só estou muito, muito contente por ela não ter morrido. Nem nessa altura nem, graças a ti, hoje. Preciso demasiado de vocês as duas.
Enquanto me levantava, à espera que Amélia acabasse o resto das batatas fritas, interroguei-me se o psiquiatra a que te íamos levar me diria o que te tinha prejudicado irremediavelmente. Interroguei-me se tinhas cortado o pulso, apesar do vocabulário todo que sabias, por não teres palavras para me dizeres para parar. Interroguei-me como saberias que cortar os pulsos era uma das maneiras de abandonar este mundo.
Como se tivesse lido os meus pensamentos, Amélia falou.
- Mãe? Não me parece que a Willow estivesse a tentar suicidar-se.
- O que te faz dizer isso?
- Porque ela sabe - disse Amélia, acertando o passo com o meu. - Ela é a única coisa que mantém a nossa família unida.
435
Amélia
Só fiquei sozinha contigo três horas depois de teres acordado, quando a mãe e o pai foram para o corredor para falar com um dos médicos, Olhaste para mim, porque
sabias que não tínhamos muito tempo até todos voltarem a aparecer.
- Não te preocupes - disseste. - Não vou dizer a ninguém que era tua.
Os meus joelhos quase cederam debaixo de mim; tive de segurar-me àquela coisa esquisita de plástico ao lado da cama de hospital.
- Onde estavas com a cabeça? - perguntei.
- Só queria ver como era - disseste. - Quando te vi...
- Não devias.
- Bem, mas vi. E parecias... não sei... tão feliz.
Uma vez, numa aula de ciências, o meu professor contou uma história de uma mulher que foi para o hospital porque não conseguia comer nada, nem uma dentada, e os médicos operaram-na e encontraram uma bola de cabelos com o tamanho e a forma do estômago dentro dela. Mais tarde, o marido mencionou que sim, já a tinha visto a mastigar o cabelo de vez em quando, mas que nunca imaginara que a situação ficasse tão fora de controlo. Era como me sentia naquele momento: enjoada, farta de um
vício que se tornara tão pesado que já nem era capaz de engolir.
- É uma maneira estúpida de estar feliz. Foi o que eu fiz porque não conseguia estar feliz normalmente - abanei a cabeça. - Olha para ti, Wills, com tantas coisas
horríveis a acontecerem-te e tu nunca deixas que elas te derrubem. Mas eu, nem sequer fico satisfeita com as coisas boas que tenho. Sou patética.
- Não acho que sejas patética.
-Ai não? - ri, mas sem vontade, era um riso vazio. - Então o que sou?
- A minha irmã mais velha - disseste simplesmente.
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Ouvi a porta entreabrir-se e o pai agradecer ao médico. Apressei-me a limpar uma lágrima do olho.
- Não sejas como eu.Willow - disse.- Sobretudo porque eu estava apenas a tentar ser como tu.
Depois o pai e a mãe entraram no quarto,. Olharam para a tua cara, e depois para a minha, e de novo para a tua.
- De que estavam a falar? - perguntou o pai. Não olhámos uma para a outra.
- De nada - dissemos, dessa vez em uníssono.
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Piper
- Amanhã não tenho de ir ao tribunal - disse eu, ainda a recompor-me, ao desligar o telefone e virar-me para olhar para Rob.
O garfo dele ficou suspenso no ar por cima do prato.
- Queres dizer que ela finalmente caiu em si e desistiu deste processo legal?
- Não - disse eu, sentando-me ao lado de Emma, que estava a empurrar a comida chinesa de um lado para o outro no prato. Interroguei-me do que devia dizer na presença dela e depois decidi que ela já tinha idade suficiente para lidar com aquele julgamento, já tinha idade suficiente para ouvir a verdade.
- Foi a Willow. Cortou-se com uma lâmina de barbear, parece que foi bastante grave.
Os talheres de Rob tilintaram no prato.
- Meu Deus - disse ele num tom suave. - Estava a tentar suicidar-se?
Até ele dizer isso, essa ideia não me tinha realmente ocorrido. Tinhas só seis anos e meio, por amor de Deus. As meninas da tua idade deviam estar a sonhar com póneis
e o Zac Efron e não a tentarem suicidar-se. Mas, por outro lado, estavam sempre a acontecer coisas que teoricamente não deviam acontecer: os abelhões voavam, os
salmões nadavam contra a corrente. Os bebés nasciam sem uma estrutura óssea que aguentasse o seu próprio peso. Melhores amigas viravam-se uma contra a outra.
- Não estás realmente a pensar que... Oh, Rob. Oh, meu Deus.
- Ela vai ficar bem? - perguntou Emma.
- Não sei - admiti. - Espero que sim.
- Bem, se isto não for uma imensa pista cósmica para a Charlotte estabelecer as suas prioridades - disse Rob - então não sei o que poderá ser. Nem sequer me lembro da Willow alguma vez se queixar.
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- Muitas coisas podem mudar num ano - fiz notar.
- Sobretudo quando uma mãe está demasiado ocupada a extrair sangue de uma pedra para prestar atenção às filhas...
- Já chega - murmurei.
- Não me digas que vais defender aquela mulher.
- Aquela mulher era minha amiga.
- Era, Piper - repetiu Rob.
Emma atirou o guardanapo para cima da mesa, um sinal de aviso.
- Acho que sei porque ela fez aquilo - sussurrou. Virámo-nos os dois para ela ao mesmo tempo.
Emma estava quase branca, com os olhos brilhantes das lágrimas.
- Sei que as amigas se deviam proteger umas às outras, mas já não somos realmente amigas...
- Tu e a Willow? Ela abanou a cabeça.
- Eu e a Amélia. Uma vez vi-a na casa de banho das raparigas. Estava a cortar um braço com a patilha de uma lata de refrigerante. Ela não me viu e eu dei meia volta e fugi. Ia dizer a alguém: a ti, ou à técnica de aconselhamento, mas depois desejei que ela morresse. Achei que talvez a mãe dela merecesse isso, sabem, por estar a processar-nos. Mas não pensei... nunca quis que a Willow... - começou a chorar. - Toda a gente faz isso, cortar-se. Achei que era alguma fase que ela estava a atravessar, tal como costumava provocar os vómitos.
- Ela fazia o quê?
- Ela pensava que eu não sabia, mas eu sabia. Ouvia-a quando dormia em casa dela. Pensava que eu estava a dormir, mas ia à casa de banho e vomitava...
- Mas deixou de fazer isso? Emma olhou para mim.
- Não me lembro - disse ela, numa voz muito débil. - Achei que sim, mas talvez tenha apenas deixado de estar com ela para ver.
- Os dentes dela - acrescentou Rob. - Quando lhe tirei o aparelho, o esmalte estava gasto. É uma coisa que atribuímos aos refrigerantes... ou às perturbações alimentares.
Quando ainda exercia medicina, tive uma paciente com bulimia que estava grávida. Assim que consegui convencê-la a deixar de provocar os vómitos para bem do feto,
começou a cortar-se. Consultei um psiquiatra e fiquei a saber que as duas coisas muitas vezes apareciam juntas. Ao contrário da anorexia, que tem a ver com ser-se
sempre perfeita, a bulimia baseia-se no desprezo por si própria.
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Cortar-se, ironicamente, é uma forma de não cometer suicídio; é um mecanismo para quem não se consegue controlar de outra forma e, como tal, empanturrar-se e vomitar,
tornava-se no segredo obscuro que intensificava o ciclo de raiva em relação a si própria por não ser quem desejava ser.
Mal conseguia imaginar o que seria viver numa casa onde a mensagem subliminar era que as filhas que não estivessem à altura das expectativas não deviam existir.
Podia ser coincidência; Emma podia ter visto Amélia da única vez em que tentou fazer mal a si própria; o diagnóstico de Rob podia não corresponder à realidade. Mas, mesmo assim, quando os sinais de alarme estão presentes e reparamos neles, não teríamos obrigação de informar?
Por amor de Deus - essa era a base daquele processo legal.
- Se fosse a Emma - disse Rob em voz baixa - não desejarias saber? Olhei para ele, pestanejando.
- Achas realmente que a Charlotte me daria ouvidos se lhe dissesse que a filha estava com problemas?
Rob inclinou a cabeça.
- Talvez seja precisamente por isso que tens de tentar.
Enquanto atravessava Bankton de carro, cataloguei tudo o que sabia sobre Amélia O'Keefe:
Calçava sapatos 38.
Não gostava de alcaçuz.
Patinava como um anjo e fazia-o parecer mais fácil do que realmente era.
Era resistente. Uma vez, durante um espectáculo de patinagem, fez o programa inteiro com um buraco nas meias e uma bolha ensanguentada no tornozelo.
Sabia a letra toda da banda sonora de Wicked.
Levantava o seu próprio prato da mesa, quando eu tinha de lembrar Emma de o fazer.
Encaixava-se perfeitamente, sem esforço, na nossa via familiar, tanto assim que, quando eram mais pequenas, na escola primária, a maioria dos professores chamava a Emma e Amélia as Gémeas. Emprestavam roupas uma à outra; cortaram o cabelo a condizer; dormiam em casa uma da outra, na mesma cama estreita.
Talvez eu fosse culpada por pensar que Amélia era uma extensão da Emma. Saber dez factos concretos sobre ela não me tornava especialista, mas eram dez coisas às quais os pais não estavam a prestar atenção naquele momento.
440
Só me apercebi de para onde estava a dirigir-me quando virei para a via de acesso do hospital. O guarda que estava na cabina ficou à espera que eu abrisse a janela.
- Sou médica - disse eu, não era bem uma mentira, e ele fez-me sinal para entrar no parque de estacionamento.
Teoricamente, ainda tinha privilégios ali. Ainda conhecia os médicos do departamento de Obstetrícia suficientemente bem para ser convidada para as festas de Natal
deles. Mas, naquele preciso momento, o hospital era tão pouco familiar que, quando entrei pela porta automática de vidro, os meus joelhos quase cederam ao sentir
os cheiros: detergente industrial e esperança perdida. Podia não estar preparada para tratar uma paciente a sério, mas isso não significava que não conseguisse fingir
que estava a tratar uma paciente fictícia. Por isso, fiz a minha cara de médica preocupada e dirigi-me a uma voluntária idosa de bata cor-de-rosa.
- Sou a Dr.a Reece; chamaram-me para uma consulta... preciso de saber o número do quarto da Willow O'Keefe.
Por já não serem horas de visitas, e por eu não estar de bata, as enfermeiras que estavam na recepção do departamento de pediatria mandaram-me parar. Não conhecia
nenhuma delas, o que por acaso era uma vantagem. Claro que sabia o nome do médico da Willow.
- O Dr. Rosenblad do Hospital Pediátrico pediu-me para examinar a Willow O'Keefe - disse eu, naquele tom sério que normalmente impede as enfermeiras de pensarem
duas vezes. - O ficheiro dela está à porta?
- Está - disse uma das enfermeiras. - Quer que enviemos uma mensagem ao Dr. Suraya?
- Dr. Suraya?
- O médico que está a tratá-la.
- Oh - disse eu. - Não. Só vou demorar alguns minutos - e apressei-me a dirigir-me para o fundo do corredor como se tivesse milhares de coisas para fazer.
A porta do quarto estava entreaberta, a intensidade da luz era fraca e Charlotte estava a dormir numa cadeira ao teu lado. Estava a segurar num livro: 1 000 001
de Coisas Que Não Sabemos.
Tinhas uma tala no braço, para além da tala na perna esquerda. Tinhas as costelas bem ligadas. Adivinhava, mesmo sem ler a tua ficha, que danos colaterais sofreste
para te salvarem a vida.
Debrucei-me muito delicadamente e beijei-te o cimo da cabeça. Depois tirei o livro das mãos de Charlotte e pousei-o na mesa-de-cabeceira. Já sabia que ela não ia acordar - tinha um sono tão pesado. Sean estava sempre a dizer que ela ressonava como um estivador,
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embora nas poucas vezes em que ficámos no mesmo quarto em viagens em família, só tivesse reparado num murmúrio suave que ela fazia a dormir. Sempre me interroguei
se seria por ela se sentir mais à vontade com Sean, para ficar realmente à vontade, ou por ele não a compreender como eu a compreendia.
Falou a dormir, e mexeu-se, e eu fiquei paralisada como um veado encandeado pelos faróis de um carro. Agora que estava ali, não sabia de que estava à espera. Acharia que Charlotte não estaria a dormir ao teu lado? Que me receberia de braços abertos quando eu dissesse que estava preocupada contigo? Talvez tivesse ido ali para ver, com os meus próprios olhos, mesmo que por um instante, que estavas bem. Talvez quando Charlotte acordasse, sentisse o cheiro do meu perfume e se interrogasse se teria sonhado comigo. Talvez se lembrasse que tinha adormecido a segurar no livro e se perguntasse sobre quem lho teria tirado.
- Tu vais ficar bem - sussurrei.
Ao percorrer o corredor do hospital, apercebi-me de que estava a falar com nós as três.
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Sean
Para minha admiração, Guy Booker apareceu mesmo depois das nove da noite para me dizer que o juiz tinha concordado em adiar um dia - para eu não ter de testemunhar
na manhã do dia seguinte.
- Isso é bom, visto que ela ainda está no hospital - disse-lhe.
- A Charlotte está lá com ela. Eu vim para casa com Amélia.
- Como está a Willow?
- Vai ficar bem. É uma lutadora.
- Bem, sei que foi horrível ter recebido aquele telefonema. Mas tem noção de como isto é vantajoso para o nosso caso? - disse ele. - É demasiado tarde para afirmar que o processo legal a fez tentar suicidar-se mas, por outro lado, se ela tivesse morrido hoje...
- interrompeu a frase bruscamente, mas só depois de eu o ter agarrado pelos colarinhos e o ter atirado contra a parede.
- Termine a sua frase - rosnei.
O rosto de Booker ficou sem pinga de sangue.
- Ia dizer que se ela morresse, não haveria indemnização, não ia, seu filho da mãe?
- Se você pensou nisso, então o júri também pensará - disse Booker, sufocado. - É só isso.
Larguei-o e virei-lhe as costas.
- Saia da minha casa.
Foi suficientemente inteligente para sair porta fora sem dizer uma só palavra, mas passado menos de um minuto, a campainha voltou a tocar.
- Já lhe disse para desaparecer daqui - disse eu, mas em vez de Guy Booker, era Piper que estava à porta.
- Eu... eu vou-me embora...
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Abanei a cabeça.
- Não estava à espera que fosses tu.
A recordação do beijo no tribunal ergueu-se entre nós, levando-nos ambos a recuar um passo.
- Tenho de falar contigo, Sean - disse Piper.
- Já te disse, esquece... ",
- Não é sobre o que aconteceu hoje à tarde. É sobre a tua filha
- disse Piper. - Acho que talvez seja bulímica.
- Não, tem OI.
- Tens outra filha, Sean. Estou a falar da Amélia.
Estávamos a ter esta conversa de porta aberta, os dois a tremer. Afastei-me para deixar Piper entrar. Ficou de pé, pouco à vontade, no vestíbulo.
- A Amélia não tem nenhum problema - disse eu.
- A bulimia é uma perturbação alimentar. E que, por definição, é mantida em segredo pela pessoa que sofre da mesma. Emma ouviu-a a vomitar a meio da noite. E o Rob reparou que o esmalte dela estava desgastado na parte de trás dos dentes no último exame ortodôntico que lhe fez: algo que pode ser provocado por vómitos repetidos. Olha, podes odiar-me por abordar este assunto, mas sobretudo por estarmos a meio disto, preferia salvar a vida da Amélia do que saber que tive oportunidade de fazê-lo e não o fiz.
Olhei para as escadas. Amélia estava no duche ou pelo menos devia estar. Ela não entrara na casa de banho que vocês partilhavam; em vez disso estava a usar a que ficava ao lado do quarto principal. Apesar de eu já ter limpo todas as provas do que te tinha acontecido, Amélia dizia que ainda lhe causava arrepios.
Enquanto agente da polícia, por vezes tinha de ponderar sobre a fronteira entre respeitar a privacidade e ser um bom pai. Já vi bastantes jovens que pareciam impecavelmente limpos por fora e que depois eram detidos por posse de droga, roubo ou vandalismo, para saber que as pessoas nunca eram o que achávamos que eram
- sobretudo se por acaso tiverem entre treze e dezoito anos de idade. Não dizia nada a Charlotte, mas, às vezes, revistava as gavetas da Amélia só para ver o que ela podia estar a esconder. Nunca tinha encontrado nada. Mas, por outro lado, estava à procura de drogas, álcool - nunca pensei em procurar sinais de perturbação alimentar. Nem sequer sabia o que procurar.
- Ela não é pele e osso - disse eu. - Talvez a Emma tivesse percebido mal.
- Os bulímicos não passam fome, empanturram-se e depois vomitam. Não há perda de peso. E há mais uma coisa, Sean.
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A Emma viu Amélia cortar-se na escola, na casa de banho das raparigas.
- Cortar-se? - repeti.
- com o equivalente a uma lâmina de barbear - respondeu Piper e, de repente, percebi.
- Vai falar com ela, Sean.
- O que lhe hei-de dizer? - perguntei, mas ela já tinha saído porta fora.
Enquanto Amélia tomava duche, ouvia a água a correr pelos canos. Canos - os mesmos canos que o canalizador teve de arranjar quatro vezes no ano passado por estarem sempre a verter. Ele tinha dito que era por causa do ácido, o que na altura não fez sentido nenhum.
O vómito era muitíssimo ácido.
Subi as escadas e entrei no quarto que tu e a tua irmã partilhavam. Se a Amélia era bulimica, não devíamos ter reparado na comida a desaparecer? Sentei-me à secretária e procurei nas gavetas, mas não encontrei nada, à excepção de pacotes de pastilha elástica e alguns testes antigos. A Amélia tinha sempre notas excelentes. Como é que uma criança que se esforçava tanto, que fazia tantas coisas bem, podia ter-se desviado tanto do bom caminho?
A parte de baixo da secretária da Amélia não fechava bem. Puxei a gaveta do suporte de metal e tirei uma caixa de sacos de plástico com fecho Ziploc de quatro litros. Virei a caixa nas mãos como se estivesse a examinar um artefacto raro. Não fazia realmente sentido que Amélia os tivesse ali em cima, quando já os havia na despensa; fazia ainda menos sentido que se tivesse dado ao trabalho de os esconder por trás da gaveta. Depois virei-me para a cama. Puxei os lençóis para baixo, mas encontrei apenas o alce de peluche com peladas com que Amélia dormia desde que eu conhecera Charlotte. Ajoelhei-me ao lado da cama e passei as mãos por baixo do colchão.
Eram às mancheias: papéis de chocolates rasgados, sacos de pão, pacotes de bolachas vazios. Esvoaçavam por entre os meus pés como borboletas de plástico. Mais perto da cabeceira da cama havia sutiãs de cetim ainda com as etiquetas do preço - de tamanhos demasiado grandes para Amélia - maquilhagem com etiquetas do CVS com o preço, bijutaria ainda presa aos quadrados de plástico para exibição.
Sentei-me no chão, no meio de todas as provas que não queria ver.
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Amélia
Estava a pingar embrulhada numa toalha e só me apetecia vestir o pijama e ir dormir; para fingir que aquele dia nunca tinha acontecido, mas o meu pai estava sentado
no meio do chão do meu quarto.
- Importas-te? Não estou vestida...
Ele virou-se e foi nessa altura que reparei em tudo o que estava amontoado no chão à frente dele.
- O que é isto tudo? - perguntou-me.
- Pronto, sou uma javarda. vou limpar o quarto...
- Roubaste isto? - mostrou um monte de cosméticos e bijutaria. Eram coisas horríveis: maquilhagem que não usaria nem morta, brincos e colares para velhotas mas,
de certa forma, enfiá-los nos bolsos fizera-me sentir como uma super-heroína.
- Não - disse eu, olhando-o nos olhos.
- Para que é o sutiã? - perguntou ele. -Trinta e seis D.
- Para uma amiga - respondi, e percebi logo que tinha feito asneira: o meu pai sabia que eu não tinha amigas.
- Sei o que estás a fazer - disse ele, levantando-se pesadamente.
- Bem, então talvez possas dizer-me. Porque não percebo porque tens de inquirir-me enquanto estou toda molhada e gelada...
- Vomitaste antes do duche?
As minhas faces ardiam com a verdade. Era a altura perfeita, porque a água abafava o som dos vómitos. Tinha transformado aquilo numa ciência. Mas tentei rir-me do
assunto.
- Pois é. Faço isso sempre antes de tomar um duche. É óbvio que é por isso que visto o quarenta e dois quando todas as raparigas da minha turma vestem o zer..
Ele deu um passo em frente, e eu enrolei-me mais na toalha.
- Pára de mentir- disse ele.- Pára.- O pai estendeu a mão para mim e puxou-me pelo pulso. Pensei que ele queria tirar-me a toalha, mas isso
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não era tão humilhante como o que queria realmente ver: os meus braços e as minhas coxas, cheios de cicatrizes.
- Ela viu-me fazer isto - disse eu, e não tive de explicar que estava a falar de ti.
- Meu Deus - disse o pai com voz de trovão. - Onde estavas com a cabeça, Amélia? Se estavas perturbada, porque não vieste falar connosco? Mas aposto que ele sabia a resposta. - Por quê?
- Não sei. Porque é a única coisa que consigo fazer bem.
Ele agarrou-me no queixo, obrigando-me a olhá-lo nos olhos.
- Por estar zangado contigo não significa que te odeie - disse ele, numa voz tensa. - É por gostar tanto de ti. - E depois abraçou-me com força, e a toalha era uma
barreira muito pequena entre nós, e não era perverso nem embaraçoso; era apenas aquilo que era.
- Vais parar com isto já, ouviste? Há programas de tratamento e coisas assim: e vais recuperar Mas até lá, vou manter-te debaixo de olho. vou vigiar-te como um falcão.
Quanto mais ele gritava, com mais força me abraçava. E eis o mais estranho de tudo: agora que o pior tinha acontecido - agora que ele tinha descoberto - não era desastroso. Parecia, bem, inevitável. O meu pai estava furioso, mas eu não conseguia deixar de sorrir "Vês-me", pensei, fechando os olhos. "Vês-me."
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Charlotte
Naquela noite dormi na cadeira ao lado da tua cama de hospital e sonhei com a Piper. Estávamos novamente em Plum Island a fazer bodyboard, mas as ondas estavam vermelhas
como sangue e manchavam os nossos cabelos e a nossa pele. Cavalguei numa onda tão imponente e poderosa que fez a costa estremecer. Olhei para trás, mas estava a ser açoitada pela crista da onda, virada de cabeça para baixo, o seu corpo arrastado pelo vidro erodido pelo mar e pelas pedras porosas. "Charlotte", gritou, "ajuda-me!" Ouvi-a, mas comecei a afastar-me.
Fui acordada por Sean, abanando-me o ombro.
- Olá - sussurrou, olhando para ti. - Ela dormiu a noite toda? Acenei com a cabeça, esticando os músculos do pescoço. E
depois reparei na Amélia de pé atrás dele.
- A Amélia não devia estar na escola?
- Temos de conversar os três - disse Sean, num tom que não permitia argumentos. Olhou para ti, a dormir. - Achas que ela vai ficar bem durante alguns minutos, enquanto tomamos um café?
Dei o recado às enfermeiras na recepção e segui Sean para o elevador, com Amélia a seguir-nos humildemente. Que raio teria acontecido entre eles?
Na cantina, Sean serviu café para ambos, enquanto Amélia levantava as pequenas caixas de cereais e tentava decidir-se entre os Cheerios e Cinnamon Toast Crunch. Sentámo-nos à mesa. Àquela hora da manhã a grande sala estava cheia de médicos internos a comerem bananas e a beberem café com leite antes da ronda da manhã.
- Tenho de ir à casa de banho - disse Amélia.
- Bem, não podes ir - disse Sean secamente.
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- Se tens alguma coisa a dizer, Sean, pode esperar até ela voltar...
- Amélia, porque não dizes à tua mãe por que razão não podes ir à casa de banho?
Ela olhou para a taça de plástico vazia.
- Ele tem medo... que eu vomite outra vez. Fiquei a olhar para Sean com um ar inquiridor.
- Apanhou algum vírus?
- Tenta bulimia - disse Sean.
Senti-me presa à cadeira. com certeza tinha ouvido mal.
- A Amélia não é bulímica. Não achas que íamos reparar se a Amélia fosse bulímica?
- Pois. Tal como reparámos que anda a cortar-se há mais ou menos um ano? A roubar todo o tipo de porcarias disparatadas nas lojas, incluindo lâminas de barbear, e foi por isso que a Willow arranjou uma?
Fiquei de boca aberta.
- Não entendo.
- Pois não - disse Sean, recostando-se na cadeira. - Eu também não. Não consigo perceber porque é que uma miúda que tem pais que a adoram, um telhado por cima da cabeça e uma vida bastante boa se odeia tanto a si própria para fazer estas coisas.
Virei-me para Amélia.
- É verdade?
Ela acenou com a cabeça e eu senti um aperto no coração. Estaria cega? Ou estaria tão ocupada a ver-te sofrer fracturas que não reparei que a minha filha mais velha estava a despedaçar-se?
- A Piper foi lá a casa ontem à noite para me dizer que a Amélia podia estar com algum problema. Parece que nós não vimos nada, mas a Emma viu. Repetidas vezes.
Piper. Ao ouvir o nome dela, senti-me ficar imóvel como vidro.
- Ela foi lá a casa? E tu deixaste-a entrar?
- Por amor de Deus, Charlotte...
- Não podes acreditar em tudo o que a Piper te diz. Isto até pode fazer parte de algum estratagema para nos fazer desistir do processo legal - apercebi-me vagamente de que Amélia tinha confessado, mas isso parecia quase irrelevante. Só via Piper, ali de pé na minha casa, a fingir que era a mãe perfeita, quando eu tinha feito asneira.
- Sabes, estou a começar a perceber porque é que a Amélia começou a fazer isto - disse Sean entre dentes. - Estás completamente descontrolada.
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- Genial, esse é o teu velho modo de agir - disse eu. - Põe as culpas na Charlotte, porque assim não tens culpa de nada.
- Já alguma vez pensaste que não és a única vítima no universo? - respondeu Sean.
- Parem!
Virámo-nos ambos ao ouvir a voz de Amélia.
Tinha as mãos a tapar os ouvidos, e lágrimas nos olhos.
- Parem com isso!
- Desculpa, querida - disse eu, estendendo a mão para ela, mas ela afastou-se.
- Não estás arrependida. Estás satisfeita por não ter sido outra coisa que aconteceu à Willow. É só com isso que te preocupas acusou Amélia. - Queres saber porque me corto? Porque me dói menos do que tudo isto.
- Amélia...
- Pára de fingir que te preocupas comigo, está bem?
- Não estou a fingir - a manga dela tinha deslizado, e eu vi as cicatrizes que lhe chegavam ao cotovelo como algum código secreto linear. No Verão anterior, Amélia insistira em usar mangas compridas mesmo quando lá fora estavam mais de trinta graus. Para ser sincera, achei que era um sinal de modéstia. Num mundo em que tantas raparigas da idade dela andavam quase despidas, achei revigorante que ela quisesse andar mais tapada. Nem sequer me ocorrera pensar que pudesse não ser tímida, mas verdadeiramente calculista.
E porque não tinha palavras para descrever isso - porque na altura sabia que Amélia não ia querer ouvir nada do que eu tinha para dizer - voltei a tentar agarrar-lhe no pulso. Dessa vez ela deixou-me. Lembrei-me de todas as vezes, quando era criança, em que ela caíra da bicicleta e correra para casa a chorar; das vezes que a sentara na bancada e lhe limpara a gravilha de um joelho esfolado e o fizera sarar com um beijo ao de leve e um penso rápido; como ficou ao meu lado quando te coloquei uma tala improvisada na perna feita, com uma revista, a torcer as mãos e a insistir para que eu te desse um beijo para fazer passar. Naquele momento, puxei-lhe o braço para mais perto de mim, e levantei a manga, encostando os lábios às finas linhas brancas que lhe percorriam o braço como marcas de uma taça medidora, em mais uma tentativa para contar todas as formas em que falhei.
450
Piper
No dia seguinte, Amélia veio ao tribunal. Vi-a percorrer o corredor ao lado de Sean para a sala onde ele se escondera anteriormente. Interroguei-me se ainda estarias
no hospital, se - dadas as circunstâncias - isso não seria uma bênção.
Sabia que eu era a testemunha de que o júri estava à espera para vilipendiar ou para vingar. Guy Booker começara a sua defesa colocando as duas obstetras que adquiriram o meu consultório no banco das testemunhas, para referenciarem o meu carácter: Sim, eu era uma excelente médica. Não, nunca tinha sido processada anteriormente. Por acaso, tinha sido nomeada Obstetra do Ano em New Hampshire por uma revista regional. Disseram que negligência médica era uma acusação ridícula.
Depois foi a minha vez. Guy já estava a interrogar-me há três quartos de hora: sobre a minha formação, o meu papel na comunidade, a minha familia. Mas quando me fez a primeira pergunta sobre Charlotte, senti o ambiente da sala alterar-se.
- A queixosa afirmou no seu testemunho que eram amigas disse Guy. - É verdade?
- Melhores amigas - disse eu e, muito lentamente, ela levantou a cabeça. - Conheci-a há nove anos. Por acaso fui eu que a apresentei ao marido.
- Sabia que os O'Keefe estavam a tentar conceber um bebé?
- Sim. Para ser sincera, acho que queria tanto que ela engravidasse como eles. Depois de Charlotte me ter pedido para ser sua médica, passámos meses a olhar para o seu ciclo ovulatório e a fazer tudo menos tratamentos de fertilidade para ajudar a concepção: e foi por isso que foi tão emocionante sabermos que ia ter um bebé.
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Booker introduziu alguns documentos no conjunto de provas e entregou-mos.
- Dr.a Reece, está familiarizada com estes documentos?
- Sim, são notas que eu escrevi nos ficheiros clínicos de Charlotte
O'Keefe.
- Lembra-se delas?
- Nem por isso. Já revi as minhas notas, claro, para me preparar para este julgamento, mas não havia nada de tão extraordinário que me lembrasse imediatamente.
- O que está escrito nas notas? - perguntou Booker. Li as páginas.
- Comprimento do fémur no percentil seis, dentro da curva de normalidade. Campo próximo do cérebro fetal particularmente nítido.
- Isso pareceu-lhe invulgar?
- Invulgar - confirmei -, mas não anómalo. A máquina era nova, e tudo o resto no feto parecia estar óptimo. Às dezoito semanas, com base nessa ecografia, esperava
que o bebé nascesse completamente saudável.
- Ficou perturbada com o facto de conseguir ver o conteúdo intracraniano tão bem?
- Não - disse eu. - Somos treinados para ver qualquer coisa que pareça estar mal e não uma que pareça estar demasiado bem.
- Alguma vez viu alguma coisa que parecesse estar mal nas ecografias de Charlotte O'Keefe?
- Sim, quando fizemos uma às vinte e sete semanas - olhei para Charlotte e lembrei-me daquele momento em que olhei pela primeira vez para o ecrã e tentei tornar
a imagem naquilo que não era, a náusea no estômago ao aperceber-me de que teria de ser eu a dizer-lhe. Havia fracturas a sarar no fémur e na tíbia, bem como várias
costelas deformadas.
- O que fez?
- Disse-lhe que tinha de consultar outro médico, um especialista em medicina materno-fetal mais bem equipado para lidar com uma gravidez de alto risco.
- Essa ecografia feita às vinte e sete semanas foi a primeira indicação que teve de que o bebé da queixosa podia ter algum problema?
- Sim.
- Dr.a Reece, já teve outras pacientes a quem lhes fosse diagnosticado um feto com anomalias dentro do útero?
- Várias - disse eu.
- Já alguma vez aconselhou um casal a terminar a gravidez?
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- Já apresentei essa opção a várias famílias quando são diagnosticadas malformações que não são compatíveis com a vida.
Uma vez tive um caso de um feto de trinta e duas semanas com hidrocefalia - tinha tanto fluido no cérebro que sabia que o bebé não podia nascer por via vaginal,
e muito menos sobreviver. O parto só podia ser feito por cesariana, mas a cabeça do feto era tão grande que a incisão destruiria o útero da mãe. Ela era jovem, era
a sua primeira gravidez. Apresentei-lhe as várias opções e acabámos por drenar o fluido da cabeça penetrando-a com uma agulha, provocando uma hemorragia craniana.
O bebé nasceu então por via vaginal e morreu passados alguns minutos. Lembro-me de aparecer em casa de Charlotte naquela noite com uma garrafa de vinho e lhe dizer que tinha de beber para esquecer aquele dia. Depois dormi no sofá dela, acordei e vi-a ali de pé, com uma caneca de café fumegante e dois Tylenol para a minha cabeça a latejar.
- Pobre Piper - dissera ela. - Não consegues salvá-los a todos.
Passados dois anos, aquele mesmo casal voltou ao meu consultório, quando estavam à espera de outro bebé - que nasceu perfeitamente saudável, graças a Deus.
- Por que não aconselhou o termo da gravidez aos O'Keefe? -
perguntou Guy Booker.
- Não havia razão definitiva para achar que o bebé nasceria com incapacidades - disse eu - mas mesmo assim, nunca pensei que terminar a gravidez fosse uma opção para a Charlotte.
- Porque não? , Olhei para Charlotte. "Perdoa-me", pensei.
- Pela mesma razão que ela não aceitou fazer uma amniocentese quando pensou que havia um risco de síndroma de Down - disse eu.
- Já me dissera que queria aquele bebé, acontecesse o que acontecesse.
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Charlotte
Era difícil ficar ali sentada a ouvir Piper a relatar a nossa amizade. Imagino que tivesse sido igualmente difícil para ela quando fui eu a testemunhar.
- Foi amiga íntima da queixosa depois de ela dar à luz? - perguntou Guy Booker.
- Sim. Víamo-nos uma ou duas vezes por semana, e falávamos todos os dias. As nossas filhas brincavam juntas.
- Que tipo de coisas costumavam fazer juntas?
Meu Deus, o que fazíamos? Não importava, realmente. Piper era daquele género de amigas com quem não tinha de encher os espaços vazios com conversas casuais. Não fazia mal estar apenas com ela. Ela sabia que às vezes eu precisava disso - de não ter de tomar conta de ninguém nem de nada, de simplesmente existir no meu espaço, adjacente ao dela. Lembro-me que uma vez dissemos a Sean e a Rob que Piper tinha uma conferência em Boston, no Westin Copley Place, e que eu também ia para falar
sobre como era ter um bebé com OI. Na realidade, não havia conferência nenhuma. Ficámos alojadas no Westin, recorremos ao serviço de quartos e vimos três filmes
lamechas de seguida, até não conseguirmos manter os olhos abertos.
Piper pagara tudo. Era sempre ela que pagava - convidando-me para almoçar, para tomar um café ou para beber qualquer coisa no Maxie's Pad. Quando eu tentava dividir
a conta, ela obrigava-me a guardar a carteira. "Tenho a sorte de poder pagar", dizia ela, e ambas sabíamos que eu não tinha.
- A queixosa alguma vez teve uma conversa consigo em que a tivesse culpado pelo nascimento da filha?
- Não - disse Piper. - Por acaso, na semana antes de ser processada, fomos juntas às compras.
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Piper e eu experimentáramos a mesma blusa vermelha no intervalo da febre de compras de Emma e Amélia e, para minha surpresa, ficara fantástica em ambas. "Vamos comprar
uma cada uma", dissera Piper. "Podemos usá-la em casa e ver se os nossos maridos conseguem distinguir-nos."
- Dr.a Reece - perguntou Booker - como é que este processo legal afectou a sua vida?
Ela endireitou-se um pouco mais na cadeira. Não era muito confortável; fazia-nos doer as costas, fazia-nos desejar estar noutro sítio qualquer.
- Nunca fui processada antes - disse Piper. - Foi a primeira vez. Fez-me duvidar de mim própria, apesar de saber que não fiz nada de mal. Desde essa altura que não exerço medicina. De cada vez que tento voltar... bem, acabo por não conseguir. Acho que percebo que, mesmo quando somos médicos, por vezes acontecem coisas más.
Coisas más que ninguém deseja e que ninguém consegue explicar. - Olhou directamente para mim, com um olhar tão intenso que me provocou um arrepio na espinha. - Sinto
falta de exercer medicina - disse Piper - mas nada que se compare com a falta que sinto da minha melhor amiga.
- Marin - sussurrei de repente, e a minha advogada inclinou a cabeça na minha direcção. - Não faça isso.
- Não faço o quê?
- Não faça isso... não lhe dificulte ainda mais as coisas. Marin ergueu a sobrancelha.
- Só pode estar a brincar - murmurou.
- A testemunha é sua - disse Booker, e ela levantou-se.
- Isso não é uma violação do código ético médico, tratar uma pessoa que se conhece bem a nível pessoal? - perguntou Marin.
- Numa cidade pequena como Bankton, não - disse Piper. Se fosse esse o caso, não teria paciente nenhuma. Assim que me apercebi que havia complicações, afastei-me.
- Porque sabia que ia ser acusada?
- Não. Porque era o que devia fazer. Marin encolheu os ombros.
- Se era o que devia fazer, porque não chamou um especialista assim que viu que havia complicações na ecografia da décima oitava semana?
- Não havia complicações nessa ecografia - disse Piper.
- Não foi isso que disseram os especialistas. Ouviu o Dr. Thurber dizer que os cuidados a ter, depois de interpretar os resultados de
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uma ecografia como a de Charlotte, são fazer uma ecografia de acompanhamento, no mínimo.
- Essa é a opinião do Dr. Thurber. com o devido respeito, não concordo.
- Hum. Quem será que uma paciente preferirá ouvir: um médico bem estabelecido na sua área, que já recebeu vários prémios e nomeações... ou uma obstetra de uma cidade
pequena que já não está junto de uma paciente há mais de um ano?
- Objecção, meritíssimo - disse Guy Booker. - Não só não era essa a questão, como também a minha testemunha não precisa de ser difamada.
- Retiro o que disse - Marin aproximou-se de Piper, batendo com uma caneta na palma da mão aberta. - A senhora e Charlotte eram melhores amigas, não eram?
- Sim.
- De que falavam? Piper sorriu um pouco.
- De tudo. De nada. Das nossas filhas, dos nossos sonhos. De como às vezes tínhamos vontade de matar os nossos maridos.
- Mas nunca se deram ao trabalho de ter uma conversa sobre terminar esta gravidez, pois não?
Durante os interrogatórios dissera a Marin que Piper não tinha falado comigo sobre abortar o bebé. E, até àquela altura, lembrava-me de que tinha sido precisamente assim. Mas a memória é como o gesso: se voltarmos a colocá-lo podemos ver uma imagem completamente diferente.
- Por acaso - disse Piper - até tivemos.
Embora Piper e eu fôssemos melhores amigas, não nos tocávamos com muita frequência. Por vezes um abraço fugaz, uma palmadinha nas costas. Mas não éramos como as adolescentes que andam sempre abraçadas umas às outras. Era por isso que parecia estranho estar sentada ao lado dela no sofá, com o seu braço à minha volta, enquanto eu chorava no ombro dela. Era só ossos, quando esperava que fosse forte e destemida.
Colocara as mãos por cima da barriga redonda.
- Não quero que ela sofra. Piper argumentou.
- Não quero que tu sofras.
Lembrei-me da conversa que Sean e eu tínhamos tido depois de sairmos do consultório do geneticista no dia anterior, depois de ele nos dizer que, na pior das hipóteses, tinhas a forma letal de OI
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e, na melhor, a forma grave. Encontrara-o na garagem, a lixar as barras do berço que estava a fazer enquanto esperava a tua chegada. "É como a manteiga", disse ele,
estendendo o pedaço fino de madeira. "Apalpa." Mas a mim, parecia-me osso, e não consegui tocar-lhe.
- O Sean não quer - disse eu.
- O Sean não está grávido.
Perguntei-lhe como se fazia um aborto, e pedi-lhe para ser sincera. Imaginei estar no avião e as assistentes de bordo perguntarem-me quando nascia, se era um rapaz
ou uma rapariga, e essas mesmas assistentes de bordo a evitarem olhar para mim no voo de regresso a casa.
- O que farias tu? - perguntei-lhe. Ela hesitou.
- Havia de me perguntar o que mais me assustaria.
Foi nessa altura que olhei para ela, com a única pergunta nos lábios que não tivera coragem de fazer a Sean, nem à Dr.a Del Sol, nem mesmo a mim própria.
- E se eu não for capaz de amá-la? Nessa altura Piper sorriu-me.
- Oh, Charlotte - disse ela. - Já a amas.
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Marin
A defesa chamou a Dr.a Gianna Del Sol ao banco das testemunhas para demonstrar que não faria nada de diferente caso fosse ela a médica de Charlotte, em vez de esta
lhe ter sido encaminhada. Mas quando chamaram o Dr. Romulus Wyndham, obstetra e bioeticista com uma lista de credenciais que demorava meia hora a mencionar, comecei
a ficar preocupada. Wyndham não só era inteligente, como também bonito, como uma estrela de cinema, e tinha o júri na palma da mão.
- Alguns exames que assinalam anomalias são falsos positivos disse ele. - Em 2005, por exemplo, uma equipa de Reprogenética continuou o desenvolvimento de cinquenta e cinco embriões diagnosticados como anómalos no diagnóstico genético de pré-implantação. Passados alguns dias, ficaram chocados ao descobrir que quarenta e oito por cento deles, quase metade, eram normais. O que significa que existem provas de que os embriões com células com defeitos genéticos têm a capacidade de se curarem a si próprios.
- Por que razão poderá isso ter importância clínica para uma médica como Piper Reece? - perguntou Booker.
- Porque prova que a decisão de terminar a gravidez pode não ser prudente quando é tomada demasiado cedo.
Booker sentou-se e eu levantei-me num movimento harmonioso.
- Dr. Wyndham, naquele estudo que acabou de referir, quantos embriões tinham osteogénese imperfeita?
- Eu... não sei se algum deles teria.
- Então qual era a natureza das anomalias?
- Mais uma vez, não estou...
- Não é verdade, Dr. Wyndham, que o estudo pode ter mostrado embriões com anomalias muito ligeiras que se corrigiram espontaneamente?
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- Acho que sim.
- Também há uma diferença entre ficar à espera para ver o que acontece a um embrião com alguns dias de idade e a um feto com algumas semanas de idade, não há? Relativamente
à altura até quando é permitido terminar uma gravidez legalmente e com segurança?
- Objecção - disse Guy Booker. - Se não posso organizar um comício pró-vida no tribunal, a doutora também não pode organizar um comício pró-escolha.
- Deferido - disse o juiz.
- Não é verdade que se os médicos seguissem a sua abordagem de esperar para ver e sonegassem informações sobre a condição do feto, isso dificultaria terminar uma gravidez, em termos logísticos, físicos e emocionais?
- Objecção! - gritou novamente Guy Booker. Aproximei-me do assento do juiz.
- Por favor, meritíssimo, não estamos a falar do direito ao aborto. Estamos a falar sobre os cuidados que a minha cliente devia ter recebido.
O juiz franziu os lábios.
- Muito bem, Dr.a Gates. Mas vá directa ao assunto. Wyndham encolheu os ombros.
- Qualquer obstetra sabe como é difícil aconselhar pacientes com anomalias fetais a terminarem a gravidez quando, segundo a nossa opinião médica, o bebé não sobreviverá. Mas faz parte do nosso trabalho.
- Pode fazer parte do trabalho de Piper Reece - disse eu. - Mas isso não quer dizer que ela o tenha feito.
Fizemos um intervalo de duas horas para almoço porque o juiz Gellar tinha de ir à DGV para tirar a carta de motociclos. Aparentemente, segundo o secretário do tribunal, estava a pensar atravessar o país numa Harley no Verão seguinte durante o seu mês de férias. Interroguei-me se seria por isso que pintava o cabelo: o preto combinava melhor com o cabedal.
Charlotte foi-se embora assim que o julgamento foi suspenso, para poder ir visitar-te ao hospital. Já não via Sean nem Amélia desde essa manhã, por isso fui lá para
fora, para o local das cargas e descargas, uma porta que a maioria dos jornalistas não sabia que existia.
Era um daqueles dias de finais de Setembro em que parecia que os longos dedos do Inverno puxavam para si as fronteiras de New Hampshire - frio, agreste, com um vento
cortante. Mas ainda parecia haver uma grande multidão reunida nas escadas à porta do
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tribunal, de que eu, do sítio onde estava, só conseguia distinguir os contornos. Um empregado da manutenção abriu a porta e ficou ao pé de mim para acender um cigarro.
- O que está a acontecer ali em cima?
- É um circo - disse ele. - Aquele caso da miúda com os ossos esquisitos.
- Pois, já ouvi dizer que é um pesadelo - disse entre dentes e, cruzando os braços para me manter quente, dirigi-me para as margens do grupo que estava em frente
ao tribunal.
Ao cimo das escadas estava um homem que eu reconheci do telejornal: Lou St. Pierre, o presidente da delegação do New Hampshire da Associação Americana de Pessoas
com Incapacidade. Como se isso por si só não fosse suficientemente impressionante, era licenciado em direito por Yale, era professor em Rhodes e tinha ganho uma
medalha de ouro em natação estilo bruços nos Paraolímpicos. Agora, deslocava-se na sua cadeira de rodas feita por medida e num avião que ele próprio pilotava para
transportar crianças pelo país inteiro para receberem tratamentos médicos. O cão de serviço de St. Pierre estava ao lado da cadeira de rodas dele, imperturbável,
enquanto vinte jornalistas lhe colocavam microfones perto do nariz.
- Sabem porque este processo legal é tão cativante? É como um acidente ferroviário. Não conseguimos desviar os olhos, apesar de preferirmos não admitir que existam estes ilícitos - disse ele. - Pura e simplesmente: este é um assunto explosivo. É precisamente o tipo de processo legal que nos causa arrepios porque todos gostaríamos
de acreditar que seríamos capazes de amar qualquer criança que nascesse no seio da nossa família, em vez de admitir que, na realidade, podemos não ser assim tão
tolerantes. Os exames pré-natais reduzem o feto a uma única característica: a sua incapacidade. É uma infelicidade que os exames pré-natais automaticamente levem
a pressupor que um pai ou uma mãe pode não querer uma criança com incapacidade, e que isso implica que é inaceitável viver a vida com qualquer tipo de incapacidade
física. Conheço muitos pais na comunidade de deficientes auditivos que amariam uma criança como eles, por exemplo. A incapacidade de uma pessoa, é a cultura de outra.
E como se ouvisse uma deixa, o cão de serviço ladrou.
- O aborto já é um assunto polémico: Estará certo destruir uma vida em potencial? Terminar uma gravidez vai ainda mais longe: Estará certo destruir esta vida em potencial?
- Sr. St. Pierre - gritou um jornalista. - Então e as estatísticas que afirmam que criar uma criança com incapacidade é desgastante para o casamento?
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- Bem, concordo. Mas também há estatísticas que afirmam que criar uma criança prodígio ou uma estrela do desporto é igualmente desgastante e não vemos médico nenhum
a aconselhar os pais a terminarem essas gravidezes.
Interroguei-me sobre quem teria chamado a cavalaria - Guy Booker, sem dúvida. Visto que este processo legal era teoricamente um processo legal por negligência médica,
convidaria outro advogado de fora do seu escritório para colaborar na defesa de Piper, mas fez questão de encenar esta conferência de imprensa improvisada na mesma, para aumentar as hipóteses de ganhar.
- Lou - perguntou outro jornalista. -Vai testemunhar?
- É isso que estou a fazer precisamente agora diante de todos vocês - pregou St. Pierre. - E vou continuar a falar na esperança de conseguir convencer alguém que estiver a ouvir a nunca instaurar outro processo legal como este no grande Estado de New Hampshire.
Excelente. Ia perder o meu caso por causa de um homem que nem sequer era uma testemunha válida para a defesa. Voltei para a porta do local de cargas e descargas.
- Quem está a falar? - perguntou o empregado da manutenção, a pisar a beata com a bota. - Aquele anão?
- É uma pessoa de baixa estatura - corrigi.
O empregado da manutenção ficou a olhar para mim sem perceber.
- Não foi isso que eu disse?
A porta fechou-se atrás dele. Eu estava gelada, mas esperei um pouco antes de entrar: não me apetecia fazer conversa de circunstância com ele enquanto subia as escadas.
Na verdade, ele era o exemplo perfeito da rampa íngreme e escorregadia que Charlotte e eu estávamos a descer. Se era aceitável querer terminar uma gravidez de um feto com síndroma de Down ou OI, como será então quando os avanços da medicina permitirem ver o potencial de beleza de uma criança ou o seu grau de compaixão? Então e os pais que apenas quisessem um rapaz e soubessem que tinham concebido uma rapariga? Quem teria permissão para estabelecer os limites do acesso e da rejeição?
Por muito que me custasse admitir, Lou St. Pierre tinha razão. As pessoas estão sempre a dizer que amariam qualquer bebé que viesse, mas isso não é necessariamente verdade. Às vezes, tudo se resumia à criança em questão. Tinha de haver uma razão para que os bebés de cabelos loiros e olhos azuis fossem escolhidos nas agências de adopção como pêssegos maduros, mas as crianças de cor e com
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incapacidades podiam permanecer em lares de acolhimento durante anos. O que as pessoas dizem que fariam e o que realmente fazem são duas coisas muito diferentes.
Juliet Cooper afirmara-o muito claramente: havia bebés que era melhor não terem nascido.
Como tu.
E eu.
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Amélia
A boa vontade que eu pensei que talvez pudesse favorecer-me depois de ter a atenção do pai por ter descoberto o meu segredo, rapidamente desapareceu quando comecei a perceber que tinha criado um novo inferno. Não podia ir à escola, o que seria inacreditavelmente espectacular se não tivesse de ficar sentada num tribunal a ler o mesmo jornal vezes sem conta. Tinha imaginado os nossos pais a aperceberem-se do quanto tinham errado e a esforçarem-se ao máximo para cuidarem de mim, como faziam contigo quando sofrias uma fractura. Mas, em vez disso, tinham gritado tão alto na cantina do hospital que todos os médicos internos ficaram a olhar para nós como
se fôssemos um reality show na televisão.
Nem sequer podia visitar-te no longo intervalo para o almoço, quando a mãe ia ao hospital. Acho que me tornei oficialmente numa Má Influência.
Por isso devo admitir que fiquei um pouco surpreendida quando a nossa mãe apareceu com um batido de chocolate para mim antes de o julgamento recomeçar. Estava sentada numa sala de reuniões completamente abafada, onde o nosso pai me tinha deixado para rever o testemunho com um estúpido advogado. O facto de ela me ter encontrado
naquele edifício era um mistério, mas quando entrou fiquei realmente satisfeita por vê-la.
- Como está a Willow? - perguntei, porque (a) sabia que ela estava à espera que eu perguntasse, (b) eu queria mesmo saber
- Ela está bem. O médico diz que talvez possamos levá-la para casa amanhã.
- Ficaste sem a ama-seca grátis. Os olhos da mãe faiscaram.
- Não acreditas realmente que eu acho isso, pois não? Encolhi os ombros.
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-Trouxe-te isto - disse ela, e deu-me o batido.
Tinha uma predilecção por Fribbles de chocolate do Friendly's. Implorava à mãe que me comprasse um, apesar de serem três vezes mais caros do que os cones para crianças.
Às vezes ela dizia que sim e dividíamos um a meias e falávamos entusiasticamente do gelado de chocolate, uma coisa que tu e o pai nunca perceberam realmente, por
terem a rara infelicidade de adorarem baunilha.
- Queres partilhar? - perguntei num tom suave. Ela abanou a cabeça.
- Esse é todo para ti. Desde que o batido não volte a sair.
Olhei para ela e depois novamente para a tampa do batido, mas não disse nada.
-Acho que compreendo - disse a mãe. - Sei como é começarmos a fazer uma coisa e depois de repente sair fora do controlo. E depois querermos ver-nos livres dela, por
estar a magoar-nos, e às outras pessoas que estão à nossa volta, mas sempre que tentamos fazê-lo, volta a consumir-nos.
Fiquei a olhar para ela, estupefacta. Era exactamente isso que sentia, todos os dias da minha vida.
- Há pouco tempo perguntaste-me como seria o mundo sem a Willow - disse. - É isto que eu penso: se a Willow nunca tivesse nascido, ia à procura dela nos corredores da mercearia, ou no banco, ou no salão de bowlíng. Ficava a olhar para cada rosto isolado numa multidão, a tentar encontrar o dela. Há uma coisa estranha quando temos filhos: sabemos quando a nossa família está completa, e quando não está. Se a Willow não tivesse nascido, era assim que o mundo seria para mim: inacabado.
Chupei ruidosamente pela palhinha, de propósito, e tentei não pestanejar, porque assim as lágrimas talvez fossem reabsorvidas por osmose.
- A questão, Amélia - continuou a nossa mãe - é que se tu não estivesses aqui... sentiria exactamente o mesmo.
Tinha medo de olhar para ela.Tinha medo de ter ouvido mal. Seria a sua maneira de dizer que não só me amava, o que era um dado adquirido para uma mãe, como também
gostava de mim? Imaginei-a a obrigar-me a abrir a tampa do batido para ver se eu tinha bebido tudo. Eu ia resmungar; mas lá no fundo ia gostar da sua insistência.
Queria dizer que ela se importava; queria dizer que não ia abdicar de mim assim tão facilmente.
- Hoje fiz uma pequena investigação no hospital - disse a nossa mãe.
- Há um sítio perto de Boston que trata jovens com perturbações alimentares. Têm um programa para pacientes internados e, quando estiveres preparada, podes mudar
para um programa residencial com outras raparigas que estão a passar pelas mesmas coisas.
Levantei bruscamente a cabeça.
- Pacientes internados? Tipo, viver lá?
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- Só até te ajudarem a controlar isto...
- Vais mandar-me embora? - disse eu, em pânico. Não era assim que devia ser. A minha mãe sabia como eu me sentia; então porque não percebia ela que excluir-me era
o mesmo que dizer que eu nunca estaria à altura desta família? - Como é que a Willow pode partir mil ossos e mesmo assim ser perfeita e eu cometo um pequeno erro
e sou mandada embora?
- O teu pai e eu não vamos mandar-te embora - disse ela. -Vamos fazer isto para ajudar-te...
- Ele sabe? - senti o nariz a pingar. Tinha esperança de que o pai fosse o meu último recurso; agora, tinha descoberto que ele era um conspirador. O mundo inteiro odiava-me.
De repente Marin Gates espreitou para dentro da sala,
- Estamos prontas para arrasar - disse ela.
- Eu só preciso de um minuto...
- Bem, o juiz Gellar precisa de si agora.
A mãe olhou para mim, implorando-me com os olhos para lhe dar uma oportunidade.
- Agora tens de ficar dentro da sala de audiências. O teu pai vai testemunhar, e eu não posso ficar aqui a tomar conta de ti.
- Vai para o inferno - disse eu. - Não podes dizer-me o que devo fazer.
Marin, que estava a assistir a tudo isto, soltou um assobio longo e grave.
- Por acaso até pode - disse ela. - Porque és menor e ela é tua mãe. Queria magoá-la tanto quanto ela me tinha magoado, por isso virei-me para a advogada.
- Não me parece que possa manter esse estatuto depois de tentar livrar-se de todas as suas filhas.
Vi a minha mãe retrair-se. Estava a sangrar; apesar de não conseguirmos ver o golpe, e sabia, tal como eu, que merecia. Quando Marin me depositou sem cerimónias
na galeria ao lado de um homem de camisa de flanela vermelha e suspensórios, que cheirava a atum, fiz uma promessa a mim própria: se a minha mãe ia arruinar-me a
vida, não havia nenhuma razão para eu não arruinar a dela.
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Sean
No dia do nosso casamento, Charlotte fez-me esquecer todos os votos que tinha escrito e decorado diligentemente. Ali estava ela, a percorrer a nave da igreja, e
aquelas palavras eram como redes de pesca; não conseguiam conter todos os sentimentos que eu queria transmitir-lhe. Naquele momento, sentado à frente da minha mulher do outro lado da sala de audiências, esperava que as minhas palavras se transformassem, mais uma vez, em penas, nuvens, vapor qualquer coisa que não pudesse desferir um duro golpe.
- Tenente O'Keefe - disse Guy Booker - o senhor não era originalmente queixoso neste caso?
Ele tinha-me prometido que ia ser directo e suave, que eu ia sair do banco das testemunhas tão depressa que mal ia sentir. Não confiava nele. Mentir, enganar e distorcer a verdade em algo que o júri pudesse acreditar, fazia parte do seu trabalho.
Algo que eu esperava ansiosamente que ele conseguisse fazer, desta vez.
- De início era - respondi. - A minha mulher convenceu-me de que este processo legal era para defender os interesses da Willow, mas comecei a perceber que afinal eu não pensava o mesmo.
- Como assim?
- Acho que este processo legal separou a nossa família. A nossa roupa suja está a ser lavada no noticiário das seis. Comecei a tratar do divórcio. E a Willow percebe o que está a acontecer. Não há maneira de esconder assim que se tornou do conhecimento público.
- Tem consciência de que negligência médica no diagnóstico pré-natal sugere que a sua filha nunca devia ter nascido. Era isso que desejava, tenente O'Keefe?
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Abanei a cabeça.
- A Willow pode não ser perfeita - repeti - mas é absolutamente como deve ser.
- A testemunha é sua - disse Booker e, quando Marin Gates se levantou, respirei fundo e galvanizei-me, como fazia antes de entrar num edifício com uma equipa das
forças especiais.
- Diz que este processo legal separou a sua família - disse ela.
- Mas pode dizer-se o mesmo do processo de divórcio ao qual deu início, não é verdade?
Olhei para Guy Booker. Ele já tinha previsto esta pergunta; tínhamos ensaiado a resposta. Devia dizer qualquer coisa sobre como os meus actos foram uma medida para proteger as meninas
- para que não fossem arrastadas pela lama. Mas, em vez de dizer isso, dei por mim a olhar para Charlotte. Junto à mesa dos queixosos, parecia tão pequena. Estava a olhar para os veios da madeira, como se não tivesse confiança em si própria para olhar-me nos olhos.
- Sim - disse eu num tom suave. - É verdade.
Booker levantou-se, e depois calculei que não pudesse objectar a sua própria testemunha, porque voltou a sentar-se. Virei-me para o juiz.
- Meritíssimo, importava-se que eu falasse directamente com a minha mulher?
O juiz Gellar ergueu as sobrancelhas.
- O júri é que tem de ouvi-lo.
- com o devido respeito, meritíssimo... não acho que isso seja verdade.
- Doutor juiz - disse Booker. - Posso conferenciar consigo?
- Não, Dr. Booker, não pode - disse o juiz. - Este homem tem alguma coisa a dizer.
Marin Gates parecia ter engolido um foguete. Não sabia se havia de fazer-me alguma pergunta ou deixar que eu me enforcasse. E talvez fosse isso que eu estava a fazer; realmente não me interessava.
- Charlotte - disse eu - já não sei o que está certo, a não ser admitir que não sei. Não, não temos dinheiro suficiente. E não, a nossa vida não tem sido fácil. Mas isso não quer dizer que não tivesse valido a pena.
Charlotte ergueu o rosto. Tinha os olhos muito abertos e tranquilos.
- Alguns dos rapazes lá na esquadra dizem que sabiam onde estavam a meter-se quando se casaram. Bem, eu não sabia. Foi
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uma aventura, e não tive problemas com isso. Percebes, és a mulher certa para mim. Deixaste-me levar-te a esquiar sem nunca dizeres que tinhas medo das alturas. Dormes aconchegada a mim por muito que eu me afaste para o meu lado da cama. Deixas-me comer a metade de baunilha da tua Taça Dixie e tu ficas com o chocolate. Dizes-me quando as minhas meias não combinam. Compras Lucky Charms porque sabes que eu gosto dos marshmallows. Deste-me duas filhas lindas.
"Talvez estivesses à espera que o casamento fosse perfeito... acho que é nisso que tu e eu somos diferentes. Percebes, achei que íamos cometer erros, mas que os cometeríamos com uma pessoa que estivesse lá para nos lembrar do que aprendemos ao longo do processo. E acho que ambos nos enganámos numa coisa. As pessoas dizem sempre que, quando amamos alguém, nada no mundo interessa. Mas não é verdade, pois não? Tu sabes, e eu sei, que quando amamos alguém, tudo no mundo interessa um pouco mais.
O silêncio abateu-se sobre a sala de audiências.
- Vamos encerrar a sessão por hoje - anunciou o Juiz Gellar.
- Mas eu não terminei... - argumentou Marin.
- Terminou sim - disse o juiz. - Por amor de Deus, Dr.a Gates, é por isso que ainda é solteira. Quero que evacuem a sala, à excepção do Sr. e da Sr.a O'Keefe.
Bateu com o martelo, houve uma azáfama e, de repente, eu estava sozinho no banco das testemunhas e Charlotte estava de pé atrás da mesa dos queixosos. Deu alguns passos em frente, até estar ao meu nível, com as mãos delicadamente pousadas na balaustrada de madeira entre nós.
- Não quero divorciar-me - disse ela.
- Eu também não.
Mexeu-se nervosamente, apoiando-se alternadamente num pé e no outro.
- Então o que vamos fazer?
Inclinei-me para a frente devagar, para que ela me visse a aproximar-me. Debrucei-me e encostei os lábios aos dela, doces e familiares, o meu lar.
- O que vier a seguir, seja o que for - sussurrei.
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Amélia
A reconciliação tão comovente dos meus pais era a única coisa de que se falava na sala de audiências. Era como se a comunicação social fosse o True Confessions pela
forma como os jornalistas se juntavam todos para falarem deste grande momento romântico. O júri ia ficar conquistado, a não ser que fossem um bando de cínicos, como
eu; em minha opinião, Marin quase podia ir para casa abrir a garrafa de champanhe.
E era precisamente por isso que eu tinha uma missão.
Enquanto andavam todos a suspirar por causa do melodrama, eu estava sentada naquela galeria, completamente envergonhada, e a aprender uma coisa nova sobre mim própria: não tinha de vomitar para deitar veneno. Podia suá-lo, gritá-lo e por vezes bastava-me sussurrar. Se eu ia para um campo de bulímicos em Boston, ia partir em grande.
Sabia que o juiz tinha feito deliberadamente de casamenteiro e mantido a minha mãe e o meu pai juntos na sala de audiências para o Segundo Acto do drama deles, mas isso para mim resultou na perfeição. Esgueirei-me pelas traseiras antes que Marin Gates se lembrasse de ir à minha procura e saí do tribunal sem que ninguém reparasse ou se importasse comigo. Corri para o parque de estacionamento, em direcção ao T-Bird verde-mentol.
Quando Guy Booker saiu e me viu encostada ao carro, franziu o sobrolho.
- Se riscares a pintura vais fazer serviço comunitário durante os próximos cinco anos - disse ele.
- Estou preparada para arriscar .
- Afinal o que estás aqui a fazer?
- À sua espera.
Ele franziu a testa.
- Como é que sabias que este é o meu carro?
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- Porque é incrivelmente subtil. Booker esboçou um sorriso afectado.
- Não devias estar na escola?
- É uma longa história.
- Bem, então não a contes. Hoje foi um dia ainda mais longo - disse ele, destrancando a porta do lado do condutor. Abriu-a, hesitando. - Vai para casa, Amélia. A
tua mãe não precisa de ficar preocupada contigo neste momento. Já tem coisas suficientes com que se preocupar.
- Pois - respondi, cruzando os braços. - E foi por isso que calculei que estivesse interessado no que eu a ouvi dizer.
470
Marin
Tinha a morada de Juliet Cooper, do processo e selecção do júri. Sabia que vivia em Epping, uma pequena cidade a oeste de Bankton. Por isso, assim que a sessão foi
encerrada, inseri a rua no meu GPS e comecei a conduzir.
Passada uma hora virei para um pequeno beco sem saída, uma ferradura de casas coloniais modificadas. O número 22 ficava logo à direita do círculo, à entrada. Tinha uma cobertura cinzenta, portadas pretas e uma porta vermelha envernizada. À porta estava estacionada uma carrinha. Quando toquei à campainha, um cão começou a ladrar.
Podia ter vivido ali. Aquela podia ter sido a minha casa. Noutra vida, podia ter entrado pela porta em vez de me aproximar como uma estranha; podia ter um quarto
lá em cima cheio de galardões de hipismo, anuários da escola e outros detritos que os adultos deixam ficar nas suas casas de infância. Saberia dizer onde ficava a gaveta dos talheres na cozinha, onde se guardava o aspirador, como usar o comando da televisão.
A porta abriu-se e Juliet Cooper estava ali de pé, à minha frente. Um terrier bailava-lhe aos pés.
- Mãe? - chamou uma voz de rapariga. - É para mim?
- Não - disse ela, nunca desviando os olhos do meu rosto.
- Sei que não quer ver-me - apressei-me a dizer - e prometo que me vou embora e que nunca mais voltarei a falar consigo. Mas primeiro, tem de explicar-me porquê.
O que é que me torna tão... tão repulsiva?
Assim que falei, soube que isto era um erro. Maisie, do tribunal de família, provavelmente mandar-me-ia prender se soubesse que eu estava ali; todos os sites de
busca de adopção recordavam
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insistentemente aos adoptados que era precisamente isto que não deviam fazer: apanhar as mães biológicas de surpresa, fazendo-as aceitá-los quando eles quisessem e não na altura que elas determinassem.
- Então, a questão é esta - disse eu. - Depois de trinta e cinco anos, acho que me deve cinco minutos.
Juliet saiu lá para fora, fechando a porta atrás de si. Não tinha casaco, e do outro lado da porta ainda ouvia o cão a ladrar. Mas ela não me disse uma palavra.
O que todos desejamos realmente é sermos amados. Esse desejo motiva os nossos piores comportamentos: a ideia determinada de Charlotte de que um dia a perdoarias
pelas coisas que disse no tribunal, por exemplo. Ou a minha ida a Epping. A verdade é que eu fui gananciosa. Sabia que os meus pais adoptivos me queriam acima de qualquer outra coisa, mas isso não bastava. Tinha de perceber por que razão a minha mãe biológica não me quisera e, até o saber, haveria sempre uma parte de mim que se sentia uma falhada.
- És a cara dele - disse ela por fim.
Fiquei a olhar para ela, embora ainda não me olhasse nos olhos. Teria sido um romance que terminara mal, com Juliet grávida e o meu pai biológico a recusar-se a
sustentá-la? Teria continuado a amá-lo, sabendo que o bebé de ambos estava algures no mundo? Tê-la-ia ele atormentado mesmo quando começou uma vida nova, com marido e uma família?
- Tinha dezasseis anos - murmurou Juliet. - Ia para casa de bicicleta depois das aulas, pelos bosques, era um atalho. Ele apareceu de repente e derrubou-me. Enfiou-me uma meia na boca, puxou-me o vestido para cima e violou-me. Depois bateu-me, tanto que os meus pais só me reconheceram por causa das roupas. Deixou-me inconsciente e a sangrar, e dois caçadores encontraram-me. - Levantou o rosto, para por fim olhar directamente para mim.
- Não falei durante semanas. E depois, quando pensei que podia começar de novo, descobri que estava grávida. Ele foi apanhado e a polícia queria que eu testemunhasse,
mas não consegui. Achava que não conseguia voltar a ver a cara dele. E depois, quando nasceste, uma enfermeira mostrou-te, e ali estava ele em ti: os cabelos pretos e os olhos azuis, aqueles punhos a esbracejar. Fiquei satisfeita por haver uma família que te queria tão desesperadamente, porque eu não queria.
Respirou fundo, a tremer.
- Tenho muita pena que não tivesse sido o reencontro de que estavas à espera. Mas, ao ver-te, voltei a reviver tudo, quando me
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esforcei tanto por esquecer. Por isso, por favor - sussurrou Juliet Cooper - deixas-me em paz?
Devemos ter cuidado com o que desejamos. Recuei em silêncio, cambaleando. Não admirava que não quisesse olhar para mim; não admirava que não tivesse recebido bem
a carta que Maisie lhe enviara; não admirava que apenas quisesse que eu me fosse embora. Eu teria feito o mesmo.
Tínhamos isso em comum.
Comecei a descer os degraus de pedra em direcção ao carro, tentando ver através do fluxo de lágrimas. Lá ao fundo, hesitei, e depois virei-me para trás. Ela ainda
estava ali de pé.
- Juliet - disse eu. - Obrigada.
Acho que o meu carro soube para onde eu ia muito antes de mim. Mas quando estacionei em frente à casa colonial branca onde cresci, com o maciço de roseiras não podadas
e a grade cinzenta e desgastada pelo clima, que nunca conseguira domá-las, senti algo explodir dentro de mim. Era ali que estavam as minhas fotografias em álbuns
guardados no armário à entrada. Era ali que eu sabia como funcionava o triturador de lixo. Era ali que, num quarto lá em cima, ainda tinha um pijama, uma escova
de dentes e algumas camisolas, no caso de vir a precisar.
Aquela era a minha casa e aqueles eram os meus pais.
Já estava escuro, eram quase nove horas da noite. A minha mãe teria vestido o robe felpudo e pantufas, e estaria a comer o seu prato de gelado. O meu pai estaria
a percorrer os canais da televisão, argumentando que Feira de Antiguidades era muito mais um reality show do que The Amazing Race. Entrei pela porta lateral, que
nunca esteve trancada enquanto eu vivi lá.
- Olá - gritei, para que não ficassem alarmados. - Sou eu. A minha mãe levantou-se quando eu entrei na sala.
- Marin! - disse ela, abraçando-me. - O que estás aqui a fazer?
- Estava aqui perto - era mentira. Tinha percorrido cem quilómetros para lá chegar.
- Mas achava que estavas a acabar aquele julgamento importante - disse o meu pai. - Estivemos a ver-te na CNN. Nancy Grace, rói-te de inveja...
Sorri um pouco.
- Foi só... apetecia-me ver-vos.
- Tens fome? - perguntou a minha mãe. Demorou trinta segundos; com certeza seria um recorde.
- Nem por isso.
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- Então vou buscar-te um bocadinho de gelado - disse ela, como se eu não tivesse dito nada. - Toda a gente precisa de comer um bocadinho de gelado.
O meu pai deu palmadinhas no lugar do sofá ao lado dele, eu despi o casaco e sentei-me nas almofadas. Não eram as mesmas de quando eu era pequena. Tinha saltado em cima delas tantas vezes que tinham ficado espalmadas como panquecas; a minha mãe tinha mandado estofá-lo de novo há vários anos. Aquelas almofadas eram mais macias, mais tolerantes.
- Achas que vais ganhar? - perguntou o meu pai.
- Não sei. Só sabemos quando acabar.
- Como é ela?
- Quem?
- Aquela O'Keefe? Pensei bem antes de falar.
- Está a fazer o que ela acha que está certo - disse eu. - Acho que não podemos censurá-la por isso. - "Apesar de eu a ter censurado", pensei. "Apesar de eu estar a fazer o mesmo."
Talvez tenhamos de partir para sentir realmente saudades de um sítio; talvez tenhamos de viajar para percebermos como gostamos do nosso ponto de partida. A minha mãe sentou-se ao meu lado no sofá e deu-me uma taça de gelado.
- Ando numa fase de menta com pedacinhos de chocolate disse ela, e levantámos as colheres em simultâneo, de forma tão sincronizada que era quase como se fôssemos gémeas.
Os pais não são as pessoas de quem descendemos. São as pessoas que queremos ser quando crescermos.
Sentei-me entre a minha mãe e o meu pai, a observar estranhos na televisão a transportarem cadeiras de baloiço Shaker, quadros poeirentos, canecas de cerveja antigas e pratos de vidro cor de arando; pessoas e os seus tesouros escondidos, que tinham de ouvir da boca dos especialistas que tinham tomado como certa uma coisa incrivelmente preciosa.
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Amélia
Tentei procurar na Internet, mas não há nada que nos diga como devemos vestir-nos para ir ao tribunal se vamos ser testemunhas num julgamento. Mas decidi que queria
mesmo que o júri se lembrasse de mim. Quero dizer, tinham assistido a um desfile de médicos completamente entediantes; e, em comparação com eles, planeava evidenciar-me.
Por isso espetei o cabelo, o que o fazia parecer ainda mais azul-escuro. Vesti uma camisola de um vermelho-vivo, os meus ténis-bota Converse violeta e as minhas calças de ganga preferidas, com um buraco no joelho, porque não estava disposta a deixar nada ao acaso.
Era bastante irónico, mas nem na noite anterior os nossos pais tinham dormido na mesma cama. A mãe passou a noite no hospital contigo; o pai e eu regressámos a casa. Embora Guy Booker tivesse dito que viria buscar-me para me levar ao tribunal, calculei que podia cravar uma boleia ao pai e conseguir dar a ideia de que estava infeliz por me arrastarem para lá. Guy e eu decidimos que, quanto mais tempo mantivéssemos o meu testemunho em segredo, melhor.
O pai, que já tinha testemunhado, podia agora ficar na galeria da sala de audiências, e eu ficava sozinha na recepção, o que era perfeito. A tremer, fiquei de pé junto a um oficial de justiça.
- Estás bem? - perguntou ele. Acenei com a cabeça.
- Nervos - disse eu, e então ouvi a voz de Guy Booker:
- A defesa chama Amélia O'Keefe.
Levaram-me lá para dentro, mas estava um pandemónio. Marin e Guy estavam junto ao juiz, a discutir; a mãe estava a chorar; o pai estava de pé, a esticar o pescoço para tentar localizar-me.
- Não pode chamar a Amélia - argumentou Marin. Booker encolheu os ombros.
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- Por que não? Foi a doutora que a colocou na lista de testemunhas.
- Há alguma razão para chamar esta testemunha - perguntou o juiz Gellar - para além de querer esfregar na cara da advogada da outra parte o facto de poder fazê-lo?
- Sim, meritíssimo - disse Booker. - A menina O'Keefe tem informações que este tribunal precisa de ouvir, dadas as implicações de um processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal.
- Muito bem - disse o juiz. - Façam-na entrar
Enquanto percorria a sala de audiências, sentia que toda a gente tinha os olhos fixos em mim. Era como se me perfurassem, e toda a minha auto-confiança estava a dissipar-se depressa. Ao passar pela nossa mãe, ouvi-a segredar a Marin.
- Prometeu-me - disse ela. - Disse-me que era só uma precaução...
- Não fazia ideia de que ele ia fazer isto - segredou Marin em resposta. - Tem alguma noção do que ela vai dizer?
Depois entrei na pequena gaiola de madeira, como se fosse um espécimen para o júri examinar ao microscópio. Trouxeram-me uma Bíblia e fizeram-me jurar sobre ela.
Guy Booker sorriu para mim.
- Podes dizer-nos quem és, para que fique registado?
- Amélia - disse eu, e tive de lamber os lábios por estarem tão secos. -Amélia O'Keefe.
- Amélia, onde moras?
- Em Stryker Lane, número quarenta e seis, em Bankton, New Hampshire
- conseguia ouvir o coração bater? Porque, meu Deus, era como um bombo dentro do peito.
- Que idade tens? -Treze anos.
- E quem são os teus pais, Amélia?
- Charlotte e Sean O'Keefe - disse eu. - A Willow é minha irmã.
- Amélia, podes explicar ao tribunal pelas tuas próprias palavras de que trata este processo legal?
Não fui capaz de olhar para ela. Puxei as mangas para baixo, porque as cicatrizes ardiam.
- A minha mãe acha que a Piper devia ter sabido mais cedo que a Willow ia nascer com um problema e que devia ter-lhe dito. Porque então ela teria feito um aborto.
- Achas que a tua mãe está a dizer a verdade?
- Objecção! - Marin levantou-se tão depressa que me fez dar um salto na cadeira.
- Não, vou permitir - disse o juiz. - Podes responder; Amélia. Abanei a cabeça.
- Sei que não.
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- Como sabes?
- Porque - disse eu, tornando as palavras o mais pequenas e arrumadas que conseguia - ouvi-a dizer isso.
Não devia ter ficado à escuta, mas, às vezes, essa é a única maneira de descobrir a verdade. E - embora não fosse de maneira nenhuma admiti-lo em voz alta - estava
a ter sentimentos protectores em relação a ti. Parecias ter ficado tão abatida depois da última fractura e cirurgia, e quando disseste "A mãe quer ver-se livre de
mim", senti-me como se as minhas entranhas se tivessem transformado em gelatina.Todos nós te protegíamos, cada um à sua maneira. O pai andava por aí a disparatar; zangado com tudo o que tornasse a tua vida mais difícil. A mãe, bem, parecia ser demasiado estúpida para arriscar tudo para conseguir mais coisas para ti a longo prazo. E eu, acho que construí uma concha à minha volta, para que, quando te magoasses, fosse mais fácil fingir que não sentia a tua dor
"Ninguém vai mandar-te embora", dissera a mãe, mas já estavas a chorar
"Desculpa por causa da minha perna. Achei que se não partisse nada durante bastante tempo, ias pensar que eu era como as outras crianças..."
"Os acidentes acontecem, Willow. Ninguém te culpa de nada."
"Tu culpas-me. Desejavas nunca me teres tido. Ouvi-te dizeres isso."
Sustive a respiração. A mãe podia dizer o que quisesse a si própria para conseguir dormir à noite, mas não enganava ninguém - sobretudo a ti.
"Willow", respondeu ela, "ouve-me bem.Toda a gente comete erros... incluindo eu, Fazemos e dizemos coisas que desejamos não ter feito nem dito. Mas tu, tu nunca foste um erro. Nunca, nem em mil anos... nem num milhão de anos...teria perdido a oportunidade de te ter."
Sentia-me como se estivesse pregada à parede. Se isso fosse verdade, então tudo o que acontecera no último ano - este processo legal, perder as minhas amigas, ver os meus pais separarem-se - fora tudo em vão.
Se fosse verdade, então a minha mãe esteve sempre a mentir.
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Charlotte
Há um preço para tudo. Podemos ter uma bebé linda, mas ficamos a saber que tem uma incapacidade. Movemos céus e terra para fazer essa criança mais feliz, mas deixamos
o nosso marido e a nossa filha tristes. Não há nenhuma balança cósmica onde possamos pesar os nossos actos; aprendemos demasiado tarde quais as escolhas que estragam
o equilíbrio frágil.
Assim que Amélia terminou de falar, o juiz virou-se para Marin.
- Dr.a Gates, o contra-interrogatório?
- Não tenho perguntas a fazer a esta testemunha - disse ela mas gostaria de voltar a chamar Charlotte O'Keefe ao banco das testemunhas.
Fiquei a olhar para ela. Não me segredou nada nem me escreveu nenhum bilhete, por isso levantei-me desconfiadamente, insegura. Amélia passou por mim acompanhada
por um oficial de justiça. Estava a chorar.
- Desculpa - murmurou ela silenciosamente.
Sentei-me rigidamente na cadeira de madeira. "Mantenha-se fiel à mensagem", dissera Marin, vezes sem conta. Mas tornara-se cada vez mais difícil lembrar-me dela.
- Recorda-se da conversa que a sua filha acabou de referir? perguntou Marin. A voz dela atingiu-me como uma bala.
- Sim.
- Quais eram as circunstâncias?
- Tínhamos acabado de trazer a Willow para casa, depois do primeiro dia no tribunal. Tinha sofrido uma fractura tão grave do fémur que precisou de ser operada.
- Estava perturbada?
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- Sim - disse eu.
- E a Willow?
- Muito.
Aproximou-se de mim, ficando à espera que eu olhasse para ela. E vi a mesma preocupação velada que vira em Amélia ao sair daquele banco das testemunhas; em Sean, momentos antes da sala de audiências ficar vazia no dia anterior; em ti, na noite em que tivemos essa conversa - o medo oculto de podermos não ser suficientemente bons para uma pessoa que amamos. Talvez também eu sentisse isso, e talvez fosse por isso que tinha instaurado aquele processo legal há tantos meses atrás - para que, quando olhasses em retrospectiva para a tua infância, não me culpasses por trazer-te a um mundo cheio de sofrimento. Mas o amor não é sacrifício, nem é ficar aquém das expectativas de outra pessoa. Por definição, o amor torna-nos mais do que razoavelmente bons; redefine a perfeição para incluir as nossas características, em vez de excluí-las.
Tudo o que todos queremos é saber que contamos para alguma coisa. Que a vida de alguém não seria tão rica sem a nossa presença.
- Quando teve essa conversa com a sua filha, Charlotte começou Marin. - Quando disse todas essas coisas no meio deste processo legal... estava a mentir?
- Não.
- Então o que estava a fazer?
- Estava a fazer o melhor que podia - sussurrei. - Estava só a fazer o melhor que podia.
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Piper
- Aquilo - disse Guy Booker, debruçando-se para mim - é uma encenação dramática. - Levantou-se, abotoando o casaco, e virou-se para o júri para começar as suas alegações
finais.
- A queixosa - disse ele - é uma mentirosa. Diz que neste processo legal o mais importante não é o dinheiro, mas até o marido vos disse que é, e não a apoia. Diz
que deseja que a filha nunca tivesse nascido, mas depois diz-lhe o contrário. Diz-vos que desejava ter podido escolher terminar a gravidez, e aponta o dedo a Piper
Reece, uma médica esforçada cujo único pecado, senhoras e senhores, foi ter a má sorte de ser amiga de Charlotte o'Keefe.
Abriu bem as palmas das mãos.
- Negligência médica no diagnóstico pré-natal. Negligência médica no diagnóstico pré-natal. Faz-nos impressão dizer isso, não faz? Mas a queixosa afirma que a filha,
a sua filha linda, inteligente, com uma grande cultura geral, tão amada, nunca devia ter existido. Esta mãe desconsidera todas estas características positivas e
afirma que não anulam o facto de a filha ter osteogénese imperfeita. Mas ouviram os especialistas: que admitiram que nada do que Piper Reece fez como médica foi
negligente. Na realidade, assim que Piper viu que a gravidez da queixosa tinha uma complicação, fez exactamente o que devia ter feito: chamou uma pessoa que era
capaz de lidar com a situação. E, por causa disso, senhoras e senhores, a sua vida ficou arruinada, viu o consultório afundar-se, viu-se privada da carreira e da
auto-confiança.
Parou de andar em frente ao banco dos jurados.
- Ouviram o Dr. Rosenblad dizer uma coisa que todos sabemos: terminar uma gravidez desejada não é a primeira escolha de ninguém. No entanto, quando os pais se vêem
confrontados com a realidade de
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um feto que se tornará numa criança com incapacidades graves, todas as escolhas são más. Se os senhores decidirem a favor da queixosa, estão a corroborar a lógica
falaciosa dela: que podemos amar tanto uma filha que processaríamos uma médica, uma amiga íntima, por acharmos que ela nunca devia ter nascido. Estão a corroborar
um sistema que afirma que os obstetras deviam determinar com que incapacidades vale a pena viver e com que incapacidades não vale a pena viver. E isso, meus amigos,
é um caminho perigoso por onde se enveredar. Que tipo de mensagem transmite às pessoas que vivem o dia-a-dia com incapacidades? Que incapacidades devem ser consideradas
"demasiado incapacitantes" para que uma vida valha a pena? Neste momento, noventa por cento das pacientes a quem é diagnosticado um feto com síndroma de Down, escolhem
abortar, embora haja milhares de pessoas com síndroma de Down a viverem vidas felizes e produtivas. O que acontecerá com os avanços da ciência? As pacientes decidirão
terminar as gravidezes de fetos com um potencial futuro para desenvolverem doenças cardíacas? Ou aqueles que vão ter Bons em vez de Excelentes? Ou aqueles que não
pareçam super-modelos?
Começou a regressar à mesa da defesa.
- A negligência médica no diagnóstico pré-natal, senhoras e senhores, pressupõe que todos os bebés deviam ser perfeitos e a Willow O'Keefe não é. Mas eu também não
sou perfeito. E a Dr.a Gates também não. Nem sequer o juiz Gellar é perfeito, embora deva admitir que está muito perto da perfeição. Até me arrisco a dizer que todos
os senhores terão alguma falha, algures. Por isso, peço-vos para pensarem bem enquanto estiverem a ponderar sobre o vosso veredicto disse Booker. - Observem este
processo legal por negligência médica no diagnóstico pré-natal e façam a escolha certa.
Quando se sentou, Marin Gates levantou-se.
- É irónico que o Dr. Booker mencione escolhas, porque foi exactamente isso que foi negado a Charlotte O'Keefe.
Ficou de pé atrás de Charlotte, que tinha a cabeça baixa.
- Não se trata de religião. Não se trata de aborto. Não se trata dos direitos das pessoas com incapacidade. Não se trata de Charlotte amar ou não a filha. Não se
trata de nenhum daqueles assuntos que a defesa gostaria de vos fazer crer. Trata-se apenas de uma coisa: se a Dr.a Piper Reece proporcionou a Charlotte os cuidados
que devia durante a gravidez.
Depois de todo aquele tempo, todas aquelas testemunhas, eu própria ainda não sabia a resposta. Mesmo que tivesse olhado para aquela ecografia das dezoito semanas
de gravidez e tivesse encontrado
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motivo de preocupação, teria simplesmente recomendado ficar à espera para ver os desenvolvimentos - e o resultado teria sido o mesmo. com isso, poupei a Charlotte
vários meses de ansiedade na gravidez. Mas isso tornar-me-ia uma boa obstetra, ou uma obstetra negligente? Talvez tivesse feito suposições sobre Charlotte, simplesmente
por conhecê-la demasiado bem, que não teria feito tratando-se de outra paciente. Talvez devesse ter procurado mais atentamente os sinais.
Talvez, se o tivesse feito, o facto de a minha melhor amiga estar a processar-me não fosse um choque tão grande.
- Ouviram as provas. Ouviram que havia uma anomalia na ecografia das dezoito semanas de gravidez que sugeria um acompanhamento, que indicava uma anomalia fetal.
Mesmo que a médica não tivesse a certeza do que ela significava, senhoras e senhores, era da sua responsabilidade examinar com mais atenção e descobrir. Piper Reece
não fez isso após essa ecografia das dezoito semanas, pura e simplesmente. E isso, senhoras e senhores, é negligência.
Aproximou-se de mim.
- Willow, a criança que nasceu em resultado disso, vai ter necessidades especiais durante toda a vida. São dispendiosas, são significativas, são dolorosas. São contínuas,
são cumulativas, são traumáticas. São avassaladoras. São exacerbadas pela própria idade. Hoje a vossa função é decidir se a Willow poderá ter uma vida melhor com
todos os cuidados adequados de que necessita. Terá as operações de que necessita? Os veículos adaptados? Será tratada por especialistas? Continuará a ter fisioterapia
e ajudas para locomoção: tudo isso pago pelos O'Keefe, endividando-os consideravelmente? Hoje, estas decisões estão nas vossas mãos - disse Marin. - Hoje têm a oportunidade
de fazer uma escolha... como Charlotte O'Keefe não chegou a ter.
O juiz disse algumas palavras ao júri e depois todos começaram a sair da sala de audiências. Rob aproximou-se da barreira que separava a galeria da parte da frente
da sala e pousou as mãos nos meus ombros.
- Estás bem? - perguntou.
Acenei com a cabeça. Tentei esboçar um sorriso.
- Obrigada - disse a Guy Booker. Meteu um bloco na pasta.
-Não me agradeça ainda - disse ele.
482
Charlotte
- Estás a pôr-me tonto - dizia Sean quando entrei na sala de reuniões. Amélia estava a andar para trás e para a frente, com as mãos enfiadas nos cabelos eléctricos.
Assim que me viu, virou-se.
- Então é assim - disse ela, falando muito depressa. - Sei que estás a pensar em matar-me, mas não seria a atitude mais inteligente para se ter num tribunal, há polícias por todo o lado, já para não referir que o Pai está aqui e seria obrigado a prender-te...
- Não vou matar-te - disse eu. Ela parou de andar.
- Não?
Como nunca tinha reparado em como Amélia se tornara tão bonita? Os olhos, debaixo daqueles cabelos ridículos, eram enormes e amendoados. As faces naturalmente rosadas.
A boca era pequena e arqueada, franzida para manter as opiniões dela bem guardadas. Apercebi-me de que não era parecida comigo, nem com o Sean. Parecia-se mais contigo.
- O que fizeste... o que disseste - comecei a dizer. - Eu sei porque foi.
- Porque não quero ir para Boston! - disse Amélia bruscamente. - Aquele estúpido centro de tratamento. Vão deixar-me lá.
Olhei para Sean e depois novamente para ela.
- Talvez não devêssemos ter tomado essa decisão sem ti. Amélia semicerrou os olhos, como se não tivesse confiança
no que estava a ouvir.
- Podes estar zangada connosco, mas não foi realmente por isso que disseste ao Guy Booker que ias testemunhar - prossegui.
- Acho que o fizeste porque estavas a tentar proteger a tua irmã.
- Pois foi - disse Amélia.
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- Então como podia estar zangada contigo por fazeres o mesmo que eu estou a tentar fazer?
Amélia lançou-se para os meus braços com a força de um furacão.
- Se ganharmos - perguntou ela, numa voz abafada junto da minha face - posso comprar um Jet Ski?
- Não - dissemos Sean e eu em simultâneo. Ele levantou-se de mãos nos bolsos.
- Se ganhares - disse ele - estava a pensar em voltar para casa de vez.
- E se perder?
- Bem - disse Sean - estava a pensar mudar-me para casa de
vez na mesma.
Olhei para ele por cima da cabeça de Amélia.
- És bom a negociar - disse eu e sorri.
A caminho do Disney World, enquanto esperávamos no aeroporto, comemos num restaurante mexicano. Comeste uma quesadilla; a Amélia comeu um burrito. Eu comi tacos de peixe, e o Sean uma chimichanga. O molho pouco picante era demasiado picante para nós. Sean convenceu-me a beber uma Margarita ("Não vais propriamente pilotar o avião"). Falámos sobre gelado frito, que estava no menu das sobremesas e não parecia possível: o gelado não derretia ao ser colocado numa fritadeira? Falámos sobre onde queríamos andar primeiro no Magic Kingdom.
Nessa altura, a possibilidade estendia-se diante de nós como um tapete vermelho. Nessa altura, estávamos todos concentrados no que podia acontecer e não no que tinha corrido mal. Quando estávamos a sair do restaurante, a empregada - uma rapariga com cicatrizes nas faces e um brinco no nariz - deu-nos um balão de hélio a cada um.
- Para que serve isto - disse Sean. - Não podemos levá-los no avião.
- Nem tudo tem de servir para alguma coisa - respondi, dando-lhe o braço. - Vive um pouco.
Amélia abriu um buraco no balão, com os dentes, e sugou-o com os lábios. Inspirou profundamente, e depois olhou para nós com um sorriso deslumbrante.
- Olá, pais - disse, mas a voz dela era aguda e fina, como a de um Munchkin, não parecia nada a Amélia.
- Só Deus sabe o que está lá dentro...
- Dah, Mãe - chilreou Amélia. - Hélio.
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FRÁGIL
- Eu também quero - disseste, e Amélia agarrou no teu balão e mostrou-te como devias inspirar.
- Não me parece que devessem estar a inspirar hélio...
- Vive um pouco - disse Sean sorrindo e, mordendo o balão, inspirou.
Começaram todos a falar comigo, as vozes deles eram uma comédia, um coro de aves, um arco-íris.
- Experimenta, mãe - disseste. - Experimenta!
Então fiz como vocês. O hélio ardeu um pouco ao engolir, numa grande golfada. Sentia as cordas vocais a vibrarem.
- Talvez isto não seja assim tão mau afinal - disse num pipilar. Cantámos "Row, Row, Row Your Boat." Recitámos a Oração
do Senhor. E quando um homem de fato fez parar Sean para lhe perguntar se sabia o caminho para o sítio onde descarregavam as bagagens, Sean inspirou longamente no
balão e disse "Siga a estrada de tijolos amarelos."
Não me lembro de me rir tanto como naquele dia, nem de me sentir tão liberta. Talvez fosse o hélio que me tornava mais leve, que me fazia sentir que podia fechar
os olhos e voar para Orlando com ou sem avião. Ou talvez fosse porque, disséssemos o que disséssemos uns aos outros, não éramos nós próprios.
Passadas quatro horas, o júri ainda não tinha chegado a um veredicto. Sean tinha ido ao hospital para ver como estavas e acabara de telefonar a dizer que estava a caminho e a perguntar se havia novidades. Amélia estava a escrever haikus no quadro branco da sala de reuniões:
Socorro, estou presa
Atrás deste mesmo quadro branco.
Por favor não apaguem.
A regra de hoje
É que já não há mais regras.
Acho que estão com azar.
Fui à casa de banho pela terceira vez desde que a sessão foi encerrada. Não precisava de ir, mas abri a torneira do lavatório e passei o rosto por água. Estava sempre
a dizer para comigo que não era um assunto assim tão importante, mas era mentira. Não arrastamos a nossa família para a beira do abismo para nada; ter passado por tudo isto e ficar sem nada seria desastroso. Se tinha
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instaurado este processo legal para aliviar a minha consciência, como seria capaz de aceitar um resultado que me fizesse sentir-me ainda mais culpada?
Limpei o rosto e a camisola, onde ficara molhada. Deitei as toalhas de papel para o caixote do lixo precisamente quando se ouviu uma descarga de autoclismo numa
das casas de banho. A porta abriu-se quando eu estava a afastar-me do lavatório e, inadvertidamente empurrei-a para cima da pessoa que estava a tentar sair.
- Peço desculpa - disse eu, e depois apercebi-me de que a mulher que estava à minha frente era Piper.
- Sabes, Charlotte - disse ela num tom suave. - Eu também. Fiquei a olhar para ela, em silêncio. De todas as coisas em que
podia ter reparado, percebi que ela já não tinha o mesmo cheiro. Mudara de perfume ou de champô.
- Então admites - disse eu. - Que cometeste um erro. Piper abanou a cabeça.
- Não, não cometi. Pelo menos profissionalmente não. Mas a nível pessoal, bem... Lamento que as coisas tivessem corrido desta maneira. E lamento que não tenhas tido o bebé saudável que querias.
- Tens noção - respondi - de que em todos estes anos depois de a Willow ter nascido, nunca me disseste isso?
- Devias ter-me dito que estavas à espera de ouvi-lo - disse Piper.
- Não devia ser preciso dizer.
Tentei não me lembrar de como Piper e eu ficávamos juntas nas bancadas do rinque de patinagem, a ler os anúncios classificados e a tentar emparelhar os anúncios pessoais uns com os outros. De como dávamos passeios, a empurrar-te num carrinho, pontuando o ar frio com tantas nuvens de conversa que cinco quilómetros passavam num instante. Tentei não me lembrar de que a considerava como a irmã que nunca tive, que esperava que tu e Amélia crescessem assim tão íntimas.
Tentei não me lembrar, mas lembrava-me.
De repente, a porta da casa de banho abriu-se.
- Está aí - suspirou Marin. - O júri já voltou.
Apressou-se a sair, e Piper lavou rapidamente as mãos debaixo da torneira. Sentia-a mesmo atrás de mim enquanto regressávamos para a sala de audiências, mas as pernas dela eram mais compridas e acabou por me apanhar.
Quando entrámos, lado a lado, uma dúzia de flashes dispararam e eu não conseguia ver para onde ia. Marin puxou-me para a
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frente pelo pulso. Pareceu-me, embora pudesse ter imaginado, ter ouvido Piper sussurrar um adeus.
O juiz entrou e todos se sentaram.
- Senhora porta-voz do júri - disse ele, virando-se para o júri -já chegaram a um veredicto?
A mulher era pequena e frágil como uma ave, com óculos que lhe aumentavam os olhos.
- Sim, meritíssimo. No caso O'Keefe contra Reece, decidimos a favor da queixosa.
Marin dissera-me que em setenta e cinco por cento de todos os casos de negligência médica no diagnóstico pré-natal o veredicto era a favor do arguido. Virei-me para ela e agarrou-me no braço.
- É a Charlotte.
- E - disse a porta-voz - estabelecemos uma indemnização no valor de oito milhões de dólares.
Lembro-me de cair para trás, para cima da cadeira, e da galeria entrar em erupção. Sentia os dedos dormentes e tinha de esforçar-me para respirar. Lembro-me de Sean e Amélia a passarem por cima da barreira para me abraçarem com força. Ouvi os gritos de um grupo de pais com filhos com necessidades especiais que se tinham instalado ao fundo da sala de audiências, ao longo do julgamento, e dos nomes que me chamaram. Ouvi Marin dizer a um jornalista que aquela era a maior indemnização por negligência médica no diagnóstico pré-natal de sempre em New Hampshire e que naquele dia se fizera justiça. Olhei através da multidão, tentando encontrar Piper, mas ela já tinha saído.
Naquele dia, quando fosse buscar-te ao hospital para te levar para casa, dir-te-ia que finalmente estava tudo terminado. Dir-te-ia que terias tudo o que precisasses, para o resto da vida - e depois de a minha acabar. Dir-te-ia que ganhei, que o veredicto foi lido em voz alta... embora eu não tivesse realmente acreditado.
Afinal, se tinha vencido este processo legal, por que razão o meu sorriso era vazio como um tambor e tinha um aperto no peito?
Se tinha vencido este processo legal, por que razão me sentia como se tivesse perdido?
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Resumir: liberta o excesso de humidade.
Quando se fazem bolos, tal como na vida real, surgem "lágrimas" quando alguma coisa corre mal. Os merengues são apenas claras batidas e açúcar; devem ser comidos
imediatamente. Se hesitarmos, a água infiltra-se entre o recheio e o merengue e ocorre o resumir - pequenas gotas que se formam nos cumes brancos como neve. Há todo
o tipo de teorias sobre como evitar isto - desde usar apenas claras de ovos frescas, a usar açúcar superfino, desde juntar amido de milho, a pré-cozer o merengue.
Se me perguntarem, eu direi qual é o único método infalível:
Não façam esta receita quando tiverem um coração partido.
TARTE DE LIMÃO MERENGADA
1 base de tarte, previamente cozida.
RECHEIO
1 a 1,5 chávenas de açúcar granulado
6 colheres de sopa de amido de milho Pitada de sal
1 a 1,3chávenas de água fria
2 colheres de sopa de manteiga sem sal
5 gemas
Meia chávena de sumo de limão acabado de fazer
1 colher de sopa de raspa de casca de limão
Preparar a base para a tarte. Entretanto misturar o açúcar, o amido de milho, o sal e a água numa frigideira antiaderente. Mexer até não ter grumos e bater à medida
que a mistura levantar fervura. Retirar do lume e juntar a manteiga.
Numa tigela separada, bater as gemas. Acrescentar uma pequena quantidade da mistura líquida quente e bater até estar homogéneo. Deitar a mistura de ovo na frigideira e deixar levantar fervura em lume médio, continuando a bater enquanto engrossa, aproximadamente durante 2 minutos. Retirar do lume e juntar a raspa da casca de limão mexendo sempre.
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MERENGUE
6 claras grandes à temperatura ambiente
Pitada de cremar tártaro
Pitada de sal
Três quartos de chávena de açúcar
Bater as claras de ovo, o cremor tártaro e o sal em baixa velocidade até estarem misturados. Aumentar a velocidade e bater até obter claras em castelo. Juntar o
açúcar batendo sempre, uma colher de cada vez.
Pré aquecer o forno a 180?C. Deitar o recheio na base da tarte e cobrir com o merengue. Verifique se o merengue fica bem espalhado até às bordas da tarte. Cozer
durante 10 a 15 minutos. Deixar a tarte arrefecer durante cerca de 2 horas, depois colocar no frigorífico para evitar o resumir humidade.
Ou simplesmente pense em coisas alegres.
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Willow
Março de 2009
Na escola temos o Dia 100. É em finais de Novembro, e temos de levar cem unidades de qualquer coisa. Quando a Amélia estava na primeira classe, levou cem pedacinhos
de chocolate, mas quando saiu do autocarro, já só lhe restavam cinquenta e três. Eu levei uma lista de setenta e cinco ossos que já parti e os nomes de outros vinte e cinco que não.
Um milhão são dez mil vezes cem. Nem consigo imaginar dez mil. Talvez haja esse número de árvores numa floresta ou moléculas de água num lago. Oito milhões são ainda mais do que isso, e é o número de dólares que está escrito no grande cheque azul que já está no nosso frigorífico há quase seis meses.
Os meus pais falam muito sobre esse cheque. Dizem que muito em breve a carrinha vai oficialmente resfolegar até cair e que vamos usar o dinheiro para comprar uma nova, mas depois arranjam maneira de manter a velha a funcionar. Falam sobre como o prazo limite para as inscrições nos campos de férias para crianças como eu está quase a chegar e que têm de pagar o sinal agora. Tenho os prospectos ao lado da cama. Neles, há crianças de todas as cores com OI, como eu. Todas parecem felizes.
Talvez seja isso que acontece às crianças que vão para qualquer lado. A Amélia foi e, quando voltou para casa, tinha os cabelos castanhos outra vez e um cavalete
de pintura. Está sempre a pintar - o meu retrato quando estou a dormir, naturezas mortas com canecas de café e pêras, paisagens em cores de que nunca serão. Tenho
de olhar mesmo com muita atenção para os braços dela para ver as cicatrizes prateadas e, mesmo quando me apanha a olhar, quase nem se dá ao trabalho de puxar as mangas para baixo.
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Era sábado. O meu pai estava sentado em frente da televisão, a ver os Bruins. A Amélia estava lá fora algures, a desenhar. A minha mãe estava sentada à mesa da cozinha,
a fazer paciências com os cartões das receitas dela. Tinha mais de cem (ainda se ela estivesse na primeira classe!) e tinha resolvido juntá-las num livro de receitas. Era um compromisso visto que já não tinha de estar sempre a fazer bolos como antigamente, para o Sr. DeVille. Ele ainda vendia as empadas, as tartes e os macaroons dela quando lhe davam as ganas de cozinhar mas, agora, o grande plano dela era publicar o livro e doar todo o dinheiro que ganhasse à Fundação de Osteogénese Imperfeita.
Não precisávamos de dinheiro porque o nosso estava preso ao frigorífico.
- Então - disse a minha mãe, quando eu subi para uma cadeira. - O que foi?
- Nada - a correspondência, espalhada na mesa como um cachecol garrido, chamou-me a atenção.
- Há ali uma coisa para ti - disse a minha mãe.
Era um postal - e lá dentro estava a fotografia de Marin com um rapaz que devia ser da idade da Amélia. Tinha dentes de coelho e a pele da cor do chocolate. Chamava-se Anton e ela adoptara-o há dois meses.
Não víamos a Piper, e a Amélia e a Emma já não eram amigas. O letreiro na fachada do edifício onde costumava ser o consultório dela já não tinha o seu nome. Agora estava escrito GRETEL HANDLEMAN, QUIROPRÁTICA. E então, num sábado de manhã, o meu pai e eu fomos comprar roscas, e a Piper estava na fila à nossa frente. O meu pai disse-lhe olá e ela perguntou como eu estava, mas apesar de tentar sorrir, o sorriso parecia forçado, como um arame retorcido que nunca mais pudesse voltar a ser endireitado. Disse ao meu pai que estava a trabalhar em tempo parcial numa clínica feminina gratuita em Boston e que, naquele momento, ia para lá. Depois derrubou o copo cheio de palhinhas na caixa registadora e, estava com tanta pressa de se ir embora, que se esqueceu de pagar, até a rapariga que lhe tinha trazido o café lhe lembrar que não era de graça.
Tinha saudades da Piper, mas acho que a minha mãe ainda tinha mais. Agora não tinha amigas. Não costumava estar com mais ninguém sem ser eu, a Amélia e o pai.
Por acaso, era um pouco triste.
- Queres fazer um bolo? - perguntei. A minha mãe revirou os olhos.
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- Não podes realmente dizer-me que estás com fome. Acabaste de almoçar.
Não estava com fome, mas estava aborrecida. Ela olhou para mim.
- Fazemos uma coisa. Vai chamar a Amélia e depois estabelecemos o nosso plano de acção. Talvez um filme.
- A sério?
- Claro - disse a minha mãe.
Agora já podíamos alugar filmes. E eu ia ter uma cadeira de rodas desportiva para poder jogar à bola nas aulas de ginástica com os meus colegas. A Amélia disse que era por causa do cheque que estava no frigorífico que agora podíamos gastar tanto dinheiro de repente. Na escola havia idiotas que diziam que nós éramos ricos, mas eu sabia que isso não era mesmo verdade. Quero dizer, afinal os meus pais nunca tinham chegado a depositar o cheque. Ainda tínhamos um carro velho e ferrugento, a nossa casa pequenina e as mesmas roupas. Muitos zeros não significavam nada, a não ser segurança - os meus pais podiam esbanjar um bocadinho porque quando os fundos deles se esgotassem, havia uma reserva. Isso queria dizer que não discutiam tanto, e isso não se compra nas lojas. Não sabia muito acerca de contas bancárias, mas era suficientemente inteligente para perceber que os cheques não nos servem de nada se não forem depositados. Mas os meus pais pareciam não ter muita pressa. De vez em quando a minha mãe dizia, "Devia mesmo levar isso ao banco", e o meu pai grunhia para mostrar que estava de acordo, mas nunca se chegava a fazer isso e o cheque ainda estava preso ao frigorífico.
Fui ao bengaleiro buscar as botas e o casaco, com a voz da minha mãe a seguir-me.
- Tem...
- Cuidado - terminei. - Pois, eu sei.
Era Março, mas ainda estava suficientemente frio para a minha respiração fazer formas estranhas através do cachecol: uma que parecia um frango e outra que era um
hipopótamo. Comecei a descer a rampa do quintal com cuidado. Já não havia neve, mas o chão ainda fazia barulho debaixo das solas das botas. Fazia um ruído semelhante a dentes a morderem.
Amélia provavelmente estava no bosque; gostava de desenhar as bétulas porque dizia que eram trágicas e que uma coisa tão bela não devia morrer tão depressa. Enfiei as mãos nos bolsos e tapei o nariz com o cachecol. A cada passo, pensava em qualquer coisa nova.
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"A mulher média consome quase três quilos de bâton durante a vida."
"A Ilha das Três Milhas mede realmente apenas duas milhas e meia de comprimento."
"As baratas gostam de comer a cola na parte de trás dos selos."
Hesitei ao aproximar-me da beira do lago. Os juncos eram quase tão altos como eu, e tinha de esforçar-me para passar por eles sem prender um braço ou uma perna.
Naquele momento, pela primeira vez em meses, não tinha fracturas a sarar e planeava manter-me assim.
O meu pai contou uma história de uma vez em que estava no carro da polícia e percebeu que os carros à sua frente estavam parados. Abrandou e estacionou o carro, depois abriu a porta para ver o que estava a acontecer. Mas assim que pôs um pé no chão, estatelou-se de costas. Gelo e lama; foi uma sorte não se ter magoado.
O gelo no lago estava tão transparente que conseguia ver as ervas e a areia, como se fosse um vidro. Pus-me de gatas com cuidado e avancei devagar.
Nunca me deixavam ir para o gelo e, tal como a maior parte das coisas que não podemos fazer, era só nisso que pensava.
Assim não podia magoar-me - estava a andar muito devagar e não estava de pé. Tinha as costas arqueadas, como um gato, olhando para a superfície. Para onde iam os peixes no Inverno? Conseguíamos vê-los se olhássemos com atenção?
Movi o joelho direito, e a mão direita. O joelho esquerdo, e a mão esquerda. Tinha a respiração acelerada, não por ser difícil, mas por não acreditar que pudesse ser assim tão fácil.
Um gemido percorreu toda a superfície do lago, como se o céu estivesse a chorar. E então, de repente, a toda a minha volta, o gelo transformou-se numa teia de aranha, e eu era o insecto preso no meio dela.
"Os gafanhotos têm sangue branco, as borboletas sentem o gosto com as patas traseiras, as lagartas têm cerca de quatro mil músculos..."
- Socorro - disse eu, mas não conseguia gritar e respirar ao mesmo tempo.
Subitamente a água sugou-me. Tentei agarrar-me ao gelo, mas partiu-se em bocados; tentei nadar, mas não sabia fazê-lo sem colete de salvação. O casaco, as calças e as botas eram uma esponja, e estava tanto frio, um frio de geada, um frio que provocava dores de cabeça.
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"Um tatu consegue andar debaixo de água."
"Os vairões têm dentes na garganta."
"Um camarão consegue nadar para trás."
Seria de pensar que eu estivesse assustada. Mas ouvia a minha mãe contar-me uma história, antes de dormir, sobre um coiote que queria capturar o sol. Trepou à árvore
mais alta, colocou-o dentro de um frasco e levou-o para casa. Mas aquele frasco não conseguia conter algo tão poderoso e rebentou. "Estás a ver, Wills?" dizia a minha mãe. "Estás cheia de luz."
Havia vidro por cima de mim, e o olho molhado do Sol no céu, e bati-lhe com os punhos. Era como se o gelo se tivesse fechado novamente por cima de mim e eu não conseguia atravessá-lo. Estava tão dormente que tinha parado de tremer.
Quando a água me entrou pelo nariz e pela boca, quando o Sol se tornou cada vez mais pequeno, fechei os olhos e cerrei os punhos em volta das coisas de que tinha a certeza:
"Que uma vieira tem trinta e cinco olhos, todos azuis."
"Que um atum sufoca se parar de nadar."
"Que eu era amada."
"Que desta vez não era eu que ficaria em pedaços."
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Receita: (1) um conjunto de instruções para preparar um prato; (2) alguma coisa que provavelmente conduzirá a um determinado resultado.
Siga estas regras e conseguirá aquilo que quer: é a receita mais fácil do mundo. Bem podemos seguir uma receita à letra que não fará diferença nenhuma quando tivermos
o produto final diante de nós e ele não for aquilo que queremos.
Durante muito tempo, só te via a afundares-te. Imaginava-te, com apele azul-pálida e os cabelos a esvoaçarem atrás de ti como os de uma sereia. Acordava aos gritos, a bater no colchão com as mãos, como se conseguisse atravessar o gelo e arrastar-te em segurança.
Mas não eras tu, da mesma forma que o esqueleto que te deram não eras tu. Eras mais do que isso, mais leve. Eras o vapor que embaciava o espelho de manhã quando Sean me arrastava para fora da cama e me obrigava a tomar um duche. Eras os cristais que pintavam o pára-brisas do meu carro depois de uma noite de geada. Eras o calor a erguer-se do chão como um fantasma no meio do Verão. Nunca me abandonavas.
Já não tenho o dinheiro. Afinal era teu. Enfiei o cheque no forro de cetim do caixão quando te dei o último beijo de despedida.
Estas são as coisas de que tenho a certeza:
Quando pensamos que temos razão, o mais provável é estarmos enganados.
As coisas que se partem - sejam ossos, corações ou promessas podem voltar a ficar juntas, mas nunca mais ficarão inteiras.
E, apesar do que disse, podemos sentir falta de uma pessoa que nunca chegámos a conhecer.
Estou sempre a aprender isto, em cada dia que passo sem ti.
Jod Picoult
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