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Series & Trilogias Literarias
A neve caía pesada naquela manhã quando os caçadores da vila, armados com lanças longas feitas de ossos, machados de pedra e arcos, saíram para encontrar comida, cada dia mais escassa e preciosa para a pequena vila que foi erguida em um ponto estratégico em meio às rochas escuras cercadas por pinheiros desfolhados, onde a neve caía com menos força.
As pequenas cabanas de pedras eram cobertas de fuligem que subia pelos buracos de fumaça, feitos grosseiramente nas pedras mais finas no canto mais alto das cabanas onde geralmente ficava o cercado de pedras para as fogueiras, o resto do telhado era feito de chifres de animais enroscados uns nos outros e galhos de abetos recobertos com e couro e relva.
Éramos uma pequena comunidade, uma das poucas que ainda se mantinham naquela região. Os outros, mais espertos ou tolos demais, migraram para o sul para as proximidades das florestas vivas, locais que só os mais tolos ousavam se aproximar. Lendas diziam que naqueles lugares existem seres místicos, diferentes de nós humanos, seres que emanavam luz, mas que também podiam invocar as sombras e a morte para aqueles que ousassem tirar sua paz.
De tempos em tempos, as tribos se reuniam a fim de adentrar as florestas para caçar esses seres e os destruir para que pudéssemos ter o privilégio de caçar nas terras verdes, terras que ainda tinham as memórias da primavera, onde os animais eram fortes, bem alimentados e gordos, onde podíamos caçar e nos fartar com suas carnes e não tentar encontrar alguns animais magros e famintos da neve e torcer para que eles alimentassem toda a comunidade por pelo menos um dia. Quando tínhamos alimento, comíamos até as barrigas doerem, por medo de não encontrarmos mais nada, por medo daquela ser a última refeição.
Mas da última vez que as tribos se uniram para adentrar as florestas, os seres estavam a nossa espera. Foi um massacre, eu era jovem demais quando aquilo aconteceu, não havia nem duas luas que o primeiro sangue havia escorrido de mim, marcando-me como mulher.
Esperei que meu pai, o líder de nossa aldeia, voltasse para casa, mas tudo que restou dele foi o colar de presas de lobo que um dos guerreiros fez questão de trazer de volta, para que pudesse nomear meu irmão o novo líder. Ele já era um homem feito, só precisava arrumar uma esposa para ser nomeado o líder e assim o fez, mas como era o homem da casa, nos levou para viver com ele com sua nova mulher. Ela não gostava muito de mim por ser mais bela que ela, pelo menos assim dizia minha mãe.
Por ser o novo homem da casa, meu irmão teria que escolher um marido para mim e isso era algo que me fazia querer fugir, não queria me casar, não queria gerar filhos e deixar que eles morressem de fome, pois cada dia a neve ficava mais perigosa e a comida mais escassa.
Algumas luas após o massacre pelos povos das florestas, uma praga se abateu sobre os homens de nossa aldeia, a maioria não podia nem se levantar das peles de lobo, abatidos com febre e dores terríveis que nem as curandeiras vindas de outras tribos maiores podiam curar. A fome ficou ainda mais terrível, com meu irmão doente e sua esposa esperando um filho, me senti na obrigação de não os deixar morrer de fome, então peguei a única ferramenta que sabia usar, o machado, e parti para o sul em busca de algo para alimentar minha família.
Havia acabado de voltar da floresta congelada com lenha e galhos para a fogueira, tirei a neve presa sob as botas de couro de rena e corri para dento da cabana, levando comigo a pilha de lenha seca que havia escondido alguns dias atrás em uma pequena clareira, a fim de deixar a madeira secar. Uneia, a esposa de meu irmão Gris, estava sentada próxima ao fogo quase extinto da roda de pedras no fundo da cabana, ela havia tirado o casaco de pele, e estava apenas com a blusa fina de lã que havia recebido como presente de casamento. Suas costelas podiam ser vistas mesmo pela blusa, sua pele que outrora foi corada e bela, agora estava pálida e macilenta e seus olhos já não brilhavam mais. Do outro lado da cabana, Gris estava deitado em suas peles de dormir, vermelho de tanta febre e minha mãe cuidava dele, colocando tiras de couro molhadas em neve no rosto.
Aticei o fogo colocando lenha suficiente para aquecer toda a cabana, tirei o alforje do ombro, onde tinha uma boa quantidade de raízes comestíveis e dois galos silvestres já depenados e limpos, magros por causa do frio, mas poderia prepará-los em um ensopado. Uma das curandeiras de uma vila maior havia trazido um caldeirão de pedra polida como presente de casamento para Uneia e nos ensinado como usá-lo sobre o fogo para cozinhar a carne, tornando-a mais macia e fácil de comer. Coloquei o caldeirão pendurado no espeto de osso sobre o fogo e o enchi com água, depois usei as facas de caça de meu irmão para picar os galos em pedaços menores e as raízes e os coloquei dentro do caldeirão. Uneia, abatida demais para tentar me ajudar com os afazeres da casa, alisava a barriga que começava a despontar, olhando distraída para o nada.
- Trouxe comida - falei para ver se ela se animava.
- Hum... - ela murmurou e continuou olhando para o nada, sua expressão tristonha era algo que me dava ainda mais certeza de que não me casaria e não teria filhos tão cedo, ou talvez nunca.
- O que tem aí? - perguntou minha mãe aproximando-se do fogo.
- Trouxe algo para comer, não é muito, pois as raposas ficam pilhando as minhas armadilhas - falei observando a água começando a esquentar no caldeirão.
- Isso mal dá para alimentar a mim e a meu marido - resmungou Uneia olhando de lado o caldeirão.
- Não é obrigação de Selin trazer comida para dentro dessa cabana e mesmo assim ela faz, então não ouse reclamar! - Minha mãe já estava irritada pela fome e pelo estado de saúde de meu irmão, não ligou para o olhar maldoso de Uneia para ela e acariciou meus cabelos.
- Não se dê ao trabalho de responder, mãe, já não ligo mais para as implicâncias de Uneia - murmurei baixinho sentando perto da porta, minha mãe pegou um pente entre suas peles de dormir, desfez minha trança e começou a pentear meus cabelos.
- Já te contei que você é abençoada pelo sol? - Revirei os olhos quando ela perguntou isso, desfazendo alguns nós em meus cabelos. Ela já havia contado aquela história mais de cem vezes.
- Ainda não, mãe! - falei mesmo assim, gostava de ouvi-la contar.
- Você nasceu no último dia do outono, na hora em que as luzes de sol estavam desaparecendo por trás das montanhas vivas. Então, a última luz me iluminou na hora em que você estava nascendo e te deixou com a marca do fogo! - Ela sempre contava a história de forma diferente, mas o resultado era sempre o mesmo. - Aí você nasceu com os cabelos vermelhos da cor do sol poente. - Ela terminou de desembaraçar meu cabelo e me virou para ela, os olhos fixos nos meus e sorriu.
- Os olhos da loba e os cabelos do fogo - falei. Era por isso que Uneia tinha tanta inveja de mim, os caçadores da vila me desejavam por que eu era diferente das outras mulheres, a maioria tinha os cabelos escuros, algumas tinham cabelos da cor das folhas secas, mas apenas eu tinha os cabelos do sol.
- Isso! - Ela sorriu novamente, ficou de pé e foi até a fogueira vigiar o ensopado. Uneia ficou olhando-me com os lábios torcidos, mostrando os dentes para mim, fiquei tentada em lhe mostrar a língua, mas ela era a dona da casa, logo não podia desafiá-la.
Os dias se passavam cada vez mais devagar e as noites mais longas, lobos rondavam cada vez mais próximos a vila, esperando por nossas mortes, pela falta dos caçadores abatidos pela praga, muitas famílias pereceram de fome e frio, todos os dias as mulheres carregavam corpos para serem enterrados próximos ao rio e ficavam naquilo o dia inteiro, pois a terra congelada era dura demais, e precisava ser trabalhada o dia inteiro para abrirem as covas.
Minhas armadilhas voltavam com cada vez menos comida, já que sem caçadores, as mulheres agora as roubavam com tanta frequência quanto os animais selvagens. Uneia já estava com a barriga maior e parecia uma criança doente com a barriga pontuda e os ossos aparentes, as curandeiras diziam ser um menino, não sei se para animar Uneia, diziam que ele seria um grande guerreiro que libertaria o povo da fome e da doença, se é que iria sobrar algum povo até lá! - pensei.
Naquela tarde, quando percebi que meu irmão não levantaria mais da cama, resolvi que precisava fazer algo, ou todos nós morreríamos de fome em poucas luas. Peguei o machado e a lança de meu irmão e iria para o sul, caçar algum animal grande o suficiente para nos manter até o fim do inverno, se é que esse inverno teria um fim.
Sem que ninguém me visse, saí das peles de dormir de madrugada, o único som que podia ouvir eram os suspiros doloridos de meu irmão e os estômagos roncando deles. Vesti as calças de couro e as botas, o casaco de pele com capuz grosso de lã que fora de meu pai e saí de mansinho da cabana. Sabia que se dissesse o que pretendia fazer, minha mãe seria contra.
O machado e a lança eram pesados demais, então levei apenas o machado, que pelo menos sabia usar. Sabia que as florestas vivas ficavam a pelo menos duas luas de distância com um grupo grande, então uma pessoa só, sem muito peso, poderia chegar lá em metade do tempo, carregava comigo apenas uma bolsa de raízes e tiras de couro para que pudesse fazer armadilhas para caçar e ter o que comer na viagem.
A floresta de pinheiros escondia muitos abrigos para que eu pudesse passar as noites, então me mantinha próxima ao rio, pois sabia que se o seguisse, chegaria à floresta viva em breve. As noites eram congelantes do lado de fora das cabanas, tinha noção disso quando peguei as peles de lobo escondida para trazer comigo, se não fossem elas, não teria passado da primeira noite.
Consegui me manter segura e alimentada durante todos os dias de caminhada, embora sentisse dores por todo o corpo por causa do frio, não me abatia pelo cansaço, sabia que eles dependiam do que eu traria para casa e se não fosse por isso, talvez tivesse desistido no segundo dia quando a neve caiu forte durante a noite e tive que me esconder em uma toca de lobo para não morrer congelada.
Alcancei a floresta viva pouco antes da mudança da lua, pois passava os dias andando o mais rápido que podia, dormia tarde da noite e me levantava antes do sol nascer, tinha certeza do quanto a situação estava difícil quando notei que nem havia rastro das feras que temia encontrar no caminho.
Parei no limite da floresta congelada com a floresta viva do sul, temendo entrar ali e ser morta, mas se morresse, morreria tentando fazer a coisa certa, tentando cuidar de minha família, e não de fome encolhida perto das cinzas da fogueira.
Ao pisar no começo da floresta viva, para minha surpresa, a neve foi deixada para trás! Olhei incrédula as camadas de neve e gelo atrás de mim e as folhas secas que agora estavam sob meus pés, a brisa morna soprava em meu rosto e o cheiro que nunca havia sentido, mas que nunca esqueceria ficou preso em minhas narinas, era como a terra remexida da beirada dos rios e grama fresca. Tive que tirar boa parte das roupas, ou iria acabar cozinhando dentro delas, bem próxima de onde eu havia entrado, havia um rio não muito largo, de águas cristalinas. Caminhei até ele devagar, olhando apreensiva em volta, procurando por sinais de perigo ou pelos monstros de garras e presas longas e olhos cruéis que eram os donos dessas florestas, mas não via nada a não ser os raios do sol que banhavam a floresta, marcando-a com longas sombras e o canto de pássaros e do rio.
Tirei toda a roupa e entrei na água devagar, a última vez que havia tomado banho foi algumas luas atrás, quando todas as mulheres se juntaram para banhar os bebês.
Diferente do rio congelado, a água neste lugar era fresca e parecia acariciar minha pele. Soltei os cabelos e afundei na água, agradecendo por aquele presente. Próximo a margem do outro lado do rio, tinha um pequeno arbusto de folhas doces, folhas que as anciãs usavam para banhar as noivas antes da primeira noite com os maridos. Elas tinham um perfume suave e deixavam a pele macia. Arranquei algumas e as usei em mim, apreciando a sensação e o cheio doce que elas deixavam em minha pele.
Não havia me esquecido do meu objetivo, mas o rio foi muito tentador e estava há dias correndo para conseguir caçar algo para minha família, um banho era mais que merecido.
Saí da água em direção ao meu montinho de roupas, sem perceber que o perigo havia se aproximado tanto que não teria tempo de fugir, entre as árvores, bem próximo ao lugar onde eu havia deixado as roupas, um par de olhos cinzentos e brilhantes me observava. Tentei ignorar o medo que cresceu dentro de mim, não podia pegar o machado, pois a criatura estava perto dele, perto demais. Também não podia voltar para o rio, pois se tentasse atravessá-lo, poderia morrer afogada na parte mais funda. Duas escolhes cruéis, morrer pelas garras da criatura escondida pelas sombras, ou engolida pelo rio. Preferi a segunda opção, me virei para correr de volta ao rio, mas antes que pudesse entrar nele, um par de mãos prendeu meus braços. Comecei a gritar, o mais alto que podia, mas estava no território deles e não haveria ninguém que pudesse me salvar ali.
Mesmo tentando lutar, a criatura era forte demais, nem sequer cedeu quando lutei com todas as forças para me soltar de seu aperto. A criatura me virou para ela, dizendo coisas que eu não conseguia entender, mas estava com tanto medo que não queria olhar, não queria abrir os olhos. Ele segurou meu queixo e ficou parado em silêncio até que eu me arrisquei a abrir os olhos. Perdi o ar ao perceber que não se travava de um monstro, mas de uma criatura com aparência semelhante a humana, a diferença estava nos longos cabelos cor do sol do meio dia e orelhas longas, era bem mais alto que humanos também e não havia nenhum pelo em seu rosto.
- Consegue me entender? - disse ele na língua normal, para meu espanto. Fiz que sim com a cabeça, não conseguia desviar os olhos dele, de como era belo, os olhos eram da cor das folhas verdes das árvores ao nosso redor, ele não me soltou.
- Como se chama? - perguntou ele para mim.
- Ren [BC1], e você?
- Haalin. - Ele sorriu, tirando os cabelos molhados da frente do meu rosto. Só então percebi que ainda estava nua, tentei me soltar novamente, mas ele não permitiu. - Nunca vi uma humana como você, Ren. Você parece com os raios do sol, como uma luz com os olhos de céu. - Ele apertou meu corpo contra o dele, mas eu já não estava com medo, havia algo errado comigo, um calor em meu corpo e um estranho formigamento entre minhas coxas quando ele se dobrou sobre mim, passando a boca em meu pescoço até meus ombros, meu corpo respondeu a ele sem que eu mandasse, arqueando minhas costas enquanto ela deslizava suas mãos sobre meu corpo.
- Eu preciso ir...
- Não vai, você entrou em minha floresta, em meus domínios e só vai sair daqui até que eu permita.
- Minha família está morrendo de fome...
- E você veio até aqui para caçar? - Ele me afastou sem me soltar e ficou me encarando, acenei com a cabeça.
- Meu irmão está doente e não pode caçar, sua esposa está grávida e morrendo de fome junto com minha mãe, eu era a única que podia caçar por eles. - Haalin ficou me olhando por um tempo, então falou:
- Eu tiro a maldição, a praga que lançamos contra aqueles que ousaram invadir as florestas e mando os animais de volta para aquela região, se você ficar comigo essa noite.
- Como pode fazer isso?
- Sou o senhor dessas florestas, eu as protejo dos monstros que tentam destruí-las. - Estava diante da criatura que matou meu pai, dei um passo para trás, assustada demais para responder, mas se ele podia retirar a praga que havia caído sobre os homens, eles voltariam a caçar e as pessoas de nossa vila não morreriam de fome.
- Aceito sua oferta - falei sentindo meu coração pesar, mas sabia que era a única forma de salvar meu povo. Haalin então sorriu, mostrando as presas afiadas, mas que não me assustavam, ele me deitou no chão da floresta, as folhas macias e mornas sob meu corpo pareciam tentar me acalmar.
- Não precisa ficar nervosa, não vou te machucar! - disse ele apoiando-se nos braços sobre mim, sua boca tocou meu pescoço novamente e desceu entre meus seios nus até minha barriga, onde ele colocou a palma da mão, murmurando novamente palavras que não conseguia entender.
Tive medo quando ele tirou a roupa, revelando o corpo musculoso e belo, Haalin segurou meu corpo contra o seu, passando as mãos por minhas penas e dobrando meus joelhos quando colocou seu corpo junto ao meu, o senti me penetrar, não havia nada com que comparar aquela sensação, aquele prazer que tomou conta de mim enquanto ele se movia dentro de mim, enquanto sua boca estava contra a minha, como se fosse me devorar, porém sem me ferir, o suor quente escorria em meu corpo quando comecei a tremer sem sentir frio, quando tudo em mim parecia ter se destruído e criado de novo. Ouvia Uneia e meu irmão às vezes durante a noite, fazendo sons parecidos com o que eu fazia agora, porém duvidava que ela se sentisse tão bem quanto estava me sentindo agora, pois a única coisa que eu conseguia fazer era sorrir e tentar respirar normalmente, Uneia sempre ficava de cara azeda ao acordar de manhã. Enrolei os dedos nos cabelos de Haalin, desci minhas mãos por suas costas enquanto o puxava mais para mim, com medo de que aquilo acabasse.
Acordei no chão da floresta com o sol em meus olhos, deitada sobre a pele de lobo, minhas roupas estavam no chão perto de mim, mas não havia nem sinal de Haalin por parte alguma.
Sem pensar duas vezes me levantei e me vesti, voltaria imediatamente para casa, para ver se a praga havia desaparecido e os animais voltado, meu alforje estava pesado, quando olhei dentro percebi que havia alimentos, um presente de Haalin para que eu tivesse uma boa viagem. Dei uma última olhada para a floresta atrás de mim antes de partir, não sei o porquê, mas aquilo fez uma dor aparecer dentro de mim, queria ficar, mas precisava ir, então fiz um esforço e parti.
Durante os primeiros dias de viagem foi tudo normal, já esperava pelo frio cortante e pelas noites mal dormidas, mas depois de alguns dias, pouco antes de chegar à vila, comecei a me sentir mal e colocar para fora tudo que comia, minha cabeça doía e me sentia fraca demais. Cheguei na cabana naquele mesmo dia pouco depois de anoitecer, olhei para dentro da cabana aquecida, com pilhas de lenha recém cortada e carne assando sobre a fogueira, meu irmão, Uneia e minha mãe estavam em volta da comida, pareciam todos bem.
Eles me receberam desconfiados, pois havia passado muito tempo fora, contei que havia saído para caçar animais grande e me perdi muito longe nas florestas e que fiquei presa em uma caverna depois de uma nevasca, eles aceitaram bem minha mentira, pois estava magra e realmente parecia estar fraca. Meu irmão contou como alguns dias atrás todos os homens que ainda estavam doentes acordaram saudáveis e fortes e as caças começaram a voltar para essa região, Haalin cumpriu sua palavra e eu nunca teria chance de agradecê-lo.
Depois de comermos bastante, saí da cabana com minha mãe, fomos até o rio pegar água e nos limpar, acabei vomitando a carne que tinha comido, fazendo com que minha mãe desconfiasse de mim.
- Você esteve com um homem sem estar casada, Ren? - Era impossível mentir para ela, meu pai sempre dizia que era mais fácil esconder carne de um lobo na neve do que algo de minha mãe, então contei a ela tudo que havia acontecido na floresta. Ela me olhava com misto de espanto e pena quando terminei de contar, então me abraçou forte.
- Se contarmos o que aconteceu, eles vão caçar o monstro! - disse ela.
- Não! Não pode contar! - Estava com medo de que fizessem mal a Haalin.
- Mas Ren, você está esperando um filho dele! Todos te olharão errado quando perceberem isso!
- O que podemos fazer? - perguntei.
- Teremos que arrumar um marido para você antes da mudança da lua - disse ela como se já tivesse decidido, a ideia de outra pessoa me tocar fez meu estômago revirar, não queria me deitar com outro homem, nenhum, mesmo que isso me tornasse impura.
- Não, isso eu não quero. - Ela pareceu compreender meu olhar.
- A única coisa que podemos dizer para te proteger é que você foi atacada por caçadores de outra aldeia e que ficou com vergonha de contar, assim você será protegida pelo líder da vila, que é seu irmão, e cuidará de seu filho sozinha quando ele nascer. Não irei contar sobre Haalin para ninguém, afinal, se não fosse isso, todos nós morreríamos de fome. - Fiz que sim com a cabeça e a abracei, agradecendo por sua sabedoria. Naquela noite enquanto dormia, sonhei com Haalin e com a floresta viva e tive certeza de que não iria querer que ninguém mais me tocasse.
Com o passar do tempo, minha barriga foi crescendo, o povo havia aceitado a história de que havia sido forçada por caçadores de outras vilas que perambulavam por nossas florestas e começaram a vigiar para que eles não invadissem novamente. Muitas mulheres me traziam presentes que me ajudariam com o bebê, já que as mulheres que eram violadas antes do casamento contra sua vontade eram protegidas pelo líder, muitos dos presentes Uneia usava em seu bebê recém-nascido, eu não me importava, ficava grata por dividir as coisas com ela já que eram presentes ganhados por uma mentira. Minha mãe mandava que eu os aceitasse sem me sentir mal, pois se não fosse por mim, elas não estariam mais vivas a essa altura.
Em uma noite que o frio não estava tão intenso, saí de casa e fui até o rio congelado para beber água, a barriga grande pesava e me impedia de ir até a floresta catar lenha e pinhas com as outras mulheres, então ficava o mais perto de casa que podia. Estava abaixada tomando água quando vi algo brilhando do outro lado do rio, um par de olhos verdes e brilhantes na escuridão. Ele ficou parado me observando do outro lado do rio, era Haalin, parado no escuro me observando, tentei não chorar quando o vi se aproximar, mas não consegui. Ele saltou facilmente sobre o rio e ficou ao meu lado, sem aviso o abracei e apertei o máximo que pude.
- Não posso ficar muito tempo, se a verem comigo saberão a verdade! - Ele segurou meu queixo e beijou minha testa.
- Por que se arriscou? Vir até aqui? Eu menti para que eles não te caçassem! - murmurei.
- Yellen, vai chamá-la de Yellen! - disse ele tocando minha barriga com as pontas dos dedos.
- Yellen...
- Libertadora. - Ele sorriu e me beijou antes de desaparecer em meio a neve. Depois daquela noite, todas as noites ia até o rio para ver se ele voltava, mas nunca mais o vi ali.
Era o dia mais frio da minha vida quando acordei de madrugada com dores muito fortes em minhas costas e quadris, tentei mudar de posição e voltar a dormir, mas até respirar estava difícil. Minha mãe e Uneia acordaram com meus gritos, mas foi Gris que correu até a curandeira para avisar que o bebê estava nascendo.
A dor era terrível, não sabia se Uneia havia sentido dor semelhante, pois ela não gritava como eu quando Nime nasceu. Minha mãe não saía do meu lado, ela ficou ajoelhada para que eu pudesse sentar sobre seus joelhos e facilitar o trabalho da curandeira, mas a cada dor que vinha eu me sentia mais e mais fraca.
- Se desistir agora, esse bebê não vai ver a luz do dia - disse a Curandeira ao ver que eu já não tinha mais força. Uneia entregou Nime para Gris e o mandou sair da cabana, ficando por perto para ajudar a curandeira, tentando me manter acordada com provocações, no fim das contas, ela queria me ajudar e não me odiava tanto assim.
O sol já estava nascendo no horizonte quando com as últimas forças, dei um grito e a criança saiu, a luz do sol entrou pela fresta da casca que protegia a entrada da cabana, iluminando o pequeno ser nas mãos da curandeira. Ela olhava apavorada a criança nas mãos, minha mãe tomou o bebê de suas mãos e começou a explicar rapidamente o que havia acontecido, Uneia parecia tão apavorada quanto a curandeira, mas agora tudo que via estava ficando distante e escuro. Minha mãe limpou o bebê e a trouxe para mim sob protestos da curandeira, que se calou com o olhar cortante de Uneia. A bebê tinha a pele rosada e brilhante, os cabelos ralos eram do mesmo dourado que os cabelos de Haalin, minha voz parecia distante quando consegui fazê-la sair.
- Yellen. - E aquele foi meu último suspiro, o último rosto que vi foi o belo rosto da minha filha que não era humana.
Yellen:
Era fácil para mim afastar-me da vila durante o dia, corria como o vento e desaparecia em meio as árvores congeladas. Vovó Riena sempre me mandava colocar o casaco antes de sair, mas não sentia o frio da mesma forma, porém de qualquer maneira tinha que andar com um capuz de pele cobrindo a cabeça, minha avó dizia que era para espantar os maus espíritos, mas toda vez que íamos nos banhar no rio, eu tinha que me afastar das outras moças da vila para tirá-lo da cabeça. Elas não tinham orelhas como as minhas, que eram pontudas e longas como as orelhas das raposas, minha pele também era mais bela, às vezes quando o sol estava alto, eu sentia que podia brilhar como ele, por isso também só podia sair ao entardecer.
Havia saído naquela tarde da cabana para buscar lenha, mas ao pisar na floresta, tirei as botas e comecei a correr. Ninguém corria como eu, muitas vezes corria com os lobos do outro lado do rio, eles nunca me atacaram, sempre me acompanhavam até o anoitecer, nunca contei isso para vovó, claro! Ela nunca mais permitiria que eu saísse se soubesse. Os lobos as vezes roubavam a carne e atacavam as pessoas da vila quando se afastavam das trilhas de caça, mas nunca atacaram a mim, muitas vezes me ajudavam a encontrar raízes e castanhas. Eu evitava comer a carne que tio Gris caçava, não gostava de seu sabor, preferia as raízes e alguns frutos que encontrava na floresta e estava sempre satisfeita com pouco, quase nunca sentia fome.
O tempo parecia correr para o mundo a minha volta, os dias eram curtos demais e tudo parecia se gastar rapidamente ao meu redor. Riena ficava cada vez mais velha, já não conseguia enxergar direito e mal saía da cabana, apenas quando a tirava de lá para tomar sol. Uneia também já aparentava como uma anciã e Nime havia se casado com uma jovem trazida de outra aldeia e se preparava para ser o líder no lugar de Gris. Porém o tempo não passava para mim. Eu tinha a mesma aparência desde o momento que o primeiro sangue desceu e que fui marcada com as marcas da lua para mostrar que já era uma mulher, porém nenhum homem vinha até mim, nenhum vinha a Gris para me tomar como esposa, não que eu os quisesse, mas assim como eu, muitos pareciam notar o quanto eu era diferente.
O dia em que Riena finalmente foi embora de seu corpo, quando ele já estava velho demais para manter sua alma, ela se libertou com um sorriso no rosto enquanto dormia. Suas últimas palavras para mim naquele dia antes que fossemos dormir foi: “Yellen, vá embora, vá para a floresta viva, lá é seu lugar!”. Enquanto carregávamos seu corpo pelas margens do rio até o local sagrado onde eram enterrados os mortos, todos me observavam. Havia esquecido que não podia sair durante o dia, pois minha pele tinha um brilho como o do sol.
Eles não me deixaram enterrar Riena.
Os homens e mulheres da vila vieram com paus e pedras e começaram a gritar, me mandar embora, dizer para que eu nunca mais voltasse, mas eu não queria ir, ali era meu lar. Agarrei-me ao braço de Nime o mais forte que pude, mas ele me afastou e sua mulher começou a me bater. Não que ela realmente conseguisse me machucar com as mãos frágeis. Mas após me acertarem com um pedaço de madeira, soltei um rugido como o das leoas das montanhas e todos começaram a se afastar, assustados, acuados.
- Ela é um mostro, um dos demônios da floresta viva! - gritou uma das mulheres que tomava banho comigo no rio quando éramos crianças. A esposa de Nime se aproximou novamente e tirou meu capuz, mostrando minhas orelhas. Então todos queriam me atacar, queriam me matar por ser apenas diferente.
- Nunca fiz mal a nenhum de vocês! - gritei. - Até mesmo agora quando tentam me ferir eu não revido! Só me defendo!
- Vá embora, animal! - urrou Nime segurando sua lança. O olhei incrédula, depois de todos aqueles anos, depois de todas as brincadeiras e sorrisos. Ele ficaria ao lado de sua esposa, claro.
Novamente eles começaram a me atacar para que eu me afastasse, mas das florestas congeladas os lobos surgiram em bando, uma alcateia inteira vindo a meu favor. Eles começaram a rosnar e mostrar os dentes, seus pelos prateados e olhos amarelos brilhando contra o sol eram apavorantes para todos, menos para mim.
- Eu sinto muito, vovó! - falei uma última vez com ela, esperando que onde quer que ela tenha ido, não tivesse visto o que mais temia acontecer. Então virei as costas para eles, que ainda atiravam paus e pedras contra nós e corri. Corri como o vento acompanhando os lobos floresta adentro.
Enquanto corria, me libertava das roupas e de tudo que me fazia semelhante a eles, os verdadeiros monstros, não me importava de ficar sem as roupas, o vento me vestia, a neve fazia parte de mim o sol me mostrava o quanto era livre. Depois de um tempo, até mesmo os lobos ficaram para trás, sem eu ter ao menos agradecido a eles o socorro. Parei em uma clareira próxima a um rio de margens congeladas e me sentei, não estava ofegante ou cansada, apenas queria me sentar e ouvir. Estava muito, muito longe do campo dos mortos e mesmo assim podia ouvir os homens trabalhando com as lanças para cavar o descanso de Riena.
Soltei os cabelos da trança e os joguei para frente, para que o vento os levasse, os fizesse dançar. Ouvi passos leves perto de mim, tão perto que não sabia como alguém havia se aproximado tanto sem que eu percebesse, fiquei de pé num rápido movimento e olhei na direção do som, mostrando os dentes para quem quer que tivesse vindo atrás de mim. Olhos como as folhas me encaravam, olhos iguais aos meus que via no reflexo do rio.
- Yellen. - Ele deu um passo e num instante estava em meu lado, jogando um manto ao meu redor. Ele limpou o ferimento que uma pedrada havia feito em meu ombro e sorriu. Em todos os anos que vivi entre os humanos, nunca havia visto alguém igual a mim.
- Quem é você? - perguntei baixinho prendendo o manto em volta de mim.
- Alguém que pode te dar um lar, um lar de verdade, longe daqueles monstros. - Ele estendeu a mão para mim, e mesmo sem conhecê-lo, eu lhe dei a mão, pois era o ser que tinha uma luz tão bela que emanava bondade.
- Como é seu nome? - perguntei enquanto andávamos devagar pela neve.
- Haalin Ascardian, o líder das florestas vivas. - Ele sorriu para mim, então começou a correr e eu o segui, não importava para onde ele fosse, eu o seguiria.
Despedida de Farahdox
- De novo, Ewren! - ordenou Farahdox, meu pai, voltando à posição inicial com a espada dourada na lateral do corpo - Você precisa ser muito habilidoso para ser digno de ser um rei um dia! - Ele era sempre rigoroso quando Orion estava perto. Encarei seus olhos azuis e tirei o cabelo que caiu em minha testa suada, Yurin havia se afastado para observar o treino, escondendo sua própria espada debaixo da mesa de água. Orion não gostava de ver mulheres treinando... Pelo que meu pai dizia, pra Orion, mulheres treinadas eram oponentes fortes demais.
Avancei novamente com a espada em punho, dando golpes firmes contra a espada do capitão da guarda, tentando uma brecha em sua defesa, mas meu pai era difícil de ganhar, ele jamais me deixaria vencer apenas para que me sentisse melhor, ele queria o melhor de mim e eu não o decepcionaria.
- Ainda precisa melhorar muito! - Orion grunhiu quando com um golpe, meu pai me desarmou, ele me deu um sorriso debochado ao passar por nós em direção aos portões do salão principal. Senti vontade de lhe retrucar “tente fazer melhor então”, mas não podia dar motivos a ele, precisava parecer sempre obediente e distante. Adoraria ver a cara daquele velho nojento se soubesse que eu na verdade era filho de sua esposa. Desgraçado chifrudo! Meu pai não parecia feliz com a presença dele, mas conseguia disfarçar com uma expressão fria e contida no rosto.
- Sim, vovô, farei meu melhor! - falei por causa do olhar carregado de meu pai. Odiava ter que ser obediente àquele idiota. Odiava ver o olhar sofrido de minha mãe toda vez que minha irmã Arin tinha que fingir ser uma elfa apaixonada e se aproximar de Farahdox, tocá-lo.
- Não tem muito o que fazer num caso desses. - Ele lançou um olhar enojado para meu pai, teria lhe enfiado a espada no meio da barriga se Arin não tivesse aparecido naquele instante, passando os braços ao redor de mim e me dando um beijo no rosto.
- Meu filho será o melhor, um dia! - Ela sorriu para mim, um sorriso que dizia muito: “aguente”.
Ela me soltou e acompanhou o príncipe para fora dali, para que continuássemos o treinamento. Yurin levantou num pulo e puxou sua espada debaixo da mesa.
- Ele é um velho bundão! - resmungou.
- Olha a boca, Yurin! Velhos bundões podem ouvir bem demais! - papai a repreendeu com deboche que me fez rir. - Ewren, mais tarde vá ao templo, Nellena não voltará esse fim de semana da academia de Ciartes, Lupine deve estar muito sozinha.
- Ela nem sente, pai! Não se passaram nem cinco minutos lá dentro! Não é como se ela fosse perceber o tempo como nós! - Yurin resmungou.
- Não diga isso! - briguei - Ela sabe sobre a passagem do tempo, certamente conta os minutos para ver quanto tempo aqui fora levamos para ir vê-la! - Yurin revirou os olhos e me atacou novamente com sua espada fina.
- Parece um bobo apaixonado! - ela zombou mostrando a língua. Senti meu rosto queimar e avancei a derrubando com uma rasteira, colocando a espada sobre seu peito.
- Lupine é minha amiga! - repliquei - Ela não tem culpa por estar lá! E ela é uma sacerdotisa. - Estendi a mão para Yurin se levantar, ela pegou minha mão e se esticou. Papai apenas assentiu.
- Vou verificar a guarda. Vocês dois, para dentro! - Ele esfregou nossas cabeças num carinho e foi em direção à guarda do templo que vinha até nós. Yurin me deu um empurrão:
- Aposto que chego no quarto antes de você! - Mal terminou de falar e disparou para dentro, deixando-me para trás.
- Volte aqui, peste! - gritei e a segui.
Passamos a tarde brincando na biblioteca até sermos pegos por Noliah, o mago conselheiro e expulsos de lá. Depois do jantar, esperei até escurecer totalmente, até Yurin estar dormindo para roubar uma torta da cozinha e ir até o templo. Não podia tentar levar doces para Lupine com Yurin junto, as duas disputariam a torta até a morte. Certamente Lupine venceria.
Parecia que alguém desconfiou do que eu faria! A cozinha estava trancada e um guarda sentado na porta, vigiando os corredores como um cão perdigueiro sem comida. Bufei frustrado, teria que levar um bolo no outro dia para aquela louca.
Faltava pouco para as duas da manhã quando criei coragem de ir até Lupine sem comida, pronto para ser a refeição caso ela se irritasse pela ausência dos doces.
Estava caminhando pelos corredores longos que levavam ao templo de Dimesya, por alguma razão sentia que não devia deixar de ir até lá aquela noite, mesmo que não tivesse conseguido guloseimas para ela e corresse o risco de ela morder meu braço para compensar a falta de açúcar. A garota estava tão triste da última vez que falei com ela dias atrás... Dias para nós, para ela, poucos minutos. Yurin estava dormindo e não a acordaria para me acompanhar até o templo. Mayra havia finalmente contado sobre a maldição para Lupine e lhe dito sobre a necessidade de não sair do templo, se ela conseguisse completar a idade da lua cheia dentro do templo... A maldição não seria passada adiante, assim seria quebrada.
Virei no final do corredor que ligava o templo ao castelo, a lua cheia brilhava entre as longas cortinas translúcidas azuis, não havia ninguém patrulhando aquela área do castelo e isso não estava certo, Nicole e Varlyn, as duas guardas que protegiam a entrada do templo não estavam ali.
- Droga... - Olhei em volta preocupado, procurando por qualquer sinal de pessoas ali e apressei o passo em direção às portas, foi então que eu ouvi um grunhido alucinado e uma pancada. Eu me escondi nas sombras das pilastras e me aproximei com cuidado. Ódio primitivo passou por meu corpo ao ver a silhueta na lateral do templo, tentando entrar pela porta das criadas, Orion esmurrava a porta gritando por Lupine.
- O que faz aqui? O senhor sabe que ela não pode receber visitas de homens, vovô - falei grosseiramente, Orion virou os olhos em minha direção, o mesmo olhar de nojo de sempre.
- Vai embora daqui, garoto, - ele rosnou - se eu não posso estar aqui, você muito menos.
- Lupine é minha amiga - respondi firme, não o deixaria me intimidar.
- Então você não é um homem, não existe amizade entre homens e mulheres - ele cuspiu em resposta, não consegui evitar que uma risada debochada escapasse de mim. Precisava distraí-lo e tirá-lo dali o quanto antes. Ele me encarava com os olhos escuros faiscando, o cabelo louro pálido estava bagunçado e a blusa aberta, assim como a braguilha da calça, ele não tinha ido ali para buscar conselhos com uma sacerdotisa.
- Você não tem amigos porque é um idiota. Mulher nenhuma o veria com confiança suficiente para ser sua amiga, ao que parece, homens também não. - retruquei irritado, tocando a espada na lateral do meu corpo. Os olhos de Orion seguiram minha mão e ele rosnou e se afastou da porta, vindo em minha direção mais rápido do que imaginei ser possível.
- Quem você pensa que é? - Ele puxou uma lâmina da calça. - Acha que pode me desafiar? Você não passa de um moleque insolente! Não é porque é filho de Arin que pode falar comigo como se fosse alguém importante! Se dependesse de mim... - Ele se aproximou suficiente para respiramos o mesmo ar. - Você sequer existiria, porque eu teria matado aquele maldito do seu pai!
Não consegui segurar os instintos, saquei a espada, desferindo um golpe contra ele, mas Orion saltou para trás e urrou, a lâmina de minha espada rasgou seu ombro, o sangue verteu manchando a blusa e pingando no pátio.
- Nunca mais fale de Farahdox assim! - rosnei preparando outro ataque, mas ele saltou rápido demais em minha direção, pegando-me pelo pescoço e me acertando contra uma das pilastras. O impacto foi tão forte que eu deixei a espada cair.
- Ou o quê? Vai chamar ele para ser macho por você? - Ele riu com escárnio e apertou minha garganta com mais força, tentei chutá-lo, mas não consegui mover as pernas, minhas costas doíam demais. - Arin tem uma filha... Posso usar Yurin para conseguir casamentos políticos, você é descartável para nós! - Dizendo isso, começou a apertar com mais força meu pescoço. Seria isso, então? Morreria para aquele porco sem ao menos ver a expressão em seu rosto quando soubesse quem eu realmente era?
Minha visão começou a escurecer enquanto aquela dor queimava minha garganta, tentava colocar ar para dentro, mas não adiantava. Num segundo estava nas mãos dele, no outro caí no chão tossindo e engolindo ar desesperadamente. Orion estava no chão tentando se levantar, cuspindo sangue. Braços quentes me envolveram, um soluço, seguido de um choramingo com meu nome.
- Mãe... Está tudo bem! - falei ao conseguir ver o rosto de Eirien lívido, lágrimas escorriam por seu rosto.
- Ewren! - Ela me abraçou com mais força beijou o topo de minha cabeça.
- Você... - Orion olhava espantado para ela. - Esse... lhe chamou do quê? Está alucinando? - Ele se ergueu incrédulo, com as mãos tremendo.
- Ewren e Yurin são meus filhos e de Farahdox! - Ela se levantou sem me soltar. - São frutos de um amor de verdade. Meus filhos. - Ela rosnou. - E você não tem direito de tocar neles, irmão. - Seus olhos estavam dourados, irados! Os cabelos também, e marcas douradas cobriam seus braços.
- Traição... Você está morta, vadia! - Orion gritou e correu. Ele iria contar ao rei.
- Mãe! Vá atrás dele! - falei rouco - Se ele contar... - Tossi mais uma vez. A porta do templo se abriu e Lupine correu para fora. Ela veio até mim, tocou meu pescoço e uma luz morna verde começou a pulsar de seu corpo para mim.
- Me desculpe, Eirien! - ela pediu com lágrimas nos olhos. - Tive medo de abrir a porta...
- Você nos avisou, eu agradeço, Lupine. Cuide dele! - Mamãe pegou minha espada no chão e ainda com os olhos brilhando correu para dentro do castelo atrás de Orion. Observei minha mãe desaparecer pelo corredor aberto e voltei os olhos para Lupine, suas marcas verdes brilhavam tanto que iluminavam o chão ao nosso redor.
- Sinto muito! Não sair para te ajudar...
- Nem deveria, ele podia ter te atacado - retruquei sentindo menos dor na garganta.
- Você é só uma criança, Ewren! - ela esbravejou.
- Olha quem fala! Já tenho quatorze anos! Não sou tão mais jovem que você assim!
- Tá bem! Fica parado e deixa eu acabar! - ela resmungou sem tirar os olhos de meu pescoço. - Obrigada, por impedi-lo de entrar.
Ela me encarou e finalizou a cura. Dei de ombros e me levantei, tinha que ir atrás de minha mãe o mais rápido possível.
- Volte para o templo e tranque as portas com magia, mais tarde eu volto! - avisei. Lupine apertou minha mão com força e soluçou.
- Promete que volta? - Seus olhos estavam tão tristes, podia sentir o cheiro de seu medo.
- Prometo. Não deixaria minha amiga sozinha! - afirmei. Mesmo mais jovem, já era um palmo maior que ela. Soltei sua mão e me virei para correr de volta ao castelo.
- Ewren... - Lupine chamou, olhei por cima do ombro, ela estava um pouco encolhida, os olhos amendoados me lembravam olhos de uma corça assustada, sua pele estava um pouco pálida contra lua e os cabelos castanhos cacheados presos por aquela tiara de prata, mais o vestido branco das sacerdotisas... Nada daquilo combinava com o que ela representava. Um espírito livre aprisionado, era o que parecia.
- O quê?
- Me traz um bolo quando voltar? - Podia ter caído para trás com aquilo, mas ri e assenti, Lupine sorriu e correu de volta para o templo, eu praticamente voei pelos corredores escuros para dentro do castelo. Os berros de Nalrevi podiam ser ouvidos do pátio. Aquilo não estava nada bom! Quase em frente as portas escancaradas da sala do trono, Farahdox me alcançou.
- Meu filho, o que é isso? - Ele franziu o cenho para os gritos de Orion
- Ele sabe. - Não precisei dizer mais nada. Farah soltou um rosnado assustador e invadiu a sala já com a espada em punho. A punição para traição era a morte. Ele jamais permitiria que tocassem em um fio de cabelo de Eirien.
- Você não é digna! - Nalrevi se fez ser ouvido entre os berros de Orion. - Vai pagar com a vida! Você e aquelas suas crias bastardas!
Entrei na sala para ver o que estava acontecendo lá, apenas para presenciar a cena mais chocante de minha vida. Minha mãe estava de pé sobre os braços do trono, com sua espada cravada no peito do rei. Os guardas na sala se mantinham afastados, como se não estivessem vendo nada daquilo, afinal, eram subordinados de Farah. Nalrevi cuspia sangue e Orion gritava preso por meu pai no chão, ele amaldiçoava minha mãe, mas mesmo com seus gritos, pude ouvir as últimas palavras dela para o rei.
- Espero que sua alma seja destruída em Mogyin. - Ela girou a espada em seu peito antes de arrancá-la. O rei morreu instantes depois com a mão sobre a ferida e a boca aberta vertendo sangue. Orion se debateu e soltou-se do aperto de Farahdox, ele saltou para pegar Eirien, porém antes de tocá-la, a espada de Farah desceu impiedosa, arrancando sua cabeça num único golpe. Os dois ficaram se encarando por um tempo, alívio e medo podia ser visto em seus rostos.
- Isso vai ser um problema, alteza... Ou melhor dizendo, majestade? - Noliah, o mago boticário e conselheiro do rei entrou na sala acompanhado por Arin de olhos arregalados.
- Mãe... - Ela correu para os braços de Eirien e Farah rosnou, indo na direção de Noliah.
- Não é necessário. - Ele ergueu a palma, num único movimento, Farahdox estava preso ao chão por um lacre de magia. - Mas creio que testemunhas disso não serão cuidadosas com as línguas. O mago suspirou, um olhar ao redor para os quatro guardas que agora o observavam apreensivo, suas marcas vermelhas se acenderam e mal pude registrar quando os guardas na sala caíram com as gargantas cortadas no chão.
- Noliah! - Arin gritou.
- Ele tem razão, filha. - Eirien encarou Noliah que fez um breve aceno em resposta. Meu pai o encarou assustado e então seu corpo se moveu, livre da magia. - O que vamos fazer?
- Farahdox vai levar a culpa - Noliah comentou como se tivesse dito a coisa mais natural do mundo. - Podem dizer que ele se desentendeu com o príncipe e o rei tentou intervir. Num acesso de raiva, matou os dois, os guardas que tentaram impedir foram mortos também.
- Ele vai ser morto por traição! - Eirien gritou - Eu no máximo seria banida! - Ela agarrou o braço de papai, ele olhava para o nada, sabia que estava calculando as possibilidades, se sacrificar por ela, por nós.
- E deixaria quem no trono? Ruthar? Ele não é muito bom em governar sequer as terrar do Norte. Arin? Com dois filhos do assassino do príncipe... Yurin ou Ewren? - Ele me olhou, mas não com desprezo, apenas analisando.
- O que acha que devemos fazer, Noliah? - O mago olhou para Arin ao lado de minha mãe e suspirou.
- Se torne rainha, assuma Amantia, e como forma de mostrar benevolência, exile aquele que serviu por tantos anos sua casa! Mostre clemência com os que a servem e prove ao povo que será melhor que Nalrevi. Ele não era muito bem aceito, de qualquer forma.
Exílio... Ele estava propondo que meu pai fosse banido.
- É a melhor maneira, Eirien! - meu pai por fim falou. Ela negou, mas ele segurou seu rosto e a beijou. - Não é para sempre.
- Tudo isso... E mesmo assim não vamos ficar juntos. - Ela chorou o abraçando. Meu coração doía, eu jamais conseguiria fazer algo assim, deixar alguém partir.
- Ewren e Yurin vão ser perseguidos por isso. - Arin falou aproximando-se de mim e passando os braços ao meu redor.
- Não deixarei que isso aconteça. - Noliah puxou seu cajado e o bateu no chão uma vez. Uma aura vermelha nos circulou, em seguida ele se aproximou de Arin e tocou sua testa, de uma maneira carinhosa demais, reparei. - É uma boa contadora de histórias, princesa. - Ele sorriu, então ergueu o cajado e a luz vermelha irrompeu, me deixando cego por longos instantes.
Quando consegui enxergar novamente, Arin encarava Noliah perplexa, Farah e Eirien também.
- O que... - comecei, Arin deu um breve sorriso.
- Ele modificou a memória de todos que sabiam sobre meu casamento com Farah e sobre o nascimento de vocês... Transformou as memórias deles para que pensem que Ewren é filho de um Major amigo meu que morreu durante aquela batalha com os gigantes, quatorze anos atrás! Muito conveniente! - Ela lançou um olhar feio para Noliah, o mago apenas deu um risinho.
- Não disse nada sobre Yurin... - Eirien observava o mago com cautela.
- Acredito que o pai não vai querer partir só. - Noliah pigarreou. Farahdox suspirou e assentiu.
- Vou levá-la comigo. Hisana poderá dar um treinamento incrível a ela também - ele afirmou. Meu coração se apertou ainda mais, sem meu pai, sem Yurin...
- Então é isso? - Noliah quis saber, ele girava seu cajado na mão inquieto. - Se vai levar a menina, precisa sair imediatamente, talvez os aliados de Nalrevi possam pedir sua morte caso a rainha deixe o julgamento e a sentença para o nascer do sol.
- Então o faremos agora - Farahdox falou, mas mamãe não soltava seu braço. A sala estava cheia de sangue, o cheiro começava a me deixar enjoado. Arin estava com os olhos marejados ao observar o nervosismo de minha mãe e eu... Aquilo era culpa minha. Eu não devia tê-la chamado de mãe. Ela ia perder o amor de sua vida porque eu falei algo errado na hora errada.
- Vá buscar Yurin, Ewren. Não lhe diga nada. - Ainda em choque, me virei e disparei pelos corredores e escadarias até o corredor leste do terceiro andar. No quarto ao lado do meu, decorado de verde e dourado, Yurin dormia toda espalhada em sua cama, parecia tão tranquila dormindo... E eu iria estragar aquilo também.
- Ririn - chamei, sentando-me na borda da cama e tirando seus cabelos negros da frente do rosto. - Ririn! - Sacudi seu braço e ela enfim acordou.
- O que foi, seu chato? - ela resmungou me chutando da cama.
- Precisamos ir. Papai está nos esperando lá embaixo! - Eu me levantei num pulo e a puxei da cama. Yurin, mesmo sonolenta ainda de camisola começou a me seguir.
- O que é? - ela perguntou coçando os olhos.
- Já vai saber - resmunguei. O nó estava cada vez mais apertado em minha garganta conforme nos aproximávamos da sala do trono. Algo quente escorreu por meu rosto e Yurin estancou, puxando-me para me encarar.
- Ewren! Por que está chorando? - Ela limpou minhas lágrimas, a puxei para um abraço e deixei que o choro saísse. Homens não deviam chorar, mas por ela valia a pena.
- Eu amo você! É minha pessoa favorita no mundo e quero que saiba que cada minuto a partir de agora, estarei pensando em você e que nem por um momento vou deixar de tentar arrumar uma maneira de lhe trazer de volta! - Não podia evitar me despedir.
- Ewren, está me assustando! - ela choramingou. A levei para dentro da sala sem mais explicações, Noliah já estava abrindo um portal, podia ver uma noite escura infinita adornada por sete luas do outro lado da magia.
Mamãe se adiantou até nós e agarrou Yurin, começou a lhe falar várias coisas, fazendo minha gêmea começar a chorar. Farah veio até mim e segurou meu rosto firmemente.
- Ewren. Tome conta de sua mãe, não deixe que nada de mal aconteça a ela, se cuide e, por favor, cuide de Lupine. - Ele suspirou - Você vai ser um guerreiro incrível um dia. Quando nos vermos novamente, espero que isso... Que esse peso não te transforme em alguém triste. Quero que seja feliz!
- Vou cuidar de tudo, pai. - Fiz uma breve reverência engolindo aquela tristeza. Ele sorriu e me deu dois tapinhas no ombro, desembainhou sua espada e a entregou para mim.
- Para que se lembre de sua promessa. - Fechei os dedos ao redor do punho da arma e agradeci. Farah deu um abraço em Arin e ela se aproximou de mim quando ele voltou até mamãe e Yurin que chorava, ele deu um beijo nela e sorriu, prometendo que um dia estaria de volta.
- O portal está aberto - Noliah anunciou. Do outro lado, um castelo de ossos podia ser visto, o palácio de Hisana. - A rainha vai os ajudar num primeiro momento - ele explicou. Farahdox assentiu, então pegou a mão de Yurin e me deu um último adeus silencioso antes de entrar no portal. Yurin o seguiu, mas parou antes de entrar e se virou para mim:
- Não esqueça de sua promessa! - Ela me apontou um dedo, em seguida mergulhou na luz vermelha e desapareceu.
Silêncio.
Um zumbido no silêncio absoluto.
- É... Isso vai virar um pandemônio!
- É melhor que ele não se lembre também, mãe! - Arin apontou para mim, mamãe estava olhando para o local que o portal havia desaparecido e assentiu. Noliah suspirou e se aproximou de mim, tentei escapulir, mas estava preso por magia. O mago tocou minha testa e o senti invadir por minhas lembranças.
“Por favor! Não me faça esquecer!”
“Sinto muito, não há garantias que você não vá deixar isso escapar!” - Ele respondeu em minha mente.
“Por favor! Eu fiz uma promessa!” - Mesmo em minha mente, podia ver os olhos verdes do mago me encarando.
“Finja que esqueceu, Arin é sua mãe agora. Não conhece seu pai, não tem irmã.” - Então ele me soltou e eu caí no chão exausto, como se tivesse passado o dia treinando.
- Está feito - ele disse. - Melhor descansarem, ao acordarmos, teremos um longo dia, com funerais, coroações e mudanças! - Parecia que nada o abalava. - Vou avisar Aristes.
O mago saiu para o corredor, deixando Arin e Eirien abraçadas em frente ao trono. Eu me levantei para ir até elas, mas ao invés disso, corri para o corredor para falar com o mago e fiquei em choque ao ver Aristes bem ali, com as roupas que Noliah vestia no segundo anterior.
- Noliah... - Engasguei. Aristes não pareceu abalado quando me percebeu ali.
- Noliah é apenas uma de minhas faces, Ewren. - O mago metamorfo me encarou, os olhos amarelos faiscando.
- Impossível! Já os vi no mesmo lugar ao mesmo tempo! - Aristes riu e começou a andar, eu o segui.
- Tenho uma forma de manter Summons vivos por anos, meu jovem príncipe.
- Isso é...
- Assustador? - Ele ergueu uma sobrancelha, a pele avelã estava pálida, devido as horas incontáveis que passava dentro de seu laboratório. De certa forma, não era surpreendente, ele era o único mago branco que existia.
- O que vai ser agora? - perguntei olhando para trás, como se pudesse ver a sala do trono através das paredes.
- Continuamos. Um dia de cada vez. - Ele bufou. - Esse será seu teste. Meu segredo deve morrer com você, garoto! Em troca, eu mantenho suas memórias! - Ele piscou para mim e desapareceu, em seguida uma pequena esfera de argila que ele havia deixado cair, transformou-se em Noliah diante de mim. Ele me olhou e piscou antes de seguir para fora do castelo. Fiquei me perguntando se ele não havia me deixado ver aquilo de propósito.
Voltei para a sala do trono e depois de um longo esforço, tirei Arin e minha mãe de lá.
Os dias que se passaram foram corridos, estranhos, precisava fingir, não, acreditar que Arin era minha mãe. Tive que ver Eirien subir ao trono com o olhar mais vazio que já vira e aquilo me partiu por dentro. A lembrança que Noliah/Aristes havia espalhado sobre eu ser filho de um major do exército de Górtia parecia tão real para as pessoas que eu mesmo me obriguei a acreditar naquilo também.
Depois de algumas semanas, Arin me tirou do castelo, alegando que precisava me treinar adequadamente, então me levou para Vila Safira. Alguns dias depois daquilo, Noliah se juntou a ela e passaram a viver juntos. No começo, achei que estivesse ficando louco, mas ele me olhava como se me desafiasse a dizer a verdade para Arin.
Pouco tempo depois daquela noite, preocupada com a tentativa de invasão de Orion ao templo e por uma segunda invasão de um Lobisomem, que ficou por algumas horas no pátio do templo conversando com Lupine em um de seus “dias livres”, Dimesya entrou em pânico e adormeceu Lupine num feitiço do sono poderoso, ela ainda precisava de alguns meses dentro do templo para que a maldição fosse quebrada e Dimesya não queria arriscar que ela saísse novamente. Lupine não aguentaria passar todo aquele tempo sozinha se estivesse desperta. Queria ir até ela, mas até eu sentia os efeitos do chamado da maldição, esse foi o real motivo de Arin ter me tirado de lá.
Não fazia sentido fazer o tempo passar lentamente para Lupine, era mais lógico acelerá-lo para que aquilo acabasse mais rápido, mas Noliah explicou que a lentidão do tempo poderia enfraquecer o chamado da maldição, quase como se tentasse colocar a magia que a criou para dormir, enquanto o tempo acelerado podia fazer com que ele ficasse mais intenso e desesperado.
Os meses se passaram durante o tempo em que treinava com Noliah e Arin. Ela teve que interromper os treinos por um tempo, por causa do nascimento de Lórien e eu mal podia ir ao castelo ver minha mãe. Sabia que estava sofrendo, mas tinha que disfarçar e precisava treinar para manter minha promessa a Yurin.
Anos depois, estava no quintal me preparando para entrar no exército de Lótus Vale, treinando com a pequena Lórien, Noliah apareceu para conversar com ela e depois de algumas trocas de palavras, ela saiu chorando do quintal. Noliah veio até mim e segurou meus ombros com força:
- Preciso investigar algumas coisas, vou para Saldazaris e talvez não volte tão cedo. Cuide delas! - ele pediu olhando pela janela da casa, Arin estava lá abraçando Lórien.
- Nunca vai dizer a ela, não é? - perguntei.
- Não mesmo. - Ele sorriu - Quero te dar uma coisa! - O mago fechou as mãos em concha e soprou, uma esfera de luz azulada quase branca pulsou ali, em seguida ele a pressionou em meu peito, a energia invadiu meu corpo e me tomou. Magia pura.
- Não preciso disso, Aristes.
- A-ah! Isso vai ser a diferença entre salvar quem ama ou vê-la morrer um dia! - Ele riu. - Adeus! - Ele se foi. Rápido como um raio o mago desapareceu. Lórien correu para o quintal e ergueu as mãos para cima, espalhando bolhas de magia coloridas ao nosso redor. Ainda não era forte o bastante para encher os céus.
- Um dia eu vou conseguir! - ela sussurrou e apertou minha mão.
- Vai sim! - Sorri para ela e apertei a mão com força, sentindo a magia se espalhar ali. - Um dia.
Ao chegar no acampamento dos soldados em Lótus Vale, fiz todos os testes e me juntei a um grupo de reconhecimento, o líder do grupo nos levaria para a Floresta das Folhas Amarelas, abaixo da fortaleza. Não sabia o motivo, mas tinha a impressão, a vaga impressão que aquilo não terminaria bem.
Coração de vidro
A escuridão parecia pesada de alguma forma.
Não apenas pesada... Fria também.
Meu corpo estava dormente, tentei me mover, mas algo impedia meus movimentos. Meu coração acelerou e o desespero tomou conta de mim quando abri os olhos e mesmo assim não conseguia enxergar. Lágrimas rolaram por meu rosto em direção as minhas orelhas, aquecendo minha pele fria.
Arin...
Ewren...
Nellena...
Por que não tinha ninguém ali? Por que estava tão sozinha e no escuro?
Ah! A maldição...
Aquela maldição que eu poderia ser obrigada a passar para frente caso saísse do templo antes que ela fosse quebrada. Mas... Quanto tempo já havia se passado? Desde quando estava dormindo?
Eu me lembrava vagamente de Dimesya assustada por ver um homem de cabelos e olhos escuros ao redor do templo num dia que nós e as outras sacerdotisas estávamos tomando sol. Ela me levou para dentro minutos depois, mandando-me reforçar as barreiras, naquele instante, meu poder pulsou, como se chamasse por algo, por alguém! Fogo me consumiu por dentro, eu tinha vontade de sair dali, de procurar por meu amigo e...
Eu me levantei de um salto da cama, mesmo com o corpo dormente e a sensação de desmaio, busquei desesperadamente as janelas, tateando às cegas no escuro. Encontrei as argolas de metal das trancas das janelas e as puxei com força, mas nem se moveram. Forcei outra vez, o metal apenas rangeu, mas não abriu. Sentia o cheiro da magia ali, algo como um lacre, mas nada que pudesse me segurar. Num piscar de olhos, desfiz a magia que bloqueava a janela, as marcas verdes em meu corpo brilharam iluminando a escuridão ao meu redor, estava num quarto pequeno, não no meu quarto habitual, mas ainda no templo pelo que percebi das pinturas florais douradas nas paredes.
Abri a janela de um puxão e o cheiro de flores e sereno da noite me atingiram no mesmo momento que a luz da lua cheia iluminou tudo. A janela dava para o canteiro de flores medicinais de Dimesya, olhei para os contornos da porta do outro lado da sala, nenhum som do outro lado, meu despertar não foi percebido então.
Sem saber ao certo o que estava fazendo e o que me motivava, saltei da janela para o jardim abaixo, usando magia para ficar sem peso e não fazer barulho. Abaixei-me atrás de um arbusto de pluméria, a planta disfarçaria meu cheiro para as guardas élficas que estavam dobrando a esquina da trilha de pedras ao redor do templo. Nicole e Varlyn passavam conversando baixo, sussurrando coisas sobre mais uma vila destruída pelos elfos negros.
Meu coração saltou. Não tinha ideia de quanto tempo fazia desde que Nellena, Arin e eu havíamos saído atrás de pistas no templo de fogo, mas o nome de Shargan me veio à mente ao ouvir sobre elfos negros. Lembrava-me claramente de não termos encontrado nada no templo de fogo, de ter voltado de Rompita, levar uma bronca de Eirien e ver o casamento de Arin, os vi partir pra Pollo, apenas Nellena voltou para meu aniversário poucos meses após a partida deles... Depois daquilo fui colocada no templo... E em poucas horas, Arin estava de volta com dois bebês lindos, Ewren e Yurin. De certa forma estava feliz, pois o tempo adiantou seu retorno pelo menos para mim, mas aquilo também me destruiu por dentro.
As crianças às vezes apareciam com Nellena ou Arin, às vezes mais de uma vez por dia, mas todas as vezes maiores, falando, conversando coisas que eu nem imaginava, contando as coisas que aconteciam do lado de fora. O tempo estava voando e eu só via a passagem através dos rostos lindos de Ewren e Yurin que cresciam tão rápido, como mágica, mas era eu que estava presa na mágica. Desde o incidente com Orion, não via mais Ewren ou Arin, fiquei sabendo o que aconteceu com o mestre Farah e Yurin... Sequer pude me despedir deles. Não via a vida passar lá fora, não sentia mais as folhas caídas das árvores fazerem cócegas nos pés ao correr pela floresta, não sentia mais o vento do entardecer soprando contra meu rosto... Não sabia quanto tempo havia se passado ali fora, mas parecia uma eternidade e eu, bom, não estava mais disposta a ficar presa ali.
Quando as guardas desapareceram atrás da capela, toquei o chão com a palma aberta, lançando uma teia de magia para sentir a presença de todos por ali. Eirien estava andando de um lado para outro no escritório de frente para a cerejeira, Arin não estava em parte alguma no castelo, assim como Ewren e Nellena. Porém, o pátio estava cheio de guardas, tanto homens quanto mulheres e eu não podia ser vista, caso contrário, seria levada novamente para o templo e Dimesya teria um ataque, então só me restava uma opção: teleportar. Juntei as mãos, fazendo com que a energia suavemente se acumulasse ao meu redor como Brigith me ensinou, em seguida, uni as mãos chocando a magia obrigando-a a abrir uma porta para a cidade abaixo, para os fundos de uma loja, para ser mais exata.
O barulho de coisas caindo me fez ficar em alerta quando percebi que tinha, na verdade, parado dentro do depósito - mal iluminado por uma vela - da loja de utensílios mágicos de Moan, que reconheci pelo aroma dos incensos usados para abafar o cheiro de ufrige. Arrumei as coisas no lugar com magia e me preparei para usar outro portal para fora, mas a porta estreita se escancarou iluminando-me com a luz dourada da loja e o rosto bonito da bruxa passou de preocupado para risonho.
- Testando novas magias, sacerdotisa? - ela zombou estendendo a mão para que eu saísse dali.
- Apenas não tive muito foco - murmurei em resposta e a bruxa riu-se.
- Fugindo do templo? - A pergunta fez o sangue sumir de meu rosto e tentei não parecer suspeita. - Não tente mentir pra mim, Lupine, você é uma peste e está de camisola! - Ela apontou antes que eu sequer tentasse me explicar. Eu me olhei e percebi que falava a verdade, oras! Estava adormecida, óbvio que estaria de camisola!
- Sou sonâmbula, usei magia dormindo - retruquei. Moan assentiu e riu mais, ela então pegou um vestido azul pálido e sapatos confortáveis sem salto e os colocou em meus braços.
- Se troque e saia logo daqui! Vou ficar de boca calada, mas só por causa do festival! - Ergui as sobrancelhas, mas obedeci, trocando a roupa rapidamente. Só então me dei conta da música alta e das batidas de tambores do lado de fora.
- Festival de quê? - Ajeitei as alças esvoaçantes do vestido, Moan estalou a língua e virou seus olhos brilhantes para a porta.
- Eirien permitiu que a festa voltasse depois que Nalrevi foi... Morto. - Ela pigarreou - Festival da criação dos mundos, treze dias de festa para homenagear os treze meses que Ayrana levou para criar os mundos.
- Hoje é dia...
- Doze de novembro. - Moan fez um gesto em direção à porta, jogando um manto de linho verde escuro em cima de mim. - Vá logo antes que algum guarda te reconheça e te leve de volta! - Eu lhe agradeci e acenei antes de abrir a porta da loja e me enfiar no meio da multidão.
Andei pelas ruas, me espremendo entre as pessoas que festejavam ali, e por isso ninguém me notava, envolta naquele manto no meio do povo de roupas festivas, eu não era ninguém. Depois de poucas quadras que pareceram ser horas caminhando, cheguei em frente à pensão de Vitani e entrei mesmo vendo o lugar cheio.
Passei direto pela recepção, em dias de festa, a adega ficava aberta até tarde, então muitas pessoas se reuniam no restaurante para beber e dançar. Fui até o balcão e pedi vinho de pluméria. A atendente, uma fada de pele quase lilás, cabelo púrpura e olhos violeta, com tatuagens de flores que desciam do pescoço para os braços me olhou desconfiada.
- Não é muito jovem para tomar isso?
- Apenas me dê o vinho, Lilasyen. - Girei a pulseira de cristais azuis em meu pulso, pelas regras do templo, sacerdotisas podiam pedir qualquer coisa a comerciantes e eles não poderiam negar. A fada fez uma mensura zombeteira e encheu uma taça com o vinho azulado.
Fiquei bebericando e usei minha magia para espalhar a consciência pelo local. Quanto mais cheio, mais chances de escutar informações interessantes sobre tudo. Senti a magia silenciosa se estender pelo salão, como fios invisíveis capazes de captar sons.
Dois clientes pálidos usando roupas azuladas eram na verdade, negociantes de vitrino de Vegahn e estavam tentando vender barras a um metamorfo alquimista por um preço alto. Na mesa perto da porta, uma mulher salamandra procurava por algum mercenário que poderia ajudá-la a chegar no Mar das Tormentas... Havia conversas de todos os tipos, a maioria não me interessava, mas uma em especial me fez juntar a energia para escutá-la melhor.
“... Mas ainda assim é perigoso. Fiquei sabendo que mesmo depois de levados a Crecência, os elfos não foram totalmente purificados” disse um macho de pele esverdeada, certamente um mestiço de Aswang.
“Soube que o filho da princesa estava no grupo que atacou Arcádia alguns anos atrás, mas foram expulsos da cidade por uma Venox salamandra! Isso significa que ou ele não foi nada purificado, ou já tinha uma inclinação a não ser tão bom...” a fêmea diante dele riu baixinho.
Alguns anos atrás... Quanto tempo eu dormi? Voltei a escutar a conversa.
“Aposto que as sacerdotisas conseguiriam purificar eles se saíssem da porcaria do templo! Estão lá escondidas há tempos, com medo dos ataques de lobisomens! Lupine já foi melhor com o povo, mas eu sempre soube que aquela menina não ia fazer nada de útil, ia cair nas graças de Eirien e parar de ajudar!”
Fiquei com vontade de me levantar do balcão e acertar a cara dela com uns tapas, mas o que o homem disse me chocou demais para que eu conseguisse reagir.
“Mas o que elas tanto fazem lá dentro? Já se passaram quase mil anos desde que as viram do lado de fora pela última vez!”
Mil anos...
Eu dormi por mil anos?
E nesses mil anos...
Ninguém se preocupou em ir me ver?
Bebi meu vinho numa golada só e me levantei para sair, mas não sem antes dar uma lição naqueles dois. Enquanto Lilasyen servia uma senhora, passei rapidamente por trás do balcão e roubei duas garrafas de sangue malbun, um licor grudento que mancha a pele e não sai por dias mesmo com água quase fervendo e ainda atraía insetos.
Despejei o conteúdo das garrafas em sacolinhas feitas de fibra de flores para transportar bolinhos, joguei duas bolotas de pó de taixe que estavam num pote de vidro sobre o balcão para casos de “acidentes” com bebidas. Taixe quando misturados com álcool começavam a espumar e dobrar o volume do líquido, amarrei a boca para que não começasse a vazar antes do tempo e saí do estabelecimento rapidamente, indo para a janela lateral esquerda. Dali dava para ver o casal perfeitamente, fiz o vidro desaparecer com magia e fiz as bolsas já inchadas e prestes a explodir flutuarem para dentro do ambiente e pairarem sobre as cabeças dos dois. Estavam todos tão bêbados ou entretidos que não perceberam as sacolas.
Cinco... quatro... três... dois...
Os dois ficaram em silêncio e olharam para cima, certamente escutando o chiado da bebida viscosa efervescendo.
Um!
As sacolas estouraram, dando um banho neles com o líquido espumoso azulado! Os dois gritaram e se sacudiram, tentando se limpar, mas só espalhavam cada vez mais a tinta. Com uma gargalhada divertida, desapareci novamente em meio à multidão em direção à saída da cidade.
Estava triste por dentro.
Meu amigo disse que voltaria... E jamais voltou. Queria achar Ewren e dar uma surra nele, mas tinha algo mais importante que queria fazer. Queria saber o que tinha acontecido com a maldição, mil anos, será que ela havia sido quebrada e eles não tinham me dito nada até terem certeza? E se não tivesse sido quebrada ainda... Precisava ir até Aristes imediatamente e conversar com ele, mas não poderia abrir um portal dentro das barreiras da cidade.
Caminhei decidida até o lado de fora das muralhas, onde os guardas sequer me incomodaram e segui para a estrada de chão ali perto. Eu me afastei o suficiente para que não vissem as luzes do portal quando o abrisse. As luzes verdes me cobriram, aquilo foi estranho, pois o portal se estendia como um túnel, o teleporte que nos cobria com luz e eu não conseguia teleportar com precisão.
Antes de abrir os olhos depois de o clarão passar, senti os ventos frios contra minha pele, notei que estava na base da montanha que levava à cidade de Arcádia. Não fazia ideia do motivo de ter parado ali, eu nem pensei naquela cidade! Olhei para a estrada atrás de mim, sentia uma presença incômoda, mas parecia ser apenas impressão.
Tirei o pingente do cajado dourado do pescoço e o bati no chão, fazendo um lobo de neve gigante aparecer, poderia subir até Arcádia e de lá usar um pássaro de folhas para viajar até Torre das Nuvens. Com um último olhar em volta, para a neve que começava a cair mais grossa, dei um comando e o lobo correu montanha acima.
A lua estava descendo quando cheguei a metade da montanha, devia ser quase três da manhã e o frio se intensificava cada vez mais, mesmo usando magia para manter uma barreira ao meu redor, os ventos gelados estavam cada vez mais fortes.
De repente, minha cabeça começou a doer, como se estivesse prestes a explodir. Desmanchei o lobo das neves e me apoiei no paredão da encosta da montanha, a poucos metros de onde o penhasco se inclinava para baixo, engolindo a luz da lua e iluminando a floresta lá embaixo. A dor começou a me deixar tonta, não podia arriscar o restante da subida com meus poderes, podia acabar desmaiando, perdendo o controle da magia e caindo no penhasco. Continuei pela estrada, mais alguns passos apoiando-me no paredão congelado, minha respiração estava difícil e a temperatura só piorava a situação, mesmo com o manto que eu apertava firme ao redor do corpo, algo estava errado.
Uma fenda surgiu na montanha poucos metros à frente, percebendo que ela era grande o suficiente para abrigar um Yeti, entrei sem pensar muito e constatei que não era toca de nenhuma criatura terrível. As marcas brilhando intensamente em meu corpo eram o suficiente para que o lugar fosse iluminado, então andei mais para o fundo, onde os ventos não me alcançavam, só quando estava mais quente e numa parte larga da fenda que poderia me esticar em todas as direções, parei e me sentei no chão, cruzando as penas e apoiando as costas na parede.
Não sabia como curar uma dor de cabeça daquelas! Mas que droga! Isso era hora para começar a sentir dor? Bufando irritada, apenas me livrei da neve em minha roupa e acabei percebendo algo errado, meus poderes pareciam estar ficando dormentes!
Olhei pela fenda para a claridade da lua lá fora, teria que esperar o dia raiar para continuar a subida, ou correria o risco de morrer congelada, isso se durasse até o amanhecer. Aquela estranha sensação de estar sendo observada que tive quando comecei a subida voltou. Meu corpo parecia cada vez mais dormente... Fechei os olhos por um instante, mas os abri rapidamente, ficando em alerta quando alguém entrou na fenda também.
O homem tinha pele pálida, cabelos desgrenhados escuros e olhos profundos que me pareciam muito familiares. Ele se aproximou, sem desviar os olhos em nenhum momento e sentou-se em minha frente no chão. Sabia que deveria estar preocupada, mas não era só meu corpo que estava dormente, de alguma maneira absurda, meus sentimentos também estavam. O homem me observou por um longo tempo, como se estivesse analisando o que faria. Lá bem no fundo, minha mente gritava para que eu saísse dali, meu treinamento me permitiria isso com facilidade, mas meu corpo não queria me responder.
- Por que tão longe de casa, menina? - ele perguntou, sua voz era firme e agradável de se ouvir, porém seu olhar era errado, vazio.
- Eu já não sei mais porque estou aqui, nada está mais fazendo sentido pra mim! - respondi a contragosto, até mesmo minhas palavras estavam fora de controle! Devia ser alguma punição divina pelos tempos em que aprontei com os outros... ou... aquela coisa que fez meu estômago embrulhar e o medo preencher cada pedaço de minha mente.
A maldição começando a me controlar como aconteceu com Ervie!
- Você é uma daquelas meninas do templo, não é? Aquelas que não podem sair de lá... Então, por que está sozinha aqui? - Continuei encarando aqueles olhos negros vazios, o medo devia estar estampando meu rosto, pois ele sorriu de uma forma estranha. Tentava acessar meus poderes, mas era como se os tivesse colocado numa caixinha e trancado.
- Não sou uma das garotas do templo, sou da Vila das Flores - respondi tentando parecer calma e convincente, ele sabia sobre mim? Meu coração estava acelerado e meu rosto estava quente, mas o calor parecia irradiar por meu corpo e o desespero começou a tomar conta de mim. Era como se meu corpo quisesse ficar perto dele, mesmo com minha mente alertando que era perigoso.
- Eu sei quem você é, você estava no palácio com a Sacerdotisa da rainha, então isso te faz uma das mulheres sagradas de sangue amaldiçoado, não é?!
O sorriso lupino que me deu foi o suficiente para despertar o pouco de controle que ainda tinha sobre mim, percebi então que o que havia me motivado a sair do castelo não foi tristeza e solidão, mas aquela maldição querendo ser passada adiante. Precisava tentar mantê-lo entretido, para que não tentasse nada.
- Como sabia que era eu? - perguntei com a voz trêmula, seu sorriso aumentou, ele se inclinou para frente e pegou minha mão, aproximando seu rosto do meu.
- Sei que seu sangue é puro, suas marcas verdes estão brilhando e enquanto estiver assim, você será útil para mim! - Minhas marcas traidoras não se apagaram, elas estavam acesas me alertando do perigo, mas também mostrando ao perigo que eu era quem ele buscava. Vi o brilho de uma lâmina um segundo antes da dor terrível fazer com que eu perdesse o ar em meus pulmões, não encontrava minha voz para gritar por socorro, mesmo assim, naquela montanha em meio a uma nevasca, quem me ouviria?
Estava sendo carregada para fora daquela caverna, sentindo o sangue escorrer por baixo do vestido e gotejando na neve. Os ventos aumentaram a dor quando saímos pela fenda, tentei mover o braço para curar aquele ferimento, mas não conseguia, apenas as lágrimas escorriam, lavando meu rosto num choro silencioso.
O homem começou a descer a montanha, mas outra pessoa apareceu e ele congelou no lugar, olhando para o outro em choque. O cheiro metálico de magia me alcançou e o homem que me carregava soltou um grunhido feral, apertando mais os braços ao meu redor e me fazendo arfar de dor. Fui tirada dos braços dele por um homem de rosto escondido por um capuz, que me segurava com apenas uma das mãos o atacou diversas vezes com uma espada longa o outro homem mal reagia, parecia estar preso num lacre. Quando aquilo se desfez, o homem saltou para longe, respingando sangue na neve e fugindo pelo paredão.
- Você?! O que faz aqui fora? - ele perguntou, colocando-me no chão para avaliar o ferimento e tirando o capuz, os olhos verdes brilhantes estavam assustados. Não consegui evitar chorar dessa vez.
- Só queria ir embora, fugir disso tudo! Estou tão cansada de viver presa! - respondi tentando ignorar a dor em meu peito e a da facada na lateral de meu corpo.
- Não se preocupe, vou ficar ao seu lado, assim ninguém mais tornará a feri-la por causa disso! - Aeban sorriu para mim, limpando a mão suja com meu sangue. Ele me deu um olhar preocupado antes de me erguer novamente, acabei deixando um grito escapar por causa da dor ao ser movida, meus sentidos foram desaparecendo até só restar escuridão.
Senti uma pressão leve na testa e me levantei assustada, chiando ao me movimentar, só então percebi que o ferimento havia desaparecido e que eu estava numa cama grande e macia forrada com lençóis dourados bordados. Rezei para não estar no castelo de Eirien, pois sairia daquele quarto num caixão caso ela soubesse que eu havia fugido.
Apoiei-me contra os travesseiros e observei melhor o lugar que estava, as paredes do quarto eram de pedras encaixadas, quadros com naturezas mortas enfeitavam as paredes e uma cômoda grande no mesmo tom marfim da cama estava de frente para a mesma. O quarto não era tão grande, mas era muito bonito.
- Ah! Que bom que acordou! - Aeban entrou sorrindo no quarto, a túnica azul escura estava aberta, revelando a pele bronzeada do peito. Ele estava trazendo uma bandeja com uma tigela fumegante, colocou a comida na beira da cama e sentou-se muito, muito perto de mim.
Pelos deuses! Será que ele tinha alguma ideia do que sentia por ele para estar tão perto assim?
- Eu...
- Está fora do templo! - Ele franziu o cenho e pegou o ensopado, enchendo uma colher, soprando e trazendo em direção à minha boca. Estava pasma, sequer podia respirar, aquilo era um sonho! Só podia ser um sonho louco e maravilhoso. Belisquei minha perna por baixo da colcha para ter certeza, mas não acordei.
- Não está quente, pode comer! - disse sorrindo, pois eu ainda o olhava certamente com cara de idiota. Acabei aceitando a comida na boca, meu interior se derreteu, não sabia ao certo se por causa da comida, ou se era porque estava na companhia da pessoa que mais amava no mundo e recebendo atenção dele pela primeira vez!
Aeban terminou de me dar a comida como se eu fosse incapaz de me virar sozinha, bom, não me incomodei com isso.
- Obrigada - agradeci, ele suspirou e me deu um copo de vinho de Osmanthus, ainda sorrindo para mim. Ele me esperou beber, ficou ao meu lado o tempo todo apenas me observando com cautela. As luzes do quarto faziam seus olhos ficarem mais bonitos!
- Lupine... Sabe que vou ter que te levar de volta ao templo, não sabe?
- O quê? - Meu sonho se desmanchou e um nó se formou em minha garganta.
- É perigoso para você aqui fora! - explicou, segurando minhas mãos com as suas em concha. - Aquele homem que tentou te levar era um Lobisomem perigoso!
- Por favor! - Estava disposta a implorar, lágrimas começaram a escapulir de meus olhos e apertei as mãos dele com força. - Por favor não me leve de volta! Me deixe ficar aqui... Só por um tempo! Não aguento mais!
Estava chorando de soluçar, desesperada para não ter que voltar para o templo e ficar lá por mais tempo, mesmo que no fundo eu tivesse a certeza de que era a coisa certa a fazer! Mas estava ali com ele... Aeban segurou meu rosto e limpou minhas lágrimas, fazendo-me encará-lo surpresa mais uma vez.
Sua boca deslizou sobre a minha numa carícia suave e meu corpo tremeu com aquele toque. Segurei seu rosto sem dar chance para que ele se afastasse e mordi seus lábios com os meus, como se estivesse desesperada por aquele toque. Aeban tentou me afastar, mas saí rapidamente debaixo das cobertas e passei uma perna sobre ele, sentando em seu colo e prendendo-o sob mim. Mesmo sendo muito maior, ele não parecia com vontade de protestar e me tirar dali.
- Acho melhor...
- Acha melhor ficar quietinho aqui! - rosnei mal reconhecendo aquela atitude assustadora, desabotoei sua túnica e não estava mais nem ligando para a voz em minha mente gritando:
“NÃO, NÃO FAÇA ISSO!”
- Lupine! - Aeban resmungou quando passei as unhas em suas costas, apertando mais meu quadril contra seu corpo. Ignorei isso também, ignorei o mundo ao meu redor, o medo de passar a maldição e me foquei apenas naquele desejo intenso que estava acabando com meu controle. As mãos de Aeban desceram e ele apertou meus quadris sob o vestido, traçando círculos em minha pele quente. Não sabia se era por causa do vinho, mas eu me sentia tão quente e ele parecia tão frio...
Não liguei para nada, apenas me entreguei aquilo e deixei que acontecesse.
Eu sequer saí do quarto durante os quatro dias que se seguiram.
No quinto dia de manhã, estava devastada.
Meu peito doía ao olhar o silfo dormindo ao meu lado naquela cama.
O que foi que eu fiz?
Aquele desejo ainda estava lá ao olhar para Aeban, mas era diferente, era aquela sensação que sempre sentia quando o via no castelo, não aquela fome assustadora das noites anteriores. Fechei os olhos e suspirei cansada, tentando me manter tranquila.
Uma serviçal entrou no quarto trazendo café como nos dias anteriores, o barulho das rodinhas fez Aeban acordar e se levantar sorridente para servir o café para mim. A jovem murmurou algo para ele, olhando para mim pelos cantos dos olhos, depois de um aceno dele, ela saiu rapidamente.
- Bom dia! - Ele beijou minha testa, mas o sorriso sumiu ao ver minha cara séria mal disfarçada. - Algo errado? - Ele me estendeu uma xícara de chocolate cremoso, mas o cheiro do líquido fez meu estômago embrulhar, me levantei correndo e me tranquei no banheiro, vomitando até quase as tripas. Aeban abriu a porta depois de bater várias vezes e pedir para entrar, mas eu não conseguia nem me mover para abrir a porta, estava em choque. Aeban ficou me olhando preocupado por alguns instantes, quando finalmente parei de vomitar, ele me ajudou a me limpar e me levou de volta para o quarto.
- Eirien e Nellena estão aqui. - falou baixo, olhando-me sério.
- Quero vê-las - respondi automaticamente, ele assentiu. Quando fui tentar usar magia para fazer uma roupa aparecer, percebi que minhas marcas estavam apagadas e que a magia não me obedecia mais. Sequer consegui evitar chorar.
Havia estragado tudo.
Na sala de reunião da fortaleza de Lótus Vale, ao passar pelas portas, os olhares de Eirien e Nena pousaram em mim, nas marcas pálidas em meus braços, depois no silfo em defensiva atrás de mim. Eirien deu um rosnado medonho que anteriormente poderia ter feito os pelos em meus braços se eriçarem, mas agora parecia não importar mais.
- O que você fez? - ela gritou, avançando para Aeban. Felizmente Nellena a segurou, murmurando palavras calmantes para a rainha. Demorou um bocado para que eles dois a acalmassem e Aeban explicasse a situação. Eirien fez questão de nos lembrar que ele estava noivo, ela me abraçou apertado e começou a chorar.
Não pediria desculpas, nada que eu dissesse consertaria aquilo e só conseguia pensar em mais duas crianças felizes que seriam destruídas pelo momento em que descobrissem que eram amaldiçoadas.
Deixei que me levassem de volta ao Castelo de Cristal, que deixassem Aristes me examinar e constatar a gravidez, não quis olhar para minha mãe quando ela foi me visitar arrasada, pois tudo dera errado mais uma vez. Aquele nó na garganta não desaparecia por mais que elas me dissessem que estava tudo bem, que tudo iria passar, que não foi minha vontade que me levou a fazer aquilo. Nem eu mesma acreditava mais que aquela maldição tivesse um modo de ser desfeita.
Oitocentos e dezesseis anos antes.
Ewren:
A noite estava fria quando saí do templo pouco depois da meia noite, suspirei pesadamente e fiquei em silêncio observando o céu salpicado de estrelas e sentindo o vento gelado contra meu rosto. Não sabia ao certo se algo ou alguém poderia me ajudar agora que ela havia me deixado...
Observei em silêncio a floresta abaixo de mim, rodeando a cidade de Alamourtin, que a essa hora estava silenciosa e escura, parecia, de certa forma, que estava de luto também.
As curandeiras e aprendizes da Primeira Sacerdotisa, Dymesia, do Templo de Cristal me confirmavam a mesma história, que Dymesia havia partido para o quinto mundo e não retornaria tão cedo, talvez nunca. Mais cedo naquele mesmo dia, Nellena havia insistido muito para que eu conversasse com ela, pois talvez pudesse acalmar a fúria que crescia em meu coração. Estive no Castelo de Cristal também, procurando por Lupine, talvez ela fosse uma pessoa melhor para conversar do que Dymesia, já que me conhecia desde que nasci e, mesmo não gostando tanto de mim agora, talvez me escutasse. Ela sempre foi boa nisso, talvez por isso tivesse recebido o título de Sacerdotisa dos Ventos, pois suas palavras eram como um vento morno de verão. Na verdade não procurava por um conselho, apenas queria falar com alguém, mas alguém que pudesse entender a dor que eu sentia. Lupine não havia perdido ninguém, mas também não podia estar junto com quem amava, pois este era prometido a outra, não era nem perto do que estava sentindo agora, mas certamente entenderia em parte minha dor.
Como não havia achado ninguém com quem quisesse falar, voei por cima da cidade e pousei pouco depois da saída sul, tinha esperança que ao caminhar pelo bosque das sombras ao sul de Alamourtim, poderia achar algum Lobisomem ou Aswang vagando por ali e lhe cortar a garganta, isso poderia fazer me sentir melhor, matar alguém também era uma boa maneira de me acalmar! No fim das contas, eu não merecia Emma, eu era realmente o monstro do qual ela havia fugido. A lua minguante parecia sorrir tristemente para mim, estava buscando em qualquer lugar por algo que mantivesse minha mente longe daquela dor. Lórien estava em seu treinamento no exército de prata junto com os caçadores, nem com ela podia contar agora, seria caçado se pisasse naquele campo do outro lado de Amantia.
Ao me aproximar dos arredores da Vila das Orquídeas, uma presença intensa com um poder convidativo me chamou atenção no sentido oposto ao que caminhava, e, quando me virei, vi algo brilhando no fundo do bosque. Não era comum ter magos por aquela região, o lugar estava perigoso demais e havia sido relatado frequentemente uma forte interferência espectral, ali abriam-se com frequência portais instáveis.
Aproximei-me devagar com a mão sobre o punho da espada, lutar contra um mago era tudo que não precisava agora! Porém, quando cheguei perto de uma clareira iluminada por um brilho lilás, pude ouvir um choro baixinho de um bebê, que estava enrolado numa manta dentro de um cesto. Um pouco afastada do bebê, uma mulher com as mãos erguidas estava sem sombra de dúvida abrindo um portal, a quantidade de magia que estava usando era alta demais para qualquer outro tipo de feitiço.
- Lupine? - chamei. Ela se virou assustada em minha direção e sem querer deixou o portal se fechar.
- Ewren? O que faz aqui? - perguntou ela limpando as lágrimas dos olhos e pegando o bebê do cesto.
- Estava no templo do castelo procurando por Dymesia, mas disseram que ela foi para outro mundo.
- Sim, ela se foi... - respondeu tristemente ninando a criança em seus braços.
- Lupine, é filha de Aeban? - perguntei olhando por cima de seus ombros frágeis a pequena menininha em seu colo. Lupine ficou ainda mais nervosa, mas acabou confirmando. - Então, por que está partindo?
- Não posso deixar que ela caia nas mãos dele, Ewren! - ela choramingou apertando delicadamente o rosto da criança contra o seu. - A hora vai chegar e não quero que ela seja o instrumento para ele conseguir alcançar seu poder. - Lupine recomeçou a chorar. Parecia que ela precisava mais de ajuda do que eu, suspirei cansado e a observei com cautela, não queria dizer as palavras erradas e fazer com que ela me mandasse para o túmulo como quase fez da vez que nos enfrentamos.
- Aeban não pode te ajudar? Afinal ele é pai dela... - comecei, mas ela me interrompeu entregando-me a menininha e me deixando chocado.
- Ele não pode me ajudar! Ele nem sabe da existência dela, não se atreva a contar! - Ela rosnou encarando-me com um olhar assustador. Uma forte ventania varreu a copa das árvores fazendo um redemoinho de folhas ao nosso redor. - Prometa-me que nunca vai contar sobre ela! - Seus olhos estavam lilases, as marcas de mago que ela carregava faziam todo seu corpo brilhar de forma incrível e ao mesmo tempo muito ameaçadora.
- Prometo! - disse rapidamente para que ela diminuísse seus poderes, podia chamar atenção de algo ainda mais perigoso.
- Se algum dia lhe perguntar o que aconteceu comigo, diga-lhe que morri! Entendeu? - Sua voz estava alterada, então apenas assenti. Lupine me lançou um último olhar irritado e virou-se de costas para mim recomeçando o portal, não sei por que ela não pediu a ajuda de Aristes para ir até o outro mundo, talvez fosse medo de alguém ver suas memórias e acabarem descobrindo que a Sacerdotisa dos Ventos havia fugido porque tinha uma filha de um homem comprometido... Não, não era isso, era medo de que alguém a encontrasse e tomasse a criança dela.
A menininha havia parado de chorar e agora cochilava em meus braços. Sentei encostado numa pedra e, sem reclamar, fiquei com ela no colo enquanto Lupine abria o portal. Pouco depois ela fez uma mamadeira aparecer no cesto, mas sem mudar a atenção de seu trabalho, quando ia perguntar para que ela havia feito isso, notei que a bebê estava de olhos abertos para mim, ri, dando-lhe a mamadeira.
Seus olhos eram como duas bolinhas verdes brilhando no escuro, além disso, senti algo estranho quando fiquei encarando aqueles olhos, como se a raiva que sentia tivesse sido lavada de mim como uma onda apagando as marcas das pegadas na praia. Senti-me tranquilo, calmo, como se nunca tivesse acontecido nada de mal. A bebê apertou meu dedo com sua mãozinha miúda, não devia ter nem um mês, mas parecia que sua personalidade estava formada, ela ia ser durona!
Acabei adormecendo com ela no colo, acordando quando faltava pouco para os sóis nascerem.
- Já pensou em um nome para ela? - perguntei ajeitando a bebê em meu colo e esticando as costas doloridas, o portal estava quase aberto a essa altura. Lupine parecia exausta e seu rosto continuava manchado por lágrimas.
- Annye... - disse ela num suspiro batendo as palmas das mãos, concluindo a abertura do portal, fazendo com que uma rajada de vento rasgasse o espaço em sua frente, abrindo um túnel de luz que girava e brilhava intensamente. Ela veio em minha direção e estendeu os braços para que eu lhe desse a criança. - Era pra ser Annyhe e Serena... - Entreguei a menina a ela e Lupine a arrumou com a manta, um pequeno sorriso iluminava seu rosto quando ela olhava a criança.
- Annye? O nome da falecida mãe de Aeban? - Torci o nariz para aquele nome.
- É sim, acho um nome bonito - retrucou sorrindo tristemente para mim.
- Não devia colocar esse nome, nomes tem personalidade e a Annyhe era uma carrasca fria e sem coração! - comentei em tom de brincadeira, a mãe do major Aeban era realmente uma pessoa terrível. Olhei novamente a criança em seus braços, seus cabelos curto e finos estavam alvoroçados, lembrando-me um leão. - Ela parece com um leãozinho! - falei rindo - Leona! Um nome bonito e perfeito para a filha de um guerreiro como Aeban! Talvez um dia ela seja uma guerreira tão incrível como o pai dela! - Lupine fechou os olhos e se encolheu como se falar de Aeban a tivesse feito sentir dor.
- Eu nunca mais irei pisar em Amantia, Ewren! Vai ser a coisa mais dolorosa que farei em toda minha vida, abandonar meu lar dessa maneira, mas não vou arriscar que ela seja pega! Isso precisa acabar e vai acabar agora! - disse ela apertando minha mão num adeus silencioso e foi em direção ao portal.
- Mas pense no nome, está bem? - pedi. Fiquei ali de pé enquanto a via entrar no portal, fazer um último aceno para mim e desaparecer num clarão de luz. Fiquei um bom tempo sentado nas pedras olhando para aquele ponto em que elas desapareceram e esperando os sóis nascerem, me sentia estranho, meio vazio agora que ela havia partido, só não sabia o porquê. Lupine era a melhor amiga de minha mãe, teria que contar a verdade, mas antes de abrir as asas e partir, percebi que por um breve momento me esqueci da minha dor, coloquei o punho sobre o local de partida delas e agradeci silenciosamente pelo momento de paz em meio à escuridão.
Pelos olhos do mercenário
O som das adagas raspando no couro da calça era quase reconfortante conforme caminhava silenciosamente na direção da cidade de Alamourtim. A visão do castelo de cristal flutuando lá em cima fez algo se apertar no meu peito, há quantos anos eu não pisava ali? Quanto tempo fazia desde que me tornei aquilo que meus pais mais detestavam? E se Farah estivesse lá...
Desviei os olhos do castelo, depois de tudo que eu fiz, mesmo quando Lórien tentou me ajudar, me curar... Depois de Emma... Da purificação parcial na cidade de Crescência, duvidava que Eirien me aceitaria de volta, sequer olharia para mim, mesmo sendo seu filho.
Quase na entrada da Cidade, Lórien apareceu, saltando dos galhos de uma árvore próxima, risonha e linda como sempre.
- Irmãozinho! Sabia que viria para cá! - Ela atirou os braços em volta de mim e riu mais ao perceber minha tensão. - Encontrou o bando?
- Eles usaram um lacre tosco, mas simples para me manter preso por alguns instantes e escaparam passando por um portal, - resmunguei - não consegui pegar todos, mas o informante era mais lento, não me escapou.
Tirei a cabeça decepada de Garlin da sacola de couro que carregava, um dos lobisomens do bando de Black Jango, Lórien fez uma careta e virou o rosto, coloquei a cabeça de volta no saco e continuei caminhando para ir receber a recompensa, pois o comerciante silfo que me contratou para descobrir quem saqueava suas cargas quase todas as semanas, não especificou que eu deveria pegar todos eles.
- Nellena chega à cidade ao anoitecer, disse que tem um serviço pra você e que é urgente. Ela vai te encontrar no restaurante da pensão depois da meia-noite! Não se atreva a sair da cidade sem falar com ela! - ela disse antes que eu sumisse na trilha. - Te vejo mais tarde!
Nem precisei olhar para trás para saber que Lórien havia desaparecido num portal, a luz vermelha, idêntica a de Aristes, aqueceu minhas costas. Será que algum dia ela descobriria quem era realmente seu pai? Tentei não pensar naquilo e segui para a cidade, agora tinha mais serviço a fazer e se tratando de Nellena, não deveria ser algo tão complicado.
Depois de recolher minha recompensa com um pouco de custo, fui até a pensão de Vitani no meio da cidade, pedi um quarto para a senhora e fui tomar um banho, botar as ideias em ordem. Emma morou ali por alguns anos quando a encontrei na vila destruída, estar naquele lugar fazia raiva e tristeza passarem por mim ao mesmo tempo. Acabei deitando para descansar um pouco e adormecendo.
Fui acordado de um pesadelo por intensas batidas na porta.
- Senhor, uma caçadora está te chamando lá embaixo! - Vitani chamou. Olhei o relógio sobre a mesinha de cabeceira e notei que havia dormido mais de seis horas. Bufei irritado e me vesti rapidamente, não deixaria Nellena esperando. Desci as escadas e fui direto para o restaurante que estava vazio a não ser pela mulher de vestido simples negro sentada no canto perto da janela, olhando atentamente para a rua.
- Você parece bem - comentei ao me sentar de frente para ela. Nellena sorriu e me encarou.
- Você parece muito com seu pai - disse baixinho.
- O que tem pra mim? - cortei o assunto antes que começasse, em nada me parecia com a bondade e justiça de Farahdox.
- Estou com uma garota dormindo lá em cima - cochichou.
- Nellena! Achei que fosse casada! - brinquei de forma maliciosa, Nellena corou e baixou os olhos.
- Não, seu moleque pervertido! Eu a resgatei, ela é do mundo Um e caiu aqui, preciso que a leve para Torre das Nuvens, para que Aristes abra uma porta pra ela voltar. - Sem enrolações.
Ponderei por um momento. Nellena pareceu perceber minha inclinação a me negar e completou com preocupação brilhando no olho:
- Ela pode ser a filha de Lupine, Ewren. - Senti o sangue fugir do meu rosto. Não arriscaria chegar perto de uma Arbarus amaldiçoada.
- Nem pensar! - quase gritei com a caçadora que me observava com um meio sorriso no rosto.
- Ora, Ewren! É só uma garota! - Nellena bebericou seu chá, o olho verde bom me observando com diversão. Ela só podia ser louca de querer me mandar atravessar Amantia com uma garota que podia ou não ser uma maga. - Vão ter que seguir a pé ou a cavalo, para evitar confusões no caminho.
- Por favor, Nellena! - Estava disposto a implorar. - Peça a Lórien!
Nellena me deu um olhar significativo e revirou os olhos, quase ri da minha ideia idiota se não estivesse tão nervoso.
- Lórien não consegue nem cuidar dela mesma direito! Sabe o que a descarga de energia quando ela foi pegar os cristais para tentar te purificar fez com a cabeça dela! Nem mesmo Aristes conseguiu recuperar cem por cento da capacidade dela!
Não tinha como esquecer aquilo.
Lórien se arriscou a ir até a Montanha Azul isolada em outro continente, um lugar que ninguém se arriscava. Por ser maga, o poder de Lórien fez ressonância com os cristais e ela foi atingida pela energia, o choque foi tão intenso que a fez perder a fala, a visão e os movimentos por dias. Tudo por minha causa, por querer me ajudar.
- É, não é boa ideia - murmurei.
- Você conviveu com Lupine no castelo, mesmo que pouco. Ela era sua amiga!
- Lupine me odeia, Nena! Eu prometi que voltaria, e nunca voltei!
- Nós sabemos muito bem que não foi sua culpa, não use isso como desculpa! - ela ralhou. - Por favor, Ewren! Não posso pedir isso para mais ninguém e Sally é muito pequena para que eu a deixe apenas com o pai para fazer uma viagem dessas. E ela vai pagar bem também!
Minhas mãos estavam em punhos, tão apertadas que minhas garras começaram a ferir as palmas de minhas mãos. Bom, tinha a possibilidade da garota não ser filha da Lupine, podia ser só uma pessoa azarada, rezaria para isso. Assenti devagar, Nellena abriu um sorriso imenso e se debruçou sobre a mesa para me dar um beijo na bochecha.
- Obrigada. - Ela se levantou, deixou algumas moedas sobre a mesa e colocou a bolsa sobre o ombro. - Preciso ir, tenho que estar na plataforma de embarque antes das cinco!
- Ei! - chamei - Como vou saber quem é a garota?
- Vai saber! - Ela piscou para mim e desapareceu pela porta, antes que eu resolvesse mudar de ideia. Fiquei ali por alguns instantes olhando para o nada, pensando em rotas e trilhas que poderíamos pegar, estava um pouco ansioso para isso, ao mesmo tempo nervoso demais. Resolvi voltar para o quarto e dormir mais um pouco antes que aquilo tudo me deixasse louco, precisava estar descansado ao amanhecer para meu humor não ficar tão terrível quando partisse daquela cidade com a garota. Nellena sequer me disse o nome dela.
Pouco antes das seis já estava de pé, com a bolsa preparada, espada nas costas e adagas no cinto. Fui para o salão e sentei-me numa das mesas logo na entrada, mais perto da saída e longe do único casal no restaurante, que parecia tenso com minha presença. Os ignorei e peguei meu livro de anotações, folhear as páginas até que a garota acordasse seria melhor do que ficar olhando para o nada, afinal não sabia se ela poderia ser um saco de preguiça e acordar as dez da manhã. Fiquei ali lendo um curto relatório sobre a fuga de Lupine do templo de Dymesia e não percebi a presença da garota até que ela sentou em minha frente. Ergui os olhos do livro para encará-la e algo não correu bem ali.
Os olhos verdes profundos com riscos castanhos pareciam até hipnóticos. Que inferno! O que Nellena tinha na cabeça de me pedir para levar aquela garota numa viagem que duraria semanas dividindo um espaço curto? A pele rosada tinha aparência de ser suave ao toque, lábios cheios avermelhados e cabelos longos cacheados cor de mel que emolduravam o rosto de traços delicados.
- Hum... Bom dia - ela falou, sua voz fez uma corrente elétrica percorrer meu corpo. Aqueles olhos me eram familiares de alguma forma e minha mente gritou para que eu ignorasse aquilo. Não é filha de Lupine, não é filha de Lupine... Mas tinham semelhanças. A serviçal da pensão apareceu e a garota parecia aliviada com a presença de outra pessoa, olhou o papel sobre a mesa e pediu comida, pedi algo que estava na primeira página em élfico, sequer reparei o que foi. Quando a serviçal saiu para buscar os pedidos, lembrei que deveria falar alguma coisa, ou ia parecer um maluco.
- Então, vamos para Torre das Nuvens, certo?
- Hum, certo... Preciso encontrar alguém que possa me mandar de volta pra casa - ela explicou. Casa. Claramente um sinal de que não podia ser filha de Lupine, duvidava que ela deixaria de contar pra filha quem era, o nome do pai dela... Duvidava que não se gabaria por ser uma sacerdotisa famosa. Não percebi que estava encarando sério a garota até que ela desviou o olhar com o rosto corado. Não consegui evitar o puxão de um meio sorriso. Ouvi seu coração acelerar, nada daquilo tinha a ver com medo, mas que raios! Eu sequer tinha mais poder para encantar as pessoas daquela maneira!
- Quero dinheiro adiantado! - falei com um pouco mais de grosseria, quem sabe assim ela pararia de me olhar daquele jeito. A garota fez cara feia, torcendo a boca num bico receoso.
- Metade agora, metade quando chegarmos lá! - Pelo menos era esperta.
- Tudo bem, metade agora e metade quando chegarmos lá, mas vai demorar mais ou menos um mês. - Um mês na estrada com ela... Ah! Isso seria um problemão.
- Eu já sabia dessa parte! - Ela suspirou, dando um gole no café enquanto olhava para o nada pensativa.
- Quantas peças de roupa você tem aí? - perguntei, qualquer coisa para tirar a atenção do rosto dela.
- Um moletom e uma blusa - respondeu. Acabei rindo daquilo. Pensei em lhe dar uma resposta maliciosa, mas realmente não queria parecer um doido.
- Um mês de viagem por desertos, lugares congelados e florestas fechadas. Você acha que consegue se virar com isso? - Ela fez outra careta e ficou um bom tempo olhando para a mochila novamente, provavelmente calculando o que precisaria. Terminamos o café em um silêncio carregado, ela foi até o balcão na entrada, pagou a conta e me seguiu para fora do estabelecimento, mostraria a ela a loja de Moan para que comprasse o que precisaria para a viagem.
- Como é seu nome mesmo? - indaguei, ciente de que ela ainda não havia me dito.
- Eu não disse, é Leona - estanquei no meio da rua. Aquilo não era possível! Eu tinha dito aquele nome para Lupine antes dela partir! Não... Eram parecidas de certa forma, mas Lupine não teria me ouvido e colocado aquele nome na filha. Não podia ser ela! Não tinha marcas de mago em seu rosto ou braços, sequer dava para sentir cheiro de magia nela, aquilo era só uma coincidência louca.
- Me chamo Ewren.
Tornamos a andar em direção a loja, Leona assentiu e entrou pela porta de vidro que apontei, ficaria ali fora esperando. Leona começou a conversar com a bruxa dentro da loja, e essa começou a perguntar demais, lembrei-me então que Emma conversava muito com Moan... E nada acabou bem para ela.
- Arrume as roupas, Moan, não te interessa o que ela vai fazer. - A garota estava tremendo quando entrei na loja para que a bruxa, rodando-a como um predador observando a presa, se afastasse. Moan soltou um rosnado baixo que ouvi enquanto saía dali, queria evitar parecer muito cuidadoso para que a língua de trapos não começasse a espalhar boatos por aí.
Fiquei atento até que elas terminassem a negociação, me afastei da loja quando ouvi os passos da garota em direção a porta e fui para o outro lado da rua. Leona saiu da loja com uma bolsa grande de couro quase cheia e sorriu um pouco, ela veio até onde eu estava em frente a vitrine e bufou.
- Deveria comprar um estojo de antídotos! Você é humana, tudo no caminho pode te matar! - Era uma possibilidade. Ela seguiu meus olhos para o conjunto básico de cura e entrou na loja com um suspiro de irritação. A segui para evitar que o duende dono da loja lhe roubasse enquanto estava distraída com os frascos coloridos, o velho também percebeu isso, pois ficou de trás do balcão me olhando frustrado.
- Sabe cozinhar alguma coisa? - Ela pareceu ofendida com a pergunta e eu evitei rir.
- Claro que sei! Bom, pelo menos no meu mundo - retrucou um pouco constrangida, peguei então alguns temperos e coloquei em seus braços. Voltamos à hospedaria, onde pegamos o restante das coisas, fomos até onde Espiral estava descansando no estábulo e arrumei as coisas sobre ele enquanto a garota me observava com atenção. Ela devia ser jovem demais para ser filha de Lupine, de qualquer forma, o corpo esguio demais, parecia uma boa corredora, mas isso não ajudaria em nada aqui. Não podia sequer fugir de nós.
Esse pensamento cruel fez gelo descer por minha espinha e pedi para quaisquer deuses que olhavam por nós, para me impedir de fazer alguma loucura pelo caminho. Aquela mancha negra ainda perturbava meu coração, jamais seria livre daquilo? Já estávamos quase no começo da estrada, nos portões estreitos laterais da cidade quando estendi a mão para ela, para que me entregasse o dinheiro. Ela estendeu a bolsa e tornou a olhar para a estrada, ela parecia cansada, mas não estava disposta a desistir.
Caminhamos por algumas horas pela estrada estreita até começarem a aparecer árvores mais altas com folhagens mais espessas, mesmo assim ainda estava calor, ela amarrou os cabelos, deixando o pescoço e ombros visíveis, nada de orelhas de silfos.
- Se seguirmos o rio, você não vai sentir tanto o calor - comentei.
- E se aparecer um Kappa? - Ela encarou as águas, preocupada. Podia ter rido se não tivesse me ofendido com aquilo.
- Um Kappa? Você acha que um Kappa vive quanto tempo se aparecer na minha frente? - rosnei.
- Desculpe, não tive intenção de ofender! - Mesmo pedindo desculpas a vi revirar os olhos pela visão periférica. Garota abusada!
Andamos em silêncio margeando o rio por um bom tempo. Os sóis estavam subindo e ficava cada vez mais quente. A garota andando atrás de mim estava quieta demais, de vez em quando olhava por cima do ombro para ter certeza de que ela não havia desaparecido como um gato ladrão.
Quase meio-dia, um barulho como um rosnado abafado me chamou atenção, a garota tinha o rosto vermelho quase incandescente e comia alguma coisa com cheiro de morango, mas parecia algo que um cão havia mastigado e cuspido fora, certamente uma daquelas coisas de humanos que queriam perder peso. Não demorou muito para que seu estômago começasse a roncar novamente, pelo visto estava envergonhada demais para pedir para pararmos para comer. Alguns passos mais para frente, próximos a uma área mais fresca onde o rio estava mais largo, tirei a carga do cavalo e o deixei deitado na grama.
Tirei a camisa e entrei no rio para pescar, tinha me esquecido que humanos precisavam comer com mais frequência.
- Pegue minhas adagas ali na pedra! - pedi, Leona se virou depressa para pegá-las, soltou um resmungo e com uma mão as entregou para mim. Aos poucos, os peixes começaram a se acostumar com minha presença, em poucos minutos, alguns peixes mais atrevidos vieram beliscar minhas pernas, rapidamente os ataquei, enfiando as adagas em dois e os atirando para fora da água. Sem querer, os havia atirado em cima dela, que deu um gritinho e tentou se afastar.
- Pegue-os! - mandei, ela tentou, mas os bichos se debatiam e ela não os segurava. Revirei os olhos e arranquei a cabeça dos peixes, pelo visto, eu teria que preparar. Ela me encarou com raiva e foi até a bolsa pegar outra roupa.
- Por que você os jogou em mim? Não podia os ter colocado perto da margem? - ela resmungou.
- Eles iriam se debater até cair na água - retruquei irritado. Leona foi andando até o outro lado, perto da curva do rio onde achava que eu não pudesse vê-la para se lavar. Voltei minha atenção para os peixes, o bom-senso não me permitiria olhar.
Terminei de temperar e coloquei os peixes para assar, Leona já tinha voltado, estava sentada em uma pedra me observando de cara feia. Ela parecia estranhamente pálida e um pouco abatida, mas não parecia ser culpa de minha grosseria. Quando os peixes ficaram prontos, ela comeu em silêncio, depois foi revirar sua bolsa atrás de algo, um lenço.
Percebi então o outro lenço que ela desenrolou da mão, completamente sujo de sangue. Mas que raios aquela garota tinha feito? O cheiro do sangue foi coberto pelo dos peixes assando.
- Como você fez isso? - quis saber.
- Deixei sua adaga cair e ela cortou a minha mão - ela retrucou irritada.
- Você comprou o estojo de antídotos? - perguntei olhando o sangue gotejando de sua mão. Bom, não tinha cheiro de magia.
- Isso é apenas um corte, já vai melhorar! - ela replicou de forma grosseira novamente. Bufei para não lhe dar uma resposta adequada e andei até ela, peguei o estojo e tirei dele o pó de taixe e as bolinhas de pasta alamarine. Tirei uma delas do frasco e dei para a garota.
- Mastigue isso! - Ela me olhou desconfiada. - Agora! - rosnei. Ela ficou me encarando por mais alguns segundos, mas acabou cedendo e tomando o remédio, a cor começou a voltar para seu rosto. Fiz uma pasta com o pó de taixe e água, puxei a mão dela e passei a pasta no corte. Ela chiou e se encolheu, quase imediatamente o corte se fechou deixando apenas uma linha rosa. A encarei tentando controlar a irritação
- Você não recebeu muita educação de onde veio, não é? - Ela ficou vermelha e baixou o rosto, não sabia dizer se de raiva ou vergonha. - Essas adagas contêm veneno na lâmina.
- Não tanta educação quanto você parece ter! - ela retrucou ignorando o que disse sobre o veneno.
- De onde você saiu? - Ignorei sua grosseria e joguei os braços por trás da cabeça, apoiando-me na árvore para descansar.
- Da minha mãe! - Ah! Ela queria encrenca! Não fazia ideia do tamanho do problema que estava se metendo ao falar assim comigo. Eu me levantei rapidamente e agachei em sua frente, segurando seu queixo entre o polegar e o indicador com um pouco de pressão, como imaginei, a pele era macia e suave.
- Escuta, estou te fazendo um favor, qualquer um teria cobrado o dobro ou até o triplo para fazer essa viagem e poderia simplesmente cortar sua cabeça, roubar todo seu dinheiro e ir embora sem ter que fazer nada... - Respirei fundo e puxei a adaga, meter medo nela faria aquele olhar teimoso e birrento sumir de seu rosto. - Eu também poderia arrancar a sua língua e ter uma viagem fácil e silenciosa, ou ser ruim e te abandonar no meio do nada, certo? - Toquei a lâmina fria em seu pescoço, os olhos verdes se arregalaram e seu coração batia descontrolado. - Mas, como eu estou sendo bonzinho e hoje acordei de bom humor, dobre essa língua e responda mais educadamente ou eu a uso de isca para pescar sereias no mar de Água Doce! - falando isso, soltei seu rosto. - Vamos começar de novo? De onde você veio? - Fiquei brincando com as adagas até que ela se acalmasse e respondesse novamente, direito dessa vez.
- Da Terra, eu entrei num espelho anteontem e caí num lago dentro da floresta de Gheshira.
- Viu? Não é tão difícil responder direito! - zombei guardando as adagas. -Terra, é? - Sentei novamente encostando-me na árvore - O tempo lá passa muito diferente daqui.
- Como diferente? - Ela quis saber.
- Do seu mundo para esse mundo existe uma forte interferência temporal, que faz com que o seu mundo seja igual e diferente daqui.
- Ainda não entendi!
- Meia hora no seu mundo equivale a um dia deste mundo, então desde a hora que você caiu aqui, ainda não se passou nem uma hora lá! - Ela me olhou incrédula, devia estar tendo uma discussão interna sobre isso, mas pareceu aliviada ao saber daquilo.
- E você veio de onde? - Fiquei surpreso de ela não ter deixado a conversa morrer.
- Da floresta de Crescência, sou um elfo negro.
- Que idade você tem?
- Não me lembro, parei de contar quando cheguei a mil e seiscentos, e você?
- Dezessete pelo que sei, eu contei todos. - Fiquei completamente parado, em silêncio observando-a. A idade para ser filha da sacerdotisa dos ventos também era a mesma. Fiquei nervoso e ela notou isso, então comecei a rir - Qual é a graça? - ela parecia ofendida.
- É muito interessante o fato de Nena, mesmo me conhecendo, ter me entregado uma jovem virgem para levar para o outro lado de Amantia por oitocentas moedas, eu poderia te vender para os vampiros ou para as bruxas por umas cinco mil moedas! Sangue de virgem é item muito utilizado por feiticeiros aqui! - Ela baixou os olhos para os pés, parecia estar prestes a vomitar.
- E quem te disse que eu sou virgem? - ela gaguejou e ficou com o rosto ainda mais vermelho.
- Dá para saber só de olhar para você, tem cara de inocente e uma virgem não cai em feitiço dos elfos negros, se você não fosse, estaria me obedecendo e me respondendo “sim, senhor” - menti para assustá-la mais um pouco, era divertido, de certa forma.
- Não tenha tanta certeza! - ela retrucou com a voz mais firme.
- Então, tire a roupa! - Sorri maliciosamente, a garota passou por algumas nuances de vermelho antes de ficar quase roxa de vergonha. Gargalhei mentalmente com a cena.
- Claro que não! Ficou louco? Seu pervertido!
- Viu? Não obedeceu! Eu não tenho interesse em crianças humanas, só se for pra venda, claro! - Ela me encarou irritada, suas narinas se dilataram, estava prestes a retrucar com grosseria, mas ela deu uma olhada para minhas adagas e controlou o temperamento.
- Você não vai me vender de verdade, não é? - Leona piscou os olhos, com uma expressão meiga e gentil, quase me fez perder a pose e pedir desculpas. Quase.
- Talvez... Sangue de virgem é melhor do que sangue de dragão... - brinquei. Ela ficou de cara feia novamente e ficou em silêncio me observando enquanto arrumava tudo para partirmos.
Mais tarde naquele dia, depois de acamparmos no meio da floresta morta, jantarmos e trocarmos mais algumas palavras “amigáveis” preparei-me para descansar um pouco, mas não antes de assustar mais a garota.
- Durma enquanto é cedo, senão os barulhos da floresta não te deixarão dormir mais tarde! - falei, deitando-me no acolchoado. Acabei fechando os olhos por alguns instantes, os abri novamente para ter certeza de que ela tinha adormecido. Ela não estava mais lá.
Levantei-me num pulo, tentando sentir a presença da garota, a fogueira estava quase apagando e não conseguia sentir o cheiro dela por perto. Mudei de forma, sentindo aquela escuridão sorrir para mim, mas a ignorei, precisava achar a garota. Peguei as adagas e a espada e saltei para cima da árvore, dali pulei e abri as asas, fazendo círculos cada vez maiores ao redor da fogueira, ela não iria longe com aquela escuridão.
Estava voando há quase dez minutos quando ouvi um grito alto não muito longe de onde estava e em seguida o cheiro de sangue. MAS QUE DIABOS! Mergulhei no ar e voei o mais rápido que pude naquela direção, não me importava quem ela fosse, não permitiria que alguém morresse novamente por um erro meu.
A garota estava caída no chão, tateando em busca de algo para acertar o vampiro em sua frente, ele ergueu a mão para atacá-la, mas atirei uma pequena adaga de arremesso, acertando-o bem no olho. Ele guinchou e se afastou, dando-me tempo para pousar perto da garota, sacar a espada e decepar a cabeça da criatura. Para ter certeza de que não voltaria, atravessei seu peito com o galho de uma árvore e incendiei o corpo.
Então, me virei para Leona, ela estava chorando em choque.
- Pare de chorar! - ralhei. - Ninguém mandou fugir! Eu não ia te vender de verdade, menina idiota! - A tirei do chão, embalando-a contra o peito e voei novamente em direção à fogueira. Não podia permanecer muito tempo no ar, senão o feitiço guardião da região me encontraria. A garota estava fria e quieta em meu colo, se não estivesse sentindo seu coração bater... Não me permiti pensar no fim daquela frase, apenas pousei perto da fogueira e recolhi as asas para tratar do ferimento antes que o veneno se espalhasse.
- Sinto muito pelo vestido! - Foi mais um aviso que um pedido de desculpas, a coloquei sentada no chão de costas para a fogueira e rasguei a parte de trás do vestido com as garras, ou pelo menos o que sobrou do tecido. - Corte de garra de vampiro pode matar, sabia? - expliquei, aquilo estava feio! O corte não era muito profundo, mas estava ficando esverdeado por causa do veneno. Peguei o estojo e joguei água purificada com aloe para limpar, o ferimento ia do ombro esquerdo até o meio das costas, peguei um pano e molhei na água quente do caldeirão em cima da fogueira e comecei a limpar o sangue e o veneno que começava a minar.
- Eu achei que você quisesse ir para casa, seu eu soubesse que queria morrer, teria feito de um jeito menos doloroso! - Tentei distraí-la enquanto pegava a agulha para dar uns pontos. Ela viu isso e agarrou minha mão com lágrimas nos olhos novamente - Sinto muito, mas não tem pó suficiente para fechar, eu tenho que dar uns pontos primeiro e passar o pó por cima só para cicatrizar! - Ela recomeçou a chorar - Oras! Você não estava chorando quando resolveu fugir, não é?
- Eu tenho medo de agulhas! - Leona explicou entre os soluços, revirei os olhos.
- Se tivesse mais medo de vampiros, não precisava ficar com medo da agulha agora. - Queimei a agulha no fogo, depois passei na água fervendo e comecei dar pontos, próximos o suficiente para que o pó se encarregasse do resto. Fiquei com um pouco de pena, ela voltaria para casa marcada, aquilo a lembraria para sempre de que não foi só um pesadelo. Quando acabei, Leona recomeçou a choradeira, passei a pasta em cima do corte e depois pressionei com o dedo.
- Ainda dói?
- Não... Está só formigando - disse ela entre soluços.
- Ótimo, não vai inflamar. - A virei de frente para mim, os olhos vermelhos do choro destacaram ainda mais o verde deles, lavei a toalha e limpei seu rosto tentando não me sentir tão culpado! Era só uma brincadeira. - Me responda uma coisa?
- Hum? - ela resmungou, com os olhos quase se fechando.
- Você fugiu por que eu disse que ia te vender?
- Claro!
- Você é bem burrinha, se sangue de pessoas inocentes valesse tanto assim, você acha que teriam crianças nas cidades? As pessoas venderiam seus próprios filhos por cinco mil moedas! Eu disse aquilo porque você estava sendo grosseira e eu queria curtir com a sua cara. Eu nem imaginava que você ia cair nessa, na verdade, nenhum idiota acreditaria nisso! - Comecei a rir da cara dela, apenas para que se sentisse melhor. - Me desculpe. Não vou mais brincar assim! - Passei a mão sobre o corte novamente, para ter certeza de que estava bem fechado. - Está sentindo formigar ainda?
- Não, só estou com sono. - Ela se levantou, pegou uma blusa dentro da bolsa e um casaco. - Olhe para o outro lado, por favor! - Apenas virei de costas, já tinha tido problemas demais para uma noite para ter mais algum olhando o que não era da minha conta. Ela pegou o vestido rasgado e o embolou, deixando-o no canto fora da bolsa.
- Dá para costurar, é só lavar o sangue.
- Prefiro jogar fora - resmunguei.
- Uma pena... - provoquei mordendo a boca para não sorrir para ela. Leona apenas bufou e voltou a dormir tão rápido que soube que dessa vez ela não tentaria sair do acampamento. Deitei também e fiquei do outro lado da fogueira quase apagada observando-a dormir. Uma pena, realmente.
A lupa de Andir
Os campos ao redor da Cidade de Monte Azul eram o local favorito de Fylgiar desde que atravessara o portal do vento e das nuvens para aquele novo mundo. Ela espalhava-se com o ar e misturava-se ao mundo naquele pequeno pedaço de paraíso verde, coberto por flores silvestres. A silfa costumava tomar forma física apenas para aproveitar os sóis do meio da tarde, deslumbrava-se ao ver os tons de púrpura, laranja e vermelho misturando-se no céu quando os sóis chegavam ao horizonte. Gostava de correr e ver os longos cabelos dourados brilhando contra os raios avermelhados, sentir a brisa que podia se transformar na própria pele.
Fylgiar era a primogênita dos Ventos Elísios, uma das primeiras silfas a pisar no primeiro mundo após a abertura dos portais de Saldazaris para Amantia, para uma aliança entre os elfos e silfos. Seu irmão mais novo, Aeban, um jovem general, foi prometido a uma jovem para que pudessem concretizar a aliança e Fylgiar... Ah, ela era livre! Não tinha um lugar fixo, não deixou que as correntes que recaíram sobre seu irmão lhe tomassem o controle também. Na primeira oportunidade, Fylgiar dispersou-se e desapareceu de Lótus Vale e viajou com os ventos para explorar aquele mundo.
De longe, o lugar favorito da jovem silfa era o Vale dos Olhos no continente Edro, onde existiam duas colônias de fadas campestres. Ela se encantou com as casas pequeninas, esculpidas nos troncos das árvores, outras penduradas nas cachopas de flores que pendiam das mesmas, e algumas, mais raras, nos campos de flores ao redor do vale.
Independentemente de onde estivesse, ao anoitecer, Fylgiar voltava ao Vale e enviava suaves brisas para embalar o sono das pequenas fadas em suas casinhas dependuradas. Nunca, nem em seus sonhos mais profundos, imaginou existir um lugar tão cheio de paz e amor como aquele.
Logo no início do outro dia, Fylgiar decidiu ir observar a Floresta Vermelha próxima a cadeia de montanhas de Edro, diziam que naquela época as folhas começavam a mudar de cor, dando um ar completamente diferente ao local, e curiosa como sempre, Fylgiar tornou-se o vento e partiu cobrindo campos e bosques, florestas e rios em seu trajeto.
Terminus, como de costume, estava sentado sobre a muralha Norte da Cidade de Palmaris. Daquele ponto, o gigante de longos cabelos ruivos podia enxergar claramente a Baía da Areia na costa de Edro e se forçasse as vistas, podia enxergar também as ilhas dos vampiros flutuando no mar.
O gigante bufou pesadamente, fazendo as muralhas de pedra vibrarem. Por ser um dos guardas da passagem principal, não tinha autorização para sair daquele posto antes do fim do dia. Ele coçou a cabeça de forma preguiçosa e se alongou, movendo a lança perigosamente por cima da cabeça do outro guarda que dormia apoiado nas colunas que sustentavam os imensos portões de troncos brutos.
Terminus se entediava facilmente durante o expediente, sua diversão era imaginar como apenas os portões, que mantinham a cidade dos gigantes isolada, poderiam despencar e destruir metade de uma das cidades portuárias que margeavam as montanhas deles. O gigante se esticou novamente, tentando observar mais longe, ao pé da montanha onde a Floresta começava a ganhar suas cores de outono.
- Vai continuar babando aquele matagal lá embaixo? - grunhiu Lorelás, franzindo o cenho na direção de Terminus. O gigante de barba cinzenta fungou e jogou um cantil cheio na direção do parceiro de vigia e coçou a barba grisalha.
- Gosto das cores do outono - Terminus retrucou tomando um longo gole e desviando os olhos escuros da floresta para o parceiro. Ao contrário de Terminus, que era relativamente jovem comparado aos outros gigantes, Lorelás era velho, muito velho. Carregava marcas da primeira grande guerra em seu rosto riscado pela idade, Lorelás foi quem adentrou os territórios de Alamourtim para assinar o tratado de paz entre os gigantes e elfos. Dava para dizer que Lorelás era como um líder para eles, alguém respeitado e que mantinha a orem. Não eram bárbaros de todo, como pensavam os povos pequenos, “gigantes também amam!” dizia Lorelás sempre para Terminus.
Observando o ancião, Terminus riu para si ao perceber que os olhos cinzentos do amigo se voltaram para o Sul, talvez tentando inutilmente ver um castelo de cristal flutuando sob a luz dos sóis, sonhando com uma rainha de cabelos castanhos e olhos azuis que derrotou um dos seus com um só golpe. A rainha de Amantia, Eirien, era quem povoava os sonhos mais profundos do ancião.
- Um dia, meu amigo, quem sabe? - Terminus zombou e o velho enrubesceu.
- Você ainda vai se apaixonar, seu bundão! E vai perder essa pose, aí quero ver! - Lorelás grunhiu aquela resposta e seu rosto bronzeado corou ainda mais. Terminus gargalhou e tomou mais um gole da água, então lançou de volta o cantil para o amigo. A verdade é que Terminus não acreditava naquele tão sonhado amor, gigantes apenas reproduziam, e os que amavam eram os que carregavam o coração humano fraco. Mesmo assim, Lorelás não era questionado, ele era um alguém que não se encaixava naquelas tradições bárbaras de qualquer forma.
Os sóis estavam quase completamente mergulhados no horizonte quando outra dupla veio render Lorelás e Terminus, Gillorn e Cahas, os guardas de aparência medonha que guardavam os portões ao anoitecer, mal cumprimentaram Terminus e apenas acenaram de forma casual para Lorelás, que deu de ombros enquanto descia a escadaria para o interior da cidade com uma mão sobre o ombro de Terminus.
- Tenho um favor a lhe pedir... - O ancião começou e Terminus já sabia do que se tratava antes mesmo do amigo prosseguir. Ele ergueu o frasco de vidro vazio que trazia dentro do alforje a tiracolo.
- Vou pegar a água ainda hoje, meu velho! - Terminus sorriu da melhor maneira que podia e não seguiu com Lorelás para a taverna como de costume, ele deu as costas à imensa cidade de pedras escavada entre as montanhas e atravessou os portões sob o olhar cauteloso dos guardas que há pouco o renderam.
Lorelás tinha uma doença que o impedia de manter-se jovem por um maior período de tempo como os outros gigantes, muitos, da mesma idade, ainda possuíam cabelos escuros e não carregavam rugas, mas Lorelás fora amaldiçoado a envelhecer e morrer como um humano, e para contornar essa maldição, recebia uma pequena dose das águas das ondinas na última noite de lua nova do verão. Terminus, por ser um dos gigantes mais pacíficos, era em quem o ancião confiava para pegar a água no centro da Floresta Vermelha, pois Lorelás sabia que ele não o roubaria e que não irritaria a ondina a ponto de ela o matar, criaturas muito temperamentais as ondinas!
Terminus, mesmo com a preguiça de fim de expediente lhe consumindo cada gota de ânimo, desceu as montanhas em pouco tempo, chegando ao pé quando o púrpura misturava-se ao azul marinho e as estrelas já começavam a salpicar o céu de luz. O gigante andou com cuidado entre as árvores, que eram magicamente crescidas naquela região, com seus doze metros, aquelas árvores que passavam de trinta metros davam-lhe a sensação angustiante de pertencer ao povo pequeno. Andou por pouco, até avistar a forma brilhante da ondina sentada sobre uma pedra a beira de um rio que mais lhe parecia um córrego. Ela cantava enquanto passava os dedos entre os fios azuis de seus cabelos, seus olhos negros estavam vidrados enquanto a melodia serena fazia os ossos do gigante vibrarem de forma desconfortável, uma técnica para enfraquecê-lo, caso resolvesse atacá-la, coisa que Terminus não era idiota de tentar, ela podia afogá-lo sem mover um dedo.
- Como vai nosso querido Lorelás? - ela cantarolou com sua voz melodiosa, movendo aqueles olhos negros lentamente até encarar o gigante, fazendo um misto de nervosismo e medo percorrer a coluna da criatura colossal.
- Sobrevivendo. - Não falar muito, ser breve e não ficar encarando por muito tempo, essas eram as instruções que ele tinha para ver a ondina. Ela deu um sorriso encantador e ao mesmo tempo apavorante, então as águas do rio se misturaram ao seu corpo, fazendo-a ficar do mesmo tamanho que o gigante. Terminus sentiu o suor acumular-se em suas têmporas e em suas costas e desviou o olhar para qualquer lugar, a fim de evitar os olhos de poço sem fundo da ondina. Ela se aproximou e fechou as mãos frias e molhadas ao redor do rosto do gigante, mas ele não cedeu, não ia encará-la, era sempre a mesma coisa, ele então ergueu o frasco e a ondina estalou a língua e fez a água de seu próprio corpo se derramar no recipiente, que ficou iridescente e dele subia um aroma adocicado, como plumeria e água branca.
- Diga a ele que isso não vai deter o envelhecimento para sempre, e que o castigo dele é morrer sem ver a vida ser passada adiante, diga-lhe que está apenas prolongando o inevitável... - As palavras ácidas da ondina lhe desceram queimando pela garganta, e dessa vez ele ousou retrucar:
- Não direi nada a Lorelás, ele sabe disso muito bem, então se sabe e ignora é porque ainda lhe resta algo! - o gigante rosnou em resposta e virou para retornar à cidade, deixando a ondina para trás. Retrucar era algo completamente diferente de enfrentá-la, então não temeu a ira dela.
Terminus não tinha dado nem três passos quando algo frio soprou contra suas costas, ele imediatamente gelou, imaginando ser algo mandado pela ondina e virou-se instantaneamente com o machado em punho, procurando por aquela coisa gelada que o tocou. Ao olhar para o local onde a ondina estivera, percebeu que não havia mais nada ali às margens do córrego, mas algo no vento lhe chamou atenção. Aquilo flutuava a alguns metros dele, o vento tinha uma forma física feminina quase de sua altura e olhava diretamente para ele, não com olhos físicos, mas ele podia sentir o peso do olhar analítico sobre si.
Aquele machado não lhe serviria de nada contra aquilo! Correr não parecia ser uma opção também, uma vez que a criatura movia-se com o vento. Terminus tentou a única arma que tinha contra um fantasma:
- O que quer aqui, criatura do outro mundo? - grunhiu com sua voz trovejante, de forma tão brutal que quase fez o ser deixar de ser visível. A criatura entre os ventos virou a cabeça e dirigiu-se lentamente na direção de um galho de árvore, parecia um felino, movendo-se com cuidado para não o irritar, ele percebeu. Quando a criatura disforme tocou os galhos, o coração do gigante quase parou no instante que uma rajada de vento soprou contra ele e a criatura sumiu, dando lugar ao ser mais belo que ele já havia visto na vida. Terminus prendeu o ar e deu um passo vacilante em direção a árvore para observá-la melhor.
Ela pertencia aos povos dos ventos! Tinha longos cabelos dourados e olhos cinzentos que brilhavam na escuridão, a pele alva parecia tão sedosa quanto as pétalas das flores que eram levadas às montanhas pelos ventos, lábios cheios e rosados, seios fartos e pernas longas, que estavam balançando para fora do galho de forma nervosa. Mas os olhos dela estavam fixos nos dele.
Calor irradiou pelo imenso peito do gigante e essa foi a primeira vez que odiou ser o que era, porque desejou tocar aquela criatura como tocava as fêmeas de sua raça. Ele a observou em silêncio, não ousou falar novamente com medo de espantá-la, quando ela abriu a boca para falar, Terminus esperava apenas que ela gritasse, o xingasse e fugisse, como outros dos povos pequenos.
- Vim até aqui ver a cor da floresta... - ela começou com a voz trêmula, certamente com medo. - Mas a sua cor é ainda mais viva! - Ela sorriu, um sorriso doce, vibrante que fez algo dormente no fundo do peito de Terminus explodir. Ela deu um risinho divertido, só então o gigante percebeu o quanto ela estava perto agora, a poucos palmos dele, flutuando no ar.
- O que... - Ele não teve tempo de protestar quando ela se precipitou em sua direção. A silfa sentou em seu ombro rapidamente e pegou uma das mechas do cabelo para observar. Terminus agradeceu às sobrinhas mentalmente, pois na noite anterior o torturaram enquanto escovavam sua “crina” foi como apelidaram os cabelos laranjas rebeldes.
- Qual seu nome? - ela perguntou, ignorando o pânico nos olhos de Terminus.
- Terminus. - Sua voz saiu como uma lufada baixa e ela riu novamente.
- Fylgiar... É um imenso prazer conhecê-lo! - O gigante preferiu pensar que não fosse uma piadinha da parte dela, então fechou a mão cuidadosamente ao redor dela e a tirou de seu ombro. Fylgiar franziu o cenho e fez bico.
- Não posso tocá-lo?
- Não deveria - ele trovejou. - Não tem medo que eu te devore?
- Não. - Ela o encarava séria. - Não conseguiria comer vento! - ela zombou e o gigante bufou sentindo o rosto queimar.
- Preciso ir. - Precisava encerrar aquela conversa estranha, se é que era uma conversa, antes que ficasse ainda mais estranho, antes que entendesse melhor aquele estranho sentimento que começava a ter por aquela silfa em suas mãos.
- Não pode ficar um pouco mais para conversar? - Ela sorriu novamente e mesmo que sua mente gritasse “NÃO”, Terminus acenou positivamente e sentou-se entre as árvores.
A conversa rendeu, se estendeu e desenrolou-se madrugada adentro. Ela contando sobre tudo, sobre a vida, sobre as fadas e os ventos. Ele, contando sobre as montanhas, o mar e as guerras. E conversaram até o ponto em que os dois ficaram apenas observando um ao outro, com o mesmo olhar brilhante, porém sem esperanças. Um amor tão raro e tão impossível.
Já amanhecia quando Fylgiar começou a tornar-se vento novamente, com um brilho nos olhos e sorriso nos cantos dos lábios, disse as últimas palavras da conversa:
- Voltarei em três dias e quero te ver novamente! - Sem pensar, Terminus concordou. Sabia que não acabaria bem, que aquilo terminaria de alguma forma com seu coração partido, agora percebendo que tinha um coração humano também, mas mesmo assim aceitou. Sentiu os ventos de Fylgiar lhe acariciarem o rosto antes de ela desaparecer entre as copas das árvores quando os sóis já banhavam a floresta em luz.
O gigante voltou a cidade, onde Lorelás esperava pela água, desconfiado que o amigo o roubara. Mas o brilho nos olhos de Terminus disse mais do que qualquer palavra que o gigante não conseguia pronunciar. Naquela primeira semana, voltou a floresta desconfiado, com medo de que tudo não passasse de um sonho, mas ao ver a silfa novamente, vestida com as cores do outono, ele soube que era real. Quando o dia começou a raiar, ela prometeu voltar novamente, e novamente...
Durante os dias que não via a silfa, Terminus mal conseguia comer, dormir ou pensar, só esperava pelos dias nos quais que a encontraria novamente.
A cada três dias, a silfa voltava para conversarem por horas, e cada vez o amor dos dois parecia maior, mesmo sabendo que nunca daria certo, eles não deixavam de se ver a cada três dias para conversar até o amanhecer, ou simplesmente ficarem perto um do outro.
Já era início do inverno quando no pôr dos sóis do dia em que veria Fylgiar novamente, Terminus chegou floresta o mais rápido que pode, e no lugar de sempre esperou por ela. A essa altura o chão já estava cheio de amontoados de folhas vermelhas caídas. Fylgiar apareceu pouco antes de escurecer por completo, trazendo com ela um ponto de luz dourada que girava ao seu redor.
- Dandala - Fylgiar soprou o nome e o ponto de luz cresceu, ficando do mesmo tamanho que a silfa. Uma fada! O gigante estava surpreso e temeroso, mas ficou em silêncio observando as duas.
- Ouvi o que Fylgiar contou a seu respeito, e sobre o que sentem... - A fada parecia nervosa na presença dele, mas o sorriso de Fylgiar a mantinha firme ali. - Então, tudo que posso fazer é lhes dar um tempo para que possam ficar juntos. - Com receio, a fada voou sobre a cabeça de Terminus, que a observava desconfiado, mas também confiou em Fylgiar. A fada lançou sobre ele algo que o fez sentir imensa dor a ponto de lhe tirar os sentidos.
Antes de abrir os olhos, Terminus sentiu mãos passeando por seu rosto, o primeiro instinto foi pular e fugir, mas ao ouvir a melodia suave que Fylgiar cantava, apenas abriu os olhos para observar aquele rosto agora bem de perto. Ele estava deitado sobre os joelhos da silfa, que sorriu ainda mais ao vê-lo desperto.
- Eu...
- Está do tamanho de um humano - Fylgiar completou. Terminus saltou para se olhar, tocar seu corpo e rir, mesmo ainda sendo maior que ela, era pequeno o suficiente para tocá-la, para encher as mãos com seu corpo. Não houve conversa, nem troca de palavras naquela noite, Terminus apenas segurou o rosto de sua amada e a beijou, a tocou e provou. Fylgiar correspondeu como se tivesse sonhado tanto com aquele momento quanto ele.
Os dois ficaram juntos por uma noite e um dia, rolando soltos pelas folhas vermelhas da floresta, transbordando amor. Mas ao cair da noite, Terminus voltou a crescer e Fylgiar se foi novamente, com a promessa de que voltaria.
Inconformado com a durabilidade do feitiço da fada e desesperado para ter sua amada nos braços novamente, Terminus seguiu a estrada durante toda a noite, alcançando o primeiro campo das fadas no fim da madrugada. Os campos ainda tinham as flores vivas mesmo no início do inverno, Terminus começou a chamar por Dandala, até que todas as fadas o rodearam, irritadas com o som de sua voz.
- O que quer aqui, besta gigante? - gritou uma das fadas enfurecidas.
- Quero me tornar humano, ou pelo menos quero ter a altura de um homem novamente! Como a fada chamada Dandala fez dois dias atrás, mas quero ficar para sempre naquele tamanho! - ele implorou, mas as fadas começaram a rir, e apenas uma que estava séria explicou que o feitiço só funcionaria uma vez.
Terminus, irado, lembrou-se do que era e do que podia fazer! Tomar a força o que não queriam lhe dar por bem. Sem dó, destruiu os campos das flores, esmagando as fadinhas no processo, arrancando suas cabeças e ossos e trabalhando em algo que podia fazer a diferença para ele. Uma lupa era algo que fazia as pessoas enxergarem algo pequeno como grande, mas ele poderia inverter isso com a magia das fadas.
Trabalhou durante todo o dia, unindo os ossos, criando uma armação delicada para sua lupa, mas não tinha como fazer uma lente. O que lhe veio à mente foi terrível, mas eficiente. Se pôs a tecer uma rede com galhos finos, usando os fios de cabelos das fadas, e ao finalizar o tecido, o mergulhou no Lago dos olhos, a poucos quilômetros da vila destruída, o lago que diziam espelhar a magia. A água foi absorvida pelos fios e endureceu, transformando-se num vidro brilhante.
O gigante olhou o trabalho, a lupa ainda brilhante de sangue púrpura, ele ergueu a lupa que mal lhe cabia entre os dedos para o céu, e o tão esperando aconteceu. Seu corpo diminuiu novamente até que a lupa ficasse grande em suas mãos. Terminus correu para onde Fylgiar dizia passar mais tempo, o Vale dos Olhos, onde encontrou Fylgiar deitada em um campo verde, aproveitando o entardecer. Antes que ele dissesse seu nome, ela se virou em sua direção e riu, transformando-se em vento e se atirando aos braços dele, imaginando que o feitiço havia tornado a funcionar. Mas a silfa sentiu o cheiro antes de ver o que ele havia feito, e horrorizada olhou para as mãos sujas do gigante.
- Não tinha outro jeito de poder ficar com você! - ele sussurrou fechando os braços ao redor dela. Em choque, Fylgiar tornou-se ar e se livrou de seu aperto. Lágrimas lavavam seu lindo rosto e ela cobria a boca, tentando não vomitar.
- Dandala me disse para ter cuidado, disse que era um monstro... - Entre soluços, ela voou para dentro da floresta sem olhar para trás, buscando refúgio e redenção nos ninhos das fadas. Fylgiar contou a Dandala o que Terminus havia feito e a fada se enfureceu. Suas asas brilhantes se tornaram negras, e ela cresceu, chamando as outras fadas num grito feral.
Não tinham mais as aparências doces. Pareciam feras encarnadas, as fadas. Olhos vermelhos e brilhantes, longos caninos e orelhas pontudas, asas negras como as de dragões. Aquilo não era o paraíso pacifico que Fylgiar amava, não mais, e tudo por culpa de seu amor proibido.
Não demorou para Terminus invadir a floresta, destruindo tudo atrás de Fylgiar. Mas ao se aproximar e encontrar as fadas, ele usou a lupa novamente para crescer e enfrentá-las.
Girando seu machado, Terminus sequer conseguiu ferir uma delas, elas o enfeitiçaram, jogando sobre ele um lacre antigo de aprisionamento que o fez ficar paralisado antes mesmo de a verdadeira luta começar. Ele deixou cair a lupa, que foi recolhida por Dandala e entregue a uma das guardiãs.
Com um último olhar piedoso a Fylgiar, Dandala ergueu Terminus no ar junto com as outras fadas, carregando-o numa nuvem negra de asas para além das montanhas.
Fylgiar sabia que um preço seria cobrado pelo ato monstruoso de Terminus, mas não fazia ideia do quão grande era a ira das fadas. Ao anoitecer, Dandala voltou com uma sacerdotisa, que começou imediatamente a restaurar a floresta. Fylgiar se aproximou de Dandala, observando algo que ela trazia embrulhado em um pedaço de pano destruído. A fada, ao perceber o olhar da silfa sobre o que trazia, deixou cair em terra o pedaço de osso marcado pelos dentes de agulhas das sereias.
- Uma vida por outra, é o pagamento que cobramos pela dívida.
Fylgiar sentiu o corpo ficar dormente, a dor a consumiu, e um choro abafado saiu dela, a fada apenas observou em silêncio, sabia que nada podia fazer para aliviar aquela dor, e que Fylgiar não tinha culpa por amar um monstro.
Com o coração despedaçado, tanto por culpa quanto por dor, Fylgiar voou para longe, para além das montanhas voando sobre a costa até alcançar o mar e seguir adiante. Bem na frente, onde nada era explorado, uma imensa tempestade se aproximava, ou ela da tempestade, dava no mesmo para ela, só queria que aquela dor acabasse. A silfa alcançou a tempestade em sua forma de ventos, sabia que se fosse separada pelas rajadas das tempestades, morreria.
Seus olhos pesados se voltaram para baixo, onde as sereias provavelmente repousavam tranquilamente sob as ondas e desejou estar perto de seu amor mais uma vez, mas daquele que conheceu na montanha, o qual morreria com suas lembranças naquela tormenta, entre raios e nuvens negras.
Fylgiar fechou os olhos e viu os cabelos ruivos em que seus dedos se enrolaram, os olhos cor de terra na qual se perdeu uma vez, o corpo forte que a aqueceu durante uma noite e o sorriso que a trouxe de volta para o mundo depois de um único momento de amor. Ela abriu os braços e o visualizou ali, antes de soprar um adeus entre as tempestades e se deixar desmanchar, ser levada para todos os lados.
Pertencia ao mundo agora, apenas a lembrança quando o mundo escureceu.
Asas e espinhos
O começo da madrugada se aproximava, junto vinha o frio congelante e agourento como se não me quisesse ali. O início do inverno, sem dúvida. Estava tão focado em chegar rapidamente aquele pedaço de chão esquecido pelos deuses, que havia me esquecido que as estações em nossos reinos eram diferentes.
A floresta que eu sobrevoava terminou de repente, revelando o castelo modesto no alto de uma colina no centro da pequena cidade erguida sobre pedras, mais uma proteção inútil contra o meu povo, como se nosso fogo não pudesse derreter rocha e transformar a cidade em ruínas. Não haviam luzes nas casas e a névoa densa e fria que cobria os vales já se aproximava dali. Era hora de pousar e encontrar uma caverna para passar a noite em um lugar afastado, não seria bem recebido com minha verdadeira forma ali, um movimento em falso, poderia pôr parte do castelo abaixo. Ao amanhecer mudaria minha forma e iria até o castelo cobrar minha dívida com o Rei Vicerne, o preço pelo tratado de paz que ele firmou com reino flutuante de Dracken, meu reino.
O frio estava castigando minhas asas, sentia a membrana lisa doer devido as rajadas de vento cortante, então, desci em espiral procurando abrigo pelos campos próximos ao redor da cidade. Reconheci uma plantação de ervilhas a menos de um quilômetro da entrada principal, não havia nenhuma caverna próxima, mas um galpão grande o suficiente para que pudesse me acomodar durante a noite, me esperava no fim da fazenda.
Sobrevoei a fazenda sem chamar atenção, pousado a poucos metros do galpão e caminhei em passos suaves. Com uma fração de meu poder, abri as portas desgastadas, varri o local com os olhos e ao constatar que não havia ninguém, entrei com as asas coladas ao corpo e me deitei sobre o feno espalhado pelo chão. O local improvisado para descanso não me incomodou, já havia dormido em locais piores, pelo menos ali era quente e seco e não precisaria espalhar uma rajada de fogo para aquecer meu couro. Mesmo sentindo a necessidade de friccionar as presas e soltar uma faísca, suprimi a ideia que podia levar aquele galpão ao pó em poucos instantes, então adormeci apoiando a cabeça sobre um bolo de feno.
**
Sabia que era de manhã apenas por causa dos latidos de Galgo na porta. O céu estava nublado e o vento uivava contra as janelas, fazendo a madeira gasta ranger. Não tinha espaço para procrastinar na cama, uma vez que agora tinha que tomar conta da fazenda apenas com ajuda de Ivi.
Depois de aquecer água no fogão e um banho quase escaldante, preparei o café, tomei o meu rapidamente e bati no teto baixo, chamando Ivi para o desjejum. Precisava alimentar os cavalos, então não esperei por ele, me enrolei no manto de lobo que era de meu pai e abri a porta. Os ventos gelados que me saudaram quase me fizeram voltar para a cama, porém os relinchos dos cavalos famintos levaram meus pés direto para o galpão do outro lado da horta. Galgo estava estranho, ele rosnava para o galpão com o pelo eriçado, na certa algum animal selvagem havia se enfiado lá dentro durante a madrugada.
– Seu saco de pulgas covarde! – Resmunguei empurrando-o com o pé e destrancando o galpão. As portas pesadas rangeram quando o abri, Galgo então desapareceu numa corrida louca em direção a plantação. Como não tinha sol e não havia trazido uma tocha por causa do vento, tive que esperar minha visão se acostumar com a escuridão ali dentro. Dei um passo adiante, mas travei ao notar que haviam olhos me encarando na escuridão. Cerrei os olhos para enxergar melhor, e uma imensa silhueta começou a se formar diante de mim. Aqueles olhos se moverem e meu coração disparou. Dei um passo para trás, esbarrando na porta que havia se fechado com o vento e escorreguei por ela até o chão.
Os olhos amarelos me encaravam, esperando um movimento errado. Vi as presas longas, brancas e ásperas quando a boca da criatura se abriu, lá dentro parecia o inferno incandescente! Um dragão! Não adiantaria gritar ou implorar, conhecia a fama deles pelas histórias da guerra. Criaturas desalmadas com coração de pedra. Fechei os olhos, quase implorando para que me desse uma morte rápida. Mal cheguei a duas décadas de vida e terminaria assim, morta por uma das bestas que haviam desaparecido a muito dessas terras.
Senti o calor daquela caverna incandescente em sua boca quando ele aproximou a cabeça de mim e bufou. Fechei os olhos e esperei pela dor, porém, um clarão de luz vermelha me fez abri-los novamente. O que estava em minha frente, em nada se parecia com o demônio de segundos antes.
Um homem elegante segurava uma bola de fogo na mão ao lado do rosto, vestia uma túnica negra com botões de ouro e um dragão bordado na altura do peito, calças escuras e botas na altura dos joelhos, um manto negro com pele de raposa branca lhe cobria os ombros largos. Ele tinha o rosto lindo, ossos largos, bochechas pronunciadas e lábios cheios, olhos de um castanho intenso, quase avermelhado, sobrancelhas grossas unidas pelo vinco em sua testa e uma trança longa e negra lhe caía por cima do ombro. Não conseguia desviar o olhar, parecia que todo o ar do ambiente pertencia a ele. O homem, que eu sabia ser um draconiano, estendeu a mão para mim. Se não tinha me matado ainda, talvez não fosse mais fazer, peguei a mão grande que quase engoliu a minha e fui erguida. Céus! De pé eu mal batia em seu peito!
– A fazenda é sua? – Ele perguntou, a voz grave fez minha pele vibrar e queimar, encolhi o corpo e assenti.
– S-sim senhor.
– Perdão por ter entrado sem permissão. – Explicou-se fazendo uma reverência breve.
– Hmm tudo bem, não causou nenhum estrago. – Olhei em volta, nada havia sido destruído a não ser o feno amassado. O draconiano deu um sorriso quase zombeteiro e comentou:
– Não podia causar mais danos do que o tempo infringiu a esse lugar! – Franzi o cenho para ele, soltei a mão que ainda estava segurando e a apoiei no quadril.
– Não parecia tão ruim na hora que invadiu dormir, não é? Se não gostou, saia! – Retruquei, mas imediatamente me arrependi, sentindo meu rosto queimar. Ele podia levar a fazenda as cinzas se quisesse. Esperei ser repreendida, mas não desviei o olhar, ele então inclinou a cabeça e gargalhou como se tivesse escutado melhor piada do mundo.
– Como se chama? – Pisquei aturdida.
– Mavis. – Respondi mais contida dessa vez.
– Mavis... – Ele sussurrou o nome perto demais de meu rosto. – Obrigado pelo abrigo. – O draconiano fez a chama em sua mão desaparecer, abriu as portas do galpão e saiu. Fiquei olhando ele desaparecer entre a plantação em direção a cidade, só então me permiti desabar novamente e respirar fundo. Parecia que aquele fogo havia deixado algo em brasas dentro do meu peito, algo que fervia através de minhas veias.
**
A cidade estava agitada logo cedo. O povo corria de um lado para outro arrumando o que parecia ser um festival, o cheiro de comida humana invadia minhas narinas, mas a sujeira das ruas e dos corpos daqueles homens imundos também, acabando completamente com meu apetite. Enquanto caminhava pela estrada principal em direção ao castelo, todos se afastavam e faziam reverências mantendo-se fora do caminho, com razão, reconheciam o brasão do dragão dourado em meu peito que estampava as bandeiras negras do reino de Dracken. Isso me fez voltar os pensamentos a garota humana mais uma vez e aquele calor que nada tinha haver com meu poder me invadiu. Não era comum que nós dragões criássemos vínculos afetivos com outros que não fossem de nossa espécie, só havia aceitado a mão da filha do rei Vicerne pois sabia que era seu bem mais precioso e que nada mais poderia oferecer que fosse de algum valor para mim. Uma união como essa beneficiaria os dois reinos, casamentos entre nossas raças já havia acontecido e era possível uma vez que os sangues-puros podiam mudar para formas humanas.
Mas a garota humana... Ela era bonita, mais que bonita. Prendeu minha atenção desde o momento que pisou naquele galpão. Os ombros estreitos e o corpo esguio e curvilíneo, a pele dourada pelo trabalho do campo, os olhos! Um olho verde, outro de um avelã intenso, lábios cheios em formato de coração e cabelos cacheados, escuros como a noite sem estrelas. Mas não foi apenas sua aparência que me chamou a atenção, ela me viu em minha forma real, viu quando mudei e mesmo assim teve a audácia de me retrucar e me mandar embora! Jamais havia sido desafiado por um humano, mesmo durante a guerra.
Cheguei ao castelo em pouco tempo, guardas e um mensageiro me receberam aos portões. Não trocaram uma palavra comigo enquanto caminhávamos para dentro do castelo, até a sala onde Vicerne, já nos seus avançados dias, cabelos brancos e olhos cinzentos, me esperava.
– Connal. – Vicerne fez uma reverência, nada de boas-vindas. Para ele eu era apenas um inimigo que vinha tomar sua filha. A jovem que se escondia atrás dele ficou aparente.
– Vicerne. – Aproximei-me e lhe cumprimentei, ele virou para a jovem, que exalava medo tanto quanto ele e a apresentou:
– Essa é Dya, minha única filha. – Parecia que estava implorando para que eu não a levasse com os olhos, mas dívida era dívida. A jovem deu um passo à frente e fez uma reverência.
– Majestade, é uma honra finalmente conhece-lo! – Disse com a voz trêmula. Sorri exibindo as presas e ela se encolheu, pequena mentirosa! A princesa era bonita, cabelos quase dourados e olhos azul-cinzentos, pele tão alva que podia ver as veias azuladas em seu pescoço e pulsos. O corpo um tanto magro demais, espremido no vestido azul e creme a deixava com aparência ainda mais frágil. Ninguém em juízo perfeito entregaria uma criatura tão delicada a um de nós, mas esse era o trato que ele mesmo ofereceu. Estendi a mão para a jovem, queria sair dali o quanto antes, porém ao estender a mão, ela deu um soluço e olhou para o pai, os olhos tão assustados quanto de uma gazela em fuga.
– Já vai? – Ele se ergueu do trono – Não quer esperar nem para comemorar o festival de inverno? Começa hoje a noite!
Olhei os dois por alguns instantes, o olhar da princesa praticamente implorava por mais um pouco de tempo com o pai. Respirei fundo e bufei:
– Podemos ficar até o fim do festival. – A princesa deu um pulinho sorrindo e beijou a face enrugada do pai, ele lhe afagou as costas me fez outa reverência em agradecimento.
Passei o dia no castelo aguardando o festival, ouvindo a princesa falar sobre a cultura local como certamente fora instruída a fazer pelo rei, porém estava mais entediado que qualquer coisa. Ao cair da noite, a princesa retornou vestida num vestido cor de sangue bordado em dourado, os cabelos louros entrelaçados numa tiara de rosas brancas. Estendi o braço, a princesa hesitou, mas por fim o pegou e seguimos juntos para o festival.
As pessoas se esquivavam ainda mais quando estava junto com ela, a maneira com que Dya sorria timidamente para eles fez um alerta que a muito não sentia, revirar-se inquieto dentro de mim. Porém sabia bem que as vezes era só coisa da minha imaginação, o reino humano tinha muito para nos confundir.
Dya me conduziu até onde a música dos violinos e tambores se erguia até o céu, no centro da praça onde pessoas dançavam e cantavam, batendo os pés no ritmo contagiante da melodia. Pensei em tirar Dya para uma dança, porém um homem já bêbado esbarrou na princesa, e a pegou pela cintura.
– Uma beleza dessas não devia ficar parada aqui! – Cantarolou com a voz embargada. Um rosnado de irritação me subiu pelo peito quanto ele esbarrou em mim para puxá-la, derramando vinho em minhas botas. O peguei pelo pescoço, fazendo-o deixar o copo cair. Dya deu um grito histérico e se afastou assustada, desaparecendo em meio as barracas. A música parou e a roda de dança também. Passei os olhos pela multidão, irritado, mas a irritação desapareceu ao vê-la em meio ao povo. Mavis estava num vestido azul como o céu noturno, uma tiara de flores de inverno dos mais belos tons de violeta e vermelho, os olhos incandescentes contra a luz da fogueira me fulminaram. Ela olhou em volta e bateu as palmas, mesmo aturdidos, os músicos voltaram a música, então ela veio em minha direção. Passos suaves e decididos, como se a noite a impulsionasse em minha direção. Ela tocou meu braço que ainda estava estendido e soltou meus dedos, um por um do pescoço do homem e o empurrou para longe.
– Que feio! Não estrague a festa dos outros! – Ela grunhiu puxando minhas mãos, uma colocou em sua cintura e a outra apertou a minha mão livre, levando-me até o meio da roda.
– O que está fazendo?
– Tirando o medo deles. – Ela sorriu, então a conduzi através das batidas do tambor numa dança quase mística ao redor da fogueira. Não conseguia desviar os olhos dela, da boca que mantinha um sorriso alegre, os olhos de duas cores que não desviavam dos meus, sem nenhum pingo de medo.
– Não perguntei seu nome. – Ela falou alto, talvez para ela a música atrapalhava me ouvir, mas sua voz era a única que escutava acima da melodia. Inclinei-me para frente, roçando de leve a boca em sua orelha:
– Connal Ganmuk. – Quando me afastei para olhar seu rosto, ela estava com os olhos arregalados e rosto corado.
– Rei de Dracken. – Sua voz não passou de um sussurro.
– Nada de reverências? – Zombei.
– Não, já te expulsei do meu galpão, não faria sentido me curvar agora. – Ela deu um risinho. Foi difícil resistir a pontada de humor, a curva graciosa que seus lábios fizeram ao sorrir. Tive vontade de a beijar ali mesmo, diante de toda aquela gente que sabia que eu estava ali para cortejar e levar embora a princesa de Alendal. Mavis sorria enquanto a conduzia por aquela roda de dança, nem imaginava o que passava em minha mente naquele momento. A ausência do medo e sua irreverência a deixaram ainda mais linda. Não conseguia entender o que ela aquele desejo primitivo que ameaçava quebrar meu controle, nunca havia acontecido antes.
– Acho que podemos nos dar bem, Mavis. – Comentei.
– Mas eu apenas fui grosseira com você! – Ela sussurrou.
– Acho que os espinhos selecionam aqueles que se aproximam das rosas. – Sorri de volta e continuei a dançar com ela noite a dentro, distraído demais com o brilho em seus olhos para notar um sorriso cruel em meio aos espectadores de nossa dança.
Emilly Amite
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